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artigo ]

Entre o humano
e o divino: as vestes
da Igreja Católica
Between human and divine:
the costumes of the Catholic Church

[ FAUSTO VIANA ]

Fausto Viana é figurinista, cenógrafo e pesquisador. Professor livre-docente


[ 66 ] da ECA–USP. Coordenou o projeto de catalogação do acervo de figurinos do
Theatro Municipal de São Paulo. Participa do projeto de pesquisa As tramas do
café com leite. Colabora com o blog www.vestindoacena.com.
E-mail: faustoviana@uol.com.br

[resumo] A base ritual da Igreja Católica é muito bem estabele-


cida. A mudança dos tempos não causou grandes interferências
nos trajes da Igreja, que já atingiu 2000 anos de idade. Os for-
matos das vestimentas católicas de hoje têm 1400 anos. Este
artigo investiga origens, simbologias e conseqüências do uso
ritualístico dos paramentos religiosos.

[ palavras-chave ]
paramentos; trajes; catolicismo; indumentária; moda.

[abstract] The ritualistic basis of the Catholic Church has been


very well established. The change of times did not affect the
costumes of the church, which is now 2000 years old. The sha-
pes of today’s Catholic costumes were established 1400 years
ago. This article investigates origins, symbolisms and conse-
quences of the ritualistic use of canonicals.

[key words] canonicals; garments; Catholicism; attire; fashion.


Intróito
Tudo começou por ocasião da morte
de João Paulo II, em 8 de abril de 2005.
Nas aulas de indumentária teatral na
Universidade de São Paulo, desenvolvia-
-se o conceito de ritual e de vestimenta naquela beneditina”2. As metas papais
própria para a ocasião – afinal, o teatro vão se confrontar com inúmeras dificul-
é basicamente uma evolução do ritual dades católicas contemporâneas, como
dionisíaco. Assim, dentro das tendên- a perda de fiéis e os escândalos sexuais.
cias contemporâneas da indumentária A arquidiocese de Boston, nos Estados
teatral e como parte de uma escola que Unidos, estava enfrentando acusações
deseja formar artistas pesquisadores em de pedofilia, com cerca de “450 proces-
artes cênicas, os alunos são estimulados sos de abuso sexual, com ameaças de
a investigar as diferentes manifestações pedidos de indenizações cujo total supe-
ritualísticas envolvidas nas diversas re- raria os US$ 100 milhões.(...) Milhares de
ligiões: umbanda, candomblé, judaísmo, arquivos tornados públicos mostram que
hinduísmo (do qual os hare krishna são a Arquidiocese de Boston ocultou casos
uma variante), evangelismo (referin- de padres acusados de abusos, incluindo
do-me aos movimentos evangélicos) e clérigos que cheiraram cocaína e tiveram
muitas outras, entre elas, o catolicismo. relações sexuais com meninas que que-
Este artigo propõe uma investigação so- riam ser freiras”3. Os escândalos também
bre os trajes da Igreja Católica Apostó- envolviam o casamento dos padres e as
lica Romana e sua inserção em alguns discussões em torno de temas polêmicos:
rituais da mesma Igreja. aborto, homossexualismo, divórcio e o
Com a morte de João Paulo II, nova uso de camisinhas como contraceptivos.
disputa se iniciava – ou se completava A escolha do próprio nome do novo
– com a eleição do cardeal alemão Jo- papa (Bento XVI) remete a Bento XV,
seph Ratzinger. Um sacerdote conheci- que foi o “papa da paz”, mas também
do como “linha dura” chegava ao cargo responsável por uma grande reforma [ 67 ]
mais disputado pelos sedentos de poder administrativa da Igreja. Ao abolir a
da milenar Igreja Católica Apostólica tiara de seu escudo, o papa mostra que
Romana. Inicialmente, o novo papa de- reconhece que a separação entre Estado
finiu suas metas de atuação: combater o e Igreja definitivamente ocorreu, o que é
secularismo, conduzir a Igreja em novas moderno e lúcido.
reformas administrativas e exercer as A Igreja, no entanto, não deixa de
atividades designadas ao “Santo Padre”, lado sua magia ritualística. As encena-
que são “santificar, governar e ensinar, ções oficiais permitidas acontecem em
funções que, com o seu serviço ordiná- diversos espaços cênicos: nas procissões
rio supremo, pleno, imediato e universal, de rua, nos cemitérios, nos hospitais, nos
pode sempre exercer livremente buscan- altares e dentro das igrejas, obviamente.
do a salvação de todos”. 1 Não raro acusa-se a Igreja de promover
outras encenações não permitidas, em
lugares menos oficiosos. A luz (difusa,
aparentemente insuficiente) e a músi-
ca, estabelecida de acordo com o que se
está desenvolvendo, complementam o
ritual. As personagens são os sacerdotes,
os ministros e os que estão a serviço da
liturgia. Os próprios fiéis se confundem
nos papéis de público e personagens,
agindo ora passiva, ora ativamente.

