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36 (2004) 99-124
RESUMO:
O presente artigo procura aprofundar a concepção de teologia prática (assim ele
chama a teologia pastoral) de Karl Rahner. Na primeira parte, fazemos um percur-
so histórico, assinalando os problemas mais importantes que se apresentaram a
respeito da teologia pastoral na reflexão anterior a Rahner: o caráter científico da
teologia pastoral, o sujeito da ação pastoral, o caráter escatológico da teologia
pastoral, sua fundamentação teológica e seu método. Na segunda parte, analisa-
mos a concepção de teologia prática em Karl Rahner: seu objeto material e formal,
seu método centrado na análise científico-teológica da situação presente e suas
relações com as outras ciências. Finalmente, fazemos uma análise crítica, assinalan-
do aquilo que nos parece ser a contribuição mais relevante e as fragilidades de sua
concepção de teologia prática.
PALAVRAS-CHAVE: pastoral, Igreja, planificação, escatologia, método.
ABSTRACT:
This article seeks to delve into Karl Rahner’s conception of practical theology
(pastoral theology). The first part is an historical trajectory of pastoral theology,
depicting the major problems prior to Rahner: the scientific character of pastoral
theology, the personnel of pastoral ministry, the eschatological character of pasto-
ral theology, and its theological foundation and its method. The second part analyses
the conception of Rahner’s practical theology: his material and formal object, his
99
method centered on scientific-theological analyses on the present situation and its
relation to other sciences. Finally, a critical analysis portraying that which is
perceived as the most relevant contribution and the weaknesses of his conception
of practical theology.
KEY WORDS: pastoral, Church, planification, eschatology, method.
1. Introdução
N ossa inquietação pelo tema da teologia prática surge por uma neces-
sidade concreta. Há tempo existe uma insatisfação na Faculdade de
Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Chile com relação ao modo
como se aborda o estudo da pastoral no currículo teológico. Existe uma
grande dificuldade para dar ao estudo pastoral uma identidade mais clara.
Freqüentemente identifica-se com a aprendizagem de coisas práticas, de
técnicas pastorais, existindo uma grande lacuna no âmbito da pastoral
fundamental. No fundo, o problema é não saber bem como articular o
estudo pastoral no currículo teológico global. Esta dificuldade levou mui-
tas vezes a que a formação teológico-pastoral fique ao encargo do próprio
estudante no espaço extra-universitário.
Estas dificuldades levaram-nos a aprofundar o nível mais fundamental da
teologia pastoral, na convicção de que o problema de fundo tem a ver com
a identidade da teologia pastoral no conjunto das ciências teológicas.
Imersos nesta busca, percebemos que a contribuição de Karl Rahner é es-
pecialmente significativa por sua contundência argumentativa, por seu es-
forço em levar a sério os principais problemas que a história desta disci-
plina teológica suscitou, pela criatividade no modo de compreender a te-
ologia pastoral.
Adentrar-nos nesta concepção de teologia prática (que é como Rahner chama
a teologia pastoral) significa aprofundar questões realmente fundamentais
para a tarefa teológica e para a vida da Igreja hoje. Significa também entrar
em um âmbito do pensamento de Karl Rahner que – na nossa opinião –
não foi muito estudado no contexto latino-americano.
O presente artigo está dividido em três partes. Na primeira percorremos a
história, assinalando os problemas mais importantes que se apresentaram
a respeito da teologia pastoral na reflexão anterior a Rahner, começando
por Stephan Rautenstrauch e chegando a Franz Xaver Arnold. Na segunda
parte, analisamos a concepção de teologia prática em Karl Rahner: seu
objeto, seu método e suas relações com as outras ciências. Finalmente,
fazemos uma análise crítica, assinalando o que nos parece ser a contribui-
ção mais relevante e as fragilidades de sua concepção de teologia prática.
100
2. Os principais problemas diante dos quais Rahner
situa-se
1
Na apresentação do pensamento dos autores anteriores a Rahner, falaremos sempre de
teologia “pastoral”. A partir de Friedrich Schleiermacher, Anton Graf e, sobretudo em
Rahner, falaremos de teologia “prática”. Mais adiante explicaremos as razões desta
mudança.
2
Cf. J. MÜLLER, “Die Pastoraltheologie innerhalb des theologischen Gesamtkonzepts
von Stephan Rautenstrauch (1774)”, in: F. KLOSTERMANN- R. ZERFAß (eds.), Praktische
Theologie heute. München-Mainz: Kaiser- Grünewald 1974 [daqui em diante citaremos
com a sigla PThh], 42-51; 43.
3
S. RAUTENSTRAUCH, Entwurf einer besseren Einrichtung theologischer Schulen, cit.
in: B. SEVESO, “Teología pastoral”, Diccionario teológico interdisciplinar, I. Salamanca:
Sígueme 1982, pp. 84-94; 85.
4
Cf. A. EXELER – N. METTE, “Das Theorie-Praxis-Problem in der praktischen Theologie
des 18. und 19. Jahrhunderts”. PThh, pp. 65-80; 68.
101
creta da Igreja e do mundo4. A Ilustração questiona radicalmente esta si-
tuação e propõe o desafio de levar mais a sério a práxis pastoral, “dar uma
resposta compreensível e crível às perguntas apresentadas nesse momento,
formulada na linguagem e na forma de pensamento desse tempo”5. A
partir daí, o desafio é preparar melhor o clero para a práxis pastoral con-
creta, numa formação que integre adequadamente a teoria e a práxis.
Para ser incluída como disciplina teológica no currículo universitário, a
teologia pastoral devia ser justificada como ciência. Esta intenção de
cientificidade está presente no projeto de Rautenstrauch, pois a preparação
para a práxis pastoral do clero através da nova disciplina tinha que ser
com um melhor método e com novas formas didáticas. A respeito disso,
Josef Müller afirma: “O plano de Rautenstrauch claramente orientado à
práxis, não significa de modo algum uma supressão da ‘cientificidade’,
mas sim que ele apresenta, ao contrário, a exigência de um saber
empiricamente supervisionável e historicamente comprovável”6.
Contudo, a teologia pastoral de Rautenstrauch é marcada por um forte
pragmatismo. Ela é antes um receituário prático para a pastoral do clero
sem base teórica. Como afirma Casiano Floristán, “a teologia pastoral desta
época é mais arte do que ciência, mais receita canônica do que teologia”7.
