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OPINIÃO OPINION 141

Análise crítica sobre especialidades médicas


e estratégias para integrá-las ao Sistema Único
de Saúde (SUS)

A critical analysis of medical specialities


and strategies for their integration into the
Unified National Health System in Brazil (SUS)

Gastão Wagner de Sousa Campos 1

Maurício Chakour 1
Rogério de Carvalho Santos 1

1 Departamento de Medicina Abstract The implementation of medical specialization in Brasil has been relatively free of
Preventiva e Social,
constraints. There has thus been a progressive fragmentation of medical work. The so-called
Faculdade de Ciências
Médicas, Universidade root specialities are losing both their strength and clinical problem-solving capacity. Two op-
Estadual de Campinas, erational concepts are proposed for achieving better administration of medical responsibilities
C. P. 6111, Campinas, SP,
and the role of medical professionals: 1) field of competence and 2) core competence. General
13081-970, Brasil.
goals are suggested for reforming specialized training and integration of specialists into the
Unified National Health System.
Key words Medical Specialties; Health Systems; Health Policy; Public Health

Resumo Identificou-se relativa liberdade dos médicos brasileiros para criação de novas espe-
cialidades médicas, havendo, em conseqüência, progressiva fragmentação do trabalho em saúde,
verificando-se também crescente diminuição da importância e mesmo da capacidade resolutiva
das especialidades-raízes: clínica médica, pediatria, cirurgia geral e gineco-obstetrícia. Propõem-
se dois conceitos operativos para redefinição da abrangência e da responsabilidade do trabalho
médico: Campo de competência e Núcleo de Competência. São também levantadas diretrizes
para reforma das políticas de formação e de incorporação de especialistas ao SUS.
Palavras-chave Especialidades Médicas; Sistemas de Saúde; Política de Saúde; Saúde Pública

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):141-144, jan-mar, 1997


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Considerações sobre as especialidades de terapêuticas em tempo hábil. Em decorrên-