Kyrie Eléison
Ter uma formação católica tradi-
cional não é coisa que se despreze. Nem
que se possa ou consiga desprezar, pois
Figura 1- O brasão de Bento XVI a construção do pensamento católico
Impressa em seu brasão papal está – atenção: a referência não é ao pen-
uma capa, símbolo da “religião, que samento cristão, que pode ser vertigino-
indica um ideal inspirado na espiritua- samente distante – é muito bem-feita
lidade monástica e, mais tipicamente, desde o berço. Ou da pia batismal.
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Há uma intrínseca relação das ves- origens. Estes, justamente por terem
tes com todos os momentos de transi- informações importantes, “não gostam
ção na Igreja Católica. Não que a simbo- de dividir, porque ter este conhecimento
logia não seja perfeitamente adequada dá prestígio, dá status. O padre que sabe
aos ritos propostos, nem que a verdade dos paramentos pode até ensinar algu-
cristã não esteja por trás do cerimonial. mas coisas, mas não tudo”, afirma A.B.
Claro que a principal questão vem de O mergulho na literatura católica
quem exerce a autoridade eclesiástica e contemporânea deixa a lacuna ainda
dela se aproveita. Na pia batismal, início mais evidente. Os manuais de liturgia
da “carreira” de qualquer cristão, espera- são precários no que se referem aos
-se uma veste branca, alva, condizente têxteis. Explicações superficiais parecem
com a pureza de quem vai receber o ba- destinadas a informar coroinhas aspi-
tismo. Esta veste, conforme já entendiam rantes de como deve ser sua roupa. Não
os primeiros cristãos, é usada para sig- há nenhum procedimento no que tange
nificar “a renovação” de todo o ser, essa aos cuidados que a indumentária ritua-
transformação de vida interior que o ba- lística exige – não só pela preservação
tismo dá, revestindo o neófito com uma têxtil, mas pela sacrossanta função que
longa túnica imaculada. Hoje ainda, se passa a exercer, assim que toca o corpo
bem que essa túnica seja mais freqüen- do sacerdote, como registra a epígrafe
temente substituída por um simples véu deste texto. Essa transmutação da roupa
branco, a Igreja manda que se revista o cotidiana em ritualística, mágica, para
neocristão, ao sair da pia batismal, com operar entre o humano e o divino, acon-
uma veste especial, transmitindo-lhe, tece em diversas religiões. Lembra-se
pelos lábios do sacerdote, a mensagem: da “roupa de ir à missa”? Normalmen-
“Recebe esta veste branca, que deverás te, além de tudo, era a melhor que o fiel
apresentar sem mancha diante do tribu- poderia alcançar em termos financeiros.
nal de Nosso Senhor Jesus Cristo, a fim Espalhando luz na escuridão, frei
de obteres a vida eterna” (LESAGE,1959, José Ariovaldo da Silva, do Instituto Teo-
[ 68 ] p. 80). lógico Franciscano de Petrópolis, indicou
A certeza de um julgamento final é a saída para tantos questionamentos. A
reforçada novamente em outros sacra- partir do acervo da biblioteca do próprio
mentos: a primeira comunhão, a crisma, Instituto, frei José elabora mentalmente
o casamento, a extrema-unção. Todos, roteiros que possam levar a um entendi-
de uma forma ou de outra, pedem trajes mento do que a indumentária religiosa
específicos, de acordo com o momento. católica significa e de como traçar um
perfil desta trajetória no Brasil. Como
Longa jornada noite adentro parte de um projeto de pesquisa intitu-
Na bem organizada estrutura da lado As tramas do café com leite, a vi-
Igreja Católica – a única empresa de al- sita a Petrópolis renderia ainda muitas
cance mundial que já dura 2 mil anos – descobertas com relação a um item in-
o estudo da indumentária religiosa está vestigado pelo projeto: a veste religiosa
dentro da liturgia que, de forma reduzi- usada no Brasil no período da República
da, quer dizer “culto divino”. Os livros de Velha em São Paulo e Minas Gerais.
liturgia trazem as regras para a execu- Com sabedoria, o frei faz uma análise
ção do ritus. do que significou a vinda da Igreja para a
