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O diário de Elisa

De vez em quando esqueça algum pertence na mão de outra pessoa.


Só pra ter certeza de que vai vê-la de novo.

UM
O céu está pálido, tem estado assim nas últimas semanas, mas mesmo assim eu
tenho surfado. Nada poderia estragar meus momentos com o mar.
Quando você mora sozinho, acaba aprendendo algumas coisas importantes e
essenciais para você mesmo. Como por exemplo, aprender a dar valor ao que
tem lá fora, porque você vai precisar muito em seus vários dias de tédio.
Eu aprendi a atravessar a rua e olhar as ondas quebrarem naquelas pedras
enormes no Jardim de Allah. É um ótimo programa, quando não se tem porcaria
nenhuma para fazer com ninguém.
Não é que eu não tenha amigos e nem que eu esteja dizendo que a natureza é
algo para se apreciar apenas quando não se tem porcaria nenhuma para fazer, é
só que quando eu preciso de companhia boa parte dos meus amigos não estão
disponíveis.
A correria do dia-a-dia tem nos deixado um pouco ocupados demais. Sempre
nos vemos nos finais de semana, mas ás vezes tiro o final de semana apenas para
mim.
Atravesso a rua e faço um cara furioso buzinar várias vezes e gritar alguma
coisa para me ofender.
Sento na grama. Minhas costas repousando em um tronco de um dos coqueiros.
A chuva começa a cair e a molhar meus cachos – a melhor parte de surfar em
um dia de chuva – e então percebo que é chegada a hora de me jogar na água.
Jogo-me e espero, espero as ondas afogarem mais algumas pedras, e então meus
pensamentos. E eu posso ver, palavras, cenas e desejos se misturando à água
salgada. Sinto-me leve. Sinto-me livre. Mas também sinto meus pulmões
perderem nessa batalha.
Chego à superfície, a prancha presa ao meu pé, espero uma boa onda e,
enquanto isso, posso ver pessoas passarem no calçadão, me olhando, me
chamando de louco, talvez.
Ignoro os olhares dos meus espectadores e lembro os meus dias de surf nas
praias geladas do Canadá. Quando passei alguns meses por lá e ao invés de
passar meu tempo pescando ou montando uma coleção de folhas de bordo, o
divertido era surfar e quase congelar. Sensação estranha, mas muito boa.
Apesar de aquela tempestade, que acabara de começar, não conseguisse –
obviamente – deixar a água tão gelada quanto a do Canadá, até que dava para
quebrar um galho, e, se conseguia fazer com que cada parte do meu corpo
tremesse, então valia à pena.
Vi uma onda vir em minha direção, eu estava distraído demais para pegá-la e
ela me submergiu.
Rodopio dentro da água e posso sentir a prancha bater em minha canela
enquanto ela tenta voltar para a superfície.
Recupero o fôlego depois de alguns minutos, sento na prancha e espero pela
próxima onda. Dessa vez mais atento.
A chuva fica mais forte e eu quase não posso enxergar, a não ser as folhas dos
coqueiros brigando com o forte vento e ninguém – além de mim – na praia.
Vejo uma onda vir em minha direção. Começo a remar com os braços e olho de
relance para a onda média e furiosa atrás de mim. Levanto e sinto a maravilhosa
sensação.
Frio. Uma onda forte tentando me derrubar. Uma chuva tão forte quanto a onda.
Perigo.
Então, quando caio da prancha e uma onda me submerge novamente, sinto
como se lançassem várias facas contra o meu corpo. Nada que eu não esteja
acostumado.
Volto à superfície e sinto a água salgada arranhar minha garganta. Pisco os
olhos rapidamente e tento respirar.
Ao me recuperar, olho de relance para o lugar onde ficam várias pedras. Minha
parte preferida da praia.
Então eu vejo uma garota na pedra mais alta e pisco meus olhos várias vezes,
para ter certeza de que o que estou vendo é real. E é.
A chuva ainda está forte e não posso enxergar tudo com clareza. Mas posso ver
que ela está com um vestido que vai até os joelhos, um casaco preto e o capuz na
cabeça, tem uma mochila preta e leve nas costas, os braços abertos e, então, ela
se aproxima mais para a beira da pedra. Eu avanço correndo para a praia.
