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ANTICORPOS PARA O COMBATE AO VÍRUS COLONIAL: ALGUMAS

IDEIAS ATRAVÉS DA ARTE

Guilherme Marcondes1

Imagem 1: Aglutinar e redistribuir * Castiel Vitorino Brasileiro * Fotografia Digital * 2018.

1
Pós-doutorando (com bolsa PNPD/CAPES) no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Estadual do Ceará (PPGS/UECE). Doutor e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em
Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPGSA/UFRJ). Graduado em
Ciências Sociais (bacharelado e licenciatura) pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Foi
Coordenador de Pesquisa e Memória do Museu Bispo do Rosário Arte Contemporânea (mBrac) e assistente
de pesquisa no projeto Difusão e Educação Patrimonial do Acervo Histórico do CPDOC/FGV. Atualmente,
é pesquisador associado ao Núcleo de Sociologia da Cultura da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(NUSC/UFRJ), do GRUA - Grupo de Reconhecimento de Universos Artísticos/Audiovisuais:
http://www.grua.art.br (CNPq) e um dos editores associados da revista Horizontes ao Sul.
Aviso: Este texto se inicia com uma introdução que para alguns pode parecer
excessivamente didática e desnecessária, porém, como educador espero que estas
palavras e ideias não circulem apenas entre especialistas.

Introdução: somos mesmo uma humanidade?


Acredito que, para começar esse breve texto, é possível dizer que os três pilares
fundamentais do que chamamos de modernidade - colonialismo ↔ capitalismo ↔
patriarcalismo - seguem estruturando e mediando as relações entre humanos2 e sub-
humanos3, bem como a relação de humanos com outros animais4, com as plantas5 e com
o próprio planeta Terra6. Relembro aqui, então, a pergunta de Ailton Krenak (2019:12):
“Somos mesmo uma humanidade?”, com a qual o autor busca demonstrar que nem
todos(as/es) aqueles(as/xs) que compartilham a condição de homo sapiens são,
efetivamente, considerados(as/xs) humanos, já que a dita humanidade é reservada (de
modo narcísico, diga-se de passagem7) àqueles que se assemelham aos homens brancos
e europeus que vêm construindo um caminho onto-epistemológico que lhes coloca no
centro do mundo em termos de poder – não à toa cientistas, sobretudo das áreas da
geologia e da antropologia têm se debruçado sobre o que seria a era do Antropoceno8.
Nesse contexto, a criação da ideia fictícia de raça serviu para autorizar os tais
homens brancos europeus, os que se autoconstruíram como humanos, a sequestrarem,
escravizarem, marginalizarem e estigmatizarem pessoas que não se assemelhavam a eles
próprios. Como definiu Achille Mbembe (2014; 2018), a partir da criação de uma
necropolítica pautada na ideia de raça, o branco se tornou o modelo universal de ser
humano. Sendo assim, entendo a raça como uma tecnologia do conhecimento criada por
brancos a fim de explorar os recursos naturais e os outros em seu benefício. Deste modo,

2
Aqueles que são brancos, europeus, cisgêneros, heterossexuais e seus descendentes, além de serem de
preferência homens.
3
Sendo estes aqueles todos que não se assemelham ao tipo europeu, historicamente categorizados como
Outros.
4
Humanos nem parecem se compreender como animais.
5
As quais são extintas pelos humanos, bem como os outros animais e os sub-humanos.
6
Que parece clamar por socorro antes de seu colapso e o fim da vida que carrega.
7
Propondo uma leitura descolonizada do mito grego de Narciso e Eco, Grada Kilomba, traz a metáfora do
jovem que se torna objeto de amor e idolatria por si próprio com a finalidade de tratar da sociedade branca
e patriarcal. Deste modo, Kilomba argumenta sobre como a inteligência, a beleza e os conhecimentos
tomados como válidos em sociedades coloniais refletem, em geral, única e exclusivamente aqueles criados,
idolatrados e reproduzidos por pessoas brancas (leia-se, homens brancos). Para mais detalhes ver a obra de
Grada Kilomba: Ilusões Vol. I, Narciso e Eco, bem como seu livro, resultado de sua tese de doutoramento,
Memórias da Plantação – Episódios de Racismo Cotidiano ([2008] 2019a).
8
O Antropoceno, resumidamente, se trata da nova era geológica em que se encontraria o planeta, em que
os humanos tomaram o papel principal como força ambiental dominante na Terra.
vêm, basicamente, separando o que chamam de humanidade do restante da natureza,
constituindo e reconstruindo um sistema de exploração que tem por base a criação de
capital (num sentido legado por Karl Marx) para alguns(mas) em detrimento de
outros(as/xs) e têm marginalizado e espoliado populações que não se assemelham a si
próprios. Trata-se, assim, de um domínio de homens brancos com capital. Destarte, nesta
cruzada secular pelo poder, aqueles tomados(as/xs) como outros(as/xs) pelos ditos
humanos, constituem um grupo que Krenak chama de sub-humanos:

