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DA ARTE, DO VIVIDO E DO PROGRESSO EM NIETZSCHE:

ENSAIO GEOFILOSÓFICO

Everaldo Batista da Costa


Docente do Depto. de Geografia da Universidade de Brasília, UnB.
everaldocosta@unb.br

Gilvan Cerqueira de Araújo


Discente de Pós-Graduação da Universidade Estadual Paulista, UNESP.
gcca99@gmail.com

Resumo:
A queda do homem moderno: esta foi a matriz da filosofia nietzschiana, a circular por temas
singulares de fortalecimento desta premissa (a moral, a razão, a ciência, a família, o progresso etc).
Nos meandros de uma densa obra, é possível encontrar uma via, senão para a redenção, ao menos para
uma redescoberta do sentido de existência do humano pela arte, poesia e criatividade inerentes ao ser.
Acrescer o espaço nesta via é o ponto de inflexão ao qual se encaixa o presente ensaio, ao buscar, pela
lente geográfica, uma leitura e grafia de um mundo no qual a arte poética o signifique e singularize,
contrapondo-se ao mito do progresso e à retitude racional. Para a composição dos argumentos e
análises presentes neste texto, houve um resgate específico das obras do alemão Friedrich Nietzsche,
em conjunto com colaborações mediatas e correlatas de outros autores, de forma a complementar o
debate geofilosófico posto. Por fim, espera-se com este trabalho elevar a questão do vivido, da arte, da
atitude e postura poética frente à ideia de progresso correlacionada à espacialidade do ser, enquanto
fomento dialético para novos horizontes de compreensão da totalidade como fundamento da realidade.
Palavras-chave: Niezscthe. Arte. Vivido. Progresso. Geofilosofia.

Introdução

Friedrich Nietzsche conseguiu apresentar, incomparavelmente, a angústia do homem


moderno diante da ‘morte de Deus’. A tragédia do verdadeiro e o esfacelamento da bondade
ganham potência quando valores supremos perderam o direito de dirigir a existência e o
homem ficou sozinho com a vida; enquanto o sentimento de vazio aumenta, multiplicam-se
comportamentos inebriantes para escapar à noite de um mundo sem valor, ao abismo das
relativas faltas de objetivo e de sentido (Lipovestsky; Serroy, 2011).
O filósofo aprofunda em temas sugestivos à revisita, inclusive, dos princípios
geográficos. Aborda a moral e a transgressão dos valores, o que rebate no sentido de
progresso; trata a arte na constituição (ou libertação) do ser do homem, favorecedora da
denúncia às contradições da vida espacial; visa às antinomias do pensamento filosófico e sua
relação com a racionalidade, estimulante ao questionamento dos princípios categoriais
disciplinares; questiona as formas de problematização da produção de consciências, em seu
desvelamento do mundo, as quais se refletem, pode-se entender, no próprio modo de fazer
Geografia, dentre outros.
São inegáveis a riqueza e a abrangência das problematizações inerentes ao pensamento
de Nietzsche, cujo vanguardismo suscita profundos trabalhos de debate e releitura em
diferentes campos do saber. Por isso, evidencia-se aqui um recorte analítico que pretende, a
partir de Humano demasiado humano, Aurora, Gaia Ciência e Ecce Homo, especialmente,
apreender, de um ângulo geográfico advindo dos próprios autores deste ensaio, a discussão
acerca da arte ou da estética nietzschiana e a relação entre racionalidade, saber e existência
entrelaçados com a criatividade e o poético do ser humano.
Argumento justificativo central da análise indicada refere-se ao potencial
inquestionável da arte, em suas distintas e divergentes linguagens, para o questionamento e o
reposicionamento da existência, contra ou a favor do mundo da instrumentação, da
modernização, da coerção e da alienação desmedidas.

A moralidade, o saber e o progresso

A influência de Arthur Schopenhauer na filosofia de Nietzsche leva-o à defesa da


vontade de potência como via de acesso à expressão verdadeira das sensações, interpretações
e interações com o mundo. Enaltece um protesto contra a teologia oficializada da Igreja,
contra o poder real absoluto, baseado na razão do Estado e no saber. É bom dizer, Nietzsche
vê o amor próprio como ambição - a vontade pelo poder, denunciando-o até suas raízes
(Lefebvre, [1976], 2010). Tal vontade é a fonte de uma força atuante, da qual eclodem,
frutífera e proficuamente, as paixões e os desejos em contínuo embate com o arcabouço moral
que roga sobre as sociedades seus dogmas, verdades e fronteiras de questionamento. Na
dimensão nietzschiana, o real pode corresponder aos desejos e aos impulsos que, em relação,
levam ao pensar, o qual se corresponde com a natureza e as funções orgânicas e inorgânicas.
Nessa acepção, o imediatamente dado favorece a compreensão do mundo material-mecânico,
enquanto forma mais primitiva do mundo dos afetos – ilumina-se um mundo que é feito de
conexões – o que é tão caro ao pensamento geográfico.

Supondo que nada seja “dado” como real, exceto nosso mundo de desejos, e que não possamos
descer ou subir a nenhuma outra “realidade”, exceto à realidade de nossos impulsos – pois pensar é
apenas a relação desses impulsos entre si –: não é lícito fazer a tentativa e colocar a questão de se
isso que é dado não bastaria para compreender, a partir do que lhe é igual, também o chamado
mundo mecânico (ou “material”)? Quero dizer, não como uma ilusão, uma “aparência”, uma
“representação” (no sentido de Berkeley e Schopenhauer), mas como da mesma ordem de
realidade que têm nossos afetos – como uma forma mais primitiva do mundo dos afetos, na qual
ainda esteja encerrado em poderosa unidade tudo o que então se ramifica e se configura no
processo orgânico (e também se atenua e se debilita, como é razoável), como uma espécie de vida
instintiva, em que todas as funções orgânicas, com auto-regulação, assimilação, nutrição,
eliminação, metabolismo, se acham sinteticamente ligadas umas às outras – como uma forma
prévia da vida? – Afinal, não é apenas lícito fazer essa tentativa: é algo imposto pela consciência
do método. (Nietzsche, [1886] 2004, p. 42).

