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HERALDO DE MORAES
(PE. MICAEL DE MORAES, SJS)
SURSUM CORDA
A MONIÇÃO LITÚRGICA COMO INSTRUMENTO DE
MOTIVAÇÃO DA DISPOSIÇÃO PESSOAL DO FIEL NA
CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA EM VISTA DA PARTICIPAÇÃO PLENA
Comissão julgadora
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
_________________________________________
3
MR, p. 404.
Quis ut Deus?
Agradecimentos
- Ao meu pai Geraldo (in memoriam) e a minha mãe Maria que me ensinou a rezar e a
descobrir Deus em minha vida. Aos meus avós maternos, Paulino e Luiza, que através de sua
- A minha “Nazaré”, Cordeirópolis e a Paróquia Santo Antonio, na pessoa de seu pároco Pe.
nosso pai e fundador Pe. Gilberto Maria Defina, sjs, que nos cativou pela sua vida e pelo seu
amor à Sagrada Liturgia; família Religiosa que têm por missão “levar o povo a estar bem
- À Diocese de Santo Amaro, na pessoa do seu bispo Dom Fernando Antonio Figueiredo,
OFM, e ao seu presbitério, e às comunidade que sirvo, Paróquias Santa Bárbara e São
- Aos meus professores, ao meu orientador Pe. Valeriano, ao Centro de Liturgia na pessoa do
- À Adveniat e a todos que de alguma forma contribuíram para que este trabalho fosse
realizado. Enfim, que o meu agradecimento seja esta dissertação, para que possibilite ao povo
de Deus celebrar com o coração ardente a eucaristia e possa se encontrar com o Senhor no
partir do Pão. Para que um dia se ouça “toda criatura no céu, na terra, sob a terra, no mar, e
todos os seres que neles vivem, proclamarem: ‘Àquele que está sentado no trono e ao
Cordeiro pertencem o louvor, a honra, a glória e o domínio pelos séculos dos séculos!” (Ap.
4, 13)
5
Siglas e abreviaturas
MR – Missal Romano
Índice
Introdução......................................................................................................................................10
Capítulo I - A motivação das disposições pessoais na celebração eucarística: uma análise sócio-
antropológica..................................................................................................................................14
celebração eucarística................................................................................................................20
7. As disposições pessoais.............................................................................................................35
4. O alegorismo medieval...............................................................................................................80
Capítulo III - A monição litúrgica como instrumento de motivação das disposições pessoais do
2. A monição.................................................................................................................................102
3. Análise de monições.................................................................................................................105
3.2.1 Análise do processo motivacional das monições das três monições da Semana
Santa......................................................................................................................112
a) Saudação..............................................................................................................116
b) Exhortatio temporal.............................................................................................117
c) Exhortatio anamnética.........................................................................................118
d) Exhortatio celebrativa.........................................................................................118
e) Exhortatio participativa.......................................................................................119
a) Ato Penitencial...................................................................................................................121
b) Orações presidenciais.........................................................................................................122
d) Oração Eucarística..............................................................................................................124
e) Pai Nosso............................................................................................................................124
f) Bênção.................................................................................................................................125
5. A motivação das disposições pessoais através dos comentários nos folhetos litúrgicos..........127
6.1 Ritualismo.........................................................................................................................132
6.2 Sentimentalismo...............................................................................................................133
9
6.3 Intelectualismo..................................................................................................................133
6.4 Intimismo..........................................................................................................................134
Conclusão geral............................................................................................................................138
Apêndice.......................................................................................................................................140
Bibliografia.....................................................................................................................................
10
Introdução
convite tanto ao homem como à Igreja para realizar a sua vocação mais alta, na medida em que
sentimos a necessidade de entrar em diálogo com Deus, como bem expressou Santo Agostinho:
Grande és tu, Senhor, e sumamente louvável:...Quer louvar-te o homem, esta parcela da tua
criação...Tu o incitas para que sinta prazer em louvar-te; fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso
coração, enquanto não repousa em ti.4
Sacrosanctum Concilium, diz que a liturgia é um momento importante para os fiéis exprimirem
em suas vidas e manifestarem o mistério de Cristo e a verdadeira natureza da Igreja “que tem a
característica de ser ao mesmo tempo divina e humana, visível, mas dotada de realidades
invisíveis... de tal modo que nela o humano é orientado e subordinado ao divino, o visível ao
invisível... a realidade presente à futura cidade para a qual estamos encaminhados”. (SC 2)
Hoje, porém, deparamos com a apatia dos fiéis na celebração do Mistério Pascal, quando
há pouca participação na Eucaristia e outros sacramentos em geral. Tenta-se motivar os fiéis, mas
1
Sursum (de sus e versum). Para cima, para o alto. Sus, de susque deque, de cima para baixo. Versum. Em direção a,
para. SARAIVA, F. R. dos Santos, Dicionário latino-português, p. 1168, 1170 e 1267.
2
Esta monição já se encontra em Hipólito de Roma. In: LA TRADITION apostolique de saint hippolyte: essai de
reconstitution par Dom Bernard Botte, p. 12.
3
Missale Romanum, p. 516.
4
Confissões. Livro I. 1. 1-3, p. 20.
11
Diante de tais fatos levantamos os seguintes questionamentos: Por que os fiéis ficam
passivos na celebração eucarística? Por que muitas vezes a celebração, principalmente em seus
comentários, se torna “aula” e não celebração, ocasionando uma certa passividade ou mesmo
participação plena, consciente e ativa dos fiéis para que estes não recebessem a graça de Deus em
vão (cf. SC 11.14). Mas, muitas vezes a abordagem da participação ficou mais na dimensão
exterior (comunicação, disposição exterior do templo, o vernáculo, cantos etc.), o que não
significa uma participação plena. Por isso, o nosso trabalho, tendo como questão fundamental a
situação acima descrita, tem como objeto formal a motivação para possibilitar as disposições
corretas da participação litúrgica, não somente consciente e ativa, mas também “plena”, isto é,
com o razão e coração, mente e corpo, imersos no Mistério celebrado. Para tal empreitada,
decidimos trabalhar algumas monições da celebração eucarística, sendo obrigados a fazer um tal
recorte, a fim de delimitar nosso objeto material. Assim, poderemos defender nossa tese de que
somente com a motivação das disposições pessoais corretamente orientada é que podemos
instrumento.
Certamente não temos respostas para toda essa problemática, porém, a partir do estudo da
monição litúrgica como instrumento de motivação da disposição pessoal do fiel, cremos fornecer
à Igreja e a sua liturgia uma maneira de podermos utilizar as monições e formar o próprio estilo
pessoais e da motivação destas. Procuramos compreender tal raiz através da análise do jogo
simbólico e seus agentes, onde aparecem a “concertação” das práticas desses agentes no jogo
simbólico, a importância das disposições pessoais dos agentes e a função da motivação que leva à
participação plena.
A copa dessa árvore, com seus frutos, será analisada no terceiro capítulo. A partir da
compararemos tal processo com seu contraposto existente hoje nos comentários inseridos nos
folhetos litúrgicos. E por fim, procuraremos deduzir algumas conseqüências de nossa análise para
a participação na celebração eucarística, o que de certa forma vale para a liturgia em geral.
Temos consciência dos limites desse trabalho. Sabemos que as disposições pessoais e sua
motivação podem ser analisadas sob outras óticas científicas, mas é impossível utilizar tantas
variáveis ao mesmo tempo. Do mesmo modo cremos ser necessário um maior aprofundamento
13
relação à graça e sua atuação na natureza humana. Essa graça atua sob a forma de disposição
“Sursum corda” (Corações ao alto) é uma monição que expressa de forma muito
promovida pela liturgia, ao relacionar os aspectos divino (ao alto) e humano (corações),
subordinando este àquele. É impressionante como em apenas três palavras, sendo uma delas uma
“preposição” que estabelece a relação entre as duas realidades principais (o homem e Deus), se
condensa toda a realidade humana e visível (corações) e toda a realidade divina e invisível (alto);
tamanha é a densidade que carrega em si. É nosso desejo pois, que esse estudo possa auxiliar no
processo da motivação dos fiéis na celebração eucarística, de modo que com a razão e o coração,
com o corpo e a mente, ao serem convidados Sursum corda (corações ao alto), os fiéis possam
responder plenamente: Habemus ad Dominum.6 (O nosso coração está em Deus [MR, p. 405] ou
5
Cf. Um novo sacerdócio, p. 210.
6
LA TRADITION apostolique de saint hippolyte: essai de reconstitutio par Dom Bernard Botte, p. 12. Também.
Missale Romanum, p. 516.
14
Para desenvolver bem o estudo das monições como instrumento a serviço da motivação
das disposições pessoais a serviço da participação litúrgica, abordaremos, neste primeiro capítulo,
a questão do ponto de vista sócio-antropológico, para, nos próximos dois capítulos, fazê-lo do
ponto de vista teológico. Para tal intento, situaremos a celebração eucarística como lugar do
encontro, tendo como paradigma a ceia dos discípulos de Emaús (Lc 24, 13 – 35). Traçaremos
uma concepção admitida pela antropologia litúrgica de ser humano que estabelece a relação
simbólica com o mistério. Em seguida analisaremos a relação simbólica com seus personagens e
o jogo simbólico. Como no processo do jogo simbólico cada personagem necessita ter as
disposições pessoais bem formadas, refletiremos sobre essa formação. A seguir, no estudo da
processo da motivação das disposições pessoais no jogo simbólico. Por fim, toda a teoria vista e
José Aldazábal afirma que “podemos fazer um primeiro resumo sobre a compreensão e a
modo que apareça não só a Eucaristia como lugar de encontro e reconhecimento do Ressuscitado,
mas também sublinha a importância da explicação que ele dá aos dois discípulos do sentido da
Escritura”.8 Por isso é que preferimos trabalhar uma teologia da celebração eucarística, a partir de
7
ALDAZÁBAL, José. Eucaristia, p. 31.
8
15
Lc 24, justamente pela importância que o evangelista dá à explicação de Jesus sobre as Escrituras
reconheceram na cena familiar da fração do pão (Cf. Lc 24, 13 – 35). Aqueles discípulos
Senhor, comentam sobre a morte de Jesus. O Senhor toma a palavra e censura a incompreensão
deles. Então, anuncia e explica as Escrituras que falavam sobre o Messias. Os discípulos
Lucas procura mostrar que o Senhor continua a agir na sua Igreja até o final dos tempos e
é possível o encontro com ele na celebração eucarística, de tal modo que a assembléia motivada
possa dizer: “permanece conosco” e depois reconhecer: “não ardia o nosso coração quando ele
nos falava pelo caminho, quando nos explicava as Escrituras?” (Lc 24, 29.32)
profetas, e interpreta nas Escrituras o que a ele dizia respeito (cf. Lc 24, 27). Depois parte o pão
(cf. Lc 24, 30). Estas duas dimensões são bem claras: Palavra e fração do Pão; ambas são
permeadas da participação da assembléia, na medida em que quando Jesus falava lhes ardia o
coração e quando parte o pão, seus olhos se abrem, reconhecendo (com o coração) que o
peregrino que caminhava com eles era o próprio Jesus. O fato dos discípulos “se levantarem” e
“irem aos Onze e seus companheiros” autentica a participação que tiverem na Ceia, feita pelo
Testamento9, são enviados não somente para pregar o evangelho, mas também para levar a efeito
o que anunciavam através do “Sacrifício e dos Sacramentos” (SC 6) até a volta de Cristo (Cf. 1
Lucas, em Atos dos Apóstolos, afirma que na Igreja nascente os primeiros cristãos eram
assíduos aos ensinamentos dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações (cf.
ressurreição do Senhor é confiado à Igreja (cf. SC 47) e se torna o centro da liturgia e da vida da
alimento aos fiéis (cf. SC 47) e os fiéis podem captar a “presença dinâmica e irradiante do
mistério de Cristo”. 11
Pelo batismo os fiéis são inseridos no Corpo Místico de Cristo e participam do seu único
testemunho de uma vida santa na abnegação e na caridade ativa” (LG 10). É essencial à Igreja
que os fiéis exerçam atos sacerdotais através da participação litúrgica, unidos ao sacerdócio de
Cristo.12 Por isso, é um dever e um direito dos fiéis participarem da liturgia, de onde,
principalmente da Eucaristia, “como de uma fonte, se deriva a graça para nós e com a maior
eficácia é obtida aquela santificação dos homens em Cristo e a glorificação de Deus” (SC 10).
10
Cf. SAGRADA CONGREGAÇÃO DOS RITOS. Instrução sobre o culto do Mistério Eucarístico, n. 1.
11
VISENTIN, Pelágio. Eucaristia. In: Dicionário de liturgia, p. 395.
12
Cf. TRIACCA, Achille M. Participação. Dicionário de liturgia, p. 896.
17
Para que essa santificação aconteça é necessário que os fiéis se acerquem do sacramento
com “disposições de reta intenção” (SC 11), não assistindo como “estranhos ou espectadores
mudos” (SC 48), e assim participem consciente, frutuosa e ativamente da celebração eucarística e
das outras celebrações litúrgicas. Esta participação na eucaristia leva os fiéis a se oferecerem a si
próprios no Cristo Mediador para se unirem com Deus e entre si (cf. SC 48). Justamente, na
Espírito, e até mesmo as contrariedades da vida, se levadas com paciência” (LG 34), são
oferecidos ao Pai juntamente com a oblação do corpo do Senhor. Assim, a eucaristia leva os fiéis
a assimilarem a comunhão de vida que Cristo lhes oferece, isto é, a participação, a koinonia em
Cristo, “em sua vida, em sua aliança, em seu sacrifício pascal”. 13 Exercem assim o culto espiritual
13
ALDAZÁBAL, José. A eucaristia. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 2, p. 308.
18
fortalece e exprime a fé. Em vista disso, para que a participação seja plena, é necessária uma
compreensão profunda dos sinais sacramentais e a celebração mesma da eucaristia deve preparar
“os fiéis do melhor modo possível para receberem frutuosamente a graça, cultuarem devidamente
a Deus e praticarem a caridade” (SC 59). Pois a “operatividade dos sacramentos não é física, nem
metafísica, mas simbólica”.14 “A liturgia é a Igreja em sua mais densa relação simbólica com
Deus e com a sua totalidade”. 15 A celebração da eucaristia como relação simbólica, atinge
pessoalmente cada fiel, fazendo com que os corações ardam (cf. Lc 24, 32), de modo que o
celebrante penetre pela participação plena no mistério eucarístico. O fiel participante pode assim
atender ao Senhor que diz: “eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir minha voz e abrir a
porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo”. (Ap 3, 20) Nessa relação simbólica,
Deus se manifesta em cada gesto ou palavra, sinais que são salvíficos de Cristo. Jesus, na
multiplicação dos pães e dos peixes (Lc 9, 10 – 17) ou nas bodas de Caná (Jo 2, 1 – 12), anuncia
através de ações simbólicas o amor de Deus pelos homens. A salvação de Cristo continua
14
BOROBIO, Dionisio. Da celebração à teologia: que é um sacramento? In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A
celebração na Igreja. Vol. 1, p. 388.
15
Ibidem, Prólogo. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 07.
16
Cf. TRIACCA, Achille M. Participação. In: Dicionário de liturgia, p. 896.
19
cristológico como antropológico, “não são coisas, mas encontros de homens sobre a terra com o
Como no caso dos discípulos de Emaús, os fiéis precisam encontrar-se com o Senhor no
partir do pão para obterem a salvação (Cf. Lc. 24, 35). Por isso, é intuito deste trabalho
demonstrar a necessidade de participantes com corações ardentes na ceia eucarística, que possam
reconhecê-lo e querer permanecer com ele. Como vemos em primeiro plano a celebração
eucarística sob a perspectiva da ceia, tendo a eucaristia como sinal, sacramento e ação simbólica,
ou validade.22 Por isso, nos próximos itens analisaremos sob o prisma sócio-antropológico a
17
SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 11.
18
Ibidem, p. 49-50.
19
BOROBIO, Dionisio. Da celebração à teologia: que é um sacramento? In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A
celebração na Igreja. Vol. 1, p. 420.
20
Ibidem, p. 420.
21
Cf. ALDAZÁBAL, José. A eucaristia. In: BOROBIO, Dionisio. (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 2, p. 288.
22
Cf. ALDAZÁBAL, José. A eucaristia. In: BOROBIO, Dionisio. (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 2, p. 274-
275.
20
Conforme o Concílio Vaticano II, a liturgia é “ação da Igreja, que celebra o Mistério
23
Pascal de Jesus Cristo para que este se cumpra nos fiéis cristãos” e realiza, assim, a santificação
do homem (cf. SC 7). Para que aconteça a santificação dos fiéis através dos sacramentos, é
necessária a sua participação na ação litúrgica. Desse modo quando os fiéis participam (tomam
parte) “na celebração, não só se colocam em posição de presença diante do evento histórico da
salvação, como ainda o exercem em Cristo, por Cristo, com Cristo, presente e sempre vivo no
Para analisar a participação na liturgia, a ciência litúrgica leva em conta dois aspectos: o
teológico e também o antropológico, porque se trata de seres humanos. Cremos que a análise da
participação na liturgia deve considerar tanto os sacramentos em si (os sinais sensíveis) como a
situação concreta do fiel, onde não pode ficar de fora a sua disposição interior.25
23
FERNÁNDEZ, Pedro. Que é celebrar: peculiaridade da teologia litúrgica. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A
celebração na Igreja. Vol. 1, p. 237.
24
TRIACCA, Achille M. Participação. In: Dicionário de liturgia, p. 890.
25
Cf. BUYST, Ione. Como estudar liturgia, p. 169.
21
vezes, se “choca com obstáculos que não se reduzem à incompetência ou à eventual má vontade
dos indivíduos”.26 Diante disso, pretendemos demonstrar que a disposição interior motivada é
fator imprescindível para a participação ativa, entendida como externa e interna (cf. SC 11) e que
realizar tal intento é necessário que a análise considere tanto os aspectos sócio-antropológicos das
disposições pessoais, como os aspectos teológico-litúrgicos das monições (que serão tratados nos
eucarística, embora não nos seja possível neste trabalho mensurar e analisar tantas variáveis.
Todo este esforço visa, portanto, estudar a participação do fiel motivada pela monição no
fiéis bem dispostos sintonizam a mente com as palavras e cooperam com a graça do alto (Cf. SC
11) e como neste processo a monição litúrgica pode ser um instrumento importante.
disposições pessoais. O fruto dessa análise será a base para a análise teológico-litúrgica da
celebração eucarística
26
CLERK, Paul de. La participacion en la liturgia; la aportacion de las ciencias humanas, Phase, n. 179, p. 362.
22
A Igreja quer, para compreender o ser humano na sua relação com o divino, num diálogo
Revelação de Deus.
espirituais do homem, mas também as sociais. Para “conseguir tal intento eficaz e frutuosamente,
serão muito úteis as pesquisas sócio-religiosas mediante os institutos de sociologia pastoral, que
métodos, desenvolverá suas teorias até onde for possível. O teólogo procurará compreender com
ser entendidos em termos de categorias de função e onde é necessário ir além dessas categorias.28
procuraremos determinar o que são as disposições pessoais e o que seria a motivação destas, de
modo a auxiliar no estudo das monições como motivadoras das disposições pessoais na
celebração litúrgica.
Para demonstrar que a motivação das disposições pessoais é essencial para a participação
litúrgica, recorremos a Max Weber (1864-1920), com seu método tipológico de construir um
27
Decreto Christus Dominus. In: Compêndio Vaticano II, n. 17, p. 415.
28
Cf. O Cristianismo na era do planejamento. In: Diagnóstico de nosso tempo, p. 145.
29
Função de comunicação – a complexidade de comunicação dentro da própria liturgia. Função de pertença religiosa
– a atitude psicossocial de um membro na vinculação ao seu grupo religioso. Função de socialização – processo
mediante o qual a um indivíduo são transmitidos valores, normas, atitudes e comportamentos do grupo social que o
acolhe ou o qual se acha inserido. Cf. MAGGIANI, Silvano. Sociologia. In: Dicionário de liturgia, p. 1158.
23
modelo ideal30 ou abstrato, retirado da realidade concreta, que servirá de parâmetro. 31 O tipo
ideal é construído através da análise das ações sociais com sentido, isto é, subjetivamente
compreensíveis.32 Para Max Weber, a ação social é aquela “cuja intenção fomentada pelos
qual ocorre o curso da ação real”.34 Podemos entender a “compreensão” como observacional
quando o comportamento é visto em suas reações emocionais; e como motivacional quando o ato
“é visto como parte de uma situação inteligível”. 35 É esta última forma de compreensão que nos
interessa para construir o tipo ideal do fiel motivado de que estamos falando. Então, por princípio
será construído um tipo ideal do participante motivado, simbolicamente ativo, tanto interna como
externamente, o qual será o parâmetro de comparação com o que acontece nas celebrações
eucarísticas.
incorrermos em definições universais muito genéricas ou análises subjetivistas, que possam levar
a um impasse, como em nosso caso, à oposição entre a ação da graça sacramental ex opere
A seguir procedemos à construção passo a passo do tipo ideal do fiel motivado, que na
necessário estabelecer a visão de ser humano assumida pela liturgia, partindo dos dados da
operantis ou opus operantis, indica pois que, para os adultos, há a necessidade de uma disposição, de uma
cooperação de fé e de amor à constituição do sacramento. Lembrando que, a própria disposição é também dom da
graça. (Cf. RAHNER, Karl. La Iglesia y los sacramentos, p. 27.) O fiel é chamado a não se opor interiormente à
graça, enfim a aceitar a presença da graça de Cristo por intermédio da Igreja pela fé.
37
Cf. Uma Interpretação da Teoria da Religião de Max Weber. In: MICELI, Sergio. (Org.). A economia das trocas
simbólicas, p. 81-82.
25
(coração).38
O homem é integralmente visto a partir destes quatro elementos, e não como quem os
possui. Por isso, a mentalidade hebraica nunca divide o ser humano em corpo e a alma, como o
faz o mundo grego, mas o pensa como um todo na sua inteireza. 39 A morte, por exemplo, não é
Já a cultura grega, o ser humano é visto a partir do que é visível: o “corpo/soma”, ao passo
Essa dualidade retrocede a Platão, para quem a alma está amarrada ao corpo até ser libertada pela
morte. Aristóteles mantém a dualidade, matéria e forma, corpo e alma, como substanciais,
platônicas e neoplatônicas para analisar o ser humano. Essa concepção perdurou por muitos
é visto como instrumento ou objeto, ou peça material, mas como manifestação do eu. Por isso,
não se pode mais aceitar uma concepção dualista, mas falar em caráter corpóreo ou
38
Cf. BAUMERT, Norbert. Mulher e homem em Paulo, p. 233-236.
39
Cf. Ibidem, p. 240.
40
Cf. Ibidem, p. 231.
41
Cf. SÁNCHEZ LOPES, Ana Maria. Corpo. In: VILLA, Mariano M. (Org.). Dicionário do pensamento
contemporâneo, p. 157-160.