Não é fácil, no entanto, penetrar América Latina, não deixando de perceber
neste universo. A.B., um controverso as- suas nuances mais destrutivas na intera-
pirante a sacerdote que pediu que sua ção da religião com a atividade estatal.
identidade não fosse revelada, disse:
“São poucos os padres que entendem de Lux in tenebris – os trajes dos
liturgia, apesar de muitos falarem que nossos primeiros sacerdotes
sim. No seminário, a liturgia é parte inte- Não se pode acreditar, em princípio,
grante dos estudos, mas não há nenhum que os padres da Companhia de Jesus
aprofundamento em relação à indumen- (que aqui chegaram em 1549) deseja-
tária. Trabalham-se os procedimentos da vam destruir a nação indígena brasileira.
cerimônia, o uso do turíbulo e do aparato A motivação de padre Manuel da Nóbre-
religioso, mas este é um conhecimento ga ou de José de Anchieta era claramen-
que só vai se efetivar na prática, muito te missionária, de acordo com os relatos
depois, já no exercício da atividade”. feitos por eles mesmos. Parece não haver
Poucos padres, no entanto, vão nenhuma ambição pessoal de enriqueci-
se interessar pela indumentária e suas mento ou manipulação de poder. Havia
o desejo extremo de alcançar e conver-
ter o máximo de almas possível. Não se
pode, naturalmente, estender esta bon-
dade de julgamento a todos.
Este pequeno retorno histórico ser-
ve apenas para indicar alguns curiosos a tradicional batina preta, representante
fatos. Pero Vaz de Caminha, por exem- da pobreza, da devoção ao próximo e a
plo, na Carta do Descobrimento, descre- Deus, acima de todas as coisas.
veu que os nossos nativos andavam nus. Em Roma, no entanto, os aconte-
Teve também – obrigação de relatar os cimentos seguiam em outra direção. De
fatos – tempo para perceber que os ín- acordo com Eamon Duffy, o papa Ale-
dios dormiam xandre VI (que exerceu o Papado entre
1492 e 1503) encontrava-se altamente
sem procurarem maneiras de en- resistente às reformas solicitadas pelo
cobrir suas vergonhas, as quais não mundo cristão com a maior urgência.
eram fanadas; e as cabeleiras delas Pudera: Alexandre VI, um descendente
estavam bem rapadas e feitas e que dos Bórgia, estava criando problemas
uma das índias era tão bem feita ao manter amantes, nomear parentes
e tão redonda, e sua vergonha tão para cargos políticos, tentar concentrar
graciosa que a muitas mulheres de o poder nas mãos de sua família. Além
nossa terra, vendo-lhe tais feições de romper outras tradições religiosas, ao
envergonhara, por não terem as casar a filha Lucrécia Bórgia pela tercei-
suas como ela.4 ra vez. O primeiro casamento fora anu-
lado; o segundo terminou com a morte
Não foi como Diogo Dias5 que agi- do marido, provavelmente assassinado
ram Anchieta e Nóbrega, que pareciam pelo outro filho do papa, César Bórgia.
atender ao pedido de Caminha para que Um olhar mais atento aos trajes de
a Santa Fé Católica cuidasse da salvação Alexandre VI (Figura 2) vai fazer com
dos nativos. que o leitor se pergunte o porquê da se- [ 69 ]
Anchieta, cujo manto (de autentici- melhança entre as figuras 3 e 4, já que
dade contestada por alguns) ainda pode séculos separam as três imagens.
ser visto no Pátio do Colégio, região
central de São Paulo, viria a ser um dos Figura 2- Alexandre VI (1492-1503)
grandes divulgadores dos trajes religio-
sos no Brasil. Nas encenações de seus
autos, livremente inspirados nas ence-
nações portuguesas dos autos de Gil Vi-
cente, a indumentária teria uma função
significativa.
Representações da vida de santos e
instrumento de catequização dos índios,
os autos colocaram em cena os indíge-
nas vestidos. As personagens de santos e
entidades celestiais vestiam-se com rou-
pas européias, e aquelas que deveriam
ser atacadas, pois interferiam na “edu-
cação” dos índios, eram vestidas como
as entidades que faziam parte do culto
dos nativos. Os trajes locais – as penas,
os trançados – são relegadas à categoria
de roupas demoníacas. Após a chegada
dos jesuítas, o vestir – e o despir – no país
jamais seriam os mesmos.

