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ARTIGO ARTICLE
Saúde e desenvolvimento

Healthcare and development

Ana Luiza D’Ávila Viana 1


Paulo Eduardo M. Elias 1

Abstract As modern healthcare systems are the Resumo Considerando que os modernos siste-
outcome of complex interactions among econom- mas de saúde são o resultado da complexa intera-
ic, political and social processes, the purpose of this ção de processos econômicos, políticos e sociais, o
paper is to discuss the links between health and objetivo do trabalho é discutir a relação entre
development in Brazil, showing that the depletion saúde e desenvolvimento no Brasil, mostrando
of the liberal economic policy model paves the way que o esgotamento do modelo liberal de política
for a return to development, understood as a blend econômica abre nova perspectiva para a retoma-
of economic growth, changes in the production da do desenvolvimento, entendido como combi-
structure and better living standards. The health- nação entre crescimento da economia, mudanças
care production complex plays a crucial role in na estrutura produtiva e melhora das condições
this process, as a field where technological innova- de vida da população. O complexo produtivo da
tion and capital build-up generate opportunities saúde joga papel decisivo nesse processo, pois cons-
for investment, work and income, in addition to titui um campo em que inovação tecnológica e
spurring major steps forward in terms of upgrad- acumulação de capital geram oportunidades de
ing individual health. The recent adoption of pub- investimento, trabalho e renda, além de produ-
lic policies designed to underpin aspects of eco- zir avanços importantes para melhorar o estado
nomic and social policies shows that the issue of de saúde das pessoas. A recente adoção de políti-
national development has returned to a key posi- cas públicas voltadas para articular, de forma
tion on government agendas, opening up prospects positiva, aspectos da política econômica e da po-
of closer integration between economic logic and lítica social revela que a questão do desenvolvi-
public health logic. However, it must be admitted mento nacional ganhou nova centralidade na
that Brazil has not yet achieved a virtuous associ- agenda governamental, o que abre a perspectiva
ation between healthcare and development. de maior integração entre a lógica econômica e a
Key words Health and development, Liberal model lógica sanitária. Entretanto, é preciso reconhecer
and health, Technological innovation in health, que o Brasil ainda não logrou alcançar uma asso-
1
Departamento de Medicina
Integral care ciação virtuosa entre saúde e desenvolvimento.
Preventiva, Faculdade de Palavras-chave Saúde e desenvolvimento, Setor
Medicina, USP. Av.Dr. saúde e modelo liberal, Inovação tecnológica em
Arnaldo 455/2º andar,
Cerqueira César. 01246-
saúde, Intersetorialidade
903 São Paulo SP.
anaviana@usp.br
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Viana, A. L. D. & Elias, P. E. M.

