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A batalha pertence ao Senhor

O poder das Escrituras para a defesa de


nossa fé

K. Scott Oliphint
Muitos de nós pensamos que, quando nos envolvemos em
apologética, devemos deixar nossa Bíblia em casa; que devemos
usar a razão com os incrédulos somente na base do “terreno
comum”. Scott Oliphint enfatiza, de maneira correta, que o cristão
jamais pode deixar sua Bíblia de lado, pois a Escritura apresenta o
padrão para tudo o que fazemos, incluindo a apologética. Oliphint
analisa algumas das passagens mais importantes da Bíblia — e nos
direciona para muitas outras. Um livro claro e não técnico,
representando um acréscimo útil à literatura de apologética
pressuposicional.

― John M. Frame

A maior parte de nós que deseja ser uma testemunha fiel sabe que
precisamos ― mas amiúde carecemos ― de três coisas: uma
compreensão clara da verdade, a capacidade de expressar nossa
mensagem de forma persuasiva e uma confiança de que o
evangelho não tem nada a temer no mercado intelectual. Como
hábil professor de seminário que também tem servido nas
trincheiras do ministério pastoral e evangelístico, Dr. Oliphint é bem
qualificado para nos dar a ajuda de que precisamos.

― Sinclair B. Ferguson

Um excelente manual sobre apologética. Diferente de outros autores


que escrevem nesta área, Oliphint enfatiza de que forma a
revelação de Deus está no cerne da apologética. Ele demonstra
como devemos usar a razão, lógica e persuasão com confiança na
Palavra e no Espírito. Defender a fé cristã não é algo que apenas
uns poucos privilegiados podem fazer. Os leitores podem colher
muitos benefícios deste livro extremamente gostoso de ler.

― Charles Dunahoo
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E M
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1a edição, 2013

1000 exemplares

Tradução: Felipe Sabino de Araújo Neto e Marcelo Herberts


Revisão: Marcelo Herberts e Felipe Sabino de Araújo Neto
Capa: Márcio Santana Sobrinho
Diagramação: Marcos R. N. Jundurian

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Todas as citações bíblicas foram extraídas da


Nova Versão Internacional (NVI),
© 2001, publicada pela Editora Vida,
salvo indicação em contrário, e adequadas
ao novo acordo ortográfico.
A Jared, Joel e Bonnie — apologistas
PREFÁCIO

INTRODUÇÃO

1. PROCLAMAI VOSSO MESTRE

2. ACAUTELAI-VOS DOS IDOS DE MARÇO


3. O ATAQUE SURPRESA

4. O BOM COM O RUIM

5. O PSICÓLOGO DIVINO

6. JERUSALÉM ENCONTRA ATENAS: APOLOGÉTICA EM AÇÃO

CONCLUSÃO

APÊNDICE 1: APOLOGÉTICA E O ESPÍRITO SANTO

APÊNDICE 2: PASSAGENS BÍBLICAS PARA APOLOGÉTICA

SOBRE O AUTOR
ABREVIAÇÕES

Versões da Bíblia

ACF Almeida Corrigida e Fiel


ARA Almeida Revista e Atualizada
A21 Almeida Século 21
ESV English Standard Version
NVI Nova Versão Internacional
Prefácio

Este livro tem a pretensão de ser uma introdução — e um começo


— para uma prática vitalícia de defesa e recomendação da fé cristã.
Seu objetivo é indicar os princípios bíblicos que fornecerão um
fundamento para essa tarefa.
Uma forma de trabalhar com o livro é utilizá-lo em estudo
pessoal (ou de grupo). As questões ao final de cada capítulo, como
mostram seus títulos, são destinadas como questões de estudo.
Suas respostas provavelmente não serão encontradas diretamente
em seus respectivos capítulos. Os princípios que podem ajudar nas
respostas, todavia, devem ser encontrados nesses capítulos. As
questões são dadas com o objetivo de estimular uma reflexão mais
aprofundada sobre a defesa e a recomendação da fé. A intenção é
que sejam questões para discussão; seu benefício será maior se
elas forem discutidas com outras pessoas. Ao discuti-las, tente
pensar em situações reais — ou, pelo menos, possíveis — em que
os princípios estudados poderiam ser aplicados.
Introdução

Recentemente um estudante me relatou ter voltado de uma


conferência cujo título era “Defendendo a Fé”. Quando lhe perguntei
qual tinha sido a coisa mais significativa na conferência, fiquei
surpreso com a resposta. Ele disse que o que mais lhe chamara a
atenção foram os comentários de um preletor, tais como “Este ano
nosso tema é a apologética,[1] de modo que vocês não precisarão
realmente ter a sua Bíblia em mãos”. O comentário não pretendia
ser engraçado ou irreverente; era apenas a declaração de um fato.
Um comentário como esse é compreensível, embora
lamentável. É compreensível dado o contexto e as preocupações
típicas da apologética atual. Tipicamente, o contexto da apologética
tem sido antes de tudo filosófico. A grande maioria das discussões
apologéticas tem ocorrido entre muralhas filosóficas, usando
argumentos filosóficos, tentando chegar a conclusões filosóficas. A
linguagem usada, os métodos de argumentação e os tópicos
escolhidos para debate têm sido basicamente moldados por uma
agenda filosófica.
De certa forma, isso é compreensível; talvez até natural.
Existe, é claro, uma óbvia sobreposição entre a apologética e a
filosofia. Visto que a filosofia tenta perguntar e responder as
“grandes” questões — No que consiste o Universo? Quem sou eu?
Como posso saber alguma coisa? Qual é a natureza do certo e do
errado? —, suas preocupações são parecidas com algumas das
principais preocupações da fé cristã. No entanto, as respostas da
filosofia a tais questões têm sido muitas vezes antagônicas à fé
cristã. Assim, em razão disso, os apologistas cristãos têm buscado
dar respostas cristãs a questões filosóficas amiúde usando termos
empregados e entendidos pelos filósofos.
Isso não é em si algo ruim. Se o cristianismo pode dar
respostas (e, de fato, pode) a alguns dos problemas mais
sofisticados e desconcertantes da vida e do pensamento, devemos
ficar contentes e ansiosos por fazer debates. Problemas surgem, no
entanto, quando as preocupações filosóficas determinam a própria
natureza da apologética. O problema é que a apologética tem se
tornado uma disciplina em grande parte filosófica. Assim, não
surpreende que o estudante acima tenha assistido a uma
conferência sobre apologética cristã sem nunca ter precisado abrir a
Bíblia. Em filosofia é necessário que se tenha uma grande
habilidade de raciocínio, e não revelação (é o que frequentemente
nos dizem, pelo menos).
Há ainda outra razão para se pensar que a Bíblia não é útil
ou necessária em apologética. Ela tem a ver com o que
consideramos ser a nossa fonte de verdade. Uma das ideias que
têm motivado os apologistas ao longo dos séculos é que a razão,
não a revelação, é uma fonte adequada de verdade para a
apologética. Este é um assunto controverso e que não pode ser
desenvolvido aqui.
A abordagem básica dessa posição, contudo, é a de
argumentar que existem áreas da verdade cristã — áreas como a
existência de Deus, a natureza do mundo, etc. — que são
acessíveis a todos nós, dado um uso adequado da razão (de
suposições e argumentos adequados). Se essas coisas são
acessíveis a todos nós, não há nenhuma necessidade imediata de
apelarmos à revelação em nossa discussão; precisamos apenas
usar a nossa mente e apelar a princípios universais — ou a qualquer
coisa exceto a revelação.
De fato, há uma forte e ruidosa tradição na apologética que
rejeita qualquer apelo à revelação quando se discute apologética.
Tal apelo, em parte, é considerado ilegítimo porque o incrédulo não
aceita a revelação bíblica. Apelar à revelação bíblica como parte da
nossa defesa da fé seria, então, omitir completamente as
preocupações do incrédulo. O que é necessário, entendem tais
pessoas, é um apelo ao que todos nós temos em comum. Assim, a
apologética tem se preocupado na maior parte das vezes em apelar
à nossa razão “comum”, aos nossos princípios de pensamento
“comuns”.
Essas tendências têm levado a uma série de efeitos
desastrosos. Mais importante, têm minimizado o uso das Escrituras
na apologética. Claro, se a razão é tudo o que precisamos para
defender adequadamente a fé, a Bíblia não precisa nos interessar
nessa tarefa (ao contrário, digamos, do evangelismo ou da
pregação). Mas será que a razão é de fato tudo o que precisamos
para defender a fé cristã?
O efeito concreto desta ideia, que a razão é o contexto
adequado para a apologética, é que a apologética se torna mais um
passatempo para intelectuais do que algo com uma importância de
“vida ou morte”. Como resultado disso, a disciplina da apologética é
frequentemente vista como estando em algum lugar entre a história
da arte e a Associação de Médicos Cristãos — interessante para
alguns, mas não relevante para a maioria dos cristãos. Essa visão
sobre a apologética se estende inclusive às instituições que formam
estudantes para o ministério do evangelho. Uma vez que a
apologética é pensada como tendo utilidade apenas marginal para
os cristãos, praticamente todos os seminários teológicos que
conheço põem seus cursos de apologética na lista das disciplinas
eletivas — cursos desnecessários para o ministério, mas talvez
interessantes para aqueles “assim inclinados”.
No entanto, todos nós deveríamos ser “assim inclinados”. O
propósito deste livro é levar-nos novamente a abrir nossas Bíblias
quando pensamos sobre apologética. Claro, se a apologética fosse
um tipo de “acompanhamento” do prato principal da verdade cristã,
poderia ser adequado não dependermos das Escrituras em
nenhuma informação direta. Assim, uma das coisas que iremos
afirmar no capítulo 1 é que a apologética é essencial para a nossa
vida cristã; ela é de fato exigida de todos os cristãos.
Isso pode soar intimidador para aqueles que recém foram
introduzidos nesse assunto. Mas não há por que se sentir
intimidado. Vamos ver que a apologética, em sua forma mais básica,
é simplesmente a aplicação da verdade bíblica às preocupações do
dia. Sendo uma aplicação da verdade bíblica, todos os cristãos têm
tudo de que precisam para fazer apologética. Se o Senhor nos
ordenou a defender a fé uma vez por todas entregue aos santos, ele
nos deu aquilo de que precisamos para cumprir esta ordem.
Em certo sentido, a Bíblia toda é uma apologética. Ela é dada
como a palavra de Deus. Ela nos vem como a verdade que diz
quem Deus é e o que ele exige de nós. A maior parte dela vem num
ambiente “hostil”, um ambiente inundado com os efeitos do pecado
e da rebelião. Mas porque vem como a verdade num mundo hostil,
ela desafia as cosmovisões e opiniões daqueles que querem se
opor à sua verdade.
Quando a Bíblia começa com “No princípio Deus criou…”, ela
está imediatamente nos dando a mais fundacional das verdades,
mas também confrontando qualquer visão que busque negar este
Deus. A história da redenção é também uma história da revelação.
Deus se revela a Adão no jardim. Após a Queda, a revelação de
Deus vem ao mundo pelos profetas “muitas vezes e de várias
maneiras” (Hb 1.1). Ela vem para desafiar a incredulidade e revelar
a vontade do Senhor aos que nele confiam. Ela vem
preeminentemente, nestes últimos dias, em seu Filho. Jesus Cristo
vem ao mundo como a própria verdade a fim de pregar
arrependimento, pois com a sua vinda o Reino dos céus está
próximo (Mt 3.2).
A ideia do arrependimento tem um lado nitidamente
intelectual. Claro, isso não o torna friamente intelectualista;
arrependimento implica muito mais que uma mera mudança de
mente. Mas seu foco está na mente. Arrependimento significa, no
mínimo, que a nossa mentalidade deve mudar no que diz respeito a
certo estilo de vida ou modo de pensar. Como iremos ver, o
arrependimento deve ser uma parte do nosso apelo apologético.
Não ousemos pensar simplesmente que a nossa responsabilidade
na apologética é mostrar que alguma divindade poderia existir em
algum lugar. Nossa responsabilidade é dizer a verdade, a verdade
sobre o cristianismo, incluindo a verdade que Deus “agora ordena
que todos, em todo lugar, se arrependam” (At 17.30). Ao defender a
fé, buscamos e desejamos ver uma mudança de mentalidade
naqueles com quem falamos.
Se fôssemos resumir os capítulos seguintes num parágrafo
que captasse nossa responsabilidade de defender a fé, seria algo
assim:
Visto que Cristo é o Senhor e a batalha é sua, devemos
estar sempre preparados para lutar pela fé uma vez por
todas entregue aos santos. Devemos usar as armas não
deste mundo, mas do Senhor. Devemos levar todo
pensamento cativo à obediência de Cristo, quando, com
mansidão e respeito, demolimos os argumentos
daqueles que suprimem a verdade em injustiça,
trocando a verdade de Deus por uma mentira, adorando
as coisas criadas em lugar do Criador, que é bendito
para sempre. Amém.
À medida que for lendo este livro, a declaração acima terá,
espero eu, um sentido novo e mais claro a você.
Como alguém que ensina apologética em um seminário
(onde ela é exigida para a formação ministerial), estou mais
convencido agora do que quando comecei a estudar o assunto
como novo cristão que é necessário haver uma ênfase em
apologética nas igrejas de hoje. A apologética não é necessária
apenas para nos dar “munição” contra o inimigo — ainda que este
seja um de seus propósitos —, mas também para nos dar uma
perspectiva bíblica sobre “todo vento de doutrina” que sopra em
nosso caminho nos mares tempestuosos do mundo. Com a devida
preparação bíblica, poderemos estar confiantes não só de que, pela
graça de Deus, temos respostas para dar a quem faz perguntas,
mas também de que “todo o conselho de Deus” (At 20.27, ACF) é a
única resposta útil e verdadeira para tais perguntas.

A BATALHA DO SENHOR
Saul estava convencido de que Davi era muito pequeno e
muito jovem para ir à batalha, ainda mais contra um gigante! Saul
considerou as evidências, avaliou a situação e chegou ao que
parecia ser uma conclusão lógica. Um menino, pensou ele, não
seria capaz de derrotar um gigante:

Respondeu Saul: “Você não tem condições de lutar


contra este filisteu; você é apenas um rapaz, e ele é um
guerreiro desde a mocidade”. (1Sm 17.33)
Praticamente qualquer um que avaliasse a situação teria
facilmente chegado à mesma conclusão de Saul. Mas ele havia
ignorado um detalhe muito importante. Às vezes os planos e
propósitos de Deus desafiam o óbvio. Davi, ao contrário de Saul,
sabia que era este o caso.
É verdade que Davi era inexperiente. Ele nunca lutara em
uma guerra, ao passo que Golias era um guerreiro completo. Mas
Davi lembrou-se de algo que Saul esquecera. Lembrou-se de que “a
batalha é do SENHOR” (1Sm 17.47), e isto fez toda a diferença.
Se pensarmos na apologética como um seguimento espiritual
da batalha de Davi contra Golias, isso pode ajudar-nos a considerar
algumas verdades importantes e encorajadoras enquanto buscamos
defender e recomendar a fé cristã. A primeira verdade é simples, e
vale a pena repeti-la sempre de novo: A batalha é do Senhor.
Chegará um tempo em que ela não mais o será. O fim da história
marcará o fim da batalha espiritual na Terra. Mas até que chegue
essa hora, o Senhor continuará a usar pessoas como nós na guerra
contra as forças das trevas nos lugares celestiais.
Esse é um grande privilégio. Mas pode se tornar algo terrível,
e podemos facilmente nos desesperançar, se, como Saul,
simplesmente nos esquecermos de quem é a batalha que estamos
lutando. Como essa batalha é do Senhor, é loucura dependermos
de nossas próprias forças ou de nossa própria experiência. Ele é o
Senhor Sabaoth — o Senhor dos Exércitos —, e continua a
comandar o seu exército. O propósito do Senhor neste comando é
trazer glória a si mesmo, salvando um povo para si mesmo. Como a
batalha é do Senhor, ela deve ser travada da forma como lhe
agrada.
Também devemos lembrar que o Senhor é o participante
primário e todo-poderoso nessa batalha. Ele é o comandante do seu
próprio exército (Js 5.14). Como tal, ele conduz o seu povo na
batalha, permanece para lutar com ele e finalmente garante a
vitória.
O que estava por trás do esquecimento de Saul? Por que ele
se esqueceu da natureza da batalha na qual se encontrava? A
resposta é que ele permitira que o visível ofuscasse o invisível. Ele
assumira uma perspectiva mundana. Assim, foi derrotado antes
mesmo de haver começado. Mas Davi enxergava o invisível. Ele
sabia de quem era a batalha em que estava e qual era o seu papel
nela.
Há três princípios aplicados por Davi na batalha com Golias
que devemos levar em conta quando começamos a pensar em
apologética. Eles têm a ver com a razão da batalha, o seu propósito
e as suas armas. Algumas dessas coisas serão discutidas nos
próximos capítulos, mas já devem nos ajudar a definir o foco aqui.
(1) A razão por que Davi enfrentou o gigante era simples:
Davi, porém, disse ao filisteu: “Tu vens a mim com
espada, e com lança, e com escudo; porém eu venho a
ti em nome do Senhor dos Exércitos, o Deus dos
exércitos de Israel, a quem tens afrontado”. (1Sm 17.45,
ACF)
Davi sabia que a batalha não tinha a ver com ele. Davi não
estava preocupado em defender a sua própria honra ou reputação.
Na verdade ele parece não ter pensado nem um pouco em si
mesmo. A razão pela qual Davi enfrentou Golias era que Golias
tinha afrontado o Senhor dos Exércitos; Golias tinha feito um desafio
a Israel. Neste desafio ele afrontara as tropas de Israel (v. 10),
impondo sua pessoa e seu poder. Ele se considerava maior e mais
forte do que os exércitos de Deus, e manteve o seu insulto
orgulhoso por quarenta dias (v. 16).
Saul e Israel tinham medo de Golias. Mas Davi percebeu qual
era, de fato, a natureza do desafio de Golias. Não era um desafio
apenas a Israel. Era mais do que isso. Ao afrontar os exércitos de
Israel, Golias estava afrontando também o Comandante dos
exércitos. O desafio de Golias era um desafio à glória, ao poder e à
honra do Senhor dos Exércitos.
Davi se preocupava com a glória do Senhor. Ele não se
preocupava em mostrar que Israel, por si só, era mais forte que os
filisteus; não se preocupava em mostrar mais força que Golias. Ele
sabia que o desafio de Golias tinha ido muito além do Vale de Elá.
Era um desafio cósmico. Era um desafio à verdade do Deus de
Israel. Era, fundamentalmente, um desafio à própria Verdade.
Quando buscamos responder aos desafios que nos chegam,
desafios à verdade do cristianismo, devemos sempre nos lembrar
de que é a glória de Deus — seu poder, sua bondade, santidade e
verdade — que estamos defendendo. Claro, Deus é perfeitamente
capaz de se defender. Certamente aquele que é todo-poderoso
pode defender melhor a sua própria honra do que outros cujo poder
e bondade são severamente limitados. Mas assim, por que
deveríamos tentar defender a glória e a verdade de Deus?
Esse é o mistério e a beleza de tudo. O Senhor dos Exércitos
achou por bem, em sua própria sabedoria e providência secretas,
usar pessoas como nós para lutar a batalha cósmica. Precisamos
reconhecer que, a partir de nossa própria perspectiva limitada e
pecaminosa, isso se parece com tentar esvaziar um oceano com um
canudo. Mas os caminhos de Deus são perfeitos (Dt 32.4); tudo o
que ele faz é certo e verdadeiro (Is 45.19). Sua determinação em
nos usar na luta cósmica se encaixa perfeitamente em seu plano
perfeito. Passa a ser, então, nosso privilégio e nossa honra servi-lo
dessa maneira.
É por isso que Davi foi rápido em se oferecer para a batalha.
Poderia muito bem ter sido que como Davi era o caçula, ele estava
pronto para a batalha. Normalmente, ser o caçula numa família em
Israel significava, em muitos aspectos, ser o menos importante.
Certamente Davi já sabia desde cedo que sua posição na família lhe
dava o menor número de privilégios. Ele era, em muitos aspectos, o
mais fraco de todos e estava bem ciente da sua fraqueza.
Consciente da sua fraqueza, Davi não poderia imaginar que tinha o
poder de lutar com os exércitos de Israel. Se ele fosse realmente
lutar, o Senhor é quem teria de batalhar por meio dele.
Assim é conosco. Se pensarmos alguma vez que em nós e
por nós mesmos somos capazes de lutar a batalha do Senhor, já
teremos perdido completamente a batalha. O Senhor usa os fracos
do mundo para envergonhar os fortes; usa os simples para
confundir os fortes e poderosos. Ele faz isso, como lembra-nos
Paulo, para que ninguém se vanglorie (1Co 1.27-29).
Davi estava disposto a lutar porque seu Senhor havia sido
desafiado. A persistência de Golias em afrontar o Deus de Israel era
um ato de rebelião cósmica. Não tinha a ver com terra, relva ou
reino humano, mas com o governo legítimo de Deus sobre sua
criação. Golias tinha desafiado esse governo. Davi não poderia
deixar o desafio sem uma resposta.
(2) Davi anunciou seu propósito nessa batalha. Na verdade,
anunciou três propósitos relacionados. Em primeiro lugar, Davi
respondeu ao desafio de Golias para que “toda a terra [saiba] que
há Deus em Israel” (1Sm 17.46). Como a resposta de Davi atingiu
esse propósito?
A resposta a essa pergunta seria óbvia a quem estivesse ali
naquele dia. A única forma pela qual Davi poderia esperar derrotar
esse guerreiro gigante era Alguém mais poderoso estar lutando com
ele. As chances contra Davi eram tão grandes que só algum tipo de
intervenção poderosa poderia salvá-lo. A conclusão natural sobre
essa confrontação era clara. Seria necessário alguém sobrenatural
para superar o natural. Se Davi realmente derrotasse Golias, isto
deixaria claro que havia um Deus em Israel.
Nessa batalha Davi estava preocupado em declarar o
conhecimento de Deus para todo o mundo. Como iremos ver,
conhecer a Deus é uma parte central e essencial da nossa defesa.
Tem sido sempre uma meta da apologética que as pessoas venham
a reconhecer a Deus. As discussões sobre Deus — o que ele fez,
por que devemos crer nele, etc. — são centrais na história da
apologética pelo menos desde o início da Idade Média.
A preocupação de Davi nessa batalha era demonstrar que o
Deus de Israel era o Deus verdadeiro. Golias tinha seus deuses,
mas não podia contar com eles para lutar suas batalhas. Golias
dependia de sua própria força e poder (quase sobre-humanos). O
Deus de Davi, o Deus verdadeiro de Israel, não permitiria que seu
povo dependesse de si mesmo. Se a batalha tivesse de ser travada
como a batalha do Senhor, a força e o poder dele é que teriam de
ser centrais. Qualquer vitória revelaria algo sobre este Deus.
Em segundo lugar, Davi anunciou que estava lutando para
que “toda esta congregação [saiba] que o SENHOR salva (1Sm
17.47, ACF). O que é notável nesta proclamação é o quão
insignificante que Davi se considerava na batalha. Assim como Davi
estava confiante da vitória, estava certo de que era Deus quem a
alcançaria. O Senhor, e ele somente, é quem salva seu povo.
Isso não significa, é claro, que o Senhor teria vencido Golias
se Davi não tivesse saído contra ele. O Senhor poderia ter vencido
sem Davi, mas preferiu, em vez disso, dar a Davi o privilégio de ser
um instrumento na vitória.
Assim se dá com as nossas batalhas apologéticas. O Senhor
poderia salvar pessoas, poderia atrair toda e qualquer pessoa a si
mesmo sem qualquer esforço da nossa parte. Mas ele decidiu não
agir desta forma (veja Rm 10). O ponto importante, todavia, é que
devemos nos ver assim como Davi se via nessa batalha. Qualquer
que seja a salvação advinda dos nossos esforços, é o Senhor quem
salva. Veja bem, Davi não disse que era ele e o Senhor quem
salvaria Israel. Ele não via isso como um esforço cooperativo. Davi
sabia quem unicamente tinha o poder de salvar, e deu crédito onde
o crédito era devido; deu a glória a quem ela pertencia. Na salvação
toda a glória vai para Deus somente.
Em terceiro lugar, Davi não se limitou a reconhecer que o
Senhor salva, mas também declarou como ele salva: “E saberá toda
esta congregação que o SENHOR salva, não com espada, nem com
lança” (1Sm 17.47, ACF). Por que era importante para Davi que o
Senhor não salva com espada ou lança? Estaria ele simplesmente
sugerindo que o Senhor usa estilingues em vez de lanças? Seria o
caso de que as armas do Senhor são menores?
(3) Isso nos conduz ao princípio sobre as armas de Davi na
batalha contra Golias: o Senhor não usa, de fato, armas de batalha
para salvar o seu povo. A batalha do Senhor é uma batalha por
pessoas. Não é uma guerra sobre a relva. Ele não está preocupado
simplesmente em dar mais terra ao seu povo. Ele está preocupado
em possuir esse povo, em redimi-lo, em comprá-lo de volta. Com
essa preocupação, as espadas e lanças são ineficazes. O que é
necessário na batalha do Senhor são armas que levem pessoas a
se curvar, a dobrar seus joelhos e a reconhecer que o Senhor, e
somente ele, é Deus. Só armas sobrenaturais podem realizar essa
tarefa.
Isso não quer dizer, como vimos acima, que o Senhor não
usa de quaisquer meios, ou armas, para realizar seus propósitos.
Embora pudesse ter parado o coração de Golias sem Davi, ele
decidiu usar Davi e sua funda. Ele escolheu as coisas simples e
fracas para que aqueles confiando no que julgam ser coisas fortes e
poderosas fossem envergonhados.
Ao defender e recomendar a fé, podemos ser chamados por
Deus para combater contra guerreiros experientes. Podemos ser
levados a situações em que somos fracos e frágeis e o nosso
adversário é forte e poderoso (pelo menos segundo os padrões
mundanos). Este parece ser exatamente o tipo de situação em que
o Senhor gosta de demonstrar o seu poder e a sua glória.
Claro, se essa é a batalha do Senhor, jamais acontecerá de
encontrarmos alguém mais forte ou mais capaz. Porque o Senhor é
o comandante, qualquer pessoa com quem falamos é fraca e débil
em comparação.
Devemos ter a perspectiva de Davi quando refletimos sobre a
defesa da fé. Devemos ter a fé de Davi se, de fato, formos batalhar.
Não usaremos as armas do mundo. Se lutarmos a batalha do
Senhor, lutaremos com as armas dele. E a principal arma que ele
nos deu é a sua espada, a Palavra do próprio Deus.
Precisamos discordar do preletor da conferência acima. A
Bíblia deve ser central em qualquer discussão sobre apologética. É
da Bíblia que precisamos, e devemos abri-la, quando se trata de
pensar em apologética e começarmos a nos preparar para fazê-la.
Lutar a batalha do Senhor sem a espada do Senhor é tolice. Deixar
de usar a única arma que é capaz de penetrar o coração é lutar uma
batalha perdida. Os capítulos seguintes pretendem nos ajudar a ver
o que a “espada de Deus”, a sua Palavra, diz sobre lutarmos as
batalhas dele. Sem essa Palavra, nossa luta será em vão. Com ela,
entretanto, podemos ter a certeza de agradar a Deus (e de
obtermos, assim, “sucesso”) quando lutamos.

Feroz o conflito pode ser, forte o inimigo pode ser,


Mas o próprio exército do Rei, ninguém pode subverter:
No limite de seu raio de alcance, a vitória é segura;
Porque sua verdade imutável faz do triunfo o que se
assegura.
Alistados alegremente por vossa graça divina estamos,
Ao lado do Senhor, ó Salvador, como teus ficamos.[2]
(Frances R.
Havergal)

“… pois a batalha é do Senhor, e ele entregará todos vocês em


nossas mãos.” (1Sm 17.47)
1. Proclamai vosso Mestre

“Pelo que me parece”, disse Marv, “o melhor relato do


comportamento humano é aquele dado por Sigmund Freud. Freud
era brilhante, um mestre da observação. Passou anos de sua vida
tentando descobrir o que nos faz ‘pulsar’. Não consigo entender
como alguém pode discordar dele. Suas teorias têm sido provadas
vez após vez. Como você pode acreditar no cristianismo, dado o
que Freud nos disse?”.
Essa declaração, em essência, foi feita recentemente na
minha própria casa por um amigo de meu filho adolescente. Como
você responderia a Marv? Como você começaria respondendo à
sua fidelidade a Freud? Como você explicaria a lealdade que você
tem para com Cristo? E se nunca tivesse lido algo escrito por
Freud?
Desafios à nossa fé podem vir de todos os lados. Podem vir
de amigos na escola ou no trabalho, ou de estranhos em nosso
avião, ou numa loja. Podem vir em vários momentos e de várias
formas. Podem vir direta ou indiretamente. Uma pessoa pode
simplesmente dizer, de passagem, que a única coisa em que vale a
pena crer é em si mesmo, ou pode tentar convencê-lo de que a fé
em Cristo é um exercício sem sentido. Como poderíamos responder
a essas coisas? Deveríamos tentar evitá-las?
Antes, santifiquem Cristo como Senhor no coração. Estejam
sempre preparados para responder a qualquer que lhes pedir
a razão da esperança que há em vocês. Contudo, façam isso
com mansidão e respeito, conservando boa consciência, de
forma que os que falam maldosamente contra o bom
procedimento de vocês, porque estão em Cristo, fiquem
envergonhados de suas calúnias. É melhor sofrer por fazer o
bem, se for da vontade de Deus, do que por fazer o mal. —
1Pe 3.15-17
Todos os cristãos são chamados por Deus a dar uma
resposta a esses desafios. Dar uma resposta quando os desafios
chegam — é o que queremos dizer com a palavra apologética.
Apologética não significa pedir desculpas.[3] Bem pelo contrário,
significa defender e recomendar a fé, não se desculpar por ela.
Todos nós devemos estar preparados para dar uma razão de
nossa crença e confiança em Cristo. Se Deus nos exige dar uma
resposta, então certamente proveu os recursos de que precisamos.
O Senhor tanto ordenou o cristão a realizar a tarefa da apologética
como o equipou para ela. Isso pode não soar como uma boa notícia,
sobretudo porque a palavra apologética é confusa e frequentemente
mal entendida. No entanto, é provável que muitos de nós já
tenhamos feito apologética sem o saber.
Aqueles que já são cristãos há algum tempo podem saber
como é defender a verdade do cristianismo quando perguntas e
objeções são levantadas. É o que deveria acontecer. O Senhor quer
que respondamos a tais desafios. Se olharmos 1 Pedro 3.15 mais
de perto, devemos ser capazes de determinar melhor no que a
tarefa de defender a fé cristã consiste e qual é a nossa
responsabilidade ao desempenhá-la.

TEMPOS DIFÍCEIS
Os tempos foram difíceis para os primeiros cristãos após a
ressurreição de seu Senhor e Salvador. Houve muita oposição à fé
cristã, tanto de dentro da igreja como de forças políticas e religiosas
de fora. Essa oposição, Paulo nos lembra, era parte de uma batalha
celestialmente perpétua que entra em estado de fúria sempre que
as forças das trevas tentam subverter a verdade de Cristo e destruir
sua igreja (Ef 6.12).
Quando Pedro escreveu sua primeira epístola, os cristãos
experimentavam perseguição; estavam sendo perseguidos
simplesmente porque eram cristãos. Teria sido essa a razão para
Pedro dizer que estavam dispersos (1Pe 1.1)? Os comentaristas
diferem sobre este ponto, mas a intenção clara de Pedro é enfatizar
que naquele tempo ser cristão traria consigo perseguição. Aqueles
cristãos eram um grupo disperso, um grupo sofredor; e quando
Pedro lhes escreveu, eles estavam experimentando uma punição
injusta do governo civil.
Como deveria um cristão agir em tais circunstâncias? Como
deveríamos nós responder quando o mundo à nossa volta parece se
opor à verdade? Deveríamos nos esconder até as coisas
melhorarem? Aguardar um governo mais simpático? Ansiar por dias
de outrora? Antes de analisarmos especificamente 1 Pedro 3,
devemos considerar como Pedro começa sua epístola. Ele
responde estas questões com pelo menos duas dicas, no primeiro
capítulo.

QUEM SOMOS NÓS


“Pedro, apóstolo de Jesus Cristo, aos eleitos de Deus,
peregrinos…” (1Pe 1.1). Uma das coisas fascinantes sobre
genealogia é o senso de conexão que pode advir de um
conhecimento da árvore genealógica. Quanto mais sabemos sobre
a nossa família, mais enraizados nos sentimos. Podemos muitas
vezes acompanhar o movimento da família a partir de outro país e
imaginar as dificuldades por que ela deve ter passado. É muitas
vezes encorajador sabermos algo sobre as raízes de nossa própria
família.
Da mesma forma, a primeira coisa que devemos lembrar
quando enfrentamos desafios à fé são as nossas raízes espirituais;
devemos nos lembrar de onde viemos. Nas palavras de Pedro,
somos os eleitos de Deus (1Pe 1.1). Nossa identidade reside no fato
de que Deus depositou seu amor eterno em nós. Ele nos escolheu.
Nossa verdadeira identidade está nele somente. Se alguém fizesse
a você uma das perguntas mais desconcertantes — Quem é você?
—, qual seria a sua primeira resposta? A maioria de nós daria em
primeiro lugar o nome e então, eventualmente, diria o que faz,
seguido de informações familiares.
Por mais natural que fosse dar essa resposta, não
deveríamos perder de vista o fato de que tais respostas não definem
quem realmente somos. Elas indicam, de fato, informações
importantes sobre nós. Mas quando todas as camadas exteriores
são extraídas, nossa identidade mais básica é definida pelo
relacionamento que temos com o nosso Criador. No fundo, os
cristãos são filhos de Deus. Nossa identidade é revestida pela
identidade daquele que nos deu um novo nascimento. Somos filhos
de Deus, antes de qualquer outra coisa.
É esse o conselho de Pedro a seus leitores. Claro, ele tem
em mente seus leitores judeus, em primeiro lugar. O povo do Senhor
no Antigo Testamento sabia o que era perseguição. Eles haviam
sido tomados em cativeiro. Também sabiam que sua libertação do
sofrimento viria pela graça de Deus somente (Dt 7.6ss.). Mas Pedro
também tinha seus leitores gentios em mente. Estes sabem que
Jesus Cristo rompeu a barreira étnica; sabem agora que todos os
que creem são filhos de Deus (Gl 3.7; Ef 2.14). Sua identidade
repousa, em primeiro lugar, no que Deus fez neles e por eles, e não
nas circunstâncias em que se encontram. Não importa o que lhes
venha a acontecer; eles são e sempre serão, pela graça de Deus,
seus filhos.
Porque somos identificados, antes de qualquer outra coisa,
como filhos de Deus, somos “peregrinos”, estranhos, neste mundo.
A palavra grega usada por Pedro para “peregrinos” é uma palavra
que enfatiza o caráter temporário do lugar em que nos encontramos.
Ela se refere ao caráter passageiro deste mundo. Isso deve ter sido
entendido prontamente pela audiência de Pedro. Eles haviam há
pouco se dispersado por algumas regiões da Ásia menor; eles
sabiam que o lugar em que estavam vivendo não era o seu lar.
Aqueles que são escolhidos por Deus se tornam cidadãos do seu
reino.
Essa cidadania torna qualquer outro lugar de residência tanto
temporário como estrangeiro. Quem quer que tenha passado algum
tempo num país estrangeiro sabe muito bem como as coisas podem
ser desconfortáveis e estranhas em relação à sua “casa”.
Recentemente, passei algum tempo num país estrangeiro. Todo
senso de tempo era diferente; o sol se levantava e se punha em
horários diferentes. O dinheiro era diferente. As medições eram
diferentes. Estivesse eu na estrada ou na cozinha, no carro ou na
rua, fora ou dentro de casa, quase tudo o que fazia parte da minha
rotina diária era diferente. Eu era um estranho nesse mundo.
É como são os cristãos neste mundo. Como cidadãos de
outro lugar, nós não estamos “em casa” aqui no planeta Terra —
pelo menos não deveríamos estar. Pedro se preocupa em lembrar
esta verdade aos seus leitores enquanto vivem numa cultura que
lhes é estranha, tanto física como espiritualmente.
É fácil para nós — pode até nos ser natural — pensar neste
mundo como o foco de nossa vida. Investimos muito tempo e muita
energia nas coisas que nos rodeiam. Isso não é, em si mesmo, algo
ruim. Somos ordenados por Deus a trabalhar de todo coração nesta
vida (Cl 3.23). De certa forma, espera-se que “nos entreguemos” ao
que fazemos aqui. Pela providência de Deus somos colocados em
circunstâncias, e devemos aproveitá-las ao máximo (Ef 5.16).
Somos chamados por Deus a fazer nosso trabalho para a sua glória
(1Co 10.31). Tudo isso toma uma quantidade enorme de tempo e
energia, e quase inconscientemente nos deixa absorvidos pelas
coisas que estão à nossa volta. Nós nos devotamos ao que fazemos
porque o Senhor quer que façamos tudo como se estivéssemos
fazendo para ele.
O ponto que Pedro está preocupado em desenvolver, no
entanto, é que nosso status como estrangeiros deve sempre
qualificar e modificar as nossas boas e necessárias atividades neste
mundo. Nossa “estranheza” deve definir nossa perspectiva
enquanto buscamos viver neste mundo para a glória de nosso
Salvador. Embora devamos fazer nosso trabalho de todo coração
neste mundo, jamais devemos permitir que as coisas do mundo nos
possuam. Devemos pensar em nós mesmos como residindo apenas
temporariamente onde estamos. Fazemos o nosso trabalho e
vivemos neste lugar enquanto aguardamos por nosso verdadeiro lar.
Dado que os cristãos são estrangeiros, o contraste que Pedro
apresenta nos dois primeiros versículos do capítulo é notável.
Embora seja verdade que esses cristãos estão dispersos “no Ponto,
na Galácia, na Capadócia, na província da Ásia e na Bitínia”, eles
também são eleitos de Deus, foram escolhidos “de acordo com o
pré-conhecimento de Deus Pai, pela obra santificadora do Espírito,
para a obediência a Jesus Cristo e a aspersão do seu sangue”. A
ênfase aqui não está na dispersão do povo de Deus, mas em seu
“enraizamento” na escolha de Deus, baseada firmemente no seu
amor eterno e efetuada através do sangue de seu Filho e da obra
santificadora de seu Espírito.
Todos nós precisamos desse tipo de lembrete. Ele é
especialmente necessário para aqueles que se encontram em meio
à perseguição. Pedro diz a seus leitores que este mundo não é o
seu lar; eles estão apenas de passagem. Seu lar está naquele que
faz todas as coisas cooperarem para o bem deles, pelo sangue de
seu Filho, através de seu Espírito (1.2).

QUEM ELE É
“Mesmo não o tendo visto, vocês o amam; e apesar de
não o verem agora, creem nele e exultam com alegria
indizível e gloriosa, pois vocês estão alcançando o alvo
da sua fé, a salvação das suas almas.” (1.8-9)
O fato de que Deus é invisível pode aumentar sobremaneira
a nossa perplexidade; pode parecer especialmente desconcertante
quando estamos com dor ou medo. Estes são momentos em que
queremos ter alguém ao nosso lado. Podemos pensar que se
apenas pudéssemos ver Deus, mesmo que por um breve momento,
já conseguiríamos perseverar quando as provações viessem.
Com frequência falamos sobre “ver uma luz no fim do túnel”.
Precisamos de algum encorajamento quando as coisas se tornam
sombrias; precisamos conhecer — ver — a luz. É muito mais fácil
suportar a escuridão quando a luz é visível para nós. Mas a
verdadeira Luz não é visível; ela é essencialmente invisível (1Tm
1.17). Mesmo afirmando esta verdade bíblica, nós ainda ansiamos,
às vezes, ver Deus.
Esse anseio é uma coisa boa, embora possa servir muitas
vezes para nos confundir. Somos pessoas “de sentidos”. Somos
guiados pelos nossos sentidos no dia a dia. E, na maior parte das
vezes, eles são guias confiáveis. Quase tudo que fazemos exige,
normalmente, que usemos e confiemos em nossos sentidos. Porém,
visto que estamos sempre relacionados ao mundo à nossa volta
com os nossos sentidos, é muito fácil começarmos a pensar que
esse mundo que experienciamos é tudo o que existe. Poderemos
até começar a pensar: “Se não podemos de alguma forma ‘sentir’
certa coisa, provavelmente ela não é real”.
Esse era parte do problema de Tomé (Jo 20.26ss.). Ele
decidiu que só creria que o Cristo crucificado levantara dos mortos
se pudesse ver as evidências. E quando as viu, dispôs-se
perfeitamente a se submeter e a crer. Era na visão que Tomé
acreditava.
Corretamente lembramos que esse incidente mostra uma
fraqueza em Tomé. Ele ilustra o que devemos nos esforçar para
evitar na vida cristã. Mas ainda que nos seja fácil, em retrospectiva,
criticar Tomé por sua pequena fé, todos nós temos a mesma
tendência. Também preferimos ver a confiar. Afinal de contas, para
muitas coisas que fazemos neste mundo, ver é crer.
Isso pode explicar por que muitos cristãos, mesmo hoje,
buscariam ver a crer. Existem renovados esforços hoje para
“mostrar” que Deus está operando por novos “sinais e maravilhas”.
Esforços são feitos para identificar os atos de cura de Deus para
que assim ele se torne mais “visível” para nós. Desejamos ver as
obras de Deus para termos certeza de que ele ainda está conosco.
Mas Pedro não incentiva esses cristãos sofredores e
dispersos a buscarem sinais e maravilhas para o seu conforto.
Antes, lembra a eles, e a nós todos também, qual deve ser a reação
adequada perante o Deus invisível. Nós jamais veremos Deus. Ele
não seria Deus se pudéssemos vê-lo. Não obstante, devemos amá-
lo e acreditar nele.
Pedro simplesmente nos lembra da admoestação do apóstolo
Paulo — que a jornada do cristão, a “caminhada” da vida cristã
neste lado do céu, é pela fé e não pelo que vemos (2Co 5.7). Essa
caminhada é, pelo menos em parte, pela fé porque Deus é invisível.
Jamais haverá um tempo em que ele nos será visível. Deveríamos
aprender a viver adequadamente agora com o Deus que é invisível
para podermos então viver perfeitamente na eternidade com esse
mesmo Deus invisível.
Visto que Deus é e sempre será invisível, e como é nosso
dever amar ao Senhor nosso Deus de todo o coração, alma,
entendimento e força, nossa prioridade deve ser, em todas as
circunstâncias, fixar a nossa mente no invisível em primeiro lugar.
Embora o próprio Paulo experimentasse perseguição, ele lembra
aos santos de Corinto que as coisas invisíveis é que são eternas
(2Co 4.18). As coisas invisíveis é que devem moldar a nossa visão
do visível, não o contrário.
A exortação de Pedro a esses cristãos perseguidos é que
eles devem fixar sua mente no invisível. Pedro lembra-lhes que eles
já haviam fixado seu coração ali. Muito embora não vejam Deus,
eles o amam. Agora, devem focar seus esforços e sua atenção no
Deus que amam. Devem se lembrar de seu relacionamento com
esse Deus invisível e lembrar que aquele que é invisível é o Deus
único. Este é um lembrete importante que deve ser ouvido pelos
cristãos que sofrem.
Essa é apenas outra parte do que significa ser “peregrino”,
“alienígena” ou “estranho” neste mundo. O mundo à nossa volta não
é o nosso lar. Nós nos treinamos a focar no invisível. Assim
também, aquele que verdadeiramente reina não é aquele que
vemos em poder, mas o invisível que vemos somente por fé (veja
Hb 11).
É nesse contexto que analisamos a passagem central sobre
apologética no Novo Testamento, 1 Pedro 3.15-16.

