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TRANSCENDÊNCIA

Há muitas palavras que caíram em desuso. Uma delas é bagaceira. Tratava-se de um adjetivo
que não era economizado para definir comportamentos de baixo nível ou pessoas vulgares. Era
um hábito que seria acusado hoje de preconceituoso. Pura balela. O que classificaríamos de
bagaceira, hoje, apenas encontrou adjetivação tão criativa quanto eufemística. Tome-se um
exemplo. Uma diretora de empresa de Torino, comentando sobre brasileiras que viviam no
Piemonte, me disse que eram muito alegres, molto divertente ... Mais tarde confessou que as
considerava vulgares. Isto foi bem antes do politicamente correto e do pernicioso domínio dos
danos morais, coisa para encher os bolsos de causídicos e criar desconfiança entre as pessoas.

No tempo em que bagaceira era usual, decorava-se nomes e datas nas aulas de história, logo
esquecidos pela grande maioria. Convenhamos que tornou-se muito mais fácil estudar com o
acesso pela rede mundial. No campo da história, um elenco de documentários nos transporta
para o conhecimento de civilizações e lugares. Tivemos muito prazer em assistir algumas séries
mundiais, como Marco Polo, Versailles, Roma, The Crown e The Tudors. Naturalmente pode-se
colocar em dúvida certas leituras da direção destes seriados, bem como perceber lacunas
narrativas, mas trata-se de boas molduras, que encorajam a leitura de textos qualificados.

O luxo no tempo de Gengis Khan, as intrigas palacianas e a sofisticação da corte de Luís XIV, as
vitórias de César e a travessia do Rubicão, os percalços na vida de Elizabete II e a condenação
de Thomas Morus por interesse espúrio de Henrique VIII, são fatos através dos quais as séries
nos transportam no tempo e no espaço. Como teria sido melhor estudar com tantos recursos!
Claro está que não devemos dispensar o olhar crítico sobre tais produções, que também podem
difundir inverdades, caricaturar figuras históricas ou realçar coisas bizarras em busca de
audiência. Não faltam exemplos de banalidades apresentadas como se fossem protagonistas de
seu tempo, quando não passavam, aqui e acolá, de meras bagaceirices.

Concluímos dias atrás o seriado dinamarquês Borgen, sobre política e relações humanas. No
geral, muito bom, com alguns lapsos de roteiro, mitigados pelo desempenho da maioria dos
atores. O personagem central é uma mulher, que se torna primeira-ministra, pagando alto preço
em sua família e buscando preservar seu idealismo. Mas política é política e nem tudo é róseo.

Certa feita deixamos Bergen, aportamos na Dinamarca e decidimos visitar a pequenina cidade
onde minha enteada residiu por um ano. Bjerringbro não é uma cidade exatamente turística.
Suas dez maiores atrações provavelmente não tirariam muita gente da cadeira, mas não era
este nosso propósito. Decidimos conhecer a escola pública onde Marina estudara e ficamos
impressionados pelo nível das instalações e dos profissionais. Não é à toa que a Dinamarca
tornou-se um polo tecnológico, particularmente em robôs colaborativos e seus acessórios. Sem
os abismos sociais do Brasil, os dinamarqueses são homogêneos e podem ser mais felizes.

Voltemos ao seriado. Ainda que a política tenha seus podres em quaisquer tempo e lugar, a luta
pelo poder na Dinamarca não é retratada como das mais ferozes. Já a imprensa é fortemente
criticada por sua busca perversa por audiência. É diferente por aqui? Não. Um dos pontos altos
da série – que quase passa despercebido,- é o momento em que a primeira-ministra, provocada
por um caso delicado, enuncia que leis não podem ser redigidas sob preceitos morais.

Quando escutei isto, de um personagem apresentado como ético, gritaram meus alarmes. Se a
moral não rege a lei, o que a inspira? Apenas o direito positivo, que pode ter tanto pinceladas do
direito natural quanto aberrações? E o tal estado de direito, desprovido de fundo moral? Nunca é
demais lembrar que o nazismo foi sufragado com apoio popular maciço e constituiu em seu
tempo, sob a concepção liberal, um estado de direito.

Leão XIII, na Encíclica Libertas (1888), alertou que: “é absolutamente impossível compreender a
liberdade do homem sem a submissão a Deus e a sujeição à sua vontade. Negar esta soberania
de Deus ou recusar a submissão a ela, não é modo de agir de homem livre, mas de quem abusa
da liberdade com a revolta; e é precisamente duma tal disposição da alma que se constitui e
nasce o vício do Liberalismo”. Os dramáticos acontecimentos posteriores revelam que o alerta
papal foi ignorado. O fruto amargo da insubmissão é a nítida falta de transcendência no mundo.

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