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ROCHA, José Raimundo Magalhães. Desenho nº 1.

In: Antologia Rabiscos 2: Desenho e


Arte Contemporânea. Feira de Santana: Fundo de Cultura da Bahia, 2014.

Desenho nº 1

Ao perder-se no deserto, um piloto de aviões depara-se com certo garoto que


lhe aborda com um insólito pedido: que realize o desenho de um carneiro.
Mesmo atônito, o piloto providencia lápis e papel. Contudo, a criança não se
dá por satisfeita. Alega que os animais traçados ora são muito grandes, ora muito
velhos ou doentes. Por fim, o piloto apresenta-lhe a representação de uma caixa
totalmente fechada, exceto por um pequeno orifício. O garoto, enfim, contenta-se,
pois, através daquela fresta imaginária, “viu” o carneiro que tanto desejara.
No clássico francês Le Petit Prince, de 1943, o escritor Antoine de Saint-
Exupéry (1900-1944) apresenta-nos esta cena em que o diálogo que se dá,
sobretudo, através do traço. Uma alegoria a respeito da linguagem do desenho,
entendida de maneira ampliada, como ação inerente à própria condição de ser
humano e sua necessidade de sonhar, conhecer, espantar-se e, sobretudo, deixar
as marcas dessas experiências.
Na opinião do artista e teórico espanhol Juan José Gómez Molina (2003, p.
24), a história do desenho é a história das transformações daquilo que se entende
como tal. Um percurso que, recentemente, conduziu esta linguagem a um patamar
de relevância dentro da arte contemporânea, foco de renovado e intenso interesse
por parte de artistas e teóricos da arte.
Após investigar esse fenômeno, a artista inglesa Annabel Tilley escreveu um
artigo, publicado pelo periódico Garageland – revista que faz parte das ações de
comunicação da Transition Gallery, sediada em Londres.
Por meio de entrevistas com artistas e especialistas, Tilley remonta o clima da
capital inglesa durante as décadas de 1990 e 2000 com relação ao que ela
denominou, no próprio título do artigo, como “a ascensão inexorável do desenho”
(The Inexorable Rise of Drawing). Tilley (2012, p. 1), então, propõe um
questionamento que gera mais indagações que certezas: “Porque o desenho é tão
relevante hoje?” E responde: “Porque nós ainda estamos tentando definir o que ele é
e imaginar o que poderia tornar-se”. 1
Nos limites das incertezas apontadas por Annabel Tilley, pode-se construir um
breve mapeamento capaz de contextualizar e compreender a citada reavaliação do
desenho no âmbito da arte contemporânea.
Sabe-se que o termo que deu origem à palavra desenho surgiu durante o
Renascimento. O disegno renascentista – mais próximo, em português, aos
significados do termo desígnio – é palavra encarregada de dar nome às interseções
entre materialidade e pensamento onde a expressão por meio da linha assume
papel de meio reflexivo, projetivo e comunicante. Como esclarece o arquiteto
Vilanova Artigas (1975, p. 9):

No Renascimento o desenho ganha cidadania. E se de um lado é risco,


traçado, mediação para a expressão de um plano a realizar, linguagem de
uma técnica construtiva, de outro lado é desígnio, intenção, propósito,
projeto humano no sentido de proposta do espírito. [...] O “disegno” do
Renascimento, donde se originou a palavra para todas as línguas ligadas ao
latim, como era de esperar, tem os dois conteúdos entrelaçados.

Portanto, desenho é palavra de atração, disseminada por um amplo espectro


de atividades. Sua presença se faz em territórios de conhecimento distintos – arte,
ciência ou técnica – em que é determinante para os processos de concepção,
realização, investigação, clarificação de estratégias e percursos.
Enquanto objeto artístico, o apreço ao desenho também surgiu no período
renascentista. Segundo o historiador Arnold Hauser (1995, p. 341- 342), o
Renascimento instituiu um conceito de arte baseado no homem e na ideia do gênio
criador e, portanto, dá origem ao gosto pelo esboço e pelo rascunho. Deste modo,
os fragmentos, desenhos “incompletos”, estudos e apontamentos são considerados
registros do processo criativo dos mestres, marcas de seus pensamentos,
documentos da obra em seu nascedouro. Em italiano, o esboço (bozzetto) também é
chamado de pensiero, haja vista a proximidade entre marca gráfica e pensamento.
Desde então, foi estabelecido ao desenho, dentro das grades curriculares das
academias de arte, a atribuição de ser fundamento para execução em outras
linguagens – notadamente a pintura, a escultura e a arquitetura. Não sem motivo,

