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A comunidade

nipônica e

a legitimação

de estigmas:

o japonês

caricaturizado
MARCIA YUMI TAKEUCHI

saga dos japoneses em terras

brasileiras completa, neste


MARCIA YUMI
TAKEUCHI é doutoranda ano, o seu centenário, con-
em História Social
na FFLCH-USP e autora de, dignamente comemorado.
entre outros, Japoneses:
a Saga do Povo do Entretanto, nem sempre esses
Sol Nascente (Lazuli/
Nacional). cidadãos que vislumbraram

uma vida melhor em nosso país foram

acolhidos de forma positiva. No mo-

mento em que estamos enaltecendo o

sucesso da integração da nossa comu-


nidade nikkei à sociedade brasileira,

necessitamos, contudo, debater o pro-

cesso através do qual essa inserção foi

efetivada, visto que este não foi linear,

nem isento de percalços e conflitos.


A imigração japonesa inicia-se oficial- futuros imigrantes ao visitá-los a fim de
mente em 18 de junho de 1908 quando 781 legalizar a sua documentação de viagem: o
imigrantes a bordo do vapor Kasato Maru nipônico era feio, baixo e de aparência mais
desembarcaram no porto de Santos. Contu- fraca do que forte3. Concordava, portanto,
do, as negociações em torno da introdução com o seu antecessor no cargo, Dario Freire,
de mão-de-obra nipônica nas fazendas de que externara sua opinião ainda em 16 de
1 Sobre a política de branquea-
mento implementada pelo Esta- café datam desde 1895, quando da assinatura novembro de 1906, quando da inauguração
do republicano brasileiro e os
debates em torno da imigração do Tratado de Amizade, Comércio e Nave- de uma linha de navegação direta entre o
japonesa, ver: Dante Moreira gação, em Paris. Como entrave ao ingresso Brasil e o Japão para facilitar a imigração:
Leite, O Caráter Nacional
Brasileiro: História de uma dos nipônicos, intelectuais e autoridades era contrário a ela por considerar os nipô-
Ideologia, 5a ed., São Paulo,
Ática, 1992; Maria Luiza Tucci
(políticas e diplomáticas) alegavam que nicos inassimiláveis e elementos perturba-
Carneiro, O Anti-semitismo na estes não eram adequados seja do ponto de dores na economia e na depuração das raças
Era Vargas: Fantasmas de uma
Geração (1930-1945), 3a ed., vista racial ou político. de qualquer país4.
São Paulo, Perspectiva, 2001; No final do século XIX, a elite brasileira, Inassimiláveis, eugenicamente inferio-
Lilia Moritz Schwarcz, O Espe-
táculo das Raças: Cientistas, profundamente influenciada pelas teorias res e produtores de pobreza nos países que
Instituições e Questão Racial
no Brasil – 1870-1930, São racialistas européias, idealizava a admissão os recebiam. Tal imagem dos japoneses
Paulo, Companhia das Letras, do Brasil no rol das nações desenvolvidas e repercutia desfavoravelmente nos meios
1993; Rogério Dezem, Matizes
do “Amarelo”: A Gênese dos modernas. Um dos principais pressupostos políticos e acadêmicos. Acrescentava-se,
Discursos Sobre os Orientais
no Brasil (1878-1908), São
para a realização desse desejo era o bran- ainda, o perigo político representado pelos
Paulo, Associação Editorial queamento da população brasileira, tida nipônicos como nacionais de uma potên-
Humanitas, 2005; Jeffrey Lesser,
A Negociação da Identidade como inferior e atrasada por ser em grande cia imperialista em ascensão, cuja vitória
Nacional: Imigrantes, Minorias parte miscigenada. Assim, nesse contexto, a sobre os russos, em 1905, assombrara o
e a Luta pela Etnicidade no Bra-
sil, São Paulo, Editora Unesp, vinda de asiáticos não condizia com o futuro mundo5.
2001.
almejado para a nação brasileira1. A conjunção entre ameaça política
2 “Ofício s/no (reservado) de Luís
Guimarães, Encarregado de Essa realidade pode ser apreendida ao e ameaça racial produzia nos discursos
Negócios do Brasil em Tóquio, nos depararmos com a impressão de nossos antinipônicos uma ambigüidade que pode
para Carlos Botelho, Secretário
de Agricultura do Estado de São diplomatas no Japão. A abertura da Legação ser expressa pelo desejo de nossa elite em
Paulo. Legação dos Estados
Unidos do Brasil”, Tóquio,
do Brasil em Tóquio, em agosto de 1897, repetir a modernidade japonesa – o rápido
22/6/1908 (AHI/RJ). representou a oportunidade da intelligentsia desenvolvimento industrial e militar em
3 “Ofício no 13 de Alcino Santos nacional em avaliar o exótico súdito do Im- poucas décadas após dois séculos de isola-
Silva, Cônsul-geral do Brasil em
Yokohama, para o Barão do Rio pério do Sol Nascente. A opinião do corpo mento e regime feudal – e pelo medo da de-
Branco, Ministro de Estado das diplomático não foi favorável, sendo que a generescência racial. Essa conjunção entre
Relações Exteriores. Consulado
Geral do Brasil”, Yokohama, mais conhecida de um dos seus integrantes, atração e repulsa pelo exótico representante
3/5/1908 (AHI-RJ).
Luis Guimarães, encarregado de Negócios do Japão no paraíso tropical brasileiro de-
4 ”Ofício no 15 de Dario Freire, do Brasil em Tóquio, não deixava dúvidas lineou a política dúbia do governo paulista
Cônsul-geral do Brasil em Yoko-
hama, para o Barão do Rio quando informado da natureza de um contra- em relação à imigração japonesa.
Branco, Ministro de Estado das
Relações Exteriores. Consulado to entre a Companhia Imperial de Imigração São Paulo, a fim de acalmar os ânimos
Geral do Brasil”, Yokohama, e o governo paulista, em 6 de novembro de daqueles que eram contrários à iniciativa,
16/11/1906 (AHI-RJ).
1907, que inaugurou a imigração japonesa afirmava que se tratava somente de um en-
5 Guerra Russo-Japonesa (1904-
05). Conflito entre os impérios para o Brasil. Afirmava que abrir as portas saio de braços japoneses na lavoura cafeeira
russo e japonês pelo controle
dos territórios da Coréia e da
a tal corrente significaria trazer para o nosso paulista e não de uma efetiva colonização
Manchúria. O Japão venceu a país os conflitos verificados em São Fran- nipônica6. Como confirmação dessa postura,
guerra e obteve, com a assina-
tura do Tratado de Portsmouth cisco (EUA) entre trabalhadores japoneses o subsídio paulista aos imigrantes nipôni-
(5/9/1905), a parte sul da e brancos, além de qualificar o japonês de cos foi suspenso em 1914, alegando-se a
Ilha Sacalina, Port Arthur , além
das concessões ferroviárias na “espião de nascença”, “inimigo pelo san- baixa fixação dos trabalhadores japoneses
Manchúria e o reconhecimento
do seu protetorado sobre a gue” e “orgulhoso até a morte”2. nas fazendas e a necessidade de se avaliar
Coréia. Às vésperas da partida do vapor Kasato as conseqüências da introdução de sangue
6 Cf. “Ofício s/no (reservado) de Maru do porto de Kobe trazendo a bordo asiático no território paulista. Contudo,
Luís Guimarães, Encarregado
de Negócios do Brasil em os pioneiros japoneses, Alcino Santos Sil- em 1917, o subsídio é retomado pelo go-
Tóquio, para Carlos Botelho, va, cônsul-geral do Brasil em Yokohama, verno diante da diminuição do ingresso
Secretário de Agricultura do
Estado de São Paulo”, op. cit. relatava ao Itamaraty o juízo que tivera dos de europeus, afetado pela Primeira Guerra