Introdução: diferentes etapas, muitas vezes não seqüenciais,


saúde como direito, bem econômico sendo que o assalariamento dos profissionais é
e espaço de acumulação de capital fenômeno mais antigo e a emergência das opera-
doras de planos e seguros, o mais novo.
O fenômeno mais marcante na área da saúde, O processo de constituição de um campo pró-
nos últimos sessenta anos, foi o processo que ge- prio de acumulação de capital em saúde pode ser
rou, por um lado, a desmercantilização do acesso visto pela formação das grandes indústrias que
à saúde e, por outro, a mercantilização da oferta/ atuam no setor, conformando o chamado com-
provisão e, ao mesmo tempo, criou um enorme plexo industrial da saúde, sendo processo recen-
parque industrial ligado à área, representado pe- te, e altamente dependente da inovação tecnológi-
las indústrias de base química e biotecnologia, ca e do próprio avanço científico no campo bio-
mecânica, eletrônica e de materiais1. médico. A revolução tecnológica dos últimos trin-
O processo de desmercantilização do acesso ta anos, ao lado da etapa atual de globalização e
teve como resultado a saúde como direito e o financeirização da economia mundial, propicia-
movimento de formação dos modernos sistemas ram a formação/consolidação desse complexo.
de proteção social e da saúde, que passaram a Vale destacar que a área da saúde representa um
responsabilizar-se pelo risco social de um indiví- dos elementos centrais da terceira revolução tec-
duo enfermar-se. Esse risco passou a ser de res- nológica, baseada na biotecnologia e nas novas
ponsabilidade coletiva, coberto por toda socieda- tecnologias de informação e comunicação (TIC).
de, isto é, garantido pela idéia do direito social2 – Esses três movimentos simultâneos – desmer-
direito do cidadão e responsabilização coletiva, cantilização do acesso, mercantilização da oferta
por isso, dever do Estado. Historicamente, a am- e formação do complexo industrial da saúde –
pliação do acesso aos serviços de saúde teve início não foram constituídos em um mesmo momen-
com a formação dos seguros ocupacionais e na- to histórico e nem de forma combinada ou asso-
cionais na Europa, no início do século XX, e sua ciada, mas convivem hoje de forma complexa e
consolidação ocorreu depois da Segunda Guerra contraditória em um mesmo sistema de saúde.
Mundial, com a formação dos grandes sistemas
nacionais de saúde financiados por impostos pú-
blicos. De fato, a saúde foi peça-chave na cons-
trução dos modernos sistemas de proteção soci- Quadro 1. As três dimensões da saúde.
al, pois o adoecimento e a velhice foram (e ainda
são) os dois principais problemas da população: 1. A saúde como direito desmercantilização do
como garantir assistência à saúde em todos os acesso sistemas de proteção social
momentos do ciclo de vida (infância, idade adul-
ta e velhice) e uma renda digna quando o cidadão 2. A saúde como bem econômico
deixa de trabalhar? Esses dois problemas confi- mercantilização da oferta assalariamento dos
guram um dos problemas centrais da proteção profissionais, formação de empresas médicas e
intermediação financeira (planos)
social. Nesse sentido, o processo de transformar
a cobertura desse risco em uma responsabilidade
3. A saúde como espaço de acumulação de capital
da sociedade, do coletivo, e obrigação do Estado, formação do complexo industrial da saúde
constitui o longo movimento de desmercantiliza- globalização e financeirização da riqueza
ção do acesso à saúde e de formação dos moder-
nos sistemas de proteção social.
Outro processo, em sentido oposto, foi o da
mercantilização da oferta, que se iniciou com o
assalariamento dos profissionais de saúde, prin- Considerando, portanto, que os modernos
cipalmente médicos, no início do século XX, pelos sistemas de saúde são o resultado da complexa
aparatos da previdência social e do serviço públi- interação de processos econômicos, políticos e
co, passou pela conformação das empresas mé- sociais, o objetivo deste artigo é discutir as re-
dicas para a provisão de serviços assistenciais e lações entre saúde e desenvolvimento, entendido
terminou na formação das operadoras de planos aqui como um processo dinâmico e virtuoso que
e seguros de saúde, que passaram a realizar uma combina, ao mesmo tempo, crescimento eco-
intermediação (entre usuários e prestadores de nômico, mudanças fundamentais na estrutura
serviços) de natureza financeira na saúde. Esse produtiva e melhora do padrão de vida da po-
processo de mercantilização da oferta apresentou pulação.
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A descontemporaneidade dos processos com destaque para o aumento do salário míni-
no Brasil mo, a queda no preço dos alimentos via isenções
fiscais e a adoção de extensos e vigorosos progra-
No Brasil, a saúde como direito (e dever do Esta- mas de transferência de renda. Observa-se, por-
do) surgiu na derrocada do projeto desenvolvi- tanto, que as políticas liberais não lograram pro-
mentista, que se conformou a partir de 1930 e foi porcionar uma articulação positiva entre política
responsável pelo processo de industrialização e econômica e política social, impedindo o avanço
modernização da sociedade brasileira. De fato, o da construção da cidadania e de um quadro de
acesso universal e igualitário às ações e serviços de inclusão marcado pela sustentabilidade.
saúde para sua promoção, proteção e recupera- No âmbito da saúde, algumas dificuldades se
ção, garantido pela Constituição Federal de 1988, colocam como obstáculo importante à constru-
foi introduzido quase meio século após os siste- ção de um sistema universal nesse contexto de
mas de saúde europeus, exatamente quarenta hegemonia do pensamento econômico liberal.
anos depois do sistema inglês, criado logo no iní- Uma primeira dificuldade diz respeito à questão
cio do longo período de fortalecimento das eco- do financiamento, pois a criação de fundos de
nomias européias e de políticas intencionais, ob- estabilização fiscal (hoje Desvinculação das Recei-
jetivando associar desenvolvimento econômico ao tas da União - DRU) representa menor disponibi-
desenvolvimento social. A universalidade do sis- lidade de recursos para serem aplicados nas ações
tema de saúde brasileiro, ao contrário, foi conce- e serviços de saúde, recursos esses que são direci-
bida em um período de crise, de estagnação eco- onados, em sua maioria, para o pagamento de
nômica, seguido da adoção de políticas econômi- juros da dívida pública. Esse desfinanciamento
cas de cunho liberal, que impuseram barreiras e federal da política de saúde foi, de certa forma,
limites para a efetiva implantação de um sistema compensado pela descentralização setorial, apoi-
mais universal, redistributivo e igualitário. ada pela descentralização fiscal, o que não impe-
A convenção liberal tornou-se hegemônica no diu, contudo, o agravamento do quadro de desi-
Brasil nos anos 90, em substituição à convenção gualdades regionais na saúde.
nacional-desenvolvimentista3. São duas conven- Outra grande dificuldade é a forte dependên-
ções radicalmente opostas, pois o desenvolvimen- cia externa de produtos do complexo industrial
tismo parte da sociedade para chegar ao agente da saúde, sobretudo aqueles de maior complexi-
individual, enquanto o liberalismo realiza o per- dade tecnológica, tornando o país altamente vul-
curso inverso; para a convenção desenvolvimen- nerável às oscilações da taxa de câmbio. A fragili-
tista, o desenvolvimento está relacionado com a dade do setor de medicamentos, por exemplo,
transformação da estrutura produtiva, ao passo reflete-se na presença de sucessivos saldos negati-
que a liberal privilegia a alocação eficiente de re- vos na balança comercial: embora a taxa de cres-
cursos; para os desenvolvimentistas, o Estado é o cimento das exportações tenha se mantido acima
motor do desenvolvimento, enquanto para os li- da taxa de crescimento das importações (a partir
berais o motor é o mercado. Por fim, os desen- de 1997), a diferença é muito grande, sendo as
volvimentistas entendem o subdesenvolvimento importações cerca de quatro vezes superiores às
como processo histórico e não etapa do percurso exportações4. Em relação aos farmoquímicos e
dos países avançados. A força das idéias associa- adjuvantes, a desnacionalização foi acelerada no
das ao desenvolvimentismo no Brasil, em com- período 2000/2005, sendo que as importações re-
paração com outros países periféricos, é evidenci- presentam hoje o dobro da produção local e são
ada pelo atraso com que a convenção liberal che- quatro vezes superiores às exportações4. A cadeia
gou ao país e pela relativa parcialidade e lentidão produtiva de fármacos e medicamentos possui
com que foi implantada. caráter estratégico para a soberania de um país
As políticas liberais, voltadas, em sua maio- como o Brasil, pois embora possam ser importa-
ria, para promover o ajuste macroeconômico dos dos de empresas produtoras de diversos países e,
países em desenvolvimento que passavam por nos últimos cinco anos, mais da Índia e da China,
dificuldades, entraram em vigor no Brasil a partir a sua relevância para saúde e o bem-estar da po-
do início da década de 1990 e contribuíram para o pulação e sua dinâmica inovadora e científica re-
deterioramento do quadro social, reunindo bai- comendam que o país, sem fechar suas fronteiras
xo crescimento econômico com o agravamento para importação, invista no desenvolvimento de
das desigualdades sociais, somente estreitadas na um parque produtivo autônomo e competitivo4.
década seguinte, a partir da combinação de uma Uma terceira dificuldade decorre das mudan-
série de políticas e programas governamentais, ças ocorridas na forma de atuação do Estado,
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Viana, A. L. D. & Elias, P. E. M.

