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Silmara de Fatima Cardoso

DOI:http://dx.doi.org/10.31892/rbpab2525-426X.2020.v5.n13.p165-177

NARRATIVAS DE VIAGEM NOS ESCRITOS DE


UM EDUCADOR VIAJANTE – ANÍSIO TEIXEIRA:
MEMÓRIAS, FORMAÇÃO, MODELOS DE EDUCAÇÃO
E SABERES

Silmara de Fatima Cardoso


https://orcid.org/0000-0001-7989-4913
Secretaria Municipal de Educação de São Paulo

resumo O presente artigo tem por pretensão analisar as narrativas e repre-


sentações de um modelo educacional considerado como ideal na
escrita de viagem de Anísio Teixeira, e procurar compreender como
Anísio se apropriou desse modelo colocando-o em prática no seu
percurso pela educação pública. Para tanto, utilizo como fonte de es-
tudo dois diários e um relatório que foram produtos de suas viagens
à Europa em 1925 e aos Estados Unidos em 1927, que tinham como
propósitos conhecer e estudar modelos pedagógicos e práticas edu-
cativas consideradas inovadoras. Este trabalho pretende contribuir
na reflexão de apropriações e possíveis leituras de um modelo de
ensino estrangeiro na formação e atuação de Anísio Teixeira, e ain-
da, dar visibilidade às ações concretas e modos de compreendê-las
próprio de Anísio desse modelo educativo considerado referencial.
A escolha da temática do presente trabalho se justifica na medida
em que os estudos historiográficos têm voltado o seu interesse nas
pesquisas sobre viagens e os escritos produzidos pelos viajantes, os
quais contemplam discursos, representações e imagens da socieda-
de, da cultura, da educação, de ideias etc.
Palavras-chave: Anísio Teixeira. Narrativas de viagem. Memórias. For-
mação. Modelos de educação e saberes. 

abstract TRAVEL NARRATIVES IN THE WRITINGS OF A


TRAVELING EDUCATOR – ANÍSIO TEIXEIRA: MEMORIES,
TRAINING, EDUCATION MODELS AND KNOWLEDGE
This article intends to analyze the narratives and representations of
an educational model considered as ideal in Anísio Teixeira’s travel
writing, and to try to understand how Anísio appropriated this model

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Narrativas de viagem nos escritos de um educador viajante – Anísio Teixeira: memórias, formação, modelos de educação e saberes

by putting it into practice in his course through public education. To


this end, I use as a source of study two diaries and a report that were
products of his travels to Europe in 1925 and to the United States in
1927, which had the purpose of knowing and studying pedagogical
models and educational practices considered innovative. This work
intends to contribute in the reflection of appropriations and possible
readings of a foreign teaching model in the training and performance
of Anísio Teixeira, and also, to give visibility to the concrete actions
and ways of understanding the proper teaching model considered by
Anísio as a reference. The choice of the theme of the present work
is justified to the extent that historiographical studies have turned
their interest in research on travel and the writings produced by tra-
velers, which include discourses, representations and images of so-
ciety, culture, education, ideas etc.
Keewords: Anísio Teixeira. Travel narratives. Memories. Training. Mo-
dels of education and knowledges.

resumen NARRATIVAS DE VIAJE EN LA ESCRITURA DE UN


EDUCADOR VIAJERO – ANISIO TEIXEIRA: MEMORIAS,
FORMACIÓN, MODELOS DE EDUCACIÓN Y saberes
Este artículo tiene como objetivo analizar las narrativas y represen-
taciones de un modelo educativo considerado ideal en la escritura
de viajes de Anísio Teixeira, y tratar de comprender cómo Anísio se
apropió de este modelo al ponerlo en práctica en su trayectoria por
la educación pública. Con este fin, utilizo como fuente de estudio dos
diarios y un relatorio que fueron producto de sus viajes a Europa en
1925 y a los Estados Unidos en 1927, cuyo propósito era conocer y es-
tudiar modelos pedagógicos y prácticas educativas consideradas in-
novadoras. Este artículo tiene como objetivo contribuir a la reflexión
de las apropiaciones y posibles lecturas de un modelo de educación
extranjera en la formación y el desempeño de Anísio Teixeira, y tam-
bién dar visibilidad a las acciones concretas y formas de entenderlas
propias de Anísio de este modelo educativo considerado referencial.
La elección del tema del presente trabajo se justifica ya que los es-
tudios historiográficos han volcado su interés en la investigación de
viajes y los escritos producidos por los viajeros, que incluyen dis-
cursos, representaciones e imágenes de la sociedad, la cultura, la
educación, ideas etc.
Palabras clave: Anísio Teixeira. Narrativas de viaje. Memorias. Forma-
ción. Modelos educativos y saberes.

