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ENSAIO GEOFILOSÓFICO
Resumo:
A queda do homem moderno: esta foi a matriz da filosofia nietzschiana, a circular por temas
singulares de fortalecimento desta premissa (a moral, a razão, a ciência, a família, o progresso etc).
Nos meandros de uma densa obra, é possível encontrar uma via, senão para a redenção, ao menos para
uma redescoberta do sentido de existência do humano pela arte, poesia e criatividade inerentes ao ser.
Acrescer o espaço nesta via é o ponto de inflexão ao qual se encaixa o presente ensaio, ao buscar, pela
lente geográfica, uma leitura e grafia de um mundo no qual a arte poética o signifique e singularize,
contrapondo-se ao mito do progresso e à retitude racional. Para a composição dos argumentos e
análises presentes neste texto, houve um resgate específico das obras do alemão Friedrich Nietzsche,
em conjunto com colaborações mediatas e correlatas de outros autores, de forma a complementar o
debate geofilosófico posto. Por fim, espera-se com este trabalho elevar a questão do vivido, da arte, da
atitude e postura poética frente à ideia de progresso correlacionada à espacialidade do ser, enquanto
fomento dialético para novos horizontes de compreensão da totalidade como fundamento da realidade.
Palavras-chave: Niezscthe. Arte. Vivido. Progresso. Geofilosofia.
Introdução
Supondo que nada seja “dado” como real, exceto nosso mundo de desejos, e que não possamos
descer ou subir a nenhuma outra “realidade”, exceto à realidade de nossos impulsos – pois pensar é
apenas a relação desses impulsos entre si –: não é lícito fazer a tentativa e colocar a questão de se
isso que é dado não bastaria para compreender, a partir do que lhe é igual, também o chamado
mundo mecânico (ou “material”)? Quero dizer, não como uma ilusão, uma “aparência”, uma
“representação” (no sentido de Berkeley e Schopenhauer), mas como da mesma ordem de
realidade que têm nossos afetos – como uma forma mais primitiva do mundo dos afetos, na qual
ainda esteja encerrado em poderosa unidade tudo o que então se ramifica e se configura no
processo orgânico (e também se atenua e se debilita, como é razoável), como uma espécie de vida
instintiva, em que todas as funções orgânicas, com auto-regulação, assimilação, nutrição,
eliminação, metabolismo, se acham sinteticamente ligadas umas às outras – como uma forma
prévia da vida? – Afinal, não é apenas lícito fazer essa tentativa: é algo imposto pela consciência
do método. (Nietzsche, [1886] 2004, p. 42).
Nota-se que, sem abrir mão da crítica aos seus mestres de influência e fundamentos,
Nietzsche utiliza, por exemplo, o embasamento schopenhauriano da distinção do mundo como
vontade de representação para compor seu entendimento sobre a realidade objetiva, no que
tange à sua afetação sígnica e de juízo por parte da moralidade: “Não existem fenômenos
morais, apenas uma interpretação moral dos fenômenos” (Nietzsche, [1886] 2004, p. 73). Para
o filósofo é clara a distinção entre a fenomenicidade do mundo e o olhar que se volta para esta
fenomenicidade, já imbuída de filtros e arbítrios morais mais diversos, algo já presente no pai
do pessimismo alemão, mas, tendo como referência os desígnios da vontade, e não
necessariamente extratos éticos e morais da sociedade para a composição das representações,
como é feito por Nietzsche. Coloca em situação as barbáries da civilização, os genocídios, as
violências infinitas, as guerras mais vorazes frente a um saber acumulativo, iluminado e
vangloriado das técnicas. O autor ataca, frontalmente, concepções filosóficas e científicas de
Estado (absolutamente divino) e de humanidade (material, histórica, apropriativa da natureza),
respectivamente Hegel e Marx, por considerar sua sustentação de hipóteses como teológicas.
“Agora bem, Deus está morto”. Em Nietzsche, a história é um caos de azares, de vontades, de
determinismos, diz Henri Lefebvre.