Os únicos núcleos que ainda consideram se manter agarrados nessa Terra são
aqueles que ficam meio esquecidos pelas bordas do planeta, nas margens dos rios,
nas beiras dos oceanos, na África, na Ásia ou na América Latina. Esta é a sub-
humanidade: caiçaras, índios, quilombolas, aborígenes. Existe, então, uma
humanidade que integra um clube seleto que não aceita novos sócios. E uma
camada mais rústica e orgânica, uma sub-humanidade, que fica agarrada na Terra.
(KRENAK, 2020).

Assim como Ailton Krenak, muitos(as/xs) outros(as/xs) se sentem


excluídos(as/xs) desse seleto clube, e aqui incluo favelados(as/xs) e refugiados(as/xs) de
todos os morros, becos, vielas, zonas fronteiriças, prisões, manicômios e campos de
concentração pelo mundo afora. Pessoas que há pelo menos cinco séculos vêm tendo seus
saberes, religiosidades, belezas, artes e modos de existir negados e, de fato, achincalhados
em prol da dita humanidade, que se coloca acima de tudo e todos(as/xs) que com ela
coabitam a Terra.
A modernidade criou, deste modo, um mundo que assassina pessoas e destrói a
biodiversidade. No que diz respeito às pessoas Outras (não-brancas), trata-se não apenas
de um genocídio da população negra, mas também de indígenas, aborígenes, LGBTTQ+
e pessoas empobrecidas, vítimas desse próprio sistema moderno de existência.
Proponho, assim, compreendermos a colonialidade como um vírus, o vírus
colonial. Na origem latina da palavra, vírus é um veneno. Persistente e contagioso, o vírus
colonial enriqueceu seus criadores, contribuindo para o seu domínio sobre a Terra (a
natureza e as pessoas não-brancas). Tal qual o diabo cristão, é nocivo e astuto, e há séculos
vem tentando exterminar existências e recriando processos de expropriação. Todavia,
como procuro destacar neste texto, através dos trabalhos de artistas e pensadores(as/xs)
como Krenak e Mbembe, há anticorpos em luta para o extermínio do vírus colonial, não
visando apenas imunização, mas a cura absoluta para essa doença secular.
Batismo de Sangue
Neste momento, creio ser oportuno trazer à discussão o trabalho de Ventura
Profana, pastora e multiartista que transita entre a escrita, as artes visuais e a música, que
em seu corpo de trabalhos vem pautando a subversão das tecnologias coloniais,
especialmente aquela centrada na religiosidade cristã. A imagem 2 é exemplo dos
questionamentos produzidos por Profana em seus trabalhos na seara das artes visuais. A
artista modifica a pintura A Primeira Missa, de Victor Meirelles, datada de 1860, que
representa um dos maiores exemplos do romantismo brasileiro, especialmente no que se
refere a pinturas históricas. No quadro, Meirelles retrata a primeira cerimônia cristã no
atual Brasil, reunindo de modo harmônico indígenas e portugueses, demonstrando uma
passividade e aceitação dos povos originários em relação àquela que seria a religiosidade
a ser seguida. Ocultam-se, assim, os traumas e violências do processo de imposição de
padrões religiosos que ocorreram no período - e continuam até hoje. Profana, por sua vez,
recorre ao trabalho de Meirelles e insere seu corpo na cruz, ela uma travesti negra,
emulada na cruz. Seu corpo passa a representar, então, os corpos subalternizados,
massacrados e dizimados pelo vírus colonial, em sua cruzada onto-epistemológica pelo
domínio dos homens brancos que contou (e conta) com os princípios e narrativas
religiosas cristãs a fim de estabelecer seu poderio.

Imagem 2: A Primeira Missa no Brasil * Ventura Profana * Fotografia Digital * 2017.