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Considerações iniciais mundial desse modelo. Para tanto, três obras


são referências: “Viagens Pedagógicas” (2007)
O presente artigo tem por pretensão analisar organizada por Mignot e Gondra, “Formas de
as narrativas e representações de um mode- Externalização no Conhecimento Educacional”
lo educacional considerado como ideal na es- (2001) de Schriewer e “A difusão mundial da
crita de viagem de Anísio Teixeira, e procurar escola” (2000) de Nóvoa e Schriewer (Eds.).
compreender como Anísio se apropriou des- A obra Viagens pedagógicas ajuda a com-
se modelo educacional no seu percurso pela preender e a situar as viagens de Anísio Teixei-
educação pública. Para tanto, utilizo como fon- ra em um movimento mais amplo. Nos séculos
te de estudo dois diários e um relatório que XIX e XX os sujeitos envolvidos com as questões
foram produtos de suas viagens. educacionais buscarem em países estrangeiros
Anísio Teixeira quando ocupava o cargo de o que havia de mais avançado em termos de
Diretor Geral de Instrução Pública da Bahia em educação para serem aplicados em seus paí-
1925 obteve permissão do governador Francis- ses de origem. A obra Formas de Externaliza-
co Marques de Góes Calmon para acompanhar ção no Conhecimento Educacional por sua vez,
D. Augusto nas comemorações do Ano Santo nos ajuda a entender que os saberes e proje-
em Roma. Anísio aproveita sua viagem de pe- tos educacionais referenciais apropriados por
regrinação para conhecer instituições educa- Anísio foram desmontados e depois incorpora-
tivas europeias. A viagem ao Novo Mundo em dos no seu discurso acabando por configurar
1927 é de caráter oficial. Anísio havia sido de- discursos híbridos (SCHRIEWER, 2001) sobre a
signado pelo governador da Bahia para ir aos educação. A obra A Difusão Mundial da Escola
Estados Unidos da América observar os méto- permiti-nos refletir que a busca por modelos
dos de ensino e as instituições de educação educacionais em países estrangeiros seguiu
que poderiam vir a ser implantadas de um em parte uma perspectiva de educação com-
modo parecido no estado baiano. parada. Anísio Teixeira entrou em contato com
Levando em conta o objetivo proposto, outras experiências mediando conhecimentos
este texto será desenvolvido em quatro tó- e saberes educacionais entre Brasil, Europa e
picos. Primeiramente procuro tratar das via- Estados Unidos, seguindo assim, uma perspec-
gens de Anísio Teixeira. Em seguida a reflexão tiva de educação comparada.
volta-se a sua produção escrita, os diários e Este trabalho pretende contribuir na re-
o relatório. Logo então me proponho a anali- flexão de apropriações e possíveis leituras de
sar o ideário educacional defendido por Aní- um modelo de ensino estrangeiro na formação
sio Teixeira, ou seja, um modelo de educação e atuação de Anísio Teixeira no seu percurso
considerado eficaz e capaz de reverter o atra- pela educação pública, e ainda, dar visibilida-
so educacional brasileiro. E por final busco de às ações concretas e modos de compreen-
compreender de que forma Anísio se apro- dê-las próprio de Anísio desse modelo educa-
priou desse modelo de educação conhecido tivo considerado referencial.
em terras estrangeiras.
O referencial teórico metodológico que
Anísio Teixeira: um viajante
serve de suporte a este trabalho encontra-
se delimitado em um modelo de educação brasileiro no além-mar
em perspectiva transnacional e se apoia nas Anísio Teixeira foi um viajante que percorreu
viagens pedagógicas para analisar a difusão “mundos”, ele se deslocou a diferentes países

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por razões diversificadas. No entanto, foram às poderia significar a apropriação de experiên-