26
Estudos recentes também da neurobiologia vêm trazer essa concepção unitária. Antonio
Damásio, neurobiólogo americano, que dirige um dos principais centros de estudos neurológicos
dos Estados Unidos, em seus estudos vê o ser humano na sua integridade e demonstra que a
ausência de emoção pode destruir a razão. Aponta que o erro do racionalismo cartesiano é a
“separação abissal entre o corpo e a mente, entre a substância corporal, infinitamente divisível,
(...) de um lado, e a substância mental, indivisível (...), de outro. Especificamente a separação das
A Igreja, embora utilize a terminologia corpo e alma, entretanto afirma que “a unidade da
alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a alma como a ‘forma’ do corpo, (...) o
espírito e a matéria no homem não são duas naturezas unidas, mas a união deles forma uma única
natureza”.43
A concepção bíblica do ser humano está baseada na concepção unitária semita, reafirmada
hoje pela filosofia existencialista, pela visão unitária de razão e emoção fornecida pela neurologia
e também pela concepção de unidade da natureza humana pelo Magistério. É essa concepção que
assumimos neste trabalho, tendo Jesus Cristo como expressão máxima desta unidade.
Deus falou de muitos modos aos pais pelos profetas (cf. Hb 1,1) e na plenitude dos
tempos falou por seu Filho, o Verbo que se fez carne. (cf. Jo 1, 14) Jesus assume totalmente a
natureza humana, ele é “espírito humano que habita de maneira visível numa corporeidade que
lhe é própria”.44 Jesus como instrumento da salvação humana se torna o mediador entre os
homens e Deus. A obra da salvação se realiza principalmente no Mistério Pascal de sua paixão,
42
DAMÁSIO, Antonio R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano, p. 280.
43
CATECISMO da Igreja Católica, n. 365.
44
SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 21.
27
morte e gloriosa ressurreição. Esta obra da redenção que continua na Igreja e se coroa com a
O ser humano Jesus revela a vida divina, pois, “enquanto homem, Cristo é o culto
supremo prestado ao Pai, 45 tendo sua culminância no sacrifício da Cruz. “Esse dom de si a modo
integrado em natureza orgânica e espiritual – corpo e alma, coração e sentimento - por uma
osmose contínua, entre suas faculdades intelectivas e volitivas, incluindo o amor considerado
como afeto”.47 A Revelação vê o ser humano em sua integridade, visão que é assumida pela
liturgia, isto é, tudo quanto o ser humano é do ponto de vista ôntico-estático (pessoa encarnada e
imagem de Deus e seu filho Jesus Cristo) e do ponto de vista funcional-dinâmico (ser humano
capaz de relacionar-se com Deus e com os demais homens e imerso no mundo e no universo).48
O liturgo precisa estar unificado e integrado, pois ao celebrar, o faz com o próprio corpo
habitado pelo Espírito Santo, vivenciando corporal, espiritual e afetivamente, o gesto litúrgico em
seu sentido teológico. Celebrando deste modo, o Espírito que o habita informa por dentro os
homem em sua relação com a Liturgia, ator e sujeito das ações litúrgicas”. 50 Como homo
liturgicus se relaciona com Deus, com os homens e com o cosmos. Está inserido na História, na
45
Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 35.
46
Ibidem, p. 36.
47
MARTÍN, Julián L. No espírito e na verdade: introdução antropológica à liturgia, p. 46.
48
Cf. Ibidem, p. 44-48.
49
Cf. BUYST, Ione. Liturgia de coração, Revista de liturgia, n. 119, p. 30.
50
Cf. No espírito e na verdade: introdução antropológica à liturgia, p. 41.
28
qual constrói sua felicidade. Essa mesma história comporta toda uma realidade cultural que afeta
Portanto, o ser humano participante na liturgia celebra na integridade de seu ser, corpo e
em virtude das várias abordagens sobre símbolos e suas aplicações na própria liturgia. Um
exemplo dessa dificuldade nos é dado pelo antropólogo Clifford Geertz. Ele afirma que as
condições para se estudar os símbolos na antropologia surgirão quando se tiver uma análise
teórica da ação simbólica comparável à qual se tem hoje da ação social e da ação psicológica. 52
Todavia, neste trabalho procuramos construir uma teoria da relação simbólica para se entender o
Igreja e do ser humano. Deus, a Igreja e o ser humano são realidades simbólico-sacramentais que
51
A realidade é “um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens
comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida”. GEERTZ, Clifford. A
interpretação das culturas, p. 103.
52
Cf. A interpretação das culturas, p. 142.
53
Cf. CANALS, Juán M. Liturgia e metodologia. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p.
27.
54
Cf. BOROBIO, Dionisio. Da celebração à teologia: que é um sacramento? In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A
celebração na Igreja. Vol. 1, p. 337.
29
através dos quais a liturgia se expressa, fazem parte da própria realidade do homem e remetem a
essa mesma realidade.55 A ciência litúrgica para analisar tais símbolos considera a base mistérica
chegamos ao homo liturgicus sobre o qual se constrói a reflexão teológica sobre a liturgia.57
algo em relação, juntar, unir etc. A filosofia considera símbolo como presença do Ser no ente
particular, a psicologia, por sua vez, considera o símbolo como mediação e finalmente a
poderia se considerar símbolo como “um significante que remete a outro significante quando a
realidade significada está de certo modo presente, ainda que não de todo comunicada”. 60 O
afirma que “o símbolo surge quando o interno e espiritual encontra sua expressão externa e
sensível”.62
55
Cf. idem.
56
Cf. MALDONADO, Luis. A celebração litúrgica: fenomenologia e teologia da celebração. In: BOROBIO,
Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 241.
57
Cf. Ibidem, p. 244.
58
Cf. BOROBIO, Dionisio. Da celebração à teologia: que é um sacramento? In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A
celebração na Igreja. Vol. 1, p. 325.
59
Cf. SARTORE, Domenico. Sinal/símbolo. In: Dicionário de liturgia, p. 1142.
60
Cf. idem, 1142.
61
Cf. BOROBIO, Dionisio. Da celebração à teologia: que é um sacramento? In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A
celebração na Igreja. Vol. 1, p. 326.
62
“El simbolo surge cuando lo interno y espiritual encuentra su expresion externa y sensible”. GUARDINI, Romano.
El espiritu de la liturgia, p. 131.
30
Entretanto, não podemos cair no perigo de considerar o símbolo como uma coisa, o que
levaria, como aconteceu no passado, a uma atitude mágica com relação à liturgia. Mais do que o
religioso. (...) O gesto litúrgico apresenta, pois, um parentesco bem próximo, de um lado com a
Como afirma José Aldazábal: “Os elementos mesmos não são o sinal: é a ação que
realizamos com eles que nos leva mais decisivamente a compreender a identidade de um
um ato eclesial em que Deus se dirige concretamente ao homem. Como exemplificou Edward
Schillebeeckx, o sacramento é como a mãe que abraça e beija o filho, e “embora a criança saiba
que a mãe a ame, o abraço que ela lhe dá é a manifestação perfeita desse amor”.67
pois consideramos que os sacramentos não são coisas que levam ao conhecimento de outras
68
coisas, mas um meio de comunicação e de encontro, relação-mediação com o Mistério de
63
O símbolo é “um gesto, um movimento corporal, um fazer com determinados objetos materiais que remetem a
significados novos, a realidades ulteriores e transcendentes”. MALDONADO, Luis. A celebração litúrgica:
fenomenologia e teologia da celebração. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 183.
64
SARTORE, Domenico. Sinal/símbolo In: Dicionário de liturgia, p. 1143.
65
VERGOTE, Antoine. Gestos e ações simbólicas em liturgia, Concilium, n. 62, p. 169.
66
ALDAZÁBAL, José. A eucaristia. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 2, p. 280.
67
Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 197.
68
Cf. MARTÍN, Julián L. No espírito e na verdade: introdução antropológica à liturgia, p. 149.
31
É preciso ver a celebração da Eucaristia como uma relação simbólica com o Cristo morto
exemplo dos discípulos de Emaús na ceia, é preciso reconhecer Jesus no partir do pão. (ver
quadro 2 no apêndice)
composta de personagens que atuam num jogo, que acontece num campo. No próximo item
personagens e se organiza como um jogo com suas leis. Certos grupos de símbolos se mostram
logicamente encadeados entre si, dentro de uma coerência que se pode traduzir em termos
racionais.69 Mesmo as diversas significações de um símbolo são solidárias como num sistema, as
contradições que poderiam surgir se resolveriam quando se tem o sistema simbólico como um
todo.70
Bourdieu, é composto de “estruturas estruturadas”, que são passíveis de análise porque as formas
simbólicas são logicamente estruturadas, e por serem estruturadas têm poder estruturante.71
oposição entre dominantes dotados da excelência e os dominados relegados à margem, com todas
69
Cf. ELIADE, Mircea. Simbolismo de “centro”. In: Imagens e símbolos, p. 32.
70
Cf. ELIADE, Mircea. Simbolismo e história. In: Imagens e símbolos, p. 163.
71
Cf. O poder simbólico, p. 09.
32
as outras posições intermediárias.72 Entretanto, não podemos considerar termos como dominantes
e dominados sob uma visão ideológica ou restritiva, mas precisamos analisá-los como
espaço físico, mas como o sistema simbólico no qual acontece a relação simbólica. O
73
Cristianismo como um todo é o campo simbólico, todavia cada celebração é a manifestação
deste campo, e se torna um campo simbólico específico. Campo é, pois, uma noção formal para
sendo uma noção formal, é necessária uma certa autonomia do campo para assim garantir a
eficácia simbólica.75
mediatizam a relação dos agentes com o campo. Portanto, além das posições, outros dois
posicionamentos, isto é, as opções legítimas efetuadas pelos agentes. Esses elementos precisam
ser trabalhados e considerados diferencialmente, para assim se proceder a uma análise da relação
simbólica.77
torno de um pastor evangélico que começa uma relação simbólica entre ele, como pregador, e os
ouvintes da palavra. Outro exemplo é a celebração, junto ao rio em Filipos, feita por São Paulo
72
Cf. PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social, p. 70.
73
Cf. SARTORE, Domenico. Sinal/símbolo. In: Dicionário de liturgia, p. 1144.
74
Cf. PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social, p. 84.
75
Cf. Ibidem, p. 81.
76
“A ordem das posições tem uma lógica interna que não pode ser reduzida a nenhuma outra: ela é que comanda as
condições e as modalidades de seleção tanto dos agentes (disposições) quando das opções legítimas
(posicionamentos). Esse espaço, unidade de cujas fronteiras exprimem sua especificidade, vem a ser o campo”. In:
PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social, p. 83.
77
Cf. PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social, p. 36.
33
com algumas mulheres, pois os judeus daquela cidade não tinham Sinagoga. 78 Em ambos os
exemplos os espaços físicos foram apenas operativos, e de certa forma improvisados, para que o
espaço simbólico acontecesse. É por isso, então, que todos os elementos (campo, posições,
O sistema simbólico se organiza em posições estruturadas que devem ser vividas por
do qual os personagens devem interagir coerentemente com a dimensão simbólica dessa mesma
celebração. Essa coerência79 é propiciada pelas disposições formadas que se exteriorizam através
O símbolo possui uma função identificadora de promover a coesão do grupo que celebra.81
Os agentes no sistema simbólico devem, pois, sacrificar a sua atitude individualista e partir para a
condição social do relacionamento simbólico, de acordo com as normas da vida coletiva. 82 Por
isso, para conseguir a coesão do grupo, esses mesmos agentes devem agir com as armas que o
campo lhes fornece (as percepções), renunciando àquelas que poderiam ser obtidas em universos
agentes envolvidos devem ter suas disposições formadas para que através de suas próprias
78
“Quando chegou o sábado, saímos fora da porta, a um lugar junto ao rio, onde parecia-nos haver oração. Sentados,
começamos a falar às mulheres que se tinham reunido” (At. 16, 13).
79
Cf. processo de concertação das práticas nos próximos itens.
80
Os símbolos têm uma função mediadora pois, “abrem-nos porque ordenam e expressam as nossas experiências
profundas, permitindo-nos, no ato da simbolização, realizar-nos a nós mesmos; em segundo lugar são mediações
com relação aos outros: porque através deles, nos expressamos, comunicamos e encontramos com outros, chegando a
um intercâmbio social e a uma vida comunitária, e em terceiro lugar, são mediações com relação à realidade
transcendente, ao Absoluto, a Deus”. BOROBIO, Dionísio. Da celebração à teologia: Que é um sacramento? In:
BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 330-331.
81
Cf. MALDONADO, Luis. A celebração litúrgica: fenomenologia e teologia da celebração. In: BOROBIO,
Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 221.
82
Cf. GUARDINI, Romano. El espiritu de la liturgia, p. 106. Cf. também IGMR n. 95.
34
os agentes que promovem a liturgia trabalham com aqueles que a procuram, “inculcando-lhes um
normas de uma representação religiosa do mundo natural e sobrenatural”. 83 Assim, o agente que
possui o poder simbólico, inculca o habitus religioso através do efeito da consagração sob duas
muito original e leve do jogo simbólico que se realiza na trama litúrgica. O jogo simbólico está
baseado no lúdico. Romano Guardini afirmava que a dimensão lúdica do jogo simbólico seria a
realidade íntima da liturgia, de modo que a arte e a realidade seriam unidas admiravelmente, em
uma sobrenatural infância sob os olhos de Deus. A liturgia não seria apenas um trabalho, mas um
jogar diante de Deus, uma obra de arte.85 Por ser um jogo deverá haver um códice de leis da
relação simbólica, um regulamento da liturgia como um jogo sagrado que a alma executa diante
de Deus. Como uma criança que no jogo, com a consciência de um verdadeiro artista, se esforça
por expressar projetando sob diversas formas a vida da alma através desse maravilhoso mundo de
pelo campo que é a própria estrutura da celebração eucarística. No campo se processa o jogo
simbólico, no qual são conjugadas as posições dos agentes, os posicionamentos que são o
exercício das posições e a própria disposição dos agentes. O povo de Deus acorre à celebração
com interesses que brotam de suas disposições interiores e jogará de acordo com elas através de
suas percepções. Por sua vez, os ministros, como possuidores do poder simbólico, devem entrar
em sintonia com as percepções de todos e assim ajudar a modificar as disposições para melhor
esse jogo entre posições, disposições e posicionamentos, não é arbitrário, mas brota da natureza
mesma da celebração eucarística e possui leis da relação simbólica que devem ser observadas por
todos os agentes, para assim acontecer uma verdadeira sinergia entre Deus e seu povo. (ver
quadro 3 no apêndice)
Como em Emaús à mesa com os discípulos, Jesus toma o pão, abençoa-o e depois de
parti-lo o distribui, os olhos dos discípulos se abrem, isto é, reconhecem, com os corações
ardendo, dentro do campo simbólico da mesa e da ceia, no gesto simbólico de partir e distribuir o
No próximo item será analisada a formação das bases duradouras (as disposições
pessoais), para posteriormente se analisar o processo da motivação dessas bases, que levam o
7. As disposições pessoais
liturgia como cume e fonte de toda a ação da Igreja e sua eficácia para a santificação do homem e
a glorificação de Deus (SC 10), segue dizendo que para se obter tal eficácia é necessário que os
fiéis se “acerquem da sagrada liturgia com disposições de reta intenção” (SC 11), cooperando,
assim, com a com a graça. O texto latino diz que os fiéis “cum recti animi dispositionibus ad
sacram liturgiam accedant”. (SC 11)87 Portanto, para se obter a santificação, os fiéis necessitam
participar da liturgia com a disposição do próprio coração ou ânimo ordenada de tal maneira que
esteja dirigida para o centro da liturgia, o Mistério Pascal. Em outras palavras, as “disposições
graça. Pois, a liturgia é relação simbólica com a obra da redenção do Cristo morto e ressuscitado,
88
conforme Odo Casel, e dentro dessa relação o fiel participante necessita ser motivado nas
disposições pessoais para participar ativamente. Tal motivação auxilia na formação das
87
Análise do texto: os fiéis são convidados a se aproximar da liturgia (accedo, accedere, etimologicamente ad e
cedo, ir em direção à...) com disposições (dispositio de dispono, disponere, por em ordem, dispor, compor) de reta
(recti de rectus, particípio pretérito de rego, regere, dirigir, guiar, conduzir, reger, governar...) intenção (animi, de
animus, vida, espírito, disposição, coração, animo...). SARAIVA, F. R. dos Santos, Dicionário latino-português,
passim. O sentido do texto latino segue aproximadamente a expressão latina: “Bono animo esse in aliquem”, “estar
bem disposto para com alguém”, de Julius Caesare, historiador. Cf. “Animus, i”. In: SARAIVA, F. R. dos Santos,
Dicionário latino-português, p. 79.
88
“A liturgia é a ação ritual da obra salvífica de Cristo, ou melhor, é a presença, sob o véu de símbolos, da obra
divina da redenção”. CASEL, Odo. Mysteriengegenwart em JLW 8 (1928), apud MARSILI, Salvatore. Liturgia. In:
Dicionário de liturtia, p. 901.
37
por quem celebra, 89 são conseqüência da relação simbólica dentro da história salvífica.90
O sacramento não é, pois, um sinal arbitrário, mas um símbolo que tem raízes na história
salvífica e representa a realidade que contém. Por isso, “o simbolismo judeu-cristão do batismo
simbólica, o sacramento remete a essa realidade salvífica, cuja plenitude se realiza no sujeito que
relacionamento pleno (participação) se terá a eficácia litúrgica, que acontece na medida em que
89
Cf. BUYST, Ione. Barro e brisa: um convite à experiência religiosa atual. In: ANJOS, Márcio F. dos (Org.).
Teologia em mosaico, p. 242.
90
Os símbolos “são portadores de uma experiência religiosa que foi se acumulando ao longo dos séculos, em certos
casos, e na qual sempre é essencial a fé de uma comunidade e a pertença à Igreja de Cristo. Para aceder a essa
experiência, não há outro caminho senão a comunicação humana dentro da celebração, por meio de todos os sinais e
outros elementos que entram em jogo”. MARTÍN, Julián L. No espírito e na verdade: introdução antropológica à
liturgia, p. 104-105.
91
ELIADE, Mircea. Simbolismo e história. In: Imagens e símbolos, p. 158.
92
Cf. BOROBIO, Dionisio. Da celebração à teologia: que é um sacramento? In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A
celebração na Igreja. Vol. 1, p. 333.
93
Expressa neste trabalho pelas monições.
94
“A liturgia cristã é uma proposta ritual objetiva, que pede para ser assumida subjetivamente para cada
participante”. BUYST, Ione. Barro e brisa: um convite à experiência religiosa atual. In: ANJOS, Márcio F. dos
(Org.). Teologia em mosaico, p. 243.
95
MALDONADO, Luis. A celebração litúrgica: fenomenologia e teologia da celebração. In: BOROBIO, Dionisio
(Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 240.
38
colaboram para que os sacramentos sejam frutíferos. 96 Entretanto, apesar da vontade do fiel, ele é
incapaz de seguir a graça, que sempre precede o ser humano e corrige o fraco e o imperfeito. A
gratia praeveniens, que previne o pecado e precede os passos do liturgo, ajuda-o a crescer cada
dia. Nesse sentido pode-se afirmar que a própria disposição pessoal já é atuação da graça. 97
A disposição pessoal necessária para a participação na liturgia é graça, mas como foi
visto, tal disposição é também conseqüência da formação para o simbólico em uma comunidade
de fé na História da salvação. Diante disso, com o auxílio das ciências, se faz necessário verificar
como é o processo de formação da disposição pessoal, como a natureza humana acolhe a graça da
disposição para o simbólico, para assim no item nove constatar o processo da motivação da
Para atingir essa visão integral do ser humano e comprovar que emoção e razão trabalham
juntas no processo decisório humano, Antonio Damásio, em sua obra “O Erro de Descartes”,
96
Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 101.
97
Cf. Ibidem, p. 216 - 217.
98
“O sinal sacramental, para ser eficaz, pressupõe sempre uma atividade da graça não sacramental no sujeito do
sacramento, em forma de ‘disposição’ que quase sempre surge sem a imediata cooperação da hierarquia”. Um novo
sacerdócio, p. 210.
99
Cf. DAMÁSIO, Antonio R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano, p. 132.
39
instintos. Por outro lado, o conhecimento adquirido baseia-se em disposições existentes tanto nos
córtices de alto nível como ao longo de muitos núcleos de massa cinzenta localizados abaixo do
conhecimento imagético que se pode evocar e que é utilizado para o movimento, o raciocínio, o
o cérebro não possui somente um aparato fisiológico para a regulação do metabolismo, mas
Portanto, as disposições pessoais são formadas por disposições inatas sobre as quais são
erguidas disposições adquiridas no convívio social. Dessa forma pode-se vislumbrar a base
biológica (disposições inatas) das disposições formadas no relacionamento social. A partir desse
que, como tal, tem poder estruturante na vida do liturgo. Como sistema estruturado, a religião
100
Cf. DAMÁSIO, Antonio R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano, p. 132-133.
101
Cf. Ibidem, p. 154.
40
constrói experiência e ao mesmo tempo expressa essa experiência em termos lógicos e práticos.
campo, opondo o que está fora de discussão ou o que pode ser discutido, em outras palavras
dão um caráter crônico ao fluxo da atividade na sua realidade e à qualidade da sua experiência. 104
Pierre Bourdieu segue na mesma linha de pensamento ao afirmar que, graças ao efeito de
consagração, o sistema de disposições leva o mundo natural e o mundo social a uma mudança de
natureza.105 Sob esta perspectiva, a crença religiosa não seria pura aparência, mas o efeito
campo) que se coaduna com elas.106 Tais disposições107 como interiorização das determinações
externas é o habitus.108 Os termos habitus e disposição são tomados por Pierre Bourdieu da
Escolástica.109
102
Cf. BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. In: MICELI, Sergio (Org.). A economia das
trocas simbólicas, p. 45-46.
103
Cf. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas, p. 114.
104
Cf. Ibidem, p. 109.
105
Cf. Gênese e estrutura do campo religioso. In: MICELI, Sergio (Org.). A economia das trocas simbólicas, p. 46.
106
Cf. PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social, p. 114.
107
O termo disposição foi empregado no conceito de habitus (sistema de disposições) por duas razões: disposição
exprime o resultado de uma ação organizadora (estrutura) e por outro lado exprime uma maneira de ser, um estado
habitual (predisposição, tendência, propensão etc). Cf. BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In:
Pierre Bourdieu, nota 20, p. 61.
108
Cf. BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: Pierre Bourdieu, p. 49.
109
Habitus é “uma disposição da qual um ser é bem ou mal disposto em si ou relativamente a outro”. In: TOMÁS DE
AQUINO. Summa Theologiae, 1ª parte da 2ª parte, q. 49, art. 2, p. 12.
41
gerador e estruturador das práticas e das representações”.110 Em outras palavras, habitus seria as
O habitus reproduz as estruturas objetivas das quais ele é o produto, não sendo o fruto da
obediência a regras ou a uma ação organizadora de um regente. 111 Como sistema de disposições,
o habitus se torna o princípio gerador de práticas e, por isso, formulará as estratégias de ação. Um
exemplo seria o que aconteceu na reforma da liturgia: muitas estratégias se voltaram para a
prática participativa, tendo em vista que as disposições interiores estavam formadas para um tipo
reação passiva. A mudança ocorre, quando as disposições são novamente reajustadas para a nova
Pascal.
engendram aspirações e práticas compatíveis com as condições objetivas. 112 O habitus é uma lei
imanente, lex insita, colocada nos agentes tanto pela educação primeira, como pela “concertação
das práticas”, no processo da relação simbólica. Para que o processo de “concertação das
práticas” aconteça e haja assim correções e ajustamentos pelos próprios agentes, é necessário
haver um mínimo de concordância entre o habitus dos agentes mobilizadores (profetas, chefes de
partido etc.) e as disposições daqueles cujas aspirações eles se esforçam em exprimir. 113 O
habitus é o princípio de harmonização objetiva das práticas, pois lhes confere regularidade e
110
Esboço de uma teoria da prática. In: Pierre Bourdieu, p. 60-61.