Cabe dizer que a imagem do corpo de Ventura Profana não representa tais corpos
assassinados e perseguidos apenas por estar no alto da cruz, mas, por ser ela travesti,
negra e de origem indígena, nos lembra que estas são algumas das principais vítimas de
mortes violentas no Brasil9. Neste sentido, creio ser possível dizer que o trabalho de
Profana dialoga diretamente com o conceito de necropolítica, presente na formulação
fazer morrer e deixar viver (MBEMBE, 2014; 2018). Máxima que segue em vigor através
das tecnologias do Estado, que, resumidamente, governa através de políticas que visam a
morte daqueles(as/xs) que define como seus(as/sxxs) inimigos(as/xs) – incidindo, desta
forma, sobre vidas que não se enquadrem nos padrões heterossexuais, cisgêneros e raciais
no país inventado pela colonização portuguesa.
Em 2018, como sabemos, o atual presidente do Brasil foi eleito com um discurso
que reunia pautas cristãs, do agronegócio e da indústria armamentista. Não é preciso
relembrar o conteúdo de suas comunicações, que para alguns constitui verdadeiro trauma.
No entanto, atualmente, quando o planeta se coloca, como pode10, em isolamento em
virtude da pandemia do Covid-19, chama a atenção um de seus recentes comentários. Em
27 de março de 2020, quando o país e o mundo assistiam atônitos à progressão da
pandemia e dos casos de morte, o presidente afirma em um programa de televisão:
“Alguns vão morrer? Vão, ué, lamento. Essa é a vida”11.
O choque com a fala acima me leva a outro trabalho de Profana. Em Um Estudo
em Vermelho. Batismo #1 (imagem 3), de 2017, a artista provoca uma nova subversão,
ao tomar a imagem do atual presidente, à época pré-candidato, em seu batismo nas águas
desempenhado em uma igreja de matriz evangélica. Mas na versão de Ventura Profana,
as águas não são límpidas, elas se vertem em sangue. O batismo que marca a aliança do
presidente com os ditos valores morais cristãos, torna-se um batismo de sangue. E fica a
pergunta: a vida de quem? O sangue de quem?

9
No Brasil, as travestis têm uma expectativa de vida em torno de 35 anos de idade, enquanto a expectativa
de vida para brasileiros(as/xs), em geral, é em média de 76 anos e três meses. No que se refere à população
negra, esta tem 2,7 mais chances de morrer por causas violentas, no país, relativamente à população branca
Disponível em: <https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-
noticias/noticias/26103-expectativa-de-vida-dos-brasileiros-aumenta-para-76-3-anos-em-2018>. Acesso
em 25 de abril de 2020, e, disponível em:<https://exame.abril.com.br/brasil/ibge-populacao-negra-e-
principal-vitima-de-homicidio-no-brasil/>. Acesso em 25 de abril de 2020.
10
Já que, como sabemos, nem todas as pessoas puderam se isolar.
11
Disponível em: <https://congressoemfoco.uol.com.br/governo/bolsonaro-sobre-coronavirus-alguns-vao-
morrer-lamento-essa-e-a-vida/>. Acesso em 25 de abril de 2020.
Imagem 3: Um Estudo em Vermelho. Batismo #1 * Ventura Profana * Fotografia Digital *
2017.

De fato, creio ser possível dizer que as alianças apresentadas na imagem e nos
discursos do presidente eleito, deixam evidente de quem é o sangue que Profana coloca
na imagem. Efetivamente, o projeto político em questão parece mais uma reatualização
de um modo de comando e existência que aterrisou em terras brasileiras há muito tempo.
Enquanto escrevo este texto, quase um mês após a fala do presidente, os dados
sobre o número de mortes em decorrência do coronavírus, no Brasil, ultrapassam 5.00012
pessoas - nossos pais, mães, avós, filhas, filhos, sobrinhas, sobrinhos, amigos 13. Enfim,
pessoas. Fato é que a fala do atual presidente foi recebida com escândalo por diversas
pessoas que, especialmente nas redes sociais, demonstravam indignação com o que seria

