Você está na página 1de 146

CENTRO UNIVERSITÁRIO ASSUNÇÃO

PONTIFICIA FACULDADE DE TEOLOGIA


NOSSA SENHORA DA ASSUNÇÃO

HERALDO DE MORAES
(PE. MICAEL DE MORAES, SJS)

SURSUM CORDA
A MONIÇÃO LITÚRGICA COMO INSTRUMENTO DE
MOTIVAÇÃO DA DISPOSIÇÃO PESSOAL DO FIEL NA
CELEBRAÇÃO EUCARÍSTICA EM VISTA DA PARTICIPAÇÃO PLENA

Dissertação apresentada como exigência


parcial para obtenção do título de mestre em
Teologia Sistemática à comissão julgadora da
Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa
Senhora da Assunção, sob a orientação do Pe.
Dr. Valeriano dos Santos Costa.

São Paulo – 2003


2

Comissão julgadora

_________________________________________

_________________________________________

_________________________________________

_________________________________________
3

“Orai, irmãos e irmãs,


para que levando ao altar
as alegrias e fadigas de cada dia,
nos disponhamos a oferecer um sacrifício
aceito por Deus Pai todo-poderoso”

MR, p. 404.

Quis ut Deus?

Sermo sancti Gregórri Papae, Hom. 34 in Evang.


In: Breviarium Romanum, Romae: Desclée & socii. 1961, tomus alter. p. 923
4

Agradecimentos
- Ao meu pai Geraldo (in memoriam) e a minha mãe Maria que me ensinou a rezar e a

descobrir Deus em minha vida. Aos meus avós maternos, Paulino e Luiza, que através de sua

vida e conduta me apontaram para a dimensão hierática da liturgia. E às famílias Moraes,

Mascarin e Maestrello, pelo testemunho de celebrantes.

- A minha “Nazaré”, Cordeirópolis e a Paróquia Santo Antonio, na pessoa de seu pároco Pe.

Antonio R. Miranda, que me tornaram liturgo e ensinaram-me a amar a liturgia.

- A Fraternidade Javé Salvador, Instituto Missionário Servos de Javé Salvador, em especial o

nosso pai e fundador Pe. Gilberto Maria Defina, sjs, que nos cativou pela sua vida e pelo seu

amor à Sagrada Liturgia; família Religiosa que têm por missão “levar o povo a estar bem

disposto ao Louvor de Deus” (Projeto de Constituição n. 08) e tem na liturgia o primeiro

lugar de exercício do carisma. (Projeto de Constituição n. 123)

- À Diocese de Santo Amaro, na pessoa do seu bispo Dom Fernando Antonio Figueiredo,

OFM, e ao seu presbitério, e às comunidade que sirvo, Paróquias Santa Bárbara e São

Cristóvão, que me permitem ser servidor da liturgia como ministro ordenado.

- Aos meus professores, ao meu orientador Pe. Valeriano, ao Centro de Liturgia na pessoa do

Pe. Gregório e a toda a Pontifícia Faculdade Nossa Senhora da Assunção.

- À Adveniat e a todos que de alguma forma contribuíram para que este trabalho fosse

realizado. Enfim, que o meu agradecimento seja esta dissertação, para que possibilite ao povo

de Deus celebrar com o coração ardente a eucaristia e possa se encontrar com o Senhor no

partir do Pão. Para que um dia se ouça “toda criatura no céu, na terra, sob a terra, no mar, e

todos os seres que neles vivem, proclamarem: ‘Àquele que está sentado no trono e ao

Cordeiro pertencem o louvor, a honra, a glória e o domínio pelos séculos dos séculos!” (Ap.

4, 13)
5

Siglas e abreviaturas

CD – Decreto Christus Dominus

IGMR – Instrução geral sobre o Missal Romano

LG – Constituição Dogmática Lumen Gentium

MR – Missal Romano

SC – Constituição Sacrosanctum Concilium


6

Índice

Introdução......................................................................................................................................10

Capítulo I - A motivação das disposições pessoais na celebração eucarística: uma análise sócio-

antropológica..................................................................................................................................14

1. Uma teologia da celebração eucarística......................................................................................14

2. Sobre a análise das disposições pessoais....................................................................................19

3. Pressupostos para uma abordagem sócio-antropológica das disposições pessoais do fiel na

celebração eucarística................................................................................................................20

4. O ser humano participante..........................................................................................................23

5. O fiel participante na relação simbólica.....................................................................................27

6. A relação simbólica no jogo simbólico......................................................................................30

6.1 O campo ou sistema simbólico............................................................................................30

6.2 O jogo simbólico..................................................................................................................33

7. As disposições pessoais.............................................................................................................35

7.1 Disposições pessoais e graça...............................................................................................35

7.2 Disposição pessoal segundo a neurobiologia e a sociologia................................................37

8. Objetividade e subjetividade na relação simbólica.....................................................................42

9. A motivação das disposições pessoais.......................................................................................46

9.1 Motivação e celebração litúrgica........................................................................................46

9.2 As teorias da motivação......................................................................................................48

9.3 O processo da motivação das disposições pessoais............................................................50

10. Participação plena e motivação das disposições pessoais........................................................55


7

Capítulo II - Alguns aspectos históricos da motivação da disposição pessoal...............................61

1. A motivação da disposição pessoal na liturgia vetero-testamentária.........................................61

2. O estilo de comportamento motivacional de Jesus.....................................................................66

3. O banquete eucarístico na Antigüidade cristã: da convivialidade à mistagogia.........................71

3.1 O banquete eucarístico no tempo do Novo Testamento.....................................................71

3.2 A motivação das disposições pessoais na Antiguidade cristã............................................73

3.3 A mistagogia dos Padres da Igreja.....................................................................................75

4. O alegorismo medieval...............................................................................................................80

4.1 A celebração eucarística na Idade Média...........................................................................80

4.2 A alegoria e as expositiones missae...................................................................................82

5. A aplicação rubricista de Trento.................................................................................................86

6. O Movimento Litúrgico e a busca pela participação plena do povo..........................................93

7. Participação e disposição pessoal na Sacrosanctum concilium..................................................96

Capítulo III - A monição litúrgica como instrumento de motivação das disposições pessoais do

fiel na celebração eucarística........................................................................................................100

1. Disposição pessoal e formação dos motivos............................................................................100

2. A monição.................................................................................................................................102

3. Análise de monições.................................................................................................................105

3.1 Tríduo Pascal e Semana Santa...........................................................................................106

3.1.1 A Páscoa anual.........................................................................................................106

3.1.2 O Tríduo Pascal.......................................................................................................107

3.1.3 A Semana Santa.......................................................................................................110

3.2 As três monições da Semana Santa....................................................................................112


8

3.2.1 Análise do processo motivacional das monições das três monições da Semana

Santa......................................................................................................................112

3.2.1.1 Monição do Domingo de Ramos.................................................................112

3.2.1.2 Monições da Vigília Pascal.........................................................................114

3.2.2 Análise estrutural das três monições da Semana Santa...........................................115

a) Saudação..............................................................................................................116

b) Exhortatio temporal.............................................................................................117

c) Exhortatio anamnética.........................................................................................118

d) Exhortatio celebrativa.........................................................................................118

e) Exhortatio participativa.......................................................................................119

4. Análise estrutural e motivacional das principais monições na celebração eucarística.............120

a) Ato Penitencial...................................................................................................................121

b) Orações presidenciais.........................................................................................................122

c) Oração dos Fiéis.................................................................................................................123

d) Oração Eucarística..............................................................................................................124

e) Pai Nosso............................................................................................................................124

f) Bênção.................................................................................................................................125

g) Ritos especiais dentro da celebração eucarística................................................................125

h) monições à oração universal na celebração da Paixão do Senhor......................................126

i) Monições do rito da paz......................................................................................................127

5. A motivação das disposições pessoais através dos comentários nos folhetos litúrgicos..........127

6. Quatro tipos de participação parcial.........................................................................................132

6.1 Ritualismo.........................................................................................................................132

6.2 Sentimentalismo...............................................................................................................133
9

6.3 Intelectualismo..................................................................................................................133

6.4 Intimismo..........................................................................................................................134

7. A participação plena e a motivação das disposições pessoais..................................................134

Conclusão geral............................................................................................................................138

Apêndice.......................................................................................................................................140

Quadro 1 – o ser humano participante na celebração litúrgica.....................................................141

Quadro 2 – esquema da relação simbólica...................................................................................142

Quadro 3 – esquema do jogo simbólico.......................................................................................143

Quadro 4 – o jogo simbólico entre agentes com habitus formado...............................................144

Quadro 5 – esquema geral do jogo simbólico..............................................................................145

Quadro 6 – esquema da participação (um corte do quadro 5)......................................................146

Quadro 7 – esquema de participação parcial - ritualismo...........................................................147

Quadro 8 – esquema de participação parcial - sentimentalismo..................................................148

Quadro 9 – esquema de participação parcial - intelectualismo...................................................149

Quadro 10 – esquema de participação parcial - intimismo..........................................................150

Quadro 11 – esquema de não participação...................................................................................151

Anexos – folhetos litúrgicos.........................................................................................................1

Anexo 1. Pia Sociedade S. Paulo. O Domingo: semanário religioso para as famílias.................1

Anexo 2. Pia Sociedade S. Paulo. O Domingo: semanário litúrgico-catequético.........................1

Anexo 3. Editora Santuário. Deus conosco: semanário litúrgico..................................................1

Anexo 4. Diocese de Santo André. ABC litúrgico........................................................................1

Anexo 5. Mitra Arquidiocesana de São Paulo. Povo de Deus em São Paulo................................1

Bibliografia.....................................................................................................................................
10

Introdução

“Sursum1 Corda” (Corações ao alto!). Este é um exemplo de monição litúrgica muito


2 3
antiga, situada no início da oração eucarística, convidando os fiéis à participação plena nas

profundezas do Mistério, através do louvor eucarístico. É, portanto, um instrumento de motivação

das disposições pessoais a serviço da participação litúrgica. A expressão “corações ao alto” é um

convite tanto ao homem como à Igreja para realizar a sua vocação mais alta, na medida em que

sentimos a necessidade de entrar em diálogo com Deus, como bem expressou Santo Agostinho:

Grande és tu, Senhor, e sumamente louvável:...Quer louvar-te o homem, esta parcela da tua
criação...Tu o incitas para que sinta prazer em louvar-te; fizeste-nos para ti, e inquieto está o nosso
coração, enquanto não repousa em ti.4

O Concílio Vaticano II, no proêmio da Constituição sobre a Sagrada Liturgia

Sacrosanctum Concilium, diz que a liturgia é um momento importante para os fiéis exprimirem

em suas vidas e manifestarem o mistério de Cristo e a verdadeira natureza da Igreja “que tem a

característica de ser ao mesmo tempo divina e humana, visível, mas dotada de realidades

invisíveis... de tal modo que nela o humano é orientado e subordinado ao divino, o visível ao

invisível... a realidade presente à futura cidade para a qual estamos encaminhados”. (SC 2)

Hoje, porém, deparamos com a apatia dos fiéis na celebração do Mistério Pascal, quando

há pouca participação na Eucaristia e outros sacramentos em geral. Tenta-se motivar os fiéis, mas

muitas vezes os comentários se tornam explicações do rito e não introduzem as pessoas na

1
Sursum (de sus e versum). Para cima, para o alto. Sus, de susque deque, de cima para baixo. Versum. Em direção a,
para. SARAIVA, F. R. dos Santos, Dicionário latino-português, p. 1168, 1170 e 1267.
2
Esta monição já se encontra em Hipólito de Roma. In: LA TRADITION apostolique de saint hippolyte: essai de
reconstitution par Dom Bernard Botte, p. 12.
3
Missale Romanum, p. 516.
4
Confissões. Livro I. 1. 1-3, p. 20.
11

dimensão celebrativa, não motivando, portanto, à participação externa e interna.Também se nota

a falta de convicção ou mesmo o desinteresse por ir à missa.

Diante de tais fatos levantamos os seguintes questionamentos: Por que os fiéis ficam

passivos na celebração eucarística? Por que muitas vezes a celebração, principalmente em seus

comentários, se torna “aula” e não celebração, ocasionando uma certa passividade ou mesmo

alienação? E principalmente como mudar esse quadro?

O Concílio Vaticano II, na Sacrosanctum Concilium, como num refrão, insistiu na

participação plena, consciente e ativa dos fiéis para que estes não recebessem a graça de Deus em

vão (cf. SC 11.14). Mas, muitas vezes a abordagem da participação ficou mais na dimensão

exterior (comunicação, disposição exterior do templo, o vernáculo, cantos etc.), o que não

significa uma participação plena. Por isso, o nosso trabalho, tendo como questão fundamental a

situação acima descrita, tem como objeto formal a motivação para possibilitar as disposições

corretas da participação litúrgica, não somente consciente e ativa, mas também “plena”, isto é,

com o razão e coração, mente e corpo, imersos no Mistério celebrado. Para tal empreitada,

decidimos trabalhar algumas monições da celebração eucarística, sendo obrigados a fazer um tal

recorte, a fim de delimitar nosso objeto material. Assim, poderemos defender nossa tese de que

somente com a motivação das disposições pessoais corretamente orientada é que podemos

participar plenamente da liturgia e que nesse processo, as monições são um excelente

instrumento.

Certamente não temos respostas para toda essa problemática, porém, a partir do estudo da

monição litúrgica como instrumento de motivação da disposição pessoal do fiel, cremos fornecer

à Igreja e a sua liturgia uma maneira de podermos utilizar as monições e formar o próprio estilo

de comportamento motivacional para levar a assembléia à participação plena no Mistério


12

celebrado. Essa dissertação busca responder tais questionamentos, estruturada à semelhança de

uma árvore, em três capítulos:

Num primeiro momento refletimos sobre a raiz sócio-antropológica das disposições

pessoais e da motivação destas. Procuramos compreender tal raiz através da análise do jogo

simbólico e seus agentes, onde aparecem a “concertação” das práticas desses agentes no jogo

simbólico, a importância das disposições pessoais dos agentes e a função da motivação que leva à

participação plena.

No capítulo segundo, sob uma perspectiva teológico-litúrgica, analisamos como o tronco

dessa árvore do processo da motivação das disposições pessoais se desenvolveu na história. A

partir da motivação na liturgia vétero-testamentária, forma-se o estilo de comportamento

motivacional de Jesus, que se torna a base da liturgia cristã. Na celebração eucarística, a

motivação das disposições pessoais sofre diversas mudanças na história, passando da

convivialidade à mistagogia, do alegorismo medieval ao juridismo tridentino, chegando ao ideal

da participação plena no Movimento Litúrgico e no Concílio Vaticano II.

A copa dessa árvore, com seus frutos, será analisada no terceiro capítulo. A partir da

teoria sócio-antropológica do primeiro capítulo e a análise teológico-litúrgica do segundo,

chegamos às monições e ao seu processo motivacional. Tentando vislumbrar o processo da

motivação das disposições pessoais na celebração eucarística através das monições,

compararemos tal processo com seu contraposto existente hoje nos comentários inseridos nos

folhetos litúrgicos. E por fim, procuraremos deduzir algumas conseqüências de nossa análise para

a participação na celebração eucarística, o que de certa forma vale para a liturgia em geral.

Temos consciência dos limites desse trabalho. Sabemos que as disposições pessoais e sua

motivação podem ser analisadas sob outras óticas científicas, mas é impossível utilizar tantas

variáveis ao mesmo tempo. Do mesmo modo cremos ser necessário um maior aprofundamento
13

sobre os princípios teológico-litúrgicos na formação das disposições pessoais, como também

outras implicações que esperamos serem aprofundadas por outros estudiosos.

Cremos também poder contribuir na reflexão na área da Teologia Sistemática, com

relação à graça e sua atuação na natureza humana. Essa graça atua sob a forma de disposição

pessoal como afirma Karl Rahner. 5

“Sursum corda” (Corações ao alto) é uma monição que expressa de forma muito

eloqüente o encontro entre a graça e a natureza humana na comunhão antropológico-teológica

promovida pela liturgia, ao relacionar os aspectos divino (ao alto) e humano (corações),

subordinando este àquele. É impressionante como em apenas três palavras, sendo uma delas uma

“preposição” que estabelece a relação entre as duas realidades principais (o homem e Deus), se

condensa toda a realidade humana e visível (corações) e toda a realidade divina e invisível (alto);

tamanha é a densidade que carrega em si. É nosso desejo pois, que esse estudo possa auxiliar no

processo da motivação dos fiéis na celebração eucarística, de modo que com a razão e o coração,

com o corpo e a mente, ao serem convidados Sursum corda (corações ao alto), os fiéis possam

responder plenamente: Habemus ad Dominum.6 (O nosso coração está em Deus [MR, p. 405] ou

numa tradução literal, temos os corações em direção ao Senhor).

5
Cf. Um novo sacerdócio, p. 210.
6
LA TRADITION apostolique de saint hippolyte: essai de reconstitutio par Dom Bernard Botte, p. 12. Também.
Missale Romanum, p. 516.
14

Capítulo I - A motivação das disposições pessoais na celebração eucarística:

uma análise sócio-antrológica

Para desenvolver bem o estudo das monições como instrumento a serviço da motivação

das disposições pessoais a serviço da participação litúrgica, abordaremos, neste primeiro capítulo,

a questão do ponto de vista sócio-antropológico, para, nos próximos dois capítulos, fazê-lo do

ponto de vista teológico. Para tal intento, situaremos a celebração eucarística como lugar do

encontro, tendo como paradigma a ceia dos discípulos de Emaús (Lc 24, 13 – 35). Traçaremos

uma concepção admitida pela antropologia litúrgica de ser humano que estabelece a relação

simbólica com o mistério. Em seguida analisaremos a relação simbólica com seus personagens e

o jogo simbólico. Como no processo do jogo simbólico cada personagem necessita ter as

disposições pessoais bem formadas, refletiremos sobre essa formação. A seguir, no estudo da

motivação serão revistas as teorias motivacionais, os conceitos de motivação e motivo, e o

processo da motivação das disposições pessoais no jogo simbólico. Por fim, toda a teoria vista e

revista será aplicada à participação.

1. Uma teologia da celebração eucarística

José Aldazábal afirma que “podemos fazer um primeiro resumo sobre a compreensão e a

celebração da Eucaristia na primeira comunidade cristã a partir da descrição feita em At, Lc 24 e


7
1 Cor”. O mesmo autor diz também que “em Lc 24, Lucas monta toda a cena de Emaús de

modo que apareça não só a Eucaristia como lugar de encontro e reconhecimento do Ressuscitado,

mas também sublinha a importância da explicação que ele dá aos dois discípulos do sentido da

Escritura”.8 Por isso é que preferimos trabalhar uma teologia da celebração eucarística, a partir de
7
ALDAZÁBAL, José. Eucaristia, p. 31.
8
15

Lc 24, justamente pela importância que o evangelista dá à explicação de Jesus sobre as Escrituras

ressaltando, sob a nossa ótica, a participação (interior e exterior) da assembléia litúrgica.

No final da tarde daquela páscoa, dois discípulos se encontraram com o Senhor e o

reconheceram na cena familiar da fração do pão (Cf. Lc 24, 13 – 35). Aqueles discípulos

desanimados, voltando de Jerusalém no entardecer, encontram um peregrino e, não enxergando o

Senhor, comentam sobre a morte de Jesus. O Senhor toma a palavra e censura a incompreensão

deles. Então, anuncia e explica as Escrituras que falavam sobre o Messias. Os discípulos

convidam o peregrino para a ceia e o reconhecem na fração do pão.

Lucas procura mostrar que o Senhor continua a agir na sua Igreja até o final dos tempos e

é possível o encontro com ele na celebração eucarística, de tal modo que a assembléia motivada

possa dizer: “permanece conosco” e depois reconhecer: “não ardia o nosso coração quando ele

nos falava pelo caminho, quando nos explicava as Escrituras?” (Lc 24, 29.32)

Caminhando com os discípulos de Emaús, o Senhor fala, a partir de Moisés e todos os

profetas, e interpreta nas Escrituras o que a ele dizia respeito (cf. Lc 24, 27). Depois parte o pão

(cf. Lc 24, 30). Estas duas dimensões são bem claras: Palavra e fração do Pão; ambas são

permeadas da participação da assembléia, na medida em que quando Jesus falava lhes ardia o

coração e quando parte o pão, seus olhos se abrem, reconhecendo (com o coração) que o

peregrino que caminhava com eles era o próprio Jesus. O fato dos discípulos “se levantarem” e

“irem aos Onze e seus companheiros” autentica a participação que tiverem na Ceia, feita pelo

caminho da Palavra e da partilha do Pão (Lc. 24, 35).

Os apóstolos, como testemunhas do Ressuscitado e constituídos sacerdotes do Novo

Testamento9, são enviados não somente para pregar o evangelho, mas também para levar a efeito

ALDAZÁBAL, José. Eucaristia, p. 28.


9
Cf. CATECISMO da Igreja Católica, n. 1337.
16

o que anunciavam através do “Sacrifício e dos Sacramentos” (SC 6) até a volta de Cristo (Cf. 1

Cor 11, 26).

Lucas, em Atos dos Apóstolos, afirma que na Igreja nascente os primeiros cristãos eram

assíduos aos ensinamentos dos apóstolos, à comunhão fraterna, à fração do pão e às orações (cf.

At 2, 42). A Igreja, como assembléia convocada, continua a missão do Cristo no tempo,

oferecendo a salvação, de modo privilegiado através da liturgia. O memorial da morte e

ressurreição do Senhor é confiado à Igreja (cf. SC 47) e se torna o centro da liturgia e da vida da

Igreja 10 (cf. SC 10 e LG 11). Na celebração do memorial do Senhor, Cristo se comunica em

alimento aos fiéis (cf. SC 47) e os fiéis podem captar a “presença dinâmica e irradiante do

mistério de Cristo”. 11

Pelo batismo os fiéis são inseridos no Corpo Místico de Cristo e participam do seu único

sacerdócio. Em virtude desse sacerdócio régio recebido no batismo, os fiéis “concorrem na

oblação da eucaristia e o exercem na recepção dos sacramentos, na oração e ação de graças, no

testemunho de uma vida santa na abnegação e na caridade ativa” (LG 10). É essencial à Igreja

que os fiéis exerçam atos sacerdotais através da participação litúrgica, unidos ao sacerdócio de

Cristo.12 Por isso, é um dever e um direito dos fiéis participarem da liturgia, de onde,

principalmente da Eucaristia, “como de uma fonte, se deriva a graça para nós e com a maior

eficácia é obtida aquela santificação dos homens em Cristo e a glorificação de Deus” (SC 10).

10
Cf. SAGRADA CONGREGAÇÃO DOS RITOS. Instrução sobre o culto do Mistério Eucarístico, n. 1.
11
VISENTIN, Pelágio. Eucaristia. In: Dicionário de liturgia, p. 395.
12
Cf. TRIACCA, Achille M. Participação. Dicionário de liturgia, p. 896.
17

Para que essa santificação aconteça é necessário que os fiéis se acerquem do sacramento

com “disposições de reta intenção” (SC 11), não assistindo como “estranhos ou espectadores

mudos” (SC 48), e assim participem consciente, frutuosa e ativamente da celebração eucarística e

das outras celebrações litúrgicas. Esta participação na eucaristia leva os fiéis a se oferecerem a si

próprios no Cristo Mediador para se unirem com Deus e entre si (cf. SC 48). Justamente, na

celebração eucarística “todas as obras, orações e iniciativas apostólicas, a vida familiar e

conjugal, o trabalho cotidiano e o descanso do espírito e do corpo, se forem realizados no

Espírito, e até mesmo as contrariedades da vida, se levadas com paciência” (LG 34), são

oferecidos ao Pai juntamente com a oblação do corpo do Senhor. Assim, a eucaristia leva os fiéis

a assimilarem a comunhão de vida que Cristo lhes oferece, isto é, a participação, a koinonia em

Cristo, “em sua vida, em sua aliança, em seu sacrifício pascal”. 13 Exercem assim o culto espiritual

e ritual para a glorificação de Deus e a salvação dos homens (cf. LG 34 e SC 7).

13
ALDAZÁBAL, José. A eucaristia. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 2, p. 308.
18

A eucaristia, como os demais sacramentos, por meio de sinais sensíveis, alimenta,

fortalece e exprime a fé. Em vista disso, para que a participação seja plena, é necessária uma

compreensão profunda dos sinais sacramentais e a celebração mesma da eucaristia deve preparar

“os fiéis do melhor modo possível para receberem frutuosamente a graça, cultuarem devidamente

a Deus e praticarem a caridade” (SC 59). Pois a “operatividade dos sacramentos não é física, nem

metafísica, mas simbólica”.14 “A liturgia é a Igreja em sua mais densa relação simbólica com

Deus e com a sua totalidade”. 15 A celebração da eucaristia como relação simbólica, atinge

pessoalmente cada fiel, fazendo com que os corações ardam (cf. Lc 24, 32), de modo que o

celebrante penetre pela participação plena no mistério eucarístico. O fiel participante pode assim

atender ao Senhor que diz: “eis que estou à porta e bato: se alguém ouvir minha voz e abrir a

porta, entrarei em sua casa e cearei com ele, e ele comigo”. (Ap 3, 20) Nessa relação simbólica,

Deus se manifesta em cada gesto ou palavra, sinais que são salvíficos de Cristo. Jesus, na

multiplicação dos pães e dos peixes (Lc 9, 10 – 17) ou nas bodas de Caná (Jo 2, 1 – 12), anuncia

através de ações simbólicas o amor de Deus pelos homens. A salvação de Cristo continua

atuando no fiel através da participação na celebração eucarística. O acolhimento ativo e a

disponibilidade diante dessa intervenção salvífica de Deus16 é a própria participação na eucaristia.

14
BOROBIO, Dionisio. Da celebração à teologia: que é um sacramento? In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A
celebração na Igreja. Vol. 1, p. 388.
15
Ibidem, Prólogo. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 07.
16
Cf. TRIACCA, Achille M. Participação. In: Dicionário de liturgia, p. 896.
19

A celebração da eucaristia como relação simbólica é, como os demais sacramentos, “o


17
modo propriamente humano do encontro com Deus”. Tais sacramentos, sob o prisma tanto

cristológico como antropológico, “não são coisas, mas encontros de homens sobre a terra com o

homem glorificado, Jesus, mediante uma forma visível”. 18 “O sacramento é um encontro


19
interpessoal”, e a participação se dá quando “à oferta gratuita de Deus corresponde a livre

acolhida do homem”.20 Na celebração da eucaristia, a refeição é o símbolo escolhido para melhor

exprimir a profundidade do encontro interpessoal entre Cristo e a comunidade.21

Como no caso dos discípulos de Emaús, os fiéis precisam encontrar-se com o Senhor no

partir do pão para obterem a salvação (Cf. Lc. 24, 35). Por isso, é intuito deste trabalho

demonstrar a necessidade de participantes com corações ardentes na ceia eucarística, que possam

reconhecê-lo e querer permanecer com ele. Como vemos em primeiro plano a celebração

eucarística sob a perspectiva da ceia, tendo a eucaristia como sinal, sacramento e ação simbólica,

daremos importância à expressividade antropológica da ação sacramental, e não só à sua eficácia

ou validade.22 Por isso, nos próximos itens analisaremos sob o prisma sócio-antropológico a

participação na celebração eucarística e a importância da motivação das disposições pessoais em

vista da participação plena.

2. Sobre a análise das disposições pessoais

17
SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 11.
18
Ibidem, p. 49-50.
19
BOROBIO, Dionisio. Da celebração à teologia: que é um sacramento? In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A
celebração na Igreja. Vol. 1, p. 420.
20
Ibidem, p. 420.
21
Cf. ALDAZÁBAL, José. A eucaristia. In: BOROBIO, Dionisio. (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 2, p. 288.
22
Cf. ALDAZÁBAL, José. A eucaristia. In: BOROBIO, Dionisio. (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 2, p. 274-
275.
20

Conforme o Concílio Vaticano II, a liturgia é “ação da Igreja, que celebra o Mistério
23
Pascal de Jesus Cristo para que este se cumpra nos fiéis cristãos” e realiza, assim, a santificação

do homem (cf. SC 7). Para que aconteça a santificação dos fiéis através dos sacramentos, é

necessária a sua participação na ação litúrgica. Desse modo quando os fiéis participam (tomam

parte) “na celebração, não só se colocam em posição de presença diante do evento histórico da

salvação, como ainda o exercem em Cristo, por Cristo, com Cristo, presente e sempre vivo no

desempenho do seu sumo e único sacerdócio”.24

Para analisar a participação na liturgia, a ciência litúrgica leva em conta dois aspectos: o

teológico e também o antropológico, porque se trata de seres humanos. Cremos que a análise da

participação na liturgia deve considerar tanto os sacramentos em si (os sinais sensíveis) como a

situação concreta do fiel, onde não pode ficar de fora a sua disposição interior.25

23
FERNÁNDEZ, Pedro. Que é celebrar: peculiaridade da teologia litúrgica. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A
celebração na Igreja. Vol. 1, p. 237.
24
TRIACCA, Achille M. Participação. In: Dicionário de liturgia, p. 890.
25
Cf. BUYST, Ione. Como estudar liturgia, p. 169.
21

A participação ativa na celebração litúrgica não funciona automaticamente e o fiel, às

vezes, se “choca com obstáculos que não se reduzem à incompetência ou à eventual má vontade

dos indivíduos”.26 Diante disso, pretendemos demonstrar que a disposição interior motivada é

fator imprescindível para a participação ativa, entendida como externa e interna (cf. SC 11) e que

a monição litúrgica é instrumento motivador da disposição interior ou pessoal. Para podermos

realizar tal intento é necessário que a análise considere tanto os aspectos sócio-antropológicos das

disposições pessoais, como os aspectos teológico-litúrgicos das monições (que serão tratados nos

próximos capítulos). Entretanto, serão considerados ceteris paribus os aspectos psicológicos,

culturais, sociais, dentre outros importantes para aquilatar a participação na celebração

eucarística, embora não nos seja possível neste trabalho mensurar e analisar tantas variáveis.

Todo este esforço visa, portanto, estudar a participação do fiel motivada pela monição no

contexto litúrgico-sacramental-simbólico da celebração eucarística, para demonstrar como os

fiéis bem dispostos sintonizam a mente com as palavras e cooperam com a graça do alto (Cf. SC

11) e como neste processo a monição litúrgica pode ser um instrumento importante.

Nos próximos itens analisaremos os aspectos sócio-antropológicos da motivação das

disposições pessoais. O fruto dessa análise será a base para a análise teológico-litúrgica da

mesma motivação nos capítulos seguintes.

3. Pressupostos para uma abordagem sócio-antropológica das disposições pessoais do fiel na

celebração eucarística

26
CLERK, Paul de. La participacion en la liturgia; la aportacion de las ciencias humanas, Phase, n. 179, p. 362.
22

A Igreja quer, para compreender o ser humano na sua relação com o divino, num diálogo

interdisciplinar, aprofundar o conhecimento antropológico e, assim, melhor entender também a

Revelação de Deus.

O Concílio Vaticano II alertava sobre a necessidade de se estudar não só as condições

espirituais do homem, mas também as sociais. Para “conseguir tal intento eficaz e frutuosamente,

serão muito úteis as pesquisas sócio-religiosas mediante os institutos de sociologia pastoral, que

são encarecidamente recomendadas”.27 Por isso, na análise do participante motivado,

necessitamos tanto da ciência teológica quanto das ciências humanas.

Como afirma Karl Mannheim, a sociologia através de seus conceitos, hipóteses e

métodos, desenvolverá suas teorias até onde for possível. O teólogo procurará compreender com

a sociologia a extensão do comportamento e do ajustamento do humano, verificando se podem

ser entendidos em termos de categorias de função e onde é necessário ir além dessas categorias.28

Considerando as funções de comunicação, de pertença religiosa e de socialização da


29
celebração litúrgica pela sociologia, utilizaremos uma abordagem socio-antropológica e

procuraremos determinar o que são as disposições pessoais e o que seria a motivação destas, de

modo a auxiliar no estudo das monições como motivadoras das disposições pessoais na

celebração litúrgica.

Para demonstrar que a motivação das disposições pessoais é essencial para a participação

litúrgica, recorremos a Max Weber (1864-1920), com seu método tipológico de construir um

27
Decreto Christus Dominus. In: Compêndio Vaticano II, n. 17, p. 415.
28
Cf. O Cristianismo na era do planejamento. In: Diagnóstico de nosso tempo, p. 145.
29
Função de comunicação – a complexidade de comunicação dentro da própria liturgia. Função de pertença religiosa
– a atitude psicossocial de um membro na vinculação ao seu grupo religioso. Função de socialização – processo
mediante o qual a um indivíduo são transmitidos valores, normas, atitudes e comportamentos do grupo social que o
acolhe ou o qual se acha inserido. Cf. MAGGIANI, Silvano. Sociologia. In: Dicionário de liturgia, p. 1158.
23

modelo ideal30 ou abstrato, retirado da realidade concreta, que servirá de parâmetro. 31 O tipo

ideal é construído através da análise das ações sociais com sentido, isto é, subjetivamente

compreensíveis.32 Para Max Weber, a ação social é aquela “cuja intenção fomentada pelos

indivíduos envolvidos se refere à conduta de outros, orientando-se de acordo com ela”. 33

Compreender é interpretar o sentido das ações e apreender a “concepção de sentido dentro da

qual ocorre o curso da ação real”.34 Podemos entender a “compreensão” como observacional

quando o comportamento é visto em suas reações emocionais; e como motivacional quando o ato

“é visto como parte de uma situação inteligível”. 35 É esta última forma de compreensão que nos

interessa para construir o tipo ideal do fiel motivado de que estamos falando. Então, por princípio

será construído um tipo ideal do participante motivado, simbolicamente ativo, tanto interna como

externamente, o qual será o parâmetro de comparação com o que acontece nas celebrações

eucarísticas.

