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Curitiba/PR - 03 a 06/10/2018
Autoria
Flávia Luciana Naves Mafra - flanaves@dae.ufla.br
Prog de Pós-Grad em Admin - PPGA/UFLA - Universidade Federal de Lavras
Agradecimentos
Os autores agradecem à FAPEMIG
Resumo
No presente artigo teórico-empírico, buscamos contribuir para os Estudos Organizacionais
trazendo para o debate a aproximação entre feminismo e outros movimentos sociais, no caso,
o movimento agroecológico no Brasil. Para isto indagamos: Como a construção da
resiliência das mulheres se relaciona com o feminismo no movimento agroecológico?
Particularmente, nesse trabalho, analisamos a resiliência das mulheres (ou resiliência
feminista), partindo do pressuposto que, no contexto de uma sociedade marcada pela
colonialidade, as mulheres são constantemente subalternizadas. A partir das lentes do
feminismo decolonial buscamos compreender as desigualdades de gênero no Brasil,
refletidas no movimento agroecológico, explicitando que a própria categoria gênero, tratada
de forma homogênea, é uma ficção que mantém a colonialidade do poder. Para isso
desenvolvemos uma pesquisa de campo qualitativa, com coleta de dados por meio de
entrevistas semiestruturadas. Ao final destacamos quatro principais aspectos da narrativa do
feminismo no movimento agroecológico, o que nos permitiu desvelar os meandros da
construção da resiliência feminista.
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Resumo
1 Introdução
Nas últimas décadas, o movimento agroecológico consolidou-se como a mais efetiva oposição
contra a hegemonia econômica do agronegócio no setor agrícola brasileiro, colocando-se
explicitamente contra as práticas intensivas de capital introduzidas por este modelo. O
movimento propõe um modelo de conhecimento intensivo que seja direcionado,
principalmente, a pequenos agricultores e para regiões de elevada biodiversidade (HOLT-
GIMÉNEZ e ALTIERI, 2013; MELGAREJO et al., 2013). Como parte de sua agenda de luta,
o movimento passa a mobilizar politicamente o lema: “Sem feminismo, não há agroecologia”
(ANA, 2015), reforçando a importância da questão de gênero e do protagonismo social das
mulheres no meio rural para o “repensar” da realidade do campo no país (BROCHNER, 2014;
SILIPRANDI, 2009; OSBORNE, 2008). No entanto, ainda não está claro como a militância
feminista se dá na prática e como se relaciona com os processos de resiliência e resistência no
movimento agroecológico. Neste sentido, no presente artigo indagamos: Como a construção
da resiliência das mulheres se relaciona com o feminismo no movimento agroecológico?
Para isto, partimos da compreensão de que o feminismo não é homogêneo, ele é complexo e
envolve muitos debates em termos teóricos e práticos (ALMENDRA, 2014; BROCHNER,
2014; SILIPRANDI, 2009; OSBORNE, 2008). Particularmente na América Latina, tem se
fortalecido uma vertente do feminismo (feminismo decolonial) que defende que os feminismos
do século XX não atendem às necessidades das mulheres não-brancas-burguesas e seguem o
sistema moderno/colonial de gênero, contribuindo para manter uma hegemonia contra a qual
estão tentando lutar (LUGONES, 2008; TLOSANOVA E KOOBAK, 2016). Uma das
tendências do feminismo na América Latina é sua transversalização, seja ela vertical (em níveis
de governo, por exemplo) ou horizontal (junto a outros movimentos sociais) (MATOS, 2010).
Ressaltamos que a interação entre feminismo e outros movimentos sociais contemporâneos -
como é o caso do movimento agroecológico no Brasil- também é complexa e requer um olhar
investigativo cuidadoso em Estudos Organizacionais. No contexto latino-americano, de muitas
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Contudo, muitas das conexões propostas por tais movimentos são importantes frentes de luta
para as mulheres, funcionando como espaços de aprendizado, compartilhamento, construção de
propostas e concretização de projetos feministas.
Essas múltiplas possibilidades reforçam nosso interesse pela resiliência como constructo a ser
investigado no presente estudo. A resiliência é condição de existência e se faz necessária como
forma de superar as contradições presentes na luta diária (YOUNG et al, 2008; JOB, 2003;
CONTU, 2002). No caso de um movimento como o agroecológico, a resiliência feminista
implica em construir condições para superar a colonialidade de gênero e também as
contradições enfrentadas pelo movimento como um todo. Portanto, diante da crescente agenda
do feminismo no movimento agroecológico, faz-se necessário aprofundarmos na relação entre
a construção da resiliência das mulheres e o feminismo nesse movimento, como um processo
contínuo e dinâmico.
