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EnANPAD 2018

Curitiba/PR - 03 a 06/10/2018

Resiliência e Feminismo no Movimento Agroecológico Brasileiro sob uma Perspectiva


Decolonial

Autoria
Flávia Luciana Naves Mafra - flanaves@dae.ufla.br
Prog de Pós-Grad em Admin - PPGA/UFLA - Universidade Federal de Lavras

YUNA SOUZA DOS REIS DA FONTOURA - yunareis@gmail.com


Mest Executivo em Gestão Empresarial/FGV/EBAPE - Fundação Getulio Vargas/Esc Brasileira de Admin Pública e de
Empresas

Samanta Borges Pereira - samantaborges81@gmail.com


Prog de Pós-Grad em Admin - PPGA/UFLA - Universidade Federal de Lavras

Douglas Antonio Vilas Boas - douglas-vilasboas@hotmail.com


Prog de Pós-Grad em Admin - PPGA/UFLA - Universidade Federal de Lavras

Agradecimentos
Os autores agradecem à FAPEMIG

Resumo
No presente artigo teórico-empírico, buscamos contribuir para os Estudos Organizacionais
trazendo para o debate a aproximação entre feminismo e outros movimentos sociais, no caso,
o movimento agroecológico no Brasil. Para isto indagamos: Como a construção da
resiliência das mulheres se relaciona com o feminismo no movimento agroecológico?
Particularmente, nesse trabalho, analisamos a resiliência das mulheres (ou resiliência
feminista), partindo do pressuposto que, no contexto de uma sociedade marcada pela
colonialidade, as mulheres são constantemente subalternizadas. A partir das lentes do
feminismo decolonial buscamos compreender as desigualdades de gênero no Brasil,
refletidas no movimento agroecológico, explicitando que a própria categoria gênero, tratada
de forma homogênea, é uma ficção que mantém a colonialidade do poder. Para isso
desenvolvemos uma pesquisa de campo qualitativa, com coleta de dados por meio de
entrevistas semiestruturadas. Ao final destacamos quatro principais aspectos da narrativa do
feminismo no movimento agroecológico, o que nos permitiu desvelar os meandros da
construção da resiliência feminista.
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Resiliência e Feminismo no Movimento Agroecológico Brasileiro sob uma Perspectiva


Decolonial

Resumo

No presente artigo teórico-empírico, buscamos contribuir para os Estudos Organizacionais


trazendo para o debate a aproximação entre feminismo e outros movimentos sociais, no caso, o
movimento agroecológico no Brasil. Para isto indagamos: Como a construção da resiliência das
mulheres se relaciona com o feminismo no movimento agroecológico? Particularmente, nesse
trabalho, analisamos a resiliência das mulheres (ou resiliência feminista), partindo do
pressuposto que, no contexto de uma sociedade marcada pela colonialidade, as mulheres são
constantemente subalternizadas. A partir das lentes do feminismo decolonial buscamos
compreender as desigualdades de gênero no Brasil, refletidas no movimento agroecológico,
explicitando que a própria categoria gênero, tratada de forma homogênea, é uma ficção que
mantém a colonialidade do poder. Para isso desenvolvemos uma pesquisa de campo qualitativa,
com coleta de dados por meio de entrevistas semiestruturadas. Ao final destacamos quatro
principais aspectos da narrativa do feminismo no movimento agroecológico, o que nos permitiu
desvelar os meandros da construção da resiliência feminista.

Palavras-chave: feminismo decolonial, movimento agroecológico, resiliência, resistência.

1 Introdução

Nas últimas décadas, o movimento agroecológico consolidou-se como a mais efetiva oposição
contra a hegemonia econômica do agronegócio no setor agrícola brasileiro, colocando-se
explicitamente contra as práticas intensivas de capital introduzidas por este modelo. O
movimento propõe um modelo de conhecimento intensivo que seja direcionado,
principalmente, a pequenos agricultores e para regiões de elevada biodiversidade (HOLT-
GIMÉNEZ e ALTIERI, 2013; MELGAREJO et al., 2013). Como parte de sua agenda de luta,
o movimento passa a mobilizar politicamente o lema: “Sem feminismo, não há agroecologia”
(ANA, 2015), reforçando a importância da questão de gênero e do protagonismo social das
mulheres no meio rural para o “repensar” da realidade do campo no país (BROCHNER, 2014;
SILIPRANDI, 2009; OSBORNE, 2008). No entanto, ainda não está claro como a militância
feminista se dá na prática e como se relaciona com os processos de resiliência e resistência no
movimento agroecológico. Neste sentido, no presente artigo indagamos: Como a construção
da resiliência das mulheres se relaciona com o feminismo no movimento agroecológico?

Para isto, partimos da compreensão de que o feminismo não é homogêneo, ele é complexo e
envolve muitos debates em termos teóricos e práticos (ALMENDRA, 2014; BROCHNER,
2014; SILIPRANDI, 2009; OSBORNE, 2008). Particularmente na América Latina, tem se
fortalecido uma vertente do feminismo (feminismo decolonial) que defende que os feminismos
do século XX não atendem às necessidades das mulheres não-brancas-burguesas e seguem o
sistema moderno/colonial de gênero, contribuindo para manter uma hegemonia contra a qual
estão tentando lutar (LUGONES, 2008; TLOSANOVA E KOOBAK, 2016). Uma das
tendências do feminismo na América Latina é sua transversalização, seja ela vertical (em níveis
de governo, por exemplo) ou horizontal (junto a outros movimentos sociais) (MATOS, 2010).
Ressaltamos que a interação entre feminismo e outros movimentos sociais contemporâneos -
como é o caso do movimento agroecológico no Brasil- também é complexa e requer um olhar
investigativo cuidadoso em Estudos Organizacionais. No contexto latino-americano, de muitas
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desigualdades sociais e poucos consensos, revelados nos dilemas da sociedade capitalista,


evidenciados e vivenciados no âmbito dos espaços de resistência (SPICER e BÖHM, 2007), a
aproximação entre feminismo e movimentos sociais se mostra mais evidente (MATOS, 2010;
SILIPRANDI, 2009). Todavia, as diferentes propostas contra hegemônicas nos movimentos
sociais são muitas vezes contraditórias, ignorando as demandas feministas (RAJAN, 2000) e
não rompendo com as relações hierárquicas entre homens e mulheres. A vivência dessas
contradições pode ser um processo frustrante para as mulheres, reproduzindo relações de
subalternização e deslegitimando movimento movimentos sociais pela ótica das mulheres.