UM TEMOR ADEQUADO
A perseguição deve nos fazer lembrar pelo menos duas
coisas. Que este mundo não é o nosso lar e que devemos fixar
nossa mente nas coisas do alto, onde Cristo está (Cl 3.1-2). Essas
duas coisas são o foco de Pedro ao escrever aos cristãos
perseguidos.
Pedro escreve para dizer-lhes como devem responder aos
que se opõem às suas crenças ou os atacam por serem cristãos. O
foco de sua admoestação começa no capítulo 3, versículo 8:
Quanto ao mais, tenham todos o mesmo modo de
pensar, sejam compassivos, amem-se fraternalmente,
sejam misericordiosos e humildes.
Não deve escapar de nossa atenção que 1 Pedro 3.1-7 foca
nos relacionamentos familiares. Pedro sabe que Deus ajustou a
família de uma forma específica, e que, na sua raiz, a comunidade
cristã jamais pode ser santificada se as famílias nela presentes não
o forem. Pedro escreve:
Do mesmo modo, mulheres, sujeitem-se a seus maridos,
a fim de que, se alguns deles não obedecem à palavra,
sejam ganhos sem palavras, pelo procedimento de sua
mulher, observando a conduta honesta e respeitosa de
vocês. A beleza de vocês não deve estar nos enfeites
exteriores, como cabelos trançados e joias de ouro ou
roupas finas. Pelo contrário, esteja no ser interior, que
não perece, beleza demonstrada num espírito dócil e
tranquilo, o que é de grande valor para Deus. Pois era
assim que também costumavam adornar-se as santas
mulheres do passado, que colocavam a sua esperança
em Deus. Elas se sujeitavam a seus maridos, como
Sara, que obedecia a Abraão e lhe chamava senhor.
Dela vocês serão filhas, se praticarem o bem e não
derem lugar ao medo. Do mesmo modo vocês, maridos,
sejam sábios no convívio com suas mulheres e tratem-
nas com honra, como parte mais frágil e coerdeiras do
dom da graça da vida, de forma que não sejam
interrompidas as suas orações. (1Pe 3.1-7)

Esse ponto precisa de uma ênfase especial em nossos dias.


É importante que as igrejas pensem em alcançar o perdido, em
desenvolver e edificar os santos e em fazer diferença nas suas
comunidades. Mas jamais devemos focar nas responsabilidades da
igreja a ponto de perdermos o que é ainda mais importante — a
família. Este aspecto da influência cristã tem sofrido terrivelmente
nos últimos 50 anos ou mais. E deve ser dito que a influência do
evangelho inevitavelmente sofre com o colapso da família cristã.
Pedro lembra seus leitores de seu papel na família, para que o
testemunho que fazem do evangelho possa florescer.
Como os cristãos devem agir em face da oposição, oposição
que lhes pode trazer mal? Pedro recorda o que ouvira Jesus dizer
no Sermão do Monte: “Não retribuam mal com mal nem insulto com
insulto; pelo contrário, bendigam; pois para isso vocês foram
chamados, para receberem bênção por herança” (v. 9; cf. Mt 5.11).
Visto que Israel enfrentara uma situação semelhante no Antigo
Testamento, Pedro nos remete em 3.14 a Isaías 8, escrito ao povo
do Senhor numa época em que estavam sendo ameaçados por uma
invasão dos assírios:
Não chamem conspiração tudo o que esse povo chama
conspiração; não temam aquilo que eles temem, nem se
apavorem. Ao SENHOR dos Exércitos é que vocês
devem considerar santo, a ele é que vocês devem
temer, dele é que vocês devem ter pavor. (Is 8.12-13)
A ordem de Deus, aqui, vai direto ao âmago da questão. Ao
pensar nessa passagem de Isaías e citá-la, Pedro retoma o assunto
do temor. Neste caso, a ideia do temor tem um sentido amplo que
pode incluir uma variedade de pensamentos e experiências. Não se
trata, porém, do tipo de temor que poderíamos experimentar ao
estar sozinhos no escuro. Antes, é o tipo de temor que
eventualmente nos poderia fazer focar a vida no temor em vez de no
Senhor, o tipo de temor que eventualmente nos faria ordenar a vida
de uma maneira que revelasse a nossa falta de confiança no
Senhor. Um temor que eventualmente nos faria perder a perspectiva
ou agir como se alguma outra coisa, e não o próprio Deus, tivesse o
poder final sobre nós.
Esse tipo de temor pode ser familiar a alguns cristãos.
Quantas vezes os cristãos evitam transmitir a verdade de Cristo
receando que a resposta lhes possa trazer constrangimento ou
escárnio? Quantos cristãos olham para o futuro e agem de uma
maneira que poderia garantir seu próprio bem-estar, mesmo
negligenciando os outros, ou à sua custa? Estas e outras reações
semelhantes partem de um coração temeroso, um coração muito
ansioso pela autopreservação. Um temor assim pode ter controle
sobre nós, e o encorajamento de Pedro é não deixarmos isso
acontecer.

É
O SENHOR É SENHOR
Qual é a verdade suprema que devemos ter em mente
quando nossa fé, e quem sabe nossa própria vida, está sob ataque?
Esta, essencialmente, é a questão com que Pedro é confrontado. O
que seus leitores perseguidos e sofredores devem lembrar?
Com isso em mente, Pedro dá uma ordem a seus leitores. O
versículo 15 do capítulo 3 é traduzido de diferentes formas, mas sua
força está no mandamento de considerar Cristo, o Senhor, como
santo. Sintetizando numa palavra, a ordem de Pedro é
“Santifiquem!”.
A palavra grega normalmente traduzida como santifiquem (ou
tornem santo) é tomada de uma raiz da qual obtemos outras
palavras nas Escrituras, como “santo”, “sagrado”, “santidade” e
“santificação”. Seu significado primário é “separar alguma coisa” de
outra. Santidade, por exemplo, não é primariamente um termo ético
ou moral, ainda que tenha conotações éticas definidas. É, em
primeiro lugar, um termo posicional. Refere-se a uma posição ou
colocação específica de algo. No Antigo Testamento, fogo e coroas
eram coisas que deveriam ser santas. Estas coisas não tinham,
obviamente, qualidades éticas ou morais; eram santas em virtude de
seu lugar ou posição — por causa de como eram usadas em Israel.
Quando as Escrituras se referem a Deus como santo, elas
estão dizendo, em primeiro lugar, que a posição de Deus é
fundamentalmente diferente de tudo aquilo que é profano ou não
santo. Deus, como santo, está além ou acima de tudo o mais, pois
tudo o mais é profano em comparação. Esta é uma parte importante
da mensagem de Pedro. No capítulo 1 ele diz:
Mas, assim como é santo aquele que os chamou, sejam
santos vocês também em tudo o que fizerem, pois está
escrito: “Sejam santos, porque eu sou santo”. (vv. 15-16)
A admoestação de Pedro aqui é que os cristãos, a exemplo
de seu Pai celeste, separem-se das coisas deste mundo,
distanciem-se daquelas coisas que são contrárias ao caráter perfeito
de Deus. Esse distanciamento não é necessariamente espacial. É
impossível viver totalmente à parte deste mundo. Antes, o
“distanciar” em vista aqui é posicional. Devemos ser como Deus em
sua santidade.
Isso sem dúvida terá consequências éticas e morais
definidas. Significa que olharemos e agiremos de uma maneira que
nos tornará diferentes daquilo que é profano. Mas a ênfase aqui é
que devemos ser diferentes porque somos diferentes. Somos “um
povo peculiar” (1Pe 2.9, ESV). Deus nos mudou para nos fazer
peculiares. Pertencemos a ele; ele é o nosso Pai. Logo, devemos
portar a semelhança familiar. Porque somos um povo peculiar,
devemos viver peculiarmente; devemos viver como um povo que
está posicionado diferentemente de tudo que é profano. Nossa
posição neste mundo é a de cidadãos de um reino celestial, de uma
família eterna.
A ordem de Pedro no versículo 15 é a de santificarmos a
Cristo como Senhor em nosso coração. Como trazem algumas
traduções, nós devemos “separar Cristo como Senhor” em nosso
coração. No original grego, a ênfase está na palavra “Senhor”; é a
primeira palavra na oração gramatical. Sempre que uma sentença é
construída desse modo, o autor está dizendo qual é sua ênfase.
Assim, dada a ordem real das palavras, a passagem registra algo
assim: “Como Senhor separem Cristo…” Por que Pedro dá esse
mandamento, e por que está enfatizando o senhorio?
Muitos de nós já vivemos e participamos de eleições
nacionais, estaduais ou municipais de vários tipos. Às vezes
podemos ter um candidato que pensamos estar preparado para
tornar as coisas melhores. Ou, inversamente, podemos nos
convencer de que um candidato específico, se eleito, não fará nada
mais que coisas erradas. Podemos inclusive decidir ser voluntários
para ajudar na eleição de um determinado candidato ou trabalhar
contra algum candidato. Mais uma vez, porque somos “pessoas de
sentidos”, pode ser fácil começarmos a agir como se tudo de bom
ou de ruim correria especificamente sobre um dado candidato ou
sobre um dado conselho de administração. Se o candidato errado
fosse eleito para o ofício, poderíamos começar a acreditar que não
há mais esperança alguma para nós ou nosso país. Se o “nosso”
candidato entrasse, poderíamos nos iludir pensando que tudo dará
certo no mundo, pelo menos nos próximos anos.
Pedro estava escrevendo a cristãos que viviam numa
situação em que certamente foram tentados a pensar que toda
esperança estava perdida. Estava escrevendo a cristãos que eram
desprezados pelo governo, que viviam em condições muito mais
hostis que a maioria de nós sequer pode imaginar. A batalha não
era meramente um choque de ideologias. Esses cristãos
provavelmente enfrentaram a morte por causa de sua fé. Muitos de
seus pares estavam sendo executados pelo imperador, e era sob
essas condições que eles viviam. Não se tratava meramente de seu
líder ser, talvez, fraco em políticas econômicas ou em relações
exteriores, ou simplesmente imoral e ausente de caráter. Quão
rapidamente perderíamos a noção das coisas se alguém viesse à
nossa casa e, por ordem do comandante supremo, levasse um de
nossos entes queridos à morte por causa da fé? Certamente
ficaríamos com medo e tentados a pensar que, visto que o poder da
vida e da morte estava nas mãos do imperador, o poder final
também estava.
Os cristãos naquele tempo estavam tentados a pensar que o
imperador tinha todo o poder. Certamente a pessoa que detém a
vida de você em suas mãos é alguém poderoso, ainda que seu
poder esteja a serviço de algo errado. Era tentador pensar que o
imperador estava no controle e que Deus não estava ouvindo. Era
tentador pensar, como o próprio Pedro certa ocasião
indubitavelmente fizera (Mc 4.35ss.), que o Senhor da criação
dormia enquanto as tempestades assolavam por todos os lados.
A primeira coisa que os cristãos devem gravar em seu
coração nessas circunstâncias é que Cristo, e Cristo somente, é o
verdadeiro imperador; ele é o único Senhor. A primeira coisa que
devemos ter firmemente estabelecido em nossa mente é que, tal
como confessava a igreja primitiva, “Jesus é o Senhor” — e
ninguém mais. Pedro está dizendo que, quando os temores
ameaçam e começam a tomar conta de nossa vida, mesmo quando
tudo à nossa volta parece sombrio, esta é a primeira coisa que você
deve fazer: separar (consagrar) Cristo como Senhor.
Poderíamos pensar, em face de tal perseguição, que
“sucumbir” aliviaria a pressão. E, por um tempo, isso poderia
acontecer. Mas Pedro está lembrando a seus leitores que sua
responsabilidade é serem fieis ao verdadeiro rei, o Rei de todos os
reis. Eles devem obedecer a ele, em primeiro lugar.
Recorde que aqui Pedro tem em mente Isaías 8. Mas,
curiosamente, em Isaías é dito que o “Senhor Sabaoth”, o Senhor
dos Exércitos, é que deve ser separado. Nesta passagem, Isaías
está lembrando ao povo do Senhor que mesmo que a Assíria
assalte Israel, o Deus no céu é o Senhor dos Exércitos. Ele é o
capitão de todos os exércitos, e ninguém tem o poder de derrubar
ou levantar a menos que isto seja concedido pelo Rei dos reis (veja
Js 5.13-15 e Jo 19.11).
Pedro muda aqui a designação “Senhor Sabaoth” para “Cristo
como Senhor”. Nessa mudança ele está simplesmente lembrando a
seus leitores que Cristo o Senhor é o Senhor Sabaoth; ele é o
Senhor dos Exércitos. Ele é o comandante dos exércitos de Deus; e,
em última análise, a batalha é sua. Os governos estão sobre os
seus ombros (Is 9.6).
Não haveria razão alguma para defender a fé, comunicar o
evangelho e aspirar à santidade se Cristo não fosse o Senhor. Se
Cristo não fosse o Senhor, alguma coisa diferente ou alguém outro o
seria. Essa “coisa diferente” teria sempre o poder de desfazer,
resistir a, ou apagar o que fizemos de bom. Mas como Cristo é o
Senhor, nenhuma intensidade de oposição pode alguma vez frustrar
seus bons propósitos; nenhuma resistência pode parar a influência
da obediência às ordens dele. Porque Cristo reina, a obediência a
ele jamais pode ser frustrada.
Pedro sabia que o coração desses cristãos estava às vezes
indubitavelmente cheio de temor. Eles temiam o abuso cruel de
poder que o governo estava exercendo. Temiam pela própria vida
deles; o temor havia possuído seu coração. Quando isso acontece,
é difícil se manter fiel. Assim, a ordem de Pedro é realmente de eles
deixarem esse temor de lado e separarem Cristo como Senhor em
seu coração. Em outras palavras, Pedro está dizendo para
“substituírem” o temor que os possui pela fé resoluta de que Cristo
está no comando. Eles devem separar Cristo, não o temor, como
Senhor do seu coração.
É desse imperativo, dessa ordem de santificar a Cristo como
Senhor, que o resto da nossa defesa e recomendação depende.
Separar Cristo como Senhor em nosso coração é a nossa primeira
prioridade. Devemos ter a plena convicção de que somente Cristo
reina e de que os “detentores do poder”, não importa quão
impiedosos sejam, governam em sujeição ao senhorio soberano de
Cristo (Rm 13.1ss.)
É assim que deveríamos nos treinar a pensar. Separar Cristo
como Senhor em nosso coração é separá-lo como Senhor de uma
maneira que nos faça pensar diferentemente. Isso, por sua vez, fará
com que pensemos diferentemente sobre as coisas ao nosso redor.
Porque nós o conhecemos como Senhor, também sabemos que
ninguém tem poder final sobre o corpo e a alma, exceto o próprio
Cristo.

DEFENDENDO O REI
Jesus Cristo é o Rei; somos seus servos. Como servos,
temos o grande privilégio de defender sua realeza. Fazemos isso
quando comunicamos a seus inimigos que somente ele é o Senhor.
Com Cristo separado como Senhor em nosso coração,
devemos estar prontos, a qualquer hora, para dar uma resposta. A
palavra grega traduzida como “dar uma resposta” é interessante por
uma série de razões. Em primeiro lugar, pouca dúvida pode haver
de que Pedro tinha em mente, enquanto escrevia, a advertência do
seu Senhor em Lucas 21, particularmente o versículo 14. Note a
similaridade da advertência de Cristo em Lucas 21.12-14[4] com a
situação daqueles a quem Pedro escreveu:
Mas antes de tudo isso, lançarão mão de vós e vos
perseguirão, entregando-vos às sinagogas e prisões, e
serão levados à presença de reis e governadores por
causa do meu nome. Esta será a oportunidade de darem
testemunho. Estabeleçam, portanto, em vossa mente
não premeditar como haveis de responder.…
No versículo 14, Lucas se refere ao que está “em vossa
mente”. A palavra traduzida como “mente” é, na verdade, a palavra
grega kardia, também facilmente traduzida (o que se dá em algumas
versões[5]) como “coração”. Note que Pedro se refere ao coração
em 1Pedro 3.15.
Também chama a atenção que a raiz da palavra traduzida
como “responder” em Lucas 21.14 é igualmente a raiz de uma
palavra usada por Pedro. Sem dúvida, Pedro esteve ali quando
Cristo deu essa advertência, e enquanto escreve, sem dúvida está
se lembrando das próprias palavras do seu Senhor.
A raiz das palavras parecidas usadas em Lucas 21.14
(traduzida como “responder”) e 1Pedro 3.15 (traduzida como “dar
uma resposta”[6]) é a palavra grega apologia. É a partir desta
palavra que derivamos apologética. Como já dissemos antes,
apologética significa usualmente uma “defesa” ou “resposta” a uma
acusação ou desafio em particular. É uma palavra legal, usada
amiúde no contexto dos tribunais. Carrega a ideia de apresentar
uma resposta a uma acusação. Assim, quando falamos de
apologética, estamos falando de defesa e recomendação da fé
cristã em face aos desafios e ataques que cruzam o nosso caminho.
A força do que Pedro está dizendo aqui chama a atenção.
Particularmente chama a atenção porque o que ele está dizendo é,
na verdade, o que o próprio Senhor está dizendo. Pedro está
dizendo que, como cristãos, nós devemos estar sempre prontos
para defender a fé. Ele está nos contando que parte da nossa
responsabilidade cristã, como estranhos num mundo estranho,
como aqueles que irão sofrer, é sermos um povo que responde
biblicamente às acusações que nos sobrevêm por causa do nosso
compromisso com Cristo. A força e o alcance da ordem de Pedro,
então, é que ao separarmos Cristo como Senhor, também devemos,
nós todos, ser apologistas.
Isso pode ser uma notícia surpreendente, particularmente
àqueles que recém aprenderam o que é ser apologista. Mas a
passagem é clara. Pedro escreve a cristãos que estão em terra
estranha. Diz-lhes que pelo menos parte de sua resposta como
“estrangeiros” é estarem preparados para dar uma resposta quando
a sua fé é desafiada. Pedro não diz que a apologética é reservada
exclusivamente para os profissionais.
Pode haver uma necessidade por aqueles que são treinados
especificamente em apologética (assim espero!). Mas o foco aqui
está em cada cristão; cada cristão deve estar pronto para dar uma
resposta. Quando nos vemos em circunstâncias hostis, devemos ser
pessoas que já estão preparadas. Já devemos ter-nos preparado
para dar uma resposta. Não devemos pensar primeiro em passar
adiante a questão para o pastor ou apologista profissional. Nós
mesmos devemos estar prontos.
Qual é o contexto da resposta que devemos dar? É, como diz
Pedro, que devemos dar uma resposta a todo aquele que pede uma
razão. A palavra grega usada por Pedro aqui, traduzida como
“razão”, é logos. Ela poderia significar algo como “lógica” — não,
evidentemente, lógica em seu sentido formal ou simbólico, mas
lógica no sentido de uma argumentação, ou fundamento,
consistente para a nossa crença.
Algumas das acusações que foram feitas contra os cristãos
na igreja primitiva foram (1) ateísmo, pois eles se recusavam a
adorar deuses pagãos, (2) canibalismo, pois falavam de comer
carne e beber sangue e (3) incesto, pois “irmãos” e “irmãs” pareciam
estar casados uns com os outros. Pedro está nos dizendo que os
cristãos devem estar preparados para dar uma explicação ou
argumentação consistente em resposta a tais acusações.
Estas mesmas acusações não parecem nos incomodar hoje.
Mas outras acusações têm surgido. Os cristãos são acusados de
serem bitolados, irrelevantes, soberbos e fanáticos. Pode
certamente ser verdade que, em nossa pecaminosidade, já
tenhamos, às vezes, agido assim. Mas muitas vezes as acusações
contra nós atacam a própria verdade em que acreditamos e não o
nosso próprio caráter. São estas acusações que devemos estar
preparados para responder.
Devemos estar preparados para ver por que essas
acusações são dirigidas contra nós e devemos estar preparados
para dar uma argumentação e um fundamento para a nossa fé em
Cristo. Por exemplo, se acreditamos que Jesus Cristo é o único
caminho para o Pai, podemos de fato, neste sentido, ser bitolados.
Mas devemos ser capazes de dizer por que pensamos da forma
como pensamos e por que não poderíamos pensar diferente.
Devemos dar a lógica, ou razão, para a esperança que existe
em nós. Lembro-me de ter visto, certa vez, um adesivo de para-
choque que dizia: “Deixei de ter esperança, e me sinto muito
melhor”. É um adesivo humorístico em certo sentido, mas seu
humor está embutido na sua trágica honestidade. Uma pessoa só
poderia se sentir melhor em desistir da esperança se esta
esperança fosse uma esperança em absolutamente nada — uma
esperança na esperança. Este tipo de esperança é vazio; não tem
um objeto real. Como esperança vazia, ela não traz benefícios reais.
Não traz nada além de confusão e ansiedade quando confrontada
diretamente. É melhor, portanto, desistir de uma esperança assim
do que se prender a ela.
Só os cristãos têm uma esperança verdadeira. Nós não
esperamos na esperança, mas em Cristo. Pedro está aludindo aqui
mais uma vez ao “problema” da invisibilidade. Como lembra-nos
Paulo, esperança em um objeto que se vê não é, de fato, esperança
(Rm 8.24). Mas embora reconheçamos que seu objeto é invisível, a
esperança que temos é, todavia, fundamentada naquele que em
pessoa prometeu voltar e nos levar para o nosso, e seu, eterno lar.
Pedro diz aqui que nós devemos responder aos desafios que nos
chegam dando a “lógica” da nossa esperança.

DAI-ME O QUE ME ORDENAIS


Agostinho foi um dos teólogos mais influentes em toda a
história da igreja. Foi um dos primeiros a escrever sobre a sua vida
à luz de suas experiências cristãs. Em suas Confissões, Agostinho
ofereceu orações a Deus acerca de sua vida e luta para ser um filho
obediente de Deus. Nesta obra, uma das orações mais memoráveis
é “Dai-me o que me ordenais, e ordenai-me o que quiserdes”.
O que Agostinho está orando é profundo em sua
simplicidade. Ele não está orando para que Deus exija menos dele;
está orando para que Deus lhe conceda os recursos necessários
para poder cumprir todas as ordens de Deus. Deus certamente pode
“ordenar o que ele quiser”, mas Agostinho também pede para “dar-
lhe o que ele lhe ordena”.
O Senhor ordena seu povo a dar uma resposta, a responder
com uma argumentação para a sua esperança. Ao ordenar que
enfrentemos os desafios que nos chegam, Deus não nos deixa sem
os recursos de que precisamos para cumprir esta ordem. Ele nos
concede o que precisamos, e tudo de que precisamos, em sua
Palavra. Paulo lembra o seguinte ao jovem pastor Timóteo:
Toda a Escritura é inspirada por Deus e proveitosa para
o ensino, para a repreensão, para a correção e para a
educação na justiça, a fim de que o homem de Deus
seja competente, equipado para toda boa obra. (2Tm
3.16-17, ESV)[7]
Esta é, sem dúvida, uma passagem familiar à maioria dos
cristãos. Mas sua verdade merece ser enfatizada. Após dizer a
Timóteo para o que as Escrituras são úteis, Paulo lhe dá a meta a
atingir. As Escrituras devem ser usadas de modo que o cristão seja
competente para toda boa obra. A palavra “competente” pode ser
traduzida também como “plenamente equipado”.
Significa que as Escrituras podem nos equipar com tudo de
que precisamos para responder aos nossos desafiantes. Ela é
perfeitamente suficiente para tal tarefa; na verdade, pelo menos em
parte, ela foi tencionada por Deus exatamente para essa finalidade.
Assim, não precisamos temer que venham ao nosso encontro
desafios para os quais não temos resposta. As Escrituras nos
fornecem as respostas de que precisamos para defender e
recomendar a fé cristã de forma adequada e obediente.
Isso não significa, porém, que teremos todas as respostas.
Pode acontecer de virem certas questões para as quais Deus não
se agradou em dar uma resposta que satisfaça o inquiridor. Ou pode
acontecer de não dominarmos certo ensinamento da Bíblia para
podermos responder a uma questão em particular.
A ordem do Senhor aqui não é obtermos onisciência; é uma
ordem de estarmos prontos para os desafios que nos chegam.
Embora não tenhamos — e nunca deveríamos afirmar que temos —
todas as respostas, pelo menos parte da nossa resposta, às vezes,
é que conhecemos aquele que as têm. Parte da nossa resposta,
então, é comunicar aos nossos desafiantes que conhecer a Deus
em Cristo faz toda a diferença. Ao conhecê-lo, passamos a confiar
em, e contar com, o único que tem todas as respostas.

BEM-AVENTURADOS OS MANSOS
Muito do que significa estar preparado para dar uma resposta
tem a ver com o entendimento da Bíblia e suas implicações.
Significa pensar através das verdades das Escrituras de um modo
que traga à tona as verdades para as questões de hoje. Desta
maneira, aprendemos não só o que as Escrituras dizem, por mais
necessário que isso seja, mas também seu significado em situações
particulares. Às vezes pode ser útil nos perguntarmos, quando
lemos as Escrituras, o que, afinal, a verdade que lemos significa à
nossa geração ou a uma situação específica que temos em mente.
Por outro lado, quando encontramos desafios à fé cristã, seja
em algo que lemos, seja numa conversa que tivemos, é muitas
vezes proveitoso tomarmos nota desses desafios e tê-los à mão
quando lemos as Escrituras. Provavelmente ficaremos surpresos em
como o Senhor antecipou em sua Palavra a essência de cada
desafio.
Pedro não apenas ordena que defendamos a fé, mas
também diz como a fé deve ser defendida. Ele usa duas palavras
significativas para descrever como devemos realizar a nossa
defesa. Diz, em primeiro lugar, que a nossa defesa deve ser com
“mansidão”. Pense na intensidade da perseguição que os cristãos
deveriam estar sofrendo quando Pedro escreveu estas palavras.
Quão difícil seria, quando confrontado com seu próprio algoz,
responder com mansidão? Quão fácil seria combater fogo com fogo,
responder ao opressor “na mesma moeda”?
Pedro lembra a atitude tomada pelo seu Salvador. Quando
Jesus foi desafiado, agiu com mansidão. Pedro conhecia a
mansidão de Cristo, pois a testemunhara em primeira mão. Pedro
sabia que aquele que verdadeiramente fora acusado injustamente,
aquele que teria tido uma razão legítima para responder de forma
dura à injustiça grosseira que sofria, respondeu a seus acusadores
com mansidão e benignidade (2Co 10.1, ACF). Assim, Pedro está
nos dizendo aqui para termos a mesma atitude de Cristo; está
dizendo para vivermos como Cristo viveu, mesmo quando ataques e
acusações são feitos contra nós.
Também devemos ser “respeitosos”. A palavra grega
traduzida como “respeito” é a palavra amiúde traduzida como
“temor”. É interessante Pedro usar esta palavra, pois havia mesmo
dito aos seus leitores para não temerem seus opressores. Agora ele
diz para responder-lhes com “temor”. O contexto é de suma
importância para determinar o que Pedro quer dizer com este
segundo uso da palavra temor.
Muitos tradutores corretamente traduzem essa palavra como
“reverência” ou “respeito”. É o que Pedro quer dizer aqui. Devemos
respeitar aqueles que nos perseguem; devemos tratá-los, a despeito
de serem nossos inimigos na fé — ou melhor, porque são nossos
inimigos na fé —, com o respeito que é devido a quem foi feito à
imagem de Deus. Ou, para colocar no contexto de Isaías 8, não
devemos temer os homens, mas a Deus. Temendo a Deus,
respeitaremos sua criação, mesmo aqueles que se põem contra ele.
Essa é uma tarefa difícil. É, sem dúvida, a coisa mais difícil
que somos ordenados a fazer quando enfrentamos nossos
acusadores. É relativamente fácil ajustarmos nossa mente para
entender as Escrituras com o fim de estar preparados para dar uma
resposta. É até relativamente fácil, tendo feito isso, darmos uma
resposta. O difícil é darmos uma resposta que irá imitar, e por sua
vez glorificar, o nosso Salvador. Mas é esta a tarefa colocada diante
de nós pelo próprio Espírito, em sua Palavra. E se tal coisa é exigida
de nós, Deus dará — e ele deu — os meios para realizarmos isso.
De fato, a menos que ele forneça os meios, isso não será realizado.
É algo que só pode ser realizado nele.
Ao que parece, os cristãos têm muito a aprender sobre isso.
Nossa reação natural ao sermos confrontados, ou perseguidos, ou
quando tentados a contra-atacar como “coitados”, é nos lançar
contra os nossos oponentes de uma forma mais dura do que eles
nos trataram. Nosso primeiro impulso, com frequência, é sobrepujar
a beligerância deles, gritar mais alto ou lutar com mais força. Mas
Cristo, que trazia consigo a autoridade dos céus e da terra, não
estava interessado em uma luta pelo poder (Jo 19.11). Ele não tinha
a intenção de mostrar “os poderes constituídos” que estavam
realmente no comando. Cristo respondeu a seus acusadores com
mansidão e humildade.
Esse é o nosso modelo. Esse é o nosso desafio. Esse é o
nosso privilégio — seguir a Cristo, mesmo quando ataques nos
sobrevêm, e responder com mansidão e respeito.
Visto que somos estrangeiros e alienígenas neste mundo,
tanto nosso reino final como nosso Rei são invisíveis. Muito do que
vemos está em oposição ao Rei. Nossa resposta é nos
prepararmos. É importante lembrar que devemos entender sua
Palavra à luz das objeções e perguntas que possam surgir em
nosso caminho.
Para que comecemos a pensar dessa maneira, precisamos
não apenas ler as Escrituras, por mais necessário que isso seja,
mas também meditar no que lemos. Precisamos desenvolver o
hábito de pensar através das implicações e aplicações da verdade
apresentada na Palavra de Deus. Isso pode exigir certo esforço que
inicialmente nos será estranho. Desenvolver um hábito é sempre
mais difícil que mantê-lo. Quando conseguirmos desenvolver o
hábito de fazer perguntas — perguntas de sondagem — sobre o que
lemos nas Escrituras, poderemos eventualmente descobrir que
meditar no que lemos nas Escrituras é algo que nos vem mais
naturalmente.
Pedro não requer que saibamos todas as respostas a todas
as perguntas que possam surgir. Ele requer que estejamos prontos.
A única forma de estarmos prontos é conhecendo as Escrituras, e
conhecê-las de uma forma que sejamos capazes de trazer suas
verdades à tona quando desafios e objeções surgirem em nosso
caminho.
Uma vez estando prontos para dar uma resposta, ver-nos-
emos encontrando objeções à fé cristã, seja frente a frente, seja em
coisas que vemos ou lemos. Poderemos até ficar surpreendidos que
as pessoas levantem certas objeções. Todavia, estaremos prontos
para dar uma resposta. E o mais importante, estaremos mostrando
obediência àquele que nos comissionou a tal tarefa. E estaremos
imitando o nosso Salvador.
Então, o que diríamos a Marv se ele já se convenceu de que
Freud está certo? Poderíamos começar perguntando por que ele
confia no que Freud disse em vez de nas palavras de Cristo. Ele
poderia responder que não tem certeza do que Cristo disse. Este é
o tipo de resposta que nos dá uma abertura para compartilhar o
evangelho. Ou poderíamos pedir para ele nos contar com algum
detalhe o que Freud disse e por quê. Poderíamos pedir para ele
defender a visão freudiana de mundo, das pessoas e da mente
humana. Pode ser que Marv só esteja pesquisando, e não veria
problema algum em desistir de Freud se outra coisa lhe fosse
oferecida.
Qualquer que seja a resposta de Marv, tenhamos nós lido ou
não Freud, as Escrituras são suficientes para nos dar as respostas
de que Marv precisa. Sua confiança em Freud é apenas outra forma
de desconfiar de Cristo. Assim, defendemos a verdade do
evangelho fazendo Marv se voltar de Freud para o nosso fiel
Salvador, que, ao contrário de Freud, derramou seu sangue para
que pessoas assim como Marv e nós pudessem realmente viver.
Esta verdade é digna de ser defendida — e contada!

Vós, servos de Deus, proclamai vosso Mestre,


E divulgai amplamente o seu maravilhoso Nome;
O Nome, todo-vitorioso, de Jesus glorifiquem;
Seu reino é glorioso e sobre todas as coisas governa.[8]
(Charles Wesley)
PARA SE APROFUNDAR

1. Por que o sofrimento e a perseguição tendem a nos dar


foco na vida cristã? É possível ter esse foco sem o sofrimento?
Como?
2. De que forma nossa identidade como pessoas que estão
“em Cristo” faz diferença em nossa defesa e recomendação da fé?
3. Cite quatro eventos atuais que devem ser entendidos no
contexto do senhorio de Cristo. Como essa perspectiva
influenciaria sua defesa da fé?
4. Se alguém lhe pedisse para dizer em três sentenças por
que você crê que o cristianismo é verdadeiro, o que você diria?
Que objeções você poderia antecipar em suas declarações? Como
as responderia?
5. Por que mansidão e respeito são, para muitos de nós,
coisas tão difíceis de desenvolver? Como poderíamos começar a
desenvolver essas coisas antes de ser confrontados?
2. Acautelai-vos dos idos de março

Era 15 de março, chamado às vezes de “os idos de março”. Era um


dia como qualquer outro. Mas como o adivinho ominosamente
lembrou a Júlio César, o imperador, o dia ainda não tinha chegado
ao fim.
Cássio e os líderes romanos temiam que o poder de César
subisse à sua cabeça. Muito poder a César significava muito pouco
poder a eles. Assim, conspiraram para matá-lo; convenceram até
mesmo Brutus, o bom amigo de César, a participar da trama do
assassinato. E antes que os idos de março chegassem ao fim,
César foi assassinado. A tragédia de sua morte era que seu próprio
amigo havia conspirado para matá-lo.
Desde a época de Shakespeare, pelo menos, e
provavelmente devido ao poder de muitas de suas peças (Júlio
César, Romeu e Julieta), a palavra tragédia passou a ter um sentido
mais específico. Aparentemente, o filósofo Aristóteles é quem deu
ao termo seu significado original. Para ele, tragédia era uma
categoria mais geral que tinha a ver simplesmente com o drama de
uma apresentação. À medida que o conceito evoluía, no entanto,
acabou sendo associado geralmente à noção de um mal
surpreendente e inesperado. Em Júlio César, a tragédia da morte de
César é expressa por Shakespeare naquelas três famosas palavras
latinas: “Et tu, Brute?”. A tragédia da peça se centrava no fato de
que Brutus, o amigo de César, havia se tornado um dos que
buscaram o fim de César. A surpresa na frase diz tudo: “Até tu,
Brutus?”. O próprio amigo íntimo de César o havia traído.
Amados, enquanto me empenhava para vos escrever acerca
da salvação que nos é comum, senti a necessidade de vos
escrever exortando-vos a lutar pela fé entregue aos santos de
uma vez por todas. — Jd 1.3, A21
O livro de Judas é uma espécie de tragédia. Ele nos lembra
de que haverá vezes em que aqueles mais próximos de nós
buscarão nossa morte. Lembra-nos de que frequentemente em
nosso próprio lar, e até mesmo na igreja de Jesus Cristo, devemos
levar em conta o dito “acautelai-vos dos idos de março”, pois o dia
ainda não chegou ao fim. Lembra-nos de que devemos encorajar
uns aos outros, ainda mais quando vemos o Dia se aproximar (Hb
10.25). Lembra-nos de que a fé deve ser defendida e recomendada
até mesmo para e entre o povo do Senhor.
O pai da igreja Orígenes já disse acerca do livro de Judas
que ele é “pequeno, mas cheio de um vigoroso vocabulário”.[9] Esse
vigoroso vocabulário é usado por Judas para motivar seus leitores, e
também a nós mesmos, a lutar pela fé. Ainda que pequeno em
tamanho, Judas traz consigo um potente vigor apologético.
As similaridades entre o livro de Judas e 2 Pedro
(particularmente o segundo capítulo) são inconfundíveis. Pouca
dúvida pode haver de que existe uma dependência de uma epístola
pela outra. Embora tenhamos menos informações sobre o público
alvo de Judas do que temos sobre o de Pedro, as preocupações
deles eram em grande parte as mesmas. Tanto Judas como Pedro
estavam preocupados em encorajar a igreja a se defender daqueles
que procurariam subverter ou minar seu ministério. O propósito de
cada livro é, portanto, apologético. Judas escreve a uma igreja, ou
grupo de igrejas, para ajudá-la(s) a se defender de um ataque
específico ao evangelho, um ataque que se dava dentro da própria
igreja.

UMA OBRA INTERIOR


Busquemos focar nossa atenção neste capítulo de Judas,
versículo 3:
Amados, quando empregava toda a diligência em
escrever-vos acerca da nossa comum salvação, foi que
me senti obrigado a corresponder-me convosco,
exortando-vos a batalhardes, diligentemente, pela fé que
uma vez por todas foi entregue aos santos.
Judas tinha um propósito ao escrever essa epístola.
Originalmente ele queria escrever uma carta de encorajamento.
Queria enfatizar a unidade de que ele e seus leitores originais
partilhavam em Jesus Cristo. Mas, por causa da situação que
enfrentavam, Judas decidiu escrever-lhes não sobre a sua unidade
na fé, mas sobre a defesa da fé que os unificava. Essa pequena
epístola acaba sendo, assim, um encorajamento para fazermos
apologética.
No entanto, a apologética que eles foram incentivados a
praticar tinha um foco que à primeira vista pode nos surpreender.
Como a apologética tem a ver com a defesa e recomendação da fé
contra ataques e acusações que surgem em nosso caminho,
alguém poderia pensar que ela se destina somente aos que estão
do lado de fora da igreja de Jesus Cristo. Em certo sentido, isso é
verdade. A oposição retratada nas Escrituras é tipicamente uma
oposição entre o mundo e a igreja (veja, por exemplo, a oração de
Jesus em João 17.14-16). Em princípio, as linhas de batalha estão
claramente traçadas entre a igreja e o mundo.
No entanto, sabemos que o que é verdade em princípio nem
sempre o é na prática. Tal é o caso na igreja de Jesus Cristo. Isso
não deveria nos surpreender. O próprio Jesus nos preparou para
isso. Na parábola do trigo e do joio ele nos disse exatamente o que
aconteceria na igreja. Ele disse que “enquanto seus homens
estavam dormindo”, viria o inimigo e semearia o joio no meio do
trigo (Mt 13.25, ESV). Quando as sementes de trigo criassem raízes
e começassem a crescer, isso também se daria com o joio.
Evidentemente, nossa reação natural a isso, como servos de
Cristo, é livrar o campo de todo o joio. Mas Jesus disse que esta
não era a responsabilidade dos servos. Se eles tentassem fazer
isso, um pouco de trigo também poderia ser destruído. Nós
devemos “deixá-los crescer juntos até à colheita” (Mt 13.30, ESV).
Em outras palavras, o processo da “ceifa” deve ser deixado para o
Senhor da colheita em seu próprio tempo perfeito.
Embora não possamos livrar completamente a igreja de seu
“joio”, isso não significa que o joio é sempre irreconhecível. Como,
então, devemos abordar o joio que se infiltra na igreja? Judas nos
auxilia a responder esta pergunta. Os cristãos a quem Judas
escreve experimentavam exatamente o que Jesus predissera na
parábola. Havia algumas pessoas que “se introduziram com
dissimulação” entre eles (Jd 4). Elas vieram para dentro da igreja
enquanto os cristãos dormiam. Não está perfeitamente claro quem
essas pessoas eram. Ao que parece, dada a linguagem usada por
Judas, seus leitores sabiam pelo menos alguma coisa sobre esse
grupo e seus ensinos. Mas esse grupo não havia sido notado pela
audiência de Judas; ele passou secretamente despercebido.
Não se trata apenas de que ele havia passado despercebido,
mas também que tinha começado a influenciar alguns crentes na
igreja. Alguns, aparentemente, começaram a duvidar da fé, e outros
estavam perigosamente próximos de sucumbir totalmente (vv. 22-
23). Assim, os que sorrateiramente haviam se introduzido estavam
também conduzindo operações dissimuladas entre esses cristãos
para, se possível, subverter e destruir a fé na qual a igreja estava
edificada. Como uma coisa dessas poderia estar acontecendo?
É fascinante tentar traçar as razões pelas quais e a forma
como ensinos cristãos, ou igrejas cristãs, ou instituições cristãs, “iam
mal”. Embora situações específicas tenham sempre características
específicas, o padrão geral parece ser exatamente aquele exposto
aqui por Judas. Raramente coisas boas, ou instituições boas e
santas, regridem por maneiras óbvias e inequívocas. Pelo contrário,
as influências e ideias parecem se mover lentamente, por vezes
indetectavelmente. Mas uma vez que estão dentro, elas muitas
vezes prosseguem tão lenta e sutilmente que acabam desgastando
a característica essencial do seu alvo.
Esse tipo de erosão raramente ocorre abertamente.
Raramente se assemelha às águas de uma enchente inundando
uma casa. Em vez disso, acontece mais ou menos como uma
torneira pingando lentamente no porão de uma casa,
silenciosamente, embora metodicamente, infligindo sérios danos ao
fundamento da casa, até esta cair em pedaços por causa de sua
própria podridão escondida.
Essa é uma das coisas que aprendemos de Gênesis 3. Você
se lembra de como fomos apresentados ao Maligno que seduz Eva?
Não nos é dito que Satanás entrou no jardim de forma direta, sem
rodeios, para destruir tudo que era bom. Ao contrário, somos
informados da “serpente, mais sagaz que todos os animais
selváticos que o SENHOR Deus tinha feito” (Gn 3.1).
A primeiríssima coisa que o Senhor quer que saibamos sobre
o ingresso do mal no mundo é que a serpente era o mais sagaz dos
animais selváticos (ou, como traz a Versão Autorizada, que a
serpente era “mais sutil” que os outros). Isso deveria nos servir de
alerta de que o mais sério e desprezível dos males provavelmente
vem em traje casual e aparentemente inofensivo.
Vemos isso mais adiante, na abordagem que a serpente faz a
Eva. Não há como saber de que modo Eva responderia se a
serpente simplesmente tivesse vindo e dissesse “Escolha a quem
você vai servir — a Satanás ou ao Senhor Deus!”. O ponto, todavia,
é que ele não apareceu dessa forma. Antes, veio com uma pergunta
— uma pergunta que talvez, superficialmente, parecia um simples
pedido de informação. “Ele disse à mulher: ‘Deus realmente disse
“Não comereis de toda árvore do jardim”? ’” (3.1).
Sem dúvida, Satanás sabia exatamente o que Deus havia
dito. Sua pergunta não era uma simples curiosidade. Ele estava
atrás de muito mais que informação. O modo como obteve sua
resposta é instrutivo, pois foi muito sutil. A serpente, ao fazer a
pergunta, foi capaz de manipular as próprias preocupações de Eva.
Ao fazer a pergunta do modo como fez, ele foi capaz de focar as
preocupações de Eva no seu logro; ele foi capaz de fazer Eva
questionar a ordem de Deus para ela. Primeiro veio a pergunta,
então a flagrante oposição. Só depois de Eva “entrar na sua onda”,
por assim dizer, é que ele foi capaz de lhe apresentar a “outra”
opção: “É certo que não morrereis” (3.4).
É assim que os ataques e assaltos operam dentro da igreja
cristã, no ensino cristão e nas instituições cristãs. Eles tendem a
operar, sutil e quase indetectavelmente, para trazer-nos ao seu
contexto de preocupação. Esses ataques e assaltos começam com
“preocupações” ou perguntas sutis. Subjacente a essas perguntas
se encontra uma negação da verdade bíblica. Se começarmos a
acolher essas perguntas, quase inconscientemente poderemos ser
envolvidos na mesma negação. Uma vez ali, tais perguntas, com
suas sutis negações, poderão começar a “pingar” no fundamento de
nossos compromissos mais caros para, se possível, fazer com que
apodreçam.
Judas descobriu que a torneira estava pingando nessas
igrejas, e pingando de uma forma que trazia seu dano ao povo do
Senhor; ela estava ameaçando o fundamento da própria igreja.
Assim, Judas escreveu-lhes para instruir sobre a natureza da
oposição e dizer o que eles deveriam fazer a esse respeito.