Enquanto isso, no Vaticano...


Anchieta e Nóbrega traziam os trajes
dos missionários da Companhia de Jesus,
que não fugiam muito aos moldes de ou-
tras irmandades da Idade Média. As diver-
sas representações pictóricas de Anchieta
e Nóbrega, ao longo dos tempos, mostram
a auriphrygiata (dourada, que ele ves-
te na foto); a mitra pretiosa, ou mitra
preciosa, que é ricamente adornada e
com pedraria e a mitra simplex, ou mitra
simples, que é branca e lisa. A capa é
chamada capa de asperges ou pluvial.
Trata-se de um

manto grande sem pregas e acol-


chetado adiante, com uma peça em
forma de escudo (clipeus) nas costas
Figura 3 - Leão XIII (1878-1903) na qual se acha, freqüentemente, um
monograma mais ou menos ricamen-
te bordado, e com tiras verticais sim-
ples ou bordadas, nos dois lados da
frente. (...) Hoje é usada também na
bênção sacramental, nas exéquias e
na aspersão dos fiéis, antes da Missa
de Domingo, donde lhe vem o nome
capa de asperges. (...) Como era usa-
da também nas procissões e por isso
tinha capuz como resguardo contra
a chuva (pluvia) chamavam-na tam-
bém pluviale. Como veste litúrgica é
[ 70 ]
conhecida desde o IX século, vindo a
substituir a casula, que então passou
para uso exclusivo na Missa. (...) A cor
da capa de asperges obedece às leis
Figura 4- Bento XVI (2005- ) gerais sobre a cor dos paramentos,
sua matéria geralmente é seda sem
Os três portam quase os mesmos ser estritamente prescrita. (ROWER,
trajes. Na cabeça, com exceção de Bento 1938, p. 30)
XVI, a tiara papal (a de Alexandre VI está
no chão). Segundo Rower, a tiara, é uma Trajam também, por baixo, uma
alva, que é uma túnica branca talar, ou
coroa papal extra-litúrgica. Tem sua seja, que desce até os calcanhares.
origem no camelaucum papal que,
desde o X século, foi crescendo em Origens do traje eclesiástico
tamanho e tomando a forma cônica, Boucher cita que é a partir do sé-
oval ou quase cilíndrica. Como ornato, culo VI que em Roma “um certo número
recebeu três coroas de metal enfiadas, de trajes seculares de uso corrente pas-
a primeira no XII século, a segunda no saram a ter um sentido religioso, e até
tempo de Bonifácio VIII (falecido em certo ponto, caráter simbólico, assim
1303) e a terceira pouco depois. Os criando um traje que ficou codifica-
liturgistas interpretam as três coroas do em seu uso e fixado em sua forma”
como símbolo do poder do papa, de (1987, p.166).
Bispo e de Rei, ou da tríplice Igreja mi- Prosseguindo na identificação,
litante, padecente e triunfante. (...) O Boucher afirma que a túnica (de origem
uso da tiara limita-se à cerimônia da síria e egípcia, curta, com mangas largas
coroação e aos préstitos solenes, an- e corpo mais justo), a alba (variação da
tes e depois das funções pontifícias na túnica clássica, longa e de linho), a ca-
Basílica de São Pedro. (1938, p.120) sula (traje comum a ambos os sexos, um
pedaço de tecido em formato arredon-
Joseph Ratzinger abriu mão des- dado com um buraco central para a ca-
te símbolo até em seu brasão, optando beça, mais curta na frente e com aber-
pela mitra, que pode ser de três tipos: turas dos dois lados para a passagem
das mãos) e a capa pluvial eram parte estilo artístico de cada região, e aceita as
