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Entre desafiadora e má: Uma análise das representações simbólicas das madrastas
em contos de fadas
Luciana Sacramento Moreno Gonçalves
(Doutoranda em Letras da
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul)

1 Para começo de conversa

Mesmo na Pós-modernidade, muitas mulheres ainda são ensinadas a ser mãe


pelas culturas dos lugares onde vivem. E, isto, implica, impreterivelmente, cuidar dos
filhos, amá-los, acarinhá-los, zelar para que cresçam fortes, saudáveis e desenvolvam
suas competências o mais amplamente possível. Entretanto, nenhuma dessas mulheres é
educada para ser madrasta, porque a existência desta indica sempre para alguma
ausência da mãe pela fatalidade da morte, pelo abandono ou até mesmo pela real
necessidade de afastamento.
Millôr Fernandes (1985) ironiza, ao dizer que: “o importante não é a morte; é o
que ela nos tira”. Trocando em miúdos e relacionando ao caso das mães e madrastas,
não é propriamente a falta da mãe que nos inibe e amedronta através da figura da
madrasta, mas é justamente a ausência de todos os sentimentos de zelo e amor
representados pela mãe. Assim, para a madrasta sobra o papel de severa, obsessiva,
displicente, raivosa e vingativa. Ela antagoniza todos os predicados da mãe. E isto está
expresso na/pela linguagem através da literatura.
Por isso, este artigo objetiva empreender esforços para tentar compreender como
a madrasta é representada simbolicamente nos Contos de Fadas. Os contos escolhidos
contemplam questões existenciais fulcrais e modelam “códigos de comportamento e
trajetória de desenvolvimento, ao mesmo tempo em que nos fornecem termos com que
pensar sobre o que acontece no nosso mundo” (TATAR, 2004, p. 09). Evocam questões
íntimas, constitutivas de conflitos familiares, desafiando-nos a pensar o quanto as
representações simbólicas e o imaginário podem nos auxiliar a lidar e agir no plano da
realidade. Ou como sugere Augras (1980), o quanto os contos estabelecem relações
irreais (abstratas) para permitir a adaptação do homem à realidade.
Assim, elenquei contos de fadas em que a madrasta aparecia como personagem
central ou periférica. Assim, foram destacados para análise os sete contos a seguir dos
respectivos autores: Cinderela (ou Sapatinho de Vidro), de Charles Perrault; João e
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Maria, Branca de Neve, dos Irmãos Grimm; Vasilisa, a Bela, de Aleksandr Afanasev;
Catarina Quebra-nozes, de Joseph Jacobs e Pé de Zimbro, de Phillip Otto Runge.
Devido à importância do conto Cinderela, foi incluída a versão dos Irmãos Grimm,
traduzida por Maria Heloisa Penteado. O objetivo deste ensaio é compreender as
representações simbólicas de madrasta nestes contos de fadas, observando questões
como descrições físicas e psicológicas das personagens mãe, madrasta e protagonistas;
papel da madrasta no desenvolvimento da narrativa e o acontecimento em torno da
madrasta presente no desfecho do texto.

2 Contos de fatum: o sentido existencial da narrativa

Os contos de fadas são, geralmente, narrativas curtas, transmitidas popularmente


pela oralidade. Neles, os protagonistas reúnem em si características excepcionais que os
tornam capazes de superar qualquer infortúnio e sempre têm que enfrentar diversos
obstáculos, antes de chegarem ao “e foram felizes para sempre”. Nos contos, o
protagonista é representado pela figura do herói que passa por um ritual de iniciação a
fim de se encontrar com seu verdadeiro eu. Segundo Von France (1981, p. 31), “o herói
nos contos de fadas é uma figura abstrata e não humana (...) tem reações estereotipadas
(...) é completamente esquemático”. Estão acima do bem e do mal e suas ações são
sempre assertivas e pautadas nos melhores sentimentos humanos. No estudo em
questão, Cinderela, Branca de Neve, João e Maria, Vasilisa, Catarina e o menino do Pé
de Zimbro são piedosas, bondosas, astutas, corajosas e delicadas; perdoam as maldades
das antagonistas ou não perdem tempo com vingança; são humildes, apesar de
guardarem em si certa superioridade.
Há sempre a presença de algum episódio de magia ou encantamento contido
nessas histórias. Por esta razão, é comum associar o nome Contos de Fadas a presença
de aquele belo ser mitológico feminino que influencia de forma mágica a vida das
pessoas. Entretanto, é mais provável que esta nomenclatura seja proveniente da origem
etimológica do termo fada. Segundo Novaes Coelho (1998, p. 31): “a palavra fada vem
do latim fatum (destino, fatalidade, oráculo...) (...)”. E nos contos de fadas, os
protagonistas vivenciam situações existenciais em que sucedem acontecimentos
desastrosos e imprevisíveis, convocando-os a transpô-los e a serem bem-sucedidos nesta
difícil empreitada. Assim, a hipótese de Coelho torna-se mais aceita até porque não são
todos os contos que contam com a presença do personagem fada. Nos contos analisados,
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por exemplo, só aparecem fadas na Cinderela, da versão de Perrault e nos bailes


