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Lucianagoncalves - Analise de Contos de Fadas Com Madrastas PDF
Lucianagoncalves - Analise de Contos de Fadas Com Madrastas PDF
Entre desafiadora e má: Uma análise das representações simbólicas das madrastas
em contos de fadas
Luciana Sacramento Moreno Gonçalves
(Doutoranda em Letras da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul)
Maria, Branca de Neve, dos Irmãos Grimm; Vasilisa, a Bela, de Aleksandr Afanasev;
Catarina Quebra-nozes, de Joseph Jacobs e Pé de Zimbro, de Phillip Otto Runge.
Devido à importância do conto Cinderela, foi incluída a versão dos Irmãos Grimm,
traduzida por Maria Heloisa Penteado. O objetivo deste ensaio é compreender as
representações simbólicas de madrasta nestes contos de fadas, observando questões
como descrições físicas e psicológicas das personagens mãe, madrasta e protagonistas;
papel da madrasta no desenvolvimento da narrativa e o acontecimento em torno da
madrasta presente no desfecho do texto.
figura da madrasta: é representada como uma mulher que compete com outra mulher,
geralmente, mais jovem, por sentir inveja. Os sentimentos de aversão às qualidades do
outro, juntamente com o desejo obsessivo de possuir o objeto ou características próprias
do outrem levam a madrasta a planejar situações vexatórias e esdrúxulas de destruição
da enteada, exaltando esta, sem dúvida, como a característica mais recorrente nas
madrastas dos contos.
Com as protagonistas dos contos, suas enteadas, a madrasta estabelece uma
relação de desprezo e desafeição. Sua postura diante destas crianças é sempre
desqualificadora; chama-as de preguiçosas, impõe serviços pesados e as ludibria
diversas vezes. Sente prazer doentio e se glorifica com o infortúnio das enteadas.
Entretanto, este prazer é passageiro e, a meu ver, denuncia certa insegurança das
madrastas, pois elas revelam sempre uma preocupação com o futuro a partir do signo da
divisão da herança e da possibilidade dos filhos do primeiro casamento serem mais
privilegiados do que os seus. Repete-se nos contos que há, nelas, ausência de paz,
proveniente das maldades e insistente ideia de livrar-se da enteada.
3.2 Quando a mãe não está por perto, eis que surge a madrasta
Nestes sete contos de fadas, assim como em outros, as mulheres ocupam papéis
de destaque, tanto para representar a bondade quanto a maldade. Temos Cinderela,
Branca de Neve, Maria (que apesar da esperteza de João é a responsável por livrá-los da
malvada bruxa), Vasilisa, Catarina e Marlene (personagem coadjuvante, cúmplice
ingênua do crime). Sempre indicadas como mulheres belas e boas. Na outra ponta do
fio, estão às madrastas, as meias-irmãs, a bruxa, a Baba Iaga, mulheres mais velhas
carregadas de péssimo gênio.
Este turbilhão de mulheres protagonistas e antagonistas talvez se explique
porque os contos orais populares eram narrados à noite por mulheres, sentadas em volta
do fogo para tecer e se distrair. Salientamos neste ensaio a presença das mulheres como
mães e, especialmente, como madrastas. De pronto, percebemos que a mãe é
personagem bastante importante, entretanto, ela sai de cena sempre que a história exigir
que a madrasta trouxesse a narrativa situações de humilhação e injustiça, a fim de que a
protagonista transponha tais obstáculos e se revele uma verdadeira heroína.
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Em todos os contos analisados, as mães são mais significativas pela falta do que
pela presença. As mães das futuras princesas Cinderela (versão dos Grimm), Branca de
Neve e da futura czarina Vasilisa aparecem, apenas, no início da história. A primeira, já
no leito de morte, despedindo-se da filha e a orientando como proceder nos momentos
de apuro; a segunda, desejando ter uma filha branca como neve, sendo atendida em
seguida e morrendo imediatamente. A terceira, doente e prestes a morrer, tal qual a mãe
de Cinderela, presenteando a filha com uma espécie de amuleto da sorte na tentativa de
fortalecê-la na certeza de sua própria ausência. A mãe da Cinderela, de Perrault, no
início da narrativa, nem viva está mais; são citadas somente suas características. A mãe
de João e Maria sequer aparece na história. Em Pé de Zimbro e em Catarina quebra-
nozes, a madrasta é também mãe e comporta-se com seu filho ou filha tão zelosa e
amável quanto às representações convencionais de mãe, entretanto sua identidade é
dúbia, pois, ao mesmo tempo, revela-se uma madrasta cruel, ardilosa e invejosa com o
filho ou filha do marido.