O INIMIGO INTERIOR
Antes de focar no que Judas pede para seus leitores fazerem
em tal situação, seria útil considerarmos mais especificamente a
oposição que essas igrejas estavam enfrentando. A descrição que
Judas faz dos inimigos que abriram caminho dentro da igreja é
esclarecedora. Ele não os descreve como meramente pessoas
mundanas.
A lista paulina de pecados em Romanos 1.29-30, por
exemplo, é uma lista de pecados tipicamente mundanos, pecados
da incredulidade nua e crua. Paulo descreve pessoas que são
perversas, avarentas, maliciosas, etc. Mas Judas descreve em
termos muito diferentes o pecado daqueles que se introduziram
sorrateiramente na igreja. Ele fala do pecado deles em termos que
mostram tanto a sutileza como a tensão que surge quando a
oposição vem de dentro da igreja, e não de fora. São indivíduos que
“prosseguiram pelo caminho de Caim”. Eles, “movidos de ganância,
se precipitaram no erro de Balaão, e pereceram na revolta de Corá”
(v. 11).
Essas ilustrações são tiradas do Antigo Testamento. Judas
remete seus leitores a pecados bem conhecidos que ocorreram na
história do povo do Senhor. E não devemos esquecer que esses
pecados ocorreram no contexto do povo do Senhor. Esses pecados
são infames entre o povo do Senhor porque foram cometidos “na
igreja”, por assim dizer.
Judas não faz uso de exemplos mais óbvios, como os dos
assírios ou filisteus em suas tentativas de conquistar e subverter
Israel. O que é peculiar nos pecados mencionados por Judas é que
eles não eram meramente pecados mundanos. Ao contrário, eram
pecados que serviram de alguma forma para minar a obra do
Senhor entre seu próprio povo. Judas usa essas três ilustrações
para lembrar a seus leitores, como lembra um autor de hinos, que
há “falsos filhos no seio” da igreja.
Aqueles que se infiltraram na igreja ou igrejas a que Judas
escreve não são meramente estrangeiros que chegam para
conquistar e governar. Esses encrenqueiros são mais ardilosos do
que isso. Eles sabem algo sobre “a tradição” das igrejas que eles
procuram subverter. Podem vir de fora, mas são manipuladores
astutos dentro dela. Conhecem a tradição e podem “falar a língua”.
Por isso, são ainda mais perigosos do que alguém que viesse
forçosamente de fora. Devemos notar a ênfase que Judas dá
nesses exemplos.
Caim, evidentemente, foi o primeiro assassino. Ele não matou
um inimigo. Matou seu próprio irmão, motivado por uma ira no
coração. Caim não era um estranho para o povo do Senhor. Ele
pertencia à “primeira família”. Era o primogênito da família de Adão.
Por uma questão de direito, a linhagem do povo do Senhor deveria
ter sido traçada por meio dele.
Mas, em vez disso, ele se tornou o pai dos que se rebelam
contra o Senhor (Gn 4.25-26; 1Jo 3.12). Embora fosse inicialmente
identificado com o povo do Senhor, Caim agiu de uma forma que,
não fosse a provisão de Deus, acabaria por destruir esse povo. Por
seu ato de pecado, ele tanto se separou do povo de Deus como o
deixou sem um “pai”. Se Deus não tivesse fornecido Sete, o povo de
Deus não teria continuado.
Ao escolher o caminho de Caim, os invasores desejavam, de
acordo com Judas, inverter a direção da igreja. Eles queriam
assassinar, por assim dizer, a linhagem de Jesus Cristo, e movê-la
assim rumo à sua própria destruição. O caminho de Caim era o
caminho do assassinato, assassinato a partir de dentro da casa do
Senhor.
A referência de Judas a Balaão se refere, sem dúvida, à
condenação que Moisés fez de suas ações em Números 31.16. Foi
por causa do conselho de Balaão que Israel quase foi destruída.
Nos dias de Judas corria a ideia de que a atitude de Balaão fora
motivada por dinheiro. Ele se encontrava com os midianitas quando
foi morto (Nm 31.6-8). Alguns sustentavam que ele estivera entre
estrangeiros, portanto, para coletar sua recompensa. Judas usa
essa ideia para comunicar a esses cristãos que os falsos mestres
em seu meio estão preocupados apenas com seu ganho pessoal.
Aqueles que, nas palavras de Judas, estão “banqueteando-se juntos
sem qualquer recato, pastores que a si mesmos se apascentam” (v.
12). Assim como Balaão fora responsável pela morte de milhares de
israelitas por causa do lucro, esses falsos mestres estavam
preocupados apenas com seu próprio lucro, não importando
quantos do povo do Senhor eles poderiam, nesse intuito, fazer
desviar. Ao usar este exemplo, Judas tentava mostrar que esses
falsos mestres, embora fingindo estar com eles, estavam longe do
discipulado que o próprio Cristo ensinara, um discipulado de serviço
e abnegação.
A referência a Corá deve ter sido particularmente chocante
aos leitores de Judas (veja Nm 16 e 26). Essa é provavelmente a
razão de Judas ter se referido a Corá antes. Sua referência é
chocante de diferentes formas.
Em primeiro lugar, Corá era um sacerdote de Israel. Ele
supostamente se dedicava à continuidade da devoção de Israel ao
seu Senhor. Mas Corá usou sua condição de sacerdote para se
rebelar contra a ordem e a estrutura que Deus firmara em Israel.
Colocando em linguagem neotestamentária, Corá usou sua posição
de liderança na igreja para exaltar a si mesmo e sua própria agenda.
Ele não se contentava em manter seu posto; queria assumir outras
posições de liderança e derrubar junto o povo do Senhor.
O uso que Judas faz de Corá também é surpreendente
porque não alude somente à revolta de Corá. Judas quer lembrar a
seus leitores o resultado da revolta de Corá. Quer lembrar-lhes o
julgamento de Corá. Ao chamar a atenção para o julgamento de
Corá, Judas não está simplesmente lembrando a seus leitores o
pecado de Corá numa comparação com o pecado dos falsos
mestres que se introduziram; está também lembrando o fim de Corá
— um fim que, subentende Judas, virá sobre todos aqueles que
seguirem os passos de Corá. Esse tema do julgamento é uma parte
significativa da carta de Judas (veja especialmente vv. 14-15). Esse
é um lembrete não só de que é errado seguir aqueles que se
desviam, mas, também, de que seguir essas pessoas traz uma
eternidade de punição. Corá foi o símbolo veterotestamentário
dessa punição (Nm 16.33).
É interessante, também, que Judas usa uma palavra para
descrever a revolta de Corá que não remete fundamentalmente às
ações de Corá, mas às suas palavras. Aparentemente, Judas
escreve dessa maneira para chamar nossa atenção à influência
perigosa e sedutora que os argumentos podem ter sobre nós. A
disputa de Corá, seu debate, é que seduzira outras pessoas em
Israel para junto de Corá e, assim, para sua própria destruição. Essa
palavra é usada três outras vezes, apenas, no Novo Testamento —
todas no livro de Hebreus. Ela é usada em Hebreus 12.3, aplicando-
se à oposição que o próprio Cristo teve de suportar:
Considerai, pois, atentamente, aquele que suportou
tamanha oposição [traduzido como “revolta” em Judas
11] dos pecadores contra si mesmo, para que não vos
fatigueis, desmaiando em vossa alma.
A oposição em vista aqui, em Hebreus, atingiu seu clímax na
cruz. A crucificação de Jesus foi a tentativa final de destruir o plano
de Deus e, por sua vez, seu povo. A revolta de Corá era um símbolo
dessa mesma oposição. Era uma oposição, um argumento, contra a
autoridade da igreja no Antigo Testamento. Assim sendo, era um
argumento contra o próprio Cristo. E, como está dizendo Judas,
assim são as disputas rebeldes dos falsos mestres também.
Essas três ilustrações no Antigo Testamento destacam a
preocupação de Judas com os falsos mestres. Seria difícil enfatizar
demasiadamente o problema a que Judas remete em sua carta. O
problema é que a igreja tem sido infiltrada por aqueles que se
opõem ao evangelho. Eles vieram para dentro da igreja e vivem
entre os cristãos.
Professando ser parte da igreja, esperam fazer com que
outros se desviem. Eles são como alguns dos israelitas que, embora
libertados do Egito, foram destruídos (v. 5). São como os anjos que,
embora criados bons pelo próprio Senhor, rebelaram-se e decaíram
de sua posição criada (v. 6). São como os habitantes de Sodoma e
Gomorra (v. 7). Todos esses servem para ressaltar a situação
perigosa em que essas igrejas se encontravam quando Judas
escreveu. O joio estava em plena floração e sufocaria a vida de
qualquer trigo que ali houvesse, a menos que o Senhor interviesse
através de seus servos fieis.
Como, então, deveriam os cristãos responder?

O BOM COMBATE
O propósito de Judas ao escrever era incentivar e impelir
seus leitores à ação. Os inimigos internos, como vimos, eram sutis e
perigosos. Na mente de Judas, havia uma coisa que os cristãos
tinham de fazer. Eles tinham de lutar, combater.
Combater não é uma daquelas palavras que normalmente
associamos à fé cristã. E é assim que deve ser. O cristianismo se
preocupa com a reconciliação. Sua mensagem é uma mensagem de
“boas novas”, e parte de sua meta é reunir pessoas de toda tribo,
língua, povo e nação (Ap 5.9). Pretende-se que essas diferentes
pessoas sejam finalmente um reino e como um reino para adorar e
louvar ao Rei dos reis e Senhor dos senhores. A mensagem do
cristianismo não é na essência uma mensagem de divisão e
conflitos, mas de unidade e paz. Somos chamados a preservar a
unidade do Espírito no vínculo da paz (Ef 4.3). O próprio Jesus
Cristo é chamado por Isaías de “Príncipe da Paz” (Is 9.6).
Mas há outro lado em nossa fé que é necessário também
lembrarmos. É necessário por causa da pecaminosidade que
permanece no mundo até o retorno de Cristo. Você se lembra do
que o Príncipe da Paz disse aos Doze antes de enviá-los?

Não penseis que vim trazer paz à terra; não vim trazer
paz, mas espada. Pois vim causar divisão entre o
homem e seu pai; entre a filha e sua mãe e entre a nora
e sua sogra. Assim, os inimigos do homem serão os da
sua própria casa. (Mt 10.34-36)
Por que essa nota de tensão? Por que Cristo nos quer fazer
compreender que haverá esse tipo de oposição? Isso não soa como
paz, mas como divisão e discórdia.
Essas palavras podem ser difíceis de entender. Parece óbvio,
no entanto, que pelo menos parte do que Jesus está dizendo a seus
discípulos é que o nosso compromisso de segui-lo deve ser um
compromisso “devotado”. Jesus está dizendo, aqui, o que nos disse
em outro lugar — que é impossível servir a dois senhores. Qualquer
tentativa de servir a dois senhores resultará em nosso ódio por um e
amor pelo outro (Mt 6.24).
Até coisas muito boas, coisas que com razão devemos
estimar, coisas que nos trazem alegria e bênção, coisas como
relacionamentos familiares, jamais devem assumir a posição de
“Senhor” em nossa vida. Uma vez que escolhemos seguir a Cristo,
nossa lealdade final não pode ser colocada em qualquer outro lugar.
Seguir a Cristo significa deixar para trás qualquer outra coisa que
previamente seguíamos — ainda que isto inclua membros da
família!
Mas a linguagem que Jesus está usando aqui é muito mais
forte que a de uma mera lealdade. Ele fala de inimigos, guerra e
combate. O próprio Cristo estava preparado para combater. Como o
Príncipe da Paz, ele veio, não obstante, trazer espada (Mt 10.34).
Vale lembrar que o próprio apóstolo Paulo falou de um
combate. No fim de sua vida, escrevendo para aconselhar o jovem
pastor Timóteo, ele lembrou a Timóteo de que combatera o bom
combate (2Tm 4.7). Essa é talvez a melhor maneira de pensar sobre
a tarefa a que Judas chama seus leitores. É a melhor maneira de
pensarmos sobre a tarefa apologética que nós também, igualmente,
temos. Embora possa soar paradoxal, somos chamados para
combater um “bom” combate. Este combate, como diz Paulo em
outro lugar, é o bom combate da fé (1Tm 6.12). Pode ser até mesmo
dito que o único bom combate é o bom combate da fé. É o combate
que tem seu centro e foco na fé cristã.
Judas chama seus leitores, e nós com eles, a combater o
bom combate. Como vimos, Cristo ensinou a seus discípulos que
“os inimigos do homem serão os da sua própria casa”. Se isso é
verdade acerca de nossa própria família, é certamente verdade
acerca da casa ou família da fé. Nossos inimigos irão viver e
trabalhar eventualmente na mais estreita proximidade conosco —
talvez em nosso lar, e até mesmo na igreja de Jesus Cristo.
Assim, segundo Judas no versículo 3, devemos “batalhar”
pela fé. A palavra traduzida como “batalhar” não é usada em
nenhum outro lugar do Novo Testamento. Ela era comumente usada
em outros lugares para aludir a combates militares ou competições
atléticas. Ao usar esta palavra, Judas deve ter feito seus leitores se
lembrarem automaticamente de uma batalha militar ou evento
atlético. As duas metáforas, a militar e a atlética, são familiares nas
Escrituras. Paulo encoraja Timóteo a “participar dos sofrimentos
como bom soldado de Cristo Jesus” (2Tm 2.3). Ele nos ordena, em
outro lugar, a competir de tal forma que levemos o prêmio (1Co
9.24, ESV).
O ponto de Judas, no uso dessa palavra, é destacar o fato de
que esses cristãos deveriam se ver como se estivessem em meio a
uma batalha ou competição difícil, até em meio à igreja! Por causa
da sua profissão de fé, por seguirem a Cristo, eles são recrutados
dentro de um exército, por assim dizer, e é hora de eles
empregarem um grande esforço em prol da sua fé, para a glória de
seu Salvador.
Como iremos ver no próximo capítulo, nosso combate
certamente não deve ser feito usando as armas do mundo. O
combate que fazemos será apenas um “bom” combate se ele tiver
Cristo, o Senhor dos Exércitos, como seu capitão. Esse combate
deve ser feito utilizando somente as armas que o nosso capitão
forneceu.
Mas a presença dessas forças oponentes dentro da igreja
significava que não havia tempo para moleza e relaxamento nas
igrejas às quais Judas escreveu. Elas deveriam proteger aquele rico
depósito que lhes fora dado no Evangelho. O modo como Judas
descreveu esse combate mostra como a guerra espiritual deve ser
travada.

O COMBATE FIEL
Se seguíssemos a ordem original das palavras usadas por
Judas em sua descrição da fé no versículo 3, seria algo como:
Batalhem pela “fé que uma-vez-por-todas-foi-entregue-aos-santos”.
Judas chama nossa atenção para três elementos desta fé. Iremos
considerá-los brevemente, mas antes precisamos compreender o
que Judas entende por “a fé”.
Na maioria das vezes em que usa a palavra fé, a Escritura se
refere à nossa fé como um dom de Deus (Ef 2.8). Fé, neste
contexto, é algo interno.
O aspecto interno da fé relaciona-se primariamente à nossa
atividade. Esta é a forma mais frequente em que o Novo Testamento
usa a palavra. Tal fé pode ser grande ou pequena (compare Mt
15.28 com 16.8). Ela moveu o Salvador a curar (veja Mc 2.5; 5.34).
Pode ser forte ou fraca (Rm 4.19-20). Quando as Escrituras falam
da fé desta maneira, estão se referindo àquele dom de Deus que é
aplicado e exercido por nós. Esta fé é aplicada e exercida,
inicialmente, em nossa conversão, e continua a ser exercida por nós
em nossa caminhada cristã (o que as Escrituras chamam de
santificação).
É este o aspecto da fé de que a Confissão de Westminster
tão eloquentemente fala:
Por essa fé o cristão, segundo a autoridade do mesmo
Deus que fala em sua palavra, crê ser verdade tudo
quanto nela é revelado, e age de conformidade com
aquilo que cada passagem contém em particular,
prestando obediência aos mandamentos, tremendo às
ameaças e abraçando as promessas de Deus para esta
vida e para a futura; porém os principais atos de fé
salvadora são — aceitar e receber a Cristo e firmar-se
só nele para a justificação, santificação e vida eterna,
isto em virtude do pacto da graça. (14.2)
As Escrituras enfatizam esse tipo de fé porque ele é uma
parte crucial e muito importante de nossa experiência cristã.
O aspecto da fé a que Judas se refere, porém, não é
fundamentalmente o aspecto interno da nossa fé. A fé a que Judas
se refere não é a fé que temos em Cristo ou a fé forte ou fraca
presente em nós; antes, é algo que está fora de nós. É a fé. E,
conquanto esteja certamente relacionada à nossa fé interna, ela é
uma coisa completamente diferente.
Embora possamos crer na fé, e certamente os leitores de
Judas criam nela, não era por sua própria crença pessoal que eles
travariam o combate. Era por algo externo a eles, algo que existia
ainda que não cressem nisso. (Claro, se não cressem nisso, eles
não teriam nenhuma razão para travar o combate) Eles haviam se
comprometido com essa fé, e era por essa fé externa que eles
travariam o combate.
É importante lembrar isso por duas razões. Antes de tudo,
quando estamos batalhando por nossa fé, não estamos, em primeiro
lugar, travando combate por algo que temos, e que poderíamos
perder. O ponto em disputa não é a fé dada a nós por Deus. Antes,
é a verdade das Escrituras; mais especificamente, aquelas verdades
que compõem o Evangelho. Em segundo lugar, porque aquilo pelo
que batalhamos é o Evangelho, precisamos saber do que ele trata.
Precisamos saber no que consiste a fé, pois somos chamados a
travar combate por ela.
Encontramos essa fé externa mencionada também no livro de
Atos. Em Atos 6.7 nos é dito que “se multiplicava o número dos
discípulos; também muitíssimos sacerdotes obedeciam à fé”. Aqui, a
fé de que se fala é um tipo de padrão, uma régua, a que os cristãos
se tornam obedientes. Em outros lugares, a fé é algo em que os
cristãos devem ficar firmes (At 14.22) e ser fortalecidos (At 16.5).
Quando as Escrituras aludem “à fé”, estão se referindo a um
corpo de verdades ou doutrinas em que passamos a crer quando
confiamos em Cristo. Embora elas não estejam se referindo à minha
crença em si, estão relacionadas à minha crença no fato de que eu
me comprometi com essas verdades. A fé, em certo sentido, é
aquilo pelo que devo estar disposto a morrer. Ela inclui o próprio
evangelho que nos salva (Rm 1.16). É a fé na qual passamos a crer.
“A fé” era um modo de se referir às verdades em que os
cristãos acreditavam. Era chamada de a fé pelo menos em parte
porque se referia ao que eles criam. Há certas verdades em que
cada cristão deve crer para ser cristão. Embora apenas crer que
essas coisas são verdadeiras não torna uma pessoa cristã, não se
pode ser cristão sem essa crença.
Esse corpo de verdades é chamado de a fé. Inclui coisas
como a verdade das Escrituras, a existência de Deus e a
encarnação, morte e ressurreição de Cristo. Inclui o fato de que
Deus salvou seu povo, que Cristo virá novamente, etc. Essas
verdades são cruciais para a vida da igreja. Sem essas verdades a
igreja não teria como ajudar e ministrar àqueles que buscam crescer
na graça.
É por isso que, desde cedo na história da igreja, cristãos
definiram credos e confissões como expressões daquilo em que
acreditavam. Essas coisas são designadas não apenas para dizer
aos outros no que acreditamos, mas também para nos lembrar do
que acreditamos. São designadas para nos ajudar a ver a unidade,
harmonia, profundidade e riqueza da diversidade da revelação
escrita de Deus a seu povo.
Muitas igrejas ainda recitam o Credo Apostólico em seus
cultos. Se recitamos o credo, queremos dizer que cremos, por
exemplo, que Deus é o Pai Todo-Poderoso, Criador dos céus e da
terra, que Jesus Cristo é seu Filho unigênito e nosso Senhor, que
ele foi concebido pela Virgem Maria e padeceu sob o poder de
Pôncio Pilatos. Não estamos dizendo algo sobre o nosso exercício
pessoal de fé — se ela é forte ou fraca, por exemplo. Antes,
estamos dizendo algo sobre o conteúdo da verdade da nossa
crença. Estamos declarando a fé. É por tal coisa que a audiência de
Judas deveria batalhar. E é por tal coisa que nós mesmos devemos
batalhar.
Não temos nenhum modo de saber no que, exatamente,
consistia “a fé” quando Judas escreveu sua epístola. O credo cristão
mais antigo de que temos ciência consistia da afirmação “Jesus é
Senhor” (1Co 12.3). O Credo Apostólico ainda não havia sido escrito
quando Judas escreveu sua epístola. Mas não devemos subestimar
a capacidade dos cristãos no primeiro século de articular sua fé.
Embora o Credo Niceno estivesse a séculos de ser escrito, há
pouca dúvida de que, quando Judas escreveu, Cristo já era visto
como plenamente Deus. A primeira confissão — “Jesus é Senhor”
— expressa isso.
Judas estava particularmente preocupado com a forma como
os falsos mestres haviam pervertido a graça de Deus. Alguns
comentaristas se referem a esses falsos mestres como
“antinomianos”, significando que eles eram “contra a lei”.
Geralmente o termo se refere a pessoas que interpretam a graça de
Deus como uma licença para pecar. Elas não veem nenhum uso
real para a lei de Deus.
O relacionamento entre a graça e a obediência é um dos
ensinamentos mais difíceis e controversos na história da igreja. No
entanto, não deve escapar de nossa atenção que Judas parece ter
tido conhecimento suficiente sobre a graça de Deus, e sua relação
com a obediência, para saber que havia alguns na igreja que
estavam distorcendo e manipulando estas verdades para os seus
próprios fins perversos.
Assim, muito embora não tenhamos o texto de qualquer
credo ou confissão de fé que possa ter sido usado naquele tempo,
pouca dúvida pode haver de que Judas sabia o suficiente sobre a
graça de Deus para reconhecer suas falsificações — e Judas
esperava que seus leitores soubessem o mesmo. “A fé” para Judas
e seus leitores, portanto, continha provavelmente a maior parte do
que o cristianismo ortodoxo sempre sustentou como verdade. Ela
pode não ter sido articulada de forma tão precisa ou nas palavras a
que estamos acostumados, mas deve ter estado presente ali, não
obstante. E era por esta fé, a fé, que os cristãos deveriam
vigorosamente batalhar.

TODOS POR UM E UMA VEZ POR TODAS


Judas chama essa fé de fé “uma-vez-por-todas-entregue-aos-
santos”. O que quer ele dizer com “uma vez por todas”? Pelo menos
parte do que ele quer dizer é que há certa completude no que os
santos creem. Essa completude é orientada e dirigida pelo próprio
plano e providência de Deus na história.
Quando Adão e Eva estavam no jardim, a revelação de Deus
para eles era de “uma vez por todas”. Isto é, o que eles receberam
do Senhor estava completo; não precisavam de nenhuma outra
revelação além da que Deus lhes dera. Nem tampouco receberiam
mais do que precisavam naquele momento na história. O mesmo
era verdade para Abraão, para Israel e para os cristãos que viveram
no primeiro século.
Nada deveria ser acrescentado ou subtraído da revelação
que receberam da parte do Senhor (veja Dt 4.2; Ap 22.18-19). Ela
foi dada por Deus de uma vez por todas. Acrescentar às suas
ordens ou subtrair algo do que ele revelava seria negar seu caráter
como revelação dada de uma vez por todas; e seria negar sua
suficiência. Deus sempre tem dado exatamente o que é necessário
— nem mais nem menos.
Há uma completude na revelação do primeiro século, porém,
que o diferencia de todas as demais revelações dadas por Deus na
história. Judas entendia isso, sem dúvida. Uma vez que Cristo veio
e consumou sua obra, o tempo da revelação especial de Deus ao
seu povo tinha chegado ao fim. Como diz o autor de Hebreus,
“Havendo Deus, outrora, falado, muitas vezes e de muitas maneiras,
aos pais, pelos profetas, nestes últimos dias, nos falou pelo Filho”
(Hb 1.1-2). Se Judas sabia ou não que ele mesmo estava
escrevendo as Escrituras, é algo que se desconhece. Mas ele
parecia entender que a revelação dada em Cristo, assim como a
obra do próprio Cristo, estava completa.
A revelação dada em Cristo estava completa por causa da
obra que Cristo realizara. Judas estava se referindo,
essencialmente, ao evangelho. O evangelho, as boas novas,
fundamentava-se na obra completa de Jesus Cristo — na sua vida,
morte, ressurreição e batismo pelo Espírito Santo no Pentecostes.
Estes eventos haviam ocorrido de uma vez por todas. Judas sabia
disso. Havia uma completude nessas coisas que, se fossem
suplementadas ou diminuídas, isso só perverteria sua verdade.
Cristo veio, morreu, levantou dos mortos, ascendeu aos céus,
sentou-se à direita de Deus e batizou cristãos com o Espírito no
Pentecostes. Todos estes eventos aconteceram com vistas à nossa
redenção, salvação. E estavam todos completos.
Esses eventos não se repetiriam porque não havia
necessidade de repeti-los. Eles eram a obra de Cristo, e sua obra
estava consumada. Judas entendia que a fé que deveria ser
defendida só poderia ser adequadamente defendida se fosse
envolta na obra de Cristo concluída de-uma-vez-por-todas. Se mais
revelação estivesse por vir, poderia bem ser que os invasores na
igreja merecessem uma audiência. Mas a obra de Cristo estava
completa. Qualquer tentativa de perverter, subverter, suplementar ou
subtrair algo dessa obra deveria provocar um bom combate; deveria
levar-nos a pegar nossa armadura espiritual e a realizar um
combate.
Claro, a escrituração dessa revelação em Cristo estava em
processo quando Judas escrevia. Ela não estava em processo com
relação apenas ao que o próprio Judas escrevia; havia mais a ser
escrito por outros, também. Judas tinha em mente, provavelmente,
as palavras que Jesus dissera aos seus discípulos sobre o Espírito
Santo. Jesus havia lhes dito no tabernáculo que era melhor que ele
partisse, pois do contrário o Espírito Santo não viria (Jo 16.7).
Parte do ministério do Espírito entre os discípulos era de
guiá-los “a toda a verdade” (Jo 16.13). Pedro compreendia que o
próprio Paulo escrevera sob a inspiração do Espírito Santo; como
resultado ele chamou os escritos de Paulo de “Escrituras” (2Pe
3.16). Dada a estreita relação que há entre os livros de Judas e 2
Pedro, Judas provavelmente entendia que o Espírito que chegara no
dia de Pentecostes estava inspirando a escrituração dessa
revelação “de-uma-vez-por-todas”, completa.
Esse é um aspecto importante para aqueles que devem
defender e recomendar a fé. A fé que defendemos é uma fé que
culminou em Jesus Cristo. É uma fé que entende que a revelação
de Deus está completa em Cristo. É uma fé que reconhece a
necessidade da revelação mesma, o que é a própria ênfase de
Judas.

ENTREGA ESPECIAL
A fé “uma-vez-por-todas-entregue-aos-santos” não é apenas
“uma vez por todas”, mas também “entregue”. Isso nos remete à
fonte da fé que defendemos. A fé é entregue, ou legada, para nós. A
palavra usada aqui por Judas enfatiza o fato de que a nossa fé é
revelada. É uma fé que nos foi dada pelo próprio Deus. Não é algo
que inventamos por conta própria. Não é uma fé que tem sua fonte
em Judas, nos apóstolos ou no intelecto humano. Ela tem sua fonte
somente em Deus:
Nem olhos viram, nem ouvidos ouviram, nem jamais
penetrou em coração humano o que Deus tem
preparado para aqueles que o amam.” Mas Deus no-lo
revelou pelo Espírito. (1Co 2.9-10)
A fé que temos, aquelas verdades que devemos defender,
são verdades que nos foram dadas por Deus. Desde que têm Deus
como a sua fonte e origem, elas são verdades literalmente
“celestiais”. Temos uma fé celestial que jamais foi, nem poderia ser,
produzida por uma mente meramente humana. Nossa fé vem da
mente de Deus.
Isso deve ter deixado os falsos mestres nas igrejas se
sentindo desconfortáveis. Eles eram “murmuradores, descontentes,
andando segundo as suas paixões;… aduladores dos outros, por
motivos interesseiros” (Jd 16). Se os cristãos haveriam de defender
a fé contra tais mestres, precisariam saber que aquilo que
defendiam de modo algum se originara com eles, ou com Judas, ou
mesmo com algum outro dos apóstolos. O que eles defendiam se
originara somente com Deus; fora dado pelo seu Espírito.
Assim, a autoridade que estava por trás de sua defesa da fé
era somente Deus. Uma parte de sua defesa deve ter sido (como
deve ser a nossa) “Assim diz o Senhor”. Os falsos mestres, os
“aduladores dos outros”, devem ter recuado diante de tal humildade
(porque aquilo que dizemos é a palavra de Deus e não a nossa),
combinada com essa autoridade do Senhor.
Qualquer defesa do cristianismo, portanto, deve se basear na
revelação divina. Se formos inquiridos ou desafiados a dar uma
razão para a nossa fé, não devemos nos atrever a pensar que
cremos em coisas que se originaram em nós mesmos. Não
devemos nos atrever a sugerir que cremos no que cremos porque
somos mais espertos ou mais perceptivos que aqueles que não
creem. O que temos, temos pela graça de Deus. O que cremos, não
cremos porque olhos viram, ou ouvidos ouviram, ou coração
imaginou — mas porque, e apenas porque, Deus no-lo revelou por
seu Espírito. Se havemos de defender a fé, é para a revelação de
Deus que devemos ir. É ali que a fé é dada; é nessa revelação que
ela é explicada. Ela nos foi entregue, e é pela graça de Deus que a
recebemos.

POR TODOS OS SANTOS


Alguns têm visto no livro de Judas uma refutação do
movimento religioso chamado gnosticismo. Em suas mais variadas
formas o gnosticismo defendia, entre outras coisas, que sua
verdade só poderia ser descoberta ou entendida por aqueles que
estivessem “no saber”. O termo gnóstico vem da palavra grega para
“conhecimento”. Neste sentido, o gnosticismo era uma religião
exclusivista. Ele excluía quem não obtinha, ou não poderia obter, o
conhecimento adequado.
Num sentido, o cristianismo também é uma religião
exclusivista. Todos os que não confiam em Cristo são excluídos de
seus benefícios vivificantes, vitais. Mas aqueles que confiam fazem
parte de seu reino eterno, em virtude dessa confiança, tão somente.
Existem, claro, diferenças dentro da igreja cristã. Há aqueles que
possuem o dom da misericórdia, por exemplo, ou da pregação, ou
do conhecimento. Mas esses dons assumem que a pessoa já é
cristã. Não são “bilhetes” que nos colocam dentro.
Judas está lembrando a seus leitores que essa fé pela qual
devemos travar combate, até mesmo dentro da igreja, a fé “uma-
vez-por-todas-entregue-aos-santos”, foi e é entregue aos santos.
Observamos no último capítulo que a palavra que Pedro usa em 1
Pedro 3.15 para “santificai” (“considerai como santo”, ESV) é uma
palavra que tem a ver com santidade. A palavra que Judas usa aqui
para “santos” é tomada da mesma palavra. Ela poderia ser
facilmente traduzida como “aqueles que são separados”. A fé é
entregue a todos aqueles que são separados. O termo teológico
para isso é “santificados”. Judas está dizendo a seus leitores que
Deus concedeu essa fé, de uma vez por todas, ao corpo santificado
de Cristo, àqueles que são separados como santos. Santificação
significa ser, bem como tornar-se, santo.
A Bíblia usa o termo santificação de, pelo menos, duas
formas diferentes. Ela fala acerca de nós como tendo necessidade
de santificação. Devemos nos tornar santos em Cristo (veja Jo
17.17; Rm 6.22; 1Ts 4.3; 5.23). A santificação, neste sentido, é um
processo de crescimento cada vez maior à imagem de Jesus Cristo
(Rm 8.29). É um processo que chega à sua conclusão em nossa
glorificação em Cristo no Último Dia.
Mas a Bíblia também fala acerca da nossa santificação como
um fato consumado; algo que já aconteceu em nós. A primeira carta
de Paulo aos coríntios é instrutiva, no que diz respeito a isso. Paulo
dirige essa carta “aos santificados em Cristo Jesus” (1Co 1.2). E,
para que não pensemos que Paulo está se referindo apenas a um
grupo seleto dentro daquela igreja (sobretudo ao considerar todos
os problemas em Corinto a que ele teve de remeter), Paulo continua
a lhes lembrar de que é por causa de Deus que eles estão em Cristo
Jesus.
Visto que estamos em Cristo Jesus, ele se tornou a nossa
“sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção” (v. 30). Estar em
Cristo traz o benefício da santidade, ou santificação, nele. Mais
tarde, Paulo lembra a esses coríntios que, muito embora eles ainda
lutem com o processo da santificação (basta ler a carta para
constatar isso), suas vidas foram alteradas pela obra de Cristo em
seus corações.
Após listar uma série de pecados que dominam a vida, Paulo
lhes diz: “Tais fostes alguns de vós; mas vós vos lavastes, mas
fostes santificados, mas fostes justificados em o nome do Senhor
Jesus Cristo e no Espírito do nosso Deus” (1Co 6.11). Aqui, Paulo
está dizendo que em Cristo, no seu Espírito, eles foram santificados.
Eles foram separados em Cristo, trazidos para dentro de seu reino e
salvos do pecado para a glória de Cristo.
Assim, quando Judas fala dos “santos”, não está se referindo
apenas a um grupo seleto. Não está dizendo que só aqueles que
alcançaram certo nível de santidade é que receberam a fé de uma
vez por todas. Antes, está dizendo a seus leitores, e também a nós,
que essa fé tem sido dada a todos nós. Tem sido dada a todos que
estão separados em Cristo — todos que são, por definição, santos.
Estar em Cristo é ser “declarado santo”. Ser declarado santo é ter a
fé. Ter a fé traz consigo a responsabilidade de defesa e
recomendação dela. A apologética é para todos os santos.
Judas escreveu para encorajar os cristãos a batalharem pela
fé — dentro dos limites da própria igreja. E como alguém poderia
fazer isso? A principal maneira de batalhar pela fé é explicar e expor
a realidade e verdade da própria Bíblia. Uma vez que os falsos
mestres nos dias de Judas estavam pervertendo a graça de Deus,
os cristãos aos quais Judas escreveu precisavam colocar a graça de
Deus de volta no devido contexto do evangelho. Eles precisavam
ser capazes de argumentar que uma graça que leva à imoralidade é
oposta à fé, que ela não é, na verdade, parte da graça do
evangelho. Eles precisavam mostrar que a graça genuína é
expressa na gratidão obediente, na santidade e na fidelidade a esse
evangelho.
A fé pela qual devemos zelosamente batalhar é a fé dada a
todos nós. Ela é dada a todos nós na revelação especial de Deus,
as Escrituras. Agora, recebemos não apenas a carta de Judas, mas
o cânon completo das Escrituras. Isso nos dá uma obrigação de
defender a fé, de batalhar por ela — mesmo que seja necessário
fazê-lo no contexto da igreja de Jesus Cristo. Somos obrigados a
combater o bom combate da fé; devemos impor as reivindicações
de verdade do cristianismo sobre as ideias ou ações incrédulas,
mesmo que as encontremos dentro dos muros da própria igreja.
Assim como somos chamados a “cuidar com os idos de
março”, somos postos em estado de alerta sobre a possibilidade de
haver alguns em nosso meio que não apenas comecem a negar a
fé, mas que também gostariam de nos ver seguir seus passos.
Como Brutus com César, eles gostariam nada mais do que nos trair.
A miséria adora companhia, e quanto mais, melhor. Devemos nos
preparar para batalhar com alguns que são próximos a nós.
O único modo de fazer isso, como temos visto no último
capítulo, é conhecer as Escrituras. Se soubermos, assim como
Judas, em que consiste a graça, seremos capazes de dizer quando
alguém entra na igreja com “um evangelho diferente” (Gl 1.6-9).
Somos chamados por Judas a defender esse evangelho — essa fé
— que o próprio Senhor entregou ao seu povo, uma vez em Cristo e
por todos os tempos.

PARA SE APROFUNDAR
1. Quais são algumas formas de se proteger contra ataques à fé que
partem de dentro da igreja de Jesus Cristo?
2. Você está familiarizado com alguma situação (pessoa ou
instituição) em que houve um declínio da fé? Poderia traçar o
declínio? Ele poderia ter sido evitado? Como a apologética poderia
ter ajudado em situações assim?
3. Por que, muitas vezes, argumentos parecem mais poderosos em
nos enganar do que comportamentos? O que isso diz sobre
apologética? O que isso diz sobre o coração humano?
4. O que faz o cristão combater um bom combate? Como podemos
evitar transformar o bom combate em um mau combate?
5. Quais são os dez principais elementos da fé? Como você sabe
quais elementos são os mais importantes?
6. Como a completude da revelação nos ajuda na defesa e
recomendação da fé?
3. O ataque surpresa

A segunda carta aos coríntios é a mais autobiográfica das cartas de


Paulo. Aprendemos mais nessa epístola sobre a vida e o coração de
Paulo que em qualquer outra. Paulo achou necessário dizer muito
acerca de si mesmo, pois sua vida e ministério estavam sob ataque
na igreja em Corinto. A exemplo do que vimos em Judas, alguns
haviam se infiltrado na igreja de Corinto. Essas pessoas tinham o
expresso propósito de minar o ministério de Paulo e exaltar os seus
próprios ministérios. A gravidade do engano delas pode ser vista na
descrição feita por Paulo:
Pois tais homens são falsos apóstolos, obreiros
enganosos, fingindo-se apóstolos de Cristo. Isto não é
de admirar, pois o próprio Satanás se disfarça de anjo
de luz. Portanto, não é surpresa que os seus servos
finjam que são servos da justiça. O fim deles será o que
as suas ações merecem. (2Co 11.13-15)
Porque, embora andando na carne, não militamos segundo a
carne. Porque as armas da nossa milícia não são carnais, e
sim poderosas em Deus, para destruir fortalezas, anulando
nós sofismas e toda altivez que se levante contra o
conhecimento de Deus, e levando cativo todo pensamento à
obediência de Cristo. — 2Co 10.3-5, ARA

Qualquer que tenha sido o ensino desses invasores, Paulo


usa uma linguagem forte para descrevê-los, identificando-os até
mesmo como servos do próprio Satanás.
Quando a oposição é forte, a questão muitas vezes se centra
na noção de autoridade. Um dos principais propósitos de Paulo ao
escrever essa carta era mostrar aos cristãos coríntios que ele
conduzia seu ministério como um apóstolo de Jesus Cristo. Como
apóstolo, seu ministério era fazer a obra de Cristo aqui na Terra. Um
ministério apostólico era algo único na história da igreja. Era um
ministério que trazia consigo a plena autoridade de Cristo.
Aqueles que depositam sua confiança em Cristo têm uma
responsabilidade parecida hoje. Ninguém mais tem autoridade
apostólica; não há mais apóstolos que recebem ou escrituram a
palavra do Senhor. Mas visto que temos a palavra de Deus escrita
em nossa bíblia, podemos chegar aos que se opõem à causa de
Cristo com sua plena autoridade divina. Como ocorreu no caso de
Paulo, é o que frequentemente ocorre hoje — a questão está
enraizada em uma discordância sobre a autoridade última. A palavra
de Deus é nossa autoridade última. Devemos estar tão convencidos
desta verdade que não devemos ter medo de dizê-lo com confiança
e ousadia (com reverência e respeito) quando estamos prontos para
dar uma resposta.
Em seu cerne, o problema que Paulo teve de enfrentar era
apologético. Não era simplesmente que a sua reputação estava em
risco. Tivesse sido esse o seu único problema, Paulo provavelmente
teria simplesmente sofrido o abuso; ele estava bem ciente dos maus
tratos que lhe sobreviriam como apóstolo (1Co 4.13). Não era a sua
reputação o que mais lhe preocupava; era a verdade do próprio
evangelho que estava em jogo.
Esses “servos de Satanás” não tinham entrado simplesmente
para desacreditar a liderança de Paulo, mas para convencer os
coríntios a rejeitarem sua mensagem. Esses invasores tentaram
enganar os cristãos de Corinto para estes pensarem que a liderança
de Paulo era fraca e que seu evangelho, portanto, também o era.
Assim, Paulo declara:
Pois, se alguém lhes vem pregando um Jesus que não é
aquele que pregamos, ou se vocês acolhem um espírito
diferente do que acolheram ou um evangelho diferente
do que aceitaram, vocês o suportam facilmente. (2Co
11.4)
Dois problemas sérios são abordados aqui. O primeiro é que
os invasores estavam pregando outro evangelho, outro Jesus, e
proclamando outro espírito. O segundo, tão sério quanto, é que os
coríntios estavam “suportando” isso. Eles toleravam esse falso
ministério dentro das paredes da igreja!
Não deveria nos surpreender, portanto, que Paulo tenha se
levantado para se defender. Ao se defender, Paulo estava
defendendo seu ministério apostólico. Era este ministério que havia
fundado a igreja de Corinto (veja Atos 18), e Paulo queria garantir
que essa igreja perseveraria no evangelho, em vez de pervertê-lo.

