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Nuances- Vol.

III- Setembro de 1997 73

PIAGET E KANT: UMA COMPARAÇÃO DO CONCEITO DE


AUTONOMIA.
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Raquel Rosan CHRISTIN0

RESUMO: Uma questão fundamental, para a educação, quando estudamos a moral, é saber
quais são as exigências que se colocam para permitir a descoberta de um homem plenamente
moral. Porém, para investigar este campo, é preciso saber o que é a moral. Tal conceito é muito
bem trabalhado na Filosofia. Assim, estudiosos da moralidade, como Piaget, procuraram e
aceitaram definições filosóficas de moral, para só então verificar como esta se dá no cotidiano
Tendo consciência, portanto, que o filósofo Emmanuel Kant e o epistemólogo e psicólogo
Jean Piaget são freqüentemente associados quando se trata de discutir tal questão, o presente
trabalho se propõe a mostrar as diferenças e semelhanças dos pressupostos teóricos subjacentes
às teorias kantiana e piagetiana no que se refere ao conceito de autonomia- um dos requisitos do
homem moral.

PALAVRAS-CHAVE: Kant; Piaget; Autonomia; Sujeito Moral.

concordância com sua validade universal


1. Teoria moral e o conceito de (ditado pelas três fórmulas do imperativo
autonomia em Kant categórico) e não simplesmente pelo medo à
punição ou interesse nas vantagens a serem
Em moral, as teorias moral de Piaget obtidas pessoalmente. Aliás, segundo Kant,
e Kant parecem possuir um mesmo quando obedecemos as prescrições ou
ingrediente essencial do pensamento: a regras ditas morais apenas por
autonomia. conformidade, interesse ou prudência, os
Em Kant, o conceito de autonomia imperativos que nos orientam são hipotéticos
está presente fundamentando toda a ética. e a moral é heterônoma. Assim, pode-se
Cassirer, um dos maiores comentadores de resumir o dito, salientando que, em Kant, o
Kant, salienta o que é a autonomia para o princípio incondicional da moralidade é
autor: chamado autonomia da vontade e o princípio
condicional é heteronomia.
"a autonomia é aquela vinculação da É evidente que a validade universal,
razão teórica e da razão moral em que dita acima, significa que as vontades
esta tem a consciência de vincular-se a autônomas racionais não são, num certo
si mesma". (Cassirer, 1968, p. 287) sentido, relativas a indivíduos . Há, com
efeito, algo sobre nossa natureza racional
Assim, podemos dizer que, para comum a todos os indivíduos,
Kant, a autonomia é a vontade própria. É proporcionando, assim, razões não
governar-se por si mesmo. É a escolha relativizadas segundo características de um
racional e emocional. É a escolha que não agente individual. Kant assegura um
leva em conta as conseqüências externas e imparcialismo extremo. A razão em questão
imediatas dos atos e nem as regras, por pura está sempre no fato que um prazer será
prudência, inclinação, interesse ou promovido e uma dor da civilização evitada,
conformidade. independentemente de qual será o ser
Ou, ainda, para aclararmos mais o racional que irá executá-la.
conceito de autonomia exposto, basta Sem dúvida, a teoria do homem
lembrarmos dos pareceres tradicionais dos autônomo, tão almejado por Kant, é. bela,
comandos de Deus, com a renovação de mas apresenta também algumas
que em Kant, a vontade legislativa está características negativas. Vejamos algumas
atribuída a cada agente racional e não mais apontadas por Hill (1989, p. 371)
a um Deus externo.
Segundo Kant, portanto, a " (1) the first point is that immoral
obediência a uma dada regra, no ser persons do not differ from the morally
autônomo, se dá pela compreensão e best persons in the standards of