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Mundial (1914-18). Em 1922, a subvenção objetivo de preparar a futura invasão militar
é definitivamente cancelada, quando se nor- nipônica no Brasil. Intelectuais, militares e
maliza a imigração européia para o Brasil. políticos xenófobos ressaltavam especial-
Percebe-se, através dessas ações oficiais em mente as concessões de terras proporcio-
relação ao interesse em contar ou não com nadas pelos governos dos estados de São
os trabalhadores japoneses, que estes eram Paulo e Pará.
considerados como substitutos temporários Em relação ao estado de São Paulo, a
dos imigrantes europeus, preferencialmente Legação do Brasil em Tóquio informava ao
latinos e católicos (portugueses italianos e Itamaraty, em 27 de maio de 1911, que o
espanhóis). jornal Jiji Shimpo de Tóquio do dia anterior,
Para o governo japonês, o Brasil era, relatava o regresso ao Japão do representante
até o fechamento de portas aos seus súditos do Tokio Sindicate (Sindicato de Tóquio),
por parte dos Estados Unidos, em 1907, que estivera no Brasil por cerca de um ano
uma segunda opção. Com o movimento estudando e negociando com o governo
antinipônico instalado em São Francisco, paulista assuntos relativos à colonização
a política emigratória japonesa muda de japonesa no estado7.
rumo, encarando os cafezais paulistas Segundo a tradução da referida matéria
como alternativa viável. Contudo, a pers- jornalística, o sindicato obtivera do governo
pectiva de que o fenômeno do preconceito de São Paulo a concessão de 150 mil hectares
racial contra os imigrantes japoneses se de terreno destinado ao estabelecimento de
repetisse no Brasil alertou o Império do uma colônia japonesa. Ainda o artigo infor-
Sol Nascente, que concluiu pela neces- mava que os representantes da organização,
sidade de assumir os subsídios aos seus Aoyagui e Yamaguchi, eram movidos pela
nacionais que desejassem recomeçar a vida convicção de que o desenvolvimento de
no nosso país. Essa “política de Estado” correntes imigratórias bem dirigidas era
empreendida pelo Japão foi amplificada o melhor dos meios de se resolver o pro-
em 1924, com a aprovação da Lei de Ori- blema de superpopulação do Japão. Essa
gem Nacional pelo Congresso dos EUA, seria uma das razões para que, em 1902,
que vedava categoricamente a entrada de trabalhadores japoneses fossem enviados
japoneses por terem sido considerados para as Filipinas após a celebração de um
incapazes de adquirir nacionalidade nor- contrato com uma companhia de extração
te-americana. de carvão. O resultado dessa iniciativa era o
A conseqüência é que, a partir de 1924, fato de existirem, já na localidade, milhares
o Japão começava não somente a subsidiar de japoneses.
as passagens dos seus súditos, mas tam- O risco, na visão do encarregado de
bém a investir capital nas companhias de Negócios Gustavo de Vianna Kelsch, estava
emigração a fim de que essas pudessem na proposta de Aoyagui, que pregava um
adquirir terras no Brasil e instalar as ben- projeto de colonização sistemática no Brasil,
feitorias necessárias para que os colonos sob a fiscalização direta do governo japonês.
japoneses tivessem condições de se manter Esse agente tanto teria se empenhado na
em sua nova pátria de adoção e auxiliar na sua estadia no Brasil, que obtivera o apoio
produção de matérias-primas que seriam, de autoridades políticas de São Paulo e seu
posteriormente, exportadas para as indús- secretário de Agricultura, Antonio de Pádua
trias japonesas. Salles. O resultado fora a concessão gratuita,
O incentivo oficial do Estado japonês homologada pelas duas câmaras e sanciona-
aos seus imigrantes e a instalação de suas da pelo decreto de 3 de janeiro de 1911, de
7 “Ofício no 12 de Gustavo de
colônias em pontos classificados como 150 mil hectares na região de Iguape, sendo Vianna Kelsch, Encarregado de
estratégicos pelos nacionalistas brasileiros, 50 mil para agricultura e o restante para a Negócios do Brasil, para Lauro
Severiano Muller, Ministro de
além do crescente aumento do ingresso de construção de uma cidade. Havia planos Estado das Relações Exteriores.
japoneses, propiciava a circulação da tese para construção de uma nova estrada entre Legação dos Estados Unidos do
Brasil”, Tóquio, 27/5/1911
de que estes se instalavam no país com o o porto e a estação de ferro mais próxima (AHI/RJ).