Uma nova tentativa de afirmar a cientificidade da teologia pastoral é o que
Friedrich Schleiermacher (1768-1836), teólogo protestante, decano da uni-
versidade de Halle8, leva adiante. Em sua Breve apresentação dos estudos
teológicos redigida como lições introdutórias 9, posiciona-se diante do
questionamento que Kant (em 1798) e Fichte (em 1807) fazem à teologia.
Kant questionou o lugar da teologia no âmbito universitário, pois ela não
seria propriamente ciência por não ter aceso à verdade absoluta. Fichte,
por sua vez, sustentava que somente podia ter lugar na universidade uma
teologia “laica”, ou seja, uma teologia que renunciava a ter como fun-
damento a fé em uma revelação positiva10. Schleiermacher utiliza o
esquema apresentado por Schelling11 que dividia as ciências em “pu-
ras” ou de primeira ordem, e “práticas”, ou de segunda orden. As
ciências puras, como a filosofia da natureza e a ética, ocupam-se da
5
Ibidem.
6
MÜLLER, Die Pastoraltheologie innerhalb, op. cit., PThh, p. 46.
7
C. FLORISTÁN, Teología práctica: teología y praxis de la acción pastoral, Salamanca:
Sígueme 1991, p. 110.
8
Para as informações que apresentamos a seguir sobre o questionamento apresentado
por Kant e Fichte, cf. S. LANZA, Introduzione alla Teologia dell’azione ecclesiale, Brescia:
Queriniana, 1989, pp. 42-44.
9
F. SCHLEIERMACHER, Kurze Darstellung des theologischen Studiums zum Behuf
einleitender Vorlesungen entworfen, Leipzig, 1811. Cf. ibid., nota 22, p. 44.
10
Cf. ibidem, p. 43.
11
Em sua obra Vorlesungen über die Methode des akademischen Studiums, 1802. Cf.
ibidem, nota 18, p. 43.
102
verdade absoluta; ao passo que as ciências práticas têm como objeto a
obtenção da finalidade própria e concreta da existência humana, re-
nunciando à busca da verdade absoluta12.
Para Schleiermacher o fim prático é o princípio constitutivo da teologia e,
em relação a isto, distingue a “direção da Igreja” (Kirchenleitung), como
dimensão espiritual e ideal, do “governo eclesiástico” (Kirchenregiment),
que se desenvolve em um âmbito mais político. Deste modo a teologia
assume um caráter essencialmente funcional como ciência positiva a servi-
ço de um saber prático; ela se ocupa da direção da Igreja13. Ele define a
teologia prática do seguinte modo: “O fim da direção de uma Igreja cristã
é, de um ponto de vista extensivo e intensivo, a coesão e a formação; o
saber que tem a ver com tal atividade constitui-se em uma técnica que [...]
chamamos com o termo teologia prática”14.
A teologia prática existe pelo interesse prático da direção da Igreja, asso-
ciado ao interesse científico. Para Schleiermacher ela é ciência, pois não se
trata de um mero instrumental prático, mas sim de uma metodologia no
sentido mais alto do termo. Ela deve determinar o procedimento a ser
seguido para realizar efetivamente as tarefas eclesiais (a definição destas
tarefas é competência da teologia filosófica e histórica), deve verificar a
relação entre os fins perseguidos e os meios empregados15. Os imperativos
pastorais ou “regras de arte em sentido estrito” – como ele chama – não
podem ser simplesmente deduzidos do pensamento doutrinal, mas nas-
cem da confrontação com a práxis concreta. Para Schleiermacher a teologia
prática é uma “técnica” no sentido mais antigo do conceito, como uma
ação que reflete e não uma ação compreendida como simples aplicação de
princípios obtidos na reflexão doutrinal16.
Não há dúvida de que a posição de Schleiermacher representa um avanço
em relação a Rautenstrauch, no modo de compreender a cientificidade da
teologia pastoral, enquanto exercício refletido da ação pastoral e não mera
aplicação prática de princípios doutrinais. Entretanto, na concessão que faz
à crítica ilustrada, estabelece-se um corte radical entre teologia pastoral e
interesse teórico, sendo assim questionado o estatuto teórico da teologia
pastoral; dela exige-se (por parte das outras disciplinas teológicas) um
papel puramente prático.
Anton Graf (1814-1867), teólogo católico da Universidad de Tübingen, em
12
Cf. ibidem, p. 43.
13
Cf. M. MIDALI, Teologia pastorale o pratica: Cammino storico di una riflessione
fondante e scientifica, Roma: LAS, 1985, pp. 26-27.
14
SCHLEIERMACHER, Kurze Darstellung, op. cit. in MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., p. 27.
15
Cf. MIDALI: idem.
16
Cf. LANZA, Introduzione alla Teologia., op. cit., p. 50.
17
A. GRAF, Kritische Darstellung des gegenwärtigen Zustandes der praktischen Theologie,
Tübingen, 1841. Estes dados encontram-se em: K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein
Überblick”. In: Sämtliche Werke 19. Düsseldorf - Freiburg: Benzinger – Herder, 1995
[doravante citaremos esta obra de Rahner com a sigla SW 19], pp. 3-29; 4.
103
sua Apresentação crítica do estado atual da teologia prática17, reage diante
desta falta de cientificidade da teologia pastoral, tomando posição especi-
almente com relação à posição de Schleiermacher. Ele quer superar dois
extremos: “O empirismo puro, ou seja, a insistência unilateral na experiên-
cia e na práxis, mas também a concepção da teologia prática pelo caminho
da especulação”18.
Critica especialmente as concepções teológico-pastorais que, por ter a pró-
pria práxis como norma de conduta, não podem situar-se diante dela de
modo crítico e acabam sendo escravas da própria práxis19. Estas posições
a respeito da teologia pastoral, anteriores e contemporâneas a ele, devem
ser consideradas acientíficas, pois não apresentam uma síntese lógica em
um sistema, além de seus conhecimentos serem casuais, subjetivos e de
acordo com a moda20.
18
EXELER – METTE, Das Theorie-Praxis-Problem, op. cit., PThh, p. 72.
19
Cf. ibidem, p. 75.
20
Cf. W. STECK, “Friedrich Schleiermacher und Anton Graf - eine ökumenische
Konstellation praktischer Theologie?”, PThh, pp. 27-41; 32-33.
21
Cf. ibid., p. 32.