Recorremos também ao sociólogo francês Pierre Bourdieu (1930-2002), para não

incorrermos em definições universais muito genéricas ou análises subjetivistas, que possam levar

a um impasse, como em nosso caso, à oposição entre a ação da graça sacramental ex opere

operato e o ex opere operantis.36 Buscamos, assim, evitar o impasse subjetivismo-objetivismo,


30
“A característica principal do tipo ideal é não existir na realidade, mas servir de modelo para a análise e
compreensão de casos concretos realmente existentes”. LAKATOS, Eva M.; MARCONI, Marina de A.
Fundamentos de metodologia científica, p. 109.
31
“Tipo ideal conceitual de sentido subjetivo, atribuído a um ator hipotético num dado tipo de conduta”. WEBER,
Max. Conceitos básicos de sociologia, p. 10.
32
Cf. WEBER, Max. Conceitos básicos de sociologia, p. 10.
33
Ibidem, p. 09.
34
Ibidem, p. 16.
35
Ibidem, p. 15.
36
A causalidade dos sacramentos acontece ex opere operato, no momento que matéria (elemento material) e forma
(palavra) se unem e causam a graça que significam, porque aí age o próprio Cristo pelo Espírito, independente da
dignidade do ministro ou de quem recebe. A expressão ex opere operato ou “eficácia do rito” quer demonstrar que no
ato simbólico ritual da Igreja, a oração de Cristo é visivelmente sacramentalizada e o dom efetivo da graça que segue
infalivelmente se realiza de modo visível. O opus operatum é graça que age, mas por não ser um ato mágico, está
condicionada às disposições interiores com que se recebe o sacramento (opus operantis). “Se tais disposições
subjetiva faltarem, é claro que, segundo essa explicação o sacramento, produzirá objetivamente o seu efeito, que é o
dom da graça; mas o dom não será recebido da maneira devida, e, portanto, a graça produzida pelo sacramento
permanecerá estéril” (MARSILI, Salvatore. Sacramentos. In: Dicionário de liturgia, p. 1065-1066.). O ex opere
24

fenomenologia-racionalismo, na medida em a teoria da pratica de Bourdieu nos permite

compreender as estruturas das relações objetivas no campo religioso, vividas internamente em

forma de disposições pessoais.37

A seguir procedemos à construção passo a passo do tipo ideal do fiel motivado, que na

inteireza do seu ser participa interna e externamente na celebração eucarística.

4. O ser humano participante

Para podermos construir um tipo ideal do fiel motivado na celebração eucarística, é

necessário estabelecer a visão de ser humano assumida pela liturgia, partindo dos dados da

Revelação e da antropologia litúrgica.

Em matéria de Revelação tomemos primeiramente a concepção semita de ser humano e,

posteriormente, a sua influência pela cultura grega.

O semita não parte da percepção/visão, mas do sentimento e da experiência, definindo o

ser humano a partir de quatro termos básicos:

- Néfes: o que experimenta a necessidade, a fome, a sede, desejo de afeto e encontro.

(representado por néfes – garganta).

- Basar: o que ao experimentar a não realização de um desejo, toma consciência de sua

finitude (basar – carne no sentido de fraqueza e impotência humana).

- Ruah: O semita experimenta a vitalidade dentro de si: força, coragem, energia,

representado pela figura da respiração (ruah).

operantis ou opus operantis, indica pois que, para os adultos, há a necessidade de uma disposição, de uma
cooperação de fé e de amor à constituição do sacramento. Lembrando que, a própria disposição é também dom da
graça. (Cf. RAHNER, Karl. La Iglesia y los sacramentos, p. 27.) O fiel é chamado a não se opor interiormente à
graça, enfim a aceitar a presença da graça de Cristo por intermédio da Igreja pela fé.
37
Cf. Uma Interpretação da Teoria da Religião de Max Weber. In: MICELI, Sergio. (Org.). A economia das trocas
simbólicas, p. 81-82.
25

- Leb: O semita também tem dentro de si a percepção, o pensamento, entendimento que

conduzem à consciência e à capacidade de entrega. Tudo isso condensado em Leb

(coração).38

O homem é integralmente visto a partir destes quatro elementos, e não como quem os

possui. Por isso, a mentalidade hebraica nunca divide o ser humano em corpo e a alma, como o

faz o mundo grego, mas o pensa como um todo na sua inteireza. 39 A morte, por exemplo, não é

separação, mas uma passagem para uma nova situação.

Já a cultura grega, o ser humano é visto a partir do que é visível: o “corpo/soma”, ao passo

que a “psyché/alma” é definida negativamente como invisível, intangível, imortal e imaterial. 40

Essa dualidade retrocede a Platão, para quem a alma está amarrada ao corpo até ser libertada pela

morte. Aristóteles mantém a dualidade, matéria e forma, corpo e alma, como substanciais,

entretanto o corpo permanece distante da alma. Os Padres da Igreja adotaram as concepções

platônicas e neoplatônicas para analisar o ser humano. Essa concepção perdurou por muitos

séculos. No século dezenove com o advento da fenomenologia e do existencialismo, o corpo não

é visto como instrumento ou objeto, ou peça material, mas como manifestação do eu. Por isso,

não se pode mais aceitar uma concepção dualista, mas falar em caráter corpóreo ou

corporalidade, reconstruindo uma concepção unitária do ser humano.41

38
Cf. BAUMERT, Norbert. Mulher e homem em Paulo, p. 233-236.
39
Cf. Ibidem, p. 240.
40
Cf. Ibidem, p. 231.
41
Cf. SÁNCHEZ LOPES, Ana Maria. Corpo. In: VILLA, Mariano M. (Org.). Dicionário do pensamento
contemporâneo, p. 157-160.
26

Estudos recentes também da neurobiologia vêm trazer essa concepção unitária. Antonio

Damásio, neurobiólogo americano, que dirige um dos principais centros de estudos neurológicos

dos Estados Unidos, em seus estudos vê o ser humano na sua integridade e demonstra que a

ausência de emoção pode destruir a razão. Aponta que o erro do racionalismo cartesiano é a

“separação abissal entre o corpo e a mente, entre a substância corporal, infinitamente divisível,

(...) de um lado, e a substância mental, indivisível (...), de outro. Especificamente a separação das

operações mais refinadas da mente, para um lado e da estrutura e funcionamento do organismo

biológico, para o outro”.42

A Igreja, embora utilize a terminologia corpo e alma, entretanto afirma que “a unidade da

alma e do corpo é tão profunda que se deve considerar a alma como a ‘forma’ do corpo, (...) o

espírito e a matéria no homem não são duas naturezas unidas, mas a união deles forma uma única

natureza”.43

A concepção bíblica do ser humano está baseada na concepção unitária semita, reafirmada

hoje pela filosofia existencialista, pela visão unitária de razão e emoção fornecida pela neurologia

e também pela concepção de unidade da natureza humana pelo Magistério. É essa concepção que

assumimos neste trabalho, tendo Jesus Cristo como expressão máxima desta unidade.

Deus falou de muitos modos aos pais pelos profetas (cf. Hb 1,1) e na plenitude dos

tempos falou por seu Filho, o Verbo que se fez carne. (cf. Jo 1, 14) Jesus assume totalmente a

natureza humana, ele é “espírito humano que habita de maneira visível numa corporeidade que

lhe é própria”.44 Jesus como instrumento da salvação humana se torna o mediador entre os

homens e Deus. A obra da salvação se realiza principalmente no Mistério Pascal de sua paixão,

42
DAMÁSIO, Antonio R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano, p. 280.
43
CATECISMO da Igreja Católica, n. 365.
44
SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 21.
27

morte e gloriosa ressurreição. Esta obra da redenção que continua na Igreja e se coroa com a

liturgia (cf. SC 5).

O ser humano Jesus revela a vida divina, pois, “enquanto homem, Cristo é o culto

supremo prestado ao Pai, 45 tendo sua culminância no sacrifício da Cruz. “Esse dom de si a modo

de despojamento de si mesmo é o próprio núcleo de toda a sua vida religiosa”.46

A partir de Jesus humano, a liturgia “vê o homem celebrante da liturgia perfeitamente

integrado em natureza orgânica e espiritual – corpo e alma, coração e sentimento - por uma

osmose contínua, entre suas faculdades intelectivas e volitivas, incluindo o amor considerado

como afeto”.47 A Revelação vê o ser humano em sua integridade, visão que é assumida pela

liturgia, isto é, tudo quanto o ser humano é do ponto de vista ôntico-estático (pessoa encarnada e

imagem de Deus e seu filho Jesus Cristo) e do ponto de vista funcional-dinâmico (ser humano

capaz de relacionar-se com Deus e com os demais homens e imerso no mundo e no universo).48

O liturgo precisa estar unificado e integrado, pois ao celebrar, o faz com o próprio corpo

habitado pelo Espírito Santo, vivenciando corporal, espiritual e afetivamente, o gesto litúrgico em

seu sentido teológico. Celebrando deste modo, o Espírito que o habita informa por dentro os

passos, as ações, as palavras e transforma tudo em prece.49

O fiel participante da liturgia é, no dizer de Julián Lopez Martín, o homo liturgicus, “o

homem em sua relação com a Liturgia, ator e sujeito das ações litúrgicas”. 50 Como homo

liturgicus se relaciona com Deus, com os homens e com o cosmos. Está inserido na História, na

45
Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 35.
46
Ibidem, p. 36.
47
MARTÍN, Julián L. No espírito e na verdade: introdução antropológica à liturgia, p. 46.
48
Cf. Ibidem, p. 44-48.
49
Cf. BUYST, Ione. Liturgia de coração, Revista de liturgia, n. 119, p. 30.
50
Cf. No espírito e na verdade: introdução antropológica à liturgia, p. 41.
28

qual constrói sua felicidade. Essa mesma história comporta toda uma realidade cultural que afeta

o seu relacionamento com Deus no culto. 51

Portanto, o ser humano participante na liturgia celebra na integridade de seu ser, corpo e

alma, coração e sentimentos, dentro de um contexto histórico-cultural.(ver quadro 1 no apêndice)

Para podermos entender o processo da participação do homo liturgicus na celebração litúrgica,

analisaremos a relação simbólica na qual ele é participante.

5. O fiel participante na relação simbólica

Há muita dificuldade em se estudar símbolos, bem como a dimensão simbólica da liturgia,

em virtude das várias abordagens sobre símbolos e suas aplicações na própria liturgia. Um

exemplo dessa dificuldade nos é dado pelo antropólogo Clifford Geertz. Ele afirma que as

condições para se estudar os símbolos na antropologia surgirão quando se tiver uma análise

teórica da ação simbólica comparável à qual se tem hoje da ação social e da ação psicológica. 52

Todavia, neste trabalho procuramos construir uma teoria da relação simbólica para se entender o

processo da motivação das disposições pessoais na celebração eucarística.

Por isso, na análise da relação simbólica, utilizamos a metodologia da ciência litúrgica

que conjuga a trilogia: o mistério (nível litúrgico-teológico), a celebração como epifania do

mistério e o ser humano (nível antropológico). 53 A liturgia é expressão simbólica de Deus, da

Igreja e do ser humano. Deus, a Igreja e o ser humano são realidades simbólico-sacramentais que

necessitam dos símbolos sacramentais para se expressarem.54 Os símbolos sacramentais,

51
A realidade é “um sistema de concepções herdadas expressas em formas simbólicas por meio das quais os homens
comunicam, perpetuam e desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida”. GEERTZ, Clifford. A
interpretação das culturas, p. 103.
52
Cf. A interpretação das culturas, p. 142.
53
Cf. CANALS, Juán M. Liturgia e metodologia. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p.
27.
54
Cf. BOROBIO, Dionisio. Da celebração à teologia: que é um sacramento? In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A
celebração na Igreja. Vol. 1, p. 337.
29

através dos quais a liturgia se expressa, fazem parte da própria realidade do homem e remetem a

essa mesma realidade.55 A ciência litúrgica para analisar tais símbolos considera a base mistérica

e antropológica da liturgia e sua linguagem simbólico-poética. 56 Através do símbolo sacramental

chegamos ao homo liturgicus sobre o qual se constrói a reflexão teológica sobre a liturgia.57

Afinal o que seria um símbolo?

Etimologicamente símbolo vem do grego “symbolon”, “symballein”, que significa por

algo em relação, juntar, unir etc. A filosofia considera símbolo como presença do Ser no ente

particular, a psicologia, por sua vez, considera o símbolo como mediação e finalmente a

antropologia considera o homem como um animal simbólico.58

A liturgia cristã se realiza através um conjunto de sinais e de símbolos. 59 Em liturgia

poderia se considerar símbolo como “um significante que remete a outro significante quando a

realidade significada está de certo modo presente, ainda que não de todo comunicada”. 60 O

símbolo é um segmento da realidade, que distinto da pessoa e da realidade simbolizada, se torna

mediação e remete-nos ao mistério simbolizado, ultrapassando o sensível.61 Romano Guardini

afirma que “o símbolo surge quando o interno e espiritual encontra sua expressão externa e

sensível”.62

55
Cf. idem.
56
Cf. MALDONADO, Luis. A celebração litúrgica: fenomenologia e teologia da celebração. In: BOROBIO,
Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 241.
57
Cf. Ibidem, p. 244.
58
Cf. BOROBIO, Dionisio. Da celebração à teologia: que é um sacramento? In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A
celebração na Igreja. Vol. 1, p. 325.
59
Cf. SARTORE, Domenico. Sinal/símbolo. In: Dicionário de liturgia, p. 1142.
60
Cf. idem, 1142.
61
Cf. BOROBIO, Dionisio. Da celebração à teologia: que é um sacramento? In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A
celebração na Igreja. Vol. 1, p. 326.
62
“El simbolo surge cuando lo interno y espiritual encuentra su expresion externa y sensible”. GUARDINI, Romano.
El espiritu de la liturgia, p. 131.
30

Entretanto, não podemos cair no perigo de considerar o símbolo como uma coisa, o que

levaria, como aconteceu no passado, a uma atitude mágica com relação à liturgia. Mais do que o

símbolo em si, devemos considerar a ação simbólica.

A liturgia é estruturada em palavra e símbolo, cuja síntese compõe o núcleo da ação


63
litúrgica. O símbolo não é uma realidade estática, uma coisa, mas ação. A ação simbólica é

“constituída de gestos ou palavras interpretativas, tendo uma estrutura institucionalizada de

caráter tradicional, que favorece a participação comum e a participação”. 64 Pois a “liturgia só

adquire a verdade de sua função religiosa, se efetuar a complementaridade do gesto e do discurso

religioso. (...) O gesto litúrgico apresenta, pois, um parentesco bem próximo, de um lado com a

linguagem, e de outro com a ação”.65

Como afirma José Aldazábal: “Os elementos mesmos não são o sinal: é a ação que

realizamos com eles que nos leva mais decisivamente a compreender a identidade de um

sacramento”.66 É necessário considerar os sacramentos como atos do próprio Deus através de

um ato eclesial em que Deus se dirige concretamente ao homem. Como exemplificou Edward

Schillebeeckx, o sacramento é como a mãe que abraça e beija o filho, e “embora a criança saiba

que a mãe a ame, o abraço que ela lhe dá é a manifestação perfeita desse amor”.67

Enfocamos, portanto, os sacramentos, sobretudo a Eucaristia, em sua dimensão simbólica,

pois consideramos que os sacramentos não são coisas que levam ao conhecimento de outras
68
coisas, mas um meio de comunicação e de encontro, relação-mediação com o Mistério de

Cristo morto e ressuscitado.

63
O símbolo é “um gesto, um movimento corporal, um fazer com determinados objetos materiais que remetem a
significados novos, a realidades ulteriores e transcendentes”. MALDONADO, Luis. A celebração litúrgica:
fenomenologia e teologia da celebração. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 183.
64
SARTORE, Domenico. Sinal/símbolo In: Dicionário de liturgia, p. 1143.
65
VERGOTE, Antoine. Gestos e ações simbólicas em liturgia, Concilium, n. 62, p. 169.
66
ALDAZÁBAL, José. A eucaristia. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 2, p. 280.
67
Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 197.
68
Cf. MARTÍN, Julián L. No espírito e na verdade: introdução antropológica à liturgia, p. 149.
31

É preciso ver a celebração da Eucaristia como uma relação simbólica com o Cristo morto

e ressuscitado, de modo que o celebrante possa dialogar com o Cristo e a comunidade. A

exemplo dos discípulos de Emaús na ceia, é preciso reconhecer Jesus no partir do pão. (ver

quadro 2 no apêndice)

É na relação simbólica que acontece a motivação das disposições pessoais. Ela é

composta de personagens que atuam num jogo, que acontece num campo. No próximo item

determinaremos o espaço celebrativo e a posição dos celebrantes na relação simbólica.

6. A relação simbólica no jogo simbólico

6.1 O campo ou sistema simbólico

A relação simbólica se desenvolve dentro de um sistema simbólico que se estrutura em

personagens e se organiza como um jogo com suas leis. Certos grupos de símbolos se mostram

logicamente encadeados entre si, dentro de uma coerência que se pode traduzir em termos

racionais.69 Mesmo as diversas significações de um símbolo são solidárias como num sistema, as

contradições que poderiam surgir se resolveriam quando se tem o sistema simbólico como um

todo.70

O sistema simbólico é um conjunto coerente de símbolos ou como no dizer de Pierre

Bourdieu, é composto de “estruturas estruturadas”, que são passíveis de análise porque as formas

simbólicas são logicamente estruturadas, e por serem estruturadas têm poder estruturante.71

O sistema simbólico se estrutura sob a forma de campo. O campo é caracterizado pela

oposição entre dominantes dotados da excelência e os dominados relegados à margem, com todas

69
Cf. ELIADE, Mircea. Simbolismo de “centro”. In: Imagens e símbolos, p. 32.
70
Cf. ELIADE, Mircea. Simbolismo e história. In: Imagens e símbolos, p. 163.
71
Cf. O poder simbólico, p. 09.
32

as outras posições intermediárias.72 Entretanto, não podemos considerar termos como dominantes

e dominados sob uma visão ideológica ou restritiva, mas precisamos analisá-los como

personagens dentro do campo.

Neste trabalho, consideramos a definição de espaço celebrativo ou campo não como um

espaço físico, mas como o sistema simbólico no qual acontece a relação simbólica. O
73
Cristianismo como um todo é o campo simbólico, todavia cada celebração é a manifestação

deste campo, e se torna um campo simbólico específico. Campo é, pois, uma noção formal para

se tratar relacionalmente os indivíduos considerados na relação simbólica. 74 Entretanto, mesmo

sendo uma noção formal, é necessária uma certa autonomia do campo para assim garantir a

eficácia simbólica.75

Os indivíduos tomam posição no campo, que é um espaço de posições, passível de ser

analisado.76 A posição no campo produz estruturas de percepção. Essas estruturas é que

mediatizam a relação dos agentes com o campo. Portanto, além das posições, outros dois

elementos formam um campo: as disposições dos agentes (estruturas de percepção) e os

posicionamentos, isto é, as opções legítimas efetuadas pelos agentes. Esses elementos precisam

ser trabalhados e considerados diferencialmente, para assim se proceder a uma análise da relação

simbólica.77

Podemos visualizar o campo ou espaço celebrativo num determinado grupo de pessoas em

torno de um pastor evangélico que começa uma relação simbólica entre ele, como pregador, e os

ouvintes da palavra. Outro exemplo é a celebração, junto ao rio em Filipos, feita por São Paulo
72
Cf. PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social, p. 70.
73
Cf. SARTORE, Domenico. Sinal/símbolo. In: Dicionário de liturgia, p. 1144.
74
Cf. PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social, p. 84.
75
Cf. Ibidem, p. 81.
76
“A ordem das posições tem uma lógica interna que não pode ser reduzida a nenhuma outra: ela é que comanda as
condições e as modalidades de seleção tanto dos agentes (disposições) quando das opções legítimas
(posicionamentos). Esse espaço, unidade de cujas fronteiras exprimem sua especificidade, vem a ser o campo”. In:
PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social, p. 83.
77
Cf. PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social, p. 36.
33

com algumas mulheres, pois os judeus daquela cidade não tinham Sinagoga. 78 Em ambos os

exemplos os espaços físicos foram apenas operativos, e de certa forma improvisados, para que o

espaço simbólico acontecesse. É por isso, então, que todos os elementos (campo, posições,

disposições, relações e posicionamentos) são passíveis de análise da relação simbólica.

O sistema simbólico se organiza em posições estruturadas que devem ser vividas por

personagens ou agentes com disposições formadas. Tais agentes através de estruturas de

percepção se relacionam dentro do campo. A celebração litúrgica é um sistema simbólico, dentro

do qual os personagens devem interagir coerentemente com a dimensão simbólica dessa mesma

celebração. Essa coerência79 é propiciada pelas disposições formadas que se exteriorizam através

das percepções dos agentes na relação simbólica.80

O símbolo possui uma função identificadora de promover a coesão do grupo que celebra.81

Os agentes no sistema simbólico devem, pois, sacrificar a sua atitude individualista e partir para a

condição social do relacionamento simbólico, de acordo com as normas da vida coletiva. 82 Por

isso, para conseguir a coesão do grupo, esses mesmos agentes devem agir com as armas que o

campo lhes fornece (as percepções), renunciando àquelas que poderiam ser obtidas em universos

baseados em outros princípios de hierarquização. Do mesmo modo na celebração eucarística, os

agentes envolvidos devem ter suas disposições formadas para que através de suas próprias

percepções propiciem a coesão comunitária e o relacionamento com o Eterno.

78
“Quando chegou o sábado, saímos fora da porta, a um lugar junto ao rio, onde parecia-nos haver oração. Sentados,
começamos a falar às mulheres que se tinham reunido” (At. 16, 13).
79
Cf. processo de concertação das práticas nos próximos itens.
80
Os símbolos têm uma função mediadora pois, “abrem-nos porque ordenam e expressam as nossas experiências
profundas, permitindo-nos, no ato da simbolização, realizar-nos a nós mesmos; em segundo lugar são mediações
com relação aos outros: porque através deles, nos expressamos, comunicamos e encontramos com outros, chegando a
um intercâmbio social e a uma vida comunitária, e em terceiro lugar, são mediações com relação à realidade
transcendente, ao Absoluto, a Deus”. BOROBIO, Dionísio. Da celebração à teologia: Que é um sacramento? In:
BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 330-331.
81
Cf. MALDONADO, Luis. A celebração litúrgica: fenomenologia e teologia da celebração. In: BOROBIO,
Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 221.
82
Cf. GUARDINI, Romano. El espiritu de la liturgia, p. 106. Cf. também IGMR n. 95.
34

6.2 O jogo simbólico

O processo da relação simbólica no campo é um jogo entre os agentes. Esse jogo é

exercido através do poder simbólico e dentro das leis do jogo simbólico.

Usando o pensamento de Bourdieu, podemos dizer que no exercício do poder simbólico,

os agentes que promovem a liturgia trabalham com aqueles que a procuram, “inculcando-lhes um

habitus religioso, princípio gerador de todos os pensamentos, percepções e ações, segundo as

normas de uma representação religiosa do mundo natural e sobrenatural”. 83 Assim, o agente que

possui o poder simbólico, inculca o habitus religioso através do efeito da consagração sob duas

modalidades: sanções santificantes, isto é a manipulação simbólica das aspirações e inculca um

sistema de práticas e de representações consagradas (estrutura estruturada). 84 O processo da

formação do habitus ou disposição pessoal será analisado no próximo item.

Não podemos também esquecer a contribuição de um liturgista, que aponta um aspecto

muito original e leve do jogo simbólico que se realiza na trama litúrgica. O jogo simbólico está

baseado no lúdico. Romano Guardini afirmava que a dimensão lúdica do jogo simbólico seria a

realidade íntima da liturgia, de modo que a arte e a realidade seriam unidas admiravelmente, em

uma sobrenatural infância sob os olhos de Deus. A liturgia não seria apenas um trabalho, mas um

jogar diante de Deus, uma obra de arte.85 Por ser um jogo deverá haver um códice de leis da

relação simbólica, um regulamento da liturgia como um jogo sagrado que a alma executa diante

de Deus. Como uma criança que no jogo, com a consciência de um verdadeiro artista, se esforça

por expressar projetando sob diversas formas a vida da alma através desse maravilhoso mundo de

imagens que faz possível sua existência.86


83
BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. In: MICELI, Sergio (Org.). A economia das trocas
simbólica, p. 57.
84
Cf. Ibidem, p. 46.
85
Cf. El espiritu de la liturgia, p. 154.
86

Cf. GUARDINI, Romano. El espiritu de la liturgia, p. 156.


35

Enfim, na celebração eucarística a relação entre os ministros e a assembléia é determinada

pelo campo que é a própria estrutura da celebração eucarística. No campo se processa o jogo

simbólico, no qual são conjugadas as posições dos agentes, os posicionamentos que são o

exercício das posições e a própria disposição dos agentes. O povo de Deus acorre à celebração

com interesses que brotam de suas disposições interiores e jogará de acordo com elas através de

suas percepções. Por sua vez, os ministros, como possuidores do poder simbólico, devem entrar

em sintonia com as percepções de todos e assim ajudar a modificar as disposições para melhor

celebrar; ou ao contrário, podem não se ajustar, levando a bloqueios consideráveis. Obviamente

esse jogo entre posições, disposições e posicionamentos, não é arbitrário, mas brota da natureza

mesma da celebração eucarística e possui leis da relação simbólica que devem ser observadas por

todos os agentes, para assim acontecer uma verdadeira sinergia entre Deus e seu povo. (ver

quadro 3 no apêndice)

Como em Emaús à mesa com os discípulos, Jesus toma o pão, abençoa-o e depois de

parti-lo o distribui, os olhos dos discípulos se abrem, isto é, reconhecem, com os corações

ardendo, dentro do campo simbólico da mesa e da ceia, no gesto simbólico de partir e distribuir o

pão, a própria presença do Mestre.

No próximo item será analisada a formação das bases duradouras (as disposições

pessoais), para posteriormente se analisar o processo da motivação dessas bases, que levam o

agente em sua posição, através de posicionamentos corretos e percepções ajustadas, a entrar no

jogo simbólico com todo o ser.

7. As disposições pessoais

7.1 Disposições pessoais e graça


36

A Constituição Sacrosanctum Concilium do Concílio Vaticano II, após discorrer sobre a

liturgia como cume e fonte de toda a ação da Igreja e sua eficácia para a santificação do homem e

a glorificação de Deus (SC 10), segue dizendo que para se obter tal eficácia é necessário que os

fiéis se “acerquem da sagrada liturgia com disposições de reta intenção” (SC 11), cooperando,

assim, com a com a graça. O texto latino diz que os fiéis “cum recti animi dispositionibus ad

sacram liturgiam accedant”. (SC 11)87 Portanto, para se obter a santificação, os fiéis necessitam

participar da liturgia com a disposição do próprio coração ou ânimo ordenada de tal maneira que

esteja dirigida para o centro da liturgia, o Mistério Pascal. Em outras palavras, as “disposições

dispostas” corretamente são o que possibilita a participação plena, na ordem da obtenção da

graça. Pois, a liturgia é relação simbólica com a obra da redenção do Cristo morto e ressuscitado,
88
conforme Odo Casel, e dentro dessa relação o fiel participante necessita ser motivado nas

disposições pessoais para participar ativamente. Tal motivação auxilia na formação das

disposições corretas e assim faz com que a participação seja plena.

87
Análise do texto: os fiéis são convidados a se aproximar da liturgia (accedo, accedere, etimologicamente ad e
cedo, ir em direção à...) com disposições (dispositio de dispono, disponere, por em ordem, dispor, compor) de reta
(recti de rectus, particípio pretérito de rego, regere, dirigir, guiar, conduzir, reger, governar...) intenção (animi, de
animus, vida, espírito, disposição, coração, animo...). SARAIVA, F. R. dos Santos, Dicionário latino-português,
passim. O sentido do texto latino segue aproximadamente a expressão latina: “Bono animo esse in aliquem”, “estar
bem disposto para com alguém”, de Julius Caesare, historiador. Cf. “Animus, i”. In: SARAIVA, F. R. dos Santos,
Dicionário latino-português, p. 79.
88
“A liturgia é a ação ritual da obra salvífica de Cristo, ou melhor, é a presença, sob o véu de símbolos, da obra
divina da redenção”. CASEL, Odo. Mysteriengegenwart em JLW 8 (1928), apud MARSILI, Salvatore. Liturgia. In:
Dicionário de liturtia, p. 901.
37

As disposições pessoais, fruto do encontro entre a proposta do rito e a busca de sentido

por quem celebra, 89 são conseqüência da relação simbólica dentro da história salvífica.90

O sacramento não é, pois, um sinal arbitrário, mas um símbolo que tem raízes na história

salvífica e representa a realidade que contém. Por isso, “o simbolismo judeu-cristão do batismo

não contradiz em nada o simbolismo aquático universalmente disseminado”. 91 Na relação

simbólica, o sacramento remete a essa realidade salvífica, cuja plenitude se realiza no sujeito que

com fé acolhe o sacramento.92

A partir disso, se vislumbra a necessidade de se abordar as disposições interiores como


93
base da comunicação humana na celebração, para que os fiéis assim possam se relacionar

através de símbolos portadores de uma experiência religiosa imemorial e eclesial. Desse

relacionamento pleno (participação) se terá a eficácia litúrgica, que acontece na medida em que

se realiza no interior do celebrante.94 Pois, “o valor epistemológico da análise litúrgica é uma

função do seu grau de interiorização experimentado e da linguagem simbólica”.95

89
Cf. BUYST, Ione. Barro e brisa: um convite à experiência religiosa atual. In: ANJOS, Márcio F. dos (Org.).
Teologia em mosaico, p. 242.
90
Os símbolos “são portadores de uma experiência religiosa que foi se acumulando ao longo dos séculos, em certos
casos, e na qual sempre é essencial a fé de uma comunidade e a pertença à Igreja de Cristo. Para aceder a essa
experiência, não há outro caminho senão a comunicação humana dentro da celebração, por meio de todos os sinais e
outros elementos que entram em jogo”. MARTÍN, Julián L. No espírito e na verdade: introdução antropológica à
liturgia, p. 104-105.
91
ELIADE, Mircea. Simbolismo e história. In: Imagens e símbolos, p. 158.
92
Cf. BOROBIO, Dionisio. Da celebração à teologia: que é um sacramento? In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A
celebração na Igreja. Vol. 1, p. 333.
93
Expressa neste trabalho pelas monições.
94
“A liturgia cristã é uma proposta ritual objetiva, que pede para ser assumida subjetivamente para cada
participante”. BUYST, Ione. Barro e brisa: um convite à experiência religiosa atual. In: ANJOS, Márcio F. dos
(Org.). Teologia em mosaico, p. 243.
95
MALDONADO, Luis. A celebração litúrgica: fenomenologia e teologia da celebração. In: BOROBIO, Dionisio
(Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 240.
38

No relacionamento simbólico, a fé e a devoção daquele que se une ao Mistério pela graça,

colaboram para que os sacramentos sejam frutíferos. 96 Entretanto, apesar da vontade do fiel, ele é

incapaz de seguir a graça, que sempre precede o ser humano e corrige o fraco e o imperfeito. A

gratia praeveniens, que previne o pecado e precede os passos do liturgo, ajuda-o a crescer cada

dia. Nesse sentido pode-se afirmar que a própria disposição pessoal já é atuação da graça. 97

Como afirma Karl Rahner, a graça age sob a forma de disposição.98

A disposição pessoal necessária para a participação na liturgia é graça, mas como foi

visto, tal disposição é também conseqüência da formação para o simbólico em uma comunidade

de fé na História da salvação. Diante disso, com o auxílio das ciências, se faz necessário verificar

como é o processo de formação da disposição pessoal, como a natureza humana acolhe a graça da

disposição para o simbólico, para assim no item nove constatar o processo da motivação da

disposição pessoal do fiel na relação simbólica.