visitados todas as noites pelo príncipe doente no conto Catarina Quebra-nozes. Nos
outros cinco, a fada não aparece como personagem, mas não deixam de povoar tais
contos personagens fantásticos como pássaros encantados, bruxas, feiticeiras, bonecas
mágicas e a Baba Iaga.
Para Von France (1981, p.15), os “contos de fada são a expressão mais pura e
mais simples dos processos psíquicos do inconsciente coletivo”, porque representam
imagens que nos auxiliam na compreensão de processos basilares da existência humana.
Para a autora (p.16) “(...) cada conto de fadas é um sistema relativamente fechado,
composto por um significado psicológico essencial, expresso numa série de figuras e
eventos simbólicos, sendo desvendável através destes”. Os contos presentificam os
fenômenos psíquicos através de imagens reiteradas pela experiência na História da
humanidade e presentes no inconsciente coletivo. Assim, tais narrativas nos orientam,
também, a compreender tais imagens melhor e mais amplamente. O conto traz em si
“figuras e eventos simbólicos” que exprimem significados psicológicos, sejam as
tensões relativas à união entre homens e mulheres, os conflitos entre pais e filhos, o
medo do abandono, a necessidade da solidariedade entre pares. Enfim, acontecimentos
que permeiam as almas humanas desde muito.
Novaes Coelho (1987) diferencia o conto de fadas do conto maravilhoso. Para a
autora, ambos pertencem ao mundo do maravilhoso e ambos tem pouca diferença no
que se refere ao aspecto formal. Entretanto, a problemática geradora dos dois é bem
distinta, pois o primeiro se desenvolve dentro “da magia feérica” e possui como “eixo
gerador uma problemática existencial” (p. 13). Já o segundo, “desenvolve-se no
cotidiano mágico (...) e tem como eixo gerador uma problemática social”, enfatizando a
busca pela fortuna material contraposta com a miséria e a necessidade de sobrevivência
de que se parte. Por isto, dos sete contos discutidos neste ensaio, somente João e Maria
e Pé de Zimbro se encaixariam na classificação de Conto Maravilhoso. Os demais são
contos de fadas.

3. Análise da representação simbólica das madrastas nos contos de fadas

3.1 A madrasta no espelho


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Nos sete contos de fadas analisados, a madrasta possui características marcantes.