médicas e sobre sua influência cia, multiplicam-se os encaminhamentos e a
na organização do trabalho em saúde realização de exames complementares injusti-
ficados. Ainda não se encontraram diretrizes
A criação de especialidades médicas tem sido práticas que atenuassem estes efeitos inevitá-
mais ou menos “livre” no Brasil. A Associação veis da incorporação de novas especialidades
Médica Brasileira (AMB) tem deixado a cargo aos sistemas de saúde. Quer nos países desen-
dos médicos a iniciativa pela abertura de novas volvidos, quer em outros mais pobres, consta-
Sociedades de Especialistas. Em documento tam-se tanto um declínio da eficácia dos servi-
interno estabeleceu-se que “para caracterizar ços de saúde, quanto um outro efeito deletério
uma área de atuação médica como especiali- que se convencionou denominar de “elevação
dade é necessário que ela reúna pelo menos crescente dos custos em saúde” (Freidson,
cem especialistas afins, e que exista há pelo 1978).
menos dois anos como entidade civil organiza- Retomando o exemplo anterior, se é estúpi-
da” (AMB, 1994a). do negar valor à existência de algumas equipes
Estes dois critérios – uma dada massa críti- especializadas em cirurgia de mão, estrategica-
ca de profissionais e uma certa estabilidade mente posicionadas em hospitais de referência
temporal para a área de atuação – têm uma ló- regional, não podemos ignorar, também, que,
gica tipicamente liberal; a livre-iniciativa dos na medida em que são instalados estes novos
profissionais descobriria necessidades do sis- serviços, desenvolve-se tendência da maioria
tema de atenção sem outros condicionantes dos cirurgiões gerais de encaminharem todos
que os acima mencionados. Ou seja, para a en- os casos de lesão desta parte do corpo, ainda
tidade médica engarregada por lei da regula- que tivessem tradição de resolvê-los com ra-
mentação das especialidades não haveria cri- zoável grau de competência no período ante-
térios políticos, sociais ou econômicos interfe- rior à existência destes serviços especializados.
rindo neste processo. Em nenhum momento Sendo assim, quando se adotam processos
menciona-se qualquer possibilidade de plane- de trabalho centrados na lógica da especializa-
jamento da quantidade ou do tipo de especia- ção, há sempre uma tendência ao esvaziamen-
listas que deveriam estar sendo formados. to de função e posterior desaparecimento das
No entanto, hoje, já é possível constatar-se “especialidades mais gerais”. Refiro-me não so-
a insuficiência desta política. Paradoxalmente, mente ao clínico geral, supostamente, egresso
uma vez criada a especialidade, parece esgo- das faculdades, mas aos pediatras, gineco-obs-
tar-se o espírito liberal e desregulamentador tetras, cirurgiões gerais e internistas. O mesmo
das entidades médicas. efeito passa a acontecer também com algumas
Verifica-se clara tendência da maioria das outras especialidades-raízes de alguma linha
sociedades de especialistas de definir de modo de especialização, como os casos dos neurolo-
extremamente rígido a área de competência gistas e cardiologistas (CFM, 1996).
das especialidades, conseqüentemente negan- No Brasil, o Sistema Único de Saúde pre-
do aos demais médicos capacidade para reali- tendeu enfrentar este problema criando um
zar procedimentos incluídos na área de com- modelo hierarquizado de atenção. Em teoria,
petência regulamentada por cada especialida- haveria uma rede básica onde trabalhariam ou
de (AMB, 1994b). o clínico geral (médico de família) ou, pelo me-
Partindo de uma postura liberal, a política nos, equipes compostas pelas quatro “especia-
das especialidades defende normas estrita- lidades gerais”: clínica médica, pediatria, gine-
mente corporativistas. Esta contradição tem co-obstetrícia e medicina sanitária. Em algu-
gerado mais problemas do que soluções para mas situações incorporam-se cirurgiões, para
os sistemas públicos e privados de saúde. cirurgia ambulatorial, e psiquiatras.
Por um lado, é inegável a legitimidade téc- Sem dúvida, é uma proposta racional. En-
nica da maioria das especialidades médicas. tretanto, ela tem encontrado dificuldades prá-
Em geral, contribuem para aumentar a capaci- ticas para sua operacionalização. De saída, não
dade resolutiva da prática médica. Um exem- são facilmente encontrados clínicos gerais, tra-
plo: a existência de cirurgiões especializados ta-se de um profissional em extinção no País.
em mão aumentaria, teoricamente, a possibili- Além do mais, constata-se uma tendência das
dade de recuperação de casos considerados redes primárias operarem com baixíssima ca-
perdidos até alguns anos atrás. pacidade resolutiva, não somente por proble-
Por outro lado, contudo, a fragmentação do mas de infra-estrutura ou de manutenção, que
trabalho médico em múltiplas especialidades são relevantes, mas também pela dificuldade
tem difucultado o diagnóstico e a instituição de os profissionais médicos exercerem a clíni-

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ESPECIALIDADES MÉDICAS 143

ca com sentido eficaz. Os melhores serviços de habilidades médicas básicas. Cirurgiões