7.2 Disposição pessoal segundo a neurobiologia e a sociologia.

Para atingir essa visão integral do ser humano e comprovar que emoção e razão trabalham

juntas no processo decisório humano, Antonio Damásio, em sua obra “O Erro de Descartes”,

parte do pressuposto de que o conhecimento é incorporado em representações dispositivas. Tais

representações dispositivas constituem o depósito integral do saber humano e incluem o

conhecimento inato e o conhecimento adquirido por meio da experiência.99

96
Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 101.
97
Cf. Ibidem, p. 216 - 217.
98
“O sinal sacramental, para ser eficaz, pressupõe sempre uma atividade da graça não sacramental no sujeito do
sacramento, em forma de ‘disposição’ que quase sempre surge sem a imediata cooperação da hierarquia”. Um novo
sacerdócio, p. 210.
99
Cf. DAMÁSIO, Antonio R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano, p. 132.
39

O conhecimento inato se baseia em representações dispositivas existentes no hipotálamo,

no tronco cerebral e no sistema límbico. Essas representações são comandos de regulação

biológica necessária para a sobrevivência, tais como o controle do metabolismo, impulsos e

instintos. Por outro lado, o conhecimento adquirido baseia-se em disposições existentes tanto nos

córtices de alto nível como ao longo de muitos núcleos de massa cinzenta localizados abaixo do

nível do córtex. Algumas dessas representações dispositivas contêm registro sobre o

conhecimento imagético que se pode evocar e que é utilizado para o movimento, o raciocínio, o

planejamento e a criatividade. A aquisição de conhecimento novo é conseguida pela modificação

contínua dessas representações dispositivas.100

O ser humano nasce, portando, como um organismo dotado de mecanismos automáticos

de sobrevivência e ao qual a educação e a aculturação acrescentam um conjunto de estratégias de

tomada de decisão socialmente permissíveis e desejáveis. Essas decisões favorecem a

sobrevivência e melhoram a qualidade dela e servem de base à construção da pessoa. Ao nascer,

o cérebro não possui somente um aparato fisiológico para a regulação do metabolismo, mas

também dispositivos básicos para fazer face ao conhecimento e ao comportamento social.101

Portanto, as disposições pessoais são formadas por disposições inatas sobre as quais são

erguidas disposições adquiridas no convívio social. Dessa forma pode-se vislumbrar a base

biológica (disposições inatas) das disposições formadas no relacionamento social. A partir desse

pressuposto, pode-se através da análise sociológica procurar entender como as disposições

pessoais são formadas pelo processo de socialização.

O ser humano na relação simbólica se submete a todo um sistema simbólico estruturado,

que, como tal, tem poder estruturante na vida do liturgo. Como sistema estruturado, a religião

100
Cf. DAMÁSIO, Antonio R. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano, p. 132-133.
101
Cf. Ibidem, p. 154.
40

funciona como princípio de estruturação na vida do fiel. Na celebração, a relação simbólica

constrói experiência e ao mesmo tempo expressa essa experiência em termos lógicos e práticos.

Essa experiência, ao ser realizada, determina um sistema de questões indiscutíveis delimitando o

campo, opondo o que está fora de discussão ou o que pode ser discutido, em outras palavras

distinguindo o sagrado do profano.102 Ao realizar essa distinção, a experiência simbólica modela


103
o mundo e o clima do mundo, induzindo o crente a um conjunto distinto de disposições, que

dão um caráter crônico ao fluxo da atividade na sua realidade e à qualidade da sua experiência. 104

Os símbolos, ao induzirem no ser humano às disposições, possibilitam a formulação pelo liturgo

de idéias gerais de ordem, mesmo que inarticuladas.

Pierre Bourdieu segue na mesma linha de pensamento ao afirmar que, graças ao efeito de

consagração, o sistema de disposições leva o mundo natural e o mundo social a uma mudança de

natureza.105 Sob esta perspectiva, a crença religiosa não seria pura aparência, mas o efeito

socialmente eficaz do encontro entre disposições profundamente incorporadas e o espaço (o

campo) que se coaduna com elas.106 Tais disposições107 como interiorização das determinações

externas é o habitus.108 Os termos habitus e disposição são tomados por Pierre Bourdieu da

Escolástica.109

102
Cf. BOURDIEU, Pierre. Gênese e estrutura do campo religioso. In: MICELI, Sergio (Org.). A economia das
trocas simbólicas, p. 45-46.
103
Cf. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas, p. 114.
104
Cf. Ibidem, p. 109.
105
Cf. Gênese e estrutura do campo religioso. In: MICELI, Sergio (Org.). A economia das trocas simbólicas, p. 46.
106
Cf. PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social, p. 114.
107
O termo disposição foi empregado no conceito de habitus (sistema de disposições) por duas razões: disposição
exprime o resultado de uma ação organizadora (estrutura) e por outro lado exprime uma maneira de ser, um estado
habitual (predisposição, tendência, propensão etc). Cf. BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In:
Pierre Bourdieu, nota 20, p. 61.
108
Cf. BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: Pierre Bourdieu, p. 49.
109
Habitus é “uma disposição da qual um ser é bem ou mal disposto em si ou relativamente a outro”. In: TOMÁS DE
AQUINO. Summa Theologiae, 1ª parte da 2ª parte, q. 49, art. 2, p. 12.
41

No dizer de Pierre Bourdieu, habitus seria “sistemas de disposições duráveis, estruturas

estruturadas predispostas a funcionar como estruturas estruturantes, isto é, como princípio

gerador e estruturador das práticas e das representações”.110 Em outras palavras, habitus seria as

disposições pessoais formadas na relação simbólica (processo de socialização). Tais disposições

são estruturadas numa certa ordem.

O habitus reproduz as estruturas objetivas das quais ele é o produto, não sendo o fruto da

obediência a regras ou a uma ação organizadora de um regente. 111 Como sistema de disposições,

o habitus se torna o princípio gerador de práticas e, por isso, formulará as estratégias de ação. Um

exemplo seria o que aconteceu na reforma da liturgia: muitas estratégias se voltaram para a

prática participativa, tendo em vista que as disposições interiores estavam formadas para um tipo

reação passiva. A mudança ocorre, quando as disposições são novamente reajustadas para a nova

organização do campo simbólico, onde a participação é a essência da celebração do Mistério

Pascal.

As disposições são duravelmente inculcadas pelas condições objetivas do campo, e assim

engendram aspirações e práticas compatíveis com as condições objetivas. 112 O habitus é uma lei

imanente, lex insita, colocada nos agentes tanto pela educação primeira, como pela “concertação

das práticas”, no processo da relação simbólica. Para que o processo de “concertação das

práticas” aconteça e haja assim correções e ajustamentos pelos próprios agentes, é necessário

haver um mínimo de concordância entre o habitus dos agentes mobilizadores (profetas, chefes de

partido etc.) e as disposições daqueles cujas aspirações eles se esforçam em exprimir. 113 O

habitus é o princípio de harmonização objetiva das práticas, pois lhes confere regularidade e

110
Esboço de uma teoria da prática. In: Pierre Bourdieu, p. 60-61.
111
Cf. BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: Pierre Bourdieu, p. 60.
112
Cf. Ibidem, p. 63.
113
Cf. BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: Pierre Bourdieu, p. 71-72.
42

objetividade, de tal modo que as práticas sejam “sensatas”, “razoáveis” e objetivamente

orquestradas.114 É isto que torna possível a “concertação das práticas”.

A “concertação das práticas” acontece na relação entre a estrutura objetiva que define as

condições sociais da produção do habitus (que engendrou as práticas) com as práticas do

exercício desse habitus, isto é, com a conjuntura que, representa o estado particular dessa

estrutura.115 As ações coletivas, como o jogo simbólico, são, pois o produto de uma conjuntura, a

conjunção necessária das disposições e de um acontecimento objetivo.116

Pierre Bourdieu ilustra a formação do habitus como uma série cronologicamente ordenada

de estruturas. Por exemplo, o habitus familiar está no princípio da estruturação das experiências

escolares. O habitus transformado pela ação escolar estará no princípio das experiências

ulteriores (por exemplo, profissional). De reestruturação em reestruturação o habitus vai sendo

transformado.117

No caso da liturgia, o sistema de disposições formado no fiel pela família é a base para a

celebração do Mistério Pascal. Por isso na catequese e na própria celebração, os agentes têm esse

papel de reestruturação do habitus familiar, de modo a possibilitar que as disposições ajustadas

sejam base para a participação plena.118 A reestruturação do habitus familiar acontece na

“concertação das práticas” conduzida pelos agentes que têm o poder simbólico. Tal condução

pode fazer com que o sistema se reorganize, e concorde com as condições do campo. Para que

isso aconteça é necessário que os agentes mobilizadores tenham as disposições pessoais formadas

114
O habitus torna as práticas “inteligíveis e previsíveis por todos os agentes dotados do domínio prático do sistema
de esquemas de ação e de interpretação objetivamente implicados na sua efetivação e por esses somente”.
BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: Pierre Bourdieu, p. 66.
115
Cf. BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: Pierre Bourdieu, p. 65.
116
Cf. Ibidem, p. 76.
117
Cf. Esboço de uma teoria da prática. In: Pierre Bourdieu, p. 80.
118
“É dever dos sagrados pastores vigiar que, na ação litúrgica, não só se observem as leis para a válida e lícita
celebração, mas que os fiéis participem dela com conhecimento de causa, ativa e frutuosamente”. (SC 11)
43

e organizadas, pois a motivação das práticas acontecerá não por ordens ou regências autoritárias,

mas pela própria participação do agente mobilizador.

É dentro do jogo simbólico que ocorre a reestruturação do sistema de disposições

(habitus) e tal jogo acontece entre agentes que têm o habitus formado. Daí a necessidade de que o

fiel participante tenha as disposições pessoais “bem dispostas” para participar plenamente da

liturgia. (cf. SC 11) As disposições pessoais são obra da graça, mas também formadas na história.

A neurobiologia demonstra que o conhecimento é adquirido em forma de representações

dispositivas. Já para a sociologia, o sistema de disposições é habitus, que é formado na relação

simbólica, e é também princípio gerador de práticas e estruturante da prática de outros agentes. O

habitus como lei imanente, surge na educação primeira e vai se aperfeiçoando na “concertação

das práticas”. (ver quadro 4 no apêndice)

Como em Emaús Jesus encontra nos discípulos as disposições formadas pela Palavra

celebrada. Faz, por isso, memória de Moisés passando pelos profetas e resgata a verdadeira

vocação do Messias. Ao final os corações ardiam, porque as disposições pessoais dos dois

discípulos foram reestruturadas através do encontro com o Senhor. No próximo item, será

analisada a relação entre objetividade e subjetividade na relação simbólica, para podermos

posteriormente trabalhar a motivação das disposições pessoais como fator de reestruturação do

sistema de disposições e, assim, propiciar a participação plena.

8. Objetividade e subjetividade na relação simbólica

A relação simbólica é encontro pessoal. Como a relação com os símbolos na liturgia, no

decorrer da história, caiu algumas vezes, em reducionismos objetivistas ou subjetivistas, se faz

necessária uma análise equilibrada do processo da relação simbólica entre sujeito e objeto.
44

O simbólico é para o ser humano religioso um momento de plena realização através da

abertura ao transcendente e à relação social. Assim o simbólico é “o lugar privilegiado da relação

entre o sujeito e o objeto”.119

Nos dias atuais enquanto o cinema, o teatro e as artes plásticas exprimem e realizam as

dimensões da existência humana, não se aceita uma liturgia transformada em ação técnica da

graça.120 É necessário passar de um “sacramentalismo mágico (o celebrante dependente do signo)

ao sacramentalismo cristão (o signo depende do celebrante como mediação)”. 121 Entretanto, não

se deve cair no extremo oposto de se frisar tanto as disposições pessoais, que as celebrações se

tornassem personalistas ou subjetivistas.

Os sacramentos são sinais que supõem a fé e a alimentam, a fortalecem e a exprimem.

Através da própria celebração, dispõem os fiéis para receberem frutuosamente a graça. (Cf. SC

59). São “expressão da fé eclesiástica, mas ao mesmo tempo, ainda que em nível diferente

expressão da fé subjetiva”.122 Por isso, o valor objetivo da liturgia deve ser assumido

subjetivamente pelo participante do culto eclesial.123 Nesta perspectiva é necessária uma visão

equilibrada entre a atuação da graça através do sinal em si e as disposições pessoais dos fiéis na

recepção dos sacramentos.

Na relação simbólica, o equilíbrio entre objetividade e subjetividade, se dá na medida em

que o sacramento não é visto como coisa. Entretanto, colocar o sacramento de tal forma na

dependência das disposições dos fiéis pode parecer que é a fé do fiel que produz a graça. Como

afirma Edward Schillebeeckx, o sacramento frutífero é “o encontro com o próprio Deus. Nesse
119
SARTORE, Domenico. Sinal/símbolo. In: Dicionário de liturgia, p. 1143.
120
Cf. VERGOTE, Antoine. Gestos e ações simbólicas em liturgia, Concilium, n. 62, p. 171.
121
MALDONADO, Luis. A celebração litúrgica: fenomenologia e teologia da celebração. In: BOROBIO, Dionisio
(Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 244.
122
BOROBIO, Dionisio. Da celebração à teologia: que é um sacramento? In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A
celebração na Igreja. Vol. 1, p. 337.
123
Cf. GOENAGA, José A. A vida litúrgico-sacramental da igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO,
Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 142.
45

encontro, o dom da graça e a resposta do homem interpretam-se intimamente. Mas não de tal

forma que os atos de nossa vida sacramental pessoal dêem ao dom da graça a sua medida. Eles

dão apenas a medida do dom da graça assimilado pessoalmente”.124

Salvatore Marsili trata desse assunto sob a ótica de piedade objetiva e piedade subjetiva.

A piedade objetiva seria aquela centrada no mistério do Corpo místico. Na celebração litúrgica há

uma eficácia ou virtude objetiva, pela qual a piedade dos membros se une à piedade da cabeça.

Deve-se imprimir um caráter prevalentemente objetivo à piedade litúrgica. Entretanto não se

exclui, mas se exige, para realizar-se plenamente a graça, uma forma subjetiva. 125

O primado da objetividade da piedade litúrgica não tem por intento negar a subjetividade.

A liturgia se manifesta em uma forma exterior, entretanto necessita ser percebida pela fé interior.

É uma participação ao objetivo, isto é, ao Mistério de Cristo, mas necessita de uma adequação

subjetiva ao mesmo Mistério. A piedade litúrgica deve conseguir esse equilíbrio entre os valores

subjetivos e os valores objetivos.

A liturgia é, pois, o diálogo entre Deus e o homem, uma dialética espiritual, na qual o

sujeito (o homem) se apropria sempre mais do objeto (revelação), a fim de se tornar imagem do

próprio Deus. 126 O ser humano, imagem e semelhança de Deus, assume o Mistério de Cristo pela

liturgia, a tal ponto que possa exclamar como São Paulo, “eu vivo, mas já não sou eu, é Cristo

que vive em mim” (Gl 2, 20).

Um exemplo seria a comunhão eucarística. Através da dimensão subjetiva, com seu

fundamento na relação pessoal, a comunhão é um encontro com Cristo. Ao passo que pela

piedade objetiva, é em primeiro lugar a aceitação do sacrifício de Cristo e participação verdadeira

na sua morte e sua ressurreição.127


124
SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 215.
125
Cf. MARSILI, Salvatore. Spiritualità litúrgica: appunti e note, p. 36-37.
126
Cf. Ibidem, p. 38 - 40.
127
Cf. MARSILI, Salvatore. Spiritualità litúrgica: appunti e note, p. 41.
46

A sociologia também busca o equilíbrio entre o objetivo e o subjetivo. Dentro dos

clássicos da sociologia, também houve controvérsias entre objetividade e subjetividade. Enquanto

Émile Durkheim reifica a sociedade, tentando apreender a sociedade como coisa. Max Weber,

cria uma sociologia da compreensão que tem seu ponto de partida no sujeito.128

A teoria da prática de Pierre Bourdieu procura equilibrar a análise da relação entre sujeito

e objeto, evitando-se assim, cair em extremos.

Como foi visto, habitus é um sistema de disposições estruturadas, que por serem

estruturadas são estruturantes. O processo da formação do habitus é a interiorização pelos

agentes, dos valores, normas e princípios sociais, que assegura de certa forma, a adequação entre

as ações do sujeito e a realidade objetiva da sociedade como um todo. As ações são realmente

feitas pelos indivíduos, entretanto a chance de efetivação dessas ações se encontra objetivamente

estruturadas no interior da sociedade.129

O ajustamento entre o interior e o exterior, o subjetivo e o objetivo, seria a primeira

dimensão do habitus, decomposta em duas dimensões: numa dimensão praxiológica (sentido da

orientação social) e numa dimensão afetiva (aspirações, gostos etc.).130

O habitus forma um conjunto de “esquemas gerativos”, que, como a “objetividade

interiorizada”, presidem a escolha no momento da ação, antecedendo-a e orientando-a131 pois, “as

condições objetivas só existem e se realizam realmente nesse e por esse produto da interiorização

das condições objetivas que é o sistema de disposições”.132

A adequação numa situação específica, entre o habitus e essa situação, permite fundar

uma teoria da prática que leva em consideração tanto as necessidades dos agentes quanto a

128
Cf. ORTIZ, Renato. A procura de uma sociologia da prática. In: Pierre Bourdieu, p. 10.
129
Cf. Ibidem, p. 15.
130
Cf. PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social, p. 39.
131
Cf. ORTIZ, Renato. A procura de uma sociologia da prática. In: Pierre Bourdieu, p. 16-17.
132
PINTO, Louis. Pierre Bourdieu e a teoria do mundo social, p. 42-43.
47

objetividade da sociedade. O espaço onde acontece a conjunção de habitus e da situação é o

campo.133

Concluindo, na relação simbólica, o habitus é formado através da interiorização das

condições objetivas, em forma de disposições pessoais estruturadas. A celebração eucarística é

essa estrutura na qual as disposições pessoais, fruto da interiorização de experiência simbólicas

passadas, podem assim se exteriorizar.

A partir dessa idéia do processo de formação e exteriorização do habitus, é que no

próximo item será analisada a motivação das disposições pessoais como fator de eficácia

participativa na liturgia.

9. A motivação das disposições pessoais

9.1 Motivação e celebração litúrgica

Na relação simbólico-sacramental harmônica, acontece o encontro entre o ser humano e

Deus. Para que esse encontro seja pleno é necessário que a pessoa humana se abra de bom grado

à revelação de Deus.134 Pois, em tal encontro sacramental o celebrante é atingido a partir de

dentro e é interpelado pelo sacramento. Por isso, o ser humano simbólico precisa ver nos sinais

sacramentais, a realização das suas necessidades e aspirações.135

O sacramento surge da vontade de Deus se comunicar com o ser humano e da necessidade

do homem de se comunicar com Deus. Isso se faz através do sacramento como comunicação

simbólica, onde o símbolo realiza o que anuncia.136 A “redenção objetiva” de Cristo através dos

133
Cf. ORTIZ, Renato. A procura de uma sociologia da prática. In: Pierre Bourdieu, p. 19.
134
Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 09.
135
“As situações fundamentais são gramática existecial-sacramental da vida que, longe de opor-se aos sinais
sacramentais, encontra neles a resposta à sua necessidade”.BOROBIO, Dionisio. Da celebração à teologia: que é um
sacramento. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 337.
136
Cf. BOROBIO, Dionisio. Da celebração à teologia: que é um sacramento? In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A
celebração na Igreja. Vol. 1, p. 322.
48

sacramentos atinge pessoalmente o sujeito do sacramento, pois quer fazer “participar os homens,

pessoa por pessoa, desta redenção”.137 Por isso, se o sinal sacramental não comportar fingimento

em relação às disposições pessoais do liturgo, tal sinal se torna um dom efetivo da graça e,

conseqüentemente, o sentido pleno do “sinal” ficará realizado.138

Para que isto se efetive é necessário um engajamento do sujeito na ação celebrativa, de tal

forma que a vida pessoal testemunha sua vontade de se unir mais intimamente à Igreja e, nela, a

Cristo, unicamente de quem se deve esperar a salvação. Tal realidade de redenção é expressa pelo

ato simbólico, através do culto que anima pessoalmente o sujeito.139

O fiel participante pois, quando adentra a celebração litúrgica deve estar imbuído de

expectativa, desejo de ver e ouvir, um desejo de que o céu se abra e o Senhor se manifeste. No

coração deve crescer uma atitude de adoração e de admiração. Essa atitude e a certeza de que

Deus ouve a oração brota da experiência secular de um povo.140

Entretanto, o fiel às vezes se “choca com obstáculos que não se reduzem à incompetência

ou à eventual má vontade dos indivíduos”.141 Para superar tais obstáculos e poder engajar-se

plenamente no ato celebrativo (participação) é necessário que tenha as disposições pessoais

motivadas. Em outras palavras, com a expectativa correta, possa se engajar plenamente na

relação simbólica. Tal expectativa é a motivação que será estudada nos próximos subitens.

137
SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 85.
138
Cf. Ibidem, p. 86.
139
Cf. Ibidem, p. 130.
140
Cf. BUYST, Ione. Liturgia de coração, Revista de liturgia, n. 104, p. 59.
141
CLERK, Paul de. La participacion en la liturgia; la aportacion de las ciencias humanas, Phase, n. 179, p. 362.
49

9.2 As teorias da motivação

O estudo da motivação vem sendo explorado pela ciência da administração, a psicologia,

a filosofia e a sociologia, dentre outras.

Desde a Antigüidade os filósofos se preocupavam com a motivação dos atos humanos.

Surgiram teorias como o hedonismo que afirmava que o homem não ama a dor e o desconforto,

mas o prazer e o conforto. Outra teoria era o idealismo que considerava a virtude (o agir

corretamente) e o saber como a motivação mais alta do ser humano.142

No século XIX, com Darwin, na sua obra sobre a origem das espécies (1859), o instinto,

considerado uma disposição inata que conduzia o organismo a perceber ou prestar atenção a

qualquer objeto e a agir ou sentir, era visto como a base do comportamento. O instinto, então, era

visto como um impulso para agir. O hábito, considerado como nascido do instinto, é que

determinava a conduta humana.143 Foi a obra de Darwin que influenciou a psicologia científica

nos três fronts nela desenvolvidos:

- etologia, 144 com autores como Lorenz e Tionbergen;

- a psicologia da aprendizagem, dentre outros cientistas Thorndike, Pavlov e Young,

este último em 1936 escreveu a primeira obra dedicada à motivação.

- a psicologia da motivação, com Freud, Allport e Maslow.145

Na área da ciência da administração, se destacam Frederick W. Taylor, Hawthorne,

Maslow, Herzberg & McClelland, Vroom e Douglas McGregor.146

Dentre essas teorias destacamos a “A pirâmide de necessidades” de Maslow. Abraham

Maslow, psicólogo americano, acreditava que todos os indivíduos apresentavam uma hierarquia
142
Cf. MONTEIRO LOPES, Tomás de Vilanova. Motivação no trabalho, p. 01.
143
Cf. Ibidem, p. 02.
144
Estudo do comportamento e sua relação com o instinto.
145
Cf. PUENTE, Miguel de la. Introdução. In. PUENTE, Miguel de la (Org.). Tendências contemporâneas em
psicologia da motivação, p. 15-17.
146
Cf. MONTEIRO LOPES, Tomás de Vilanova. Motivação no trabalho, p. 72-73.
50

de necessidades que precisavam ser satisfeitas. Após ter conseguido satisfazer as necessidades

fisiológicas, o indivíduo procuraria satisfazer as necessidades de segurança, depois as

necessidades sociais até atingir a satisfação das necessidades de auto-estima e de auto-realização.

Entretanto se as necessidades situadas em um nível inferior deixam repentinamente de ser

atendidas, o indivíduo direcionará novamente sua motivação para elas.147

A motivação humana é constante, infinita, flutuante e complexa. Como o indivíduo é um

todo organizado e integrado, a motivação e a satisfação também devem ser vistas assim.148

A partir disso, se notam as limitações da teoria comum da motivação, caracterizada por

necessidades de deficiência, porém a motivação de deficiência constitui a base para uma teoria da

meta-motivação ou motivação de crescimento.

O crescimento não é apenas satisfação das necessidades básicas, mas também fruto da

satisfação de motivações específicas para o próprio desenvolvimento, tais como: tendências à

criatividade, capacidades e talentos especiais. As necessidades básicas são uma condição prévia e

necessária para as necessidades de crescimento.149 O desafio maior da motivação consiste em

libertar as energias das potencialidades para a auto-realização, o crescimento como pessoa e a

integridade do ser. Entretanto, a realização de tais motivações só pode ser desenvolvida a partir

da satisfação razoável das necessidades básicas ou de deficiência.150

Muitas das teorias sobre a motivação se fixaram nas motivações de deficiência, cremos

ser necessário partir para a meta-motivação, a motivação de crescimento que quer possibilitar a

auto-realização do ser humano. A motivação é constante e infinita, atinge o ser humano por

inteiro, primeiramente em suas necessidades básicas partindo para auto-realização (meta-

motivação). É nesta última perspectiva que a motivação das disposições pessoais vai ser tratada
147
Cf. MAITLAND, Iain. Como motivar pessoas, p. 7-10.
148
Cf. MOSCOVICI, Fela. Desenvolvimento interpessoal, p. 76-77.
149
Cf. MOSCOVICI, Fela. Desenvolvimento interpessoal, p. 82-83.
150
Cf. Ibidem, p. 84.
51

neste trabalho. No próximo subitem será analisada o conceito de motivação, motivo e o processo

motivacional.

9.3 O processo da motivação das disposições pessoais

Motivação advém do latim movere, que significa mover. Motivação é “a força ou o


151
impulso que leva os indivíduos a agirem de uma forma específica”, “uma tendência

persistente, uma inclinação crônica para executar certos tipos de atos e experimentar certas

espécies de sentimentos em determinadas situações”.152

A motivação é um estado interno que ativa ou movimenta, representada por todas as

condições de esforço ou desempenho interno, descritas como aspirações, desejos, estímulos,


153
impulsos etc. A motivação funciona como uma variável interveniente, porque é um processo

interno, insuscetível de observação direta, que explica, justifica ou motiva o comportamento.

Entretanto, o processo da motivação transparece na conexão de sentido que parece ser, para o

indivíduo envolvido ou para o observador, o fundamento da sua conduta.154

“O motivo é um estado interno que dá energia, torna ativo ou move (daí motivação) e que

dirige ou canaliza o comportamento em direção a objetivos”. 155 “Motivos são inclinações para

executar determinados tipos de atos ou ter determinados tipos de sentimento”.156

Alguns motivos são naturais (primários), isto é, são fisiológicos, não resultando de prévia

aprendizagem. Há motivos gerais que são motivos não-aprendidos, mas não tem base fisiológica
151
MAITLAND, Iain. Como motivar pessoas, p. 01.
152
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas, p. 112.
153
Cf. MONTEIRO LOPES, Tomás de Vilanova. Motivação no trabalho, p. 10.

154
Conduta que se desenvolve como um todo coerente, pois tal conduta é adequada de sentido, “na medida em que
suas partes componentes articulam-se entre si, dentro do contexto de nossos modos costumeiros de pensamento e
sentimento, a ponto de constituir uma conexão de sentido típica”. WEBER, Max. Conceitos básicos de sociologia, p.
19-20.
155
MONTEIRO LOPES, Tomás de Vilanova. Motivação no trabalho, p. 03.
156
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas, p. 112.
52

(por exemplo, curiosidade, manipulação, afeto etc.). Enfim há motivos secundários, que precisam

ser aprendidos, a fim de serem incluídos como secundários (por exemplo o poder, superioridade,

domínio do ambiente, realização, afiliação, segurança etc.).157

O motivo pode ter um significado subjetivo e um significado objetivo. Subjetivamente,

refere-se à experiência do ator que vive o processo de atividade em curso, a intenção de atingir

um determinado objetivo (motivo a fim de). Quando a ação é realizada, ela se torna um ato, o ator

pode voltar-se para a sua ação passada, como um observador de si próprio e investigar as

circunstâncias (motivo por que).158

Enquanto a motivação é o processo do movimento interno do agente, o motivo é o que faz

mover, o que causa e determina o movimento.

As teorias da motivação, algumas vezes, podem induzir a que certos agentes que têm o

poder, a tentar mover os outros através de recompensas ou punições, transformando os sujeitos

em vítimas passivas das variáveis ambientais. Parece um paradoxo, mas ninguém motiva

ninguém, entretanto podemos precipitar as pessoas na desmotivação. 159 Pois a motivação vem das

necessidades humanas e não daquelas coisas que satisfazem essas necessidades.160

Não existe uma fórmula mágica de motivação das pessoas. É necessário investir no que se

chama estilo de comportamento motivacional, isto é, “o reconhecimento da direção que cada

pessoa possa tomar na busca dos seus próprios esquemas produtores ou fatores de satisfação”. 161

O conhecimento do próprio estilo motivacional deve facilitar o entendimento de como as demais

pessoas são diferentes entre si, para ajudar no respeito mútuo e evitar a desmotivação. Por isso,

não podemos acreditar em fórmulas mágicas ou em condicionantes extrínsecos, mas sim através
157
Cf. MONTEIRO LOPES, Tomás de Vilanova. Motivação no trabalho, p. 5-7 e 15.
158
Cf. SCHUTZ, Alfred. Ação e planejamento. In: WAGNER, Helmut R. (Org.). Fenomenologia e relações sociais,
p. 125.
159
Cf. BERGAMINI, Cecília W. Motivação, p. 105.
160
Cf. Ibidem, p. 106.
161
Ibidem, p. 107.
53

de um programa humanamente natural que é aquele que permite que cada um seja aquilo que

queira ser e se proponha a realizar através da sua motivação pessoal.162

O princípio fundamental da motivação reside no inter-relacionamento entre necessidades,

impulsos e objetivos. Uma necessidade ou deficiência aciona impulsos dirigidos para objetivos

que aliviam ou remediam a necessidade ou deficiência. 163 O fenômeno é intrínseco, muito embora

possa servir-se de fatores extrínsecos como meios. Uma vez satisfeita a motivação ela deixa de

ser geradora de comportamento. Entretanto, ao desaparecer uma motivação, surge outra

necessidade que era menos intensa. Tal desencadear não se rompe nunca, sempre em busca da

auto-realização na transcendência.164

No jogo simbólico é o mesmo processo. A motivação é a força, a tendência ou impulso,

num processo interior ao liturgo que o leva a satisfazer necessidades. Cada agente procura

satisfazer suas necessidades e cada um tem os motivos pessoais que canalizam o próprio

comportamento para satisfazer tais necessidades, com suas disposições formadas de acordo com a

própria história pessoal. É preciso cada agente, mas principalmente o agente que tem o poder,

conhecer o próprio estilo de comportamento motivacional. Tal agente precisa investir num estilo

de comportamento motivacional, que o leve a compreender as próprias disposições (habitus); isso

faz com que ele possa entender o processo motivacional dos outros e ajudar com que cada pessoa

se realize no próprio processo motivacional. A compreensão do processo de motivação das

disposições pessoais faz com que entendamos as necessidades que levam as pessoas a procurar a

satisfação, num processo que pode levar à transcendência.

Nesse processo de motivação das disposições pessoais, deve haver um clima de confiança

que leve o fiel a se abrir de bom grado. Toda abordagem de dominação é marginalização da

162
Cf. Ibidem, p. 108-109.
163
Cf. MONTEIRO LOPES, Tomás de Vilanova. Motivação no trabalho, p. 15.
164
Cf. BERGAMINI, Cecília W. Motivação, p. 110-111.
54

pessoa, pois assim jamais a relação simbólica vai ser um encontro pessoal. 165 O ministro precisa

se engajar com toda a sua alma apostólica no mistério que realiza, assim a motivação das

disposições pessoais dos participantes acontecerá de modo eficiente. 166 Entretanto, o despertar da

disposição pessoal, não depende somente de quem está no âmbito do poder sacramental, mas é

fundamentalmente, efeito da vivência carismática de todos os membros da Igreja, na qual o

sujeito dos sacramentos vive ou na qual se integra. 167 É, portanto, das disposições pessoais

estruturadas (habitus) que nascem impulsos que necessitam ser orientados pelo estilo de

comportamento motivacional da assembléia e dos ministros para o mistério simbolizado. Nesse

processo motivacional, o homem integral, o racional unido aos sentimentos, a partir de suas

necessidades, é conduzido à auto-realização na transcendência, isto é, o encontro com o mistério

simbolizado. (ver quadro 5)

O processo motivacional também aconteceu naquela tarde através do encontro entre os

discípulos de Emaús e o Cristo Ressuscitado. No início da caminhada os rostos dos discípulos

estavam sombrios, pois esperavam um Messias que libertasse politicamente Israel. O Senhor

através de uma abordagem sutil e após ter ouvido o relato dos discípulos, inicia sua fala por uma

afirmação e uma pergunta: “Insensatos e lentos de coração para crer tudo o que os profetas

anunciaram! Não era preciso que o Cristo sofresse tudo isso e entrasse em sua glória?” (Lc 24,

26) Este é o estímulo, para assim o Senhor poder interpretar as Escrituras e mudar as disposições

dos discípulos para com o Messias.

165
Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 06.
166
No caso da celebração eucarística, o presbítero deve servir a Deus e ao povo com dignidade e humildade, e, pelo
seu modo de agir e proferir as palavras divinas, sugerir aos fiéis uma presença viva do Cristo. Por outro lado os fiéis
precisam se esforçar para manifestar o próprio oferecimento a Deus através de um profundo senso religioso e de
caridade para com os irmãos que participam da mesma celebração. Cf. IGMR, n. 93 e n. 95.
167
Cf. RAHNER, Karl. Um novo sacerdócio, p. 217.
55

Em seguida o Senhor insinua que vai mais adiante, outro estímulo para que os discípulos

o convidem: “Permanece conosco”. (Lc 24, 29) Nesse momento, os discípulos estão motivados,

com a expectativa correta com relação ao Messias. Isso é preparação para a ceia, na qual os

discípulos reconhecem o Senhor, pelo seu gesto, na fração do pão.

O estilo motivacional de Jesus leva dos discípulos a terem o coração ardente, motivados

pelo anúncio da Palavra, para que os seus olhos se abrissem e o reconhecessem no partir do pão.

O encontro os motivou a ir aos apóstolos anunciar este evento. De seguidores desanimados,

tornaram-se então anunciadores verdadeiramente motivados.

