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Berlini L Questoes Sobre Mandato RDB v69 p195 210 Set 2015 PDF
Berlini L Questoes Sobre Mandato RDB v69 p195 210 Set 2015 PDF
Luciana Berlini
Mestre e Doutora em Direito Privado pela PUC-Minas. Pós-Doutoranda em Direito pela
Universidade Federal do Paraná. Professora do curso de Pós-Graduação em Dano
Corporal pela Universidade de Coimbra (Portugal). Professora Adjunta na Universidade
Federal de Lavras. luciana@berlini.com.br
Thiago Rodovalho
Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC-SP, com Pós-Doutorado no
Max-Planck-Institut für ausländisches und internationales Privatrecht. Professor-Doutor
da PUC-Campinas. Professor-Assistente de Arbitragem e Mediação na Graduação da
PUC-SP. Coordenador e Professor de Arbitragem na Escola Superior de Advocacia da
OAB-SP. Membro da Lista de Árbitros da Câmara de Arbitragem e Mediação da
Federação das Indústrias do Estado do Paraná (CAM-FIEP)
1. Introdução
Isso porque, a legislação civil brasileira na codificação atual, a exemplo do que fez a
codificação revogada, trouxe, em princípio, a essencialidade da representação nessa
espécie negocial.
Para tanto, essa abordagem será problematizada a partir de sua conjugação com os
princípios da confiança e da transparência como corolários que são do princípio da boa-fé
objetiva.
Dessa forma, será possível demonstrar o papel determinante da contemplatio domini nos
efeitos e implicações da boa-fé objetiva, bem como na interpretação e aplicabilidade das
regras atinentes ao contrato de mandato.
2. A figura do mandato no Código Civil brasileiro
O Código Civil (LGL\2002\400) atual disciplinou a figura do mandato em seu art. 653,
bem como seu delineamento nos artigos subsequentes. O referido art. 653, que tratou
propriamente do que seja o mandato, interessa-nos mais de perto. Este artigo
reproduziu, em essência, a redação do art. 1.288 do então CC de 1916, e, com isso, a
equivocidade que maculava a codificação anterior, perdendo-se a oportunidade de
dar-se melhor tratamento legal à questão, que carece de precisão técnica no texto
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normativo.
Por sua vez, no segundo caso, a afirmação, direta e peremptória, no mesmo artigo, de
que a procuração é o instrumento do mandato, equivocadamente, dá a entender que, na
prática, mandato e procuração se confundiriam, i.e., que não haveria mandato sem
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procuração, acentuando e reforçando a equivocidade da locução “em seu nome”.
Grande parte das discussões que circundam as questões relativas ao mandato tratam da
vinculatividade ou não da representação ao seu objeto.
Como visto, a análise da codificação civil permite inferir que o legislador introduziu a
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Questões sobre mandato. Contemplatio domini versus
transparência e confiança
“Encarregar outrem de praticar um ou mais atos por nossa conta e no nosso nome, de
modo que todos os efeitos dos atos praticados se liguem diretamente à nossa pessoa
como se nós próprios os tivéssemos praticado, é o que tecnicamente se chama conferir
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ou dar mandato”.
A etimologia da palavra mandato corrobora de certa forma a noção, pois deriva do latim
mandatum, de mandare, com o sentido de dar poder, embora, como afirme Pontes de
Miranda, se origine da expressão manu dare, em razão da antiga tradição de dar as
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mãos para confirmar os pactos.
Nessa ótica, é preciso que haja uma representação do mandante pelo mandatário, a qual
tem lugar quando uma pessoa dá a outra o poder, que esta aceita, para representá-la,
com a finalidade de executar em seu nome e por sua conta um ato jurídico, ou uma
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série de atos de tal natureza.
Exatamente por isso, a confiança e a transparência são fundamentais, uma vez que o
mandatário age pelo mandante, isto é, celebra atos em nome dele, dentro dos limites
dos poderes recebidos.
Essa autonomia fica evidenciada quando se pensa na representação legal, porque não há
contrato de mandato para que os pais representem os filhos, os tutores ou curadores
representem seus pupilos e curatelados. Do mesmo modo, não há mandato quando a
representação decorre de um munus, como, por exemplo, do inventariante que
representa o espólio, em referência à representação judicial.
Como dito no item anterior, o nosso ordenamento jurídico não restringe a figura do
mandato à modalidade com representação, havendo circunstâncias em que é legítimo e
admissível valer-se do mandato sem representação.
