Você está na página 1de 8

A NEUROCIÊNCIA E A PROPOSTA FISICALISTA: UMA ALTERNATIVA PARA SE

PENSAR O COMPORTAMENTO E O PROCESSO COGNITIVO

Claudia Castro de Andrade


Mestranda HCTE/UFRJ
claudiacastro@ufrj.br

Resumo: Esta pesquisa refere-se aos estudos do campo da neurociência e suas extensões, tal
como a neuropsicologia, a neuroanatomia e a neurofisiologia, e busca ressaltar a ligação entre
os processos físicos e cognitivos e, ao mesmo tempo, superar antigas concepções dualistas
acerca da relação entre a mente e o cérebro. Proponho-me então a analisar o comportamento e
o conhecimento humano em seus aspectos fisicalistas e através do que nos tem revelado as
pesquisas científicas pensar a relação entre cognição e áreas específicas no encéfalo, como,
por exemplo, a relação entre o pensamento e a expansão do córtex frontal. Conto com o
aporte teórico de Paul e Patrícia Churchland; Roberto Lent; Eva Jablonka; Marion J. Lamb;
Alexander Luria; Antonio Damásio, Michael Gazzaniga, Steven Pinker, entre outros.
Palavras-chave: Neurociência; neuropsicologia; filosofia da mente; sistemas neurais e
sistemas comportamentais.

1. A RELAÇÃO MENTE-CORPO EM UM DIÁLOGO ENTRE A


NEUROCIÊNCIA E A FILOSOFIA
A relação entre a mente e o corpo sempre fez parte do escopo das discussões filosóficas.
Com René Descartes, esse tema aflorou de forma dualista, separando, como substâncias
distintas, a res extensa (corpo extenso) da res cogitans (alma de qualidade inextensa). As
qualidades físicas, portanto, seriam diferentes da substância mental. Assim, a mente foi posta
como algo não-físico e que, portanto, não poderia se reduzir a um substrato físico e, desse
modo, por exemplo, não pereceria juntamente com o corpo e como ele. Em outros termos,
isso equivale a dizer que a degeneração física do cérebro não implicaria, então, em nada no
domínio mental, pois além de serem de substâncias e possuírem qualidades diferentes, a
mente não estaria subordinada às mesmas leis físicas a que está o corpo físico.

Segundo a teoria cartesiana, a realidade se divide em dois tipos básicos de


substância. O primeiro deles é a matéria comum, e a característica essencial desse
tipo de substância é ocupar o espaço (...) Mas havia um setor isolado da realidade
que ele acreditava não poder ser explicado nos termos da mecânica da matéria: a
razão consciente do ser humano. Esse era seu motivo para propor um segundo, e
radicalmente diferente, tipo de substância, uma substância sem extensão ou posição
no espaço, uma substância cuja característica essencial era a atividade de pensar.
Essa concepção é conhecida como dualismo cartesiano. [grifo do autor]
(CHURCHLAND, P. M. 2004, p. 26-27).