Contudo, muitas das conexões propostas por tais movimentos são importantes frentes de luta
para as mulheres, funcionando como espaços de aprendizado, compartilhamento, construção de
propostas e concretização de projetos feministas.

Essas múltiplas possibilidades reforçam nosso interesse pela resiliência como constructo a ser
investigado no presente estudo. A resiliência é condição de existência e se faz necessária como
forma de superar as contradições presentes na luta diária (YOUNG et al, 2008; JOB, 2003;
CONTU, 2002). No caso de um movimento como o agroecológico, a resiliência feminista
implica em construir condições para superar a colonialidade de gênero e também as
contradições enfrentadas pelo movimento como um todo. Portanto, diante da crescente agenda
do feminismo no movimento agroecológico, faz-se necessário aprofundarmos na relação entre
a construção da resiliência das mulheres e o feminismo nesse movimento, como um processo
contínuo e dinâmico.

Para isso, optamos por um olhar decolonial sob o fenômeno em análise, por tratar-se de um
feminismo inserido em um processo de luta contínua, em uma realidade latina, marcada pela
subalternização e que resiste, sobretudo, à uma relação contemporânea de colonialidade
(WALSH, 2006; LUGONES, 2008; LUGONES, 2010).

As reflexões teóricas estão organizadas articulando resiliência e decolonialidade, seguidas do


tópico feminismo, feminismo decolonial e agroecologia. Além de abordagem teórica,
exploramos a operacionalização da pesquisa na sessão de metodologia a partir da análise de
narrativa do feminismo no movimento agroecológico.

2 Resiliência e Decolonialidade

Resiliência é termo frequente no debate sobre agroecologia (com ênfase na perspectiva


ecológica) referindo-se à capacidade de um sistema de absorver perturbações e reorganizar-se
enquanto sofre mudanças de modo a reter essencialmente a mesma função, estrutura, identidade
e regeneração (WALKER et al. 2004). Nesse sentido, organizações voltadas para a
compreensão e difusão dos preceitos da agroecologia têm atuado em um movimento eco
político de incentivo à uma agricultura que responda mais ativamente aos distúrbios ambientais
face às mudanças climáticas (ALTIERI; NICHOLL, 2017; MERCER; PERALES, 2010). As
observações do desempenho agrícola após eventos climáticos extremos nas últimas duas
décadas revelaram que a resiliência às catástrofes climáticas está intimamente ligada ao nível
de biodiversidade e práticas de diversificação, heterogeneidade que confere estabilidade e
resiliência aos sistemas (ALTIERI, TOLEDO, 2011; MERCER; PERALES, 2010). Contudo,
o monitoramento de experiências agroecológicas no mundo mostra que o termo “resiliência”
precisa ser estendido aos seres humanos quando se fala em remodelação de sistemas produtivos.
Ingram et al (2010) apontam que, para construir a resiliência do sistema, as pessoas e as
instituições devem ser capazes de se auto organizar para se adaptar, inovar e aprender,
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especialmente quando se trata de sistemas agrícolas alternativos. Compreender resiliência


partindo do campo social e humano, é também tarefa complexa, como discutimos brevemente
à seguir.

De forma simplificada, resiliência é uma adaptação positiva em resposta à adversidade


(MORRISON; COSDEN, 1997; WALLER, 2001; YUNES, 2003; BARLACH, 2005, YOUNG
et al, 2008). Apesar da construção conceitual a partir de experimentos na Engenharia e na Física,
na Psicologia, a discussão em resiliência remete a menos de cinquenta anos, ganhando corpo
nos últimos quinze, não havendo ainda uma definição clara nesse campo haja vista a
complexidade de fatores que devem ser considerados quando se trata de estudo dos fenômenos
humanos (YUNES, 2003; UNGAR, 2004).

Os estudos iniciais apropriaram-se do termo invulnerabilidade, cunhado pelo psiquiatra infantil


E. J. Anthony (WERNER; SMITH, 1982). Mas, segundo Rutter (1993), invulnerabilidade
indica uma noção de resistência absoluta ao estresse, característica intrínseca e imutável do
indivíduo, como se não houvesse limites para suportar o sofrimento. O termo invulnerabilidade
passa então a ser questionado, pois sugeriria uma imunidade total, independente das
circunstâncias (YUNES, 2003). Zimmerman e Arunkumar (1994) argumentaram que
resiliência e invulnerabilidade não são equivalentes e que aquela se refere a uma capacidade de
suplantar dificuldades, mas não sem danos ao indivíduo, como indica o termo
invulnerabilidade.

A despeito das críticas, a noção invulnerabilidade tem sustentado pesquisas que reafirmam
resiliência como um conjunto de traços e condições que podem ser replicados, conforme afirma
Martineau (1999). A autora porém, argumenta que reificar/replicar as características de
resiliência é ignorar que ela é contingente/provisória, imprevisível e dinâmica (MARTINEAU,
1999). Ou seja, resiliência não é apenas questão de capacidade individual ou apoio familiar,
mas de desafiar barreiras sociais e estruturais que também criam riscos e adversidades
(COUTU; 2002; JOB, 2003; YOUNG et al, 2008).

