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LÊNIN
INCENDIÁRIO
Lições da tática bolchevique
durante a primeira revolução
russa de 1905
Nota introdutória
“Indo ao combate, devemos desejar a vitória e saber indicar o verdadeiro caminho que
a ela conduz”. (Lenin)
O prólogo do prólogo
Engels dizia, a respeito de Marx, no prefácio à terceira edição
alemã de O 18 Brumário:
“Essa notável compreensão da história viva da época, essa lúcida
apreciação dos acontecimentos ao tempo em que se desenrolavam, é, real-
mente, sem paralelo”2.
Pode-se dizer que Lenin ombreava com Marx nesta capacidade,
adquirida não só através de árduo estudo, como também pela participação
direta na luta de classes.
Em 1904 estourou a guerra russo-japonesa. Lenin recusou qual-
quer atitude defensista, ou seja, de “defesa da pátria”, nesta guerra de
partilha. Ao contrário dos mencheviques, ele denunciou vivamente a guer-
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ra como uma disputa entre dois bandos imperialistas e previu que ela
aceleraria a decomposição da autocracia czarista3. Assim, escreveu Lenin
sobre a fragorosa derrota sofrida pelo Império na Batalha de Porto-Artur,
em que as tropas russas perderam cerca de 120.000 homens entre mortos,
feridos e prisioneiros: “A capitulação de Porto Artur é o prólogo da capitulação
do czarismo”4.
A 9 de Janeiro de 1905, 140.000 pessoas se reuniram em São
Petersburgo. Seu objetivo era entregar uma petição ao Czar reclamando
melhorias nas condições de vida. A direção deste movimento estava nas
mãos de um agente provocador, o Padre Gapon, que seria justiçado em
1906 por um grupo de combate ligado ao partido socialista-revolucioná-
rio. Nas cercanias do Palácio de Inverno, a tropa abriu fogo contra os
operários desarmados: mais de mil deles morreram na hora. A indignação
varreu a Rússia e o “Domingo Sangrento” foi a chispa que incendiou toda
a pradaria. Assimilando o impacto destes episódios na consciência das
amplas massas, Lenin diria, ainda no calor dos acontecimentos:
“Não haverá medidas draconianas nem proibições capazes de con-
ter as massas das cidades, enquanto se deem conta de que, sem armas, se
verão condenadas a ser metralhadas em massa pelo governo, ao menor
pretexto. Cada qual se esforçará por todos os meios a procurar um fuzil,
ou pelo menos um revólver, por ocultar suas armas à polícia e por se
preparar para oferecer resistência aos sanguinários lacaios do czarismo. Os
começos, diz o adágio, são sempre difíceis. Aos operários custou muito
trabalho passar à luta armada. Porém o governo os obrigou agora a isso.
Deu-se o primeiro passo, o mais difícil de todos”5.
A revolução, afinal, rebentara, confirmando a genial previsão de
Lenin.
*
Lenin recebeu no exílio, em Genebra, os informes do estouro da
revolução na Rússia. É apaixonada sua primeira saudação aos operários
insurretos, publicada no jornal Vperiod (órgão bolchevique), a 24 de janei-
ro de 1905:
“Força contra força. Ferve a luta nas ruas, se levantam barrica-
das, crepitam as descargas e troam os canhões. Correm rios de sangue,
se levantam as chamas da guerra civil pela liberdade. Moscou e o Sul, o
Cáucaso e a Polônia se dispõem a unir-se ao proletariado de Petersburgo.
‘Liberdade ou morte!’, é agora a consigna dos operários. Muito se decidirá
hoje e amanhã. A situação muda a cada hora. O telégrafo transmite notí-
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cias espantosas e todas as palavras empalidecem ante os acontecimentos
de que somos testemunhas. Cada um deve estar preparado para cumprir
com seu dever de revolucionário e de social-democrata. Viva a revolução!
Viva o proletariado insurreto!”.6
A revolução crescia. Teses há muito defendidas pelos marxistas
na Rússia, como o papel dirigente do proletariado na revolução futura, e
que foram objeto de longos trabalhos teóricos da juventude de Lenin –
dentre os quais se destaca “O desenvolvimento do capitalismo na Rússia” (1898)
– realizavam-se perante os olhos de todos. Apenas em janeiro o número
de grevistas atingiu a cifra de 440.000, o que equivalia a mais do que fora
registrado nos dez anos anteriores. Atrás dos operários, animadas por eles,
começavam as sublevações camponesas, cresciam as manifestações estu-
dantis e intelectuais, a revolução ganhava um caráter realmente popular.