CONFRONTAÇÃO AO MODO DE CRISTO


Não há dúvida de que os quatro últimos capítulos de 2
Coríntios assumem um tom bem diferente daquele dos capítulos
precedentes. Comentaristas têm debatido a razão para isso.
Qualquer que ela tenha sido, porém, Paulo começa o capítulo 10
assumindo uma forte postura apologética contra os invasores. Ele
começa o capítulo 10 expondo sua linha de defesa, que estará em
nítido contraste com os ataques de seus oponentes.
Paulo começa com uma notável medida de veemência
pessoal. O primeiro versículo do capítulo 10 bem poderia trazer de
forma mais literal “Eu, Paulo, eu mesmo, apelo a vocês…”. Há muita
repetição aqui, e se dá por uma questão de ênfase. A ênfase é
colocada no seu ministério apostólico. Neste versículo Paulo apela à
sua autoridade apostólica e fala contra aqueles que buscavam
desacreditar ou minar essa autoridade. Paulo queria que eles não
tivessem dúvida sobre a autoridade ministerial que lhe fora dada em
Cristo.
Isso deveria servir-nos de padrão para quando temos diante
de nós uma oportunidade de defender a fé. Evidentemente, não
temos a autoridade apostólica. Nós não recebemos, como foi o caso
de Paulo, a tarefa apostólica de definir a agenda infalível da igreja
de Cristo até sua volta. Mas nós nos apresentamos como aqueles
que foram comissionados por Cristo. Paulo lembra aos coríntios, no
capítulo 5, que ele se apresenta como um embaixador de Cristo, e
apela para eles se reconciliarem com Deus.
Em certa medida, nós também devemos nos apresentar
como embaixadores. Deus nos confiou, através de Cristo e de seus
apóstolos, o ministério e a mensagem da reconciliação (2Co 5.18-
19). Quando chegamos com esta mensagem, como o fez Paulo, é
como se Deus estivesse “fazendo o seu apelo por nosso intermédio”
(v. 20). Nossa defesa do cristianismo, portanto, vem com a
autoridade de Deus, e não com a nossa. Se viesse com a nossa,
traria consigo apenas o peso que poderíamos suportar. Mesmo em
nossos melhores dias, nossa defesa seria insuficiente.
Mas desde que a nossa mensagem vem com a autoridade do
próprio Deus — isto é, desde que viemos como os representantes
de Deus, armados com a verdade de Deus como o nosso cinto (Ef
6.14) —, ela carrega consigo o poder, o domínio e a autoridade do
próprio Deus. Quando falamos a verdade, falamos a verdade de
Deus. Nossa mensagem não é algo que inventamos; não é algo que
concebemos por nós mesmos. É algo que nos foi dado. Ela carrega
a autoridade de sua fonte infalível.
Que diferença isso faz, especificamente se a pessoa com
quem falamos não reconhece tal autoridade? Posso recordar de
ocasiões em minha família quando, para resolver uma discussão
entre mim e meu irmão, eu corria para o meu pai. Assim que ele
dava a sua opinião sobre o assunto, eu podia, com a liberdade e
confiança da sua autoridade, ir ao encontro do meu irmão lhe dar o
veredito.
A primeira coisa que devemos ter firmemente enraizado em
nossa alma é que quando encontramos oposição, quando somos
chamados a “dar uma resposta”, a resposta que damos, a resposta
de Deus, pode ser dada com a liberdade e confiança que vêm do
nosso Pai celestial, o juiz definitivo e final. Nós podemos saber, sem
sombra de dúvidas, que o que dizemos é exatamente a verdade da
questão. Podemos estar confiantes de que a nossa mensagem vem
com a maior autoridade imaginável.
Claro, houve momentos em que, mesmo se eu viesse com o
julgamento do meu pai, meu irmão não me ouviria. Duas coisas,
pelo menos, eram verdadeiras quando isso acontecia. A primeira é
que meu irmão sabia da situação em que se encontrava perante o
meu pai. Ele não era ignorante do que deveria fazer ou de qual era
a sua responsabilidade. A segunda é que, se ele se recusasse
obstinadamente a acatar o julgamento do meu pai, acabaria por
sentir os efeitos dessa recusa.
Assim é quando nos apresentamos aos que são alheios a
Cristo e à sua mensagem. Pode muito bem acontecer que a
mensagem que trazemos — a mensagem da reconciliação que
Paulo expõe aos coríntios — é categoricamente rejeitada. Mas
aqueles que rejeitam essa mensagem, aqueles que renegam nossa
defesa, terão ouvido claramente qual é a sua situação perante
Cristo. E, tendo obstinadamente rejeitado a mensagem de Cristo,
eles sentirão os efeitos dessa rejeição por toda a eternidade.
A única forma de vir com esse tipo de autoridade, segundo
Paulo em 2 Coríntios 10.1 (ARA), é com a “mansidão e benignidade
de Cristo”. É digno de nota que a atitude com que devemos vir é
ressaltada mais uma vez, como o foi em 1 Pedro 3.17. Paulo
começa assim por causa das acusações que os falsos mestres
haviam lançado contra ele. Paulo fora acusado de mostrar uma
atitude de falsa humildade à igreja de Corinto. E se a atitude dele
era falsa, os acusadores de Paulo disseram, sua mensagem
também deveria sê-lo. Eles tentavam desesperadamente convencer
os coríntios de que não se podia confiar em Paulo.
Paulo não se limita a meramente rejeitar as acusações dos
falsos mestres; ele lembra aos seus leitores que sua humildade é
moldada naquela do seu Salvador. Paulo não está simplesmente
dizendo “Eu realmente sou humilde”; ao contrário, está mais uma
vez vinculando a si próprio e seu ministério à vida e ao ministério do
próprio Cristo.
Talvez uma das coisas mais difíceis da vida cristã e,
particularmente, da apologética, seja o equilíbrio entre autoridade e
mansidão que é necessário para se praticar estas coisas de forma
obediente. É fácil ir longe demais para um lado ou para outro.
Podemos ficar tão animados por causa da autoridade que temos na
verdade concedida a nós por Deus que nossa única meta acaba
sendo apresentá-la. Mas esse zelo pode ser qualquer coisa, menos
manso e benigno; pode sugerir que a verdade que temos é nossa
por causa de quem somos e não por causa do que Cristo fez.
Por outro lado, podemos ficar tão impressionados com a
mansidão e benignidade de Cristo que acabamos fazendo de tudo
para evitar uma confrontação. Mas isto também pode passar uma
impressão errada; a saber, que o evangelho, e particularmente o
Cristo do evangelho, não está preocupado com a fé e o
arrependimento. Pode levar os outros a pensar que Deus é
indiferente ao pecado. Pode dar a impressão equivocada de que
todos são aceitos por, ou aceitáveis a, Deus.
No primeiro capítulo de seu evangelho, João diz-nos muito
sobre Cristo como o Filho de Deus. No versículo 14, diz-nos que a
Palavra, esse Logos, que estava com Deus e era Deus (Jo 1.1),
tornou-se carne e viveu entre nós. João reconta então sua
experiência no monte da transfiguração, onde ele, Tiago e Pedro
viram a glória de Cristo revelada (veja Mt 17.1ss.). Pensando na
glória de Cristo, João resume quem é Cristo. Ele é aquele “cheio de
graça e de verdade”.
É isso, pelo menos em parte, o que significa ser “ao modo de”
(parecido com) Cristo. Se a glória de Cristo é descrita por João
como sendo uma plenitude de graça e de verdade, glorificar a
Cristo, “exibi-lo”, por assim dizer, significa, então, mostrar a graça e
a verdade juntas. Se havemos de glorificar a Deus, devemos ser
cheios tanto de graça como de verdade, a exemplo de Cristo.
Nós o glorificaremos quando, e somente quando, nossa
verdade for temperada com a graça e quando nossa graça for
combinada com a verdade de Cristo. Isso não é algo que somos
capazes de fazer por nós mesmos; não é algo que pode ser
realizado por conta própria. Isso deve ser uma obra do Espírito. Não
é algo que somos capazes de fazer em nós e por nós mesmos.
Essa é uma parte, embora uma parte crucial, de sermos
conformados mais e mais à imagem santa de Cristo.
Paulo está prestes a arrolar uma terminologia e imagens de
guerra para defender o evangelho. Esse tipo de imagens, em
nossos dias, pode nos fazer evocar ideias de um jihad, de uma
guerra santa, onde raças inteiras são odiadas e mortas em nome da
religião. Paulo sabia que sua linguagem precisava ser forte; as
acusações contra ele e sua mensagem eram fortes e estavam
ganhando adeptos. Ele não poderia usar uma linguagem forte sem
antes lembrar aos coríntios que estava vindo a eles com a mansidão
e benignidade do próprio Cristo. Essa é uma coisa que jamais
devemos esquecer em nossa defesa da fé cristã. Como Cristo,
devemos nos esforçar para ser “cheio[s] de graça e de verdade” em
nossa defesa dessa maravilhosa fé.

DEMOLIÇÃO
Nós demolimos argumentos. Esta é uma das coisas que
caracterizam o ministério do apóstolo Paulo. Como vimos no
capítulo 1, esta é também uma das coisas que devem caracterizar
nossa vida e nosso ministério. Sabemos que há e sempre haverá
hostilidade à fé cristã. Também sabemos que qualquer coisa que se
oponha ao cristianismo será, exatamente por isso, falsa. Mas nós
não sabemos disso porque somos mais inteligentes que os outros, e
sim por causa do que a graça de Deus fez em nossas vidas.
Deveríamos notar nessa passagem bíblica a forte linguagem
ofensiva usada por Paulo. Uma coisa é defender a fé contra
ataques. Se usarmos a analogia de uma competição desportiva, o
time que está na defensiva tenta fazer o outro parar de avançar.
Este é um elemento significativo e crucial na apologética. Nós
oramos e trabalhamos enquanto Deus nos usa para parar o avanço
do inimigo, o próprio Satanás. Mas também devemos ser ofensivos.
Também devemos tomar nossas armas e marchar contra o inimigo.
Claro, ao sermos ofensivos também estamos sendo defensivos.
Mas o “time” ofensivo é mais ativo que o defensivo. O time ofensivo
está determinado a avançar.
Um exemplo poderia ajudar a ilustrar isso. Com frequência é
dito aos cristãos que o problema do mal mostra que a sua fé não é
racional. Em outras palavras, argumenta-se, com frequência, que a
existência de um Deus bom, onisciente e onipotente é simplesmente
inconsistente com a abundância de mal no mundo. É-nos dito,
assim, que deveríamos desistir da crença em um Deus como esse.
As respostas a esse desafio podem ser mais ofensivas ou
mais defensivas. Uma resposta mais defensiva tentaria mostrar que
o argumento em si tem pouco peso; apresentaria o argumento como
tendo sérios problemas. Desse modo ela interromperia o avanço do
argumento. Uma abordagem mais ofensiva, porém, responderia ao
problema, e não apenas ao argumento, para ajudar o desafiante a
começar a pensar sobre o problema de um modo diferente, cristão.
A apologética ofensiva, então, oferece o modo cristão de pensar e
agir como parte de sua abordagem.
A preocupação de Paulo nessa passagem é que, em nossa
defesa, nós também sejamos ofensivos. Paulo sabia que os
invasores de Corinto estavam construindo sua própria causa
mediante a derrubada do seu ministério. Ele sabia que um ataque
ao seu ministério representava um ataque à verdade do próprio
evangelho. Assim, escreveu os quatro últimos capítulos de 2
Coríntios para responder a esses ataques. Os seis primeiros
versículos do capítulo 10 formam a introdução geral para o que ele
dirá no resto da carta. Paulo quer deixar seus leitores cientes de que
sua resposta irá demolir os argumentos dos invasores.
Parece provável que a abordagem e os argumentos adotados
por esses falsos mestres se originaram de um grupo de filósofos
conhecidos como sofistas. O nome sofista é tomado da palavra
grega para “sabedoria”. Pode ter havido alguma autenticidade nos
sofistas na época em que sua seita começou, mas agora não havia
mais nada de admirável sobre eles.
Entre os filósofos gregos, por exemplo, os sofistas foram os
primeiros a cobrar uma taxa para compartilharem sua sabedoria. Até
então, a promoção do conhecimento era tomada como algo tão
importante em si mesmo que se considerava impróprio fazê-lo por
recompensa financeira. Os sofistas, no entanto, literalmente
“estavam nisso por dinheiro”.
Como regra geral, os sofistas tinham pouca preocupação
pela verdade. Eles se moviam de lugar para lugar, na Grécia e em
outros lugares, mostrando às pessoas como vencer seus debates
independentemente de seus méritos. Eles não se preocupavam com
a verdade, mas com a melhor forma de argumentar. Eles davam
grande importância à disputa; desenvolveriam argumentos em favor
de uma posição, qualquer que ela fosse, e venderiam esses
argumentos para os compradores interessados.
É dos sofistas que obtemos nossa palavra sofisma. Sofisma
refere-se a um argumento falso apresentado com o intuito de se
obter algum benefício pessoal. O filósofo grego Aristóteles
descreveu os sofistas exatamente nesses termos.
Uma vez que os sofistas estavam interessados apenas na
arte da disputa, sua perícia estava em usar dispositivos retóricos
como a ironia, o paradoxo, o sarcasmo e a subversão. Sua
abordagem para argumentar era humilhar seus oponentes atacando
sua integridade. Como não havia nenhum interesse pela verdade,
eles não tinham tempo para desenvolver a verdadeira reflexão. O
que quer que tivesse de ser feito, pensavam eles, poderia ser feito
através da técnica do debate e da argumentação.
Há pouca dúvida de que Paulo tinha esse tipo de sofisma em
mente quando escreveu 2 Coríntios. E também tinha isso em mente
quando escreveu 1 Coríntios:

Onde está o sábio? Onde está o erudito? Onde está o


questionador desta era? Acaso não tornou Deus louca a
sabedoria deste mundo? (1Co 1.20)

A “sabedoria” dos sofistas foi tornada louca por Deus, pelo


evangelho vindo de Deus que Paulo pregara em Corinto.
Como o interesse dos sofistas era meramente o de debater, o
melhor sofista era o melhor orador, estivesse argumentando ou não
algo que fosse verídico. Talvez não surpreenda, portanto, que já na
época de Paulo os sofistas eram cada vez mais atraídos à política!
A acusação contra Paulo era que ele não era um bom debatedor:
“Pois alguns dizem: ‘As cartas dele são duras e fortes, mas ele
pessoalmente não impressiona, e a sua palavra é desprezível’” (2Co
10.10). Não tendo as poderosas habilidades de debate dos sofistas,
Paulo não chamava tanta atenção como eles.
Como os sofistas tinham dado origem à prática de cobrar
pelos seus serviços, eles começaram a pensar que seus serviços
realmente eram dignos do dinheiro investido! Por outro lado, eles
também começaram a pensar (e a argumentar) que aqueles que
não cobravam uma taxa por seus serviços de oratória não tinham
obviamente nada de importante a dizer. Eles atacaram Paulo por ele
não cobrar pelo seu ministério — “Será que cometi algum pecado ao
humilhar-me a fim de elevá-los, pregando-lhes gratuitamente o
evangelho de Deus?” (11.7). Os falsos mestres tinham realmente
convencido alguns na igreja de Corinto a pensar que a eloquência
era a única virtude de que eles precisavam; ela, somente, era a
chave para a felicidade e o sucesso. E também os tinham
convencido de que aqueles que não eram tão eloquentes deveriam
estar errados.
Visto que o entretenimento tem se tornado nosso
passatempo primário, não damos mais destaque a habilidades de
oratória. Nos tempos de Paulo, porém, e particularmente em
Corinto, o passatempo primário era o debate. Já se tem dito que em
Corinto havia um filósofo a cada esquina.
Os falsos mestres tentaram atacar o caráter de Paulo. Esse
tipo de argumentação é, por vezes, chamado argumento ad
hominem. Esta expressão latina significa literalmente “ao homem”.
Com frequência, o argumento ad hominem busca ser convincente
atacando o caráter do oponente. Ele não busca ganhar a discussão
com base nos méritos do argumento em si, mas tenta derrubar o
outro debatedor para que o próprio argumento da pessoa pareça
melhor. Os sofistas eram mestres nesse tipo de argumentação, e os
“falsos apóstolos” em Corinto estavam seguindo seus passos.
Embora em 2 Coríntios 10.4-5 Paulo esteja descrevendo seu
próprio ministério apostólico, isso não significa que aquilo que ele
diz é apenas descritivo. Como apóstolo de Cristo, ele está nos
mostrando como devemos reagir a ataques à nossa fé. Se Paulo
estava pronto para demolir argumentos, nós também devemos
estar. Em outras palavras, Paulo queria que sua declaração fosse
aplicada por seus leitores à própria situação deles.
Sabemos que isso é verdade porque Paulo usa expressões
nos versículos 4 e 5 que são tomadas de pelo menos duas
passagens bíblicas diferentes. Sua noção de destruir fortalezas, no
versículo 4, é parecida com a versão da Septuaginta (a tradução
grega do Antigo Testamento) de Provérbios 21.22. Ali nos é dito “O
sábio conquista a cidade dos valentes e derruba a fortaleza em que
eles confiam”. Paulo, sem dúvida, tem esta passagem em mente ao
refletir sobre o sofisma de seus atacantes.
Ele sabe também que alguns na igreja de Corinto iriam fazer
essa conexão. Ao usar essa terminologia e remetê-los ao livro de
Provérbios, Paulo estava dizendo a eles que a verdadeira sabedoria
consistia em destruir as fortalezas nas quais os valentes confiavam.
Verdadeira sabedoria não é simplesmente erigir um
argumento, seja ele verdadeiro ou falso, como os oponentes de
Paulo haviam feito. Antes, a sabedoria que é do alto deve no
momento certo derrubar as fortalezas que falsamente são
levantadas. Cristãos que buscam ser sábios também devem
“arrasar fortalezas”, quando a necessidade surgir.
Paulo usa uma terminologia que está próxima daquela usada
por outros a partir dos sofistas. Ao fazê-lo, Paulo atrai a atenção dos
seus desafiadores. Ele diz, acerca desses “obreiros enganosos”,
que suas fachadas irão sucumbir. Eles podem ter a intenção de
desenvolver e vender argumentos para refutar ou destruir o
ministério de Paulo e, assim, a própria igreja de Corinto; mas Paulo
está colocando a igreja a par de que ele próprio irá demolir os
argumentos que lhe são lançados.
Esse é o “bom combate da fé” de que estivemos falando no
último capítulo. É da responsabilidade de cada cristão defender e
recomendar o evangelho. Essa defesa é um processo de demolição;
uma demolição dos argumentos apresentados contra o cristianismo.
Como vimos, na Palavra de Deus temos tudo de que precisamos
para realizar essa tarefa. E, como dissemos, essa é uma tarefa para
a qual Deus chama cada um de nós.
A palavra de Paulo para “argumentos” é dirigida
especificamente contra o apelo de autoridade dos seus oponentes.
Eles tentavam se firmar como autoridades na igreja com base
unicamente em sua própria experiência, seu próprio poder
intelectual. Assim, Paulo nos lembra de que os argumentos desses
invasores são tão abalizados quanto os próprios invasores. A
autoridade para o que diziam, portanto, estava meramente em suas
próprias ideias e raciocínios; era literalmente uma ficção de sua
imaginação. Paulo estava dizendo assim que iria demolir a falsa
autoridade sobre a qual esses falsos apóstolos repousavam.
É isso que acontecerá sempre que nos engajarmos em
apologética. Apologética, em muitos aspectos, é simplesmente uma
batalha sobre autoridades. Ela envolve deixarmos claro onde
estamos, ou melhor, onde repousamos, no que diz respeito ao que
estamos afirmando. Também envolve encorajar os nossos
oponentes a esclarecerem onde repousam seus próprios
argumentos. A questão da autoridade é sempre algo primário.
A ideia que Paulo apresenta na oração seguinte diz bastante
sobre os tipos de argumentos a que estava se opondo. A oração
poderia ser traduzida como “toda coisa altiva que se levante contra
o conhecimento de Deus”. Embora esteja se referindo ao orgulho
pecaminoso dos seus agressores, Paulo também está salientando
que o raciocínio sofístico deles ostenta-se como sofisticado e
erudito. Seus argumentos poderiam ter soado altivos e substanciais
e poderiam ter sido intimidadores por causa de seu vocabulário;
mas eram de fato, em última análise, apenas opiniões. Não tinham
por trás de si mais autoridade que os próprios sofistas.
Paulo também está salientando que esses argumentos não
são apenas debates verbais. São argumentos que se forem cridos
terão consequências eternas e eternamente danosas. Embora eles
não tragam consigo qualquer autoridade, podem engenhosamente
levar pessoas a rejeitarem o próprio evangelho. Eles são danosos
porque, de modo bastante sutil, são subversivos do evangelho. A
bem da verdade, são argumentos levantados contra o próprio
conhecimento de Deus.
A história de grande parte da tradição intelectual ocidental é
cheia de argumentos assim. Essa pode ser uma das razões por que
muitos cristãos têm optado permanecer bem longe dessa tradição.
Ela pode ser intimidadora e pode fazer-nos sentir intelectualmente
inferiores como cristãos.
Devemos, no entanto, reconhecer duas coisas. Em primeiro
lugar, devemos entender a seriedade dos argumentos em si. Se eles
são levantados contra o conhecimento de Deus, podem ser
destrutivos a quem quer que os adote. Em segundo lugar, devemos
entender que o cristianismo tem de fato respostas para esses
argumentos. Ainda que não estejamos familiarizados com a técnica
e a terminologia precisa dos argumentos, uma vez que consigamos
compreender a questão que eles se destinam a responder, nosso
entendimento das Escrituras poderá começar a fornecer a resposta.
A apologética inclui em grande medida uma espécie de
“mentalidade”. Muito do que fazemos para estar “sempre
preparados” tem a ver com gravarmos a verdade das Escrituras tão
firmemente em nosso coração que podemos ver sua verdade em
tudo o mais ao nosso redor. Se conseguirmos ajustar nossa mente
dessa maneira, não seremos intimidados por outras “coisas altivas”
que cruzarem o nosso caminho. Precisamos ver que não existe
nada mais altivo[10] que a verdade das Escrituras em toda a sua
riqueza e plenitude. Precisamos ser novamente convencidos de que
“todo o conselho de Deus” é a única coisa elevada e sublime em
que vale a pena acreditarmos. Precisamos entender que o único
lugar em que o ser humano pode descansar é o conhecimento de
Deus e de Jesus Cristo.
Há uma passagem no livro de C. S. Lewis “A Cadeira de
Prata” que serve como um retrato útil da importância de colocarmos
nossa mente no lugar apropriado. Uma das crianças, Jill, está sendo
levada do topo da montanha para Nárnia por Aslam, o leão. Antes
de ser enviada, Aslam diz:
Antes de tudo, lembre-se dos sinais! Repita-os ao
amanhecer, antes de dormir e, caso acordar, durante a
noite. Por mais estranhos que sejam os acontecimentos,
de maneira alguma deixe de obedecer aos sinais. Em
segundo lugar, aviso-a de que falei, aqui na montanha,
com a maior clareza: não o farei sempre em Nárnia. O ar
aqui na montanha é limpo, e aqui o seu espírito também
é limpo; em Nárnia, o ar será mais pesado. Cuidado
para que o ar pesado não confunda seu espírito. Os
sinais que aprendeu aqui surgirão sob formas bem
diferentes ao se deparar com eles lá. É importantíssimo
conhecê-los de cor e desconfiar das aparências.
Lembre-se dos sinais, acredite nos sinais. Nada mais
importa. Agora, Filha de Eva, adeus —.[11]
Devemos ler as Escrituras, lembrarmo-nos delas, citá-las
para nós mesmos “ao amanhecer, antes de dormir e, caso acordar,
durante a noite”. Não devemos permitir que nada desvie a nossa
mente de seguir o que Deus disse, de ver o mundo da forma como
ele o descreve para nós. Com frequência as coisas “no mundo” se
apresentam de uma forma diferente da que nos é apresentada nas
Escrituras. Devemos relembrar as Escrituras.
Poucos de nós terão o tipo de experiências que Paulo teve.
Poucos de nós se encontrarão no centro de uma grande
controvérsia sobre a verdade do evangelho. Mas todos nós já
estivemos, ou estaremos, em situações em que a verdade do
evangelho é atacada. Pode ser um ataque sutil, “amigável”; ele pode
vir na forma de um “simples” pedido de informação (Gn 3.1). Mas
quando ele vier, devemos estar prontos para demolir os argumentos.
Paulo não está envergonhado de caracterizar sua situação
como a de uma guerra. Um ataque à fé cristã é uma declaração de
guerra. Não é uma declaração de guerra contra nós, simplesmente.
Paulo sabia disso. É uma declaração de guerra contra a verdade do
cristianismo, e, portanto, contra aquele que é a verdade (Jo 14.6).
Assim, dada a mansidão e a benignidade de Cristo, o que mais
precisamos para lutar essa guerra, esse bom combate da fé?

ARMAS DE SURPRESA
Nós “destruímos argumentos” (2Co 10.4), mas “não militamos
segundo a carne” (v.3). Esta é provavelmente a coisa mais difícil
que devemos perceber ao pensar sobre o dever de defender a fé.
Nós não militamos “segundo a carne”, isto é, “segundo os padrões
humanos” (NVI). Paulo diz: “Porque, embora andando na carne, não
militamos segundo a carne” (v. 3). Esta tradução nos ajuda a ver o
que Paulo tem em vista.
No versículo 3, Paulo está respondendo as acusações que
menciona no versículo 2. Havia alguns na igreja dizendo que Paulo
era “mundano”, no pior sentido da palavra. Essas pessoas o
estavam acusando de não ser espiritual, de viver e lidar
confortavelmente com as coisas deste mundo, não com as coisas
“espirituais”. Havia uma falsa espiritualidade em Corinto que Paulo
precisava abordar aqui. Ele tinha duas respostas.
Primeiro, diz ele, nós andamos sim segundo a carne. Paulo
obviamente não queria dizer aqui que nós andamos segundo o
pecado que permanece em nós (veja Rm 6-7). Antes, pretendia
refutar aqueles dentro da igreja que definiam espiritualidade por seu
distanciamento da vida diária. Havia alguns dizendo que o caminho
para ser verdadeiramente espiritual era evitar as coisas mundanas
desta vida, evitar os “produtos” físicos deste mundo. Aqueles que
não evitavam tais coisas, como Paulo, eram chamados de carnais,
mundanos.
Paulo afirma que vive e age no mundo. Não é algo não
espiritual estar familiarizado com, e andar entre, os caminhos deste
mundo. Estas coisas não tornam um cristão automaticamente
“mundano”. Paulo usa a palavra andar para afirmar que ele, assim
como nós, deve conduzir a vida, executar as rotinas diárias, no
contexto deste mundo. Essa é uma parte essencial da própria
oração de Cristo, e do próprio desígnio de Deus, para o seu povo
(Jo 17.13-19).
Mas quando conduzimos nossa vida neste mundo, nós não
militamos de uma forma mundana ou carnal. Paulo já tinha aludido a
isso. Ninguém que chega “pela mansidão e pela benignidade de
Cristo” (2Co 10.1, ARA) pode responder ao mesmo tempo de forma
mundana. Mas agora Paulo quer que seus leitores entendam
exatamente como ele propõe destruir argumentos. Na mansidão e
benignidade de Cristo, Paulo alega que essa demolição é feita com
armas de poder divino. O que ele estaria querendo dizer com isso?
A preposição grega vertida em “com” poderia ser traduzida de
várias formas, mas todas indicam que as armas de Paulo não
derivam seu poder do mundo, mas de Deus somente. A discussão
de guerra que Paulo faz aqui é, de muitas maneiras, parecida com
aquela em Efésios 6.10-18. Ali Paulo dispõem-nos quais armas
devemos usar “no Senhor e no seu forte poder” (Ef 6.10). Pode nos
ser útil olhar brevemente a descrição que Paulo oferece ali.
Em Efésios 6, Paulo lembra-nos que a batalha que lutamos
não é uma batalha carnal. Com isso ele quer dizer precisamente o
que disse em 2 Coríntios 10. Nós devemos “andar segundo a
carne”, isto é, neste mundo, mas nossa batalha não é mundana.
Não usamos meios mundanos para fins mundanos. Nossa batalha é
de um poder de “outro mundo” contra poderes de “outro mundo” —
da Autoridade Espiritual contra outras autoridades espirituais. Nossa
batalha é contra as forças do mal nos lugares celestiais. Ainda que
usássemos armas mundanas nesse tipo de batalha, elas não teriam
efeito algum. Bombas, metralhadoras e canhões são inúteis contra
poderes e autoridades espirituais.
Uma batalha espiritual requer armas espirituais. Assim, Paulo
diz em Efésios 6 como devemos nos armar nesse tipo de luta. As
armas que ele lista são familiares; lutamos com a verdade, a justiça,
o evangelho da paz, a fé, a salvação e a palavra de Deus.
Indubitavelmente, Paulo descreve cada uma dessas coisas como
peças de nossa armadura. Todas elas servem para nos proteger e
defender. Não deveria escapar da nossa atenção, contudo, que
cada uma dessas armas vem de Deus somente. Todas elas trazem
consigo a autoridade de Deus.
A verdade, a justiça, o evangelho, a fé, a salvação e a
palavra de Deus são todas armas que jamais poderiam ser
produzidas, construídas, controladas ou tomadas por nós. Elas só
poderiam ser criadas e entregues por Deus. Somente ele é o criador
dessas armas. Somente ele as pode dar para nós. E quando ele no-
las dá, elas vêm com a autoridade plena dele. Assim, não pode
haver arma mais forte para usar. São as armas que nos dão o que
precisamos para sermos fortes no Senhor e no seu forte poder (Ef
6.10).
É curioso que Paulo em Efésios 6 comece sua lista da
armadura com o cinto da verdade e termine com a palavra de Deus.
O que Paulo poderia estar querendo dizer por “verdade” que, em
algum sentido, fosse algo distinto da palavra de Deus? Parte, pelo
menos, do que ele deveria estar querendo dizer é que devemos
chegar armados com um verdadeiro entendimento do mundo e da
natureza dos problemas que confrontamos. Isso significa que
devemos olhar para as coisas deste mundo pelas lentes das
Escrituras. Assim nossa “leitura” da situação se tornará informada
daquilo que é realmente o caso. Precisamos ver o mundo como ele
realmente é; precisamos vê-lo da forma como Deus o descreve. Isso
pode soar fácil, mas uma falta de visão bíblica tem levado a
inúmeros erros cometidos na defesa do evangelho.
É de uma visão escriturística, que chamamos por vezes de
cosmovisão bíblica, que Paulo está falando aqui ao se referir ao
cinto da verdade. Esta pode ser uma das armas mais cruciais de
todas. É a primeira arma que Paulo menciona. Ele a menciona
primeiro para que aqueles que estão armados para a batalha
possam ter a estratégia militar apropriada. Isso é parecido com o
que Pedro escreveu quando nos instruiu a focar em primeiro lugar o
senhorio de Cristo quando nos preparássemos para a nossa
defensa.
Por exemplo, não devemos pensar que aqueles que alegam
ter autoridade última realmente a têm. Os coríntios não deveriam
pensar que os intrusos eram realmente apóstolos ou, nas palavras
de Paulo, “super-apóstolos” (2Co 12.11). Quando nos engajamos na
batalha espiritual, devemos perguntar: qual é a realidade, a verdade
da situação? É que devemos, por assim dizer, enviar o batedor
militar à frente de batalha para nos reportar a “configuração da
terra”. Devemos estar armados com o cinto da verdade, tal que
possamos estar equipados para lutar com a espada do Espírito.
São estas nossas armas na batalha. É fácil, muito fácil, lutar
as batalhas do mundo de forma mundana. Esta é uma grande
tentação para nós. Precisamos tão somente olhar como
respondemos em outras situações para ver como isso é fácil. Uma
das coisas que têm surpreendido a mim e minha família é a
diferença de cultura no dia-a-dia em que vivemos agora em relação
a onde costumávamos morar. Por exemplo, em nosso antigo lugar
de residência, havia um ritmo mais lento e educado nas estradas.
Onde estamos agora tudo é qualquer coisa, menos lento e educado.
Mas o que nos têm surpreendido recentemente é quão aculturados
nos tornamos a esse respeito. Parecemos ter assimilado os maus
hábitos dos motoristas daqui, quase inconscientemente! Agora nos
vemos travando batalhas nas ruas exatamente como os demais
motoristas.
Quanto mais isso é verdade quando “andamos” no mundo?
Paulo diz que não devemos lutar dessa forma. Devemos pegar
armas de uma fonte diferente e, portanto, lutar de forma diferente.
Nossa batalha, a batalha real, é contra os poderes e autoridades
nos lugares celestiais.
É de comum conhecimento entre comandantes militares que
a primeira prioridade de uma ofensiva militar é o elemento de
surpresa. Se o inimigo não sabe de onde o ataque está vindo, ou
não sabe como ou quando ele virá, a possibilidade de sucesso
aumenta dramaticamente. Uma das armas militares mais
formidáveis já desenvolvidas nos Estados Unidos é um avião
comumente chamado de “bombardeiro surpresa”.[12] A vantagem
dessa arma é que, a despeito do seu enorme tamanho (com uma
envergadura de 50 metros), dificilmente pode ser detectada por um
radar. Ela pode voar na batalha sem o inimigo sequer saber que ela
está chegando.
As armas que devemos usar em nossa defesa são “armas de
surpresa”. Devemos ir para a batalha com armas invisíveis, armas
com as quais o inimigo não está familiarizado, armas que irão
surpreendê-lo. Quando o inimigo é pego de surpresa, fica muito
mais suscetível à derrota ou rendição. As armas espirituais são
nossas armas de surpresa. Embora aqueles que atacam o
cristianismo eventualmente esperem que respondamos como eles,
somos encorajados por Paulo a responder com armas que apenas
nós podemos compreender — a verdade, a fé, a justiça, uma
espada espiritual. Nosso inimigo será surpreendido com estas
armas. E, pela graça e providência de Deus, poderá mesmo se
render ao evangelho da graça.

PRISIONEIROS DE GUERRA
A última alusão militar de Paulo está na seguinte declaração:
“levando cativo todo pensamento à obediência de Cristo” (2Co
10.5). O verbo traduzido para “levando cativo” se refere a um
prisioneiro de guerra. Paulo está na batalha de sua vida. Ele está
em guerra, demolindo e destruindo aquelas coisas que se levantam
não só contra ele, mas contra o próprio conhecimento de Deus.
Agora Paulo nos diz que está preocupado não apenas em demolir
aqueles pensamentos, aquelas coisas altivas que se levantam
contra o conhecimento de Deus, mas em trazê-las em cativeiro. Ele
está preocupado em torná-las prisioneiras de Jesus Cristo.
Essa é uma declaração impressionante, particularmente em
nossos dias, quando poderíamos pensar que pensamentos são
muito abstratos ou sem importância para nos preocuparmos com
eles. Num sentido, Paulo está traçando o problema em Corinto ao
pensamento dos coríntios. Isso não deveria nos surpreender. Após
sua exposição do evangelho em Romanos 1-11, Paulo começa a
discutir a aplicação desse evangelho no capítulo 12, ao nos dizer
para sermos transformados. Mas como devemos ser
transformados? Quando ouvimos a palavra transformação, talvez
nossa propensão inicial seja pensarmos na forma como vivemos,
em fazer as coisas certas. Tendemos a pensar na vida cristã como
uma série de “faça” e “não faça” observáveis. Essas coisas são de
fato importantes, e as Escrituras têm muito a dizer sobre elas. Mas a
primeira coisa na mente de Paulo quando ele começa a pensar na
transformação de nossa vida cristã é a renovação da mente.
Significa que a forma como pensamos tem muito a ver com a forma
como vivemos.
Essa ideia precisa ser enfatizada mais uma vez hoje na igreja
de Cristo. Por causa do acesso sem precedentes da tecnologia à
nossa vida “privada”, podemos nos convencer de que, quando
navegamos na internet e batemos papo, somos anônimos. Isso
explica a explosão de pornografia e outros negócios imorais na rede
mundial. Podemos cair como presas na ideia de que Deus só se
importa com como agimos “em público”.
Mas essa noção expõe uma ignorância das prioridades
bíblicas. Devemos ser transformados não em melhorar nossa vida
pública, mas em renovar nossa mente. Devemos ser mudados à
imagem de Cristo pela mudança de nossa mente, em primeiro lugar.
Quando fazemos isso, percebemos que não existe distinção, aos
olhos de Deus, entre vida pública e vida privada. Encontramo-nos
plenamente na presença de Deus tanto quando navegamos e
batemos papo no computador como quando estamos na igreja ou
no trabalho. Focar o comportamento para negligenciar a mente é
algo que, em outras palavras, inevitavelmente nos levará à tentação.
Devemos levar cativo todo pensamento à obediência de Cristo. Não
devemos nos deixar levar por sofismas e coisas que se pretendem
sábias. Nosso pensamento deve ser moldado pelo pensamento das
Escrituras, de modo que quando “coisas altivas” aparecerem em
nosso caminho — coisas altivas que se levantam contra o
conhecimento de Deus —, possamos imediatamente reconhecê-las
como nada mais que bazófia.
Haverá coisas altivas no mundo com que deveremos lutar. O
mundo, desde a Queda, nunca careceu de argumentos para minar
ou destruir a fé cristã. É impossível aprender sobre todos eles;
ninguém tem tempo para fazer isso. O que é possível é começar a
levar todo pensamento cativo à obediência de Cristo. Então, quando
aqueles argumentos vierem, estes pensamentos cativos serão
exatamente o que é necessário para iniciar a demolição. E tudo isso
deverá ser feito, é claro, na mansidão e benignidade do próprio
Cristo.
Nosso plano de ataque é como aquele de um bombardeiro
surpresa. Devemos atacar com armas que são invisíveis ao olho
natural, movendo-nos com a espada do Espírito, a fim de penetrar o
coração dos nossos oponentes, para que também eles, pela graça
de Deus, sejam levados cativos ao Rei dos reis.

Torna-me um cativo, Senhor,


E então livre eu serei;
Força-me a render minha espada,
E conquistador serei;
Eu me afundo nos temores da vida
Quando sozinho fico;
Aprisiona-me em Teus braços,
E forte será a minha mão.[13]
(George Matheson)
PARA SE APROFUNDAR
1. Cite cinco características de um embaixador. Como elas se
relacionam com um embaixador de Cristo?
2. Dê um exemplo de ataque ad hominem. Qual é a melhor forma de
responder a esse tipo de abordagem?
3. Como desenvolvemos uma mentalidade bíblica? Que tipos de
coisas tentam nos afastar dessa mentalidade?
4. Como você pode se armar com “o cinto da verdade”?
5. Por que os pensamentos são tão importantes na batalha
espiritual?
4. O bom com o ruim

Nos capítulos anteriores, tentamos mostrar a importância da


apologética na vida do cristão. Primeiro focamos nossa atenção no
mandamento de Pedro, que devemos estar sempre prontos para ser
apologistas. Então consideramos dois exemplos de apologética, um
de Judas e outro de Paulo. Judas mostrou que a apologética não é
voltada apenas para os que estão fora da igreja. Às vezes ela
também é necessária dentro da igreja. O exemplo de 2 Coríntios
igualmente mostrou isso, mas também deu-nos algumas pistas de
como a apologética deveria ser praticada. Paulo nos apresenta os
parâmetros apologéticos ― devemos destruir argumentos e levar
todo pensamento cativo à obediência de Cristo. Assim como Paulo
apelou aos coríntios na “mansidão e benignidade de Cristo”, nós
também deveríamos exibir essas qualidades em nossa defesa da fé.
Temos visto que a apologética é um combate, um bom
combate ― talvez “o” bom combate. Os cristãos devem lutar com as
armas que Deus forneceu, e fazê-lo no poder dele. Nessa guerra há
dois lados opostos. Há aqueles que depositam sua confiança em
Cristo e desejam servir-lhe como seu comandante-chefe, e há
aqueles que não confiam em Cristo, mas em si mesmos e nos seus
próprios artifícios.

Não me envergonho do evangelho, porque é o poder de Deus


para a salvação de todo aquele que crê: primeiro do judeu,
depois do grego. Porque no evangelho é revelada a justiça de
Deus, uma justiça que do princípio ao fim é pela fé, como está
escrito: “O justo viverá pela fé”.

Portanto, a ira de Deus é revelada dos céus contra toda


impiedade e injustiça dos homens que suprimem a verdade
pela injustiça. — Rm 1.16-18

Como já dissemos, os dois lados podem existir dentro da


igreja. Mas isso não muda o fato de que existem dois lados nessa
guerra. Mesmo quando o inimigo cruza o território amigavelmente,
ele ainda é inimigo. Na verdade, é aí que ele se torna mais perigoso.
Um dos aspectos mais difíceis da apologética é o fato de se
exigir de nós que lidemos com a incredulidade em suas variadas
formas e expressões. Quando estudamos teologia, ou exegese,
temos o luxo de permanecer, na maior parte das vezes, dentro dos
confins do cristianismo. Mas a incredulidade está compreendida no
campo de ação da apologética de uma forma que não o está na
teologia per se.
Nem sempre isso tem sido reconhecido na apologética. Há
momentos em que somos tentados a pensar que, como estamos
convencidos de um argumento em particular, o mundo inteiro
também o estará. Ou há momentos em que pensamos que certas
coisas são “objetivamente” verdadeiras a qualquer um, sem
perceber que a incredulidade se destina a ignorar o que é óbvio.
Podemos às vezes ser tentados a pensar que um argumento que
para nós, como cristãos, é convincente será convincente a qualquer
um. Mas por causa do pecado, não é isso o que acontece.
A passagem que vamos estudar neste e no próximo capítulo
é talvez a passagem mais crucial para um entendimento bíblico da
apologética. Ela nos descreve áreas específicas da incredulidade de
que poderíamos jamais saber por mera observação ou por
princípios inatos. Ela nos dá a perspectiva de Deus sobre a
incredulidade. Portanto, essa é uma passagem essencial, se
desejamos entender a que estamos nos dirigindo quando buscamos
defender a fé.
Por essa razão, precisamos gastar certo tempo para analisar
o argumento de Paulo. O texto nos dá uma explicação infalível da
mente ou coração incrédulo. Paulo fornece uma descrição perfeita
da direção e foco geral da incredulidade em todas as suas
manifestações. Assim, esse texto é indispensável para um
entendimento da apologética. Se aprendermos a abordar a
apologética tendo as verdades a seguir em mente, teremos
percorrido um longo caminho em nossa preparação para dar uma
resposta.

Í
ROMA NÃO FOI CONSTRUÍDA…
Paulo nunca havia visitado a igreja em Roma. Ele ansiava vê-
los (Rm 1.11), mas ainda não tinha tido a oportunidade. Não é certo
ainda como, ou por quem, a igreja em Roma foi fundada. Sabemos
que ela não foi fundada em alguma das jornadas missionárias de
Paulo. Provavelmente alguns que tinham ouvido Pedro pregar no
Dia de Pentecoste (At 2.10) voltaram para Roma e iniciaram ali uma
igreja. É possível, assim, que a igreja de Roma tenha sido fundada
antes da própria conversão de Paulo. Em todo caso, Paulo escreve
para falar-lhes do seu desejo de visitá-los e para explicar-lhes o
poder e a glória do evangelho de Jesus Cristo.
A explicação paulina do evangelho faz com que a carta aos
Romanos se destaque entre seus escritos e, na verdade, em todo o
Novo Testamento. Visto que Paulo não tinha estado ali para lhes
ministrar pessoalmente, ele pode ter desejado ajudá-los a entender
o evangelho que tinha pregado no curso de suas jornadas
missionárias. Ele assume como seu dever apostólico explicar o
evangelho para eles. Por esse motivo, o evangelho é apresentado
nesta carta numa das formas mais claras e profundas de todo o
Novo Testamento.
Pode ser por isso que o Senhor achou por bem usar o livro
de Romanos de uma forma tão maravilhosa na história da igreja.
Agostinho, considerado por alguns o maior dos pais da igreja, foi
convertido lendo Romanos 13.14. Martinho Lutero, um monge
agostiniano, foi transformado para sempre pelo entendimento de
Romanos 1.7. Ele foi usado por Deus para reformar a igreja e
reestabelecer alguns de seus princípios mais básicos. Aqueles
homens que trabalharam por diversos anos para escrever a
Confissão de Fé de Westminster e os Catecismos foram mais
dependentes de Agostinho que de qualquer outro teólogo. Assim,
por trás do maior pai da igreja, do catalisador da Reforma e da
(indiscutivelmente) maior confissão de fé já escrita está o livro de
Romanos. Suas verdades têm sido singularmente poderosas em
edificar a igreja de Jesus Cristo.
A razão por que Paulo escreveu Romanos está explícita na
própria carta. À medida que lemos o livro, seu propósito — ou, pelo
menos, um de seus propósitos —, torna-se óbvio. Para entendê-lo,
precisamos pensar como os cristãos do primeiro século pensavam.
Seria difícil superestimar a natureza radical do cristianismo do
primeiro século. Lembro-me de ter visto um documentário sobre
uma mulher que, já adulta, descobriu que tinha uma irmã gêmea
morando em algum lugar no mundo. Isso tinha sido uma descoberta
perturbadora. Ela ficou empolgada por saber que tinha uma irmã
gêmea, mas confusa por saber que sua família era maior do que
pensara durante toda a sua vida. De modo similar, por séculos a
igreja havia sido estritamente definida ― pelo Senhor ― como a
nação de Israel. Mas a vinda de Cristo desafiou tudo isso, e a
família de Deus foi subitamente expandida para incluir os gentios.
Não é que o povo do antigo pacto de Deus tivesse sido
completamente cortado. Antes, os outros, que não estavam
incluídos no antigo pacto, é que agora estavam sendo incluídos no
povo do novo pacto de Deus. A parede de separação entre os dois
grupos, judeus e gentios, havia sido derrubada (Ef 2.14-15). A
nação de Israel não era mais o lugar em que o Senhor “abrigava” o
seu povo. Eles logo seriam encontrados entre muitas nações ―
entre todas as nações, no fim das contas. “O povo de Deus” não era
mais a nação de Israel, mas a igreja de Jesus Cristo, cujos
membros viriam de toda tribo e língua e povo e nação (Ap 5.9). Essa
foi uma mudança radical na história. Ela ocorreu porque Deus
enviou seu Filho Jesus Cristo ao mundo.
Não nos surpreende, assim, que os cristãos no primeiro
século tenham lutado para determinar sua identidade. Em grande
parte eles sabiam que não seriam mais identificados com a nação
de Israel; mas como, então, deveriam ser identificados? Se por
séculos Deus depositara seu favor no Israel étnico, como os gentios
deveriam pensar acerca de si mesmos e de sua relação com Deus?
Paulo escreveu à igreja romana para ajudá-los com essa luta.
Havia na congregação romana, ao que parece, um bom número de
judeus. Também havia gentios. É possível que um grupo estivesse
inquirindo sobre o status do outro. Talvez acusações estivessem
sendo feitas. Qualquer que fosse o caso, Paulo pretendia corrigir a
confusão; e sabia que a clareza adviria de uma explicação do
evangelho.
Assim, o versículo 16 do capítulo 1 é central para todo o livro.
Paulo declara ali por que estava “disposto a pregar o evangelho
também a vocês” (v.15). Ele estava “disposto” a pregar lá, como diz
no versículo 16, porque o evangelho é “o poder de Deus para a
salvação de todo aquele que crê”.
Esta é a primeira preocupação de Paulo ― assegurar-se de
que os cristãos romanos entendam que esse evangelho é o poder
de Deus. Ele não é simplesmente uma noção inventada por Paulo.
É o próprio poder de Deus para salvar. E visto que o evangelho é o
poder de Deus, Paulo deseja também que os romanos saibam que
ele não se envergonha dele.
Por que Paulo apresenta o evangelho glorioso em termos de
vergonha? Provavelmente sua preocupação era que o evangelho
poderia parecer trivial para alguns sob a sombra do poderoso
Império Romano. O poder em Roma era determinado por conquistas
e guerras. Era simbolizado por vitórias e celebrações. Mas o
evangelho não é assim. Ele não se define pelo número de guerras
vencidas ou vitórias celebradas. O evangelho carrega consigo o
próprio poder de Deus; carrega dentro de si a força do próprio Deus.
Como tal, ele é capaz de destruir qualquer barreira que possa ser
erigida contra Deus e seu povo.

