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Pós-graduação em Tradução

Linguística aplicada à tradução


Prof.ª Meritxell Almarza

Resenha de “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral” de F. Nietzsche


Autor: Meritxell Almarza

Nas reflexões críticas que desenvolve em “Sobre verdade e mentira no sentido


extra-moral” acerca da verdade, do intelecto e da formação dos sistemas de
conceitos humanos, Nietzsche reserva à linguagem um lugar central.

No texto “Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral” (doravante VM),


Nietzsche coloca em questão a pretensão do homem ao conhecimento. Numa crítica
imoderada às teorias universais, racionalistas e objetivas sobre a verdade, o autor põe a
linguagem no centro dos assuntos humanos ao considerar que a realidade passa pelo filtro
da linguagem. O que se considera verdade em uma sociedade descansa sobre designações
linguísticas, que, por sua vez, exprimem a relação do homem em sociedade com o mundo
mediante metáforas que se assentam pelo uso habitual e continuado.
Para chegar até esse ponto, Nietzsche desconstrói a racionalidade do homem
salientando sua parte instintiva: sua necessidade de sobreviver. O intelecto, por exemplo,
não seria senão uma invenção humana para sobreviver; na natureza não tem nenhuma
finalidade, somente serve ao ser humano porque o faz sentir falsamente seguro: o engana,
submergindo-o em “ilusões e imagens de sonho” (VM, p. 54), ou seja, uma representação
do “real” criada pelo próprio homem.
Para poder viver em sociedade e em paz – e assim sobreviver –, o primeiro passo
do homem é estabelecer o que deve ser verdade mediante “uma designação
uniformemente válida e obrigatória das coisas” (VM, p. 54): a linguagem. Só que alguns
homens, os mentirosos, usam as designações válidas para não representar a verdade.
Então Nietzsche questiona se a linguagem é realmente um sistema de representação, se é
realmente fruto da verdade, se a verdade e a linguagem não seriam senão coisas
independentes. De fato, segundo Nietzsche, o homem nem sequer está interessado na
verdade, somente no efeito que provoca, prevalecendo de novo o instinto de preservação:
“deseja as consequências da verdade que são agradáveis e conservam a vida: diante do
conhecimento puro sem consequências ele é indiferente, diante das verdades talvez
perniciosas e destrutivas ele tem disposição até mesmo hostil” (VM, p. 55).
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Nietzsche retoma assim o pensamento dos sofistas. Coincide com Górgias em


que o único que existe é o logos – tomado aqui como linguagem, discurso –, que é
independente da verdade, que nos é inalcançável: “nas palavras nunca importa a verdade
[...]. A ‘coisa em si’ (tal seria justamente a verdade pura sem consequências) é, também
para o formador da linguagem, inteiramente incaptável e nem sequer algo que vale a
pena” (VM, p. 55). Por outro lado, coincide com Protágoras em que o homem é a medida
de todas as coisas, o que fica evidente quando Nietzsche apresenta sua visão da formação
dos conceitos: nossa organização do mundo, nossa classificação da realidade, além de ser
reducionista e igualitária, é totalmente subjetiva e antropomórfica. As partições, portanto,
não são representantes da realidade, são fabricações humanas: “O que é a verdade,
portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma
soma de relações humanas” (VM, p. 57). O formador de linguagem “designa apenas as
relações das coisas aos homens e toma em auxílio para exprimi-las as mais audaciosas
metáforas” (VM, p. 55).
A relação do homem com as coisas – o estímulo nervoso, a vivência primitiva –
é transformada em imagem, que, por sua vez, é transformada em sons, palavras. Essas
transformações em si já são consideradas por Nietzsche como metafóricas. Em qualquer
caso, a gênese da linguagem não se dá de forma lógica nem tem a ver com a essência das
coisas. A palavra vira posteriormente conceito identificando coisas não idênticas,
igualando não-iguais: “a desconsideração do individual e efetivo nos dá o conceito [...]
enquanto a natureza não conhece formas nem conceitos, [...] somente um X, para nós
inacessível e indefinível” (VM, p. 56). Portanto, para Nietzsche, o conceito é somente o
resíduo de uma metáfora, é uma imagem dissolvida, uma intuição liquefeita.
O sentimento de verdade lhe vem ao homem somente pelo esquecimento. O uso
habitual e inconsciente de determinadas metáforas durante séculos faz que ele acredite,
se engane por meio do intelecto, de que elas são a verdade. E as organiza, tornando o
mundo mais “sólido” e “seguro”.
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Resenha de Investigações Filosóficas, de L. Wittgenstein


Autor: Meritxell Almarza

Em suas Investigações Filosóficas, Wittgenstein põe em questão certa proto-


imagem da linguagem, que, para ele, não apenas está na base de teorias
sofisticadas da linguagem, como também constitui uma espécie de senso comum.