Além do dualismo manifesto por esta teoria, convém notar que Descartes desenvolve
sua filosofia tendo como base fundante a introspecção e a auto-reflexão. No entanto, essa
filosofia moderna – marcada tanto por correntes racionalistas que fundamentavam o
conhecimento pelo uso do método dedutivo que ressaltava a razão humana, quanto por
empiristas que se pautavam no método indutivo para fundamentar a realidade mediante a
observação empírica – passou a ser questionada e tal crítica veio da própria filosofia e, mais
especificamente, da filosofia contemporânea que fez emergir a necessidade de um pensamento
fundamentado no rigor lógico e científico. Desse modo, como afirma o filósofo Danilo
Marcondes, o “questionamento ao projeto moderno se faz, em grande parte, nos termos de um
ataque à centralidade atribuída à noção de subjetividade nas tentativas de fundamentação do
conhecimento empreendidas pelas teorias racionalistas e empiristas” (2012. p. 256).
O Círculo de Viena, ou neopositivismo lógico, por exemplo, trouxe para a filosofia a
urgência de se pensar em temas filosóficos clássicos sob a luz do conhecimento científico. A
filosofia passou a ter então sua autonomia questionada no que concerne à fundamentação do
conhecimento. E a ciência, por sua vez, era inserida no pensamento acerca de temas que
pertenceram em outrora tradicionalmente apenas à filosofia. Sobre a filosofia analítica, cujo
objetivo era introduzir a necessidade de uma análise lógica e de base científica, Marcondes
comenta ainda que o objetivo de sua crítica ao idealismo subjetivista “diz respeito
precisamente à questão da fundamentação do conhecimento científico: como os atos mentais,
sendo subjetivos, podem ter a validade universal, objetiva, que se requer na ciência?
[grifo meu] (2012, p. 265).
É com essa pergunta que as teorias materialistas, em oposição às teorias dualistas, vão
pensar a relação mente-corpo em termos monistas, pautado sob o argumento de que não se
poderia falar de comportamento e processos cognitivos sem se considerar o estudo de nossos
aparatos físicos. A percepção deixa de ter então uma perspectiva essencialista, de base inatista
para ser compreendida em termos fisicalistas que visam justificar o estudo da mente a partir
dos achados científicos dos quais dispomos. E o dualismo desaparece ao se tratar a relação
entre a mente e o cérebro enquanto uma relação que envolve um processo de unidade
interativa.
Tendo como objetivo, então, analisar a relação entre os sistemas físicos e os processos
cognitivo e comportamental, este estudo não poderia se limitar a uma análise estritamente
filosófica, tendo em vista que diante de tantas áreas voltadas para desvendar o problema
mente-corpo, a exclusividade por este tipo de pesquisa ontológica não pode mais ser
considerada como exclusividade da filosofia. (Churchland, 2004).
Com isso, ao buscar elementos de pesquisa de reconhecida comprovação empírica no
que concerne aos avanços que envolvem a ciência cognitiva, tenciono demonstrar uma
relação, não somente possível, mas, sobretudo, necessária, entre a mente e o cérebro,
agregando, desse modo, conhecimentos científicos e filosóficos. Além disso, considerando
então que a maturação do sistema nervoso é fundamental para a compreensão da mente, parto
do princípio de que os estudos voltados para este tipo de pesquisa precisam levar em
consideração os processos evolutivos e a ocorrência destes processos no sistema nervoso
como fundamental para a mudança perceptiva e comportamental do homem.
A discussão sobre o problema mente-corpo ainda que antiga, ainda protagoniza a
discussão entre dualistas e monistas. Segundo Chalmers (1996), por exemplo, que defende o
dualismo, a consciência não se reduz a estados físicos, por outro lado, para Paul Churchland,
faz-se necessário uma compreensão considerando-se, sem dúvida, os aspectos fisicalistas, pois
o fato de termos um sistema nervoso “torna possível uma orientação discriminativa do
comportamento” (2012, p. 47). E, ainda segundo Churchland, se isso está correto, então não
precisamos introduzir “substâncias ou propriedades não-físicas em nossa explicação teórica
de nós mesmos. Somos criaturas da matéria. E deveríamos aprender a conviver com esse fato.
(id. ibid.).
Buscando então superar a discussão entre monistas e dualistas, a neurociência
cognitiva pretende justamente mostrar como as atividades do encéfalo constroem aquilo que
denominamos “mente” (Bear, Connors & Paradiso, 2010). São muitas as evidências já
encontradas pela neurociência que, mediante a investigação de áreas específicas do córtex,
conseguem demonstrar a relação entre estímulos e lesões dessas áreas e suas respectivas
fisiologias comportamentais.

Por exemplo, cada um dos hemisférios do cérebro humano contém um giro temporal
superior, giros pré e pós-central, um giro parietal superior e um giro occipital lateral,
só para mencionar alguns. Cada um desses giros é constituído de grupos muito
específicos de células que têm conexões e funções também muito específicas. Por
exemplo, as células do giro pós-central nos capacitam a reconhecer de modo
consciente a estimulação sensorial, enquanto as células no giro pré-central
controlam a habilidade de mover voluntariamente partes do corpo. (TAYLOR, 2008,
p. 156).
Fundamentando-se, portanto, na relação entre aspectos físicos e mentais, muitos cientistas
dedicaram-se ao estudo observacional post-mortem das áreas cerebrais em pacientes que, em
vida, apresentaram algum tipo de deficiência motora ou cognitiva. O objetivo desse estudo era
procurar a relação entre danos físicos e seus respectivos déficits psíquicos ou motores. O
método conhecido como “ablação experimental” foi uma técnica que possibilitou aos
neurocientistas investigarem essas relações. A técnica anátomo-clínica, portanto, desenvolvida
por alguns neurologistas e fisiologistas foi possível, portanto, graças à descoberta de regiões
encefálicas e suas respectivas funcionalidades. Depois de examinar o encéfalo de um antigo
paciente, o neurologista Paul Broca encontrou uma lesão no lobo frontal esquerdo deste
paciente e concluiu ser aquela região responsável pela fala. Desse modo, a perda das
habilidades da fala ficou conhecida como “afasia de Broca”, pois, “uma lesão na área de
Broca interfere gravemente na produção da fala” (Bear, Connors & Paradiso, 2010, p. 625),
embora não impeça a compreensão da linguagem. Já a lesão conhecida como “afasia de
Wernicke”, localizada na região posterior esquerda do giro temporal, numa área cortical de
mesmo nome, “área de Wernicke”, em vista de ter sido descoberta pelo neurologista Carl
Wernicke, causa déficits de compreensão da linguagem, mas não de fala. Esses achados
científicos caracterizaram o chamado “Localizacionismo Estreito”, termo atribuído à
localização das funções mentais no cérebro. No mapa baixo, vemos as imagens das áreas
citadas:
1) Áreas de Broca e de Wernicke:
Broca = Lobo frontal esquerdo Wernicke = Lobo temporal esquerdo