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Mestranda em Educação - Faculdade de Filosofia e Ciências- UNESP- 17515-901 - Marília - Estado de São Paulo-
Brasil.
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rational choice to which they are ser "morar implica, às vezes. em


committed." perder vantagens imediatas para sí
em prol de outros que nunca
Como para Kant, a autonomia conheceremos ...
racional é pensada para ser uma Às vezes, implica até em sermos
característica inevitável de todo agente revolucionários, em sermos
racional, toda vontade humana racional teria contrários a leis que nos humilham,
inerente em si a perspectiva da autonomia a leis que nos tornam submissos,
racionaL Os homens apenas se distinguiriam sem dignidade ... "
segundo o que fazem, mas não segundo os ( Menin. 1996, p. 41-2)
padrões de escolha racional a que são
cometidos. 2. Piaget e o conceito kantiano de
autonomia
"(2)the next feature of rational
autonomy to consider is its al/eged Piaget, o psicólogo da moralidade.
independence from natural causes". apesar de .conhecer toda a dificuldade de se
(Hill, 1989, p. 372) ter o homem autónomo, superou-a pela
consciência da importância da construção do
O problema que se aponta neste mesmo, sendo que sua teoria foi toda
item é aclarar que tipo de independência é embasada no conceito kantiano de
esta descrita por Kant. autonomia.
Segundo o autor, a autonomia, o agir Em Piaget, vamos verificar a
segundo a razão prática não obedece a autonomia do sujeito em dois domínios,
fórmula de "porque estava com dada ambos embasados na razão O primeiro
inclinação ocorreu um dado comportamento". deles é a construção da razão.
Assim, explicando a independência, a Para reforçar esta afirmação basta
liberdade do homem moral, Kant diria que recordarmos que, para a epistemologia
"um sujeito para a boa razão, mas contra ou genética, o pensamento racional advém do
sem inclinação sente-se disposto a agir". esforço que o sujeito faz para pensar sobre
Portanto, quando um ser age contra (ou na seu próprio agir ou pensar. É claro que isto
ausênciade) inclinação, a disposição sentida não exclui o sujeito do meio, pois sem a
é vista como uma confirmação de recepção solicitação deste, aquele não refletiria.
da razão; não a base para ela. Porém, a dependência que o sujeito tem do
meio não significa heteronomia.
"(3)practical reasoning with
autonomy is, in some sense, "(...) tal dependência não significa
independent of inclination; but in heteronomia, uma vez que o
what sense?"(Hi/1, 1989, p. 372) processo de construção de
estruturas mentais é obra do sujeito,
Esta crítica, apontada por Hill, obra esta que ninguém pode fazer
acredito ser a mais forte. Às vezes, por ele e cujos resultados traduzem
expressões de Kant sobre a moral sugerem as potencialidades nele
um quadro, uma idéia de um "ser" sem inscritas.(. .. ).
desejos, corpo ou localização, E, embora Piaget tenha insistido na
temporalidade; e este misterioso "ser" dá necessidade de cooperação, de
ordens abstratas a um corpo suficientemente troca de pontos de vista entre pares
também imparciaL No homem moral há um para a busca de conhecimentos,
doador misterioso e um receptor de ordens. seu conceito de abstração reflexiva
Agora, conscientes de toda estrutura não deixa de lembrar o trabalho do
da teoria do homem moral em Kant e de sábio que se eleva acima de seus
algumas crítica recebidas, não podemos nos semelhantes pela auto-reflexão,
iludir: o homem moral almejado por Kant é reflexão esta, no entanto, somente
muito difícil de ser encontrado. Afinal, possível a partir da ação sobre o
mundo." (Taille et a/.. , 1991, p. 63)
" ser "moral" implica em pensar nos
outros, em qualquer outro, na O segundo domínio, refere-se à
humanidade ... função da razão. Para Piaget, a autonomia
ser "moral" implica em ter vontade: ocorre quando o indivíduo é capaz,· pela
querer e raciocinar além do próprio razão, construída segundo as estruturas
"eu"...
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próprias do sujeito, de se opor às respeita o adulto muito mais do que este


