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Persp. Teol.

36 (2004) 99-124

QUE CABE À IGREJA FAZER HOJE?


A CONCEPÇÃO DE TEOLOGIA PRÁTICA
EM KARL RAHNER

Alex Vigueras SSCC

RESUMO:
O presente artigo procura aprofundar a concepção de teologia prática (assim ele
chama a teologia pastoral) de Karl Rahner. Na primeira parte, fazemos um percur-
so histórico, assinalando os problemas mais importantes que se apresentaram a
respeito da teologia pastoral na reflexão anterior a Rahner: o caráter científico da
teologia pastoral, o sujeito da ação pastoral, o caráter escatológico da teologia
pastoral, sua fundamentação teológica e seu método. Na segunda parte, analisa-
mos a concepção de teologia prática em Karl Rahner: seu objeto material e formal,
seu método centrado na análise científico-teológica da situação presente e suas
relações com as outras ciências. Finalmente, fazemos uma análise crítica, assinalan-
do aquilo que nos parece ser a contribuição mais relevante e as fragilidades de sua
concepção de teologia prática.
PALAVRAS-CHAVE: pastoral, Igreja, planificação, escatologia, método.
ABSTRACT:
This article seeks to delve into Karl Rahner’s conception of practical theology
(pastoral theology). The first part is an historical trajectory of pastoral theology,
depicting the major problems prior to Rahner: the scientific character of pastoral
theology, the personnel of pastoral ministry, the eschatological character of pasto-
ral theology, and its theological foundation and its method. The second part analyses
the conception of Rahner’s practical theology: his material and formal object, his

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method centered on scientific-theological analyses on the present situation and its
relation to other sciences. Finally, a critical analysis portraying that which is
perceived as the most relevant contribution and the weaknesses of his conception
of practical theology.
KEY WORDS: pastoral, Church, planification, eschatology, method.

1. Introdução

N ossa inquietação pelo tema da teologia prática surge por uma neces-
sidade concreta. Há tempo existe uma insatisfação na Faculdade de
Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Chile com relação ao modo
como se aborda o estudo da pastoral no currículo teológico. Existe uma
grande dificuldade para dar ao estudo pastoral uma identidade mais clara.
Freqüentemente identifica-se com a aprendizagem de coisas práticas, de
técnicas pastorais, existindo uma grande lacuna no âmbito da pastoral
fundamental. No fundo, o problema é não saber bem como articular o
estudo pastoral no currículo teológico global. Esta dificuldade levou mui-
tas vezes a que a formação teológico-pastoral fique ao encargo do próprio
estudante no espaço extra-universitário.
Estas dificuldades levaram-nos a aprofundar o nível mais fundamental da
teologia pastoral, na convicção de que o problema de fundo tem a ver com
a identidade da teologia pastoral no conjunto das ciências teológicas.
Imersos nesta busca, percebemos que a contribuição de Karl Rahner é es-
pecialmente significativa por sua contundência argumentativa, por seu es-
forço em levar a sério os principais problemas que a história desta disci-
plina teológica suscitou, pela criatividade no modo de compreender a te-
ologia pastoral.
Adentrar-nos nesta concepção de teologia prática (que é como Rahner chama
a teologia pastoral) significa aprofundar questões realmente fundamentais
para a tarefa teológica e para a vida da Igreja hoje. Significa também entrar
em um âmbito do pensamento de Karl Rahner que – na nossa opinião –
não foi muito estudado no contexto latino-americano.
O presente artigo está dividido em três partes. Na primeira percorremos a
história, assinalando os problemas mais importantes que se apresentaram
a respeito da teologia pastoral na reflexão anterior a Rahner, começando
por Stephan Rautenstrauch e chegando a Franz Xaver Arnold. Na segunda
parte, analisamos a concepção de teologia prática em Karl Rahner: seu
objeto, seu método e suas relações com as outras ciências. Finalmente,
fazemos uma análise crítica, assinalando o que nos parece ser a contribui-
ção mais relevante e as fragilidades de sua concepção de teologia prática.

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2. Os principais problemas diante dos quais Rahner
situa-se

A reflexão de Rahner a respeito da teologia prática deve ser situada no


contexto de uma história que começa nos finais do século XVIII, quando a
teologia pastoral1 é instituída como disciplina universitária. Sua concepção
de teologia prática quer ser uma resposta às perguntas e aos problemas
mais importantes suscitados na reflexão sobre esta teologia pastoral, de-
senvolvida especialmente nos países de língua alemã.

Faremos referência aqui a cinco problemas que parecem mais importantes


para contextualizar adequadamente a reflexão de Rahner:

2.1. O caráter científico da teologia pastoral


Em agosto de 1774, é posto em vigor o plano de reforma dos estudos
teológicos elaborado pelo canonista beneditino, diretor da faculdade de
teologia de Viena, Stephan Rautenstrauch (1734-1785), intitulado Projeto
para uma melhor organização das escolas de teologia2. Essa é a data que
marca o nascimento da teologia pastoral como disciplina universitária. Este
projeto pretende uma reorganização de todos os estudos teológicos com o
fim de imprimir-lhes um caráter decisivamente pastoral. A teologia pasto-
ral – no esquema do projeto – é estudada no quinto e último ano dos
estudos teológicos. Rautenstrauch compreende esta disciplina como “o
ensino sistemático dos deveres do ministério pastoral”3. Através dela bus-
cava-se preparar melhor os futuros sacerdotes para a prática pastoral con-
creta.

O projeto de Rautenstrauch nasce do inconformismo diante da forma com


que eram preparados os futuros sacerdotes nas faculdades de teologia. Já
desde meados do século XVII, a teologia tinha-se distanciado cada vez
mais da práxis e se tinha transformado em um exercício quase puramente
especulativo. A teologia escolástica foi perdendo contato com a vida con-

1
Na apresentação do pensamento dos autores anteriores a Rahner, falaremos sempre de
teologia “pastoral”. A partir de Friedrich Schleiermacher, Anton Graf e, sobretudo em
Rahner, falaremos de teologia “prática”. Mais adiante explicaremos as razões desta
mudança.
2
Cf. J. MÜLLER, “Die Pastoraltheologie innerhalb des theologischen Gesamtkonzepts
von Stephan Rautenstrauch (1774)”, in: F. KLOSTERMANN- R. ZERFAß (eds.), Praktische
Theologie heute. München-Mainz: Kaiser- Grünewald 1974 [daqui em diante citaremos
com a sigla PThh], 42-51; 43.
3
S. RAUTENSTRAUCH, Entwurf einer besseren Einrichtung theologischer Schulen, cit.
in: B. SEVESO, “Teología pastoral”, Diccionario teológico interdisciplinar, I. Salamanca:
Sígueme 1982, pp. 84-94; 85.
4
Cf. A. EXELER – N. METTE, “Das Theorie-Praxis-Problem in der praktischen Theologie
des 18. und 19. Jahrhunderts”. PThh, pp. 65-80; 68.

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creta da Igreja e do mundo4. A Ilustração questiona radicalmente esta si-
tuação e propõe o desafio de levar mais a sério a práxis pastoral, “dar uma
resposta compreensível e crível às perguntas apresentadas nesse momento,
formulada na linguagem e na forma de pensamento desse tempo”5. A
partir daí, o desafio é preparar melhor o clero para a práxis pastoral con-
creta, numa formação que integre adequadamente a teoria e a práxis.
Para ser incluída como disciplina teológica no currículo universitário, a
teologia pastoral devia ser justificada como ciência. Esta intenção de
cientificidade está presente no projeto de Rautenstrauch, pois a preparação
para a práxis pastoral do clero através da nova disciplina tinha que ser
com um melhor método e com novas formas didáticas. A respeito disso,
Josef Müller afirma: “O plano de Rautenstrauch claramente orientado à
práxis, não significa de modo algum uma supressão da ‘cientificidade’,
mas sim que ele apresenta, ao contrário, a exigência de um saber
empiricamente supervisionável e historicamente comprovável”6.
Contudo, a teologia pastoral de Rautenstrauch é marcada por um forte
pragmatismo. Ela é antes um receituário prático para a pastoral do clero
sem base teórica. Como afirma Casiano Floristán, “a teologia pastoral desta
época é mais arte do que ciência, mais receita canônica do que teologia”7.
Uma nova tentativa de afirmar a cientificidade da teologia pastoral é o que
Friedrich Schleiermacher (1768-1836), teólogo protestante, decano da uni-
versidade de Halle8, leva adiante. Em sua Breve apresentação dos estudos
teológicos redigida como lições introdutórias 9, posiciona-se diante do
questionamento que Kant (em 1798) e Fichte (em 1807) fazem à teologia.
Kant questionou o lugar da teologia no âmbito universitário, pois ela não
seria propriamente ciência por não ter aceso à verdade absoluta. Fichte,
por sua vez, sustentava que somente podia ter lugar na universidade uma
teologia “laica”, ou seja, uma teologia que renunciava a ter como fun-
damento a fé em uma revelação positiva10. Schleiermacher utiliza o
esquema apresentado por Schelling11 que dividia as ciências em “pu-
ras” ou de primeira ordem, e “práticas”, ou de segunda orden. As
ciências puras, como a filosofia da natureza e a ética, ocupam-se da

5
Ibidem.
6
MÜLLER, Die Pastoraltheologie innerhalb, op. cit., PThh, p. 46.
7
C. FLORISTÁN, Teología práctica: teología y praxis de la acción pastoral, Salamanca:
Sígueme 1991, p. 110.
8
Para as informações que apresentamos a seguir sobre o questionamento apresentado
por Kant e Fichte, cf. S. LANZA, Introduzione alla Teologia dell’azione ecclesiale, Brescia:
Queriniana, 1989, pp. 42-44.
9
F. SCHLEIERMACHER, Kurze Darstellung des theologischen Studiums zum Behuf
einleitender Vorlesungen entworfen, Leipzig, 1811. Cf. ibid., nota 22, p. 44.
10
Cf. ibidem, p. 43.
11
Em sua obra Vorlesungen über die Methode des akademischen Studiums, 1802. Cf.
ibidem, nota 18, p. 43.

