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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ

CIÊNCIAS SOCIAIS

Memorial de Ciências Sociais.


Ian Flávio Costa; DIDÁTICA I.

1.

A princípio eu preciso dizer que no inicio de todo semestre há sempre uma promessa. E
essa promessa tem sempre a ver com ler toda a bibliografia, deixar tudo em dias, ir à todas as aulas,
pesquisar e anotar tudo que for crucial. O medo de se tornar um mau professor é decorrente de se
reconhecer, de alguma forma, um mau aluno. Por isso a promessa.

Sendo assim no inicio desse semestre houve a promessa. Ela sempre anima assim que
acaba o semestre o anterior a planejar o próximo, idealizar toda uma realidade de interesse,
assiduidade e responsabilidade. Em outras palavras a promessa traz consigo uma necessidade de
disciplina. E nesse caso, disciplina é a melhor ferramenta para se alcançar o objetivo da tal
promessa. Mas é preciso dizer que a melhor parte da vida é a liberdade, e disciplina não tem nada
muito a ver com liberdade, muito pelo contrário, parece mais um prisão envolta em regras e
consequências que te fazem pensar sempre duas vezes antes de fazer qualquer coisa, ou deixar de
fazer qualquer coisa, que é o caso em questão. Por isso a culpa no final. Então... A disciplina
funciona nos três primeiros dias, a promessa parece sólida, inquebrável, mas dai vem as tentações;
dormir mais, jogar com os amigos, um outro livro que não pertence a bibliografia obrigatória,
internet e tudo mais. Todas as coisas que lhe farão ter seus minutos de prazer, a mais pura sensação
de liberdade. É uma pena ser falso. Ou pelo menos parecer.

Porque, veja bem: imagine que exista uma realidade a qual você deseja fazer parte de
alguma forma, por um desejo involuntário de participação, colaboração, imposto em você de forma
inconsciente pelo mundo externo, uma certa obrigação de fazer parte. Então assim você estuda, faz
um curso, visa arrumar um emprego, trabalha, e tem uma vida funcional a essa exigência; não
parece muito livre. Mas existe aí a ilusão de liberdade, pois você pode, dentro de todas as ofertas
que esse mundo faz a você, escolher como você pode fazer parte dele, mas jamais poderá ficar fora
dele. Então você passa a acreditar que se disciplinar é a melhor forma de alcançar “seus” objetivos,
mas ai percebe que talvez você nem queira tanto assim. Só que parando pra pensar também não
consegue imaginar nada que esteja fora disso. Então começam as crises existenciais do meio do
semestre.

Em casa você geralmente tem irmãos, pais, sobrinhos, namorada(o), animais de estimação,
que geram uma certa afetividade. E essa exigência de ser algo e ajudar os demais começa nessa
esfera. Estudar, cursar, trabalhar para ajudar uma família que você nem tem certeza se escolheu; a
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menos que acredite em encarnação voluntária, coisas do tipo. São pessoas a quem você se adaptou a
viver ao lado e sente essa obrigação de retribuir o bem-estar. Não é ruim, é, diferente da obrigação
social, uma boa obrigação, pois causa satisfação. Mas aliada a obrigação social causa tensão. Uma
sina de mais e mais, de nunca ser o suficiente, de que se todos definharem em algum momento a
culpa é sua. É como carregar o mundo nas costas. E ainda por cima você vê tudo isso ao seu redor
acontecendo a todo instante. É no mínimo desesperador. Mas dai você confia no sonho lhe foi
entregue e continua tendo sempre em mente a disciplina. Mas do outro lado vem a liberdade,
querendo algo que nem mesmo ela sabe o que é. E essa dualidade dura sete dias por semana, 30 dias
por mês, 12 meses por ano, ano após ano. Um sonho que você nunca sabe se alcançou, que fica
mais difícil a cada etapa que você se encontra, que você conta os minutos que fica mais próximo de
ver os créditos passar. (respira)

É no mínimo desesperador. Pois no fim você não sabe se conseguiu cumprir a promessa.
Imagine ler todos os livros da bibliografia obrigatória e se formar! Agora imagine chegar em uma
sala de aula, você, professor, sem lembrar nada que leu. Sabendo que você não sabe nada a medida
do quanto mais você aprende. O medo de chegar lá, no “objetivo” ... E falhar. Saber que o objetivo
nunca é o objetivo, é só mais uma parte que se segue pra que se crie um novo objetivo: é como se
“deixássemos a meta em aberta, mas quando atingimos a meta nós dobramos ela” ... Tínhamos um
gênio entre nós e soubemos dar valor, hu. Dá medo de sentar e ler. Qualquer que seja a obra. Pois a
sensação de que é uma perca de tempo, que poderia estar livre! Mas a sensação de que poderia estar
mais perto do objetivo, que poderia ajudar mais alguém, de poder ser mais um pouco. Aquela
estranha vontade de mais. Eu invejo os medíocres, eles não temem a própria existência, muito pelo
contrário, eles sabem de tudo que acreditam precisar saber. Só sei que nada sei, e isso é, no mínimo,
desesperador.