O mandato pode ser conceituado como o “o contrato por meio do qual uma pessoa se
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obriga a cumprir ato ou negócio jurídico no interesse de outrem”.
Essas são as características gerais do mandato, i.e., comuns tanto ao mandato com
representação quanto ao mandato sem representação.
Essa modalidade tem interesse prático legítimo, justamente por isso, outros
ordenamentos jurídicos optaram por discipliná-la expressamente, como são os casos do
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Código Civil português, nos arts. 1.180.º a 1.184.º, e do Código Civil italiano, nos arts.
1.704 e 1.705, cuidando este último (art. 1.705 do CC italiano) do mandato sem
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representação.
Em primeiro lugar, é preciso ter-se, desde logo, que mandato e representação não se
confundem, ainda que, como já dito, mandatos com representação sejam a regra.
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Questões sobre mandato. Contemplatio domini versus
transparência e confiança
Haverá representação sem mandato, p. ex., nas hipóteses de representação legal, como
é o caso dos incapazes. Entre pais e filhos menores, v.g., não há “contrato” de mandato,
conquanto haja representação, é dizer, representação legal.
Assim sendo, podemos conceituar o mandato sem representação, de acordo com Pessoa
Jorge, como aquele em que “ uma pessoa (mandante) confia à outra (mandatário) a
realização, em nome desta, mas no interesse e por conta daquela, de um acto jurídico
relativo a interesses pertencente à primeira, assumindo a segunda a obrigação de
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praticar esse acto” (destacamos).
sejam majorados pela simples presença delas no negócio jurídico. Trata-se, nessas
situações, de instrumento juridicamente legítimo, a merecer, inclusive, tratamento legal
por parte do legislador.
Isto porque, a ausência de disciplina legal pode, por vezes, dar margem a dificuldades
práticas, como na possibilidade de penhora feita por credor do mandatário e não do
mandante, penhora essa que muitas vezes pode recair justamente sobre o objeto do
negócio jurídico entabulado entre mandatário e terceiro, realizado por conta e no
interesse do mandante. Essa questão, por exemplo, foi objeto de preocupação do
legislador italiano, que, no art. 1.707 do CC italiano, tratou da matéria. Isso exemplifica
a necessidade de maior preocupação de nosso legislador com a figura do mandato sem
representação, dando-lhe contornos legais, inclusive para tentar evitar o seu abuso ou
desvirtuamento.
4. A questão da confiança no mandato com ou sem representação
Tratar-se de mandato em que se faça presente ou no qual não se faça presente a figura
da contemplatio domini não propriamente conflita com a ideia de confiança.
Assim, o cumprimento do mandato deverá se dar em razão e nos limites dos poderes
conferidos pelo mandante, em razão da confiança que este depositou no mandatário.
O que significa dizer que se o mandatário agir de forma contrária ou exceder os poderes
que lhe foram outorgados e não houver a ratificação destes atos pelo mandante,
incorrerá no cometimento de ato ilícito, na modalidade abuso de direito, tal qual dispõe o
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art. 187 do CC/2002 (LGL\2002\400).
No caso do mandatário, este ao exceder esses limites impostos pelo mandante quebra a
confiança que anteriormente fora estabelecida, violando aí a boa-fé e, portanto,
cometendo ato ilícito, que terá como consequência sua responsabilização civil, nos
termos do art. 927 da codificação civil.
Interessante notar que esta última hipótese de abuso de direito do mandatário, quando
atua de forma contrária aos interesses do mandante, pode ser pensada como mandato
sem contemplatio domini, pois não agiu em nome do mandante ou, pelo menos, não
poderia tê-lo feito.
Contudo, se se pensar sob a ótica do terceiro, i.e., sob a ótica da boa-fé objetiva que
deve pautar as relações jurídicas, a situação tem nuances distintas quer se trate de
mandato com ou sem contemplatio domini.
E essa afirmação, que decorre da própria noção do art. 663 do CC, consubstancia-se na
noção oriunda da boa-fé objetiva, uma vez que se o mandatário agiu perante terceiros
em nome próprio, haveria um rompimento da confiança criada em relação aos próprios
terceiros, que imaginaram estar contratando com o mandatário e não com o mandante.
Do ponto de vista interno da relação entre mandante e mandatário, ainda nas hipóteses
de mandato sem contemplatio domini, a exemplo do que pode ocorrer em um mandato
para transferência do domínio em nome próprio, enquanto não se realiza o registro, há a
transferência apenas do poder, ou, segundo Pontes de Miranda, “o que se transfere não
é o direito de crédito, ou de propriedade, ou outro direito transferível: é o poder de
transferi-lo, com todo proveito e dano, desde o momento em que se deu a outorga de
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poder”.