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verdade absoluta; ao passo que as ciências práticas têm como objeto a
obtenção da finalidade própria e concreta da existência humana, re-
nunciando à busca da verdade absoluta12.
Para Schleiermacher o fim prático é o princípio constitutivo da teologia e,
em relação a isto, distingue a “direção da Igreja” (Kirchenleitung), como
dimensão espiritual e ideal, do “governo eclesiástico” (Kirchenregiment),
que se desenvolve em um âmbito mais político. Deste modo a teologia
assume um caráter essencialmente funcional como ciência positiva a servi-
ço de um saber prático; ela se ocupa da direção da Igreja13. Ele define a
teologia prática do seguinte modo: “O fim da direção de uma Igreja cristã
é, de um ponto de vista extensivo e intensivo, a coesão e a formação; o
saber que tem a ver com tal atividade constitui-se em uma técnica que [...]
chamamos com o termo teologia prática”14.
A teologia prática existe pelo interesse prático da direção da Igreja, asso-
ciado ao interesse científico. Para Schleiermacher ela é ciência, pois não se
trata de um mero instrumental prático, mas sim de uma metodologia no
sentido mais alto do termo. Ela deve determinar o procedimento a ser
seguido para realizar efetivamente as tarefas eclesiais (a definição destas
tarefas é competência da teologia filosófica e histórica), deve verificar a
relação entre os fins perseguidos e os meios empregados15. Os imperativos
pastorais ou “regras de arte em sentido estrito” – como ele chama – não
podem ser simplesmente deduzidos do pensamento doutrinal, mas nas-
cem da confrontação com a práxis concreta. Para Schleiermacher a teologia
prática é uma “técnica” no sentido mais antigo do conceito, como uma
ação que reflete e não uma ação compreendida como simples aplicação de
princípios obtidos na reflexão doutrinal16.
Não há dúvida de que a posição de Schleiermacher representa um avanço
em relação a Rautenstrauch, no modo de compreender a cientificidade da
teologia pastoral, enquanto exercício refletido da ação pastoral e não mera
aplicação prática de princípios doutrinais. Entretanto, na concessão que faz
à crítica ilustrada, estabelece-se um corte radical entre teologia pastoral e
interesse teórico, sendo assim questionado o estatuto teórico da teologia
pastoral; dela exige-se (por parte das outras disciplinas teológicas) um
papel puramente prático.
Anton Graf (1814-1867), teólogo católico da Universidad de Tübingen, em

12
Cf. ibidem, p. 43.
13
Cf. M. MIDALI, Teologia pastorale o pratica: Cammino storico di una riflessione
fondante e scientifica, Roma: LAS, 1985, pp. 26-27.
14
SCHLEIERMACHER, Kurze Darstellung, op. cit. in MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., p. 27.
15
Cf. MIDALI: idem.
16
Cf. LANZA, Introduzione alla Teologia., op. cit., p. 50.
17
A. GRAF, Kritische Darstellung des gegenwärtigen Zustandes der praktischen Theologie,
Tübingen, 1841. Estes dados encontram-se em: K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein
Überblick”. In: Sämtliche Werke 19. Düsseldorf - Freiburg: Benzinger – Herder, 1995
[doravante citaremos esta obra de Rahner com a sigla SW 19], pp. 3-29; 4.

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sua Apresentação crítica do estado atual da teologia prática17, reage diante
desta falta de cientificidade da teologia pastoral, tomando posição especi-
almente com relação à posição de Schleiermacher. Ele quer superar dois
extremos: “O empirismo puro, ou seja, a insistência unilateral na experiên-
cia e na práxis, mas também a concepção da teologia prática pelo caminho
da especulação”18.
Critica especialmente as concepções teológico-pastorais que, por ter a pró-
pria práxis como norma de conduta, não podem situar-se diante dela de
modo crítico e acabam sendo escravas da própria práxis19. Estas posições
a respeito da teologia pastoral, anteriores e contemporâneas a ele, devem
ser consideradas acientíficas, pois não apresentam uma síntese lógica em
um sistema, além de seus conhecimentos serem casuais, subjetivos e de
acordo com a moda20.

Graf divide o conjunto da teologia em três partes21: Em primeiro lugar, a


teologia bíblica e a histórica que são a consciência da origem e do desen-
volvimento da Igreja até hoje; em segundo lugar, a dogmática e a moral
como a consciência a respeito do verdadeiro ser da Igreja, divino e imutá-
vel e, em terceiro lugar, a teologia prática como “a autoconsciência cientí-
fica da Igreja que se auto-edifica em direção ao futuro”22. A partir desta
definição, sustenta que a teologia prática existe pela própria essência da
Igreja como realidade que se autoconstrói em direção ao futuro e não so-
mente pelo interesse subjetivo do teólogo que uma hora é teórico (na
dogmática) e outra hora prático (na teologia prática)23. Na teologia prática
estão presentes, ao mesmo tempo, o interesse teórico e o interesse prático.
A teologia prática é necessária na teologia porque a autoconstrução
(Selbsterbauung) da Igreja em direção ao futuro é um dos três modos como
a Igreja se apresenta à reflexão teórica24. A diferenciação entre um terreno
prático e um teórico na teologia somente é legítima porque na teologia
teórica domina o interesse teórico e na teologia prática o interesse prático,
mas não porque se dê um âmbito exclusivo para cada interesse que exclua
o outro. Portanto – como afirma Schuster comentando Graf – “a teologia
prática não pode deixar de ser teórica. Somente assim ela pode ser chama-

18
EXELER – METTE, Das Theorie-Praxis-Problem, op. cit., PThh, p. 72.
19
Cf. ibidem, p. 75.
20
Cf. W. STECK, “Friedrich Schleiermacher und Anton Graf - eine ökumenische
Konstellation praktischer Theologie?”, PThh, pp. 27-41; 32-33.
21
Cf. ibid., p. 32.
22
“Das wissenschaftliche Selbstbewußtsein der sich selbst in die Zukunft erbauenden
Kirche”. Cit. in: K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, SW 19, 4.
23
Cf. STECK, F. Schleirmacher und A. Graf, op. cit., PThh, p. 37.
24
Cf. EXELER- METTE, Das Theorie-Praxis-Problem, op. cit. PThh, p. 72.
25
H. SCHUSTER, “Die Geschichte der Pastoraltheologie”. In: K. RAHNER - F. ARNOLD
- V. SCHURR - L. WEBER (eds.), Handbuch der Pastoraltheologie. Praktische Theologie
der Kirche in ihrer Gegenwart I, Freiburg: Herder, 19702, pp. 42-92; 58.

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da com propriedade uma ciência teológica”25. Além disso, é ciência porque
busca um saber unitário e sistemático que supere a fragmentação e o
subjetivismo das teologias pastorais anteriores26.

A contribuição de Anton Graf é muito significativa na compreensão da


teologia prática como ciência. Ele revela os perigos de uma teologia pasto-
ral que se limita ao âmbito puramente prático e que não leva em conta seu
estatuto teórico, especialmente pelo lado da incapacidade de um olhar
crítico à práxis da Igreja. Entretanto, esta posição de Graf não foi acolhida
suficientemente pelos pastoralistas posteriores, e encontramos já em J.
Amberger (1816-1889)27, discípulo de Graf, uma volta à compreensão da
teologia pastoral como disciplina que somente dá instruções para a práxis;
uma disciplina pensada para a regulamentação casuística da pastoral do
clero28. A posição de Graf será retomada por Karl Rahner como ponto de
partida para fundamentar sua própria concepção de teologia pastoral.

2.2. O sujeito da ação pastoral


Dentre os problemas que percorrem a história da teologia pastoral, há um
que está relacionado com o sujeito da ação pastoral. Na maioria das vezes,
este sujeito é identificado exclusivamente com o clero. Este ponto é parti-
cularmente importante na passagem de uma teologia “pastoral” a uma
teologia “prática”.