desses trajes. A Igreja teria adotado ain- adaptações que correspondem à menta-
da a estola (mesmo uso atual, adaptação lidade e às tradições de cada povo... deve
do traje grego loros), o manípulo (uma haver o cuidado de manter nobre simpli-
espécie de lenço que se transformou cidade” (grifo do autor) (lGMR, 287)6.
até atingir o formato atual) e o pálio,
derivado do pallium, uma capa romana As roupas de Sua Santidade
drapeada.
Há indícios de que no Quarto Concílio
de Cartago, em 589, os diáconos e o clero
mais baixo foram proibidos de usar a tú-
nica alba e a túnica talaris fora das igrejas
e das ocasiões cerimoniais, o que enfatiza
seu caráter litúrgico (BOUCHER, 1987).
Já na Idade Média, “os próprios pa-
pas viviam profundamente enredados
nas guerras intestinas da nobreza roma-
na e, como vimos, com muita freqüên-
cia a eleição para a cadeira de Pedro era
uma mercadoria à venda ou a ser barga-
nhada” (DUFFY,1998, p. 87). Johnson, por
sua vez, reforça esta teoria ao afirmar
que no século XIII, “as abadias benediti-
nas praticamente haviam deixado de ser
instituições espirituais. Tornaram-se si-
necuras colegiadas, reservadas em gran-
de parte aos membros das classes mais Figura 5 - Bento XVI
altas” (2001, p. 284).
Pois foram estes nobres, que consu- [ 71 ]
miam todos os bens dos fiéis em bebidas
e gastos exagerados, que introduziram
o luxo dos tecidos nas vestimentas re-
ligiosas medievais. Se o sistema levava,
por exemplo, viúvas a serem enviadas a
um convento, por que elas haveriam de
abrir mão do luxo em que viviam? Os
conventos e o ritual cristão vão sendo
impregnados pelos valores mundanos.
Só no Concílio de Trento, em 1545,
é que o inquisidor Michele Ghislieri,
que se tornaria o papa Pio V, conseguiu
oficializar a imposição de trajes cleri- Figura 6 - Bento XVI e o camauro
cais estritos. Mas isto foi feito sob os
olhares do bispo de Trento, o cardeal Não é pela execução ou criação
Ippolito d’Este, “belo, bem-nascido e dos trajes que se pode condenar o atu-
de boas relações e que sempre enver- al papa, já que são confeccionados pela
gava o traje de veludo vermelho de um Gammarelli, uma empresa que presta
príncipe secular – somente seu barrete serviços ao Vaticano desde 1792. Até
vermelho traía o fato de ser um clérigo” mesmo o Pravda, jornal russo, noticiou:
(JOHNSON, 2001, p. 360).
A Igreja voltaria a analisar a questão Quando cardeal, Bento usava basi-
dos trajes novamente apenas no Concílio camente preto. Agora pode ser visto
Vaticano I (1870) e, já na década de 1960, vestido em maravilhosos trajes ro-
no Concílio Vaticano II, quando pequenas xos e vermelhos, com acabamento
mudanças foram autorizadas. Um exem- em peles e fivelas douradas. Neste
plo é o uso das luvas episcopais, que não feriado nas montanhas, o Pontífice
foram proibidas, mas deixaram de ser foi visto usando um boné branco de
mencionadas. Outro é a flexibilização baseball. O Papa Bento XVI não hesi-
quanto aos padrões visuais impostos nos ta em usar roupas de marcas conhe-
desenhos a serem aplicados nos trajes, cidas mundialmente que estão em
para os quais a “Igreja admite o gênero e o seu guarda-roupa. Fez uma aparição
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pa. Como citado, o pluvial tem origem