111
Cf. BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: Pierre Bourdieu, p. 60.
112
Cf. Ibidem, p. 63.
113
Cf. BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: Pierre Bourdieu, p. 71-72.
42
A “concertação das práticas” acontece na relação entre a estrutura objetiva que define as
exercício desse habitus, isto é, com a conjuntura que, representa o estado particular dessa
estrutura.115 As ações coletivas, como o jogo simbólico, são, pois o produto de uma conjuntura, a
Pierre Bourdieu ilustra a formação do habitus como uma série cronologicamente ordenada
de estruturas. Por exemplo, o habitus familiar está no princípio da estruturação das experiências
escolares. O habitus transformado pela ação escolar estará no princípio das experiências
transformado.117
No caso da liturgia, o sistema de disposições formado no fiel pela família é a base para a
celebração do Mistério Pascal. Por isso na catequese e na própria celebração, os agentes têm esse
“concertação das práticas” conduzida pelos agentes que têm o poder simbólico. Tal condução
pode fazer com que o sistema se reorganize, e concorde com as condições do campo. Para que
isso aconteça é necessário que os agentes mobilizadores tenham as disposições pessoais formadas
114
O habitus torna as práticas “inteligíveis e previsíveis por todos os agentes dotados do domínio prático do sistema
de esquemas de ação e de interpretação objetivamente implicados na sua efetivação e por esses somente”.
BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: Pierre Bourdieu, p. 66.
115
Cf. BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: Pierre Bourdieu, p. 65.
116
Cf. Ibidem, p. 76.
117
Cf. Esboço de uma teoria da prática. In: Pierre Bourdieu, p. 80.
118
“É dever dos sagrados pastores vigiar que, na ação litúrgica, não só se observem as leis para a válida e lícita
celebração, mas que os fiéis participem dela com conhecimento de causa, ativa e frutuosamente”. (SC 11)
43
e organizadas, pois a motivação das práticas acontecerá não por ordens ou regências autoritárias,
(habitus) e tal jogo acontece entre agentes que têm o habitus formado. Daí a necessidade de que o
fiel participante tenha as disposições pessoais “bem dispostas” para participar plenamente da
liturgia. (cf. SC 11) As disposições pessoais são obra da graça, mas também formadas na história.
habitus como lei imanente, surge na educação primeira e vai se aperfeiçoando na “concertação
Como em Emaús Jesus encontra nos discípulos as disposições formadas pela Palavra
celebrada. Faz, por isso, memória de Moisés passando pelos profetas e resgata a verdadeira
vocação do Messias. Ao final os corações ardiam, porque as disposições pessoais dos dois
discípulos foram reestruturadas através do encontro com o Senhor. No próximo item, será
necessária uma análise equilibrada do processo da relação simbólica entre sujeito e objeto.
44
Nos dias atuais enquanto o cinema, o teatro e as artes plásticas exprimem e realizam as
dimensões da existência humana, não se aceita uma liturgia transformada em ação técnica da
ao sacramentalismo cristão (o signo depende do celebrante como mediação)”. 121 Entretanto, não
se deve cair no extremo oposto de se frisar tanto as disposições pessoais, que as celebrações se
Através da própria celebração, dispõem os fiéis para receberem frutuosamente a graça. (Cf. SC
59). São “expressão da fé eclesiástica, mas ao mesmo tempo, ainda que em nível diferente
expressão da fé subjetiva”.122 Por isso, o valor objetivo da liturgia deve ser assumido
subjetivamente pelo participante do culto eclesial.123 Nesta perspectiva é necessária uma visão
equilibrada entre a atuação da graça através do sinal em si e as disposições pessoais dos fiéis na
que o sacramento não é visto como coisa. Entretanto, colocar o sacramento de tal forma na
dependência das disposições dos fiéis pode parecer que é a fé do fiel que produz a graça. Como
afirma Edward Schillebeeckx, o sacramento frutífero é “o encontro com o próprio Deus. Nesse
119
SARTORE, Domenico. Sinal/símbolo. In: Dicionário de liturgia, p. 1143.
120
Cf. VERGOTE, Antoine. Gestos e ações simbólicas em liturgia, Concilium, n. 62, p. 171.
121
MALDONADO, Luis. A celebração litúrgica: fenomenologia e teologia da celebração. In: BOROBIO, Dionisio
(Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 244.
122
BOROBIO, Dionisio. Da celebração à teologia: que é um sacramento? In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A
celebração na Igreja. Vol. 1, p. 337.
123
Cf. GOENAGA, José A. A vida litúrgico-sacramental da igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO,
Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 142.
45
encontro, o dom da graça e a resposta do homem interpretam-se intimamente. Mas não de tal
forma que os atos de nossa vida sacramental pessoal dêem ao dom da graça a sua medida. Eles
Salvatore Marsili trata desse assunto sob a ótica de piedade objetiva e piedade subjetiva.
A piedade objetiva seria aquela centrada no mistério do Corpo místico. Na celebração litúrgica há
uma eficácia ou virtude objetiva, pela qual a piedade dos membros se une à piedade da cabeça.
exclui, mas se exige, para realizar-se plenamente a graça, uma forma subjetiva. 125
O primado da objetividade da piedade litúrgica não tem por intento negar a subjetividade.
A liturgia se manifesta em uma forma exterior, entretanto necessita ser percebida pela fé interior.
É uma participação ao objetivo, isto é, ao Mistério de Cristo, mas necessita de uma adequação
subjetiva ao mesmo Mistério. A piedade litúrgica deve conseguir esse equilíbrio entre os valores
A liturgia é, pois, o diálogo entre Deus e o homem, uma dialética espiritual, na qual o
sujeito (o homem) se apropria sempre mais do objeto (revelação), a fim de se tornar imagem do
próprio Deus. 126 O ser humano, imagem e semelhança de Deus, assume o Mistério de Cristo pela
liturgia, a tal ponto que possa exclamar como São Paulo, “eu vivo, mas já não sou eu, é Cristo
fundamento na relação pessoal, a comunhão é um encontro com Cristo. Ao passo que pela
Émile Durkheim reifica a sociedade, tentando apreender a sociedade como coisa. Max Weber,
cria uma sociologia da compreensão que tem seu ponto de partida no sujeito.128
A teoria da prática de Pierre Bourdieu procura equilibrar a análise da relação entre sujeito
Como foi visto, habitus é um sistema de disposições estruturadas, que por serem
agentes, dos valores, normas e princípios sociais, que assegura de certa forma, a adequação entre
as ações do sujeito e a realidade objetiva da sociedade como um todo. As ações são realmente
feitas pelos indivíduos, entretanto a chance de efetivação dessas ações se encontra objetivamente
condições objetivas só existem e se realizam realmente nesse e por esse produto da interiorização
A adequação numa situação específica, entre o habitus e essa situação, permite fundar
uma teoria da prática que leva em consideração tanto as necessidades dos agentes quanto a
128
Cf. ORTIZ, Renato. A procura de uma sociologia da prática. In: Pierre Bourdieu, p. 10.
129
Cf. Ibidem, p. 15.
130
Cf. PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social, p. 39.
131
Cf. ORTIZ, Renato. A procura de uma sociologia da prática. In: Pierre Bourdieu, p. 16-17.
132
PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social, p. 42-43.
47
campo.133
próximo item será analisada a motivação das disposições pessoais como fator de eficácia
participativa na liturgia.
Deus. Para que esse encontro seja pleno é necessário que a pessoa humana se abra de bom grado
dentro e é interpelado pelo sacramento. Por isso, o ser humano simbólico precisa ver nos sinais
do homem de se comunicar com Deus. Isso se faz através do sacramento como comunicação
simbólica, onde o símbolo realiza o que anuncia.136 A “redenção objetiva” de Cristo através dos
133
Cf. ORTIZ, Renato. A procura de uma sociologia da prática. In: Pierre Bourdieu, p. 19.
134
Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 09.
135
“As situações fundamentais são gramática existecial-sacramental da vida que, longe de opor-se aos sinais
sacramentais, encontra neles a resposta à sua necessidade”.BOROBIO, Dionisio. Da celebração à teologia: que é um
sacramento. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 337.
136
Cf. BOROBIO, Dionisio. Da celebração à teologia: que é um sacramento? In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A
celebração na Igreja. Vol. 1, p. 322.
48
sacramentos atinge pessoalmente o sujeito do sacramento, pois quer fazer “participar os homens,
pessoa por pessoa, desta redenção”.137 Por isso, se o sinal sacramental não comportar fingimento
em relação às disposições pessoais do liturgo, tal sinal se torna um dom efetivo da graça e,
Para que isto se efetive é necessário um engajamento do sujeito na ação celebrativa, de tal
forma que a vida pessoal testemunha sua vontade de se unir mais intimamente à Igreja e, nela, a
Cristo, unicamente de quem se deve esperar a salvação. Tal realidade de redenção é expressa pelo
O fiel participante pois, quando adentra a celebração litúrgica deve estar imbuído de
expectativa, desejo de ver e ouvir, um desejo de que o céu se abra e o Senhor se manifeste. No
coração deve crescer uma atitude de adoração e de admiração. Essa atitude e a certeza de que
Entretanto, o fiel às vezes se “choca com obstáculos que não se reduzem à incompetência
ou à eventual má vontade dos indivíduos”.141 Para superar tais obstáculos e poder engajar-se
relação simbólica. Tal expectativa é a motivação que será estudada nos próximos subitens.
137
SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 85.
138
Cf. Ibidem, p. 86.
139
Cf. Ibidem, p. 130.
140
Cf. BUYST, Ione. Liturgia de coração, Revista de liturgia, n. 104, p. 59.
141
CLERK, Paul de. La participacion en la liturgia; la aportacion de las ciencias humanas, Phase, n. 179, p. 362.
49
Surgiram teorias como o hedonismo que afirmava que o homem não ama a dor e o desconforto,
mas o prazer e o conforto. Outra teoria era o idealismo que considerava a virtude (o agir
No século XIX, com Darwin, na sua obra sobre a origem das espécies (1859), o instinto,
considerado uma disposição inata que conduzia o organismo a perceber ou prestar atenção a
qualquer objeto e a agir ou sentir, era visto como a base do comportamento. O instinto, então, era
visto como um impulso para agir. O hábito, considerado como nascido do instinto, é que
determinava a conduta humana.143 Foi a obra de Darwin que influenciou a psicologia científica
Maslow, psicólogo americano, acreditava que todos os indivíduos apresentavam uma hierarquia
142
Cf. MONTEIRO LOPES, Tomás de Vilanova. Motivação no trabalho, p. 01.
143
Cf. Ibidem, p. 02.
144
Estudo do comportamento e sua relação com o instinto.
145
Cf. PUENTE, Miguel de la. Introdução. In. PUENTE, Miguel de la (Org.). Tendências contemporâneas em
psicologia da motivação, p. 15-17.
146
Cf. MONTEIRO LOPES, Tomás de Vilanova. Motivação no trabalho, p. 72-73.
50
de necessidades que precisavam ser satisfeitas. Após ter conseguido satisfazer as necessidades
todo organizado e integrado, a motivação e a satisfação também devem ser vistas assim.148
necessidades de deficiência, porém a motivação de deficiência constitui a base para uma teoria da
O crescimento não é apenas satisfação das necessidades básicas, mas também fruto da
criatividade, capacidades e talentos especiais. As necessidades básicas são uma condição prévia e
integridade do ser. Entretanto, a realização de tais motivações só pode ser desenvolvida a partir
Muitas das teorias sobre a motivação se fixaram nas motivações de deficiência, cremos
ser necessário partir para a meta-motivação, a motivação de crescimento que quer possibilitar a
auto-realização do ser humano. A motivação é constante e infinita, atinge o ser humano por
motivação). É nesta última perspectiva que a motivação das disposições pessoais vai ser tratada
147
Cf. MAITLAND, Iain. Como motivar pessoas, p. 7-10.
148
Cf. MOSCOVICI, Fela. Desenvolvimento interpessoal, p. 76-77.
149
Cf. MOSCOVICI, Fela. Desenvolvimento interpessoal, p. 82-83.
150
Cf. Ibidem, p. 84.
51
neste trabalho. No próximo subitem será analisada o conceito de motivação, motivo e o processo
motivacional.
persistente, uma inclinação crônica para executar certos tipos de atos e experimentar certas
Entretanto, o processo da motivação transparece na conexão de sentido que parece ser, para o
“O motivo é um estado interno que dá energia, torna ativo ou move (daí motivação) e que
dirige ou canaliza o comportamento em direção a objetivos”. 155 “Motivos são inclinações para
Alguns motivos são naturais (primários), isto é, são fisiológicos, não resultando de prévia
aprendizagem. Há motivos gerais que são motivos não-aprendidos, mas não tem base fisiológica
151
MAITLAND, Iain. Como motivar pessoas, p. 01.
152
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas, p. 112.
153
Cf. MONTEIRO LOPES, Tomás de Vilanova. Motivação no trabalho, p. 10.
154
Conduta que se desenvolve como um todo coerente, pois tal conduta é adequada de sentido, “na medida em que
suas partes componentes articulam-se entre si, dentro do contexto de nossos modos costumeiros de pensamento e
sentimento, a ponto de constituir uma conexão de sentido típica”. WEBER, Max. Conceitos básicos de sociologia, p.
19-20.
155
MONTEIRO LOPES, Tomás de Vilanova. Motivação no trabalho, p. 03.
156
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas, p. 112.
52
(por exemplo, curiosidade, manipulação, afeto etc.). Enfim há motivos secundários, que precisam
ser aprendidos, a fim de serem incluídos como secundários (por exemplo o poder, superioridade,
refere-se à experiência do ator que vive o processo de atividade em curso, a intenção de atingir
um determinado objetivo (motivo a fim de). Quando a ação é realizada, ela se torna um ato, o ator
pode voltar-se para a sua ação passada, como um observador de si próprio e investigar as
As teorias da motivação, algumas vezes, podem induzir a que certos agentes que têm o
em vítimas passivas das variáveis ambientais. Parece um paradoxo, mas ninguém motiva
ninguém, entretanto podemos precipitar as pessoas na desmotivação. 159 Pois a motivação vem das
Não existe uma fórmula mágica de motivação das pessoas. É necessário investir no que se
pessoa possa tomar na busca dos seus próprios esquemas produtores ou fatores de satisfação”. 161
pessoas são diferentes entre si, para ajudar no respeito mútuo e evitar a desmotivação. Por isso,
não podemos acreditar em fórmulas mágicas ou em condicionantes extrínsecos, mas sim através
157
Cf. MONTEIRO LOPES, Tomás de Vilanova. Motivação no trabalho, p. 5-7 e 15.
158
Cf. SCHUTZ, Alfred. Ação e planejamento. In: WAGNER, Helmut R. (Org.). Fenomenologia e relações sociais,
p. 125.
159
Cf. BERGAMINI, Cecília W. Motivação, p. 105.
160
Cf. Ibidem, p. 106.
161
Ibidem, p. 107.
53
de um programa humanamente natural que é aquele que permite que cada um seja aquilo que
impulsos e objetivos. Uma necessidade ou deficiência aciona impulsos dirigidos para objetivos
que aliviam ou remediam a necessidade ou deficiência. 163 O fenômeno é intrínseco, muito embora
possa servir-se de fatores extrínsecos como meios. Uma vez satisfeita a motivação ela deixa de
necessidade que era menos intensa. Tal desencadear não se rompe nunca, sempre em busca da
auto-realização na transcendência.164
num processo interior ao liturgo que o leva a satisfazer necessidades. Cada agente procura
satisfazer suas necessidades e cada um tem os motivos pessoais que canalizam o próprio
comportamento para satisfazer tais necessidades, com suas disposições formadas de acordo com a
própria história pessoal. É preciso cada agente, mas principalmente o agente que tem o poder,
conhecer o próprio estilo de comportamento motivacional. Tal agente precisa investir num estilo
faz com que ele possa entender o processo motivacional dos outros e ajudar com que cada pessoa
disposições pessoais faz com que entendamos as necessidades que levam as pessoas a procurar a
Nesse processo de motivação das disposições pessoais, deve haver um clima de confiança
que leve o fiel a se abrir de bom grado. Toda abordagem de dominação é marginalização da
162
Cf. Ibidem, p. 108-109.
163
Cf. MONTEIRO LOPES, Tomás de Vilanova. Motivação no trabalho, p. 15.
164
Cf. BERGAMINI, Cecília W. Motivação, p. 110-111.
54
pessoa, pois assim jamais a relação simbólica vai ser um encontro pessoal. 165 O ministro precisa
se engajar com toda a sua alma apostólica no mistério que realiza, assim a motivação das
disposições pessoais dos participantes acontecerá de modo eficiente. 166 Entretanto, o despertar da
disposição pessoal, não depende somente de quem está no âmbito do poder sacramental, mas é
sujeito dos sacramentos vive ou na qual se integra. 167 É, portanto, das disposições pessoais
estruturadas (habitus) que nascem impulsos que necessitam ser orientados pelo estilo de
processo motivacional, o homem integral, o racional unido aos sentimentos, a partir de suas
estavam sombrios, pois esperavam um Messias que libertasse politicamente Israel. O Senhor
através de uma abordagem sutil e após ter ouvido o relato dos discípulos, inicia sua fala por uma
afirmação e uma pergunta: “Insensatos e lentos de coração para crer tudo o que os profetas
anunciaram! Não era preciso que o Cristo sofresse tudo isso e entrasse em sua glória?” (Lc 24,
26) Este é o estímulo, para assim o Senhor poder interpretar as Escrituras e mudar as disposições
165
Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 06.
166
No caso da celebração eucarística, o presbítero deve servir a Deus e ao povo com dignidade e humildade, e, pelo
seu modo de agir e proferir as palavras divinas, sugerir aos fiéis uma presença viva do Cristo. Por outro lado os fiéis
precisam se esforçar para manifestar o próprio oferecimento a Deus através de um profundo senso religioso e de
caridade para com os irmãos que participam da mesma celebração. Cf. IGMR, n. 93 e n. 95.
167
Cf. RAHNER, Karl. Um novo sacerdócio, p. 217.
55
Em seguida o Senhor insinua que vai mais adiante, outro estímulo para que os discípulos
o convidem: “Permanece conosco”. (Lc 24, 29) Nesse momento, os discípulos estão motivados,
com a expectativa correta com relação ao Messias. Isso é preparação para a ceia, na qual os
O estilo motivacional de Jesus leva dos discípulos a terem o coração ardente, motivados
pelo anúncio da Palavra, para que os seus olhos se abrissem e o reconhecessem no partir do pão.
Concluindo, a motivação é o mover interno que nos leva a agir de forma específica. Esse
mover interno é estimulado pelas nossas necessidades, as quais vão desde as necessidades básicas
necessidade aciona impulsos dirigidos a objetivos que satisfazem a necessidade. Uma vez
intrínseco, mas que pode utilizar fatores extrínsecos. Nesse processo, o motivo é que canaliza o
nosso comportamento em direção a objetivos Esses motivos podem ser naturais, não-aprendidos e
secundários, isto é, aprendidos. Para que o processo da motivação aconteça precisamos conhecer
o nosso estilo de comportamento motivacional, como a nossa motivação “funciona”, para assim
eucarística acontece do mesmo modo. Cada fiel vai à celebração com as próprias necessidades.
catequese, devem colaborar na formação de motivos que ajudem o fiel na satisfação das próprias
Pascal.
56
principal objetivo da renovação conciliar da liturgia.168 A referida Constituição diz que o objetivo
da reforma é que o povo cristão na liturgia consiga com mais segurança graças abundantes. Para
isso, os textos e as cerimônias devem exprimir mais claramente o mistério celebrado, para que o
A Constituição propõe que a reforma do ordinário da missa fosse feita de modo que
consciente, ativa e fácil dos fiéis (Cf. SC 79). No mesmo sentido, a reforma do Ofício divino
tinha a finalidade de provocar “consonância entre as palavras e seu espírito” (SC 90). Por fim
tanto a música sacra, cantada por todos (cf. SC 121), bem como as construções de igrejas,
primando pela funcionalidade (cf. SC 124), devem levar em conta a participação ativa dos fiéis.
identificação com Jesus Cristo, pode ser analisada nos seguintes níveis:
- Consciente – o fiel compreende que Deus age pela ação ritual. 170
168
Cf. MARTÍN, Julián L. No espírito e na verdade: introdução antropológica à liturgia, p. 398.
169
Na reforma do Ordinário da Missa “apareça a índole própria de cada uma das partes, bem como sua mútua
conexão e facilite a participação piedosa e ativa dos fiéis”. (SC 50)
170
Cf. BUYST, Ione. Pesquisa em Liturgia, p. 27-28.
57
A participação possui as dimensões interna e externa. 171 Sem o culto interno não haveria
nenhum significado o culto externo, tal culto externo torna extrínseco e intensifica o culto
A participação ativa dos fiéis é um direito e um dever baseado no batismo que esses
mesmos fiéis receberam173 e é desta participação plena e ativa “que os fiéis haurem o espírito
Para que a participação dos fiéis aconteça, os pastores devem estar “imbuídos do espírito e
da força da liturgia e dela se tornarem mestres” (SC 14). Por isso, são exortados a formar o povo
para a participação frutuosa na liturgia, segundo a própria condição do fiel. 174 Na formação, os
seminaristas devem ser preparados para participarem da liturgia de “todo o coração (...) imbuídos
A Constituição sobre a liturgia declara que a “liturgia não esgota toda a ação da Igreja”
(SC 9), porém “é o cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte donde
emana toda a sua força”.(SC 10) Após tal declaração, a Constituição afirma que a santificação
dos fiéis é conseguida pela eficácia da liturgia, tal eficácia depende das disposições pessoais,
pois, “para que se obtenha esta plena eficácia, é mister que os fiéis se acerquem da sagrada
liturgia com disposições de reta intenção, sintonizem a sua alma com as palavras e cooperem com
a graça do alto, a fim de que não a recebam em vão”. (SC 11) Pois além de incentivar a
participação ativa externa através de respostas, salmodias, as antífonas e cânticos (SC 30), a
171
Cf. CUVA, Armando. “Principi generali per la riforma e l’incremento della sacra liturgia”. In: La costituzione
sulla sacra liturgia, p. 355.
172
Cf. Ibidem, p. 359.
173
Os batizados em Cristo “vivem o sacerdócio comum, que se manifesta na sua expressão máxima na celebração e
de modo perene na vida ‘em espírito e em verdade’” TRIACCA, Achille M. Participação. In: Dicionário de liturgia,
p. 901.
