14/10/2020 #Leitura: Dororidade, o conceito de Vilma Piedade que me fez sentir a dor de Mirtes, mãe de Miguel - Notícia Preta

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#Leitura: Dororidade, o conceito de Vilma Piedade que me fez sentir a dor de Mirtes, mãe de
Miguel
Daiane Oliveira (https://noticiapreta.com.br/author/daiane-oliveira/) - 06/07/2020

(http://pag.ae/7W5HNG5cN)

Por Daiane Oliveira/ @daianejoliveira

Vilma Piedade no lançamento do livro. Foto: Divulgação

Dororidade. Sim, não escrevi errado, não é sororidade, é dororidade mesmo. O conceito é uma criação de Vilma Piedade, pós-graduada em
Ciência da Literatura pela UFRJ, integrante da organização feminista PartidA Rio e da Articulação de Mulheres Brasileiras (AMB). Uma
mulher preta, brasileira e feminista, como a mesma se define em vários momentos.

Em apenas 47 páginas, com uma leitura simples e dinâmica, Vilma Piedade fala de uma relação construída através da dor. Uma relação que
o conceito de sororidade não abraça, como perder um filho vítima de um racismo estrutural.

Dororidade. Sororidade. A sororidade ancora o Feminismo e o Feminismo promove a Sororidade. Parece uma equação simples, mas
nem sempre é assim que funciona. Apoio, união e irmandade entre as mulheres impulsionam o Movimento Feminista. Mas, podem
surgir questões como: O conceito de Sororidade já dá conta de Nós, Jovens e Mulheres Pretas… ou não? O caminho que percorro
nessa construção conceitual me leva a entender que um conceito parece precisar do outro. Um contém o outro. Assim como o
barulho contém o silêncio. Doridade, pois, contém as sombras, o vazio, a ausência, a fala silenciada, a dor causada pelo Racismo. E
essa Dor é Preta

Vilma Piedade, 2019, p.16

Ao ler a obra Dororidade entendi a ligação de mulheres pretas através da dor, como conceitua Vilma Piedade. “Dororidade, vem de dor,
palavra-sofrimento”, escreveu Piedade. Claro, agora entendo como eu, sem filhos, posso sentir tanto a dor de Mirtes Renata, a funcionária de
Sari Corte Real, que deixou seu filho aos cuidados da patroa por alguns minutos enquanto levava o pet da família para passear e quando

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voltou ao condomínio, encontrou seu filho quase sem vida. Miguel caiu do nono andar após ser abandonado em um elevador, sozinho, com 5
anos. Eu consegui imaginar a dor de Mirtes Renata, mãe de Miguel, após a entrevista da Sari Corte Real ao Fantástico na noite deste
domingo (https://noticiapreta.com.br/moradores-do-recife-fazem-protesto-durante-entrevista-de-sari-corte-real-ao-fantastico/) (06).

Durante essa entrevista, Sari Corte Real não aparentou qualquer tipo de arrependimento, não esboçou tristeza diante da morte de uma
criança de 5 anos e não respondeu que se arrependia de deixar Miguel no elevador. Sari sequer chamou Mirtes pelo nome durante o trecho
que foi ao ar, se referindo sempre a “mãe de Miguel” ou “ela”. E declarou o seguinte:

“Eu sinto que eu fiz tudo que eu podia. Se eu pudesse voltar no tempo, eu voltava. Se eu soubesse que isso (a morte de Miguel) acontecer, eu
voltava no tempo e tentava fazer mais do que fiz naquela época”, falou Sari.

Aquela época que Sari cita, foi há pouco mais de 30 dias. Desde lá, Mirtes está sem receber salário, rescisão, verbas rescisórias, afinal
estava na folha de pagamento da prefeitura de Tamandaré, cidade em que o marido de Sari é o prefeito. Sari que disse ter pedido desculpas
para Mirtes, não se preocupou em demitir ou em apenas pagar o salário para sua funcionária que perdeu um filho. Nem afirma que ligou para
Mirtes. O pedido de desculpas foi através de uma nota enviada para a imprensa e mais uma vez o conceito de dororidade me coloca no lugar
da Mirtes. Sem o filho, sem salário, sem honestidade de uma pessoa em quem confiava.