Nota-se que, sem abrir mão da crítica aos seus mestres de influência e fundamentos,
Nietzsche utiliza, por exemplo, o embasamento schopenhauriano da distinção do mundo como
vontade de representação para compor seu entendimento sobre a realidade objetiva, no que
tange à sua afetação sígnica e de juízo por parte da moralidade: “Não existem fenômenos
morais, apenas uma interpretação moral dos fenômenos” (Nietzsche, [1886] 2004, p. 73). Para
o filósofo é clara a distinção entre a fenomenicidade do mundo e o olhar que se volta para esta
fenomenicidade, já imbuída de filtros e arbítrios morais mais diversos, algo já presente no pai
do pessimismo alemão, mas, tendo como referência os desígnios da vontade, e não
necessariamente extratos éticos e morais da sociedade para a composição das representações,
como é feito por Nietzsche. Coloca em situação as barbáries da civilização, os genocídios, as
violências infinitas, as guerras mais vorazes frente a um saber acumulativo, iluminado e
vangloriado das técnicas. O autor ataca, frontalmente, concepções filosóficas e científicas de
Estado (absolutamente divino) e de humanidade (material, histórica, apropriativa da natureza),
respectivamente Hegel e Marx, por considerar sua sustentação de hipóteses como teológicas.
“Agora bem, Deus está morto”. Em Nietzsche, a história é um caos de azares, de vontades, de
determinismos, diz Henri Lefebvre.
Portanto, não é de surpreender que a filosofia nietzschiana, ao longo de seu
desenvolvimento, lança como referência recorrente a dualidade entre o arcabouço da
moralidade e sua superação. A partir da crítica à moralidade, mote inicial de obras como
Genealogia da Moral e A Origem da Tragédia, seus caminhos se expandem à análise da
própria racionalidade. Alinha o questionamento do pensamento racional com a “retitude” dos
juízos, a negar a teologia oficial [Igreja] e o poder real absoluto [razão do Estado e o saber].
A figura dos deuses gregos, frequentemente utilizadas por Nietzsche, é a deixa para a
visualização de seu pensamento dualístico. De um lado, há o apolínico, símbolo da
razionabilidade, da padronização moral e do absoluto das metateorias da modernidade; de
outro, encontra-se o dionísico, na defesa ao hedonismo, à mudança, é a superação e a
transvalorização dos valores, numa redescoberta de si (conforme roga os aforismos, por
exemplo, de Assim Falava Zaratustra e Ecce Homo), na dialética da arte e da poesia como
expressões máximas do ser. Os padrões morais são duramente criticados pelo autor, que afere
a si e projeta como caminho o movimento, o devir, a contrariedade e a negação de tais
paradigmas enquanto essência do ser humano.

Não sou, por exemplo, um espantalho, um monstro moral – sou antes uma natureza contrária à
espécie de homens que, até agora, se veneraram como virtuosos. Aqui só para nós, parece-me que
isto se ajusta precisamente ao meu orgulho. Sou um discípulo do filósofo Dionísio, prefiro ser um
sátiro a ser um santo. Leia-se, porém, apenas este escrito. Coube-me talvez, e porventura este
escrito não terá outro sentido, expressar este contraste de um modo sereno e humanitário. A última
coisa que eu prometeria seria «melhorar» a humanidade. Não serão por mim erigidos novos ídolos;
os antigos podem elucidar-nos sobre o que assenta em pés de barro! Derrubar ídolos – eis o que já
constitui o meu ofício. Subtraiu-se à realidade o seu valor, o seu sentido, a sua veracidade, na
medida em que se inventou um mundo ideal... O «mundo verdadeiro» e o «mundo aparente» – em
vernáculo: o mundo fictício e a realidade... A mentira do ideal foi, até agora, o anátema sobre a
realidade, a própria humanidade foi por ela falsificada e viciada até aos seus mais profundos
instintos – até à adoração dos valores contrários àqueles com que lhe estaria garantida a
prosperidade, o futuro, o sublime direito ao futuro. (Nietzsche, [1888] 2010, p. 13)

Este recorte de Ecce Homo evidencia, claramente, uma negação aos pilares da
modernidade: a flecha do tempo linear da prosperidade; o velamento da realidade pela
moralidade, na composição de um mundo ideal passível de enfretamento e destruição; a
adoração aos ídolos (seja no entendimento destes como homens da ciência, da religião ou da
filosofia). Concretamente, Nietzsche nega o produzir para destruir, fazer filhos para a guerra,
acumular saber para dominar os povos, critica tais signos da razão ou absurdos na Alemanha;
dessacraliza e refuta a fusão do saber e do poder anunciados por Hegel; a destruição da
natureza aparece como resultado da vontade de poder, com todo seu horror, e não sua negação
(Lefebvre, [1976], 2010). Tais pressupostos alimentam e exigem da Geografia realinhamento
de princípios frente à natureza concreta-abstrata, a incorporar a ideia de utopias necessárias à
práxis da vida espacial, a questionar os ideais propalados de saber e de progresso. Logo, a
arte e a poesia, tomadas a partir do espaço, podem ser potenciais objetos de subversão da
realidade e dos ideais hegemônicos reverberados. As denúncias prosseguem ao longo do
século XX, como na Escola de Frankfurt e outras voltadas à crítica da sociedade moderna,
para as quais a razão foi capaz: de propiciar enxurradas de informações precisas e diversões
assépticas, a idiotizar as pessoas; de servir os indivíduos com milhares de máquinas fazendo-
os desaparecer diante delas; de reduzir o esclarecimento à ideologia. “O esclarecimento
consiste aí, sobretudo, no cálculo da eficácia e na técnica de produção e difusão” (Adorno;
Horkheimer, [1944] 1985, p. 15)
O mundo ideal, criado pela moralidade e pela racionalidade, são os alvos da crítica,
pois “inventam” uma mundaneidade apartada do imaginativo, da poesia, da criatividade e dos
sentimentos, seja julgando-os (moral), seja anulando-os (ciência, razão), em um processo de
castração histórica da humanidade humana. Por estes motivos, a arte representada no papel
dos poetas, é a transgressão dos saberes e da moral: “Os poetas não têm pudor em relação às
próprias experiências: eles as exploram” (Nietzsche, [1886] 2004, p. 81).
A arte, em suas distoantes linguagem [música, poesia, arquitetura, pinturas etc.]
emerge como pathos (do grego πάθος) a ser perseguido. Na consumação de estilos, de visões
a ultrapassar o momento da própria arte, há não apenas a criação de algo novo, mas superação
de padrões morais e da ambição neutralizantes solidificados no pensamento racional,
científico e filosófico. Radicalmente, Nietzsche, ao negar a existência de um mundo
verdadeiro, do mundo aparente como verdade e a própria verdade, assegura que esta última
não é outra coisa que a conformidade de discursos a certas regras universalmente aceitas em
um dado mundo, onde a linguagem é a esfera média livremente poetante e criadora
(Nietzsche, in Vattimo, 2010).