viagens de 1925 à Europa e aos Estados Unidos cias e instrumentos para o enfrentamento das
em 1927 que permitiram a Anísio Teixeira co- dificuldades que os educadores encontravam
nhecer modelos pedagógicos e práticas edu- para realizar nos seus países de origem uma
cativas que poderiam servir de referência à reforma educacional. A busca por modelos
educação brasileira, pois essas viagens tinham mais desenvolvidos de educação parecia asse-
como propósito conhecer e estudar um mode- gurar um grau de legitimidade respeitável ao
lo de educação considerado como inovador e país que os implantavam, gerando condições
moderno. de igualdade educacional. Foi nessa lógica que
Nos últimos anos, diz Mignot e Gondra Anísio Teixeira procurando reverter o atraso
(2007), o intercâmbio crescente entre os histo- do ensino público brasileiro buscou em países
riadores da educação tem permitido observar estrangeiros um modelo de educação conside-
que as viagens foram realizadas por educado- rado referencial.
res do Brasil, da Espanha, de Portugal, da Fran- Anísio partiu a países estrangeiros com a
ça, Alemanha, Suíça, Bélgica, Japão e de mui- intenção de observar, analisar, divulgar, com-
tos outros países. Os sujeitos se deslocaram a parar, propor e prescrever. Não apenas leu ou
lugares próximos ou distantes com a mesma ouviu, mas teve o privilégio de ver o “real”.
finalidade, aprender com o “outro”. É dessa Atuando como mediador cultural (SHIRIWER,
forma que nos séculos XIX e XX, inspetores de 2001) pode ocupar as cátedras universitárias,
ensino, diretores, professores e mesmo os en- as páginas dos jornais, das revistas, todos es-
genheiros, médicos e políticos envolvidos com ses espaços privilegiados para a formação de
projetos educacionais foram em busca dos opinião e para a elaboração de projetos visan-
“códigos da civilização”. De uma viagem, esses do à renovação cultural e educacional do seu
sujeitos voltavam mais sábios e experientes país. Ele ainda assumiu importantes cargos na
ampliando o seu universo cultural, intelectual área político-educacional: 1931 – Diretor Geral
e educacional. da Instrução Pública no Distrito Federal; 1935
A circulação de ideias sobre os saberes – Reitor da Universidade do Distrito Federal;
educacionais seguiu as relações de poder 1946 – Consultor de Educação da UNESCO; 1947
entre espaços referidos como modelares e – Secretário de Educação da Bahia; 1951 – Se-
outros como atrasados. Alguns países eram cretário Geral da Companhia de Aperfeiçoa-
tomados como exemplos, outros não. O que mento de Pessoal de Ensino Superior – CAPES;
Schriewer (2001) reconhece como a consti- 1952 – Diretor do Instituto Nacional de Estudos
tuição das sociedades de referência. A lógica Pedagógicos – INEP; 1963 – Reitor da Universi-
da expansão da escola moderna pelo mun- dade de Brasília (UNB), com o golpe de 64, foi
do classificou os países ora como exemplos afastado do cargo, indo para os Estados Uni-
de modernidade a serem seguidos, ora como dos, lecionar nas universidades de Columbia
grupos a quem coube aprender como organi- e da Califórnia, voltou ao Brasil em 1965 e no
zar os seus sistemas de ensino a partir das ano seguinte, tornou-se consultor da Funda-
lições oferecidas pelos países mais desenvol- ção Getúlio Vargas (FGV). Em 11 de março de
vidos. 1971, morre de modo misterioso, seu corpo foi
Conhecer de perto a realidade de lugares encontrado no poço do elevador de um edifí-
considerados como referências em matéria cio no começo da Avenida Rui Barbosa, no Rio
de difusão, métodos e organização do ensino, de Janeiro.

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Diários e relatório de viagem: (educacional, filosófico, político, social, cultu-