Nessa linha de intelecção, poderíamos classificar nestes contos duas posturas de
mãe: a mãe morta e a mãe madrasta. A mãe morta é apontada como doce, boa, “tinha
sido a melhor criatura do mundo”, na versão de Perrault. Nos predicados, assemelha-se
com a filha. É hábil nos afazeres domésticos e reforça características consideradas,
propriamente, femininas pela cultura patriarcal, como beleza, religiosidade, delicadeza,
fragilidade e discrição. Vale destacar que nestes casos, prevalece a relação mãe e filha e
todas as mães, ou após o parto ou num momento da infância das filhas, morrem. Já as
mães madrastas são, excessivamente, protetoras e preocupadas com seus próprios filhos;
os amam incondicionalmente. Contudo, revelam certa inquietação com a existência dos
filhos do marido, sobretudo por questões como heranças e privilégios financeiros.
Encarnam plenamente o papel das madrastas más, só que são motivadas, sobretudo, por
uma inveja incondicional dos enteados.
O conto Pé de Zimbro merece uma reflexão mais apurada, porque, além de
representar a mãe madrasta, traz a figura da mãe morta. Aproxima-se do Conto Branca
de Neve, pelo excessivo desejo da mãe em ter um filho e pelo pedido que faz para obter
tal benefício. Ambas as mães falecem logo após o nascimento do filho. A diferença é
que a mãe em Pé de Zimbro, “quando viu o filho, ficou tão feliz que morreu de alegria”.
Já a mãe de Branca de Neve, apesar de morrer logo após o parto, não aparece
justificativa para o fato. A mãe madrasta, no conto Pé de Zimbro, é extremamente cruel,
cometendo assassinato e fazendo com que o marido cometa atos de canibalismo
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racionalidade, pois ao declarar que foi ajudada pela bênção da mãe faz com que a bruxa
a tema, sem revelar que a boneca materializa a proteção materna. Fator singular nesta
jovem é o fato de conquistar o Czar não apenas pelos predicados já conhecidos e
repetidos, mas, sobretudo, por sua capacidade de tecer. A madrasta é quem obriga a
menina a sair do espaço doméstico e desbravar a desconhecida floresta, para de lá voltar
parcialmente bem sucedida, porque no caso deste conto, após livrar-se da madrasta e
das meias-irmãs, a jovem bela ainda terá que encontrar mais uma mulher em seu
caminho para evocar o fortalecimento da filha através da mãe.
Catarina Quebra – Nozes é a única protagonista que não é a mais bela. Revela
imensa solidariedade com a meia-irmã e é, singularmente, corajosa e atuante. Não se
intimida perante os desafios, pelo contrário, ela os busca para resolver o problema da
irmã. Reitera a discrição presente nas protagonistas e é esta qualidade que a fará ter
êxito em seu objetivo. Ato que parecia inútil pueril e sem sentido – colher as nozes do
caminho – mostra-se uma ação útil para a consolidação do final feliz e será a sua
salvação. Como as demais, também sabe dissimular quando é necessário. Mas, além
disso, sabe barganhar para se beneficiar. É observadora e extremamente inteligente
qualidades incomuns às mulheres dos contos lidos. Seu altruísmo não a faz esquecer-se
de si mesma, assim, Catarina, além de salvar sua irmã e o príncipe doente, salva a si
mesma. A madrasta nesta história ao tentar privilegiar a própria filha, leva-a a testar sua
solidariedade, bondade e coragem, a fim de proteger a irmã que sofrera violência.
Em João e Maria, ambos são protagonistas. Inicialmente, o foco da história está
em João que não se deixa paralisar com a perspectiva da morte. Entretanto, as duas
crianças são espertas, parceiras e sabem ludibriar. Em alguns momentos, comportam-se
ingenuamente; em outros, não se deixam influenciar à primeira vista. João é pró-ativo,
perspicaz, ágil, inventivo e corajoso. Conforta a irmã em diversas situações, mas é
traído por sua inconsequente afobação e exacerbada autoconfiança. Já Maria revela-se
extremamente medrosa, no início. Seu excesso de sensibilidade, cuidado e bondade com
o outro remetem a descrições comuns ao personagem feminino, especialmente em suas
vertentes maternais. Todavia, é Maria quem mata a bruxa e resolve o problema gerador
do conto. Além disso, é ela quem cria as estratégias possíveis para fazer a pata
atravessar o rio e levar consigo os tesouros da bruxa. A insistência da madrasta em
abandonar as crianças, de certa forma, as aproxima da bruxa, e, consequentemente, de
seu tesouro.