A teologia pastoral de Rautenstrauch está dividida em três partes, corres-


pondentes aos três deveres fundamentais da cura de almas: a primeira
parte diz respeito ao dever de ensinar; trata-se de propor uma apresenta-
ção da dogmática e da moral que seja acessível às pessoas comuns; a se-
gunda parte, é relativa ao dever de administrar os sacramentos; e a tercei-
ra, refere-se ao dever de edificar os fiéis e trata do comportamento pessoal
e público do pastor de almas29. Deste modo, somente o pastor ou sacerdote
é objeto de estudo desta teologia pastoral nascente. A Igreja autocomprendia-
se nessa época como um poder moral, e os clérigos eram os que se ocupa-
vam da instrução do povo, da ordem e decoro moral e do cuidado da vida
religiosa tradicional30.

Schleiermacher concebe a Igreja como uma comunidade formada por


uma “elite” e uma “massa”. A elite é que está encarregada da direção e
animação da comumidade, e, ao mesmo tempo, da constante purificação

26
Cf. MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., p. 34.
27
Sua principal obra intitula-se: Pastoraltheologie I-III, Regensburg, 1850-1857.
28
Cf. K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, op. cit., in SW 19, p. 5.
29
Cf. B. SEVESO: “Teologia pastoral”. In: Diccionario teológico interdisciplinar I.
Salamanca: Sígueme, 1982, pp. 84-94; 85.
30
Cf. K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, op. cit., SW 19, p. 4.

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evangélica. Entre elite e massa deve existir uma circulação no plano das
idéias31. Para ele “a teologia prática preside tal circulação ordenada entre
elite e massa, tanto na direção da Igreja em nível local, quanto no nível do
governo eclesiástico em sua totalidade”32.
A teologia não é própria de todos os que fazem parte da Igreja, mas so-
mente daquela elite que participa da direção da Igreja. Ainda que esta
elite, para Schleiermacher, não represente exclusivamente os pastores, a
divisão radical da Igreja entre elite e massa significa, em definitivo, um
novo estreitamento do sujeito da ação pastoral, e a teologia prática corre
novamente o risco de ficar reduzida à descrição do ofício dos pastores33.
Na teologia prática de Graf, outra categoria fundamental – além da
cientificidade que analisamos acima – é a eclesialidade. Ele pensa a Igreja
como um conjunto orgânico, como sujeito ativo, toda ela responsável por
sua própria vida e desenvolvimento. Portanto, o âmbito pastoral que leva
em consideração esta disciplina teológica já não é somente o clero, ou uma
elite encarregada da direção da Igreja, mas sim a Igreja como totalidade34.
Com o nome de teologia “prática” (que toma de Schleiermacher) em vez
de teologia “pastoral”, “Graf quer superar a perspectiva clerical da
manualística precedente [...]; e quer marcar, por outro lado, que o sujeito
da ação é a Igreja em sua globalidade”35.
Amberger tentou – sem êxito – continuar a proposta eclesiológica de seu
mestre Graf. Dividiu a teologia prática em direito canônico, entendido como
“as normas segundo as quais a Igreja constrói-se ininterruptamente medi-
ante forças colocadas nela pelo Espírito de Deus para educar os povos na
salvação eterna”36, e teologia pastoral, que se ocupa do desenvolvimento
das atividades concretas para conseguir este objetivo. Nesta divisão e no
tratamento privilegiado que dá ao direito canônico, a figura do pastor é
vista como mediador entre o céu e a comunidade, e a atividade eclesial
manifesta-se de modo privilegiado em seu ministério pastoral. Por isso se
reduz a teologia pastoral, novamente, à exposição da atividade dos pastores,
estreitando-se o horizonte eclesiológico aberto por Graf37. Rahner retomará
criativamente este horizonte como base de sua concepção de teologia prática.

2.3. O caráter escatológico da teologia pastoral


O projeto de reforma dos estudos teológicos levado a cabo por Stephan
Rautenstrauch, que marca o início da teologia pastoral como disciplina

31
Cf. MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., pp.27-28.
32
Ibidem, p. 28.
33
Cf. ibidem, pp. 28-29.
34
Cf. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, op. cit., SW 19, p. 5.
35
MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., p. 34.
36
AMBERGER, Pastoraltheologie, op. cit., in: SEVESO, Teologia pastoral, op. cit., p. 87.
37
Cf. SEVESO, Teologia pastoral, op. cit. p. 87.

106
universitária, foi realizado por encargo da imperatriz Maria Teresa da
Áustria38. O objetivo desta reforma não era somente a formação de pasto-
res melhor preparados para exercer os deveres propriamente religiosos,
mas também a formação de bons cooperadores do Estado. O Estado via no
clero os mestres do povo, através dos quais era possível levar a cabo a
Ilustração nacional. Para Rautenstrauch, o pastor de almas tem que esfor-
çar-se “através de seu ensinamento, em formar não somente bons cristãos,
mas também bons cidadãos para o Estado e verdadeiros filantropos para
a sociedade humana”39.
Assim, a teologia pastoral de Rautenstrauch é marcada por uma
absolutização da práxis eclesial existente, sem possibilidade de assumir
uma postura crítica diante dela e com o evidente perigo de cair na mera
ideologia. Inexiste nela o horizonte escatológico.
Juan Noemi, comentando a teologia pastoral de Rautenstrauch, afirma: “A
insignificância teológica do pragmatismo e a carolice, contudo, não é a pior
conseqüência de uma teologia pastoral que absolutiza a realidade presente
da Igreja e abstrai de sua dimensão futura; ainda pior é o perigo de que a
teologia degenere em mera ideologia, ou seja, na absolutização tosca e
acrítica de determinadas estruturas de poder vigentes em um momento
determinado. O caso de Rautenstrauch é patente, já que desenha uma te-
ologia pastoral a serviço dos príncipes e da imperatriz”40.
A recuperação do horizonte escatológico, a partir do qual é possível um
olhar crítico de uma teologia pastoral que se transforma em uma justifica-
ção teológica da práxis existente, vai acontecer apenas na concepção de
teologia prática de Anton Graf.
É interessante notar que os comentaristas de Graf destacam em sua con-
cepção de teologia prática os traços de cientificidade e eclesialidade, mas
a dimensão escatológica de sua teologia é pouco comentada. De sua defi-
nição de teologia prática como “a autoconsciência científica da Igreja que
se auto-edifica em direção ao futuro”, acolhe-se a primeira parte do enun-
ciado como uma grande contribuição, deixando-se em plano secundário a
segunda: em direção ao futuro.
Na divisão da teologia feita por Graf em teologia bíblica e histórica, teologia
dogmática e teologia prática, o específico desta última é ter como objeto de
reflexão a Igreja enquanto se auto-edifica em direção ao futuro.“É precisa-
mente – afirma J. Noemi – esta referência à Igreja ‘no futuro’ como algo

38
Cf. MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., p. 9.
39
RAUTENSTRAUCH, Entwurf, op. cit., p. 37, cit. in A. MÜLLER, “Praktische Theologie
zwischen Kirche und Gesellschaft”, op. cit., PThh, pp. 15-26; 17.
40
J. NOEMI, “Rasgos, imperativos y desafíos”, in: J. NOEMI – F. CASTILLO: Teología
latinoamericana, Santiago: Centro Ecuménico Diego de Medellín, 1998, pp. 11-93; 78.
41
NOEMI, Rasgos, imperativos y desafíos, op. cit., p. 78.

107
próprio da teologia prática a grande novidade que Graf introduz”41.

Para Noemi, o horizonte escatológico aberto por Graf é de vital importân-


cia, pois somente uma teologia prática enquanto escatológica pode ser re-
almente pastoral. Compreender a proposta de Graf a partir deste ângulo é
um momento-chave para adentrar-nos na concepção de teologia prática
em Karl Rahner42.

2.4. A fundamentação teológica da teologia pastoral


Johan Michael Sailer (1715-1832), teólogo católico da Universidad de
Tübingen, em sua obra Lições sobre teologia pastoral43, reagiu à imagem
de pastor e pastoral desenhada por Rautenstrauch, especialmente em seu
traço josefinista, e esforçou-se por fundamentar melhor a teologia pastoral
a partir do ponto de vista bíblico-teológico44. Casiano Floristán sintetiza
:“Do problema pedagógico do como, Sailer passa ao exame do quê ou
conteúdo kerigmático”45. A partir da Escritura, Sailer fundamenta e recu-
pera a imagen bíblica de Igreja. Para ele a Igreja representa e realiza a
reunião de toda a humanidade feita por Cristo, e que continua no Espírito
Santo46. Ela é Corpo de Cristo que vive internamente e expresa externa-
mente esta comunhão entre os homens e destes com Deus. Esta comunhão
é a plenitude da história da salvação na qual Deus-amor, em Cristo, revela-
se como salvação do mundo em pecado47. Para Sailer, o pastor não é sim-
plesmente mestre de religião, servidor da autoridade religiosa e civil, en-
carregado da ordem moral, mas sim servidor de Cristo e da Igreja, forma-
do segundo o Espírito. Esta orientação bíblico-teológica supera amplamen-
te a orientação antropocêntrica da manualística de seu tempo, marcada
fortemente pela Ilustração48.
Anton Graf também busca distanciar-se da manualística clássica e
aprofunda a fundamentação cristológica da ação pastoral. A teologia prá-
tica não pode ficar somente no ofício do pastor; ao contrário, deve ir ao
fundamento, para mostrar como tudo tem sua origem no ser e na vontade
de Cristo; deve refletir como, Cristo primeiramente, e, depois dele, a Igreja,
querem e realizam a meta do projeto divino de salvação49. A ação pastoral
deve ser sempre confrontada com Cristo através da ação do Espírito. Graf
quer garantir a autonomia da Igreja em relação ao Estado revelando sua
constituição sobrenatural mais íntima.