Concluindo, a motivação é o mover interno que nos leva a agir de forma específica. Esse

mover interno é estimulado pelas nossas necessidades, as quais vão desde as necessidades básicas

e até a nossa necessidade de auto-realização (meta-motivação). No processo motivacional, uma

necessidade aciona impulsos dirigidos a objetivos que satisfazem a necessidade. Uma vez

satisfeita a motivação, surge outra necessidade menos intensa. A motivação é um fenômeno

intrínseco, mas que pode utilizar fatores extrínsecos. Nesse processo, o motivo é que canaliza o

nosso comportamento em direção a objetivos Esses motivos podem ser naturais, não-aprendidos e

secundários, isto é, aprendidos. Para que o processo da motivação aconteça precisamos conhecer

o nosso estilo de comportamento motivacional, como a nossa motivação “funciona”, para assim

respeitar as pessoas e evitar a desmotivação. A motivação das disposições pessoais na celebração

eucarística acontece do mesmo modo. Cada fiel vai à celebração com as próprias necessidades.

Os agentes que têm o poder de motivar, através do estilo de comportamento motivacional e da

catequese, devem colaborar na formação de motivos que ajudem o fiel na satisfação das próprias

necessidades até a alcançar a auto-realização no encontro com Deus na celebração do Mistério

Pascal.
56

10. Participação plena e motivação das disposições pessoais

A Constituição Sacrosanctum Concilium considera a participação dos fiéis como o

principal objetivo da renovação conciliar da liturgia.168 A referida Constituição diz que o objetivo

da reforma é que o povo cristão na liturgia consiga com mais segurança graças abundantes. Para

isso, os textos e as cerimônias devem exprimir mais claramente o mistério celebrado, para que o

povo possa compreendê-las facilmente e também “participar plena e ativamente da celebração

comunitária”. (SC 21)

A Constituição propõe que a reforma do ordinário da missa fosse feita de modo que

possibilitasse a participação.169 Os sacramentais também seriam revistos em vista da participação

consciente, ativa e fácil dos fiéis (Cf. SC 79). No mesmo sentido, a reforma do Ofício divino

tinha a finalidade de provocar “consonância entre as palavras e seu espírito” (SC 90). Por fim

tanto a música sacra, cantada por todos (cf. SC 121), bem como as construções de igrejas,

primando pela funcionalidade (cf. SC 124), devem levar em conta a participação ativa dos fiéis.

A participação plena e ativa, ou simplesmente a participação, como processo de

identificação com Jesus Cristo, pode ser analisada nos seguintes níveis:

- Interior – participação no nível da psique, quando a ação externa toca a percepção

interior, uma experiência do coração;

- Exterior - corporal, sensível, a experiência litúrgica tem uma dimensão corporal;

- Frutuosa – adesão vital a Jesus Cristo;

- Consciente – o fiel compreende que Deus age pela ação ritual. 170

168
Cf. MARTÍN, Julián L. No espírito e na verdade: introdução antropológica à liturgia, p. 398.
169
Na reforma do Ordinário da Missa “apareça a índole própria de cada uma das partes, bem como sua mútua
conexão e facilite a participação piedosa e ativa dos fiéis”. (SC 50)
170
Cf. BUYST, Ione. Pesquisa em Liturgia, p. 27-28.
57

A participação possui as dimensões interna e externa. 171 Sem o culto interno não haveria

nenhum significado o culto externo, tal culto externo torna extrínseco e intensifica o culto

interno, e demanda disposições de reta intenção ou de espírito reto. 172

A participação ativa dos fiéis é um direito e um dever baseado no batismo que esses

mesmos fiéis receberam173 e é desta participação plena e ativa “que os fiéis haurem o espírito

verdadeiramente cristão” (SC 14).

Para que a participação dos fiéis aconteça, os pastores devem estar “imbuídos do espírito e

da força da liturgia e dela se tornarem mestres” (SC 14). Por isso, são exortados a formar o povo

para a participação frutuosa na liturgia, segundo a própria condição do fiel. 174 Na formação, os

seminaristas devem ser preparados para participarem da liturgia de “todo o coração (...) imbuídos

do espírito da sagrada liturgia” (SC 17).

A Constituição sobre a liturgia declara que a “liturgia não esgota toda a ação da Igreja”

(SC 9), porém “é o cume para o qual tende a ação da Igreja e, ao mesmo tempo, é a fonte donde

emana toda a sua força”.(SC 10) Após tal declaração, a Constituição afirma que a santificação

dos fiéis é conseguida pela eficácia da liturgia, tal eficácia depende das disposições pessoais,

pois, “para que se obtenha esta plena eficácia, é mister que os fiéis se acerquem da sagrada

liturgia com disposições de reta intenção, sintonizem a sua alma com as palavras e cooperem com

a graça do alto, a fim de que não a recebam em vão”. (SC 11) Pois além de incentivar a

participação ativa externa através de respostas, salmodias, as antífonas e cânticos (SC 30), a

171
Cf. CUVA, Armando. “Principi generali per la riforma e l’incremento della sacra liturgia”. In: La costituzione
sulla sacra liturgia, p. 355.
172
Cf. Ibidem, p. 359.
173
Os batizados em Cristo “vivem o sacerdócio comum, que se manifesta na sua expressão máxima na celebração e
de modo perene na vida ‘em espírito e em verdade’” TRIACCA, Achille M. Participação. In: Dicionário de liturgia,
p. 901.
174
Os pastores são encarregados “de vigiar que, na ação litúrgica, não só se observem as leis para a válida e lícita
celebração, mas que os fiéis participem dela com conhecimento de causa, ativa e frutuosamente”. (SC 11) Os
sacerdotes são convidados a assim instruir os fiéis na liturgia a fim promover “a ativa participação interna e externa
dos fiéis, segundo a idade, condição, gênero de vida e grau de cultura religiosa”. (SC 19)
58

Constituição afirma que esta participação externa tem que despertar os fiéis para Deus e ser

alimento interior deles.175

Sob a ótica sócio-antropológica, uma religião se manifesta por atitudes exteriores que

revelam atitudes interiores através de ações e gestos.176 Assim a participação é a manifestação das

disposições pessoais estruturadas dentro da celebração litúrgica. Tais disposições estruturadas são

o habitus, que produz práticas com uma regularidade imanente às condições objetivas da

produção de seu princípio gerador. Tais práticas são explicadas, quando se coloca em relação: o

habitus (que engendrou as práticas) com as condições do exercício desse habitus, isto é, a

conjuntura (estado particular da estrutura).177

Numa ótica etimológica, a participação (participatio, partem capere) não é somente um

tomar parte, um captar algo, um compartilhar, de modo que poderíamos ter uma visão parcial.

Um ritualista estaria participando? Mas participar é um associar-se pelo sentimento e o

pensamento. É ser participante, isto é, corpo, sentimento e pensamento, imersos no Mistério

Pascal celebrado. Por isso, neste trabalho a visão de participação é o encontro entre o ser humano
178
e Deus na celebração litúrgica, onde não entramos em contato com uma idéia, mas com

alguém.179 Neste tipo de celebração, o desejo salvífico de Deus e a instância simbólica do homem
180
são os dois eixos fundamentais para a compreensão do encontro divino-humano, na totalidade

da pessoa, o corpo e as emoções.181

175
“Enquanto a Igreja reza, ou canta ou age, é que se alimenta a fé dos participantes e suas mentes são despertadas
para Deus, a fim de Lhe prestarem um culto racional e receberem com mais abundância Sua graça”. (SC 33)
176
Cf. LAGENEST, J. P. Barruel de. Elementos de sociologia da religião, p. 15-16.
177
Cf. BOURDIEU, Pierre. Esboço de uma teoria da prática. In: Pierre Bourdieu, nota 20, p. 65.
178
Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 176.
179
Cf. SILVA, José Ariovaldo da. Liturgia, experiência da fé, Revista de liturgia, n. 141, p. 28.
180
Cf. BOROBIO, Dionisio. Da celebração à teologia: que é um sacramento? In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A
celebração na Igreja. Vol. 1, p. 323.
181
Cf. GREELEY, Andrew. Simbolismo religioso, liturgia e comunidade, Concilium, n. 62, p. 187.
59

Neste encontro o gesto de amor de Cristo é pessoalmente ato do Filho de Deus que

penetra no mais fundo de nossa liberdade, que se abre a ele. 182 Entretanto, o sujeito do

sacramento, pela sua atuação pessoal, deve aceitar a natureza objetiva e a finalidade do

sacramento. A atitude subjetiva do fiel há deixar absorver-se na estrutura objetiva do sacramento.

O sacramento será frutífero na medida em que essa interligação acontecer. 183 Este encontro é

sinergia, isto é, união entre Deus e o homem em Cristo.184

A Igreja anuncia a salvação ao ser humano, estrutura as disposições pessoais do fiel pela

catequese e o torna sacerdote batismal, com direito e dever de ser participante na liturgia. Tais

disposições pessoais são o princípio gerador da prática litúrgica do fiel. A participação (plena e

ativa) acontece quando pela prática litúrgica da assembléia celebrativa juntamente com o

presidente e outros ministros, estimulam o celebrante em suas disposições pessoais, a partir das

próprias necessidades. Este estímulo faz o celebrante agir a partir do próprio interior em direção

ao mistério simbolizado, estabelecendo uma relação simbólica com Cristo e os outros celebrantes

(comunidade celebrativa). Esta relação simbólica leva o celebrante a deixar-se absorver pela

estrutura objetiva do sacramento numa entrega total (corpo, mente e sentimentos) ao gesto de

amor do Cristo. Relação simbólica que é encontro, uma sinergia entre Deus e o ser humano (a

graça), que tem por objetivo final a união e a identificação com Cristo. Esse processo

participativo foi suscitado por Cristo em Emaús, ao estimular as disposições pessoais dos

discípulos, culminando na convivialidade e tendo por conseqüência o anúncio dos discípulos aos

apóstolos (ver quadro 6 no apêndice).

182
Cf. SCHILLEBEECKX, Edward. Cristo sacramento do encontro com Deus, p. 83.
183
Cf. RAHNER, Karl. Um novo sacerdócio, p. 168-171.
184
União entre a “energia do Espírito de Deus que embebe interiormente a energia do homem e o identifica com
Cristo. Todo o realismo da liturgia e da divinização está nessa sinergia”. CORBON, Jean. Liturgia de fonte, p. 11.
60

Muitas vezes lemos na imprensa, escutamos ou sentimos, que fiéis não são tão fiéis assim,

pois a eucaristia perdeu o sentido ou se transformou em programa de auditório para evitar a

tristeza e o acabrunhamento dos discípulos de Emaús.

Vimos, no entanto, neste capítulo que a ceia eucarística é o lugar de encontro com o

Ressuscitado. Porém, para que esse encontro aconteça é necessário que as disposições pessoais

estejam motivadas para uma participação eficaz. Numa visão sócio-antropológica, tomamos a

ceia como jogo simbólico, no qual se realiza a relação simbólica entre os agentes, esses com as

respectivas posições e disposições. Neste jogo simbólico, com suas leis e regras, o fiel é

convidado a participar do jogo a partir das suas próprias necessidades. São estas necessidades que

provocam impulsos que são dirigidos e formados em direção ao mistério simbolizado através do

anúncio da Palavra e da catequese, estruturando assim as disposições pessoais. Assim o fiel está

pronto para jogar. O fiel começa participar no jogo, quando numa celebração, os outros jogadores

através do próprio estilo de comportamento motivacional e do engajamento na celebração do

mistério, estimulam cada fiel a se abrir ao diálogo com Deus. O jogo é assim: um estímulo

motiva e dirige o interior do fiel participante a agir em direção ao mistério simbolizado,

estabelecendo uma relação simbólica com Deus e com a própria comunidade celebrante. Essa

relação simbólica é encontro pessoal com Deus. O jogo simbólico objetiva a união entre Deus e o

ser humano em Cristo Jesus (eficácia da liturgia).

Após uma análise sócio-antropológica da disposição pessoal, faz-se necessária uma

análise da sua evolução histórica na liturgia, a fim de compreendermos a importância da

participação na reforma litúrgica do Vaticano II e de como as monições podem ser instrumentos

importantes desta participação.


61
62

Capítulo II - Alguns aspectos históricos da motivação da disposição pessoal

Neste capítulo trataremos de alguns aspectos históricos do processo motivacional da

disposição pessoal, tomando por princípio a liturgia vetero-testamentária como formadora do

estilo de comportamento motivacional de Jesus e da disposição pessoal original do Cristianismo.

1. A motivação da disposição pessoal na liturgia vetero-testamentária

Refletiremos neste item a motivação das disposições pessoais na piedade litúrgica judaica,

que é o substrato da piedade de Jesus e a base da liturgia que hoje celebramos.

O povo de Israel é um povo de sacerdotes: “Vós sereis para mim um reino de sacerdotes e

uma nação santa” (Ex 19, 6). É convocado, por isso, a oferecer sacrifícios agradáveis a Deus. O

exercício do sacerdócio e o oferecimento da vítima objetivam proclamar que Deus é Santo e

proporcionar santidade ao povo sacerdotal, através do oferecimento do homem a Deus

(participação plena). O sacrifício era, pois, a exteriorização do sacrifício interior, que tinha por

objetivo cumprir a vontade de Deus, estabelecida na Aliança com seu povo. O selo da Aliança,

isto é, da entrega mútua de Deus ao povo e do povo a Deus, é realizado com sangue do sacrifício:

“Moisés tomou do sangue e o aspergiu sobre o povo, e disse: ‘Este é o sangue da Aliança que

Iahweh fez convosco, através de todas essas cláusulas’” (Ex 24, 8).

A mentalidade sacrifical na época do profetismo atinge um excesso de exteriorização, sem

correspondente interior, tornando-se, por isso, um ritualismo exagerado (Cf. Is 1,11. 17 – 18 e

Am 5, 21 – 24). Começa então, a recuperação do que se chama de sacrifício espiritual, quando os

profetas proclamam que Deus quer a oferenda do coração humano.185

185
“O que Deus quer é a oferta do próprio homem. Não a oferta de animais, que não tem razão, mas o culto e o
sacrifício espiritual, ‘lógicos’ de sua criatura racional, feita para refletir filialmente a imagem que Ele lhe imprimiu”.
CONGAR, Ives. Os leigos na Igreja, p. 168.
63

Então, era preciso trabalhar melhor as disposições do Povo de Deus para o louvor a Deus.

A base deste louvor era a certeza da salvação, pois o culto festivo a Iahweh era essencialmente

uma ação sagrada, um drama, no qual os fatos salvíficos eram revividos ritualmente no decorrer

da representação sagrada. Tudo era feito como se o evento fosse atual, na certeza da realização da

salvação.186 Essa salvação se manifestava e se realizava no encontro teofânico entre Deus e o

orante, como expressa o salmo: “Faze tua face brilhar, e seremos salvos” (Sl 80, 4).

A disposição interior do israelita é formada para louvar a Iahweh na entrega ao pacto da

Aliança. Os salmos são o componente litúrgico onde mais aparece esse apelo à motivação

interior para o louvor de Deus. Por isso lhes damos um destaque especial neste trabalho.

Do mesmo modo que o Pentateuco é a fixação literária da história salvífica oralmente

recitada na festa anual da Aliança de Iahweh, os salmos se originam do culto de Iahweh

celebrado pela confederação original das tribos no Templo de Jerusalém, em conexão com a arca

sagrada.187 No culto, a comunidade convocada se encontrava com Deus e renovava a Aliança do


188
Sinai. Então, “o culto foi o solo nativo dos salmos”, onde tinham o seu referencial, que ligava

o passado e a atualidade. Por isso, nos salmos verificamos uma certa constância de traços

essenciais da tradição cultual, “que revelam notável paralelismo com os mesmos elementos

fundamentais da literatura narrativa e profética”. 189Dentre as formas típicas de salmos se

destacam os hinos. O hino pertence à participação humana no ato cultual, sendo um canto de

louvor a Deus por suas obras.190 A festa da Aliança é “o ponto de origem e de desenvolvimento

dos hinos do saltério”.191. O salmista, por sua vez, não possuía uma consciência mágica, mas um

186
Cf. WEISER, Artur. Os salmos, p. 16.
187
Cf. Ibidem, p. 14-15.
188
Ibidem, p. 33.
189
Ibidem, p. 14.
190
Cf. SCHÖKEL, Luiz A., CARNITI, Cecília. Salmos I, p. 83.
191
WEISER, Artur. Os salmos, p. 42.
64

devotado entusiasmo, uma reverente adoração e uma humilde veneração de Deus.192 Costuma-se

classificar como hinos os salmos: 8, 19, 29, 33, 65, 66, 93, 100, 104, 105, 111, 113, 117, 135,

136, 145, 148, 149 e 150. Também são considerados “hinos de entronização no Templo”, os

salmos: 8, 15, 24, 29, 33, 46, 48, 50, 66, 75, 76, 81, 84, 95, 100, 114, 118, 132, 149, Ex. 15, 1 – 8.
193

A estrutura formal do hino segue o seguinte esquema:

- Introdução: convocação (autoconvocação) para louvar Iahweh; usando a segunda

pessoa do plural.

- Corpo: apresentação das razões ou temas concretos do louvor de Deus, no estilo de

predicação (atributos, particípios, frases relativas ou de justificação com a partícula

“pois” ou “porque”).

- Conclusão: retomada, muitas vezes, da introdução.194

A estrutura do hino pode ser resumida assim: “louvai – o Senhor – porque é bom”.

O salmista convidava os outros participantes para o louvor a modo de uma monição. A

partir das introduções de alguns hinos sálmicos é possível analisar como era feita a motivação da

disposição pessoal dos celebrantes nas liturgias vetero-testamentárias.

192
Cf. WEISER, Artur. Os salmos, p. 42.
193
Cf. SCHÖKEL, Luiz A.; CARNITI, Cecília. Salmos I, p. 83-84.
194
Cf. Ibidem, p. 83.
Cf. WEISER, Artur. Os salmos, p. 34.
65

O que define a natureza litúrgica de um salmo não é somente o seu uso na liturgia, mas

também o seu estilo litúrgico.195 O hino sálmico reflete este estilo, como, por exemplo, podemos

imaginar no salmo 118, uma multidão dentro e fora do templo em ressonância com grupos ou

coros bem organizados, liderados por um personagem (liturgo), avançando pelo centro do templo

enquanto se realiza a salmodia no estilo coral.196 Tal liturgo interpela a assembléia, a natureza ou

o próprio Deus (Cf. Sl 29).

No salmo 118, o primeiro versículo constitui a fórmula litúrgica de confissão de fé:

“Celebrai a Iahweh, porque ele é bom, porque o seu amor é para sempre!” (Sl 118, 1) Este

versículo apresenta a razão do louvor proposta pelos levitas e respondida pela assembléia: o povo

(casa de Israel), os sacerdotes (a casa de Aarão) e os prosélitos (os que temem a Iahweh). Com

sua proclamação de fé todos se colocam sem distinção sob a graça incessante de Deus. Neste

convite inicial o liturgo procura exortar a uma genuína confiança em Deus, de modo que cada

grupo se disponha a louvar.

Da mesma forma no salmo 33, o liturgo através de cinco imperativos no principio do

salmo convida ao canto de ação de graças: “Ó justos, exultai em Iahweh, aos retos convém o

louvor. Celebrai a Iahweh com harpa, tocai-lhe a lira de dez cordas: cantai-lhe um cântico novo,

tocai com arte na hora da louvação!” (Sl 33, 1-3) No salmo 149, em seus três primeiros

versículos, o convite se dirige à comunidade que acampa no Templo, para cantar um hino a Deus,

criador e rei, que revela seu nome e assume o seu senhorio em sua festa.197

195
Cf. SCHÖKEL, Luiz A.; CARNITI, Cecília. Salmos II, p. 1524.
196
Cf. SCHÖKEL, Luiz A.; CARNITI, Cecília. Salmos II, p. 1413.
197
Cf. WEISER, Artur. Os salmos, p. 660.
66

Esses convites constituem-se em um apelo litúrgico à comunidade, para que esta,

proclamando a fé e cantando os louvores, possa entrar na presença de Deus. Procura dispor os

corações num “estado de ânimo de alegria e entrega, com que se deve ir ao encontro com Deus,

quando ele aparece no santuário para a salvação do seu povo”.198 Um exemplo disso são os

primeiros versículos do salmo 95: “Vinde, exultemos em Iahweh, aclamemos o Rochedo que nos

salva; entremos com louvor em sua presença, vamos aclamá-lo com músicas” (Sl 95, 1-2).

Tais convites preparam os fiéis para entrar no Templo. O salmo 100 começa com uma

conclamação hínica a louvar a Deus com entusiasmo, convite que se estende a toda terra,

expressando o motivo e a finalidade do louvor, isto é, a alegria e o entusiasmo pela presença de

Deus no templo: “Aclamai a Iahweh, terra inteira, servi a Iahweh com alegria, ide a ele com

gritos jubilosos” (Sl 100, 1-2).

No salmo 24 os peregrinos, diante do templo, se interrogam sobre sua dignidade de

adentrar o santuário. O sacerdote responde destacando a exigência cultual e moral, onde o

coração bem disposto é a condição básica para a comunhão com Deus (Sl 24, 4-5).

O Salmo 95 demonstra que a alegria causada pela santidade do encontro com Deus só tem
199
sentido se houver disposição do homem em observar as palavras e os mandamentos de Deus:

“Oxalá ouvísseis hoje a sua voz” (Sl 95, 7b).

Portanto, o convite ou presidente tem a função de preparar interiormente os participantes

para a presença de Deus. Neste sentido, o hino não é somente expressão de ânimo do homem,

mas também o lugar onde o homem se encontra com o seu Deus, entregando-se inteiramente à

alegria nele.200
198
Ibidem. Os salmos, p. 479.
199
WEISER, Artur. Os salmos, p. 480.
200
Cf. Ibidem, p. 496.
67

Esta piedade litúrgica de Israel está presente no tempo de Jesus e é assumida por Ele. No

próximo item será analisado como o estilo de comportamento motivacional de Jesus, propicia a

abertura de coração das pessoas diante da salvação trazida por ele.


68

2. O estilo de comportamento motivacional de Jesus

Seguindo a tradição dos salmos, Jesus estava perfeitamente motivado para realizar a obra

da salvação (Lc 4, 18ss). Sua vida pessoal e sua pregação eram uma demonstração desta

motivação. Então, seu trabalho consistia em criar a motivação nos seus interlocutores para que

pudessem ser salvos e se tornarem porta-vozes da mesma salvação. E assim, encaramos a

reflexão que segue:

Jesus veio de um povo que sabia rezar, herdeiro de uma liturgia riquíssima com uma vida

de oração bem ordenada, seja pública ou privada. O culto público se realizava no Templo e na

sinagoga com características bem diferentes:

- No Templo se ofereciam sacrifícios;

- Na sinagoga se cultuava a escuta da Palavra.

Diante do culto público de Israel, Jesus propunha uma exigência de conversão-purificação

da liturgia hebraica diante do seu exagero sacrificial para que ela pudesse se tornar um culto em

espírito e verdade (Jo 4, 21 – 24). “Cristo leva à perfeita ‘espiritualização’ o culto do Novo

Testamento, não abolindo o sacrifício, mas apresentando a si mesmo tanto a matéria da oferenda

como o sacerdote oferente”.201

O sacrifício de Cristo foi interior e exterior. Do lado exterior encontramos, os atos de

oração, o amor aos pobres, o acolhimento ao pecador e principalmente sua paixão e morte, na

qual dá sua vida livremente. Do lado interior, a alma do sacrifício de Jesus é o espírito filial que o

leva a dizer: “Sim, Pai, porque assim vos agradou” (Mt 11, 26) e, desta forma, “humilhou-se a si

mesmo e foi obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2, 8)!

201
MARSILI, Salvatore. A liturgia momento histórico da salvação. In: NEUNHEUSER, Burkhard et al. A liturgia
momento histórico da salvação, p. 162.
69

Jesus trabalha a motivação dos seus ouvintes através da pregação e dos milagres. Estes

são os sinais que deixam transparecer a sua glória escondida na carne, cujo sentido é explicado

pelos discursos.202 Entretanto, às vezes, acontece uma incredulidade, quando o sinal é mal

interpretado, 203 pois ele exige o mínimo de disposição interior para ser acolhido como símbolo da

vinda do Reino. Outra dificuldade é também a falta de fé, como no caso do epilético

endemoninhado (Mc 9, 14 - 29). O pai do epilético se dirige a Jesus e diz: “pedi aos teus

discípulos que o expulsasse, mas não conseguiram” (Mc 9, 18). Jesus questiona a incredulidade

daquela geração e diante da súplica o pai do menino, aponta a motivação para a verdadeira fé:

“Tudo é possível àquele que crê” (Mc 9, 23). A confissão do pai do menino: “eu creio! Ajuda a

minha incredulidade” (Mc 9, 24) abre-lhe o coração para entender que a vitória sobre o

adversário não depende de técnicas especiais, mas da poderosa ação de Deus diante de um

coração bem disposto. Na verdade, Jesus se queixa do mesmo pecado do deserto, onde o “povo
204
que esquece, ou não sabe captar, o significado dos gestos salvíficos” (cf. Dt 32, 5.20.). No

caso da perícope evangélica, a “única condição requerida para a intervenção salvífica de Deus é a

fé, isto é, a total abertura do homem à sua ação”.205

202
Cf. MAGGIONI, Bruno. O evangelho de João. In: Os evangelhos II, p. 321 - 322.
203
Cf. Ibidem, p. 325.
204
FABRIS, Rinaldo. O evangelho de Lucas. In: Os evangelhos II, p. 524.
205
Ibidem, p. 524.
70

Outro exemplo é a incompreensão de Nicodemos (Jo 2, 23 – 3, 21), que embora tivesse

uma disposição pessoal para acolher os sinais do Messias, o enquadrava na sua própria teologia e

antigos conceitos. Por isso, foi motivado pelo Senhor para que se renovasse inteiramente. Nesse

mesmo sentido acontece a incredulidade dos conterrâneos nazarenos de Jesus. (Mc 6, 1 – 6), os

quais não esperavam um Messias que pudesse ser identificado no filho do carpinteiro. Para eles

era muito difícil associar Jesus de Nazaré aos milagres (Mc 6, 5), pois, “se os milagres não são

gestos espetaculares para os curiosos do divino ou extravagâncias gratuitas para impressionar os

céticos, é claro que um gesto de Jesus num clima de incredulidade não tem sentido, e se torna

impossível; sem fé, não se pode falar em milagre, porque ele é sempre uma resposta e no mesmo

tempo um apelo à fé”.206

A seguir discorremos sobre a disposição interior de algumas pessoas que se encontraram

com Jesus e como o seu estilo de comportamento motivacional propiciou-lhes se encontrarem

com Deus e assumirem o Reino e a salvação na história.

No sermão da montanha, Jesus procurou mudar a disposição interior dos ouvintes, através

da correta compreensão do ensino oral da lei: “Ouvistes que foi dito aos antigos: Não matarás;

aquele que matar terá de responder no tribunal. Eu, porém, vos digo: todo aquele que se

encolerizar contra seu irmão, terá de responder no tribunal” (Mt 5, 21 – 22).

Outras vezes foi no encontro pessoal que esta disposição interior foi motivada.

206
FABRIS, Rinaldo. O evangelho de Lucas. In: Os evangelhos II, p. 486.
71

O publicano Zaqueu (Lc 19, 1 – 10) sobe na árvore para ver Jesus. Neste momento, Jesus

se autoconvida a ir a casa dele. Entrando de modo ousado na vida daquele pecador, Jesus

solidariza-se com ele, sem se importar com a crítica dos bem pensantes da época. 207 Por outro

lado, Zaqueu responde ao convite com presteza e, assim, acontece a conversão, que muda suas

disposições em vista do Reino.

No caso da hemorroíssa (Lc 8, 40 – 56) sua confiança em Jesus era primitiva, mágica e,

por isso, toca no manto para obter a cura. Jesus não despreza a fé insipiente da mulher, mas a

acolhe e transforma a disposição pessoal para uma fé que salva. O contato com a orla do manto

de Jesus se transformou, pela iniciativa de misericórdia, num encontro que dá a ‘paz’ e leva à

plena comunhão e dignidade de uma filha de Deus (Lc 8, 48). Há, então, um crescimento da

confiança à fé, da segregação à comunhão jubilosa.208

207
Cf. Ibidem, p. 183.
208
Cf. FABRIS, Rinaldo. O evangelho de Lucas. In: Os evangelhos II , p. 97.
72

Nesse mesmo sentido acontece o diálogo com a samaritana (Jo 4, 1 – 42), onde se

evidencia, de um lado, a incompreensão humana diante do mistério de Deus e, do outro, a

paciente pedagogia divina que não apenas satisfaz as aspirações da pessoa humana, mas, antes,

também as suscita.209 Por isso, Jesus parte das aspirações imediatas (sede de água natural) para

que a samaritana descubra sua sede espiritual. Assim, tenta introduzir a mulher na salvação

simbolizada pela água. A samaritana intui algo do Dom de Deus e exclama em total abertura:

“Senhor, dá-me desta água”. (Jo 4, 15) Jesus, porém, não despreza a disposição interior da

mulher, pois “a resposta de Jesus ultrapassa o pedido. Deus não se limita a responder ao ser

humano; ele quer fazê-lo crescer. E o homem deve se modelar à medida do projeto de Deus e não

o contrário”.210

No caso de Marta e Maria (Lc 10, 38 – 42), Jesus trabalha a disposição pessoal na sua

inteireza. Ele mostra a Marta que ela está dividida entre o trabalho e a irmã, pois o unum

necessarium (cf. Lc 10, 42) é um coração bem disposto que coloque a pessoa inteira no

relacionamento com Deus.211

Curiosamente é num centurião romano (Lc 7, 1 – 10) que Jesus encontra a disposição

correta e se admira da sua fé (Lc. 7, 9). O centurião acredita plenamente na eficácia da Palavra. A

comunidade primitiva guardou o exemplo do centurião como estímulo de fé cristã: “desde a

confiança em Jesus, que pode e que quer curar, até o acolhimento de sua pessoa como enviado

autorizado de Deus e a abertura sincera e total, que vai além do dom da cura”.212
209
Cf. MAGGIONI, Bruno. O evangelho de João. In: Os evangelhos II, p. 315.
210
Ibidem, p. 316.
211
Cf. BARONTO, Luiz Eduardo. “Uma só coisa é necessária”. A respeito da participação plena. In: SILVA, José
Ariovaldo da; SIVINSKI, Marcelino (Orgs.). Liturgia um direito do povo, p. 60.
212
FABRIS, Rinaldo. O evangelho de Lucas. In: Os evangelhos II, p. 82.
73

Portanto, podemos concluir destas análises rápidas que Jesus, herdeiro da Aliança do povo

israelita, quer que os homens e mulheres se encontrem com o Deus da Aliança nele. O estilo de

comportamento motivacional de Jesus encontra diversos tipos de atitudes. Pode ser o total

fechamento dos incrédulos nazarenos que se prendem preconceituosamente apenas à figura

histórica do filho do carpinteiro. Neste caso não há saída para a salvação. Porém, pode acontecer

uma abertura parcial como a da hemorroíssa ou da samaritana, ou até mesmo de Nicodemos.

Nestes casos, Jesus não rejeita, mas parte da disposição atual e conduz à disposição correta. Jesus

também encontra os corretamente dispostos como o centurião e, neste caso, a obra de Deus se

realiza perfeitamente.

Do mesmo modo, em nossas celebrações eucarísticas podemos encontrar participantes

fechados na incredulidade. Há também aqueles que possuem disposições parcialmente corretas,

necessitando de formação para o pleno encontro com Deus. Há, ainda, os que têm as disposições

corretas e se tornam, por isso, motivadores dos outros.

O itinerário da formação da disposição pessoal e dos motivos foi ensinado por Jesus,

através de seu modo de ser. Esse itinerário foi seguido pela Igreja, que sempre acertou quando

usou a pedagogia de Jesus.

Nos próximos itens analisaremos como a Igreja adotou este estilo de comportamento

motivacional em sua liturgia ou como em certas épocas a motivação das disposições pessoais

ficou presa em certas dimensões do ser humano e não em sua totalidade.

3. O banquete eucarístico na Antigüidade cristã: da convivialidade à mistagogia.


74

3.1 O banquete eucarístico no tempo do Novo Testamento

Após a morte e ressurreição de Jesus, os cristãos, mesmo participando ainda do Templo e

da sinagoga, celebraram o culto próprio no Dia do Senhor, o primeiro da semana. No primeiro

século, em meio a perseguições, as celebrações eram nas casas dos próprios fiéis, possibilitando a

participação na simplicidade, num ambiente onde primava a convivialidade.