22
“Das wissenschaftliche Selbstbewußtsein der sich selbst in die Zukunft erbauenden
Kirche”. Cit. in: K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, SW 19, 4.
23
Cf. STECK, F. Schleirmacher und A. Graf, op. cit., PThh, p. 37.
24
Cf. EXELER- METTE, Das Theorie-Praxis-Problem, op. cit. PThh, p. 72.
25
H. SCHUSTER, “Die Geschichte der Pastoraltheologie”. In: K. RAHNER - F. ARNOLD
- V. SCHURR - L. WEBER (eds.), Handbuch der Pastoraltheologie. Praktische Theologie
der Kirche in ihrer Gegenwart I, Freiburg: Herder, 19702, pp. 42-92; 58.
104
da com propriedade uma ciência teológica”25. Além disso, é ciência porque
busca um saber unitário e sistemático que supere a fragmentação e o
subjetivismo das teologias pastorais anteriores26.
26
Cf. MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., p. 34.
27
Sua principal obra intitula-se: Pastoraltheologie I-III, Regensburg, 1850-1857.
28
Cf. K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, op. cit., in SW 19, p. 5.
29
Cf. B. SEVESO: “Teologia pastoral”. In: Diccionario teológico interdisciplinar I.
Salamanca: Sígueme, 1982, pp. 84-94; 85.
30
Cf. K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, op. cit., SW 19, p. 4.
105
evangélica. Entre elite e massa deve existir uma circulação no plano das
idéias31. Para ele “a teologia prática preside tal circulação ordenada entre
elite e massa, tanto na direção da Igreja em nível local, quanto no nível do
governo eclesiástico em sua totalidade”32.
A teologia não é própria de todos os que fazem parte da Igreja, mas so-
mente daquela elite que participa da direção da Igreja. Ainda que esta
elite, para Schleiermacher, não represente exclusivamente os pastores, a
divisão radical da Igreja entre elite e massa significa, em definitivo, um
novo estreitamento do sujeito da ação pastoral, e a teologia prática corre
novamente o risco de ficar reduzida à descrição do ofício dos pastores33.
Na teologia prática de Graf, outra categoria fundamental – além da
cientificidade que analisamos acima – é a eclesialidade. Ele pensa a Igreja
como um conjunto orgânico, como sujeito ativo, toda ela responsável por
sua própria vida e desenvolvimento. Portanto, o âmbito pastoral que leva
em consideração esta disciplina teológica já não é somente o clero, ou uma
elite encarregada da direção da Igreja, mas sim a Igreja como totalidade34.
Com o nome de teologia “prática” (que toma de Schleiermacher) em vez
de teologia “pastoral”, “Graf quer superar a perspectiva clerical da
manualística precedente [...]; e quer marcar, por outro lado, que o sujeito
da ação é a Igreja em sua globalidade”35.
Amberger tentou – sem êxito – continuar a proposta eclesiológica de seu
mestre Graf. Dividiu a teologia prática em direito canônico, entendido como
“as normas segundo as quais a Igreja constrói-se ininterruptamente medi-
ante forças colocadas nela pelo Espírito de Deus para educar os povos na
salvação eterna”36, e teologia pastoral, que se ocupa do desenvolvimento
das atividades concretas para conseguir este objetivo. Nesta divisão e no
tratamento privilegiado que dá ao direito canônico, a figura do pastor é
vista como mediador entre o céu e a comunidade, e a atividade eclesial
manifesta-se de modo privilegiado em seu ministério pastoral. Por isso se
reduz a teologia pastoral, novamente, à exposição da atividade dos pastores,
estreitando-se o horizonte eclesiológico aberto por Graf37. Rahner retomará
criativamente este horizonte como base de sua concepção de teologia prática.
31
Cf. MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., pp.27-28.
32
Ibidem, p. 28.
33
Cf. ibidem, pp. 28-29.
34
Cf. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, op. cit., SW 19, p. 5.
35
MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., p. 34.
36
AMBERGER, Pastoraltheologie, op. cit., in: SEVESO, Teologia pastoral, op. cit., p. 87.
37
Cf. SEVESO, Teologia pastoral, op. cit. p. 87.
106
universitária, foi realizado por encargo da imperatriz Maria Teresa da
Áustria38. O objetivo desta reforma não era somente a formação de pasto-
res melhor preparados para exercer os deveres propriamente religiosos,
mas também a formação de bons cooperadores do Estado. O Estado via no
clero os mestres do povo, através dos quais era possível levar a cabo a
Ilustração nacional. Para Rautenstrauch, o pastor de almas tem que esfor-
çar-se “através de seu ensinamento, em formar não somente bons cristãos,
mas também bons cidadãos para o Estado e verdadeiros filantropos para
a sociedade humana”39.
Assim, a teologia pastoral de Rautenstrauch é marcada por uma
absolutização da práxis eclesial existente, sem possibilidade de assumir
uma postura crítica diante dela e com o evidente perigo de cair na mera
ideologia. Inexiste nela o horizonte escatológico.
Juan Noemi, comentando a teologia pastoral de Rautenstrauch, afirma: “A
insignificância teológica do pragmatismo e a carolice, contudo, não é a pior
conseqüência de uma teologia pastoral que absolutiza a realidade presente
da Igreja e abstrai de sua dimensão futura; ainda pior é o perigo de que a
teologia degenere em mera ideologia, ou seja, na absolutização tosca e
acrítica de determinadas estruturas de poder vigentes em um momento
determinado. O caso de Rautenstrauch é patente, já que desenha uma te-
ologia pastoral a serviço dos príncipes e da imperatriz”40.
A recuperação do horizonte escatológico, a partir do qual é possível um
olhar crítico de uma teologia pastoral que se transforma em uma justifica-
ção teológica da práxis existente, vai acontecer apenas na concepção de
teologia prática de Anton Graf.
É interessante notar que os comentaristas de Graf destacam em sua con-
cepção de teologia prática os traços de cientificidade e eclesialidade, mas
a dimensão escatológica de sua teologia é pouco comentada. De sua defi-
nição de teologia prática como “a autoconsciência científica da Igreja que
se auto-edifica em direção ao futuro”, acolhe-se a primeira parte do enun-
ciado como uma grande contribuição, deixando-se em plano secundário a
segunda: em direção ao futuro.