Vou ainda dizer, ao mesmo tempo, uma palavra muito geral sobre a minha arte do estilo.
Comunicar um estado, uma tensão interna do pathos mediante signos, e inclusive o ritmo de tais
signos – eis o sentido de todo o estilo; e considerando que a multiplicidade dos estados interiores é
em mim extraordinária, há em mim muitas possibilidades de estilo – a mais multifária arte do
estilo em geral, de que alguma vez um homem dispôs. É bom todo o estilo que comunica
realmente um estado interno, que não se engana acerca dos signos, a propósito do ritmo dos
signos, acerca dos gestos – todas as leis do período são arte dos gestos. O meu instinto é aqui
infalível – O estilo bom em si – é uma pura loucura, simples «idealismo», algo como o «belo em
si», como o «bom em si», como a «coisa em si». (Nietzsche, [1888] 2010, p. 42).

O novo [chamado por Nietzsche de constituição de pathos] é o que fica ao encargo do


homo poeta, pois este, ao se colocar à frente de sua época, por sua leitura singular, ampliada e
inventiva da realidade, nem sempre é visto com bons olhos pelos sacerdotes do presente,
sejam eles membros dos círculos científicos, filosóficos e também artísticos ou poéticos: “[...]
o novo é, em todas as circunstâncias, o mau, aquilo que deseja conquistar, lançar por terra as
antigas marcas de fronteiras e a velhas piedades; e somente o antigo é bom!”. Continua o
autor, no reforço à natureza temporal da cultura, do saber e da moral, a dizer que “os homens
bons de cada época são os que cavam fundo nos velhos pensamentos e os fazem dar frutos, os
lavradores do espírito. Mas todo terreno se esgota enfim, e o arado do mal precisa sempre
retornar” (Nietzsche, [1882] 2012, p. 56). Depreende-se dessa visão que o novo rejeitado
pelos sacerdotes do presente é referido ao que se apresenta como subversivo, no caso, as
expressões ou linguagens de libertação ou de desalienação por meio da arte; o antigo a ser
resgatado e mantido por ser bom são os mecanismos de dominação completa da natureza
humana-natural, resultantes da moral rejeitada por Nietzsche. Essa mesma crítica tem
contornos menos áridos em Adorno; Horkheimer ([1944] 1985, p. 18), para os quais “o
casamento feliz entre o entendimento humano e a natureza das coisas que ele tem em mente é
patriarcal. O entendimento que vence a superstição deve imperar sobre a natureza
desencantada. O saber que é poder não conhece barreira alguma, nem na escravidão da
criatura, nem na complacência em face dos senhores do mundo”. A arte nova subleva-se,
prática e dialeticamente, como ópio liberativo do povo e frutificação da realidade da razão.
Na classificação do antigo ou atrasado como o mau e o evitável, ganha força a ideia do
eterno retorno, já que para aqueles que estão no presente, o passado está sob o seu julgo e
arbítrio, não só do tempo que se foi, mas daqueles que o defender e representar: “Sim, estando
a vida organizada num Estado perfeito, o presente já não forneceria motivo algum para a
poesia, e somente homens atrasados quereriam a irrealidade poética”. Mas, de todo modo,
sempre há e haverá o sentimento nostálgico e saudosista, não apenas dos poetas, mas também
dos cientistas e filósofos, pensadores em geral, no que diz respeito ao mundo contemporâneo,
na continuidade do ciclo da negação e da reificação do espaço-tempo, das temporalidades.
“Em todo caso, eles olhariam saudosamente para trás, para os tempos do Estado imperfeito,
da sociedade semibárbara, para os nossos tempos.” (Nietzsche, [1878] 2000, p. 95). Logo, o
eterno retorno nietzschiano é a indagação da reprodução do passado, a repetição absoluta do
absoluto da repetição, azar e necessidade congratulados; é o ato de nomear, dar sentidos
novos e valorar as coisas para falar delas, com retornos frequentes sobre os originais, a
oferecer uma gênese do sujeito e sua relação com o sentido; são os povos que inventam os
sentidos e não os Estados, nem as nações, nem as classes; não é o saber nem a política que
dão sentido e valor às coisas, mas as pessoas (Lefebvre, [1976] 2010).
Talvez por estas razões Nietzsche adote um posicionamento demolidor da ideia de
progresso, adjetivado como desespero, ante a ânsia do novo matematizado e sistêmico, do
correto, do absoluto e do imutável, que leva a humanidade a um estado de insegurança em
relação ao seu mundo e a si própria. O retorno ao antigo para fazer um novo artístico em
deleites nostálgicos e angustiantes, além de poder ser utilizado com certa frequência nas
expressões poéticas para novos olhares, denuncia com maior vigor o niilismo do progresso, já
que a trilha em direção ao futuro irá continuar seu intento.

248. Consolo de um progresso desesperado. — Nosso tempo dá a impressão de um estado


interino; as antigas concepções do mundo, as antigas culturas ainda existem parcialmente, as novas
não são ainda seguras e habituais, e portanto não possuem coesão e coerência. É como se tudo se
tornasse caótico, o antigo se perdesse, o novo nada valesse e ficasse cada vez mais frágil. Mas
assim ocorre com o soldado que aprende a marchar: por algum tempo ele é mais inseguro e mais
desajeitado do que antes, porque seus músculos são movidos ora pelo velho sistema ora pelo novo,
e nenhum deles pode declarar vitória. Nós vacilamos, mas é preciso não se inquietar por causa
disso, e não abandonar as novas aquisições. Além disso, não podemos mais voltar ao antigo, já
queimamos o barco; só nos resta ser corajosos, aconteça o que acontecer. — Apenas andemos,
apenas saiamos do lugar! Talvez nossos gestos apareçam um dia como progresso; se não, que nos
digam as palavras de Frederico, o Grande, a título de consolo: Ah, mon cher Sulzer, vous ne
connaissez pasassez cette race maudite, à laquelle nous appartenons [Ah, meu caro Sulzer, você
não conhece o bastante essa raça maldita à qual pertencemos]. (Nietzsche, [1878] 2000, p. 100)

A crítica segue sobre o progresso da ciência, a racionalidade e o bem da humanidade:


“517. Percepção fundamental. — Não há harmonia preestabelecida entre o progresso da
verdade e o bem da humanidade.” (Nietzsche, [1878] 2000, p. 155). E não apenas o progresso
e a evolução das técnicas e das tecnologias são os alvos da crítica, também os retóricos e
difusores da verdade absoluta do saber racional são demolidos. “E, assim como uma tirania
da verdade e da ciência poderia elevar bastante o preço da mentira, uma tirania da inteligência
seria capaz de gerar um novo tipo de nobreza. Ser nobre talvez significasse, então, cogitar
tolices.” (Nietzsche, [1882] 2012, p. 67). Para o autor, quem condena a sociedade burguesa
em nome da justiça, da caridade e da verdade, não vai muito longe; para evitar erros, fala
pouco do capitalismo e da burguesia, desprezando-os e condena-os globalmente, sem pensar
que haja neles objeto digno de interesse; também porque os engloba no judeocristianismo
(Lefebvre, [1976] 2010).
O ponto propositivo da filosofia de Nietzsche em convergência com intencionalidade
maior deste trabalho é a de uma nova cultura, o pathos a partir do qual a arte [a poesia,
especialmente] é reintegrada ao ser humano, na constituição de sua felicidade perante o
mundo que habita. Esta é a visão do novo, aquilo por que lutar no enfrentamento das amarras
morais e do progresso niilista; um novo proposto pelo espaço interpretado e denunciado arte,
reciprocamente. “433. Ver com novos olhos: Admitindo que por beleza na arte se entende
sempre a configuração do homem feliz — e eu acho que é verdade — segundo a idéia que
uma época, um povo, um grande indivíduo que fixa suas leis por si mesmo, têm de um
homem feliz” (Nietzsche, [1881] 2013, p. 362)
E como um intermezzo desta passagem, cabe lembrar dos usos terminológicos de
Nietzsche e Schopenhauer, numa releitura do posicionamento do segundo pelos olhos do
primeiro, quando ambos apoiam a beleza e a liberdade do irracional (a vontade, o desejo e a
criatividade e sua potência) no mundo e suas representações, especificamente contra o
utilitarismo exacerbado da ciência e do pensamento racional e no alcance de uma nova moral,
para além do juízo. “A bela e selvagem irracionalidade da poesia refuta-os, a vocês,
utilitaristas! Precisamos querer desvencilhar da utilidade alguma vez – isso elevou o ser
humano, isso o inspirou para a moral e a arte” (Nietzsche, [1882] 2012, p. 104).
O argumento central deste item em diálogo com o seguinte é o de que a arte
[linguagens poética e, proeminentemente, musical] aparece em Nietzsche como objeto de
cataclismo civilizacional, ou seja, possibilidade reconstitutiva de um novo ser para uma
humanidade em esfacelamento, objeto contra as ideias de verdade, de clareza, de ordem e de
simplicidade, todas expressões de falsidades para o domínio humano. Para o filósofo, não há
vontade mais que na vida, mas essa vontade não se restringe ao querer viver, de fato é
vontade de dominar, fábula concreta que remete à concepção pretérita e atual de progresso.
“É isso que a vida me revela pouco a pouco, o que me permite, oh Sábios, resolver o enigma
de vossos corações” (Nietzsche, in Lefebvre, [1976] 2010, p. 198). O progresso, nessa
concepção, se faria sobre as bases do irracional reproduzido no cotidiano, a confrontar a
lógica formal da grande escola da unificação, onde esclarecedores (cientistas e filósofos)
apresentam o esquema genérico e incorporado da calculabilidade racional do mundo. A arte é
apresentada como resistência à lógica que se consolida na história, na qual os números
tornam-se os cânones do esclarecimento [tema aprofundado em Adorno e Horkheimer] e a
vida é regida pela moral moderna, a que Nietzsche recusa pertencer, ao ponto de fazer uma
operação intelectual de cobrança desse mundo ou meditação sobre a cultura e mentalidade
ocidentais.

A arte e o homo poeta

Para Friedrich Nietzsche, a arte não é apenas uma expressão de linguagem, uma
manifestação de códigos por talento ou treinamento, mas uma via de transcendência do
existir, na composição de um modo de vida e no alcance do homo poeta, que é sobrevalorado
em relação aos deuses e à moral, numa reinvenção tragicômica da vida. A arte é, para o
filósofo, potência autônoma da aparência, por deslocar o indivíduo dos limites de sua
condição de realidade; é negação da divisão de papéis sociais, uma violação da existência
como algo dado (mas aquilo que é) permanentemente em mutação.

153 Homo poeta – Eu mesmo, que fiz inteiramente só essa tragédia das tragédias, até onde ela
possa estar pronta; eu, que primeiramente ateei o nó da moral na existência, e depois o apertei de
forma tal que somente um deus o poderá desatar – como exige Horácio –, que próprio matei agora
todos os deuses no quarto ato – por moralidade! Que será agora do quinto ato? De onde tirarei a
solução trágica? – Devo começar a imaginar uma solução cômica? (Nietzsche, [1882] 2012, p.
149)

Para se chegar ao homo poeta, Nietzsche elenca algumas prerrogativas conceituais,


filosóficas, existenciais e de prática cotidiana fundamental para a conclusão deste ciclo de
transformação do ser humano. Veja-se, por exemplo, o que o autor diz sobre o que se pode
aprender com as artes, principalmente na maneira de direcionar e afetar o mundo pelo olhar,
finalizando com a conceituação sobre os poetas-autores, aqueles cuja vida estaria enredada e
des-coberta pelo ser artístico.
299. O que devemos aprender com os artistas – De que meios dispomos para tornar as coisas
belas, atraentes, desejáveis para nós, quando elas não são? – e eu acho que em si elas nunca o são!
[...] Afastarmo-nos das coisas até que não mais vejamos muita coisa deles e nosso olhar tenha de
lhes juntar muita coisa para vê-las ainda – ou ver as coisas de soslaio e como que em recorte – ou
dispô-las de forma tal que elas encubram parcialmente umas às outras e permitam somente
vislumbres em perspectivas – ou contemplá-las por um vidro colorido ou à luz do poente – ou
dotá-las de pele e superfície que não seja transparente: tudo isso devemos aprender com os artistas,
e no restante ser mais sábios do que eles. Pois neles esta sutil capacidade termina, normalmente,
onde termina a arte e começa a vida; nós, no entanto, queremos ser os poetas-autores de novas
vidas, principiando pelas coisas mínimas e cotidianas. (Nietzsche, [1882] 2012, p. 179-180).

Também ilumina o caráter do olhar para o futuro, característico das artes, e que pode
ser incorporado à essência do humano, engrandecendo-o, maturando-o e libertando-o: “241. A
obra e o artista – Esse artista é ambicioso e nada mais: afinal sua obra não passa de uma lente
de aumento que ele oferece a todos os que olham em sua direção.” (Nietzsche, [1882] 2012, p.
161). O artista, neste caso, é o poeta-autor, que é o homo poeta em seu devir, vivendo sua vida
pela arte, de modo a engendrar sua ecceidade pelas singularidades artísticas. E por tudo isso,
Nietzsche agradece às artes, à poesia, por libertar o ser humano da retidão da moral e da
ciência: eis o demasiado humano, o qual reside no corpo. Esse corpo rico no desconhecido e
em virtualidades desprega alguns de seus poderes na arte; o olho e o olhar sobre a pintura, o
tato na escultura e o ouvido na música, a palavra na linguagem e na poesia; quando a
conjuntura é favorável, o corpo total se afirma no teatro e na arquitetura, na música e na dança
(Lefebvre, [1976] 2010).

