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Entre o humano
e o divino: as vestes
da Igreja Católica
Between human and divine:
the costumes of the Catholic Church
[ FAUSTO VIANA ]
[ palavras-chave ]
paramentos; trajes; catolicismo; indumentária; moda.
Kyrie Eléison
Ter uma formação católica tradi-
cional não é coisa que se despreze. Nem
que se possa ou consiga desprezar, pois
Figura 1- O brasão de Bento XVI a construção do pensamento católico
Impressa em seu brasão papal está – atenção: a referência não é ao pen-
uma capa, símbolo da “religião, que samento cristão, que pode ser vertigino-
indica um ideal inspirado na espiritua- samente distante – é muito bem-feita
lidade monástica e, mais tipicamente, desde o berço. Ou da pia batismal.
artigo ] FAUSTO VIANA
Há uma intrínseca relação das ves- origens. Estes, justamente por terem
tes com todos os momentos de transi- informações importantes, “não gostam
ção na Igreja Católica. Não que a simbo- de dividir, porque ter este conhecimento
logia não seja perfeitamente adequada dá prestígio, dá status. O padre que sabe
aos ritos propostos, nem que a verdade dos paramentos pode até ensinar algu-
cristã não esteja por trás do cerimonial. mas coisas, mas não tudo”, afirma A.B.
Claro que a principal questão vem de O mergulho na literatura católica
quem exerce a autoridade eclesiástica e contemporânea deixa a lacuna ainda
dela se aproveita. Na pia batismal, início mais evidente. Os manuais de liturgia
da “carreira” de qualquer cristão, espera- são precários no que se referem aos
-se uma veste branca, alva, condizente têxteis. Explicações superficiais parecem
com a pureza de quem vai receber o ba- destinadas a informar coroinhas aspi-
tismo. Esta veste, conforme já entendiam rantes de como deve ser sua roupa. Não
os primeiros cristãos, é usada para sig- há nenhum procedimento no que tange
nificar “a renovação” de todo o ser, essa aos cuidados que a indumentária ritua-
transformação de vida interior que o ba- lística exige – não só pela preservação
tismo dá, revestindo o neófito com uma têxtil, mas pela sacrossanta função que
longa túnica imaculada. Hoje ainda, se passa a exercer, assim que toca o corpo
bem que essa túnica seja mais freqüen- do sacerdote, como registra a epígrafe
temente substituída por um simples véu deste texto. Essa transmutação da roupa
branco, a Igreja manda que se revista o cotidiana em ritualística, mágica, para
neocristão, ao sair da pia batismal, com operar entre o humano e o divino, acon-
uma veste especial, transmitindo-lhe, tece em diversas religiões. Lembra-se
pelos lábios do sacerdote, a mensagem: da “roupa de ir à missa”? Normalmen-
“Recebe esta veste branca, que deverás te, além de tudo, era a melhor que o fiel
apresentar sem mancha diante do tribu- poderia alcançar em termos financeiros.
nal de Nosso Senhor Jesus Cristo, a fim Espalhando luz na escuridão, frei
de obteres a vida eterna” (LESAGE,1959, José Ariovaldo da Silva, do Instituto Teo-
[ 68 ] p. 80). lógico Franciscano de Petrópolis, indicou
A certeza de um julgamento final é a saída para tantos questionamentos. A
reforçada novamente em outros sacra- partir do acervo da biblioteca do próprio
mentos: a primeira comunhão, a crisma, Instituto, frei José elabora mentalmente
o casamento, a extrema-unção. Todos, roteiros que possam levar a um entendi-
de uma forma ou de outra, pedem trajes mento do que a indumentária religiosa
específicos, de acordo com o momento. católica significa e de como traçar um
perfil desta trajetória no Brasil. Como
Longa jornada noite adentro parte de um projeto de pesquisa intitu-
Na bem organizada estrutura da lado As tramas do café com leite, a vi-
Igreja Católica – a única empresa de al- sita a Petrópolis renderia ainda muitas
cance mundial que já dura 2 mil anos – descobertas com relação a um item in-
o estudo da indumentária religiosa está vestigado pelo projeto: a veste religiosa
dentro da liturgia que, de forma reduzi- usada no Brasil no período da República
da, quer dizer “culto divino”. Os livros de Velha em São Paulo e Minas Gerais.
liturgia trazem as regras para a execu- Com sabedoria, o frei faz uma análise
ção do ritus. do que significou a vinda da Igreja para a
Não é fácil, no entanto, penetrar América Latina, não deixando de perceber
neste universo. A.B., um controverso as- suas nuances mais destrutivas na intera-
pirante a sacerdote que pediu que sua ção da religião com a atividade estatal.
identidade não fosse revelada, disse:
“São poucos os padres que entendem de Lux in tenebris – os trajes dos
liturgia, apesar de muitos falarem que nossos primeiros sacerdotes
sim. No seminário, a liturgia é parte inte- Não se pode acreditar, em princípio,
grante dos estudos, mas não há nenhum que os padres da Companhia de Jesus
aprofundamento em relação à indumen- (que aqui chegaram em 1549) deseja-
tária. Trabalham-se os procedimentos da vam destruir a nação indígena brasileira.
cerimônia, o uso do turíbulo e do aparato A motivação de padre Manuel da Nóbre-
religioso, mas este é um conhecimento ga ou de José de Anchieta era claramen-
que só vai se efetivar na prática, muito te missionária, de acordo com os relatos
depois, já no exercício da atividade”. feitos por eles mesmos. Parece não haver
Poucos padres, no entanto, vão nenhuma ambição pessoal de enriqueci-
se interessar pela indumentária e suas mento ou manipulação de poder. Havia
o desejo extremo de alcançar e conver-
ter o máximo de almas possível. Não se
pode, naturalmente, estender esta bon-
dade de julgamento a todos.