Os primeiros cristãos, fiéis na interpretação e interiorização da Palavra e unidos num

mesmo projeto de vida, eram “assíduos ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão fraterna, à

fração do pão e às orações”. (At 2, 42) A “fração do pão”, que fazia memória das refeições de

Jesus com os discípulos e, de modo particular, da última ceia, era uma refeição que acontecia

num clima de alegria messiânica e de simplicidade de coração, isto é, “uma atitude de dedicação

sincera e íntegra a Deus sem desvios”.213

213
FABRIS, Rinaldo. Os atos dos apóstolos, p. 76.
75

São Paulo exortava os cristãos de Corinto a participarem com as disposições corretas na

ceia do Senhor. No capítulo dez da primeira carta aos Coríntios, demonstra que apesar dos pais

terem atravessado o mar, caíram mortos no deserto e não entraram na terra prometida (cf. 1 Cor

10, 1-5). Do mesmo modo, o cristão não pode beber do cálice do Senhor e comungar da mesa da

idolatria. A disposição interior deve estar dirigida para o Senhor sem qualquer perversão: “não

podeis participar da mesa do Senhor e da mesa dos demônios” (1 Cor 10, 21), pois a participação

na mesa do Senhor é “co-participação dos fiéis na mesma realidade salvífica da morte de Cristo,

significada e causada pela Ceia do Senhor”.214 Na perspectiva paulina a participação é o sacrifício

dos fiéis que se une à divindade à qual se oferece a vítima, por isso é incompatível a práxis

eucarística com o culto idolátrico.215

Na mesma carta, tratando da ceia do Senhor (1 Cor 11, 17-34), São Paulo repele toda e

qualquer espécie de egoísmo que levava certos grupos a comer “a própria ceia” (1 Cor 11, 21)

excluindo os mais pobres. Através dessa atitude excluía-se qualquer dimensão comunitária na

refeição fraterna. Tais disposições egoístas e pecaminosas desnaturavam o sacramento. Por isso,

o Apóstolo exortava aos coríntios a uma participação consciente, de modo que cada um “examine

a si mesmo antes de comer desse pão e beber desse cálice, pois aquele que come e bebe sem

discernir o Corpo, come e bebe a própria condenação” (1 Cor 11, 28-29).

Como é necessária a disposição correta para se celebrar qualquer sacramento, é preciso

formar tal disposição. Pode acontecer que um missionário já a encontre praticamente formada,

como no caso de Filipe (At 8, 26-40) que se deparou com o desejo do eunuco de batizar-se.

Somente nestes casos é que se pode haver pouco tempo de preparação, pois não basta “um

214
BARBAGLIO, Giuseppe. As cartas de Paulo I, p. 295.
76

missionário enviado por Deus, é preciso, por parte de quem o encontra, a abertura sincera, a

busca da verdade”.216

3.2 A motivação das disposições pessoais na Antiguidade cristã

Uma vez formada a disposição pessoal dos participantes para a celebração, tal disposição

precisa ser motivada para que aconteça uma ação eficaz da graça. No judaísmo, o presidente da

ceia judaica, quando ia dar graças sobre o “cálice de bênção” se certificava da participação dos

convivas pelo convite “demos graças”. “É isto o que provavelmente fez o Senhor na última Ceia
217
antes de consagrar o cálice”, e não será temerário pensar que a origem da fórmula presente na

oração eucarística remonte daí.

Os apóstolos continuaram cumprindo o mandato do Senhor de celebrar a sua memória,

dentro de uma ceia pascal, constituída pela ação de graças e pelo “cálice da bênção”. Conforme

costume judaico, a ação de graças era precedida de uma exortação presidencial: Sursum corda e

Gratias agamus. Estes convites são encontrados juntos invariavelmente em toda a tradição

litúrgica com suas correspondentes respostas218 e penetraram na missa desde os tempos

primitivos, juntamente com o Dominus vobiscum e sua resposta Et cum spiritu tuo, de sabor

autenticamente semítico.219

215
Cf. Ibidem, p. 296.
216
FABRIS, Rinaldo. Os atos dos apóstolos, p. 165.
217
BOULET, Denis; MAURICE, Noële. Análise dos ritos e das orações da missa. In: MARTIMORT, Aimé Georges
(Org.). A Igreja em oração, p. 441.
218
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 12, p. 33.
219
Cf. Ibidem, n. 15, p. 37.
77

A ação de graças da ceia judaica tomou, então, um conteúdo cristão. Trata-se, pois, de

elementos e moldes antigos que passaram ao culto cristão, naturalmente informados de espírito

novo.220 Era natural que a salvação do gênero humano trazida por Cristo fosse motivo de

comemoração e de ação de graças. Como a ação de graças foi se enriquecendo e se estabilizando,

e ao mesmo tempo a comunidade foi crescendo, a função religiosa foi rompendo cada vez mais

os moldes de uma simples ceia doméstica, e a celebração eucarística foi se tornando independente

como um culto religioso autônomo.221

A idéia fundamental foi sempre comemorar num convite sagrado a paixão redentora do

Senhor. Por isso, aparece em primeiro plano a estrutura de um convite. Os fiéis estão ao redor de

uma mesa, ceando sob o véu de uma simples comida, o corpo e o sangue do Senhor. As palavras

que se pronunciam expressam o mandato do Senhor e evocam com sentimento de recordação e de

expectativa a vinda definitiva do Senhor. Assim como o sentimento da comunidade se expressa

plasticamente pelo convite, da mesma maneira na alma de todos se impõe imperiosamente a idéia

de união com o Senhor.222

Tudo isso ficou impresso na celebração eucarística através das fórmulas fixas da missa, a

única que é literalmente atestada no princípio do século III, por santo Hipólito: “Apresentem-lhe

os diáconos a oblação e ele (o bispo) impondo a mão sobre ela, dando graças com todo o

presbyterium; diga:

O Senhor esteja convosco.

Respondam todos:

E com o teu espírito.

- Corações para o alto!


220
Cf. Ibidem, n. 16, p. 38.
221
No desenvolvimento da ceia eucarística desaparecem as outras mesas da refeição doméstica, ficando somente a
mesa do presidente. Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 13, p. 34.
222
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 17, p. 38.
78

- Já os oferecemos ao Senhor.

- Demos graças ao Senhor.

- É digno e justo”. 223

Duas observações: ao dirigir-se assim ao povo, o bispo começa a ação de graças (gratias

agens), da qual o diálogo faz parte; todos devem responder, porque é o modo de todos tomarem

parte nesta ação de graças.224

O convite sagrado permaneceu na liturgia sob a forma de monição. No rito bizantino, o

diácono introduz a liturgia eucarística com recomendações: “Comportemo-nos bem, estejamos

com temor, ponhamos toda a atenção para oferecer em paz a santa anáfora”. Os caldeus dizem:

“Ao alto vossos corações”. Os sírios ocidentais atualmente desenvolvem: “nossas inteligências,

nossos pensamentos e nossos corações”. Os armênios ajuntam: “No temor do Senhor”.225

O convite desde o início, portanto, quer motivar a disposição dos fiéis na celebração do

banquete sagrado, de tal modo que possam se unir com o Senhor.

3.3 A mistagogia dos Padres da Igreja

A Igreja que submerge suas raízes no judaísmo, vai adentrando progressivamente no

mundo greco-latino. Ao mesmo tempo, o gnosticismo, através do dualismo, despreza a dimensão

material do ser humano, o que leva os autores cristãos a defender o lado exterior do culto cristão.

O arianismo faz com que se insista mais no aspecto divino do sacrifício, provocando o

afastamento do povo. No século III aumenta o número dos cristãos e as comunidades deixam as

223
TRADIÇÃO APOSTÓLICA DE HIPÓLITO DE ROMA, p. 40. “Illi uero offerant diacones oblationes, quique
(episcopus) imponens manus in eam cum omni praesbyterio dicat gratians agens: Dominus vobiscum. Et omnes
dicant: Et cum spiritu tuo. Sursum corda. Habemus ad dominum. Gratias agamus domino. Dignum et iustum est”. La
tradition apostolique de Saint Hippolyte, essai de reconstitutio par Dom Bernard Botte, p. 11-12.
224
Cf. BOULET, Denis; MAURICE, Noële. Análise dos ritos e das orações da missa. In: MARTIMORT, Aimé
Georges (Org.). A Igreja em oração, p. 441.
225
Ibidem, p. 442.
79

casas em busca de recintos próprios para o culto. Com o surgimento das basílicas, vai-se

perdendo aos poucos o caráter convival do banquete dos primeiros tempos.226

Em virtude do grande número de fiéis e da crescente separação entre o povo e o altar, os

diáconos são incumbidos de indicar as atitudes e posições corporais, através de monições ou

proclamações. (tais como flectamus genua, levate, ite missa est etc).·

Entretanto, apesar do aumento do número de participantes, a missa ainda comportava uma

participação ativa dos fiéis, pois alguns gestos e palavras são lembrados na catequese dos Padres
227
da Igreja, que através da catequese mistagógica procuravam formar a disposição interior dos
228
fiéis em vista da plena participação. Como o culto é acessível somente a quem tem fé, a

catequese é necessária para formar as disposições pessoais dos fiéis para que estes participem

ativamente.

A catequese feita aos cristãos pelos pastores da Antigüidade legou uma série de sermões

aos catecúmenos e aos neófitos de são Zenão, santo Agostinho, Teodoro de Mopsuéstia, são

Cirilo de Jerusalém, santo Ambrósio e são João Crisóstomo. Tal catequese não era a instrução

sobre um objeto religioso, mas a iniciação viva e orante que parte do próprio rito e visava levar os

fiéis ao interior do mistério do culto.229 A explicação da liturgia sempre existiu na Igreja, mas no

final do século IV toma a forma de catequese mistagógica.230

226
Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO,
Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 56-65.
227
Cf. BOULET, Denis; MAURICE, Noële. Análise dos ritos e das orações da missa. In: MARTIMORT, Aimé
Georges (Org.). A Igreja em oração, p. 367.
228
Catequese que “sabe partir de sinais litúrgicos ou referir-se a eles como dados de experiência e estruturas
portadoras de fé vivida na comunidade” SARTORE, Dominico. Catequese e liturgia. In: Dicionário de liturgia, p.
177.
229
Cf. ROGUET, Aimon-Marie. A pastoral litúrgica. In: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.). A Igreja em oração,
p. 277.
230
Cf. MAZZA, Enrico. La mistagogia: le catechesi liturgiche della fine del quarto secolo e il loro metodo, p. 7.
80

A mistagogia é um método de iniciação cristã que relaciona os vários ritos com os eventos

da salvação descritos na Sagrada Escritura.231 A tipologia bíblica é aplicada à liturgia. Em

primeiro lugar se descrevia o rito, tomava-se o texto bíblico relacionado com o rito e se refletia

sobre o evento de salvação que era trazido pelo texto bíblico. Por fim se procedia à aplicação à

liturgia do texto bíblico como evento da salvação.232

Como ilustração serão tomadas as catequeses de São Cirilo de Jerusalém, Santo

Ambrósio e São João Crisóstomo.

São Cirilo, (315-386) bispo de Jerusalém, quando ainda presbítero foi autor das

catequeses mistagógicas pronunciadas na igreja do Santo Sepulcro, durante a quaresma e semana

da Páscoa, sobre os sacramentos (batismo, confirmação e eucaristia) e sobre a liturgia de

Jerusalém. Na sua catequese preliminar, Cirilo considera que Deus é generoso para fazer o bem,

porém adverte aos eleitos, que ele “espera a disposição sincera de cada um. (...) O propósito

sincero faz de ti um eleito. Embora estejas presente com o corpo, se a mente está ausente, não

tiras nenhum proveito”.233 Cirilo exemplifica com a figura de Simão, o mago, (At 8, 13) que

mesmo sendo batizado, deixando o corpo descer à piscina, sua alma não foi com-sepultada com

Cristo. Conclui que Deus não exige de cada pessoa nada, a não ser a boa disposição. 234

Com relação à eucaristia, diz aos iluminados que em forma de pão é dado o corpo, e sob a

forma de vinho o sangue235 de tal modo que cada um se torna com-corpóreo e consangüíneo com

Cristo. Exorta os iluminados dizendo: “fortalece o teu coração tomando este pão como espiritual

231
Cf. Ibidem, p. 17.
232
Cf. MAZZA, Enrico. La mistagogia: le catechesi liturgiche della fine del quarto secolo e il loro metodo, p. 195-
197.
233
“‘,,
” CYRILLUS HIEROSOLYMITANUS, Pro catechesis, p. 336. Também CIRILO DE
JERUSALÉM. Catequeses pré-batismais, p. 11. 
234
Cf. CIRILO DE JERUSALÉM. Catequeses pré-batismais, p. 15.
235
Cf. CIRILO DE JERUSALÉM. Catequeses mistagógicas, p. 35.
81

e regozija o semblante de tua alma. Oxalá tendo a face descoberta, em consciência pura,

contemples a glória do Senhor”.236

Na terceira catequese aos iluminados toma a palavra de João Batista “preparai o caminho

do Senhor” (Mc 1, 1) e exorta, dizendo “Purificai os vasos de vossa alma por meio de uma fé

sincera para a recepção do Espírito Santo”.237

A obra de Santo Ambrósio, (340-397) bispo de Milão, se destaca pela maneira como

transmite a fé da Igreja. Dentre seus vários escritos, há um tratado sobre os mistérios e outro

sobre os sacramentos, focalizando a iniciação cristã: batismo, confirmação e eucaristia. Na

catequese sobre o batismo, diz aos neófitos, que ao se aproximarem da fonte batismal, não

poderiam duvidar como Naamã, o sírio, da eficácia das águas do Jordão (2 Rs 5). Por isso, diz-

lhes: “é preciso que vossa santidade esteja com os ouvidos atentos, o ânimo mais disposto para

que possais reter as coisas que podemos recolher da seqüência das Escrituras e do Espírito

Santo”...238 E acrescenta: “vias coisas que são corporais com os olhos corporais. Todavia, ainda

não podias ver com os olhos do teu coração as coisas que se referem aos sacramentos”.239

Para São João Crisóstomo (349-407) bispo de Constantinopla e autor de várias homilias

mistagógicas, a eficácia do sacramento reside força do Cristo e na presença de sua ação salvífica

236
“..


” CYRILLUS HIEROSOLYMITANUS, Catechesis III: Iluminorum, p. 1104. Também CIRILO
DE JERUSALÉM. Catequeses mistagógicas, p. 35.
237
“... 
”
CYRILLUS HIEROSOLYMITANUS, Catechesis XVII: Mystagogica IV, p. 426. Também CIRILO DE
JERUSALÉM. Catequeses pré-batismais, p. 36.
238
“Aliud opus, aliud, operatio. (...) Opus est ut sanctitas vestra aures paratas habeat, promptiorem animum; ut ea
quae nos colligere possumus de serie Scripturarum, et vobis intimaverimus, tenere possitis, ut habeatis gratiam
Patris, et Filii, et Spiritus Sancti”. AMBROSII, Sancti. De sacramentis: liber III, n. 12, p. 454. Também.
AMBRÓSIO DE MILÃO. Sobre os Sacramentos. In: Ambrósio de Milão, p 35 e 37.
239
“Videbas quae corporalia sunt, corporalibus oculis: sed quae sacramentorum sunt, cordis oculis adhuc videre non
poderas”. AMBROSII, Sancti. De sacramentis: Liber I, n. 15 e 24, p. 439 e 442. Também. AMBRÓSIO DE
MILÃO. Sobre os Sacramentos. In: Ambrósio de Milão, p 51.
82

no sacramento. Por isso considerava o sacramento como ação de Cristo e não do homem. 240 Ao

comentar a liturgia do batismo colocava em relevo as exigências morais dos sacramentos. 241 São

João Crisóstomo, como outros Padres orientais como são Basílio, buscava formar nos fiéis uma

consciência do próprio pecado, para se obter uma maior reverência ante os sagrados mistérios.

Essa mudança de disposição de alma está intimamente relacionada com a nova postura teológica

contra o arianismo, sublinhando a consubstancialidade do Filho, o seu esplendor diante da

pequenez humana. Então, a eucaristia é vista como o sacramento “terrível”, provocando, assim,

um distanciamento entre os fiéis e a liturgia. Isso refletiu na baixa freqüência na comunhão no

oriente, notada pelos Padres latinos dos séculos IV e V. Não é casual que a partir deste momento

se começa a alimentar no oriente uma intensificação do esplendor na celebração dos santos

mistérios.242

Vimos, então, a título de resumo, que a Igreja, mesmo herdando os elementos

fundamentais da tradição judaica, vive a sua própria liturgia nas casas, num ambiente de

convivialidade que propiciava uma participação intensa. Dentro do ambiente convival da ceia, as

monições surgem como convites presidenciais inspirados na liturgia judaica, a fim de dispor

interiormente os convivas à plena participação no que irá acontecer, formando assim, os motivos

do celebrante. A monição se torna, então, comemoração da paixão do Senhor dispondo os fiéis a

se unirem a ele.

Vimos isto em São Paulo, quando busca criar nos coríntios uma disposição interior correta

para a participação na ceia do Senhor, exortando-os a examinar as próprias disposições pessoais

240
Cf. MAZZA, Enrico. La Mistagogia: le catechesi liturgiche della fine del quarto secolo e il loro metodo, p. 153-
154.
241
Cf. Ibidem, p. 120.
242

Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 44, p. 68-69.


83

antes de cear. Essa formação das disposições pessoais continua nos Padres da Igreja, através da

mistagogia, isto é, iniciação orante que parte do próprio rito.

A diminuição da convivialidade, a acentuação demasiada do aspecto divino da celebração

eucarística e o aumento cada vez maior do esplendor exterior provocam o afastamento do povo

do altar e da participação ativa. As poucas monições que existem vão se petrificando juntamente

com a liturgia ou se transformam em indicações de posições do corpo e outras instruções.

Na Idade Média surge o alegorismo litúrgico como uma forma de reação à diminuição da

participação através da explicação da liturgia, que pretendia formar as disposições pessoais

conforme veremos no próximo item.

4. O alegorismo medieval

4.1 A celebração eucarística na Idade Média

Com a inserção cristã em todo o tecido da vida civil e cultural, a aproximação Igreja e

Estado a partir de 313 (o Edito de Milão), começam a entrar em ação as formulações estudadas e

fixas para a liturgia. Inicia-se o processo de fixação de fórmulas cultuais e a centralização em

Roma, apesar da existência de várias famílias litúrgicas (Galicana, Africana, Ambrosiana etc.). 243

Ao mesmo tempo, a “divinização” crescente do banquete sacrifical provoca um sentimento

purista, e uma busca cada vez maior de uma pureza interior, sendo muitas vezes uma pureza

legal.244 Por outro lado os “clérigos e religiosos ligam cada vez maior importância material aos

243
Cf. MARSILI, Salvatore. A liturgia momento histórico da salvação. In: A liturgia momento histórico da salvação,
p. 57-68.
244
Cf. Ibidem, p. 89.
84

245
ofícios litúrgicos que se alongam e se complicam”. A liturgia passa a ser ocupação de

especialistas.

A insistência na função sacerdotal dos ministros sagrados e na presença real de Cristo na

eucaristia faz com que as partículas, antes postas nas mãos dos fiéis, sejam colocadas na língua,

para que assim se tenha um trato mais reverente com o sacramento “terrível”. 246 Neste período se

cria uma linha divisória entre o altar e o povo, clero e leigos, entre os ministros da função

sacramental e a comunidade que participa, criando-se, ao mesmo tempo, um muro de separação

na construção de igrejas. O altar se retira para o fundo da igreja, se afastando do povo. O

afastamento do povo do altar e o exclusivismo clerical na liturgia faz com que desapareça a

participação ativa do povo.

A hierarquia eclesiástica desempenha, então, um papel ativo e importante, enquanto o

papel do povo se reduz à oferta dos elementos para o sacrifício, ao ósculo da paz e à comunhão.

Da parte dos fiéis prevalece o silêncio, devido, não sobretudo, ao latim, perfeitamente

compreendido até o século VII, mas ao desenvolvimento da técnica musical restrita a

especialistas.247 A schola cantorum se coloca entre o presbitério e o povo, como ponte entre os

fiéis e os sacerdotes.248

A partir do século VII, a sensibilidade religiosa franco-germânica começa influenciar a

Liturgia Romana. A liturgia franco-germânica, influenciada pela liturgia oriental, provoca uma

245
BOTTE, Bernard. Esboço duma história da liturgia. In: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.). A Igreja em
oração, p. 89.

246
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 111-112, p. 124-126.
247
Cf. BOULET, Denis; MAURICE, Noële. Análise dos ritos e das orações da missa. In: MARTIMORT, Aimé
Georges (Org.). A Igreja em oração, p. 338-339.
248
“Os cantores executam textos litúrgicos reservados antes aos fiéis, as melodias, agora mais ricas e complexas
exigem intérpretes especializados. Os fiéis escutam, deleitam-se e se comovem; trata-se de um novo tipo de
participação na liturgia, menos interior e mais passivo, mas talvez a única possível nas condições de culto daquela
época”. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO,
Dionisio (Org.). A celebração da Igreja 1. Vol. , p. 86.
85

predileção pelo dramático249 e as lutas contra o arianismo levam a uma exaltação da dignidade

divina, substituindo também a idéia de Igreja, “comunidade dos redimidos”, pela concepção de

Igreja militante, composta de hierarquia e povo.250

249
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 100, p. 116.
250
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 109, p. 122.
86

Como a influência franco-germânica acentua a importância do privado em detrimento do

comunitário, concebe-se o culto em vista da salvação do indivíduo. 251 Por isso, multiplicam-se as

missas e o número de sacerdotes, proliferando-se os altares nas igrejas. O sacerdote recita

sozinho as leituras e os cantos, agora contidos num missal plenário.252

4.2 A alegoria e as expositiones missae

A liturgia cristã, diferentemente de muitos cultos não cristãos, exige uma compreensão do

culto que celebra. No início do Cristianismo tinha-se por certo que os ritos litúrgicos, em seus

gestos e palavras, eram imediatamente acessíveis aos neófitos, sem explicação; somente mais

tarde passou-se a oferecer uma interpretação cristã mais profunda deles.253 Surgem então, as

catequeses mistagógicas como foi visto. (Cf. item 4.3)

251
Cf. BOULET, Denis; MAURICE, Noële. Análise dos ritos e das orações da missa. In: MARTIMORT, Aimé
Georges (Org.). A Igreja em oração, p. 339.
252
Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO,
Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 92.
253
Cf. Ibidem, p. 95.
87

No despontar da Idade Média, com o afastamento entre o povo e o altar e a multiplicação

das missas em função da necessidade pessoal dos sacerdotes, a liturgia para os fiéis começou a

carecer do verdadeiro sentido proveniente da tradição. Surgem, então, as “explicações” para

tentar suprir esta lacuna, temos as Expositiones missae, que são uma maneira de explicar a missa

e fomentar sua devoção. São Gregório Magno (540-604), pai da devoção à missa, e Santo Isidoro

de Sevilha, (560-636) com seus Etymologiarum libri e De ecclesiasticis officiis, forneceram à

cultura medieval um método de ensino que pretendia substituir as antigas catequeses

mistagógicas dos Padres. Esses escritos inspiraram as Expositiones Missae, que acompanharam e
254
formaram toda a Idade Média na compreensão da celebração eucarística. Tais Expositiones,

para obterem tal compreensão, em poucas páginas ou em opúsculos volumosos, se detiveram na

explicação de cada parte e das diversas passagens da celebração, enquanto outras se contentaram

com esclarecer apenas as fórmulas do cânon romano.255

A reforma carolíngia da liturgia (a partir da adoção da liturgia Romana no Império

Franco-Germânico por Pepino, o Breve, em 754) procura fazer com que os fiéis participem da

missa, respondendo ao Kyrie eleison, ao Dominus vobiscum e cantando o Sanctus, e são também

exortados a participar da procissão das oferendas e do ósculo da paz. Os clérigos, por sua vez, são

obrigados a explicar o culto cristão. Com esse objetivo são escritos os comentários à missa ao

final do século VIII. Até aqui, este esforço de explicar a missa estava baseado nos textos

litúrgicos.

254
Cf. MARSILI, Salvatore. Teologia da celebração eucarística. In: A eucaristia: teologia e história da celebração, p.
100.
255
Há nesses escritos duas tendência: “uma se preocupa com a explicação do teor verbal do rito, salientando o
pensamento de fé contido nas fórmulas; a outra se dedica toda a uma leitura fortemente alegórica, tanto dos gestos
como das palavras da celebração que se tornam assim a cada momento ocasião de novas visões”. MARSILI,
Salvatore. Teologia da celebração eucarística. In: A eucaristia: teologia e história da celebração, p. 101.
88

Um pouco mais tarde, porém, surge um outro gênero de comentário, que prescinde do

texto da missa e se fixa exclusivamente no seu desenvolvimento exterior: o comentário

alegórico.256 Este gênero, já conhecido na era pré-cristã, não parte do locus teológico da liturgia,

mas de interpretações aleatórias do desenvolvimento exterior do culto, cujos textos naquela altura

começam a se tornar estranhos por causa da língua. Recorre-se, justamente, aos comentários

alegóricos porque a liturgia se tornara obscura para o povo. 257 Nesse contexto, as monições

definitivamente se tornam partes fixas do rito e não motivam mais os fiéis, que apenas assistem a

celebração.

Alcuíno foi quem aplicou primeiro à liturgia romana o método alegórico, embora tenha

sido o seu discípulo seu discípulo Amalário de Metz 258 (na Gália, + 837), quem o utilizou em

grande escala, inspirando-se talvez no Oriente.259

Amalário interpreta tudo na liturgia a seu modo: as pessoas, vestes, objetos litúrgicos,

horas, ações, e com toda a classe de alegorias, sejam alusões morais (alegoria moral) ou o

cumprimento de figuras do Antigo Testamento (alegoria figurativa), ou acontecimentos da

História da Salvação (alegoria rememorativa), ou, finalmente, alusões aos últimos tempos

(alegoria escatológica). Por exemplo, as sete velas que os acólitos levam são os sete dons do
260
Espírito Santo; a subida do Bispo ao trono significa Jesus Cristo sentado a direita do Pai etc.

Estas interpretações revelam uma fantasia e uma criatividade notáveis. Não podemos negar,

contudo, que o gênero de comentários da missa cultivado por Amalário foi, em geral, decisivo

para a época por insistir na participação litúrgica.261


256
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 115, p. 127.
257
Cf. Idem.

258
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 116, p. 128.
259
Cf. MARSILI, Salvatore. Teologia da celebração eucarística. In: A eucaristia: teologia e história da celebração, p.
101.
260
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 118, p. 131.
261
Cf. Ibidem, n. 121, p. 133-134.
89

A partir do século XI, os detalhes se sobrepõem ao essencial, como, por exemplo, os

sinais das cruzes sobre as oferendas se tornam o tema principal das explicações populares sobre a

missa. Uma poesia didática desta época sugere que os sinais das cruzes devem despertar tanto

interesse no conhecimento do clero, quanto o significado do altar, do cálice, do sacrifício. A

missa era, então, vista não tanto como mistério celebrado, mas como uma representação

dramática do processo de nossa salvação.262

Surgem reações contra o alegorismo com o realismo sacramental de Agoberdo, bispo de

Lião (+ 840) e de Floro (+ 860) seu diácono.263

Mais tarde também Inocêncio III, tentando reagir contra o exagero do alegorismo, se

limita quase por completo à interpretação tradicional da vida e paixão de Cristo, que expõe com

simplicidade e relativa clareza.264 Também a Escolástica se posiciona contra o alegorismo. Santo

Alberto Magno apresenta uma explicação teologicamente sólida da missa e lança repetidos e

fortes ataques contra a interpretação alegórica, particularmente a rememorativa. Os comentários

escolásticos, diferentemente do alegorismo, não se atêm ao exterior, mas aos pontos de vista

internos e teológicos da celebração. 265

Porém, a alegoria consegue prevalecer sobre os comentários escolásticos porque atinge o

ser humano por inteiro, sentimentos e razão, modificando assim as disposições interiores,

enquanto os comentários escolásticos, através de abstrações racionais, atingem sobretudo o

intelecto e não os sentimentos.

Foi, pois, a alegoria que deixou vestígios na celebração litúrgica, contribuindo para que a

missa fosse vista como a mais clara representação sagrada. Um exemplo é a concepção da missa

262
Cf. Ibidem, n. 148, p. 156.
263
Cf. MARSILI, Salvatore. Teologia da Celebração Eucarística. In: A Eucaristia. Teologia e história da Celebração,
p. 102.
264
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 151, p. 159.
265
Cf. Ibidem, n. 154, p. 161.
90

como epifania através da introdução da elevação das sagradas espécies na consagração

introduzida no final do século XII.266

Na baixa Idade Média, a interpretação alegórica da missa passou por um período de certa

confusão por causa do cruzamento de interpretações que misturou elementos de diversos


267
sistemas. Tudo isso teve conseqüência imediata na participação ativa na liturgia. O povo vai

dando importância cada vez maior à devoção, fundada na audiência do sacrifício da missa e não

na comunhão sacramental, prevalecendo o aspecto da santificação pessoal e obtenção de

favores.268

Os comentários alegóricos, diante de uma liturgia distante e monopolizada pelo clero,

tentaram possibilitar aos fiéis uma certa participação litúrgica, mesmo que por devoção. O fiel

era convidado a assistir um “espetáculo”, um drama complexo da vida de Cristo, em especial a

paixão. Mas como a disposição interior era conduzida e alimentada pelas devoções, infelizmente,

foi se desviando da centralidade do Mistério Pascal.

Como vimos foi na Idade Média, que a participação ativa dos fiéis desapareceu

progressivamente, enquanto o clero monopoliza a ação litúrgica transformando o povo em

espectador. A reforma carolíngia tenta possibilitar a participação popular, através sobretudo das

Expositiones Missae. Mas é a alegoria, que toca o coração dos fiéis. Porém torna a celebração

eucarística uma representação dramática do sacrifício de Cristo e os fiéis, reduzidos a

espectadores, assistem a essa representação transformando a missa em devoção. Isto descentraliza

a disposição interior da objetividade da liturgia: a celebração do Mistério Pascal.

266
Cf. Ibidem, n. 158, p. 167.
267
Cf. Ibidem, n. 153, p. 161.
268
Cf. MARSILI, Salvatore. Teologia da celebração eucarística. In: A eucaristia: teologia e história da celebração, p.
92-93.
91

O Concílio de Trento tenta limpar os adornos inúteis e simplificar a missa, mas as

controvérsias da Reforma provocam outras reações conforme veremos a seguir.

5. A aplicação rubricista de Trento

A Liturgia Romana, sob a influência da Liturgia Galicana, assume características de

dramaticidade, multiplicação das orações privadas, consciência maior do pecado e lirismo,

tornando o povo mais passivo, sentimental e afastado do altar. A reforma de Gregório VII

aumenta o poder do clero e, por isso, a missa se enche de devoções particulares e apologias.269

Nessa situação a Igreja entra na Renascença. Fatos como o descobrimento da América, a

invenção da imprensa, a ânsia por conhecimento e liberdade suscitada pelo Iluminismo,

possibilitam o surgimento da Reforma Protestante como resposta à falta da reforma interna que a

Igreja poderia ter feito nos séculos XIV e XV.270

O pensamento de Lutero a respeito dos sacramentos e sua idéia de participação litúrgica,

são complexos e não é o caso de serem aprofundados. Sabe-se que ele viveu uma realidade

litúrgica excessivamente exterior e carente de compreensão teológica, sobretudo no que refere à

teologia do signo. Chegou mesmo a ter dificuldade com o aspecto visível da própria Igreja.

Quando ensinava os salmos em Wittenberg, de 1513 a 1515 (Dicta super psalterium), sustentava

que a Igreja é uma realidade puramente espiritual e escondida e, por isso, a estrutura da Igreja de

Cristo é invisível aos olhos humanos, tendo unicamente sua visibilidade diante de Deus. 271 É em

função desta eclesiologia espiritual e escondida que Lutero passa estruturar sua teologia

sacramental. Não podendo admitir a visibilidade da Igreja, também não pode admitir a

visibilidade causal dos sinais sacramentais, considerados meros signos motivantes da fé. Desta
269
Orações ditas em voz baixa pedindo perdão pelos próprios pecados ou de outros.
270
Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: Dionisio BOROBIO
(Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 112.
271
Cf. ARNAU-GARCÍA, Ramón. Tratado general de los sacramentos, p. 131.
92

forma, Lutero rejeita de forma absoluta que a graça de Deus dependa de uma ação realizada por

uma pessoa humana, nem mesmo de maneira instrumental (Santo Tomas) ou moral (Duns Scoto)

e nega terminantemente a mediação sacramental.272 Então, a motivação litúrgica estava fundada

numa relação pessoal de fé, já que o efeito dos sacramentos é fundamentalmente o perdão dos

pecados e nada mais do que a alimentação da fé. 273 A reflexão de Lutero sobre a liturgia estava

ligada à sua idéia de salvação, isto é, à justificação pela fé e não pelas obras. Por isso, Lutero

queria uma liturgia que promovesse a fé e o amor nas comunidades. Para que isso se efetivasse

era necessário tornar acessível e perceptível no culto que é o próprio Deus que age em relação à

comunidade e se dispõe a servi-la.274

A Reforma, influenciada pelo Iluminismo, propunha um culto que tivesse por objetivo o

sossego e a paz interior do participante, de modo a saciar o sentimento religioso. A prédica da

Palavra de Deus se torna o centro do culto, com o objeto do ensino religioso e moral. O culto

visava, como meio e fim, a doutrinação e o fomento da virtude humana. 275 A organização da

missa feita por Lutero, nesse anseio pedagógico, converte o prefácio e as demais partes da oração

eucarística na exortação aos que iam receber o sacramento.276

O Concílio de Trento (1545-1563) diante das contestações dos reformadores protestantes

e da ambígua disciplina vigente na liturgia procura, através de medidas centralizadoras, disciplina

a liturgia. Os decretos dogmáticos e disciplinares da vigésima segunda sessão do Concílio (17 de

setembro de 1562), marcam o ponto de partida de toda a renovação litúrgica. O valor sacrifical da

missa é solidamente definido, bem como a legitimidade dos ritos e a dignidade do cânon romano.