Não me envergonho de possuir o meu Senhor,


Ou de defender a sua causa,
Manter a honra de sua Palavra,
A glória de sua cruz.
(Isaac Watts)[14]

Paulo deseja assegurar a seus leitores em Roma que esse


evangelho, do qual ele não se envergonha, é para a salvação de
todo aquele que crê, “primeiro do judeu, depois do grego” (v. 16).
Paulo se sente constrangido a expressar isso dessa forma por
causa da unidade que o evangelho traz.
Agora que tanto judeus como gentios podem partilhar dos
benefícios do evangelho, alguém poderia pensar que não há
nenhuma distinção remanescente entre os dois grupos. Mas esse
também não é o caso. Paulo reconhece neste versículo a prioridade
dos judeus no evangelho. Deus os escolheu primeiro. O próprio
evangelho veio deles, pois se originou com Jesus Cristo, que era
judeu (veja Mt 1.1-17). O próprio Jesus foi “enviado somente às
ovelhas perdidas da casa de Israel” (Mt 15.24, A21). O evangelho
vai primeiro para Israel e então para as outras nações. É essa a
ordem de Deus na história. É essa a ordem que o próprio evangelho
teve na providência de Deus, e Paulo quer reconhecer isso desde o
início.
Mas havendo dito isso, sérias questões ainda permanecem
que precisam ser discutidas com respeito ao relacionamento de
judeus e gentios. A preocupação de Paulo, particularmente nos
capítulos 1 a 11, é desenvolver essa explicação. Há muito que
precisa ser dito sobre a nossa condição universal perante Deus
(caps. 1 e 2), sobre o lugar especial dos judeus, dada a nossa
condição universal (cap. 3), sobre o papel de Abraão em tudo isso
(cap. 4), sobre o papel de Abraão (cap. 5) e sobre a relação dos
judeus e gentios com os propósitos eletivos de Deus (caps. 8-11).
Essas questões difíceis e profundamente pessoais foram deixadas,
na providência de Deus, para o gênio do apóstolo Paulo explicar —
primeiro aos romanos, e então ao restante de nós. Focaremos
nossa atenção somente no primeiro capítulo dessa maravilhosa
carta, e tentaremos mostrar quão útil ela nos é enquanto nos
preparamos para o bom combate. Antes de fazer isso, contudo, há
alguns conceitos chave que precisamos ter em mente.

MOSTRE E DIGA

Uma das verdades mais básicas da fé cristã é que, para que


conheçamos Deus, ele primeiro nos deve dizer quem ele é. Isso não
deveria nos surpreender; é um fato básico nos relacionamentos
humanos também. Os relacionamentos humanos são tão próximos
quanto as informações que compartilhamos o permitem ser. Se
estou abrindo uma conta bancária, por exemplo, o banqueiro tomará
algumas informações básicas de mim. Ele buscará saber meu nome
completo, meu endereço, minha idade, etc. Ao saber essas coisas,
ele certamente me conhecerá pelo menos até certo ponto. Mas essa
informação será tão básica que poderíamos dizer que ele não sabe
realmente quem sou eu.
Nas relações familiares, por outro lado, não é apenas a
informação básica que é conhecida, mas também padrões de
comportamento, experiências de alegria e dor, gostos e desgostos.
Tipicamente, poderíamos dizer que os membros da nossa família
imediata realmente nos conhecem, e muitas vezes nos conhecem
muito bem.
Mas, como pode acontecer em alguns casos, suponhamos
que uma pessoa escolha não revelar nada sobre si mesma.
Suponha, excetuando-se as coisas que podem ser facilmente
descobertas, que alguém decida não compartilhar nada sobre si
mesma nem mesmo com a sua família — nem suas alegrias, dores,
gostos, desgostos ou qualquer outra coisa de natureza pessoal.
Seria muito difícil, mesmo para quem vivesse na mesma casa,
conhecer essa pessoa de fato. Para essa pessoa ser conhecida, ela
precisaria estar disposta a revelar algumas coisas sobre si.
Se isso vale nos relacionamentos familiares, tanto mais vale
com Deus. Como Deus não é um ser humano, mas alguém
completamente diferente de qualquer coisa criada, é ainda mais
verdade que, se haveremos de conhecê-lo, ele deve primeiro estar
disposto a nos dizer quem ele é.
E Deus fez isso. Ele esteve disposto, desde o início da
criação, a nos dizer quem ele é, do que ele gosta e o que lhe
desgosta, as coisas que lhe ofendem e as coisas com que ele se
deleita. A Confissão de Fé de Westminster aborda essa ideia:

Tão grande é a distância entre Deus e a criatura, que,


embora as criaturas racionais lhe devam obediência
como ao seu Criador, nunca poderiam fruir nada dele
como bem-aventurança e recompensa, senão por
alguma voluntária condescendência da parte de Deus, a
qual foi ele servido significar por meio de um pacto. (7.1)

Primeiro, a Confissão declara que há uma “distância” entre


Deus e os seres humanos. Isto, sem dúvida, não significa que Deus
está fisicamente longe de nós (veja At 17.27). Deus não está
fisicamente em nenhum lugar, pois não tem corpo físico. Na
verdade, Deus está em todo lugar (veja Sl 139). O que a Confissão
quer dizer quando fala da “distância” entre Deus e a criatura?
A distância mencionada aqui é de fato uma diferença
espantosa. Se fôssemos pensar, por exemplo, na diferença entre
um ser humano e um peixe, poderíamos expressar a diferença
dizendo que é impossível “alcançarmos” o peixe, ou o peixe nos
“alcançar”. Estamos “fora de contato” com os caminhos do peixe. A
relação entre Deus e os seres humanos é como essa, em certa
medida. Mas diferente do nosso relacionamento com os animais,
onde nenhum dos lados pode realmente falar com o outro, a
distância entre Deus e nós pode ser, e foi, atravessada por Deus.
Deus pode nos “alcançar”. Nós também podemos alcançá-lo, se ele
primeiro nos alcançar.
Esse “ser alcançado” por Deus é o que a Confissão chama
de sua “voluntária condescendência”. Deus decidiu “se inclinar” para
dizer e mostrar-nos quem ele é e o que requer de nós. Ele não
precisava fazer isso. Não havia nada em Deus, ou algo em nós, que
exigisse ele se comunicar conosco. Mas, por causa do seu amor
incondicional por criaturas criadas à sua imagem, ele veio para
estabelecer um relacionamento conosco. Esse relacionamento é por
vezes chamado de “pacto” nas Escrituras.
A comunicação de Deus conosco assume duas formas, e tem
tomado estas formas desde o princípio da criação. Quando Deus
criou o homem como macho e fêmea, deu-lhes certos mandamentos
e disse o que requeria deles:
Deus os abençoou, e lhes disse: “Sejam férteis e
multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra! Dominem
sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre
todos os animais que se movem pela terra”. (Gn 1.28)
E o S Deus ordenou ao homem: “Coma
livremente de qualquer árvore do jardim, mas não coma
da árvore do conhecimento do bem e do mal, porque no
dia em que dela comer, certamente você morrerá”. (Gn
2.16-17)

Esses mandamentos foram dados a Adão e Eva. Eles não


poderiam ter descoberto essas instruções por si mesmos. Deus veio
e lhes disse como deveriam lhe obedecer.
Isso é comumente chamado de revelação “especial”. O que a
torna especial é que ela vem, por assim dizer, da boca do próprio
Deus. Ele a deu em forma verbal, de modo que os seres humanos
pudessem conhecer o que de outra forma não poderiam descobrir.
Ela não é especial no sentido de ser única, embora certamente seja
única. Ela é especial no sentido de ser específica; tem o intuito de
especificar o que Deus requer de nós. Esse tipo de revelação vem
na maioria das vezes como uma “palavra” de Deus. É o tipo de
revelação que nós, a igreja, temos agora na Bíblia. Toda a Bíblia é a
revelação especial de Deus para o seu povo.
Mas há também outro tipo de revelação. Ela é
frequentemente chamada de revelação “natural” ou “geral” de Deus.
Esta revelação chega a todas as pessoas, não só a pessoas
específicas. Ela chega a toda a criação através das coisas criadas
por Deus. É esta a revelação que Paulo salienta em Romanos 1.
Salmos 19 fala sobre a revelação geral, e o faz em termos
fortes:
Os céus declaram a glória de Deus; o firmamento
proclama a obra das suas mãos. Um dia fala disso a
outro dia; uma noite o revela a outra noite. (Sl 19.1-2)
O salmista fala dos céus declarando, do firmamento
proclamando, de cada dia seguinte falando e de cada noite seguinte
revelando conhecimento. Esses são termos que normalmente
seriam reservados a palavras e discursos reais. Mas as Escrituras
também conectam esses termos às coisas que Deus criou.
Assim, segundo as Escrituras, Deus está envolvido em uma
apresentação do tipo “mostrar e contar”. Ele nos mostra quem ele é
por meio da criação. Vamos discutir este ponto mais abaixo, mas
devemos entender desde já que o “mostrar” de Deus é uma
“proclamação” que dá às suas criaturas humanas “conhecimento”.
Ao nos dar palavras, Deus também nos conta quem ele é, o que
pensa e o que requer. Ele nos conta isso, em última análise, quando
nos dá sua palavra, as Escrituras Sagradas.
Veremos que essa seção de Romanos está basicamente
preocupada com o que Deus mostra na sua revelação a toda a
humanidade. Evidentemente, Paulo primeiro discute o que Deus
disse. Ele escreve, em primeiro lugar, sobre a justiça de Deus tal
como revelada no evangelho. E o evangelho é uma das coisas que
Deus não revelou na natureza.
Mas Paulo também escreve sobre Deus mostrando a si
mesmo; escreve sobre Deus se revelando no mundo, através do
mundo, de maneira que todos nós que somos feitos à sua imagem
possamos conhecer aquele que nos fez. Ao conhecê-lo, também
deveríamos servi-lo. Mas como veremos, por causa do pecado,
nossa reação imediata ao que Deus nos mostra não é a de servi-lo.
Nossa reação imediata e nossa ação contínua, a menos que entre
em cena a graça, é empilhar pecado sobre pecado na tentativa de
reprimir a própria revelação que ele nos dá.

AS BOAS NOVAS: JUSTIÇA REVELADA


Romanos 1 nos dá tanto boas como más notícias. Ambas
têm a ver com a revelação de Deus para nós. As boas novas são o
que Deus nos disse; trata-se do evangelho. É o evangelho do qual
Paulo não se envergonha. Evangelho significa “boas novas”, e a
primeira coisa que Paulo deseja que seus leitores lembrem é
justamente no que consiste esse evangelho.
Observamos no início que o versículo 17 motivou Lutero a
desafiar a doutrina da Igreja Católica Romana, começando assim a
Reforma. Esse versículo traz consigo alguns dos temas mais
importantes da carta de Paulo, e isso deveria nos ajudar a entender
o restante do que Paulo quer dizer no capítulo 1. Deveríamos,
assim, separar um momento para analisá-lo.
O versículo 17 segue o pensamento do versículo 16, que
vimos ser o versículo “tese” de Romanos. No versículo 16, Paulo
observa que o evangelho é o poder de Deus, para judeus e também
para gentios, trazendo salvação a todos os que creem. No versículo
17, ele nos diz que o evangelho é o poder de Deus porque “a justiça
de Deus se revela no evangelho, de fé em fé” (ARA). O poder do
evangelho está situado no fato de que ele revela a justiça de Deus.
Mas o que Paulo quer dizer com isso?
Uma das questões mais urgentes em toda a humanidade é
“Como posso ser aceito por Deus?”. Não que esta pergunta seja
sempre feita. Podemos realmente não ouvi-la com muita frequência.
Mas ela está subjacente a grande parte de nossa atividade diária.
Muito do que fazemos tem o propósito de fornecer importância e
significado à nossa vida. A única razão por que queremos tais
coisas é que em último caso queremos ser aceitos pelo próprio
Deus.
Em certo sentido, poderíamos ver todas as formas de
idolatria como tentativas de dar uma resposta a essa questão. A
despeito do que mais possa estar envolvido na idolatria (e
analisaremos isso mais de perto adiante), parte de seu apelo é que
os deuses criados por nós estão também dentro de nosso alcance e
controle. Não é difícil ser “aceito” por tais deuses, já que somos
aqueles que os criaram.
Lembro-me de um encontro com um Testemunha de Jeová
que bateu em minha porta certa manhã. Aquela foi uma situação
inusitada. Normalmente eles chegam em duplas, mas naquela
manhã em particular ele veio sozinho. Seu nome era Lawrence.
Após ouvir o que Lawrence queria dizer sobre suas crenças, fiz uma
pergunta: “Considerando tudo o que você disse”, perguntei-lhe,
“como você acha que pode se tornar aceitável a um Deus santo?”
(Lawrence admitira ser um pecador). Essa pergunta ocasionou uma
das melhores e mais frutíferas conversas que já pude experimentar
nesse tipo de situação.
A pergunta de como podemos ser aceitos por Deus é uma
das questões mais profundas que podemos fazer. Devemos ter a
resposta bíblica clara em nossa mente se havemos de estar prontos
para lutar pela fé. Foi essa pergunta que levou Martinho Lutero a
abraçar o evangelho pela primeira vez. Ele soube que não poderia
ser aceito por Deus apesar de ter separado sua vida precisamente
para esse propósito! Foi esse versículo de Romanos 1, versículo 1,
que começou a acalmar sua consciência culpada e a levá-lo a um
entendimento da liberdade do evangelho. Esse versículo, disse
Lutero, “atingiu minha consciência como um raio” e “como um trovão
no meu coração”.
Paulo nos diz que a justiça de Deus é revelada no evangelho.
Outra forma de dizer isso é que o próprio evangelho é uma
revelação de Deus. Ele nos diz algo sobre quem é Deus e o que ele
fez em nosso favor. O evangelho não nos diz que Deus
comprometeu seu caráter justo e santo. O evangelho não diz que
Deus ignorou sua justiça por causa de sua graça e misericórdia.
Antes, diz-nos como Deus pode ser tanto justo como gracioso para
conosco. Dessa forma o evangelho nos revela algo sobre a
plenitude do caráter de Deus.
Talvez uma das incompreensões mais comuns sobre Deus é
que ele estaria ao nosso redor basicamente para distribuir perdão,
não importa o que acontecesse. Quando estive envolvido em
ministério pastoral, costumávamos chamar pessoas com o propósito
de compartilhar-lhes o evangelho. A vasta maioria daquelas com
quem falamos estava convencida ou de que estava perdoada de
tudo de errado que havia feito, ou de que tudo que precisava fazer
era pedir perdão e que, assim, o obteria. É para perdoar que Deus
está aí. É este o “trabalho” de Deus, às vezes pensamos; é isso,
simplesmente, que ele faz.
Mas esse entendimento de Deus está longe do verdadeiro
retrato que Deus nos dá em sua Palavra. O evangelho nos dá um
retrato verdadeiro de Deus. Ele diz que Deus é incapaz de ignorar o
pecado, pois é santo e justo. Ele não pode ignorar ou remover estas
características de si mesmo tanto quanto não pode deixar de ser
bom. Se fizesse isso, ele não seria Deus; seria uma pessoa
moralmente fraca ou transigente, cujos padrões podem ser deixados
de lado por causa de outros objetivos. Esta pode ser a forma como
pensamos ou agimos ocasionalmente, mas não é a forma como
Deus pensa ou age. Ele não pode deixar de lado seus padrões; ele
não pode mudar sua natureza. Ele está ligado apenas ao que ele
mesmo é. Seus padrões são uma expressão de quem ele é, e ele é
imutável.
O evangelho nos diz que Deus, em vez de ignorar sua justiça
e santidade, enviou seu Filho para pagar a penalidade que tinha de
ser paga se alguém fosse ser aceito por, e aceitável a, Deus. Não é
que Deus simplesmente cancelou nossa penalidade. Ele não
poderia simplesmente “queimar os arquivos” e permanecer um Deus
justo. Qualquer juiz humano que simplesmente fizesse vistas
grossas à lei e deixasse infratores saírem livres logo perderia sua
posição, para não dizer sua reputação. Mesmo que não perdesse
sua posição, dificilmente o chamaríamos de juiz em qualquer
sentido significativo da palavra.
Quanto mais isso vale para o juiz supremo? Deus não pode
simplesmente fechar os olhos para as violações à sua lei. É parte da
natureza divina que o pecado deve ser punido. Assim, Deus enviou
seu Filho para morrer na cruz a fim de pagar a penalidade que nós
merecíamos. Sua morte na cruz não foi a sua punição; foi a nossa.
Ele morreu pelos nossos pecados, não pelos dele (visto que ele era
completamente sem pecado). Como Paulo expressa: “Deus tornou
pecado por nós aquele que não tinha pecado, para que nele nos
tornássemos justiça de Deus” (2Co 5.21).
O sacrifício de seu Filho foi aceitável a um Deus santo, pois
seu Filho vivera uma vida perfeita; permanecera santo durante toda
a sua vida. Quando ele se ofereceu como o sacrifício supremo, seu
sacrifício foi aceitável a Deus, pois foi um sacrifício perfeito. Ele foi
oferecido pelo único sumo sacerdote perfeito (Hb 7.26-8.3). E isto,
Deus poderia aceitar.
Dessa forma, a justiça de Deus é revelada no evangelho. As
boas novas são que a justiça de Deus foi satisfeita; sua ira para com
seu povo foi apaziguada. Por causa do que Jesus Cristo fez, existe
agora um caminho, o único caminho, para alguém ser aceito por um
Deus santo. Esse caminho é revelado no evangelho. Esse caminho
é o caminho de Jesus Cristo. Somente porque Deus tornou pecado
aquele que não tinha pecado, é que podemos nos tornar a justiça de
Deus nele. A justiça de Deus é revelada no evangelho porque a
justiça de Deus é revelada primeiro em Jesus Cristo e então em
nós, por meio dele.
É por isso que Paulo diz que a justiça de Deus é revelada “de
fé em fé”. Paulo enfatiza que a justiça de Deus, embora manifesta
no evangelho a todas as pessoas, não é uma justiça aplicada a todo
mundo. Lembre-se de que a intenção do livro de Romanos é
explicar como os dois grupos ― os judeus e os gentios ― foram
unidos sob o evangelho. Esse versículo nos dá uma pista. Ele nos
diz que judeus e gentios só podem participar dessa justiça revelada
se for mediante a fé em Jesus Cristo. Isso nos diz, colocando de
outra forma, que qualquer um que tem fé ― “todo aquele que crê”
(v. 16) ― recebe também o crédito dessa justiça revelada. A justiça
pertence a Jesus. Quando somos unidos a ele pela fé, também
recebemos o crédito de ter a justiça. São essas, em suma, as boas
novas ― as notícias gloriosas ― que chamamos de evangelho.
Esse será o assunto de Paulo ao longo de sua carta. A
reunião de judeus e gentios aconteceu no evangelho. E o evangelho
é, primeiro e antes de tudo, a mensagem de que Jesus reúne todos
os tipos de pessoas por meio da fé nele. A prioridade que as
Escrituras e a história dão à nação judaica é importante (veja Rm
3.1-2), mas isso não causa um tratamento preferencial por parte de
Deus. Assim como “não há distinção” entre judeus e gentios, “pois
todos pecaram e estão destituídos da glória de Deus”, também “a
justiça de Deus” vem “mediante a fé em Jesus Cristo para todos os
que creem” (Rm 3.22-23).
Como o pensamento de Paulo está agora na justiça de Deus,
como revelada, e também na extensão universal do evangelho, ele
começa outra linha de pensamento no versículo 18, a qual se
provará muito importante para a apologética. No entanto, como é o
caso em Paulo, dá-se na apologética em geral: o evangelho deve
ser firmemente entendido antes que possamos nos lançar pela
primeira vez nas águas profundas da incredulidade. Estes dois
versículos chave, 16 e 17, devem, portanto, ser guardados em
nosso coração se, pela graça de Deus, pretendemos permanecer
firmes contra os maremotos do pensamento incrédulo.

AS MÁS NOTÍCIAS: A IRA REVELADA


À medida que nos movemos do versículo 17 ao 18, parece
haver, à primeira vista, uma mudança abrupta de assunto. Paulo
tinha mesmo discutido a justiça gloriosa de Deus no evangelho. Ele
lembrara aos cristãos romanos que não estava de forma alguma
envergonhado ou embaraçado por causa desse evangelho. Ele
sabia que o evangelho é o poder de Deus. Sabia que o evangelho,
que está focado na morte e ressurreição de Cristo (1.2-4), é o
próprio poder e a própria autoridade de Deus, que quebranta nosso
coração duro e nos traz para debaixo de seu controle libertador (Rm
6).
Mas então o assunto parece mudar significativamente. Paulo
começa a discutir a ira de Deus. Será que existe alguma conexão
entre a ira de Deus e a justiça de Deus? Na mente de Paulo, ela
deve existir. Essa conexão é tornada mais explícita no capítulo 2:
Contudo, por causa da sua teimosia e do seu coração
obstinado, você está acumulando ira contra si mesmo,
para o dia da ira de Deus, quando se revelará o seu
justo julgamento (v. 5).
Ou, como diz Paulo em Romanos 11.22:
Portanto, considere a bondade e a severidade de Deus:
severidade para com aqueles que caíram, mas bondade
para com você, desde que permaneça na bondade dele.
De outra forma, você também será cortado.
A revelação da ira de Deus e a de sua justiça se encontram
no Dia do Juízo. Assim, o que Paulo está nos dando nos versículos
17 e 18 é um entendimento da presente conexão entre a ira de
Deus e sua justiça, uma conexão que alcançará seu clímax no dia
em que Cristo voltar. Mas há pelo menos duas outras conexões, na
mente de Paulo, entre esses dois versículos.
O versículo 18 começa com a palavra “Portanto”, que o
conecta ao versículo anterior. Assim, não resta dúvida,
simplesmente pela gramática da passagem, que há uma conexão
específica. Parte da conexão pode ser vista no fato de que a
mudança de assunto não é tão radical quanto a princípio poderia
parecer. Quando Paulo discute a justiça, mostra que essa justiça foi
revelada por Deus. Em outras palavras, uma das ideias que Paulo
desenvolve nesse capítulo é que Deus se revela no mundo por
vários meios. No evangelho, Deus revela sua justiça. Agora, Paulo
quer desenvolver o assunto sobre Deus revelando sua ira.
Assim, Paulo está nos ajudando a entender algo sobre a
revelação de Deus nos versículos 17 e 18, e também algo sobre a
universalidade dessa revelação. No versículo 16 ele nos diz que o
evangelho é para o judeu e o gentio ― duas categorias que cobrem
toda a raça humana. O evangelho não tem mais seu foco sobre a
nação de Israel.
Desde que Cristo batizou sua igreja com o Espírito Santo no
Dia de Pentecostes o evangelho tem tido um foco universal. É
verdade, ele começou “em Jerusalém”. Mas passou para “toda a
Judeia e Samaria, e até os confins da terra” (At 1.8). Há um escopo
universal para o evangelho e, assim, para a revelação da justiça de
Deus, que é o foco da atenção de Paulo nestes dois versículos. O
evangelho deve se espalhar por toda a terra.
No restante deste capítulo, vamos lidar com o versículo 18
apenas. Esse versículo serve como um tipo de introdução para uma
seção que segue bem até Romanos 3. Conquanto não iremos olhar
para toda essa seção, atentaremos para o foco do argumento de
Paulo, especialmente no que se refere à apologética, no capítulo 1 e
parte do capítulo 2. Mas primeiro precisamos focar o versículo
“introdutório” de Paulo. Diz Paulo:
Portanto, a ira de Deus é revelada dos céus contra toda
impiedade e injustiça dos homens que suprimem a
verdade pela injustiça (v. 18).
O foco da preocupação de Paulo nesse ponto é a revelação
da ira de Deus. Pode ser útil para nós pensar por um minuto no que
consiste a ira de Deus.
A ira de Deus não é um tema popular no mundo de hoje. Ela
evoca imagens de um tirano cruel impondo penalidades sobre seus
súditos pelo puro e simples prazer de exercer seu poder. Isso, no
entanto, tem mais a ver com capricho do que com ira, e não faz
parte do caráter de Deus. O dicionário define ira como “raiva ou
indignação forte e vingativa”. Esta definição se aproxima do que
queremos dizer ao nos referir à ira de Deus.
É importante entender que certas características de Deus são
subprodutos de quem ele é em relação à sua criação. Outros
atributos de Deus são parte de quem ele é à parte da criação. Por
exemplo, Deus é trino e uno ― Pai, Filho e Espírito Santo. Deus
sempre foi trino e uno, e o seria quer a criação viesse à existência,
quer não.
Não é sempre fácil determinar que atributo ou característica
se encaixa em determinada categoria. No entanto, ao pensar num
atributo em particular, às vezes é útil perguntar se Deus ainda
poderia ser Deus sem tal atributo. Se a resposta for sim, então se
trata, provavelmente, de um atributo que flui de quem ele é.
Por exemplo, Deus é misericordioso. A Bíblia fala dele dessa
forma (veja, por exemplo, Sl 116.5). Mas a misericórdia de Deus,
que é dirigida para criaturas pecadoras, só faz parte da sua
natureza por causa da criação. Antes de haver criaturas, não havia
ninguém a quem Deus pudesse ou precisasse ser misericordioso.
Se misericórdia significa mostrar favor a alguém que não o merece,
então não havia ninguém assim por aí antes da criação.
Deus não era misericordioso antes da criação. Mas era amor
(1Jo 4.8,16). Deus poderia ser Deus, e não ser amor? Parece que
não. Amor é um atributo que Deus já compartilhava consigo mesmo,
como trino e uno, antes que houvesse qualquer coisa ou qualquer
outra pessoa. O amor era demonstrado dentro das três pessoas de
Deus. Sua misericórdia, por outro lado, não era demonstrada entre
as pessoas da Trindade. Não havia nenhuma necessidade de
misericórdia e nenhum objeto para a sua aplicação. Assim, a
misericórdia de Deus, em vez de ser uma parte de seu caráter
básico, flui de seu caráter básico. Ela flui de seu atributo do amor.
A ira de Deus é como sua misericórdia; é um atributo que não
era necessário nem estava presente antes da criação do mundo.
Mas o que, então, é a ira de Deus? Em seu cerne, é um aspecto do
caráter de Deus que flui da sua santidade. Lembre-se de que a
santidade se refere, em primeiríssimo lugar, à “diferença” de Deus.
Lembre-se também de que frequentemente usamos termos
especiais para transmitir essa diferença. Falamos de Deus como
estando “acima” de nós ou “além” da sua criação. Pensamos nele às
vezes como estando “fora” do espaço e do tempo. Todos esses
termos nos dão um retrato do que queremos dizer por santidade.
A própria Bíblia usa esse tipo de terminologia (veja, por
exemplo, Sl 108.5). Mas também sabemos a partir das Escrituras
que Deus não está realmente distante da sua criação; ele está nela
e com ela, pois está em todos os lugares (Sl 139.7-14). A ideia da
santidade de Deus pretende expressar essa diferença fundamental
em Deus. Ele é essencialmente diferente de tudo o mais.
Mas ela também pretende expressar a “distância” de Deus de
tudo que é impuro. Quando falamos de Deus como santo, estamos
dizendo que ele está tanto separado, como é vingativo, do pecado.
Pecado é uma violação da lei de Deus. Essa lei é uma expressão do
caráter divino. Ela é santa, justa e boa (Rm 7.12). Quando a lei de
Deus é violada, não há simplesmente violação de alguma regra ou
regulamento, como acontece com as nossas leis, mas violação do
caráter dele como Deus. O fato de que Deus é santo significa que
ele deve punir todas essas violações. Por causa de quem Deus é,
ele não pode ficar de braços cruzados enquanto seu caráter é
atacado.
É isso, em sua forma mais simples, o que a ira de Deus
significa. Ela é a expressão da sua santidade para com o pecado. É
a reação justa e correta de Deus às transgressões à sua lei e,
assim, ao seu caráter. Quando a Bíblia fala da ira de Deus, está
falando da resposta de Deus à resposta humana à sua lei.
Isso deve ajudar-nos a entender algo sobre a ira de Deus que
será importante no próximo capítulo. A ira de Deus não é um ato
randômico e caprichoso que ele exerce a esmo. Deus não faz nada
de forma arbitrária. Tudo que ele faz é por uma razão perfeita, e é
feito num momento perfeito, com um efeito perfeito.
A revelação da sua ira é igualmente perfeita. Ela é a resposta
de Deus a uma resposta que já escolhemos. Sua ira é uma
expressão da sua atitude para com nossas escolhas pecaminosas.
Dessa forma, ela é como uma punição paternal a um filho. Seria
pecaminoso e errado um pai punir seu filho simplesmente pelo
prazer de bater em alguém. A verdadeira punição é uma resposta a
um comportamento errado da criança. Ela pretende fornecer
correção e boa direção. Mas não viria se, antes de tudo, a criança
obedecesse às regras dos pais.
Assim, a ira de Deus, revelada do céu, é uma resposta da
parte de Deus. Ela é direcionada “contra toda impiedade e injustiça
dos homens que suprimem a verdade pela injustiça”.
A ira de Deus assume uma forma que podemos talvez não
esperar. Vamos considerar essa forma no próximo capítulo. Vamos
considerar, também, a razão pela qual a ira de Deus vem. Essa
razão terá um importante significado em nossos esforços
apologéticos.

PARA SE APROFUNDAR

1. Como podemos demonstrar que não nos envergonhamos do


evangelho?
2. Como Deus se manifesta na criação?
3. Como a justiça e a santidade de Deus se relacionam com sua ira?
4. Como você descreveria a ira de Deus para um incrédulo?
5. O incrédulo tem algum tipo de relacionamento com Deus? Como
você descreveria tal relacionamento?
5. O psicólogo divino

Como vimos no último capítulo, Paulo começa essa gloriosa carta


aos Romanos lembrando-nos das boas novas do evangelho e
também introduzindo-nos à realidade da ira de Deus. Como
veremos neste capítulo, a ira de Deus é sua resposta à nossa
resposta perversa a ele. Ao esboçar a resposta pecaminosa que
todos nós damos a Deus, Paulo nos introduz a psicologia divina.
A ciência é dividida tipicamente em duas categorias —
ciências exatas e ciências humanas. As ciências exatas, como física
e química, tendem a usar regras, leis e procedimentos específicos
para realizar seu trabalho. Podemos depender das leis da física e
usá-las para fazer observações e cálculos. Elas são fatos “exatos”.
As ciências humanas, por outro lado, não são previsíveis. Por
causa de sua matéria ou assunto, elas precisam ser mais
experimentais em suas conclusões. Em muitas das ciências
humanas, como psicologia e sociologia, o assunto são os seres
humanos. Por causa de sua complexidade, essas ciências precisam
ser cuidadosas para evitar aplicar suas conclusões de forma muito
ampla. Embora a física possa falar com confiança sobre as
propriedades da energia onde quer que esta seja encontrada, a
psicologia não goza desse luxo. Nas ciências humanas, é mais
difícil estabelecer e contar com leis exatas e rápidas que sejam
facilmente reproduzidas.
Pois o que de Deus se pode conhecer é manifesto entre eles,
porque Deus lhes manifestou. Pois desde a criação do mundo
os atributos invisíveis de Deus, seu eterno poder e sua
natureza divina, têm sido vistos claramente, sendo
compreendidos por meio das coisas criadas, de forma que tais
homens são indesculpáveis; porque, tendo conhecido a Deus,
não o glorificaram como Deus, nem lhe renderam graças, mas
os seus pensamentos tornaram-se fúteis e o coração
insensato deles obscureceu-se. Dizendo-se sábios, tornaram-
se loucos e trocaram a glória do Deus imortal por imagens
feitas segundo a semelhança do homem mortal, bem como de
pássaros, quadrúpedes e répteis.
Por isso Deus os entregou à impureza sexual, segundo os
desejos pecaminosos do seu coração, para a degradação do
seu corpo entre si. Trocaram a verdade de Deus pela mentira,
e adoraram e serviram a coisas e seres criados, em lugar do
Criador, que é bendito para sempre. Amém.

Em parte porque é uma ciência humana, a prática da


psicologia pode ser bastante diversa. Com mais de 250 escolas de
psicologia nos Estados Unidos hoje, é difícil encontrar um fio
condutor que as una. Mas se examinarmos o significado da palavra
psicologia, talvez possamos compreender seu significado básico.
A palavra grega psychē significa (algo como) “alma”. O sufixo
“logia” vem da palavra grega significando “palavra”, ou “tópico”, ou
“estudo”. Dessa forma, psicologia significa (algo como) “o estudo da
alma”. Essa é uma das razões por que a psicologia não é uma
ciência exata. Ela é uma ciência humana porque o comportamento
humano é muito imprevisível.

Por causa disso Deus os entregou a paixões vergonhosas. Até


suas mulheres trocaram suas relações sexuais naturais por
outras, contrárias à natureza. Da mesma forma, os homens
também abandonaram as relações naturais com as mulheres
e se inflamaram de paixão uns pelos outros. Começaram a
cometer atos indecentes, homens com homens, e receberam
em si mesmos o castigo merecido pela sua perversão.

Além do mais, visto que desprezaram o conhecimento de


Deus, ele os entregou a uma disposição mental reprovável,
para praticarem o que não deviam. Tornaram-se cheios de
toda sorte de injustiça, maldade, ganância e depravação.
Estão cheios de inveja, homicídio, rivalidades, engano e
malícia. São bisbilhoteiros, caluniadores, inimigos de Deus,
insolentes, arrogantes e presunçosos; inventam maneiras de
praticar o mal; desobedecem a seus pais; são insensatos,
desleais, sem amor pela família, implacáveis. Embora
conheçam o justo decreto de Deus, de que as pessoas que
praticam tais coisas merecem a morte, não somente
continuam a praticá-las, mas também aprovam aqueles que as
praticam. — Rm 1.19-32

Para Deus, no entanto, a psicologia (como todas as demais


ciências) é uma ciência exata (por assim dizer). Sejam quais forem
os mistérios e enigmas em torno da psique humana, Deus os
conhece todos, em todos os momentos, completa e exaustivamente.
A psicologia divina, portanto, é infalível e abrangente. Quando Deus
dá um diagnóstico, esse diagnóstico é incontestável. Deus conhece
o fim desde o princípio, e tudo que é intermediário, sem erro e sem
dúvida. Quando Deus fala sobre a psique humana, então, seria
sábio de nossa parte ouvirmos cuidadosamente.
Em Romanos 1.18-32, Deus nos descreve a atividade da
alma humana, que poderíamos simplesmente chamar de “pessoa
interior”. Ele nos dá o tipo de informação a que jamais poderíamos
ter acesso por nós mesmos. Não temos uma análise infalível da
condição humana; não há como entrarmos em cada pessoa e
verificar o que se passa ali. Mas Deus pode fazê-lo. E quando ele
nos diz, em sua Palavra, o que se passa nos “recessos interiores”
de uma pessoa, não deveríamos tão somente acreditar nisso, mas
também aplicar essas verdades. Por conta disso, a avaliação divina
da psique humana em Romanos 1 se revela imensamente útil para
a defesa e recomendação da fé cristã.