42
Cf. ibidem, p. 77.
43
J.M SAILER, Vorlesungen aus der Pastoraltheologie I-III, München 1788-1789.
44
K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, SW 19, p. 4.
45
FLORISTÁN, Teología práctica, op. cit., p. 110 [grifo do autor]
46
SEVESO, Teología pastoral, op. cit., p. 86.
47
MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., p. 23.
48
Cf. ibidem, p. 24.
49
STECK, F. Schleiermacher und A. Graf, op. cit., PThh, pp. 33-34.

108
Na fundamentação teológica da teologia pastoral é especialmente signifi-
cativa a contribuição de Franz Xaver Arnold (1898-1969), teólogo católico
da Universidade de Tübingen. Ele retoma a orientação eclesiológica e te-
ológica da teologia prática de Graf. Arnold reage à falta de um quadro
teológico para definir a ação pastoral, que a liberte do risco de transfor-
mar-se em ideologia e da contaminação com as idéias da filosofia e da
Ilustração, e lhe permita retomar sua dimensão evangélica e profética50.
Rechaça, por um lado, o “naturalismo pastoral”, característico de pastorais
de orientação iluminista, que se esquecem de que a Igreja é somente me-
diadora da salvação, atribuindo a ela a capacidade de levar a cabo, com
suas próprias forças, o processo de salvação, transformando-se em uma
ação pastoral que perde sua dimensão teologal. Rechaça, por outro lado, o
“quietismo pastoral”, característico de concepções pastorais que atendem
mais ao aspecto sobrenatural da salvação, deixando de lado a contribuição
de cada pessoa no acontecimento salvífico; a instituição e o sobrenatural
absorvem o indivíduo, que pareceria não ter nenhum lugar fundamental
no processo de salvação, levando-o a assumir uma atitude passiva51. Arnold
acolhe a crítica que a “teologia kerigmática” faz à dogmática no sentido de
não ser adequada para a pastoral por seu caráter quase exclusivamente
especulativo, mas consegue superar o paralelismo com que a teologia
kerigmática resolveu a relação entre dogmática e pastoral52. Por isso, quer
aprofundar na estrutura específica do acontecimiento pastoral e, a partir
dessa compreensão, na natureza específica da teologia pastoral.

Arnold procura elaborar uma teologia pastoral que, tanto em sua elabora-
ção teórica, quanto em sua aplicação prática, seja expressão de uma teolo-
gia ancorada no conjunto da revelação e não em função de fatos contingen-
tes. Para compreender mais claramente a natureza da ação pastoral, distin-
gue entre “processo de salvação” (Heilsprozeß) e “mediação de salvação”
(Heilsvermittlung). O primeiro refere-se à realização concreta da interven-
ção salvífica de Deus, entendida como comunhão de Deus mesmo com a
pessoa humana que acolhe este dom na fé; neste processo de salvação,
Deus é o protagonista absoluto. A segunda refere-se à ação pastoral da
Igreja, entendida como um instrumento na ativação e incrementação do
processo de salvação. Portanto, não se pode confundir ação pastoral e
processo de salvação. Uma correta compreensão da atividade pastoral é a
que respeita a distinção, sem confusão, destes dois planos de causalidade:
principal (Deus) e instrumental (Igreja), que, apesar de serem distintos,
sustentam-se e se completam mutuamente53.

50
Cf. ibidem, p. 30.
51
MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., p. 70.
52
Uma síntese compacta da história da “teologia kerigmática” in: A. BENTUÉ, “La
pastoral como categoría teológica fundamental”. Teología y Vida 36 (1995), 7-20; 8-9.
53
Cf. MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., pp. 69-70.

109
No “princípio divino-humano” (das Gott-menschliche Prinzip), o “princí-
pio teândrico” de Calcedônia, Arnold encontra o critério que fundamenta
a natureza de toda ação pastoral. Em Jesus Cristo, a união de amor entre
Deus e a humanidade fez-se real e permanente; nele e a partir dele, as
realidades divina e a humana não são mais alheias, mas sim vinculadas, o
que é mais profundo; deste modo, Jesus Cristo “está na origem da ativida-
de pastoral da Igreja, como modelo no qual tem que se basear qualquer
outra mediação e como fundamento do qual deriva seu sentido”54.
A ação pastoral, portanto, deve estar sempre em relação com o Deus que
salva e, ao mesmo tempo, em relação com o ser humano que é salvo. Isto
significa, em sentido positivo, uma atitude de fidelidade a Deus e à huma-
nidade que não se colocam mais em uma relação de competição, mas sim
de colaboração e diálogo; e, em sentido negativo, significa que a ação
pastoral nunca pode absolutizar um dos fatores em prejuízo do outro, pois
cairia inevitavelmente no antropocentrismo que leva ao “naturalismo pas-
toral” ou no teocentrismo que conduz ao “quietismo pastoral”. Mais con-
cretamente, isto quer dizer que a teologia pastoral deve estar sempre, por
um lado, em referência à cristologia e à soteriologia e, por outro, em refe-
rência à história concreta55. Ela deve “estar simultaneamente por completo
na revelação e por inteiro no tempo”56.
A obra de Arnold – na opinião de M. Midali – tem o mérito de ter dado
à teologia pastoral uma conformação teológica mais sólida, libertando-a da
forte marca iluminista. Sua proposta busca aprofundar o estatuto
epistemológico da teologia pastoral, ao definir seu objeto próprio – que toma
de Graf – (a auto-edificação da Igreja em direção ao futuro) e seu próprio
princípio teológico formal (o princípio divino-humano). Suas intuições são
uma base importante para o debate teológico-pastoral do pós-guerra57.

2.5. Necessidade de explicitar o método da teologia pastoral


Apesar da consistência das contribuições de Anton Graf e Franz Xaver
Arnold na clarificação dos aspectos teológico e epistemológico da teologia
prática, em ambos não encontramos uma explicitação do método. Tem-se
a impressão de que no centro de sua preocupação está a fundamentação da
natureza da ação pastoral, mas não a forma operativa com a qual se leva
a cabo a reflexão teológico-pastoral. O acento é colocado na definição do
que é a teologia prática, descuidando o como se faz teologia prática.
Estes cinco problemas, parece-nos, são os que estão no fundo da reflexão de
Rahner, como perguntas às quais tenta responder. Não há dúvida de que

54
SEVESO, Teología pastoral, op. cit., p. 89.
55
Cf. MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., pp. 71-72.
56
F. X. ARNOLD, Glaubensverkündigung und Glaubensgemeinschaft. Düsseldorf, 1955.
Cit. in SEVESO, Teología pastoral, op. cit., p. 90.
57
Cf. MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., pp. 73-74.

110
Graf e Arnold deram passos decisivos na configuração da teologia prática
como ciência teológica, mas ainda se apresentam algumas dificuldades.
No caso de Graf – segundo R. Marlé – a orientação eclesiológica de sua
teologia prática corre o risco de ser sua única especificidade como discipli-
na teológica própria, chegando a ser, em última análise, somente uma vari-
ante da eclesiologia sistemática desenvolvida pela escola de Tübingen58. Pa-
rece-nos que esta crítica tem que ver com a pouca atenção que se dá ao
horizonte escatológico da teologia prática em Graf e, por isso, confunde-se
com a eclesiologia. Fica pendente, portanto, uma melhor delimitação do ob-
jeto da teologia prática, que a diferencie claramente da eclesiologia dogmática.

Por outro lado, na confrontação da teologia prática de Graf com as teolo-


gias pastorais na linha de Rautenstrauch e sobretudo com a teologia prá-
tica de Schleiermacher, chega-se a uma desvalorização da experiência como
lugar da verdade59. Para Graf, o método da teologia prática é finalmente
dedutivo, pois a teologia prática deve estar orientada à práxis, mais do que
proceder dela. Nesse sentido ele afirma: “Em primeiro lugar, deve-se con-
siderar mais de perto o geral e o abstrato e em seguida se desenvolve para
o concreto e suas articulações”60. Em todo caso, falta uma maior explicitação
de como se dá a relação entre teoria e práxis.

Do mesmo modo, no posicionamento teológico-pastoral de Arnold, não


fica claro como se articulam as duas ordens de causalidade61, o principal
e o instrumental, ou seja, como a teologia prática deve fazer para estar por
inteiro e, ao mesmo tempo, na revelação e na história.

Na segunda parte deste artigo, através do estudo da concepção de teologia


prática em Rahner, queremos ver em que medida ele avança no esclareci-
mento destas questões pendentes.