Os problemas da tática, isto é, do que fazer nestes momentos crí-
ticos, em que não se admitia a menor perda de tempo, passavam à ordem
do dia.
“É preciso saber ensinar algo à revolução”
O movimento espontâneo de massas ultrapassava em muito as for-
ças orgânicas social-democratas, elas próprias, cindidas entre bolcheviques
e mencheviques e uma série de grupos intermediários, que Lenin chamava
de “o pântano”. Mas esta era só uma faceta da questão. De toda a Rússia
brotavam forças novas, frescas, apresentando-se para a luta revolucionária.
Lenin não admitia, nestas horas, nenhum ar de desalento, de reclamação, de
decadência, e estigmatizava os camaradas presos aos velhos tempos. Já em
fevereiro, dizia, no seu trabalho “Novas tarefas e novas forças”:
“O organizador prático que se queixa, nestas condições, da falta
de homens, se equivoca como se equivocava madame Rolland quando em
1793, no momento culminante da grande revolução francesa, escrevia que
a França não tinha homens, que todos eram pigmeus. Quem assim se ex-
pressa não vê o bosque porque o impede as árvores; reconhecem que os
acontecimentos os cegaram, que em vez de dominar, como revolucionários,
com sua consciência e atividade, os acontecimentos, se deixam dominar e
ultrapassar por eles. Semelhantes organizadores deveriam passar à reforma e
abrir caminho às forças jovens, cuja energia substitui amiúde com vantagens
o que lhes falta em experiência”7.
Como é evidente, os problemas de organização entrelaçavam-se
profundamente às grandes questões da direção política do movimento. Le-
nin já cimentara muito antes, em “Que Fazer?” (1902), os princípios ideo-
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lógicos do partido marxista de novo tipo, assentando a justa relação entre
consciência e espontaneidade, ou, entre a organização dos operários e a
organização dos revolucionários. Agora, diante da maior revolução desde a
Comuna de Paris, que punha fim ao período de “desenvolvimento relativa-
mente pacífico” atravessado pela Europa em quarenta anos, a vida submetia
o partido a uma prova muito séria. Lenin sempre defendeu a necessidade
de aprender das massas, observar e colher suas formas de luta e seu espírito
criativo, “entretanto – anotava - a tarefa não é somente aproveitar os ensinamentos
da revolução; é preciso também que saibamos ensinar algo à revolução, imprimir-lhe um
cunho proletário, a fim de assegurar-lhe a vitória verdadeira” 8. Ou seja: o problema
da tática nada mais é do que o problema de assegurar os meios para que o
proletariado dirija a revolução, e não se prostre covardemente na cauda dela,
lamentando a “debilidade das próprias forças”, a “incultura das massas” ou
outros disparates do tipo, sempre ressuscitados pelos reformistas. Dizia:
“A todos os oportunistas agrada dizer-nos: aprendam da vida. La-
mentavelmente, eles entendem por vida só as águas quietas dos períodos
pacíficos, os tempos de estancamento, nos quais a vida apenas avança. Eles,
gente cega, ficam sempre atrasados com relação aos ensinamentos da vida
revolucionária. Suas doutrinas mortas sempre ficam atrás da torrente impe-
tuosa da revolução, que expressa as mais profundas reivindicações da vida,
aquelas que involucram os mais arraigados interesses das massas popula-
res”9.
Lenin reclamava não apenas uma análise científica, criteriosa, da cor-
relação de forças e do futuro do movimento revolucionário, mas também
um vivo trabalho de agitação e propaganda entre as massas, orientado por
consignas acessíveis, combativas e claras. Repudiava o método oportunista
de eludir as grandes necessidades do tempo com frases tão grandiloquen-
tes quanto ocas. Dizia, a propósito: “O oportunista necessita sempre de consignas
que, vistas de perto, só contém frases sonoras, como uma espécie de decadente acrobacia
verbal”10.
Defendia e empenhava grande parte do seu tempo em escrever edi-
toriais curtos, acerbos, palpitantes, para o órgão do Partido e as organiza-
ções locais. Deste modo:
“Nos artigos de Lenin publicados pelo Proletári, o Partido recebe
uma análise marxista científica da marcha da revolução, brilhantes prognós-
ticos sobre seu desenvolvimento ulterior, palavras de ordem claras e preci-
sas, amplas diretivas e indicações”.11
Além do órgão ilegal do Partido, ele logrou, nestes meses tempes-
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tuosos, com a ajuda de Máximo Gorki, fazer circular um jornal político legal
de massas, o Novata Jizn (“Vida Nova”).