174
Os pastores são encarregados “de vigiar que, na ação litúrgica, não só se observem as leis para a válida e lícita
celebração, mas que os fiéis participem dela com conhecimento de causa, ativa e frutuosamente”. (SC 11) Os
sacerdotes são convidados a assim instruir os fiéis na liturgia a fim promover “a ativa participação interna e externa
dos fiéis, segundo a idade, condição, gênero de vida e grau de cultura religiosa”. (SC 19)
58
Constituição afirma que esta participação externa tem que despertar os fiéis para Deus e ser
Sob a ótica sócio-antropológica, uma religião se manifesta por atitudes exteriores que
revelam atitudes interiores através de ações e gestos.176 Assim a participação é a manifestação das
disposições pessoais estruturadas dentro da celebração litúrgica. Tais disposições estruturadas são
o habitus, que produz práticas com uma regularidade imanente às condições objetivas da
produção de seu princípio gerador. Tais práticas são explicadas, quando se coloca em relação: o
habitus (que engendrou as práticas) com as condições do exercício desse habitus, isto é, a
tomar parte, um captar algo, um compartilhar, de modo que poderíamos ter uma visão parcial.
Pascal celebrado. Por isso, neste trabalho a visão de participação é o encontro entre o ser humano
178
e Deus na celebração litúrgica, onde não entramos em contato com uma idéia, mas com
alguém.179 Neste tipo de celebração, o desejo salvífico de Deus e a instância simbólica do homem
180
são os dois eixos fundamentais para a compreensão do encontro divino-humano, na totalidade
175
“Enquanto a Igreja reza, ou canta ou age, é que se alimenta a fé dos participantes e suas mentes são despertadas
para Deus, a fim de Lhe prestarem um culto racional e receberem com mais abundância Sua graça”. (SC 33)
176
Cf. LAGENEST, J. P. Barruel de. Elementos de sociologia da religião, p. 15-16.
177
Cf. BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: Pierre Bourdieu, nota 20, p. 65.
178
Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 176.
179
Cf. SILVA, José Ariovaldo da. Liturgia, experiência da fé, Revista de liturgia, n. 141, p. 28.
180
Cf. BOROBIO, Dionisio. Da celebração à teologia: que é um sacramento? In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A
celebração na Igreja. Vol. 1, p. 323.
181
Cf. GREELEY, Andrew. Simbolismo religioso, liturgia e comunidade, Concilium, n. 62, p. 187.
59
Neste encontro o gesto de amor de Cristo é pessoalmente ato do Filho de Deus que
penetra no mais fundo de nossa liberdade, que se abre a ele. 182 Entretanto, o sujeito do
sacramento, pela sua atuação pessoal, deve aceitar a natureza objetiva e a finalidade do
O sacramento será frutífero na medida em que essa interligação acontecer. 183 Este encontro é
A Igreja anuncia a salvação ao ser humano, estrutura as disposições pessoais do fiel pela
catequese e o torna sacerdote batismal, com direito e dever de ser participante na liturgia. Tais
disposições pessoais são o princípio gerador da prática litúrgica do fiel. A participação (plena e
ativa) acontece quando pela prática litúrgica da assembléia celebrativa juntamente com o
presidente e outros ministros, estimulam o celebrante em suas disposições pessoais, a partir das
próprias necessidades. Este estímulo faz o celebrante agir a partir do próprio interior em direção
ao mistério simbolizado, estabelecendo uma relação simbólica com Cristo e os outros celebrantes
(comunidade celebrativa). Esta relação simbólica leva o celebrante a deixar-se absorver pela
estrutura objetiva do sacramento numa entrega total (corpo, mente e sentimentos) ao gesto de
amor do Cristo. Relação simbólica que é encontro, uma sinergia entre Deus e o ser humano (a
graça), que tem por objetivo final a união e a identificação com Cristo. Esse processo
participativo foi suscitado por Cristo em Emaús, ao estimular as disposições pessoais dos
discípulos, culminando na convivialidade e tendo por conseqüência o anúncio dos discípulos aos
182
Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 83.
183
Cf. RAHNER, Karl. Um novo sacerdócio, p. 168-171.
184
União entre a “energia do Espírito de Deus que embebe interiormente a energia do homem e o identifica com
Cristo. Todo o realismo da liturgia e da divinização está nessa sinergia”. CORBON, Jean. Liturgia de fonte, p. 11.
60
Muitas vezes lemos na imprensa, escutamos ou sentimos, que fiéis não são tão fiéis assim,
Vimos, no entanto, neste capítulo que a ceia eucarística é o lugar de encontro com o
Ressuscitado. Porém, para que esse encontro aconteça é necessário que as disposições pessoais
estejam motivadas para uma participação eficaz. Numa visão sócio-antropológica, tomamos a
ceia como jogo simbólico, no qual se realiza a relação simbólica entre os agentes, esses com as
respectivas posições e disposições. Neste jogo simbólico, com suas leis e regras, o fiel é
convidado a participar do jogo a partir das suas próprias necessidades. São estas necessidades que
provocam impulsos que são dirigidos e formados em direção ao mistério simbolizado através do
anúncio da Palavra e da catequese, estruturando assim as disposições pessoais. Assim o fiel está
pronto para jogar. O fiel começa participar no jogo, quando numa celebração, os outros jogadores
mistério, estimulam cada fiel a se abrir ao diálogo com Deus. O jogo é assim: um estímulo
estabelecendo uma relação simbólica com Deus e com a própria comunidade celebrante. Essa
relação simbólica é encontro pessoal com Deus. O jogo simbólico objetiva a união entre Deus e o
Refletiremos neste item a motivação das disposições pessoais na piedade litúrgica judaica,
O povo de Israel é um povo de sacerdotes: “Vós sereis para mim um reino de sacerdotes e
uma nação santa” (Ex 19, 6). É convocado, por isso, a oferecer sacrifícios agradáveis a Deus. O
(participação plena). O sacrifício era, pois, a exteriorização do sacrifício interior, que tinha por
objetivo cumprir a vontade de Deus, estabelecida na Aliança com seu povo. O selo da Aliança,
isto é, da entrega mútua de Deus ao povo e do povo a Deus, é realizado com sangue do sacrifício:
“Moisés tomou do sangue e o aspergiu sobre o povo, e disse: ‘Este é o sangue da Aliança que
Iahweh fez convosco, através de todas essas cláusulas’” (Ex 24, 8).
185
“O que Deus quer é a oferta do próprio homem. Não a oferta de animais, que não tem razão, mas o culto e o
sacrifício espiritual, ‘lógicos’ de sua criatura racional, feita para refletir filialmente a imagem que Ele lhe imprimiu”.
CONGAR, Ives. Os leigos na Igreja, p. 168.
63
Então, era preciso trabalhar melhor as disposições do Povo de Deus para o louvor a Deus.
A base deste louvor era a certeza da salvação, pois o culto festivo a Iahweh era essencialmente
uma ação sagrada, um drama, no qual os fatos salvíficos eram revividos ritualmente no decorrer
da representação sagrada. Tudo era feito como se o evento fosse atual, na certeza da realização da
orante, como expressa o salmo: “Faze tua face brilhar, e seremos salvos” (Sl 80, 4).
Aliança. Os salmos são o componente litúrgico onde mais aparece esse apelo à motivação
interior para o louvor de Deus. Por isso lhes damos um destaque especial neste trabalho.
celebrado pela confederação original das tribos no Templo de Jerusalém, em conexão com a arca
o passado e a atualidade. Por isso, nos salmos verificamos uma certa constância de traços
essenciais da tradição cultual, “que revelam notável paralelismo com os mesmos elementos
destacam os hinos. O hino pertence à participação humana no ato cultual, sendo um canto de
louvor a Deus por suas obras.190 A festa da Aliança é “o ponto de origem e de desenvolvimento
dos hinos do saltério”.191. O salmista, por sua vez, não possuía uma consciência mágica, mas um
186
Cf. WEISER, Artur. Os salmos, p. 16.
187
Cf. Ibidem, p. 14-15.
188
Ibidem, p. 33.
189
Ibidem, p. 14.
190
Cf. SCHÖKEL, Luiz A., CARNITI, Cecília. Salmos I, p. 83.
191
WEISER, Artur. Os salmos, p. 42.
64
devotado entusiasmo, uma reverente adoração e uma humilde veneração de Deus.192 Costuma-se
classificar como hinos os salmos: 8, 19, 29, 33, 65, 66, 93, 100, 104, 105, 111, 113, 117, 135,
136, 145, 148, 149 e 150. Também são considerados “hinos de entronização no Templo”, os
salmos: 8, 15, 24, 29, 33, 46, 48, 50, 66, 75, 76, 81, 84, 95, 100, 114, 118, 132, 149, Ex. 15, 1 – 8.
193
pessoa do plural.
“pois” ou “porque”).
A estrutura do hino pode ser resumida assim: “louvai – o Senhor – porque é bom”.
partir das introduções de alguns hinos sálmicos é possível analisar como era feita a motivação da
192
Cf. WEISER, Artur. Os salmos, p. 42.
193
Cf. SCHÖKEL, Luiz A.; CARNITI, Cecília. Salmos I, p. 83-84.
194
Cf. Ibidem, p. 83.
Cf. WEISER, Artur. Os salmos, p. 34.
65
O que define a natureza litúrgica de um salmo não é somente o seu uso na liturgia, mas
também o seu estilo litúrgico.195 O hino sálmico reflete este estilo, como, por exemplo, podemos
imaginar no salmo 118, uma multidão dentro e fora do templo em ressonância com grupos ou
coros bem organizados, liderados por um personagem (liturgo), avançando pelo centro do templo
enquanto se realiza a salmodia no estilo coral.196 Tal liturgo interpela a assembléia, a natureza ou
“Celebrai a Iahweh, porque ele é bom, porque o seu amor é para sempre!” (Sl 118, 1) Este
versículo apresenta a razão do louvor proposta pelos levitas e respondida pela assembléia: o povo
(casa de Israel), os sacerdotes (a casa de Aarão) e os prosélitos (os que temem a Iahweh). Com
sua proclamação de fé todos se colocam sem distinção sob a graça incessante de Deus. Neste
convite inicial o liturgo procura exortar a uma genuína confiança em Deus, de modo que cada
salmo convida ao canto de ação de graças: “Ó justos, exultai em Iahweh, aos retos convém o
louvor. Celebrai a Iahweh com harpa, tocai-lhe a lira de dez cordas: cantai-lhe um cântico novo,
tocai com arte na hora da louvação!” (Sl 33, 1-3) No salmo 149, em seus três primeiros
versículos, o convite se dirige à comunidade que acampa no Templo, para cantar um hino a Deus,
criador e rei, que revela seu nome e assume o seu senhorio em sua festa.197
195
Cf. SCHÖKEL, Luiz A.; CARNITI, Cecília. Salmos II, p. 1524.
196
Cf. SCHÖKEL, Luiz A.; CARNITI, Cecília. Salmos II, p. 1413.
197
Cf. WEISER, Artur. Os salmos, p. 660.
66
corações num “estado de ânimo de alegria e entrega, com que se deve ir ao encontro com Deus,
quando ele aparece no santuário para a salvação do seu povo”.198 Um exemplo disso são os
primeiros versículos do salmo 95: “Vinde, exultemos em Iahweh, aclamemos o Rochedo que nos
salva; entremos com louvor em sua presença, vamos aclamá-lo com músicas” (Sl 95, 1-2).
Tais convites preparam os fiéis para entrar no Templo. O salmo 100 começa com uma
conclamação hínica a louvar a Deus com entusiasmo, convite que se estende a toda terra,
Deus no templo: “Aclamai a Iahweh, terra inteira, servi a Iahweh com alegria, ide a ele com
coração bem disposto é a condição básica para a comunhão com Deus (Sl 24, 4-5).
O Salmo 95 demonstra que a alegria causada pela santidade do encontro com Deus só tem
199
sentido se houver disposição do homem em observar as palavras e os mandamentos de Deus:
para a presença de Deus. Neste sentido, o hino não é somente expressão de ânimo do homem,
mas também o lugar onde o homem se encontra com o seu Deus, entregando-se inteiramente à
alegria nele.200
198
Ibidem. Os salmos, p. 479.
199
WEISER, Artur. Os salmos, p. 480.
200
Cf. Ibidem, p. 496.
67
Esta piedade litúrgica de Israel está presente no tempo de Jesus e é assumida por Ele. No
próximo item será analisado como o estilo de comportamento motivacional de Jesus, propicia a
Seguindo a tradição dos salmos, Jesus estava perfeitamente motivado para realizar a obra
da salvação (Lc 4, 18ss). Sua vida pessoal e sua pregação eram uma demonstração desta
motivação. Então, seu trabalho consistia em criar a motivação nos seus interlocutores para que
Jesus veio de um povo que sabia rezar, herdeiro de uma liturgia riquíssima com uma vida
de oração bem ordenada, seja pública ou privada. O culto público se realizava no Templo e na
da liturgia hebraica diante do seu exagero sacrificial para que ela pudesse se tornar um culto em
espírito e verdade (Jo 4, 21 – 24). “Cristo leva à perfeita ‘espiritualização’ o culto do Novo
Testamento, não abolindo o sacrifício, mas apresentando a si mesmo tanto a matéria da oferenda
oração, o amor aos pobres, o acolhimento ao pecador e principalmente sua paixão e morte, na
qual dá sua vida livremente. Do lado interior, a alma do sacrifício de Jesus é o espírito filial que o
leva a dizer: “Sim, Pai, porque assim vos agradou” (Mt 11, 26) e, desta forma, “humilhou-se a si
201
MARSILI, Salvatore. A liturgia momento histórico da salvação. In: NEUNHEUSER, Burkhard et al. A liturgia
momento histórico da salvação, p. 162.
69
Jesus trabalha a motivação dos seus ouvintes através da pregação e dos milagres. Estes
são os sinais que deixam transparecer a sua glória escondida na carne, cujo sentido é explicado
pelos discursos.202 Entretanto, às vezes, acontece uma incredulidade, quando o sinal é mal
interpretado, 203 pois ele exige o mínimo de disposição interior para ser acolhido como símbolo da
vinda do Reino. Outra dificuldade é também a falta de fé, como no caso do epilético
endemoninhado (Mc 9, 14 - 29). O pai do epilético se dirige a Jesus e diz: “pedi aos teus
discípulos que o expulsasse, mas não conseguiram” (Mc 9, 18). Jesus questiona a incredulidade
daquela geração e diante da súplica o pai do menino, aponta a motivação para a verdadeira fé:
“Tudo é possível àquele que crê” (Mc 9, 23). A confissão do pai do menino: “eu creio! Ajuda a
minha incredulidade” (Mc 9, 24) abre-lhe o coração para entender que a vitória sobre o
adversário não depende de técnicas especiais, mas da poderosa ação de Deus diante de um
coração bem disposto. Na verdade, Jesus se queixa do mesmo pecado do deserto, onde o “povo
204
que esquece, ou não sabe captar, o significado dos gestos salvíficos” (cf. Dt 32, 5.20.). No
caso da perícope evangélica, a “única condição requerida para a intervenção salvífica de Deus é a
202
Cf. MAGGIONI, Bruno. O evangelho de João. In: Os evangelhos II, p. 321 - 322.
203
Cf. Ibidem, p. 325.
204
FABRIS, Rinaldo. O evangelho de Lucas. In: Os evangelhos II, p. 524.
205
Ibidem, p. 524.
70
uma disposição pessoal para acolher os sinais do Messias, o enquadrava na sua própria teologia e
antigos conceitos. Por isso, foi motivado pelo Senhor para que se renovasse inteiramente. Nesse
mesmo sentido acontece a incredulidade dos conterrâneos nazarenos de Jesus. (Mc 6, 1 – 6), os
quais não esperavam um Messias que pudesse ser identificado no filho do carpinteiro. Para eles
era muito difícil associar Jesus de Nazaré aos milagres (Mc 6, 5), pois, “se os milagres não são
céticos, é claro que um gesto de Jesus num clima de incredulidade não tem sentido, e se torna
impossível; sem fé, não se pode falar em milagre, porque ele é sempre uma resposta e no mesmo
No sermão da montanha, Jesus procurou mudar a disposição interior dos ouvintes, através
da correta compreensão do ensino oral da lei: “Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás;
aquele que matar terá de responder no tribunal. Eu, porém, vos digo: todo aquele que se
Outras vezes foi no encontro pessoal que esta disposição interior foi motivada.
206
FABRIS, Rinaldo. O evangelho de Lucas. In: Os evangelhos II, p. 486.
71
O publicano Zaqueu (Lc 19, 1 – 10) sobe na árvore para ver Jesus. Neste momento, Jesus
se autoconvida a ir a casa dele. Entrando de modo ousado na vida daquele pecador, Jesus
solidariza-se com ele, sem se importar com a crítica dos bem pensantes da época. 207 Por outro
lado, Zaqueu responde ao convite com presteza e, assim, acontece a conversão, que muda suas
No caso da hemorroíssa (Lc 8, 40 – 56) sua confiança em Jesus era primitiva, mágica e,
por isso, toca no manto para obter a cura. Jesus não despreza a fé insipiente da mulher, mas a
acolhe e transforma a disposição pessoal para uma fé que salva. O contato com a orla do manto
de Jesus se transformou, pela iniciativa de misericórdia, num encontro que dá a ‘paz’ e leva à
plena comunhão e dignidade de uma filha de Deus (Lc 8, 48). Há, então, um crescimento da
207
Cf. Ibidem, p. 183.
208
Cf. FABRIS, Rinaldo. O evangelho de Lucas. In: Os evangelhos II , p. 97.
72
Nesse mesmo sentido acontece o diálogo com a samaritana (Jo 4, 1 – 42), onde se
paciente pedagogia divina que não apenas satisfaz as aspirações da pessoa humana, mas, antes,
também as suscita.209 Por isso, Jesus parte das aspirações imediatas (sede de água natural) para
que a samaritana descubra sua sede espiritual. Assim, tenta introduzir a mulher na salvação
simbolizada pela água. A samaritana intui algo do Dom de Deus e exclama em total abertura:
“Senhor, dá-me desta água”. (Jo 4, 15) Jesus, porém, não despreza a disposição interior da
mulher, pois “a resposta de Jesus ultrapassa o pedido. Deus não se limita a responder ao ser
humano; ele quer fazê-lo crescer. E o homem deve se modelar à medida do projeto de Deus e não
o contrário”.210
No caso de Marta e Maria (Lc 10, 38 – 42), Jesus trabalha a disposição pessoal na sua
inteireza. Ele mostra a Marta que ela está dividida entre o trabalho e a irmã, pois o unum
necessarium (cf. Lc 10, 42) é um coração bem disposto que coloque a pessoa inteira no
Curiosamente é num centurião romano (Lc 7, 1 – 10) que Jesus encontra a disposição
correta e se admira da sua fé (Lc. 7, 9). O centurião acredita plenamente na eficácia da Palavra. A
confiança em Jesus, que pode e que quer curar, até o acolhimento de sua pessoa como enviado
autorizado de Deus e a abertura sincera e total, que vai além do dom da cura”.212
209
Cf. MAGGIONI, Bruno. O evangelho de João. In: Os evangelhos II, p. 315.
210
Ibidem, p. 316.
211
Cf. BARONTO, Luiz Eduardo. “Uma só coisa é necessária”. A respeito da participação plena. In: SILVA, José
Ariovaldo da; SIVINSKI, Marcelino (Orgs.). Liturgia um direito do povo, p. 60.
212
FABRIS, Rinaldo. O evangelho de Lucas. In: Os evangelhos II, p. 82.
73
Portanto, podemos concluir destas análises rápidas que Jesus, herdeiro da Aliança do povo
israelita, quer que os homens e mulheres se encontrem com o Deus da Aliança nele. O estilo de
comportamento motivacional de Jesus encontra diversos tipos de atitudes. Pode ser o total
histórica do filho do carpinteiro. Neste caso não há saída para a salvação. Porém, pode acontecer
Nestes casos, Jesus não rejeita, mas parte da disposição atual e conduz à disposição correta. Jesus
também encontra os corretamente dispostos como o centurião e, neste caso, a obra de Deus se
realiza perfeitamente.
necessitando de formação para o pleno encontro com Deus. Há, ainda, os que têm as disposições
O itinerário da formação da disposição pessoal e dos motivos foi ensinado por Jesus,
através de seu modo de ser. Esse itinerário foi seguido pela Igreja, que sempre acertou quando
Nos próximos itens analisaremos como a Igreja adotou este estilo de comportamento
motivacional em sua liturgia ou como em certas épocas a motivação das disposições pessoais
século, em meio a perseguições, as celebrações eram nas casas dos próprios fiéis, possibilitando a
mesmo projeto de vida, eram “assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à
fração do pão e às orações”. (At 2, 42) A “fração do pão”, que fazia memória das refeições de
Jesus com os discípulos e, de modo particular, da última ceia, era uma refeição que acontecia
num clima de alegria messiânica e de simplicidade de coração, isto é, “uma atitude de dedicação
213
FABRIS, Rinaldo. Os atos dos apóstolos, p. 76.
75
ceia do Senhor. No capítulo dez da primeira carta aos Coríntios, demonstra que apesar dos pais
terem atravessado o mar, caíram mortos no deserto e não entraram na terra prometida (cf. 1 Cor
10, 1-5). Do mesmo modo, o cristão não pode beber do cálice do Senhor e comungar da mesa da
idolatria. A disposição interior deve estar dirigida para o Senhor sem qualquer perversão: “não
podeis participar da mesa do Senhor e da mesa dos demônios” (1 Cor 10, 21), pois a participação
na mesa do Senhor é “co-participação dos fiéis na mesma realidade salvífica da morte de Cristo,
dos fiéis que se une à divindade à qual se oferece a vítima, por isso é incompatível a práxis
Na mesma carta, tratando da ceia do Senhor (1 Cor 11, 17-34), São Paulo repele toda e
qualquer espécie de egoísmo que levava certos grupos a comer “a própria ceia” (1 Cor 11, 21)
excluindo os mais pobres. Através dessa atitude excluía-se qualquer dimensão comunitária na
refeição fraterna. Tais disposições egoístas e pecaminosas desnaturavam o sacramento. Por isso,
o Apóstolo exortava aos coríntios a uma participação consciente, de modo que cada um “examine
a si mesmo antes de comer desse pão e beber desse cálice, pois aquele que come e bebe sem
formar tal disposição. Pode acontecer que um missionário já a encontre praticamente formada,
como no caso de Filipe (At 8, 26-40) que se deparou com o desejo do eunuco de batizar-se.
Somente nestes casos é que se pode haver pouco tempo de preparação, pois não basta “um
214
BARBAGLIO, Giuseppe. As cartas de Paulo I, p. 295.
76
missionário enviado por Deus, é preciso, por parte de quem o encontra, a abertura sincera, a
busca da verdade”.216
Uma vez formada a disposição pessoal dos participantes para a celebração, tal disposição
precisa ser motivada para que aconteça uma ação eficaz da graça. No judaísmo, o presidente da
ceia judaica, quando ia dar graças sobre o “cálice de bênção” se certificava da participação dos
convivas pelo convite “demos graças”. “É isto o que provavelmente fez o Senhor na última Ceia
217
antes de consagrar o cálice”, e não será temerário pensar que a origem da fórmula presente na
dentro de uma ceia pascal, constituída pela ação de graças e pelo “cálice da bênção”. Conforme
costume judaico, a ação de graças era precedida de uma exortação presidencial: Sursum corda e
Gratias agamus. Estes convites são encontrados juntos invariavelmente em toda a tradição
primitivos, juntamente com o Dominus vobiscum e sua resposta Et cum spiritu tuo, de sabor
autenticamente semítico.219
215
Cf. Ibidem, p. 296.