3. A concepção de teologia prática em Karl Rahner

Deter-nos-emos, agora, na análise do que Rahner entende por teologia prá-

58
R. MARLÉ, Le projet de théologie pratique, Paris: Beauchesne, 1979, p. 74.
59
Cf. LANZA, Introduzione alla Teologia, op. cit. p. 56.
60
GRAF, Kritische Darstellung, op. cit., cit. en: STECK, “F. Schleiermacher und A. Graf...”,
PThh, p. 65.
61
Cf. SEVESO, Teología pastoral, op. cit., p. 89.
62
K. RAHNER - F. ARNOLD - V. SCHURR - L. WEBER (eds.), Handbuch der
Pastoraltheologie. Praktische Theologie der Kirche in ihrer Gegenwart I-III, Freiburg:
Herder I, 19702; II/1, 19712; II/2, 19712; III, 19702; K. RAHNER - V. SCHURR - L.
WEBER - F. KLOSTERMANN (eds.), Handbuch der Pastoraltheologie IV, Freiburg:
Herder, 1969 [doravante citaremos esta obra com a sigla HPth]. e como complemento:
K. RAHNER- F. KLOSTERMANN- H.SCHILD (eds.), Lexikon der Pastoraltheologie,
Freiburg: Herder, 1972.

111
tica. Esta concepção de teologia prática é o eixo articulador da obra cole-
tiva intitulada Handbuch der Pastoraltheologie62.

Esta extensa obra nasceu de uma série de motivações convergentes63. Em


primeiro lugar, as significativas mudanças socioculturais que adquirem
caráter mundial e que têm um significado fundamental para a ação da
Igreja; em segundo lugar, a nova autocompreensão da Igreja emanada do
Concílio Vaticano II; e, em terceiro lugar, a necessidade de uma estratégia
global da Igreja para responder aos novos desafios, que supere a simples
tática pastoral do pároco considerado individualmente, e que supere tam-
bém uma pastoral caracterizada pela improvisação. Todo o Handbuch é
um esforço para responder à pergunta “O que tem que fazer a Igreja
hoje?”64. Esta obra quer ser não somente um trabalho de reflexão, mas sim
um serviço à práxis concreta da Igreja.
A concepção de teologia prática em Rahner estrutura-se em continuidade
com a posição de Anton Graf. Dele toma o nome de teologia “prática” em
lugar de teologia “pastoral”65. Retoma, também de Graf, o princípio
eclesiológico: “auto-edificação da Igreja”, que substitui pelo de “auto-rea-
lização da Igreja” (Selbstvollzug der Kirche)66. Este princípio eclesiológico
vai ser o princípio estruturador de sua concepção de teologia prática.
Analisaremos a concepção de teologia prática de Rahner em cinco momen-
tos: seu objeto específico, a análise teológica da situação presente, a fina-
lidade da teologia prática, suas relações com as outras ciências e, finalmen-
te, sua cientificidade.

3.1. O objeto da teologia prática


Rahner dá a seguinte definição de teologia prática: “A teologia pastoral ou
teologia prática é entendida como aquela ciência teológica (isto é, derivada
das fontes da revelação, normada pelo magistério, que procede metodica-
mente, construída sistematicamente e que utiliza os conhecimentos profa-
nos como qualquer outra disciplina teológica) que sobre a base de uma
análise científica e - mais especificamente, teológica - da situação concreta
(e não contemplada ainda adequadamente no aspecto jurídico) atual da

63
Cf. RAHNER- ARNOLD- SCHURR- WEBER, “Vorwort zum der HPth I (1964)”, SW
19, p. 535.
64
Idem.
65
Ainda que Schleiermacher utilize já o nome de teologia “prática”, com isso não está
querendo tomar distância da concepção clerical evocada pelo adjetivo “pastoral”. O ad-
jetivo “prática” em Schleiermacher diz respeito mais ao tipo de interesse principal que
está presente nesta disciplina.
66
A substituição do substantivo alemão Erbauung por Vollzug é importante, pois este
último dá a entender algo que realiza sua essência. “Selbstvollzug der Kirche” significa,
portanto, realização, cumprimento pleno do que a Igreja é.
67
K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, op. cit., SW 19, pp. 6-7.

112
Igreja, desenvolve os princípios (e na medida do possível os concretiza em
imperativos), segundo os quais a Igreja nesta determinada situação (ou
seja, sempre atual) auto-realiza-se e leva a cabo sua atividade de salva-
ção” 67.

A teologia prática tem como objeto próprio a vida total da Igreja ou, dito
de outro modo, a auto-realização da Igreja em sua totalidade. Isto inclui,
por um lado, as distintas dimensões nas quais a Igreja auto-realiza-se,
como, por exemplo, o culto litúrgico, o anúncio da Palavra, os sacramen-
tos, a catequese, a vida eclesial do indivíduo, etc.; e, por outro lado, os
diferentes sujeitos desta auto-realização: ministros, leigos, comunidade local,
grupos eclesiais, Igreja em geral etc.68 Rahner sintetiza: “O objeto da teolo-
gia prática são todos e tudo na Igreja, ou seja, todos os que são sujeitos da
auto-realização da Igreja [...]. Seu objeto é tudo; ou seja, a auto-realização
da Igreja em todas as suas dimensões”69.
Ora, a teologia prática tem como objeto esta auto-realização da Igreja em
todas as suas dimensões, mas “na medida em que é considerada no encon-
tro com a situação presente”70. A Igreja, enquanto tem que realizar-se aqui
e agora, é o ponto de vista formal desta disciplina ou, dito de outro modo,
“a condicionalidade da realização da Igreja através da situação presente”71.
A teologia prática preocupa-se com princípios da auto-realização da Igreja,
emanados da dogmática, da teologia moral e do direito canônico, mas
enquanto os compreende em sua atualização e concretização na situação
presente da Igreja72. Assim, ela não deixa de estar em sintonia com a dimen-
são essencial da Igreja, pois somente é possível saber o que a Igreja deve fazer
na medida em que sabemos o que ela é; não se trata de um saber genérico
do que deve fazer sempre, mas sim do que deve fazer aqui e agora73.
A Igreja é uma instituição histórica que não existe simplesmente numa
forma de concretização sempre igual. Ela deve acontecer na história de
forma sempre nova. Explicando a densidade teológica que tem este acon-
tecer histórico da Igreja, Rahner afirma: “Seu acontecimento não é simples-
mente o presente de seu ser que dura em uma temporalidade e espacialidade
que permanece externa a ela, mas sim a forma histórica de sua essência,
que se dá somente uma vez, e que está destinada a ela pelo Espírito através

68
Cf. ibidem, pp. 6.8.
69
K. RAHNER, “Die praktische Theologie im Ganzen der theologischen Disziplinen”, SW
19, pp. 503-515; 506.
70
K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, op. cit., SW 19, p. 12.
71
H. SCHUSTER, “Wesen und Aufgabe der Pastoraltheologie als praktischer Theologie”,
HPth I, pp. 93-120; 98. Ainda que estejamos analisando a concepção de teologia prática
em Rahner, citamos Schuster nesta sua contribuição que está no início do primeiro
volume do HPth, por considerar que sua concepção está em sintonia com a de Rahner.
72
Cf. K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, op. cit., SW 19, p. 8.
73
Cf. ibidem, p. 18.
74
K. RAHNER, Die Praktische Theologie im Ganzen, op. cit., SW 19, p. 505.

113
de sua situação histórica”74.
O fato de ser a Igreja de Cristo, sacramento de sua vitória escatológica, não
anula a tarefa própria que ela tem na história, a responsabilidade de sua
liberdade, a capacidade de tomar decisões e, portanto, a possibilidade de
mudança. A situação presente tem para a Igreja um significado teológico,
como chamado imediato de Deus, do qual ela não pode afastar-se75; é o
horizonte histórico fundamental onde Deus se autocomunica livremente à
pessoa humana. A situação presente é um momento interno na ação livre
da Igreja, em sua capacidade de decisão; é situação da própria Igreja, a
qual é querida e dada a ela por Deus. Esta situação presente só é compre-
endida e valorizada corretamente no horizonte da vontade de Deus, e não
como mero horizonte neutro.

Não é possível, a partir apenas dos princípios essenciais da fé católica e


mediante um processo dedutivo, determinar o modo como a Igreja deve
atuar na situação presente; as normas concretas do atuar “não podem ser,
nem de fato são, meras conseqüências lógicas dos princípios da fé, mas
levam inerente a irrepetibilidade do histórico concreto e do ato livre que
as estabelece”76.

Esta situação presente deve ser entendida em duas direções: por um lado,
a situação interna da própria Igreja e, por outro lado, a situação do mundo
no qual e para o qual a Igreja vive77.