Na divisão da teologia feita por Graf em teologia bíblica e histórica, teologia
dogmática e teologia prática, o específico desta última é ter como objeto de
reflexão a Igreja enquanto se auto-edifica em direção ao futuro.“É precisa-
mente – afirma J. Noemi – esta referência à Igreja ‘no futuro’ como algo
38
Cf. MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., p. 9.
39
RAUTENSTRAUCH, Entwurf, op. cit., p. 37, cit. in A. MÜLLER, “Praktische Theologie
zwischen Kirche und Gesellschaft”, op. cit., PThh, pp. 15-26; 17.
40
J. NOEMI, “Rasgos, imperativos y desafíos”, in: J. NOEMI – F. CASTILLO: Teología
latinoamericana, Santiago: Centro Ecuménico Diego de Medellín, 1998, pp. 11-93; 78.
41
NOEMI, Rasgos, imperativos y desafíos, op. cit., p. 78.
107
próprio da teologia prática a grande novidade que Graf introduz”41.
42
Cf. ibidem, p. 77.
43
J.M SAILER, Vorlesungen aus der Pastoraltheologie I-III, München 1788-1789.
44
K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, SW 19, p. 4.
45
FLORISTÁN, Teología práctica, op. cit., p. 110 [grifo do autor]
46
SEVESO, Teología pastoral, op. cit., p. 86.
47
MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., p. 23.
48
Cf. ibidem, p. 24.
49
STECK, F. Schleiermacher und A. Graf, op. cit., PThh, pp. 33-34.
108
Na fundamentação teológica da teologia pastoral é especialmente signifi-
cativa a contribuição de Franz Xaver Arnold (1898-1969), teólogo católico
da Universidade de Tübingen. Ele retoma a orientação eclesiológica e te-
ológica da teologia prática de Graf. Arnold reage à falta de um quadro
teológico para definir a ação pastoral, que a liberte do risco de transfor-
mar-se em ideologia e da contaminação com as idéias da filosofia e da
Ilustração, e lhe permita retomar sua dimensão evangélica e profética50.
Rechaça, por um lado, o “naturalismo pastoral”, característico de pastorais
de orientação iluminista, que se esquecem de que a Igreja é somente me-
diadora da salvação, atribuindo a ela a capacidade de levar a cabo, com
suas próprias forças, o processo de salvação, transformando-se em uma
ação pastoral que perde sua dimensão teologal. Rechaça, por outro lado, o
“quietismo pastoral”, característico de concepções pastorais que atendem
mais ao aspecto sobrenatural da salvação, deixando de lado a contribuição
de cada pessoa no acontecimento salvífico; a instituição e o sobrenatural
absorvem o indivíduo, que pareceria não ter nenhum lugar fundamental
no processo de salvação, levando-o a assumir uma atitude passiva51. Arnold
acolhe a crítica que a “teologia kerigmática” faz à dogmática no sentido de
não ser adequada para a pastoral por seu caráter quase exclusivamente
especulativo, mas consegue superar o paralelismo com que a teologia
kerigmática resolveu a relação entre dogmática e pastoral52. Por isso, quer
aprofundar na estrutura específica do acontecimiento pastoral e, a partir
dessa compreensão, na natureza específica da teologia pastoral.
Arnold procura elaborar uma teologia pastoral que, tanto em sua elabora-
ção teórica, quanto em sua aplicação prática, seja expressão de uma teolo-
gia ancorada no conjunto da revelação e não em função de fatos contingen-
tes. Para compreender mais claramente a natureza da ação pastoral, distin-
gue entre “processo de salvação” (Heilsprozeß) e “mediação de salvação”
(Heilsvermittlung). O primeiro refere-se à realização concreta da interven-
ção salvífica de Deus, entendida como comunhão de Deus mesmo com a
pessoa humana que acolhe este dom na fé; neste processo de salvação,
Deus é o protagonista absoluto. A segunda refere-se à ação pastoral da
Igreja, entendida como um instrumento na ativação e incrementação do
processo de salvação. Portanto, não se pode confundir ação pastoral e
processo de salvação. Uma correta compreensão da atividade pastoral é a
que respeita a distinção, sem confusão, destes dois planos de causalidade:
principal (Deus) e instrumental (Igreja), que, apesar de serem distintos,
sustentam-se e se completam mutuamente53.
50
Cf. ibidem, p. 30.
51
MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., p. 70.
52
Uma síntese compacta da história da “teologia kerigmática” in: A. BENTUÉ, “La
pastoral como categoría teológica fundamental”. Teología y Vida 36 (1995), 7-20; 8-9.
53
Cf. MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., pp. 69-70.
109
No “princípio divino-humano” (das Gott-menschliche Prinzip), o “princí-
pio teândrico” de Calcedônia, Arnold encontra o critério que fundamenta
a natureza de toda ação pastoral. Em Jesus Cristo, a união de amor entre
Deus e a humanidade fez-se real e permanente; nele e a partir dele, as
realidades divina e a humana não são mais alheias, mas sim vinculadas, o
que é mais profundo; deste modo, Jesus Cristo “está na origem da ativida-
de pastoral da Igreja, como modelo no qual tem que se basear qualquer
outra mediação e como fundamento do qual deriva seu sentido”54.
A ação pastoral, portanto, deve estar sempre em relação com o Deus que
salva e, ao mesmo tempo, em relação com o ser humano que é salvo. Isto
significa, em sentido positivo, uma atitude de fidelidade a Deus e à huma-
nidade que não se colocam mais em uma relação de competição, mas sim
de colaboração e diálogo; e, em sentido negativo, significa que a ação
pastoral nunca pode absolutizar um dos fatores em prejuízo do outro, pois
cairia inevitavelmente no antropocentrismo que leva ao “naturalismo pas-
toral” ou no teocentrismo que conduz ao “quietismo pastoral”. Mais con-
cretamente, isto quer dizer que a teologia pastoral deve estar sempre, por
um lado, em referência à cristologia e à soteriologia e, por outro, em refe-
rência à história concreta55. Ela deve “estar simultaneamente por completo
na revelação e por inteiro no tempo”56.
A obra de Arnold – na opinião de M. Midali – tem o mérito de ter dado
à teologia pastoral uma conformação teológica mais sólida, libertando-a da
forte marca iluminista. Sua proposta busca aprofundar o estatuto
epistemológico da teologia pastoral, ao definir seu objeto próprio – que toma
de Graf – (a auto-edificação da Igreja em direção ao futuro) e seu próprio
princípio teológico formal (o princípio divino-humano). Suas intuições são
uma base importante para o debate teológico-pastoral do pós-guerra57.