CONHECENDO A DEUS
Muitas vezes é difícil seguir a linha de raciocínio de uma
passagem bíblica. Às vezes, quando você pensa que entendeu um
argumento específico nas Escrituras, o versículo seguinte desafia
tudo o que você pensava saber sobre a passagem. Recordo-me
bem de quando certa vez comecei a trabalhar em um sermão
pensando que a passagem que escolhera era bastante simples e
direta. Porém, quanto mais profundamente eu olhava a passagem,
mais percebia quão pouco havia compreendido o que o autor
(Paulo) realmente tentava dizer. Meu único conforto era que o
próprio apóstolo Pedro admitira haver coisas em Paulo que eram
difíceis de entender (2Pe 3.15-16). Se Pedro teve problemas para
entender algumas coisas nas Escrituras, então certamente nós
também teremos.
Porém, na passagem que vamos analisar neste capítulo, este
problema não é tão sério. Embora ninguém fosse alegar
conhecimento exaustivo do que Paulo está argumentando aqui,
essa seção em Romanos é um daqueles raros lugares em que você
quase pode ver a mente brilhante de Paulo em ação enquanto ele
escreve. Isso deveria nos ajudar, então, a seguir sua linha de
pensamento.
A preocupação inicial de Paulo nessa seção é mostrar que
todos nós estamos na mesma condição acerca do nosso
relacionamento com Deus. Paulo destaca o caráter universal do
pecado, no sentido de ele se aplicar e afetar a todos e a cada um de
nós.
Paulo havia mesmo explicado que o evangelho tem agora
uma dimensão universal que não estava presente sob o antigo
pacto. O evangelho pode ser para os judeus primeiro, mas é para os
gentios também. Ele deve ir até os confins da terra. Mas então a
seguinte questão se levanta: Qual é o estado daqueles a quem o
evangelho chega? Estaria eu levando o evangelho a pessoas que
são inocentes, porquanto nunca ouviram o evangelho? Quando o
evangelho chegar aos gentios, eles terão alguma ideia de quem é
esse Deus acerca do qual falamos?
Paulo entrelaça duas ideias básicas nessa passagem.
Primeiro, ele quer que entendamos a resposta ao conhecimento de
Deus daqueles que estão alheios a Cristo. Segundo, ele nos fala
sobre a resposta de Deus a tal resposta (pecaminosa). Vamos ver
como estas duas ideias se encaixam.
No último capítulo, vimos que Deus revela tanto o evangelho
como a sua ira. Paulo enfoca a ira de Deus no restante de Romanos
1. Ele está preocupado em nos dizer por que essa ira vem. Ele quer
que vejamos por que e em quais circunstâncias Deus responde em
ira, em vez de graça ou misericórdia.
Assim, Paulo começa dizendo-nos no versículo 18 que a ira
de Deus é revelada do céu, e que ela é dirigida contra a impiedade
dos homens. Isso não significa que Deus revela sua ira somente
onde a impiedade é maior. A revelação da ira de Deus é universal, e
vem contra “toda impiedade e injustiça dos homens”. A ira de Deus
é revelada em todo lugar, manifestando sua raiva sobre a maldade
universal dos seres humanos pecadores.
Paulo introduz então uma ideia que ele sabe que exigirá mais
explicações. Ele descreve essas pessoas ímpias e perversas como
aqueles “que suprimem a verdade pela injustiça”. Isso poderia ser
traduzido como “que mantêm a verdade em injustiça”. A explicação
dessa ideia ocupará o pensamento de Paulo durante grande parte
do capítulo 1 e um pouco do capítulo 2.
Essa noção, que pecadores suprimem a verdade, precisará
de algum esclarecimento, e Paulo sabe disso. A primeira questão
que surge à mente é: Qual verdade? Paulo antecipa esta pergunta e
começa a respondê-la no versículo 19. A verdade que é suprimida é
“o que de Deus se pode conhecer”. E isso, Paulo diz, “é manifesto
entre eles”. A palavra traduzida como “manifesto” poderia ser
facilmente traduzida como “claro” ou “evidente”. O que quer que seja
conhecido sobre Deus, isso é algo claro. Não é algo que somente
alguns poucos podem ver, ou que está antes oculto ou é obscuro.
“O que de Deus se pode conhecer” é tão claro e evidente como o
mundo ao nosso redor.
Mas isso é algo claro não porque vemos muito bem, ou
porque temos usado nossa mente para descobrir essa verdade, mas
“porque Deus lhes manifestou”. Esta é uma verdade importante que
merece uma boa dose de reflexão. O que podemos aprender aqui é
que existe um conhecimento de Deus que é claro e evidente
precisamente porque Deus o tornou claro e evidente. Paulo nos
direciona aqui à atividade revelacional de Deus.
Como vimos no último capítulo, esse tipo de revelação da
parte de Deus é comumente chamado “revelação geral” de Deus. É
importante entendermos estas duas palavras. Ela é uma revelação
geral porque chega a todas as pessoas. Uma definição padrão de
dicionário para geral é “envolvente, relacionado ou aplicável a todo
membro de uma classe, tipo ou grupo”. É dessa forma que a palavra
é usada aqui. Paulo está descrevendo uma revelação que envolve,
se relaciona e é aplicável a todas as pessoas. Ele não está
pensando aqui em revelação especial, que foi destinada ao povo
especial de Deus, a igreja de Jesus Cristo. A revelação aqui é
universal. Por esse motivo, ela é geral.
É importante observar aqui o que Paulo não tem em mente. A
revelação geral não é uma revelação que pode nos salvar. O
evangelho não faz parte do seu conteúdo (veja Rm 10.7-15). A
revelação geral não traz aquilo que é necessário para o
conhecimento salvífico de Deus. Isso se torna óbvio a partir do
contexto. Paulo começa com uma revelação da ira de Deus, não da
sua graça. Ele nos lembra de que a ira de Deus é revelada contra
aqueles que são ímpios e perversos. A impiedade e perversidade
dessas pessoas estão ligadas à sua supressão da verdade. Paulo
está explicando qual é a verdade suprimida em injustiça.
Nós agora sabemos que é a verdade sobre Deus, a verdade
que Deus tornou evidente e que, portanto, é clara a todos nós.
Devemos enfatizar aqui que Paulo está discutindo a atividade de
Deus, não a nossa. Ele está afirmando que nós, de fato, vemos
claramente, e que, portanto, conhecemos a Deus. Mas esse
conhecimento não vem como resultado de nossos esforços
intelectuais nem tampouco de estarmos buscando a Deus. Não há
quem busque a Deus (Rm 3.11). “O que de Deus se pode conhecer”
é conhecido porque foi dado por Deus, não por causa de qualquer
encorajamento que recebemos, ou esforço que empreendemos,
para conhecer ou vê-lo. Deus é o único agindo aqui; somos
receptáculos passivos dessa revelação que Deus faz de si mesmo.
Mas Paulo não nos diz especificamente o que quer dizer com
“o que de Deus se pode conhecer”. Mais uma vez ele antecipa a
pergunta que seus leitores poderiam fazer: O que é que pode ser
conhecido sobre Deus? Paulo responde a pergunta no próximo
versículo.
Para responder essa pergunta, Paulo nos leva de volta à
criação do mundo. Essa é uma das razões por que podemos dizer
que Paulo está pensando universalmente neste ponto. Ele não está
pensando em indivíduos ou grupos isolados. Antes, está nos
apontando ao princípio dessa revelação, essa manifestação clara e
evidente dada por Deus. Paulo diz que essa revelação geral nos foi
dada por Deus “desde a criação do mundo” (v. 20).
Essa referência à criação nos diz que a revelação geral de
Deus não é em si mesma uma resposta ao pecado. Não é como se
Deus tivesse decidido, após o pecado de Adão, que deveria se fazer
conhecido de uma forma diferente da de antes da Queda. A
revelação geral de Deus está embutida na própria criação. Desde a
época em que criou o homem e a mulher à sua imagem, Deus tem
se revelado por meio de sua criação ― claramente a nós e em nós.
Deus revelou em sua criação seus “atributos invisíveis… seu
eterno poder e sua natureza divina” (v. 20). Charles Hodge está
provavelmente certo em seu comentário sobre essa passagem. Ele
observa que esses termos são abrangentes em escopo. “Eterno
poder e natureza divina” não são atributos ou perfeições específicos
de Deus. Antes, diz Hodge, essa revelação geral de Deus a todos
os homens inclui “todas as perfeições divinas”.[15] Os termos gerais
incluem os termos mais específicos.
A Confissão de Fé de Westminster tem um bom resumo
dessas perfeições:
Há um só Deus vivo e verdadeiro, o qual é infinito em
seu ser e perfeições. Ele é um espírito puríssimo,
invisível, sem corpo, membros ou paixões; é imutável,
imenso, eterno, incompreensível ― onipotente,
onisciente, santíssimo, completamente livre e absoluto,
fazendo tudo para a sua própria glória e segundo o
conselho da sua própria vontade, que é reta e imutável.
É cheio de amor, é gracioso, misericordioso, longânimo,
muito bondoso e verdadeiro remunerador dos que o
buscam e, contudo, justíssimo e terrível em seus juízos,
pois odeia todo pecado; de modo algum terá por
inocente o culpado. (2.1)
Tudo isso, diz Paulo, é tornado conhecido por Deus e é
conhecido por toda a humanidade. Isso, obviamente, não é apenas
um conhecimento vago e impreciso; não é uma capacidade para
conhecimento ou potencial para conhecimento que requer
suplementação. Nem tampouco é meramente um sentimento ou
ideia abstrata. Paulo não está dizendo que todos temos alguma
ideia de que existe algum deus em algum lugar.
Esse é um conhecimento verdadeiro, certo, claro e rico do
próprio Deus. Paulo deixa isso ainda mais claro no versículo 18,
onde fala de “o que de Deus se pode conhecer”. Isso poderia ser
mais bem traduzido como “conhecendo a Deus”. Esta é a verdade
da questão: todos nós, criaturas feitas à imagem de Deus,
conhecemos a Deus! Paulo não poderia ser mais claro aqui. Sua
linguagem é direta e inequívoca. Mesmo aqueles alheios a Cristo,
por viverem e se moverem na criação de Deus, e por Deus se
manifestar nessa criação, conhecem-no clara e evidentemente.
Apenas para assegurar-se de que deixou claro seu ponto,
Paulo diz mais uma vez no versículo 20 que essa revelação que
Deus dá “desde a criação do mundo… têm sido vist[a] claramente,
sendo compreendid[a] por meio das coisas criadas”. Deus, que nos
criou, não deixa espaço para ignorância em suas criaturas
humanas.
Devemos lembrar-nos de onde Paulo começou essa
discussão. Ele começou com a revelação da ira de Deus. Paulo nos
disse que a ira de Deus é contra toda injustiça. Ele então nos fez
saber que na raiz do nosso coração ímpio não reside ignorância,
mas uma supressão da verdade. Essa supressão modela nossa
impiedade; ela é seu elemento definidor. Agora aprendemos que a
verdade que é suprimida é na realidade o conhecimento claro e
universal de Deus, que é dado pelo próprio Deus.
Não deveríamos considerar levianamente o peso da análise
da incredulidade feita por Paulo aqui. Ele está dizendo que não
existem ateus de verdade. Indubitavelmente alguém poderá dizer
em seu coração (como lembra o salmista) “Deus não existe” (Sl
14.1). Mas o salmista chama essa pessoa de tola, em parte, ao
menos, porque ela diz em seu coração o que obviamente não
procede. Esse é o cúmulo da tolice. O tolo diz em seu coração o que
sabe não ter procedência. O ateísmo, podemos dizer agora levando
em conta o que Paulo nos ensinou, é simplesmente uma supressão
do conhecimento verdadeiro de Deus.
A forma como Paulo expressa essa verdade requer que
digamos, sem hesitação, que todas as pessoas conhecem a Deus.
Isso não significa que todas as pessoas acreditam que existe um
deus. Não estamos dizendo que o conhecimento que as pessoas
têm é como uma crença vazia ― uma crença em OVNIS, por
exemplo. Eu posso crer que existem OVNIS, mas não tenho
nenhuma evidência para essa crença, e isso terá (espera-se) pouco
efeito sobre a minha vida diária. Paulo não está dizendo que o
conhecimento de Deus que todas as pessoas têm é assim. Não é
um conhecimento sem evidência, um conhecimento que não tem
efeito sobre o nosso viver. Na verdade, é exatamente o oposto
disso.
Esse conhecimento que todos os seres humanos têm é
conhecimento de uma pessoa. É Deus quem todas as pessoas
conhecem. Isso significa que todas as pessoas estão num
relacionamento com Deus. A rigor, os ímpios não estão, e nem
podem estar (à parte de Cristo), num relacionamento salvífico com
Deus. Mas eles estão num relacionamento, não obstante. Talvez o
ímpio possa ser comparado a alguém que está na prisão. Que
relacionamento uma pessoa na prisão tem com seu governo? Ela
certamente não está “fora de um relacionamento” com seu governo.
Ela conhece seu governo muito bem, pois vive num ambiente
proporcionado por ele. Na verdade, ela está onde está, e sua vida é
tal como é, por causa de sua resposta às leis do seu governo. Ela
permanece num relacionamento com seu governo, apesar de ser
um relacionamento que não é feliz.
O mesmo vale para aqueles homens ímpios e perversos que
suprimem a verdade em injustiça. Como Paulo está descrevendo a
incredulidade aqui, poderíamos dizer que o mesmo vale para todos
os que estão fora de Cristo. Estamos relacionados com Deus pelo
fato de o conhecermos. Sabemos como ele é; somos confrontados
com ele dia após dia, pois nele vivemos, nos movemos e existimos
(At 17.28).
Isso poderia ser chamado de relacionamento pactual. Pacto é
um relacionamento contratual entre duas ou mais pessoas. Esse
relacionamento é iniciado pelo próprio Deus. Ele tem-se revelado
desde a criação do mundo. Nossa obrigação é reconhecer essa
revelação e nos arrepender (Rm 2.4). Estes são os termos do
contrato. No entanto, em vez de nos arrependermos, suprimimos a
verdade que vem por meio dessa revelação. Somos assim
violadores de contrato, ou pacto. Mas ser um violador de pacto
assume que existe um pacto em primeiro lugar. Visto que
conhecemos a Deus, e nos recusamos a nos arrepender de nossa
impiedade, preferindo suprimir esse conhecimento, ainda estamos
nos relacionando com Deus enquanto vivemos neste mundo.
Há um ponto adicional, um ponto mais importante, que Paulo
desenvolve no versículo 20. Visto que todas as pessoas conhecem
a Deus, e visto que esse conhecimento vem pela revelação clara e
contínua de Deus no mundo, Paulo conclui que aqueles que
suprimem esse conhecimento são “indesculpáveis”. A palavra grega
traduzida como “indesculpáveis” é usada no Novo Testamento
somente aqui e em Romanos 2.1. Ela é transliterada como
anapologetos. Está relacionada à palavra grega para “apologética”,
e poderia ser facilmente traduzida como “sem uma apologética”.
Aqueles que suprimem o conhecimento de Deus que ele continua a
dar através de sua criação estão agora, assim como estarão no Dia
do Juízo, sem uma defesa perante Deus.
Essas são boas novas para os cristãos, à medida que
continuamos nos preparando para fazer apologética. Estamos
cientes do fato de que as pessoas têm desenvolvido teorias e
filosofias elaboradas para evitar o claro conhecimento de Deus que
está dentro delas e é evidente ao seu redor. Sabemos que a
oposição a Deus não é silenciosa. Mas Paulo nos diz aqui que todas
essas filosofias, todas essas teorias, todas essas objeções
apresentadas contra o conhecimento de Deus no fim das contas
equivalem a nada. Todas as posições oponentes são em última
análise indefensáveis.
Novamente, precisamos treinar nossa mente para pensar
dessa maneira. Precisamos crer em Deus e não no homem. Não
importa quão intimidantes, quão articulados ou quão sofisticados
sejam, os argumentos levantados contra o cristianismo não são
capazes de uma defesa racional. Isto deveria estar queimando em
nosso coração: toda e qualquer posição que seja oposta ao
cristianismo é absolutamente indefensável.
Claro, quando paramos e refletimos a respeito, sabemos que
esse é o caso, sendo nós cristãos. Sabemos que o cristianismo, e
somente o cristianismo, é verdadeiro. Sabemos disso pela graça de
Deus e não por nossa sabedoria. Mas sabemos. Qualquer posição,
portanto, que se levante em oposição ao cristianismo é
necessariamente falsa. E uma posição falsa é falsa em parte por
causa de sua incapacidade de lidar com a forma como as coisas
realmente e verdadeiramente são. Uma posição ou declaração falsa
tenta dizer algo sobre o mundo que simplesmente não é verdadeiro
ou real.
Assim, aqueles que suprimem o conhecimento de Deus em
injustiça estão no empreendimento de constantemente negar o que
é real, o que é verdadeiro. O mundo que essas pessoas veem com
olhos pecaminosos não é o mundo real. Não é o mundo onde Deus
reina em Cristo. Não é o mundo em que nosso propósito é glorificar
a Deus e gozá-lo para sempre. É um mundo falso, onde alguma
coisa além de Deus reina e onde estamos destinados a glorificar
nossos próprios desejos e vontades. Mas esse mundo não é o
mundo real. Como então poderia ser defendido? Paulo lembra que
não há como fazer isso. Aqueles que suprimem a verdade não
possuem uma defesa ― não têm nenhuma apologética.
É importante perceber também o que Paulo está nos dizendo
sobre evidências para a existência de Deus. Muita tinta tem sido
despejada sobre a questão das evidências a favor da existência de
Deus. O argumento é simples e direto. O poeta Joseph Addison
entendeu isso:

O firmamento nos altos, pródigo,


e inteiro o intangível céu índigo,
onde nuvens se espargem: moldura brilhante,
do seu grande Original anunciante;
O sol infatigável, dia após dia,
do Autor excelso os poderes irradia,
e publica a cada povo e nação,
a obra da onipotente mão.

Se noturnas sombras vêm caindo,


surge logo a lua com seu conto estupendo,
noite após noite à terra que a escuta,
do seu nascimento a história reconta;
Enquanto estrelas tantas orlam o seu clarão,
até os planetas todos no mesmo rodeio vão,
com as alvíssaras no passeio confirmando,
de um polo ao outro a verdade alastrando.

Que importa se redor do globo escuro,


movam-se todos em silêncio tão austero?
Que importa se som ou voz realmente
nenhuma se ouve em toda orbe resplandecente?
Pois todos celebram, aos ouvidos da razão,
por vozes alegres em gloriosa expressão,
Com suma radiância em canto imortal:
“A mão que nos fez é a mão divinal!”[16]

Deus é conhecido através das coisas que são feitas. Todas


as coisas, exceto Deus, foram feitas. Portanto, Deus é conhecido
através de todas as coisas.
A evidência a favor da existência de Deus é abundante; não
há lugar algum na totalidade do universo que não evidencie sua
existência. Nesse sentido, todas as coisas provam Deus. Elas não o
fazem da mesma forma que um argumento prova Deus. Mas todas
as coisas, não obstante, provam Deus porque “gritam” a existência e
os atributos dele.
Há uma passagem no Antigo Testamento que se relaciona
com o ensino de Paulo aqui. Em Salmos 19, Davi diz:
Os céus declaram a glória de Deus; o firmamento
proclama a obra das suas mãos. Um dia fala disso a
outro dia; uma noite o revela a outra noite. (vv. 1-2)
Como foi observado anteriormente, Davi está falando da
criação, mas está usando versos que são normalmente associados
a palavras e declarações. Os céus declaram, o firmamento
proclama, os dias sucessivos falam e as noites sucessivas revelam
conhecimento.[17]
Davi usa essa terminologia de “linguagem” para descrever a
revelação natural. A revelação de Deus na natureza é algo que
declara e proclama; ela discursa e revela conhecimento. A evidência
para a existência de Deus está longe de ser escassa; ela revela
Deus de forma clara, visível, inteligível e universal em toda e
qualquer coisa que é criada, da menor partícula à maior galáxia.
Lembro-me de haver conversado com um homem cujo
trabalho era operar um microscópio eletrônico. Esse microscópio foi
projetado para ampliar coisas que eram invisíveis a olho nu e a
qualquer outro microscópio. Ele pediu a alguns colegas para lhe
trazerem coisas que eram, aos nossos olhos, lisas, finas e afiadas.
Uma pessoa trouxe uma lâmina de barbear. Ele colocou essa lâmina
no microscópio. Essa lâmina lisa e afiada era, quando ampliada no
microscópio, cheia de buracos, irregularidades, sulcos e falhas.
Ele então colocou alguns organismos vivos naquele
microscópio. Via-se então que eles continham meandros e
complexidades impressionantes que eram invisíveis a olho nu ― e
nenhuma falha. Sem dúvida, nenhum humano poderia fazer tal
coisa. Nossas melhores “criações” são falhas e feias, mesmo
quando comparadas às menores coisas da criação de Deus.
Comparar as melhores coisas que o homem pode fazer às
coisas da natureza fornece evidência abundante de que o melhor
que o homem pode fazer é quase infinitamente pior que as menores
moléculas e átomos que Deus criou. Isso é evidência clara e
manifesta do Criador. Não há falta de evidência para a existência de
Deus.
Conta-se uma história sobre o filósofo inglês Bertrand
Russell. Russell não era nem um pouco amigo do cristianismo. Uma
de suas palestras mais famosas era intitulada “Por que não sou
cristão”. Certa vez alguém pediu a Russell para considerar o que
aconteceria se ele estivesse errado. “O que aconteceria”, Russell foi
questionado, “se você morresse e imediatamente se visse perante
Deus? O que você diria?”. Russell respondeu: “Eu lhe diria: ‘Não
havia evidência suficiente! Não havia evidência suficiente!’”.
Se Paulo está correto (e ele está), então é certo que Russell
não respondeu dessa maneira quando morreu. Há evidência
abundante da existência de Deus. Russell gastou toda a sua vida e
carreira se recusando a ver ou crer no que lhe era claramente
revelado. Em vez de aceitar o óbvio, ele inventou uma série de
teorias e argumentos para mostrar que Deus não existia, ou que,
existindo, sua existência não tinha relevância para o dia-a-dia.
Muitos pensam que os argumentos de Russell contra o cristianismo
eram sólidos, mas não eram. Ele não tinha uma apologética.
Quando morreu, Russell se viu perante o seu Criador e Juiz.
Qualquer que tenha sido a sua contestação, ele não podia dizer a
Deus que não havia evidência suficiente. Não podia nem mesmo
alegar ignorância. Russell conhecia a Deus. Ele conhecia a Deus
porque era criatura de Deus, feito à sua imagem. Ele conhecia a
Deus porque vivia, se movia e tinha sua existência nele (At 17.28).
Paulo diz que a evidência para a existência de Deus está em
todo lugar e em todas as coisas. Mesmo aqueles que nunca abriram
seus olhos têm evidência da existência de Deus, pois são eles
mesmos essa evidência. A evidência não só é abundante, mas,
como nos é revelada por Deus, é também clara e claramente vista,
bem como entendida. Mas ela é suprimida. Paulo segue adiante
para dizer-nos com o que essa supressão se parece.

UMA FÁBRICA DE ÍDOLOS


João Calvino certa vez comentou que o coração humano é
uma fabricum idolarum, uma fábrica de ídolos. Paulo está para nos
dar uma das principais razões por que as pessoas servem
perpetuamente a falsos deuses. Idolatria é a expressão da
supressão do conhecimento de Deus dentro de nós. No versículo
19, descobrimos que a supressão da verdade em injustiça se
manifesta em ingratidão. Aqueles que conhecem a Deus, mas se
recusam a reconhecê-lo, não o honram; não lhe dão graças.
Para aqueles que conhecem a Cristo, talvez seja algo
rotineiro agradecer ao Senhor pelo alimento todas as vezes que se
senta para comer. Por que passar por essa repetição? Por que não
admitir simplesmente que Deus fez todas as coisas e nos dá boas
dádivas, e parar por aqui? A resposta a isso, em parte, é que nosso
ser santificado em Cristo inclui a gratidão contínua que temos por
aquilo que Deus tem feito por e em nós. Ingratidão é similar a
orgulho. Se somos ingratos por aquilo que temos, presumimos ter
conseguido tais coisas meramente pelos nossos esforços. Isso é
uma afronta ao caráter gracioso e bondoso do Deus que supre
todos nós de coisas boas.
Como vimos, é o tolo quem diz em seu coração que não há
Deus. Aqueles que permanecem alheios a Cristo, quando suprimem
o conhecimento de Deus expressam essa supressão ao deixarem
de dar graças (v. 21). Tem-se dito que a essência da vida cristã é a
gratidão. Como pecadores salvos pela graça, deveríamos ser
constantemente gratos pelo relacionamento que temos com Deus e
pela sua graça (1Ts 5.18). Em tal caso, poderíamos igualmente dizer
que a ingratidão marca de maneira típica a atitude daqueles que
estão alheios a Cristo. Essa ingratidão pode se expressar como uma
insistência de que, o que quer que tenhamos, temos porque
trabalhamos duro e conseguimos. Temos porque merecemos ter.
Temos porque fizemos por onde.
Assim, diz Paulo, essa ingratidão se transforma em soberba.
Aqueles que se recusam a reconhecer a Deus professam ser sábios
(v. 22). Eles consideram estar entre a elite intelectual. Não somente
se recusam a dar graças, mas, porque pensam ter merecido ganhar
o que possuem, também pensam ser muito inteligentes. Um engano
leva a outro. Há uma mudança aqui, do pensamento de que
merecemos o que temos para o convencimento de que
conseguimos o que temos por causa de nossas capacidades.
A palavra filosofia é uma combinação de duas palavras
gregas que significam “amor pela sabedoria”. Filósofos são aqueles
que dizem amar o conhecimento por causa do conhecimento em si
mesmo, como disse certa vez o filósofo grego Aristóteles. Eles
fazem as grandes perguntas ― Quem sou eu? Qual é a natureza do
universo? Como posso conhecer alguma coisa? Que é certo e
errado? ―, e então formulam respostas a essas perguntas.
Infelizmente, na longa história da filosofia, as respostas dadas a
essas grandes perguntas acabaram por ser em sua maior parte
tolices. É possível que Paulo tivesse isso em mente enquanto
escrevia. Aqueles que professam ter sabedoria são muitas vezes os
mais tolos. Uma rápida leitura da maioria dos livros textos de
filosofia provará o ponto de Paulo.
Mas nosso interesse é saber como essa tolice surge. Não é
porque professam ser sábios que eles são tolos. Professar
sabedoria pode ser algo soberbo, mas não faz de alguém
automaticamente tolo. Não, Paulo diz que a tolice vem por causa de
uma troca.
Falamos por vezes da “grande troca” do evangelho: Cristo se
tornou o que não era para que pudéssemos nos tornar o que não
éramos. Ele se tornou pecado para que pudéssemos nos tornar
justos nele. É essa a glória do evangelho.
A troca da qual Paulo fala aqui não é gloriosa ou grande, mas
grotesca. É a perversão por excelência. Aqueles que suprimem a
verdade em injustiça “trocaram a glória do Deus imortal por
imagens” (v. 23). A supressão da verdade se revela como uma
idolatria.
Paulo fala mais sobre esse ponto no versículo 25: “Trocaram
a verdade de Deus pela mentira, e adoraram e serviram a coisas e
seres criados, em lugar do Criador”. Essa troca começa quando se
coloca de lado o que deveria nos vir naturalmente. Fomos criados à
imagem de Deus. Como povo criado à imagem de Deus, fomos
criados para glorificá-lo em adoração e serviço. Esta é a nossa
condição “natural” porque assim fomos feitos.
Essa supressão da verdade, no entanto, não coloca de lado
toda adoração e serviço. Ela tenta tirar Deus de cena e colocar
alguma coisa criada no seu lugar. Em nossa impiedade, trocamos
aquele que deveríamos adorar por outra coisa que preferimos
adorar.
Isso nos diz muito sobre aqueles que continuam a andar em
incredulidade. Essas pessoas não são capazes, como criaturas de
Deus, de simplesmente parar de adorar e servir. Visto que se
recusam a adorar e servir ao Deus verdadeiro, que constantemente
se lhes revela, elas devem colocar alguma outra coisa em seu lugar.
Pense em sua própria adoração a Deus e seu serviço a ele,
se você está em Cristo. Suponha que alguém lhe venha e ordene a
desistir disso. O que você diria? Como muitos na igreja primitiva e
mesmo nos dias de hoje, você provavelmente dirá que não pode
fazê-lo, que deve obedecer antes a Deus que aos homens (At 5.29).
A adoração a Deus é necessária para um cristão. Ela é uma parte
essencial de quem somos em Cristo. Se formos ordenados a desistir
disso, simplesmente não poderemos obedecer a tal ordem.
Continuaremos com isso à custa de nossa própria vida.
Agora transfira esse tipo de fidelidade a alguém que está
alheio a Cristo, que adora e serve a um ídolo. O que essa pessoa
pensará se você lhe chegar e disser — como fazemos na
apologética e na pregação do evangelho — que ela deve desistir de
sua adoração e serviço às coisas criadas? Ela poderá reagir como
aqueles em Cristo reagiriam. Poderá se agarrar a isso com toda a
sua vida. Poderá pensar que seria melhor morrer a desistir.
Tal é a natureza da idolatria. Ela não é simplesmente uma
fidelidade casual ou acidental a alguma coisa. Aqueles que adoram
o sol não o fazem casualmente ou porque estão tentando ocupar
seu tempo. Eles se apegam firmemente aos seus objetos de
adoração. Esta pode ser uma das razões por que aparentemente
temos tantos “vícios” hoje em dia. Podemos ter perdido o
vocabulário para chamar essas coisas de como Paulo as chama.
São ídolos, e ídolos são feitos para ser adorados e servidos com
todo o nosso ser; eles podem manter-nos em seu domínio e instilar
em nós mais e mais impiedade.
É com isso que a supressão da verdade se parece. Ela
adora, mas não adora a Deus. Ela serve, mas nega a Deus o que
lhe é devido e então serve a um ídolo. Ela valoriza a sabedoria, mas
é na verdade tolice. Alega ter a verdade, mas é na realidade uma
mentira. Isso leva a uma grande confusão pecaminosa na vida dos
incrédulos.
Sabemos, no entanto, de onde vem essa confusão. Ela vem
do conhecimento suprimido de Deus. Vem da troca que produz
idolatria e mais impiedade no coração de seus partidários.

CONSEGUINDO O QUE QUEREMOS


Até este ponto, Paulo esteve explicando o que queria dizer no
versículo 18 ao escrever sobre a supressão da verdade. Ele
desenvolve a ideia, grosso modo, até o versículo 24. Começando no
versículo 24, ele passa a explicar com o que a ira de Deus se
parece ao ser revelada dos céus. Com o que ela se parece, é-nos
dado em detalhes explícitos.
A supressão da verdade leva a uma troca grotesca. Leva a
um comportamento que é oposto a Deus e ao seu serviço. Mas leva
também a algo que Deus faz, não nós. Observe esta frase nos
versículos 24, 26 e 28: “Deus os entregou”. O que Paulo pretendia
dizer com isso?
Não há dúvida nas Escrituras de que Deus é bom para toda a
sua criação (Sl 145.9). Ele concede boas dádivas a todas as suas
criaturas. Ele faz chuva e sol cair sobre justos e injustos (Mt 5.44-
45). Ele abençoou os egípcios por causa de José (Gn 39.5). Ele dá
coisas boas às pessoas nesta vida, mesmo àquelas que serão
condenadas (Lc 16.25). Isso não deveria ser negligenciado por
aqueles de nós que estão em Cristo. Deus sabe quem está
condenado; ele sabe quem se recusará a confiar nele. Todavia,
ainda dá coisas boas e é providente para com essas pessoas,
mesmo em meio à sua rebelião.
Deus também restringe sua ira (Gn 6.3). Ele não julga a
impiedade imediatamente (Sl 50.21). Assim como restringe sua ira,
também restringe o pecado (Gn 20.6). Embora as pessoas sejam
totalmente pecaminosas, essa pecaminosidade não chega à sua
plena expressão porque, e somente porque, Deus restringe os
ímpios de levarem adiante seus desejos malignos.
Mas Paulo está nos dizendo aqui em Romanos que haverá
situações em que Deus vai tirar essas restrições. Como lemos em
Gênesis 6.3, o Espírito de Deus não contenderá com os homens
para sempre. Virá um tempo em que alguns daqueles que se
recusam a reconhecer a Deus serão “entregues” por Deus para
viverem a impiedade que escolheram para si. Esse “entregar” é uma
expressão da ira de Deus. Assim, quando vemos essas
circunstâncias, devemos vê-las como exemplos da ira de Deus
sendo revelada nesses, e por meio desses, pecados.
Os exemplos de ira dados por Paulo se focam, em primeiro
lugar, naqueles atos que são supremamente antinaturais. É isso que
esperaríamos em uma passagem que nos fala sobre a revelação de
Deus na natureza. Podemos reconhecer a ira de Deus quando
vemos rebelião e perversão da ordem natural das coisas.
Quando Deus retira suas restrições graciosas das pessoas
que se recusam a reconhecer a revelação do caráter dele na
natureza, essas pessoas começam a perverter e a distorcer a
própria natureza que revela Deus em primeiro lugar. Elas fazem isso
numa tentativa de suprimir ainda mais a verdade. Se pudessem
(embora seja totalmente impossível) obscurecer ou borrar o natural
completamente, elas o fariam com a revelação de Deus. Numa
tentativa de destruir essa revelação na natureza, elas distorcem o
natural ao ponto em que esperam que ela se torne irreconhecível.
Se ficar irreconhecível, então Deus não será visto tão claramente.
Quando as restrições misericordiosas de Deus sobre o
pecado são retiradas de algumas pessoas, homens e mulheres
tomam o que se pretendeu que fosse uma benção boa e natural, as
relações sexuais no contexto do casamento, e não só ignoram os
limites recusando-se a casar, mas distorcem completamente a
própria benção para transformá-la em algo que ela nunca foi criada
para ser. A beleza da relação entre Adão e Eva (Gn 2.23) se torna a
feiura da distorção egocêntrica.
A lista de pecados de Paulo que começa no versículo 29
consiste de pecados com os quais todos nós estamos
familiarizados. O interessante é que essa lista é uma descrição da
revelação da ira de Deus! Esses pecados são violações da lei de
Deus, mas também evidências do fato de que Deus está irado com
as respostas que recebe daqueles que tomam suas boas dádivas,
que o conhecem porque ele se lhes revela, mas se recusam
firmemente a honrá-lo, dar-lhe graças ou reconhecê-lo como Deus.
Assim, há evidência de Deus mesmo nas coisas ímpias e
pecaminosas que vemos ao nosso redor. Esses pecados, como
evidência da corrupção da pessoa, são também evidência da ira de
Deus pelo pecado e da remoção da restrição graciosa do pecado na
vida dos que se rebelam.

A MISÉRIA AMA COMPANHIA


Há mais uma coisa que devemos observar no último
versículo de Romanos 1. No versículo 32, Paulo resume sua
discussão ao explicar-nos que aqueles que conhecem a Deus e,
todavia, suprimem a verdade, sabem algo mais. Por conhecerem a
Deus por causa de sua revelação na criação, eles também
conhecem seu justo “decreto”. Isto é, eles sabem o que Deus lhes
requer.
No capítulo seguinte de Romanos, Paulo desenvolve o que
está querendo dizer com isso. O ponto importante para nós,
contudo, é que, junto com essa revelação que Deus dá de si
mesmo, ele dá suas exigências e penalidades. Simplificando, ele dá
sua lei (Rm 2.14-16). Além de conhecer as exigências da lei de
Deus, o ímpio também sabe que aqueles que desobedecem a esta
lei “merecem a morte”.
Mas qual é a resposta dos ímpios que sabem que merecem
morrer por suas ações perversas? Paulo diz que eles “não somente
continuam a praticá-las, mas também aprovam aqueles que as
praticam”. Uma resposta racional seria evitarmos aquelas coisas
que causam nossa destruição. Mas o pecado não é racional. Ele
não responde às coisas de uma forma que parece óbvia. Em vez de
tentarem evitar o comportamento destrutivo, os ímpios se reúnem
em grupos. Eles se tornam ativistas e fazem piquetes e petições em
favor de suas causas ímpias. Eles se focam em seus direitos
pessoais, e tentam levar os outros a fazerem o mesmo.
Se precisamos de um mapa para ajudar-nos a entender
nossa cultura, Romanos 1 é um bom lugar para começar. É
essencial que olhemos para essa passagem se desejamos ser
bíblicos em nossa defesa da fé. Fará toda a diferença do mundo se
pudermos confiar no que o apóstolo Paulo diz sobre a incredulidade,
mesmo antes de levarmos o incrédulo a sério.
Se entendermos que todas as pessoas conhecem o Deus de
quem falamos, se soubermos que elas conhecem a verdade, nunca
nos sentiremos como se a verdade que defendemos e lhes
comunicamos fosse irrelevante. Elas podem agir como se fosse
irrelevante; podem agir como se não tivessem nenhum interesse na
discussão. Mas Paulo nos diz que isto é exatamente o que elas
estão fazendo ― fingindo. Elas estão usando uma máscara num
esforço para destruir a verdade que conhecem e que você lhes está
comunicando em sua apologética.
A psicologia divina é infalível. Ela descreve exatamente o que
se passa na mente humana. Quando essa psicologia é aplicada à
mente incrédula, nossa única opção é confiar nela completamente.
Todas as pessoas conhecem a Deus ― essa é a verdade da
questão. Quando defendemos a fé, falamos a pessoas que não são
ignorantes do nosso Deus. Nossa apologética deve levar isso em
conta quando somos chamados a defender a fé.

A incredulidade cega em erro é,


E sua obra em vão esquadrinhará;
Deus o próprio intérprete dela é;
E manifesta ele a tornará.
(William Cowper)[18]

Claro, o que Deus manifesta é suprimido. A incredulidade é


cega em erro justamente porque é cega. O conhecimento de Deus é
suprimido a tal ponto que os incrédulos em si e por si mesmos não
irão admitir que conhecem a Deus. Isso tornará a questão
complicada, às vezes. Mas eles o conhecem de fato, e nossa defesa
tenta trazer à tona o que eles sabem ser verdade para mostrar-lhes
como o evangelho é o único remédio para a “troca grotesca” deles.
Nossa esperança e oração é que eles venham a adorar e servir ao
Criador, “que é bendito para sempre. Amém” (Rm 1.25).

PARA SE APROFUNDAR
1. Como você poderia dizer se alguém está suprimindo a verdade
em injustiça?
2. Que diferença faz que o conhecimento de Deus adquirido por
meio da criação é conhecimento de uma pessoa e não apenas de
fatos?
3. Por que Paulo inclui a adoração em sua descrição da troca feita
pelo incrédulo? Quais características de adoração um incrédulo
exibiria?
4. Onde, na sociedade, você veria evidências da restrição que Deus
faz do pecado?
5. Como a descrição do coração incrédulo feita por Paulo ajuda
você em sua abordagem apologética?
6. Jerusalém encontra Atenas: apologética em
ação

F. F. Bruce já disse que Atos 17 “é um dos exemplos mais antigos


de apologética cristã contra os pagãos, designado a mostrar que o
verdadeiro conhecimento de Deus é dado no evangelho e não nas
vaidades idólatras do paganismo”.[19] A narrativa do encontro de
Paulo no Areópago fornece um bom exemplo de apologética bíblica.
Paulo estava em sua segunda viagem missionária. Os judeus
de Tessalônica haviam provocado ali oposição contra Paulo, de
modo que ele, Silas e Timóteo partiram para Bereia, cinquenta
milhas ao sul. Infelizmente, alguns judeus os seguiram até Bereia
para levantarem também ali oposição contra Paulo. Assim, alguns
irmãos cristãos levaram Paulo para Atenas, deixando Silas e
Timóteo para trás. Paulo enviou os irmãos de volta com um pedido
para que Silas e Timóteo se juntassem a ele tão logo lhes fosse
possível (At 17.13-15).
Os homens que foram com Paulo o levaram até Atenas,
partindo depois com instruções para que Silas e Timóteo se
juntassem a ele, tão logo fosse possível. Enquanto esperava
por eles em Atenas, Paulo ficou profundamente indignado ao
ver que a cidade estava cheia de ídolos. Por isso, discutia na
sinagoga com judeus e com gregos tementes a Deus, bem
como na praça principal, todos os dias, com aqueles que por
ali se encontravam. Alguns filósofos epicureus e estoicos
começaram a discutir com ele. Alguns perguntavam: “O que
está tentando dizer esse tagarela?”. Outros diziam: “Parece
que ele está anunciando deuses estrangeiros”, pois Paulo
estava pregando as boas novas a respeito de Jesus e da
ressurreição. Então o levaram a uma reunião do Areópago,
onde lhe perguntaram: “Podemos saber que novo ensino é
esse que você está anunciando? Você está nos apresentando
algumas ideias estranhas, e queremos saber o que elas
significam”. Todos os atenienses e estrangeiros que ali viviam
não se preocupavam com outra coisa senão falar ou ouvir as
últimas novidades. Então Paulo levantou-se na reunião do
Areópago e disse: “Atenienses! Vejo que em todos os
aspectos vocês são muito religiosos, pois, andando pela
cidade, observei cuidadosamente seus objetos de culto e
encontrei até um altar com esta inscrição: AO DEUS
DESCONHECIDO. Ora, o que vocês adoram, apesar de não
conhecerem, eu lhes anuncio.

A glória de Atenas já tinha desvanecido por volta do primeiro


século D.C. Em seu auge, Atenas fora o centro cultural da Grécia.
Sob Temístocles e Péricles no século V A.C., Atenas se tornara o
poder imperial de seus dias. Seu declínio começou na Guerra do
Peloponeso (431-404 A.C.), mas grande parte de sua tradição
permaneceu muito forte até o século VI D.C.
“O Deus que fez o mundo e tudo o que nele há é o Senhor dos
céus e da terra, e não habita em santuários feitos por mãos
humanas. Ele não é servido por mãos de homens, como se
necessitasse de algo, porque ele mesmo dá a todos a vida, o
fôlego e as demais coisas. De um só fez ele todos os povos,
para que povoassem toda a terra, tendo determinado os
tempos anteriormente estabelecidos e os lugares exatos em
que deveriam habitar. Deus fez isso para que os homens o
buscassem e talvez, tateando, pudessem encontrá-lo, embora
não esteja longe de cada um de nós. ‘Pois nele vivemos, nos
movemos e existimos’, como disseram alguns dos poetas de
vocês: ‘Também somos descendência dele’. “Assim, visto que
somos descendência de Deus, não devemos pensar que a
Divindade é semelhante a uma escultura de ouro, prata ou
pedra, feita pela arte e imaginação do homem. No passado
Deus não levou em conta essa ignorância, mas agora ordena
que todos, em todo lugar, se arrependam. Pois estabeleceu
um dia em que há de julgar o mundo com justiça, por meio do
homem que designou. E deu provas disso a todos,
ressuscitando-o dentre os mortos.” Quando ouviram sobre a
ressurreição dos mortos, alguns deles zombaram, e outros
disseram: “A esse respeito nós o ouviremos outra vez”. Com
isso, Paulo retirou-se do meio deles. Alguns homens juntaram-
se a ele e creram. Entre eles estava Dionísio, membro do
Areópago, e também uma mulher chamada Dâmaris, e outros
com eles. — At 17.15-34

Quando Paulo esteve em Atenas, a cidade ainda era o centro


filosófico dos seus dias. Sua tradição intelectual era — e
indubitavelmente continua sendo — sem paralelos na história
ocidental. Sócrates, que nascera e crescera em Atenas, ensinou seu
estudante mais brilhante, Platão, nessa cidade. Platão fundou mais
tarde sua Academia em Atenas, em 387 A.C. O estudante mais
famoso de Platão, Aristóteles, estudou em Atenas e mais tarde
fundou sua própria escola, o Liceu, em 335 A.C. Se é verdade,
como alguns têm dito, que a história da filosofia é apenas uma nota
de rodapé para Platão, também é verdade que qualquer outro centro
intelectual no Ocidente é uma nota de rodapé para Atenas. Essa
tradição era tão forte que ainda estava muito viva e presente quando
Paulo chegou, possivelmente por volta de 52 D.C.

A AUDIÊNCIA FILOSÓFICA DE PAULO


Dois grupos específicos de filósofos são mencionados em
nosso texto, os epicureus e os estoicos. Havia ali sem dúvida outras
escolas filosóficas que Lucas não menciona, mas estas duas eram
provavelmente as escolas de pensamento dominantes em Atenas
naquela época. E eram também escolas rivais.
Os epicureus receberam este nome por causa do filósofo
Epicuro (341-270 A.C.). Quanta influência Epicuro realmente teve
sobre a filosofia que traz seu nome, ainda é algo que se debate. A
filosofia dos epicureus, no entanto, era bem simples. Eles
acreditavam que o objetivo (chamado às vezes de telos) da vida era
o prazer. Isso é muitas vezes associado, de forma errônea, com
algum tipo de prazer grosseiro, sensual. Contudo, os epicureus
acreditavam que o prazer da mente deveria sempre ter preferência
sobre os prazeres do corpo. Eles defendiam o valor de uma vida
intelectualmente desprendida. De acordo com os epicureus, a
melhor coisa que a mente pode fazer é esquecer este mundo e
pensar no mundo do alto. O foco primário da mente deve ser as
coisas sobrenaturais, do outro mundo.
Era errado, assim, envolver-se demais com este mundo, ou
levar as coisas de modo extremo, quer intelectual, quer fisicamente.
O caminho para alcançar o máximo prazer era se livrar de todos os
medos, particularmente o medo dos deuses e da morte.
Desprendida de tais medos, a pessoa poderia alcançar um prazer
sereno nesta vida. Uma das principais obras de filosofia epicurista
era Sobre a Natureza das Coisas, de Lucrécio (parte da qual
analisaremos abaixo).
O estoicismo começou em Atenas por volta de 300 A.C., com
um estudante de Sócrates chamado Zeno. O estoicismo tomou seu
nome da palavra grega para “pórtico” (stoa), que originalmente se
localizava na ágora (mercado). Zeno ficara particularmente
impressionado com a firme determinação de Sócrates em meio às
circunstâncias difíceis. Isso levou Zeno a desenvolver uma filosofia
que se concentrava na atitude da pessoa em face dos desafios e
oportunidades da vida.
Os estoicos eram influenciados principalmente pelo filósofo
pré-socrático Heráclito. Heráclito acreditava que a ordem do
universo resultara de algo que chamou de Logos. Pensava-se que o
Logos era um princípio que nos fornecia um modo de entender o
mundo à nossa volta.[20] Falando de modo geral, a filosofia estoica
ensinava que “Deus” permeava e animava todas as coisas,
inexoravelmente orientando todos os acontecimentos da natureza.
O verdadeiro estoico aprendia a acompanhar a natureza, não a lhe
resistir. Uma vez que nossa vontade estiver alinhada com o caminho
da natureza, verdadeiramente poderemos nos tornar felizes. Por
causa dessa visão da natureza, os estoicos têm sido vistos como
pessoas que acreditavam que o “destino” determinava a direção e
os detalhes de sua vida (são fatalistas). Como tudo fora
predeterminado, e não havia nada que pudessem fazer para mudar
o que aconteceria, eles assumiam uma atitude que sera, sera — “o
que há de ser, será”. A vida deveria ser tolerada, não resistida.

É
POR QUE FAZER APOLOGÉTICA?
Vimos no capítulo 1 que o Senhor ordenou seu povo a fazer
apologética. Esta é a nossa primeira resposta à pergunta “Por que
fazer apologética?”. Nesta seção de Atos, no entanto, vemos outra
razão, a qual tem a ver com a forma como vemos o mundo à nossa
volta. Lembre-se de que Paulo estava em Atenas esperando seus
dois amigos. Como não tinha planejado ir a Atenas, Paulo poderia
ter dado uma pausa muito necessária em sua agenda sufocante.
Mas o zelo de Paulo pelo evangelho não o deixou descansar.
Enquanto circulava por Atenas, ele ficou grandemente perturbado
com a idolatria desenfreada na cidade. É provável que Paulo tivesse
essa experiência de Atenas em mente quando mais tarde escreveu
aos romanos. Ele sabia por que havia ídolos lá; sabia por que os
filósofos erigiam e adoravam esses ídolos — “Dizendo-se sábios,
tornaram-se loucos e trocaram a glória do Deus imortal por imagens
feitas segundo a semelhança do homem mortal” (Rm 1.22-23). Os
ídolos estavam lá porque os “amantes da sabedoria” haviam
suprimido de forma tola o conhecimento de Deus. Visto que, como
criaturas feitas à imagem de Deus, eles não eram capazes de deixar
de adorar, começaram então a adorar imagens de coisas criadas.
Paulo ficou indignado com essa idolatria. Assim, a exemplo
do que fizera em outras cidades, ele começou a arrazoar com os
judeus na sinagoga. Mas visto que estava em Atenas, também foi
para a ágora para arrazoar com aqueles que lá se encontravam. Ali
Paulo encontrou os filósofos epicureus e estoicos, e isso por sua
vez o levou a seu discurso no Areópago.
De certa forma, é mais difícil para nós hoje ver os ídolos que
são adorados em nossa cultura. Eles não aparecem, como se dava
em Atenas, como maravilhosas obras de arte no centro de nossas
cidades. Não há mandatos do nosso governo para adorá-los. Mas
em outros aspectos, os ídolos são tão óbvios agora como o eram,
então, para aqueles que tinham olhos para ver. Não deveríamos
automaticamente rotular como ídolo qualquer coisa que pensamos
ser má ou não saudável. Ídolo é qualquer coisa que toma o lugar de
Deus na vida de alguém. É, então, algo com que um incrédulo está
comprometido de todo coração, não apenas algo que é usado ou
abusado.
Há ídolos em toda cultura e na vida de toda pessoa que
rejeita o conhecimento de Deus dado no mundo. Ver esses ídolos
deveria nos motivar a nos engajar em apologética. Paulo não se
contentou em esperar no “Atenas Hilton Hotel” até que seus amigos
chegassem. Ele foi levado à ação por causa do que viu naquela
cidade. Foi essa motivação que deu a Paulo uma oportunidade “não
planejada” de defender a fé cristã.