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à colônia. O empreendimento pagaria as à coletividade japonesa através de ins-
despesas de transporte dos colonos até o seu talações econômicas e sociais (escolas,
destino, montaria e manteria um posto de energia elétrica, usinas de beneficiamento
experiência agrícola e zootécnica, além de de arroz, postos médicos, dentre outras).
uma escola de ensino primário. O governo Como critérios para a aquisição de terras,
paulista, por seu turno, concederia a isenção a Bratac estipulava que os lotes deveriam
de impostos durante cinco anos. ficar, no mínimo, a 40 km das estações
O contrato firmado entre o Sindicato de ferroviárias e necessitavam ter uma área
Tóquio e o governo de São Paulo dispunha superior a 24 mil hectares. O solo preci-
que deveriam ser estabelecidas na colônia sava ser mais fértil que a média aceitável
2.000 famílias em 4 anos, podendo vender e ainda atingir um nível de salubridade
a cada uma dela, à razão de 30 mil réis cada compatível à presença de trabalhadores
hectare, até 25 hectares8. de origem nipônica.
Entretanto, as colônias do Vale do No Pará, através das companhias ja-
Ribeira (Registro, Sete Barras e Katsura) ponesas criadas especificamente para esse
teriam pleno desenvolvimento apenas objetivo, foram instaladas colônias de
quando foram assumidas pela Kaigai imigrantes nipônicos em terras concedidas
Kogyo Kabushiki Kaisha (Companhia de pelo governo paraense. Em janeiro de 1929,
Desenvolvimento Exterior de Kaiko), ou foi estabelecida a Companhia Nipônica de
simplesmente KKKK, fundada em 1917, a Plantação do Brasil com um capital inicial de
partir da unificação das demais empresas de 4 mil contos de réis. Essa empresa recebeu
emigração com o apoio do governo japonês. uma concessão de 1 milhão de hectares de
As colônias foram, de acordo com o projeto terras, distribuídos em duas partes: 600 mil
inicial, equipadas com benfeitorias, maqui- hectares em Acará e outra de 400 mil hec-
nários, escolas e áreas de experimentos agrí- tares em Monte Alegre. Além disso, foram
colas. Essa empresa ainda assumiria todas doadas mais três áreas de 10 mil hectares
as etapas do processo emigratório: seleção cada uma, localizadas em outras regiões do
dos colonos, embarque e desembarque dos estado. Interessava ao governo desenvolver
japoneses em seu país de destino. essa região inóspita com o capital e a força
Em 1929, outra empresa de colonização de trabalho provenientes do Japão.
japonesa, a Bratac, adquiriu quatro grandes As atividades privilegiadas seriam a
glebas, sendo três no estado de São Paulo agricultura, a mineração, a indústria, o co-
e uma no estado do Paraná, exploradas mércio, os transportes, dentre outras. Para
sob a forma de loteamento, em lotes de 25 tanto, fazia-se necessário a instalação de
hectares. O imigrante recebia do governo toda uma infra-estrutura subsidiada pelo
japonês a passagem para o Brasil e podia capital japonês: estradas de ferro, pistas
8 “Tradução do Artigo Publica-
do pelo Jiji Shimpo de 24 de adquirir sua porção de terra mediante o para aviões, portos, sistema de energia
maio, anexo ao ofício n o 12 pagamento de uma soma inicial ainda no elétrica. A Companhia Nipônica de Plan-
de Gustavo de Vianna Kelsch,
Encarregado de Negócios do Japão. O restante da dívida deveria ser pago tação do Brasil abriu 600 mil hectares em
Brasil, para Lauro Severiano
Muller, Ministro de Estado em prestações, à medida que o imigrante Acará (atual Tomé-Açu), para onde, em 24
das Relações Exteriores. Le- fosse progredindo no país receptor. O capital de julho de 1929, dirigiram-se 43 famílias,
gação dos Estados Unidos do
Brasil”, Tóquio, 27/5/1911 dessas sociedades cooperativas provinha num total de 189 imigrantes, que chegaram
(AHI/RJ).
do governo central e dos governos das a bordo do vapor Montevidéu Maru. Após
9 Valdemar Carneiro Leão, A províncias japonesas9. desembarque no porto do Rio de Janeiro,
Crise da Imigração Japonesa no
Brasil (1930-1934): Contornos A Bratac, fundada de acordo com as em 7 de setembro de 1929, esse grupo em-
Diplomáticos, Brasília, Funda-
ção Alexandre de Gusmão, leis brasileiras, mas subvencionada pelo barcou para Belém, chegando em Acará a
1989, p. 32. governo japonês, administrava as colônias 22 de setembro de 192910.
10 Álbum Comemorativo do 25o de Bastos, Alianças e Tietê, no estado de Tais concessões foram vistas pelos an-
Aniversário de Fundação da
Colônia Tomé-Açu/Pará (1929- São Paulo, e a de Três Barras, no estado tinipônicos como estratégia do Império do
1954), Acervo do Museu Histó- do Paraná. Essa empresa tinha como res- Sol Nascente em utilizar seus imigrantes
rico da Imigração Japonesa no
Brasil, São Paulo. ponsabilidade fornecer auto-suficiência instalados em “verdadeiros latifúndios” para