Portanto, não é de surpreender que a filosofia nietzschiana, ao longo de seu
desenvolvimento, lança como referência recorrente a dualidade entre o arcabouço da
moralidade e sua superação. A partir da crítica à moralidade, mote inicial de obras como
Genealogia da Moral e A Origem da Tragédia, seus caminhos se expandem à análise da
própria racionalidade. Alinha o questionamento do pensamento racional com a “retitude” dos
juízos, a negar a teologia oficial [Igreja] e o poder real absoluto [razão do Estado e o saber].
A figura dos deuses gregos, frequentemente utilizadas por Nietzsche, é a deixa para a
visualização de seu pensamento dualístico. De um lado, há o apolínico, símbolo da
razionabilidade, da padronização moral e do absoluto das metateorias da modernidade; de
outro, encontra-se o dionísico, na defesa ao hedonismo, à mudança, é a superação e a
transvalorização dos valores, numa redescoberta de si (conforme roga os aforismos, por
exemplo, de Assim Falava Zaratustra e Ecce Homo), na dialética da arte e da poesia como
expressões máximas do ser. Os padrões morais são duramente criticados pelo autor, que afere
a si e projeta como caminho o movimento, o devir, a contrariedade e a negação de tais
paradigmas enquanto essência do ser humano.
Não sou, por exemplo, um espantalho, um monstro moral – sou antes uma natureza contrária à
espécie de homens que, até agora, se veneraram como virtuosos. Aqui só para nós, parece-me que
isto se ajusta precisamente ao meu orgulho. Sou um discípulo do filósofo Dionísio, prefiro ser um
sátiro a ser um santo. Leia-se, porém, apenas este escrito. Coube-me talvez, e porventura este
escrito não terá outro sentido, expressar este contraste de um modo sereno e humanitário. A última
coisa que eu prometeria seria «melhorar» a humanidade. Não serão por mim erigidos novos ídolos;
os antigos podem elucidar-nos sobre o que assenta em pés de barro! Derrubar ídolos – eis o que já
constitui o meu ofício. Subtraiu-se à realidade o seu valor, o seu sentido, a sua veracidade, na
medida em que se inventou um mundo ideal... O «mundo verdadeiro» e o «mundo aparente» – em
vernáculo: o mundo fictício e a realidade... A mentira do ideal foi, até agora, o anátema sobre a
realidade, a própria humanidade foi por ela falsificada e viciada até aos seus mais profundos
instintos – até à adoração dos valores contrários àqueles com que lhe estaria garantida a
prosperidade, o futuro, o sublime direito ao futuro. (Nietzsche, [1888] 2010, p. 13)
Este recorte de Ecce Homo evidencia, claramente, uma negação aos pilares da
modernidade: a flecha do tempo linear da prosperidade; o velamento da realidade pela
moralidade, na composição de um mundo ideal passível de enfretamento e destruição; a
adoração aos ídolos (seja no entendimento destes como homens da ciência, da religião ou da
filosofia). Concretamente, Nietzsche nega o produzir para destruir, fazer filhos para a guerra,
acumular saber para dominar os povos, critica tais signos da razão ou absurdos na Alemanha;
dessacraliza e refuta a fusão do saber e do poder anunciados por Hegel; a destruição da
natureza aparece como resultado da vontade de poder, com todo seu horror, e não sua negação
(Lefebvre, [1976], 2010). Tais pressupostos alimentam e exigem da Geografia realinhamento
de princípios frente à natureza concreta-abstrata, a incorporar a ideia de utopias necessárias à
práxis da vida espacial, a questionar os ideais propalados de saber e de progresso. Logo, a
arte e a poesia, tomadas a partir do espaço, podem ser potenciais objetos de subversão da
realidade e dos ideais hegemônicos reverberados. As denúncias prosseguem ao longo do
século XX, como na Escola de Frankfurt e outras voltadas à crítica da sociedade moderna,
para as quais a razão foi capaz: de propiciar enxurradas de informações precisas e diversões
assépticas, a idiotizar as pessoas; de servir os indivíduos com milhares de máquinas fazendo-
os desaparecer diante delas; de reduzir o esclarecimento à ideologia. “O esclarecimento
consiste aí, sobretudo, no cálculo da eficácia e na técnica de produção e difusão” (Adorno;
Horkheimer, [1944] 1985, p. 15)
O mundo ideal, criado pela moralidade e pela racionalidade, são os alvos da crítica,
pois “inventam” uma mundaneidade apartada do imaginativo, da poesia, da criatividade e dos
sentimentos, seja julgando-os (moral), seja anulando-os (ciência, razão), em um processo de
castração histórica da humanidade humana. Por estes motivos, a arte representada no papel
dos poetas, é a transgressão dos saberes e da moral: “Os poetas não têm pudor em relação às
próprias experiências: eles as exploram” (Nietzsche, [1886] 2004, p. 81).