Geralmente é soberba e orgulhosa. Geniosa a ponto de sempre fazer com que o marido
ceda aos seus caprichos e ordens, a madrasta quando tem filhas ou filhos é mãe zelosa
dos seus, mas algoz do filho ou filha do primeiro casamento do marido. Em alguns
momentos, os filhos da madrasta possuem temperamento igual ou pior ao seu, em
outros são bondosos e solidários com os meio-irmãos. Em alguns contos, a madrasta,
revela-se uma mãe amorosa e cuidadosa, todavia, este amor demarca o perigo da
existência da filha do primeiro casamento e justifica as maldades da madrasta.
A madrasta dos contos, também, aparece como dissimulada, pois antes de casar-
se aparenta ser uma provável boa mãe para a criança órfã, sendo este um dos principais
motivos que fazem com que o pai a escolha para desposá-la. Entretanto, logo após a
realização do intento de se casar, revela a mulher má que realmente é e busca todos os
modos e artimanhas para anular a presença da filha ou filho do primeiro casamento,
excluindo-o/a de toda sorte de conforto ou privilégio. Há momentos que se revela
cínica, demonstrando amor e zelo pelos enteados. A bem da verdade, este
comportamento serve, apenas, de fachada para esconder o ódio que nutre por eles. Neste
contexto, o que chama atenção é a total anulação ou omissão do pai, diante das ações
perversas e cruéis da madrasta, levando-nos a pensar em questões como: será a madrasta
tão manipuladora e perspicaz a ponto de maltratar a enteada e, por conseguinte, ocultar
os maus-tratos do olhar paterno? Ou será o pai, um personagem acomodado e
displicente, que delega a madrasta o poder de cuidar de sua filha sem se preocupar com
as consequências, a fim de se desobrigar dos cuidados maternos? É possível que a esta
ausência paterna seja uma estratégia do autor para não perder tempo com discussões que
desviassem a atenção do foco narrativo ou até mesmo para deixar que os leitores tirem
suas próprias conclusões.
Persiste nos contos, o temperamento perverso da madrasta, que cria situações
para sobrecarregar a enteada de serviços pesados, humilhantes, afastando-a da sua real
condição de princesa-rainha. Noutros momentos, cria estratégias para abandonar ou
aniquilar o enteado/a. E, nesta cega perseguição ao alvo de sua inveja, a madrasta é
desenhada como determinada, chegando a ser insistente, não desistindo até que seu
intento seja realizado.
Vale ressaltar que os trabalhos a que a enteada é submetida são os afazeres
domésticos, provavelmente, para afastar cada vez mais a menina órfã de sua condição
especial de beleza, delicadeza e bondade. Eis aí, um dos aspectos mais interessantes da
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figura da madrasta: é representada como uma mulher que compete com outra mulher,
geralmente, mais jovem, por sentir inveja. Os sentimentos de aversão às qualidades do
outro, juntamente com o desejo obsessivo de possuir o objeto ou características próprias
do outrem levam a madrasta a planejar situações vexatórias e esdrúxulas de destruição
da enteada, exaltando esta, sem dúvida, como a característica mais recorrente nas
madrastas dos contos.
Com as protagonistas dos contos, suas enteadas, a madrasta estabelece uma
relação de desprezo e desafeição. Sua postura diante destas crianças é sempre
desqualificadora; chama-as de preguiçosas, impõe serviços pesados e as ludibria
diversas vezes. Sente prazer doentio e se glorifica com o infortúnio das enteadas.
Entretanto, este prazer é passageiro e, a meu ver, denuncia certa insegurança das
madrastas, pois elas revelam sempre uma preocupação com o futuro a partir do signo da
divisão da herança e da possibilidade dos filhos do primeiro casamento serem mais
privilegiados do que os seus. Repete-se nos contos que há, nelas, ausência de paz,
proveniente das maldades e insistente ideia de livrar-se da enteada.

3.2 Quando a mãe não está por perto, eis que surge a madrasta

Nestes sete contos de fadas, assim como em outros, as mulheres ocupam papéis
de destaque, tanto para representar a bondade quanto a maldade. Temos Cinderela,
Branca de Neve, Maria (que apesar da esperteza de João é a responsável por livrá-los da
malvada bruxa), Vasilisa, Catarina e Marlene (personagem coadjuvante, cúmplice
ingênua do crime). Sempre indicadas como mulheres belas e boas. Na outra ponta do
fio, estão às madrastas, as meias-irmãs, a bruxa, a Baba Iaga, mulheres mais velhas
carregadas de péssimo gênio.
Este turbilhão de mulheres protagonistas e antagonistas talvez se explique
porque os contos orais populares eram narrados à noite por mulheres, sentadas em volta
do fogo para tecer e se distrair. Salientamos neste ensaio a presença das mulheres como
mães e, especialmente, como madrastas. De pronto, percebemos que a mãe é
personagem bastante importante, entretanto, ela sai de cena sempre que a história exigir
que a madrasta trouxesse a narrativa situações de humilhação e injustiça, a fim de que a
protagonista transponha tais obstáculos e se revele uma verdadeira heroína.
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Em todos os contos analisados, as mães são mais significativas pela falta do que
pela presença. As mães das futuras princesas Cinderela (versão dos Grimm), Branca de
Neve e da futura czarina Vasilisa aparecem, apenas, no início da história. A primeira, já
no leito de morte, despedindo-se da filha e a orientando como proceder nos momentos
de apuro; a segunda, desejando ter uma filha branca como neve, sendo atendida em
seguida e morrendo imediatamente. A terceira, doente e prestes a morrer, tal qual a mãe
de Cinderela, presenteando a filha com uma espécie de amuleto da sorte na tentativa de
fortalecê-la na certeza de sua própria ausência. A mãe da Cinderela, de Perrault, no
início da narrativa, nem viva está mais; são citadas somente suas características. A mãe
de João e Maria sequer aparece na história. Em Pé de Zimbro e em Catarina quebra-
nozes, a madrasta é também mãe e comporta-se com seu filho ou filha tão zelosa e
amável quanto às representações convencionais de mãe, entretanto sua identidade é
dúbia, pois, ao mesmo tempo, revela-se uma madrasta cruel, ardilosa e invejosa com o
filho ou filha do marido.
Nessa linha de intelecção, poderíamos classificar nestes contos duas posturas de
mãe: a mãe morta e a mãe madrasta. A mãe morta é apontada como doce, boa, “tinha
sido a melhor criatura do mundo”, na versão de Perrault. Nos predicados, assemelha-se
com a filha. É hábil nos afazeres domésticos e reforça características consideradas,
propriamente, femininas pela cultura patriarcal, como beleza, religiosidade, delicadeza,
fragilidade e discrição. Vale destacar que nestes casos, prevalece a relação mãe e filha e
todas as mães, ou após o parto ou num momento da infância das filhas, morrem. Já as
mães madrastas são, excessivamente, protetoras e preocupadas com seus próprios filhos;
os amam incondicionalmente. Contudo, revelam certa inquietação com a existência dos
filhos do marido, sobretudo por questões como heranças e privilégios financeiros.
Encarnam plenamente o papel das madrastas más, só que são motivadas, sobretudo, por
uma inveja incondicional dos enteados.
O conto Pé de Zimbro merece uma reflexão mais apurada, porque, além de
representar a mãe madrasta, traz a figura da mãe morta. Aproxima-se do Conto Branca
de Neve, pelo excessivo desejo da mãe em ter um filho e pelo pedido que faz para obter
tal benefício. Ambas as mães falecem logo após o nascimento do filho. A diferença é
que a mãe em Pé de Zimbro, “quando viu o filho, ficou tão feliz que morreu de alegria”.
Já a mãe de Branca de Neve, apesar de morrer logo após o parto, não aparece
justificativa para o fato. A mãe madrasta, no conto Pé de Zimbro, é extremamente cruel,
cometendo assassinato e fazendo com que o marido cometa atos de canibalismo
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ingenuamente. É o único conto que justifica as ações da madrasta porque “o demônio se


