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Aumentando o poder interventivo

do bate-papo terapêutico

Nicolau Chaud
A despeito do modelo terapêutico que adotamos ou das técnicas que
empregamos em consultório, a maior parte dos resultados terapêuticos que
obtemos parte do bate-papo fluido, natural e pouco estruturado entre terapeuta
e cliente. Descrever os processos comportamentais envolvidos nesse bate-papo
é bastante difícil, porém fundamental se queremos ser capazes de direcioná-lo
de forma mais produtiva, aumentando seu poder interventivo.

O comportamento verbal
O comportamento verbal permeia a riqueza e a complexidade do
funcionamento psicológico humano. Somos capazes de entender
particularidades do funcionamento de um indivíduo quando olhamos para
aquilo que ele fala para outras pessoas e para si mesmo. A fala, seja pública ou
privada, é uma ferramenta que nos auxilia a obter aquilo que nos é importante e
a evitar aquilo que nos faz mal. Funcionalmente, podemos dividir o
comportamento verbal em três subcategorias.

Interpretação: Comportamentos verbais que dão sentido ao mundo e à nossa


experiência. Operam estabelecendo relações entre eventos novos e eventos já
conhecidos, organizando e classificando a experiência.
“Meu cliente faltou à sessão pela segunda vez consecutiva. Deve estar se
esquivando de falar dos temas que abordamos na sessão passada.”
Autorregulação: Comportamentos verbais que alteram a função de eventos de
forma a modificar a probabilidade de outros comportamentos (públicos ou
privados). Envolvem tomada de decisão e a gestão do próprio comportamento.
“Se meu cliente está evitando a terapia por causa dos temas, talvez eu deva
enviar uma mensagem dizendo-lhe que não precisamos falar daquilo se ele não
quiser. Ou melhor, vou ligar para ele.”
Comunicação: Comportamentos verbais que modificam o comportamento de
outras pessoas. Habilidades sociais.
“Gostaria de marcar nossa próxima sessão. Não sei o motivo pelo qual você
faltou as duas últimas, mas gostaria de discutir isso pessoalmente. Terça fica
bom para você?”

As categorias “interpretação” e “autorregulação” tipicamente operam no


nível do pensamento, embora possam ocorrer publicamente com as mesmas
funções.

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Sendo comportamentos, tanto a origem quanto o sentido do
comportamento verbal devem ser compreendidos pelas contingências sociais
nas quais operam, e não por qualquer coisa que poderíamos chamar de
“racionalidade”. Assim, observamos que:
 A fala de um indivíduo tende a se assemelhar àquela de indivíduos da
mesma comunidade verbal, pois são essas comunidades que modelam
nosso comportamento verbal. O comportamento verbal é uma ferramenta
de coesão social.
 A aprendizagem do comportamento verbal é sempre pública, de modo que
os repertórios verbais privados são apenas repertórios públicos emitidos
em um contexto diferente. Em outras palavras, o pensamento é uma
extensão da fala.
 O comportamento verbal “bom” é aquele que gera consequências
reforçadoras, positiva ou negativamente. Fora das contingências, nenhuma
fala faz sentido e pode ser julgada de qualquer maneira.

Olhando para as três categorias verbais descritas – interpretação,


autorregulação e comunicação – seria possível descrever qualquer demanda
clínica a partir delas?
Conclui-se que qualquer análise de caso clínico deve partir da
compreensão do funcionamento verbal do cliente, e qualquer intervenção
deve mirar na modificação do comportamento verbal.

Aprendizagem e modificação do comportamento verbal


A aprendizagem de qualquer comportamento passa por três processos:
 Modelagem
O comportamento é emitido e produz consequências que, por sua vez, afetam a
probabilidade do comportamento voltar a ocorrer.
 Modelação
O comportamento pode ser controlado por modelos de pessoas importantes de
nosso ambiente social.
 Instruções
O comportamento pode resultar de regras que especificam que comportamentos
devem ser emitidos em determinados contextos.

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Boa parte das contingências que modelam, dão modelos e fornecem
instruções para nosso comportamento verbal estão em conversas comuns e
interações sociais aparentemente triviais com pessoas afetivamente importantes
para nós.
Em sua maior parte, nosso funcionamento psicológico verbal é
produto do conjunto das conversas que tivemos ao longo da vida.