A arte, em suas distoantes linguagem [música, poesia, arquitetura, pinturas etc.]
emerge como pathos (do grego πάθος) a ser perseguido. Na consumação de estilos, de visões
a ultrapassar o momento da própria arte, há não apenas a criação de algo novo, mas superação
de padrões morais e da ambição neutralizantes solidificados no pensamento racional,
científico e filosófico. Radicalmente, Nietzsche, ao negar a existência de um mundo
verdadeiro, do mundo aparente como verdade e a própria verdade, assegura que esta última
não é outra coisa que a conformidade de discursos a certas regras universalmente aceitas em
um dado mundo, onde a linguagem é a esfera média livremente poetante e criadora
(Nietzsche, in Vattimo, 2010).
Vou ainda dizer, ao mesmo tempo, uma palavra muito geral sobre a minha arte do estilo.
Comunicar um estado, uma tensão interna do pathos mediante signos, e inclusive o ritmo de tais
signos – eis o sentido de todo o estilo; e considerando que a multiplicidade dos estados interiores é
em mim extraordinária, há em mim muitas possibilidades de estilo – a mais multifária arte do
estilo em geral, de que alguma vez um homem dispôs. É bom todo o estilo que comunica
realmente um estado interno, que não se engana acerca dos signos, a propósito do ritmo dos
signos, acerca dos gestos – todas as leis do período são arte dos gestos. O meu instinto é aqui
infalível – O estilo bom em si – é uma pura loucura, simples «idealismo», algo como o «belo em
si», como o «bom em si», como a «coisa em si». (Nietzsche, [1888] 2010, p. 42).
Para Friedrich Nietzsche, a arte não é apenas uma expressão de linguagem, uma
manifestação de códigos por talento ou treinamento, mas uma via de transcendência do
existir, na composição de um modo de vida e no alcance do homo poeta, que é sobrevalorado
em relação aos deuses e à moral, numa reinvenção tragicômica da vida. A arte é, para o
filósofo, potência autônoma da aparência, por deslocar o indivíduo dos limites de sua
condição de realidade; é negação da divisão de papéis sociais, uma violação da existência
como algo dado (mas aquilo que é) permanentemente em mutação.
153 Homo poeta – Eu mesmo, que fiz inteiramente só essa tragédia das tragédias, até onde ela
possa estar pronta; eu, que primeiramente ateei o nó da moral na existência, e depois o apertei de
forma tal que somente um deus o poderá desatar – como exige Horácio –, que próprio matei agora
todos os deuses no quarto ato – por moralidade! Que será agora do quinto ato? De onde tirarei a
solução trágica? – Devo começar a imaginar uma solução cômica? (Nietzsche, [1882] 2012, p.
149)
Também ilumina o caráter do olhar para o futuro, característico das artes, e que pode
ser incorporado à essência do humano, engrandecendo-o, maturando-o e libertando-o: “241. A
obra e o artista – Esse artista é ambicioso e nada mais: afinal sua obra não passa de uma lente
de aumento que ele oferece a todos os que olham em sua direção.” (Nietzsche, [1882] 2012, p.