216
FABRIS, Rinaldo. Os atos dos apóstolos, p. 165.
217
BOULET, Denis; MAURICE, Noële. Análise dos ritos e das orações da missa. In: MARTIMORT, Aimé Georges
(Org.). A Igreja em oração, p. 441.
218
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 12, p. 33.
219
Cf. Ibidem, n. 15, p. 37.
77
A ação de graças da ceia judaica tomou, então, um conteúdo cristão. Trata-se, pois, de
elementos e moldes antigos que passaram ao culto cristão, naturalmente informados de espírito
novo.220 Era natural que a salvação do gênero humano trazida por Cristo fosse motivo de
e ao mesmo tempo a comunidade foi crescendo, a função religiosa foi rompendo cada vez mais
os moldes de uma simples ceia doméstica, e a celebração eucarística foi se tornando independente
A idéia fundamental foi sempre comemorar num convite sagrado a paixão redentora do
Senhor. Por isso, aparece em primeiro plano a estrutura de um convite. Os fiéis estão ao redor de
uma mesa, ceando sob o véu de uma simples comida, o corpo e o sangue do Senhor. As palavras
plasticamente pelo convite, da mesma maneira na alma de todos se impõe imperiosamente a idéia
Tudo isso ficou impresso na celebração eucarística através das fórmulas fixas da missa, a
única que é literalmente atestada no princípio do século III, por santo Hipólito: “Apresentem-lhe
os diáconos a oblação e ele (o bispo) impondo a mão sobre ela, dando graças com todo o
presbyterium; diga:
Respondam todos:
- Já os oferecemos ao Senhor.
Duas observações: ao dirigir-se assim ao povo, o bispo começa a ação de graças (gratias
agens), da qual o diálogo faz parte; todos devem responder, porque é o modo de todos tomarem
com temor, ponhamos toda a atenção para oferecer em paz a santa anáfora”. Os caldeus dizem:
“Ao alto vossos corações”. Os sírios ocidentais atualmente desenvolvem: “nossas inteligências,
O convite desde o início, portanto, quer motivar a disposição dos fiéis na celebração do
material do ser humano, o que leva os autores cristãos a defender o lado exterior do culto cristão.
O arianismo faz com que se insista mais no aspecto divino do sacrifício, provocando o
afastamento do povo. No século III aumenta o número dos cristãos e as comunidades deixam as
223
TRADIÇÃO APOSTÓLICA DE HIPÓLITO DE ROMA, p. 40. “Illi uero offerant diacones oblationes, quique
(episcopus) imponens manus in eam cum omni praesbyterio dicat gratians agens: Dominus vobiscum. Et omnes
dicant: Et cum spiritu tuo. Sursum corda. Habemus ad dominum. Gratias agamus domino. Dignum et iustum est”. La
tradition apostolique de Saint Hippolyte, essai de reconstitutio par Dom Bernard Botte, p. 11-12.
224
Cf. BOULET, Denis; MAURICE, Noële. Análise dos ritos e das orações da missa. In: MARTIMORT, Aimé
Georges (Org.). A Igreja em oração, p. 441.
225
Ibidem, p. 442.
79
casas em busca de recintos próprios para o culto. Com o surgimento das basílicas, vai-se
proclamações. (tais como flectamus genua, levate, ite missa est etc).·
participação ativa dos fiéis, pois alguns gestos e palavras são lembrados na catequese dos Padres
227
da Igreja, que através da catequese mistagógica procuravam formar a disposição interior dos
228
fiéis em vista da plena participação. Como o culto é acessível somente a quem tem fé, a
catequese é necessária para formar as disposições pessoais dos fiéis para que estes participem
ativamente.
A catequese feita aos cristãos pelos pastores da Antigüidade legou uma série de sermões
aos catecúmenos e aos neófitos de são Zenão, santo Agostinho, Teodoro de Mopsuéstia, são
Cirilo de Jerusalém, santo Ambrósio e são João Crisóstomo. Tal catequese não era a instrução
sobre um objeto religioso, mas a iniciação viva e orante que parte do próprio rito e visava levar os
fiéis ao interior do mistério do culto.229 A explicação da liturgia sempre existiu na Igreja, mas no
226
Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO,
Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 56-65.
227
Cf. BOULET, Denis; MAURICE, Noële. Análise dos ritos e das orações da missa. In: MARTIMORT, Aimé
Georges (Org.). A Igreja em oração, p. 367.
228
Catequese que “sabe partir de sinais litúrgicos ou referir-se a eles como dados de experiência e estruturas
portadoras de fé vivida na comunidade” SARTORE, Dominico. Catequese e liturgia. In: Dicionário de liturgia, p.
177.
229
Cf. ROGUET, Aimon-Marie. A pastoral litúrgica. In: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.). A Igreja em oração,
p. 277.
230
Cf. MAZZA, Enrico. La mistagogia: le catechesi liturgiche della fine del quarto secolo e il loro metodo, p. 7.
80
A mistagogia é um método de iniciação cristã que relaciona os vários ritos com os eventos
primeiro lugar se descrevia o rito, tomava-se o texto bíblico relacionado com o rito e se refletia
sobre o evento de salvação que era trazido pelo texto bíblico. Por fim se procedia à aplicação à
São Cirilo, (315-386) bispo de Jerusalém, quando ainda presbítero foi autor das
Jerusalém. Na sua catequese preliminar, Cirilo considera que Deus é generoso para fazer o bem,
porém adverte aos eleitos, que ele “espera a disposição sincera de cada um. (...) O propósito
sincero faz de ti um eleito. Embora estejas presente com o corpo, se a mente está ausente, não
tiras nenhum proveito”.233 Cirilo exemplifica com a figura de Simão, o mago, (At 8, 13) que
mesmo sendo batizado, deixando o corpo descer à piscina, sua alma não foi com-sepultada com
Cristo. Conclui que Deus não exige de cada pessoa nada, a não ser a boa disposição. 234
Com relação à eucaristia, diz aos iluminados que em forma de pão é dado o corpo, e sob a
forma de vinho o sangue235 de tal modo que cada um se torna com-corpóreo e consangüíneo com
Cristo. Exorta os iluminados dizendo: “fortalece o teu coração tomando este pão como espiritual
231
Cf. Ibidem, p. 17.
232
Cf. MAZZA, Enrico. La mistagogia: le catechesi liturgiche della fine del quarto secolo e il loro metodo, p. 195-
197.
233
“‘,,
” CYRILLUS HIEROSOLYMITANUS, Pro catechesis, p. 336. Também CIRILO DE
JERUSALÉM. Catequeses pré-batismais, p. 11.
234
Cf. CIRILO DE JERUSALÉM. Catequeses pré-batismais, p. 15.
235
Cf. CIRILO DE JERUSALÉM. Catequeses mistagógicas, p. 35.
81
e regozija o semblante de tua alma. Oxalá tendo a face descoberta, em consciência pura,
Na terceira catequese aos iluminados toma a palavra de João Batista “preparai o caminho
do Senhor” (Mc 1, 1) e exorta, dizendo “Purificai os vasos de vossa alma por meio de uma fé
A obra de Santo Ambrósio, (340-397) bispo de Milão, se destaca pela maneira como
transmite a fé da Igreja. Dentre seus vários escritos, há um tratado sobre os mistérios e outro
catequese sobre o batismo, diz aos neófitos, que ao se aproximarem da fonte batismal, não
poderiam duvidar como Naamã, o sírio, da eficácia das águas do Jordão (2 Rs 5). Por isso, diz-
lhes: “é preciso que vossa santidade esteja com os ouvidos atentos, o ânimo mais disposto para
que possais reter as coisas que podemos recolher da seqüência das Escrituras e do Espírito
Santo”...238 E acrescenta: “vias coisas que são corporais com os olhos corporais. Todavia, ainda
não podias ver com os olhos do teu coração as coisas que se referem aos sacramentos”.239
Para São João Crisóstomo (349-407) bispo de Constantinopla e autor de várias homilias
mistagógicas, a eficácia do sacramento reside força do Cristo e na presença de sua ação salvífica
236
“..
” CYRILLUS HIEROSOLYMITANUS, Catechesis III: Iluminorum, p. 1104. Também CIRILO
DE JERUSALÉM. Catequeses mistagógicas, p. 35.
237
“...
”
CYRILLUS HIEROSOLYMITANUS, Catechesis XVII: Mystagogica IV, p. 426. Também CIRILO DE
JERUSALÉM. Catequeses pré-batismais, p. 36.
238
“Aliud opus, aliud, operatio. (...) Opus est ut sanctitas vestra aures paratas habeat, promptiorem animum; ut ea
quae nos colligere possumus de serie Scripturarum, et vobis intimaverimus, tenere possitis, ut habeatis gratiam
Patris, et Filii, et Spiritus Sancti”. AMBROSII, Sancti. De sacramentis: liber III, n. 12, p. 454. Também.
AMBRÓSIO DE MILÃO. Sobre os Sacramentos. In: Ambrósio de Milão, p 35 e 37.
239
“Videbas quae corporalia sunt, corporalibus oculis: sed quae sacramentorum sunt, cordis oculis adhuc videre non
poderas”. AMBROSII, Sancti. De sacramentis: Liber I, n. 15 e 24, p. 439 e 442. Também. AMBRÓSIO DE
MILÃO. Sobre os Sacramentos. In: Ambrósio de Milão, p 51.
82
no sacramento. Por isso considerava o sacramento como ação de Cristo e não do homem. 240 Ao
comentar a liturgia do batismo colocava em relevo as exigências morais dos sacramentos. 241 São
João Crisóstomo, como outros Padres orientais como são Basílio, buscava formar nos fiéis uma
consciência do próprio pecado, para se obter uma maior reverência ante os sagrados mistérios.
Essa mudança de disposição de alma está intimamente relacionada com a nova postura teológica
pequenez humana. Então, a eucaristia é vista como o sacramento “terrível”, provocando, assim,
oriente, notada pelos Padres latinos dos séculos IV e V. Não é casual que a partir deste momento
mistérios.242
fundamentais da tradição judaica, vive a sua própria liturgia nas casas, num ambiente de
convivialidade que propiciava uma participação intensa. Dentro do ambiente convival da ceia, as
monições surgem como convites presidenciais inspirados na liturgia judaica, a fim de dispor
interiormente os convivas à plena participação no que irá acontecer, formando assim, os motivos
se unirem a ele.
Vimos isto em São Paulo, quando busca criar nos coríntios uma disposição interior correta
240
Cf. MAZZA, Enrico. La Mistagogia: le catechesi liturgiche della fine del quarto secolo e il loro metodo, p. 153-
154.
241
Cf. Ibidem, p. 120.
242
antes de cear. Essa formação das disposições pessoais continua nos Padres da Igreja, através da
eucarística e o aumento cada vez maior do esplendor exterior provocam o afastamento do povo
do altar e da participação ativa. As poucas monições que existem vão se petrificando juntamente
Na Idade Média surge o alegorismo litúrgico como uma forma de reação à diminuição da
4. O alegorismo medieval
Com a inserção cristã em todo o tecido da vida civil e cultural, a aproximação Igreja e
Estado a partir de 313 (o Edito de Milão), começam a entrar em ação as formulações estudadas e
Roma, apesar da existência de várias famílias litúrgicas (Galicana, Africana, Ambrosiana etc.). 243
purista, e uma busca cada vez maior de uma pureza interior, sendo muitas vezes uma pureza
legal.244 Por outro lado os “clérigos e religiosos ligam cada vez maior importância material aos
243
Cf. MARSILI, Salvatore. A liturgia momento histórico da salvação. In: A liturgia momento histórico da salvação,
p. 57-68.
244
Cf. Ibidem, p. 89.
84
245
ofícios litúrgicos que se alongam e se complicam”. A liturgia passa a ser ocupação de
especialistas.
eucaristia faz com que as partículas, antes postas nas mãos dos fiéis, sejam colocadas na língua,
para que assim se tenha um trato mais reverente com o sacramento “terrível”. 246 Neste período se
cria uma linha divisória entre o altar e o povo, clero e leigos, entre os ministros da função
afastamento do povo do altar e o exclusivismo clerical na liturgia faz com que desapareça a
papel do povo se reduz à oferta dos elementos para o sacrifício, ao ósculo da paz e à comunhão.
Da parte dos fiéis prevalece o silêncio, devido, não sobretudo, ao latim, perfeitamente
especialistas.247 A schola cantorum se coloca entre o presbitério e o povo, como ponte entre os
fiéis e os sacerdotes.248
Liturgia Romana. A liturgia franco-germânica, influenciada pela liturgia oriental, provoca uma
245
BOTTE, Bernard. Esboço duma história da liturgia. In: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.). A Igreja em
oração, p. 89.
246
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 111-112, p. 124-126.
247
Cf. BOULET, Denis; MAURICE, Noële. Análise dos ritos e das orações da missa. In: MARTIMORT, Aimé
Georges (Org.). A Igreja em oração, p. 338-339.
248
“Os cantores executam textos litúrgicos reservados antes aos fiéis, as melodias, agora mais ricas e complexas
exigem intérpretes especializados. Os fiéis escutam, deleitam-se e se comovem; trata-se de um novo tipo de
participação na liturgia, menos interior e mais passivo, mas talvez a única possível nas condições de culto daquela
época”. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO,
Dionisio (Org.). A celebração da Igreja 1. Vol. , p. 86.
85
predileção pelo dramático249 e as lutas contra o arianismo levam a uma exaltação da dignidade
divina, substituindo também a idéia de Igreja, “comunidade dos redimidos”, pela concepção de
249
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 100, p. 116.
250
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 109, p. 122.
86
comunitário, concebe-se o culto em vista da salvação do indivíduo. 251 Por isso, multiplicam-se as
A liturgia cristã, diferentemente de muitos cultos não cristãos, exige uma compreensão do
culto que celebra. No início do Cristianismo tinha-se por certo que os ritos litúrgicos, em seus
gestos e palavras, eram imediatamente acessíveis aos neófitos, sem explicação; somente mais
tarde passou-se a oferecer uma interpretação cristã mais profunda deles.253 Surgem então, as
251
Cf. BOULET, Denis; MAURICE, Noële. Análise dos ritos e das orações da missa. In: MARTIMORT, Aimé
Georges (Org.). A Igreja em oração, p. 339.
252
Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO,
Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 92.
253
Cf. Ibidem, p. 95.
87
das missas em função da necessidade pessoal dos sacerdotes, a liturgia para os fiéis começou a
tentar suprir esta lacuna, temos as Expositiones missae, que são uma maneira de explicar a missa
e fomentar sua devoção. São Gregório Magno (540-604), pai da devoção à missa, e Santo Isidoro
mistagógicas dos Padres. Esses escritos inspiraram as Expositiones Missae, que acompanharam e
254
formaram toda a Idade Média na compreensão da celebração eucarística. Tais Expositiones,
explicação de cada parte e das diversas passagens da celebração, enquanto outras se contentaram
Franco-Germânico por Pepino, o Breve, em 754) procura fazer com que os fiéis participem da
missa, respondendo ao Kyrie eleison, ao Dominus vobiscum e cantando o Sanctus, e são também
exortados a participar da procissão das oferendas e do ósculo da paz. Os clérigos, por sua vez, são
obrigados a explicar o culto cristão. Com esse objetivo são escritos os comentários à missa ao
final do século VIII. Até aqui, este esforço de explicar a missa estava baseado nos textos
litúrgicos.
254
Cf. MARSILI, Salvatore. Teologia da celebração eucarística. In: A eucaristia: teologia e história da celebração, p.
100.
255
Há nesses escritos duas tendência: “uma se preocupa com a explicação do teor verbal do rito, salientando o
pensamento de fé contido nas fórmulas; a outra se dedica toda a uma leitura fortemente alegórica, tanto dos gestos
como das palavras da celebração que se tornam assim a cada momento ocasião de novas visões”. MARSILI,
Salvatore. Teologia da celebração eucarística. In: A eucaristia: teologia e história da celebração, p. 101.
88
Um pouco mais tarde, porém, surge um outro gênero de comentário, que prescinde do
alegórico.256 Este gênero, já conhecido na era pré-cristã, não parte do locus teológico da liturgia,
mas de interpretações aleatórias do desenvolvimento exterior do culto, cujos textos naquela altura
começam a se tornar estranhos por causa da língua. Recorre-se, justamente, aos comentários
alegóricos porque a liturgia se tornara obscura para o povo. 257 Nesse contexto, as monições
definitivamente se tornam partes fixas do rito e não motivam mais os fiéis, que apenas assistem a
celebração.
Alcuíno foi quem aplicou primeiro à liturgia romana o método alegórico, embora tenha
sido o seu discípulo seu discípulo Amalário de Metz 258 (na Gália, + 837), quem o utilizou em
Amalário interpreta tudo na liturgia a seu modo: as pessoas, vestes, objetos litúrgicos,
horas, ações, e com toda a classe de alegorias, sejam alusões morais (alegoria moral) ou o
História da Salvação (alegoria rememorativa), ou, finalmente, alusões aos últimos tempos
(alegoria escatológica). Por exemplo, as sete velas que os acólitos levam são os sete dons do
260
Espírito Santo; a subida do Bispo ao trono significa Jesus Cristo sentado a direita do Pai etc.
Estas interpretações revelam uma fantasia e uma criatividade notáveis. Não podemos negar,
contudo, que o gênero de comentários da missa cultivado por Amalário foi, em geral, decisivo
258
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 116, p. 128.
259
Cf. MARSILI, Salvatore. Teologia da celebração eucarística. In: A eucaristia: teologia e história da celebração, p.
101.
260
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 118, p. 131.
261
Cf. Ibidem, n. 121, p. 133-134.
89
sinais das cruzes sobre as oferendas se tornam o tema principal das explicações populares sobre a
missa. Uma poesia didática desta época sugere que os sinais das cruzes devem despertar tanto
missa era, então, vista não tanto como mistério celebrado, mas como uma representação
Mais tarde também Inocêncio III, tentando reagir contra o exagero do alegorismo, se
limita quase por completo à interpretação tradicional da vida e paixão de Cristo, que expõe com
Alberto Magno apresenta uma explicação teologicamente sólida da missa e lança repetidos e
escolásticos, diferentemente do alegorismo, não se atêm ao exterior, mas aos pontos de vista
ser humano por inteiro, sentimentos e razão, modificando assim as disposições interiores,
Foi, pois, a alegoria que deixou vestígios na celebração litúrgica, contribuindo para que a
missa fosse vista como a mais clara representação sagrada. Um exemplo é a concepção da missa
262
Cf. Ibidem, n. 148, p. 156.
263
Cf. MARSILI, Salvatore. Teologia da Celebração Eucarística. In: A Eucaristia. Teologia e história da Celebração,
p. 102.
264
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 151, p. 159.
265
Cf. Ibidem, n. 154, p. 161.
90
Na baixa Idade Média, a interpretação alegórica da missa passou por um período de certa
dando importância cada vez maior à devoção, fundada na audiência do sacrifício da missa e não
favores.268
tentaram possibilitar aos fiéis uma certa participação litúrgica, mesmo que por devoção. O fiel
paixão. Mas como a disposição interior era conduzida e alimentada pelas devoções, infelizmente,
Como vimos foi na Idade Média, que a participação ativa dos fiéis desapareceu
espectador. A reforma carolíngia tenta possibilitar a participação popular, através sobretudo das
Expositiones Missae. Mas é a alegoria, que toca o coração dos fiéis. Porém torna a celebração
266
Cf. Ibidem, n. 158, p. 167.
267
Cf. Ibidem, n. 153, p. 161.
268
Cf. MARSILI, Salvatore. Teologia da celebração eucarística. In: A eucaristia: teologia e história da celebração, p.
92-93.
91
tornando o povo mais passivo, sentimental e afastado do altar. A reforma de Gregório VII
aumenta o poder do clero e, por isso, a missa se enche de devoções particulares e apologias.269
possibilitam o surgimento da Reforma Protestante como resposta à falta da reforma interna que a
são complexos e não é o caso de serem aprofundados. Sabe-se que ele viveu uma realidade
teologia do signo. Chegou mesmo a ter dificuldade com o aspecto visível da própria Igreja.
Quando ensinava os salmos em Wittenberg, de 1513 a 1515 (Dicta super psalterium), sustentava
que a Igreja é uma realidade puramente espiritual e escondida e, por isso, a estrutura da Igreja de
Cristo é invisível aos olhos humanos, tendo unicamente sua visibilidade diante de Deus. 271 É em
função desta eclesiologia espiritual e escondida que Lutero passa estruturar sua teologia
sacramental. Não podendo admitir a visibilidade da Igreja, também não pode admitir a
visibilidade causal dos sinais sacramentais, considerados meros signos motivantes da fé. Desta
269
Orações ditas em voz baixa pedindo perdão pelos próprios pecados ou de outros.
270
Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: Dionisio BOROBIO
(Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 112.
271
Cf. ARNAU-GARCÍA, Ramón. Tratado general de los sacramentos, p. 131.
92
forma, Lutero rejeita de forma absoluta que a graça de Deus dependa de uma ação realizada por
uma pessoa humana, nem mesmo de maneira instrumental (Santo Tomas) ou moral (Duns Scoto)
numa relação pessoal de fé, já que o efeito dos sacramentos é fundamentalmente o perdão dos
pecados e nada mais do que a alimentação da fé. 273 A reflexão de Lutero sobre a liturgia estava
ligada à sua idéia de salvação, isto é, à justificação pela fé e não pelas obras. Por isso, Lutero
queria uma liturgia que promovesse a fé e o amor nas comunidades. Para que isso se efetivasse
era necessário tornar acessível e perceptível no culto que é o próprio Deus que age em relação à
A Reforma, influenciada pelo Iluminismo, propunha um culto que tivesse por objetivo o
Palavra de Deus se torna o centro do culto, com o objeto do ensino religioso e moral. O culto
visava, como meio e fim, a doutrinação e o fomento da virtude humana. 275 A organização da
missa feita por Lutero, nesse anseio pedagógico, converte o prefácio e as demais partes da oração
setembro de 1562), marcam o ponto de partida de toda a renovação litúrgica. O valor sacrifical da
missa é solidamente definido, bem como a legitimidade dos ritos e a dignidade do cânon romano.
272
Cf. De Captivitate Babylonica. In: LUTERO, Martin. WA. Werke–Weimar, 6, 550, 25-27.
273
“Omnia sacramenta ad ficen alendum sunt institura”: LUTERO, Martin. De Captivitate Babylonica. In: WA.
Werke–Weimar, 6, 529, 36.
274
Cf. RIETH, Ricardo Willy. Lutero e o culto cristão, TEAR, n. 9, p. 07-08.
275
Cf. WACHHOLZ, Wilhelm. Liturgia no Iluminismo, TEAR, n. 9, p. 08-09.
276
Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO,
Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 113.