Para isso, optamos por um olhar decolonial sob o fenômeno em análise, por tratar-se de um
feminismo inserido em um processo de luta contínua, em uma realidade latina, marcada pela
subalternização e que resiste, sobretudo, à uma relação contemporânea de colonialidade
(WALSH, 2006; LUGONES, 2008; LUGONES, 2010).
2 Resiliência e Decolonialidade
A despeito das críticas, a noção invulnerabilidade tem sustentado pesquisas que reafirmam
resiliência como um conjunto de traços e condições que podem ser replicados, conforme afirma
Martineau (1999). A autora porém, argumenta que reificar/replicar as características de
resiliência é ignorar que ela é contingente/provisória, imprevisível e dinâmica (MARTINEAU,
1999). Ou seja, resiliência não é apenas questão de capacidade individual ou apoio familiar,
mas de desafiar barreiras sociais e estruturais que também criam riscos e adversidades
(COUTU; 2002; JOB, 2003; YOUNG et al, 2008).
A pesquisa de Duquesnoy (2015), aponta que, para interpretar a resiliência das mulheres é
preciso compreender o contexto e história específicos nos quais se sustentam a subalternização
das mulheres, bem como as formas de organização e mobilização que elas constroem para
enfrentar a dominação. Em se tratando de América Latina, essa dominação não se refere vínculo
colonial formal, mas ao padrão de poder que se originou nas colônias e perdura até o presente
mantendo desigualdades e identidades estigmatizadas e subalternizadas, chamado de
colonialidade do poder (QUIJANO, 2005).
Não se pode tratar o feminismo como um movimento homogêneo. Passando por diversas fases
ao longo da históriai, o feminismo diversificou-se, moldando-se a demandas sociais, culturais e
políticas distintas ao redor do mundo. A perspectiva feminista hegemônica ocidental,
priorizando mulheres brancas-burguesas, revelou-se frágil para compreender e suportar as
demandas identitárias de milhões de mulheres que estariam fadadas a continuar invisíveis
mantendo-se essa interpretação da realidade.
Destaca-se, no contexto desse artigo, o feminismo decolonial, proposto por Maria Lugones, que
tem se constituído como uma lente mais efetiva para compreender as desigualdades de gênero
no mundo, marcadas por contextos particulares (ALMENDRA, 2014; TLOSANOVA e
KOOBAK, 2016; DIAS, 2014).
Lugones (2010) parte do pressuposto de que a categoria gênero, tratada como homogênea, é
uma ficção que mantém a colonialidade do poder. Para a autora, o conceito de colonialidade do
poder, orginalmente, apresenta uma visão restrita de gênero, desconsiderando sua intersecção
com outras categorias tais como ecologia, economia, trabalho etc (LUGONES, 2010). Ao
elaborar essa crítica, o feminismo decolonial está chamando a atenção para a importância da
interseccionalidade, que revela as opressões conectadas às quais as mulheres estão submetidas.
O feminismo decolonial defende um feminismo dos movimentos de base, que emerja das
diferenças e hierarquias criadas e mantidas pela colonialidade do poder, e que tenha ênfase nas
realidades locais, com suas histórias e subjetividades encarnadas (KOOBAK; MARLING,
2014), sustentado por um entendimento coletivo, compartilhado e comunal do mundo e do viver
no mundo (LUGONES, 2010; DIAS, 2014).
Para além da denúncia, essa abordagem procura jogar luzes sobre os processos de resistência e
resiliência que mulheres constroem e vivenciam nessa luta cotidiana e multifacetada. A
construção desses processos se dá nos entre-lugares (MIGLIEVICH-RIBEIRO; PRAZERES,
2015) espaços onde há opressões conectadas e onde se criam resistências (e se constroem
resiliências) múltiplas e imprevisíveis. Nesses espaços (que não são necessariamente físicos e
permanentes) estereótipos e modelos binários são substituídos por estratégias de subjetivação,
colaboração, contestação e inovação (BHABHA, 1998, p. 20).
possível às mulheres se identificarem com o diferente; viajando para o “mundo” dos outros as
mulheres podem entender o que é ser eles, e o que é ser elas mesmas aos olhos deles
(LUGONES, 1987). Tal exercício se intensifica, à medida que a tendência a horizontalização
do movimento feminista a outros movimentos sociais se consolida na América Latina.