161). O artista, neste caso, é o poeta-autor, que é o homo poeta em seu devir, vivendo sua vida
pela arte, de modo a engendrar sua ecceidade pelas singularidades artísticas. E por tudo isso,
Nietzsche agradece às artes, à poesia, por libertar o ser humano da retidão da moral e da
ciência: eis o demasiado humano, o qual reside no corpo. Esse corpo rico no desconhecido e
em virtualidades desprega alguns de seus poderes na arte; o olho e o olhar sobre a pintura, o
tato na escultura e o ouvido na música, a palavra na linguagem e na poesia; quando a
conjuntura é favorável, o corpo total se afirma no teatro e na arquitetura, na música e na dança
(Lefebvre, [1976] 2010).
107. Nossa derradeira gratidão para com a arte – Se não tivéssemos aprovado as artes e
inventado essa espécie de culto do não verdadeiro, a percepção da inverdade e mendacidade geral,
que agora nos é dada pela ciência – da ilusão e do erro como condições da existência cognoscente
e sensível –, seria intolerável para nós. A retidão teria por consequência a náusea e o suicídio. Mas
agora, a retidão tem uma força contrária, que nos ajuda a evitar consequências tais: a arte, como a
boa vontade de aparência. [...] Como fenômeno estético a existência ainda nos é suportável, e por
meio da arte nos são dados olhos e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós
mesmos um tal fenômeno. (Nietzsche, [1882] 2012, p. 124).
367. A primeira distinção a fazer quanto às obras de arte – tudo o que é pensamento, poesia,
pintura, composição, e mesmo construção e escultura, pertence à arte monológica ou à arte de
testemunhas. [...] Não conheço mais profunda diferença na ótica geral de um artista do que esta: se
ele olha para sua obra de arte em formação (para “si”) como olhar da testemunha ou se “esqueceu
do mundo”: o que constitui o essencial de toda arte monológica – ela se baseia no esquecimento,
ela é a música do esquecimento. (Nietzsche, [1882] 2012, p. 242).
Toda essa região abunda nesse magnífico, insaciável egoísmo da avidez de posse e de pressa; e, tal
como esses homens não reconheciam fronteiras na distância, instaurando, em sua sede de novo,
um Novo Mundo junto ao Antigo, também na terra natal cada um se rebelava contra o outro e
inventava um modo de exprimir sua superioridade e de por entre si e seu vizinho e sua infinitude
pessoal. Cada um conquistava novamente para si a sua terra natal, ao subjugá-la com suas ideias
arquitetônicas e como que transformá-la em pasto para seus olhos. No Norte impressiona a regra e
o gosto geral pela regularidade e a obediência, quando observamos a forma de construção das
cidades: intuímos a propensão a igualar-se e ajustar-se que deve ter dominado a alma dos
construtores. [...] (Nietzsche, [1882] 2012, p. 174-175).
Se a partir de Humano, demasiado humano fica claro que a arte das obras de arte não pode ser o
modelo e nem sequer o ponto de partida para uma nova civilização trágica, também se evidencia
que a arte, assim como se determinou na tradição europeia, tem um caráter ambíguo: nem tudo
dela está destinado a perecer com a desvaloração dos valores supremos; só por isso a arte ainda
tem um peso tão determinante nas obras da matureza de Nietzsche, do Zaratustra às notas
póstumas de A vontade de potência. O fato é que na arte [...] manteve-se vivo um resquício
daquele elemento dionisíaco de cujo renascimento depende o renascer de uma civilização trágica.