No entanto, não era apenas o problema das consignas que atraía a
sua atenção. A questão das novas formas de luta apresentadas pela revo-
lução russa – destacadamente, da transformação da greve de massas em
insurreição armada – assumia grande relevo:
“Por outro lado, para determinar de modo concreto a tática de um
partido revolucionário nos momentos mais tempestuosos da crise nacional
de que sofre o país, é a todas as luzes insuficiente limitar-se a assinalar quais
classes são capazes de atuar em prol do triunfo da revolução. (...) Por isso,
se ao avaliar os períodos revolucionários, nos limitamos a determinar a linha
de ação das distintas classes sem analisar suas formas de luta, nosso juízo será
incompleto, desde o ponto de vista científico não será dialético, e desde o
ponto de vista político prático degenerará em raciocínios mortos”12.
Lenin fustigava, portanto, os “dirigentes” que se contentavam em
ser “intérpretes do movimento”, ficando à margem dos acontecimentos;
fustigava os que se limitavam a propor tarefas, sem saber forjar os instru-
mentos capazes de realizá-las. Exigia de todo o partido que se educasse e
educasse às massas nas próprias ações de combate. Ensinava a militância
(sobretudo os dirigentes) não só a ler nos livros, ensinava-a também a ler na
própria vida.
Material para tanto não faltava. A revolução seguia seu curso, impla-
cável. As greves de massas se estendiam pelo país, e os primeiros Sovietes
da história se formaram. Na primavera, o campo entrou decididamente na
luta: mesmo nos recônditos mais sonolentos da velha Rússia semifeudal o
chão parecia tremer, e a luta de classes despertava as massas camponesas,
não raro reprimidas com selvageria pelos gendarmes. Destacamentos guer-
rilheiros formavam-se espontaneamente. Em junho de 1905 ocorreu um
fato de importância capital: o Encouraçado Potemkin, um dos orgulhos da
frota de guerra do czar, se sublevou perto de Odessa, onde os operários
vinham travando uma luta política encarniçada. Durante vários dias a ban-
deira vermelha tremulou perante o mundo.
Esta situação punha na ordem do dia o problema da insurreição
armada. Esta questão ocupa, de fato, desde o início dos acontecimentos
revolucionários, e principalmente a partir do segundo semestre, todas as
atenções e toda a energia de Lenin. Contudo, antes de passar à nova fase,
havia uma outra questão histórica fundamental posta sobre a mesa: a da
relação entre a revolução burguesa e a revolução socialista.
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“Somos partidários da revolução ininterrupta”
Um dos novos problemas apresentados em 1905 foi o do papel do
proletariado na revolução democrático-burguesa, nas condições particula-
res do século XX. Este problema tinha, no seu cerne, a questão da aliança
operário-camponesa, e era, desde logo, um ponto de divergência irreconci-
liável entre bolcheviques e mencheviques.
Nas primeiras semanas das jornadas revolucionárias, Lenin escre-
veu, em seu artigo “Duas táticas”: “A partir de 9 de janeiro, o movimento operário
está se convertendo perante os nossos olhos em uma insurreição popular”13. Apoiando-
-se na famosa carta de Marx, em que este dizia que o triunfo da revolução
democrática na Alemanha dependeria de uma “segunda edição das guerras
camponesas”, assim como na sua posição acerca da repartição da terra nos
Estados Unidos (passagens cuidadosamente soterradas pelos oportunistas),
o chefe da revolução russa dirá:
“Dificilmente haverá no mundo outro país no qual o campesinato
tenha que sofrer tantas torturas, tal opressão e humilhação como na Rússia.
Porém, quanto mais sombria tenha sido a opressão, tanto mais poderoso
será o despertar, tanto mais irresistível sua acometida revolucionária. E ao
proletariado revolucionário com consciência de classe corresponde apoiar
com todas as suas forças esta acometida, para que não deixe pedra sobre
pedra da velha e maldita Rússia autocrática, feudal, escravista, para que faça
surgir uma nova geração de homens livres e intrépidos, uma nova Rússia
republicana, na qual possa travar-se livremente nossa luta proletária pelo
socialismo”14.