1
“Why is drawing relevant today? Because we are still trying to define what it is, and, imagine what it
might become.”
Giorgio Vasari (1511-1574), no seu célebre As vidas dos mais excelentes pintores,
escultores e arquitetos, apontou o desenho como pai das três artes.
(LICHTENSTEIN, 2006, p. 20).
Contudo, a polissemia presente na palavra disegno não se manteve. Com as
mudanças no entendimento da arte no ocidente, o sentido assumido pelo desenho
foi submetido ao papel daquilo que cada época entendeu como sendo a atividade
artística e seu campo de atuação.
Estas mudanças foram frutos de uma crise que se exprimiu na arte a partir
dos eventos que culminaram na Revolução Industrial. Crise proveniente do abalo
sofrido, principalmente, na cultura e sociedade europeia, no momento em que a
industrialização tornou-se fato pujante.
Surgiu o design, que supriu uma necessidade utilitária das antigas
características de projeto e desígnio relacionadas ao desenho. No entanto, o que
mais abalou as crenças arraigadas no desenho artístico foi o advento da fotografia.
A verdadeira razão de ser das academias de arte – o papel de representar e
estabelecer a relação entre as coisas – rapidamente teve sua estrutura abalada pela
precisão e imediatismo dos processos fotográficos. A fotografia se impôs de forma
radical como novo modelo de realidade. Substituiu o apontamento e amplia, pelo
que passou a revelar do mundo visível, o campo do possível para representação.
Alguns desenhistas, fascinados, apropriaram-se de suas qualidades, transpondo
efeitos fotográficos para o trabalho com desenho.
Ocorreu o que Flávio Motta (1975, p. 33) denominou de “[...] desvio que houve
à luz das tradições neoclássicas”. Um empobrecimento da palavra, um afastamento
do seu sentido original. O papel paradigmático assumido pela pintura no ocidente e
a gradativa separação entre as chamadas belas artes e as artes de ofício, seguindo
os pressupostos de uma emergente ideologia burguesa que discriminava e valorava
pejorativamente os conhecimentos adquiridos pela via do trabalho manual,
estendeu-se ao desenho. Mantendo-se como fundamento para o exercício de
outras artes, o desenho adquiriu o novo papel que se estabeleceu à arte como um
todo: o puro deleite.