12
Durante a edição deste texto para publicação, chega a informação de que as mortes no país ultrapassam
5.000 pessoas, ultrapassando a China, marco zero da doença. E, ao ser questionado sobre o tema, o atual
chefe do Poder Executivo Federal, contrário às medidas de isolamento horizontal, respondeu: “E daí?
Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”. Disponível em:
<https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/04/28/e-dai-lamento-quer-que-eu-faca-o-que-diz-bolsonaro-
sobre-mortes-por-coronavirus-no-brasil.ghtml>. Acesso em 28 de abril de 2020.
13 Disponível em: <https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/04/25/casos-de-coronavirus-
e-numero-de-mortes-no-brasil-em-25-de-abril.ghtml>. Acesso em 25 de abril de 2020.
uma banalização da vida por parte do chefe do Poder Executivo Federal. Entretanto, se a
alguns(mas/mxs) choca, a outros corpos a fala em si era apenas a reprodução de um
projeto em curso desde 1500. Afinal, os dados sobre o Covid-19 já têm comprovado quem
têm morrido em maior número pela doença. No caso brasileiro, são as pessoas negras e
de bairros periféricos.
Fortaleza, capital do Ceará, é a cidade que vem ocupando os primeiros lugares em
casos confirmados da doença no país. Enquanto que alguns dos bairros mais abastados
(como Meireles, Aldeota e Cocó) reúnem o maior número de infectados, são os bairros
mais humildes (como Grande Vicente Pinzon, Barra do Ceará e Grande Pirambú) que têm
concentrado maior números de óbitos14. Bairros periféricos, leia-se aqui, bairros com
maior número de pessoas negras, de descendentes de indígenas que tiveram suas
sociedades dizimadas e com vulnerabilidades sociais. O Covid-19, de fato, pode matar a
qualquer um(uma/umx), no entanto, a possibilidade de isolamento em cômodos
separados, com acesso a água etc. não são iguais para todos(as/xs). Em lugares
periféricos, a proliferação de um vírus - como o coronavírus - pode significar (mais) um
genocídio.

Cura através de uma virada de pensamento


Em busca de novas rotas para o extermínio do vírus colonial, é necessária uma
completa virada de pensamento em relação aos valores impostos pelo tripé da
modernidade. É fundamental, neste ponto, me referir ao trabalho de Denise Ferreira da
Silva, posto que a autora debate com/contra os valores ontológicos e epistemológicos do
projeto colonial, patriarcal e capitalista. Em A Dívida Impagável (2019), Ferreira da Silva,
trata da importância de uma transformação completa de pensamento a partir de uma
perspectiva poética negra feminista que seria capaz de pôr abaixo os pilares da
modernidade, a fim de constituir um mundo distinto em termos éticos e jurídicos.
Na perspectiva proposta por Denise Ferreira da Silva, é necessário pensar o mundo
de uma forma que se compreenda que as pessoas e as demais coisas e seres estão
implicados, que a ação de uns(mas/mx) incidem sobre os(as/xs) demais. Ou seja,
resumidamente, o mundo da modernidade seria um Mundo Ordenado, onde pessoas
estariam separadas entre si e do restante do que compõe o mundo. Deste modo, a virada

14 Boletim Epidemiológico semanal datado de 22 de abril de 2020. Disponível em:


<https://coronavirus.fortaleza.ce.gov.br/boletim-epidemiologico.html >. Acesso em 25 de abril de 2020.
proposta pela autora tem base na noção de Plenum15, que caracteriza um Mundo
Implicado em oposição ao Mundo Ordenado, projetado e levado a cabo no processo
colonial, capitalista e patriarcal. Um processo que pode ser delineado do seguinte modo:

Ao longo dos últimos cento e cinquenta anos, desde a apresentação da versão


clássica do materialismo histórico, a produção capitalista (como delineada por
Marx e seus seguidores) não interrompeu a expropriação colonial. Na verdade, o
contrário ocorreu. Os últimos duzentos anos testemunharam episódios repetidos
da expropriação colonial de terras, trabalho e recursos, garantida por arquiteturas
jurídico-econômicas que operam dentro e fora do Estado-nação, ou seja, da
figuração mais recente do corpo político liberal. Indubitavelmente encontramos,
hoje, a forma jurídica colonial possibilitando o capital global. Considere, por
exemplo, os diversos lugares no mundo que se encontram num estado de
violência contínua – várias partes no Oriente Médio, continente africano, bairros
economicamente despossuídos e áreas rurais na América Latina e no Caribe, ou
bairros negros e latinos dos Estados Unidos. Violência que, além de facilitar a
expropriação de terras, recursos e mão-de-obra, também transforma esses espaços
em mercados para a venda de armas e inúmeros serviços e bens fornecidos pela
indústria da seguridade. (FERREIRA DA SILVA, 2019: 180-181).