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promover, no futuro, o domínio político e assinatura do Tratado das Nove Potências,
militar sobre o Brasil. É preciso considerar que determinava o respeito à integridade
que, nesse período, final dos anos 1920 e territorial da China e que as esquadras
início da década de 1930, o Japão implemen- japonesas fossem, em quantidade e em
tava uma política agressiva na Manchúria, o tonelagem, menores do que as dos Estados
que levaria a uma nova guerra com a China Unidos e da Grã-Bretanha13.
em 1937. Na mentalidade antinipônica, os Existia, portanto, entre aqueles que
projetos de colonização japonesa atendiam denunciavam o complô japonês, uma as-
a um plano preconcebido apresentado ao sociação entre a política imperialista japo-
imperador Hirohito, em 25 de julho de nesa na Ásia e a emigração para o Brasil.
1927, pelo primeiro-ministro Giichi Tanaka Contudo, há que se ressaltar que a atitude
(1927-29). Conhecido como Memorando japonesa denotava seu imperialismo, vis-
Tanaka, esse documento foi considerado to que o estímulo de saída dos japoneses
falso no Tribunal de Tóquio, instalado pelos pobres de seu país começou por motivos
Aliados em 1946 para julgar os crimes de capitalistas, num contexto em que o Japão
guerra cometidos pelo Japão11. entrava tardiamente em competição com
Falso e apócrifo, mas o Memorando Ta- os países ocidentais pela implantação de
naka ganhou credibilidade, especialmente colônias no exterior. Esses núcleos colo-
nos Estados Unidos, e dali para o Brasil, niais significavam o poder econômico pela
graças ao expansionismo nipônico voltado expansão territorial, imprescindível ao Ja-
para as riquezas do território chinês, iniciado pão, país carente em recursos naturais e de
exatamente durante o mandato de Tanaka território. Com o Incidente da Manchúria,
(1927-29), o que deu credibilidade ao em 1931, e o estabelecimento do Estado
documento, originalmente intitulado “Por títere de Manchukuo, em 1932, houve um
uma Política Positiva na Manchúria”. Em considerável aumento de envio de japoneses
linhas gerais, o memorando expressava que para essa região14.
as conquistas japonesas estavam previstas O antiniponismo no Brasil conjugava,
desde a Era Meiji (1867-1912), e que a portanto, a denúncia do imperialismo japo-
conquista da Manchúria e a da Mongólia nês no Brasil ao nacionalismo, e a praxis
seriam decisivas para o domínio mundial originada desse discurso intolerante foi a
do Império japonês. A tática utilizada se- iniciativa liderada pelo Jornal do Com-
ria, além do suborno dos príncipes locais, mercio (RJ), na figura de José Félix Alves
a introdução de colonos japoneses em Pacheco (1879-1935), seu proprietário, que
massa nessas regiões, dentre eles militares abrira espaço em seu jornal para os ataques
disfarçados de lavradores e de chineses. aos imigrantes japoneses, redigidos prin-
Localizados em pontos estratégicos, em cipalmente por Miguel de Oliveira Couto
terras adquiridas na região, os nipônicos (1865-1934), médico eugenista, que apon-
iniciariam a dominação agrícola, industrial tava o imigrante japonês como aquele que
11 Cf. Sociedade Brasileira de
e comercial nesses territórios12. se infiltrava no organismo nacional a fim Cultura Japonesa, Uma Epo-
Para desenvolver sua conspiração, Tó- de destruí-lo. Em obras como A Medicina péia Moderna: 80 Anos de
Imigração Japonesa no Brasil,
quio teria criado especificamente para esse e a Cultura (1932), No Brasil Só Há Um Comissão de Elaboração da
História dos 80 anos da Imi-
fim o Departamento de Negócios Coloniais Problema Nacional: A Educação do Povo gração Japonesa no Brasil,
ou Ministério da Colonização (Takumusho), (1927), Seleção Social (1933), combatia a São Paulo, Hucitec, 1992, p.
165.
em 1929, que se responsabilizaria pela corrente imigratória japonesa com base na
12 Marcia Yumi Takeuchi, O
emigração e pela administração colonial eugenia e no temor político. Perigo Amarelo: Imagens do
na Manchúria, Mongólia e, também, no A Assembléia Nacional Constituinte Mito, Realidade do Preconcei-
to (1920-1945), São Paulo,
Brasil. O controle sendo feito diretamente de 1933 representou a ocasião esperada Humanitas, 2008, pp.193-4.
pelo governo japonês garantiria o segredo, por Couto e demais deputados antinipô- 13 Idem, ibidem, p. 196.
indispensável para enganar as potências nicos para restringir ou mesmo impedir 14 Chiyoko Mita, Bastos: uma
ocidentais, que vinham intentando dimi- a continuidade da imigração japonesa. O Comunidade Étnica Japonesa
no Brasil, São Paulo, Humanitas,
nuir o poderio japonês, desde 1922, com a grupo ainda contava com Antonio Xavier 1999, pp. 27-31.