em um corte arredondado, com um furo
ao meio. Não fosse a simbologia femi-
nina evidente no formato, ainda há a
“agravante” de termos um traje que
pública uma vez usando óculos de encobre o corpo masculino por inteiro,
sol espelhados Gucci. com exceção da cabeça e, ocasional-
Uma loja Gammarelli é das mais mente, das mãos.
elegantes da Via dei Cestari, perto do O frei Plácido de Andrade Barroco,
Panteão. A rua é como a Via Montena- em sua dissertação escrita em 1791, tam-
poleone para os sacerdotes do Vaticano. bém questiona o porquê da inclusão dos
Vende luvas rosa com bordado dourado trajes femininos. Esta é a sua reflexão:
e tecidos luxuosos para bispos e carde-
ais.7 A estola era entre os Romanos um
O papa causou ainda mais furor vestido próprio das mulheres, cha-
quando se anunciou que seus sapatos são mado muitas vezes túnica, que elas
Prada, na mesma época do lançamento usavam debaixo do seu manto palla,
do filme O diabo veste Prada. Não bastas- ou pallium. Correspondia à túnica,
se isso, muita gente riu quando Bento XVI que os homens traziam embaixo da
apareceu em público, no Natal de 2005, toga. É dificultoso na verdade ex-
com um chapéu vermelho, que todos plicar como um vestido próprio das
diziam ser uma brincadeira com o Papai mulheres viesse, não dizemos a servir
Noel. Era um camauro (Figura 6), um gor- aos homens, mas a ser próprio dos
ro de origem medieval feito de veludo (no Ministros Sagrados. Eis aqui em duas
inverno) ou seda (no verão) e debruado de palavras como conjecturam os mais
pêlo de arminho (o que causou a ira dos ilustres escritores. Calígula e outros
ecologistas). Ao resgatar este adereço, por Imperadores de tal sorte se deram
exemplo, Bento XVI dá mostras de que se ao luxo, que trajavam os mesmos
[ 72 ] apóia no que a Igreja tem de mais tradi- vestidos das mulheres. Isto bastou
cional, ou talvez, melhor dizendo, antigo. para que a estola, correndo os tem-
A veste papal da Figura 5, no en- pos, fosse comum a ambos os sexos
tanto, é muito mais instigante do que se e, conseqüentemente viesse a servir
pode supor. O homem que está ali foto- no altar. Em quanto (sic) a mudança
grafado não parece ser a representação extraordinária acrescentam que este
da ponte espiritual entre os homens e o vestido, sendo naturalmente simples,
deus que adoram. Lembra mais uma en- tinha todavia nas extremidades uma
carnação material do desejo não da su- bordadura, ou barra preciosa. (BAR-
blimação, mas da permanência e apego ROCO, 1791, p. 41)
aos bens terrenos.
A mitra é um símbolo antiqüíssimo, A “Santa Mãe” se apresenta, por-
um triângulo que representa a ligação tanto, desta forma: um corpo masculino,
entre o mundo espiritual e a matéria. oculto sob formas e intenções ditas fe-
Pode simbolizar também a tríade Pai-Fi- mininas, de proteção, orientação e con-
lho-Espírito Santo. Há quem interprete dução. Em princípio, parece contraditó-
o triângulo como a trajetória do homem rio – não fossem os verdadeiros desejos
na evolução espiritual: sai do mundo da Igreja Católica.
etéreo, chega, vive e volta ao lugar de Ao menos do ponto de vista dos
origem puro e evoluído. No entanto, trajes, a Igreja busca uma sistemática
mesmo simbolicamente, a mitra se en- de representação que garante ao fiel
contra hoje dividida em duas partes e apenas o entendimento mínimo do que
em um formato arredondado, o que lhe está acontecendo. As cores são estabe-
confere uma polaridade feminina. A trí- lecidas, de maneira geral, para que o fiel
ade, o três, no entanto, é ímpar e mascu- acompanhe
lino. No mínimo, tem-se uma estrutura
conflitante, mas que tem representação o sentimento progressivo da vida
na arquitetura das igrejas: é o caso das cristã em sua caminhada ao longo
góticas, com seu formato de teto que, do ano litúrgico (por exemplo, o li-
explica a Igreja, lembra o de mãos espal- lás da purificação em preparação às
madas em oração. celebrações do Natal e da Páscoa
A aparente confusão se amplia do Senhor, o branco dos períodos
quando atentamos para o corte da rou- da celebração jubilosa dos mesmos
mistérios, o verde no tempo comum
vivo na confiante espera das últimas
realidades). (SARTORE, 1992, p. 19)