54
SEVESO, Teología pastoral, op. cit., p. 89.
55
Cf. MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., pp. 71-72.
56
F. X. ARNOLD, Glaubensverkündigung und Glaubensgemeinschaft. Düsseldorf, 1955.
Cit. in SEVESO, Teología pastoral, op. cit., p. 90.
57
Cf. MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., pp. 73-74.
110
Graf e Arnold deram passos decisivos na configuração da teologia prática
como ciência teológica, mas ainda se apresentam algumas dificuldades.
No caso de Graf – segundo R. Marlé – a orientação eclesiológica de sua
teologia prática corre o risco de ser sua única especificidade como discipli-
na teológica própria, chegando a ser, em última análise, somente uma vari-
ante da eclesiologia sistemática desenvolvida pela escola de Tübingen58. Pa-
rece-nos que esta crítica tem que ver com a pouca atenção que se dá ao
horizonte escatológico da teologia prática em Graf e, por isso, confunde-se
com a eclesiologia. Fica pendente, portanto, uma melhor delimitação do ob-
jeto da teologia prática, que a diferencie claramente da eclesiologia dogmática.
58
R. MARLÉ, Le projet de théologie pratique, Paris: Beauchesne, 1979, p. 74.
59
Cf. LANZA, Introduzione alla Teologia, op. cit. p. 56.
60
GRAF, Kritische Darstellung, op. cit., cit. en: STECK, “F. Schleiermacher und A. Graf...”,
PThh, p. 65.
61
Cf. SEVESO, Teología pastoral, op. cit., p. 89.
62
K. RAHNER - F. ARNOLD - V. SCHURR - L. WEBER (eds.), Handbuch der
Pastoraltheologie. Praktische Theologie der Kirche in ihrer Gegenwart I-III, Freiburg:
Herder I, 19702; II/1, 19712; II/2, 19712; III, 19702; K. RAHNER - V. SCHURR - L.
WEBER - F. KLOSTERMANN (eds.), Handbuch der Pastoraltheologie IV, Freiburg:
Herder, 1969 [doravante citaremos esta obra com a sigla HPth]. e como complemento:
K. RAHNER- F. KLOSTERMANN- H.SCHILD (eds.), Lexikon der Pastoraltheologie,
Freiburg: Herder, 1972.
111
tica. Esta concepção de teologia prática é o eixo articulador da obra cole-
tiva intitulada Handbuch der Pastoraltheologie62.
63
Cf. RAHNER- ARNOLD- SCHURR- WEBER, “Vorwort zum der HPth I (1964)”, SW
19, p. 535.
64
Idem.
65
Ainda que Schleiermacher utilize já o nome de teologia “prática”, com isso não está
querendo tomar distância da concepção clerical evocada pelo adjetivo “pastoral”. O ad-
jetivo “prática” em Schleiermacher diz respeito mais ao tipo de interesse principal que
está presente nesta disciplina.
66
A substituição do substantivo alemão Erbauung por Vollzug é importante, pois este
último dá a entender algo que realiza sua essência. “Selbstvollzug der Kirche” significa,
portanto, realização, cumprimento pleno do que a Igreja é.
67
K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, op. cit., SW 19, pp. 6-7.
112
Igreja, desenvolve os princípios (e na medida do possível os concretiza em
imperativos), segundo os quais a Igreja nesta determinada situação (ou
seja, sempre atual) auto-realiza-se e leva a cabo sua atividade de salva-
ção” 67.
A teologia prática tem como objeto próprio a vida total da Igreja ou, dito
de outro modo, a auto-realização da Igreja em sua totalidade. Isto inclui,
por um lado, as distintas dimensões nas quais a Igreja auto-realiza-se,
como, por exemplo, o culto litúrgico, o anúncio da Palavra, os sacramen-
tos, a catequese, a vida eclesial do indivíduo, etc.; e, por outro lado, os
diferentes sujeitos desta auto-realização: ministros, leigos, comunidade local,
grupos eclesiais, Igreja em geral etc.68 Rahner sintetiza: “O objeto da teolo-
gia prática são todos e tudo na Igreja, ou seja, todos os que são sujeitos da
auto-realização da Igreja [...]. Seu objeto é tudo; ou seja, a auto-realização
da Igreja em todas as suas dimensões”69.
Ora, a teologia prática tem como objeto esta auto-realização da Igreja em
todas as suas dimensões, mas “na medida em que é considerada no encon-
tro com a situação presente”70. A Igreja, enquanto tem que realizar-se aqui
e agora, é o ponto de vista formal desta disciplina ou, dito de outro modo,
“a condicionalidade da realização da Igreja através da situação presente”71.
A teologia prática preocupa-se com princípios da auto-realização da Igreja,
emanados da dogmática, da teologia moral e do direito canônico, mas
enquanto os compreende em sua atualização e concretização na situação
presente da Igreja72. Assim, ela não deixa de estar em sintonia com a dimen-
são essencial da Igreja, pois somente é possível saber o que a Igreja deve fazer
na medida em que sabemos o que ela é; não se trata de um saber genérico
do que deve fazer sempre, mas sim do que deve fazer aqui e agora73.
A Igreja é uma instituição histórica que não existe simplesmente numa
forma de concretização sempre igual. Ela deve acontecer na história de
forma sempre nova. Explicando a densidade teológica que tem este acon-
tecer histórico da Igreja, Rahner afirma: “Seu acontecimento não é simples-
mente o presente de seu ser que dura em uma temporalidade e espacialidade
que permanece externa a ela, mas sim a forma histórica de sua essência,
que se dá somente uma vez, e que está destinada a ela pelo Espírito através
68
Cf. ibidem, pp. 6.8.
69
K. RAHNER, “Die praktische Theologie im Ganzen der theologischen Disziplinen”, SW
19, pp. 503-515; 506.
70
K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, op. cit., SW 19, p. 12.
71
H. SCHUSTER, “Wesen und Aufgabe der Pastoraltheologie als praktischer Theologie”,
HPth I, pp. 93-120; 98. Ainda que estejamos analisando a concepção de teologia prática
em Rahner, citamos Schuster nesta sua contribuição que está no início do primeiro
volume do HPth, por considerar que sua concepção está em sintonia com a de Rahner.