272
Cf. De Captivitate Babylonica. In: LUTERO, Martin. WA. Werke–Weimar, 6, 550, 25-27.
273
“Omnia sacramenta ad ficen alendum sunt institura”: LUTERO, Martin. De Captivitate Babylonica. In: WA.
Werke–Weimar, 6, 529, 36.
274
Cf. RIETH, Ricardo Willy. Lutero e o culto cristão, TEAR, n. 9, p. 07-08.
275
Cf. WACHHOLZ, Wilhelm. Liturgia no Iluminismo, TEAR, n. 9, p. 08-09.
276
Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO,
Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 113.
93

Na vigésima quinta sessão é remetida ao Papa Pio V toda a documentação e confia-lhe o cuidado

de promulgar o Missal e o Breviário reformados. É decretada a uniformidade na celebração, que

impunha a codificação das regras desta mesma celebração.277

Enquanto no imaginário protestante se dava importância à confiança e à fé na misericórdia

de Deus, como atenuantes do peso da ameaça da condenação eterna; o Concílio enfatiza que

Cristo age nos sacramentos ex opere operato, proporcionando aos católicos a segurança que a

fraqueza e a pecaminosidade do opus operantis lhes negavam.278 O Concílio mantém o costume

de não celebrar a missa em “língua vulgar”, mas considerando o grande poder catequético da

missa, manda que durante a celebração “freqüentemente” se explique alguma coisa daquilo que

se lê na missa, e também “um ou outro dos mistérios deste santíssimo sacrifício”.279

Trento assume a tarefa de discernir a verdade da doutrina católica, como objeto essencial,

evidenciando os aspectos unilaterais e reducionistas da doutrina da Reforma.280 Porém se

restringe em rejeitar as acusações protestantes que se dirigiam ao rito da missa, sua estrutura e

seus elementos, não realizando uma reforma mais profunda. Portanto, se restringiu à missa como

era descrita nos livros litúrgicos e não como ela era realmente celebrada naquela época. 281 O

Concílio procura, pois, influenciado também pelo Iluminismo, limpar os adornos inúteis e ter

uma liturgia simples e concisa, mas as mudanças na missa são insignificantes. 282

277
Cf. BOTTE, Bernard. Esboço duma história da liturgia. In: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.). A Igreja em
oração, p. 51-53.
278
Cf. LIBÂNIO, João Batista. A volta à grande disciplina: reflexão teológico-pastoral sobre a atual conjuntura da
Igreja, p. 45.
279
“Mandat sancta Synodus pastoribus et singulis curam animarum gerentibus, ut frequenter inter Missarum
celebrationem vel per se vel per alios, ex his, quae in Missa leguntur, exponant atque inter cetera sanctissimi huius
sacrificii mysterium aliquod declarent, diebus praesertim Dominicis et festis”. DENZINGER, Enrique. El Magistério
de la Iglesia, DS n. 1749.
280
Cf. BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO,
Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 113.
281
Cf. MARSILI, Salvatore. Teologia da celebração eucarística. In: A eucaristia: teologia e história da celebração, p.
102.
282
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 186 e 190, p. 191 e 195.
94

Com a criação da Congregação dos Ritos (1588) a Liturgia Romana se purifica.

Entretanto, entra num período de hibernação ou petrificação total, pois após mil e quinhentos

anos de uma relativa evolução, supervisionada mais ou menos pela autoridade suprema, segue-se

um período de completa imutabilidade.283 “O desenvolvimento do juridismo litúrgico e o aumento

do culto dos santos que tende a submergir o ciclo dos mistérios redentores, (...) o juridismo e a

casuística litúrgicos tomaram lugar cada vez mais preponderante na prática do culto e no

ensino”.284 A evolução litúrgica é substituída pela descrição jurídico-casuística do definitivamente

fixado, surgindo, então, uma ciência especial, a ciência dos rubricistas.285

Nesse contexto de petrificação da liturgia e de uma visão juridista da mesma, a

participação dos fiéis nas orações do sacerdote, oferecendo o sacrifício em íntima união com ele,

não entrava na preocupação da época. Pois, os católicos, diante da negação dos reformadores

protestantes de um sacerdócio especial, sublinham a realidade do sacerdócio ministerial e sua

diferença do sacerdócio comum. Nesse contexto, aos fiéis se recomenda a comunhão freqüente,

porém não se insiste na idéia de comunhão no sacrifício de Cristo. 286 O povo afastado

forçosamente de sua fonte primária e fundamental, a liturgia, “desvia-se para caminhos

secundários, para devoções particulares que compensam o vazio e a inadequação do culto em sua

expressão oficial”.287

Seguem-se três séculos de imobilismo litúrgico (séculos XVII, XVIII e XIX).

A liturgia medieval, purificada pelo Concílio de Trento, faz com que desapareçam os

abusos. Entretanto, a participação ativa do povo desaparece também, tornando-se exclusiva do

283
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 186 e 190, p. 191 e 195.
284
BOTTE, Bernard. Esboço duma história da liturgia. In: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.). A Igreja em
oração, p. 54-55.
285
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 191, p. 196.
286
Cf. Ibidem, n. 193, p. 197-198.
287
BASURKO, Xabier. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO, Dionisio
(org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 120.
95

sacerdote. Era proibido por decreto de Alexandre VII (1661) traduzir os textos do Missal Romano

em outras línguas, sob pena de excomunhão. A mentalidade de que os fiéis não deveriam se

servir das orações latinas do Missal, mas venerá-las sem compreender através do véu do mistério,

significava um retorno à concepção vetero-testamentária de que somente o sacerdote poderia

entrar no santuário. 288

Os fiéis seguem de longe as cerimônias e para suprir tal distância se fomentam os

devocionários com explicações gerais sobre a missa: seu valor e seus frutos como representação

da paixão de Cristo. Entretanto, o empirismo iluminista faz com que a alegoria vá perdendo a sua

eficácia, bastando ao povo seguir as cerimônias silêncio. Para suprir tal dificuldade, os

devocionários, um pouco mais tarde, começam a trazer alguns formulários de orações.289

Como tais devocionários não chegaram à grande massa, os jesuítas nas missões populares

(século XVIII) faziam os fieis intervir na missa, através das devoções (como o santo rosário) ou

do canto em comum, independentemente do rito. Tal método pode ser considerado antilitúrgico

atualmente, mas era a única possibilidade de se alimentar a fé e a motivação. De certa forma,

estes cantos e orações traziam em seus textos a significação da missa, isto é, a memória da paixão

e do sacrifício do Senhor.290

288
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n.195-196, p. 199-200.
289
Cf. Ibidem, n. 196-197, p. 200-201.
290
Cf. Ibidem, n. 198-199, p. 202.
96

Diante dessa situação surgem reações. Liturgistas, com idéias iluministas, buscam uma

liturgia despojada de todo excesso sentimental trazido pelo Barroco e propõem voltar a uma

elegante simplicidade. Os mais extremistas buscavam transformar o culto divino em momento

educativo prático, sem conexão com mistério. O desejo era também a participação dos fiéis. Por

isso, ansiava-se pela difusão de devocionários que trouxessem as orações da missa traduzidas.

Outros postulados foram propostos pelo Sínodo de Pistoya (1786) tais como: toda a comunidade

deveria celebrar somente uma missa ao mesmo tempo, acompanhada pelo povo com cantos em

língua vulgar. Propugnava-se também pela redução do número de altares. Tais proposições foram

consideradas temerárias por Pio VI através da bula Auctorem fidei e tiveram que esperar o

Concílio Vaticano II para serem postas em prática.291

Em reação às propostas iluministas, surge o Movimento Ciciliano que prega um respeito

devido à constituição hierárquica da Igreja e pela tradição. O Movimento exalta a beleza das

orações latinas e a dignidade das cerimônias. Por isso, insiste-se na restauração do texto litúrgico

em sua integridade em latim e se condena qualquer mescla de textos em língua vulgar na missa

cantada. O Movimento Ciciliano é partidário da exclusão do povo da participação na missa,

sublinha que o papel do povo é de espectador da ação sagrada e não aceita qualquer intento de

explicação na liturgia. Pois se afirmava que a liturgia é uma obra perfeita, não devendo ser

alterada ou modificada.

Como vimos, a reação tridentina à ânsia reformadora protestante leva a uma liturgia

disciplinada e uniformizada, o que reforça o afastamento do povo e torna os sacerdotes

ministeriais em únicos celebrantes da liturgia.

291

Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 205 - 206, p. 210 - 212.


97

Juntamente com toda a liturgia, a monição também entra na uniformização e perde seu

aspecto de motivação das disposições pessoais dos fiéis. Trento mantém o latim na liturgia,

porém para garantir alguma participação aos fiéis, introduz explicações que perduram até hoje

através dos comentários nas celebrações. A participação do povo no Mistério Pascal é desviada

para outras fontes. Os fiéis mais abastados participam através de devocionários que

representavam uma ânsia de instruir sobre a missa, ainda hoje perceptível em nossos folhetos

litúrgicos. A maioria dos fiéis, os mais pobres, participavam através do canto popular ou de

orações (por exemplo, o rosário), criando predileção popular pelas devoções em detrimento da

liturgia. Nesse período pós Concílio de Trento, devocionários, devoções e cânticos populares,

procuram motivar de certa forma a disposição pessoal na liturgia, porém os fiéis continuam cada

vez mais afastados da celebração do Mistério Pascal. Entretanto, essas formas de participação

parcial foram o alimento da vida espiritual até o Concílio Vaticano II.

Diante dessa situação, surgem tentativas de reforma para promover a participação plena

na liturgia, que a época não permitiu que fossem avante, porém abrem caminho para que surja o

Movimento Litúrgico.

6. O Movimento Litúrgico e a busca pela participação plena do povo

O ideal da participação ativa foi lançado já nos finais do século XVII, como resultado do

estudo da Antigüidade cristã. Tomou forma nas liturgias neo-galicanas, que já se utilizavam o

francês como língua litúrgica em reação ao afastamento dos leigos da liturgia.292

No século XIX, surge o Romantismo, com o culto da tradição e da história, a busca da

forma romana original. Começa-se a recuperar a história da liturgia, levando estudiosos a uma

posição mais crítica da prática litúrgica da Idade Média e do Concílio de Trento.

292
Cf. CLERK, Paul de. La participacion en la liturgia; la aportacion de las ciencias humanas, Phase, 179, p. 361.
98

Esse ideal da participação ativa foi abraçado pelo Movimento Litúrgico, lançado no final

do século XIX por Dom Próspero Guérenger na França e assumido como experiência pelas

abadias de Beuron e Maria Laach, na Alemanha.

O Movimento Litúrgico teve por objetivo resgatar os verdadeiros valores da celebração

litúrgica, que se haviam perdido, buscando nos Santos Padres as fontes da liturgia. O Movimento

Litúrgico sublinha aspectos mais pastorais para se levar a uma maior participação do povo na

liturgia.293

No século XX, o papa Pio X (22.11.1903) promulga um documento sobre a música sacra,

no qual declara a participação ativa na liturgia como fonte da espiritualidade cristã: “Sendo de

fato nosso vivíssimo desejo que o espírito cristão refloresça em tudo e se mantenha em todo os

fiéis, é necessário prover, antes de qualquer coisa, à santidade e dignidade do templo, onde os

fiéis se reúnem precisamente para haurirem esse espírito da sua primária e indispensável fonte: a

participação ativa nos sacrossantos mistérios e na oração pública e solene da Igreja”.294

A participação ativa e plena se torna a principal bandeira do Movimento Litúrgico. O

início oficial do Movimento Litúrgico é em 1909, no Congresso de Malines, no qual Dom

Lambert Beauduin apresentou seu relatório sobre a participação dos fiéis no culto cristão. O

Movimento segue com semanas de estudo de liturgia, revistas de liturgia e a criação de centros de

estudo.

Um marco no Movimento Litúrgico é a encíclica do papa Pio XII, “Mediator Dei”, que

esclarece conceitos e incentiva o Movimento. Quanto à participação, o papa afirma que deve ser

externa e interna, dando, de forma integrada, a participação plena. 295 Ressalta a disposição

293
Cf. MARSILI, Salvatore. Rumo a uma teologia da liturgia. In: A liturgia momento histórico da salvação, p. 88-95.
294
PIO X, SS. Moto próprio sobre liturgia e musica sacra: tra le sollecitudim: Introdução, p. 05.
295
Cf. PIO XII, SS. Carta encíclica Mediator Dei, p. 14-15.
99

interior, quando afirma que os sacramentos são ações do próprio Cristo, mas “para terem a devida

eficácia, exigem as boas disposições da nossa alma”.296

A partir da Encíclica surgem várias mudanças que procuram promover a participação:

- reforma da Vigília Pascal e da Semana Santa (1951);

- missa vespertina; (1955)

- a simplificação das rubricas (1955);

Na Instrução sobre a música sacra e a liturgia, (1956) o papa Pio XII discorre sobre os

princípios gerais da participação dos fiéis. Afirma que a participação deve ser antes de tudo

interna, exercida pela piedosa atenção do espírito e pelos afetos do coração, e é tal participação

que se manifesta por atos exteriores.297 O objetivo principal da participação é pois, “um culto

mais perfeito a Deus e a edificação dos fiéis”. 298 O documento enfatiza a participação interna

como base para a participação externa.

O Movimento Litúrgico tentou possibilitar a participação do povo com as chamadas

“missas dialogadas”, onde os fiéis utilizavam-se dos missais para expressar a dimensão interior

da participação através das orações dita em voz alta. 299 Entretanto, a liturgia continua em latim.

Por isso, a explicação nascida no Concílio de Trento, se torna comentário que vai cada vez mais

invadindo toda a missa.

296
Ibidem, p. 17.
297
Cf. PIO XII, SS. Instrução sobre música sacra e a sagrada liturgia, n. 22.
298
Ibidem, n. 23.
299
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 216, p. 223.
100

O comentário é introduzido por causa da transmissão radiofônica da missa, na tentativa de

se descrever pela palavra a imagem que não se podia ver. 300 Com a Instrução sobre a música

sacra, a figura do comentador é incentivada, de tal modo que este substitui o diácono na direção

do povo com as monições. As monições eram compreendidas como meios de determinar a atitude

exterior do fiel na celebração e instrumentos para explicar o motivo pelo qual se deve em certos

momentos levantar-se, sentar-se ou ajoelhar-se.301 Então, a função do comentador é explicar a

celebração e não ajudar os fiéis a participar. Todas as mudanças pensadas pelo Movimento

Litúrgico são levadas a efeito pelo Concílio Vaticano II, que tenta atingir o equilíbrio e a

integração entre as dimensões interna e externa da participação.

7. Participação e disposição pessoal na Sacrosanctum Concilium

Desde o início do século vinte com o papa Pio X, já se alertava para a participação dos

fiéis na liturgia como fonte primordial e indispensável do espírito cristão. Intensificou-se assim

uma linha mais especificamente pastoral dentro do Movimento Litúrgico. O Concílio Ecumênico

Vaticano II foi o cume de todo o desenvolvimento do Movimento Litúrgico, com a Constituição

Sacrosanctum Concilium.302

A SC afirma que para se conseguir a eficácia da liturgia pela participação, é necessário

que os fiéis se acerquem da liturgia com disposições de reta intenção (cum recti animi

dispositionibus) e “sintonizem a sua alma com as palavras e cooperem com a graça do alto, a fim

de que não a recebam em vão”. (SC 11)

A natureza da liturgia (cf. SC 5-10) exige a participação dos fiéis (cf. SC 11-13) no

Mistério Pascal. Para que tal participação aconteça é preciso que os fiéis sejam formados para a

300
Cf. DELLA TORRE, Luigi. Corso di pastorale liturgica: la pastorale liturgica dei tempi sacri e della messa, p. 60.
301
Cf. MARTIMORT, Aimé Georges. Estrutura e leis da celebração litúrgica. In: MARTIMORT, Aimé Georges
(Org.). A Igreja em oração, p. 182.
302
Cf. MARTÍN, Julián L. No espírito e na verdade: introdução antropológica à liturgia, p. 398.
101

participação. (Cf. SC 14 e 19) O Concílio considera que tal formação depende dos pastores (cf.

SC 15 e 18), que também precisam de formação litúrgica (Cf. SC 16 e 17).

A partir da aplicação da reforma litúrgica, a participação dos fiéis na liturgia aumentou

muito mediante as orações, os cânticos, o modo de comportar-se e o recolhimento na celebração

eucarística, tudo isto facilitado enormemente pela adaptação às línguas vernáculas.303

Entretanto, a passagem de uma liturgia petrificada e de assistência passiva para uma

participação plena e criativa foi uma exigência demasiado forte para certas pessoas. Isto levou, de

um lado, ao apego às formas litúrgicas precedentes, e, de outro, a inovações fantasiosas ou

selvagens.304 De ambos os lados se padeceu bastante. Tanto o fechamento como a abertura sem

profundidade teológica nem formação adequada geraram muitos mal-entendidos. Algumas

dificuldades no campo da renovação litúrgica estão muito presentes atualmente. Produziram-se

textos celebrativos descurados de sua riqueza ritual, com pretensões didáticas e pedagógicas.

Procuraram-se adaptar a liturgia à compreensão dos fiéis, o que provocou um didatismo em

matéria de fé (missas temáticas) e celebrações moralizantes. A interpretação dos textos

conciliares possibilitou uma visão racionalista da liturgia, porém não podemos esquecer que a

liturgia é “antes de tudo simbólica, por isso, não se entende ou se explica tanto como se percebe;

ela não é tanto didática e moralizante quanto celebrativa”.305

O próprio Magistério e os teólogos denunciaram a pobreza simbólica da liturgia pós-

conciliar por uma compreensão equivocada do Concílio, caracterizada por um afã

dessacralizador, didatismo e moralismo. Surge um verbalismo intenso pelas “intervenções orais,

303
Cf. JOÃO PAULO II, SS. Carta Apostólica sobre o XXV aniversário da Sacrosanctum Concilium sobre a
sagrada liturgia, p. 22.
304
Cf. JOÃO PAULO II, SS. Carta Apostólica sobre o XXV aniversário da Sacrosanctum Concilium sobre a
sagrada liturgia, p. 21.
305
GOENAGA, Jose Antonio. A vida litúrgico-sacramental da Igreja em sua evolução histórica. In: BOROBIO,
Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 1, p. 138.
102

freqüentes e sem controle, de presidentes de celebrações e comentadores”. 306 Em reação às

celebrações didáticas ou moralizadores surgem as liturgias festivas que querem devolver ao culto

a fantasia simbólica.

Nesse contexto de possibilitar a participação dos fiéis renascem as monições.

A Constituição Sacrosanctum Concilium afirma que nas celebrações litúrgicas sejam

previstos, se necessário, “breves esclarecimentos, a serem proferidos pelo sacerdote ou pelo

ministro competente, em momentos mais oportunos, com termos prefixados por escrito ou

semelhantes” (SC 35, 3).

Quanto às monições, a Instrução Geral sobre o Missal Romano declara que cabe aos

sacerdotes, “no desempenho da função de presidente da assembléia, proferir certas exortações

(monitiones) e fórmulas de introdução e conclusão previstas no próprio rito”. 307 Por sua natureza,

a Instrução já prevê a adaptação das monições às circunstâncias para melhor conduzir as

disposições dos fiéis na celebração, de acordo com “as verdadeiras condições da comunidade”.

Por isso “tais exortações não devem, necessariamente, ser proferidas na forma contida no Missal,

palavra por palavra”.308 Chegamos, então, ao ponto em que queríamos no decorrer deste capítulo:

o surgimento das monições, de acordo com a reforma do Concílio Vaticano II. Assim, poderemos

no próximo capítulo estudar algumas destas monições, sob o ponto de vista de como podem ser

instrumentos a serviço da participação litúrgica.

Neste capítulo, vimos como a motivação das disposições pessoais se inicia desde a liturgia

vetero-testamentária, na qual o liturgo procura, a partir das disposições pessoais dos participantes,

formar os motivos para um verdadeiro encontro com Deus. Jesus nasce nesse ambiente que forma

a disposição pessoal de entrega a Deus no diálogo da Aliança. Através de sua vida, de seu estilo

306
Ibidem, p. 156.
307
IGMR, n. 31.
308
Idem.
103

de comportamento motivacional, procura partir da necessidade das pessoas e levá-las à salvação.

Cremos que a Igreja, apesar de se inspirar no processo motivacional de Jesus, onde as dimensões

interior e exterior se complementavam equilibradamente, nem sempre conseguiu manter o

mesmo equilíbrio. Nos primeiros tempos, a motivação era realizada pelo convite-monição do

presidente na convivialidade da ceia. Na época patrística a ênfase é sobre a formação da

disposição pessoal a partir mistagogia. Na Idade Media, a liturgia se transforma, pouco a pouco,

em espetáculo e em substituição à mistagogia patrística. Surge, então, o alegorismo litúrgico, que

busca levar o fiel a ver no “espetáculo da missa” a realização da paixão de Cristo. A reação do

Concílio de Trento contra a Reforma provoca a uniformização da liturgia. A participação do povo

se restringe aos devocionário ou às orações e cânticos populares, sendo as disposições pessoais

desviadas de seu objetivo principal: a celebração do Mistério Pascal. Com o Movimento

Litúrgico e o Concílio Vaticano II se buscou a participação plena do povo na celebração

eucarística. Entretanto, os ranços explicativos permanecem e a celebração eucarística é invadida

de comentários de diversos tamanhos, com explicações sobre tudo o que acontece na celebração,

num verbalismo desenfreado. Os folhetos litúrgicos, destinados a ajudar os fiéis, intensificam

uma compulsão catequética na liturgia, onde a monição é transformada em mais um comentário

ou se torna “mini-homilia”.

Por isso, postulamos que as monições, como instrumentos de motivação das disposições

pessoais do fiel, no dizer de Aimé Georges Martimort, “... deveriam ser breves e hieráticas,

guiando o povo à oração e não a substituírem, longe de a cobrir e dissimular. Não seriam

explicações, digressões que interromperiam a ação litúrgica”.309

309
Princípios de liturgia. In: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.). A Igreja em oração, Barcelos: Ora & Labora,
1965, p. 157. Obs: Trecho suprimido na edição brasileira: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.). Princípios de
liturgia, p. 142. (A Igreja em Oração 1)
104

Na perspectiva da participação plena, propomos, então, a monição como verdadeiro

instrumento a serviço da participação ativa, em comunhão com dimensão simbólica da liturgia. É

o que estudaremos no próximo capítulo.


105

Capítulo III – A monição litúrgica como instrumento de motivação das

disposições pessoais do fiel na celebração eucarística

A motivação das disposições pessoais é fundamental para a participação na celebração

eucarística, a fim de que o fiel possa receber os frutos da oferta salvadora de Cristo. Na história,

tal participação passou por vários percalços. Após o Concílio Vaticano II e sua reforma litúrgica,

somos incentivados a analisar a participação do fiel e a buscar formas que proporcionem a

eficácia participativa. Neste capítulo, de forma muito prática, queremos demonstrar que a

monição é um instrumento de motivação das disposições pessoais do fiel. E a partir dessa análise,

entenderemos melhor o nosso estilo de comportamento motivacional. O capítulo primeiro

forneceu todo o substrato antropológico para a análise do processo motivacional e o segundo nos

deu o substrato teológico formado na História. A partir desses dois substratos podemos analisar

as monições como motivadoras das disposições pessoais do fiel e fornecer perspectivas para uma

eficácia participativa.

1. Disposição pessoal e formação dos motivos

Como vimos, há duas coisas importantes no processo de participação litúrgica, que giram

em torno da disposição do fiel. A primeira é a formação da disposição e a segunda é a motivação.

A formação da disposição se faz na educação primeira familiar e se aprimora na catequese,

tornando-se a base da participação plena (corpo e mente, razão e sentimento).

Concomitantemente, ao lado de uma boa formação das disposições, vai sendo forjada a

verdadeira motivação para a participação na celebração litúrgica. Uma vez que esta base esteja

assentada, com as disposições bem formadas e motivadas, é necessário na celebração litúrgica


106

retomar as motivações para colocá-las na disposição na direção correta em vista da participação,

a fim de possibilitar o mergulho no mistério celebrado. É neste momento que entram as

monições. Elas ajudam sempre a retomar estas motivações e a direcioná-las para a celebração do

mistério. Por isso, postulamos que a monição litúrgica é um instrumento de motivação da

disposição pessoal na celebração eucarística.

Vimos que a participação do povo no decorrer dos séculos foi diminuindo gradativamente

pela separação dos fiéis do altar e pela complicação da liturgia. Por isso, surgiram tentativas de

provocar a participação, como o comentário alegórico medieval ou as explicações da missa

exigidas pelo Concílio de Trento. Mesmo na liturgia renovada pelo Concílio Vaticano II

permanecem ranços catequético-explicativos, tais como os comentários.

Um grande entusiasmo marcou a acolhida da Reforma Conciliar (liturgia em língua

vernácula, simplificação das celebrações, centralidade do Mistério Pascal etc), sobretudo pela

facilitação à participação externa. Entretanto “com a deficiente formação litúrgica nos seminários

e a insuficiente reciclagem do clero, (...) no culto, infiltrava-se o desprezo pelas rubricas

indispensáveis e novo rubricismo, na execução material dos ritos e no uso servil dos folhetos”. 310

Não era sem motivo que o Concílio já insistia na formação litúrgica para possibilitar a

compreensão teológica da liturgia e a participação total. Entretanto o que se constata é quando se

cai nos extremos do neo-rubricismo ou da improvisação arbitrária, a disposição interior dos fiéis

acaba sendo desmotivada, gerando uma apatia celebrativa. Tudo isto que dizer também que

aquela primeira fase, a da formação da disposição, entrou em estagnação e, por conseguinte, as

motivações também arrefeceram.

310
CONFERÊNCIA NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Animação da Vida Litúrgica no Brasil, n. 20.
107

A análise da monição litúrgica sob uma perspectiva motivacional nos levará a verificar

como ocorre o processo da motivação. Isso nos ajudará a investir, cada vez mais, no estilo de

comportamento motivacional, a fim de que a liturgia seja eficaz, com seus participantes bem

dispostos a viver com a mais reta intenção o mistério celebrado (cf. SC 11).

2. A Monição

Antes do mais, é preciso frisar que a monição é um elemento litúrgico. Isto quer dizer que

ela não está a serviço da racionalidade explicativa, como os comentários que pretendem explicar

a missa, mas é um convite ao fiel para se dispor inteiramente a entrar no Mistério celebrado,

privilegiando a dimensão simbólica da liturgia.

Atitudes externas, gestos, cantos e respostas rituais, são necessários à participação na sua

dimensão externa, mas não basta. É preciso fazer com que o fiel “penetre profundamente na

oração e na compreensão dos ritos. As monições contribuem muito para criar ou manter um

ambiente de oração e de recolhimento”.311

A monição (de monere = admoestar, estimular): é um convite à prece. As monições são


312
fórmulas como “Oremos”, “Orai, irmãos”, “Corações ao alto”, etc. Outras intervenções, feitas

pelo sacerdote ou comentador, se dirigem aos fiéis como exortações para melhor os introduzir na

celebração e bem dispô-los a segui-la, compreendê-la e vivê-la. É da natureza das monições

serem sóbrias, claras e preparadas com cuidado.313

Na Antigüidade eram os diáconos incumbidos de indicar ao povo as atitudes por meio

monições ou proclamações que ainda permanecem na liturgia. (por exemplo, flectamus genua,

levate, ite missa est etc.) Tais monições também podiam ser, como no rito galicano, uma
311
MARTIMORT, Aimé Georges. Estrutura e leis da celebração litúrgica. In: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.).
A Igreja em oração, p. 157.
312
Cf. Vocabulário. In: Dicionário de liturgia, p. 1270.
313
Cf. IGMR, n. 105 b.
108

exortação dirigida ao povo antes de uma oração de bênção. Nessa exortação se expõe o conteúdo

da oração de bênção. “Esse modo de combinar didascálias, exortações e orações na composição

ritual-pontifical foi depois largamente empregado pelos liturgistas do período carolíngio”.314

Nas liturgias latinas, de modo geral, acabou sendo o presidente quem convida o povo à

oração. Em certas ocasiões, monições mais desenvolvidas são dirigidas pelo bispo, como nas

ordenações, na consagração de uma igreja, de um altar etc. Na maior parte das vezes, porém, o

convite se reduziu a esta simples palavra: “oremos”. “A liturgia gaulesa propunha uma monição

do celebrante antes de cada oração sacerdotal: uma delas, mais desenvolvida, era quase uma

catequese sobre a festa do dia”.315 No oriente permaneceu o costume do diácono proferir as

monições.

A decadência litúrgica da Idade Média ocidental fez com que se descurassem as atitudes

do povo, ao mesmo tempo em que se complicaram infinitamente as regras concernentes às

atitudes do clero e dos monges. Os livros litúrgicos não mais previam a participação do povo. No

exercício da liturgia, o diácono é quem dirigirá as atitudes dos fiéis e jamais se esquecerá que se

trata de realizar e exprimir uma atitude interior. Quanto a esse último aspecto, Santo Tomás de

Aquino afirmava que os diáconos, no exercício de sua função, conduzem os fiéis na participação,

pois, “com sacras admoestações os dispõem à recepção dos sacramentos”.316

O Concílio de Trento na vigésima segunda seção introduz a obrigação de explicações do

rito na celebração litúrgica, tendo em vista a permanência do latim na liturgia. Nessa mesma

linha, a figura do “comentador” é delineada na instrução sobre a Música Sacra do papa Pio XII de

314
MARSILI, Salvatore. Das origens da liturgia cristã às caracterizações rituais. In: MARSILI, Salvatore et al.
Panorama histórico geral da liturgia, p. 69.
315
MARTIMORT, Aimé Georges. Estrutura e leis da celebração litúrgica. In: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.).
A Igreja em oração, p. 156.
316
“... Eos sacris admonitionibus disponunt ad sacramentorum receptionem”. In: TOMÁS DE AQUINO. Summa
Theologiae, 3ª parte, q. 64, art. 1, p. 141.
109

03 de setembro de 1958. O comentador ou comentarista tem por função facilitar a participação

ativa dos fiéis na missa e nos atos litúrgicos, através de explicações dos próprios ritos ou orações

e dirigir a participação externa dos fiéis, a saber, suas respostas, orações e cantos. Segundo a

mesma instrução, as intervenções do comentador devem ser poucas e sóbrias.317

Em continuidade com Trento e a instrução sobre a música sacra, o Concílio Vaticano II

admite a idéia de estimular o povo na participação, quando prevê uma catequese mistagógica,

mais diretamente litúrgica, exortando que “nas próprias cerimônias sejam previstos, se necessário

for, breves esclarecimentos, a serem proferidos pelo sacerdote ou pelo ministro competente, em

momentos mais oportunos, com termos prefixados por escrito ou semelhante” (SC 35, 3).

Tais intervenções ou verdadeiras monições, feitas pelo presidente ou pelo diácono ou

ainda por um ministro competente (comentarista), “devem ser breves e hieráticas, devem guiar o

povo na oração, não a substituírem, sobretudo devem conduzir os fiéis à oração do celebrante,

longe de a cobrir ou dissimular. Não são explicações, digressões que interrompam a ação

litúrgica, mas um impulso que anima o ritmo interior da participação”.318

Porém, os comentários em sua forma didático-explicativa proliferaram através dos

folhetos litúrgicos. O que Aimé Georges Martimort alertou logo após o Concílio realmente

aconteceu. A difusão de folhetos litúrgicos objetivava conduzir a participação dos fiéis e assim se

pretendia prescindir das monições. Entretanto, a celebração tomou um ar escolástico, levando os

fiéis a um trabalho individual de leitura, desviando a atenção dos ritos e afastando-os da

participação plena.319 Nesses folhetos os comentários se tornaram explicações didático-racionais e

não ajudam os fiéis a entrar no Mistério. O comentário tenta transformar a verdadeira monição

em um pequeno sermão ou resumo de leituras ou orações.


317
Cf. PIO XII, SS. Instrução sobre música sacra e a sagrada liturgia, n. 96.
318
MARTIMORT, Aimé Georges. Estrutura e leis da celebração litúrgica. In: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.).
A Igreja em oração, p. 157.
319
Cf. Idem.
110

Assim, as monições, que deveriam ser instrumentos de motivação da disposição pessoal

dos fiéis, foram substituídas por instruções didático-explicativos que invadiram as celebrações

litúrgicas.

Nos próximos itens estudaremos como as verdadeiras monições são instrumentos de

motivação da disposição pessoal, sendo breves e hieráticas, comparando esse processo com os

comentários em nossos folhetos litúrgicos.

3. Análise de Monições

Considerando muito difícil analisar todas as monições da celebração eucarística,

escolhemos apenas algumas, cuja importância é notada para o nosso trabalho. Num primeiro

momento escolhemos três monições da Semana Santa, uma do Domingo de Ramos e duas da

Vigília Pascal, que serão analisadas depois de discorrermos sobre o Mistério celebrado, ao qual a

disposição pessoal dos fiéis deve estar motivada. Por isso, traçamos uma teologia da liturgia da

Semana Santa e do Tríduo Pascal. Num segundo momento listamos alguns tipos de monições do

Missal Romano e aplicamos a análise estrutural e motivacional. Num terceiro, faremos uma

análise comparativa com os comentários da Semana Santa do ano de dois mil e dois, procurando

verificar como as verdadeiras monições motivam e como os comentários apenas tentam motivar.