O colorido variado dos paramen-


tos, ainda segundo Sartore, tem como
objetivo demonstrar exteriormente as que acompanham o funeral do Conde de
características particulares dos mistérios Orgaz, ricamente vestido com uma arma-
celebrados a cada dia. dura preta e dourada. Na parte de cima,
representando graficamente o plano espi-
A encenação do ritual – o traje ritual, o Conde é recebido por Jesus, Maria
como parte do todo e São João Batista, que guarda enorme
semelhança física com o próprio Conde.
A diferença é que o mundo espiri-
tual traja-se com panos muito simples.
São João usa peles de cabras e restos de
panos. É neste universo que a alma vai
entrar, alerta o pintor.
No universo terreno do quadro vivem
os católicos. Inadvertidamente, seus trajes
sacerdotais continuam sendo usados para
firmar a posição dos homens que fazem
a transição entre vida e morte, matéria e
espírito, palpável e sensorial. No caso do
papa, daquele que liga e desliga. Até bem
pouco tempo, a missa rezada em latim era
entendida por poucos. A função teatral
dos trajes, da música e da encenação su-
pria sensorialmente o que à razão não era
permitido entender. [ 73 ]
Poucas alterações ocorreram na
roupa oficial da Igreja em um longo pe-
ríodo. Improvável esperar uma mudança
significativa em breve.
A.B., o futuro sacerdote que deseja
se manter no anonimato, aponta que já
faz algum tempo que não há a necessi-
Figura 7- O Enterro do Conde de Orgaz, de 1586. dade de se usar o traje em determinadas
Autor: El Greco irmandades.

Temor a Deus, em princípio, quer Os seminários diocesanos, que não


dizer respeito a Deus. Mas cada vez mais são religiosos como os beneditinos,
vivemos uma situação de medo, no sen- por exemplo, não têm mais necessi-
tido mais atual da palavra. O sacerdote dade de usar o hábito, apenas uma
é um ser sobrenatural, místico, que con- espécie de túnica muito simples.
segue transpor limites impostos ao ho- Eles podem usar uma camisa cler-
mem comum. Por sacerdote entende-se gyman, ou uma túnica de cor pre-
xamã, guia, rabino, pastor, médium, ca- ta com clergyman”, conta A.B. Os
valo ou qualquer que seja a denomina- seminaristas, por exemplo, podem
ção recebida nas mais diversas religiões. andar à paisana, com uma “corren-
É o ser que alcança além dos limites dos tinha básica” com uma cruz, ou um
olhos materiais – anda pelos caminhos anel de Nossa Senhora, ou com pon-
da pós-matéria, da pós-morte. Seu en- tinhos que marcam o terço.
tendimento de vida e morte devem aju-
dar outros seres humanos a enfrentar os Mas faz questão de lembrar que
desafios da evolução. várias irmandades ainda portam seus
El Greco (Figura 7) mostra uma trajes tradicionais. Tal como A.B., que
curiosa profusão de trajes. Na parte infe- anda às voltas com as suas opções se-
rior do quadro, que retrata o plano mate- xuais, Bento XVI precisa tomar algumas
rial, estão os ricos trajes da Igreja Cató- decisões que sejam definitivas. Um bom
lica espanhola, inclusive das irmandades, início, no que se refere aos trajes, seria
e os luxuosos trajes da corte espanhola buscar inspiração no próprio livro sagra-
artigo ] FAUSTO VIANA