107. Nossa derradeira gratidão para com a arte – Se não tivéssemos aprovado as artes e
inventado essa espécie de culto do não verdadeiro, a percepção da inverdade e mendacidade geral,
que agora nos é dada pela ciência – da ilusão e do erro como condições da existência cognoscente
e sensível –, seria intolerável para nós. A retidão teria por consequência a náusea e o suicídio. Mas
agora, a retidão tem uma força contrária, que nos ajuda a evitar consequências tais: a arte, como a
boa vontade de aparência. [...] Como fenômeno estético a existência ainda nos é suportável, e por
meio da arte nos são dados olhos e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós
mesmos um tal fenômeno. (Nietzsche, [1882] 2012, p. 124).

A importância da arte na filosofia nietzschiana está em seu poder para a projeção ao


futuro, ao novo, à negação e à superação. A obra em que o elogio da arte e do artista mais
reincide é A Gaia Ciência, em aforismos como 241, 291 e 367, nos quais, respectivamente,
aparece: o papel do olhar artístico; o lugar do seu poderio sígnico nas assinaturas
arquitetônicas das culturas citadinas; e as derivações das manifestações artísticas, como a
música, a escultura, a prosa e a poesia.

367. A primeira distinção a fazer quanto às obras de arte – tudo o que é pensamento, poesia,
pintura, composição, e mesmo construção e escultura, pertence à arte monológica ou à arte de
testemunhas. [...] Não conheço mais profunda diferença na ótica geral de um artista do que esta: se
ele olha para sua obra de arte em formação (para “si”) como olhar da testemunha ou se “esqueceu
do mundo”: o que constitui o essencial de toda arte monológica – ela se baseia no esquecimento,
ela é a música do esquecimento. (Nietzsche, [1882] 2012, p. 242).

Estas manifestações artísticas darão os contornos e a essência da singularização da


própria totalidade do ser humano, em sua morada, idioma, objetos criativos, acontecimentos
históricos, lugares, etc. Não por acaso, o autor faz uso de um exemplo expressivo para a
demonstração desta máxima, a descrever de maneira peculiar os elementos artísticos da
cidade de Gênova, na qual, por meio da confluência dos sentidos isolados, se ilumina uma
identidade da própria cidade, dos seus habitantes, ruas, casas, e elementos constituintes de sua
paisagem:

Toda essa região abunda nesse magnífico, insaciável egoísmo da avidez de posse e de pressa; e, tal
como esses homens não reconheciam fronteiras na distância, instaurando, em sua sede de novo,
um Novo Mundo junto ao Antigo, também na terra natal cada um se rebelava contra o outro e
inventava um modo de exprimir sua superioridade e de por entre si e seu vizinho e sua infinitude
pessoal. Cada um conquistava novamente para si a sua terra natal, ao subjugá-la com suas ideias
arquitetônicas e como que transformá-la em pasto para seus olhos. No Norte impressiona a regra e
o gosto geral pela regularidade e a obediência, quando observamos a forma de construção das
cidades: intuímos a propensão a igualar-se e ajustar-se que deve ter dominado a alma dos
construtores. [...] (Nietzsche, [1882] 2012, p. 174-175).

Gênova é tomada enquanto exemplo da singularidade do ser do humano, pela via de


contornos e especificidades da paisagem; cada indivíduo e a sociedade podem ser vistos,
também, por este indagar que congrega em seu horizonte a riqueza de cada singularidade, a
lógica da particularidade e o sentido da universalidade no e do humano em trânsito. O homo
poeta é entendido no sentido do indivíduo e do coletivo, a libertar não apenas a pessoa em sua
relação unitária com o mundo, mas também luzindo uma rota para o além, uma fronteira da
cultura e do ser social enredado pelo homem artístico.
Hegel, Marx, Nietzsche ou o reino das sombras de Henri Lefebvre [obra pouco
explorada na Geografia] auxilia na síntese do que foi posto até aqui e avança. Para o autor, a
barbárie científica se coloca a serviço do Estado, que a mantem; o poder do Estado, que
utiliza a história como propaganda, a destrói como saber e, portanto, a mantém; a virtude
moral, a honra intelectual alardeadas se invertem, como toda moral, em seu contrário,
hipocrisia e mentira; o saber se autodestrói simulando verdade; a arte rompe essas cadeias, sai
desse círculo maldito (especialmente a música, a poesia, o teatro trágico); mas, o fetichismo
do passado exemplar, monumental, icônico, destrói a capacidade criadora, que ressurge
subversivamente contra as “coisas”, o “real”, o Estado, por meio da própria arte. A arte é o
que resiste e faz resistir, por remeter ao espírito do mundo a ser negado. A dimensão estética
é, para Nietzsche, um modelo que ganha corpo na medida em que amplia sua crítica à
metafísica platônico-cristã e à civilização fundada nesta mesma metafísica.

Se a partir de Humano, demasiado humano fica claro que a arte das obras de arte não pode ser o
modelo e nem sequer o ponto de partida para uma nova civilização trágica, também se evidencia
que a arte, assim como se determinou na tradição europeia, tem um caráter ambíguo: nem tudo
dela está destinado a perecer com a desvaloração dos valores supremos; só por isso a arte ainda
tem um peso tão determinante nas obras da matureza de Nietzsche, do Zaratustra às notas
póstumas de A vontade de potência. O fato é que na arte [...] manteve-se vivo um resquício
daquele elemento dionisíaco de cujo renascimento depende o renascer de uma civilização trágica.
(Vattimo, 2010, p. 182)

Após tais considerações, o que se poderá esperar da e para além da arte? A resposta é
seu poder de enriquecimento de saber, visão do futuro, deleite existencial, escape da
racionalidade progressista e da retidão moral. Afora todas as críticas, questões e
enfrentamentos colocador por Nietzsche, fica uma proposta, uma poética à qual se pode
perseguir, a deixar para traz a moral de um mundo progressista enredado pelo império da
lógica formal, que acomete os indivíduos ou os grupos, cotidianamente, a perverter a
existência e o vivido. Tais dimensões engrandecem a crítica geográfica pelas artes na
inúmeras dimensões espacializadas, da música à pintura, à literatura e à arquitetura.
A existência, o vivido e a necessidade do erro