93
Na vigésima quinta sessão é remetida ao Papa Pio V toda a documentação e confia-lhe o cuidado
de Deus, como atenuantes do peso da ameaça da condenação eterna; o Concílio enfatiza que
Cristo age nos sacramentos ex opere operato, proporcionando aos católicos a segurança que a
de não celebrar a missa em “língua vulgar”, mas considerando o grande poder catequético da
missa, manda que durante a celebração “freqüentemente” se explique alguma coisa daquilo que
Trento assume a tarefa de discernir a verdade da doutrina católica, como objeto essencial,
restringe em rejeitar as acusações protestantes que se dirigiam ao rito da missa, sua estrutura e
seus elementos, não realizando uma reforma mais profunda. Portanto, se restringiu à missa como
era descrita nos livros litúrgicos e não como ela era realmente celebrada naquela época. 281 O
Concílio procura, pois, influenciado também pelo Iluminismo, limpar os adornos inúteis e ter
uma liturgia simples e concisa, mas as mudanças na missa são insignificantes. 282
277
Cf. BOTTE, Bernard. Esboço duma história da liturgia. In: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.). A Igreja em
oração, p. 51-53.
278
Cf. LIBÂNIO, João Batista. A volta à grande disciplina: reflexão teológico-pastoral sobre a atual conjuntura da
Igreja, p. 45.
279
“Mandat sancta Synodus pastoribus et singulis curam animarum gerentibus, ut frequenter inter Missarum
celebrationem vel per se vel per alios, ex his, quae in Missa leguntur, exponant atque inter cetera sanctissimi huius
sacrificii mysterium aliquod declarent, diebus praesertim Dominicis et festis”. DENZINGER, Enrique. El Magistério
de la Iglesia, DS n. 1749.
280
Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO,
Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 113.
281
Cf. MARSILI, Salvatore. Teologia da celebração eucarística. In: A eucaristia: teologia e história da celebração, p.
102.
282
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 186 e 190, p. 191 e 195.
94
Entretanto, entra num período de hibernação ou petrificação total, pois após mil e quinhentos
anos de uma relativa evolução, supervisionada mais ou menos pela autoridade suprema, segue-se
do culto dos santos que tende a submergir o ciclo dos mistérios redentores, (...) o juridismo e a
casuística litúrgicos tomaram lugar cada vez mais preponderante na prática do culto e no
participação dos fiéis nas orações do sacerdote, oferecendo o sacrifício em íntima união com ele,
não entrava na preocupação da época. Pois, os católicos, diante da negação dos reformadores
diferença do sacerdócio comum. Nesse contexto, aos fiéis se recomenda a comunhão freqüente,
porém não se insiste na idéia de comunhão no sacrifício de Cristo. 286 O povo afastado
secundários, para devoções particulares que compensam o vazio e a inadequação do culto em sua
expressão oficial”.287
A liturgia medieval, purificada pelo Concílio de Trento, faz com que desapareçam os
283
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 186 e 190, p. 191 e 195.
284
BOTTE, Bernard. Esboço duma história da liturgia. In: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.). A Igreja em
oração, p. 54-55.
285
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 191, p. 196.
286
Cf. Ibidem, n. 193, p. 197-198.
287
BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO, Dionisio
(org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 120.
95
sacerdote. Era proibido por decreto de Alexandre VII (1661) traduzir os textos do Missal Romano
em outras línguas, sob pena de excomunhão. A mentalidade de que os fiéis não deveriam se
servir das orações latinas do Missal, mas venerá-las sem compreender através do véu do mistério,
devocionários com explicações gerais sobre a missa: seu valor e seus frutos como representação
da paixão de Cristo. Entretanto, o empirismo iluminista faz com que a alegoria vá perdendo a sua
eficácia, bastando ao povo seguir as cerimônias silêncio. Para suprir tal dificuldade, os
Como tais devocionários não chegaram à grande massa, os jesuítas nas missões populares
(século XVIII) faziam os fieis intervir na missa, através das devoções (como o santo rosário) ou
do canto em comum, independentemente do rito. Tal método pode ser considerado antilitúrgico
estes cantos e orações traziam em seus textos a significação da missa, isto é, a memória da paixão
e do sacrifício do Senhor.290
288
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n.195-196, p. 199-200.
289
Cf. Ibidem, n. 196-197, p. 200-201.
290
Cf. Ibidem, n. 198-199, p. 202.
96
Diante dessa situação surgem reações. Liturgistas, com idéias iluministas, buscam uma
liturgia despojada de todo excesso sentimental trazido pelo Barroco e propõem voltar a uma
educativo prático, sem conexão com mistério. O desejo era também a participação dos fiéis. Por
isso, ansiava-se pela difusão de devocionários que trouxessem as orações da missa traduzidas.
Outros postulados foram propostos pelo Sínodo de Pistoya (1786) tais como: toda a comunidade
deveria celebrar somente uma missa ao mesmo tempo, acompanhada pelo povo com cantos em
língua vulgar. Propugnava-se também pela redução do número de altares. Tais proposições foram
consideradas temerárias por Pio VI através da bula Auctorem fidei e tiveram que esperar o
devido à constituição hierárquica da Igreja e pela tradição. O Movimento exalta a beleza das
orações latinas e a dignidade das cerimônias. Por isso, insiste-se na restauração do texto litúrgico
em sua integridade em latim e se condena qualquer mescla de textos em língua vulgar na missa
sublinha que o papel do povo é de espectador da ação sagrada e não aceita qualquer intento de
explicação na liturgia. Pois se afirmava que a liturgia é uma obra perfeita, não devendo ser
alterada ou modificada.
Como vimos, a reação tridentina à ânsia reformadora protestante leva a uma liturgia
291
Juntamente com toda a liturgia, a monição também entra na uniformização e perde seu
aspecto de motivação das disposições pessoais dos fiéis. Trento mantém o latim na liturgia,
porém para garantir alguma participação aos fiéis, introduz explicações que perduram até hoje
através dos comentários nas celebrações. A participação do povo no Mistério Pascal é desviada
para outras fontes. Os fiéis mais abastados participam através de devocionários que
representavam uma ânsia de instruir sobre a missa, ainda hoje perceptível em nossos folhetos
litúrgicos. A maioria dos fiéis, os mais pobres, participavam através do canto popular ou de
orações (por exemplo, o rosário), criando predileção popular pelas devoções em detrimento da
liturgia. Nesse período pós Concílio de Trento, devocionários, devoções e cânticos populares,
procuram motivar de certa forma a disposição pessoal na liturgia, porém os fiéis continuam cada
vez mais afastados da celebração do Mistério Pascal. Entretanto, essas formas de participação
Diante dessa situação, surgem tentativas de reforma para promover a participação plena
na liturgia, que a época não permitiu que fossem avante, porém abrem caminho para que surja o
Movimento Litúrgico.
O ideal da participação ativa foi lançado já nos finais do século XVII, como resultado do
estudo da Antigüidade cristã. Tomou forma nas liturgias neo-galicanas, que já se utilizavam o
forma romana original. Começa-se a recuperar a história da liturgia, levando estudiosos a uma
292
Cf. CLERK, Paul de. La participacion en la liturgia; la aportacion de las ciencias humanas, Phase, 179, p. 361.
98
Esse ideal da participação ativa foi abraçado pelo Movimento Litúrgico, lançado no final
do século XIX por Dom Próspero Guérenger na França e assumido como experiência pelas
litúrgica, que se haviam perdido, buscando nos Santos Padres as fontes da liturgia. O Movimento
Litúrgico sublinha aspectos mais pastorais para se levar a uma maior participação do povo na
liturgia.293
No século XX, o papa Pio X (22.11.1903) promulga um documento sobre a música sacra,
no qual declara a participação ativa na liturgia como fonte da espiritualidade cristã: “Sendo de
fato nosso vivíssimo desejo que o espírito cristão refloresça em tudo e se mantenha em todo os
fiéis, é necessário prover, antes de qualquer coisa, à santidade e dignidade do templo, onde os
fiéis se reúnem precisamente para haurirem esse espírito da sua primária e indispensável fonte: a
Lambert Beauduin apresentou seu relatório sobre a participação dos fiéis no culto cristão. O
Movimento segue com semanas de estudo de liturgia, revistas de liturgia e a criação de centros de
estudo.
Um marco no Movimento Litúrgico é a encíclica do papa Pio XII, “Mediator Dei”, que
esclarece conceitos e incentiva o Movimento. Quanto à participação, o papa afirma que deve ser
externa e interna, dando, de forma integrada, a participação plena. 295 Ressalta a disposição
293
Cf. MARSILI, Salvatore. Rumo a uma teologia da liturgia. In: A liturgia momento histórico da salvação, p. 88-95.
294
PIO X, SS. Moto próprio sobre liturgia e musica sacra: tra le sollecitudim: Introdução, p. 05.
295
Cf. PIO XII, SS. Carta encíclica Mediator Dei, p. 14-15.
99
interior, quando afirma que os sacramentos são ações do próprio Cristo, mas “para terem a devida
Na Instrução sobre a música sacra e a liturgia, (1956) o papa Pio XII discorre sobre os
princípios gerais da participação dos fiéis. Afirma que a participação deve ser antes de tudo
interna, exercida pela piedosa atenção do espírito e pelos afetos do coração, e é tal participação
que se manifesta por atos exteriores.297 O objetivo principal da participação é pois, “um culto
mais perfeito a Deus e a edificação dos fiéis”. 298 O documento enfatiza a participação interna
“missas dialogadas”, onde os fiéis utilizavam-se dos missais para expressar a dimensão interior
da participação através das orações dita em voz alta. 299 Entretanto, a liturgia continua em latim.
Por isso, a explicação nascida no Concílio de Trento, se torna comentário que vai cada vez mais
296
Ibidem, p. 17.
297
Cf. PIO XII, SS. Instrução sobre música sacra e a sagrada liturgia, n. 22.
298
Ibidem, n. 23.
299
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 216, p. 223.
100
se descrever pela palavra a imagem que não se podia ver. 300 Com a Instrução sobre a música
sacra, a figura do comentador é incentivada, de tal modo que este substitui o diácono na direção
do povo com as monições. As monições eram compreendidas como meios de determinar a atitude
exterior do fiel na celebração e instrumentos para explicar o motivo pelo qual se deve em certos
celebração e não ajudar os fiéis a participar. Todas as mudanças pensadas pelo Movimento
Litúrgico são levadas a efeito pelo Concílio Vaticano II, que tenta atingir o equilíbrio e a
Desde o início do século vinte com o papa Pio X, já se alertava para a participação dos
fiéis na liturgia como fonte primordial e indispensável do espírito cristão. Intensificou-se assim
uma linha mais especificamente pastoral dentro do Movimento Litúrgico. O Concílio Ecumênico
Sacrosanctum Concilium.302
que os fiéis se acerquem da liturgia com disposições de reta intenção (cum recti animi
dispositionibus) e “sintonizem a sua alma com as palavras e cooperem com a graça do alto, a fim
A natureza da liturgia (cf. SC 5-10) exige a participação dos fiéis (cf. SC 11-13) no
Mistério Pascal. Para que tal participação aconteça é preciso que os fiéis sejam formados para a
300
Cf. DELLA TORRE, Luigi. Corso di pastorale liturgica: la pastorale liturgica dei tempi sacri e della messa, p. 60.
301
Cf. MARTIMORT, Aimé Georges. Estrutura e leis da celebração litúrgica. In: MARTIMORT, Aimé Georges
(Org.). A Igreja em oração, p. 182.
302
Cf. MARTÍN, Julián L. No espírito e na verdade: introdução antropológica à liturgia, p. 398.
101
participação. (Cf. SC 14 e 19) O Concílio considera que tal formação depende dos pastores (cf.
participação plena e criativa foi uma exigência demasiado forte para certas pessoas. Isto levou, de
selvagens.304 De ambos os lados se padeceu bastante. Tanto o fechamento como a abertura sem
textos celebrativos descurados de sua riqueza ritual, com pretensões didáticas e pedagógicas.
conciliares possibilitou uma visão racionalista da liturgia, porém não podemos esquecer que a
liturgia é “antes de tudo simbólica, por isso, não se entende ou se explica tanto como se percebe;
303
Cf. JOÃO PAULO II, SS. Carta Apostólica sobre o XXV aniversário da Sacrosanctum Concilium sobre a
sagrada liturgia, p. 22.
304
Cf. JOÃO PAULO II, SS. Carta Apostólica sobre o XXV aniversário da Sacrosanctum Concilium sobre a
sagrada liturgia, p. 21.
305
GOENAGA, Jose Antonio. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO,
Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 138.
102
celebrações didáticas ou moralizadores surgem as liturgias festivas que querem devolver ao culto
a fantasia simbólica.
ministro competente, em momentos mais oportunos, com termos prefixados por escrito ou
Quanto às monições, a Instrução Geral sobre o Missal Romano declara que cabe aos
(monitiones) e fórmulas de introdução e conclusão previstas no próprio rito”. 307 Por sua natureza,
disposições dos fiéis na celebração, de acordo com “as verdadeiras condições da comunidade”.
Por isso “tais exortações não devem, necessariamente, ser proferidas na forma contida no Missal,
palavra por palavra”.308 Chegamos, então, ao ponto em que queríamos no decorrer deste capítulo:
o surgimento das monições, de acordo com a reforma do Concílio Vaticano II. Assim, poderemos
no próximo capítulo estudar algumas destas monições, sob o ponto de vista de como podem ser
Neste capítulo, vimos como a motivação das disposições pessoais se inicia desde a liturgia
vetero-testamentária, na qual o liturgo procura, a partir das disposições pessoais dos participantes,
formar os motivos para um verdadeiro encontro com Deus. Jesus nasce nesse ambiente que forma
a disposição pessoal de entrega a Deus no diálogo da Aliança. Através de sua vida, de seu estilo
306
Ibidem, p. 156.
307
IGMR, n. 31.
308
Idem.
103
Cremos que a Igreja, apesar de se inspirar no processo motivacional de Jesus, onde as dimensões
mesmo equilíbrio. Nos primeiros tempos, a motivação era realizada pelo convite-monição do
disposição pessoal a partir mistagogia. Na Idade Media, a liturgia se transforma, pouco a pouco,
busca levar o fiel a ver no “espetáculo da missa” a realização da paixão de Cristo. A reação do
de comentários de diversos tamanhos, com explicações sobre tudo o que acontece na celebração,
ou se torna “mini-homilia”.
Por isso, postulamos que as monições, como instrumentos de motivação das disposições
pessoais do fiel, no dizer de Aimé Georges Martimort, “... deveriam ser breves e hieráticas,
guiando o povo à oração e não a substituírem, longe de a cobrir e dissimular. Não seriam
309
Princípios de liturgia. In: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.). A Igreja em oração, Barcelos: Ora & Labora,
1965, p. 157. Obs: Trecho suprimido na edição brasileira: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.). Princípios de
liturgia, p. 142. (A Igreja em Oração 1)
104
eucarística, a fim de que o fiel possa receber os frutos da oferta salvadora de Cristo. Na história,
tal participação passou por vários percalços. Após o Concílio Vaticano II e sua reforma litúrgica,
eficácia participativa. Neste capítulo, de forma muito prática, queremos demonstrar que a
monição é um instrumento de motivação das disposições pessoais do fiel. E a partir dessa análise,
forneceu todo o substrato antropológico para a análise do processo motivacional e o segundo nos
deu o substrato teológico formado na História. A partir desses dois substratos podemos analisar
as monições como motivadoras das disposições pessoais do fiel e fornecer perspectivas para uma
eficácia participativa.
Como vimos, há duas coisas importantes no processo de participação litúrgica, que giram
Concomitantemente, ao lado de uma boa formação das disposições, vai sendo forjada a
verdadeira motivação para a participação na celebração litúrgica. Uma vez que esta base esteja
monições. Elas ajudam sempre a retomar estas motivações e a direcioná-las para a celebração do
Vimos que a participação do povo no decorrer dos séculos foi diminuindo gradativamente
pela separação dos fiéis do altar e pela complicação da liturgia. Por isso, surgiram tentativas de
exigidas pelo Concílio de Trento. Mesmo na liturgia renovada pelo Concílio Vaticano II
vernácula, simplificação das celebrações, centralidade do Mistério Pascal etc), sobretudo pela
facilitação à participação externa. Entretanto “com a deficiente formação litúrgica nos seminários
indispensáveis e novo rubricismo, na execução material dos ritos e no uso servil dos folhetos”. 310
Não era sem motivo que o Concílio já insistia na formação litúrgica para possibilitar a
cai nos extremos do neo-rubricismo ou da improvisação arbitrária, a disposição interior dos fiéis
acaba sendo desmotivada, gerando uma apatia celebrativa. Tudo isto que dizer também que
310
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Animação da Vida Litúrgica no Brasil, n. 20.
107
A análise da monição litúrgica sob uma perspectiva motivacional nos levará a verificar
como ocorre o processo da motivação. Isso nos ajudará a investir, cada vez mais, no estilo de
comportamento motivacional, a fim de que a liturgia seja eficaz, com seus participantes bem
dispostos a viver com a mais reta intenção o mistério celebrado (cf. SC 11).
2. A Monição
Antes do mais, é preciso frisar que a monição é um elemento litúrgico. Isto quer dizer que
ela não está a serviço da racionalidade explicativa, como os comentários que pretendem explicar
a missa, mas é um convite ao fiel para se dispor inteiramente a entrar no Mistério celebrado,
Atitudes externas, gestos, cantos e respostas rituais, são necessários à participação na sua
dimensão externa, mas não basta. É preciso fazer com que o fiel “penetre profundamente na
oração e na compreensão dos ritos. As monições contribuem muito para criar ou manter um
pelo sacerdote ou comentador, se dirigem aos fiéis como exortações para melhor os introduzir na
monições ou proclamações que ainda permanecem na liturgia. (por exemplo, flectamus genua,
levate, ite missa est etc.) Tais monições também podiam ser, como no rito galicano, uma
311
MARTIMORT, Aimé Georges. Estrutura e leis da celebração litúrgica. In: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.).
A Igreja em oração, p. 157.
312
Cf. Vocabulário. In: Dicionário de liturgia, p. 1270.
313
Cf. IGMR, n. 105 b.
108
exortação dirigida ao povo antes de uma oração de bênção. Nessa exortação se expõe o conteúdo
Nas liturgias latinas, de modo geral, acabou sendo o presidente quem convida o povo à
oração. Em certas ocasiões, monições mais desenvolvidas são dirigidas pelo bispo, como nas
ordenações, na consagração de uma igreja, de um altar etc. Na maior parte das vezes, porém, o
convite se reduziu a esta simples palavra: “oremos”. “A liturgia gaulesa propunha uma monição
do celebrante antes de cada oração sacerdotal: uma delas, mais desenvolvida, era quase uma
monições.
A decadência litúrgica da Idade Média ocidental fez com que se descurassem as atitudes
atitudes do clero e dos monges. Os livros litúrgicos não mais previam a participação do povo. No
exercício da liturgia, o diácono é quem dirigirá as atitudes dos fiéis e jamais se esquecerá que se
trata de realizar e exprimir uma atitude interior. Quanto a esse último aspecto, Santo Tomás de
Aquino afirmava que os diáconos, no exercício de sua função, conduzem os fiéis na participação,
rito na celebração litúrgica, tendo em vista a permanência do latim na liturgia. Nessa mesma
linha, a figura do “comentador” é delineada na instrução sobre a Música Sacra do papa Pio XII de
314
MARSILI, Salvatore. Das origens da liturgia cristã às caracterizações rituais. In: MARSILI, Salvatore et al.
Panorama histórico geral da liturgia, p. 69.
315
MARTIMORT, Aimé Georges. Estrutura e leis da celebração litúrgica. In: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.).
A Igreja em oração, p. 156.
316
“... Eos sacris admonitionibus disponunt ad sacramentorum receptionem”. In: TOMÁS DE AQUINO. Summa
Theologiae, 3ª parte, q. 64, art. 1, p. 141.
109
ativa dos fiéis na missa e nos atos litúrgicos, através de explicações dos próprios ritos ou orações
e dirigir a participação externa dos fiéis, a saber, suas respostas, orações e cantos. Segundo a
admite a idéia de estimular o povo na participação, quando prevê uma catequese mistagógica,
mais diretamente litúrgica, exortando que “nas próprias cerimônias sejam previstos, se necessário
for, breves esclarecimentos, a serem proferidos pelo sacerdote ou pelo ministro competente, em
momentos mais oportunos, com termos prefixados por escrito ou semelhante” (SC 35, 3).
ainda por um ministro competente (comentarista), “devem ser breves e hieráticas, devem guiar o
povo na oração, não a substituírem, sobretudo devem conduzir os fiéis à oração do celebrante,
longe de a cobrir ou dissimular. Não são explicações, digressões que interrompam a ação
folhetos litúrgicos. O que Aimé Georges Martimort alertou logo após o Concílio realmente
aconteceu. A difusão de folhetos litúrgicos objetivava conduzir a participação dos fiéis e assim se
não ajudam os fiéis a entrar no Mistério. O comentário tenta transformar a verdadeira monição
dos fiéis, foram substituídas por instruções didático-explicativos que invadiram as celebrações
litúrgicas.
motivação da disposição pessoal, sendo breves e hieráticas, comparando esse processo com os
3. Análise de Monições
escolhemos apenas algumas, cuja importância é notada para o nosso trabalho. Num primeiro
momento escolhemos três monições da Semana Santa, uma do Domingo de Ramos e duas da
Vigília Pascal, que serão analisadas depois de discorrermos sobre o Mistério celebrado, ao qual a
disposição pessoal dos fiéis deve estar motivada. Por isso, traçamos uma teologia da liturgia da
Semana Santa e do Tríduo Pascal. Num segundo momento listamos alguns tipos de monições do
Missal Romano e aplicamos a análise estrutural e motivacional. Num terceiro, faremos uma
análise comparativa com os comentários da Semana Santa do ano de dois mil e dois, procurando
verificar como as verdadeiras monições motivam e como os comentários apenas tentam motivar.
antes de falar das primeiras monições acima mencionadas, tratar da teologia da Semana Santa e
do Tríduo Pascal.
111
comemora os diversos aspectos dessa obra redentora, tendo como base a comemoração da
ressurreição do Senhor no domingo, nossa Páscoa semanal. Porém, uma vez por ano, na
Não se sabe exatamente quando a Igreja começou a celebrar a Páscoa anual, mas se supõe
que “ao lado do domingo como dia regular de comemoração da morte e ressurreição de Cristo,
houve também desde muito cedo, uma comemoração anual da Páscoa”.321 Esta comemoração já
estava estruturada na segunda metade do século II, por causa da famosa controvérsia pascal.322
Porém, seu início deve ter-se dado muito antes, pois já temos em 1 Cor 5,7ss (Cristo nossa páscoa
foi imolado) uma clara indicação de que festa anual da páscoa hebraica tinha tomado um sentido
tipicamente cristão. Também temos indicações de uma festa de páscoa cristã no relato da paixão
feito por São João, que tem semelhanças com a prática litúrgica das igrejas da Ásia menor,
enquanto a ceia pascal nos evangelhos sinóticos tem semelhança com a páscoa litúrgica das
320
Cf. NORMAS universais sobre o ano litúrgico e o calendário, n. 1.