Este pequeno retorno histórico ser-
ve apenas para indicar alguns curiosos a tradicional batina preta, representante
fatos. Pero Vaz de Caminha, por exem- da pobreza, da devoção ao próximo e a
plo, na Carta do Descobrimento, descre- Deus, acima de todas as coisas.
veu que os nossos nativos andavam nus. Em Roma, no entanto, os aconte-
Teve também – obrigação de relatar os cimentos seguiam em outra direção. De
fatos – tempo para perceber que os ín- acordo com Eamon Duffy, o papa Ale-
dios dormiam xandre VI (que exerceu o Papado entre
1492 e 1503) encontrava-se altamente
sem procurarem maneiras de en- resistente às reformas solicitadas pelo
cobrir suas vergonhas, as quais não mundo cristão com a maior urgência.
eram fanadas; e as cabeleiras delas Pudera: Alexandre VI, um descendente
estavam bem rapadas e feitas e que dos Bórgia, estava criando problemas
uma das índias era tão bem feita ao manter amantes, nomear parentes
e tão redonda, e sua vergonha tão para cargos políticos, tentar concentrar
graciosa que a muitas mulheres de o poder nas mãos de sua família. Além
nossa terra, vendo-lhe tais feições de romper outras tradições religiosas, ao
envergonhara, por não terem as casar a filha Lucrécia Bórgia pela tercei-
suas como ela.4 ra vez. O primeiro casamento fora anu-
lado; o segundo terminou com a morte
Não foi como Diogo Dias5 que agi- do marido, provavelmente assassinado
ram Anchieta e Nóbrega, que pareciam pelo outro filho do papa, César Bórgia.
atender ao pedido de Caminha para que Um olhar mais atento aos trajes de
a Santa Fé Católica cuidasse da salvação Alexandre VI (Figura 2) vai fazer com
dos nativos. que o leitor se pergunte o porquê da se- [ 69 ]
Anchieta, cujo manto (de autentici- melhança entre as figuras 3 e 4, já que
dade contestada por alguns) ainda pode séculos separam as três imagens.
ser visto no Pátio do Colégio, região
central de São Paulo, viria a ser um dos Figura 2- Alexandre VI (1492-1503)
grandes divulgadores dos trajes religio-
sos no Brasil. Nas encenações de seus
autos, livremente inspirados nas ence-
nações portuguesas dos autos de Gil Vi-
cente, a indumentária teria uma função
significativa.
Representações da vida de santos e
instrumento de catequização dos índios,
os autos colocaram em cena os indíge-
nas vestidos. As personagens de santos e
entidades celestiais vestiam-se com rou-
pas européias, e aquelas que deveriam
ser atacadas, pois interferiam na “edu-
cação” dos índios, eram vestidas como
as entidades que faziam parte do culto
dos nativos. Os trajes locais – as penas,
os trançados – são relegadas à categoria
de roupas demoníacas. Após a chegada
dos jesuítas, o vestir – e o despir – no país
jamais seriam os mesmos.
do do catolicismo. Seria bom lembrar mais símbolos aqui do que pode supor-
que seu orientador maior, Jesus, quan- tar um breve artigo. Mateus certamente
do morreu, suas vestes foram disputa- não aceitaria a produção de Gammarel-
das pelos soldados que o crucificaram, li: “Olhai para os lírios do campo, como
efetivando antiga profecia: “Repartiram eles crescem; não trabalham nem fiam;
entre si minhas vestes e sobre meu man- E eu vos digo que nem mesmo Salomão,
to lançaram a sorte” (Sl 21,19). Há muito em toda a sua glória, se vestiu como
qualquer deles” (Mt 26.28,29). Talvez
fosse o caminho a ser seguido pela Ig-
NOTAS
[1]
Disponível em: <http://www.cnbb.org.br/index.php?op=noticia&subop=7795>. Acesso em: 22
fev 2008.
[2]
Disponível em: <http://www.cnbb.org.br/index.php?op=noticia&subop=7795>. Acesso em: 22
fev 2008.
[3]
Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/folha/mundo/ult94u101297.shtml>. Acesso em:
23 fev 2008.
[4]
Disponível em: < http://www.eduquenet.net/cartacaminha.htm>. Acesso em: 23 fev 2008.
Diogo Dias era um dos membros da expedição em que estava Pero Vaz. Era muito divertido e
[5]
[ 74 ] REFERÊNCIAS
BARROCO, Frei Plácido de Andrade (1750-1813). Dissertação: sobre a origem das vestes sagradas na
lei da graça. Lisboa: Regia Officina Typpografica, 1791.
BOUCHER, François. 20.000 years of fashion. Nova York: Harry N. Abrams, 1987.
DUFFY, Eamon. Santos e pecadores — história dos papas. São Paulo: Cosac & Naify, 1998.
SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille M. Dicionário de liturgia. São Paulo: Paulus, 1992.