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de Oliveira (1884-1953), psiquiatra, e Artur últimos 50 anos. Depreende-se que como a
Neiva, que fora diretor do Serviço Sanitá- imigração japonesa era a mais recente e a que
rio de São Paulo e interventor federal na registrava maior crescimento nos últimos
Bahia (1931). anos, esse artigo a visava diretamente.
Nos debates empreendidos por Couto, Portanto, a década de 1930 significou
Neiva e Xavier de Oliveira, os imigrantes o recrudescimento do sentimento antini-
japoneses e seus descendentes no Brasil pônico no Brasil, estimulado pelas ações
foram qualificados como indivíduos feios, militaristas japonesas na Ásia. Por outro
hipócritas, portadores do eterno sorriso, que lado, no nosso país, Getúlio Vargas iniciava
obedeciam tão-somente às ordens de seus seu governo, que se revelaria autoritário e
chefes. Estes, por sua vez, receberiam os co- doutrinário, cuja concepção nacionalista
mandos diretamente do governo japonês. Os – localizada nos movimentos intelectu-
homens do complô nipônico considerariam ais dos anos 1920 – seria utilizada como
legítimos todos os meios para a destruição instrumento para a manutenção da ordem
da nação brasileira, inclusive a espionagem. (política e social) preconizada pelo regime.
Eram, em suma, na expressão tomada de A centralização em torno do governo federal
Miguel Couto, abutres e serpentes que se se exacerba com o golpe do Estado Novo,
infiltravam, a fim de tomar todas as riquezas em 10 de novembro de 1937. A partir desse
de nossa pátria15. Xavier de Oliveira, em momento, as comunidades estrangeiras são
seus discursos, afirmara que os japoneses alvos da política oficial de nacionalização,
tinham tendência a desenvolver doenças implementada através de decretos-leis, que
mentais incuráveis. Já Artur Neiva conside- atinge duramente a colônia nipônica, cuja
rava que os nipônicos, além de serem muito cultura e costumes eram distantes dos bra-
mais organizados do que os brasileiros, não sileiros, circunstâncias que a transformaram
eram sinônimo de estética, ao contrário dos em paradigma de enquistamento étnico e
desejados imigrantes ibéricos, capazes de zona de influência do Império do Sol Nas-
depurar a raça brasileira. cente e suas ambições imperialistas.
As emendas apresentadas por esses par- Os japoneses tiveram com a naciona-
lamentares provocaram a reação do governo lização forçada, a partir de 1938, o fecha-
japonês, que assistira a fato semelhante nos mento de jornais, escolas e associações.
Estados Unidos, e do Itamaraty, que iniciou Através desses mecanismos, o discurso
uma negociação com os líderes da maioria antinipônico e a mentalidade xenófoba e
da Assembléia Constituinte a fim de que racista repercutiram no imaginário políti-
as propostas francamente discriminatórias co-brasileiro dos anos 1920 e 1940. Com o
não lograssem êxito. ataque japonês à base norte-americana de
Embora o Ministério das Relações Ex- Pearl Harbor (Havaí), em 7 de dezembro de
teriores, em muitos momentos, tenha se 1941, as suspeitas em torno do fim político
manifestado pouco simpático à imigração da colonização japonesa no Brasil foram
japonesa, não lhe interessava um conflito confirmadas. A partir desse instante, o mito
com o Japão, potência militar em ascensão. do perigo amarelo ganhava aura e certeza
O esforço conjunto efetuado pelo embai- de realidade, e o Memorando Tanaka, o selo
xador japonês no Rio de Janeiro, Kyujiro de verdade incontestável.
Hayashi, e pelo Itamaraty obteve como Contudo, para que a campanha antini-
resultado a exclusão das emendas antini- pônica pudesse circular e fosse legitimada
pônicas. No entanto, em contrapartida, foi junto à opinião pública, assim como a
aprovada em seu lugar a Emenda Miguel repressão a que os nipônicos ficaram sub-
15 Cf. “Pronunciamento de Miguel
Couto na Sessão de 27 de
Couto, posteriormente o artigo 121 da Cons- metidos, com o rompimento das relações
Fevereiro de 1934. Assembléia tituição Federal de 1934, que determinava diplomáticas entre o Brasil e as potências
Nacional Constituinte, 1933-
1934”, in Annaes da Assem- que nenhuma corrente imigratória poderia do Eixo em 29 de janeiro de 1942, era
bléia Nacional Constituinte, pp. exceder a cota de 2% sobre o número total de necessário que a imprensa, especialmente
16-27. Cf. Valdemar Carneiro
Leão, op. cit., p. 319. respectivos nacionais entrados no país nos através das charges políticas, endossasse