72
Cf. K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, op. cit., SW 19, p. 8.
73
Cf. ibidem, p. 18.
74
K. RAHNER, Die Praktische Theologie im Ganzen, op. cit., SW 19, p. 505.
113
de sua situação histórica”74.
O fato de ser a Igreja de Cristo, sacramento de sua vitória escatológica, não
anula a tarefa própria que ela tem na história, a responsabilidade de sua
liberdade, a capacidade de tomar decisões e, portanto, a possibilidade de
mudança. A situação presente tem para a Igreja um significado teológico,
como chamado imediato de Deus, do qual ela não pode afastar-se75; é o
horizonte histórico fundamental onde Deus se autocomunica livremente à
pessoa humana. A situação presente é um momento interno na ação livre
da Igreja, em sua capacidade de decisão; é situação da própria Igreja, a
qual é querida e dada a ela por Deus. Esta situação presente só é compre-
endida e valorizada corretamente no horizonte da vontade de Deus, e não
como mero horizonte neutro.
Esta situação presente deve ser entendida em duas direções: por um lado,
a situação interna da própria Igreja e, por outro lado, a situação do mundo
no qual e para o qual a Igreja vive77.
75
Cf. SCHUSTER, Wesen und Aufgabe, op. cit., HPth I, pp. 99-100.
76
K. RAHNER, Cambio estrutural de la Iglesia. Madrid: Cristiandad, 1974 [doravante
citaremos com a sigla CE], p. 16.
77
Cf. K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, SW 19, p. 8.
78
Cf. SCHUSTER, Wesen und Aufgabe, op. cit., HPth I, p. 99.
79
Cf. CE, pp. 25-26.
114
descrição de uma situação que estas pessoas superam brilhantemente, na
qual fazem com todo êxito exatamente o que deles se necessita, e a descri-
ção de um mundo no qual a fé e a moral vão em contínua queda e contra
o qual nada ou pouco se consegue. O mundo, o mundo real intermédio,
falta nessa descrição, que procede de uma experiência irreflexa; o mundo
que apresenta tarefas ainda não resolvidas pelos homens de Igreja, que são
realmente novas e oferecem sem dúvida a possibilidade de levá-las a cabo.
Ao não perceber claramente este mundo, a consciência própria da Igreja
concreta converte-se muito freqüentemente em uma curiosa mistura de
obstinado conservadorismo (sabe-se de sobra o que se deve fazer e isso é
feito muito bem) e um desespero não confessado”80.
A análise da situação presente deve ser teológica, pois somente uma tal
análise atende ao ser complexo da realidade presente como realidade
teologal, como presente que é dado da história de salvação da própria
Igreja. O teólogo pode e deve auxiliar-se das ciências profanas para reali-
zar esta análise, mas tem que integrar estes conhecimentos em uma síntese
teológica81. Então, a análise da situação presente, à qual a teologia prática
recorre, não deve ser entendida como uma ciência auxiliar que prepara a
reflexão propriamente teológica, mas sim como momento interno, pois tal
reflexão deve clarificar teologicamente o presente.
80
Ibidem, 26.
81
Cf. ibidem, p. 25.
82
Cf. K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, op. cit., SW 19, p. 8.
83
Cf. SCHUSTER, Wesen und Aufgabe, op. cit., HPth I, pp. 101-102.
84
Ibidem, p. 104.
115
simples tática pastoral que não se situa em um contexto global da Igreja,
mas que está orientada à práxis concreta e específica somente do clero.
Não se trata de atualizar uma determinada forma de vida eclesial que
substitua a atual, mas sim de possibilitar a reação da Igreja diante das
exigências que a situação presente manifesta. Uma tal planificação que
ajude a estabelecer prioridades na ação eclesial é necessária, pois a estra-
tégia salvífica de Deus, cuja graça é infinita, não é igual à da Igreja que
conta com meios limitados e forças finitas. Outra exigência desta planifica-
ção é que deve ser feita a tempo, quando ainda se dão as condições e
possibilidades para levar adiante uma mudança85.
A partir da análise teológica da situação presente, a teologia prática ofere-
ce à Igreja imperativos e diretrizes para a planificação da estratégia global,
os quais não têm o caráter de normas e leis absolutas, mas são propriamen-
te uma “oferta” ao povo de Deus e, especialmente, aos sujeitos da misão86.
Estes imperativos são de natureza carismática e têm um caráter profético-
decisional. Seveso comenta: “No imperativo profético, o momento racional
está presente e é superado na livre decisão; não se trata portanto nem de
uma dedução de premissas comprovadas nem de um simples decisionismo
arbitrário, desde o momento em que não existe sem uma intelecção da
verdade; além disso, também não pode entender-se como o resultado de
uma combinação entre a eclesiologia dogmática e o conhecimento da situ-
ação; no imperativo profético radica a indeduzibilidade da razão prática
com relação à razão teorética e sua unidade na unidade do sujeito”87.
Por esta natureza particular dos imperativos, a estratégia global da Igreja
deve tomar distância, tanto das utopias intramundanas, que chegam a
suas conclusões de modo totalmente lógico e racional, quanto daquela
forma de ciência de planificação eclesial que quer planificar tudo em um
pastoralismo apriorístico, que crê não precisar levar em consideração a
situação presente da Igreja88.
A teologia prática oferece à Igreja estes imperativos como orientação de
sua estratégia global, mas não diz respeito a esta disciplina teológica a
atualização de tais imperativos. A tomada de decisões diz respeito às ins-
tâncias que têm na Igreja um papel de governo. Dito de outro modo, à
teologia prática cabe a investigação que tem como resultados os imperati-
vos, e ao governo eclesial, a implementação da estratégia global inspirada
nesses imperativos89.
85
CE, p. 64.
86
Cf. K. RAHNER, “Stichworte aus dem Lexikon der Pastoraltheologie: Pastoraltheologie”,
SW 19, pp. 489-499; 491.
87
SEVESO, Teología pastoral, op. cit., p. 91.
88
SCHUSTER, Wesen und Aufgabe, op. cit. HPth I, p. 105.
89
K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, op. cit., SW 19, p. 15.