3.2. A análise teológica da situação presente


Para a tematização de seu objeto específico, a teologia prática recorre à
análise teológica da situação presente da Igreja. Tal análise é necessária por
várias razões: em primeiro lugar, porque a teologia prática não pode tomar
uma análise deste tipo de alguma das ciências que versam sobre a essência,
pois elas não têm meios para realizá-lo78. Em segundo lugar, para evitar
que a teologia prática seja um mero receituário prático para a práxis pas-
toral, sem capacidade de situar-se criticamente diante desta; e, em terceiro
lugar, para evitar uma análise da situação sem seriedade científica79. Rahner
descreve com nitidez como se dá correntemente esta análise superficial da
situação da Igreja: “Basta que se escute com certa atitude crítica como os
homens de Igreja, párocos e bispos, descrevem a situação quando tentan
fazê-lo com firmeza. A descrição costuma compor-se de duas partes: a

75
Cf. SCHUSTER, Wesen und Aufgabe, op. cit., HPth I, pp. 99-100.
76
K. RAHNER, Cambio estrutural de la Iglesia. Madrid: Cristiandad, 1974 [doravante
citaremos com a sigla CE], p. 16.
77
Cf. K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, SW 19, p. 8.
78
Cf. SCHUSTER, Wesen und Aufgabe, op. cit., HPth I, p. 99.
79
Cf. CE, pp. 25-26.

114
descrição de uma situação que estas pessoas superam brilhantemente, na
qual fazem com todo êxito exatamente o que deles se necessita, e a descri-
ção de um mundo no qual a fé e a moral vão em contínua queda e contra
o qual nada ou pouco se consegue. O mundo, o mundo real intermédio,
falta nessa descrição, que procede de uma experiência irreflexa; o mundo
que apresenta tarefas ainda não resolvidas pelos homens de Igreja, que são
realmente novas e oferecem sem dúvida a possibilidade de levá-las a cabo.
Ao não perceber claramente este mundo, a consciência própria da Igreja
concreta converte-se muito freqüentemente em uma curiosa mistura de
obstinado conservadorismo (sabe-se de sobra o que se deve fazer e isso é
feito muito bem) e um desespero não confessado”80.

A análise da situação presente deve ser teológica, pois somente uma tal
análise atende ao ser complexo da realidade presente como realidade
teologal, como presente que é dado da história de salvação da própria
Igreja. O teólogo pode e deve auxiliar-se das ciências profanas para reali-
zar esta análise, mas tem que integrar estes conhecimentos em uma síntese
teológica81. Então, a análise da situação presente, à qual a teologia prática
recorre, não deve ser entendida como uma ciência auxiliar que prepara a
reflexão propriamente teológica, mas sim como momento interno, pois tal
reflexão deve clarificar teologicamente o presente.

A análise da situação presente deve prestar atenção, por um lado, à situ-


ação interna da Igreja e, por outro, à situação do mundo, esclarecendo de
que modo esta situação está ordenada para a realização do ser histórico da
Igreja, seja como sua condição de possibilidade, seja como contradição com
esta realização82. Esta análise deve tematizar três complexos de perguntas:
em primeiro lugar, aquelas perguntas relacionadas com a situação e a
estrutura do mundo em sua totalidade; em segundo lugar, aquelas pergun-
tas relacionadas com a situação e estrutura atual das distintas sociedades
humanas, pois a Igreja, querendo ou não, convive com outros grupos e
instituições religiosas; e, em terceiro lugar, aquelas perguntas relacionadas
ao indivíduo no mundo de hoje, na medida em que este está integrado
sempre na sociedade profana e porque a Igreja interessa-se pela função do
indivíduo em sua auto-realização (da Igreja)83.

3.3. A finalidade da teologia prática


A teologia prática tem como finalidade “a planificação da auto-realização
da Igreja para o presente e para o futuro”84. Esta planificação é distinta da

80
Ibidem, 26.
81
Cf. ibidem, p. 25.
82
Cf. K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, op. cit., SW 19, p. 8.
83
Cf. SCHUSTER, Wesen und Aufgabe, op. cit., HPth I, pp. 101-102.
84
Ibidem, p. 104.

115
simples tática pastoral que não se situa em um contexto global da Igreja,
mas que está orientada à práxis concreta e específica somente do clero.
Não se trata de atualizar uma determinada forma de vida eclesial que
substitua a atual, mas sim de possibilitar a reação da Igreja diante das
exigências que a situação presente manifesta. Uma tal planificação que
ajude a estabelecer prioridades na ação eclesial é necessária, pois a estra-
tégia salvífica de Deus, cuja graça é infinita, não é igual à da Igreja que
conta com meios limitados e forças finitas. Outra exigência desta planifica-
ção é que deve ser feita a tempo, quando ainda se dão as condições e
possibilidades para levar adiante uma mudança85.
A partir da análise teológica da situação presente, a teologia prática ofere-
ce à Igreja imperativos e diretrizes para a planificação da estratégia global,
os quais não têm o caráter de normas e leis absolutas, mas são propriamen-
te uma “oferta” ao povo de Deus e, especialmente, aos sujeitos da misão86.
Estes imperativos são de natureza carismática e têm um caráter profético-
decisional. Seveso comenta: “No imperativo profético, o momento racional
está presente e é superado na livre decisão; não se trata portanto nem de
uma dedução de premissas comprovadas nem de um simples decisionismo
arbitrário, desde o momento em que não existe sem uma intelecção da
verdade; além disso, também não pode entender-se como o resultado de
uma combinação entre a eclesiologia dogmática e o conhecimento da situ-
ação; no imperativo profético radica a indeduzibilidade da razão prática
com relação à razão teorética e sua unidade na unidade do sujeito”87.
Por esta natureza particular dos imperativos, a estratégia global da Igreja
deve tomar distância, tanto das utopias intramundanas, que chegam a
suas conclusões de modo totalmente lógico e racional, quanto daquela
forma de ciência de planificação eclesial que quer planificar tudo em um
pastoralismo apriorístico, que crê não precisar levar em consideração a
situação presente da Igreja88.
A teologia prática oferece à Igreja estes imperativos como orientação de
sua estratégia global, mas não diz respeito a esta disciplina teológica a
atualização de tais imperativos. A tomada de decisões diz respeito às ins-
tâncias que têm na Igreja um papel de governo. Dito de outro modo, à
teologia prática cabe a investigação que tem como resultados os imperati-
vos, e ao governo eclesial, a implementação da estratégia global inspirada
nesses imperativos89.

85
CE, p. 64.
86
Cf. K. RAHNER, “Stichworte aus dem Lexikon der Pastoraltheologie: Pastoraltheologie”,
SW 19, pp. 489-499; 491.
87
SEVESO, Teología pastoral, op. cit., p. 91.
88
SCHUSTER, Wesen und Aufgabe, op. cit. HPth I, p. 105.
89
K. RAHNER, “Pastoraltheologie - ein Überblick”, op. cit., SW 19, p. 15.

116
3.4. A relação da teologia prática com as outras ciências
É importante assinalar que no esclarecimento da relação da teologia prá-
tica com as ciências em geral e com as outras ciências teológicas em par-
ticular, está em jogo seu caráter de ciência propriamente dita, no sentido
de que tem um objeto material e formal próprio, distinto das outras ciências;
e, por conseguinte, isto tem que ver com a defesa de seu estatuto como
disciplina universitária. A relação pode dar-se dos seguintes modos90:

a) como o todo se relaciona com suas partes: é a relação que ela tem,
por exemplo, com a homilética, a catequética, a missiologia, a liturgia.
b) como uma ciência relaciona-se com outra que, apesar de examinar
os mesmos objetos materiais, o faz em um nível distinto de atualiza-
ção e concretização: é a relação existente com as ciências que versam
sobre a essência (Wesenswissenschaften) (a dogmática em geral e a
eclesiologia dogmática em particular), que examinam a auto-realização
da Igreja somente a partir de seu ser abstrato. A teologia prática, ao
contrário, examina esta auto-realização na situação presente. Estas dis-
ciplinas teológicas que versam sobre a essência são fundamento, pres-
suposto, horizonte e padrão da teologia prática. Por sua parte, a teolo-
gia prática faz-lhes notar que a tarefa que lhes cabe não é a-histórica ou
historicista (no sentido de que não se colocam a pergunta pelo anúncio
hoje), e que suas conclusões não são uma sabedoria sempre válida no
tempo, mas devem antes ser realizadas em uma situação concreta do
mundo e da Igreja; devem ser atualizadas em sua globalidade91.
c) como uma ciência relaciona-se com outra que tem objetos materiais
e fontes de conhecimento e normas diferentes: é a relação existente
entre teologia prática e ciências profanas. Esta relação só é negativa
quando os objetos materiais são totalmente diferentes, como acontece
com as ciências profanas não antropológicas; e pode ser positiva pela
comunhão de objetos materiais e, neste caso, a relação é a de uma
ciência com suas ciências auxiliares. Nesta última situação estão, por
exemplo, a psicologia, a sociologia, a ciência histórica.
d) como uma ciência relaciona-se com as outras que examinam os
mesmos objetos materiais, mas sob um ponto de vista totalmente
distinto: é o caso da relação da teologia prática com a pedagogia cristã,
por exemplo, pois nesta se trata direta e formalmente da formação dos
jovens; este proceso de formação faz parte da realização do ser da Igreja
e de seus membros. Deve também incluir-se aqui – na nossa opinião –
a relação com o direito canônico, pois a teologia prática e o direito
canônico têm dentro de seu âmbito temático o direito da Igreja, mas sob

90
Cf. ibidem, pp. 18-20.
91
Cf. K. RAHNER, Die praktische Theologie im Ganzen, op. cit., SW 19, p. 511.

117
pontos de vista diferentes. O direito canônico tem como seu objeto
próprio o direito vigente da Igreja (lex condita) e a história do mesmo;
a teologia prática, ao contrário, ocupa-se do direito que deve ser e que
ainda não existe (ius condendum), ou seja, o direito em perspectiva de
futuro; a teologia prática tem um papel crítico diante do direito vigente
e deve suscitar o debate sobre o direito que deve ser92.
e) como uma ciência com as outras que examinam os mesmos objetos
(materiais e formais) em outra fase de tempo, a saber, que examinam
o passado em lugar do presente e do futuro: é a relação existente entre
a teologia prática e a história da Igreja, na medida em que esta última
é a história da salvação acontecida na Igreja. A teologia prática, por sua
vez, abarca o presente e o futuro; ela deve assinalar à história da Igreja
que esta não pode ser mera curiosidade histórica, mas sim “a constitui-
ção crítica da memória do passado da Igreja”93, pois “o que a Igreja
carrega atrás de si é afinal interessante somente a partir daquilo que a
Igreja tem ainda por diante”94.