que transferiu para o setor privado a produção e constituição de um sistema que efetivamente ga-
comercialização de bens e produtos importantes, ranta o acesso à saúde como direito social.
implicando menor capacidade de adoção de polí- O precoce e vigoroso processo de mercantili-
ticas voltadas para o desenvolvimento nacional. zação da oferta de serviços de saúde, que se con-
Do mesmo modo, a passagem para o setor pri- solidou antes que fosse instituída a universalida-
vado da gestão de hospitais e ambulatórios pú- de do acesso, ao formar um aparato previdenciá-
blicos ainda não foi acompanhada de economia rio baseado na compra de serviços para a garan-
de recursos, pois houve expansão do gasto públi- tia do acesso à saúde aos inseridos no mercado
co para essas entidades e a regulação dessas insti- formal de trabalho, constitui uma das razões his-
tuições, pelo setor público, ainda não está forma- tóricas que explicam a descontemporaneidade dos
lizada em contratos de gestão que norteiam seu processos no Brasil. Além disso, o relativo atraso
desempenho segundo os padrões do SUS, isto é, industrial e tecnológico brasileiro nas áreas-cha-
segundo o estabelecimento de redes regionais de ve da terceira revolução tecnológica, associado à
atendimento. insuficiência de políticas de fomento setoriais e,
Por fim, a adoção do consenso liberal resul- em específico, daquelas ligadas ao complexo pro-
tou na ausência de investimentos indutores de dutivo da saúde, como a indústria farmacêutica,
inovação tecnológica na rede pública de labora- resultou em vigorosos processos de desnaciona-
tórios oficiais, que praticamente só realizam ati- lização nas décadas de 50 (em pleno apogeu do
vidades de formulação de medicamentos acaba- nacional-desenvolvimentismo) e 90 do século XX.
dos, sem integração da produção e síntese das Ao mesmo tempo, não houve aproveitamento
matérias-primas. Destaque-se que os laborató- adequado do parque público na área de labora-
rios farmacêuticos brasileiros tiveram origem e tórios e institutos de pesquisa para a inovação
apresentam características distintas da experiên- tecnológica. Esta situação é completamente dis-
cia internacional. Em vez de funcionarem como tinta daquela observada nos principais países de-
fonte de P&D e parte do sistema nacional de ino- senvolvidos da Europa, onde parte expressiva do
vação, como no padrão internacional, surgiram complexo produtivo da saúde se fortaleceu na
associados ao atendimento à assistência farma- mesma época de formação e consolidação dos
cêutica à população e à cobertura das lacunas sistemas nacionais de saúde, de modo que houve
existentes na produção nacional de vacinas e me- uma articulação positiva entre as necessidades de
dicamentos essenciais5. O Brasil possui hoje de- valorização do capital e as necessidades de saúde
zoito laboratórios públicos vinculados às Secre- da população, o que impulsionou o desenvolvi-
tarias Estaduais de Saúde (9), ao Ministério da mento (econômico e social) desses países.
Saúde (1), às Forças Armadas (3) e às Universi- Uma dificuldade adicional a ser considerada é
dades (5), integrantes da Rede Brasileira de Pro- que a constituição de uma indústria nacional jun-
dução Pública de Medicamentos6. Com algumas to ao complexo produtivo da saúde, caso se efeti-
exceções, como é o caso da produção de anti- ve, deverá levar em conta que vivemos hoje um
retrovirais, a maioria dos produtos fabricados período de financeirização da economia mundial,
pelos laboratórios públicos é composta de me- cujo resultado é, de um lado, o crescimento da
dicamentos simples, o que evidencia a limitada participação dos haveres financeiros na compo-
capacidade tecnológica desses laboratórios, que sição da riqueza privada e, de outro, o aumento
somente a partir de 2005 passaram a contar com mais que proporcional dos valores dos papéis
um programa de apoio à produção pública de representativos da riqueza financeira (ações e ati-
medicamentos para financiamento dos investi- vos financeiros em geral) em comparação com os
mentos de modernização e ampliação da capaci- valores dos ativos reais que esses papéis represen-
dade instalada7. tam8. Nessa nova etapa do capitalismo, as gran-
A descontemporaneidade dos processos de des corporações capitalistas são organizações
desmercantilização do acesso (saúde como direi- empresariais de corte multifuncional (produção,
to), mercantilização da oferta (saúde como bem comercialização e finanças), multissetorial (vári-
econômico) e formação do complexo industrial os segmentos industriais) e multinacional, estru-
da saúde (saúde como espaço de acumulação de turas corporativas que atuam com critérios pu-
capital) produziu, no Brasil, uma situação que ramente financeiros em mente, ou seja, sua atua-
não foi capaz de romper com a natureza dual do ção obedece a uma lógica financeira geral na defi-
sistema de saúde brasileiro, caracterizado pela seg- nição, gestão e realização da riqueza9. Tal situação
mentação de clientela e predomínio de interesses pode acarretar outros tipos de dificuldades para
ligados às duas últimas dimensões, impedindo a a constituição e o fortalecimento de uma indús-