do do catolicismo. Seria bom lembrar mais símbolos aqui do que pode supor-
que seu orientador maior, Jesus, quan- tar um breve artigo. Mateus certamente
do morreu, suas vestes foram disputa- não aceitaria a produção de Gammarel-
das pelos soldados que o crucificaram, li: “Olhai para os lírios do campo, como
efetivando antiga profecia: “Repartiram eles crescem; não trabalham nem fiam;
entre si minhas vestes e sobre meu man- E eu vos digo que nem mesmo Salomão,
to lançaram a sorte” (Sl 21,19). Há muito em toda a sua glória, se vestiu como
qualquer deles” (Mt 26.28,29). Talvez
fosse o caminho a ser seguido pela Ig-

NOTAS

[1]
Disponível em: <http://www.cnbb.org.br/index.php?op=noticia&subop=7795>. Acesso em: 22
fev 2008.
[2]
Disponível em: <http://www.cnbb.org.br/index.php?op=noticia&subop=7795>. Acesso em: 22
fev 2008.
[3]
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u101297.shtml>. Acesso em:
23 fev 2008.
[4]
Disponível em: < http://www.eduquenet.net/cartacaminha.htm>. Acesso em: 23 fev 2008.
Diogo Dias era um dos membros da expedição em que estava Pero Vaz. Era muito divertido e
[5]

fazia festa com os índios, tocando gaita e dançando com eles.


[6]
Missale Romanum, do Institutio Generalis Missalis Roman. Ed. Typica Tertia, Typis Vaticanis, 2002.
Disponível em: <http://english.pravda.ru/world/europe/10-04-2007/89452-pope_benedict-0>.
[7]

Acesso em: 23 fev 2008.

[ 74 ] REFERÊNCIAS

BARROCO, Frei Plácido de Andrade (1750-1813). Dissertação: sobre a origem das vestes sagradas na
lei da graça. Lisboa: Regia Officina Typpografica, 1791.
BOUCHER, François. 20.000 years of fashion. Nova York: Harry N. Abrams, 1987.

DUFFY, Eamon. Santos e pecadores — história dos papas. São Paulo: Cosac & Naify, 1998.

JOHNSON, Paul. História do cristianismo. Rio de Janeiro: Imago Editora, 2001.

ROWER, Frei Basílio. Diccionário litúrgico. Petrópolis: Vozes, 1928.

SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille M. Dicionário de liturgia. São Paulo: Paulus, 1992.

CRÉDITOS PARA FIGURAS:

Figura 1: Site do Vaticano (www.vatican.va/phome_po.htm)


Figura 2: Afresco de Pinturicchio, nos aposentos dos Bórgia, no vaticano.
Fonte: DUFFY, Eamon. Santos e pecadores — história dos papas. São Paulo: Cosac & Naify, 1998, p. 146.

Figura 3: Biblioteca do Congresso Norte-Americano, imagem de domínio público.

Figura 4: Foto de Gianni Giansati.


Fonte: ISRAELY, Jeff. Bento XVI — o alvorecer de um novo papado. São Paulo: Escrituras, 2007, p. 172.

Figura 5: Foto de Gianni Giansati


Fonte: ISRAELY, Jeff. Bento XVI — o alvorecer de um novo papado. São Paulo: Escrituras, 2007, p. 166.

Figura 6: Foto de Gianni Giansati


Fonte: ISRAELY, Jeff. Bento XVI — o alvorecer de um novo papado. São Paulo: Escrituras, 2007, p. 174. 

Figura 7: O Enterro do Conde de Orgaz, de El Greco, domínio público.


Fonte: JANSON, H.W. História da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 1992.

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