(Vattimo, 2010, p. 182)
Após tais considerações, o que se poderá esperar da e para além da arte? A resposta é
seu poder de enriquecimento de saber, visão do futuro, deleite existencial, escape da
racionalidade progressista e da retidão moral. Afora todas as críticas, questões e
enfrentamentos colocador por Nietzsche, fica uma proposta, uma poética à qual se pode
perseguir, a deixar para traz a moral de um mundo progressista enredado pelo império da
lógica formal, que acomete os indivíduos ou os grupos, cotidianamente, a perverter a
existência e o vivido. Tais dimensões engrandecem a crítica geográfica pelas artes na
inúmeras dimensões espacializadas, da música à pintura, à literatura e à arquitetura.
A existência, o vivido e a necessidade do erro
Poderíamos renunciar à arte, mas não perderíamos a capacidade que com ela aprendemos: assim
como pudemos renunciar à religião, mas não às intensidades e elevações do ânimo adquiridas por
meio dela. Tal como as artes plásticas e a música são a medida da riqueza de sentimentos
realmente adquirida e aumentada através da religião, depois que a arte desaparecesse a intensidade
e multiplicidade da alegria de vida que ela semeou continuaria a exigir satisfação. O homem
científico é a continuação do homem artístico. (Nietzsche, [1878] 2000, p. 86)
Neste ponto já não há como eludir a resposta à questão de como alguém se torna o que é. E com
isso toco na obra máxima da arte da preservação de si mesmo – do amor de si... Pois admitindo
que a tarefa, a destinação, o destino da tarefa ultrapasse em muito a medida ordinária, nenhum
perigo haveria maior do que perceber-se com essa tarefa. Que alguém se torne o que é pressupõe
que não suspeite sequer remotamente o que é. Desse ponto de vista possuem sentido e valor
próprios até os desacertos da vida, os momentâneos desvios e vias secundárias, os adiamentos, as
“modéstias”, a seriedade desperdiçada em tarefas que ficam além da tarefa. Nisto se manifesta
uma grande prudência, até mesmo a mais alta prudência: quando o nosce te ipsum [conhece-te a ti
mesmo] seria a fórmula para a destruição, esquecer-se, mal entender-se, empequenecer, estreitar,
mediocrizar-se torna-se a própria sensatez. Expresso moralmente: amar o próximo, viver para
outros e outras coisas pode ser a medida protetora para a conservação da mais dura subjetividade.
Este é o caso da exceção em que eu, contra a minha regra, minha convicção, tomo o partido dos
impulsos “desinteressados”: eles aqui trabalham a serviço do amor de si, do cultivo de si.
(Nietzsche, [1888] 2010, p. 25-26).
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Ser autor da própria existência, deter para si os rumos, decisões e ações deste existir é
conhecer-se, amar a si e cuidar de si. Admite-se, deste modo, que não se pode também execrar
toda a contribuição do saber científico, pois suas conquistas podem ser utilizadas a favor da
descoberta e libertação do ser do humano; mas, sem desconsiderá-lo em sua mutabilidade,
falibilidade e criatividade, em sua poesia. Nietzsche se converte em poeta, dominando o saber
mediante a poesia – refuta a prioridade do saber, a adesão a uma representação do real em
nome do saber – a uma ideologia – mas se serve do saber, lembra Henri Lefebvre. “Filósofo,
psicólogo, sociólogo, historiador, Nietzsche não renunciou a nada do saber ou das ciências”.
A poesia é meio a partir do e para o conhecer. A consciência, no universo, não tem nada de
universal, é apenas azar, casualidade, coincidência de circunstancias em um pequeno planeta:
uma conjuntura, uma “enfermidade do ser” – Conhecimento – “animais inteligentes
inventaram o conhecimento – esse foi o momento mais arrogante e mais mentiroso da historia
universal” (Nietzsche, in Lefebvre, [1976], 2010, p. 195).
Observa-se, também, embasamento fundamental da aprendizagem em Nietzsche, ao
afirmar que o erro e a falibilidade são fundamentais ao ser humano. O valor da vida e
característica do homem residem na admissão deste aspecto, que é inerente ao existir e não
em sua exceção ou execração como ocorre, comumente, a partir das religiões ou da ciência.