apossou de tal maneira da mulher”. Alguns estudiosos alertam que o alto índice de
mortalidade das mães nos contos retrata a realidade da época em que era comum morrer
no parto.
Assim, percebe-se que a personagem mãe refere-se sempre a representação de
total cuidado; são elas que protegem mesmo quando ausentes. Amam seus filhos
irrestritamente. Já as madrastas – mesmo desempenhando o papel de mãe – são os calos
das vidas de seus enteados e impõem a eles uma vida sofrida.

3.3 Felizes para sempre (a duras penas)

Em todos os contos, há sempre um exagero ao se caracterizar os


personagens. Os bons são, incondicionalmente, corretos e benevolentes. Os maus
são cruéis, capazes dos mais terríveis atos de insanidade. Assim, percebe-se com
facilidade que os bons angariam de nós uma imensa simpatia e identificação. Já os
maus ganham nosso repúdio, ojeriza e afastamento. Certamente, o exagero tem
esta intenção: polarizar personagens e leitores para facilitar uma relação
identitária entre eles. Geralmente, os personagens bons se assemelham em sua
caracterização. Portanto fada, mãe, princesa é sempre aquela que sofre, é boa,
protege e garante a eterna felicidade. Com os maus, ocorre o inversamente
proporcional, sendo assim bruxa e madrasta sempre tentam barrar a felicidade da
protagonista com ações malignas.
Desta forma, a relação da protagonista com a madrasta é sempre uma
relação de poder. Ambas dispõem de grande força; são influentes no desenrolar da
narrativa. Entretanto, o bem, por mais que enfrente percalços, ao final vencerá.
Em cinco, dos sete contos analisados, a protagonista é uma mulher. Nos demais, em
um o protagonista é do sexo masculino e em outro dividem o papel de maior
importância uma menina e um menino. Em seis dos sete contos, a personagem
feminina protagonista é responsável pela resolução do conflito. Cinderela (na
versão de Perrault e dos irmãos Grimm), Branca de Neve e Vasilisa são enteadas,
apenas Catarina e Marlene possuem mães que desempenham, também, o papel de
madrastas. Tais protagonistas femininas igualam-se por serem doces, prestativas,
trabalhadeiras, gentis, pacientes, sensíveis, humildes e servis, além de bonitas, é
claro!
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A Cinderela de Perrault prestava-se aos mais grosseiros serviços, não