autoridades. àquela.
A autonomia inicia-se quando as
"O "herói" piagetiano é, portanto, crianças intercambiam seus pontos de vista,
aquele que pode dizer "não'' quando iniciando assim, a construção de seus
o resto da sociedade, possível próprios valores ou, até mesmo, a
refém das tradições, diz "sim", compreensão dos já existentes. Dizemos
contanto que este "não" seja fruto crianças, pois uma relação entre iguais é
desta démarche intelectual ativa e muito mais propícia para a construção da
não apenas decorrência de um autonomia do que relações entre desiguais.
ingênuo espírito de contradição". Isto porque. na maioria das vezes, na
(Tailleetal., 1991, p. 63) relação adulto-criança há proteção e mando,
de uma parte e submissão e imitação, da
Porém, obter a autonomia exige um outra, ou seja, uma relação de heteronomia.
pressuposto imprescindível: segundo Piaget, As crianças autónomas, após
o indivíduo deve poder usufruir de relações construírem as regras, fazem um uso
sociais de cooperação, nas quais se tem racional e social das mesmas, sendo que
presente o livre intercâmbio de pontos de estas são estabelecidas pelo consenso de
vista; a democracia. todo o grupo. o que implica, também, em
Assim, se pudéssemos detalhar reciprocidade na aplicação da mesma e na
melhor os fatores que levam um indivíduo a existência de respeito mútuo, ou seja, há
superar a heteronomia e chegar a uma relação de igualdade de poder de ação
autonomia, poderíamos pontuar, dizendo: de um ao outro.
• Superar o egocentrismo e chegar à
descentração. 4. Comparações e considerações
Uma criança egocêntrica é centrada
em si mesma, não conseguindo perceber a
existência de pontos de vista diferentes do Para concluir, podemos fazer um
seu. É incapaz de se colocar no lugar do paralelo entre Kant e Piaget, afirmando que,
outro Vê o mundo de uma única para ambos os autores, a moral não está em
perspectiva: a suai que regras seguem os indivíduos ao agir ou
• Superar a coação e chegar à cooperação. julgar os atos de outros, mas no princípio
Segundo Piaget, nas relações onde que determina a obediência das mesmas.
predomina uma desigualdade de poderes Porém, apesar do princípio da moral
entre os indivíduos, passa a existir a coação. ser o mesmo, para ambos os autores, para
Na coação, "o grande", representado, muitas Kant a autonomia moral reside na vontade
vezes, pelo adulto, como os pais e os do homem de escolher, submeter-se a leis
professores, impõe ao pequeno, à criança, o "universais", ao passo que, para Piaget, esta
que esta deve fazer. Este obedece, se aparece sendo construída em crianças,
moldando ao grande, imitando-o. passo a passo, intercambiando pontos de
vista, onde iniciam a construção de seus
3. Algumas implicações desses próprios valores e regras, a que se
conceitos nos estágios de construção das submeterão no grupo.
regras nos jogos infantis Sobre o assunto salienta Freitag
(1991, p. 54):
Mas, como nosso estudo pretende
debruçar-se, mais especificamente, na "como Kant, Piaget defende o
manifestação da autonomia em situações de caráter racional da autonomia, da
jogos, iremos agora fazer um paralelo entre vontade moral. Mas, ao contrário de
as noções de autonomia e heteronomia e os Kant, essa autonomia não é um
estágios da prática e consciência das regras, dado e sim o produto de uma
encontrados por Piaget gênese, uma "conquista"da
A heteronomia inicia-se quando as consciência moral infantil. O
tendências afetivas passam a ser sujeitas a respeito à norma não é
regras exteriores à criança. Tais regras são absolutizado, como no caso de
vistas como sagradas, coercitivas e Kant, mas analisado em seus
imutáveis, existindo por sí mesmas, vários momentos, passando da
independente das pessoas. A criança coerção externa para a
heterônoma possui um respeito unilateral: compreensão interna da
necessidade da regra, por respeito
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aos outros sujeitos. A idéia de Freitag pontuou muito