Em outra parte, cravará: “Pois da revolução democrática começare-
mos a passar em seguida, e precisamente na medida das nossas forças, das
forças do proletariado com consciência de classe e organizado, à revolução
socialista. Somos partidários da revolução ininterrupta. Não nos deteremos
na metade do caminho”15. É preciso reconhecer que nascia aí o esboço da
formulação que, doze anos depois, orientaria os bolcheviques no labirinto
histórico instalado entre fevereiro e outubro de 1917.
Além do problema camponês e da relação entre revolução burguesa
e socialista, cujo desenvolvimento já constituía um enorme passo à frente
em relação ao século XIX, Lenin sentava com estas formulações as bases
de uma verdadeira teoria da hegemonia, que se demonstraria crucial à me-
dida em que as tempestades revolucionárias se deslocavam para o Oriente,
onde a classe operária era apenas uma minoria da população. Como atuar
no movimento democrático-burguês florescente? O proletariado defende-
ria uma revolução do tipo da de 1848 – isto é, um aborto de revolução – ou
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uma do tipo de 1789, isto é, verdadeiramente popular, radical, jacobina? Os
comunistas deveriam marchar a reboque da burguesia traidora ou à frente
do proletariado e do campesinato revolucionários? Estas questões ocupam
uma parte enorme dos escritos (e, consequentemente, do valioso tempo) de
Lenin naqueles dias.
Aos que temiam que o proletariado “perdesse” a direção do movi-
mento, e usavam este temor como justificativa da inércia e da paralisia, ele
replicava:
“Desde o ponto de vista proletário, a hegemonia corresponde, na
guerra, a quem luta com maior energia, a quem sabe aproveitar todas as oca-
siões para assestar um golpe ao inimigo, àquele cujas palavras não diferem
dos fatos e que é, portanto, o dirigente ideológico da democracia, que critica
tudo o que sejam posições às meias”16.
Para Lenin, a formulação madura, cientificamente exata do proble-
ma, seria: ditadura democrático-revolucionária do proletariado e do campe-
sinato, cujo órgão seria o governo provisório revolucionário, apoiado nas
massas armadas. Como se sabe, foi esta a linha adotada pelo III Congresso
do POSDR (reunido em abril, em Londres, que foi sabotado pelos menche-
viques, que se reuniram em Conferência à parte), cujas teses Lenin desen-
volveu no seu magistral trabalho “Duas táticas da social-democracia na revolução
democrática”, aparecido pela primeira vez em julho daquele ano, em Genebra.
Aí, Lenin não deixará pedra sobre pedra do menchevismo e da sua tor-
pe posição de fazer do movimento revolucionário um mero apêndice da
burguesia liberal contrarrevolucionária. Trata-se, na verdade, não apenas de
duas táticas, como também de duas estratégias distintas e antagônicas.
A título de ilustração, compare-se a original, e dialética, formulação
leninista da passagem da revolução democrática à revolução socialista, da
aliança operário-camponesa e da luta do proletariado por assegurar a hege-
monia na revolução, com o que dizia o menchevique L. Trotsky naqueles
dias:
“O poder revolucionário só pode se apoiar numa força revolucioná-
ria ativa. Quaisquer que sejam os pontos de vista quanto ao desenvolvimen-
to posterior da revolução russa, o fato é que nenhuma classe social, salvo o
proletariado, mostrou-se até hoje capaz de apoiar o poder revolucionário e
nem sequer disposta a fazê-lo”17.
Que papel dirigente caberia ao proletariado na revolução, se se resig-
nasse a ser tão-somente vanguarda dele mesmo? Que seria feito do “poder
revolucionário” se ficasse isolado, incapaz de se apoiar numa espécie de ree-
dição das guerras camponesas? Para Lenin, Trotsky, com efeito, não passava
11
de um “charlatão”:
“Quando o charlatão Trotsky escreve agora... que um ‘padre Gapon
só pode surgir uma vez’, que ‘não há lugar para um segundo Gapon’, o faz
simplesmente porque é um charlatão. (...) Para chegar a ser grande, uma
revolução democrática que recorde e sobrepasse a dos anos 1789-1793, e
não a de 1848-1850, tem que pôr de pé massas gigantescas, incorporá-las à
vida ativa e aos esforços heroicos, a uma ‘fundamental realização histórica’;
tem que arrancá-las da terrível ignorância, da opressão inaudita, do incrível
atraso e do estupor sem esperança em que vivem”18.
Como se vê, nenhuma semelhança havia entre a tese da “revolução
permanente” à lá Trotsky e a teoria científica da revolução permanente de
Marx e da revolução ininterrupta de Lenin. Somente a falsificação histórica
poderia reivindicar algum parentesco entre estas e aquela.
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