Avaliando o comportamento verbal


Inevitavelmente, o esforço de modificação deliberada do comportamento
verbal parte de um julgamento de quais comportamentos são “bons” e quais são
“ruins”. Uma avaliação descuidada tende a avaliar o comportamento verbal pelo
seu conteúdo, vendo como bons as falas de teor positivo, e ruins as falas de teor
negativo. Esse teor diz pouco sobre o valor funcional do comportamento.
Compreendemos a função da fala quando olhamos para:
 Os contextos nos quais essas falas acontecem;
 Aquilo que a pessoa consegue obter a partir dessas falas, sobretudo em
termos de suporte social;
 Aquilo que a pessoa evita que poderia lhe gerar sofrimento, tanto em nível
prático quanto simbólico;
 A coerência entre essa fala e o ambiente social do indivíduo.
Quando conseguimos detectar qualquer uma dessas funções, devemos
compreender o comportamento verbal como uma ferramenta útil, a despeito de
outros prejuízos que possa trazer. Se mesmo apesar de tais prejuízos o
comportamento continua ocorrendo, isso indica a falta de repertórios verbais
alternativos.
Por esse motivo, a modificação do comportamento verbal sempre deve
partir do estabelecimento de repertórios verbais novos, formas de falar
diferentes e complementares daquelas que o indivíduo já conhece. Os objetivos
terapêuticos devem ser traçados pelo estabelecimento de formas
diferentes e funcionais de falar sobre o mundo e com outras pessoas. A
definição dessas formas é o passo inicial e fundamental para qualquer
intervenção.
Uma dica para definir repertórios verbais-alvo: investigar padrões
(amostras de falas em diferentes contextos sobre diferentes temas) e observar
faltas (o que não aparece na fala do cliente?). Essa falta costuma ser um bom
parâmetro para definir objetivos terapêuticos.

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Estratégias
Evocação de falas
No bate-papo clínico, fazer perguntas não serve apenas para obter dados
e informações sobre o cliente, mas também para evocar falas de interesse. O
terapeuta pode fazer perguntas cuja resposta já sabe (ou imagina) apenas para
criar um contexto para que o cliente fale algo.
Como parte de um processo de modelagem, a evocação de falas de
interesse idealmente deve ser seguida pela pontuação do terapeuta sobre os
avanços daquela fala em direção aos objetivos terapêuticos, o que tem caráter
tanto reforçador quanto instrutivo.

Cliente tem uma fala excessivamente “O que você acha que pode fazer na
orientada ao passado, e não próxima semana para tentar lidar com
consegue fazer planos isso?”

“Vejo que você tem tido muitos


Cliente tem uma fala excessivamente conflitos com seu marido, mas gostaria
negativa, focando nos pontos que tentasse me contar o que foi que te
negativos das pessoas e situações fez gostar dele e querer casar-se com
ele.”

“Entendo que seus pais gostariam que


Cliente orienta seu comportamento
você cursasse Medicina e que é um
por regras e expectativas externas,
curso com boas chances de retorno
pouco respeitando os próprios
financeiro. Mas você tem vontade de
desejos
estudar Medicina?”

Direcionando o tema da sessão


Assim como qualquer comportamento, o comportamento verbal se
fortalece e se aprimora à medida que é exercitado. Esse exercício acontece tanto
na fala quanto no pensamento. Quando o diálogo terapêutico é direcionado a
algum tema, esse tema se fortalece no repertório do cliente. Ao mesmo tempo, o
cliente sempre tenderá a falar de temas que lhe são familiares, o que pode levar
o terapeuta a, sem perceber, reforçar padrões problemáticos.
Por esse motivo, o terapeuta pode intervir simplesmente buscando
direcionar o tema para repertórios que sejam deficitários no cliente.

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Perfil do cliente Tendência temática Temática interventiva

Falar de seus
Falar daquilo que ele
Cliente negativo, problemas, explicar por
gosta, buscando
pessimista, desanimado, que as coisas não estão
entender a fundo o
deprimido, desencantado dando certo, e o que
porquê ele gosta
com a própria vida. existe de errado com as
daquelas coisas.
pessoas e com o mundo.