A dor de Mirtes tem cor e o conceito de Feminismo, que não racializa o debate, não entende. Não é uma mãe que perdeu seu filho pura e
simplesmente. É uma mãe que perdeu tudo por ter seu filho tratado como um objeto que poderia ser despachado no elevador sem
supervisão, é uma criança preta, de uma mãe preta, que era doméstica, de uma família branca e rica, em um país que conserva suas bases
escravocratas, racistas, patriarcais.

Mirtes Renata, em casa, na cama de Miguel. Reprodução/Tv Globo

Durante a entrevista, Sari aparece sem maquiagem, sem vaidade e, volto a dizer, sem a culpa que geraria alguma emoção, em uma entrevista
conduzida por outra mulher. Ambas brancas. No trecho que foi ao ar não tiveram perguntas como “Sari, seus filhos andam de elevador
sozinho?”, “O fato de ser uma criança negra e pobre, mesmo com 5 anos, te deu a ideia de que ele ficaria bem sozinho, partindo do
imaginário que saberia se cuidar?”, ou ainda a pergunta crucial “E se fosse a Mirtes em seu lugar e fosse um dos seus filhos morto?”.

O fato de Sari não ter sido confrontada mostra o cuidado em deixar a narrativa de uma boa pessoa e uma tentativa de defesa para reverter a
imagem que a sociedade, neste momento, possui dela ao clamar #JustiçaporMiguel através de uma hashtag que constantemente é o
assunto mais comentado do Twitter. E mais uma vez, a dororidade me coloca no lugar da Mirtes Renata que deve ter visto o Show da Vida
chorando, como eu e muitas de nós estávamos.

Mirtes ainda teve a sua rede social invadida e apagaram as fotos com seu único filho, imagens que ela não tinha em outro lugar e terá que
visitar só em sua memória. Talvez pode voltar a sentir a mesma dor ao ouvir Sari Corte Real dizer que só a “justiça” pode fazer o seu
julgamento. Só a justiça, mas que justiça?

Questionando a branquitude, expondo a necessidade de movimentos com “todos os tons de Pretas”, falando da “cor da faxina” e exaltando
saberes que estão além da academia, saberes ancestrais, Vilma Piedade conceitua em sua obra o que sinto pela Mirtes. É mais do que só
uma empatia, é saber que sendo mulher, preta e de família humilde temos os mesmos atravessamentos e poderíamos ter os mesmo

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destino. A luta de Mirtes torna-se minha, nossa, de todas as mulheres pretas desse Brasil e de algumas brancas empáticas que conseguiram
superar o “mito da democracia racial”, Vilma Piedade fala dele em seu livro também.

Nesse pequena obra, mas carregada de conceitos, a autora mostra a força da união de mulheres negras. Inclusive, ao trazer o Pretoguês
criado pela Lélia Gonzalez, onde o uso da linguagem como é “falada” pelas matriarcas pretas. Cumé qui é? Com prefácio da filósofa Márcia
Tiburi, o livro é publicado pela Editora Nós (https://editoranos.lojavirtualnuvem.com.br/). O cuidado gráfico da obra, com uma linda
encadernação de costura, merece destaque. Afinal, mulheres pretas merecem todo zelo, respeito e cuidado do mundo.

Daiane Oliveira: Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário Jorge Amado, bacharelanda do
Interdisciplinar de Artes do Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos (IHAC) pela Universidade Federal da Bahia
(UFBA), poeta e pesquisadora de raça, gênero e sexualidade.

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Bacharel em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pelo Centro Universitário Jorge Amado (Unijorge) e graduanda no
Bacharelado Interdisciplinar em Artes pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Profissional de comunicação que atua com
redação para portais online e marketing digital. A jornalista também é blogueira (com blog), poeta e escrevivente.

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