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tria nacional capaz de competir com os grandes estão em voga na política mundial, como: demo-
conglomerados empresariais do setor saúde, ten- cracia, eqüidade e promoção social.
do em vista que os mercados, nesse setor, apre- Uma vertente proposta por Armatya Sen12
sentam estruturas oligopolizadas e grande parte incorpora a dimensão da democracia e da liber-
da indústria nacional é formada por pequenas e dade ao desenvolvimento. Outra vertente, que
médias empresas familiares, que ainda apresen- ganha força no Brasil e no mundo, é um movi-
tam fortes resistências para abertura de capital, mento de resgate da escola estruturalista, a partir
ao passo que as grandes empresas internacionais de uma releitura de suas teorias com vistas aos
estão totalmente inseridas na lógica de financeiri- conteúdos do período atual. Ainda nesse movi-
zação da riqueza. Embora seja verdade que a in- mento, há aqueles autores que estão buscando a
dústria nacional tenha ampliado sua participa- construção de uma nova Economia do Desenvol-
ção na estrutura de oferta do mercado farmacêu- vimento com o retorno da escola estruturalista,
tico brasileiro (de 28,2% das vendas em 2000 para as contribuições renovadas da escola institucio-
40,6% em 2005), é preciso considerar que esse nalista e a interação entre as escolas neo-schum-
comportamento foi impulsionado graças à forte peteriana e estruturalista. O marco da conver-
desvalorização cambial no período 1999-2004, gência entre essas escolas é a visão de que o desen-
desestimulando as importações, e à entrada dos volvimento econômico é caracterizado por mu-
medicamentos genéricos em 2000, dando origem danças estruturais na economia e essas ocorrem
a um novo segmento no mercado farmacêutico por descontinuidades, geralmente de caráter tec-
brasileiro, com padrão de concorrência comple- nológico, que afetam e são afetadas pela estrutu-
tamente distinto do praticado pelo segmento de ra econômica social, política e institucional de cada
“drogas de marca”4. nação. Como esse processo é particular, depende
de políticas específicas para cada realidade. O pro-
gresso técnico tem um papel central na dinâmica
O retorno do desenvolvimento de acumulação capitalista e a visão de progresso
técnico e dos retornos crescentes a ele associados
O esgotamento das políticas liberais como base é que configura o ciclo virtuoso de desenvolvi-
para o desenvolvimento econômico dos países mento em um sistema nacional. Segundo essa
provoca, hoje, uma revisão sobre a estratégia de corrente, as assimetrias de acesso ao conhecimento
implementação de um único modelo de desen- e ao aprendizado podem funcionar como pode-
volvimento, baseado numa receita universal e no rosas barreiras ao desenvolvimento e, por isso
Estado regulador. Alguns autores10 alertam para mesmo, a existência de uma base de conhecimen-
o surgimento de uma Nova Economia do Desen- to prévia e o desenvolvimento de um sistema de
volvimento, baseada em experiências acumula- inovação em alguma área são pré-condições im-
das e em uma nova idéia de desenvolvimento. Seu portantes para o deslanchar de um novo ciclo de
objetivo principal seria dar contribuições para desenvolvimento.
aumentar as opções disponíveis à ação do Estado O Brasil entra nessa nova fase de debate sobre
em contestação ao consenso único e à receita uni- o desenvolvimento e o papel do Estado com uma
versal proposta pela convenção liberal. Para esses perspectiva muito interessante, pois sua escola
autores, há necessidade, nos tempos atuais, de se estruturalista deixou importantes bases teóricas
criar alternativas ou modelos de desenvolvimen- para se pensar um desenvolvimento genuinamente
to econômico que sejam, ao mesmo tempo, eco- brasileiro. Um dos principais autores que vem
nomicamente dinâmicos, politicamente democrá- discutindo o novo modelo de desenvolvimentis-
ticos e socialmente inclusivos. mo no Brasil é Bresser-Pereira13, que coloca a ne-
Por conta da estagnação do crescimento eco- cessidade de uma estratégia nacional de desenvol-
nômico e do aumento das desigualdades sociais vimento pautada nos seguintes elementos: au-
nos países que adotaram as receitas liberais no mento da capacidade de poupança e investimen-
atual período da globalização, estão surgindo di- tos da nação, forma pela qual incorpora progres-
versos questionamentos sobre o viés econômico so técnico na produção; desenvolvimento do ca-
predominante no conceito de desenvolvimento. pital humano; aumento da coesão social nacional
Esses questionamentos vêm sendo propostos a que resulta em capital social ou em sociedade civil
partir do ressurgimento dos estudos sobre de- mais forte e democrática; e uma política macroe-
senvolvimento associando política econômica e conômica que garanta a saúde financeira do Es-
política social11, sendo que muitos desses estudos tado e do Estado-nação, levando a índices de en-
se baseiam também na discussão de conceitos que dividamento interno e externo dentro dos limites
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Viana, A. L. D. & Elias, P. E. M.