116
3.4. A relação da teologia prática com as outras ciências
É importante assinalar que no esclarecimento da relação da teologia prá-
tica com as ciências em geral e com as outras ciências teológicas em par-
ticular, está em jogo seu caráter de ciência propriamente dita, no sentido
de que tem um objeto material e formal próprio, distinto das outras ciências;
e, por conseguinte, isto tem que ver com a defesa de seu estatuto como
disciplina universitária. A relação pode dar-se dos seguintes modos90:
a) como o todo se relaciona com suas partes: é a relação que ela tem,
por exemplo, com a homilética, a catequética, a missiologia, a liturgia.
b) como uma ciência relaciona-se com outra que, apesar de examinar
os mesmos objetos materiais, o faz em um nível distinto de atualiza-
ção e concretização: é a relação existente com as ciências que versam
sobre a essência (Wesenswissenschaften) (a dogmática em geral e a
eclesiologia dogmática em particular), que examinam a auto-realização
da Igreja somente a partir de seu ser abstrato. A teologia prática, ao
contrário, examina esta auto-realização na situação presente. Estas dis-
ciplinas teológicas que versam sobre a essência são fundamento, pres-
suposto, horizonte e padrão da teologia prática. Por sua parte, a teolo-
gia prática faz-lhes notar que a tarefa que lhes cabe não é a-histórica ou
historicista (no sentido de que não se colocam a pergunta pelo anúncio
hoje), e que suas conclusões não são uma sabedoria sempre válida no
tempo, mas devem antes ser realizadas em uma situação concreta do
mundo e da Igreja; devem ser atualizadas em sua globalidade91.
c) como uma ciência relaciona-se com outra que tem objetos materiais
e fontes de conhecimento e normas diferentes: é a relação existente
entre teologia prática e ciências profanas. Esta relação só é negativa
quando os objetos materiais são totalmente diferentes, como acontece
com as ciências profanas não antropológicas; e pode ser positiva pela
comunhão de objetos materiais e, neste caso, a relação é a de uma
ciência com suas ciências auxiliares. Nesta última situação estão, por
exemplo, a psicologia, a sociologia, a ciência histórica.
d) como uma ciência relaciona-se com as outras que examinam os
mesmos objetos materiais, mas sob um ponto de vista totalmente
distinto: é o caso da relação da teologia prática com a pedagogia cristã,
por exemplo, pois nesta se trata direta e formalmente da formação dos
jovens; este proceso de formação faz parte da realização do ser da Igreja
e de seus membros. Deve também incluir-se aqui – na nossa opinião –
a relação com o direito canônico, pois a teologia prática e o direito
canônico têm dentro de seu âmbito temático o direito da Igreja, mas sob
90
Cf. ibidem, pp. 18-20.
91
Cf. K. RAHNER, Die praktische Theologie im Ganzen, op. cit., SW 19, p. 511.
117
pontos de vista diferentes. O direito canônico tem como seu objeto
próprio o direito vigente da Igreja (lex condita) e a história do mesmo;
a teologia prática, ao contrário, ocupa-se do direito que deve ser e que
ainda não existe (ius condendum), ou seja, o direito em perspectiva de
futuro; a teologia prática tem um papel crítico diante do direito vigente
e deve suscitar o debate sobre o direito que deve ser92.
e) como uma ciência com as outras que examinam os mesmos objetos
(materiais e formais) em outra fase de tempo, a saber, que examinam
o passado em lugar do presente e do futuro: é a relação existente entre
a teologia prática e a história da Igreja, na medida em que esta última
é a história da salvação acontecida na Igreja. A teologia prática, por sua
vez, abarca o presente e o futuro; ela deve assinalar à história da Igreja
que esta não pode ser mera curiosidade histórica, mas sim “a constitui-
ção crítica da memória do passado da Igreja”93, pois “o que a Igreja
carrega atrás de si é afinal interessante somente a partir daquilo que a
Igreja tem ainda por diante”94.
118
ela realiza de modo científico-sistemático é de natureza inderivável en-
quanto é uma reflexão para uma decisão. Nenhuma das outras ciências
teológicas pode realizar esta tarefa com os meios de que dispõe.
4. Análise crítica
98
Ibidem, p. 491.
99
K. RAHNER, Die praktische Theologie im Ganzen, op. cit., SW 19, p. 505.
100
Cf. ibidem.
101
Cf. MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., p. 166.
102
Cf. SCHUSTER, Wesen und Aufgabe, op. cit., HPth I, p. 102.
119
Parece-nos que a maior contribuição de Rahner está em pôr os alicerces
que não poderão faltar em uma concepção de teologia prática. Estes são:
primeiro, a explicitação mais clara dos objetos material e formal, e, de
modo mais geral, a fundamentação da teologia prática como ciência; se-
gundo, a retomada e elaboração criativa da dimensão escatológica da auto-
realização da Igreja; terceiro (e é sua contribuição mais original), a análise
da situação presente como momento interno da teologia prática. Analisa-
remos mais detalhadamente estes três elementos.
120
Uma das preocupações fundamentais que acompanhou a história da teo-
logia pastoral foi como evitar o perigo de uma práxis acrítica de si mesma,
transformando-se assim em uma práxis ideológica. Os caminhos de saída
foram procurados a partir de dois ângulos complementares: Por um lado,
na fundamentação teológica começada por Sailer, continuada por Graf e
aprofundada consideravelmente por Arnold, e isto, sobretudo, na compre-
ensão da missão da Igreja como uma mediação de salvação. Por outro
lado, parece-nos que querer destacar o estatuto teórico da teologia prática
que, primeiro Graf e depois Rahner, levam a cabo, tem a ver com a neces-
sidade de que a teoria se estabeleça como instância crítica da práxis. Para
Rahner, a dimensão escatológica da auto-realização da Igreja é fundamen-
tal para uma teologia prática que possa ser crítica do mundo e autocrítica
da práxis e da reflexão da Igreja. Está posto o alicerce, mas se deve cons-
truir a casa sobre ele. Como se faz para que o olhar sobre o mundo e sobre
a Igreja não seja idealista? Como fazer para que a teologia não justifique
somente a práxis da Igreja, com o perigo de transformar-se em ideologia?
Parece-nos vislumbrar duas pistas interessantes para responder às perguntas
apresentadas acima. A primeira tem que ver com a mística. Rahner afirma
que a Igreja deve transformar-se em uma comunidade de espiritualidade
autêntica (desafio que se apresenta, portanto, também à teologia), ou seja, que
se ocupe antes de mais nada e sobretudo com Deus. A Igreja deve falar de
Deus; falar dele para dar-lhe glória, pois somente assim pode mostrar real-
mente seu caráter profético e seu poder libertador103 . “Quando em uma es-
perança última a pessoa humana entrega-se incondicionalmente ao verdadei-
ro Deus para além de todas as realidades concretas manejáveis, entra então
verdadeiramente em sua liberdade última, que é plenificada por Deus mes-
mo e comporta ainda uma felicidade oculta quando em nosso desespero não
podemos fazer-nos conosco mesmos e com este mundo”104 .