demonstrava ódio ou raiva pela mísera situação a que era imposta. Demonstrava-
se discreta e subserviente. Todavia, mesmo nestas condições “com seus trapinhos
parecia mil vezes mais bonita que elas” (as meio-irmãs). Sofre por não usufruir
das mesmas condições das irmãs, mas o faz silenciosamente. Nunca se nega a
servir; é altruísta; não possui sentimento de cobiça. Revela, ao mesmo tempo,
insegurança em relação aos seus notáveis predicados, esperança na possibilidade
de realização de seus desejos, mesmo diante do improvável. Na narrativa, por
diversas vezes é reiterada a bondade como sua característica maior. Além disso, é
alegre, encantadora, leve, gentil, generosa. A madrasta é seu contraponto, aparece,
apenas, no início do conto, humilha-a e a coloca num lugar de exploração e
pobreza, levando-a assumir o lugar de verdadeira heroína.
A personagem Cinderela, que aparece na versão dos Irmãos Grimm, é
parecida com aquela de Perrault, apesar dos aproximados cem anos que separam
uma versão da outra. A boa menina, além dos predicados já conhecidos, é piedosa,
graciosa, modesta e religiosa. Como a outra, revela-se esperta quando necessário.
Apesar de seu final feliz, suas irmãs algozes são severamente punidas com a
cegueira. Neste conto, a madrasta aparece logo após a morte da mãe de Cinderela,
como a segunda esposa do pai e já trazendo suas duas filhas para conviver com a
borralheira. Se esta madrasta não é diretamente a algoz, ela é permissiva, omissa e
conivente com a maldade das filhas. Demonstra sua ambição desmedida ao
orientar as próprias filhas a cortarem os pés.
Branca de Neve, por sua vez, é uma inocente menina de apenas sete anos no
início da narrativa. Com o passar dos anos, torna-se “tão bonita quanto o dia e mais
bonita que a própria rainha”. Porém, sequer tem consciência disso. Como as demais
protagonistas, é bondosa, religiosa e sabe cuidar muito bem dos afazeres domésticos.
Reserva em si uma adorável desobediência que anuncia a tomada de consciência de sua
beleza ao sentir-se sempre seduzida a obter os objetos que remetem aos cuidados com o
corpo oferecidos pela velha camponesa. Sua madrasta compete o tempo inteiro com a
mesma. É o conto em que a madrasta atua do início ao fim da narrativa.
A russa Vasilisa possui a mesma caracterização das demais protagonistas. No
entanto, apesar de sentir medo de sua situação e dos desafios em que terá de se
envolver, enfrentava-os, confiante na intervenção da sua boneca – amuleto. Para livrar-
se da Baba Iaga, usa sua pretensa ingenuidade, mostrando esperteza, cautela e
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racionalidade, pois ao declarar que foi ajudada pela bênção da mãe faz com que a bruxa
a tema, sem revelar que a boneca materializa a proteção materna. Fator singular nesta
jovem é o fato de conquistar o Czar não apenas pelos predicados já conhecidos e
repetidos, mas, sobretudo, por sua capacidade de tecer. A madrasta é quem obriga a
menina a sair do espaço doméstico e desbravar a desconhecida floresta, para de lá voltar
parcialmente bem sucedida, porque no caso deste conto, após livrar-se da madrasta e
das meias-irmãs, a jovem bela ainda terá que encontrar mais uma mulher em seu
caminho para evocar o fortalecimento da filha através da mãe.
Catarina Quebra – Nozes é a única protagonista que não é a mais bela. Revela
imensa solidariedade com a meia-irmã e é, singularmente, corajosa e atuante. Não se
intimida perante os desafios, pelo contrário, ela os busca para resolver o problema da
irmã. Reitera a discrição presente nas protagonistas e é esta qualidade que a fará ter
êxito em seu objetivo. Ato que parecia inútil pueril e sem sentido – colher as nozes do
caminho – mostra-se uma ação útil para a consolidação do final feliz e será a sua
salvação. Como as demais, também sabe dissimular quando é necessário. Mas, além
disso, sabe barganhar para se beneficiar. É observadora e extremamente inteligente
qualidades incomuns às mulheres dos contos lidos. Seu altruísmo não a faz esquecer-se
de si mesma, assim, Catarina, além de salvar sua irmã e o príncipe doente, salva a si
mesma. A madrasta nesta história ao tentar privilegiar a própria filha, leva-a a testar sua
solidariedade, bondade e coragem, a fim de proteger a irmã que sofrera violência.
Em João e Maria, ambos são protagonistas. Inicialmente, o foco da história está
em João que não se deixa paralisar com a perspectiva da morte. Entretanto, as duas
crianças são espertas, parceiras e sabem ludibriar. Em alguns momentos, comportam-se
ingenuamente; em outros, não se deixam influenciar à primeira vista. João é pró-ativo,
perspicaz, ágil, inventivo e corajoso. Conforta a irmã em diversas situações, mas é
traído por sua inconsequente afobação e exacerbada autoconfiança. Já Maria revela-se
extremamente medrosa, no início. Seu excesso de sensibilidade, cuidado e bondade com
o outro remetem a descrições comuns ao personagem feminino, especialmente em suas
vertentes maternais. Todavia, é Maria quem mata a bruxa e resolve o problema gerador
do conto. Além disso, é ela quem cria as estratégias possíveis para fazer a pata
atravessar o rio e levar consigo os tesouros da bruxa. A insistência da madrasta em
abandonar as crianças, de certa forma, as aproxima da bruxa, e, consequentemente, de
seu tesouro.
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No conto Pé de Zimbro, temos apenas um protagonista masculino que sofre