Tento correr, mas a prancha está presa ao meu pé. Arranco-a e corro, lutando
para que as ondas não me derrubem.
Aumento a velocidade da minha corrida e olho para a garota. Antes que ela se
jogue, eu tenho de chegar. Antes que as ondas a estraçalhem e a joguem contra
as pedras como uma boneca de pano, eu tenho de chegar.
- Ei! – gritei, e balancei um braço para o alto, tentando chamar sua atenção, mas
ela não podia me ouvir. A chuva estava forte demais, ou ela só queria ignorar
qualquer pessoa que tentasse interromper seu plano suicida.
Passei correndo pela grama e pelos coqueiros. Cheguei às pedras. Elas são
escorregadias e tão traiçoeiras quanto o mar. Andei por cima delas com cuidado.
Cheguei perto da garota e fiquei mais nervoso. De repente, a tarefa de se
equilibrar nas pedras e não cair parecia ridiculamente mais difícil.
- Ei. – sussurrei e toquei em seu ombro. Ela deu um pulo para frente e quase
caiu, deu um grito, mas eu a segurei firme. – Não faz isso.
Ela estava com um Ray-ban escuro e as suas mãos estavam firmes em meus
ombros molhados.
Apesar de estar vestida, eu senti como se ela estivesse nua, porque o seu vestido
de malha fina desenhava o seu corpo. Nada ousado demais, mas mesmo assim
eu conseguia sentir o calor das suas costas em minhas mãos.
- Não fazer o que? – ela finalmente falou e me empurrou, tentando se equilibrar
nas pedras. Em questão de equilíbrio, posso dizer com total convicção de que ela
era pior do que eu.
- Eu sei que você ia pular. Porque ia fazer isso? – eu fui atrás dela, os braços
abertos, tentando manter o equilíbrio e não cair.
- Eu não ia pular! – Ela começou a rir descontroladamente.
- Porque você está rindo? Parecia que você ia se jogar! – eu disse, também
rindo, mas não tão descontroladamente.
- O jeito que você me segurou. Porque estava tão desesperado? Eu só estava
aproveitando o mar. Eu gosto do mar em tempestades. E você deve saber que
tempestades por aqui não são muitos comuns, então eu tenho que aproveitar.
- Ah, claro, sei como é.
Andei em silêncio até chegar ao lado dela. Não trocamos uma palavra nesse
curto espaço de tempo.
Eu queria ficar ali conversando com ela. Apenas porque era extremamente
difícil encontrar alguém que gostasse do mar quando o tempo estava daquele
jeito. A maioria das pessoas costuma odiar.
Depois de mais alguns minutos de silêncio olhando as ondas baterem contra as
pedras – uma conversa totalmente agradável para mim, devo confessar – ela
simplesmente andou apressada em minha direção e se bateu em mim, tropeçou,
mas antes que caísse na água, eu a segurei.
Ao invés de pedir desculpas ou se mostrar simpática como há alguns minuto,
ela seguiu em frente, com seu andar desastrado.
- Não vai agradecer?
- Pelo que? – ela se virou um pouco, não parecia estar muito interessada em
olhar para mim. Mas seu jeito tímido me fazia sentir algo bom.
- Por ter te salvado duas vezes. – coloquei as mãos nos bolsos da minha bermuda
e esperei que ela dissesse algo agradável, que não fosse apenas um obrigado.
- Duas vezes? – ela deu uma risada curta.
- Bom, eu te impedi de se suicidar e impedi que você caísse na água com o seu
jeito graciosamente desastrado.
Mas ela apenas sorri e nada sai de sua boca. Nem um obrigado, nem nada
agradável.
Então ela se virou e foi embora, mas não parei de observá-la.
- Eu perdi minha prancha de surf por sua causa, sabia? – Gritei e esperei que ela
pelo menos olhasse em minha direção, mas nem isso.
A chuva parou um pouco, e agora só chuvisca. Assisto ela andar pela pequena
subida e tirar o capuz. Ela para no ponto de ônibus, com os braços cruzados.
Percebo que é um pouco estranho demais ficar observando uma pessoa – que eu
nunca havia encontrado – por mais de um minuto e resolvo voltar para nadar.
Senti meu pé bater em algo e olhei para baixo. Um caderno.