Passaram assim, a falar em desenho como “coisa” de lápis e papel. Os


propósitos, os desígnios, o conteúdo se separou da forma, na procura de
um deleite, de uma confirmação imediata. A forma reduziu sua significação.
Foi este o desvio. (MOTTA, p. 33)
Somente a partir de meados do século XX – após as rupturas promovidas
pelas vanguardas modernas – os artistas retomaram usos e qualidades que a
palavra disegno tinha no seu surgimento.
Não só o desenho, mas tudo que se entendia como arte, mesmo as
conquistas modernas, tiveram seus alicerces sacudidos ao longo do século XX. Esta
mudança tem suas raízes no pós-guerra, com a transferência da capital mundial da
arte de Paris para Nova York.
A presença de Marcel Duchamp nos Estados Unidos resulta na chegada do
readymade e na rápida difusão do pensamento deste artista, que passa a permear
todos os movimentos artísticos subsequentes. Avessos às restrições programáticas
dos movimentos modernos europeus, os artistas deste período trabalharam por um
processo de rompimento da forma e de aproximação da arte com a vida. Deste
modo, promoveram o legado que, nas décadas seguintes, originou o que – para
alguns autores – se denomina arte contemporânea.
Notadamente, muitos teóricos concordam que o início da grande reavaliação
e consequente renovação na posição da linguagem do desenho se dá,
principalmente, entre os anos 1960 e 1970.
Nesse período, muitos artistas buscaram não mais a obra de arte em si, mas,
as marca do pensamento em fluxo. Consequentemente, a materialidade do objeto
artístico perdeu importância. Alguns artistas passaram a encarar o desenho como
uma arte do processo, visto que o ato (gesto/ação) de desenhar parece sempre
descrever a si próprio.
Na Land Art, por exemplo, utilizou-se a paisagem como suporte para marcas.
Obras como A Line Made by Walking, de Richard Long – em que a ação de
desenhar acorre pelo traçado resultante do caminhar do artista pelo deserto,
evidenciam uma proposta que aciona a dimensão espacial e sensorial do desenho.
Ponto crítico de uma estratégia que se manifesta na própria intenção da obra ser ou
não desenho.
Por outro lado, houve também, em algumas dessas obras, o esvaziamento da
carga emotiva e consequente racionalização do processo criativo. O uso de mapas,
diagramas e fotografias que indicam ou registram o percurso de ação do artista abre
uma significativa dimensão de projeto e documentação que, a partir de então,
passou a integrar a arte contemporânea. Por exemplo, os desenhos que o artista
conceitual/minimalista Sol Lewitt (1928-2007) fez circular eram apenas diagramas
indicativos, projetos de obras, “receitas”, desenhos que poderiam ser executados por
qualquer pessoa que seguisse tais regras.
O ecletismo da década de 1980 ampliou a liberdade dos artistas para misturar
influências diversas. Recursos gráficos advindos de outras áreas, como a ilustração
científica, o desenho de moda, o desenho publicitário, devidamente inseridos na arte
no processo de dessacralização instituído pela Pop Art, ampliaram o repertório
imagético dos artistas/desenhistas.
Enfim, novo interesse pelo desenho aflorou em meados dos anos 1990,
culminando na década de 2000. Como afirma Ema Dexter (2005, p. 08) –
organizadora de Vitamin D, New Perspectives in Drawing, um dos mais importantes
levantamentos sobre o desenho produzido contemporaneamente – os artistas que
optaram pelo desenho como sua principal mídia ganharam, nas últimas décadas,
destaque nos circuitos mais importantes da arte.
São artistas que indicam um horizonte múltiplo e amplo de possibilidades.
Pode-se citar, entre outros, o hiper-realismo fotográfico realizado com lápis grafite
pelo italiano Serse; as referências à ilustração publicitária nos desenhos a tinta do
americano Raymond Pettibon; a influência da cultura popular mexicana nas
interferências que Dr. Lacra realiza sobre capas de revistas antigas; a solidez e
objetividade dos desenhos a óleo do australiano Toba Khedoori; as experiências
com perspectiva de Paul Noble (Inglaterra); o diálogo entre paisagens reais e
representadas que o cubano Glexis Novoa realiza sobre placas de mármore; o
graffiti presente nas ambientações de Anna Sigmond Gudmundsdottir (Islândia); as
performances e sequências fotográficas que desmontam os elementos do desenho
na obra do sul africano Robin Rhode; o desenho que abarca a espacialidade e a
tridimensionalidade na obra da brasileira Sandra Cinto.
Numa época de crise financeira, esses artistas encontraram vantagens na
simplicidade do desenho: o baixo custo de produção, equipamento e espaço
necessários mínimos (muitos eram jovens que precisavam produzir em pequenos
apartamentos), portabilidade e uma rapidez adaptável à velocidade frenética do
mercado de arte.
As instituições ligadas à arte contemporânea, por conseguinte,
salvaguardaram esta tendência que, devido aos meios digitais de troca de
informações, adquiriu escala mundial. Dentre tantas iniciativas dedicadas ao
desenho, podemos citar The Drawing Room e o Center for Drawing, que fazem parte
da Wimbledon School of Art, de Londres; o Jerwood Drawing Prize – organizado e
mantido pela instituição britânica Jerwood – que premia, anualmente, artistas de
todo o mundo; ou a Bienal Internacional de Desenho – iniciada em 1996 em Pilsen,
na República do Cazaquistão, que expandiu o desenho contemporâneo para os
países da Europa Central.
A principal mudança está no fato que o desenho, que durante a maior parte
da história da arte estabeleceu-se como fundamento na elaboração de outras artes,
foi alçado a um patamar de autonomia. Ganhou o estatuto de obra de arte
independente e pode, então, ser apreciado em grandes exibições públicas.
Para Ema Dexter, pela primeira vez na história da arte o desenho encontra-se
em pé de igualdade com as outras linguagens artísticas. Isso quer dizer, entre outras
coisas, que possui a mesma valorização de mercado que a pintura ou a escultura.
Contudo, tal situação tem outras implicações. Muitos teóricos argumentam
contra o que consideram uma grande perda das competências e verdadeiras
virtudes da linguagem do desenho. O professor português Mário Bismark (2011), da
Universidade do Porto, alerta que a morte do desenho se dá, justamente, ao instituí-
lo como obra de arte acabada. Corroborando da mesma opinião, Gómez Molina
escreve:

La recuperación de um valor del dibujo aparentemente tan importante como


el de ser obra final, producto estético com autonomía propria, em igualdad
con la pintura y la escultura, sólo se repercute, positivamente, em su valor
como mercancía artística, mientras que por outro lado lo diluye
definitivamente entre el resto de sus producciones, haciéndole perder su
valor privilegiado de concepto fundamental em el entendimento de la obra
de arte. (MOLINA, 2003, p. 26)

Excetuando-se os inegáveis interesses do mercado, a posição atribuída ao


desenho na arte contemporânea é, antes de tudo, derivada da multiplicidade que lhe
é própria, característica capaz de refletir as preocupações da atualidade.
O desenho produzido contemporaneamente abarca estratégias diversas,
demonstrando a amplidão de conceitos possíveis a esta linguagem. Dialoga com a
tradição, mas, amplia-se, pela apropriação, fragmentação ou fazendo uso das
tecnologias e trocas digitais. Permite, assim, profícuas incursões interdisciplinares.
Retoma, por variados recursos e intentos, os sentidos presentes na origem da
palavra disegno, como termo prenhe de vitalidade, por meio do qual se promovem
acessos, trânsitos e correspondências.
A reavaliação pela qual a linguagem do desenho passou no campo da arte
contemporânea assemelha-se ao olhar lançado pelo Pequeno Príncipe que, no
conto de Saint-Exupéry, atualiza o “desenho nº 1”.
Contudo, nas relações aqui estabelecidas, o “desenho nº 1” não representa
apenas uma cobra constritora a digerir um elefante, muito menos um chapéu – como
insistiam os adultos, frustrando os anseios artísticos do piloto de aviões. Nas
entrelinhas presentes em Le Petit Prince, o “desenho nº 1” é, antes de tudo, a
pertinência de uma linguagem que possibilita, mesmo na aridez do deserto, através
de simples lápis e papel, ver carneiros dentro de caixas desenhadas.

Zé de Rocha*
Petrolina - PE, Agosto de 2013.

*Artista Visual, professor de desenho na UNIVASF (Universidade Federal do Vale do São Francisco).
www.zederocha.com.br

REFERÊNCIAS

ARTIGAS, Vilanova. O desenho. In: Sobre o desenho. São Paulo: Centro de Estudos Brasileiros do
Grêmio da FAU-USP, p. 3-16, 1975.

BISMARCK, Mário. Desenhar é o desenho. Diponível em: <http://repositorio-


aberto.up.pt/bitstream/10216/19089/2/141.pdf/>. Acesso em 11 out. 2012.

DEXTER, Ema (Org.). Vitamin D, New Perspectives in Drawing. London: Phaidon Press Limited,
2005.

HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

LICHTENSTEIN, Jacqueline (Org.). O desenho e a cor. A pintura. São Paulo: Ed. 34, 2006. v. 9.

MOLINA, Juan José Gómez (Coord.). Las lecciones del dibujo. Madrid: Cátedra, 2003.

MOTTA, Flávio. Desenho e emancipação. In: Sobre o desenho. São Paulo: Centro de Estudos
Brasileiros do Grêmio da FAU-USP, p. 27-33, 1975.

SAINT-EXUPERY, Antoine de. O pequeno príncipe. São Paulo: Agir, 2006.

TILLEY, Annabel. The Inexorable Rise of Drawing. In: Garageland. n.6. Disponível
em:<http://www.transitiongallery.co.uk/documents/The_rise_of_drawing_Annabel_Tilley.pdf>. Acesso
em 11 out. 2012.

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