A dívida impagável a que se refere a autora diz respeito, então, ao processo de


contínua expropriação a que alguns corpos têm sido submetidos ao longo da história a
partir da colonialidade. Sendo o Plenum uma possibilidade de abertura de pensamento
em outras chaves que não aquelas forjadas no âmbito da modernidade, responsáveis pelo
que chamo de vírus colonial. O Plenum, por conseguinte, é possibilidade de vida, de outra
vida, em outras perspectivas onto-epistemológicas, que compreendem a implicação das
pessoas e coisas do mundo umas nas outras. A coletividade ao invés da individualidade é
aqui uma senha importante, que demarca a diferenciação entre uma perspectiva, como a
apresentada por Ferreira da Silva, e aquela do Mundo Ordenado da modernidade, que
classifica, hierarquiza e separa. Dessa forma, o Plenum é um Mundo Implicado, em que
“a socialidade não é mais nem causa nem efeito das relações envolvendo existentes
separados, mas a condição incerta sob a qual tudo que existe é uma expressão singular de
cada um e de todos os outros existentes atuais-virtuais do universo, ou seja, como Corpus
Infinitum” (FERREIRA DA SILVA, 2019: 46 [itálico no original]).
A necessidade de pôr abaixo o Mundo Ordenado, tal qual posto por Ferreira da
Silva, ou ainda, de eliminação do vírus colonial, como aqui proponho, aparece, deste
modo, no trabalho de outra artista, Jota Mombaça. Em Veio o tempo em que por todos os
lados as luzes desta época foram acendidas (2018), a artista se propõe um exercício de

15
Que a autora traz a partir de Gottfried Wilhelm Leibniz.
pensar memórias do futuro intercaladas com memórias de um passado não tão distante,
refletindo sobre o contexto político contemporâneo ao argumentar acerca da continuidade
dos processos sócio-históricos do genocídio colonial empreendido contra a população
negra. Ao mesmo tempo, pensa sobre caminhos de fuga desse vírus colonial, caminhos
para a seu extermínio e a abertura de novas possibilidades de existir e pensar. Diz
Mombaça:

DESEJAMOS PROFUNDAMENTE QUE O MUNDO COMO NOS FOI DADO


ACABE. E esse é um desejo indestrutível. Fomos submetidas a todas as formas
de violência, fecundadas no escuro impossível de todas as formas sociais,
condenadas a nascer já mortas, e a viver contra toda formação, no cerne oposto
de toda formação. Desejamos profundamente que o mundo como nos foi dado
acabe. E que ele acabe discretamente, no nível das partículas, na intimidade
catastrófica deste mundo destituído de mundo, este mundo que até a própria terra
rejeita. Essas palavras circularam telepaticamente por todas as que estávamos ali,
não tanto como um pensamento, mas como algo vibrando fora do corpo, na carne
do túnel, da nossa velha, da gente: desejamos profundamente que o mundo como
nos foi dado acabe. (MOMBAÇA, 2018)16.

Para além do desejo de destruição do Mundo Ordenado em sua faceta moderna,


Jota Mombaça conjura a vida. Uma vida em um mundo outro, um Mundo Implicado,
como aquele proposto por Denise Ferreira da Silva.
Alguns trovões desse Mundo Implicado têm incidido sobre a Terra por meio de
artistas como as aqui mencionadas. Assim, gostaria de encaminhar o fechamento desse
texto com o trabalho de Castiel Vitorino Brasileiro, que junto a Mombaça e Profana roga
novos mundos, caminhos e possibilidades que buscam se distanciar do projeto colonial.
A artista visual, escritora, psicóloga e macumbeira tem travado discussões que reúnem
arte e cura (mental e espiritual) tratando do trauma colonial 17. Em consonância com
argumentos e perspectivas como as de Mombaça, Mbembe, Krenak, Ferreira da Silva e
Profana, diz a artista em seu livro Quando Encontro Vocês – Macumbas de Travesti,
Feitiços de Bixa:

Tem gente falando de fim do mundo, que fim do mundo é esse? Que porra de
mundo que tá acabando? Estou vivendo o fim do meu mundo, né, o mundo que
fui criada, que é o mundo ocidental. E como sobreviver a ele sendo que a minha
morte de eu, um corpo negro testiculado e feminino, é programada? Está dentro
da agendo. Para esse mundo continuar acontecendo, é preciso que eu morra.
Pessoas bixas precisam morrer, pessoas travestis precisam morrer, pessoas