'justiça" não deriva do a priori do acertadamente as diferenças entre a moral
imperativo categórico, mas resulta Kantiana e Piagetiana.
da cooperação praticada no grupo" No item da redefinição genética do
conceito de autonomia, vemos claramente a
A "universalização" da moral diferença, pois, para Piaget, a autonomia
kantiana explicitada no imperativo "age como não é um pressuposto da razão prática , mas
se a máxima de sua ação se devesse tornar sim algo construído através da cooperação,
pela tua vontade uma lei universal da do conflito. do intercâmbio intelectual e do
natureza", começa, portanto, em Piaget com desenvolvimento do pensamento formal.
a reciprocidade no grupo, pela solidariedade Já, quanto ao item dois, podemos
aos outros, ou, como o autor enfatiza, "pela dizer que Piaget transforma a exigência da
regra de ouro". universalização, que, para Kant, pode ser
Sobre este ponto, salienta Menin realizada in foro intimo, em monólogo, em
(1996, P. 46-7): um diálogo. Ou seja, a realização do
principio da universalização de uma norma
"aprendendo a fazer em grupos, cada de conduta. princípio este encontrado em
vez maiores. aquilo que é bom para ambas as teorias, passa a não ser mais um
nós, começamos a aprender a fazer, simples exercício solitário, mas sim um
no mundo, o que é bom para a trabalho só possível em conjunto, com um
humanidade." grupo onde é possível ocorrer a troca de
experiências.
Podemos ver que Kant se coloca, Já, quanto ao item três, podemos
segundo um ponto de vista filosófico e salientar que Kant realizou um trabalho que
transcendental, falando o que vem a ser buscava saber até onde é possível conhecer
universalmente "direito" , enquanto que, e quais são os graus de certeza do
Piaget se coloca, refletindo moral a partir do conhecimento humano, chegando à
comportamento observado de crianças e, conclusão de que a razão teórica não tem
portanto, no universo empírico e do ponto de instrumentos para conhecer a liberdade e,
vista psicológico. Neste último universo, como conseqüência, a razão prática, pois
autonomia será sempre entendida esta pressupõe aquela. Kant diz isto, pois,
relativamente e não como constituinte da segundo ele, nunca teremos cantata direto
própria liberdade. com a coisa-em-sí, nunca conhecemos o
Assim, podemos dizer que Piaget que transcende ao universo da experiência,
procurou e aceitou a definição de moral mas somente os fenômenos.
Kantiana, mas introduziu a esta algumas Assim, podemos concluir que, em
inovações. Kant, apesar de não existirem duas formas
Salienta Freitag (1991, p. 55): distintas de sujeito, um sujeito moral e um
sujeito do saber, a razão prática e a razão
"Piaget introduz três inovações teórica se completam por mera justaposição.
estratégicas em relação a Kant no Diferente é a posição de Piaget, que
contexto da razão prática: (a) defende a tese de que o pensamento lógico
redefine geneticamente o conceito pode pensar a liberdade. Segundo o autor, o
de autonomia; (b) reformula pensamento formal é capaz de desprender-
dia/ogicamente o imperativo se dos modelos empíricos, do mundo real e
categórico; e (c ) estabelece deduzir hipoteticamente os mundos
dia/eticamente a relação teórica e a possíveis. Assim, em Piaget, a relação razão
razão prática." prática e teórica é uma relação dialética,
necessariamente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS

CASSIRER, E . Kant, vida v doctrina. HILL, T. E. Kant's theory of practical reason.


Traducción de W: Roges. México: Fondo Monist, V. 72. p. 363-83, jul. 1989.
de Cultura Económica, 1968.
HILL JR, T. E. The hypothetical imperative.
FREITAG, B. Piaget e a filosofia. São Paulo: Phil/ Ver, V. 82, p. 429-50, oct./dec. 1973.
Unesp, 1991.
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MENIN, Maria Suzana de Stefano. TAILLE Y., DANTAS H., OLIVEIRA,M.


Autonomia e heteronomia às regras Mesa redonda: três perguntas a
escolares- observações e entrevistas na vygotskianos, wallonianos e
escola. São Paulo, 1985. Dissertação piagetianos. Cadernos de pesquisa. n.
(Mestrado)- USP. 76, p. 57-64, fev. 1991.

LACEDO, L. (org.) Cinco estudos de


educação moral. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 1996.

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