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MELHOR NÃO SABER

O Universo é puro movimento, é inquietude, é morte e nascimento. É o tombar do velho para que
se abram vagas para o novo. Ao contrário do corriqueiro chiste, nem poste fica parado. O
Universo é incerteza que no cotidiano se esconde nos nossos hábitos. E se esconde tão bem
que chegamos à sensação tão confortável quanto ilusória de que tudo está bem, ou normal, ou
permanente. Mal nos damos conta de que viajamos no tempo e mudamos como tudo à nossa
volta. Embarcados na cápsula de nossas aventuras miúdas e desventuras ocasionais não nos
bate no rosto o vento do tempo e chegamos a acreditar que estamos parados.

As águas dos rios da bacia hidrográfica do Guaíba, dentre os quais se encontra nosso rio Caí,
correm lentamente para sua perdição nas águas indistintas da junção de correntes, para formar
um grande corpo líquido que carrega também a terra de outras barrancas, São águas lentas nos
períodos de estiagem. Águas de catadupa quando um céu descontente entra em ação, decidido
a nos fazer entender como vivem os anfíbios.

A Laguna dos Patos, o imenso bolsão que se faz passagem e paisagem, tem seus extremos de
vazão nos recortes e pontas que se despedem de Porto Alegre, no canal de São Gonçalo e na
barra na cidade de Rio Grande, a mais antiga do estado. Suas águas banham também cidades
como Tapes, São Lourenço do Sul e Pelotas. Muito além de sua beleza, a Laguna dos Patos é
um sistema complexo de fauna e flora, traduzido nas aves de arribação, nos juncos que a
margeiam, nos marismas exuberantes e nos seres aquáticos que a habitam. Em seu entorno
ainda existem pescadores que vivem de sua atividade, embarcações profissionais de pesca e
temporadas de intensa atividade, seja da captura do camarão seja pela pesca da tainha.

Maltratada, sobretudo no passado, depauperada pela pesca indiscriminada e descontrolada, a


Laguna é muito menos piscosa do que o foi há décadas. Em conseqüência disto sua exploração
comercial depende mais do que nunca da exigüidade de água doce típica dos períodos de
estiagem e de seu namoro com o mar, tendo o vento como cupido. A prolongada ausência de
chuva e os ventos favoráveis facilitam a entrada da água do mar pela barra de Rio Grande.
Lentamente a água da Laguna vai salgando e naquele manancial - que não é fechado como o
Mar da Galiléia,- renova-se o esplendor do sal da terra. Com a água do mar entra o sempre
apreciado camarão, movimentando as embarcações e a própria economia da região. Os Pedros
e suas barcas se fazem ao largo nas noites enluaradas, conquistando seu sustento e o provento
para pagar dívidas que os estrangularam até então.

No verão passado a Laguna dos Patos salgou como não o fazia havia uma década. Todas as
cenas típicas do fenômeno mostraram-se de corpo inteiro, um tráfego intenso de embarcações
encheu de vida um porto que já teve seus dias de glória, o turismo sorriu e as águas daquele
manancial mudaram de cor. Pela manhã assumiam cor azulada, mais tarde, penetradas pelo sol
inclemente pendiam para o verde e nas noites enluaradas deixavam-se pintar de prata.

Tomar banho na Laguna dos Patos fez-se então diferente. Avançar em suas águas,
normalmente turvas, enxergando seu fundo e por conta de suas poucas ondas sentir-se numa
gigantesca piscina foi uma oportunidade que sabe Deus quando haverá de repetir-se. O
fenômeno foi tão intenso e belo que mesmo aos nativos encantou, enchendo suas praias de toda
a gente com suas cadeiras, chimarrão e hospitalidade de uma região muito gaúcha, de pessoas
simples e boas. Aliás, nos ambientes genuinamente gaúchos a simplicidade pune os
exibicionismos boçais com o exílio social. Há solução ao alcance da mão, portanto, para a
aborrecida exaltação egocêntrica de nosso tempo. Basta nos tornarmos novamente gaúchos ao
invés de simplesmente habitarmos os mesmos pagos do passado. Um chão não tem identidade.
Não muda as árvores nele plantadas, apenas as sustenta.

Mas a Laguna dos Patos não é uma piscina. Não tem como limites azulejos ou fibra de vidro.
Nela se escondem moluscos, tresandam crustáceos e pervagam peixes de muitas espécies.
Ainda que fruindo do espetáculo, prestando indiscreta atenção à vida normalmente oculta na
turbidez, tive estranha sensação. Desviar-se de siris, por exemplo, é algo que não nos ocupa
quando não os vemos. Enxergar o fundo da Laguna, e tudo que a partir dele tem vida, não é tão
agradável quanto se possa imaginar. É quase como antever o futuro, oculto sabiamente pelo
turvo das águas do amanhã. O mistério faz parte de nossa saúde espiritual e desvendá-lo é
tarefa dos anos. Só deles.

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