Peguei o caderno e olhei para os lados, me certificando de que ninguém me
pegaria bisbilhotando. O caderno tem a capa dura e marrom, mas nada escrito
nela.
Abro e me deparo com a primeira folha preenchida por flores e desenhos
pequenos de sapatilhas e estrelas. No centro da página, o nome Diário de Elisa
em preto, com letras bem bonitas. É algo bem vintage.
Sinto-me tentado a bisbilhotar as outras páginas, mas eu não gostaria que
fizessem isso se achassem algo meu onde está escrito boa parte da minha vida.
Corri até o ponto de ônibus e procurei a garota, mas ela não estava mais lá.
DOIS
- Eu tenho até medo de abrir isso. – Lucas virou a garrafa de cerveja, sem tirar
os olhos do caderno.
O caderno está no centro da mesa de jantar e nós dois estamos sentados olhando
para ele, como se ele fosse uma bomba que vai explodir a qualquer momento. A
luz da sala está desligada, então a única coisa que está clareando a mesa é um
abajur.
- Não deve ser tão ruim. – dei de ombros.
- E porque você ainda não abriu? – ele repousou a garrafa na mesa e tamborilou
os dedos, me encarando.
Dei de ombros e descansei na cadeira.
- Cara, é sério! As garotas têm histórias sinistras. – ele pegou a garrafa
novamente e deu um longo gole.
A campainha toca e eu levanto para atender. Abro a porta e o meu sorriso largo
aparece quando vejo a Kim.
- Oi, Kim. Tudo bom? – eu disse, tendo a certeza de que eu estava olhando para
ela um pouco demais, agindo como um completo idiota. De novo.
- Oi! Vai me deixar aqui fora? – ela dá um sorriso largo.
- Ah, desculpa! Pode entrar. – Saio da porta e dou espaço para que ela entre.
- Eu trouxe isso aqui. – ela diz sentando à mesa e jogando uma sacola cheia de
latas de cerveja. – O Maurício já deve estar chegando.
- Você sabe que o Felipe odeia Maurício, né? Se o Felipe pudesse te ter só para
ele, ele seria o cara mais feliz de todos os tempos. – Lucas disse e deu uma
gargalhada.
- É mentira! Você sabe que admiro o Maurício. – me expliquei para Kim e ela
deu de ombros.
- Porque esse escuro? E esse livro em cima da mesa? Vocês vão tentar algum
tipo de magia negra? – ela disse, abrindo uma lata.
- O garanhão aí se bateu com uma garota na praia e ela esqueceu o diário caído
no chão. Que lindo conto de fadas! – Lucas disse e jogou uma lata de cerveja
para mim.
- Legal. Então a noite hoje se resumirá a descobrirmos os segredos de uma
garota desconhecida? – Kim disse, enquanto analisava a capa do diário.
- Não. Eu só quero achar ela de novo pra devolver, ta? Ninguém aqui vai ler
nada. Tá decidido.
- Ai garoto! – Kim disse, me devolvendo o diário. Olha o relógio no pulso e dá
um sorriso malicioso. – Bom, a galera chega já.
- O que vamos jogar hoje? – Lucas parece animado e abre a milésima lata de
cerveja.
- Cara, você tem certeza que ainda não tem cirrose? – olho sério para ele, mas
mesmo assim ele prefere dar risada a responder.
Levanto com o diário nas mãos e deixo Kim e Lucas conversando. Atravesso o
corredor grande e escuro e entro em meu quarto.
Depois da ameaça que o diário correu de ser lido pelos meus amigos, eu tinha
de achar um lugar seguro para ele.
Eu sempre fui de levar garotas para meu quarto e elas costumavam ter certa
liberdade comigo, então qualquer lugar que eu colocasse o diário, seria
ameaçador. Eu não queria perdê-lo, eu queria achar a garota e devolver o diário
pra ela.
Coloquei na gaveta do meu criado mudo e voltei para a sala.
Havia mais três pessoas da faculdade ali, pessoas que eu não conhecia, mas eu
havia comunicado que qualquer um seria bem-vindo.
Começamos a beber. Kim fez pipoca doce e uma garota loira esquentou as
panquecas que havia trazido. Um cara de cabelo azul trouxe o Xbox. O de
cabelo vermelho trouxe jogos para o Xbox.