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o ideário nacionalista. Particularmente no
período da Segunda Guerra Mundial foram
profusas as caricaturas e as charges que Figura 1
condensavam, em seus poucos traços, os
estereótipos atribuídos aos nipônicos16.
O uso da iconografia como ferramenta
de denúncia foi incorporado também pela
literatura antinipônica, que circulou no perí-
odo do conflito mundial. Um dos expoentes
desse tipo de produção literária é o livro A
Ofensiva Japonesa no Brasil: Aspecto So-
cial, Econômico e Político da Colonização
Nipônica, do advogado gaúcho Carlos de
Souza Moraes17, publicado em sua primei-
ra edição em 1937, e reeditado em 1942,
tendo como impulso o conflito mundial. O
diferencial dessa segunda edição estava na
incorporação de documentos incontestáveis,
na visão de seu autor, da ofensiva nipônica
no nosso país e da doutrinação dos japoneses
no único fim de cooperar para a grandeza do
Império japonês. Dentre esses documentos, imediata contra a comunidade japonesa,
há a reprodução integral do Memorando isolada e enquistada, sinônimo da nocivi-
Tanaka, dos decretos do governo paraense e dade alienígena.
amazonense que possibilitaram a concessão A utilização da iconografia tem a função
de terras para empresas japonesas e das car- de “dar um rosto” ao inimigo e, ao associá-lo
tas de delação de membros da comunidade claramente ao mal, o desenhista ou aquele
japonesa atestando, de fato, as manobras de que se serve dela consegue convencer uma
Tóquio em direção às Américas. mente emocional. Assim, sua capacidade de
Entretanto, uma das contribuições visibilizar situações impressiona mais, numa
principais de Moraes ao nosso estudo é a campanha de ódio, do que um colunista ou
inserção de documentos iconográficos, que um orador. No caso de Souza Moraes, o mapa 16 Para análise detalhada das
charges políticas e das revis-
tinham como função metaforizar o perigo ilustrado compunha e complementava outras tas ilustradas Careta (RJ), O
Malho (RJ) e Revista Inteligência
japonês e traduzi-lo para a população em imagens, tais como de oficiais japoneses – Mensário da Opinião Mundial
geral. Um dos exemplos é o mapa ilustrado em exercício de baioneta, utilizando-se de (SP) na difusão do discurso
antinipônico, ver: Marcia Yumi
do estado de São Paulo (Figura 1) sendo prisioneiros chineses vivos representando Takeuchi, “O Japonês como
tomado, de um lado, por um militar nipôni- sacos. O mote era demonstrar que os japo- Personagem das Charges Po-
líticas”, in O Perigo Amarelo:
co infiltrado em São Paulo (como lavrador neses eram desumanos, sendo qualificados Imagens do Mito, Realidade
do Preconceito (1920-1945),
disfarçado) e de outro por um monstro, como “trogloditas do século XX”18. op. cit., pp. 220-49.
misto de dragão e eqüino. Percebemos nessa O propósito das imagens saídas das 17 Carlos de Souza Moraes, A
imagem a bestialização do complô, quando pranchetas dos cartunistas, por meio da Ofensiva Japonesa no Brasil:
Aspecto Social, Econômico
os agentes da conspiração são simbolizados deformação grotesca proposital do indiví- e Político da Colonização
como animais ferozes ou imundos, que duo, é produzir uma reprodução desfigu- Nipônica, Porto Alegre, Livraria
do Globo, 1942.
insidiosamente procuram dominar suas rada do personagem em foco, que origina
18 Idem, ibidem, p. 135.
vítimas. Visualizamos não o mapa em si modelos que passam a ser multiplicados,
19 Maria Luiza Tucci Carneiro “O
como a presa, mas simbolicamente a região configurando os estigmas. Assim, os char- Discurso da Intolerância: Fontes
para o Estudo do Racismo”,
que recebera o maior número de imigrantes gistas, realçando aspectos que tornam seu comunicação apresentada em
nipônicos, indefesa e tomada, praticamente objeto a encarnação do ridículo/cômico, 30/11/1994, São Paulo,
Salão de Convenções Anhembi,
já separada do território nacional. O tom compõem certos tipos imaginários que são no 10o Congresso Brasileiro de
sombrio da imagem não oferece nenhuma endossados e reforçados por outros gêneros Arquivologia – 7o Seminário de
Fontes para História do Brasil,
saída, a não ser uma reação nacional e discursivos19. p. 30.