A existência, enquanto realização e atividade plena da vida, é defendida por Nietzsche,


independentemente de se encontrar em seu estado máximo de expressão criativa no homo
poeta ou mesclada nos enganos das irrealidades do mundo. Portanto, existir é admitir a
falibilidade do humano, seus sentimentos, aspirações e emoções; é garantir o devir e não
cristalizar o mundo em fórmulas ou metateorias [apesar da importância destas últimas no
desenvolvimento da vida prática], quando a evidência de uma proposição representa, na
filosofia nietzschiana, uma perfeita adaptação ao sistema de preconceitos favoráveis à
conservação e desenvolvimento do mundo histórico de pertencimento. “Parece-nos evidente
aquilo que se adapta a esse sistema de preconceitos; assim, a verdade como ‘conformidade (da
proposição ao estado das coisas) adquire um sentido diferente (...) é verdadeira a proposição
que se conforma não antes de tudo ao estado das coisas, mas às regras internas da linguagem
que define o âmbito do nosso mundo” (Vattimo, 2010, p. 58-59).
A partir de erros e acertos nas escolhas ou nas ações é que a humanidade pode
expressar seu devir, a tomar para si a escritura da própria existência através das pulsões de
suas particularidades nas artes. Existir é estar no e para o mundo, é projetar e dar liberdade à
artisticidade do ser, que se singulariza por meio de cada parte da totalidade, para muito além
da religião, da moral e da ciência.
O niilismo existencial acomete o pensamento nietzschiano, de modo que este,
fundamentado no homo poeta, disserta sobre o sentido da vida como sendo a busca pelo novo,
o pathos já mencionado, pois a velhice e a morte são certas. Então, por que não buscar sempre
o novo, o movimento e a reificação para preencher este vácuo? “Que significa viver? – Viver
– é continuamente afastar de si algo que quer morrer; viver – é ser cruel e implacável com
tudo o que em nós, e não apenas em nós, se torna fraco e velho.” (Nietzsche, [1882] 2012, p.
75). Nesse aspecto que se apresentam o homem artístico e o homo poeta como soluções e
caminhos a serem investidos, para dar vazão à significância do viver.
O homo poeta é a extensão máxima desta busca e o seu encontro, quando a autoria do
roteiro da vida de cada um o conduz ao empoderamento das rédeas de decisões e ações da
existência e da história. “[...] Queremos ser os poetas-autores de nossas vidas, principiando
pelas coisas mínimas e cotidianas.” (Nietzsche, [1882] 2012, p. 180). Aprende-se pela arte a
viver e o sentido do vivido, por mais que a racionalidade científica, os manifestos morais ou o
progresso tenham elaborado verdadeiras cartas de regimento do existir; é no aprendizado e na
criatividade que o ser humano se desvela em seu ser artístico, que o diferencia e o define.

Poderíamos renunciar à arte, mas não perderíamos a capacidade que com ela aprendemos: assim
como pudemos renunciar à religião, mas não às intensidades e elevações do ânimo adquiridas por
meio dela. Tal como as artes plásticas e a música são a medida da riqueza de sentimentos
realmente adquirida e aumentada através da religião, depois que a arte desaparecesse a intensidade
e multiplicidade da alegria de vida que ela semeou continuaria a exigir satisfação. O homem
científico é a continuação do homem artístico. (Nietzsche, [1878] 2000, p. 86)

Nietzsche pretende superar o poder, desmantelar as engrenagens da máquina signo do


progresso, por meio da arte e da poesia. O recorte de seu pensamento aqui revelado não se
restringe ao protesto anárquico contra os abusos de poder. Mais que denunciar o ser político
do Estado, aponta para a politização da cultura, do pensamento e da vida; busca abrir as portas
do vivido, fechadas pela politização tendenciosa e deformante do real, na modernidade.
O filósofo alemão resgata as máximas do templo de Delfos como prerrogativa para a
consumação do existir do ser humano, neste caso, com o amor e o cuidado de si. Para reforçar
tal ideia, recorre, novamente, à integração ao vivido e ao seu caráter de desacertar momentos,
verdadeiro significado do existir.

Neste ponto já não há como eludir a resposta à questão de como alguém se torna o que é. E com
isso toco na obra máxima da arte da preservação de si mesmo – do amor de si... Pois admitindo
que a tarefa, a destinação, o destino da tarefa ultrapasse em muito a medida ordinária, nenhum
perigo haveria maior do que perceber-se com essa tarefa. Que alguém se torne o que é pressupõe
que não suspeite sequer remotamente o que é. Desse ponto de vista possuem sentido e valor
próprios até os desacertos da vida, os momentâneos desvios e vias secundárias, os adiamentos, as
“modéstias”, a seriedade desperdiçada em tarefas que ficam além da tarefa. Nisto se manifesta
uma grande prudência, até mesmo a mais alta prudência: quando o nosce te ipsum [conhece-te a ti
mesmo] seria a fórmula para a destruição, esquecer-se, mal entender-se, empequenecer, estreitar,
mediocrizar-se torna-se a própria sensatez. Expresso moralmente: amar o próximo, viver para
outros e outras coisas pode ser a medida protetora para a conservação da mais dura subjetividade.
Este é o caso da exceção em que eu, contra a minha regra, minha convicção, tomo o partido dos
impulsos “desinteressados”: eles aqui trabalham a serviço do amor de si, do cultivo de si.
(Nietzsche, [1888] 2010, p. 25-26).
.
Ser autor da própria existência, deter para si os rumos, decisões e ações deste existir é
conhecer-se, amar a si e cuidar de si. Admite-se, deste modo, que não se pode também execrar
toda a contribuição do saber científico, pois suas conquistas podem ser utilizadas a favor da
descoberta e libertação do ser do humano; mas, sem desconsiderá-lo em sua mutabilidade,
falibilidade e criatividade, em sua poesia. Nietzsche se converte em poeta, dominando o saber
mediante a poesia – refuta a prioridade do saber, a adesão a uma representação do real em
nome do saber – a uma ideologia – mas se serve do saber, lembra Henri Lefebvre. “Filósofo,
psicólogo, sociólogo, historiador, Nietzsche não renunciou a nada do saber ou das ciências”.
A poesia é meio a partir do e para o conhecer. A consciência, no universo, não tem nada de
universal, é apenas azar, casualidade, coincidência de circunstancias em um pequeno planeta:
uma conjuntura, uma “enfermidade do ser” – Conhecimento – “animais inteligentes
inventaram o conhecimento – esse foi o momento mais arrogante e mais mentiroso da historia
universal” (Nietzsche, in Lefebvre, [1976], 2010, p. 195).
Observa-se, também, embasamento fundamental da aprendizagem em Nietzsche, ao
afirmar que o erro e a falibilidade são fundamentais ao ser humano. O valor da vida e
característica do homem residem na admissão deste aspecto, que é inerente ao existir e não
em sua exceção ou execração como ocorre, comumente, a partir das religiões ou da ciência.
Em Nietzsche, há o privilégio da linguagem [liberta da sujeição do imperativo de verdade], a
substituição da história-conhecimento pela destruição da verdade, a oposição
reminiscência/reconhecimento ao uso destrutor da realidade (Dosse, 2012). Errar e admitir o
erro nunca foram tão humanos, conforme o próprio Nietzsche.