Cliente angustiado,
Falar do passado,
introspectivo,
buscando compreender
autorreflexivo, com
a origem de seus Falar de planos e do
dificuldade de tomar
problemas e descrever futuro.
decisões e preso nos
a própria
mesmos conflitos há
personalidade.
muito tempo.

Olhar para o passado,


Cliente impulsivo,
buscar entender como o
inconsequente, começa
Falar de ideias, de cliente funciona e
muitas coisas e termina
planos, de ambições e investigar quais fatores
poucas, empolga-se
do futuro. interferem com o
facilmente e desanima
sucesso de seus
com a mesma facilidade.
projetos.

Modelos
O terapeuta é um modelo para o cliente, inclusive um modelo de fala. É
comum que o cliente absorva falas do terapeuta para si. Sabendo disso, o
terapeuta deve direcionar sua própria fala para aquilo que gostaria que o cliente
aprendesse a falar.
 Se o terapeuta quer que o cliente consiga falar de um jeito mais otimista, o
terapeuta deve falar de forma otimista.
 Se o terapeuta quer que o cliente seja mais objetivo, o terapeuta deve falar
de forma objetiva.
 Se o terapeuta quer que o cliente seja menos inseguro, deve questionar
menos o cliente.
 Se o terapeuta quer que o cliente consiga se posicionar de forma mais
firme, deve falar de forma firme.

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Criando regras para direcionar o diálogo
Em momentos pontuais do diálogo terapêutico, o terapeuta pode dar
instruções específicas para direcionar a fala do cliente de forma a praticar o
repertório de interesse. Isso pode ser feito com instruções do tipo “tente fazer
mais X” ou “tente fazer menos Y”.
 “Conte-me o que gostaria de fazer na próxima semana, mas sem antecipar
o que pode dar errado.”
 “Diga o que você achou legal nessa viagem, mas tente fazer de forma bem
enfática”.
 “Procure me descrever, em sua opinião, o que está errado em seu
casamento em 15 segundos”.
 “Tente me explicar o que da atitude do seu amigo te deixou chateado, mas
sem tentar legitimar o comportamento dele”.

Exercícios – Casos fictícios


Vamos exercitar nosso raciocínio de análise do comportamento verbal e
as estratégias de intervenção no diálogo terapêutico apresentadas a partir de
dois fragmentos de casos clínicos fictícios. Para cada um deles, procure:
1. Descrever os principais pontos da demanda do cliente;
2. Apontar aparentes falas ou padrões de fala problemáticos no relato do
cliente, explicando de que forma se relacionam à demanda;
3. Sugerir falas ou padrões de fala alternativos que poderiam ser benéficos
ao cliente diante da demanda apresentada;
4. Planejar estratégias para o treino desses novos repertórios verbais que
aconteçam no diálogo terapêutico;
5. Praticar tais estratégias por escrito ou mediante encenação.