321
ADAM, Adolf. O ano litúrgico, p. 59. OBS: o itálico pertence ao texto original
322
“O objetivo desta disputa era saber se a comemoração anual do mistério pascal deveria ser celebrada sempre no
dia 14 do mês de Nisã, dia da lua cheia e primeiro mês da primavera, independentemente de um determinado dia da
semana, ou no domingo seguinte ao 14 de Nisã. A primeira modalidade era observada principalmente pelos cristãos
da Ásia Menor e da Síria, os quais por isso, eram chamados também de quartodecimanos, ao passo que Roma e a
maior parte das outras Igrejas adotavam a segunda modalidade... O primeiro Concílio Ecumênico de Nicéia,
celebrado em 325, pôs termo às disputas acerca da data da Páscoa, prescrevendo que a Páscoa devia ser sempre
celebrada no domingo depois da primeira lua cheia da Primavera”: ADAM, Adolf. O ano litúrgico, p. 60.
112
depois das leituras, se celebrava o batismo e a vigília terminava quase de manhã com a eucaristia.
páscoa anual, celebrada no domingo seguinte ao dia catorze de nisã. (sexta-feira, sábado e
domingo) No século quatro, por causa da historização dos relatos evangélicos na liturgia,
Tríduo Pascal, que passou a ser composto de quinta-sexta-sábado. A Sexta-feira Santa se torna
central pela prática devocional medieval e a Vigília Pascal desaparece, pois era celebrada no
sábado de manhã. Com o restabelecimento da Vigília Pascal (1951) e reforma da Semana Santa
(1955) por Pio XII, o Tríduo Pascal recuperou sua unidade autêntica.323
Então, o Tríduo Pascal inicia-se com a missa vespertina na Ceia do Senhor e se encerra
com as vésperas do domingo da Ressurreição, tendo como centro, não a morte do Senhor, mas a
Vigília Pascal, na qual a Igreja “espera” pela Ressurreição de Cristo e celebra os sacramentos de
inseparavelmente da morte e ressurreição de Cristo. Cada dia do Tríduo requer o outro e se abre
para o outro, tal como a idéia de ressurreição supõe a da morte. (...) O Tríduo é a Páscoa
323
Cf. BERGAMINI, Augusto. Tríduo Pascal. In: Dicionário de liturgia, p. 1198-1199.
324
Cf. Normas universais sobre o ano litúrgico e o calendário, n. 18, 19 e 21. In: PAULO VI, SS. Missal Romano.
325
BERGAMINI, Augusto. Tríduo Pascal. In: Dicionário de liturgia, p. 1198-1199.
113
Pascal e possui um tom festivo. Os textos bíblicos (páscoa hebraica, Ex 12, 1-8. 11-14; a ceia
pascal cristã, 1 Cor 11, 23-26; e o Cristo servo, Jo 13, 1-15) realçam o fato de que Cristo nos deu
a sua páscoa no rito da ceia, e a Igreja repete a Ceia para perpetuar a páscoa de Cristo. Inserida no
ritual da páscoa hebraica, a Ceia de Jesus toma plenamente o significado desta (memória do
na “passagem” Cristo entre nós, tornando-se, assim, a proclamação da Páscoa definitiva. Por
isso, a celebração da Ceia do Senhor exige por parte da Igreja o vínculo indissolúvel, no plano da
vida, entre o serviço e a caridade fraterna como co-participação no mistério da paixão do Senhor
(o rito do “lava pés”). No final da missa as sagradas espécies são transladadas para um lugar
Na Sexta-feira Santa, o primeiro dia do Tríduo Pascal, a Igreja celebra o mistério da morte
de Cristo com uma solene liturgia da palavra. Neste dia de jejum pascal, significando o dia em
que o esposo foi tirado, não se celebra a eucaristia. Após as leituras (o quarto poema do servo de
Javé, Is 52, 13-15; 53, 1-12; o texto sobre o sacerdócio de Cristo, Hb 4, 14-16; 5, 7-9; e o relato
da paixão segundo João, Jo 18 e 19) segue-se a oração universal. No lugar da do rito eucarístico
exprime uma teologia da cruz inspirada em são João. A Igreja vê a sexta-feira como dia de
amorosa contemplação do sacrifício cruento de Jesus, a morte gloriosa de Cristo como fonte de
326
Cf. BERGAMINI, Augusto. Tríduo Pascal. In: Dicionário de liturgia, p. 1199-1200. Cf. também ALLIAGA,
Emílio. O Tríduo Pascal. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 3, p. 103.
114
O Sábado Santo, o segundo dia do Tríduo Pascal, é um dia de jejum e alitúrgico. Nesse
dia, pela manhã, também se realiza a preparação imediata dos eleitos que serão batizados,
significando a separação definitiva da idolatria e a sua união a Cristo. A oração deste dia celebra
o repouso de Cristo no sepulcro, depois do vitorioso e glorioso combate da cruz. Nesse dia se
medita sobre o mistério salvífico da descida de Cristo ao mundo da morte, o encontro misterioso
com todos os que esperavam a abertura das portas do céu e a espera de Cristo pela ressurreição.328
ritmo progressivamente ascensional que desemboca na liturgia eucarística. Depois dos ritos
iniciais (bênção do fogo e precônio pascal), celebra-se a liturgia da Palavra, em que são propostas
nove leituras. A esperança da Igreja – na noite pascal – funda-se nas promessas de Deus e
reaviva-se pelas leituras dessas promessas, pelos textos que falam de Abraão, do êxodo e da terra
prometida, antes de se fazer o anúncio da ressurreição. O sentido mais autêntico da Vigília Pascal
é o fato do cristão estar motivado para viver a Páscoa celebrada no rito e dispor, cada vez mais, o
seu coração para viver neste mundo como peregrino em busca da páscoa eterna. Seguem-se a
iniciação cristã. Pelos sinais sacramentais da luz, da água, do pão e do vinho – esclarecidos e
feitos presentes pela Palavra de Deus – significa-se e faz-se presente a realidade da páscoa do
Senhor para que se torne também páscoa do cristão e este possa expressá-la em sua vida. O
327
Cf. BERGAMINI, Augusto. Tríduo Pascal. In: Dicionário de liturgia, p. 1200. Cf. também ALLIAGA, Emílio. O
Tríduo Pascal. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 3, p. 106.
328
Cf. ALLIAGA, Emílio. O Tríduo Pascal. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 3, p. 111.
115
simbolismo da Vigília Pascal consiste em ser uma noite vencida pelo dia, na qual a vida da graça
brota da morte de Cristo.329 A liturgia desse dia de páscoa celebra o acontecimento pascal como
o dia de Cristo, o Senhor. As leituras bíblicas contêm o querigma pascal, acentuam o valor
Pascal, Cristo aplica, de modo especial à Igreja, o poder salvífico da sua morte e ressurreição, e o
Pascal, sob a esteira da prática do jejum. Os seis dias da Semana Santa já estavam em pleno vigor
nos primeiros anos do episcopado de santo Atanásio (+ 373). 332 Sabes-se que o jejum de
preparação para o Tríduo, se estendeu a três semanas e depois a seis, o que deu a quaresma
quaresma, é a última etapa da preparação para o Tríduo Pascal e “visa recordar a paixão de
Cristo, desde sua entrada messiânica em Jerusalém”.333 Por isso, o Domingo de Ramos e da
Paixão do Senhor é a abertura solene da grande semana que tem por centro o Mistério Pascal de
329
Cf. BERGAMINI, Augusto. Tríduo Pascal. In: Dicionário de liturgia, p. 1200-1201. Cf. também ALLIAGA,
Emílio. O Tríduo Pascal. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 3, p. 112-113.
330
Cf. ALLIAGA, Emílio. O Tríduo Pascal. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 3, p. 112-
113.
331
CHAVASSE, Antoine. O Ciclo Pascal. In: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.). A Igreja em oração, p. 800.
332
Cf. BELLAVISTA, Joan. Preparação para a Páscoa: a quaresma. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na
Igreja. Vol. 3, p. 144-146.
333
Cf. Normas universais sobre o ano litúrgico e o calendário, n. 31. In: PAULO VI, SS. Missal Romano.
116
Jesus Cristo. A missa desse dia, que já existia no século IV, tem por finalidade preparar
imediatamente a Páscoa. Por isso a relação estreita com o evangelho pascal da paixão segundo
Toda esta preparação em Roma foi organizada em vista da solene reconciliação dos
penitentes na quinta feira santa, do batismo pascal dos catecúmenos e também da celebração mais
autentica da Páscoa anual para todo o povo cristão. “Este tempo apresenta-se, pois, como tempo
penitencial, tempo batismal e tempo de vida cristã mais intensa”. 335 É um pouco nesta linha que
Nas férias da Semana Santa se faz uma leitura semicontínua do evangelho de São João, no
qual se mostra o confronto de Jesus com o poder do mal. A Semana Santa traz, pois, a unidade do
mistério de sofrimento e glorificação de Jesus, em toda a sua riqueza sacramental. 336 Na Quinta-
feira Santa pela manhã o bispo concelebra “a missa com os seus presbíteros, benze os santos
sacramentos ao Mistério Pascal, que começa a celebrar-se de forma tão solene com a
3.2.1 Análise do processo motivacional das monições das três monições da Semana Santa
334
Cf. BERGAMINI, Augusto. Tríduo Pascal. In: Dicionário de liturgia, p. 1198-1199.
335
Cf. CHAVASSE, Antoine. O Ciclo Pascal. In: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.). A Igreja em oração, p. 807.
336
Cf. BELLAVISTA, Joan. Preparação para a Páscoa: a quaresma. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na
Igreja. Vol. 3, p. 159.
337
Cf. Normas universais sobre o ano litúrgico e o calendário, n. 31. In: PAULO VI, SS. Missal Romano.
338
BELLAVISTA, Joan. Preparação para a Páscoa: a quaresma. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na
Igreja. Vol. 3, p. 159.
117
No início da Celebração após a saudação, temos a rubrica sobre a monição: “Em seguida,
por breve exortação, os fiéis são convidados a participar ativa e conscientemente da celebração
Meus irmãos e minhas irmãs: durante as cinco semanas da Quaresma preparamos os nossos
corações pela oração, pela penitência e pela caridade. Hoje aqui nos reunimos e vamos
iniciar, com toda a Igreja, a celebração da Páscoa de nosso Senhor. Para realizar o mistério
de sua morte e ressurreição, Cristo entrou em Jerusalém, sua cidade. Celebrando com fé e
piedade a memória desta entrada, sigamos os passos de nosso Salvador para que, associados
pela graça à sua cruz, participemos também de sua ressurreição e de sua vida (MR, p. 220 –
221). 339
e da Paixão do Senhor. Logo após a saudação do presidente e antes da bênção dos ramos. O
presidente da celebração pode adequar a monição sem, entretanto, desvirtuar o seu sentido
Cristo, através da Liturgia do Domingo de Ramos como início da Semana Santa. Este convite faz
memória do que Deus realizou nos participantes através da penitência, da oração e da caridade,
que como vimos são a via de preparação para a Semana Santa e o Tríduo Pascal. Trata-se da
preparação dos corações, isto é, das disposições interiores para celebrar o mistério. O presidente
lembra o “hoje” litúrgico no qual com toda a Igreja se inicia a celebração da Páscoa do Senhor,
tendo em vista que esse domingo é a última etapa para a preparação para o Tríduo sagrado. Em
seguida se faz memória do evento salvífico vinculando a entrada messiânica em Jerusalém com a
sua paixão, morte e ressurreição. Na última parte, o presidente exorta aos fiéis a celebrar a
339
Missal Romano (MR) de SS. Paulo VI. Cf. bibliografia, e o respectivo número da página.
118
memória dessa entrada de Jesus em Jerusalém com as disposições interiores de fé e piedade, isto
é, na confiança, na entrega a Deus e sem distrações. Do mesmo modo que Jesus convidou Zaqueu
(Lc 19, 1 – 10) e atendeu ao pedido do centurião (Lc 7, 1 – 10), o que se requer aos fiéis é que
consigam ver, além dos sinais sagrados, a presença salvadora de Jesus. Nesse momento se faz um
vínculo importante, no hoje da liturgia os fiéis são convidados, através da celebração, a seguir os
passos do Senhor em sua Páscoa, vinculando a idéia de que pela celebração, seguindo os passos
de Jesus, se pode associar pela graça a sua cruz e ressurreição. Na medida em que os fiéis se
unem com fé e piedade ao mistério da cruz do Senhor pela celebração, a Igreja afirma que eles
serão participantes da ressurreição do Cristo. O fiel pode assim participar da Páscoa de Cristo, ou
melhor dizendo, ser participante dela, e assim o Mistério Pascal transforma a vida do fiel pela
Esta monição tem todas as características litúrgicas, pois não está explicando nada e nem
quebrando o rito, mas ao contrário, convidando os fiéis a entrar nele a fim de seguir pela via
viveu anteriormente para entrar em um novo momento ritual, com tamanha concisão e
Na Vigília Pascal há duas monições: a primeira introduz a procissão com o Círio Pascal e
Meus irmãos e minhas irmãs. Nesta noite santa, em que nosso Senhor Jesus Cristo passou
da morte à vida, a Igreja convida os seus filhos dispersos por toda a terra a se reunirem em
vigília e oração. Se comemorarmos a Páscoa do Senhor ouvindo sua palavra e celebrando
seus mistérios, podemos ter a firme esperança de participar do seu triunfo sobre a morte e de
sua vida em Deus (MR, p. 271).
Essa primeira monição da Vigília Pascal está no início da celebração, logo após a
saudação e antes da bênção e procissão com o círio pascal. Nesta monição, após dirigir-se à
ressurreição do Senhor, através simbolismo da luz que vence as trevas da morte. Diante da
realidade da páscoa da ressurreição, os fiéis são convidados a celebrar essa realidade em vigília e
podemos participar do seu triunfo sobre a morte e chegar à vida eterna. A monição afirma que,
“se comemorarmos a Páscoa do Senhor”, nos tornamos participantes da sua ação salvífica. Por
isso, na medida em que o fiel, com a sua disposição interior, se sintonizar com a celebração da
prometida.
Meus irmãos e minhas irmãs, tendo iniciado solenemente esta vigília, ouçamos no
recolhimento desta noite a Palavra de Deus. Vejamos como ele salvou outrora o seu povo e
nestes últimos tempos enviou seu Filho como Redentor. Peçamos que o nosso Deus leve à
plenitude a salvação inaugurada na Páscoa (MR, p. 279).
120
Esta monição é proferida antes das leituras da Vigília Pascal e após o canto do precônio
ouvirem a Palavra de Deus, perfazendo o caminho da história da Salvação, desde a Criação até o
evento último, Jesus Cristo. Desta forma, os fiéis são convidados a contemplar a salvação de
Deus na História e, ao mesmo tempo, a se disporem a melhor participar desta salvação, realizada
De forma geral, as monições têm por finalidade situar e introduzir os fiéis no momento
fiéis podem “preparar o coração” para, com o “ânimo sereno”, se unirem ao Cristo Morto e
Ressuscitado e se entregar com Ele ao Pai. A monição funciona, portanto, como uma mistagogia,
auxiliando toda a assembléia a celebrar bem o Mistério Pascal. Para saber o que delas podemos
apreender, analisaremos sua estrutura, a fim de melhor entender o nosso estilo de comportamento
motivacional.
de Ramos indica que a intenção é a participação ativa e consciente. Também é dito que não se
precisa usar as palavras ipsis litteris do missal, o que, de certa forma, é até preferencial, pois se
correria o risco de transformara monição numa simples leitura. Entretanto a editio typica tertia do
Missale Romanum, em sua Institutio Generalis Missalis Romani, tenta garantir que a adaptação
pelo celebrante das monições não deve prejudicar a objetividade 340 do Mistério celebrado, por
340
De acordo com que refletimos sobre “concertação das práticas” e a relação entre objetividade e subjetividade no
jogo simbólico no capítulo primeiro deste trabalho, itens 7-8.
121
isso quando proferir as monições o celebrante “pode adaptá-las um pouco para que atendam à
exortação proposta no livro litúrgico e a expresse em poucas palavras”. 341 A seguir analisamos a
Das monições analisadas extraímos alguns elementos, tais como: saudação, exhortatio342
então:
a) Saudação:
A partir destas palavras iniciais, podemos deduzir que a monição tem por objetivo:
2. Mostrar que o privilegio de celebrar é de toda a assembléia, e não somente do presidente, pois
se assim fosse, não haveria necessidade alguma de se dirigir às pessoas, sobretudo no início
da celebração.
3. Tratar os presentes como “irmãos em Cristo”, e não segundo suas posições sociais ou
eclesiais, fazendo jus àquilo que disse São Paulo em Gl 3,28: “Não há judeu nem grego, não
há escravo nem livre, não homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Jesus Cristo”.
341
“...celebranti licet eas aliquatenus aptare ut participantium captui respondeant; curet tamen sacerdos ut sensum
monitionis quae in Missali proponitur ipse sempre servet eamque apucis verbis exprimat”. Institutio Generalis
Missalis Romani, n. 31. In: PAULUS VI, SS. Missale Romanum, p. 27.
342
Preferimos a forma latina exhortatio, pois traduz bem o sentido que neste trabalho queremos dar à monição.
Exhortatio advém do verbo latino hortor, ari, (exortar, levar a, instigar, incitar, induzir) ou seja levar ou conduzir
para fora. Hortor cuja forma primitiva é horior, eris, hori, é da mesma família que (fazer levantar, levantar-
se, lançar-se), (assalto, ataque, impulso, desejo) e (transitivo: por em movimento, impelir, excitar;
intransitivo: pôr-se em movimento, precipitar-se, sair, preparar-se para empreender). Cremos então que exhortatio
traduz bem a idéia de monição e participação, isto é, movimento da disposição interior para fora através de
estímulos externos, bem como um processo interno ao próprio celebrante.
122
b) Exhortatio temporal:
Durante as cinco semanas da Quaresma preparamos os nossos corações pela oração, pela
penitência e pela caridade. Hoje aqui nos reunimos e vamos iniciar, com toda a Igreja, a
celebração da Páscoa de nosso Senhor. (monição do Domingo de Ramos)
1. A monição sempre tem como ponto de partida o tempo humano (durante as cinco semanas...);
liturgia);
3. O tempo humano vai se constituindo como tempo sacramental, em vista da disposição dos
corações para o encontro com Deus. Por isso, é um tempo marcado pelo rito litúrgico (tendo
c) Exhortatio anamnética:
Para realizar o mistério de sua morte e ressurreição, Cristo entrou em Jerusalém, sua cidade
(monição do Domingo de Ramos).
Nesta noite santa, em que nosso Senhor Jesus Cristo passou da morte à vida (1ª monição da
Vigília Pascal).
123
Vejamos como ele salvou outrora o seu povo e nestes últimos tempos enviou seu Filho
como Redentor (2ª monição da Vigília Pascal).
1. Para motivar os corações, a monição deve fazer memória dos atos salvíficos de Deus na
História da Salvação;
3. Para que este mistério fique bem situado, é necessário mostrar que a salvação ontem e hoje se
d) Exhortatio celebrativa:
Celebrando com fé e piedade a memória desta entrada, sigamos os passos de nosso Salvador
(monição do Domingo de Ramos).
A Igreja convida os seus filhos dispersos por toda a terra a se reunirem em vigília e oração.
Se comemorarmos a Páscoa do Senhor ouvindo sua palavra e celebrando seus mistérios...
(1ª monição da Vigília Pascal).
Ouçamos no recolhimento desta noite a Palavra de Deus (2ª monição da Vigília Pascal).
1. Um dos papéis fundamentais da monição na sua função de dispor o coração para o Mistério, é
2. A monição mostra que só é possível celebrar, através da fé, como dom de Deus, e fazendo
4. A monição pretende, assim, mostrar que não se trata de uma iniciativa humana, mas divina,
e) Exhortatio participativa:
Celebrando com fé e piedade a memória desta entrada, sigamos os passos de nosso Salvador
para que, associados pela graça à sua cruz, participemos também de sua ressurreição e de
sua vida (monição do Domingo de Ramos).
Peçamos que o nosso Deus leve à plenitude a salvação inaugurada na Páscoa (2ª monição
da Vigília Pascal).
2. Em primeiro lugar, mostra que esta participação é sacramental, pois se faz através do rito
celebrado;
Então, como vimos, a monição se inicia com uma saudação, para convidar os fiéis à
oração que conduz ao mistério. Através de uma linguagem inclusiva (primeira pessoa do plural) e
no imperativo situa os fiéis no tempo celebrativo (o “hoje” litúrgico), para celebrarem a memória
estrutura monicional é uma mistagogia celebrativa que pretende assim introduzir os fiéis no cerne
As monições estão presentes em toda a liturgia como momentos nos quais se procura
A Instrução Geral sobre o Missal Romano afirma que cabe aos sacerdotes, no
previstas no próprio rito.343 Estas monições podem já estar incluídas textualmente no rito, ou
serem proferidas livremente. São quatro os momentos em que as monições livres são
1. Após a saudação inicial e antes do ato penitencial, para introduzir os fiéis na missa do dia;
343
IGMR, n. 31.
344
Cf. idem.
126
Há monições, que embora, escritas no Missal, quando estiver estabelecido pelas rubricas,
podem ser adaptadas um pouco para atenderem à compreensão dos participantes. 345 Nestes casos,
o Missal pede duas coisas: que não se perca o sentido da monição e que seja feita em poucas
Há outras monições que não são acompanhadas de rubricas adaptativas, o que implica que
a adaptação não pode ser feita de qualquer modo. São as do Ato Penitencial, das Orações
presidenciais, da Oração dos Fiéis, da Oração Eucarística, do Pai Nosso e do rito da paz.
a) Ato Penitencial:
- “O Senhor Jesus, que nos convida à mesa da Palavra e da Eucaristia nos chama à conversão.
390).
345
Cf. IGMR, n. 31.
346
De acordo com que refletimos sobre “concertação das práticas” e a relação entre objetividade e subjetividade no
jogo simbólico no capítulo primeiro deste trabalho, itens 7 e 8.
347
“Irmãos e irmãs, há quarenta dias celebrávamos com alegria o Natal do Senhor. E hoje chegou o dia em que
Jesus, pois apresentado ao Templo por Maria e José. Conformava-se assim à Lei do Antigo Testamento, mas na
realidade vinha ao encontro do seu povo fiel. Impulsionados pelo Espírito Santo, o velho Simeão e a profetisa Ana
foram também ao Templo. Iluminados pelo mesmo Espírito, reconheceram o seu Senhor naquela criança o
anunciaram com júbilo. Também nós, reunidos pelo Espírito Santo, vamos nos dirigir à casa de Deus, ao encontro de
Cristo. Nós o encontraremos e reconheceremos na fração do pão, enquanto esperamos a sua vinda gloriosa” (MR, p.
547-548).
348
“Irmãs e irmãos caríssimos, a exemplo dos Apóstolos e discípulos que, com Maria, a Mãe de Jesus, perseveravam
em oração, aguardando o Espírito prometido pelo Senhor, ouçamos, de ânimo sereno, a Palavra de Deus. Meditemos
sobre as grandes coisas que Deus realizou em favor de seu povo e rezemos, para que o Espírito Santo, enviado pelo
Pai como primícias aos que crêem, leve à plenitude a sua obra neste mundo” (MR, p. 997).
127
- Especialmente nos domingos: “No dia que celebramos a vitória de Cristo sobre o pecado e a
morte, também nós somos convidados a morrer para o pecado e ressurgir para uma vida nova.