básicos funcionam como pronto-atendimen- descuidam da clínica, clínicos da dinâmica psí-
tos voltados para cuidado sintomático e são, quica dos seus pacientes, cardiologistas igno-
em inúmeras localidades, instâncias de tria- ram a pneumologia básica e assim sucessiva-
gem que não aliviam a sobrecarga dos especia- mente. Desta forma, a prática médica se com-
listas (Campos, 1992). plica sem que ocorra, proporcionalmente, me-
As faculdades de medicina têm estruturado lhoria da eficácia ou diminuição de custos. Ao
seus cursos dentro da mesma lógica. A maioria contrário.
dos professores tem formação especializada e Uma linha alternativa de raciocínio poderia
tem dificuldade em conservar e, portanto, em ser a seguinte: dividir a denominada área de
transmitir saberes e práticas mais polivalentes. competência de cada especialidade em dois
O ensino é segmentado e, muitas vezes, padece espaços inclusivos:
de lacunas básicas importantes, conforme as Um mais geral, denominado campo de com-
características aleatórias da composição do petência, que incluiria os principais saberes da
corpo docente (Abem, 1995). especialidade-raiz e que, portanto, teria um es-
Observa-se na residência uma tendência a paço de sobreposição de exercício profissional
reproduzir este modelo. Pesquisa recente da com outras especialidade. O campo de compe-
Fundap encontrou que as áreas menos procu- tência não caracterizaria monopólio profissio-
radas pelos graduados são exatamente aquelas nal da especialidade; ao contrário, seria um
das “especialidades gerais”. Não há, por parte campo de intersecção com outras áreas. Por
das escolas, dos hospitais ou dos governos, po- exemplo: o campo de competência do especia-
líticas que priorizem a formação desta ou da- lista em cirurgia de mão seriam as lesões de
quela especialidade (Fundap, 1994). mão e mais saberes e práticas próximos ao do
Nota-se, tanto pelos valores dos honorários cirurgião geral.
da tabela da AMB, como pelos salários e nor- E um segundo, mais específico, denomina-
mas de remuneração de órgãos governamen- do de núcleo de competência, que incluiria as
tais, uma desvalorização do trabalho mais clí- atribuições exclusivas daquela especialidade,
nico, mais polivalente, mais integrativo, em justificando, portanto, a sua existência como
contraste com uma supervalorização de outros uma nova área. Retomando o exemplo: o nú-
dependentes de tecnologias “duras”, de equi- cleo de competência do especialista em cirur-
pamentos operados por especialistas em “pe- gia de mão poderia ser constituído pelos casos
daços” muito específicos do processo diagnós- graves de trauma, amputação ou semi-ampu-
tico ou terapêutico. Provavelmente, estes estí- tação da mão com lesões importantes de vasos
mulos financeiros expliquem o perfil de inte- ou outras estruturas nobres. Se adotado este
resse dos candidatos à residência. critério, inúmeras lesões de mão continuariam
Portanto, urgem soluções que modifiquem a ser também da competência do cirurgião ge-
o sentido da graduação médica, da residência ral.
e das políticas das entidades médicas e do Es- O campo de competência teria limites e con-
tado. tornos menos precisos e o núcleo, ao contrá-
rio, teria definições as mais delineadas pos-
síveis.
Discussão de algumas diretrizes A constituição destes espaços organizar-se-
potencializadoras de mudanças ia segundo um jogo de negociações provisó-
neste quadro rias, em certa medida intermináveis porque
impossíveis de serem arbitradas exclusivamen-
a) Reconhecendo a inevitabilidade da espe- te por uma racionalidade técnica. Isto porque
cialização, como definir a área de competência a definição destes campos dependeria também
de cada especialidade de maneira a não ocor- de interesses políticos, profissionais e não ape-
rer uma concomitante perda da capacidade de nas de diretrizes médicas positivas.
resolver problemas de saúde dos demais médi- Neste sentido, a AMB e órgãos públicos po-
cos? deriam organizar encontros entre todas as es-
Já nos referimos à propensão das especiali- pecialidades ligadas à cirurgia, à pediatria, ou
dades definirem um campo muito rígido de à neurologia, mediando os resultados dos de-
atribuições próprias. Até chegamos a identifi- bates entre as várias alternativas que certa-
cá-la com um certo corporativismo. Por outro mente surgirão.
lado, ao mesmo tempo que se busca retirar Com a criação destas duas lógicas de crité-
atribuições das especialidades-raízes, observa- rios, uma mais flexível e outra mais rígida, pre-
se, por parte dos novos especialistas, a perda tende-se assegurar tanto a necessária existên-