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DANIEL Busquei terapia por causa da minha
37 anos
ansiedade, principalmente na hora de dormir. Tenho
tido muita dificuldade de pegar no sono. Fui a uma
psiquiatra, ela me receitou alguns medicamentos e
sugeriu que eu fizesse terapia. Minha esposa já vinha
dizendo para eu fazer terapia há um tempo. É a
primeira vez que faço.
Talvez um pouco da minha ansiedade seja por
questões financeiras, não sei. Ultimamente minhas
despesas mensais estão bem maiores que minha
renda. Sou professor universitário. Minha esposa no
momento não trabalha, há três anos estuda para
concursos. Quando ela trabalhava, nosso orçamento
era mais folgado. Agora eu arco com as despesas da
casa e as despesas pessoais dela. Mas ela é comedida e
não gasta muito. Se ela conseguir passar, nossa
situação vai melhorar muito.
Eu sou doutor, mas na universidade recebo como mestre. Tecnicamente eu
deveria ter tido meu salário ajustado assim que concluí o doutorado, mas a burocracia
na universidade é imensa, e às vezes isso leva anos. Minha esposa vive me cobrando de
entrar com um processo administrativo na universidade. Só que isso poderia me
queimar lá dentro, não acho que compensa. Além do mais, o meu salário como mestre
não é ruim, já que eu tenho muito tempo de casa.
De forma geral, minha rotina é tranquila. Eu trabalho só quatro dias na semana,
folgo às quartas. Quando não estou trabalhando fico em casa, às vezes preparando
aulas e corrigindo trabalhos, às vezes fazendo tarefas domésticas, às vezes vendo TV
ou conversando com minha esposa. Tenho alguns colegas que trabalham em dois
lugares e têm uma rotina muito mais corrida, não têm tempo para nada. Falta de
tempo é uma coisa que não posso reclamar, embora às vezes pense que deveria estar
procurando outro trabalho também.
Antigamente tinha contato com meus amigos com mais frequência, mas muitos
deles tiveram filhos, cada um está cuidando da sua vida. Acho que é o normal, né? Era
bom quando a gente se encontrava mais. Mas minha rotina atual é boa também. O
único problema é que eu tenho comido muito, ganhei um pouco de peso. Minha esposa
diz que eu deveria fazer academia, mas eu tenho um problema no joelho que agrava
quando faço exercícios. Normalmente é uma dorzinha que não me incomoda muito,
mas se eu forçar piora.
Uma coisa que eu gostava bastante era fotografia, mas acabei vendendo meus
equipamentos para pagar dívidas. E como eu mal saio de casa, não tenho o que
fotografar também.
O que espero da terapia? Acho que melhorar minha ansiedade, me conhecer
melhor. Todo mundo precisa de terapia, né? Minha esposa diz que eu sou meio
desligado, que não dou muita atenção a ela, talvez seja algo que eu precise melhorar
também.

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LARISSA Ando muito estressada, e acho que a
22 anos principal responsável é minha mãe. Minha mãe é
uma criatura insuportável. Sabe aquelas pessoas
que tiveram uma vida frustrada e ficam tentando
controlar a vida dos outros? Essa é ela. Ela tenta
controlar tudo na minha vida! O que eu como, com
quem eu ando, o que eu visto, a hora que eu
acordo, a hora que eu durmo. TUDO!
Eu preciso urgentemente mudar de casa,
mas acho que minha mãe tem tanto medo de que
eu saia e a deixe sozinha que ela me enche de
tarefas domésticas e não sobra tempo para eu
procurar um emprego. Atualmente só estudo, e
nem focar nos estudos tenho conseguido de tanta
pressão em casa.
Faço faculdade de Direito, e este ano estou fazendo meu TCC. Isso é outra
coisa que tem me estressado demais. Eu queria escrever sobre algo ligado à
alienação parental, mas meu orientador acabou me convencendo a falar sobre
violência doméstica, e eu odeio esse tema. É muito mais difícil escrever sobre
algo que você não gosta. Para ser bem sincera, nem de Direito eu acho que gosto.
Eu queria ter feito Letras, mas minha mãe me pressionou a desistir dizendo que
não dava dinheiro, que Direito me daria mais opções. O pior é que, do jeito que o
país está, é muito difícil eu conseguir passar em um concurso público. Eu
poderia advogar também, mas com essa quantidade de faculdades particulares
abrindo cursos de Direito todos os dias, acho que já existem advogados demais
no mundo.
O único lazer que ando tendo é sair com meu namorado Igor, mas até ele
tem me estressado ultimamente. Para você ter uma ideia, ontem eu estava super
grilada porque meu cachorro esbarrou no fio do notebook e eu perdi mais de 2h
de trabalho do meu TCC, e liguei para o Igor para contar. Ele conversou comigo
super rápido e desligou falando que tinha marcado uma partida de não-sei-o-
que com os amigos no computador. Poxa, ele viu que eu estava mal, precisando
dele, e me deixa no vácuo para jogar esse joguinho que ele joga todos os dias?
Achei ridículo, homem é muito insensível.
Acho que o principal motivo pelo qual busquei terapia é porque não sei o
que quero da minha vida. Há momentos em que olho para minha vida e vejo que
moro num lugar que eu não gosto, com uma pessoa que não suporto, faço um
curso com o qual não me identifico, e tenho um namorado que não sei se amo. Às
vezes minha sensação é de que fui trolada por Deus e vim zicada nessa
encarnação. Minha vontade é apertar um botão de reset e começar minha vida
de novo, de preferência num lugar onde eu não esteja cercada de gente sem
noção.

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