A PRIORIDADE DA PERSUASÃO
Antes de olhar especificamente para a apologia de Paulo no
Areópago, precisamos entender um elemento importante da
apologética. É o elemento da persuasão. Existem três tipos básicos
de argumentos discutidos em cursos introdutórios de lógica. O
primeiro tipo de argumento é o argumento válido. Um argumento
válido consiste de premissas (declarações iniciais) e de uma
conclusão (uma declaração relacionada às anteriores). A validade
de um argumento não diz nada sobre a veracidade de suas
premissas ou de sua conclusão. Diz apenas que se as premissas
forem verdadeiras, então a conclusão deve seguir delas. Aqui está
um exemplo:

1. Todos os cavalos são unicórnios.


2. Beleza Negra é um cavalo.
3. Logo, Beleza Negra é um unicórnio.

Esse é um argumento válido, muito embora Beleza Negra


não seja um unicórnio. Como argumento válido, ele simplesmente
diz que se as duas primeiras declarações forem verdadeiras, então
a terceira deverá ser verdadeira. Ele não diz se as duas primeiras
declarações são verdadeiras ou não. Assim, validade e veracidade
são duas coisas muito diferentes quando lidamos com argumentos.
O próximo tipo de argumento é chamado de argumento
sólido. Num argumento sólido, as premissas são aceitas como
verdadeiras. Se as premissas são verdadeiras e o argumento é
válido, a conclusão deve seguir delas e ser igualmente verdadeira.
Aqui está um exemplo de argumento sólido:

1. Todas as pessoas são criadas à imagem de Deus.


2. Maria é uma pessoa.
3. Logo, Maria é criada à imagem de Deus.

O argumento sólido tem algo em comum com o argumento


meramente válido, e uma grande diferença. Como em qualquer
argumento válido, a conclusão num argumento sólido deve seguir
das premissas. A grande diferença entre um argumento sólido e um
meramente válido é que num argumento sólido as premissas são
aceitas como verdadeiras.
Claro, certas premissas são aceitas como verdadeiras por
uma pessoa, mas não por outra. O argumento acima não seria
provavelmente aceito como argumento sólido se fosse dado a um
incrédulo. Ele poderia concordar com a validade do argumento, mas
não concordaria com sua solidez, pois rejeitaria a primeira premissa.
Como, no entanto, os cristãos aceitariam as duas premissas como
verdadeiras, o argumento lhes seria sólido.
Às vezes se pensa que o que é necessário na apologética é
um argumento sólido. Se pudermos concordar com a veracidade
das premissas, como a conclusão deve então seguir delas,
poderemos provar a alguém que (por exemplo) Deus existe. Até
aqui, não há nada de errado com esse pensamento.
O problema, no entanto, é que quando estamos discutindo
questões vitalmente importantes como a existência de Deus ou a
veracidade das Escrituras, raramente os incrédulos aceitarão
nossas premissas. O melhor que podemos fazer é apresentar um
argumento válido, que não diz nada sobre a veracidade da questão.
Por esse motivo, o próximo tipo de argumento parece ser o
mais crítico para uma apologética bíblica. Trata-se do argumento
persuasivo. Devemos entender que um argumento persuasivo não
descarta as regras de um argumento válido ou sólido. Seu
propósito, no entanto, é de atrair a outra pessoa. Ele tem o intuito de
apresentar um apelo que nem o argumento válido, nem o sólido são
capazes de conduzir. Ele tem o intuito de trazer o oponente para
dentro de nossa área de preocupação.
Num contexto apologético, a persuasão é essencial. Uma
apologética persuasiva toma algo que o não cristão já afirmou ser
verdade e usa-o em favor da defesa cristã. O que separa o
argumento persuasivo dos outros tipos de argumentos é que,
sempre que possível e permitido, ele incorpora as crenças do
oponente em seu próprio benefício (do argumento). Isso
automaticamente “traz o oponente” para dentro da discussão, por
afirmar algo que ele próprio já disse.
Esse tipo de argumento é também plausível. Isso tem o
significado de algo que é “digno de aplauso”. Tornar uma coisa
plausível, então, é apresentá-la de uma forma que a outra pessoa
pense ser muito provável. Esse é um conceito importante na
persuasão. Ao tentarmos fazer nossos argumentos mais plausíveis,
estamos sendo “astutos como as serpentes” na recomendação da
fé.
Desnecessário dizer que os incrédulos se opõem ao
evangelho. Por inúmeras razões, eles simplesmente não aceitarão
sua veracidade. Eles convenceram a si mesmos de que o evangelho
é algo que não merece ser crido ― para eles o evangelho carece de
plausibilidade. Assim, parte do que queremos fazer em nossa
discussão é tomar o que pudermos daquilo que eles de fato creem e
incorporar isso à verdade do evangelho. Dessa forma, juntaremos o
que eles pensam estar completamente separado.
Se você simplesmente apresentar argumentos cristãos
válidos ao não cristão, será recebido por uma forte discordância.
Mas se adotar em sua argumentação algo que seu oponente já
concordou ser verdade, seus outros pontos poderão parecer mais
críveis.
Há duas outras coisas que também devem ser ditas sobre a
persuasão no contexto da apologética cristã. A primeira é que a
persuasão é um elemento importante na apologética cristã por
causa do que vimos em Romanos 1. As pessoas são feitas à
imagem de Deus. Todos nós conhecemos a Deus. Esse
conhecimento de Deus é suprimido de uma forma que distorce a
verdade sem aniquilá-la. Portanto, haverá coisas na vida e no
pensamento do incrédulo que serão um produto desse processo de
supressão da verdade sobre Deus. Em alguns aspectos, haverá a
verdade, mas ela estará distorcida pelo pecado. Precisamos nos
tornar hábeis em ver essas verdades em suas distorções e então
trazê-las para dentro de nossa discussão, que irá desfazer essas
distorções. Paulo fez isso em Atenas de várias maneiras, como
iremos ver abaixo.
A segunda coisa que devemos perceber é que, em última
análise, o Espírito Santo é o persuasor definitivo. Quando falamos
da necessidade de persuasão, estamos falando mais de método do
que de objetivo. Sem dúvida é nosso desejo que uma pessoa seja
de fato persuadida. Mas em última análise nós não temos o poder
de persuadir; só o Espírito de Deus pode persuadir uma pessoa da
veracidade do cristianismo. Mas isso não deveria nos afastar do
método em si.
Isso faz parte da motivação da pregação. Quando pregamos,
tentamos apresentar o evangelho de uma forma que recomende sua
veracidade. Poderíamos, teoricamente, simplesmente ler as
Escrituras e seguir em frente. Como a Palavra de Deus carrega seu
próprio poder e autoridade, poderíamos dizer que nossa
responsabilidade foi cumprida pela leitura. Mas isso seria ignorar
todo o peso do chamado das Escrituras aos ministros do evangelho;
seria ignorar o próprio método de Cristo de fazer pregação, bem
como os de outros nas Escrituras.
Agripa entendeu bem que Paulo estava tentando persuadi-lo
(At 26.28). O próprio Paulo nos diz que parte de nossa
responsabilidade, bem como a dele, é persuadir os outros (2Co
5.11). Discutiremos o estilo persuasivo de Paulo mais abaixo. Ele é
uma parte central de nossa apologética; exige muito esforço e
requer “pré-meditação” nas Escrituras e na sua verdade. Mas
parece ser uma abordagem vital nas Escrituras, e por isso
deveríamos nos esforçar para fazer da persuasão um elemento da
nossa comunicação do evangelho, da nossa pregação e da nossa
apologética.

A APOLOGIA DE PAULO
Lucas nos conta a verdadeira razão por que Paulo foi
solicitado a se dirigir à multidão no Areópago. Não foi porque suas
discussões no mercado tivessem sido muito bem sucedidas; não foi
porque Paulo estivesse ganhando convertidos onde quer que fosse;
não foi porque Paulo tivesse sido tão eloquente que eles queriam
ouvir mais. Paulo foi convidado a falar porque muitos o haviam
achado estranho. O termo que os filósofos usaram para Paulo ―
“tagarela” (v. 18) ― era um termo depreciativo. A palavra poderia
ser traduzida mais literalmente como “catador de sementes”. Neste
contexto, refere-se a alguém que parece ser incoerente, apanhando
“restolhos” intelectuais de vários lugares e lançando-os ao público.
Mas, como nos diz Lucas, os atenienses adoravam gastar tempo
ouvindo as últimas novidades, e por isso ficaram intrigados com a
“tagarelice” de Paulo. Assim, trouxeram-no ao Areópago ― a colina
do deus grego Ares (os romanos o chamavam Marte) ― onde certas
questões religiosas ainda eram resolvidas. O Areópago era também
um concílio de atenienses cujos deveres incluíam resolver certas
disputas religiosas e filosóficas.
Paulo começa sua apologética atraindo a atenção desses
atenienses. Quando se lhes refere como “muito religiosos”,
propositadamente usa uma palavra que é ambígua. É uma palavra
que poderia ser ou elogiosa, ou crítica. Indubitavelmente, a
audiência de Paulo não estava certa do sentido que ele queria dar à
palavra — que é, provavelmente, o motivo de Paulo tê-la usado! Há
evidências de que uma pessoa não deveria fazer elogios no
Areópago, pois isso era visto como um tipo de suborno.
Paulo usa essa palavra, no entanto, para que seus ouvintes
precisem ouvir mais se quiserem saber o que ele quer dizer. Paulo
poderia estar dizendo que eles eram pessoas religiosas. A maioria
dos que estavam ali teria concordado com isso e ficado satisfeita.
Ou ele poderia estar dizendo que eles eram supersticiosos, algo que
não teriam gostado de ouvir. A estratégia de Paulo, aqui, era atrair a
atenção deles usando um termo que precisava de esclarecimento.
Há três coisas, basicamente, que Paulo realiza em sua
apologética no Areópago. Ele quer que sua audiência saiba, antes
de qualquer outra coisa, que Deus existe. Então, quer que
entendam quem eles são à luz desse Deus. Por fim, quer que eles
entendam o evangelho. Não pode haver resumo melhor da nossa
responsabilidade na apologética. Na defesa da fé cristã, essas três
coisas devem ser de extrema prioridade em nossas discussões.
Com muita frequência uma delas é enfatizada em detrimento das
outras.
Tradicionalmente na apologética a discussão tem se focado
somente na existência de Deus. Mas se esse é o único tópico, o
evangelho nunca será apresentado como parte da nossa defesa.
Por outro lado, algumas vezes tudo que é discutido é o próprio
evangelho, sem uma tentativa de lutar e responder os desafios que
surgem. Isso também pode distorcer o quadro. E às vezes a ênfase
está simplesmente sobre quem somos ― sobre nossas
necessidades e desejos. Em todos esses casos pode haver uma
distorção de nossa mensagem.
Deveríamos notar, entretanto, que o discurso de Paulo não
tem a intenção de nos dar categorias rígidas. Como Paulo discute a
existência de Deus, nossa responsabilidade perante esse Deus e o
evangelho, não deveríamos concluir que todos esses tópicos devem
fazer parte de toda apresentação apologética. As Escrituras não
estão nos dando um mandato aqui. Todavia, nessa passagem,
temos de fato um equilíbrio de tópicos que deveriam estar no
primeiro plano de nossa mente.
Paulo começa anunciando que irá declarar-lhes algo que já
disseram ser desconhecido. Esse foi um anúncio surpreendente. Os
filósofos tinham habilidades intelectuais que estavam muito além
das do público em geral. Eles usavam essas habilidades para
trabalhar com as questões mais importantes da vida. Poderíamos
bem desejar que tais questões fossem feitas com mais frequência
hoje. Poderíamos também desejar que elas fossem feitas para nós.
O trabalho do filósofo era responder essas importantes
questões. Quando eram dadas respostas, as pessoas se sentavam
e tomavam nota. Poucos, exceto outros filósofos, tinham a
capacidade, ou se davam ao luxo, de discordar das conclusões
propostas. Assim, os filósofos debatiam essas importantes questões
e ofereciam, por sua vez, respostas ao resto do povo.
Paulo ― não um filósofo, mas um “catador de sementes” ―
veio junto ao Areópago e ousadamente anunciou a esses
intelectuais que lhes poderia dar informação que eles decidiram
estar indisponível. Sem dúvida isso fez os “amantes da sabedoria”
prestarem atenção. Sem dúvida alguns ficaram agitados. Outros
podem ter ficado com raiva. Quem era esse homem para chegar e
invadir o território deles? Eles já tinham decidido que havia um deus
desconhecido; agora, esse catador de sementes estava
reivindicando não só ter conhecimento dele, mas ser capaz de lhes
declarar esse conhecimento! Sem dúvida eles eram todo ouvidos
nesse momento.
Há uma lição apologética aqui de que devemos nos lembrar:
não importa quão inteligente ou habilidoso o incrédulo for, você
sempre terá sabedoria e conhecimento que ele desesperadamente
precisa ouvir. Em todos os casos ele precisará ouvir a lógica em
favor da verdade do evangelho. O incrédulo pode ser mais esperto.
Pode ser o campeão do time de debatedores. Mas se ele é pego em
incredulidade, você sempre saberá algumas coisas cruciais sobre
Deus, sobre as pessoas e sobre o mundo que ele jamais poderia
saber por sua própria sabedoria.
A exemplo de Paulo, não devemos ficar intimidados com as
habilidades, por mais impressionantes que sejam, daqueles com
quem falamos. Ninguém jamais chegou a Cristo por meio de
habilidades superiores. De fato, como escreveu Paulo aos coríntios
(logo após deixar Atenas):

Onde está o sábio? Onde está o erudito? Onde está o


questionador desta era? Acaso não tornou Deus louca a
sabedoria deste mundo? Visto que, na sabedoria de
Deus, o mundo não o conheceu por meio da sabedoria
humana, agradou a Deus salvar aqueles que creem por
meio da loucura da pregação. Os judeus pedem sinais
miraculosos, e os gregos procuram sabedoria; nós,
porém, pregamos a Cristo crucificado, o qual, de fato, é
escândalo para os judeus e loucura para os gentios,
mas para os que foram chamados, tanto judeus como
gregos, Cristo é o poder de Deus e a sabedoria de
Deus. (1Co 1.20-24)
Deus frustra o sábio em sua sabedoria. Não importa o quanto
seja aguçada, essa “sabedoria” jamais pode levá-lo a Deus.
Somente a sabedoria de Deus no evangelho pode fazê-lo. E essa
sabedoria, recebida pela graça por meio da fé, pertence a todos
aqueles que estão em Cristo.

TACHAS DE BRONZE
Algumas centenas de anos atrás, quando os rifles eram
fabricados em abundância, um artesão primeiro determinava o
tamanho e o calibre do cano. Então configurava a coronha e o
sistema de gatilho. Após esses elementos principais estarem
finalizados, ele consultava o comprador para saber como o rifle
deveria ser adornado ou decorado. Os rifles eram frequentemente
embelezados com tachas de bronze (“brass tacks”) e outras
decorações que os tornavam únicos. As tachas de bronze eram os
detalhes que distinguiam os rifles uns dos outros.
Hoje em dia, a frase “getting down to brass tacks” passou a
significar algo como “descer aos detalhes”. Na defesa de Paulo no
Areópago, Lucas nos dá algumas das “tachas de bronze” de nossa
abordagem apologética. Vamos mencionar apenas três delas,
embora haja outras que poderiam igualmente ser observadas.
A primeira “tacha” a observar é o entendimento de Paulo
sobre Deus. Esse ponto não pode ser demasiadamente enfatizado.
É profundamente lamentável que em nossos dias a visão bíblica de
Deus esteja sendo sacrificada em favor de uma miragem ou ilusão
da liberdade humana. Muitos cristãos têm negado certas
características que sempre foram atribuídas a Deus ― como sua
eternidade, imutabilidade, infinitude e controle sobre todas as coisas
― porque essas características são vistas como restritivas da
liberdade humana ou muito difíceis de entender. Não devemos nos
deixar enganar por essa tendência. Se o fizermos, não teremos
defesa alguma para oferecer. O que é pior, também não teremos
evangelho a oferecer.
Paulo não teve medo de começar a defesa de sua fé
mencionando o controle absoluto de Deus sobre o universo. Ele
sabia que os epicureus e estoicos tinham suas próprias teorias
sobre o universo. Mas também sabia que eles usavam essas teorias
para suprimir o que realmente sabiam (mas não iriam reconhecer).
Assim, Paulo começa sua defesa dizendo aos ouvintes o que eles já
sabiam. Como vimos nos dois últimos capítulos, eles já conheciam a
Deus. Eles conheciam o Deus. E seu altar dedicado a um Deus
desconhecido não era uma tentativa de encontrar Deus, mas de se
esconder daquele que eles conheciam.
Assim, Paulo começa lembrando-lhes o que Deus já lhes
vinha dizendo o tempo todo através do mundo criado:
O Deus que fez o mundo e tudo o que nele há é o
Senhor dos céus e da terra, e não habita em santuários
feitos por mãos humanas. Ele não é servido por mãos
de homens, como se necessitasse de algo, porque ele
mesmo dá a todos a vida, o fôlego e as demais coisas.
(At 17.24-25)
Deus é o Criador. Como Criador, ele é Senhor. As duas
coisas andam de mãos dadas. Como criou todas as coisas, ele
governa sobre todas as coisas. E, diz Paulo, como Deus criou todas
as coisas, ele não precisa de nada.
Paulo segue adiante e diz a eles que “de um só fez Deus
todos os povos, para que povoassem toda a terra, tendo
determinado os tempos anteriormente estabelecidos e os lugares
exatos em que deveriam habitar” (v. 26). Numa palavra, Paulo
começa enfatizando a soberania de Deus. Não precisamos enfatizar
esse ponto em cada discussão apologética, mas devemos sempre
lembrar-nos de sua verdade central. A soberania de Deus não deve
ser comprometida ou diluída por conveniência ou para evitar ofensa.
Ela é uma verdade que desafia pecadores ― pecadores que
querem, eles mesmos, ser pequenos soberanos.
Uma vez que Deus governa sobre as coisas que fez, ele não
tem necessidade de coisa alguma. Lembro-me bem de uma
apresentação do evangelho que ouvi anos atrás. Na conclusão da
mensagem, o homem disse à sua audiência: “Quero tocar uma
música para vocês. Quero que pensem nessa música como sua
música para Deus”. Ele então tocou uma música chamada “Você
precisava de mim”. É difícil imaginar uma apresentação mais
antagônica à verdade do evangelho.
Esse não é um problema novo. Mesmo o antigo Israel já
esteve convencido em certo momento de que Deus precisava deles
e dos seus sacrifícios. O Senhor então veio e repreendeu Israel por
sua desobediência:
Não tenho necessidade de nenhum novilho dos seus
estábulos, nem dos bodes dos seus currais, pois todos os
animais da floresta são meus, como são as cabeças de gado
aos milhares nas colinas… Se eu tivesse fome, precisaria
dizer a você? Pois o mundo é meu, e tudo o que nele existe.
Acaso como carne de touros ou bebo sangue de bodes? (Sl
50.9-13)
Israel, em sua rebelião e impiedade, convencera-se de que
Deus realmente precisava dos seus sacrifícios. Eles tinham
imaginado um deus que sentia fome. Esse Deus, assim como o
“deus desconhecido” dos filósofos, era um ídolo.
Qualquer Deus que não seja soberano é um ídolo. Paulo
sabe disso, e ataca assim a idolatria em sua raiz. Ele declara Deus
como soberano. Com essa declaração, não há espaço para ídolos.
A segunda “tacha” de Paulo é lembrar aos seus ouvintes
quem eles são perante esse Deus soberano. Eles são aqueles que
vieram de “um só [homem]” (v. 26). Eles vivem na presença de Deus
(v. 27). A rigor, vivem, se movem e têm sua existência nesse Deus
(v. 28). Essa é a aplicação paulina da soberania de Deus sobre a
vida deles. Não se trata apenas de que Deus governa do alto (pois
ele não habita em templos feitos pelo homem ― v. 24), mas que seu
governo como Senhor é mesmo anterior à sua criação. É mesmo
anterior a nós, suas criaturas.
Essa é apenas outra forma de dizer o que Paulo afirma em
Romanos. Visto que Deus está ativamente se revelando em toda a
criação, ele está presente em, e com, essa criação. Isso significa
que todas as pessoas vivem sua vida perante a face de Deus.
Também significa que para as pessoas serem de fato pessoas, elas
devem viver, se mover e existir em Deus. Em outras palavras, a vida
e a própria existência delas depende de Deus. O autor de hinos
coloca isso da seguinte forma:

Não há planta ou flor aqui embaixo


Que as glórias dele conhecidas não tornem
Surgem nuvens e sopram tempestades
Pela ordem do teu trono;

Enquanto tudo que de ti recebe vida


Sempre sob seus cuidados está,
E em qualquer lugar que o homem esteja,
Tu, ó Deus, ali presente está.
(William Cowper)[21]

Será de grande ajuda para nós, em nossas discussões


apologéticas, lembrar a dependência que temos de Deus. Embora
as pessoas na audiência de Paulo não reconhecessem tal coisa,
isso não impediu Paulo de lembrar-lhes de que tinham essa
dependência. Paulo estava apelando ao que sabia ser verdade na
vida e no coração dessas pessoas. Elas viviam, como criaturas de
Deus, perante a sua face.
O teólogo americano do século XVIII, Jonathan Edwards,
tinha problemas com a noção de inferno como “uma ausência de
Deus”. Ele tinha problemas com essa noção porque sabia que Deus
não está, de fato, ausente de nenhuma parte de sua criação (veja Sl
139). Em vez disso, afirmou Edwards, deveríamos pensar no inferno
como a própria presença de Deus.
Mas o que faria a presença de Deus um inferno? Poderíamos
pensar nisso da seguinte forma. Dado o que Paulo diz em Romanos
e nesta seção de Atos, todas as pessoas conhecem a Deus, mas
fazem um tremendo esforço para negar tal conhecimento. Todas as
pessoas vivem, se movem e existem em Deus, mas não
reconhecerão esse fato. Assim, para uma pessoa que suprimia seu
conhecimento de Deus, passar a eternidade face a face com Deus
seria um tormento absoluto. Estar perante aquele que lhe concedeu
todas as coisas boas, mas pelas quais você não deu graças (Rm
1.19), e contra quem você constantemente se rebelou, seria um
tormento.
Essa é uma das razões por que Paulo desenvolve o ponto
em questão. Ele quer que sua audiência saiba que o Deus soberano
não é alguém que está fora de alcance ou além do conhecimento.
Os filósofos não afirmavam que esse deus era desconhecido porque
estaria muito distante. Eles diziam que ele era desconhecido porque
não estavam enxergando o óbvio.
A terceira “tacha” para Paulo é a verdade do evangelho. Há
pouca dúvida de que o que Lucas registrou aqui é um discurso
editado. Não temos tudo o que Paulo disse na Colina de Marte. Mas
temos de fato um resumo de sua apresentação do evangelho. Ele
não conclui seu discurso falando do caráter de Deus ou da nossa
resposta a Deus, mas chamando seus ouvintes ao arrependimento:
No passado Deus não levou em conta essa ignorância, mas
agora ordena que todos, em todo lugar, se arrependam. Pois
estabeleceu um dia em que há de julgar o mundo com justiça,
por meio do homem que designou. E deu provas disso a
todos, ressuscitando-o dentre os mortos. (At 17.30-31)
O julgamento virá, lembra Paulo aos atenienses. Virá por
intermédio de Jesus Cristo. A única forma de escapar desse
julgamento é se arrepender.
Sem dúvida muitos na audiência acreditavam que a história
era como um círculo. Girando e girando ela segue, e ninguém tem
ideia de onde vai parar. Morremos e então retornamos como alguém
ou algo diferente. Mas Paulo lhes diz que a história chegará ao fim.
Ela não segue girando e girando, mas está se movendo para um fim
específico. Esse fim é o retorno de Jesus Cristo. O Cristo que foi
crucificado agora ressuscitou, e voltará. Ele virá novamente não
como Salvador, mas como Senhor e Juiz do mundo.
Essa era agora a oportunidade de os ouvintes de Paulo
responderem em arrependimento. Mas eles fizeram isso?

O SEGREDO DO SUCESSO
Tem havido muita discussão sobre o discurso de Paulo no
Areópago. Alguns têm dito que Paulo ficou tão desencorajado após
isso que, quando foi a Corinto, decidiu parar de arrazoar, e se
limitou a pregar a “Jesus Cristo, e este, crucificado” (1Co 2.2). Isso,
contudo, parece perder de vista a própria ênfase paulina no
ministério.
Mas como deveríamos medir o sucesso de Paulo na Colina
de Marte? Como você sabe se foi bem sucedido em apresentar sua
defesa do cristianismo? Note a reação ao discurso de Paulo:
Quando ouviram sobre a ressurreição dos mortos,
alguns deles zombaram, e outros disseram: “A esse
respeito nós o ouviremos outra vez”. Com isso, Paulo
retirou-se do meio deles. Alguns homens juntaram-se a
ele e creram. Entre eles estava Dionísio, membro do
Areópago, e também uma mulher chamada Dâmaris, e
outros com eles. (At 17.32-34)
Será que essa resposta foi um indicativo de sucesso?
Por alguns padrões, não. Mas devemos lembrar qual é o
nosso objetivo na apologética. Embora devamos desejar e orar por
conversões, o objetivo da apologética não é converter outras
pessoas; nem tampouco ganhar o argumento. Só Deus pode
produzir conversões. Nosso objetivo na apologética é simplesmente
dizer a verdade de uma forma bíblica. Se fizermos isso, teremos
obtido sucesso aos olhos de Deus.
Não deveríamos ter a intenção de “ganhar” argumentos. Isso
parece algo estranho ao pensamento bíblico. Poderíamos estar tão
consumidos pelo desejo de ganhar o argumento que acabaríamos
ou comunicando o evangelho de uma forma ofensiva, ou de fato
negligenciando sua comunicação. O evangelho carrega sua própria
ofensa (2Co 2.15–16). Nosso trabalho não é adicionar ofensa a ele.

A “CONEXÃO” ATENIENSE — MAIS SOBRE PERSUASÃO


Há mais um elemento importante nesta passagem que
merece atenção especial por causa de sua importância na
apologética. Como observamos acima, ele é especialmente
importante porque é subestimado na apologética atual. Estamos nos
referindo aos meios magistrais de persuasão de Paulo.
Já vimos a ênfase de Paulo na soberania de Deus. Dada
essa ênfase, Paulo nunca teria pensado que alguém poderia
acreditar na verdade do evangelho pela argumentação ou
persuasão. Dito isso, não deveríamos, porém, concluir que
argumentos e persuasão não são importantes em nossa defesa e
comunicação da fé. Embora esses elementos não tenham o poder
de converter alguém a Cristo, Deus pode usá-los para os seus
sábios propósitos, e, de fato, muitas vezes os usa na conversão
(veja Is 55.10-11; Rm 10.12-15).
A palavra persuadir significa algo como “instar
completamente”. Envolve muito mais que simplesmente dizer a
verdade, embora inclua isso. Normalmente, quando falamos sobre
persuadir alguém, estamos falando sobre uma forma de dizer a
verdade.
Por exemplo, suponhamos que eu tivesse o desejo de que
você visitasse meu restaurante favorito. Eu gostaria que você
comesse lá porque estou convencido de que apreciaria a comida
tanto quanto eu. Eu poderia estar dizendo a verdade sobre o
restaurante se dissesse “Você deve visitar o restaurante. Eles têm
boa comida lá”. Isso seria totalmente verdade, mas não haveria
muito valor persuasivo nessa descrição.
Mas suponhamos que eu dissesse “Estou convencido de que
você adoraria esse restaurante. Eu sei que você adora filé mignon
com molho béarnaise. Esse restaurante só usa bife angus, e cada
um de seus filés tem no mínimo dois centímetros de espessura,
preparados com perfeição. O béarnaise deles é o molho mais leve e
rico que já provei. Eles acomodam você em espaço reservado, com
vista para o lago…”. Conseguiu captar a ideia?
Em ambos os casos, estou lhe dizendo a verdade. No último
caso, porém, existe um forte elemento persuasivo. Esse elemento
pode ser resumido numa palavra ― conexão. O elemento chave da
minha lábia em favor do restaurante estava na declaração “Eu sei
que você adora filé mignon com molho béarnaise”. Não tivesse eu
qualquer conhecimento dos gostos da pessoa com quem estava
falando, a persuasão teria sido quase impossível.
Mas sabemos de fato alguma coisa, na verdade muitas
coisas, sobre os nossos amigos incrédulos. Os dois últimos
capítulos foram escritos para enunciar algumas das coisas que
sabemos. Sempre que tentamos defender e recomendar a fé cristã,
estamos tentando convencê-los da verdade na qual cremos. A
melhor forma de fazer isso é usar como ferramenta de persuasão o
que sabemos sobre as próprias crenças deles.
Foi essa a abordagem de Paulo no Areópago. Não deveria
nos surpreender que o apóstolo Paulo tenha sido um mestre da
persuasão. De que forma Paulo se pôs a “instar completamente” na
Colina de Marte? Sendo ele próprio um mestre do intelecto, Paulo
tinha a vantagem de conhecer muito bem sua audiência. Embora
isso não seja absolutamente necessário para se construir um
argumento persuasivo, parece ser verdade que quanto melhor
conhecermos a nossa audiência, maior será a nossa persuasão.
Temos nos versículos 24-27 um excelente exemplo do tipo de
persuasão que deveríamos tentar imitar. Nesses versículos, Paulo
está dizendo aos seus ouvintes que tipo de Deus é esse que eles
equivocadamente rotulavam como desconhecido. Uma das razões
por que Paulo descreve Deus da maneira como o faz é que o Deus
verdadeiro compartilha muitas das características que os próprios
filósofos atribuíam a outros deuses. Assim, Paulo usa as próprias
palavras dos filósofos, suas próprias ideias, como uma espécie de
gancho, tanto para atraí-los como para mostrar-lhes seu erro.
Por exemplo, quando Paulo começa a argumentar com os
filósofos sobre a natureza de Deus, usa uma terminologia com a
qual a maioria deles estava familiarizada. Zeno e Eurípedes já
haviam argumentado que o divino não pode ser confinado em
santuários humanos: “Que casa feita por construtores pode conter a
forma divina entre suas paredes?”.[22] Paulo provavelmente
conhecia essa frase, e por isso, em sua descrição do Deus
verdadeiro, lembrou aos filósofos que “O Deus que fez o mundo e
tudo o que nele há é o Senhor dos céus e da terra, e não habita em
santuários feitos por mãos humanas” (v. 24). Eles concordavam que
alguns dos seus deuses não habitavam aqui; Paulo estava lhes
dizendo que, de fato, o Deus verdadeiro não habita aqui.
Ora, Paulo poderia ter facilmente chegado a esses filósofos e
dito “Eurípedes é um pagão. Ele está cometendo um erro grosseiro
em seu entendimento e sua descrição de Deus”. Isso teria sido
verdade. Como o deus de Eurípedes era um ídolo, qualquer
descrição dele teria sido errada. Mas Paulo era sábio como uma
serpente e inocente como uma pomba (Mt 10.16). Ele sabia que
seria mais eficaz usar ideias com as quais os filósofos já
concordavam. Assim, tomou aquelas ideias e colocou-as no seu
devido contexto. Redefiniu-as como ideias cristãs.
É importante notar que Paulo não estava dizendo que sua
audiência estava certa em seu entendimento de Deus. Embora
ainda estivesse para escrever a epístola aos Romanos, Paulo
indubitavelmente sabia bem quais eram os princípios desse
entendimento! Ele sabia que o entendimento que sua audiência
tinha de Deus era sempre uma “verdade com distorção”.
Portanto, ao invés de simplesmente dizer a verdade, Paulo
toma as noções distorcidas (suprimidas) que eles tinham de um
Deus desconhecido e começa a desemaranhá-las. Como um mestre
de quebra-cabeças, Paulo toma os fragmentos e pedaços dispersos,
caóticos e confusos do conhecimento de sua audiência e os coloca
na ordem e estrutura adequadas.
Mas ao usar e redefinir as ideias deles, Paulo também está
lhes dizendo muito mais do que haviam pensado. Ele usa os
próprios conceitos de sua audiência como elementos de persuasão,
mas diz também desde o início que esse Deus, que não habita em
santuários humanos, é o Senhor e Criador de todas as coisas. Paulo
usa algumas das ideias deles, mas as coloca dentro do contexto
cristão do Deus Criador que governa sobre todas as coisas.
Essa noção do senhorio de Deus deveria ter sido estranha
aos estoicos em particular. O princípio supremo na filosofia estoica
era impessoal. Como apresenta Deus como Criador e Senhor, Paulo
está afirmando que Deus é pessoal, não impessoal, e que ele é de
fato a pessoa suprema.
Mais persuasão é usada no versículo 25. Paulo lembra aos
seus ouvintes que esse Deus pessoal não é dependente de coisa
alguma. Deus não precisa de nada. Mais uma vez, isso não era uma
ideia nova para esses filósofos. Lucrécio já dissera que “a própria
natureza da divindade deve necessariamente fruir de vida imortal na
paz mais profunda, bem distante e separada das nossas tribulações;
porquanto sem qualquer dor, sem perigo, poderoso em si mesmo
por seus próprios recursos, não precisando em absoluto de nós…”.
[23]

Os filósofos tinham sua própria ideia de um deus (ou deuses)


independente(s). Paulo inclui essa ideia, novamente, como um
ponto de persuasão. Ele não lhes diz simplesmente que a ideia de
independência de Lucrécio era uma noção pagã. Isso teria sido
verdade, mas teria carecido de qualquer valor persuasivo. Em vez
disso, Paulo afirma que Deus não precisa de nada, como até
mesmo Lucrécio dissera.
Mas Paulo também diz que esse Deus independente não
está tão longe quanto eles pensavam. Ele dá a todas as criaturas
vida, fôlego e tudo o mais. Isto é, esse Deus não é uma divindade
abstrata. Ele não “está afastado dos nossos assuntos…, longe,
distante”; em vez disso, age na história para sustentar nossa vida a
cada momento. Ele está tão próximo de nós como nossa própria
vida.
Assim, ao usar elementos de persuasão, Paulo também não
teme discordar deles. Ele implementa elementos de persuasão
quando pode, e sem comprometer a verdade da fé, mas também
discorda deles quando isso é necessário.
Observe outro exemplo. Os estoicos, alguns dos quais
estavam na Colina de Marte, tinham a ideia de que o mundo era
predeterminado. A melhor vida, ensinavam, era aquela que aceitava
essa predeterminação e não lhe resistia. Essa aceitação deveria
então originar uma paz desprendida em nós.
Paulo concordava que Deus, esse Deus que os filósofos
haviam declarado ser desconhecido, determina nossa vida (v. 26).
Mas os filósofos não podiam reconciliar o fato desse Deus abstrato,
determinante e independente com a ideia de envolvimento com o
mundo. Se Deus era independente, não podia estar envolvido com o
mundo, pois do contrário seria, em certo sentido, dependente dele.
Paulo, mais uma vez, como um apologista mestre, argumenta que
ambas as coisas são verdadeiras. E, como um apologista mestre,
usa palavras de outros filósofos para provar seu ponto.
Dois poetas gregos são citados por Paulo nesse discurso no
Areópago (v. 28). A primeira citação é de Epimênides de Creta, que
é mais uma vez citado por Paulo em Tito 1.12.[24] Epimênides
observou, acerca de Zeus, que é “nele que vivemos, nos movemos
e existimos”. O outro poeta citado é Arato, que observa que somos
todos “sua descendência”.[25]
Novamente, há pelo menos duas formas de se lidar com isso.
Uma forma, a forma que Paulo não escolheu, é simplesmente dizer
aos atenienses que eles estão todos errados. Paulo poderia ter-se
levantado e, correta e verdadeiramente, ter denunciado sua
lealdade a Zeus e chamado todos eles de idólatras. Visto que foi a
idolatria que o levara a falar nessa ocasião, é isso que poderíamos
ter esperado.
Mas Paulo não faz isso, e aqui, mais uma vez, vemos a
sabedoria de sua apologética. Em vez de fazê-lo, Paulo cita aqueles
poetas usando declarações que deveriam ter sido familiares a toda
a sua audiência. Mas note como ele os cita. Às vezes se pensa que
Paulo estaria concordando que esses poetas gregos estavam pelo
menos parcialmente certos. Tudo o que Paulo estaria fazendo,
amiúde se pensa, era adicionar o evangelho à noção adequada que
os gregos já tinham de Deus. Mas não é isso, de fato, o que Paulo
está fazendo. Lembre-se de que Paulo conhece a fonte das crenças
de sua audiência. Ele sabe que essas crenças são “verdades
distorcidas” que derivam de reações pecaminosas à revelação
natural de Deus. Como tal, são, nas mãos dos gregos, condenáveis.
Eles estão errados. Os gregos seriam indesculpáveis se viessem à
presença de Deus com essas noções. Ao morrer, não poderiam
dizer a Deus “Veja, estávamos parcialmente certos!”. Nesse sentido,
as coisas nas quais eles acreditavam, de fato, simplesmente não
eram verdadeiras.
Quando Epimênides diz que “nele” vivemos, nos movemos e
existimos, não tem de fato o Deus verdadeiro em mente. Ele está
escrevendo sobre um deus de sua própria criação, um deus falso.
Quando Arato diz que somos “sua” descendência, não está se
referindo ao Deus verdadeiro, mas a Zeus. E simplesmente não é
verdade que somos descendência de Zeus. Essas verdades
distorcidas se tornaram trocas loucas, tolas, da verdade de Deus por
uma mentira.
Mas quando tomadas de volta e colocadas em seu legítimo
lugar, no contexto do cristianismo, elas são verdades gloriosas.
Assim, Paulo as toma de volta. Os gregos haviam usado essas
ideias para suprimir o verdadeiro conhecimento de Deus. Paulo as
toma de volta para comunicar a verdade sobre o verdadeiro Criador
e Senhor. Nesse sentido Paulo está dizendo “Suas ideias e
conceitos só podem ser verdadeiros se aludirem ao verdadeiro
Deus”.
Uma vez colocadas em seu devido contexto, essas ideias dos
filósofos gregos voltam ao seu legítimo lugar como verdades
absolutas sobre o Deus cristão. Esse é o ponto de Paulo, que ele
oferece como um ponto de persuasão em sua defesa do
cristianismo.
Uma declaração poderosa feita no versículo 29 pode ser
vista, de certa forma, como o clímax do argumento de Paulo. Ela
está teologicamente embalada e é apologeticamente persuasiva.
Observe o raciocínio de Paulo.
Ele havia mesmo usado as próprias palavras dos atenienses
para descrever-lhes essa divindade “desconhecida”, o Deus do
cristianismo. Agora ele usa essas mesmas palavras, novamente
trazidas para dentro do seu devido contexto, para contra-atacar a
idolatria deles. Uma vez que, diz Paulo, somos descendência de
Deus, como podemos pensar que Deus é como as coisas
inanimadas feitas por nós? Este é realmente o golpe de mestre
persuasivo de Paulo. Nesta única declaração, ele mostra que a
sabedoria do mundo é na verdade loucura.
Lembre-se de que os filósofos se orgulhavam de sua
sabedoria. Seu intelecto era tido por eles como acima de qualquer
comparação. Isso valia especialmente no caso de Atenas. Assim, a
repreensão de Paulo aqui era ainda mais embaraçosa. Ele disse
algo que seria óbvio até aos mais iletrados.
Para aqueles familiarizados com o detetive Columbo, a
declaração de Paulo aqui é parecida com o “só mais uma pergunta”
de Columbo pouco antes de prender o assassino. Colocando na
forma de pergunta, Paulo está dizendo: “Posso fazer só mais uma
pergunta a vocês, filósofos? Já que dizem sermos descendência de
Deus, como podem também crer que Deus é algo que vocês
mesmos fizeram? Isso não significaria que Deus é descendência de
vocês?”. Pensar que Deus é como coisas que fazemos, ao mesmo
tempo crendo que somos algo feito por ele, parece ser uma óbvia
gafe ou erro intelectual. Não tornou Deus louca a sabedoria do
mundo?
Paulo está apelando aqui a criaturas feitas à imagem de
Deus. E está fazendo isso de duas formas, pelo menos. Primeiro,
está apelando à imagem de Deus quando argumenta que nós, seres
humanos, somos descendência de Deus. Carregamos, assim,
algum tipo de semelhança com ele. Mas Paulo também está
apelando à imagem de Deus no sentido que vimos em Romanos 1.
Ele está dizendo aos atenienses que sua fabricação de ídolos vai de
encontro ao que sabem ser o caso. Vai de encontro ao que sabem
sobre Deus; vai de encontro ao seu próprio raciocínio sobre Deus.
Se somos descendência de Deus, somos mais parecidos com ele
do que com qualquer coisa de ouro ou prata que poderíamos
fabricar.
Aqui, mais uma vez, Paulo está apelando ao fato de que
Deus é pessoal. Deus não é algo que anima todas as coisas e cria
movimento nelas, como alguns da audiência pensavam. Antes, ele é
o Criador e Senhor soberano e independente, que sustenta todas as
coisas neste mundo e de cuja descendência somos! Isso leva a
audiência de Paulo de uma consideração sobre Deus para uma
consideração de quem somos em relação a Deus, e isso é feito
usando justamente as coisas que os próprios gregos haviam dito!
A partir desse ponto, Paulo se move para uma apresentação
do evangelho. Nessa apresentação ele refuta tanto as crenças dos
epicureus como as dos estoicos sobre temor, julgamento e vida
após a morte. Embora discordassem entre si sobre muitos pontos,
esses dois grupos concordavam que a melhor atitude para com a
vida era um desprendimento ou desapego dela. Os epicureus,
especificamente, viam o temor da vida após a morte como um dos
principais obstáculos a esse desprendimento, e tentavam assim
negá-la completamente. Em sua defesa da ressurreição de Cristo,
Paulo está se movendo agora para uma confrontação mais direta.
Ele está lhes dizendo que devem se arrepender, pois esse Deus virá
para julgar o mundo. Seu julgamento será por meio de Jesus Cristo,
que ressuscitou dos mortos. Visto que ressuscitou, ele está vivo e
irá voltar.
Isso provavelmente colocou a audiência em polvorosa. Uma
intensa conversa deveria estar ocorrendo quando Paulo proferiu
essas palavras. Ele estava dizendo que eles deveriam se voltar e
confiar em Cristo. Mas note mais uma vez que Paulo não estava
simplesmente dizendo isso. Ele já havia preparado o terreno para
dizer algo tão radical. Ele estava dizendo que esse Deus, de cuja
descendência somos, irá voltar em seu Filho. Seu Filho ressuscitou
dentre os mortos e foi designado para julgar o mundo com justiça. A
prova de que ele fará isso está em sua ressurreição.
Lembre-se, o objetivo da apologética, assim como o objetivo
do evangelismo e da pregação, é dizer a verdade. Esse é um
objetivo que podemos, pela graça de Deus, realizar. Devemos ser
sinceros em nossa apologética porque estamos apelando à verdade
que o incrédulo já conhece. Nosso “ponto de contato” ou persuasão
com o incrédulo é a verdade que Deus lhe deu. Assim como Paulo,
poderíamos ver como o incrédulo perverteu essa verdade. Dado o
que Paulo diz em Romanos 1, já deveríamos esperar ver ideias e
ações que são uma distorção da verdade que Deus forneceu aos
incrédulos. Quando apelamos a isso, fazemos nossa apologética
causar um grande efeito. Sendo a verdade, ela entra imediatamente
em contato com a verdade que Deus tem dado aos incrédulos na
natureza. Ela fala, portanto, ao íntimo de seu coração. Faz soar sua
verdade dentro da alma deles.
Esse é o nosso objetivo. Esse objetivo deve ser buscado à
medida que falamos aos incrédulos sobre Deus, sobre quem eles
são e sobre o que Cristo fez. Paulo não ficou desencorajado em
Atenas. Como poderia ficar desencorajado se, a despeito dos
escárnios e zombarias, “alguns homens juntaram-se a ele e creram.
Entre eles estava Dionísio, membro do Areópago, e também uma
mulher chamada Dâmaris, e outros com eles” (v. 34)?
Paulo viu a conversão de uns poucos ali naquele dia — até
mesmo um homem do conselho foi convertido. Mas ainda que Paulo
não tivesse visto uma só conversão, ele sabia muito bem que seu
ministério era um serviço, um serviço a Jesus Cristo. Cristo levaria
consigo os seus à medida que Paulo fosse de lugar em lugar,
arrazoando nas sinagogas e nas praças, dizendo às suas
audiências a verdade ― a verdade que está em Jesus Cristo
somente. A defesa da fé realizada por Paulo era uma
recomendação de Cristo. E sua recomendação de Cristo era ela
mesma uma defesa. Qualquer defesa da fé cristã tem a intenção de
ser uma defesa da fé que está em Jesus Cristo nosso Senhor.
Separe a Cristo como Senhor ― e esteja pronto. A batalha
pertence ao Senhor!