Em Nietzsche, há o privilégio da linguagem [liberta da sujeição do imperativo de verdade], a
substituição da história-conhecimento pela destruição da verdade, a oposição
reminiscência/reconhecimento ao uso destrutor da realidade (Dosse, 2012). Errar e admitir o
erro nunca foram tão humanos, conforme o próprio Nietzsche.
33. O erro acerca da vida é necessário à vida. — Toda crença no valor e na dignidade da vida se
baseia num pensar inexato; é possível somente porque a empatia com a vida e o sofrimento
universais da humanidade é pouco desenvolvida no indivíduo. Mesmo os homens raros, cujo
pensamento vai além de si mesmos, não lançam os olhos a essa vida universal, mas somente a
partes limitadas dela. Quem sabe ter em mira sobretudo as exceções, quero dizer,os talentos
superiores e as almas puras, quem toma o seu surgimento como objetivo de toda a evolução do
mundo e se alegra com o seu agir, pode acreditar no valor da vida, porque não enxerga os outros
homens: portanto, pensa inexatamente. Do mesmo modo quem considera todos os homens, mas
neles admite apenas um gênero de impulsos, os menos egoístas, desculpando os homens no que
toca aos outros impulsos: pode também esperar alguma coisa da humanidade como um todo, e
assim acreditar no valor da vida (Nietzsche, [1878] 2000, p. 25).
A atenção dada por Nietzsche ao erro e seu papel na inventividade do ser humano é
algo a ser ressaltado. Conforme o autor, o conhecimento puro, aquele presente nas bases da
conformação moderna da ciência e da filosofia, por reduzir o erro a algo a ser categorizado
como o mau e evitável, acabou por limitar imensamente as representações do mundo. E, mais
do que isso, ao erigir um mundo representacional (que pelas palavras do filósofo, possuem o
erro como fundamento), abre-se o caminho para a negação deste mundo, de forma a
aperfeiçoá-lo, compreendê-lo, buscar sua riqueza e sua significância.
O erro tornou o homem profundo, delicado e inventivo a ponto de fazer brotar as religiões e as
artes. O puro conhecimento teria sido incapaz disso. Quem nos desvendasse a essência do mundo,
nos causaria a todos a mais incômoda desilusão. Não é o mundo como coisa em si, mas o mundo
como representação (como erro) que é tão rico em significado, tão profundo, maravilhoso,
portador de felicidade e infelicidade. Essa conclusão leva a uma filosofia da negação lógica do
mundo: que, aliás, pode se unir tão bem a uma afirmação prática do mundo quanto a seu oposto.
(Nietzsche, [1878] 2000, p. 24)
Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem número de sistemas
solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o
minuto mais soberbo e mais mentiroso da “história universal”: mas também foi somente um
minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram
de morrer. – Assim poderia alguém inventar uma fábula e nem por isso teria ilustrado
suficientemente quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz, quão sem finalidade e gratuito fica
o intelecto humano dentro da natureza. Houve eternidades, em que ele não estava: quando de novo
ele tiver passado, nada terá acontecido. Pois não há para aquele intelecto nenhuma missão mais
vasta, que conduzisse além da vida humana. Ao contrário, ele é humano, e somente seu possuidor
e genitor o toma tão pateticamente, como se os gonzos do mundo girassem nele. Mas se
pudéssemos entender-nos com a mosca, perceberíamos então que também ela boia no ar com esse
páthos e sente em si o centro voante deste mundo. Não há nada tão desprezível e mesquinho na
natureza que, com um pequeno sopro daquela força do conhecimento, não transbordasse logo
como um odre; e como todo transportador de carga quer seu admirador, mesmo o mais orgulhoso
dos homens, o filósofo, pensa ver por todos os lados os olhos do universo telescopicamente em
mira sobre seu agir e pensar. (Nietzsche, [1878] 2009, p. 530-531).