Duquesnoy (2015, p. 93), compreendendo resiliência como “a capacidade de tornar um evento


positivo e proveitoso através de sua (auto) história e integrá-lo como um componente da própria
personalidade e história” estudou as mulheres Mapuche que, em defesa do seu povo, valeram-
se da visibilidade na arena política para ampliar seus espaços e suas conquistas, manifestando
uma ação que reflete uma comunidade cultural resiliente.

A pesquisa de Duquesnoy (2015), aponta que, para interpretar a resiliência das mulheres é
preciso compreender o contexto e história específicos nos quais se sustentam a subalternização
das mulheres, bem como as formas de organização e mobilização que elas constroem para
enfrentar a dominação. Em se tratando de América Latina, essa dominação não se refere vínculo
colonial formal, mas ao padrão de poder que se originou nas colônias e perdura até o presente
mantendo desigualdades e identidades estigmatizadas e subalternizadas, chamado de
colonialidade do poder (QUIJANO, 2005).

Resiliência, nesse contexto, implica na integração de ensinamentos vivenciados


cotidianamente, inclusive em experiências negativas. Contudo, essa resiliência não surge de
aceitar e internalizar a imposição colonial, mas sim encontrar maneiras de sobreviver e também
de resistir, buscando bem estar. Assim, resiliência, num ambiente marcado pela colonialidade,
passa pela identificação e compreensão de processos de subalternização e construção de
estratégias para a mudança dessa situação. Nesse caminho, as mulheres latino-americanas,
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assim como as Mapuche, têm se mobilizado e experimentado feminismos diversos, como


discutiremos à seguir.

3 Feminismo, Feminismo Decolonial e Agroecologia

Não se pode tratar o feminismo como um movimento homogêneo. Passando por diversas fases
ao longo da históriai, o feminismo diversificou-se, moldando-se a demandas sociais, culturais e
políticas distintas ao redor do mundo. A perspectiva feminista hegemônica ocidental,
priorizando mulheres brancas-burguesas, revelou-se frágil para compreender e suportar as
demandas identitárias de milhões de mulheres que estariam fadadas a continuar invisíveis
mantendo-se essa interpretação da realidade.

Assim, surgem outros feminismos com visões de mundo, reivindicações e formas de


organização específicas. A América Latina tem se revelado um espaço rico para o
desenvolvimento de experiências feministas (feminismos latino-americanos), que têm suas
próprias virtudes e idiossincrasias (MATOS, 2010), mas que, de forma incisiva, têm enfrentado
a questão da colonialidade.

Destaca-se, no contexto desse artigo, o feminismo decolonial, proposto por Maria Lugones, que
tem se constituído como uma lente mais efetiva para compreender as desigualdades de gênero
no mundo, marcadas por contextos particulares (ALMENDRA, 2014; TLOSANOVA e
KOOBAK, 2016; DIAS, 2014).

Lugones (2010) parte do pressuposto de que a categoria gênero, tratada como homogênea, é
uma ficção que mantém a colonialidade do poder. Para a autora, o conceito de colonialidade do
poder, orginalmente, apresenta uma visão restrita de gênero, desconsiderando sua intersecção
com outras categorias tais como ecologia, economia, trabalho etc (LUGONES, 2010). Ao
elaborar essa crítica, o feminismo decolonial está chamando a atenção para a importância da
interseccionalidade, que revela as opressões conectadas às quais as mulheres estão submetidas.

O feminismo decolonial defende um feminismo dos movimentos de base, que emerja das
diferenças e hierarquias criadas e mantidas pela colonialidade do poder, e que tenha ênfase nas
realidades locais, com suas histórias e subjetividades encarnadas (KOOBAK; MARLING,
2014), sustentado por um entendimento coletivo, compartilhado e comunal do mundo e do viver
no mundo (LUGONES, 2010; DIAS, 2014).

Para além da denúncia, essa abordagem procura jogar luzes sobre os processos de resistência e
resiliência que mulheres constroem e vivenciam nessa luta cotidiana e multifacetada. A
construção desses processos se dá nos entre-lugares (MIGLIEVICH-RIBEIRO; PRAZERES,
2015) espaços onde há opressões conectadas e onde se criam resistências (e se constroem
resiliências) múltiplas e imprevisíveis. Nesses espaços (que não são necessariamente físicos e
permanentes) estereótipos e modelos binários são substituídos por estratégias de subjetivação,
colaboração, contestação e inovação (BHABHA, 1998, p. 20).

Outro conceito importante do feminismo decolonial para compreender os processos de


resiliência feminista é “world-travelling” (LUGONES, 1987) ou viagens entre mundos. Esse
conceito destaca a importância para o enfrentamento da subalternidade, do deslocamento das
mulheres dos mundos aos quais foram acostumadas, aos quais foram conectadas histórica e
socialmente, para um mundo onde são vistas como outsiders (DIAS, 2014). Essa viagem torna
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possível às mulheres se identificarem com o diferente; viajando para o “mundo” dos outros as
mulheres podem entender o que é ser eles, e o que é ser elas mesmas aos olhos deles
(LUGONES, 1987). Tal exercício se intensifica, à medida que a tendência a horizontalização
do movimento feminista a outros movimentos sociais se consolida na América Latina.

Tanto o conceito de entre lugares como viajar entre mundos apontam para processos que são
individuais e também coletivos. A dimensão coletiva, o espaço dos grupos, têm importância
significativa no feminismo decolonial. “A passagem das práticas vividas, valores, crenças,
ontologias, espaço-tempos e cosmologias, de boca em boca e de mão em mão, constitui o ser”
(LUGONES, 2010, p.754).