Tanto o conceito de entre lugares como viajar entre mundos apontam para processos que são
individuais e também coletivos. A dimensão coletiva, o espaço dos grupos, têm importância
significativa no feminismo decolonial. “A passagem das práticas vividas, valores, crenças,
ontologias, espaço-tempos e cosmologias, de boca em boca e de mão em mão, constitui o ser”
(LUGONES, 2010, p.754).
4 Metodologia
Nesse artigo, que é parte de uma pesquisa mais ampla sobre o tema, analisamos entrevistas que
resgatam a trajetória de quatro mulheres, ativistas do movimento agroecológico, que atuavam
na Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) e da Associação Brasileira de Agroecologia
(ABA), que são importantes espaços de coordenação desse movimento no Brasil. As entrevistas
buscaram trazer à tona os processos de resiliência vividos e construídos por essas mulheres
dentro do movimento agroecológico e na intersecção com mobilização feminista. Com o
objetivo de preservar as identidades das entrevistadas, optamos por alterar seus nomes, de forma
tal que serão chamadas aqui de Maria, Laura, Beatriz e Marta.
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Para a etapa de análise, após transcritas, as entrevistas passaram por uma primeira leitura livre.
Depois, procedeu-se a uma leitura objetiva, buscando elementos e estórias similares que, na
confluência com conceitos teóricos que dão suporte a esse trabalho, permitiu a identificação
das primeiras categorias. Esse processo permitiu apreender as especificidades dos processos
individuais, sem perder os elementos que os aproximam. Uma segunda leitura das entrevistas
permitiu o reagrupamento e reorganização das categorias, reduzindo-se o número e gerando
uma lista que orientou a codificação das entrevistas. Optamos por discutir nesse artigo quatro
dessas categorias: 1) A descoberta das mulheres e da subalternidade; 2) Estratégias para superar
a diferença colonial; 3) Conquistas concretas e a diversidade de experiências das mulheres; e
4) Porque sem feminismo não há agroecologia. Os próximos tópicos exploram essas categorias,
permitindo compreender mudanças individuais e coletivas construídas (resiliência) e em
interação num contexto específico, a partir de significados atribuídos e compartilhados pelas
entrevistadas. Em suma, a análise das narrativas respeita a estrutura narrativa construída pelas
entrevistadas e oferece uma perspectiva histórica da resiliência feminista no movimento
agroecológico.
Então, assim: de cara eu já cheguei e, na verdade eu já percebi um pouco essa ausência das
mulheres nos espaços de organização. Porque desde que eu era estudante, eu já começava com
o trabalho de militância nos assentamentos e tal. Dificilmente tinham mulheres lideranças né.
[...]Então, assim, me deparei com a violência, com uma série de coisas que até então eu não
refletia sobre isso né. E isso acho que foi fundamental na minha formação. Porque, a partir
disso, eu sempre tinha esse olhar e essa atuação voltada pra isso [violência contra mulheres]
(Maria).
das mediadoras. Iniciou-se, assim, um processo de ressignificação, por meio dos grupos de
mulheres, revelando que opressões interseccionais não deveriam ser naturalizados (BELTRAN
E MAQUINEIRA, 2008; COLLINS, 2002).
Esses momentos de discussão e reflexão foram centrais para que as mulheres mediadoras, à
partir da compreensão da sua própria subalternização, se aproximassem das mulheres
agricultoras e desenvolvessem empatia (COLLINS, 2002).
Porque num dado momento do seminário [sobre gênero] lá, inclusive, a gente chegou à
conclusão de que a gente via que tinha uma desigualdade nas relações de poder entre homens
e mulheres nas próprias organizações que trabalhavam com agroecologia. Então, as mulheres
normalmente não estavam nos postos mais administrativos ou estavam nos postos, estavam nos
[trabalhos] que tinham menos poder né (Beatriz).
Por sua vez, muitas agricultoras passaram a se engajar em projetos de cunho feminista
vinculados a movimentos sociais. A partir desses processos, as entrevistadas revelam uma
transformação, marcada pela identificação das opressões até então naturalizadas e por uma
compreensão papel exercido pelas mulheres na sociedade. Nenhuma dessas mulheres, com
trajetórias diferentes, era mais a mesma, ainda que vivessem e trabalhassem nos mesmos
espaços.
[...] então, eu falo assim que teve um percurso né, entre gênero e agricultura familiar que, era
na verdade, categorias descritivas né. Claro que são descritivas a partir de um ponto de vista,
mas até a gente explicitar uma posição política de projeto, de construção que tá no feminismo
e agroecologia... (Laura).