graves maus-tratos da madrasta, vive aterrorizado por isso, revelando-se passivo e justo,
apesar de perspicaz. Marlene, a meia-irmã do menino é frágil, insegura e ingênua.
Piedosa, sente-se culpada pela desgraça do irmão. Toma à iniciativa de juntar os ossos
do irmão e depositá-los em baixo do Pé de Zimbro, como forma de fazê-lo renascer ou
para amenizar sua culpa. Assim, é ela que de certa forma possibilita que o menino
transforme-se numa ave e retorne vitorioso.

3.4 E foram infelizes para sempre: uma reflexão sobre os finais das madrastas
A hipótese de que a atuação das madrastas possui como força motriz a indicação
da existência de um desafio, acentua-se bastante se pensarmos em três dos contos
analisados. Nestes, ela só aparece no começo da história e/ou em parte inicial do seu
desenvolvimento, desaparecendo, ás vezes, subitamente do final. É o caso dos contos
Cinderela (tanto na versão de Perrault quanto na dos Irmãos Grimm) e de Catarina
Quebra-nozes em que as madrastas criam uma situação de conflito ou pela atribuição de
serviços domésticos inadequados para crianças, acompanhados da exclusão aos bailes
ou por fazer despencar a cabeça da bela irmã de Catarina e colocar no lugar dela uma
cabeça de ovelha. Vale ressaltar que na Cinderela de Perrault, a madrasta é mais omissa
do que má; é o tempo todo conivente com a iniquidade das filhas, mas nunca pratica as
ações de crueldade sozinha. Além disso, este é o único conto que as vilãs são perdoadas
e agraciadas com um nobre casamento ao final do conto.
Nos demais contos, as madrastas são punidas severamente, apesar de muitas
desaparecerem no desenvolvimento da narrativa e só aparecerem no desfecho para
evidenciar seu infortúnio final, como a madrasta de João e Maria que insiste por duas
vezes em deixá-los a própria sorte na “parte mais profunda da floresta”, mas não
aparece no desenrolar da história. Depois destes eventos, só em uma linha do penúltimo
parágrafo, saberemos que a madrasta tinha morrido, durante a ausência das crianças. A
morte desta madrasta é justificada como o aumento da situação de pobreza, gerador do
conflito presente no conto. E esta conexão não deixa de ser irônica, porque a madrasta
incitou o abandono das crianças para salvar a própria pele, todavia foi a primeira a
morrer por conta da situação que tanto a amedrontava.
As madrastas de Vasilisa e de Pé de Zimbro são mulheres atormentadas que
evidenciam de maneira recorrente a sensação de perseguição. Por isso, elas, também,
aparecem de forma marcante no início da narrativa, mas são ofuscadas totalmente ou
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parcialmente no desenvolvimento e retornam, somente para serem punidas. Após a


madrasta de Vasilisa, por exemplo, a obrigar a pegar o fogo na casa de Baba Iaga,
sabendo do perigo desta empreitada (e também por causa disso), a menina chega
vitoriosa e percebe que “desde a partida dela, não tinha tido nenhum fogo em casa”, o
que nos dá a entender de forma sarcástica que livrar-se de Vasilisa trouxe mais
problemas do que conforto. Ao retornar com a caveira de olhos flamejantes, para em
tese obedecer às ordens da madrasta e de suas filhas acaba por destruí-las, pois:

Vasilisa entrou em casa com a caveira, cujos olhos começaram a fitar a


madrasta e as duas irmãs. Aquele olhar começou a queimá-las. Tentaram se
esconder, mas os olhos as seguiam aonde quer que fossem. Pela manhã,
estavam transformadas em três montinhos de cinzas no chão. Só Vasilisa
permaneceu intocada pelo fogo. (p. 183).