A outra pista dá-nos J.B. Metz, discípulo de Rahner, e tem a ver com o a
partir de onde deve ser realizada a análise da situação presente. Para este
autor, a única forma de aproximar-se da história enquanto ela é sempre o
inacabado, o fracassado que tem um sentido enquanto superação desse
fracasso no futuro escatológico, é situar-se nela a partir do sofrimento, ou
seja, a partir da solidariedade com os pobres, os insignificantes, os margi-
nalizados, os sofredores em geral. O sofrimento não se situa no já do Rei-
no, mas sim no ainda não que impede identificar qualquer realização
humana com a realização do Reino escatológico. Isto significa olhar para o
mundo e para a história a partir do ainda não do Reino, o que nos obriga
à crítica e à autocrítica permanente. A consciência da Igreja no presente
tem uma referência ao passado enquanto memória da paixão, morte e
ressurreição de Jesus Cristo, e ela é sempre uma memória “perigosa” por-
que é desestabilizadora dos sistemas e realidades existentes. Esta memória
103
Cf. CE, p. 107.
104
Ibidem, p. 108.
121
perigosa não fica ancorada no passado, mas ao contrário, recorda um acon-
tecimento futuro. Ela recorda um futuro que ainda não se realizou e que
questiona radicalmente o presente, quebrando-se o encanto de uma histó-
ria compreendida como história dos vencedores, interpretada evolucionística
ou dialeticamente. Deste modo, o já deve ser compreendido no ainda não,
ou seja, a existência da salvação deve ser acolhida e compreendida na
esperança. Somente assim Deus aparece em sua liberdade escatológica,
como sujeito e sentido da história105.
4.1.3. A análise da situação presente
Gostaríamos de destacar dois elementos importantes que estão por trás
desta análise. Parece-nos, em primeiro lugar, que Rahner vai além da lei-
tura dos “sinais dos tempos” que o Vaticano II propõe. É necessária uma
análise mais global da situação presente, que integre os níveis mais macro,
mas que não descuide da situação dos indivíduos e dos grupos. A missão
da Igreja de ser mediadora de salvação cumpre-se quando ela se põe a
serviço do homem e do mundo, poderíamos dizer, a serviço da auto-rea-
lização do homem e do mundo. No centro dessa mediação de salvação está
o anúncio do Evangelho. Para que este seja acolhido e compreendido, a
Igreja deve conhecer os destinatários deste anúncio: o que é que esperam,
quais são suas perguntas, quais suas feridas, para onde apontam suas
esperanças. Esta compreensão necessita do olhar, do conhecer mais a fun-
do, aqui se situa então a análise da situação presente.
Em segundo lugar, é interessante perceber que, sendo esta uma análise da
situação presente do mundo e da Igreja, há uma concepção da relação
Igreja-mundo que é uma novidade em relação ao Vaticano II. No pensa-
mento do Concílio, a Igreja deve estar a serviço do mundo, assumindo suas
alegrias, dores e esperanças. É nesse serviço que se entende a realização de
sua missão de ser mediadora da salvação. Mas o mundo continua sendo
uma realidade que está diante da Igreja. No pensamento de Rahner, a
Igreja é também mundo, ela supõe o mundo. Portanto, o olhar que se deve
dar para conhecer não é somente um olhar para o mundo que está na
frente, mas também para o mundo que a própria Igreja é. Isto nos põe em
guarda com relação a um olhar ingênuo, acrítico que nos leva a pensar que
o Evangelho deva ser anunciado somente para fora e que nos faz passar
por alto o ainda não da própria Igreja.
105
Cf. J. B. METZ, A fé em história e sociedade: estudos para uma teologia fundamental
prática, São Paulo: Paulinas, 1980, pp. 116-137.232-237.
122
Como vimos anteriormente, já em Amberger, discípulo de Graf, experi-
menta-se um retrocesso no modo de compreender o sujeito da ação pasto-
ral. O forte clericalismo da teologia pastoral anterior a Graf reaparece tam-
bém depois dele. O mérito de Rahner (também de Arnold) está em ter
acolhido e retrabalhado esta perspectiva eclesiológica de Graf no sentido
de que todos os membros da Igreja são sujeitos da ação pastoral; um sinal
disso é o fato de ter acolhido a intuição de Graf no sentido da mudança de
nome desta disciplina (teologia “prática” em lugar de teologia “pastoral”).
Contudo, percebemos um problema em relação ao sujeito que atualiza a
estratégia global da Igreja. Existe na proposta de Rahner uma justaposição
de eclesiologias diferentes: de um lado, uma eclesiologia de comunhão em
que todos são sujeitos da ação eclesial e, por outro lado, uma eclesiologia
hierárquica, pois, na hora da atualização da estratégia global, tudo fica nas
mãos do governo eclesiástico. Supera-se o estreitamento clerical quanto ao
sujeito da ação pastoral, mas dá a impresão de que se mantém tal
estreitamento quanto ao sujeito da decisão pastoral.
5. Conclusão
106
Cf. SEVESO, Teología pastoral, op. cit., pp. 92-93 e MIDALI, Teologia pastorale, op.
cit., p. 171.
107
Cf. ibidem, p. 94.
108
MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., p. 171.
123
te e criativa. Rahner pôs alicerces firmes sobre os quais deve-se continuar
construindo.
Alex Wilfredo Vigueras Cherres SSCC, chileno, bacharelou-se em Teologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Chile (Santiago). Obteve o grau de mestre na área de Teologia
da práxis, em 1999, no Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus (Belo
Horizonte). Atualmente é professor adjunto da Faculdade de Teologia da Pontifícia
Universidade Católica do Chile (Santiago) e formador da Comumidade Interprovincial de
professos da Congregação dos Sagrados Corações (Santiago) e assessor do Centro Pas-
toral Juvenil Alameda (Santiago do Chile).
Endereço: San Juan 4476, comuna san Joaquín
Casilla 723, Santiago - Chile
e-mail: aviguerc@puc.cl
124