Não sei ao certo se era disso que devia estar falando. Acho que era pra falar sobre a
família, sobre trabalhar, e sobre minha vida, amigos, coisas assim. Eu sei. Mas eu acho que esse
semestre, como toda a minha vida desde os 12 anos de idade é em virtude dessas filosofias baratas.
De pensar a vida como algo a mais que tudo isso. “Tudo isso” ... tudo isso ainda não é o suficiente.
Quem disse que queremos só pão, nem só de pão vive o homem. A virtude de ter apenas aquilo que
precisa, nem mais, nem menos. O problema é a evolução; você se torna mais a cada livro, e a cada
livro você quer ser mais livre. E a sensação de liberdade, desde o começo tem a ver com escolha,
com tudo aquilo que você pode escolher, com tudo o que está disposto a você. Quanto mais melhor.
Nem só de pão vive o homem.

O problema é a promessa. Você promete para ser melhor, mais do que já é. E nunca é o
suficiente. Você só quer ser livre afinal, por isso você continua...

***

2.
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Esse semestre especificamente foi o mais problemático, mas não que os outros não
tenham sido tão problemáticos quanto, deixando a ideia de esse ter sido o mais problemático de
todos esquisita, sendo que todos foram tão problemáticos quanto os outros. É que esse é o problema
presente. E o problema presente é sempre o que dói mais. Eu admito que não foi tão ruim por conta
da universidade em si, de sua estrutura precarizada, dos alunos mesquinhos e ideologizados ‒ do
espaço confuso entre discurso e prática que eles constroem, algo do tipo: “eu quero muito que isso
seja legitimo, mas enquanto não é legitimo eu vou abusar da ilegalidade, vai que assim se torna”,
ou: “já que esse sistema não aceita a forma com que as coisas que eu quero sejam como eu quero
vamos combate-lo, mas com democracia e assembleias pra decidir as pautas de outra assembleia
que se seguirá ao decorrer dos dias, tudo o que esse sistema quer que nos façamos para atrasar
nossos planos de revolução”, ou melhor: “tudo que for realmente relevante para a sociedade e seu
progresso, vamos deixar aqui, dentro dos muros da universidade para que nenhum cidadão leigo que
não seja capaz de compreender do que estamos falando saiba. Então vamos discutir estes temas nas
assembleias e fazer seminários incríveis sobre violência para os professores e alunos quase
formados que provavelmente já deveriam saber de tudo isso” ... Não faz o menor sentido, mas eles
seguem assim ‒ , ou até mesmo dos professores desanimados ou incompreensíveis sem um pingo
de carisma em um conteúdo que poderia mudar o mundo; mas mais por conta do mundo externo.

Aqui fora tá tudo muito louco. Tem gente brigando por causa de política, como quando
brigavam por futebol há 10 anos atrás. É coisa de morte mesmo. Dá um pouco de medo saber que
obrigatoriamente eu estou inserido nisso de alguma forma, eu só não sei qual. É tudo muito real,
mas parece tão distante, tão distante que eu nem sei quem faz o quê. E como no ensino médio, a
universidade fica lendo textos de homens que morreram há séculos sem fazer qualquer paralelo com
os dias atuais. A desculpa é sempre: “você precisa entender isso para entender o que está
acontecendo.”, só que o que está acontecendo, está acontecendo! E o problema presente é sempre o
que dói mais.