Aproximações discursivas apontam que o movimento agroecológico, no mínimo, tangencia o


feminismo decolonial ao reconhecer os “silêncios” das mulheres camponesas, socialmente
invisibilizadas, e a ampliação do conceito de trabalho produtivo em articulação com a questão
da diversidade social como constitutiva de uma visão de agricultura sustentável que relacione
gênero e agroecologia (PACHECO, 1997; SILIPRANDI, 2009). Ao longo dos últimos anos
pautas feministas ganharam espaço dentro do movimento agroecológico alicerçadas na ideia de
superação da subalternidade, partindo da compreensão das relações no campo como não
dicotomizadas, como também defende o feminismo decolonial (LUGONES, 2008; LUGONES,
2010; ALMENDRA, 2014; TLOSANOVA E KOOBAK, 2016; DIAS, 2014).

Contudo, apesar tais alinhamentos muitas iniciativas do movimento agroecológico não


avançaram nas demandas das mulheres camponesas, que, na maioria das vezes, são carentes de
poder dentro e fora de suas famílias (FERREIRA; MATTOS, 2017), situação que é reforçada
pela ausência da perspectiva de gênero nas políticas que discutem sistemas de produção
agroecológicos que, por sua vez, contribuem para a invisibilidade do trabalho das mulheres
agricultoras (PACHECO, 1997). Processos contraditórios de inclusão e exclusão fazem parte
da dinâmica de enfrentamento da colonialidade que permeia toda a sociedade e se refletem nos
movimentos sociais. Contudo, compreender as formas como essas contradições são produzidas,
enfrentadas, (re)significadas pelas militantes feministas no movimento e como tais processos
se relacionam como a construção da resiliência, é um esforço necessário tanto no campo
científico, como social.

4 Metodologia

Para compreender como a resiliência das mulheres ocorre no contexto do movimento


agroecológico brasileiro, desenvolveu-se uma pesquisa de campo qualitativa, com coleta de
dados por meio de entrevistas semiestruturadas, interpretadas com uso de análise de narrativas.

Nesse artigo, que é parte de uma pesquisa mais ampla sobre o tema, analisamos entrevistas que
resgatam a trajetória de quatro mulheres, ativistas do movimento agroecológico, que atuavam
na Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e da Associação Brasileira de Agroecologia
(ABA), que são importantes espaços de coordenação desse movimento no Brasil. As entrevistas
buscaram trazer à tona os processos de resiliência vividos e construídos por essas mulheres
dentro do movimento agroecológico e na intersecção com mobilização feminista. Com o
objetivo de preservar as identidades das entrevistadas, optamos por alterar seus nomes, de forma
tal que serão chamadas aqui de Maria, Laura, Beatriz e Marta.
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Para contatar as entrevistadas, partiu-se de indicação de militantes do movimento


agroecológico. A primeira entrevistada indicava outra e assim sucessivamente (técnica da bola
de neve). As entrevistas foram realizadas por meio do aplicativo Skype, viabilizando o diálogo
com mulheres que vivem em diferentes cidades do país. Seguindo um protocolo, as entrevistas
foram gravadas e transcritas na íntegra para posterior análise.

Para a etapa de análise, após transcritas, as entrevistas passaram por uma primeira leitura livre.
Depois, procedeu-se a uma leitura objetiva, buscando elementos e estórias similares que, na
confluência com conceitos teóricos que dão suporte a esse trabalho, permitiu a identificação
das primeiras categorias. Esse processo permitiu apreender as especificidades dos processos
individuais, sem perder os elementos que os aproximam. Uma segunda leitura das entrevistas
permitiu o reagrupamento e reorganização das categorias, reduzindo-se o número e gerando
uma lista que orientou a codificação das entrevistas. Optamos por discutir nesse artigo quatro
dessas categorias: 1) A descoberta das mulheres e da subalternidade; 2) Estratégias para superar
a diferença colonial; 3) Conquistas concretas e a diversidade de experiências das mulheres; e
4) Porque sem feminismo não há agroecologia. Os próximos tópicos exploram essas categorias,
permitindo compreender mudanças individuais e coletivas construídas (resiliência) e em
interação num contexto específico, a partir de significados atribuídos e compartilhados pelas
entrevistadas. Em suma, a análise das narrativas respeita a estrutura narrativa construída pelas
entrevistadas e oferece uma perspectiva histórica da resiliência feminista no movimento
agroecológico.

5 Análise dos Dados

5.1 A descoberta das mulheres e da subalternidade

No início dos anos de 1980 o movimento agroecológico estava se estruturando e, tanto no


campo, quanto nas organizações que se mobilizavam em torno da agroecologia, a
subalternidade das mulheres, evidenciada na falta de participação política, no silenciamento de
ideias, na invisibilidade do trabalho desenvolvido por elas, era naturalizada. As entrevistadas
narram o contato com diversos e frequentes tipos de violência que assustavam, às vezes
intimidavam as mulheres, mas não eram efetivamente tratados no âmbito dos movimentos
sociais e Organizações Não Governamentais (ONGs) às quais elas estavam vinculadas. Por isso
mesmo, havia um incômodo mas, era difícil refletir sobre tais fatos de forma crítica e profunda:

Então, assim: de cara eu já cheguei e, na verdade eu já percebi um pouco essa ausência das
mulheres nos espaços de organização. Porque desde que eu era estudante, eu já começava com
o trabalho de militância nos assentamentos e tal. Dificilmente tinham mulheres lideranças né.
[...]Então, assim, me deparei com a violência, com uma série de coisas que até então eu não
refletia sobre isso né. E isso acho que foi fundamental na minha formação. Porque, a partir
disso, eu sempre tinha esse olhar e essa atuação voltada pra isso [violência contra mulheres]
(Maria).