Finalmente, compararemos as formas parciais de participação decorrentes de processos

motivacionais incorretos e a participação plena, fruto das motivações corretamente dispostas.

Como vimos, anteriormente, que a motivação litúrgica da disposição do fiel (monição)

depende da sua formação teológico-catequética (formação da disposição), achamos necessário,

antes de falar das primeiras monições acima mencionadas, tratar da teologia da Semana Santa e

do Tríduo Pascal.
111

3.1 Tríduo Pascal e Semana Santa

A obra salvífica de Cristo da redenção humana e da glorificação de Deus realizou-se

principalmente no Mistério Pascal, na sua morte e ressurreição. No decorrer do ano, a Igreja

comemora os diversos aspectos dessa obra redentora, tendo como base a comemoração da

ressurreição do Senhor no domingo, nossa Páscoa semanal. Porém, uma vez por ano, na

solenidade da páscoa, celebramos o Tríduo Pascal da paixão, morte e ressurreição de Cristo.320

3.1.1 A Páscoa anual

Não se sabe exatamente quando a Igreja começou a celebrar a Páscoa anual, mas se supõe

que “ao lado do domingo como dia regular de comemoração da morte e ressurreição de Cristo,

houve também desde muito cedo, uma comemoração anual da Páscoa”.321 Esta comemoração já

estava estruturada na segunda metade do século II, por causa da famosa controvérsia pascal.322

Porém, seu início deve ter-se dado muito antes, pois já temos em 1 Cor 5,7ss (Cristo nossa páscoa

foi imolado) uma clara indicação de que festa anual da páscoa hebraica tinha tomado um sentido

tipicamente cristão. Também temos indicações de uma festa de páscoa cristã no relato da paixão

feito por São João, que tem semelhanças com a prática litúrgica das igrejas da Ásia menor,

enquanto a ceia pascal nos evangelhos sinóticos tem semelhança com a páscoa litúrgica das

comunidades sinóticas da era apostólica.

320
Cf. NORMAS universais sobre o ano litúrgico e o calendário, n. 1.
321
ADAM, Adolf. O ano litúrgico, p. 59. OBS: o itálico pertence ao texto original
322
“O objetivo desta disputa era saber se a comemoração anual do mistério pascal deveria ser celebrada sempre no
dia 14 do mês de Nisã, dia da lua cheia e primeiro mês da primavera, independentemente de um determinado dia da
semana, ou no domingo seguinte ao 14 de Nisã. A primeira modalidade era observada principalmente pelos cristãos
da Ásia Menor e da Síria, os quais por isso, eram chamados também de quartodecimanos, ao passo que Roma e a
maior parte das outras Igrejas adotavam a segunda modalidade... O primeiro Concílio Ecumênico de Nicéia,
celebrado em 325, pôs termo às disputas acerca da data da Páscoa, prescrevendo que a Páscoa devia ser sempre
celebrada no domingo depois da primeira lua cheia da Primavera”: ADAM, Adolf. O ano litúrgico, p. 60.
112

A celebração litúrgica da Páscoa desenvolveu-se a partir da Vigília Pascal. Nesta noite,

depois das leituras, se celebrava o batismo e a vigília terminava quase de manhã com a eucaristia.

3.1.2 O Tríduo Pascal

O Tríduo Pascal do Cristo morto, sepultado e ressuscitado, desenvolveu-se no terreno da

páscoa anual, celebrada no domingo seguinte ao dia catorze de nisã. (sexta-feira, sábado e

domingo) No século quatro, por causa da historização dos relatos evangélicos na liturgia,

começou-se a celebrar a quinta-feira como instituição da eucarística. Rompeu-se a unidade do

Tríduo Pascal, que passou a ser composto de quinta-sexta-sábado. A Sexta-feira Santa se torna

central pela prática devocional medieval e a Vigília Pascal desaparece, pois era celebrada no

sábado de manhã. Com o restabelecimento da Vigília Pascal (1951) e reforma da Semana Santa

(1955) por Pio XII, o Tríduo Pascal recuperou sua unidade autêntica.323

Então, o Tríduo Pascal inicia-se com a missa vespertina na Ceia do Senhor e se encerra

com as vésperas do domingo da Ressurreição, tendo como centro, não a morte do Senhor, mas a

Vigília Pascal, na qual a Igreja “espera” pela Ressurreição de Cristo e celebra os sacramentos de

iniciação.324 Portanto, o tríduo é compreendido como Sexta-feira Santa, da morte do Senhor,

Sábado Santo, da Vigília Pascal e o Domingo da Ressurreição.

“A liturgia do Tríduo Pascal se baseia na unidade do Mistério Pascal que consta

inseparavelmente da morte e ressurreição de Cristo. Cada dia do Tríduo requer o outro e se abre

para o outro, tal como a idéia de ressurreição supõe a da morte. (...) O Tríduo é a Páscoa

celebrada em três dias”.325

323
Cf. BERGAMINI, Augusto. Tríduo Pascal. In: Dicionário de liturgia, p. 1198-1199.
324
Cf. Normas universais sobre o ano litúrgico e o calendário, n. 18, 19 e 21. In: PAULO VI, SS. Missal Romano.
325
BERGAMINI, Augusto. Tríduo Pascal. In: Dicionário de liturgia, p. 1198-1199.
113

A missa da ceia do Senhor, na Quinta-feira Santa, celebrada à noite, inaugura o Tríduo

Pascal e possui um tom festivo. Os textos bíblicos (páscoa hebraica, Ex 12, 1-8. 11-14; a ceia

pascal cristã, 1 Cor 11, 23-26; e o Cristo servo, Jo 13, 1-15) realçam o fato de que Cristo nos deu

a sua páscoa no rito da ceia, e a Igreja repete a Ceia para perpetuar a páscoa de Cristo. Inserida no

ritual da páscoa hebraica, a Ceia de Jesus toma plenamente o significado desta (memória do

Êxodo, realização da libertação e anúncio da Páscoa definitiva) e consuma a redenção definitiva

na “passagem” Cristo entre nós, tornando-se, assim, a proclamação da Páscoa definitiva. Por

isso, a celebração da Ceia do Senhor exige por parte da Igreja o vínculo indissolúvel, no plano da

vida, entre o serviço e a caridade fraterna como co-participação no mistério da paixão do Senhor

(o rito do “lava pés”). No final da missa as sagradas espécies são transladadas para um lugar

preparado para adoração e conservadas para a comunhão na sexta-feira, expressando plenamente

o culto que se deve prestar ao mistério eucarístico fora da missa.326

Na Sexta-feira Santa, o primeiro dia do Tríduo Pascal, a Igreja celebra o mistério da morte

de Cristo com uma solene liturgia da palavra. Neste dia de jejum pascal, significando o dia em

que o esposo foi tirado, não se celebra a eucaristia. Após as leituras (o quarto poema do servo de

Javé, Is 52, 13-15; 53, 1-12; o texto sobre o sacerdócio de Cristo, Hb 4, 14-16; 5, 7-9; e o relato

da paixão segundo João, Jo 18 e 19) segue-se a oração universal. No lugar da do rito eucarístico

se celebra a adoração da cruz, terminando com a comunhão. A liturgia da Sexta-feira Santa

exprime uma teologia da cruz inspirada em são João. A Igreja vê a sexta-feira como dia de

amorosa contemplação do sacrifício cruento de Jesus, a morte gloriosa de Cristo como fonte de

326
Cf. BERGAMINI, Augusto. Tríduo Pascal. In: Dicionário de liturgia, p. 1199-1200. Cf. também ALLIAGA,
Emílio. O Tríduo Pascal. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 3, p. 103.
114

nossa salvação. O aspecto da humilhação e da morte está sempre inseparavelmente ligado ao

mistério da ressurreição e da glorificação de Cristo.327

O Sábado Santo, o segundo dia do Tríduo Pascal, é um dia de jejum e alitúrgico. Nesse

dia, pela manhã, também se realiza a preparação imediata dos eleitos que serão batizados,

significando a separação definitiva da idolatria e a sua união a Cristo. A oração deste dia celebra

o repouso de Cristo no sepulcro, depois do vitorioso e glorioso combate da cruz. Nesse dia se

medita sobre o mistério salvífico da descida de Cristo ao mundo da morte, o encontro misterioso

com todos os que esperavam a abertura das portas do céu e a espera de Cristo pela ressurreição.328

No domingo da ressurreição, o terceiro dia do Tríduo Pascal, a Vigília Pascal caracteriza-

se por um sentido batismal. A celebração desenrola-se inteiramente na alegria da páscoa e com

ritmo progressivamente ascensional que desemboca na liturgia eucarística. Depois dos ritos

iniciais (bênção do fogo e precônio pascal), celebra-se a liturgia da Palavra, em que são propostas

nove leituras. A esperança da Igreja – na noite pascal – funda-se nas promessas de Deus e

reaviva-se pelas leituras dessas promessas, pelos textos que falam de Abraão, do êxodo e da terra

prometida, antes de se fazer o anúncio da ressurreição. O sentido mais autêntico da Vigília Pascal

é o fato do cristão estar motivado para viver a Páscoa celebrada no rito e dispor, cada vez mais, o

seu coração para viver neste mundo como peregrino em busca da páscoa eterna. Seguem-se a

liturgia batismal e a liturgia eucarística. A liturgia da Vigília é um todo no qual se expressa o

Mistério Pascal com a proclamação da Palavra e sua realização mediante os sacramentos da

iniciação cristã. Pelos sinais sacramentais da luz, da água, do pão e do vinho – esclarecidos e

feitos presentes pela Palavra de Deus – significa-se e faz-se presente a realidade da páscoa do

Senhor para que se torne também páscoa do cristão e este possa expressá-la em sua vida. O
327
Cf. BERGAMINI, Augusto. Tríduo Pascal. In: Dicionário de liturgia, p. 1200. Cf. também ALLIAGA, Emílio. O
Tríduo Pascal. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 3, p. 106.
328
Cf. ALLIAGA, Emílio. O Tríduo Pascal. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 3, p. 111.
115

simbolismo da Vigília Pascal consiste em ser uma noite vencida pelo dia, na qual a vida da graça

brota da morte de Cristo.329 A liturgia desse dia de páscoa celebra o acontecimento pascal como

o dia de Cristo, o Senhor. As leituras bíblicas contêm o querigma pascal, acentuam o valor

sacramental da celebração da páscoa e o compromisso com a vida nova em Cristo.330

No Tríduo Pascal, a Igreja celebra sacramentalmente o mistério da salvação e atualiza a

misteriosa eficácia da morte e ressurreição do Senhor. “O mistério da Páscoa é, pois,

simultaneamente, mistério de Cristo, cabeça, e mistério da Igreja, corpo de Cristo. Na Vigília

Pascal, Cristo aplica, de modo especial à Igreja, o poder salvífico da sua morte e ressurreição, e o

meio da sua intervenção é a celebração feita pela Igreja”.331

3.1.3 A Semana Santa

A Semana Santa, como a quaresma, se organiza a partir da preparação para o Tríduo

Pascal, sob a esteira da prática do jejum. Os seis dias da Semana Santa já estavam em pleno vigor

nos primeiros anos do episcopado de santo Atanásio (+ 373). 332 Sabes-se que o jejum de

preparação para o Tríduo, se estendeu a três semanas e depois a seis, o que deu a quaresma

propriamente dita. Posteriormente houve tentativas de prolongamento do jejum para as semanas

da qüinquagésima, sexagésima e septuagésima. Então, a Semana Santa, uma vez estruturada a

quaresma, é a última etapa da preparação para o Tríduo Pascal e “visa recordar a paixão de

Cristo, desde sua entrada messiânica em Jerusalém”.333 Por isso, o Domingo de Ramos e da

Paixão do Senhor é a abertura solene da grande semana que tem por centro o Mistério Pascal de

329
Cf. BERGAMINI, Augusto. Tríduo Pascal. In: Dicionário de liturgia, p. 1200-1201. Cf. também ALLIAGA,
Emílio. O Tríduo Pascal. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 3, p. 112-113.
330
Cf. ALLIAGA, Emílio. O Tríduo Pascal. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na Igreja. Vol. 3, p. 112-
113.
331
CHAVASSE, Antoine. O Ciclo Pascal. In: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.). A Igreja em oração, p. 800.
332
Cf. BELLAVISTA, Joan. Preparação para a Páscoa: a quaresma. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na
Igreja. Vol. 3, p. 144-146.
333
Cf. Normas universais sobre o ano litúrgico e o calendário, n. 31. In: PAULO VI, SS. Missal Romano.
116

Jesus Cristo. A missa desse dia, que já existia no século IV, tem por finalidade preparar

imediatamente a Páscoa. Por isso a relação estreita com o evangelho pascal da paixão segundo

são João, reservado para a Sexta-feira Santa.334

Toda esta preparação em Roma foi organizada em vista da solene reconciliação dos

penitentes na quinta feira santa, do batismo pascal dos catecúmenos e também da celebração mais

autentica da Páscoa anual para todo o povo cristão. “Este tempo apresenta-se, pois, como tempo

penitencial, tempo batismal e tempo de vida cristã mais intensa”. 335 É um pouco nesta linha que

as monições irão trabalhar.

Nas férias da Semana Santa se faz uma leitura semicontínua do evangelho de São João, no

qual se mostra o confronto de Jesus com o poder do mal. A Semana Santa traz, pois, a unidade do

mistério de sofrimento e glorificação de Jesus, em toda a sua riqueza sacramental. 336 Na Quinta-

feira Santa pela manhã o bispo concelebra “a missa com os seus presbíteros, benze os santos

óleos e consagra o crisma”.337 “Desse modo, também se significa a referência de todos os

sacramentos ao Mistério Pascal, que começa a celebrar-se de forma tão solene com a

comemoração da entrada messiânica em Jerusalém”.338

3.2 As três monições da Semana Santa

3.2.1 Análise do processo motivacional das monições das três monições da Semana Santa

334
Cf. BERGAMINI, Augusto. Tríduo Pascal. In: Dicionário de liturgia, p. 1198-1199.
335
Cf. CHAVASSE, Antoine. O Ciclo Pascal. In: MARTIMORT, Aimé Georges (Org.). A Igreja em oração, p. 807.
336
Cf. BELLAVISTA, Joan. Preparação para a Páscoa: a quaresma. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na
Igreja. Vol. 3, p. 159.
337
Cf. Normas universais sobre o ano litúrgico e o calendário, n. 31. In: PAULO VI, SS. Missal Romano.
338
BELLAVISTA, Joan. Preparação para a Páscoa: a quaresma. In: BOROBIO, Dionisio (Org.). A celebração na
Igreja. Vol. 3, p. 159.
117

3.2.1.1 Monição do Domingo de Ramos

No início da Celebração após a saudação, temos a rubrica sobre a monição: “Em seguida,

por breve exortação, os fiéis são convidados a participar ativa e conscientemente da celebração

deste dia, com estas palavras ou outras semelhantes”:

Meus irmãos e minhas irmãs: durante as cinco semanas da Quaresma preparamos os nossos
corações pela oração, pela penitência e pela caridade. Hoje aqui nos reunimos e vamos
iniciar, com toda a Igreja, a celebração da Páscoa de nosso Senhor. Para realizar o mistério
de sua morte e ressurreição, Cristo entrou em Jerusalém, sua cidade. Celebrando com fé e
piedade a memória desta entrada, sigamos os passos de nosso Salvador para que, associados
pela graça à sua cruz, participemos também de sua ressurreição e de sua vida (MR, p. 220 –
221). 339

Essa monição está presente já no início da celebração da eucaristia do Domingo de Ramos

e da Paixão do Senhor. Logo após a saudação do presidente e antes da bênção dos ramos. O

presidente da celebração pode adequar a monição sem, entretanto, desvirtuar o seu sentido

teológico-litúrgico, dirigindo um convite à Assembléia (e não a Deus) para celebrar o mistério de

Cristo, através da Liturgia do Domingo de Ramos como início da Semana Santa. Este convite faz

memória do que Deus realizou nos participantes através da penitência, da oração e da caridade,

que como vimos são a via de preparação para a Semana Santa e o Tríduo Pascal. Trata-se da

preparação dos corações, isto é, das disposições interiores para celebrar o mistério. O presidente

lembra o “hoje” litúrgico no qual com toda a Igreja se inicia a celebração da Páscoa do Senhor,

tendo em vista que esse domingo é a última etapa para a preparação para o Tríduo sagrado. Em

seguida se faz memória do evento salvífico vinculando a entrada messiânica em Jerusalém com a

sua paixão, morte e ressurreição. Na última parte, o presidente exorta aos fiéis a celebrar a
339
Missal Romano (MR) de SS. Paulo VI. Cf. bibliografia, e o respectivo número da página.
118

memória dessa entrada de Jesus em Jerusalém com as disposições interiores de fé e piedade, isto

é, na confiança, na entrega a Deus e sem distrações. Do mesmo modo que Jesus convidou Zaqueu

(Lc 19, 1 – 10) e atendeu ao pedido do centurião (Lc 7, 1 – 10), o que se requer aos fiéis é que

consigam ver, além dos sinais sagrados, a presença salvadora de Jesus. Nesse momento se faz um

vínculo importante, no hoje da liturgia os fiéis são convidados, através da celebração, a seguir os

passos do Senhor em sua Páscoa, vinculando a idéia de que pela celebração, seguindo os passos

de Jesus, se pode associar pela graça a sua cruz e ressurreição. Na medida em que os fiéis se

unem com fé e piedade ao mistério da cruz do Senhor pela celebração, a Igreja afirma que eles

serão participantes da ressurreição do Cristo. O fiel pode assim participar da Páscoa de Cristo, ou

melhor dizendo, ser participante dela, e assim o Mistério Pascal transforma a vida do fiel pela

graça que através de sua vida proclama a morte e ressurreição do Senhor.

Esta monição tem todas as características litúrgicas, pois não está explicando nada e nem

quebrando o rito, mas ao contrário, convidando os fiéis a entrar nele a fim de seguir pela via

comemorativa (ritualmente) os passos de Jesus e alcançar a salvação. Fazer memória do que se

viveu anteriormente para entrar em um novo momento ritual, com tamanha concisão e

eloqüência, é uma arte própria da verdadeira monição.

3.2.1.2 Monições da Vigília Pascal

Na Vigília Pascal há duas monições: a primeira introduz a procissão com o Círio Pascal e

a segunda a Liturgia da Palavra.

No início da Vigília Pascal, após a saudação o presidente, se dirigindo ao povo: “explica-

lhe brevemente o sentido da Vigília, com estas palavras ou outras semelhantes”:


119

Meus irmãos e minhas irmãs. Nesta noite santa, em que nosso Senhor Jesus Cristo passou
da morte à vida, a Igreja convida os seus filhos dispersos por toda a terra a se reunirem em
vigília e oração. Se comemorarmos a Páscoa do Senhor ouvindo sua palavra e celebrando
seus mistérios, podemos ter a firme esperança de participar do seu triunfo sobre a morte e de
sua vida em Deus (MR, p. 271).

Essa primeira monição da Vigília Pascal está no início da celebração, logo após a

saudação e antes da bênção e procissão com o círio pascal. Nesta monição, após dirigir-se à

assembléia, o presidente da celebração exorta os fiéis a fazerem memória da páscoa da

ressurreição do Senhor, através simbolismo da luz que vence as trevas da morte. Diante da

realidade da páscoa da ressurreição, os fiéis são convidados a celebrar essa realidade em vigília e

oração. A Vigília, através do simbolismo da luz, da celebração da Palavra e dos sacramentos da

iniciação cristã, explicita o mistério da Páscoa do Senhor. Celebrando a Páscoa do Senhor,

podemos participar do seu triunfo sobre a morte e chegar à vida eterna. A monição afirma que,

“se comemorarmos a Páscoa do Senhor”, nos tornamos participantes da sua ação salvífica. Por

isso, na medida em que o fiel, com a sua disposição interior, se sintonizar com a celebração da

Páscoa do Senhor, vivenciando o rito, o encontro com o Ressuscitado opera a salvação

prometida.

Na segunda parte da Vigília que é a Liturgia da Palavra, “o sacerdote dirige-se ao povo

com estas palavras ou outras semelhantes”:

Meus irmãos e minhas irmãs, tendo iniciado solenemente esta vigília, ouçamos no
recolhimento desta noite a Palavra de Deus. Vejamos como ele salvou outrora o seu povo e
nestes últimos tempos enviou seu Filho como Redentor. Peçamos que o nosso Deus leve à
plenitude a salvação inaugurada na Páscoa (MR, p. 279).
120

Esta monição é proferida antes das leituras da Vigília Pascal e após o canto do precônio

pascal. Dirigindo-se à assembléia, o presidente convida os fiéis a, no recolhimento da noite,

ouvirem a Palavra de Deus, perfazendo o caminho da história da Salvação, desde a Criação até o

evento último, Jesus Cristo. Desta forma, os fiéis são convidados a contemplar a salvação de

Deus na História e, ao mesmo tempo, a se disporem a melhor participar desta salvação, realizada

“hoje” pela Páscoa do Senhor.

De forma geral, as monições têm por finalidade situar e introduzir os fiéis no momento

litúrgico celebrado, de um lado e, de outro, apontar a disposição correta do coração. Assim, os

fiéis podem “preparar o coração” para, com o “ânimo sereno”, se unirem ao Cristo Morto e

Ressuscitado e se entregar com Ele ao Pai. A monição funciona, portanto, como uma mistagogia,

auxiliando toda a assembléia a celebrar bem o Mistério Pascal. Para saber o que delas podemos

apreender, analisaremos sua estrutura, a fim de melhor entender o nosso estilo de comportamento

motivacional.

3.2.2 Análise estrutural das três monições da Semana Santa

As monições que analisamos estão normalmente no começo da celebração, com o objetivo

de convidar os fiéis a se introduzirem no mistério celebrado. A rubrica da monição do Domingo

de Ramos indica que a intenção é a participação ativa e consciente. Também é dito que não se

precisa usar as palavras ipsis litteris do missal, o que, de certa forma, é até preferencial, pois se

correria o risco de transformara monição numa simples leitura. Entretanto a editio typica tertia do

Missale Romanum, em sua Institutio Generalis Missalis Romani, tenta garantir que a adaptação

pelo celebrante das monições não deve prejudicar a objetividade 340 do Mistério celebrado, por

340
De acordo com que refletimos sobre “concertação das práticas” e a relação entre objetividade e subjetividade no
jogo simbólico no capítulo primeiro deste trabalho, itens 7-8.
121

isso quando proferir as monições o celebrante “pode adaptá-las um pouco para que atendam à

compreensão dos participantes; cuide, contudo, o sacerdote de manter sempre o sentido da

exortação proposta no livro litúrgico e a expresse em poucas palavras”. 341 A seguir analisamos a

estrutura das monições.

Das monições analisadas extraímos alguns elementos, tais como: saudação, exhortatio342

temporal, exhortatio anamnética, exhortatio celebrativa e exhortatio participativa. Vejamos,

então:

a) Saudação:

“Meus irmãos e minhas irmãs”.

A partir destas palavras iniciais, podemos deduzir que a monição tem por objetivo:

1. Dirigir-se às pessoas, e não a Deus;

2. Mostrar que o privilegio de celebrar é de toda a assembléia, e não somente do presidente, pois

se assim fosse, não haveria necessidade alguma de se dirigir às pessoas, sobretudo no início

da celebração.

3. Tratar os presentes como “irmãos em Cristo”, e não segundo suas posições sociais ou

eclesiais, fazendo jus àquilo que disse São Paulo em Gl 3,28: “Não há judeu nem grego, não

há escravo nem livre, não homem nem mulher, pois todos vós sois um só em Jesus Cristo”.

341
“...celebranti licet eas aliquatenus aptare ut participantium captui respondeant; curet tamen sacerdos ut sensum
monitionis quae in Missali proponitur ipse sempre servet eamque apucis verbis exprimat”. Institutio Generalis
Missalis Romani, n. 31. In: PAULUS VI, SS. Missale Romanum, p. 27.
342
Preferimos a forma latina exhortatio, pois traduz bem o sentido que neste trabalho queremos dar à monição.
Exhortatio advém do verbo latino hortor, ari, (exortar, levar a, instigar, incitar, induzir) ou seja levar ou conduzir
para fora. Hortor cuja forma primitiva é horior, eris, hori, é da mesma família que  (fazer levantar, levantar-
se, lançar-se),  (assalto, ataque, impulso, desejo) e  (transitivo: por em movimento, impelir, excitar;
intransitivo: pôr-se em movimento, precipitar-se, sair, preparar-se para empreender). Cremos então que exhortatio
traduz bem a idéia de monição e participação, isto é, movimento da disposição interior para fora através de
estímulos externos, bem como um processo interno ao próprio celebrante.
122

4. Manifestar a verdadeira natureza da Igreja, que mesmo sendo sociedade organizada e

ministerial, se revela como comunidade fraterna dos seguidores de Cristo.

b) Exhortatio temporal:

Durante as cinco semanas da Quaresma preparamos os nossos corações pela oração, pela
penitência e pela caridade. Hoje aqui nos reunimos e vamos iniciar, com toda a Igreja, a
celebração da Páscoa de nosso Senhor. (monição do Domingo de Ramos)

Nesta noite santa. (1ª monição da Vigília Pascal)

Tendo iniciado solenemente esta vigília. (2ª monição da Vigília Pascal)

Destas três referências temporais, podemos inferir que:

1. A monição sempre tem como ponto de partida o tempo humano (durante as cinco semanas...);

2. Seu ponto de chegada é o tempo de Deus, objetivo da experiência religiosa (o hoje da

liturgia);

3. O tempo humano vai se constituindo como tempo sacramental, em vista da disposição dos

corações para o encontro com Deus. Por isso, é um tempo marcado pelo rito litúrgico (tendo

iniciado solenemente), pela oração e pela caridade.

c) Exhortatio anamnética:

Para realizar o mistério de sua morte e ressurreição, Cristo entrou em Jerusalém, sua cidade
(monição do Domingo de Ramos).

Nesta noite santa, em que nosso Senhor Jesus Cristo passou da morte à vida (1ª monição da
Vigília Pascal).
123

Vejamos como ele salvou outrora o seu povo e nestes últimos tempos enviou seu Filho
como Redentor (2ª monição da Vigília Pascal).

Também destas três referências anamnéticas, deduzimos:

1. Para motivar os corações, a monição deve fazer memória dos atos salvíficos de Deus na

História da Salvação;

2. É função da monição situar o “hoje litúrgico”, como o “hoje da salvação”;

3. Para que este mistério fique bem situado, é necessário mostrar que a salvação ontem e hoje se

realiza através do mistério de Jesus Cristo.

d) Exhortatio celebrativa:

Celebrando com fé e piedade a memória desta entrada, sigamos os passos de nosso Salvador
(monição do Domingo de Ramos).

A Igreja convida os seus filhos dispersos por toda a terra a se reunirem em vigília e oração.
Se comemorarmos a Páscoa do Senhor ouvindo sua palavra e celebrando seus mistérios...
(1ª monição da Vigília Pascal).

Ouçamos no recolhimento desta noite a Palavra de Deus (2ª monição da Vigília Pascal).

Daqui também podemos deduzir:

1. Um dos papéis fundamentais da monição na sua função de dispor o coração para o Mistério, é

convidar os fiéis para mergulharem na experiência celebrativa;

2. A monição mostra que só é possível celebrar, através da fé, como dom de Deus, e fazendo

uso da piedade, que é a boa disposição do coração.

3. A urgência do celebrar traz os verbos na primeira pessoa do imperativo ou no gerúndio.


124

4. A monição pretende, assim, mostrar que não se trata de uma iniciativa humana, mas divina,

mediata pela sacramentalidade da Igreja (a Igreja convida, convoca...).

e) Exhortatio participativa:

Celebrando com fé e piedade a memória desta entrada, sigamos os passos de nosso Salvador
para que, associados pela graça à sua cruz, participemos também de sua ressurreição e de
sua vida (monição do Domingo de Ramos).

Se comemorarmos a Páscoa do Senhor ouvindo sua palavra e celebrando seus mistérios,


podemos ter a firme esperança de participar do seu triunfo sobre a morte e de sua vida em
Deus (1ª monição da Vigília Pascal).

Peçamos que o nosso Deus leve à plenitude a salvação inaugurada na Páscoa (2ª monição
da Vigília Pascal).

1. A monição, para cumprir seu objetivo, freqüentemente explicita a importância da

participação do fiel no mistério celebrado;

2. Em primeiro lugar, mostra que esta participação é sacramental, pois se faz através do rito

celebrado;

3. Porém, o objetivo final é sempre a participação no mistério de Cristo (morte e ressurreição);

4. Por fim, a monição mostra que nisto consiste a salvação.

Então, como vimos, a monição se inicia com uma saudação, para convidar os fiéis à

oração que conduz ao mistério. Através de uma linguagem inclusiva (primeira pessoa do plural) e

no imperativo situa os fiéis no tempo celebrativo (o “hoje” litúrgico), para celebrarem a memória

do acontecimento salvífico e participar da salvação trazida por Cristo no Espírito Santo. A


125

estrutura monicional é uma mistagogia celebrativa que pretende assim introduzir os fiéis no cerne

da liturgia, isto é, na celebração do Mistério Pascal.

Essa estrutura nos possibilita analisar as outras monições presentes na celebração

eucarística. Tomemos algumas e apliquemos essa análise estrutural e motivacional.

4. Análise estrutural e motivacional das principais monições na celebração eucarística

As monições estão presentes em toda a liturgia como momentos nos quais se procura

introduzir os fiéis no Mistério, buscando-se motivar as disposições pessoais em vista da

participação ativa. Este trabalho se restringe às monições da celebração eucarística.

A Instrução Geral sobre o Missal Romano afirma que cabe aos sacerdotes, no

desempenho da função de presidente da assembléia, proferir certas admoestações (monitiones)

previstas no próprio rito.343 Estas monições podem já estar incluídas textualmente no rito, ou

serem proferidas livremente. São quatro os momentos em que as monições livres são

aconselhadas, com brevíssimas palavras:

1. Após a saudação inicial e antes do ato penitencial, para introduzir os fiéis na missa do dia;

2. Na liturgia da Palavra, antes das leituras;

3. Na oração eucarística, antes do prefácio, nunca porém dentro da oração eucarística;

4. No encerramento da Missa, antes da despedida.344

Muitas vezes, estas monições se transformaram nos folhetos de Missa em comentários

explicativos longos e enfadonhos, ou “mini-homilias” espontâneas, por causa de uma incorreta

interpretação da natureza da monição.

343
IGMR, n. 31.
344
Cf. idem.
126

Há monições, que embora, escritas no Missal, quando estiver estabelecido pelas rubricas,

podem ser adaptadas um pouco para atenderem à compreensão dos participantes. 345 Nestes casos,

o Missal pede duas coisas: que não se perca o sentido da monição e que seja feita em poucas

palavras.346 São geralmente monições introdutoras de celebração, como na festa da Apresentação

do Senhor347,na Vigília do Pentecostes348 e a monição do Domingos de Ramos, que analisamos.

Há outras monições que não são acompanhadas de rubricas adaptativas, o que implica que

a adaptação não pode ser feita de qualquer modo. São as do Ato Penitencial, das Orações

presidenciais, da Oração dos Fiéis, da Oração Eucarística, do Pai Nosso e do rito da paz.

Abaixo se listam algumas monições da liturgia eucarística retiradas do Missal Romano:

a) Ato Penitencial:

- “Irmãos e irmãs, reconheçamos as nossas culpas para celebrarmos dignamente os santos

mistérios” (MR, p. 390).

- “O Senhor Jesus, que nos convida à mesa da Palavra e da Eucaristia nos chama à conversão.

Reconheçamos ser pecadores e invoquemos com confiança a misericórdia do Pai” (MR, p.

390).

345
Cf. IGMR, n. 31.
346
De acordo com que refletimos sobre “concertação das práticas” e a relação entre objetividade e subjetividade no
jogo simbólico no capítulo primeiro deste trabalho, itens 7 e 8.
347
“Irmãos e irmãs, há quarenta dias celebrávamos com alegria o Natal do Senhor. E hoje chegou o dia em que
Jesus, pois apresentado ao Templo por Maria e José. Conformava-se assim à Lei do Antigo Testamento, mas na
realidade vinha ao encontro do seu povo fiel. Impulsionados pelo Espírito Santo, o velho Simeão e a profetisa Ana
foram também ao Templo. Iluminados pelo mesmo Espírito, reconheceram o seu Senhor naquela criança o
anunciaram com júbilo. Também nós, reunidos pelo Espírito Santo, vamos nos dirigir à casa de Deus, ao encontro de
Cristo. Nós o encontraremos e reconheceremos na fração do pão, enquanto esperamos a sua vinda gloriosa” (MR, p.
547-548).
348
“Irmãs e irmãos caríssimos, a exemplo dos Apóstolos e discípulos que, com Maria, a Mãe de Jesus, perseveravam
em oração, aguardando o Espírito prometido pelo Senhor, ouçamos, de ânimo sereno, a Palavra de Deus. Meditemos
sobre as grandes coisas que Deus realizou em favor de seu povo e rezemos, para que o Espírito Santo, enviado pelo
Pai como primícias aos que crêem, leve à plenitude a sua obra neste mundo” (MR, p. 997).
127

- Especialmente nos domingos: “No dia que celebramos a vitória de Cristo sobre o pecado e a

morte, também nós somos convidados a morrer para o pecado e ressurgir para uma vida nova.