Não, não, não, não, não... Eu não estou falando que a universidade perde tempo com as
aulas ou com o conteúdo, ou que não aprendo nada de relevante. Tudo é relevante! Sério, tudo
mesmo. É que me parece sempre que a discussão fica centrada no livro, no que o autor disse. Acaba
a aula e pronto; eu volto pro mundo real, onde uma página escrita muda uma ideia, mas não muda o
mundo. Talvez a ideia mude o mundo, mas ideia é medrosa. Por conta do professor desanimado, da
estrutura precária, das exigências em casa, do mundo lá fora, dos alunos em suas assembleias, das
pessoas que brigam por partidos políticos e dos políticos que eu nem sei se existem. Dá medo de
tentar fazer qualquer coisa com essa ideia. Pois o professor desanimado pode não me ajudar com as
dúvidas, pois ele liga mais pro que o autor disse do que pro que eu interpretei daquilo; educação não
é transferir conhecimento, mas possibilitar a produção e construção de conhecimento, não é?
Segundo Paulo Freire, mas segundo o sistema que aqueles outros alunos tentam combater ‒ acredito
que eu também, um pouco, com essas palavras ‒ o que vale mais é a nota. Um número de um a dez.
Daí a liberdade some. E o que a gente faz? Quem sabe aceite o convite pra uma assembleia que vai
decidir o plano de ensino do próximo semestre, democraticamente e de acordo com valores, muito
parecidos com o que vale de um a dez. o que importa mais, ou que importa menos. No final, não é
sério. Nada parece tão relevante. Hu.
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Talvez eu me torne um profissional frustrado, talvez não. Talvez alguém se torne, mas
você e eu só saberemos quando ele estiver mais preocupado com o que o autor disse do que com o
que o aluno aprendeu. Enfim. A politica me deu medo esse ano, mas me rendeu boas gargalhadas.
Não de felicidade, mas de desespero: “tem que rir pra não chorar”. Eu realmente desprezo essas
frases, mas ela vem bem a calhar nesse momento: “não é a melhor coisa do mundo, mas é o que
tenho”, ou “quem não tem cão caça com gato”, ou “a mão que nos faz mal também nos traz o mel”,
“é pouco mas é o que tem”, esses conformismos baratos. Nem só de pão vive o homem, eu já disse
isso. E nem fui eu quem disse isso. Foi um mestre que não se frustrou. Que combateu o sistema sem
armas desse sistema, que se importava mais com o que as pessoas entenderiam que com o que o
autor falava. E olha que eu não sou cristão. Só sei que o que ele disse tem muito a ver com a
necessidade da gente de ser mais. É daquela sensação de que poderia estar mais perto do objetivo
que ele fala. Eu não quero essa migalha de pão que me oferece, não por que eu não sinto fome, mas
por que é pouco pra fome que eu sinto; eu posso mais, eu quero mais. Não ter, mas ser. Talvez eu
me torne um profissional frustrado, talvez não. Talvez alguém se torne...

***

3.

Bem, quanto a didática como disciplina eu pude assegurar tudo isso que eu já falei. A
principio eu imaginava que seria chato, da forma que as outras disciplinas seguem. Só que aí eu
percebi que não. Era diferente, bem diferente! Tão diferente que todas aminhas metas de ser um
profissional inovador, ao menos comparado ao tradicional, poderia ser possível. As aulas de
didática eram onde eu queria estar todas as quintas-feiras, aprender a como se aprende. Isso é
conhecimento, é ser Sapiens: saber que sabe, conhecer o que conhece. Aprender a aprender, e assim
ensinar bem. Mas não disciplinar, mas guiar. As sensações causadas pelas aulas. As emoções, as
ideias. É como se eu estivesse privado há tempos de sentir isso, pois eu só conhecia isso como
promessa, mas agora, como fato, é incrível. É muito do que eu imaginava como uma boa aula.
Ensinar de forma prática, um exercício de empatia, de colaboração, de reflexão.

Eu devo admitir que tenho um certo bloqueio para me relacionar com as pessoas, eu até
prefiro assim. Mas dentro de todos tem uma parte que quer fazer-se, ou seja ser uma parte de algo.
E é a partir das emoções que isso se mostra e se faz. E nas práticas, no relacionamento com as
pessoas em sala, a forma com que se dava, era simples, sem rodeios, prática e reflexiva. Tudo o que
uma boa aula deve ter e ser. Ainda que eu não tenha conseguido guardar o nome de todo mundo ‒
honestamente o de ninguém, talvez nem o do professor, não, certamente nem o do professor ‒, mas
como as coisas aconteceram com certeza guardaram uma esperança de poder fazer algo, se não
como isso, melhor.