33. O erro acerca da vida é necessário à vida. — Toda crença no valor e na dignidade da vida se
baseia num pensar inexato; é possível somente porque a empatia com a vida e o sofrimento
universais da humanidade é pouco desenvolvida no indivíduo. Mesmo os homens raros, cujo
pensamento vai além de si mesmos, não lançam os olhos a essa vida universal, mas somente a
partes limitadas dela. Quem sabe ter em mira sobretudo as exceções, quero dizer,os talentos
superiores e as almas puras, quem toma o seu surgimento como objetivo de toda a evolução do
mundo e se alegra com o seu agir, pode acreditar no valor da vida, porque não enxerga os outros
homens: portanto, pensa inexatamente. Do mesmo modo quem considera todos os homens, mas
neles admite apenas um gênero de impulsos, os menos egoístas, desculpando os homens no que
toca aos outros impulsos: pode também esperar alguma coisa da humanidade como um todo, e
assim acreditar no valor da vida (Nietzsche, [1878] 2000, p. 25).

A atenção dada por Nietzsche ao erro e seu papel na inventividade do ser humano é
algo a ser ressaltado. Conforme o autor, o conhecimento puro, aquele presente nas bases da
conformação moderna da ciência e da filosofia, por reduzir o erro a algo a ser categorizado
como o mau e evitável, acabou por limitar imensamente as representações do mundo. E, mais
do que isso, ao erigir um mundo representacional (que pelas palavras do filósofo, possuem o
erro como fundamento), abre-se o caminho para a negação deste mundo, de forma a
aperfeiçoá-lo, compreendê-lo, buscar sua riqueza e sua significância.

O erro tornou o homem profundo, delicado e inventivo a ponto de fazer brotar as religiões e as
artes. O puro conhecimento teria sido incapaz disso. Quem nos desvendasse a essência do mundo,
nos causaria a todos a mais incômoda desilusão. Não é o mundo como coisa em si, mas o mundo
como representação (como erro) que é tão rico em significado, tão profundo, maravilhoso,
portador de felicidade e infelicidade. Essa conclusão leva a uma filosofia da negação lógica do
mundo: que, aliás, pode se unir tão bem a uma afirmação prática do mundo quanto a seu oposto.
(Nietzsche, [1878] 2000, p. 24)

Como em Humano demasiado humano contem uma crítica implícita às diretrizes


científicas e racionais, manifestadas na valorização do erro para a vida, a imaginação acaba
por ocupar uma interpretação semelhante. Em síntese, indaga-se a importância do
imaginativo, fundamental para a constituição do homo poeta. “São as coisas verdadeiras ou as
coisas imaginárias que mais contribuíram para a felicidade humana? O que é certo é que a
distância existente entre a maior felicidade e a mais profunda infelicidade somente assumiu
toda a sua amplitude com o auxílio das coisas imaginadas.” (Nietzsche, [1881] 2013, p. 33).
Tais considerações sugerem sua influência e interferência no cotidiano. Se o erro e seu
poderio são inerentes à complexidade e profundidade do ser humano, sua completa negação
instaura sempre o imperativo da verdade, ou melhor, de alguma verdade que esteja em
posição de hegemonia perante a existência. Nossas vidas perpassam por esta situação diária e
continuamente, pois para além do saber, a arte é transfigurada e implicada em poder, mesmo
que nem sempre o poder e saber de si. A cultura, a política, a economia e a totalidade da vida
são tomadas por estruturas de ludibriação do mundo. Nietzsche indaga sobre a problemática
da verdade e da cultura:

O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de metáforas, metonímias, antropomorfismos,


enfim, uma soma de relações humanas, que foram enfatizadas poética e retoricamente, transpostas,
enfeitadas, e que, após longo uso, parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as
verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tomaram gastas e sem
força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal,
não mais como moedas. (Nietzsche, [1873] 2009, p. 535).

A razão histórica, aquela à qual é delegado o rumo do futuro, do progresso niilista,


também se coloca como um dos alvos a serem combatidos por este novo pathos, regido pela
valorização do peculiar e dialético, mutável e diverso, com humildade existencial e riqueza
criativa (poética). Passar ao cabo toda a humanidade por um viés homogeizante foi [e ainda é]
uma das principais causas do aumento da crise, pobreza e decrepitude da essência da vida
espacial ou do existir humano.

Em algum remoto rincão do universo cintilante que se derrama em um sem número de sistemas
solares, havia uma vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o conhecimento. Foi o
minuto mais soberbo e mais mentiroso da “história universal”: mas também foi somente um
minuto. Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os animais inteligentes tiveram
de morrer. – Assim poderia alguém inventar uma fábula e nem por isso teria ilustrado
suficientemente quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz, quão sem finalidade e gratuito fica
o intelecto humano dentro da natureza. Houve eternidades, em que ele não estava: quando de novo
ele tiver passado, nada terá acontecido. Pois não há para aquele intelecto nenhuma missão mais
vasta, que conduzisse além da vida humana. Ao contrário, ele é humano, e somente seu possuidor
e genitor o toma tão pateticamente, como se os gonzos do mundo girassem nele. Mas se
pudéssemos entender-nos com a mosca, perceberíamos então que também ela boia no ar com esse
páthos e sente em si o centro voante deste mundo. Não há nada tão desprezível e mesquinho na
natureza que, com um pequeno sopro daquela força do conhecimento, não transbordasse logo
como um odre; e como todo transportador de carga quer seu admirador, mesmo o mais orgulhoso
dos homens, o filósofo, pensa ver por todos os lados os olhos do universo telescopicamente em
mira sobre seu agir e pensar. (Nietzsche, [1878] 2009, p. 530-531).

O novo aprendizado se configura como esta coragem, vontade e potência para com
este mundo e suas estruturas, seus ídolos e dogmas. Mas, se no decurso de tais metas o saber
científico é requerido, obviamente, de igual modo é preciso exercer o auto-questionamento
com este poderio do saber, para que os novos representantes da cultura do homem artístico e
do homo poeta não tomem como verdades resolutas ou mesmo sumamente necessárias as
conquistas da razão ideária do progresso. O direcionamento da crítica é necessário, até mesmo
quando não mais houver obstáculos racionais, técnicos ou morais contra os quais lutar, pois
sobrará o si para consigo, em contínua busca pelo crescimento e compreensão de seu ser.

20. Recuando alguns degraus. – Um grau certamente elevado de educação é atingido, quando o
homem vai além de conceitos e temores supersticiosos e religiosos, deixando de acreditar em
amáveis anjinhos e no pecado original, por exemplo, ou não mais se referindo à salvação das
almas: neste grau de libertação ele deve ainda, com um supremo esforço de reflexão, superar a
metafísica. Então se faz necessário, porém, um movimento para trás: em tais representações ele
tem de compreender a justificação histórica e igualmente a psicológica, tem de reconhecer como se
originou delas o maior avanço da humanidade, e como sem este movimento para trás nos
privaríamos do melhor que a humanidade produziu até hoje. – No tocante à metafísica filosófica,
vejo cada vez mais homens que alcançaram o alvo negativo (de que toda a metafísica positiva é
um erro), mas ainda poucos que se movem alguns degraus para trás; pois devemos olhar a partir do
último degrau da escada, mas não querer ficar sobre ele. Os mais esclarecidos chegam somente ao
ponto de se libertar da metafísica e lançar-lhe um olhar de superioridade; ao passo que aqui
também, como no hipódromo, é necessário virar no final da pista (Nietzsche, [1878] 2000, p. 30).