Em meados da década de 1980, a aproximação de ONGs e movimentos sociais no campo com


movimentos feministas, incita reflexões que vão além da identificação da violência (sobretudo
explícita) de gênero. Organizações feministas criam grupos de discussão e cursos de formação
paralelamente às atividades desenvolvidas pelos movimentos sociais e organizações de base
que, na época, davam os primeiros passos na consolidação do movimento agroecológico.
Observa-se que a ausência de reflexão não era situação exclusiva das agricultoras, mas também
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das mediadoras. Iniciou-se, assim, um processo de ressignificação, por meio dos grupos de
mulheres, revelando que opressões interseccionais não deveriam ser naturalizados (BELTRAN
E MAQUINEIRA, 2008; COLLINS, 2002).

Esses momentos de discussão e reflexão foram centrais para que as mulheres mediadoras, à
partir da compreensão da sua própria subalternização, se aproximassem das mulheres
agricultoras e desenvolvessem empatia (COLLINS, 2002).

Porque num dado momento do seminário [sobre gênero] lá, inclusive, a gente chegou à
conclusão de que a gente via que tinha uma desigualdade nas relações de poder entre homens
e mulheres nas próprias organizações que trabalhavam com agroecologia. Então, as mulheres
normalmente não estavam nos postos mais administrativos ou estavam nos postos, estavam nos
[trabalhos] que tinham menos poder né (Beatriz).

Por sua vez, muitas agricultoras passaram a se engajar em projetos de cunho feminista
vinculados a movimentos sociais. A partir desses processos, as entrevistadas revelam uma
transformação, marcada pela identificação das opressões até então naturalizadas e por uma
compreensão papel exercido pelas mulheres na sociedade. Nenhuma dessas mulheres, com
trajetórias diferentes, era mais a mesma, ainda que vivessem e trabalhassem nos mesmos
espaços.

Contudo, do ponto de vista das organizações que atuavam no movimento agroecológico, as


entrevistadas afirmam que, nesse período, agricultura familiar e gênero eram tratados como
categorias descritivas e, ainda isoladas:

[...] então, eu falo assim que teve um percurso né, entre gênero e agricultura familiar que, era
na verdade, categorias descritivas né. Claro que são descritivas a partir de um ponto de vista,
mas até a gente explicitar uma posição política de projeto, de construção que tá no feminismo
e agroecologia... (Laura).

A fala de Laura esclarece que houve uma longa trajetória na qual as mulheres passaram da
naturalização da subalternidade, para a identificação da opressão e daí para a construção de uma
posição política. Como não havia um espaço de articulação concreto e institucionalizado no
movimento agroecológico ou nas organizações que o apoiavam, que viabilizasse a mobilização
política das mulheres, tudo estava por construir. Assim, a resiliência das mulheres se articula
com o fortalecimento da mobilização feminista na agroecologia, sobretudo com a formação dos
grupos de mulheres. Como processo dinâmico, a resiliência feminista se mobiliza pela
construção do bem estar a partir de negociações que estão enraizadas na reciprocidade e
definições de bem estar e projetos construídos pelas mulheres (UNGAR, 2004). Os espaços
compartilhados pelas mulheres se tornaram chave no processo de mudança e viu-se a
necessidade de ampliá-los, consolidá-los para avançar nas negociações e projetos feministas.

5.2 Estratégias para superar a diferença colonial

Ao longo dos anos 1990 se consolida um certo paralelismo entre as discussões sobre
agroecologia e feminismo (este último tema, frequentemente, apenas em grupos de mulheres),
dentro do movimento agroecológico. Contudo, a mudança no posicionamento das mulheres,
discutida no item anterior, desencadeou discursos e demandas que foram incorporadas ao
discurso oficial do movimento agroecológico, ainda que não plenamente atendidas na prática.
Além disso, as mulheres viabilizaram pesquisas sobre gênero, realização de cursos de formação
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sobre o tema e consolidação de grupos de mulheres em várias instâncias do movimento


agroecológico. Apesar disso, as entrevistadas explicitam a existência, naquele período, da
sensação de que mudanças concretas não estavam ocorrendo, já que as mesmas desigualdades
identificadas anteriormente, permaneciam, apesar de uma década de luta.

Em 2002, na realização do I Encontro Nacional de Agroecologia (ENA), a carta política


produzida no evento trazia a questão de gênero, mas para as mulheres participantes, a diferença
entre o discurso e a prática sobre o papel das mulheres tornou-se explícita com a reduzida
participação de mulheres nesse importante espaço organização política. Com isso, as mulheres
optaram por escrever sua própria carta (A carta das mulheres do ENA) que tratava da
necessidade de passar de um discurso genérico à uma prática transformadora.

Que era uma carta [das mulheres do ENA] onde denunciava toda essa incoerência de você ter
um encontro politicamente correto, uma carta política politicamente correta, sendo que o
encontro não foi. Porque a carta política do primeiro ENA, ela foi né, inclusive ela trazia
elementos de gênero e tal, mas não teve esse cuidado na... na, na organização do evento
(Maria).

A contradição vivenciada pelas mulheres no I ENA provocou, além da denúncia produzida na


carta das mulheres, uma reflexão mais profunda: o reconhecimento de que houve um equívoco
das próprias mulheres no momento de planejar a participação no evento. A primeira ideia foi
criar um grupo de trabalho específico sobre gênero no ENA, reproduzindo uma abordagem que
havia produzido resultados positivos até então. A proposta que foi encaminhada e pela
coordenação do ENA. Contudo, no início do evento, além da pequena participação feminina,
as mulheres perceberam que a formação do grupo de trabalho poderia ser uma forma de
isolamento do debate e das pautas das mulheres em um grupo com pouco poder de intervenção
real enquanto as demais pautas do evento (acesso à terra, políticas públicas, assistência técnica,
etc) eram debatidas sem participação de mulheres. A estratégia, inicialmente adotada pelas
mulheres naquele encontro, ignorou as intersecções de gênero com outras temáticas. Prevalecia
até aquele momento, uma visão comum aos modelos feministas do século XX que não são
suficientes para interpretar a realidade destas mulheres latino-americanas (LUGONES, 2008;
TLOSANOVA E KOOBAK, 2016). Mas, a reflexão do grupo foi importante para esse
aprendizado (COLLINS, 2002; BELTRAN e MAQUIEIRA, 2008) que se converteu numa
mudança de estratégia feminista no movimento.