A fala de Laura esclarece que houve uma longa trajetória na qual as mulheres passaram da
naturalização da subalternidade, para a identificação da opressão e daí para a construção de uma
posição política. Como não havia um espaço de articulação concreto e institucionalizado no
movimento agroecológico ou nas organizações que o apoiavam, que viabilizasse a mobilização
política das mulheres, tudo estava por construir. Assim, a resiliência das mulheres se articula
com o fortalecimento da mobilização feminista na agroecologia, sobretudo com a formação dos
grupos de mulheres. Como processo dinâmico, a resiliência feminista se mobiliza pela
construção do bem estar a partir de negociações que estão enraizadas na reciprocidade e
definições de bem estar e projetos construídos pelas mulheres (UNGAR, 2004). Os espaços
compartilhados pelas mulheres se tornaram chave no processo de mudança e viu-se a
necessidade de ampliá-los, consolidá-los para avançar nas negociações e projetos feministas.
Ao longo dos anos 1990 se consolida um certo paralelismo entre as discussões sobre
agroecologia e feminismo (este último tema, frequentemente, apenas em grupos de mulheres),
dentro do movimento agroecológico. Contudo, a mudança no posicionamento das mulheres,
discutida no item anterior, desencadeou discursos e demandas que foram incorporadas ao
discurso oficial do movimento agroecológico, ainda que não plenamente atendidas na prática.
Além disso, as mulheres viabilizaram pesquisas sobre gênero, realização de cursos de formação
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Que era uma carta [das mulheres do ENA] onde denunciava toda essa incoerência de você ter
um encontro politicamente correto, uma carta política politicamente correta, sendo que o
encontro não foi. Porque a carta política do primeiro ENA, ela foi né, inclusive ela trazia
elementos de gênero e tal, mas não teve esse cuidado na... na, na organização do evento
(Maria).
Assim, as mulheres mantiveram um diálogo entre si, mas se dividiram para participar de todas
as instâncias de debate promovidas a partir daquele momento. Essa dupla e complexa
organização da luta valoriza a especificidade e importância dos grupos de mulheres com entre-
lugares mas, também a interseccionalidade. Assim, as mulheres decidiram e propuseram a
criação de um espaço permanente de auto-organização das mulheres dentro do movimento
agroecológico, que pudesse articular demandas feministas às pautas gerais do movimento. Em
2004, finalmente, em seminário específico sobre gênero, criaram o grupo de trabalho de
mulheres (um “GT”), na Articulação Nacional de Agroecologia (ANA).
A visão difundida por homens (e também por mulheres) do movimento agroecológico, que
refletem a colonialidade que marca nossas sociedades, de que esse GT era um espaço para
discutir “apenas” questões de mulheres tem sido questionada e desconstruída por esse grupo.
Por um lado, assuntos que aparecem nesses espaços tais como planos, ideias, práticas,
conhecimentos, saúde, qualidade de vida, sexualidade, violência, medo, que fazem parte das
vivências das mulheres (e que elas raramente podem discutir) são elementos importantes da
estruturação das famílias, das comunidades, dos processos produtivos e de luta com os quais
elas lidam todos os dias.
Por outro, partir do pressuposto que temas como técnicas produtivas, análises econômicas,
comercialização, qualidade da produção, financiamento, políticas públicas entre outros não
interessam às mulheres, é ignorar tanto a capacidade quanto os interesses das mesmas. Afinal,
não seriam elas atores fundamentais quando se está numa empreitada de transformação social?
E, se não são, que tipo de transformação social está defendendo o movimento agroecológico?
(...) então como é que você quer uma sociedade sem exploração se você explora, se... dentro
de casa a mulher é explorada? É um contrassenso! Não tem como você ter uma sociedade justa,
fraterna e igualitária, se essa sociedade justa, fraterna e igualitária não tá dentro de casa
(Marta).
A ressignificação dos grupos, das estratégias feministas adotadas nesse período, foram também
resultado de pesquisas iniciadas já na década anterior, que forneceram elementos para que as
mulheres pudessem compreender seu lugar na agroecologia, para além do discurso oficial e
hegemônico.