conservadores. Seguindo mais para o enfoque do dos, Japão, Alemanha, Suécia, Holanda, etc. O
Estado no novo desenvolvimentismo, alguns au- segundo grupo é formado por sistemas de inova-
tores14 apontam a necessidade de rever os dois ção de países de catching up (países que estão se
modelos anteriores – o de Bem-Estar Social e o aproximando em termos de renda per capita e
Neoliberal – para a criação de um novo padrão desenvolvimento industrial e tecnológico dos pa-
de desenvolvimento. Como destacam Sicsú et al.14, íses líderes), como Coréia do Sul, Taiwan e Cin-
a estratégia novo-desenvolvimentista, embora te- gapura. O terceiro grupo abrange os sistemas não-
nha suas origens no ‘velho desenvolvimentismo’, maduros, abaixo do catching up, que podem ser
ainda que com um olhar crítico em alguns aspectos subdivididos em três outras categorias: i) países
dessa estratégia, busca adequar a estratégia desen- que já possuem sistemas de ciência e tecnologia
volvimentista aos novos tempos e à realidade brasi- constituídos, mas com uma infra-estrutura de
leira atual. ciência e tecnologia pouco eficaz (Brasil, México,
A discussão de um novo modelo de desenvol- Índia, África do Sul); ii) países do leste europeu,
vimento tem sido retomada tanto pelos intelectu- que compartilham características comuns do pas-
ais independentes, como pelos organismos inter- sado “socialista” e a presente transição para uma
nacionais. Entretanto, é importante atentar para economia de mercado (Rússia, Polônia, Hungria,
a importação de modelos e para os impactos e Bulgária, etc.); e iii) países do sudeste asiático, que
condicionamentos que essas idéias, na sua maio- compartilham uma realidade de crescimento re-
ria advinda de países com grande força política e cente (Tailândia, Malásia, Indonésia, Filipinas).
econômica, podem ter nos países periféricos. O quarto grupo inclui os sistemas de inovação
Aponta-se a necessidade de avançar na concep- inexistentes ou imaturos, como Turquia, Afega-
ção de desenvolvimento não só como moderni- nistão e países da região da África subsaariana.
zação, mas também como políticas que emba- Considerando que as características do pro-
sem um verdadeiro projeto nacional de enfrenta- gresso tecnológico e dos fluxos de informação
mento das desigualdades sociais e de construção variam consideravelmente entre os diversos seto-
de uma cidadania plena. Ao mesmo tempo, há res da economia, Albuquerque e Cassiolato15 su-
quase uma unanimidade no sentido de resgatar a gerem que é possível desagregar um sistema naci-
questão da inovação tecnológica como base para onal de inovação em diferentes setores. Os auto-
um novo modelo de desenvolvimento. res citam que estudiosos da economia da inova-
ção têm se surpreendido com a proximidade da
relação entre a ciência e tecnologia no setor saúde
Sistema de inovação e que, desse ponto de vista, o setor saúde pode ser
e complexo produtivo em saúde demarcado por outras atividades econômicas em
termos de dinâmica inovativa, daí a idéia de um
Um sistema nacional de inovação, de acordo com subsistema de inovação do setor saúde. Três fe-
Albuquerque e Cassiolato15, é uma construção nômenos importantes são citados como pontos
institucional, produto de uma ação planejada e de partida para possibilitar uma visualização ini-
consciente ou de um somatório de decisões não cial dos fluxos de informação científica e tecnoló-
planejadas e desarticuladas, que impulsiona o gica no interior do sistema de inovação em saúde:
progresso tecnológico em economias capitalistas O conceito de complexo médico-industrial
complexas. Esses arranjos institucionais envolvem da saúde, desenvolvido no Brasil de forma pio-
as firmas, as redes de interação entre empresas, as neira por Cordeiro16,17, que se refere a uma arti-
agências governamentais, as universidades, os ins- culação que envolve a assistência médica, as redes
titutos de pesquisa, os laboratórios das empresas de formação profissional (escolas, universidades),
e a atividade de cientistas e engenheiros. Os ar- a indústria farmacêutica e a indústria produtora
ranjos institucionais se articulam com o sistema de equipamentos médicos e instrumentos diag-
educacional, o setor industrial e empresarial e as nósticos;
instituições financeiras, completando o circuito A existência de um sistema biomédico de ino-
dos agentes que são responsáveis pela geração, vação, sugerido por Hicks e Katz18 em um estudo
implementação e difusão das inovações. que apontou que as instituições fora do circuito
De acordo com a tipologia sugerida por esses acadêmico, no caso os hospitais, têm participa-
autores15, os sistemas de inovação dos diferentes ção importante na produção científica; e
países podem ser classificados em quatro grupos As interações entre as universidades e as in-
principais. O primeiro grupo inclui os sistemas dústrias na geração de inovações tecnológicas em
de inovação maduros, como os dos Estados Uni- saúde, além de inúmeras particularidades na in-
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teração produtor-usuário, na qual a profissão tecnologias em saúde geram renda para os pro-