A madrasta do conto Pé de Zimbro comete os atos de extrema crueldade, até o


menino transformar-se em uma bela ave canora. Contudo, depois desta ação a ave
precisará sair do estado de acomodação e enfrentar os desafios do mundo para
conquistar bens materiais ou imateriais e voltar para casa vitoriosa. Neste ínterim, a
madrasta só aparece nos versos cantados pela ave: “minha mãe me matou, meu pai me
comeu”. Quando a ave regressa ao lar, ainda que ninguém saiba da verdadeira
identidade do animal, o incômodo da madrasta aumenta como um pressentimento 1.
Entretanto, apesar do desconforto, ela pensa na possibilidade de se beneficiar com os
favores da ave. O que leva o leitor a pensar numa encruzilhada: a possibilidade do
perdão ou a realização da justiça. Entretanto, a ave para retornar em sua paridade
absoluta precisará aniquilar o mal, plenamente, e assim:

“A mulher foi até a porta e, bam, a ave soltou a pedra de moinho em cima da
cabeça dela, que morreu esmagada. O pai e Marlene ouviram o estrondo e
saíram. Fumaça, chamas e fogo se erguiam e, quando desapareceram, o
irmãzinho estava de volta postado bem ali”. (p. 171)

A madrasta mais terrivelmente punida, é a de Branca de Neve. O conto em si já


enuncia uma disputa de poder entre duas mulheres: uma mais jovem e ingênua e a outra
mais velha e experiente. Ambas são belas, portanto a questão da vaidade feminina será
um aspecto norteador da história. Todavia, o excessivo alarde em torno da beleza é
indício de um castigo a altura, assim esta madrasta será punida de maneira bastante
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A madrasta afirma “Estou atormentada como se uma grande tempestade estivesse se armando”, “Estou
apavorada que meus dentes estão batendo e tenho a impressão de ter fogo correndo nas veias”, “Sinto
como se a casa inteira estivesse se sacudindo e prestes a arder em chamas!”, “Oh, quisera estar mil
metros debaixo da terra para não ter de ouvir isso!”.
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rigorosa: terá de calçar sapatos de ferro aquecidos num fogo de carvões, untados com
substância aderente e dançar “com eles até cair morta no chão”. Segundo Tatar (2004),
esta morte dolorosa e humilhante coloca a madrasta no mesmo lugar dos sofrimentos a
que Branca de Neve foi submetida.
Ressaltamos que a madrasta tem papel mais relevante no início da história do
que no seu final. Pode ser punida ou não pelas maldades cometidas. O mais importante
é que é ela quem criará uma situação de desordem na vida das enteadas a ponto de levá-
las (ou obrigá-las) a agir, a incomodar-se. A madrasta, por certo, é uma das responsáveis
pelo final feliz das protagonistas, porque ela desafia e leva a protagonista a construir sua
própria fortuna. Além disso, a exclusão da madrasta ao final ou sua morte trágica, leva
as crianças a confiarem num porvir mais feliz.

4. Madrasta é a mãe
Ao confrontar as descrições de madrastas presentes nos contos de fada, comecei
a perguntar-me o que tal personagem tão fascinante simboliza para os leitores. E a
perspectiva psicanalítica de Bettelheim (1979) de chofre já enunciou algo interessante.
Ao intitular um dos capítulos do livro “A psicanálise dos contos de fadas”, como “A
fantasia da madrasta má”, acabava por denunciar que a relação estabelecida com a
personagem madrasta, de certa forma, é fruto da imaginação criadora das crianças. Vale
ressaltar que esta é, justamente, a sessão que tratará das transformações. Neste capítulo,
o autor defende que o conto de fada auxilia a criança a integrar “a ordem racional com a
ilogicidade de seu inconsciente” (p.83).
Para o psicanalista austríaco, a criança separa um ser em duas entidades, porque
não concebe que este possa ser bom em alguns momentos e mau em outros. Por isso,
dividir mães boas e madrastas más é uma ótima estratégia para preservar a imagem de
bondade que emana da mãe e compreender que aquela suposta maldade é uma
manifestação passageira. Assim, “embora mamãe seja com mais frequência a protetora
toda-dadivosa, pode-se transformar na cruel madrasta se for malvada a ponto de negar
ao seu filhinho algo que ele deseja” (BETTELHEIM, 1979, P. 84).
Por tanto, a personagem madrasta nos Contos de Fada resolve uma tensão
presente no relacionamento entre mães e filhas (os) e torna mais compreensível para a
criança a dubiedade que marca os seres humanos. Eis uma divisão útil para as crianças,
porque, esta poderá alimentar certo sentimento de ódio da mãe quando ela se comportar
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como madrasta, sem sentir culpa por isso, será auxiliada a lidar com sentimentos
conflitantes e contraditórios e, principalmente, a preservar a imagem da mãe boa. Além
disso, tal representação neutraliza as ações consideradas “do mal”, por conta de um
excesso das ações boas da mãe.
Então, através da experiência ou da leitura dos contos, cada indivíduo irá
organizar a realidade de acordo com sua capacidade de lidar com ela. Assim, com o
tempo, as crianças aprenderão que as madrastas são impulsionadoras do desafio, pois
elas impõem a criança na história (e na vida) a sair da situação de conforto e
acomodação e ir à busca de seu verdadeiro destino: a fortuna (ao mesmo tempo a sorte e
a riqueza). Portanto, se a madrasta não proibisse de ir ao baile, certamente Cinderela
não se sentiria tão impelida a ir e a participar intensamente do evento ou se a madrasta
não tivesse mandado o caçador sumir com Branca de Neve jamais ela teria se engasgado
com a maçã envenenada e encontrado o Príncipe Encantado2. Sendo assim, a maior
contribuição dos contos para seus leitores é orientá-los a vencer os desafios ao afirmar
para as crianças que “embora existam bruxas (...) também existem boa fadas, muito
mais poderosas”. (BETTELHEIM, 1979, p. 85).
O melhor é que os contos libertam seus leitores de uma postura maniqueísta, ao
evidenciar que os sentimentos dados como ruins ou inferiores são, na verdade,
sentimentos humanos. Apesar disso, insinuam o quanto às consequências da
exacerbação destes sentimentos é perigosa e catastrófica, destacando “o final feliz” para
aqueles que buscam a realização através de “desejos positivos”. O conto de fadas
fornece à criança persistência de ânimo para lidar com situações de conflito e faz com
que ela aprenda a valorizar suas aprendizagens cotidianas por mais simples que pareçam
ser. Assim, conforme declara Bettelheim:

A criança intuitivamente compreende que, embora estas estórias sejam


irreais, não são falsas; que ao mesmo tempo em que os fatos narrados não
acontecem na vida real, podem ocorrer como uma experiência interna e de
desenvolvimento pessoal; que os contos de fadas retratam de forma
imaginária e simbólica os passos essenciais do crescimento e da aquisição de
uma existência independente (BETTELHEIM, 1979, p.90).

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Se a madrasta não tivesse tramado o abandono de João e Maria na floresta, eles também não teriam
encontrado o tesouro da bruxa e certamente morreriam de fome em suas próprias casas. Se a madrasta de
Vasilisa não a tivesse mandado buscar o fogo na casa da terrível Baba Iaga, também ela não teria
mostrado sua habilidade em tecer e não seria desposada pela Czar. Se a madrasta, não tivesse trocado a
cabeça da irmã de Catarina por uma cabeça de carneiro provavelmente as duas irmãs estariam pobres e no
caritó. Por último, se a madrasta não tivesse matado o filho do marido, o espírito da criança jamais
voltaria com presentes materiais e simbólicos como ouro, vestuário e justiça.
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Assim, os contos para seus leitores, especialmente, as crianças, revelam-se como


uma experiência simbólica ímpar na aprendizagem da e para a existência. Através deles,
torna-se mais fácil e prazeroso entender as artimanhas, os conflitos e as contradições das
vidas humanas. E é esta criação que faz o homem não se limitar ao círculo de sua
própria experiência, alçar novos vôos, construir diferentes possibilidades e transformar
sempre o mundo em que vive.

Referências

AUGRAS, Monique. A dimensão simbólica. Petrópolis: Vozes, 1980. p. 9-25 (cáp. 1).

BUCKINGHAM, David. Crecer em La era de los médios electrónicos. Madrid:


Morata, 2002. p. 15-29. (Cáp. Primeiro)

BETTELHEIM, Bruno. A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e terra,
1979.

CHAUÍ, Marilena. Contos de fadas e Psicanálise. In: Repressão sexual: essa nossa
(des)conhecida. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1984, pág. 32-54.

COELHO, Nelly Novaes. O Conto de Fadas. São Paulo: Ática, 1987.

DARNTON, Robert. O massacre dos gatos. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

FERNANDES, Millôr. Fabulas fabulosas. Rio de Janeiro: Nórdica, 1985.

HELD, Jacqueline. O imaginário no poder: as crianças e a literatura fantástica. São


Paulo: Sumus, 1980. p. 39-57.

MASSUIA, Caroline Sanchez. O papel das mulheres nos contos de fadas. Disponível
em: http://www.artigosonline.com.br/o-papel-das-mulheres-nos-contos-de-fadas/,
acessado em: Agosto de 2010.

PENTEADO, Maria Heloisa. Contos de Grimm: Cinderela. São Paulo: Ática, 2008.

TATAR, Maria. Contos de fada: edição comentada e ilustrada; tradução Maria Luiza X.
de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.

VON FRANZ, Marie Louise. A interpretação dos contos de fadas. Rio de Janeiro:
Achiamé, 1981. p. 15-57.

VIGOTSKY, L. S. La imaginacion y el arte em la infância. Madrid: Akal, 1982.

WUNENBURGER, Jean-Jacques. O imaginário. São Paulo: Loyolla, 2008. p. 53-72

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