“nesta hipótese não haveria a extinção dos poderes outorgados com a morte do
mandante, continuando, portanto, com plena eficácia, podendo os sucessores do
adquirente levar o título a registro, uma vez que satisfeitos os impostos devidos e as
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demais formalidades exigidas pelo regulamento dos registros”.
Para se ter uma ideia, o art. 1.723 do CC italiano adota regra nesse sentido ao dispor
que “il mandato conferito anche nell’interesse del mandatario o di terzi non si estingue
per revoca da parte del mandante, salvo che sia diversamente stabilito o ricorra una
giusta causa di revoca; non si estingue per la morte o per la sopravvenuta incapacità del
mandante”. Em semelhante passagem, o direito francês e o direito belga também
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adotam tal posicionamento.
Agindo assim, a outorga de poderes que pode ocorrer em nome próprio para
transmissão de domínio sequer admite a revogação pelo mandante. Revogabilidade que
é normalmente uma característica do mandato com contemplatio domini.
Menezes Cordeiro defende, ainda, a execução específica para a hipótese acima referida
de aquisição em nome próprio “sempre que houver incumprimento do dever de
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transmissão do mandatário nomine proprio”.
Por fim, quanto aos riscos de terceiros não cumprirem as obrigações, não há distinção se
o mandato é com ou sem representação, já que a responsabilização se dará nos moldes
da regra geral de responsabilidade, se não houver previsão em contrário.
Caso se trate de mandato sem representação, com relação ao terceiro, a relação jurídica
e de confiança que se estabeleceu foi diretamente entre ele e o mandatário, podendo se
perquirir, eventualmente, sobre o direito a saber quem é o mandante, que se trata, se
for o caso, de questão da transparência e não propriamente de confiança.
5. A questão da transparência no mandato com ou sem representação
Por fim, no tocante à questão da transparência, ela, por evidente, ganha contornos
distintos quer se trate de mandato com representação, quer se trate de mandato sem
representação.
Além disso, é a procuração que assegura aos terceiros que com o mandatário contratam
a transparência. Ou seja, pela procuração os terceiros conseguem identificar os poderes
e os limites de atuação do mandatário por meio da externalização da outorga de
poderes. Ademais, há uma vinculação e garantia de confiança entre mandante e
mandatário, em razão da delimitação da atuação representativa que se materializou na
procuração.
A prestação de contas, por exemplo, garante que haja uma transparência necessária à
manutenção da relação, de forma que o mandante possa tomar conhecimento das
despesas com as quais tem de arcar, evitando desconfianças e o comprometimento da
boa-fé entre os contratantes.
Já no mandato sem representação, essa transparência não é tão plena, o que, por si só,
não significa que o mandato sem representação seja menos legítimo que o mandato com
representação.
Como regra, a ocultação do mandante no mandato sem representação não fere nenhum
direito do terceiro ou dever de transparência.
Isso porque, embora grande parte da doutrina defenda que não pode ser afastada, fato
é que, independentemente do nome que se dê, mandato e contemplatio domini têm
existência autônoma e podem ou não coincidir em determinado contrato de mandato.
Dessa forma, o mandato atenderá sua função social conformadora da autonomia privada
dos contratantes e não comprometerá os direitos de terceiros, já que pautado pela
boa-fé objetiva.
Por tudo que foi visto, não há uma noção de contraposição entre contemplatio domini,
confiança e transparência, muito pelo contrário, parecem-nos complementares.
7. Referências bibliográficas
CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil português: parte geral, coisas. 2.
ed. Coimbra: Almedina, 2002. vol. 1, t. II.
MEDINA, José Miguel Garcia; ARAÚJO, Fabio Caldas de. Código Civil comentado. São
Paulo: Ed. RT, 2014.
NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil (LGL\2002\400)
Comentado. 8. ed. São Paulo: Ed. RT, 2011.
RIZZARDO, Arnaldo. Contratos: Lei nº 10.406, de 10.01.2002. 10. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2010.
RODOVALHO, Thiago. Abuso de direito e direitos subjetivos. São Paulo: Ed. RT, 2011.
ROSENVALD, Nelson; GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Comentários ao artigo 653. In:
PELUSO, Cezar (coord.). Código Civil comentado. Barueri: Manole, 2007.
RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. Campinas: Bookseller, 1999. vol. 3.