Então, assim, nessa trajetória de 12 anos aí do GT a gente é... construiu muita reflexão a partir
das mulheres na agroecologia, da importância do empoderamento, a importância do feminismo
para que as mulheres mudem essa situação. E, também, a gente meio que foi um espaço da
gente se organizar pra fazer uma incidência nas políticas públicas de maneira organizada. É...
então assim, a gente fez um trabalho de sistematização do trabalho das mulheres na
agroecologia, né. Pegamos aí a região nordeste, região sul e Amazônia, né, e, e a partir disso,
dessas sistematizações, a gente refletiu muita coisa no GT, inclusive sobre esse papel das
mulheres na agroecologia, sobre a agroecologia na vida das mulheres né (Maria).
Então eu não consigo separar qual é o tipo de opressão [que as mulheres sofrem] ... a
implicância por causa do caminho que a gente decide seguir é muito maior né, do que em
relação ao caminho que os homens resolvem lidar [...] Você resolve que vai seguir um caminho
tem um monte de implicância, então é porque eu sou mulher, é porque eu sou do PT, porque
sou da agroecologia, porque, não sei porque! Mas é um monte de implicância (Marta).
A “implicância” a que Marta se refere, não tem como alvo as decisões que ela ou outras
mulheres tomam, mas as próprias mulheres que, em suas práticas cotidianas se envolvem com
tantas temáticas que, como afirma a entrevistada fica difícil separar o tipo de opressão. Assim,
a compreensão da interseccionalidade é importante processo para a resiliência feminista e para
que se possa construir conquistas concretas por e para mulheres. É um caminho para desafiar
as fontes estruturais da dominação de gênero na sociedade capitalista (MATOS, 2010), o que
implica questionar a divisão entre trabalho produtivo e reprodutivo.
(...) quando você garante que 50% dos projetos de ATER se destinam à mulher e tem mulher
nas equipes de execução de ATER, isso é muito importante porque você vai trazer um outro
olhar, então a questão das cotas é muito pautada pelas mulheres (Marta).
Essa conquista (sobre a qual muitas pessoas dentro do movimento agroecológico de declararam
contra), a mesma distribuição paritária (pelo menos 50% de mulheres) conquistada na política
pública de ATER, segue a mesma lógica do critério de organização dos encontros de
agroecologia locais, regionais e nacionais. E ambas estão articuladas. A participação das
mulheres nas instâncias de debate e decisão (como ANA E ENA) viabiliza a aprovação de
critérios inclusivos para mulheres nas políticas públicas. Os ganhos concretos como ATER por
e para mulheres, estimula a participação política das mulheres no movimento.
Inclusive hoje a SOF [Sempreviva Organização Feminista] - que era uma organização
feminista que trabalhava né, com formação de mulheres e com outros temas mais voltados para
as mulheres - hoje a SOF é uma organização que executa, por exemplo, ATER para mulheres
em São Paulo (Maria).
Com essa mudança, a assistência técnica que tradicionalmente era um processo executado por
homens e para homens, reconhece o papel produtivo (e não apenas reprodutivo) das mulheres
agricultoras, bem como a capacidade de produção de conhecimento de mediadoras e
agricultoras. Essas mudanças estruturais são importantes na construção de identidades de
mulheres no campo, bem como para o fortalecimento do debate feminista. Libório e Ungar
(2010) destacam ainda o impacto de problemas estruturais da sociedade e a ausência de políticas
públicas para o fortalecimento de grupos e comunidades e, consequentemente, para processos
de resiliência.
dados que contribuem para maior legitimidade das demandas feministas do movimento. O
registro formal, ao mesmo tempo que é instrumento de negociação, funciona como uma marca
da existência das mulheres e seus saberes no mundo. Conhecimentos e práticas que antes eram
invisibilizados, reprimidos ou apropriados por outros adquirem um status formal, algumas
vezes científico, que garante sua existência no mundo. Mas, a visibilidade conquistada pelas
mulheres ainda enfrenta formas de desqualificação e violência, exigindo delas e do movimento,
novas e mais intensas ações.
(...) muitas vezes as mulheres são ameaçadas por conta desse processo de participação,
algumas inclusive deixam de participar por conta disso. É... uma outra coisa que a gente tem
visto muito (....) (Beatriz).
(...) tem essa coisa da desqualificação do conhecimento das mulheres... do controle sobre o
tempo delas, da enorme sobrecarga de trabalho, dessa ideia de que ela não é um sujeito
próprio, mas que a vida dela é em função do outro e da família (...) (Laura).