Assim, as mulheres mantiveram um diálogo entre si, mas se dividiram para participar de todas
as instâncias de debate promovidas a partir daquele momento. Essa dupla e complexa
organização da luta valoriza a especificidade e importância dos grupos de mulheres com entre-
lugares mas, também a interseccionalidade. Assim, as mulheres decidiram e propuseram a
criação de um espaço permanente de auto-organização das mulheres dentro do movimento
agroecológico, que pudesse articular demandas feministas às pautas gerais do movimento. Em
2004, finalmente, em seminário específico sobre gênero, criaram o grupo de trabalho de
mulheres (um “GT”), na Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).

O GT de mulheres tornou-se um espaço estratégico de articulação e luta feminista, quebrando


limites ou fronteiras impostas pelo sistema mundo colonial moderno: é um espaço para discutir
questões das mulheres campesinas, latino-americanas, brasileiras, e com questões próprias
ligadas ao seu lugar de fala. Ali também se discutem questões que interessam a todo o
movimento agroecológico e se articula um feminismo que vai se construindo com
características próprias.
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A visão difundida por homens (e também por mulheres) do movimento agroecológico, que
refletem a colonialidade que marca nossas sociedades, de que esse GT era um espaço para
discutir “apenas” questões de mulheres tem sido questionada e desconstruída por esse grupo.
Por um lado, assuntos que aparecem nesses espaços tais como planos, ideias, práticas,
conhecimentos, saúde, qualidade de vida, sexualidade, violência, medo, que fazem parte das
vivências das mulheres (e que elas raramente podem discutir) são elementos importantes da
estruturação das famílias, das comunidades, dos processos produtivos e de luta com os quais
elas lidam todos os dias.

Por outro, partir do pressuposto que temas como técnicas produtivas, análises econômicas,
comercialização, qualidade da produção, financiamento, políticas públicas entre outros não
interessam às mulheres, é ignorar tanto a capacidade quanto os interesses das mesmas. Afinal,
não seriam elas atores fundamentais quando se está numa empreitada de transformação social?
E, se não são, que tipo de transformação social está defendendo o movimento agroecológico?

(...) então como é que você quer uma sociedade sem exploração se você explora, se... dentro
de casa a mulher é explorada? É um contrassenso! Não tem como você ter uma sociedade justa,
fraterna e igualitária, se essa sociedade justa, fraterna e igualitária não tá dentro de casa
(Marta).

A ressignificação dos grupos, das estratégias feministas adotadas nesse período, foram também
resultado de pesquisas iniciadas já na década anterior, que forneceram elementos para que as
mulheres pudessem compreender seu lugar na agroecologia, para além do discurso oficial e
hegemônico.

Então, assim, nessa trajetória de 12 anos aí do GT a gente é... construiu muita reflexão a partir
das mulheres na agroecologia, da importância do empoderamento, a importância do feminismo
para que as mulheres mudem essa situação. E, também, a gente meio que foi um espaço da
gente se organizar pra fazer uma incidência nas políticas públicas de maneira organizada. É...
então assim, a gente fez um trabalho de sistematização do trabalho das mulheres na
agroecologia, né. Pegamos aí a região nordeste, região sul e Amazônia, né, e, e a partir disso,
dessas sistematizações, a gente refletiu muita coisa no GT, inclusive sobre esse papel das
mulheres na agroecologia, sobre a agroecologia na vida das mulheres né (Maria).

Essa experiência de sistematização do trabalho das mulheres na agroecologia, bem como a


definição de metas (e estratégias) para que pelo menos 50% dos participantes do ENA sejam
mulheres, os cursos de formação sobre gênero e feminismo nas comunidades, a participação
das mulheres nos debates sobre políticas públicas, ilustra a importância do que Lugones chama
de viajar entre mundos (DIAS, 2004; LUGONES, 1987), permitindo que as mulheres
compreendam como são aqueles que dominam, e o que elas são a partir dos olhos deles
(LUGONES, 1987), desencadeando processos de mudança. Mas a transformação não ocorre
apenas nas mulheres individualmente ou em seus grupos. Os “mundos” aos quais as mulheres
viajam, e ao qual elas se vinculam originalmente, são também transformados e os estereótipos
e preconceitos são colocados à prova. Tais processos de resiliência, onde há ganhos efetivos de
bem estar para as mulheres, contudo, desencadeiam novos conflitos, levando-nos a refletir sobre
resiliência feminista não como um fim, mas como um processo constante, dinâmico e
contraditório.
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Então eu não consigo separar qual é o tipo de opressão [que as mulheres sofrem] ... a
implicância por causa do caminho que a gente decide seguir é muito maior né, do que em
relação ao caminho que os homens resolvem lidar [...] Você resolve que vai seguir um caminho
tem um monte de implicância, então é porque eu sou mulher, é porque eu sou do PT, porque
sou da agroecologia, porque, não sei porque! Mas é um monte de implicância (Marta).

A “implicância” a que Marta se refere, não tem como alvo as decisões que ela ou outras
mulheres tomam, mas as próprias mulheres que, em suas práticas cotidianas se envolvem com
tantas temáticas que, como afirma a entrevistada fica difícil separar o tipo de opressão. Assim,
a compreensão da interseccionalidade é importante processo para a resiliência feminista e para
que se possa construir conquistas concretas por e para mulheres. É um caminho para desafiar
as fontes estruturais da dominação de gênero na sociedade capitalista (MATOS, 2010), o que
implica questionar a divisão entre trabalho produtivo e reprodutivo.