Finalmente, a teologia prática deve fazer duas exigências às outras disci-


plinas teológicas95. Em primeiro lugar, ela exige o reconhecimento de sua
originalidade e significado como uma disciplina teológica propriamente
dita; em segundo lugar, as outras disciplinas teológicas devem preservar e
reconhecer o momento de teologia prática que está e deve estar presente
nelas mesmas e isto porque todas as disciplinas teológicas devem estar a
serviço da auto-realização da Igreja96. Rahner vai ainda mais longe ao
apresentar a teologia prática como princípio organizativo da teologia em
geral: “Quando se reconhece à razão prática [...] uma prioridade, pela qual
e na medida em que ela é o fato de estar junto a cada ação de auto-
realização que significa salvação, e isto de modo reflexivo, [...] então pode-
se conceder à teologia prática, como à representante da auto-reflexão desta
razão prática na Igreja, uma prioridade na teologia como totalidade”97.

3.5. Cientificidade da teologia prática


Apesar de vários dos elementos que analisaremos em seguida já terem sido
tratados, parece-nos importante dar especial atenção à cientificidade da
teologia prática na concepção de Rahner.

A teologia prática é ciência propriamente dita porque tem um objeto ma-


terial próprio: a auto-realização da Igreja; e um ponto de vista formal
próprio: a auto-realização da Igreja no presente e no futuro. A reflexão que
92
Cf. SCHUSTER, Wesen und Aufgabe, op. cit., HPth I, pp. 113-114.
93
K. RAHNER, Die praktische Theologie im Ganzen, op. cit., SW 19, p. 509.
94
Ibidem, p. 513.
95
Cf. ibidem, p. 508.
96
Cf. ibidem.
97
K. RAHNER, Stichworte aus dem Lexikon, op. cit., SW 19, pp. 492-493.

118
ela realiza de modo científico-sistemático é de natureza inderivável en-
quanto é uma reflexão para uma decisão. Nenhuma das outras ciências
teológicas pode realizar esta tarefa com os meios de que dispõe.

Ela tem um significado prático porque, a partir da análise da práxis de


auto-realização da Igreja, assim como se dá no presente, elabora os impe-
rativos para a estratégia global da Igreja, que deve orientar a práxis de
cada Igreja particular. Dada esta proximidade íntima com a práxis eclesial,
Rahner afirma que não é a Universidade o único lugar onde se pode fazer
teologia prática; ela deve estar presente na trama viva da vida eclesial;
“porque a teologia prática preocupa-se com a ação da Igreja e porque
finalmente somente na ação mesma é dada a autocerteza final para esta
ação no que se refere à Verdade de Deus, a teologia prática não pode ser
compreendida somente como ‘universitária’. Ela não deve ocupar-se so-
mente com a Igreja [...], mas deve também provir dela”98.
A teologia prática é teoria também quando é um momento da práxis da
Igreja; mas não é teoria como o são as ciências que versam sobre a essência,
mas de um modo totalmente próprio como “discernimento do Espírito em
função da decisão”99. Isto implica um elemento profético e outro político.
A teologia prática tem uma função crítica em duas direções100: em relação
à práxis da Igreja, ajudando-a a superar sua auto-realização assim como é
dada e que é sempre deficiente; e em relação às outras disciplinas teológi-
cas, pois lhes pergunta se contribuem suficientemente para uma decisão
real para a auto-realização da Igreja, desempenhando a teologia prática
assim um papel hermenêutico101.
Finalmente, a teologia prática é ciência porque tem um método próprio,
determinado por três momentos102: o primeiro é a referência aos dados que
as ciências que versam sobre a essência apresentam no que se refere à
auto-realização da Igreja (o ser essencial da Igreja, os sujeitos da ação
eclesial, as estruturas formais fundamentais, os princípios antropológicos,
etc.); o segundo momento é constituído pela análise teológica da situação
presente; e, finalmente, a definição dos imperativos para a estratégia global
da auto-realização da Igreja no presente e no futuro.

4. Análise crítica

4.1. O mais relevante da contribuição de Rahner

98
Ibidem, p. 491.
99
K. RAHNER, Die praktische Theologie im Ganzen, op. cit., SW 19, p. 505.
100
Cf. ibidem.
101
Cf. MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., p. 166.
102
Cf. SCHUSTER, Wesen und Aufgabe, op. cit., HPth I, p. 102.

119
Parece-nos que a maior contribuição de Rahner está em pôr os alicerces
que não poderão faltar em uma concepção de teologia prática. Estes são:
primeiro, a explicitação mais clara dos objetos material e formal, e, de
modo mais geral, a fundamentação da teologia prática como ciência; se-
gundo, a retomada e elaboração criativa da dimensão escatológica da auto-
realização da Igreja; terceiro (e é sua contribuição mais original), a análise
da situação presente como momento interno da teologia prática. Analisa-
remos mais detalhadamente estes três elementos.

4.1.1. O caráter científico da teologia pastoral

Como analisamos mais acima, um dos problemas principais em relação à


cientificidade da teologia pastoral tem a ver com a relação teoria-práxis. Anton
Graf deu um grande passo em relação a Rautenstrauch e Schleiermacher ao
defender o caráter teórico (e não somente prático) desta disciplina. Contudo,
deixava-se entrever em sua posição uma desvalorização da práxis concreta
como lugar da verdade, não conseguindo fugir a um posicionamento dedu-
tivo: da teoria à práxis. Parece-nos que Rahner dá um passo mais na linha de
uma relação dialética entre teoria e práxis. A teologia prática tem que tematizar
a práxis de auto-realização da Igreja assim como se dá agora – através da
análise da situação presente – para cumprir sua finalidade prática de apre-
sentar imperativos para a estratégia global da Igreja.

A contribuição de Rahner significa também um avanço no sentido de de-


finir e explicitar melhor o objeto próprio da teologia prática. Em primeiro
lugar, em continuidade com Graf, ao definir como seu objeto material
próprio a auto-realização da Igreja em sua totalidade, supera o estreitamento
clericalista da teologia pastoral de Rautenstrauch; em segundo lugar – e
aqui nos parece encontrar o maior avanço – explicita melhor o ponto de
vista formal da teologia prática enquanto ciência que se preocupa com a
auto-realização da Igreja no presente e no futuro. Mesmo que esse ponto
de vista formal estivesse já presente em Graf, não foi a ele que se chamou
mais atenção na hora de acolher a contribuição deste teólogo, o que difi-
cultou perceber em sua concepção de teologia prática a diferença entre a
eclesiologia dogmática e a teologia prática. Rahner preocupa-se em escla-
recer esta diferença, dada pelo ponto de vista formal de ambas as ciências.
Esta explicitação da relação da teologia prática não somente com a
eclesiologia dogmática, mas também com o conjunto de ciências teológicas
e profanas, significa uma grande contribuição de Rahner. É especialmente
interessante a exigência que a teologia prática apresenta às outras ciências
teológicas, de reconhecer o momento de teologia prática presente nelas
como momento interno. A teologia prática não é uma ciência que começa
a conviver pacificamente com as outras ciências teológicas, mas tem, ao
contrário, um papel crítico diante delas.