TRABUCCHI, Alberto. Istituzioni di diritto civile. 44. ed. Padova: Cedam. 2009.
2. Essa crítica também é feita por: ROSENVALD, Nelson; GODOY, Cláudio Luiz Bueno de.
Comentários ao artigo 653. In: PELUSO, Cezar (coord.). Código civil comentado. Barueri:
Manole, 2007. p. 514; e NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil
comentado. 8. ed. São Paulo: Ed. RT, 2011. p. 676.
3. A esse respeito, a crítica feita por: MEDINA, José Miguel Garcia; ARAÚJO, Fabio Caldas
de. Código Civil comentado. São Paulo: Ed. RT, 2014. p. 491.
4. RUGGIERO, Roberto de. Instituições de direito civil. Campinas: Bookseller, 1999. vol.
3, p. 96.
7. RIZZARDO, Arnaldo Contratos: Lei 10.406, de 10.01.2002. 10. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 2010. p. 59.
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Questões sobre mandato. Contemplatio domini versus
transparência e confiança
8. PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Op. cit., p. 429. A esse respeito, v.,
também: DE MATTIA, Fabio Maria. OP. CIT., p. 3-14.
9. CC: “Art. 663. Sempre que o mandatário estipular negócios expressamente em nome
do mandante, será este o único responsável; ficará, porém, o mandatário pessoalmente
obrigado, se agir no seu próprio nome, ainda que o negócio seja de conta do mandante”.
10. MEDINA, José Miguel Garcia; ARAÚJO, Fabio Caldas de. Op. cit., p. 491.
11. ZIMMERMANN, Reinhard. The law of obligations – Roman foundations of the civilian
tradition. Deventer: Kluwer, 1992. p. 413-420.
12. ROSENVALD, Nelson; GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Op. cit., p. 514; e MEDINA,
José Miguel Garcia; ARAÚJO, Fabio Caldas de. Op. cit., p. 491.
13. NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit., p. 676.
14. V. LOTUFO, Renan. Op. cit., p. 151 e ss. Cfr., também: MEDINA, José Miguel Garcia;
ARAÚJO, Fabio Caldas de. Op. cit., p. 492.
15. Nesse sentido: NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit., p. 676.
17. “SECÇÃO VI
Mandato sem representação
Art. 1.180.º
Art. 1.181.º
Art. 1.182.º
O mandante deve assumir, por qualquer das formas indicadas no n. 1 do artigo 595.º, as
obrigações contraídas pelo mandatário em execução do mandato; se não puder fazê-lo,
deve entregar ao mandatário os meios necessários para as cumprir ou reembolsá-lo do
que este houver despendido nesse cumprimento.
Art. 1.183.º
(Responsabilidade do mandatário)
cumprimento das obrigações assumidas pelas pessoas com quem haja contratado, a não
ser que no momento da celebração do contrato conhecesse ou devesse conhecer a
insolvência delas.
Art. 1.184.º
Art. 1.705.
Il mandatario che agisce in proprio nome acquista i diritti e assume gli obblighi derivanti
dagli atti compiuti con i terzi, anche se questi hanno avuto conoscenza del mandato.
I terzi non hanno alcun rapporto col mandante. Tuttavia il mandante, sostituendosi al
mandatario, può esercitare i diritti di credito derivanti dall’esecuzione del mandato, salvo
che ciò possa pregiudicare i diritti attribuiti al mandatario dalle disposizioni degli articoli
che seguono.”
19. NERY JR., Nelson; NERY, Rosa Maria de Andrade. Op. cit., p. 676.
20. PESSOA JORGE, Fernando. O mandato sem representação. Lisboa: Ática, 1961. p.
417.
22. Também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede
manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou
pelos bons costumes. A esse respeito, entre outros: RODOVALHO, Thiago. Abuso de
direito e direitos subjetivos. São Paulo: Ed. RT, 2011. passim, e, em especial, p.
175-198.
25. TRABUCCHI, Alberto. Istituzioni di diritto civile. 44. ed. Padova: Cedam, 2009. p.
111.
27. CORDEIRO, António Menezes. Tratado de direito civil português: parte geral, coisas.
2. ed. Coimbra: Almedina, 2002. vol. 1, t. II, p. 167.
especificação dos períodos a que se referem, não afasta o direito dos autores de
obterem do mandatário a prestação de contas, impugnando a correção dos valores
recebidos. Recurso especial conhecido e próvido.” (STJ, REsp 245.804/SP, 4.ª T., j.
28.03.2000, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, DJ 22.05.2000, p. 117.)
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