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cotidiano. Os estereótipos associados aos
Figura 2 súditos japoneses, inimigos da ocasião,
estavam todos nessas imagens: o sorriso
amarelo através da dentadura proeminente,
a humildade hipócrita e o fanatismo mal
disfarçado. Até mesmo diante de seus
aliados nazi-fascistas, o nipônico era
identificado como inferior. Em uma charge
publicada originalmente em 1945, na Folha
da Noite (SP), do cartunista Belmonte21,
Hirohito surge travestido de gueixa, abatida
e queixosa, diante da impossibilidade de
auxílio de seus dois aliados, Hitler e Mus-
solini (Figura 2). O quimono da “gueixa”
é decorado com suásticas e a sua posição
é de aguardo pelo punhal empunhado
pelo presidente norte-americano Franklin
D. Roosevelt, trajado como samurai vin-
gador. As legendas, em forma de soneto
desconsolado, aliadas à iconografia e ao
contexto histórico, nos traduzem a intenção
de Belmonte: “Não vem o Adolfito! / Não
vem o Benito! / E eu, Hiroíto, / Também
estou frito!”22.
A partir do levantamento feito nas re- A caracterização do nipônico como in-
vistas ilustradas no período da Segunda divíduo acovardado está presente também
Guerra Mundial, verificamos que há uma na charge “A Hora H”, capa da revista
constante na representação do nipônico: Careta (RJ), de 20 de maio de 1944. O
os japoneses protagonistas das charges povo japonês representado pelo seu líder,
veiculadas pelas revistas ilustradas tais ocupante do Trono do Crisântemo, surge
como Careta (RJ) e O Malho (RJ) expres- apoiado à Alemanha nazista, simbolizado
sam o fanatismo e a índole traiçoeira, que por Adolf Hitler. No entanto, Hitler, apesar
complementam e auxiliam na compreensão da ameaça de derrota iminente, demonstra
do público sobre o perigo amarelo. O fí- ainda uma postura altiva, enquanto Hiro-
sico medíocre, os dentes proeminentes e a hito se abraça ao Fürer, choroso, diante
postura “humilde” e curvada convidam ao do clamor público expresso na legenda:
riso, mas criam arquétipos, alimentados por “Tá na hora! Tá na hora!”. A imagem em
mitos ou representações deturpadas do real, questão apresenta um diferencial gráfico
que, se repetidos constantemente, “levam que comprova a criatividade do chargista:
o indivíduo a elaborar uma interpretação um H maiúsculo, referência à coincidência
falsa de um grupo”20 e a discriminar os da letra inicial dos nomes dos dois persona-
seus membros. gens, e os complementos (“itler”, “irohito”)
20 Idem, ibidem.
Embora as charges desse momento respectivamente em caracteres góticos (Ale-
21 Belmonte, nome artístico de histórico remetam à guerra e os nipônicos manha) e “orientais” (Japão). O “H” remete
Benedito Carneiro Bastos Bar-
reto (1896-1947), nascido na sejam representados por soldados e oficiais, também ao título da charge e as espadas de
cidade de São Paulo, criador
do personagem Juca Pato. e até mesmo pelo imperador Hirohito, Hitler e Hirohito, aos ponteiros do relógio.
22 “A Queixa da Geisha”, in a imagem ridicularizada e inferiorizada Não por acaso, há diferença descomunal
Belmonte, Caricatura dos Tem- atingia os seus leitores, que passavam em relação ao tamanho das armas: a de
pos, São Paulo, Melhoramen-
tos/Círculo do Livro, 1982, a associar esse perfil estereotipado aos Hirohito é muito menor que a de Hitler,
p. 82 (caricatura publicada
nipônicos e aos seus descendentes em sendo a espada simbolicamente referência
originalmente em Folha da
Noite, de São Paulo, s/d). geral, indivíduos que encontravam no seu de masculinidade (Figura 3).