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3.4 E foram infelizes para sempre: uma reflexão sobre os finais das madrastas
A hipótese de que a atuação das madrastas possui como força motriz a indicação
da existência de um desafio, acentua-se bastante se pensarmos em três dos contos
analisados. Nestes, ela só aparece no começo da história e/ou em parte inicial do seu
desenvolvimento, desaparecendo, ás vezes, subitamente do final. É o caso dos contos
Cinderela (tanto na versão de Perrault quanto na dos Irmãos Grimm) e de Catarina
Quebra-nozes em que as madrastas criam uma situação de conflito ou pela atribuição de
serviços domésticos inadequados para crianças, acompanhados da exclusão aos bailes
ou por fazer despencar a cabeça da bela irmã de Catarina e colocar no lugar dela uma
cabeça de ovelha. Vale ressaltar que na Cinderela de Perrault, a madrasta é mais omissa
do que má; é o tempo todo conivente com a iniquidade das filhas, mas nunca pratica as
ações de crueldade sozinha. Além disso, este é o único conto que as vilãs são perdoadas
e agraciadas com um nobre casamento ao final do conto.
Nos demais contos, as madrastas são punidas severamente, apesar de muitas
desaparecerem no desenvolvimento da narrativa e só aparecerem no desfecho para
evidenciar seu infortúnio final, como a madrasta de João e Maria que insiste por duas
vezes em deixá-los a própria sorte na “parte mais profunda da floresta”, mas não
aparece no desenrolar da história. Depois destes eventos, só em uma linha do penúltimo
parágrafo, saberemos que a madrasta tinha morrido, durante a ausência das crianças. A
morte desta madrasta é justificada como o aumento da situação de pobreza, gerador do
conflito presente no conto. E esta conexão não deixa de ser irônica, porque a madrasta
incitou o abandono das crianças para salvar a própria pele, todavia foi a primeira a
morrer por conta da situação que tanto a amedrontava.
As madrastas de Vasilisa e de Pé de Zimbro são mulheres atormentadas que
evidenciam de maneira recorrente a sensação de perseguição. Por isso, elas, também,
aparecem de forma marcante no início da narrativa, mas são ofuscadas totalmente ou
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“A mulher foi até a porta e, bam, a ave soltou a pedra de moinho em cima da
cabeça dela, que morreu esmagada. O pai e Marlene ouviram o estrondo e
saíram. Fumaça, chamas e fogo se erguiam e, quando desapareceram, o
irmãzinho estava de volta postado bem ali”. (p. 171)
rigorosa: terá de calçar sapatos de ferro aquecidos num fogo de carvões, untados com
substância aderente e dançar “com eles até cair morta no chão”. Segundo Tatar (2004),
esta morte dolorosa e humilhante coloca a madrasta no mesmo lugar dos sofrimentos a
que Branca de Neve foi submetida.
Ressaltamos que a madrasta tem papel mais relevante no início da história do
que no seu final. Pode ser punida ou não pelas maldades cometidas. O mais importante
é que é ela quem criará uma situação de desordem na vida das enteadas a ponto de levá-
las (ou obrigá-las) a agir, a incomodar-se. A madrasta, por certo, é uma das responsáveis
pelo final feliz das protagonistas, porque ela desafia e leva a protagonista a construir sua
própria fortuna. Além disso, a exclusão da madrasta ao final ou sua morte trágica, leva
as crianças a confiarem num porvir mais feliz.
4. Madrasta é a mãe
Ao confrontar as descrições de madrastas presentes nos contos de fada, comecei
a perguntar-me o que tal personagem tão fascinante simboliza para os leitores. E a
perspectiva psicanalítica de Bettelheim (1979) de chofre já enunciou algo interessante.
Ao intitular um dos capítulos do livro “A psicanálise dos contos de fadas”, como “A
fantasia da madrasta má”, acabava por denunciar que a relação estabelecida com a
personagem madrasta, de certa forma, é fruto da imaginação criadora das crianças. Vale
ressaltar que esta é, justamente, a sessão que tratará das transformações. Neste capítulo,
o autor defende que o conto de fada auxilia a criança a integrar “a ordem racional com a
ilogicidade de seu inconsciente” (p.83).