Depois de mais ou menos meia hora minha casa estava lotada e a música estava
alta o suficiente para assustar os vizinhos. Eu temia isso, e foi exatamente o que
aconteceu.
O senhor Boris, do apartamento ao lado, batia tão forte na porta que todos
pararam de dançar e baixaram o volume da música.
Mandei que todos esperassem e procurei por Kim, que estava na cozinha
bebendo com o Maurício e comendo a pipoca doce que havia feito.
Puxei-a para o canto da cozinha e sussurrei.
- Meu vizinho Boris, lembra dele? Ele tá na porta, esse velho vai estragar a festa
de novo. O que eu faço?
- E eu que sei?
- Você sempre se dá bem nas merdas que faz. Me ajuda, vai.
- Ta. Vem comigo e só confirma tudo o que eu falar. – ela passou na minha
frente e jogou a lata de cerveja no lixo. – Galera, presta atenção aqui! Vocês vão
se esconder, o velho do lado quer estragar a festa, mas vamos dar um jeito.
Apenas se escondam.
- Eu vou ficar no quarto do Felipe com a Lissandra. – um garoto bêbado disse,
agarrando ela pela cintura.
- Nem sonha! – ela disse, fugindo dos seus braços.
Kim abriu porta e eu me escondi no pé do sofá.
- Oi, senhor. Tudo bom?
- Estaria tudo bem se não fosse pelo barulho. Eu não consigo dormir!
- Bem, me desculpa, eu estava jogando Just dance e acho que deixei o volume
um pouco alto demais. Não vai acontecer de novo.
- Você não mora aqui.
“Me solta, seu infeliz.” Lissandra gritou, provavelmente fugindo dos braços do
garoto bêbado.
- O que foi isso? – Boris disse, tentando olhar por trás do ombro de Kim.
Levantei do chão e fui até a porta.
- Oi, seu Boris! Desculpa pelo barulho todo! Eu estou treinando para uma peça
do grupo de teatro.
- Era a voz de uma mulher. – ele disse, com a cara carrancuda.
- Bom, eu vou fazer papel de gay na peça. – dei um sorriso largo.
- Ah, entendo. É bom que esteja fazendo teatro, fico feliz de ver que está
fazendo algo que não seja namorar garotas em seu apartamento o tempo todo.
Mas quem é essa garota?
- Eu sou Kim, prima dele. Estou passando as férias da faculdade aqui. Sou do
Rio Grande do Sul.
- Rio Grande do Sul? Eu nasci lá! Isso é bom. Está gostando da cidade?
- Sim, estou amando, obrigada. Não se preocupe, seremos mais silenciosos.
- Obrigado.
Ele saiu andando devagar com sua bengala e Kim fez sinal de vitória. Lancei
um sorriso para ela e tentei controlar a vontade de beijá-la. Essa vontade
aparecia cada vez que ela sorria, ou estava feliz. E a boca dela era o alvo dos
meus olhos a maior parte do tempo.
- Você sabia que ele é do Rio Grande do Sul? – eu disse, envolvendo o ombro
dela com um dos meus braços, e ela me abraçou.
- Aquele sotaque é inconfundível. – ela sorriu. – Papel de gay na peça? Essa vai
entrar para as pérolas. – ela deu uma tapa na minha barriga e voltou para a
cozinha.
Olhei ao redor e apreciei a certeza de que eu seria um pouco mais popular na
faculdade, pelo menos durantes os próximos dois meses, já que eu faria mais
festas.
Algumas pessoas fumavam e bebiam. Outros apenas jogavam vídeo games.
Alguns na cozinha comiam e bebiam, fazendo o desafio de quem bebe um copo
de vodka mais rápido. Eu queria estar na cozinha, porque Kim estava lá, mas
não queria que ela percebesse o que eu sentia por ela. Muito menos queria que
Maurício percebesse, já que o cara era enorme, lutava judô e era muito
ciumento.
Lucas chegou cambaleando com uma lata na mão, mas eu a tirei dele e joguei
em cima da mesa.
- Cara, para de beber. – eu disse e sentamos no sofá.
- Porque desligaram a música? – ele disse, embolando as palavras.
- Você acabou de se esconder do Boris, esqueceu?
- Ah, aquele velho é um chato! Porque você ainda não fuzilou ele, cara?
- Você ta falando muita merda, sabia? – levantei do sofá e gritei. –Vamos jogar
verdade ou desafio. Vamos animar essa droga de festa!