5.3 Conquistas concretas e a diversidade de experiências das mulheres

A estratégia das feministas de ocupar todos os espaços de discussão do movimento


agroecológico gerou ações e algumas conquistas, no sentido de garantir às mulheres acesso à
terra, a financiamento, a assistência técnica, a mercados e a posições políticas. Tais conquistas
aparecem nas falas a respeito da produção e gestão das propriedades e sobre o papel da
assistência técnica para mulheres e executada por mulheres:

(...) quando você garante que 50% dos projetos de ATER se destinam à mulher e tem mulher
nas equipes de execução de ATER, isso é muito importante porque você vai trazer um outro
olhar, então a questão das cotas é muito pautada pelas mulheres (Marta).

Essa conquista (sobre a qual muitas pessoas dentro do movimento agroecológico de declararam
contra), a mesma distribuição paritária (pelo menos 50% de mulheres) conquistada na política
pública de ATER, segue a mesma lógica do critério de organização dos encontros de
agroecologia locais, regionais e nacionais. E ambas estão articuladas. A participação das
mulheres nas instâncias de debate e decisão (como ANA E ENA) viabiliza a aprovação de
critérios inclusivos para mulheres nas políticas públicas. Os ganhos concretos como ATER por
e para mulheres, estimula a participação política das mulheres no movimento.

Inclusive hoje a SOF [Sempreviva Organização Feminista] - que era uma organização
feminista que trabalhava né, com formação de mulheres e com outros temas mais voltados para
as mulheres - hoje a SOF é uma organização que executa, por exemplo, ATER para mulheres
em São Paulo (Maria).

Com essa mudança, a assistência técnica que tradicionalmente era um processo executado por
homens e para homens, reconhece o papel produtivo (e não apenas reprodutivo) das mulheres
agricultoras, bem como a capacidade de produção de conhecimento de mediadoras e
agricultoras. Essas mudanças estruturais são importantes na construção de identidades de
mulheres no campo, bem como para o fortalecimento do debate feminista. Libório e Ungar
(2010) destacam ainda o impacto de problemas estruturais da sociedade e a ausência de políticas
públicas para o fortalecimento de grupos e comunidades e, consequentemente, para processos
de resiliência.

As experiências de produção, organização, ATER entre outras protagonizadas por mulheres


têm sido sistematizadas e divulgadas pelo GT de mulheres da ANA, produzindo informações,
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dados que contribuem para maior legitimidade das demandas feministas do movimento. O
registro formal, ao mesmo tempo que é instrumento de negociação, funciona como uma marca
da existência das mulheres e seus saberes no mundo. Conhecimentos e práticas que antes eram
invisibilizados, reprimidos ou apropriados por outros adquirem um status formal, algumas
vezes científico, que garante sua existência no mundo. Mas, a visibilidade conquistada pelas
mulheres ainda enfrenta formas de desqualificação e violência, exigindo delas e do movimento,
novas e mais intensas ações.

(...) muitas vezes as mulheres são ameaçadas por conta desse processo de participação,
algumas inclusive deixam de participar por conta disso. É... uma outra coisa que a gente tem
visto muito (....) (Beatriz).

(...) tem essa coisa da desqualificação do conhecimento das mulheres... do controle sobre o
tempo delas, da enorme sobrecarga de trabalho, dessa ideia de que ela não é um sujeito
próprio, mas que a vida dela é em função do outro e da família (...) (Laura).

Ainda hoje, apesar das conquistas e dos anos de luta, nas comunidades rurais as mulheres têm
pouca oportunidade de se reunir, de conversar (seja pela distância entre as moradias, pela
proibição dos maridos ou pais ou mesmo pelo excesso de trabalho). Esse isolamento favorece
a reprodução de relações desiguais e da colonialidade. Quanto mais aqueles que estão em
posições privilegiadas de poder sentem-se ameaçados, maiores podem ser as represálias. Essa
lógica também se aplica ao movimento agroecológico como um todo: quanto mais avanços
maiores os riscos de contra-ataque dos representantes do agronegócio, principalmente em locais
mais isolados do meio rural brasileiro. Por tudo isso as mulheres entenderam que era preciso
fortalecer o feminismo como uma dimensão central do movimento agroecológico.

5.4 Porque sem feminismo não há agroecologia

Por cerca de três décadas o movimento agroecológico e o feminismo têm se articulado


construindo um projeto contra hegemônico dentro do qual as mulheres têm um papel
fundamental. E essa experiência tem possibilitado às mulheres construir e consolidar espaços
de reflexão, autoconhecimento e propostas políticas no sentido de superar a subalternidade. Em
2015, no III ENA, institucionalizou-se o lema “sem feminismo não há agroecologia”.

(...) a gente conseguiu aí nesses 12 anos de trajetória, vir de um lugar de, tipo assim, que... a
gente tinha o quê? Sei lá! Pra você conseguir que uma mulher participasse de determinados
espaços, com por exemplo, a Comissão Nacional de Produção Orgânica e Agroecologia era
uma luta enorme e a gente mudou para um patamar que hoje em dia na ANA todos sabem que
precisa incluir as mulheres, né? (Maria).

Tal afirmação ilustra a possibilidade de mudanças coletivas e sociais como elementos a serem
compreendidos na análise da resiliência feminista. Mas, como a luta e o enfrentamento da
diferença colonial são cotidianos (LUGONES, 2010; ALMENDRA, 2014), embora todos
saibam que é preciso “incluir mulheres” nos debates e a maioria não se oponha publicamente à
participação feminina, há muitas resistências às pautas feministas no movimento. Mesmo
assim, a institucionalização do lema “Sem feminismo não há agroecologia” legitima-se (ainda
que nem todos concordem), que é impossível avançar no movimento agroecológico sem a
efetiva e reconhecida participação das mulheres. No momento atual, as militantes feministas
vivenciam uma experiência semelhante aos anos de 1980, quando a subalternização de
mediadoras, dentro de ONGs e movimentos sociais, foi finalmente percebida. Agora, o que elas
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identificam é que o conservadorismo, que ainda cria obstáculos ao feminismo dentro do


movimento não está necessariamente nas famílias e comunidades rurais.
(....) boa parte dos nossos companheiros militantes não, não se posiciona publicamente porque
fica feio hoje em dia, entendeu, se posicionar contra isso [feminismo] (Beatriz).