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cia de especialidades, quanto a conservação da por uma destas “especialidade gerais”, confor-
capacidade resolutiva das chamadas especiali- me já é praxe em inúmeras instituições.
dades gerais ou especialidades-raízes. Senão, c) Quanto ao mercado de trabalho, haveria
com o tempo, elas seriam expropriadas de toda que se considerar que de pouco adiantaria mo-
capacidade resolutiva. dificar o perfil da residência se não houvesse
Ao mesmo tempo, partindo-se desta pers- mudanças equivalentes no perfil de contrata-
pectiva, caberia exigir-se do especialista uma ção e de remuneração de médicos do SUS.
certa polivalência – a específica ao seu campo Haveria que se valorizar o exercício destas
de competência, contribuindo assim, também, especialidades gerais, assegurando tanto salá-
para a ampliação da declinante capacidade re- rios, como incentivos por desempenho ade-
solutiva dos profissionais altamente especiali- quados. Por outro lado, seria importante rever
zados. o quadro de pessoal de hospitais públicos, am-
b) Se a proposição e o aparecimento de novas pliando o número de profissioanais com estas
especialidades seguem inevitavelmente um características também nos níveis secundário
padrão mais ou menos livre, dependente tanto e terciário de atenção. Metade dos médicos de
da iniciativa dos médicos, quanto de algumas um hospital moderno poderia também ter este
regulamentações, o Sistema Único de Saúde perfil mais resolutivo e polivalente.
não deveria furtar-se de ter uma política que Por último, caberia iniciar um processo de
interferisse nesta dinâmica. discussão com a AMB e com o Ministério da
Basicamente, acreditamos que o SUS deve- Saúde voltado para a revalorização dos proce-
ria criar mecanismos que indicassem uma cla- dimentos clínicos e cirúrgicos mais integrais e
ra prioridade não só pela formação, como tam- abrangentes. A atual política está degradando
bém pela contratação de trabalho desta ou da- o trabalho essencialmente interpessoal da Me-
quela especialidade. dicina.
Quanto à formação, sabe-se que institui-
ções governamentais custeiam a maioria das
vagas para residência. Neste sentido, seria viá- Comentários finais
vel, sem grandes rearranjos institucionais, pro-
ceder-se a definição do perfil dos profissionais Com estas diretrizes, pretendemos tão-so-
a serem formados conforme necessidades de mente indicar alguns caminhos que, se trilha-
saúde e a lógica do sistema público. Superar o dos, poderiam desencadear processos de su-
laissez-faire atualmente existente, que repro- peração de algumas da dificuldades do sistema
duz de forma centralizada os interesses ou dos de saúde brasileiro. Trata-se de uma aborda-
profissionais enquanto corporação, ou do mer- gem parcial e que tem como objetivo mais es-
cado, é um desafio inadiável. timular a elaboração de novas alternativas para
A principal diretriz sugerida seria a defini- estes já velhos problemas sanitários, do que
ção de cotas mínimas de vagas para as deno- pretender fornecer receitas acabadas.
minadas “especialidades gerais”: pediatria, ci-
rurgia geral, clínica médica, gineco-obstetrícia
e saúde pública. Poder-se-ia, em curto prazo, Referências
instituir-se a obrigatoriedade de o conjunto
dos serviços de residência médica reservarem ABEM (Associação Brasileira de Ensino Médico),
metade das vagas para estas áreas. Caberia às 1995. Anais. XXXIII Congresso Brasileiro de Edu-
Secretarias Estaduais e Comissões de Residên- cação Médica. Porto Alegre: ABEM.
AMB (Associação Médica Brasileira), 1994a. Proposta
cia Médica administrarem esta distribuição, de
de Regulamentação para a Criação de Novas Es-
maneira que um serviço especializado exclusi- pecialidades em Medicina. Brasília: Conselho
vamente em pediatria, por exemplo, não se vis- Científico. (mimeo.)
se obrigado a criar residência de clínica. Seria AMB (Associação Médica Brasileira), 1994b. Regimen-
ridículo. O importante seria o planejamento to da AMB. Brasília: AMB.
em toda a rede. Estas residências seriam termi- CAMPOS, G. W. S., 1992. Reforma da Reforma: Repen-
nais, ou seja, as demais especialidades somen- sando a Saúde. São Paulo: Hucitec.
CFM (Conselho Federal de Medicina), 1996. Consoli-
te contariam com a outra metade do número
dado Parcial da Pesquisa Perfil do Médico Brasi-
de vagas para prosseguimento dos seus cursos leiro. Brasília: CFM. (mimeo.)
específicos. Estas cotas sugeridas deveriam ser FREIDSON, E., 1978. La Profesión Médica. Barcelona:
revistas periodicamente conforme o impacto Península.
no sistema de formação e no assistencial. FUNDAP (Fundação para o Desenvolvimento da Ad-
Além disso, seria importante assegurar que ministração Pública), 1994. Relatório de Gestão
1993/94. São Paulo: Fundap.
todas as especialidades iniciassem a residência

Cad. Saúde Públ., Rio de Janeiro, 13(1):141-144, jan-mar, 1997

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