***
O garoto de cabelo azul pegou uma lata de cerveja e usou como microfone.
Estamos na terceira rodada e nada de extraordinário aconteceu ainda, apenas
verdades estúpidas que não mudaram em nada as nossas vidas.
Ele girou a garrafa.
- Ora, ora! Lucas pergunta para a Lissandra! – o garoto de cabelo azul disse
sorridente.
Todos nós sabemos que Lissandra é apaixonada por Lucas, mas com certeza
beijá-lo ou transar com ele enquanto ele está bêbado não estava nos planos dela.
- Verdade ou desafio? – Lucas perguntou, encarando Lissandra.
- Ele tem pelo menos uma queda por ela? – a garota loira que trouxe panquecas
sussurrou no meu ouvido.
- Ele já me disse que acha ela uma gracinha. Acho que pode acontecer alguma
coisa... – dei de ombros e voltei à atenção para o jogo.
- Desafio.
- Finalmente! – o garoto de cabelo azul levantou os braços em comemoração.
- Você vai para o banheiro comigo. – Lucas disse, levantando.
- Para que? – ela disse, olhando para ele atravessado.
- Não me diga que você não quer...
Todos rimos e a incentivamos a ir, afinal todos na sala sabiam o quanto ela era
afim do Lucas. Ainda assim, segui os dois até o banheiro e puxei Lucas pelo
braço.
- Cara, eu sei que a gente adora fazer isso e é tudo muito bom, mas ela é virgem!
– eu sussurrei.
- Eu gosto dela, Felipe. Eu só nunca te contei.
- Suas palavras não têm nenhum valor quando você está bêbado.
Ele tentou ir embora e o puxei pelo braço de novo.
- Tem certeza?
- Absoluta, cara. – ele me olhou sério e voltou para o banheiro.
Voltei para a sala e passei os olhos por todos os lados. Não encontro Kim. Vou
até cozinha e ninguém está lá. Nem mesmo o namorado dela eu consigo
encontrar.
De repente a idéia de que eles podem estar no meu quarto me deixa furioso.
Não que eu considere uma falta de respeito, mas eu odeio o namorado dela e
odeio o fato de ele estar tocando nela, quando ele nem mesmo merece.
Fui até o corredor escuro e abri a porta do meu quarto.
Kim estava tentando se livrar dos braços de Maurício, dizendo algo parecido
com “você simplesmente não consegue ficar um dia sem me irritar”.
Eles me olharam, estagnados.
- Felipe, desculpa, eu... – ela tentou dizer, mas parecia procurar as palavras
certas.
- Ta tudo bem. Sai daqui.
Ela pegou sua bolsa e Maurício pegou sua jaqueta, sem me encarar.
- Não, Kim. Você fica. – eu disse, olhando nos olhos dela, torcendo para que ela
ficasse.
- Olha, cara, desculpa, a gente só...
- Cala a boca, Maurício. Sai da minha casa. Não piora as coisas.
Ele saiu e fechou a porta atrás dele. Tranquei a porta com a chave e me voltei
para Kim. O quarto só estava iluminado pelo abajur do meu criado mudo.
Fiquei encostado na porta e ela estava em pé ao lado da minha cama. Ficamos
calados, mas eu não podia tirar os meus olhos dela. E eu também não podia falar
nada, se nem sabia o que estava acontecendo.
Então o silêncio foi interrompido pelo choro dela. Ela sentou na minha cama e
colocou o rosto entre as mãos. Sentei ao lado dela.
- Me conta. O que ele fez com você?
- Ele me traiu com uma garota que trabalha no Starbucks. Ele sempre vai lá e
acabaram se conhecendo. Além disso, estamos apenas em uma crise de
relacionamento. Nada demais.
- Nada demais? – sentei mais perto dela e coloquei seu rosto entre minhas mãos.
– Para com isso. Você merece mais.
- Não.
- Merece sim. Eu sei que posso não ser o melhor amigo do mundo, mas você
nunca percebeu? O quanto é especial pra mim?
- Isso é muito legal da sua parte, Felipe. Mas...
- Olha pra mim. – fiz com que ela levantasse o olhar para mim e sequei suas
lágrimas com meu polegar. Olhei aqueles olhos verdes que, finalmente, estavam
fixos nos meus. Era hora de confessar, seja lá o que acontecesse em seguida. –
Eu te amo.