Olha, o que que eu tô sentindo assim, em relação aos maridos na base assim, tem um... claro!
tem uma resistência muito grande, mas, é... eu não vejo como uma resistência elaborada, assim,
antifeminista, dos maridos. Eu vejo uma reação patriarcal de controle sobre a minha mulher,
né ? (...) eu não tô vendo, assim, quem organiza essa resistência com um discurso político, com
uma justificativa e tal... (Laura).

O movimento social da agroecologia reflete, até reproduz e, talvez de forma politicamente mais
elaborada que nas comunidades rurais, a colonialidade de gênero. Revela-se a dupla dimensão
da luta feminista dentro e fora dos movimentos, em todas as instâncias. Mas, então, por que o
movimento agroecológico institucionalizou o lema “Sem feminismo não há agroecologia”? A
explicação se dá porque nos últimos anos as mulheres estão tão presentes quanto os homens no
movimento, inclusive nas instâncias deliberativas, o que impede a prevalência de decisões
movidas pelo preconceito. As mulheres se descobriram e mostraram para a sociedade que o
trabalho que elas desenvolvem é fundamental no processo de transição agroecológica. Além
disso, elas estão nos meios de comunicação, articulando os debates, enfrentando as corporações
e o agronegócio nas diferentes regiões do país. O olhar e a experiência feminista estão
complexificando o campo agroecológico e atraindo pessoas, no campo e nas cidades, em busca
de saúde, educação, qualidade de vida, equilíbrio ambiental, paz. Com isso, de alguma forma,
a resiliência feminista está modificando o próprio movimento agroecológico.

(...) Prá compreender a questão do feminismo numa lógica muito maior de transformação da
sociedade, então não é só uma questão de gênero, não é só uma questão das mulheres, mas é
uma questão de como é, quais as transformações que precisam ser feitas, a partir da lógica da
mulher pra que a sociedade se transforme (Marta).

6 Considerações finais

Partindo do conhecimento do papel crescente do feminismo nos debates em torno da


agroecologia, buscamos nos aprofundar em como a construção da resiliência das mulheres se
relaciona com o feminismo no movimento agroecológico. Para isso, tomamos em conjunto as
discussões teóricas que abordam feminismo decolonial e resiliência. A metodologia foi
qualitativa, com pesquisa de campo por meio de entrevistas semiestruturadas, analisadas a partir
da construção de quatro categorias que surgiram da confluência dos conceitos teóricos com
aspectos salientados nas entrevistas. Foram ouvidas militantes feministas no movimento
agroecológico que relataram suas trajetórias e permitiram refletir sobre os processos de
construção de resiliência.

A primeira categoria analisada “A descoberta das mulheres e da subalternidade” revela as


dificuldades de desnaturalização e debate crítico sobre a violência e subalternização das
mulheres no campo, dentro de ONGs e movimentos sociais evidenciados no cotidiano das
entrevistadas nos anos de 1980, quando o movimento agroecológico estava se articulando. O
enfrentamento dessa situação e a construção da resiliência, nesse período, partiram do
compartilhamento de experiências e trocas de conhecimento entre mulheres, evidenciando e
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desnaturalizado a subalternização que aos poucos foi se revelando um fenômeno multifacetado


que afetava tanto agricultoras quanto mediadoras.
A construção de estratégias de superação passou a ser discutida e foi analisada na segunda
categoria “Estratégias para superar a diferença colonial”, quando processos de organização das
mulheres no campo e na articulação do movimento agroecológico se fortalecem em dois
sentidos: como espaço de acolhimento e compartilhamento feminino e como espaço para
construir propostas de intervenção específicas, pautadas pelas mulheres, sobre dinâmicas do
movimento agroecológico e políticas públicas Os grupos de aprendizagem e compartilhamento
que já se mostravam espaços importantes, tornaram-se estratégicos para que as mulheres
garantissem a defesa de suas pautas e participação ativa em decisões do movimento
agroecológico.

A terceira categoria “Conquistas concretas e a diversidade de experiências das mulheres”, traz


a importância de mudanças estruturais construídas a partir dos processos de organização das
mulheres que são também fundamentais para a resiliência feminista. Trata-se, por exemplo, da
conquista de cotas de 50% de recursos de ATER direcionados especificamente para que
mulheres possam realizar assistência técnica, atendendo demandas de agricultoras. Conquistas
como essa revelam a importância de compreender a relação da categoria gênero com outras
como ecologia, trabalho e conhecimento para o enfrentamento da subalternidade (LUGONES,
1987) e de mudanças estruturais para processos de resiliência (LIBORIO; UNGAR, 2010).

No quarto e último tópico exploramos a categoria “Sem feminismo não há agroecologia”


evidenciando que apesar do movimento agroecológico institucionalizar o feminismo por meio
do lema que denomina dessa categoria, as relações de subalternização permanecem como
desafio cotidiano para as mulheres, numa sociedade e num movimento social ainda marcados
pela colonialidade. Os processos de resiliência feminista no campo agroecológico reafirmam
que não é possível tratar de resiliência dos sistemas ecológicos sem considerar a superação da
subalternidade das mulheres nesse contexto. Mesmo assim, o lema não é uma conquista
permanente, mas uma bandeira de luta que aponta para a resiliência feminista como um
processo também constante, multifacetado e dinâmico que, nas últimas décadas influenciou os
rumos do próprio movimento agroecológico.

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