Exercitar a empatia, a comunicação com poucos artifícios e ainda assim alcançar os


objetivos postos é o máximo da virtude que se busca. Poder criar essa sensação de esperança, de
prazer em aprender nos alunos e incitá-los a desejar mais e melhor é o maior orgulho que um mestre
deve sentir de si mesmo. Eu admiro os feitos do professor, agradeço por essa sensação de poder ser
diferente, eu mesmo, livre, quem sabe. A ideia de ensinar antes não era um objetivo, mas como os
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objetivos são sempre novos objetivos à medida que se alcança uma nova etapa dele, eu acredito que
agora seja. Não mudar o mundo, mas mudar as mentes, para que as mentes possam mudar o mundo.
Deixá-lo ser livre.

***

4.

Ah, essa certamente é a pior parte. Mesmo eu tendo lhe dito tudo o que penso a
respeito de aprender, a respeito do futuro, parece que você ainda não está satisfeito, não é? Mas eu
posso fazer de novo. Assim como as promessas se seguem a cada nova etapa do tal objetivo, a fim
de alcançar excelência, que talvez nem exista, a vida segue. Ela evolui, o tempo corre e o futuro
chega. Ainda que seja impossível pensar em futuro, já que ele não existe e quando passa a existir já
deixa de ser. Estamos presos ao presente. É irônico pensar que se chama presente. Presente não é
algo que se ganha de graça? E graça, não é algo dado por deus? Algo divino? E também não é essa
graça algo bom? Divertido, tem graça. Felicidade. O pior é quando não é de graça. Quando exige
esforço, e dói. Pois a dor presente e sempre a que dói mais. E o presente deixa de ter graça e passa a
ser um sofrimento. É pesado, eu sei, pensar assim. Mas eu não penso só assim.

O mundo me faz pensar que tudo aquilo que eu tenho é fruto do meu esforço e que eu
preciso almejar algo no futuro. E que o presente não é nada mais que uma etapa para algo que virá
no futuro. Uma constante escalada. Mas eu não acredito nisso. É uma lógica comercial de mérito.
Não existe mérito na vida. Tudo aquilo que lhe é presente foi lhe dado de graça. Tudo aquilo que é
conquistado exigiu esforço e o esforço não lembra algo feliz, lembra sofrimento. Gostar do fruto
colhido na arvore mais alta, mais difícil de se alcançar, é conformismo. E se o fruto estiver amargo?
Não é só por que a arvore é alta que o fruto é doce. Esse pensamento, de novo foi distorcido pelo
mundo que só te exige conquistas. A ideia de alcançar algo não é material. É sentimental. Até
parado, estático pensando na vida pode trazer algo bom. Como aqui e agora, escrever e pensar nisso
tudo é bom. O percurso é bom, o objetivo é ilusório. E quando eu chegar lá, já não vai ser mais. Por
isso tem graça, por isso é presente.

Depois disso não sei mais se quero falar do futuro. Mas em poucas palavras, se me
permito; acredito que irei bom, bem e engraçado. E quando esse futuro se tornar presente acredito
que permanecerei eu em outro eu. Um eu, quem sabe, melhor, mais experiente e, se possível, sem
muitos planos. Poder experimentar a vida com poucos artifícios e ainda assim alcançar os objetivos
postos. É o máximo da virtude que busco. Basta ser aquilo que eu quero ser lá, quando for. Isso é a
prisão da escolha e é ser livre ao mesmo tempo.

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Eu não tenho mais nada a escrever. Quer dizer, talvez tenha, talvez seja muita coisa a
dizer. Ainda não atingi o limite mínimo de páginas. Pensei em enrolar mais um pouco com mais
filosofia, mais palavras difíceis e repetir pensamentos, mas não seria honesto. Sei que a sensação
que deseja é a de reconhecimento acima de tudo. Você é um exemplo de professor, um ótimo
profissional e certamente um bom mestre. Eu admiro a sabedoria com que exerceu sua obrigação e
nem diria que é uma obrigação profissional, mas de vida. A forma com que empregou pouco e fez
tanto para com os seus alunos. Quem sabe nos tornemos tão bons quanto ou mestre, ou melhores,
espero. E acredito que espere o mesmo. afinal, a missão está longe de ser ensinar, está mais para
inspirar. E você certamente inspirou, não só a mim, mas a muitos outros. Talvez não perceba a
grandiosidade de seus feitos ‒ nossa que frase ‒, não lhe julgo, eu também não percebo do que sou
capaz e preciso ver que minhas ações surtem efeito de alguma forma. Você com certeza já viu e
verá ainda por muito tempo. Mas entendo que a cada etapa, a cada nova turma, as promessas se
repetem e o objetivo se torna mais próximo e ao mesmo tempo inalcançável.

Ainda assim, obrigado.

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