Fonte: http://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/03/BrocasAreaSmall.png
A neurociência caminha, então, para um estudo mais avançado dessas áreas encefálicas. Com
os avanços dos estudos do SNC (Sistema Nervoso Central), e do SNP (Sistema Nervoso
Periférico), pode-se compreender o processo de interação entre a sensação e a percepção
através de análises da condução neuronal por vias aferentes ou sensoriais e vias eferentes ou
motoras, levando-se em conta que a descoberta desse funcionamento físico talvez nos
permita construir uma matriz teórica de pensamento sobre o processo cognitivo, de modo a
nos fazer pensar em termos filosóficos sobre o funcionamento desse sistema, questionando
assim matrizes teóricas já estabelecidas, como por exemplo, as teorias que defendem a
existência de entidades distintas da matéria, como substâncias ou propriedades não físicas,
para as quais seria um absurdo qualquer reducionismo físico da mente, tal como propuseram
os dualistas de substância, ou ainda as teorias que pressupõem que todo comportamento
humano ocorre mediante estímulos e respostas, sem qualquer causação mental, como
propuseram os behavioristas. (Churchland, 2004).
1. A QUESTÃO MENTE-CÉREBRO SOB O PONTO DE VISTA
NEUROCIENTÍFICO
Para entender a relação entre pressupostos teóricos e a neurociência, é importante destacar
não só as teorias, mas, também, os processos físicos a partir do que se tem descoberto no
campo neurocientífico. Em relação aos critérios anatômicos, o Sistema Nervoso Central
corresponde ao encéfalo e à medula espinhal. Já o Sistema Nervoso Periférico (SNP)
subdivide-se em Sistema Nervoso Somático (SNS) e Sistema Neurovegetativo (SNV) e
pelos tipos neuronais, aferentes, associativos e eferentes.

2. 1. Sistema Nervoso Sensorial e Sistema Neurovegetativo


O Sistema Nervoso Sensorial (SNS)
Podemos controlar consciente e voluntariamente os movimentos, e é o sistema nervoso
somático, ou sistema nervoso voluntário, que está relacionado com as ações volitivas e
conscientes do indivíduo. O sistema somático, por ser sensível aos estímulos do ambiente, nos
permite reconhecer sensações tais como o frio, o calor, a dor.
O SNS é responsável pela relação e contato entre o organismo e o meio e, através de
neurônios aferentes, conduzem impulsos de receptores periféricos ao SNC, enviando,
portanto, informações do mundo exterior, somático-sensoriais, ao SNC. Esta relação e contato
são realizados através de receptores sensoriais que através dos impulsos transmitidos por
neurônios aferentes responsáveis pela captação “levam informação dos receptores sensoriais
somáticos à medula espinhal ou ao tronco encefálico” (Bear, Connors & Paradiso, 2010, p.
392) e que, por meio de vias eferentes somáticas, produzem, por sua vez, respostas aos
estímulos trazidos pelas vias aferentes somáticas. Está demonstrada então a relação entre a
sensação e a percepção, pois não apenas sentimos, mas também compreendemos o que
estamos sentindo e enviamos respostas a esses estímulos sensoriais.

O Sistema Neurovegetativo (SNV)


Também chamado de Sistema Involuntário e Autônomo, o Sistema Neurovegetativo
(SNV) “é formado pelas divisões simpática e parassimpática, e é concebido como a via
eferente das reações de controle dos órgãos e tecidos do corpo de um modo geral, produzidos
por motivos homeostáticos, ou como expressão das emoções”. (Canteras & Bittencourt, 2008,
p. 239). Este sistema não se relaciona aos nossos estados conscientes e voluntários, pois
regula os órgãos internos, cujo funcionamento independe de nossa vontade. Através de vias
eferentes viscerais conduzem estímulos ao músculo liso, pele e glândulas, transmitindo assim
para a periferia as informações geradas no SNC.

2. 2. Neurônios aferentes, eferentes e associativos


Neurônios aferentes ou sensoriais
Os neurônios aferentes ou sensoriais são responsáveis, como vimos, por levar uma
informação dos receptores ou órgãos dos sentidos para o SNC. O neurônio aferente contém
apenas um longo dendrito e um axônio curto, enquanto que a forma do corpo celular é
arredondada.

