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Do Boi Voador ao anti-herói idolatrado: a São Clemente mostra “que no Brasil, o que é

sério é carnaval”

Fogos explodem no céu do Rio de Janeiro. Já passam das 21h15, quando a São
Clemente iniciou a sua apresentação. O carnavalesco Milton Cunha revelava-se
preocupado com a forte chuva que caiu no centro da cidade, horas antes da abertura dos
Desfiles do Grupo Especial, fazendo com o que, a campeã do Grupo de Acesso A no
carnaval anterior, tivesse de guardar mais alguns minutos para voltar a brilhar na elite
do carnaval carioca.
A missão de ser a primeira agremiação a pisar na Passarela do Samba não
angustiava Milton, já que ele diz em entrevista à Tv Globo, adorar abrir o carnaval,
fazer rir logo no começo e provocar êxtase no espectador é para ele, uma das tônicas
dos desfiles. O que de fato lhe tirou o sorriso no rosto foi a sua fantasia de veado
imperial ter ser destruído com a chuva e agora ele estaria mais parecido com uma
galinha. Em meio a essa e outras brincadeiras presentes no enredo da escola, a proposta
do carnavalesco era fazer o povo se divertir e pensar sobre os políticos corruptos do
nosso país.
Nessa “galhofa nacional”, a narrativa apresentava pela escola era contar a
trapaça em torno do episódio do primeiro pedágio cobrado no Brasil, quando o conde
Maurício de Nassau prometeu que, quem atravessasse a ponte e pagasse o tributo,
conseguiria avistar um boi voar sobre aquela localidade. Desde as falcatruas iniciadas
no período em que Maurício de Nassau governou a colônia holandesa em Pernambuco,
a preta e amarela perpassou sobre alguns dos “contos dos vigários” mais emblemáticos
de nossa história desde os tempos coloniais, narrativa essa presente nos desfiles mais
recentes da agremiação de Botafogo, como no carnaval de 2020, assinado pelo então
carnavalesco Jorge Silveira.
Animados pelo bom samba composto por Cesar do Ouro, Jorge Melodia, Marcos
Zero e Noronha, a agremiação do bairro de Botafogo, contou por meio de diversas
metáforas e anacronias, de como Nassau, a convite da Companhia Holandesa das Índias
Ocidentais, invadiu e comandou o nordeste brasileiro entre os anos de 1637 a 1644. Ao
chegar ao local, se deparou com uma Recife a lá Copacabana, recheado com todo
rebuceteio dos tempos atuais, tais como prostitutas, traficantes, malandros, roubos e a
uma diversidade cultural.
O intitulado governador-geral da colônia holandesa Nassau interessado no
lucrativo comércio do açúcar no nordeste brasileiro se endividou com os gastos das
construções realizadas na cidade. Como forma de superar a crise financeira que se
instaurou em sua administração, Nassau resolveu então cobrar um pedágio a todo aquele
que atravesse a ponte. A promessa do governador até que se cumpriu, mas, por sua vez,
contou com aquele “jeitinho brasileiro”. O boi que voou sobre a ponte, para o delírio da
população da cidade Maurícia, não passava de uma armação feita com o couro do
animal em forma de um balão inflável, carregado por roldanas e contando com a ajuda
de marinheiros.
Uma das polêmicas que assolaram a escola de Botafogo em seu período de pré-
carnaval foi a censura sofrida em seu carro alegórico número 5 denominado “O boi
voou e começou a roubalheira”, no qual, exibia uma escultura do Tio Sam sentado em
cima de uma privada com o formato do Congresso Nacional. O então presidente da
Câmara dos Deputados, João Paulo Cunha, veio de Brasília direto para o barracão da
escola para convencer Milton a não levar a escultura do símbolo americano defecando
sobre o Congresso. Apesar da pressão, o boneco passou na Avenida, mas amordaçado.
O Tio Sam veio acompanhado de uma mão de punho cerrado com mangas de um paletó,
cuja crítica refere-se à censura imposta pelo deputado ao trabalho artístico da
agremiação.

Márcia Foletto - Jornal Extra

A cobra fumou. Deu o que falar. A agitação dos bastidores da escola


acompanhou a apresentação na Sapucaí. Olhares atentos ao carro para ver como Milton
tinha lidado com a censura. A simbologia da alegoria não deixou dúvidas que o teor das
críticas políticas, da irreverência, da alegria e do bom-humor estava de volta nas
narrativas apresentadas pela preta e amarela. O perfil que a consagrou em seus nos
maiores desfiles de sua história, nas décadas de 1980 e 1990, retornava-se a caracterizar
o modo de fazer carnaval da escola e quem sabe, sonhar com a permanência no Grupo
Especial.
A abertura do desfile ficou a cargo da Comissão de Frente chamada “De além-
mar, ao mar de lama”, uma representação das “cobras fumando”, as naus que trouxeram
os nobres da corte holandesa ao litoral brasileiro, em busca de um “paraíso fiscal”. O
contato entre os nativos e os membros da Companhia das Índias, na concepção
caricaturada do carnavalesco, foi surpresa com pessoas seminuas e que já dançavam na
“boquinha da garrafa”, em um estilo de humor típico do programa humorístico da época
“Casseta e Planeta”, exibido pela Tv Globo.
Para encenar as saliências e galhofas dos povos, ninguém melhor do que duas
figuras bastante conhecidas do grande público, na frente do abre-alas, a ator Miguel
Falabella e atriz Elke Maravilha. A alegoria era uma homenagem a Macunaíma,
personagem criado por Mário de Andrade, satirizava um anti-herói idolatrado, embora
se revele um presidente sem caráter, “um exemplo de brasileiro”, segundo o
carnavalesco. Um dos ápices do desfiles, o último carro “Eu tô sofrendo, mas eu gozo
no final”, retratou um grande circo comandado pelo Chacrinha, o velho guerreiro. O
palhaço é quem comanda este rodeio chamado Brasil. O gado se diverte a cada “pum de
talco” espirrado pelo seu representante. A escola incorporou o enredo e teve de, depois
de momentos de tanta alegria, regressar ao patamar anterior. Voltar ao segundo grupo.
Em um país, onde o anti-herói idolatrado pelas massas é o próprio presidente da
república e em meio a tantos sofrimentos, será que gozaremos no final? “A São
Clemente faz a gente acreditar...”

Autor: Phellipe Patrizi - mestrando em Educação da FFP/UERJ e membro do


OBCAR/UFRJ.
Orientador: João Gustavo Melo, doutorando em Artes pela UERJ.

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