Ainda hoje, apesar das conquistas e dos anos de luta, nas comunidades rurais as mulheres têm
pouca oportunidade de se reunir, de conversar (seja pela distância entre as moradias, pela
proibição dos maridos ou pais ou mesmo pelo excesso de trabalho). Esse isolamento favorece
a reprodução de relações desiguais e da colonialidade. Quanto mais aqueles que estão em
posições privilegiadas de poder sentem-se ameaçados, maiores podem ser as represálias. Essa
lógica também se aplica ao movimento agroecológico como um todo: quanto mais avanços
maiores os riscos de contra-ataque dos representantes do agronegócio, principalmente em locais
mais isolados do meio rural brasileiro. Por tudo isso as mulheres entenderam que era preciso
fortalecer o feminismo como uma dimensão central do movimento agroecológico.
(...) a gente conseguiu aí nesses 12 anos de trajetória, vir de um lugar de, tipo assim, que... a
gente tinha o quê? Sei lá! Pra você conseguir que uma mulher participasse de determinados
espaços, com por exemplo, a Comissão Nacional de Produção Orgânica e Agroecologia era
uma luta enorme e a gente mudou para um patamar que hoje em dia na ANA todos sabem que
precisa incluir as mulheres, né? (Maria).
Tal afirmação ilustra a possibilidade de mudanças coletivas e sociais como elementos a serem
compreendidos na análise da resiliência feminista. Mas, como a luta e o enfrentamento da
diferença colonial são cotidianos (LUGONES, 2010; ALMENDRA, 2014), embora todos
saibam que é preciso “incluir mulheres” nos debates e a maioria não se oponha publicamente à
participação feminina, há muitas resistências às pautas feministas no movimento. Mesmo
assim, a institucionalização do lema “Sem feminismo não há agroecologia” legitima-se (ainda
que nem todos concordem), que é impossível avançar no movimento agroecológico sem a
efetiva e reconhecida participação das mulheres. No momento atual, as militantes feministas
vivenciam uma experiência semelhante aos anos de 1980, quando a subalternização de
mediadoras, dentro de ONGs e movimentos sociais, foi finalmente percebida. Agora, o que elas
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Olha, o que que eu tô sentindo assim, em relação aos maridos na base assim, tem um... claro!
tem uma resistência muito grande, mas, é... eu não vejo como uma resistência elaborada, assim,
antifeminista, dos maridos. Eu vejo uma reação patriarcal de controle sobre a minha mulher,
né ? (...) eu não tô vendo, assim, quem organiza essa resistência com um discurso político, com
uma justificativa e tal... (Laura).
O movimento social da agroecologia reflete, até reproduz e, talvez de forma politicamente mais
elaborada que nas comunidades rurais, a colonialidade de gênero. Revela-se a dupla dimensão
da luta feminista dentro e fora dos movimentos, em todas as instâncias. Mas, então, por que o
movimento agroecológico institucionalizou o lema “Sem feminismo não há agroecologia”? A
explicação se dá porque nos últimos anos as mulheres estão tão presentes quanto os homens no
movimento, inclusive nas instâncias deliberativas, o que impede a prevalência de decisões
movidas pelo preconceito. As mulheres se descobriram e mostraram para a sociedade que o
trabalho que elas desenvolvem é fundamental no processo de transição agroecológica. Além
disso, elas estão nos meios de comunicação, articulando os debates, enfrentando as corporações
e o agronegócio nas diferentes regiões do país. O olhar e a experiência feminista estão
complexificando o campo agroecológico e atraindo pessoas, no campo e nas cidades, em busca
de saúde, educação, qualidade de vida, equilíbrio ambiental, paz. Com isso, de alguma forma,
a resiliência feminista está modificando o próprio movimento agroecológico.
(...) Prá compreender a questão do feminismo numa lógica muito maior de transformação da
sociedade, então não é só uma questão de gênero, não é só uma questão das mulheres, mas é
uma questão de como é, quais as transformações que precisam ser feitas, a partir da lógica da
mulher pra que a sociedade se transforme (Marta).
6 Considerações finais
Referências
i
Para um aprofundamento sobre a história dos feminismos, sugere-se a leitura de: MATOS, M. Teorias de gênero
ou teorias e gênero? Se e como os estudos de gênero e feministas se transformaram em um campo novo para as
ciências. Revista Estudos Feministas, v. 16, p. 333-357, 2008; SARTI, C. A. O feminismo brasileiro desde os anos
1970: revisitando uma trajetória. Revista Estudos Feministas, v. 12, p. 35-50, 2004; SCOTT, J. Gênero: uma
categoria útil de análise histórica. Educação e realidade, v. 16, n. 2, p. 19, 1989.