O novo aprendizado se configura como esta coragem, vontade e potência para com
este mundo e suas estruturas, seus ídolos e dogmas. Mas, se no decurso de tais metas o saber
científico é requerido, obviamente, de igual modo é preciso exercer o auto-questionamento
com este poderio do saber, para que os novos representantes da cultura do homem artístico e
do homo poeta não tomem como verdades resolutas ou mesmo sumamente necessárias as
conquistas da razão ideária do progresso. O direcionamento da crítica é necessário, até mesmo
quando não mais houver obstáculos racionais, técnicos ou morais contra os quais lutar, pois
sobrará o si para consigo, em contínua busca pelo crescimento e compreensão de seu ser.
20. Recuando alguns degraus. – Um grau certamente elevado de educação é atingido, quando o
homem vai além de conceitos e temores supersticiosos e religiosos, deixando de acreditar em
amáveis anjinhos e no pecado original, por exemplo, ou não mais se referindo à salvação das
almas: neste grau de libertação ele deve ainda, com um supremo esforço de reflexão, superar a
metafísica. Então se faz necessário, porém, um movimento para trás: em tais representações ele
tem de compreender a justificação histórica e igualmente a psicológica, tem de reconhecer como se
originou delas o maior avanço da humanidade, e como sem este movimento para trás nos
privaríamos do melhor que a humanidade produziu até hoje. – No tocante à metafísica filosófica,
vejo cada vez mais homens que alcançaram o alvo negativo (de que toda a metafísica positiva é
um erro), mas ainda poucos que se movem alguns degraus para trás; pois devemos olhar a partir do
último degrau da escada, mas não querer ficar sobre ele. Os mais esclarecidos chegam somente ao
ponto de se libertar da metafísica e lançar-lhe um olhar de superioridade; ao passo que aqui
também, como no hipódromo, é necessário virar no final da pista (Nietzsche, [1878] 2000, p. 30).
O ponto de viragem para todas estas questões é o olhar para a ciência e para a vida de
forma diferente, sempre tendo a arte como fiel da balança, onde se deve ver a ciência com a
ótica do artista, mas a arte, com a da vida, como sugere o próprio Nietzsche. O momento de
estabelecimento destas condições será aquele em que o viver encontrará ou reencontrará o seu
sentido, caracterizado não por seu aspecto absoluto, mas por sua imensurável e criativa
incompletude, rompendo corajosa e atrevidamente com as imposições morais e racionais do
mundo.
Toda essa metafísica do artista pode-se denominar arbitrária, ociosa, fantástica – o essencial nisso
é que ela já denuncia um espírito que um dia, qualquer que seja o perigo, se porá contra a
interpretação e a “significação morais da existência”. Aqui se anuncia, quiçá pela primeira vez, um
pessimismo “além do bem e do mal”, aqui recebe palavra e fórmula aquela “perversividade no
modo de pensar”, contra a qual Schopenhauer não se cansa de arremessar de antemão as suas mais
furiosas maldições e relâmpagos – uma filosofia que ousa colocar, rebaixar a própria moral ao
mundo da aparência e não apenas entre as “aparências” ou fenômenos (na acepção do terminus
technicus idealista), mas entre os “enganos”, como aparência, ilusão, erro, interpretação,
acomodamento, arte. [...] Entende-se em que tarefa ousei tocar já com este livro?... Quanto
lamento agora que não tivesse então a coragem (ou a imodéstia) de permitir-me, em todos os
sentidos, também uma linguagem própria para intuições e atrevimentos tão próprios (Nietzsche,
[1872] 1992, p. 19-20).
Referências
LEFEBVRE, Henri. Hegel, Marx, Nietzsche o el reino de las sombras. 12ª Ed. Trad. Mauro
Armiño. Madrid: Siglo XXI Editores, 2010.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Aurora. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Editora
Escala, 2013.
___________. Além do Bem e do Mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.
____________. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2010.
___________. Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2012.
____________. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
VATTIMO, Gianni. Diálogo com Nietzsche: ensaios 1961-2000. Trad. Silvana Cobucci. São
Paulo: Martins Fontes, 2010.