médica desempenha papel importante no desen- fissionais, produtores e distribuidores, o que ex-
volvimento das inovações, assim como em seu plica, em grande parte, as pressões exercidas para
aperfeiçoamento19. Dessa forma, as universida- sua adoção e utilização; do ponto de vista clínico,
des e instituições de pesquisa, os provedores de elas aumentam a capacidade de ação dos médicos
assistência à saúde, as instituições reguladoras em gerar saberes (capacidade diagnóstica) e em
(como o FDA), a indústria produtora de inova- permitir intervenções sobre o corpo humano e
ções tecnológicas e as instituições vinculadas ao suas funções fisiológicas (capacidade terapêuti-
sistema de saúde pública são os principais agen- ca), que influi sobre o estado de saúde e a quali-
tes que participam dos fluxos de informação ci- dade de vida dos pacientes; e, do ponto de vista da
entífica e tecnológica na área da saúde. sociedade, as tecnologias afetam a distribuição das
Duas características importantes são, ainda, vantagens e dos custos entre diferentes grupos
destacadas por Albuquerque e Cassiolato15. A sociais.
primeira é que as inovações no setor saúde são Gadelha et al.21 conceituam o setor saúde como
crescentemente dependentes de pesquisas inter- um locus essencial de desenvolvimento econômi-
disciplinares (em medicamentos, por exemplo, co, por ser este um campo em que inovação e
uma nova droga requer o trabalho de químicos, acumulação de capital geram oportunidades de
biólogos moleculares, engenheiros químicos, clí- investimento, emprego e renda. De acordo com
nicos, etc.; na indústria de equipamentos, inova- esses autores, o complexo industrial da saúde é
ções requerem o trabalho de físicos, engenheiros constituído por um conjunto interligado de pro-
eletrônicos, especialistas em novos materiais, es- dução de bens e serviços em saúde, um conjunto
pecialistas médicos, etc.), ou seja, a produção de selecionado de atividades produtivas que man-
inovações tem como pré-requisito uma estrutura têm relações intersetoriais de compra e venda de
de formação universitária e de pós-graduação bens e serviços e que se move no contexto da di-
abrangente e razoavelmente sofisticada, dado o nâmica capitalista. Três grupos se destacam no
tipo de interação e interdisciplinaridade que ela complexo industrial da saúde:
apresenta. A segunda é que a inovação, nesse se- (i) As indústrias de base química e biotecno-
tor, depende pesadamente das interações entre lógica, que produzem fármacos e medicamentos,
universidades (especialmente centros médicos aca- vacinas, hemoderivados e reagentes para diagnós-
dêmicos) e empresas industriais, como é o caso tico. Neste grupo, o setor de medicamentos cons-
do setor de biotecnologia e da indústria farma- titui o grande mercado, sendo liderado por um
cêutica. Outra importante particularidade diz res- conjunto de grandes empresas, altamente inten-
peito à diversidade de padrões de avanço tecnoló- sivas em tecnologia e que dominam o mercado
gico no setor saúde, dada a amplitude de produ- mundial;
tos e serviços envolvidos (desde a produção de (ii) As indústrias de base mecânica, eletrônica
seringas até tomógrafos computadorizados e e de materiais, que produzem equipamentos me-
proteínas geneticamente manipuladas), o que ex- cânicos e eletromecânicos, próteses e órteses e
plica a pluralidade de padrões de progresso tec- material de consumo. Destaca-se, nesse grupo, a
nológico. indústria de equipamentos, tanto pelo seu poten-
De acordo com Lehoux20, existem seis gran- cial de inovação quanto pelo seu impacto nos ser-
des setores cujo desenvolvimento tem sido parti- viços, ocasionando mudanças nas práticas assis-
cularmente rápido e importante na saúde: i) in- tenciais; e
trodução da informática e produtos derivados (iii) Os setores prestadores de serviços, cons-
das tecnologias de defesa, como o ultra-som, a tituídos por hospitais, ambulatórios e serviços de
ressonância magnética, a densitometria, a tomo- diagnose e terapia. São eles que organizam a ca-
grafia computadorizada etc., que não são substi- deia de suprimentos dos produtos industriais em
tuíveis entre si; ii) projetos de telesaúde (internet, saúde, articulando o consumo desses produtos
cabo ótico, satélite); iii) as biotecnologias, com tanto nos espaços públicos quanto privados.
vários setores de inovação; iv) as vacinas, tanto O Estudo de Competitividade por Cadeias
para doenças infecciosas como crônicas; v) a pes- Integradas no Brasil22 aponta a existência de um
quisa sobre novos materiais e a micro-eletrônica movimento crescente de penetração da lógica ca-
(implantes cardíacos, auditivos etc.); e vi) os me- pitalista na produção em saúde, a relação de inte-
dicamentos. O desenvolvimento dessas tecnolo- ração e interdependência entre produtores e usuá-
gias traz importantes conseqüências econômicas, rios, a constituição de um mercado de serviços
clínicas e sociais: do ponto de vista econômico, as médico-hospitalares privado, as relações de con-
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Viana, A. L. D. & Elias, P. E. M.