4.1.2. A retomada da dimensão escatológica da auto-realização da Igreja

120
Uma das preocupações fundamentais que acompanhou a história da teo-
logia pastoral foi como evitar o perigo de uma práxis acrítica de si mesma,
transformando-se assim em uma práxis ideológica. Os caminhos de saída
foram procurados a partir de dois ângulos complementares: Por um lado,
na fundamentação teológica começada por Sailer, continuada por Graf e
aprofundada consideravelmente por Arnold, e isto, sobretudo, na compre-
ensão da missão da Igreja como uma mediação de salvação. Por outro
lado, parece-nos que querer destacar o estatuto teórico da teologia prática
que, primeiro Graf e depois Rahner, levam a cabo, tem a ver com a neces-
sidade de que a teoria se estabeleça como instância crítica da práxis. Para
Rahner, a dimensão escatológica da auto-realização da Igreja é fundamen-
tal para uma teologia prática que possa ser crítica do mundo e autocrítica
da práxis e da reflexão da Igreja. Está posto o alicerce, mas se deve cons-
truir a casa sobre ele. Como se faz para que o olhar sobre o mundo e sobre
a Igreja não seja idealista? Como fazer para que a teologia não justifique
somente a práxis da Igreja, com o perigo de transformar-se em ideologia?
Parece-nos vislumbrar duas pistas interessantes para responder às perguntas
apresentadas acima. A primeira tem que ver com a mística. Rahner afirma
que a Igreja deve transformar-se em uma comunidade de espiritualidade
autêntica (desafio que se apresenta, portanto, também à teologia), ou seja, que
se ocupe antes de mais nada e sobretudo com Deus. A Igreja deve falar de
Deus; falar dele para dar-lhe glória, pois somente assim pode mostrar real-
mente seu caráter profético e seu poder libertador103 . “Quando em uma es-
perança última a pessoa humana entrega-se incondicionalmente ao verdadei-
ro Deus para além de todas as realidades concretas manejáveis, entra então
verdadeiramente em sua liberdade última, que é plenificada por Deus mes-
mo e comporta ainda uma felicidade oculta quando em nosso desespero não
podemos fazer-nos conosco mesmos e com este mundo”104 .
A outra pista dá-nos J.B. Metz, discípulo de Rahner, e tem a ver com o a
partir de onde deve ser realizada a análise da situação presente. Para este
autor, a única forma de aproximar-se da história enquanto ela é sempre o
inacabado, o fracassado que tem um sentido enquanto superação desse
fracasso no futuro escatológico, é situar-se nela a partir do sofrimento, ou
seja, a partir da solidariedade com os pobres, os insignificantes, os margi-
nalizados, os sofredores em geral. O sofrimento não se situa no já do Rei-
no, mas sim no ainda não que impede identificar qualquer realização
humana com a realização do Reino escatológico. Isto significa olhar para o
mundo e para a história a partir do ainda não do Reino, o que nos obriga
à crítica e à autocrítica permanente. A consciência da Igreja no presente
tem uma referência ao passado enquanto memória da paixão, morte e
ressurreição de Jesus Cristo, e ela é sempre uma memória “perigosa” por-
que é desestabilizadora dos sistemas e realidades existentes. Esta memória

103
Cf. CE, p. 107.
104
Ibidem, p. 108.

121
perigosa não fica ancorada no passado, mas ao contrário, recorda um acon-
tecimento futuro. Ela recorda um futuro que ainda não se realizou e que
questiona radicalmente o presente, quebrando-se o encanto de uma histó-
ria compreendida como história dos vencedores, interpretada evolucionística
ou dialeticamente. Deste modo, o já deve ser compreendido no ainda não,
ou seja, a existência da salvação deve ser acolhida e compreendida na
esperança. Somente assim Deus aparece em sua liberdade escatológica,
como sujeito e sentido da história105.
4.1.3. A análise da situação presente
Gostaríamos de destacar dois elementos importantes que estão por trás
desta análise. Parece-nos, em primeiro lugar, que Rahner vai além da lei-
tura dos “sinais dos tempos” que o Vaticano II propõe. É necessária uma
análise mais global da situação presente, que integre os níveis mais macro,
mas que não descuide da situação dos indivíduos e dos grupos. A missão
da Igreja de ser mediadora de salvação cumpre-se quando ela se põe a
serviço do homem e do mundo, poderíamos dizer, a serviço da auto-rea-
lização do homem e do mundo. No centro dessa mediação de salvação está
o anúncio do Evangelho. Para que este seja acolhido e compreendido, a
Igreja deve conhecer os destinatários deste anúncio: o que é que esperam,
quais são suas perguntas, quais suas feridas, para onde apontam suas
esperanças. Esta compreensão necessita do olhar, do conhecer mais a fun-
do, aqui se situa então a análise da situação presente.
Em segundo lugar, é interessante perceber que, sendo esta uma análise da
situação presente do mundo e da Igreja, há uma concepção da relação
Igreja-mundo que é uma novidade em relação ao Vaticano II. No pensa-
mento do Concílio, a Igreja deve estar a serviço do mundo, assumindo suas
alegrias, dores e esperanças. É nesse serviço que se entende a realização de
sua missão de ser mediadora da salvação. Mas o mundo continua sendo
uma realidade que está diante da Igreja. No pensamento de Rahner, a
Igreja é também mundo, ela supõe o mundo. Portanto, o olhar que se deve
dar para conhecer não é somente um olhar para o mundo que está na
frente, mas também para o mundo que a própria Igreja é. Isto nos põe em
guarda com relação a um olhar ingênuo, acrítico que nos leva a pensar que
o Evangelho deva ser anunciado somente para fora e que nos faz passar
por alto o ainda não da própria Igreja.

4.2. Algumas fragilidades da contribuição de Rahner


4.2.1. O sujeito da ação pastoral

105
Cf. J. B. METZ, A fé em história e sociedade: estudos para uma teologia fundamental
prática, São Paulo: Paulinas, 1980, pp. 116-137.232-237.

122
Como vimos anteriormente, já em Amberger, discípulo de Graf, experi-
menta-se um retrocesso no modo de compreender o sujeito da ação pasto-
ral. O forte clericalismo da teologia pastoral anterior a Graf reaparece tam-
bém depois dele. O mérito de Rahner (também de Arnold) está em ter
acolhido e retrabalhado esta perspectiva eclesiológica de Graf no sentido
de que todos os membros da Igreja são sujeitos da ação pastoral; um sinal
disso é o fato de ter acolhido a intuição de Graf no sentido da mudança de
nome desta disciplina (teologia “prática” em lugar de teologia “pastoral”).
Contudo, percebemos um problema em relação ao sujeito que atualiza a
estratégia global da Igreja. Existe na proposta de Rahner uma justaposição
de eclesiologias diferentes: de um lado, uma eclesiologia de comunhão em
que todos são sujeitos da ação eclesial e, por outro lado, uma eclesiologia
hierárquica, pois, na hora da atualização da estratégia global, tudo fica nas
mãos do governo eclesiástico. Supera-se o estreitamento clerical quanto ao
sujeito da ação pastoral, mas dá a impresão de que se mantém tal
estreitamento quanto ao sujeito da decisão pastoral.

4.2.2. Necessidade de explicitar o método da teologia pastoral

A falta de explicitação do método desta disciplina teológica é talvez a maior


deficiência que percebemos no transcurso da história da teologia pastoral.

Rahner avança ao assinalar alguns momentos da tarefa da teologia prática:


a análise da situação presente - imperativos para o presente e para o futuro
da auto-realização da Igreja -, o desenho de uma estratégia global. Entre-
tanto, não fica claro como se dá a conexão com as ciências que tratam da
essência, com a Sagrada Escritura, com as ciências auxiliares. Não fica
claro qual é a estrutura formal da análise da situação presente106. Questi-
ona-se também o caráter propriamente teológico da análise na medida em
que não se estrutura segundo o itinerário argumentativo Escritura-Magis-
tério-Tradição-reflexão teológica107. Outra objeção tem a ver com a falta de
delimitação precisa entre análise sociológica e interpretação teológica, pois
o primeiro aparece apenas como justaposto ao momento teológico. Mais
em geral, parece problemática a assunção de dados e métodos empíricos
na reflexão teológico-pastoral108.

5. Conclusão

Parece que estamos diante de uma concepção de teologia prática consisten-

106
Cf. SEVESO, Teología pastoral, op. cit., pp. 92-93 e MIDALI, Teologia pastorale, op.
cit., p. 171.
107
Cf. ibidem, p. 94.
108
MIDALI, Teologia pastorale, op. cit., p. 171.

123
te e criativa. Rahner pôs alicerces firmes sobre os quais deve-se continuar
construindo.

Nas universidades européias, sobretudo nas de língua alemã, propõe-se


como um desafio para a teologia pastoral a necessidade de sair da Univer-
sidade e conectar-se com a vida mais concreta da Igreja. Tem-se a impres-
são de que o desafio para a América Latina é o contrário: levar a reflexão
teológico-pastoral para as aulas universitárias, acolhendo-a como uma ci-
ência teológica dentro do currículo de estudos. Deste modo, uma teologia
pastoral universitária, vinculada à vida da Igreja, poderia ser extraordina-
riamente iluminadora na hora de responder à pergunta: “o que a Igreja
tem que fazer hoje?”

(Tradução do original espanhol por Claudio Paul)

Alex Wilfredo Vigueras Cherres SSCC, chileno, bacharelou-se em Teologia pela Pontifícia
Universidade Católica do Chile (Santiago). Obteve o grau de mestre na área de Teologia
da práxis, em 1999, no Centro de Estudos Superiores da Companhia de Jesus (Belo
Horizonte). Atualmente é professor adjunto da Faculdade de Teologia da Pontifícia
Universidade Católica do Chile (Santiago) e formador da Comumidade Interprovincial de
professos da Congregação dos Sagrados Corações (Santiago) e assessor do Centro Pas-
toral Juvenil Alameda (Santiago do Chile).
Endereço: San Juan 4476, comuna san Joaquín
Casilla 723, Santiago - Chile
e-mail: aviguerc@puc.cl

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