Ela ficou mais séria e suas lágrimas parecem ter se multiplicado. Fiquei em
desespero.
- O que foi, Kimberlly?
Então, sem falar nada mais, ela me beijou.
Enterrei minha mão direita em seus cabelos e depois tirei sua blusa. O jeito que
ela me beijava era intenso, como se estivesse se segurando para fazer isso há
muito tempo.
Ela me empurrou e sentou em cima de mim, sem parar de me beijar. Tiro seu
sutiã, mas ela para.
- O que foi? – eu disse, preocupado.
Ela sai de cima de mim e senta na beira da cama, enfiando os dedos entre os
cabelos.
- Eu não posso.
- Eu entendo.
- Não, você não entende.
- Olha, desculpa. Foi você que me beijou e eu gostei, mas não me culpa.
- Sim, a culpa é minha! Assumo a culpa de qualquer porcaria que você quiser!
Porque afinal de contas é assim, não é? Eu sempre sou a culpada de tudo.
- Estamos mesmo falando de nós dois agora? Ou isso ainda é sobre o seu
problema?
- É melhor a gente não se falar mais. Eu... Droga. – ela pegou a bolsa e andou
até a porta, mas eu levantei da cama e peguei em seu braço. Ficamos nos
encarando por alguns segundos.
- Fala comigo, Kim.
- Eu quero te beijar, como eu nunca quis beijar alguém. Você é tão idiota. Você
nunca percebeu?
Eu dei um sorriso e ela soltou o braço.
- Não posso conversar com você agora, nem amanhã, nem depois de amanhã,
nem enquanto eu estiver com tantos problemas.
- Porque você tem que escolher passar por tudo isso sozinha?
- Porque não é simples, e porque você não pode fazer nada por mim. – ela dá as
costas e gira a chave da porta.
- Vem cá, fala comigo.
Ela solta o braço da minha mão novamente, furiosa.
- Estou grávida, Felipe. – ela me encara, séria.
- Que? – sinto meus olhos arderem e as lágrimas lutarem para sair.
- Eu trepei com o meu namorado, não usamos camisinha e agora eu vou ter um
filho. Entendeu? Ou quer que eu desenhe?
Não tive nenhuma reação, fiquei ali parado, olhando para aquele rosto lindo e
pensando como ela poderia ser tão incrível e idiota ao mesmo tempo. Assisti ela
ir embora, e não fiz mais nenhum esforço para fazer ela voltar.
Talvez eu devesse abraçá-la, dizer a ela o quanto ela é importante e que esse
tipo de coisa acontece, mas Kim era uma menina correta demais, eu estava tão
estagnado quanto ela. E ela se foi, como todas as coisas boas.
TRÊS
Desci do ônibus e tirei o celular do bolso. Nenhuma mensagem de Kim. Segui
para o campus e sorri para um dos seguranças.
Passei pela pracinha e alguns caras fumavam maconha.
- Olha o carinha da festa!
Acenei com a cabeça e dei as costas, mas um deles veio atrás de mim.
- Ei! Quando vai rolar outra festa daquela?
Virei para ele, a expressão calma, mas um pouco impaciente. Mudei o peso do
corpo de uma perna para outra e mostrei um dos meus livros para o cara tão alto
quanto eu.
- Estudar cara, sem festas por um tempo.
- Sei... Sabe que ta rolando muita festa, né? – ele se balançou e me olhava
esquisito, como se estivesse duvidando da minha desculpa.
- Bom, estarei de fora por um tempo. – dei um sorriso e dei as costas novamente.
Antes que eu entrasse na biblioteca para devolver alguns livros de anatomia,
uma garota me parou na porta. Ela tinha os cabelos pretos e longos com as
pontas roxas, um coturno preto e bem limpo, blusa vermelha e quadriculada,
short preto e suspensório.
- Como foi seu fim de semana? – ela fez cara de sedutora e se aproximou mais
um pouco. Chegou a ser engraçado, mas claro que eu não ri.
- E porque eu te responderia esse tipo de coisa?
- Eu estava na sua festa. Vi a Kim sair do seu quarto depois que o Maurício saiu.
Sou a melhor amiga dele.