Para o psicanalista austríaco, a criança separa um ser em duas entidades, porque
não concebe que este possa ser bom em alguns momentos e mau em outros. Por isso,
dividir mães boas e madrastas más é uma ótima estratégia para preservar a imagem de
bondade que emana da mãe e compreender que aquela suposta maldade é uma
manifestação passageira. Assim, “embora mamãe seja com mais frequência a protetora
toda-dadivosa, pode-se transformar na cruel madrasta se for malvada a ponto de negar
ao seu filhinho algo que ele deseja” (BETTELHEIM, 1979, P. 84).
Por tanto, a personagem madrasta nos Contos de Fada resolve uma tensão
presente no relacionamento entre mães e filhas (os) e torna mais compreensível para a
criança a dubiedade que marca os seres humanos. Eis uma divisão útil para as crianças,
porque, esta poderá alimentar certo sentimento de ódio da mãe quando ela se comportar
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como madrasta, sem sentir culpa por isso, será auxiliada a lidar com sentimentos
conflitantes e contraditórios e, principalmente, a preservar a imagem da mãe boa. Além
disso, tal representação neutraliza as ações consideradas “do mal”, por conta de um
excesso das ações boas da mãe.
Então, através da experiência ou da leitura dos contos, cada indivíduo irá
organizar a realidade de acordo com sua capacidade de lidar com ela. Assim, com o
tempo, as crianças aprenderão que as madrastas são impulsionadoras do desafio, pois
elas impõem a criança na história (e na vida) a sair da situação de conforto e
acomodação e ir à busca de seu verdadeiro destino: a fortuna (ao mesmo tempo a sorte e
a riqueza). Portanto, se a madrasta não proibisse de ir ao baile, certamente Cinderela
não se sentiria tão impelida a ir e a participar intensamente do evento ou se a madrasta
não tivesse mandado o caçador sumir com Branca de Neve jamais ela teria se engasgado
com a maçã envenenada e encontrado o Príncipe Encantado2. Sendo assim, a maior
contribuição dos contos para seus leitores é orientá-los a vencer os desafios ao afirmar
para as crianças que “embora existam bruxas (...) também existem boa fadas, muito
mais poderosas”. (BETTELHEIM, 1979, p. 85).
O melhor é que os contos libertam seus leitores de uma postura maniqueísta, ao
evidenciar que os sentimentos dados como ruins ou inferiores são, na verdade,
sentimentos humanos. Apesar disso, insinuam o quanto às consequências da
exacerbação destes sentimentos é perigosa e catastrófica, destacando “o final feliz” para
aqueles que buscam a realização através de “desejos positivos”. O conto de fadas
fornece à criança persistência de ânimo para lidar com situações de conflito e faz com
que ela aprenda a valorizar suas aprendizagens cotidianas por mais simples que pareçam
ser. Assim, conforme declara Bettelheim:
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Se a madrasta não tivesse tramado o abandono de João e Maria na floresta, eles também não teriam
encontrado o tesouro da bruxa e certamente morreriam de fome em suas próprias casas. Se a madrasta de
Vasilisa não a tivesse mandado buscar o fogo na casa da terrível Baba Iaga, também ela não teria
mostrado sua habilidade em tecer e não seria desposada pela Czar. Se a madrasta, não tivesse trocado a
cabeça da irmã de Catarina por uma cabeça de carneiro provavelmente as duas irmãs estariam pobres e no
caritó. Por último, se a madrasta não tivesse matado o filho do marido, o espírito da criança jamais
voltaria com presentes materiais e simbólicos como ouro, vestuário e justiça.
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Referências
AUGRAS, Monique. A dimensão simbólica. Petrópolis: Vozes, 1980. p. 9-25 (cáp. 1).
BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e terra,
1979.
CHAUÍ, Marilena. Contos de fadas e Psicanálise. In: Repressão sexual: essa nossa
(des)conhecida. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984, pág. 32-54.
DARNTON, Robert. O massacre dos gatos. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
MASSUIA, Caroline Sanchez. O papel das mulheres nos contos de fadas. Disponível
em: http://www.artigosonline.com.br/o-papel-das-mulheres-nos-contos-de-fadas/,
acessado em: Agosto de 2010.
PENTEADO, Maria Heloisa. Contos de Grimm: Cinderela. São Paulo: Ática, 2008.
TATAR, Maria. Contos de fada: edição comentada e ilustrada; tradução Maria Luiza X.
de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
VON FRANZ, Marie Louise. A interpretação dos contos de fadas. Rio de Janeiro:
Achiamé, 1981. p. 15-57.