O ponto de viragem para todas estas questões é o olhar para a ciência e para a vida de
forma diferente, sempre tendo a arte como fiel da balança, onde se deve ver a ciência com a
ótica do artista, mas a arte, com a da vida, como sugere o próprio Nietzsche. O momento de
estabelecimento destas condições será aquele em que o viver encontrará ou reencontrará o seu
sentido, caracterizado não por seu aspecto absoluto, mas por sua imensurável e criativa
incompletude, rompendo corajosa e atrevidamente com as imposições morais e racionais do
mundo.

Toda essa metafísica do artista pode-se denominar arbitrária, ociosa, fantástica – o essencial nisso
é que ela já denuncia um espírito que um dia, qualquer que seja o perigo, se porá contra a
interpretação e a “significação morais da existência”. Aqui se anuncia, quiçá pela primeira vez, um
pessimismo “além do bem e do mal”, aqui recebe palavra e fórmula aquela “perversividade no
modo de pensar”, contra a qual Schopenhauer não se cansa de arremessar de antemão as suas mais
furiosas maldições e relâmpagos – uma filosofia que ousa colocar, rebaixar a própria moral ao
mundo da aparência e não apenas entre as “aparências” ou fenômenos (na acepção do terminus
technicus idealista), mas entre os “enganos”, como aparência, ilusão, erro, interpretação,
acomodamento, arte. [...] Entende-se em que tarefa ousei tocar já com este livro?... Quanto
lamento agora que não tivesse então a coragem (ou a imodéstia) de permitir-me, em todos os
sentidos, também uma linguagem própria para intuições e atrevimentos tão próprios (Nietzsche,
[1872] 1992, p. 19-20).

Estas considerações a respeito da existência e do vivido pelo olhar de Nietzsche


trazem o resgate do humano para consigo, ou seja, devolve à humanidade aquilo que a perfaz
enquanto tal. A significância destes apontamentos é que o erro, o desejo, a vontade, o poder, a
falibilidade estão no âmago da arte, da poesia, do homo poeta. Este conjunto de elementos
capacita ou possibilita a sobreposição de lembranças e esquecimentos relativos à essência do
ser humano espacializado, consigo mesmo na autopoeise, com o outro que vive na construção
das constelações culturais da humanidade e o mundo que habita, transforma e re-significa.
Considerações Finais

Utopia necessária parece ser a poetização plena do mundo revelada na riqueza do


devir, que reverbera na essência do humano, o qual deverá esboçar o curso e dialeticidade da
existência. Ao se consumar a transvalorização dos valores, a admissão do erro e da
falibilidade na/da ciência, a superação do ufanismo do progresso, a atribuição de sentido à
mundaneidade do mundo, a abertura do nosso cotidiano e do existir em sua plenitude e
finitude, terrena sim, mas infinita no plano da expressão do nosso ser criativo e poético, se
atingirá a essência do vivido. Este que deve ser valorado infinita e ininterruptamente,
sabendo-se que cada momento isolado é irrisório ou nulo, só não o é no contexto do infinito
artístico-poético da vida plena.
A arte e a poesia são tomadas por Nietzsche enquanto linguagem e poder. A partir
dessa posição, pode-se criar um novo mundo de relações com a natureza, uma nova
civilização, quando a tomada de novos conceitos se dá pela dimensão de uma nova sociedade.
Logo, a arte e a poesia não são, para Nietzsche, singelas expressões ou atividades puramente
derivadas da vida prática, é sim o aporte representacional da sociedade, quando cada
civilização traz um gênio criativo, por meio de uma estrutura e dos Estados.
O mundo vivido é um mundo de metáforas e de metonímias permeadas pelo poder ou
pela vontade de poder, a arte surge como singeleza subversiva a todos os poderes, podendo
ser ora resistência, ora opressão. O uso da arte é sempre político e poético, as diferenciações
ocorrem pela prevalência de um ou de outro desses usos, para o bem e/ou para o mau. Só o
poeta pode subverter e até subjugar a linguagem hegemônica do poder.
A proposição de Nietzsche não é colocar o não-saber contra o saber ou o discurso sem
lei nem fé contra a razão, pois a poesia não impede o conhecer, ao contrário, partindo do
vivido, penetra no conhecer diferente qualitativamente do saber instituído pela ciência, pela
filosofia ou pelas instituições; este conhecer do viver e do vivido recolhe a outras esferas (a
empírica, a sócio-lógica, a sócio-política), outorgando-lhes outro sentido; o conhecer revela a
crueldade do vivido, as implicáveis relações de força que o fazem tal qual é (Lefebvre,
[1976], 2010).
Por fim e pelo que Nietzsche se refere, interessa reconhecer que há tantos poetas e
artista sobre os países mais pobres não porque sejam pobres, mas porque guardam um
quinhão da civilização que perdem os países do progresso tecnológico mais avançado. As
relações sociais, apesar das agruras as mais diversas e escancaradas, são neles mais ricas. A
arte, em suas variegadas dimensões ou expressões, faz-se a comunhão entre vidas em trânsitos
e o espaço concreto-abstrato dessas mesmas vidas, em permanente ressignificação.

Referências

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filosóficos. Trad. Guido Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985,

DOSSE, Francois. A História. São Paulo: EdUNESP, 2012.

LEFEBVRE, Henri. Hegel, Marx, Nietzsche o el reino de las sombras. 12ª Ed. Trad. Mauro
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LIPOVESTSKY, Guilles; SERROY, Jean. A cultura-mundo: resposta a uma sociedade


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NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Aurora. Trad. Antonio Carlos Braga. São Paulo: Editora
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___________. Além do Bem e do Mal. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.
____________. Ecce Homo: como alguém se torna o que é. Trad. Paulo César de Souza. São
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___________. Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
2012.

____________. O Nascimento da Tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das


Letras, 1992.

____________. Humano, demasiado humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.

___________. Sobre a verdade e mentira no sentido extra-moral. In: Antologia de textos


filosóficos. MARÇAL, Jairo (Org.). Curitiba: SEED, 2009. (p. 530-540).

VATTIMO, Gianni. Diálogo com Nietzsche: ensaios 1961-2000. Trad. Silvana Cobucci. São
Paulo: Martins Fontes, 2010.

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