- Olha, não quero confusão, ta? – tentei passar pela porta, mas ela empurrou sua
mão contra meu peito.
- Sem confusões, se você me der alguma coisa é claro.
- O que você quer... Qual o seu nome, afinal? – franzi as sobrancelhas e mordi
os lábios.
- Você sabe o que eu quero! E se me der, o Maurício não vai saber de nada. – ela
mudou seu tom de voz de doce para ameaçador e me olhou firme.
- Mas não aconteceu nada. A Kim é a minha melhor amiga, só isso! – eu disse,
balançando a cabeça negativamente.
- E você acha que o Maurício vai acreditar em mim, ou em você? Afinal de
contas eu não sou tão feia assim, sou? – ela deu as costas e me olhou novamente,
enquanto andava.
“Vamos acabar logo com isso”, pensei e fui atrás dela.
Entramos no banheiro da biblioteca e ela fechou a porta. Entrei mais um pouco,
nervoso, indeciso, confuso. Aquela garota seria para mim um passatempo
rápido, pelo menos ela iria me distrair um pouco.
- Oi.
Disse uma voz conhecida atrás de mim.
Virei e ela estava lá. Kim.
Estava em pé e estagnada. Tão nervosa, indecisa e confusa quanto eu.
Agora ela tinha uma franja e um estilo diferente. Não estava vestindo nenhum
short jeans e blusa de grife com uma maquiagem de garota meiga.
Ela estava com um vestido florido, sapatilha, brincos pequenos e rosas, uma
pulseira no pulso esquerdo, o cabelo preso no alto e a franja solta e despojada.
- Você... Está linda. – eu disse, tropeçando nas palavras e colocando minhas
mãos nos bolsos de trás.
Ela olhou para o chão, lambeu o lábio inferior, e finalmente olhou para a garota
roqueira que havia me levado ali.
-Valeu pela ajuda. – Kim disse, com um sorriso.
A garota assentiu e virou as costas.
- Ei, não se esquece de não contar a ninguém sobre isso. Ninguém pode saber
que eu estou aqui. – ela balançou a cabeça positivamente para convencer a
garota de não contar nada.
- Pode deixar. – a garota sorriu e saiu do banheiro.
Eu andei mais um pouco para perto dela. Ela estava com uma das suas mãos na
pia de mármore e parecia estar escondendo seu corpo de mim, como se estivesse
com medo.
- O que é? Porque você sumiu? Não atendeu minhas ligações. – eu disse,
colocando minha mão em cima da dela.
- Você começou a complicar as coisas. Só isso. – ela disse, desviando o olhar e
tirando sua mão da minha.
- E porque veio me procurar? – dei de ombros e virei as costas para ela, andando
de um lado para o outro no banheiro.
- Porque eu preciso de você.
- É isso o que você faz. Me procura quando está em apuros. O que você fez
dessa vez? – virei de frente para ela, as mãos na cintura, ereto, disposto a ser o
mais duro que eu pudesse.
- Não é o que eu fiz, é o que eu vou fazer. – ela estava entrelaçando os dedos no
alto do ventre, nervosa e se aproximando de mim. – Promete que não vai me
odiar?
- Me conta. – eu disse, fechando os olhos com impaciência.
Então eu senti a boca dela contra a minha e a sua mão apertando meu pescoço.
Deixei ela me beijar e retribuí.
Então ela soltou o meu pescoço, sem fôlego. Ficamos nos olhando e ela pegou
sua bolsa.
- Aonde vai? – eu disse, abrindo os braços e decidido a não deixá-la ir. – Você
não pode simplesmente me beijar e ir embora. Vai fazer isso o tempo todo? Está
me usando?
- Sabe que não é isso. Eu senti sua falta, queria te beijar, queria te ver. Mas
preciso ficar sozinha por um bom tempo.
- Eu assumo.
- Assume o que? – ela disse, sua voz rouca era como uma música boa que eu
jamais desejaria parar de ouvir.
- Eu assumo. – eu disse novamente e toquei o ventre dela.
- Você é louco. Você precisa ter os pés no chão. Não é tão simples assim.
- Tem razão. Na verdade, é mais simples do que você imagina. Me deixa tentar!
– toquei os braços dela e a beijei novamente. – Eu não sou o Maurício, você vai
ser feliz, eu prometo.

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