Wittgenstein inicia suas Investigações filosóficas (doravante IF) com uma


citação de Santo Agostinho, de Confissões I/8, que ilustra uma imagem de linguagem
como sistema de representação, como nomenclatura, onde as palavras servem
primordialmente para denominar objetos. Cada palavra tem uma essência, seu
significado, uma entidade oculta “que indica as sensações da alma”, que representa o
objeto que substitui. Como aponta Wittgenstein, “nesta imagem de linguagem
encontramos as raízes da ideia: cada palavra tem uma significação. Esta significação é
agregada à palavra. É o objeto que a palavra substitui” (IF, §1). Essa proto-imagem
representacionista e essencialista de linguagem, de raízes platônico-aristotélicas, é
predominante desde faz séculos até o ponto de ser considerada senso comum e é usada
como base para desenvolver teorias linguísticas de cunho lógico e mentalista.
Segundo Wittgenstein, essa proto-imagem pressupõe também que aquisição e
compreensão de uma língua envolvem operações mentais, na esteira da tríade aristotélica
realidade-alma-linguagem: “Santo Agostinho descreve o aprendizado da linguagem
humana como se a criança chegasse a um país estrangeiro e não compreendesse a língua
desse país; isto é, como se ela já tivesse uma linguagem, só que não essa. Ou também:
como se a criança já pudesse pensar, e apenas não pudesse falar” (IF, §32). Assim, a
construção e a compreensão de conceitos são vistas como algo anterior ao aprendizado
de uma língua. Além disso, essas operações mentais são pautadas por um sistema de
regras bem definido, uma entidade mental que determina, previamente ao uso da
linguagem, suas possibilidades: “nós, notadamente em filosofia, comparamos
frequentemente o uso das palavras com jogos, com cálculos segundo regras fixas, [...]
quem pronuncia uma frase e lhe dá significação ou a compreende realiza com isto um
cálculo segundo regras determinadas” (IF, §81).
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A citação de Santo Agostinho serve de gatilho, então, para uma série de


reflexões, em forma de anotações, que contêm por vezes um diálogo com um interlocutor
imaginário com quem Wittgenstein discute sobre essa proto-imagem de linguagem,
propondo uma mudança de visão do fenômeno linguístico. Uma das críticas é que a
linguagem pode não ter finalidade de despertar representações: “Santo Agostinho
descreve, podemos dizer, um sistema de comunicação; só que esse sistema não é tudo
aquilo que chamamos de linguagem. [...] é útil, mas apenas para esse domínio
estritamente delimitado, não para o todo que você pretendia apresentar” (IF, §3);
“‘Denominamos as coisas e podemos falar sobre elas, referimo-nos a elas no discurso’.
[...] Ao passo que fazemos as coisas mais diferentes com nossas frases” (IF, §27). Com
exemplos simples e do dia a dia, na seção 2, Wittgenstein aponta como o “dizer” pode ser
diferente do “querer dizer”, pode não querer representar, mas “fazer”. A expressão “cinco
maçãs vermelhas” numa lista da compra não significa a representação de cinco maçãs
vermelhas, mas que determinada pessoa compre cinco maçãs vermelhas. O grito “lajota!”
não significa a representação do objeto, mas que alguém traga o objeto. “Apenas numa
linguagem posso querer dizer algo com algo. Isto mostra claramente que a gramática de
‘querer dizer’ não é semelhante à expressão ‘representar-se algo’ e coisas do gênero” (IF,
§38). Com isso Wittgenstein propõe que o significado não é essência, mas que está no
uso da palavra, e cada uso será diferente. Segundo o autor, a linguagem não está separada
da realidade, nem a significação é anterior à práxis linguística: existe reciprocidade entre
o verbal e o não-verbal, a linguagem é parte indissociável das atividades humanas.
Para Wittgenstein, então, entender uma língua é dominar uma práxis, “dominar
uma técnica” (IF, §199). A maneira como demonstramos que entendemos uma frase é no
modo como agimos, é como tomamos como adequada aquela frase naquele contexto.
“Lajota!” significará trazer uma lajota em determinado contexto e interlocutor
demonstrará que entendeu trazendo a lajota, dando o seguinte lance no jogo da linguagem.
Assim, para Wittgenstein, a linguagem não é guiada por um sistema de regras pré-
definido que regula o jogo de fora, como uma entidade exterior: são as ações, as formas
de vida, que determinam a linguagem. As regras são aplicadas e descrevem determinadas
atividades concretas, não são exaustivas nem explicam o funcionamento completo de um
sistema abstrato.

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