tratualização que impulsionam os agentes a se- ser exercida por meio de três diferentes políticas:
guir lógicas de competitividade e eficiência em suas políticas comerciais, políticas de P&D e políticas
atividades e o Estado como agente central de pro- de saúde. As políticas comerciais podem influir
moção e regulação em saúde. Esse mesmo estudo no financiamento e criação de empresas, princi-
aponta os fatores-chave para alçar o desenvolvi- palmente no setor de equipamentos médicos (via
mento do complexo industrial da saúde a um créditos, subvenções etc.); as políticas de P&D em
patamar de destaque na condução das políticas geral podem promover o desenvolvimento de tec-
públicas nacionais: a relevância econômica e o nologias particulares que podem, a curto e médio
potencial de inovações do setor, fonte de captação prazo, transformar os serviços de saúde (biotec-
de novos paradigmas tecnológicos; a abrangên- nologia, telecomunicações, microeletrônica etc.);
cia da atuação do Estado na área de saúde, que e as políticas de saúde exercem um impacto direto
pode usar seu poder de compra em benefício do sobre a oferta de cuidados em saúde, notadamente
desenvolvimento do complexo em negociações quanto à regulação da entrada de equipamentos
internacionais, mantendo situações de flexibilidade e medicamentos nos sistemas de saúde. O desa-
no mercado interno para estimular a produção fio, para autora, consiste em encontrar um equi-
nacional; e a busca pela redução da vulnerabilida- líbrio naquilo que parece ser a adoção de uma
de externa da política social voltada para a saúde, política esquizofrênica: de um lado, buscar for-
que não pode ficar à mercê das oscilações do mer- mas para incentivar a consolidação de uma in-
cado externo no que diz respeito às importações. dústria lucrativa e que joga papel importante no
A relevância do complexo industrial da saúde desenvolvimento econômico; de outro lado, ado-
pode ser evidenciada pelos dados que confirmam tar medidas vigorosas de controle das despesas
a ampla participação do Estado brasileiro no se- de saúde.
tor e, conseqüentemente, revela oportunidades de Ainda segundo Lehoux20, é bastante provável
ação em favor do crescimento econômico e social que continue a pressão crescente sobre os custos
do país em áreas ligadas ao setor saúde. Respon- em saúde, dado o dinamismo das atividades ino-
sável por 70% da demanda por produtos, bens e vadoras, sendo que muitos aproveitam esse mo-
serviços em saúde, o Estado ainda responde por mento de tensão para propor a privatização da
¾ dos investimentos no setor. O PIB registra a oferta e do financiamento dos cuidados. Entre-
participação do complexo industrial da saúde na tanto, destaca a autora, a questão que realmente
casa dos 5%, sendo que 30% da renda gerada importa não é a de determinar se uma maior par-
ficam com a iniciativa pública. A área de saúde ticipação do setor privado seria capaz de melho-
responde ainda por cerca de 25% do orçamento rar a performance do sistema de atenção à saúde,
das agências federais de fomento para Ciência e mas, antes, a de examinar como as preocupações
Tecnologia23. de saúde pública podem se conjugar aos interes-
Essas características gerais permitem conferir ses do mercado. Para isso, é preciso que o Estado
ao Estado o relevante papel de potencial indutor assuma o papel de protagonista no desenvolvi-
para o estímulo e regulação em saúde e de articu- mento de tecnologias que sejam mais eficientes e
lador de políticas de integração entre as esferas socialmente legítimas.
tecnológicas, industrial e social, conferindo ao
complexo da saúde o patamar de destaque na
condução geral das políticas de desenvolvimento As políticas atuais
nacional. De fato, o Estado deve ser visto como voltadas para a integração
peça-chave na regulação desse processo, contri- entre política econômica e social
buindo para reduzir os efeitos negativos do mer- e o rompimento da díade contraditória
cado quanto à oferta de cuidados em saúde, in-
tervir no processo de inovação (de modo a orien- Em 1985, foi criado o Ministério de Ciência e Tec-
tar a natureza das tecnologias e seu impacto so- nologia – MCT, que definiu como áreas prioritá-
bre os custos) e avaliar os aspectos éticos e sociais rias de atuação a química fina, a microeletrônica,
engendrados pela utilização do conhecimento téc- a biotecnologia e novos materiais. Essas áreas
nico-científico moderno, que exige uma tomada deveriam ser fortemente apoiadas pelo Estado,
de posição coletiva. mas essa política só começou a ser implementada
Como o Estado pode concretamente orientar de fato a partir de 1999, com a criação dos Fun-
e sustentar projetos particulares de P&D no âm- dos Setoriais de Ciência e Tecnologia, que articu-
bito da saúde e favorecer o uso apropriado das lam a academia e o setor produtivo mediante a
tecnologias? Para Lehoux20, essa influência pode cooperação entre empresas e centros de pesquisa,
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depois de um extenso período de desarticulação plexo produtivo da saúde. Dentre esses instru-
entre a política de C&T e a política industrial. De mentos, destacam-se alguns programas do BN-
fato, predominou no Brasil, durante os anos 90, DES – Programa de Apoio ao Desenvolvimento
uma abordagem horizontalista de política indus- da Cadeia Produtiva Farmacêutica (Profarma),
trial, baseada na redução linear das tarifas e na Programa Finame de Modernização da Indústria
ausência de políticas para setores específicos, num Nacional e dos Serviços de Saúde (Finame-Mo-
contexto de forte valorização cambial. Como re- dermaq), Programa de Fortalecimento e Moder-
sultado, acentuaram-se as importações de produ- nização das Entidades Filantrópicas Integrantes
tos estrangeiros, o que promoveu um forte enxu- do Sistema Único de Saúde, Fundo Tecnológico
gamento nas cadeias produtivas de vários seto- (FUNTEC), Programa de Desenvolvimento da
res, incluindo o complexo industrial da saúde24. Inovação (PDI), Programa de Competitividade
As diretrizes da Política Industrial, Tecnológi- das Empresas do Setor Industrial (Procomp) –,
ca e de Comércio Exterior (PITCE), lançadas em os Fundos Setoriais e outras iniciativas coorde-
novembro de 2003 pelo Ministério do Desenvol- nadas pela FINEP – CT-Saúde, CT-Biotecnolo-
vimento, Indústria e Comércio – MDIC, repre- gia, Programa de Apoio à Pesquisa em Empresas
sentam novo alento ao incorporar um segmento (PAPPE), Projeto Inovar – e algumas ações do
importante do complexo industrial da saúde – Ministério da Saúde, como o Programa Pesquisa
cadeia produtiva farmacêutica – como pólos de para o SUS (PP-SUS).
inovação e fomento setorial. A PITCE, como afir- Na área de fármacos e medicamentos (uma
mam Barbosa et al.24, é um marco com relação à das opções estratégicas do PICTE), vale a pena
prática dos anos 90, período marcado pelo pre- citar com mais detalhe o Programa de Apoio ao
domínio de idéias alinhadas com a convenção li- Desenvolvimento da Cadeia Produtiva Farmacêu-
beral, por várias razões: por assumir a defesa ex- tica (Profarma) do BNDES, lançado em março
plícita da necessidade de uma política industrial, de 2004, com a finalidade de apoiar investimentos
por buscar romper com a dicotomia entre políti- no país de empresas da cadeia produtiva farma-
cas setoriais e horizontais, por assumir um con- cêutica, incluindo intermediários químicos e ex-
junto de setores e “atividades portadoras de futu- tratos vegetais, farmoquímicos e medicamentos
ro” como prioritários e também por estipular para uso humano e outros produtos correlatos
metas em relação ao desempenho comercial. En- voltados para a saúde humana. O apoio pode ser
tretanto, o viés estruturalista da PITCE não chega dado às atividades relacionadas à produção de
a se consumar por completo, na medida em que medicamentos (implantação, expansão e/ou mo-
não foi acompanhada por elevação de tarifas para dernização da capacidade produtiva), à Pesquisa,
importação de matérias-primas estratégicas e Desenvolvimento e Inovação (infra-estrutura de
optou-se, em nível macroeconômico, por uma P&D, inovação incremental e/ou radical de pro-
política de valorização cambial. dutos e processos) e ao fortalecimento de empre-
Para implementação da PICTE, o governo sas nacionais (incorporação, aquisição e/ou fu-
brasileiro dispõe atualmente de diversos instru- são de empresas), visando: incentivar o aumento
mentos setoriais e horizontais, muitos dos quais da produção de medicamentos para uso huma-
podem ser utilizados pelos segmentos do com- no e seus insumos no país; melhorar os padrões