3) Neurônios aferentes:

Os neurônios aferentes, portanto, conduzem a informação acerca das condições


exteriores ao SNC conectando-se à medula espinhal ou ao troco encefálico (SNC), através da
raiz dorsal. Porém, enquanto as raízes dorsais levam informações sensoriais para o SNC, são
as raízes ventrais que levam informações sensoriais aos músculos (SNP). A raiz dorsal entra
pela parte de trás da medula espinhal e a raiz ventral entra na medula espinhal pela parte da
frente, como pode ser visualizado abaixo:

4) A raiz dorsal e a raiz ventral:


Fonte: NETTER, Frank H. Atlas de Anatomia Humana. Porto Alegre: Artmed, 2004.
Já sabemos que os aferentes levam informações sensoriais para o SNC. Mas, vale ressaltar
que os neurônios sensoriais primários são neurônios cujos neuritos encontram-se “nas
superfícies sensoriais do corpo como a pele e a retina dos olhos” (Bear, Connors & Paradiso,
2010, p. 46), ou seja, conectam-se às superfícies sensoriais.
Os neurônios que fazem sinapses com outros neurônios são chamados de neurônios
associativos ou interneurônios.

2. 3. Neurônio eferente ou motor


Os neurônios eferentes ou motores são responsáveis por levar uma informação do
sistema nervoso central para os músculos e glândulas (órgãos ou estruturas afetoras que
constituem o SNP). Estes neurônios possuem um longo axônio e pequenos e numerosos
dendritos. Os neurônios motores são aqueles então que fazem sinapses com os músculos e
são responsáveis pelo comando dos movimentos.

5) Neurônios eferentes:

Neurônios eferentes, portanto, são aqueles que saem do SNC (output) conduzindo a
informação para os músculos (SNP), e isso ocorre por estímulo dos aferentes que recebem
informações do ambiente e que, em vista disso, estimulam os neurônios eferentes. Por outro
lado, podemos considerar que os neurônios eferentes não necessariamente caracterizam-se, do
ponto de vista somático, como uma resposta aos estímulos dos aferentes, provenientes do
ambiente. Podemos considerar, por exemplo, que eles possam ser estímulos somáticos
autônomos sem qualquer vínculo com os aferentes e não ser mera resposta a esses estímulos
aferentes, mas sim, que eles possam ser independentes desses estímulos. Os neurônios
eferentes demonstram, sem dúvida, um correlato interno entre o SNC e o SNP.

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
BEAR M. F., CONNORS B. W, & PARADISO, M. A. Neurociências: desvendando o
sistema nervoso. Rio de Janeiro: Artmed, 2010.

CANTERAS, N. S.; BITTENCOURT, J. C. Comportamentos Motivados e Emoções. In:


LENT, R. (Coord.) Neurociência da mente e do comportamento. Rio de Janeiro: Guanabara
Koogan, Cap. 10, p. 227-240, 2008.

CHALMERS, The conscious mind: In search of a fundamental theory. Oxford: Oxford


University Press, 1996.

CHURCHLAND, P. M. Matéria e consciência: uma introdução contemporânea à filosofia


da mente. São Paulo: Editora UNESP, 2004.

_____- O materialismo eliminativo e as atitudes proposicionais. 1981. Disponível em:


http://mlag.up.pt/wp-content/uploads/2011/05/CHURCHLAND-2.pdf Acessado em:
25/05/2012.

DESCARTES, R. Meditações metafísicas. São Paulo: Abril Cultural. Coleção Os


Pensadores, 1984.

FODOR, F. A. The mind-body problem, Scientific American Vol. 244 (N. º 1): 114 -123.
Janeiro, 1981. Tradução de Saulo de Freitas Araujo (Universidade Federal de Juiz de Fora),
disponível no sítio Filosofia da Mente no Brasil:
http://www.filosofiadamente.org/images/stories/textos/fodor.doc Disponível também em:
http://www.lscp.net/persons/dupoux/teaching/QUINZAINE_RENTREE_CogMaster_2010-
11/Bloc_philo/Fodor_1981_mind_body_problem.pdf Acessado em: 12/05/2012.

MARCONDES, D. Iniciação à história da filosofia: dos pré-socráticos á Wittgenstein. 13ª


impressão. Rio de Janeiro: Zahar, 2012.

TAYLOR, J. B. A cientista que curou seu próprio cérebro: o relato da neurocientista que
viu a morte de perto, reprogramou sua mente e ensina o que você também pode fazer.
Rio de Janeiro: Ediouro, 2008.

Você também pode gostar