16
Disponível em: <https://jotamombaca.com/texts-textos/veio-o-tempo/>. Acesso em 23 de abril de 2020.
17
Aliás, o título de sua primeira exposição individual é O Trauma é Brasileiro, ocorrida entre 11 de junho
e 24 de agosto de 2019, na Galeria Homero Massena, em Vitória, cidade natal da artista.
indígenas precisam morrer, pessoas negras precisam morrer pra que esse mundo
sobreviva. E eu não quero que esse mundo sobreviva. E eu não quero que esse
mundo ocidental sobreviva, eu quero que ele chegue ao fim. E veja: o corpo todo
sente o fim do mundo. (BRASILEIRO, 2019: 16).

Novamente o projeto colonial é alvo. Ou seja, as vozes aqui reunidas indicam a


necessidade premente de extermínio das lógicas patológicas coloniais, desta virose
secular. E, pensando este fim, como as demais artistas aqui trazidas, Vitorino Brasileiro
pensa fugas. Neste caso, entre outros trabalhos de sua autoria, destaco aqui a série Corpo-
flor (2016-2019) - imagens 4 e 5 - em que a implicação ser-planta-espírito é foco da ação
da artista. Indicando outros caminhos societários. Acendendo alertas. Confrontando e
derrubando as ontologias e epistemologias coloniais, patriarcais e capitalistas.

Imagem 4: Corpo-flor * Castiel Vitorino Brasileiro * Fotografia Digital * 2016-2019


Imagem 5: Corpo-flor * Castiel Vitorino Brasileiro * Fotografia Digital * 2016-2019

Este texto não tem conclusões, mas visa apresentar perspectivas em ação. As
vozes aqui mencionadas vêm combatendo o vírus colonial, buscando rotas de fuga e
indicando caminhos outros para a ação no mundo e juntas parecem conclamar: eliminem
o vírus colonial! Em tempos de Covid-19, muito se tem falado sobre formas de estar
junto, sobre novas possibilidades de vida para o pós-pandemia, entretanto ainda
pertencentes à lógica colonial. Enquanto isso, outros permanecem nos escombros do
mundo moderno-ocidental que se encontra ruindo. Porém, apesar de reformadores e
conservadores, existe quem esteja em outros caminhos, deixando evidentes sinais de que
o que já foi não pode continuar sendo. Ao corpo de trabalhos como os de Ailton Krenak,
Ventura Profana, Achille Mbembe, Jota Mombaça, Denise Ferreira da Silva e Castiel
Vitorino Brasileiro, somam-se outros contemporâneos e anteriores, e todos(as/xs), a partir
da perspectiva daqueles(as/xs) que vêm sendo expropriados(as/xs) não apenas em termos
de capital, mas, igualmente, de suas possibilidades de existência, têm agindo como
anticorpos em combate ao vírus colonial. Indicando, portanto, a necessidade de desmonte
e eliminação efetiva das epistemologias e ontologias moderno-ocidentais. Então fica a
pergunta: você ficará ao lado dos que conservam o mundo moderno ou se somará
àqueles(as/xs) que buscam outros caminhos?
Referências:
BRASILEIRO, Castiel Vitorino. Quando Encontro Vocês – Macumbas de Travesti,
Feitiços de Bixa. Vitória: Editora da Autora, 2019.
FERREIRA DA SILVA, Denise. A Dívida Impagável. São Paulo: Casa do Povo, 2019.
KRENAK, Ailton. Ideias para Adiar o Fim do Mundo. São Paulo: Companhia das
Letras, 2019.
KRENAK, Ailton. O Amanhã não está a Venda. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.
KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação – Episódios de Racismo Cotidiano. Rio de
Janeiro: Cobogó, 2019a.
KILOMBA, Grada. Grada Kilomba: Desobediências Poéticas. São Paulo: Pinacoteca de
São Paulo, 2019b.
MBEMBE, Achille. Crítica da Razão Negra. Portugal: Antígona, 2014.
MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018.
MOMBAÇA, Jota. Veio o tempo em que por todos os lados as luzes desta época
foram acendidas. Disponível em: <https://jotamombaca.com/texts-textos/veio-o-
tempo/>. Acesso em 23 de abril de 2020.

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