Quadro 2. Linhas de ação, opções estratégicas e atividades portadoras de futuro da PITCE.

Linhas de ação horizontais Opções estratégicas Atividades portadoras de futuro


Inovação e desenvolvimento tecnológico Semicondutores Biotecnologia
Inserção externa Software Nanotecnologia
Modernização da indústria Bens de capital Biomassa/energias renováveis
Capacidade e escala produtiva Fármacos e medicamentos

Fonte: Brasil. Diretrizes da Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior. [Paper na Internet]. 2003 Nov 23 [acessado
2007 Out 5]; [23p.]. Disponível em: http://www.desenvolvimento.gov.br/arquivo/ascom/apresentacoes/Diretrizes.pdf
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Viana, A. L. D. & Elias, P. E. M.

de qualidade dos medicamentos produzidos para entre as diferentes políticas voltadas para o de-
uso humano e sua adequação às exigências do senvolvimento do setor saúde – política de C&T,
órgão regulador nacional; reduzir o déficit comer- política industrial e política de saúde. O lança-
cial da cadeia produtiva; estimular a realização de mento do Programa de Aceleração do Crescimen-
atividades de pesquisa, desenvolvimento e inova- to (PAC), lançado em janeiro de 2007 e que obje-
ção no país; e fortalecer a posição econômica, fi- tiva promover a aceleração do crescimento eco-
nanceira, comercial e tecnológica da empresa na- nômico, o aumento do emprego e a melhoria das
cional. Os dados de desempenho do Profarma condições de vida da população brasileira, é um
mostram resultados bastante favoráveis: até ju- exemplo desse esforço. Para tanto, pretende im-
lho de 2007, o programa acumulou 48 operações plantar medidas em cinco grandes blocos – in-
em carteira (contratadas, aprovadas, em análise vestimento em infra-estrutura, estímulo ao cré-
ou enquadradas), totalizando R$ 972,4 milhões dito e ao financiamento, melhora do ambiente
em financiamentos que viabilizam investimentos investimento, desoneração e aperfeiçoamento do
totais de aproximadamente R$ 1,9 bilhão. Do to- sistema tributário e medidas fiscais de longo pra-
tal financiado, 53,9% foram destinados a proje- zo – mobilizando recursos públicos e privados da
tos de aumento da produção, 34,3% a operações ordem de R$ 503,9 bilhões. Embora os investi-
de fusões e aquisições de empresas nacionais e mentos do PAC possam contribuir para melho-
11,8% para doze empresas com projetos de pes- rar, de forma indireta, as condições de saúde da
quisa, desenvolvimento e inovação25. população, é importante notar que ele não con-
Apesar dos resultados positivos, algumas la- templa programas específicos na área da saúde.
cunas ainda precisam ser enfrentadas pelo BN- Para essa finalidade, entretanto, o Ministério da
DES no âmbito do Profarma4,24: necessidade de Saúde vem trabalhando na formulação do cha-
ampliar a atuação no financiamento de projetos mado “PAC da Saúde”, conjunto de medidas que
relacionados ao tratamento de doenças negligen- deve beneficiar diversos setores do complexo pro-
ciadas e a produtos gerados com base na rota dutivo da saúde, incluindo a produção de medi-
biotecnológica; falta de apoio específico ao desen- camentos para hipertensão, diabetes e colesterol,
volvimento dos laboratórios oficiais; baixa atra- aparelhos de ultra-som, marca-passos e catete-
tividade para as empresas de capital estrangeiro, res, além de vacinas e hemoderivados. O objetivo
que conseguem captar recursos no mercado in- é fortalecer a produção nacional desses produtos,
ternacional com juros ainda menores que os pra- reduzindo a dependência de tecnologia do exte-
ticados pelo BNDES e com menos exigências de rior. Os critérios utilizados para seleção dos seto-
garantia; e limitação de recursos para financia- res a serem beneficiados são coerentes com esse
mento do componente de pesquisa, desenvolvi- objetivo: aqueles ligados a doenças que mais ma-
mento e inovação. tam no país; onde as despesas do governo são
As aprovações da Lei de Inovação, de 2 de mais elevadas; e setores em que já existe alguma
dezembro de 2004, e da Lei 1.196, de 21 de novem- produção nacional26.
bro de 2005, conhecida como “MP do Bem”, cons- Tais iniciativas do governo brasileiro eviden-
tituem instrumentos importantes para fomentar ciam que a questão do desenvolvimento nacional
uma cultura de inovação no Brasil, seja aproxi- voltou a ser um eixo prioritário na agenda públi-
mando os diversos atores envolvidos no proces- ca, isto é, torna-se explícita a idéia de que cabe ao
so de inovação, seja estimulando a criação de Estado incentivar uma política industrial pauta-
empresas que tenham como propósito desenvol- da pela inovação sistêmica de base endógena, pela
ver pesquisas tecnológicas, seja ainda estabelecen- regulação dos setores estratégicos do complexo
do incentivos fiscais para empresas que realizam produtivo da saúde, por arranjos produtivos lo-
investimento em atividades tecnológicas. A cria- cais e por mudanças institucionais do próprio
ção do Conselho Nacional de Desenvolvimento Estado para lidar com as questões tecnológicas e
Industrial (CNDI) e da Agencia Brasileira de De- sociais atuais, rompendo assim a chamada “día-
senvolvimento Industrial (ABDI), em 2005, re- de contraditória”27.
presenta, por sua vez, tentativas de coordenar es-
forços acionados a partir da PITCE, bem como
de promover o desenvolvimento industrial e tec- Considerações finais
nológico brasileiro por meio do aumento da com-
petitividade e da inovação. O Sistema Único de Saúde explicita claramente as
Como sugerem todas essas iniciativas, o Bra- conseqüências geradas pela separação entre polí-
sil vive hoje um momento de maior integração tica social e política econômica: o sistema se efeti-
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va em todos os lugares do território brasileiro mento econômico e social, isto é, da compatibili-
enquanto norma (direito à saúde), mas não en- zação entre economia de mercado, democracia e
quanto modernização, isto é, não enquanto exis- bem-estar coletivo. A forma como essas dimen-
tência de fato de serviços, equipamentos, profis- sões se combinam configuram diferentes tipos
sionais e recursos financeiros. Os lugares que se de associação entre política econômica e política
encontram mais à margem dos processos atuais social, podendo, por exemplo, constituir um par
de modernização e inserção no mercado global virtuoso entre saúde e desenvolvimento, quando
são justamente aqueles onde o SUS encontra as há simultaneamente o fomento das indústrias
maiores dificuldades para atrair e fixar profissio- ligadas à área, com privilégio do segmento de
nais, manter serviços qualificados e alocar recur- Ciência e Tecnologia e uma regulação voltada
sos financeiros para serem investidos no sistema para critérios sociais e includentes. Quando há
de saúde. uma clara dissociação entre saúde e desenvolvi-
Ao mesmo tempo, observa-se que um novo mento, seja porque a política econômica não está
debate sobre saúde e desenvolvimento, baseado, voltada para o desenvolvimento e a inclusão so-
sobretudo, na indagação a respeito dos conflitos cial ou porque o sistema de saúde não integra o
políticos gerados ao separar a política econômi- esquema de proteção social, isto é, a saúde é
ca, voltada para o complexo produtivo da saúde, responsabilidade individual, o resultado é a exis-
e a política social, voltada para a proteção social tência de um par não virtuoso. Essas diferentes
em saúde, está tomando corpo. Isso porque a combinações podem indicar modelos de associ-
melhoria das condições de saúde da população ação entre saúde e desenvolvimento constituin-
não depende só do êxito das políticas de saúde, do vias virtuosas, não virtuosas e de transição
mas da combinação virtuosa entre desenvolvi- (Quadro 3).

Quadro 3. Modelos de associação entre saúde e desenvolvimento.

Dimensão Modelos de associação entre saúde e desenvolvimento

Virtuoso Transição Não virtuoso

Direito à saúde Presente Presente Presente


Fatores positivos: (ou não) (ou não)
poder de compra do Estado
demandas socialmente legítimas
produtor de serviços e bens, sendo
alguns de alto valor tecnológico através
de institutos públicos
regulação pública voltada
para o interesse coletivo

Política tecnológica (sistema Maduro Incipiente Incipiente


de inovação) Fatores positivos: (ou não)
parcerias exitosas entre produtores de
conhecimento e indústria

Política industrial (fomento Presente Presente Ausente


a setores e nichos Fatores positivos:
competitivos) cadeias de financiamento com juros baixos

Associação entre saúde e Presente Ausente


desenvolvimento expressa
em planos nacionais de
desenvolvimento

Fonte: elaboração própria.


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O Brasil, pelas razões já apontadas ao longo complexo, cujo resultado evidencia-se na grande
do texto, não logrou construir um sistema de saú- dependência de tecnologia do exterior, faz com
de capaz de garantir a saúde como direito ao mes- que o país seja um exemplo de modelo não virtuo-
mo tempo em que se consolidavam os processos so de associação entre saúde e desenvolvimento.
de mercantilização do acesso e da formação do Entretanto, a recente adoção de políticas e pro-
complexo produtivo da saúde. Tal característica, gramas indutores do desenvolvimento nacional,
combinada com a ausência histórica de políticas com iniciativas específicas para a área da saúde,
públicas voltadas para formar um sistema nacio- sugere que o Brasil tem trilhado caminhos im-
nal de inovação na área da saúde, fortalecer a in- portantes rumo ao modelo de transição. Resta
dústria nacional e ampliar a capacidade instalada saber se essas iniciativas serão suficientes e bem-
de empresas inseridas em setores estratégicos do sucedidas.

Colaboradores Referências

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