- “De coração contrito e humilde, aproximem-nos do Deus justo e santo para que tenha piedade
As monições do ato penitencial têm por objetivo levar os fiéis ao arrependimento dos
momento de silêncio para que o fiel em sua disposição interior se coloque como pecador diante
da misericórdia de Deus e, examinando a si mesmo (cf. I Cor 11, 28), possa participar da
eucaristia. Tais monições são essencialmente formadas pela exhortatio celebrativa, pois buscam
preparar os fiéis primeiramente para o arrependimento dos pecados (“de coração contrito e
exhortatio participativa.
b) Orações presidenciais
- Sobre as oferendas: “Orai, irmãos e irmãs, para que o nosso sacrifício, seja aceito por Deus
Pai Todo-Poderoso”. (MR, p. 403) Ou “Orai, irmãos e irmãs, para que esta nossa família,
reunida em nome de Cristo, possa oferecer um sacrifício que seja aceito por Deus Pai Todo-
As monições mais antigas são aquelas que introduzem as orações presidenciais. O convite
uma exhortatio celebrativa, pois a participação no Mistério se realizará pela oração propriamente
dita. No caso da oração sobre as oferendas esse convite é explicitado pela menção do sacrifício.
- “Irmãos e irmãs, elevemos as nossas preces a Deus Pai Todo-Poderoso, que deseja que todos
- “Imploremos a salvação dos vivos e dos falecidos a Deus Pai Todo-Poderoso, que ressuscitou
- “Irmãos e irmãs, esperando ardentemente a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, imploremos
com mais fervor a sua misericórdia. Ele, que veio ao mundo para evangelizar os pobres e
curar as pessoas de coração contrito, conceda hoje a salvação a todos os que dela necessitam”
(MR, p. 1007).
liturgia. Nesta oração os fiéis, exercendo a sua função sacerdotal, suplicam por todos os homens.
Por isso, a exhortatio é essencialmente celebrativa, pois visa introduzir os fiéis num espírito de
intercessão pelos seres humanos. Porém, está presente a exhortatio anamnética que recorda que o
d) Oração Eucarística
Anteriormente já vimos que essas monições são as mais antigas, remontando à liturgia
judaica e à Tradição Apostólica de Hipólito. 349 Tais monições buscavam levar os fiéis a se
e) Pai Nosso
- “Obedientes à palavra do Salvador e formados por seu divino ensinamento, ousamos dizer”
(MR, p.500).
- “Rezemos com amor e confiança, a oração que o Senhor Jesus nos ensinou” (MR, p. 500).
- “Guiados pelo Espírito de Jesus e iluminados pela sabedoria do Evangelho, ousamos dizer”
(MR, p. 500).
As monições do Pai Nosso são essencialmente uma exhortatio anamnética, que faz
memória de que o Senhor é quem ensina seu povo a orar e também celebrativa pois busca
f) Bênção
349
Conforme capítulo segundo deste trabalho, item 3.2.
130
procuram orientar os fiéis em sua postura para determinado rito. Muitas vezes podem ser
cantados pois através do canto se imprimem mais facilmente nas disposições pessoais as ações
sagradas dos ritos e transformam assim os gestos em oração. 350 Obviamente são exhortationes
celebrativas e assim deveriam ser proferidos, não somente instruções para posições do corpo.
- Benção e distribuição das cinzas: “Caros irmãos e irmãs, roguemos instantemente a Deus Pai
que abençoe com a riqueza da sua graça estas cinzas, que vamos colocar sobre as nossas
- Procissão de Ramos: “Meus irmãos e minhas irmãs, imitando o povo que aclamou Jesus,
- Consagração do crisma na Missa do crisma: “Meus irmãos e minhas irmãs, roguemos a Deus
Pai todo-poderoso que abençoe e santifique este crisma para que recebam uma unção interior
e tornem-se dignos da divina redenção os que forem ungidos em suas frontes” (MR, p. 240).
- Liturgia batismal na Vigília Pascal: “Caros fiéis, apoiemos com as nossas preces a alegre
esperança dos nossos irmãos e irmãs (N.N.), para que Deus todo-poderoso acompanhe com
- Renovação das promessas do batismo na Vigília Pascal: “Meus irmãos e minhas irmãs, pelo
mistério pascal fomos no batismo sepultados com Cristo para vivermos com ele uma vida
350
“Ter-se-á presente que o texto cantado se grava mais profundamente na memória do que o texto lido”.
CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. A liturgia romana e a inculturação: IV instrução para uma correta
aplicação da constituição conciliar sobre a liturgia, n. 40.
131
batismo, pelas quais já renunciamos a Satanás e suas obras e prometemos servir a Deus na
Na celebração eucarística podem ocorrer alguns ritos excepcionais que necessitam de uma
monição para introduzir o fiel no espírito litúrgico do rito. Tais monições são normalmente
formadas por uma exhortatio celebrativa que visa preparar a disposição interior do fiel.
Juntamente com essa exhortatio pode haver uma exhortatio anamnética que evoca o
refere a elementos sacramentais que serão utilizados (nos casos acima água benta ou crisma).
- “Oremos, irmãos e irmãs caríssimos, pela santa Igreja de Deus: que o Senhor nosso Deus lhe
dê a paz e a unidade, que ele a proteja por toda a terra e nos conceda uma vida calma e
- “Oremos por todos os nossos irmãos e irmãs que crêem no Cristo, para que o Senhor nosso
Deus se digne reunir e conservar na unidade da sua Igreja todos os que vivem segundo a
- “Oremos, irmãos e irmãs, a Deus Pai todo-poderoso, para que livre o mundo de todo erro,
expulse as doenças e afugente a fome, abra as prisões e liberte os cativos, vele pela segurança
dos viajantes e transeuntes, repatrie os exilados, dê saúde aos doentes e a salvação aos que
Do mesmo modo que vimos no item “c” acima, a monição de cada oração universal na
celebração da paixão do Senhor se destina a preparar a disposição interior do fiel para a oração
que se segue. Um momento de silêncio se intercala entre a monição e a oração não somente para
efeito de oração pessoal, mas também para que o fiel em sua disposição interior seja um
verdadeiro sacerdote batismal. Por isso, são exhortationes essencialmente celebrativas que visam
preparar os fiéis para que junto com o presidente intercedam pelas intenções propostas.
- “Em Jesus, que nos tornou todos irmãos e irmãs com sua cruz, saudai-vos com um sinal de
segunda fórmula está presente também uma exhortatio anamnética que visa lembrar aos fiéis que
5. A motivação das disposições pessoais através dos comentários nos folhetos litúrgicos
Como foi visto no capítulo segundo deste trabalho, o Movimento Litúrgico incentivou e
missal, proibida desde a época tridentina, foi renovada pelo Pio IX em 1857. Contudo em 1897,
com a revisão do Index pelo papa Leão XIII não foi levada em conta essa proibição. Com isso
351
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 215, p. 222.
133
Nesse contexto nascem os folhetos litúrgicos como meios de possibilitar aos fiéis a
semanário religioso para as famílias, a título de subsídio catequético e vai se transformando com
o tempo em subsídio para a liturgia. (Cf. anexo 1) Esse semanário trazia a Palavra de Deus com a
apologética.
Com a reforma litúrgica pelo Concílio Vaticano II, abriu-se a possibilidade da utilização
da língua vernácula e os folhetos passam a trazer a Palavra de Deus e o rito da missa. Tentou-se,
assim, possibilitar a participação dos fiéis, porém o que aconteceu foi a supervalorização dos
cantos e das leituras do folheto. A celebração tomou um tom discurso de aula e foi inflacionada
No Brasil há vários folhetos litúrgicos dentre eles alguns exemplos: Semanário litúrgico-
catequético “O Domingo”, (anexo 2) editora Pia Sociedade São Paulo; Semanário litúrgico “Deus
conosco”, (anexo 3) editora Santuário; “ABC litúrgico”, (anexo 4) da Diocese de Santo André e
“Povo de Deus em São Paulo”, (anexo 5) da Mitra Arquidiocesana de São Paulo.
Nesses folhetos podemos analisar o processo motivacional de alguns comentários de
folhetos litúrgicos e compará-los às verdadeiras monições. Da mesma maneira que fizemos com
processo motivacional do comentário com o processo motivacional das monições. Cremos que o
352
Liturgia, teologia e catequese: debate? Revista de liturgia, n. 82, p. 05.
134
recorte dos comentários da Semana Santa nos possibilita estender o resultado da análise para as
outras celebrações.
celebração, antes de cada leitura, antes da apresentação das oferendas (alguns), e ao final da
celebração antes da bênção final. Em outros momentos pode haver comentários como por
de introdução a leituras.
celebração. Mesmo quando há monição do presidente no ritual, como no caso da Vigília Pascal,
indicativo, com textos em forma de catequese. Por exemplo, na Vigília Pascal de “Deus
Conosco” o comentário informa que em Jesus Deus se revela e ao ressuscitá-lo o Pai aceita a
oferenda de Jesus. Segue dizendo que o discípulo de Jesus deve entregar-se como Jesus. E quem
“assim segue Jesus já está marchando para a mesma ressurreição que Jesus viveu. Se
imprimirmos esse dinamismo de amor e ressurreição em nossa vida, então estamos vivendo a
Páscoa”.
Notamos que está presente no comentário a memória da ação salvífica de Jesus e uma
catequese sobre a participação na sua entrega. Entretanto, não se exorta, não se convida, está
ausente a autoridade do presidente ou de um ministro que faça com que o fiel compreenda que a
ação salvífica se atualiza na celebração e que se participar dela, terá a certeza da participação na
Páscoa do Senhor. Interessante que não há exhortatio celebrativa e nem mesmo uma catequese
No caso da Vigília Pascal no “ABC litúrgico” se faz uma constatação de que é a Noite
Pascal, uma exhortatio temporal sem qualquer outro aspecto monicional. O “Povo de Deus em
São Paulo” não traz comentário, mas uma rubrica que instrui que o comentarista a convidar a
comunidade a se dirigir ao local da bênção do fogo novo. O “Domingo” também não traz
comentário.
ressurreição e faz uma ligação com a Campanha da Fraternidade daquele ano, “Fraternidade e
povos indígenas”. “Deus Conosco” segue o mesmo esquema da Vigília Pascal conforme acima,
não há nem catequese e nem exhortatio celebrativa. “O ABC litúrgico” e o “Povo de Deus em
São Paulo” trazem uma duplicação da monição do Domingo de Ramos em forma de explicação.
No caso das leituras há algo em comum nos folhetos analisados. Antes de cada leitura
leitura que se seguirá. A exceção é o “ABC litúrgico” que traz um comentário catequético antes
das leituras, porém restrito ao evangelho. O “Povo de Deus em São Paulo” traz comentário até
para os salmos.
necessário, os fiéis na liturgia da Palavra, de modo que os fiéis pudessem ouvir as promessas do
Senhor e a partir do próprio interior participar na celebração. Os comentários são muitas vezes
explicações das leituras que provocam desinteresse nos fiéis e ao mesmo tempo quebram o ritmo
da celebração.
Partimos do pressuposto que a liturgia deve ser celebrada e que se deve diminuir o
“falatório”. Numa liturgia em língua vernácula estamos ainda utilizando as explicações que o
Concílio de Trento preceituou para uma liturgia complicada e em latim. Os folhetos são muito
136
criticados por transformarem a celebração em aula e cremos que os comentários reforçam esse
didatismo celebrativo.
Numa análise comparativa com a motivação proposta pelas monições cremos que:
mistagogia própria.
- Tal mistagogia é papel das monições, que devem ser feitas nos momentos apropriados do rito
e com uma estrutura que estimule as disposições pessoais e forme os motivos dos participam
da celebração.
- É importante lembrar que a motivação das disposições pessoais acontece quando o fiel tem os
seus motivos, nascidos de suas necessidades mais íntimas, formados por uma catequese
celebrado. Por isso, as monições são convites sagrados à oração, que usam verbos no
homilias. Não deveriam superar a extensão dos textos analisado no Domingo de Ramos e da
Vigília Pascal. São hieráticas porque se referem ao sagrado e se processam de forma ritual, e
353
Cf. MARTIMORT, Aimé Georges. Estrutura e leis da celebração litúrgica. In: MARTIMORT, Aimé Georges
(Org.). A Igreja em oração, p. 157.
137
- A recomendação também é que se traga a monição por escrito, porém, não é preciso que ela
seja lida palavra por palavra. Tal escrito é a base para se proferir a monição. Em todo caso,
quando se quer ater ao texto em si, tal texto não deve ser lido, mas proferido como uma
verdadeira exortação.354
- O ideal é que os folhetos não trouxessem nem comentários, porque são desnecessários, e nem
monições, porque se transformariam em leituras nas mãos dos fiéis, podendo se tornar
dimensões do ser humano em detrimento das outras, fruto de motivações errôneas da disposição
interior do fiel.
6.1 Ritualismo
participação se restringem à dimensão exterior. Os atos não têm raiz no interior e mesmo os
sentimentos são teatralizados. As disposições interiores são desprezadas, pois o importante é que
o espetáculo continue. Nesse tipo de participação parcial há uma ênfase no símbolo como coisa e
uma predileção pelo juridismo tendo em vista a garantir a eficiência do rito no seu aparato
354
Cf. IGMR, n. 30, 31 e 105 b.
355
Cf. MARTIMORT, Aimé Georges. Estrutura e leis da celebração litúrgica. In: MARTIMORT, Aimé Georges
(Org.). A Igreja em oração, p. 157.
356
Ritualismo. In: INSTITUTO ANTONIO HOUAISS. Dicionário Houaiss de língua portuguesa, p. 2463.
138
(Movimento Ciciliano), que consideravam a liturgia como uma obra perfeita e imutável, por isso
os fiéis devem assisti-la como a um espetáculo. Também o espaço sagrado é construído como
tornam executores de ordens e os fiéis simples assistentes. As relações entre os participantes são
6.2 Sentimentalismo
racional é desprezada. Nesse tipo de participação parcial há uma ênfase na música e orações que
individualista e como conseqüência não cria comunidade. Tal participação parcial é incentivada
num supermercado religioso que pretende “curar” todas as doenças através de uma catarse
6.3 Intelectualismo
privilegia o racional. A relação com o mistério simbolizado é formal e o culto é visto como uma
357
Sentimentalismo. In: INSTITUTO ANTONIO HOUAISS. Dicionário Houaiss de língua portuguesa, p. 2548.
358
Intelectualismo. In: Ibidem, p. 1630.
139
catequese ou ensino de tal modo que a celebração se torne aula. Há uma grande influência do
Iluminismo, que levou católicos e protestantes a transformar a liturgia num instrumento de ensino
das massas. A disposição interior é estimulada para aprender e o Mistério é visto como algo a ser
liturgia que primam pela comunicação e não pela mistagogia. Como conseqüência de tudo isso a
6.4 Intimismo
minimizada, pois a busca pela celebração é regida pelo egocentrismo. O ambiente intimista leva
praticamente não existe. O intimismo está presente na busca de novas experiências religiosas, que
Diante de tudo o que dissemos sobre a motivação das disposições pessoais e sua
importância na participação plena, representada neste trabalho pela monição litúrgica, neste item
queremos refletir sobre a participação na sua plenitude, corpo e espírito, razão e sentimentos
359
Intimismo. In: INSTITUTO ANTONIO HOUAISS. Dicionário Houaiss de língua portuguesa, p. 1638.
140
a razão e a emoção estão dirigidas para outros objetivos. Acontece nesse caso uma assistência
pura e simples, sem envolvimento com o Mistério celebrado. Pode ser o caso de pesquisadores,
jornalistas ou fotógrafos, que analisam a celebração sob outros prismas. Mas também pode
acontecer com pessoas sem nenhuma ou com pouquíssima formação litúrgica, que acabam
disposições, que devem ser estimuladas pela monição litúrgica. (ver quadro 6 no apêndice)
iniciático e mistagógico.
- Nível de estímulo que possa atingir a disposição interior do fiel, tanto na sua dimensão
- Motivação que incorpore a ação litúrgica na sua relação mistérica e se aproprie da própria
ação, transformando-a em um diálogo verdadeiro com Deus, onde se possa encontrar resposta
- Coerência entre a participação interna e externa, de tal modo que esta seja expressão daquela
(habitus).
141
- Processo de simbolização que leve o fiel a participar holisticamente (de corpo e espírito,
pessoais estejam motivadas tanto para a celebração do rito como para o testemunho cotidiano.
sua disposição interior para o mergulho no Mistério celebrado. Hoje se faz a memória da
graça (Kairós) atual. Tal exortação quer levar os fiéis a seguir os passos de Jesus na sua entrega
salvadora, a se reunirem junto ao ressuscitado, ouvindo a palavra com ânimo sereno. A certeza do
“hoje” da salvação une os fiéis à cruz e à ressurreição do Senhor, de tal forma que penetrem no
Percebemos nas monições que seu objetivo principal é fazer com que os fiéis participem
segundo o espírito da liturgia. Superando a tendência juridista e clerical, as monições não são
somente avisos ou comentários, mas têm o objetivo de levar à participação ativa inerente à
Esta disposição interior poderia se desviar para outros motivos não tão litúrgicos, como já
aconteceu com o devocionismo. Por isso, o agente deve ter claro o sistema de disposição
(habitus) do qual o fiel cristão é portador, a fim de motivar-lhe a disposição, para que este possa
se unir ao Mistério Pascal de Jesus pelo Espírito e fazer a vontade do Pai. É pela eficácia da
360
Aspecto hierático das monições.
142
participação ativa (interna e externa) que os fiéis não receberão em vão a graça de Deus. (Cf. SC
11) Essa eficácia, quando prejudicada pelo acento exagerada na dimensão externa, deixa a desejar
Enfim, a eficácia total da Liturgia, e não somente a eficiência exterior, é assegurada pela
Conclusão geral
primeiro capítulo, o simbolismo litúrgico funciona como jogo entre os agentes que têm o poder e
os que acorrem com as próprias necessidades para a celebração. Nesse jogo, as disposições
pessoais bem formadas são fundamentais para que a liturgia atinja a sua eficácia santificante.
Estas disposições não podem representar “fervorinhos” de ultima hora, mas, mesmo do ponto de
vista científico, são habitus estruturados e estruturantes, que vão se formando ao longo da vida e
a partir das experiências das pessoas. Por isso, esses habitus estão sempre passando por novas
estruturações, porque as motivações que os fomentam não são extáticas ou cristalizadas, mas
Por outro lado, as motivações verdadeiras são interiores e profundas e indicam uma
direção apontada pelo comportamento global do ser humano. Uma pessoa bem motivada tem
uma linha de conduta, para a qual se predispõe de forma geral, com todo o seu ser. Por isso, não
devemos trabalhar as motivações isoladamente, mas segundo essa linha de conduta, que
aparece é como encarar a participação plena se há tantos fiéis mal formados? A catequese hoje e
onde os habitus, desde a família, vão sendo reestruturados e também estruturando engajamentos
cada vez mais participativos? Para isto, as nossas celebrações deveriam ser transparentes e de
fácil entendimento para poderem induzir à participação, sem, contudo cair no didatismo.
144
Este trabalho não pretendeu responder a todas essas questões. Entretanto, a partir da
reflexão que fizemos sobre o processo de formação das disposições pessoais do fiel em vista de
motivações, sempre retomadas pelas monições, é preciso vislumbrar alguns pontos para que
O fiel na celebração dos sacramentos, precisa participar com todo o seu ser, isto é, numa
unidade harmônica entre o excitar do coração e o instruir o espírito, entre a adoração ao Senhor e
a participação na ação comunitária. Os convidados para a ceia do Senhor devem estar bem
361
preparados para que a celebração não se torne um caos de sinais, e o sacramento seja um
verdadeiro encontro com o Senhor, dando à “súplica todo o poder possível”.362. Porém, o fiel
lado, pode-se atribuir um valor mágico à materialidade das orações e, de outro, fazer da liturgia
pelas vias rituais. Por isso a crise da liturgia deve ser identificada como uma crise no simbolismo
litúrgico. É necessário então, uma educação para o simbólico, com uma progressiva iniciação às
uma catequese de caráter mais mistagógico que doutrinal. 364 A Conferência de Puebla nota que
361
Cf. GANOCZY, Alexandre. Os sacramentos: estudo sobre a doutrina católica dos sacramentos, p. 134-137.
362
CATECISMO da Igreja Católica, n. 2702.
363
SARTORE, Domenico. Sinal/símbolo. In: Dicionário de liturgia, p. 1150.
364
Cf. DELLA TORRE, Luigi. Pastoral litúrgica. In: Dicionário de liturgia, p. 906.
365
PUEBLA: A evangelização no presente e no futuro da América Latina, n. 901.
145
Porém, não foi nosso intuito discorrer sobre a catequese ou a espiritualidade litúrgicas. No
366
entanto, cremos que precisamos formar nos fiéis o espírito litúrgico, de tal modo que o pensar
É preciso também garantir que a piedade popular concorra para este fim. Por isso, espera-
se que o rosário, a via sacra, as peregrinações, as procissões “condigam com a liturgia, dela de
alguma forma derivem, para ela encaminhem o povo, pois que ela, por sua natureza, em muito os
supera”. (SC 13) Cremos que é nesse sentido que foi publicado o Diretório sobre piedade popular
e liturgia, pela Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, a fim de
Outro problema ainda deve ser superado: o didatismo, que fez as celebrações tomarem um
aspecto de aula.369 Isto foi agravado com a sobrecarga de domingos temáticos e o sobrepujar da
Tudo isto tem uma história que precisa se compreendia no seu conjunto. No decorrer do
tempo foram diversos os modos de motivação das disposições pessoais na celebração eucarística,
num primeiro momento marcado pela formação na convivialidade e, mais tarde enriquecida com
do povo numa liturgia onde primava o espetáculo. Desta forma, sem uma teologia adequada e
uma ciência litúrgica como base formativa, as interpretações do evento litúrgico eram
caracterizadas por uma vivacidade superficial. Mais tarde, o devocionismo, procurando suprir o
afastamento do povo da liturgia, provoca o desvio das disposições pessoais para devoções ou
366
Espírito litúrgico expresso nesse trabalho pela noção de habitus no capítulo primeiro.
367
Cf. CUVA, Armando. “Principi generali per la riforma e l’incremento della sacra liturgia”. In: La costituzione
sulla sacra liturgia, p. 351.
368
CONGRAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre piedade
popular e liturgia: princípios e orientações. São Paulo: Paulinas. 2003.
369
Como vimos no capítulo anterior quando estudamos os comentários.
146
plena do povo de Deus, permanecem vícios antigos, como o verbalismo e o didatismo, aos quais
procuramos dar uma resposta no terceiro capítulo através da monição como instrumento de
inserida na liturgia, privilegiando as monições ou breves didascálias pelo seu alto poder
favor dele. Tais monições concretizam aquela catequese mais diretamente litúrgica pedida pela
Constituição Sacrosanctum Concilium, (Cf. SC 35, 3) que busca inculcar o espírito litúrgico nos
fiéis.370 É em favor desta catequese mais diretamente litúrgica, inserida na celebração, que as
370
Cf. CUVA, Armando. “Principi generali per la riforma e l’incremento della sacra liturgia”. In: La costituzione
sulla sacra liturgia, p. 440-441.