Reconheçamo-nos necessitados da misericórdia do Pai” (MR, p. 391).

- “De coração contrito e humilde, aproximem-nos do Deus justo e santo para que tenha piedade

de nós, pecadores” (MR, p. 392).

As monições do ato penitencial têm por objetivo levar os fiéis ao arrependimento dos

pecados e a reconhecimento que Deus é misericordioso. Tais monições se encerram por um

momento de silêncio para que o fiel em sua disposição interior se coloque como pecador diante

da misericórdia de Deus e, examinando a si mesmo (cf. I Cor 11, 28), possa participar da

eucaristia. Tais monições são essencialmente formadas pela exhortatio celebrativa, pois buscam

preparar os fiéis primeiramente para o arrependimento dos pecados (“de coração contrito e

humilde”) e acolher a misericórdia de Deus. Entretanto está presente em algumas fórmulas a

exhortatio anamnética (“a vitória de Cristo sobre o pecado e a morte”) e, principalmente, a

exhortatio participativa.

b) Orações presidenciais

- “Oremos” (MR, p. 399).

- Sobre as oferendas: “Orai, irmãos e irmãs, para que o nosso sacrifício, seja aceito por Deus

Pai Todo-Poderoso”. (MR, p. 403) Ou “Orai, irmãos e irmãs, para que esta nossa família,

reunida em nome de Cristo, possa oferecer um sacrifício que seja aceito por Deus Pai Todo-

Poderoso” (MR, p.404).

As monições mais antigas são aquelas que introduzem as orações presidenciais. O convite

“oremos”, seguido de um momento de silêncio, busca levar os fiéis a oração. É essencialmente


128

uma exhortatio celebrativa, pois a participação no Mistério se realizará pela oração propriamente

dita. No caso da oração sobre as oferendas esse convite é explicitado pela menção do sacrifício.

c) Oração dos Fiéis

- “Irmãos e irmãs, elevemos as nossas preces a Deus Pai Todo-Poderoso, que deseja que todos

os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade” (MR, p. 1005).

- “Imploremos a salvação dos vivos e dos falecidos a Deus Pai Todo-Poderoso, que ressuscitou

o seu Filho Jesus Cristo” (MR, p. 1015).

- “Irmãos e irmãs, esperando ardentemente a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, imploremos

com mais fervor a sua misericórdia. Ele, que veio ao mundo para evangelizar os pobres e

curar as pessoas de coração contrito, conceda hoje a salvação a todos os que dela necessitam”

(MR, p. 1007).

A oração universal foi re-introduzida em todas as missas pela reforma conciliar da

liturgia. Nesta oração os fiéis, exercendo a sua função sacerdotal, suplicam por todos os homens.

Por isso, a exhortatio é essencialmente celebrativa, pois visa introduzir os fiéis num espírito de

intercessão pelos seres humanos. Porém, está presente a exhortatio anamnética que recorda que o

mesmo Deus que realizou maravilhas na história, pode realizá-las agora.

d) Oração Eucarística

- “Corações ao alto” (MR, p. 405).

- “Demos graças ao Senhor nosso Deus” (MR, p. 405).


129

Anteriormente já vimos que essas monições são as mais antigas, remontando à liturgia

judaica e à Tradição Apostólica de Hipólito. 349 Tais monições buscavam levar os fiéis a se

disporem a se unir ao Senhor na prece do sacerdote. Enquanto “corações ao alto” é uma

exhortatio participativa, o “demos graças ao Senhor nosso Deus” precede imediatamente o

prefacio sendo, pois uma exhortatio celebrativa.

e) Pai Nosso

- “Obedientes à palavra do Salvador e formados por seu divino ensinamento, ousamos dizer”

(MR, p.500).

- “Rezemos com amor e confiança, a oração que o Senhor Jesus nos ensinou” (MR, p. 500).

- “Guiados pelo Espírito de Jesus e iluminados pela sabedoria do Evangelho, ousamos dizer”

(MR, p. 500).

As monições do Pai Nosso são essencialmente uma exhortatio anamnética, que faz

memória de que o Senhor é quem ensina seu povo a orar e também celebrativa pois busca

introduzir a oração do Senhor.

f) Bênção

“Inclinai-vos para receber a bênção” (MR, p. 519).

349
Conforme capítulo segundo deste trabalho, item 3.2.
130

Convite, a semelhança de “ajoelhemo-nos”, “levantemo-nos”, e muitos outros que

procuram orientar os fiéis em sua postura para determinado rito. Muitas vezes podem ser

cantados pois através do canto se imprimem mais facilmente nas disposições pessoais as ações

sagradas dos ritos e transformam assim os gestos em oração. 350 Obviamente são exhortationes

celebrativas e assim deveriam ser proferidos, não somente instruções para posições do corpo.

g) Ritos especiais em determinadas celebrações eucarísticas

- Benção e distribuição das cinzas: “Caros irmãos e irmãs, roguemos instantemente a Deus Pai

que abençoe com a riqueza da sua graça estas cinzas, que vamos colocar sobre as nossas

cabeças em sinal de penitência” (MR, p. 175).

- Procissão de Ramos: “Meus irmãos e minhas irmãs, imitando o povo que aclamou Jesus,

comecemos com alegria a nossa procissão” (MR, p. 225).

- Consagração do crisma na Missa do crisma: “Meus irmãos e minhas irmãs, roguemos a Deus

Pai todo-poderoso que abençoe e santifique este crisma para que recebam uma unção interior

e tornem-se dignos da divina redenção os que forem ungidos em suas frontes” (MR, p. 240).

- Liturgia batismal na Vigília Pascal: “Caros fiéis, apoiemos com as nossas preces a alegre

esperança dos nossos irmãos e irmãs (N.N.), para que Deus todo-poderoso acompanhe com

sua misericórdia os que se aproximam da fonte do novo nascimento” (MR, p. 283).

- Renovação das promessas do batismo na Vigília Pascal: “Meus irmãos e minhas irmãs, pelo

mistério pascal fomos no batismo sepultados com Cristo para vivermos com ele uma vida

nova. Por isso, terminados os exercícios da Quaresma, renovemos as promessas do nosso

350
“Ter-se-á presente que o texto cantado se grava mais profundamente na memória do que o texto lido”.
CONGREGAÇÃO PARA O CULTO DIVINO. A liturgia romana e a inculturação: IV instrução para uma correta
aplicação da constituição conciliar sobre a liturgia, n. 40.
131

batismo, pelas quais já renunciamos a Satanás e suas obras e prometemos servir a Deus na

Santa Igreja Católica” (MR, p. 288).

Na celebração eucarística podem ocorrer alguns ritos excepcionais que necessitam de uma

monição para introduzir o fiel no espírito litúrgico do rito. Tais monições são normalmente

formadas por uma exhortatio celebrativa que visa preparar a disposição interior do fiel.

Juntamente com essa exhortatio pode haver uma exhortatio anamnética que evoca o

acontecimento salvífico referente ao rito que se celebra ou uma exhortatio participativa se se

refere a elementos sacramentais que serão utilizados (nos casos acima água benta ou crisma).

h) monições à oração universal na celebração da Paixão do Senhor

- “Oremos, irmãos e irmãs caríssimos, pela santa Igreja de Deus: que o Senhor nosso Deus lhe

dê a paz e a unidade, que ele a proteja por toda a terra e nos conceda uma vida calma e

tranqüila, para sua própria glória” (MR, p. 255).

- “Oremos por todos os nossos irmãos e irmãs que crêem no Cristo, para que o Senhor nosso

Deus se digne reunir e conservar na unidade da sua Igreja todos os que vivem segundo a

verdade” (MR, p. 257).

- “Oremos, irmãos e irmãs, a Deus Pai todo-poderoso, para que livre o mundo de todo erro,

expulse as doenças e afugente a fome, abra as prisões e liberte os cativos, vele pela segurança

dos viajantes e transeuntes, repatrie os exilados, dê saúde aos doentes e a salvação aos que

agonizam” (MR, p. 259).


132

Do mesmo modo que vimos no item “c” acima, a monição de cada oração universal na

celebração da paixão do Senhor se destina a preparar a disposição interior do fiel para a oração

que se segue. Um momento de silêncio se intercala entre a monição e a oração não somente para

efeito de oração pessoal, mas também para que o fiel em sua disposição interior seja um

verdadeiro sacerdote batismal. Por isso, são exhortationes essencialmente celebrativas que visam

preparar os fiéis para que junto com o presidente intercedam pelas intenções propostas.

i) Monições do rito da paz

- “Irmãos e irmãs, saudai-vos em Cristo Jesus” (MR, p. 501).

- “Em Jesus, que nos tornou todos irmãos e irmãs com sua cruz, saudai-vos com um sinal de

reconciliação e de paz” (MR, p. 502).

As monições do rito da paz são essencialmente uma exhortatio celebrativa e visam em

primeiro lugar convidar os fiéis a se confraternizarem antes de receberem o corpo do Senhor. Na

segunda fórmula está presente também uma exhortatio anamnética que visa lembrar aos fiéis que

a paz e a reconciliação advêm da cruz do Senhor.

5. A motivação das disposições pessoais através dos comentários nos folhetos litúrgicos

Como foi visto no capítulo segundo deste trabalho, o Movimento Litúrgico incentivou e

propiciou a participação do povo, principalmente através da missa dialogada. A tradução do

missal, proibida desde a época tridentina, foi renovada pelo Pio IX em 1857. Contudo em 1897,

com a revisão do Index pelo papa Leão XIII não foi levada em conta essa proibição. Com isso

foram abertas as portas para a tradução e a impressão de missais para os fiéis.351

351
Cf. JUNGMANN, Jose A. El sacrificio de la misa, n. 215, p. 222.
133

Nesse contexto nascem os folhetos litúrgicos como meios de possibilitar aos fiéis a

participação nas missas dialogadas. No Brasil, o folheto “O Domingo”, surge como um

semanário religioso para as famílias, a título de subsídio catequético e vai se transformando com

o tempo em subsídio para a liturgia. (Cf. anexo 1) Esse semanário trazia a Palavra de Deus com a

respectiva reflexão, reflexão sobre o tempo litúrgico, mas principalmente catequese e

apologética.

Com a reforma litúrgica pelo Concílio Vaticano II, abriu-se a possibilidade da utilização

da língua vernácula e os folhetos passam a trazer a Palavra de Deus e o rito da missa. Tentou-se,

assim, possibilitar a participação dos fiéis, porém o que aconteceu foi a supervalorização dos

cantos e das leituras do folheto. A celebração tomou um tom discurso de aula e foi inflacionada

de “falação”: A este respeito, diz Maucyr Gibin:

Não é aumentando o falatório que a participação se torna ativa. A atividade na liturgia é


mais fruto da mistagogia do que do falatório de ‘todos’. (...) Alguns folhetos, chamados
litúrgicos, misturam muito o aspecto instrutivo com o celebrativo. E isso não por falta de
vontade de fazer as celebrações comunicativas. É uma confusão entre a catequese e a
celebração.352

No Brasil há vários folhetos litúrgicos dentre eles alguns exemplos: Semanário litúrgico-
catequético “O Domingo”, (anexo 2) editora Pia Sociedade São Paulo; Semanário litúrgico “Deus
conosco”, (anexo 3) editora Santuário; “ABC litúrgico”, (anexo 4) da Diocese de Santo André e
“Povo de Deus em São Paulo”, (anexo 5) da Mitra Arquidiocesana de São Paulo.
Nesses folhetos podemos analisar o processo motivacional de alguns comentários de

folhetos litúrgicos e compará-los às verdadeiras monições. Da mesma maneira que fizemos com

as monições tomaremos alguns comentários da Semana Santa. Em seguida comparamos o

processo motivacional do comentário com o processo motivacional das monições. Cremos que o

352
Liturgia, teologia e catequese: debate? Revista de liturgia, n. 82, p. 05.
134

recorte dos comentários da Semana Santa nos possibilita estender o resultado da análise para as

outras celebrações.

Normalmente os folhetos trazem comentários nos seguintes momentos: antes do início da

celebração, antes de cada leitura, antes da apresentação das oferendas (alguns), e ao final da

celebração antes da bênção final. Em outros momentos pode haver comentários como por

exemplo, antes da Oração do Dia no Domingo de Ramos ou antes do hino de louvor.

A título de análise tomaremos para análise alguns comentários de início de celebração e

de introdução a leituras.

No início da celebração, os folhetos trazem um comentário que tenta introduzir os fiéis na

celebração. Mesmo quando há monição do presidente no ritual, como no caso da Vigília Pascal,

os folhetos trazem um comentário inicial. Tal comentário utiliza verbos no subjuntivo do

indicativo, com textos em forma de catequese. Por exemplo, na Vigília Pascal de “Deus

Conosco” o comentário informa que em Jesus Deus se revela e ao ressuscitá-lo o Pai aceita a

oferenda de Jesus. Segue dizendo que o discípulo de Jesus deve entregar-se como Jesus. E quem

“assim segue Jesus já está marchando para a mesma ressurreição que Jesus viveu. Se

imprimirmos esse dinamismo de amor e ressurreição em nossa vida, então estamos vivendo a

Páscoa”.

Notamos que está presente no comentário a memória da ação salvífica de Jesus e uma

catequese sobre a participação na sua entrega. Entretanto, não se exorta, não se convida, está

ausente a autoridade do presidente ou de um ministro que faça com que o fiel compreenda que a

ação salvífica se atualiza na celebração e que se participar dela, terá a certeza da participação na

Páscoa do Senhor. Interessante que não há exhortatio celebrativa e nem mesmo uma catequese

celebrativa, a celebração foi esquecida no comentário.


135

No caso da Vigília Pascal no “ABC litúrgico” se faz uma constatação de que é a Noite

Pascal, uma exhortatio temporal sem qualquer outro aspecto monicional. O “Povo de Deus em

São Paulo” não traz comentário, mas uma rubrica que instrui que o comentarista a convidar a

comunidade a se dirigir ao local da bênção do fogo novo. O “Domingo” também não traz

comentário.

No Domingo de Ramos, “O Domingo” traz um comentário que exorta a fortalecer a fé na

ressurreição e faz uma ligação com a Campanha da Fraternidade daquele ano, “Fraternidade e

povos indígenas”. “Deus Conosco” segue o mesmo esquema da Vigília Pascal conforme acima,

não há nem catequese e nem exhortatio celebrativa. “O ABC litúrgico” e o “Povo de Deus em

São Paulo” trazem uma duplicação da monição do Domingo de Ramos em forma de explicação.

No caso das leituras há algo em comum nos folhetos analisados. Antes de cada leitura

(primeira, segunda e evangelho) há um pequeno comentário que é um resumo catequético da

leitura que se seguirá. A exceção é o “ABC litúrgico” que traz um comentário catequético antes

das leituras, porém restrito ao evangelho. O “Povo de Deus em São Paulo” traz comentário até

para os salmos.

O correto é uma monição presidencial ou de um ministro que introduzisse, quando

necessário, os fiéis na liturgia da Palavra, de modo que os fiéis pudessem ouvir as promessas do

Senhor e a partir do próprio interior participar na celebração. Os comentários são muitas vezes

explicações das leituras que provocam desinteresse nos fiéis e ao mesmo tempo quebram o ritmo

da celebração.

Partimos do pressuposto que a liturgia deve ser celebrada e que se deve diminuir o

“falatório”. Numa liturgia em língua vernácula estamos ainda utilizando as explicações que o

Concílio de Trento preceituou para uma liturgia complicada e em latim. Os folhetos são muito
136

criticados por transformarem a celebração em aula e cremos que os comentários reforçam esse

didatismo celebrativo.

Numa análise comparativa com a motivação proposta pelas monições cremos que:

- Os comentários são dispensáveis porque a celebração não é o momento de explicações ou

informações desnecessárias, mas de introduzir os fiéis no mistério celebrado, através de uma

mistagogia própria.

- Tal mistagogia é papel das monições, que devem ser feitas nos momentos apropriados do rito

e com uma estrutura que estimule as disposições pessoais e forme os motivos dos participam

da celebração.

- As monições devem ser verdadeiramente exortativas, de modo que a autoridade de quem as

faz leve o fiel a penetrar no Mistério.

- É importante lembrar que a motivação das disposições pessoais acontece quando o fiel tem os

seus motivos, nascidos de suas necessidades mais íntimas, formados por uma catequese

verdadeiramente mistagógica, que procura conduzir ao encontro com Deus no mistério

celebrado. Por isso, as monições são convites sagrados à oração, que usam verbos no

imperativo ou no gerúndio. Os comentários, ao contrário, não são convites, mas explicações

ou digressões353 que afastam o fiel do mistério, ao transformar a celebração em aula e, ao

mesmo tempo, quebrar o fluir celebrativo.

- As monições devem ser breves e hieráticas, evitando se transformarem em pequenas

homilias. Não deveriam superar a extensão dos textos analisado no Domingo de Ramos e da

Vigília Pascal. São hieráticas porque se referem ao sagrado e se processam de forma ritual, e

não com a didática da sala de aula.

353
Cf. MARTIMORT, Aimé Georges. Estrutura e leis da celebração litúrgica. In: MARTIMORT, Aimé Georges
(Org.). A Igreja em oração, p. 157.
137

- A recomendação também é que se traga a monição por escrito, porém, não é preciso que ela

seja lida palavra por palavra. Tal escrito é a base para se proferir a monição. Em todo caso,

quando se quer ater ao texto em si, tal texto não deve ser lido, mas proferido como uma

verdadeira exortação.354

- O ideal é que os folhetos não trouxessem nem comentários, porque são desnecessários, e nem

monições, porque se transformariam em leituras nas mãos dos fiéis, podendo se tornar

também num momento instrutivo que romperia com a ação litúrgica.355

A seguir analisamos como a participação pode ser parcial se restringindo a certas

dimensões do ser humano em detrimento das outras, fruto de motivações errôneas da disposição

interior do fiel.

6. Quatro tipos de participação parcial

6.1 Ritualismo

Ritualismo é o “apego demasiado a rituais, cerimônias, formalidades, geralmente relativo

desconhecimento de seu significado social”.356 Num ambiente celebrativo ritualista os estímulos à

participação se restringem à dimensão exterior. Os atos não têm raiz no interior e mesmo os

sentimentos são teatralizados. As disposições interiores são desprezadas, pois o importante é que

o espetáculo continue. Nesse tipo de participação parcial há uma ênfase no símbolo como coisa e

uma predileção pelo juridismo tendo em vista a garantir a eficiência do rito no seu aparato

externo. O ritualismo é herdeiro da concepção litúrgica barroca e posteriormente romântica

354
Cf. IGMR, n. 30, 31 e 105 b.
355
Cf. MARTIMORT, Aimé Georges. Estrutura e leis da celebração litúrgica. In: MARTIMORT, Aimé Georges
(Org.). A Igreja em oração, p. 157.
356
Ritualismo. In: INSTITUTO ANTONIO HOUAISS. Dicionário Houaiss de língua portuguesa, p. 2463.
138

(Movimento Ciciliano), que consideravam a liturgia como uma obra perfeita e imutável, por isso

os fiéis devem assisti-la como a um espetáculo. Também o espaço sagrado é construído como

uma casa de espetáculos, com direito a balcões e platéia. Conseqüentemente, os ministro se

tornam executores de ordens e os fiéis simples assistentes. As relações entre os participantes são

totalmente formais. (ver quadro 7 no apêndice)

6.2 Sentimentalismo

Sentimentalismo é a “tendência a colocar os sentimentos acima da razão ou inclinação

para a sentimentalidade exagerada”.357 Num ambiente sentimentalista a disposição interior é

estimulada em direção ao Mistério simbolizado somente na dimensão emotiva. A dimensão

racional é desprezada. Nesse tipo de participação parcial há uma ênfase na música e orações que

privilegiam a reação sentimental. A conseqüência é o incentivo a um comportamento

individualista e como conseqüência não cria comunidade. Tal participação parcial é incentivada

em religiões e seitas neopentecostais, que ao explorar a devoção popular transformam o culto

num supermercado religioso que pretende “curar” todas as doenças através de uma catarse

coletiva, explorando os sentimentos. A relação entre os participantes é afável, porém superficial e

circunstancial. (ver quadro 8 no apêndice)

6.3 Intelectualismo

Intelectualismo é a “tendência de uma pessoa a dar primazia à inteligência e às faculdades

intelectuais, sacrificando as emoções e os instintos”.358 Nesse tipo de participação parcial se

privilegia o racional. A relação com o mistério simbolizado é formal e o culto é visto como uma

357
Sentimentalismo. In: INSTITUTO ANTONIO HOUAISS. Dicionário Houaiss de língua portuguesa, p. 2548.
358
Intelectualismo. In: Ibidem, p. 1630.
139

catequese ou ensino de tal modo que a celebração se torne aula. Há uma grande influência do

Iluminismo, que levou católicos e protestantes a transformar a liturgia num instrumento de ensino

das massas. A disposição interior é estimulada para aprender e o Mistério é visto como algo a ser

racionalizado. O intelectualismo está presente em muitas de nossas celebrações através de

comentários intermináveis ou explicações inconvenientes ou, ainda, de cursos ou obras sobre

liturgia que primam pela comunicação e não pela mistagogia. Como conseqüência de tudo isso a

relação entre os participantes é fria. (ver quadro 9 no apêndice)

6.4 Intimismo

Intimismo é a valorização dos “sentimentos íntimos mais profundos”.359 Na participação

parcial intimista se privilegia o interior do celebrante, a relação com o Mistério simbolizado é

minimizada, pois a busca pela celebração é regida pelo egocentrismo. O ambiente intimista leva

os participantes a formarem uma disposição interior autocomplacente na busca da própria

satisfação. Os estímulos não atingem a pessoa e a relação com os outros participantes

praticamente não existe. O intimismo está presente na busca de novas experiências religiosas, que

procuram desconsiderar a importância do rito e da ação humana. (ver quadro 10 no apêndice)

7. A participação plena e a motivação das disposições pessoais

Diante de tudo o que dissemos sobre a motivação das disposições pessoais e sua

importância na participação plena, representada neste trabalho pela monição litúrgica, neste item

queremos refletir sobre a participação na sua plenitude, corpo e espírito, razão e sentimentos

imersos na celebração do Mistério Pascal.

359
Intimismo. In: INSTITUTO ANTONIO HOUAISS. Dicionário Houaiss de língua portuguesa, p. 1638.
140

Como vimos, a participação pode ser parcial, privilegiando alguma dimensão, em

detrimento de outras. Entretanto, há também o caso da não participação, quando as preocupações,

a razão e a emoção estão dirigidas para outros objetivos. Acontece nesse caso uma assistência

pura e simples, sem envolvimento com o Mistério celebrado. Pode ser o caso de pesquisadores,

jornalistas ou fotógrafos, que analisam a celebração sob outros prismas. Mas também pode

acontecer com pessoas sem nenhuma ou com pouquíssima formação litúrgica, que acabam

agindo como “peixe fora da água”. (ver quadro 11 no apêndice)

Após essas reflexões sobre as participações parciais e a não-participação, queremos traçar

as características principais da participação total ou plena, sob o enfoque da motivação das

disposições, que devem ser estimuladas pela monição litúrgica. (ver quadro 6 no apêndice)

A participação plena se caracteriza por:

- Formação teológico-catequética das disposições pessoais em vista da liturgia.

- Disposições pessoais bem motivadas pela comunidade celebrativa dentro de um processo

iniciático e mistagógico.

- Nível de estímulo que possa atingir a disposição interior do fiel, tanto na sua dimensão

racional como emocional.

- Motivação que incorpore a ação litúrgica na sua relação mistérica e se aproprie da própria

ação, transformando-a em um diálogo verdadeiro com Deus, onde se possa encontrar resposta

às necessidades de cada participante.

- Reta intenção e disponibilidade ao Mistério celebrado.

- Coerência entre a participação interna e externa, de tal modo que esta seja expressão daquela

(habitus).
141

- Processo de simbolização que leve o fiel a participar holisticamente (de corpo e espírito,

razão e sentimentos) do diálogo com Deus através do mistério simbolizado.360

- Conformidade entre a liturgia e os outros momentos da vida, de modo que as disposições

pessoais estejam motivadas tanto para a celebração do rito como para o testemunho cotidiano.

Nas monições apresentadas em sua estrutura (saudação, exhortationes anamnética,

temporal, celebrativa e participativa) percebemos de modo claro o intuito de conduzir os fiéis em

sua disposição interior para o mergulho no Mistério celebrado. Hoje se faz a memória da

salvação de Deus na História, da paixão do Senhor e da passagem da morte à vida e do envio do

Paráclito. Ao celebrar a memória, a Igreja exorta os fiéis a se disporem, se abrindo ao tempo da

graça (Kairós) atual. Tal exortação quer levar os fiéis a seguir os passos de Jesus na sua entrega

salvadora, a se reunirem junto ao ressuscitado, ouvindo a palavra com ânimo sereno. A certeza do

“hoje” da salvação une os fiéis à cruz e à ressurreição do Senhor, de tal forma que penetrem no

mistério de sua Páscoa e recebam os frutos da redenção.

Percebemos nas monições que seu objetivo principal é fazer com que os fiéis participem

segundo o espírito da liturgia. Superando a tendência juridista e clerical, as monições não são

somente avisos ou comentários, mas têm o objetivo de levar à participação ativa inerente à

natureza da liturgia. No mesmo processo participativo, o fiel exterioriza através de palavras ou

gestos sua vivência interior.

Esta disposição interior poderia se desviar para outros motivos não tão litúrgicos, como já

aconteceu com o devocionismo. Por isso, o agente deve ter claro o sistema de disposição

(habitus) do qual o fiel cristão é portador, a fim de motivar-lhe a disposição, para que este possa

se unir ao Mistério Pascal de Jesus pelo Espírito e fazer a vontade do Pai. É pela eficácia da

360
Aspecto hierático das monições.
142

participação ativa (interna e externa) que os fiéis não receberão em vão a graça de Deus. (Cf. SC

11) Essa eficácia, quando prejudicada pelo acento exagerada na dimensão externa, deixa a desejar

em relação à dimensão interna da participação.

Enfim, a eficácia total da Liturgia, e não somente a eficiência exterior, é assegurada pela

participação ativa: interna (disposição interior motivada) e externa (gestos e palavras).


143

Conclusão geral

A liturgia é essencialmente expressão simbólica do Mistério de Cristo. Como vimos no

primeiro capítulo, o simbolismo litúrgico funciona como jogo entre os agentes que têm o poder e

os que acorrem com as próprias necessidades para a celebração. Nesse jogo, as disposições

pessoais bem formadas são fundamentais para que a liturgia atinja a sua eficácia santificante.

Estas disposições não podem representar “fervorinhos” de ultima hora, mas, mesmo do ponto de

vista científico, são habitus estruturados e estruturantes, que vão se formando ao longo da vida e

a partir das experiências das pessoas. Por isso, esses habitus estão sempre passando por novas

estruturações, porque as motivações que os fomentam não são extáticas ou cristalizadas, mas

abertas e em contínua reformulação.

Por outro lado, as motivações verdadeiras são interiores e profundas e indicam uma

direção apontada pelo comportamento global do ser humano. Uma pessoa bem motivada tem

uma linha de conduta, para a qual se predispõe de forma geral, com todo o seu ser. Por isso, não

devemos trabalhar as motivações isoladamente, mas segundo essa linha de conduta, que

chamamos de “estilo de comportamento motivacional”.

Ao transportarmos isto para o processo motivacional na liturgia, a primeira questão que

aparece é como encarar a participação plena se há tantos fiéis mal formados? A catequese hoje e

as experiências litúrgicas são um verdadeiro momento de formação das disposições pessoais,

onde os habitus, desde a família, vão sendo reestruturados e também estruturando engajamentos

cada vez mais participativos? Para isto, as nossas celebrações deveriam ser transparentes e de

fácil entendimento para poderem induzir à participação, sem, contudo cair no didatismo.
144

Este trabalho não pretendeu responder a todas essas questões. Entretanto, a partir da

reflexão que fizemos sobre o processo de formação das disposições pessoais do fiel em vista de

motivações, sempre retomadas pelas monições, é preciso vislumbrar alguns pontos para que

nossas celebrações propiciem a participação dos fiéis.

O fiel na celebração dos sacramentos, precisa participar com todo o seu ser, isto é, numa

unidade harmônica entre o excitar do coração e o instruir o espírito, entre a adoração ao Senhor e

a participação na ação comunitária. Os convidados para a ceia do Senhor devem estar bem
361
preparados para que a celebração não se torne um caos de sinais, e o sacramento seja um

verdadeiro encontro com o Senhor, dando à “súplica todo o poder possível”.362. Porém, o fiel

muitas vezes se acerca da liturgia com disposições errôneas ou parcialmente incompletas. De um

lado, pode-se atribuir um valor mágico à materialidade das orações e, de outro, fazer da liturgia

uma catequese com um ranço iluminista, transformando as celebrações em aulas.

O contexto da secularização dificulta a entrada na trama simbólica e ao acesso à salvação

pelas vias rituais. Por isso a crise da liturgia deve ser identificada como uma crise no simbolismo

litúrgico. É necessário então, uma educação para o simbólico, com uma progressiva iniciação às

“atitudes interiores e exteriores que caracterizam a vida litúrgica”.363

A própria celebração litúrgica já é um momento de iniciação, cuja preparação deveria ser

uma catequese de caráter mais mistagógico que doutrinal. 364 A Conferência de Puebla nota que

há “marcada ausência de catequese litúrgica destinada aos fiéis”.365

361
Cf. GANOCZY, Alexandre. Os sacramentos: estudo sobre a doutrina católica dos sacramentos, p. 134-137.
362
CATECISMO da Igreja Católica, n. 2702.
363
SARTORE, Domenico. Sinal/símbolo. In: Dicionário de liturgia, p. 1150.
364
Cf. DELLA TORRE, Luigi. Pastoral litúrgica. In: Dicionário de liturgia, p. 906.
365
PUEBLA: A evangelização no presente e no futuro da América Latina, n. 901.
145

Porém, não foi nosso intuito discorrer sobre a catequese ou a espiritualidade litúrgicas. No
366
entanto, cremos que precisamos formar nos fiéis o espírito litúrgico, de tal modo que o pensar

e o agir se inspire na liturgia e se concretiza nas várias espiritualidades.367

É preciso também garantir que a piedade popular concorra para este fim. Por isso, espera-

se que o rosário, a via sacra, as peregrinações, as procissões “condigam com a liturgia, dela de

alguma forma derivem, para ela encaminhem o povo, pois que ela, por sua natureza, em muito os

supera”. (SC 13) Cremos que é nesse sentido que foi publicado o Diretório sobre piedade popular

e liturgia, pela Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos, a fim de

propiciar a harmonia entre a piedade popular e a liturgia. 368

Outro problema ainda deve ser superado: o didatismo, que fez as celebrações tomarem um

aspecto de aula.369 Isto foi agravado com a sobrecarga de domingos temáticos e o sobrepujar da

conscientização em detrimento da celebração.

Tudo isto tem uma história que precisa se compreendia no seu conjunto. No decorrer do

tempo foram diversos os modos de motivação das disposições pessoais na celebração eucarística,

num primeiro momento marcado pela formação na convivialidade e, mais tarde enriquecida com

formação da disposição pessoal na mistagogia. O alegorismo medieval pretendia a participação

do povo numa liturgia onde primava o espetáculo. Desta forma, sem uma teologia adequada e

uma ciência litúrgica como base formativa, as interpretações do evento litúrgico eram

caracterizadas por uma vivacidade superficial. Mais tarde, o devocionismo, procurando suprir o

afastamento do povo da liturgia, provoca o desvio das disposições pessoais para devoções ou

366
Espírito litúrgico expresso nesse trabalho pela noção de habitus no capítulo primeiro.
367
Cf. CUVA, Armando. “Principi generali per la riforma e l’incremento della sacra liturgia”. In: La costituzione
sulla sacra liturgia, p. 351.
368
CONGRAÇÃO PARA O CULTO DIVINO E DISCIPLINA DOS SACRAMENTOS. Diretório sobre piedade
popular e liturgia: princípios e orientações. São Paulo: Paulinas. 2003.
369
Como vimos no capítulo anterior quando estudamos os comentários.
146

didatismos. Apesar do Movimento Litúrgico e o Concílio Vaticano II buscarem a participação

plena do povo de Deus, permanecem vícios antigos, como o verbalismo e o didatismo, aos quais

procuramos dar uma resposta no terceiro capítulo através da monição como instrumento de

motivação da disposição pessoal do fiel na celebração eucarística.

Diante desse contexto, aconselhamos, além da catequese sistemática, uma catequese

inserida na liturgia, privilegiando as monições ou breves didascálias pelo seu alto poder

formativo. Trata-se, portanto, de monições breves e hieráticas, inseridas no rito e atuando em

favor dele. Tais monições concretizam aquela catequese mais diretamente litúrgica pedida pela

Constituição Sacrosanctum Concilium, (Cf. SC 35, 3) que busca inculcar o espírito litúrgico nos

fiéis.370 É em favor desta catequese mais diretamente litúrgica, inserida na celebração, que as

monições se constituem como momentos privilegiados da celebração eucarística.

370
Cf. CUVA, Armando. “Principi generali per la riforma e l’incremento della sacra liturgia”. In: La costituzione
sulla sacra liturgia, p. 440-441.

Você também pode gostar