PARA SE APROFUNDAR
1. O que podemos aprender da motivação de Paulo em defender a
fé, em Atos 17.16?
2. Quais são algumas diferenças entre prova e persuasão?
3. Quais são algumas das coisas mais cruciais que devemos saber
sobre Deus quando defendemos o cristianismo?
4. Como você sabe se sua defesa do evangelho foi bem sucedida?
5. Quais elementos da sociedade, cultura ou incredulidade
geralmente podem ser usados por você como elementos de
persuasão numa conversa apologética?
Conclusão

Devemos agora estar mais familiarizados com as ideias contidas no


parágrafo resumo que lemos na introdução:
Visto que Cristo é o Senhor e a batalha é sua, devemos
estar sempre preparados para lutar pela fé uma vez por
todas entregue aos santos. Devemos usar as armas não
deste mundo, mas do Senhor. Devemos levar todo
pensamento cativo à obediência de Cristo, quando, com
mansidão e respeito, demolimos os argumentos
daqueles que suprimem a verdade em injustiça,
trocando a verdade de Deus por uma mentira, adorando
as coisas criadas em lugar do Criador, que é bendito
para sempre. Amém.
Jesus Cristo é o Senhor. Esta verdade deve guiar a totalidade
de nossa vida e de nosso pensamento cristãos. Deve guiar nossos
empreendimentos apologéticos, também. Como ele é o Senhor, a
batalha é sua. Tudo é seu; ele tem as cabeças de gado aos
milhares nas colinas.[26] Mas como a batalha é sua, ela deve ser
travada tendo ele como comandante. Ela deve ser travada do seu
modo, usando suas armas, para que ele possa ser glorificado em
meio à batalha. Se ela for travada com estas coisas em mente, o
sucesso será inevitável, ainda que não possamos vê-lo.
Nós nos preparamos para a batalha de Cristo quando nos
tornamos familiarizados com sua Palavra. Como vimos, isso
significa que devemos conhecer sua Palavra, mas também significa
que devemos refletir sobre sua verdade no contexto da cultura à
nossa volta e sobre os desafios que aparecem em nosso caminho.
A Palavra de Deus pretende ser um encorajamento para nós.
Mas ela também pretende fornecer respostas àqueles que
tentam negar seu poder. Como Golias, há muitos que escarnecem
do Senhor e fingem que seu poder é uma ficção. Devemos
responder em fé, assim como Davi, procurando aplicar a espada do
Espírito a fim de penetrar os recessos profundos do coração
incrédulo.
Conhecer a Palavra de Deus dessa forma é começar a levar
todo pensamento cativo à obediência de Cristo. É começar a
desenvolver um modo de ver o mundo, começar a incorporar tudo
que sabemos do mundo invisível à nossa interpretação e
entendimento do mundo visível. Dessa forma, como os santos de
outrora, começamos a ver o invisível (veja Hebreus 11). Somos
assim transformados pela renovação da nossa mente (Rm 12.2).
Tudo isso é realizado, se feito em fé, com mansidão e
respeito. Um elemento importante de pensar através da Palavra de
Deus, e de responder aos desafios à nossa fé, é que assumimos a
atitude do próprio Cristo (Fp 2.1-2). Falamos em humildade, com
reverência, sabendo que nós também teríamos sido apanhados pela
incredulidade se não fosse pela obra graciosa do Deus triúno, que
nos transformou e nos tornou sua propriedade.
Deus assegurou que todas as suas criaturas o conheceriam.
Embora esse conhecimento seja suprimido, não pode ser apagado
completamente. Muito do que o incrédulo faz e pensa tem o
conhecimento de Deus em sua raiz. Muito do pecado que escraviza
o incrédulo é evidência da ira de Deus, que é derramada justamente
por causa da recusa em reconhecer a Deus. O universo que Deus
fez ― tudo que ele contém ― é evidência abundante de quem Deus
é e do que ele requer de todos que são feitos à sua imagem.
Devemos, assim, tirar proveito do magnífico privilégio de
travar as batalhas do Senhor, com suas armas, da sua forma. Ao
travar essas batalhas, não devemos nunca perder de vista de quem
elas são. Nas palavras de Davi, travamos as batalhas do Senhor tal
que “todos que estão aqui saberão que não é por espada ou por
lança que o SENHOR concede vitória; pois a batalha é do
SENHOR, e ele entregará todos vocês em nossas mãos” (1Sm
17.47).
Apêndice 1: Apologética e o Espírito Santo

“Ninguém pode ser persuadido a entrar no Reino.” Você já ouviu


isso alguma vez? Talvez sim, ou talvez você mesmo já tenha feito tal
declaração. Essa declaração, talvez mais que qualquer outra, é uma
razão apresentada para a inutilidade da tarefa apologética.
Como ninguém pode ser persuadido a entrar no céu, é um
empreendimento infrutífero gastar nosso tempo refletindo ou
trabalhando sobre argumentos ou respostas — é o que às vezes
nos dizem. Não apenas ninguém pode ser persuadido a entrar no
Reino pela argumentação somente, como o próprio Jesus nos
encorajou a não gastar tempo com o que deveríamos dizer em face
aos desafios à nossa fé:
Mas antes de tudo isso, prenderão e perseguirão vocês.
Então os entregarão às sinagogas e prisões, e vocês
serão levados à presença de reis e governadores, tudo
por causa do meu nome. Será para vocês uma
oportunidade de dar testemunho. Mas convençam-se de
uma vez de que não devem preocupar-se com o que
dirão para se defender. Pois eu lhes darei palavras e
sabedoria a que nenhum dos seus adversários será
capaz de resistir ou contradizer. (Lc 21.12-15)
Essa passagem, assim como as respectivas passagens em
Mateus e Marcos, parece desencorajar qualquer preparação para,
ou preocupação com, a apologética. A palavra grega que Lucas usa
para a frase “com o que dirão” vem do verbo apologeomai, do qual
obtemos nossa palavra apologética. Pareceria assim que Cristo está
dizendo para não nos prepararmos para a tarefa apologética.
Estaria Jesus ordenando seus discípulos a não estarem
prontos para defender sua fé? Estaria Jesus lhes dizendo que não
precisavam se preparar para os desafios à fé que apareceriam em
seu caminho? Uma vez que essa passagem pode ser facilmente
mal compreendida, devemos olhá-la com cuidado ao pensar sobre a
tarefa apologética.
Será útil, em primeiro lugar, ver o papel geral do Espírito
Santo no mundo, e então considerar quão crucial é sua obra quando
somos chamados a defender nossa fé.
Devemos primeiro recordar o que exatamente o Espírito
Santo veio fazer após a ascensão de Cristo. Jesus fora muito
específico sobre isso em seu discurso no Cenáculo, como nos foi
registrado no evangelho de João. A partir desse discurso,
entendemos em primeiro lugar que o Espírito Santo não poderia vir
a menos que Jesus mesmo partisse. É crucial entender esse ponto,
e isso é algo por vezes negligenciado. Jesus esteve desenvolvendo
um ponto sobre a nova aliança.
Na antiga aliança, o povo de Deus estava confinado, grosso
modo, à nação de Israel. A obra redentora de Deus tinha seu foco
entre esse povo. A obra de Deus, na antiga aliança, estava
confinada de uma forma que não está na nova. Mas a antiga aliança
sempre esteve apontando para a nova. Ela não veio como uma
surpresa ou ideia posterior no plano de Deus. Remontando a tão
longe quanto Gênesis, quando o Senhor anunciou seu plano pactual
a Abraão, a intenção de Deus já era, claramente, ir além da nação
de Israel:
Quando Abrão estava com noventa e nove anos de
idade o SENHOR lhe apareceu e disse: “Eu sou o Deus
todo-poderoso; ande segundo a minha vontade e seja
íntegro. Estabelecerei a minha aliança entre mim e você
e multiplicarei muitíssimo a sua descendência”. Abrão
prostrou-se, rosto em terra, e Deus lhe disse: “De minha
parte, esta é a minha aliança com você. Você será o pai
de muitas nações” (Gn 17.1-4; grifo do autor).
A intenção do Senhor para a salvação do seu povo, desde o
princípio, incluía muitas nações, não só a nação de Israel. Mais
tarde na história de Israel, o Senhor tornou a natureza de sua nova
aliança ainda mais clara:
Darei a vocês um coração novo e porei um espírito novo
em vocês; tirarei de vocês o coração de pedra e lhes
darei um coração de carne. Porei o meu Espírito em
vocês e os levarei a agirem segundo os meus decretos e
a obedecerem fielmente às minhas leis (Ez 36.26-27).
A nova aliança incluiria mais do que Israel:
Tu és digno de receber o livro e de abrir os seus selos,
pois foste morto, e com teu sangue compraste para
Deus gente de toda tribo, língua, povo e nação. Tu os
constituíste reino e sacerdotes para o nosso Deus, e
eles reinarão sobre a terra (Ap 5.9-10; grifo do autor).
O cumprimento da história da redenção veio em Jesus Cristo.
Jesus veio não para ser servido, mas para servir e dar sua vida em
resgate por muitos (Mc 10.45). Ele veio para morrer. Era esta sua
missão. Ele veio para morrer a fim de que pudesse ser ressuscitado
dentre os mortos (Rm 1.4) e exaltado à destra do Pai (Hb 1.2).
Com frequência, porém, perdemos o ponto das palavras de
Jesus aos seus discípulos no Cenáculo. Ele lhes disse que era
necessário ele partir. Era necessário porque o Espírito Santo não
viria até que Cristo partisse.
Foi no Dia de Pentecostes que a obra redentora e “de uma
vez por todas” de Jesus foi concluída. Naquele dia, foi Jesus quem
batizou com o Espírito Santo. Esta fora a mensagem de João
Batista: “Ele os batizará com o Espírito Santo e com fogo” (Mt 3.11).
O ponto que João estava desenvolvendo aqui não era dizer-nos o
que o Espírito Santo faria em Pentecostes. Antes, era dizer-nos o
que Cristo faria naquele dia. Quando Cristo diz aos seus discípulos
que ele deve partir para que o Espírito Santo venha, está dizendo
que ele deve partir para completar sua obra “de uma vez por todas”
por seu povo. Ele deve partir para que se cumpram as Escrituras ―
as Escrituras da antiga aliança ― que falam da vinda do Espírito.
Cristo prometeu enviar o Espírito (Jo 16.7). Ele também disse
aos discípulos o que o Espírito faria. Este convenceria o mundo do
pecado, da justiça e do juízo. Essas três coisas são elementos
essenciais do evangelho. O Espírito Santo vem para operar na, e
através da, proclamação do evangelho para convencer o mundo.
Essa é uma parte de seu ministério, desde o Dia de Pentecostes até
o fim dos tempos. Ele foi enviado por Cristo em Pentecostes para
esse propósito.
Há muito mais que Cristo quer dizer aos seus discípulos
naquele Cenáculo, mas ele os poupa dos detalhes dolorosos. Esses
detalhes, diz ele, serão deixados para o Espírito, quando este vier.
Note o que Jesus diz a seguir. Em certo sentido, ele nos dá
um resumo de todo o ministério do Espírito. Jesus diz a seus
discípulos: “Ele me glorificará” (Jo 16.14). O Espírito não foi enviado
aqui para criar ou estabelecer um ministério que, de alguma forma,
fosse adicional ao ministério de Cristo, ou diferente dele. O
ministério do Espírito é glorificar a Cristo. Isso significa que o
Espírito foi enviado para apontar a, chamar atenção a, e declarar o
ministério de, Jesus Cristo. Significa, entre outras coisas, que
qualquer ministério focado no próprio Espírito Santo não faz parte
do ministério do Espírito. É o ministério de Cristo que o Espírito está
enfatizando. Ele foi enviado para esse propósito.
Esse ministério de glorificar a Cristo toma um caráter
especificamente apostólico. Jesus não diz apenas que o Espírito
“me glorificará”, mas também, mais especificamente, que “Ele me
glorificará, porque receberá do que é meu e o tornará conhecido a
vocês” (v. 14). Isso remete especificamente à obra do Espírito em
revelar a palavra de Cristo aos discípulos. Uma das atividades
fundamentais do ministério do Espírito após a ascensão de Cristo
era seu foco em levar a palavra de Cristo à sua completude.
Há três diferentes aspectos do ministério do Espírito com a (e
através da) palavra de Cristo que deveríamos enfatizar aqui. A
primeira obra do Espírito com a Palavra é o que poderíamos chamar
de sua obra de inspiração. Entendemos, aqui, que foi o Espírito de
Deus quem moveu homens a escrever as próprias palavras de Deus
na Escritura. “Toda a Escritura é inspirada por Deus”, disse Paulo a
Timóteo (2Tm 3.16).
A palavra grega que Paulo usa para “inspirada por Deus”
significa que toda a Escritura nos chegou como um produto da obra
do Espírito por meio dos profetas e apóstolos do Senhor. Ela veio ao
longo do tempo, na história, e alcançou sua completude. Foi, assim,
uma obra “sazonal” do Espírito, no sentido de ser necessária por um
tempo. Não foi, porém, uma obra que o Espírito continuaria a
realizar hoje. Ela foi necessária para que a Bíblia, como a temos
hoje, fosse um livro fechado. Não há nenhuma revelação para lhe
ser adicionada; não há nenhuma para lhe ser subtraída.
A obra do Espírito era glorificar a Cristo dando aos seus
discípulos as palavras a serem escritas para a igreja através dos
tempos. É isso que Cristo quis dizer quando afirmou aos discípulos
“Ele [o Espírito Santo] os guiará a toda a verdade” (Jo 16.13).
Será que é isso que Cristo quer dizer na passagem acima em
Lucas 21, onde adverte seus discípulos sobre como deveriam agir
quando fossem levados perante as autoridades? Pode muito bem
ser. Pode ser que Cristo esteja dando instruções especiais aos seus
discípulos, como seus discípulos, que não se aplicariam a nós da
mesma forma. Esta não seria, de fato, uma ideia nova nas
Escrituras. Ela se encaixa muito bem na forma como o Espírito
trabalhava na antiga aliança (Antigo Testamento).
Logo após ter chamado Moisés para libertar seu povo do
Egito, o Senhor prometeu a Moisés: “Eu estarei com você,
ensinando-lhe o que dizer” (Êx 4.12). O chamado do Senhor a
Jeremias incluiu o encorajamento “Agora ponho em sua boca as
minhas palavras” (Jr 1.9). É de acordo com o chamado que faz a
homens, para ministérios especiais e proféticos, que o Senhor
promete aos discípulos dar-lhes as palavras que eles devem dizer.
Pode ser, no entanto, que a instrução de Cristo tenha sido
voltada primeiro para os seus discípulos, mas depois disso também
para a igreja. Se foi voltada também para a igreja, o Senhor está
dizendo que nosso foco, ao sermos desafiados, deve ser a sua
palavra. Mais sobre isso abaixo.
Em todo caso, é importante ver o que Cristo não está
dizendo. Ele não está dizendo que os discípulos, ou nós, não devem
se preparar para uma confrontação com aqueles que se lhe opõem.
A integridade da Escritura não permitirá uma interpretação como
essa. Se é isso o que Cristo está dizendo, então Pedro e outros
explicitamente o contradizem quando ordenam que estejamos
preparados para dar uma resposta. Como é o mesmo Espírito quem
inspirou esses e todos os demais textos da Escritura, esta opção
não está disponível para o cristão.
Parece provável que Cristo esteja dizendo algo parecido com
o que vimos no capítulo 1. Recordamos ali que Pedro estava
dizendo àqueles cristãos dispersos que eles não deveriam “tem[er]
aquilo que eles temem” e não deveriam ficar amedrontados. Esse é
o ônus do fardo de Cristo aos seus seguidores. Não devemos estar
ansiosos nem temer como o mundo teme. Antes, continua Pedro,
devemos separar Cristo como Senhor. Assim como Cristo ordena
seus discípulos a não se preocuparem, mas a confiarem, Pedro nos
ordena a não temer, mas a santificar o senhorio de Cristo em nosso
coração.
O segundo aspecto do ministério do Espírito é o que
poderíamos chamar de sua obra de sinergia (“trabalhar com”). O
Espírito trabalha com a palavra de Cristo, que encontramos na
Bíblia. É essa a obra que o Espírito faz quando fala na, e através da,
própria Palavra. Essa é uma daquelas verdades que poderiam
facilmente revolucionar nossa prática de apologética, de pregação e
de evangelismo. Essa obra do Espírito é bem expressa na
Confissão de Fé de Westminster:
O Juiz Supremo, pelo qual todas as controvérsias
religiosas têm de ser determinadas e por quem serão
examinados todos os decretos de concílios, todas as
opiniões dos antigos escritores, todas as doutrinas de
homens e opiniões particulares, o Juiz Supremo em cuja
sentença nos devemos firmar não pode ser outro senão
o Espírito Santo falando na Escritura. (1.10 [ênfase
adicionada])
Essa última frase, “o Espírito Santo falando na Escritura”,
enfatiza que jamais devemos pensar que Deus o Espírito Santo
trabalha independentemente da verdade da Palavra de Deus ou que
a Palavra age sem o Espírito.
Por exemplo, é frequentemente dito entre cristãos bem
intencionados que “o Senhor lhes disse” o que devem fazer, ou
dizer, ou como devem agir. Precisamos entender que, com a obra
consumada de Cristo, veio a obra consumada da palavra de Cristo
(veja Hb 1.1-4). Assim, o Espírito Santo não fala a pessoas, mesmo
ao seu povo, à parte da palavra de Cristo na Bíblia. Hebreus lembra
que, em tempos passados, Deus de fato falou por meio de seus
representantes designados ― “pelos profetas”. Mas ele cessou de
falar assim.
Nestes últimos dias, ele nos tem falado através de seu Filho.
A completude da obra do Filho marca também a completude de sua
palavra. Mas isso não significa que sua palavra está morta. Parte do
ministério do Espírito em glorificar a Cristo é falar por meio de sua
palavra na Bíblia.
Por outro lado, devemos evitar de pensar na Palavra de Deus
simplesmente como um texto sem um testemunho vivo. Devemos
ver as palavras da Escritura como vivas; elas são as palavras de um
Deus vivo, através das quais ele fala conosco. Visto dessa forma,
nosso estudo da Escritura jamais pode ser uma simples questão de
reunir fatos.
A Escritura é o “diálogo” completo de Deus conosco sobre
quem ele é e sobre o que ele fez em e através do seu Filho. Como
expressou o autor de hinos, “Que mais pode ele te dizer além do
que já disse?”. Em sua Palavra, ele disse tudo o que precisava
dizer. Com o Espírito falando nessa Palavra, ela nunca é letra morta
para nós, mas vida em si. “A suprema prova da Escritura”, de
acordo com Calvino, “se estabelece reiteradamente da pessoa de
Deus falando nela”.[27]
O terceiro aspecto do ministério do Espírito é sua obra de
testemunho. Lembro-me de ter conversado com um jovem sobre o
evangelho certo dia. Conforme eu ia falando, ele concordava com
tudo o que eu dizia. Ele acreditava que Cristo tinha vindo, tinha
morrido na cruz pelos pecados e ressuscitado. Ele acreditava que
tinha pecado e que não poderia ir ao céu por conta própria. Perto do
fim dessa discussão, ele se voltou para mim e disse: “Sim, eu
acredito em tudo isso, mas e daí?”.
Não basta simplesmente crer que Cristo veio, morreu na cruz
pelos pecados, etc. Devemos crer em Cristo. Crer que Cristo veio,
etc. é crer que certas declarações são verdadeiras. É como crer que
meu pai poderia me pegar se eu pulasse de um penhasco, ou crer
que minha mãe não vai me envenenar no jantar esta noite.
Mas crer em meu pai ou em minha mãe significaria pular para
que meu pai pudesse me pegar, ou comer o jantar que minha mãe
preparou. Crer em alguém significa colocar nossa própria vida nas
mãos dessa pessoa. Significa seguir suas instruções, confiar que o
que ela está fazendo é necessário, não danoso para nós.
A única forma de se mover do “crer que” para o “crer em” é
pelo testemunho do Espírito Santo. O Espírito falando na Escritura é
algo crucial. É um elemento necessário da Escritura, pois reúne a
autoridade da palavra de Deus à atividade de Deus no mundo. Mas
isso não mudará um coração pecaminoso. Corações pecaminosos
precisam de uma obra sobrenatural. Essa obra é o testemunho do
Espírito Santo.
O testemunho do Espírito Santo fornece uma resposta para o
“E daí?”. Assegura-me que estou em desesperada necessidade de
um Salvador, que a morte de Cristo na cruz foi pelos meus pecados,
que a coisa mais importante em minha vida é glorificar e agradar a
Deus, que sou seu filho e nunca serei deixado ou abandonado por
ele, etc.
Sem o testemunho do Espírito, posso concordar com essas
coisas; posso crer que são verdadeiras, mas não irei, e não posso,
crer nelas. Não porei minha vida nos braços eternos de Cristo a
menos que seu Espírito testifique para mim, transformando meu
coração, tal que meu amor por Cristo sobrepuje tudo o mais. “E
daí?” só será respondido se, e quando, o Espírito testificar sobre a
verdade do evangelho.
O testemunho do Espírito nos dá uma certeza que somente
pode vir de cima ― a certeza de que Deus é por nós e que,
portanto, em última análise ninguém pode ser contra nós (Rm 8.31).
Esse testemunho nos diz que somos filhos de Deus (veja Rm 8.15-
16). Novamente, de acordo com João Calvino:
Ora, se almejamos o que seja melhor para as
consciências, para que não venham a ser
perpetuamente levadas em derredor pela dúvida
instável, ou cedam à vacilação, para que nem ainda
hesitem diante de quaisquer questiúnculas de somenos
importância, deve-se buscar esta convicção para além
das razões, dos juízos, ou das conjeturas humanas, ou
seja, do testemunho íntimo do Espírito.[28]
Assim, como deveríamos entender as palavras de Jesus em
Lucas 21? Deveríamos observar três coisas nessa passagem.
Em primeiro lugar, o tipo de situação que Jesus descreve é
de natureza apologética. “Chegará um tempo”, Jesus está dizendo
aos seus discípulos, “em que vocês terão oportunidade de dar
testemunho de mim. Vocês serão levados perante as autoridades
por causa de sua fé cristã”.
Essa é uma situação estranha para a maioria de nós. Pelo
menos na maior parte do ocidente, as autoridades governantes
(ainda) não tornaram o cristianismo ilegal. Mas não era uma
situação estranha para os cristãos do primeiro e segundo séculos.
Um dos primeiros apologistas do segundo século, Justino Mártir, foi
chamado para defender sua fé, e a de seus irmãos e irmãs em
Cristo, na presença do imperador. Ele sabia o que significava ser
levado perante as autoridades governantes por causa de sua fé em
Cristo. E sabia que poderia perder sua vida se tentasse recomendar
a fé ao imperador.
Embora não viemos talvez a ser chamados ao longo de
nossa vida perante os governantes, os mesmos princípios
continuam vigorando. Sempre que formos desafiados ou nossa fé
for questionada, estaremos numa situação apologética. Será o
momento, então, de defender e recomendar a fé.
Em segundo lugar, o mandamento de Jesus em Lucas 21.14
(ARC) de “não premeditar” pode parecer, à primeira vista, ir de
encontro a outras passagens que temos visto. Por que estaria Pedro
pedindo para estarmos sempre “preparados”, mas Jesus ter dito
para seus discípulos “não premeditar[em]” sobre os desafios
vindouros?
Devemos notar, em primeiro lugar, que as passagens
paralelas em Mateus e Marcos usam um verbo diferente. Em ambos
os casos elas usam o verbo preocupar — “não se preocupem” (Mt
10.19) ou “não fiquem preocupados” (Mc 13.11). Como esses três
evangelhos foram escritos, em parte, para nos dar diferentes
perspectivas sobre o mesmo evento, Mateus e Marcos podem
ajudar-nos a entender a preocupação de Jesus com seus discípulos.
Jesus estava dizendo a seus discípulos que eles não
deveriam ficar ansiosos, ou se preocupar, com as várias regras, leis
e costumes que poderiam causar conflito com seus testemunhos.
Estava dizendo que eles não precisariam ser especialistas em leis
ou estar familiarizados com cada jota e til dos costumes romanos.
Eles não deveriam temer nem ficar ansiosos com o que as
autoridades governantes iriam acusar.
Jesus estava lhes ensinando algo que cada cristão deve
aprender. Como Paulo mais tarde lembrou aos filipenses, eles não
deveriam andar ansiosos por coisa alguma (Fp 4.6). Ansiedade é
um coração confessando que Cristo não é Senhor. Ficar angustiado
é pensar que nós, em última análise, é que estamos no controle;
que podemos alterar nossas próprias circunstâncias, em última
análise, por nosso próprio poder.
Os discípulos não deveriam pensar dessa forma. Jesus
provavelmente conhecia o tipo de sofrimento que eles seriam
chamados a suportar. Sabia que a caminhada cristã seria uma
caminhada perigosa e acidentada para eles. Jesus deve ter sabido
que eles sofreriam martírio por sua fé (veja, por exemplo, Mt 20.23;
Mc 10.39). Se eles se preocupassem com essas coisas, não teriam
sua mente focada na tarefa iminente. A preocupação tê-los-ia
distraído da pregação do evangelho.
No relato de Lucas, no entanto, Jesus não instrui seus
discípulos a não estarem ansiosos, mas a “não premeditar”. Por
quê? Dado o relato de Mateus e de Marcos, o que Jesus está
dizendo é que eles não deveriam pensar em como responder
quando lhes chegassem desafios das autoridades governantes.
Vale a pena recordar a explicação de Matthew Henry sobre
Lucas 21.14. Ele entende, corretamente, que Jesus estava dizendo
algo assim:

Em vez de ocupar vosso coração planejando uma


resposta às informações, denúncias, cláusulas,
acusações e interrogatórios que lhes serão trazidos em
tribunais eclesiásticos e civis, estabeleçam, ao contrário,
em vosso coração, imprimam nele, esforcem-se para
persuadi-lo a não premeditar o que haveis de responder;
não confiem em vossa própria inteligência e
engenhosidade, em vossa própria prudência e
sagacidade; não percam a confiança ou se desesperem
pelos socorros imediatos e extraordinários da graça
divina. Não pensem alcançar sucesso na causa de
Cristo nos termos que o fariam por uma causa própria,
por sua própria capacidade e dedicação, com a
assistência comum da divina providência; mas
assegurem-se, pois eu vos asseguro, da assistência
especial da graça divina: Eu vos darei boca e sabedoria.
É essa última sentença que nos ajuda a ver o próprio foco de
Cristo nessa advertência. Se Jesus lhes estivesse dizendo para não
premeditar sobre o que iriam dizer, seria possível ler isso como uma
proibição universal ― uma advertência contra a premeditação sobre
qualquer coisa que fosse.
Em terceiro lugar, em todos os três relatos evangélicos, o
negativo é seguido por um positivo. Jesus diz aos seus discípulos
para não se preocuparem, não premeditarem, e então lhes diz o
positivo. Em Lucas, a declaração positiva é “Pois eu lhes darei
palavras e sabedoria a que nenhum dos seus adversários será
capaz de resistir ou contradizer” (Lc 21.15). Em Mateus (Marcos é
basicamente o mesmo), lemos “Mas quando os prenderem, não se
preocupem quanto ao que dizer, ou como dizê-lo. Naquela hora lhes
será dado o que dizer, pois não serão vocês que estarão falando,
mas o Espírito do Pai de vocês falará por intermédio de vocês”
(10.19-20).
Essas declarações positivas ajudam-nos a ver o que é
pretendido nas declarações negativas. Em todos os três casos,
Jesus está enfatizando o que ele, através do Espírito Santo, vai dar.
É onde o ministério do Espírito, que discutimos acima, é tão crucial.
O foco da preocupação de Jesus com os seus discípulos é que eles
aprendam a confiar no que o Espírito Santo lhes dá quando são
desafiados. E o que é que o Espírito Santo lhes dá? De acordo com
Jesus, ele lhes dará “toda a verdade” (Jo 16.13).
Quando são desafiados pelas autoridades, portanto, os
discípulos de Jesus Cristo devem falar com uma boca dada por
Cristo, com uma sabedoria que somente ele dá na ocasião do
desafio. O que se requer em situações como essa é que os
discípulos saibam dessa verdade, que compreendam a sabedoria
que vem do alto, que usem o próprio “discurso” de Deus tal como
dado em sua Palavra.
Trazendo isso para o nosso contexto, a instrução de Jesus, a
bem da verdade, é o oposto do que muitas vezes se pensa. Ao
invés de nos dizer para não nos prepararmos para os desafios
vindouros, ele está dizendo que devemos estar prontos de posse da
sabedoria concedida do alto. Em outras palavras, quando a nossa fé
é desafiada, devemos estar prontos com as palavras da Escritura.
Nossa preparação, então, não é focar todos os desafios que
poderíamos enfrentar, como se pudéssemos aprender o bastante
sobre todos eles para responder-lhes adequadamente. Antes, é
focar aquilo que é dado por Deus, “inspirado” por ele e, portanto,
“útil para o ensino, para a repreensão, para a correção e para a
instrução na justiça” (2Tm 3.16).
É verdade, claro, que ninguém pode ser persuadido a entrar
no Reino pela argumentação somente. Mas também é verdade, no
sábio plano de Deus, que ninguém virá à fé em Cristo sem ouvir
dessa fé. À medida que defendemos a fé e a recomendamos a
outrem, o Espírito promete usar-nos. Que privilégio nós temos em
Cristo; ser agentes do próprio Espírito à medida que ele glorifica o
Filho!

O Espírito sopra sobre a Palavra,


E a verdade ele a traz à vista;
Preceitos e promessas proporcionam
Uma luz santificadora.

Uma glória as páginas sagradas adorna,


Majestosa, como o sol:
Uma luz a cada era ela concede;
Ela a concede, mas de ninguém a empresta.

A Mão que a deu ainda supre


A luz e o calor graciosos:
Suas verdades sobre as nações se levantam;
Elas se levantam, mas nunca se põem.[29]
(William Cowper)

O Espírito Santo é, no fim das contas, o apologista. À medida


que nos deparamos com os desafios que chegam, ele glorifica a
Cristo ao tomar sua Palavra, enquanto falamos, e convencer alguns
do pecado, da justiça e do juízo. Ele fala nessa Palavra e, quando
lhe aprouve, testifica ao coração de alguns, que então se voltam e
seguem a Cristo ― e se juntam à sua batalha!
Apêndice 2: Passagens bíblicas para apologética

Como temos visto, a Bíblia inteira pode ser vista como uma
apologética. Tendo dito isso, contudo, há uma série de passagens
específicas que podem nos ajudar a pensar sobre os princípios
discutidos neste livro. A lista abaixo é fornecida (1) como um
suplemento para as passagens discutidas neste livro e (2) como um
recurso inicial para um estudo bíblico da apologética.
Ela de forma alguma é uma lista exaustiva de passagens. Há
muitas outras que poderiam ser adicionadas. Como o foco deste
livro está no Novo Testamento, e como a maioria de nós tem mais
familiaridade com o Novo Testamento, a lista foca passagens do
Antigo Testamento que trazem uma ênfase ou temática apologética.
A lista é fornecida para aqueles que gostariam de estudar outras
passagens bíblicas relacionadas à defesa e recomendação da fé.

O SENHOR, NOSSO DEFENSOR

Êxodo
14.13-31
15.1-18

Deuteronômio
7.9-11, 21-24
32.36-43
33.7, 27-29

Josué
1.9
4.23-24
5.13-15
6.15-16
24.8-13
Juízes
1.2, 22
4.13-16

1 Samuel
2.6-10
14.6

2 Samuel
22.2-20, 26-51

1 Reis
8.44-49

2 Reis
14.26-27
19.14-37
20.1-6

1 Crônicas
12.18
14.8-11
16.35
22.17-19
29.10-19

2 Crônicas
13.13-18
14.9-12
15.1-7
16.7-10
20.5-12, 22-23
25.7-8
32.20-23

Neemias
1
4.12-20
9.22-33


2.4-6
9.1-12
12.13-25

Salmos
2
3.1-8
4
5
7.1-17
8.1-9
9.1-12, 19
10.1-18
11.4-7
12.3-8
14.4-7
16.1, 6-11
17
18.16-50
20.1-2
21.1-13
22.19-21
24.7-10
25.20-22
27.1-6
28.3-5
31.1-5, 13-24
33.10-22
34
35
36.7-12
37.12-19, 33, 39-40
38.21-22
40.1-3, 11-17
41.11-13
44.1-8
45.1-7
46.1-11
47
50.1-6
52.7-9
54
55.16-19, 22-23
56.1-13
57.1-6
58
59
61.1-4
62.1-2, 7
63.9-10
64
66.1-12
68.1-3, 17-21
69
70
71
73.18-20
74
75.4-8, 10
76
78.65-66
79
80.8-11
81.5-7
82
83
86.14-17
89.8-14, 50-51
90.17
91
92.9
94
97
99.1-4
102.12-22
103.13-14, 17-18
106.8-12
109.21-31
110
113.4-9
115.9-13
116
118.5-17
119.145-151
120
121.1-8
124.1-8
129.1-4
132.12-18
135.8-14
136.23-25
138.7-8
140
141.8-10
142
143
144
145.14, 17-21
146.5-10
147.1-6
149.4-9

Provérbios
11.8, 21
15.25
16.5, 11
18.10
21.1, 30-31
22.22-23
29.26

Isaías
9.6-7
10.33-11.5
11.11-16
13.9-11
14.24-27, 32
22.1-5
24
28.5-6
33.20-22
34.1-7
35
37.15-20
40.1-5
41
42.1-4
49.22-26
50.7-9
52.6-12
56.1
63.8-14

Jeremias
1.13-19
6.18-23
9.9-11
12.16-17
20.12-13
46
47
49.14-16
51.54-58
Lamentações
3.55-66

Ezequiel
25.12-17
26.19-21
28.1-10
32.1-16
35
36.33-38
38.19-23
39.1-24

Daniel
3.15-30
6.26-28
7.11-14

Amós
1.3-2.3

Obadias
8-10

Jonas
2.1-9

Miqueias
5
7.7-10

Naum
1.1-12

Habacuque
3.19
Sofonias
2

Ageu
2.1-9

Zacarias
9.14-17
10
12
13
14

Malaquias
1.1-5
3.1-3
4.1-3

1 Coríntios
1.18-25
15.56-57

2 Coríntios
1.8-10
6.1-10

Efésios
1.22-23

Colossenses
2.13-15

2 Timóteo
4.16-18

Apocalipse
1.7
6.1-2, 12-17
9.1-6
11.15-18
14.17-20
15
16
17.6-14
19.1-3, 11-21
20.1-5

NOSSA ATITUDE NA DEFESA

Gênesis
22.16-19

Deuteronômio
28.1-14
32.44-47

Salmos
25.10-15, 21-22
39.1, 8
123.3-4
128.1-6
130.5-8

Provérbios
8.6-10
11.30-31
14.29
15.26
16.7, 18, 24
18.8
22.5
24.17-20
25.21-22
29.8
31.8-9

Atos
24.10-25
25.7-12

1 Coríntios
9.24-27
15.58
16.13-14

2 Coríntios
4.7-12
5.11, 20

Efésios
6.10-20

1 Tessalonicenses
5.4-11

Tito
3.1-7, 9-10

Hebreus
12.14-15

Tiago
4.1-10

1 Pedro
3.8-17
Judas
3-4

SABEDORIA NA DEFESA

Salmos
37.8, 30-31
15.1-5
11.10
119.25-29, 65-80, 130

Provérbios
2.1-15
3.7-8
4.7, 11-13
12.18-24
13.1, 10, 14, 20
14.3, 6, 15-16
15.6-7
16.21-23, 25
17.12
18.13, 15, 21
19.1-3, 8, 20-21, 25
21.16, 21-22, 29-30
22.10-12, 24-25
23.12
24.5-6, 10-11, 15-16,
21-26, 28-29
25.7-13
26.4-5, 12
28.7, 11, 26
29.9-11, 20
30.5-6

Jeremias
8.8-9
9.12-16

Daniel
2.19-22

Oseias
14.9

Lucas
21.10-19

Atos
19.8-9

1 Coríntios
10.12-13, 32-33

Colossenses
2.1-4, 8-10
3.16-17
4.5-6

1 Tessalonicenses
2.3-4

2 Timóteo
2.22-26
Tiago
1.5-8
3

1 Pedro
5.6-11

CONFIANÇA NO SENHOR

Deuteronômio
8.18

1 Crônicas
5.19-20

Salmos
4.4-5
5.7, 11-12
22.2-5
25.1-5
26.1-7
27
28.6-9
31.1-8, 17-18, 24
32.10-11
37.1-7, 34-38
39.7-9
40.4
55.23
60.10-12
62
69
78.21-22
80.1-3, 17-19
84.11-12
111.5-8
119.89-96
123.3-4
125.1-5
128
130.5-8
131
146.1-4

Provérbios
3.5-6
7.1-5, 24-27
11.28
14.26-27
16.20
19.23
20.22
21.2
22.4
23.17-18
28.25
29.25

Isaías
12.2-4
25.8-9
26.1-8
31.1
40.28-31
43.10-12
50.10-11

Jeremias
39.16-18
Atos
9.31

Romanos
9.17

2 Coríntios
2.14-17

1 João
5.4-5

O ÍMPIO ENLAÇADO POR SUAS PRÓPRIAS ARTIMANHAS

Salmos
9.15-16
10.2-3
69.22-23
73.3-12
81.15
92.6-8

Provérbios
5.22-23
6.12-15
8.35-36
10.10, 21, 24-25
12.10-14, 17, 26
13.9-10, 13, 21, 25
14.1, 11-12, 18
18.1-3
19.5, 9
27.20, 22
28.5, 10, 14, 18
29.1, 6

Mateus
16.2-4

Filipenses
3.18-19
Sobre o autor
K. Scott Oliphint, ministro na Igreja Presbiteriana Ortodoxa dos
Estados Unidos, é Professor de Apologética e Teologia Sistemática
no Seminário Teológico de Westminster, Filadélfia. Atualmente é a
principal autoridade em apologética vantiliana. Oliphint é autor de
vários livros e inúmeros artigos acadêmicos.
[1] Nos capítulos que seguem, vamos analisar mais de perto a palavra “apologética”. Por
ora, podemos resumir seu significado como simplesmente “uma defesa da fé cristã”.
[2] Fierce may be the conflict, strong may be the foe, / But the King’s own army none can
overthrow: / Round his standard ranging, vict’ry is secure; / For his truth unchanging makes
the triumph sure. / Joyfully enlisting by thy grace divine, / We are on the Lord’s side, Savior,
we are thine. [tradução livre]
[3] Na língua inglesa, “apologética” (apologetics) tem a mesma raiz de “desculpar”
(apologize). [N. do T.]
[4] Tradução livre da ESV. [N. do T.]
[5] Por exemplo, a ACF. [N. do T.]
[6] O autor se refere à ESV; na NVI a tradução também é “responder”. [N. do T.]
[7] A NVI traz “plenamente preparado”. [N. do T.]
[8] Ye servants of God, your Master proclaim, / And publish abroad his
wonderful Name; / The Name, all-victorious, of Jesus extol; / His kingdom is
glorious, and rules over all.
[9] Jerome H. Neyrey, 2 Peter, Jude, Anchor Bible (Doubleday: New York, 1993), 27.
[10] Aqui, “altivo” tem o sentido de “sublime”. [N. do T.]
[11] C. S. Lewis, The Silver Chair (New York: Collier Books, 1953), 21.
[12] Conhecido também como bombardeiro invisível, o Stealth Bomber (ou B-2 Spirit
Stealth Bomber) é o avião mais caro do mundo. Ele entrou em operação em 1993 e
custaria em torno de 2,4 bilhões de dólares em valores atuais. Alcança a velocidade de
1.010 km/h, mesmo podendo carregar 18 toneladas de bombas convencionais ou
nucleares. [N. do T.]
[13] Make me a captive, Lord, / And then I shall be free; / Force me to render up my sword, /
And I shall conqu’ror be; / I sink in life’s alarms / When by myself I stand; / Imprison me
within thine arms, / And strong shall be my hand.
[14] I’m not ashamed to own my Lord, / Or to defend his cause, / Maintain the honor of his
Word. / The glory of his cross.
[15] Charles Hodge, Commentary on the Epistle to the Romans (reimpressão, Grand
Rapids: Eerdmans, 1980), 37. Embora possa ser o caso de nenhuma pessoa conhecer
cada um dos atributos de Deus em cada aspecto, o objetivo de Paulo ao usar as categorias
gerais de “eterno poder” e “natureza divina” é incluir todos aqueles atributos específicos de
Deus que o tornam Deus. Assim, no versículo 32, vemos que até mesmo o incrédulo sabe
que sua desobediência é digna de morte. Esse conhecimento requer um conhecimento a
priori, por exemplo, da santidade e justiça de Deus.
[16] The spacious firmament on high, / With all the blue ethereal sky, / And spangled
heav’ns, a shining frame, / Their great Original proclaim. / Th’ unwearied sun, from day to
day, / Does his Creator’s pow’r display, / And publishes to ev’ry land / The work of an
almighty hand. // Soon as the evening shades prevail, / The moon takes up the wondrous
tale, / And nightly to the list’ning earth / Repeats the story of her birth; / Whilst all the stars
that round her burn, / And all the planets in their turn, / Confirm the tidings as they roll, / And
spread the truth from pole to pole. // What though in solemn silence all / Move round this
dark terrestrial ball? / What though no real voice nor sound / Amidst their radiant orbs be
found? / In reason’s ear they all rejoice, / And utter forth a glorious voice; / Forever singing,
as they shine, / “The hand that made us is divine.”
[17] Embora a NVI não traga “conhecimento”, outras versões em português o fazem, como
a Almeida Revista e Atualizada: “Os céus proclamam a glória de Deus, e o firmamento
anuncia as obras das suas mãos. Um dia discursa a outro dia, e uma noite revela
conhecimento a outra noite”. [N. do T.]
[18] Blind unbelief is sure to err, / And scan his work in vain; / God is his own interpreter, /
And he will make it plain.
[19] F. F. Bruce, The Books of the Acts, The New International Commentary on the New
Testament (Grand Rapids: Eerdmans, 1986), 24.
[20] Vale lembrar que o apóstolo João usou a ideia do Logos para descrever Jesus Cristo
(veja Jo 1.1, 14; 1Jo 1.1-2).
[21] There’s not a plant or flow’r below / But makes your glories known / And clouds arise
and tempests blow / By order from your throne; / While all that borrows life from you / Is
ever in your care, / And everywhere that man can be, / You, God, are present there.
[22] Joseph A. Fitzmyer, S. J., “The Acts of the Apostles: A New Translation with
Introduction and Commentary,” em The Anchor Bible, vol. 31 (New York: Doubleday, 1997),
608.
[23] Lucretius, “De Rerum Natura”, trad. W. H. D. Rouse, em The Loeb Classical Library,
ed. T. E. Page (Cambridge, Mass.: Harvard University Press, 1959), 131.
[24] “Um dos seus próprios profetas chegou a dizer: ‘Cretenses, sempre mentirosos, feras
malignas, glutões preguiçosos’.” [N. do T.]
[25] Veja, por exemplo, Fitzmyer, “Acts of the Apostles”, 610ss.
[26] Salmos 50.10. [N. do T.]
[27] John Calvin, Institutes of the Christian Religion [João Calvino, As Institutas – Edição
Clássica; São Paulo: Cultura Cristã, 1985], ed. John T. McNeill, trad. Ford Lewis Battles
(Philadelphia: Westminster Press, 1960), 1.7.4.
[28] Ibid.
[29] The Spirit breathes upon the Word, / And brings the truth to sight; / Precepts and
promises afford / A sanctifying light. / A glory gilds the sacred page, / Majestic, like the sun:
/ It gives a light to every age; / It gives, but borrows none. / The Hand that gave it still
supplies / The gracious light and heat: / His truths upon the nations rise; / They rise, but
never set.

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