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Os cartunistas incorporavam e re(tra-
Figura 3
balhavam) esses estereótipos e expressões
pejorativas, de forma que o humor auxiliasse
na incorporação no inconsciente coletivo
da representação do nipônico animaliza-
do. A charge “Não Adianta”, publicada na
Careta de 28 de outubro de 1944, expressa
visualmente essas idéias, materializando o
preconceito. Na cena elaborada pelo char-
gista Théo, surgem dois militares japoneses
dialogando, nos quais há inegáveis traços
simiescos. O primeiro, soldado, informa
ao seu tenente que tivera a iniciativa de
se camuflar a fim de sobreviver com mais
eficiência ao inimigo. A camuflagem foi
colar uma cauda, pois, segundo o soldado
caricaturizado, os norte-americanos não
distinguiam entre um símio e um japonês.
Ao que responde o tenente: “Ah! Então é
por isso que tenho encontrado tanto macaco
morto!”. Verificamos, na ironia da resposta,
que mesmo o oficial já não era mais capaz
Em síntese: Hirohito gueixa ou Hirohito de fazer a distinção, inserido que estava
choroso remetem à idéia de um nipônico no meio ambiente adequado de luta para
no íntimo fraco, de onde a força surge do os bárbaros japoneses: a selva distante da
fanatismo, que poderia levá-lo ao haraqui- civilização (Figura 4).
ri. A morte honrosa não era mais do que
característica associada a sua inferioridade
e a tendência intrínseca do nipônico em
manifestar doenças mentais. A sua única
Figura 4
capacidade reconhecida era imitar as ino-
vações técnicas do Ocidente e revendê-las
a baixos preços no mercado mundial. A
má qualidade dos seus produtos, obtidos
com a exploração de seus trabalhadores e
da escravização dos povos que dominava,
garantiu ao japonês a pecha de “macaco
amarelo”. Assim, para os ideólogos do
perigo amarelo, o nipônico somente “ma-
caqueava” as conquistas obtidas antes pela
civilização branca/ariana.
A imagem de símio era repercutida en-
tre os japoneses no Brasil, sendo comuns
relatos de imigrantes que se queixavam
de ser ofendidos nas ruas, especialmente
no período da Segunda Guerra Mundial,
com epítetos, para os homens, de “cara
de macaco”, e de “pata de vaca”, para as
mulheres, por elas utilizarem os tamancos
tradicionais que separavam o polegar do pé
dos demais dedos.

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Através da análise de pequena amos- de algumas perspectivas, que delineio a se-
tragem de documentos iconográficos guir. Continua atuando entre nós o mito da
como as charges, podemos perceber que democracia racial e do nosso país como um
a imagem completa o texto, facilitando paraíso em que nunca existiu preconceito.
a compreensão do leitor, a circulação do É fundamental, nesse particular, enfatizar
discurso intolerante e a incorporação do que mesmo os antinipônicos mais ferrenhos,
preconceito. No entanto, o aspecto mais como o já citado Miguel Couto, afirmavam
importante que deve ser ressaltado é que não serem movidos pelo preconceito de
essas imagens pejorativas já se encontravam raça, embora os seus argumentos estives-
presentes no imaginário político brasileiro sem eivados dele. De fato, essa suposta
décadas antes da Segunda Guerra Mundial, liberalidade contribuiu para que as portas
mais precisamente, são anteriores ao início à corrente imigratória japonesa não fossem
oficial da imigração japonesa. O contexto definitivamente fechadas, mas teve como
internacional viabilizava a manipulação efeito colateral promover um esforço de es-
por setores da elite desses símbolos, e os quecimento, mesmo dentro da comunidade
caricaturistas, através de seu trabalho, re- nikkei, dos dramas vivenciados pelos seus
forçavam e legitimavam os estigmas que antepassados. Optou-se em valorizar o su-
emergiam dos discursos oficiais e das obras cesso profissional e a ascensão social como
de propaganda antinipônica. forma de se superar os traumas e os conflitos
Para finalizarmos, cabe uma questão antes e depois do fim da guerra. Contudo,
pertinente no momento em que comemo- entendemos que resgatar as histórias de
ramos o centenário da imigração japonesa intolerância e de estigmas não deprecia o
no Brasil: se os imigrantes japoneses legado deixado pelas primeiras gerações de
foram alvos de polêmica desde o início, japoneses no Brasil, pelo contrário, enaltece
como explicar que a maior comunidade de uma comunidade que soube se reerguer e
nipônicos fora do Japão esteja no Brasil? superar as adversidades da integração em
Podemos responder a essa pergunta através um novo meio.

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