ral, moral, comportamental, literário). Apesar
razões e sentidos de produção de
de ser uma escrita mais livre, não dispensa o
uma escrita rigor lógico e coerência de argumentação, e por
Anísio foi um viajante que se valeu da escrita isso mesmo exige grande informação cultural e
para registrar os acontecimentos de suas via- muita maturidade intelectual. Além dos temas
gens. Ele produziu dois diários e um relatório de desenvolvidos em forma de ensaio, o viajante
observações escolares. O diário produzido em tratou nos seus diários dos propósitos e expe-
viagem à Europa em 1925 contém 56 folhas em riências de suas viagens. Ele escreveu ainda
papel timbrado Nordentscher Lloyd Bremen Na para desabafar, extravasar seus sentimentos,
Bord des D. Sierra Morena e S.S Gelria. O diário amenizar suas saudades, suas angústias, sua
produzido em viagem aos Estados Unidos em solidão, anotar impressões, expectativas, mos-
1927 contém 52 folhas em papel timbrado Mun- trar pensamentos, expressar emoções, organi-
son Steamship Lines. Essa documentação está zar ideias, elaborar diferenças, expor dúvidas,
localizada no seu arquivo pessoal sob a guarda fazer comparações, reflexões e questionamen-
do CPDOC (Centro de Pesquisa e Documenta- tos.
ção de História Contemporânea da Fundação Inicialmente, esse relatório não tinha fins
Getúlio Vargas no Rio de Janeiro) e é classifica- comerciais, ele foi distribuído gratuitamente
da como “Anotações de viagem”. Alguns auto- pela Diretoria de Instrução Pública da Bahia
res como Nunes (2000), Mignot e Gondra (2006) às Escolas Normais e bibliotecas no intuito de
e Carvalho (2003) classificam como “diário de apresentar o sistema de ensino norte-ameri-
viagem” ou “diário de bordo”. cano e as ideias de educação e democracia do
A escrita dos diários é fragmentada e des- filósofo Dewey. Dessa forma, entendemos que
contínua; os assuntos, necessariamente, não a sua publicação tinha uma intencionalidade,
estão interligados. A escrita foi produzida em produzido para um tipo de leitor específico, os
folhas avulsas/soltas, apresentando marcas professores e alunos da Escola Normal. Possi-
da oralidade – rasuras, abreviações, elementos velmente, a intenção do diretor da instrução
metafóricos e subjetivos, condições de uma pública, Anísio Teixeira, era que os mestres e
escrita mais informal. Isso se justifica pelo fato futuros mestres baianos entrassem em conta-
de ser o escritor, primeiramente, o seu único to com as técnicas, os métodos e uma organi-
leitor. Uma característica que nos chama aten- zação educacional considerada ideal, e, apro-
ção nessa escrita é que alguns assuntos são priando-se desse novo modelo, virem a praticá
abordados na forma de ensaio. Anísio defende -lo de um modo parecido nas escolas da Bahia.
ou nega determinada posição, sem, contudo,
apoiar-se na pesquisa empírica ou bibliográfi- Narrativas e representações de
ca. Os temas tratados são variados: as cidades
um ideário educacional na escrita
europeias, a humanidade, o homem moderno,
a guerra, os sujeitos americanos, regimes polí- de viagem
ticos, democracia, educação, religião católica, Os conceitos sobre educação de Anísio Teixeira
os livros May Life and Work de Henry For e Os serão reformulados em suas viagens à Europa
exercícios espirituais de Inácio de Loyola. e aos Estados Unidos. Quando partiu ao Velho
O ensaio consiste na defesa de um ponto Mundo em 1925, o seu pensamento pedagógico
de vista pessoal e subjetivo sobre um tema refletia ainda a marca do aristocratismo hauri-

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do da sua formação intelectual jesuítica para mente dos americanos”3.


o qual buscava, no sistema francês típico do Anísio e outros intelectuais de seu tem-
dualismo classista, o ensino primário indepen- po acreditavam que a educação americana
dente e isolado do secundário (NUNES, 2000). se apresentava como uma experiência inédi-
Na Europa Anísio visita algumas institui- ta, surgida em contraposição ao velho conti-
ções educativas francesas e belgas1. Como nente europeu, em que os fins da educação
Diretor Geral da Instrução Pública da Bahia e tiveram sempre alvos marcados e rígidos. A
um viajante ávido por aprender, renovar seu educação americana, de acordo com Venan-
conhecimento no campo que atuava, procura cio Filho (1946), ao invés de ser tradicional,
conhecer a educação estrangeira. Descreve a empírica e autocrática como era a europeia,
visita e trata dos programas, currículos, dis- pelas origens de sua formação histórica tor-
ciplinas, método e organização das escolas, nou-se experimental e democrática, não se
porém, sem muito entusiasmo e surpresa. Não estabelecendo diferenças entre uma cultura
havia nesse momento, uma preocupação por e educação para o povo e outra para a elite,
parte de Anísio entre a prática pedagógica ob- havendo apenas diferença de intensidade ou
servada e a existência de uma concepção nova extensão, além de que, apresentava-se cien-
de modelo educacional que estava a se impor. tificamente planejada.
Isso acontecerá somente por ocasião de sua Os quatro meses nos Estados Unidos mu-
visita aos sistemas educacionais norte-ameri- daram a maneira de pensar de Anísio, pois ao
canos em 1927. regressar ao Brasil irá defender uma educação
possível observar uma ambiguidade ou os- pública, gratuita e laica para todos. Não tinha
cilação no pensamento educacional de Anísio por que a Igreja Católica administrar o ensino,
quando em viagem aos Estados Unidos. Ele isso era uma questão que somente cabia ao
escreve no seu diário produzido a bordo, que Estado. Depois de suas visitas às instituições
considerava “um absurdo as famílias pobres educativas norte-americanas.
não poderem no Brasil, oferecer uma educa- No seu relatório de observação das insti-
ção católica aos seus filhos. E isto é uma ques- tuições educativas norte-americanas, Anísio
tão séria e incontestável”2. No entanto, não vai apresenta sempre um discurso educacional
deixar de defender uma educação laica, repu- positivo. As palavras-chave do mesmo são de-
blicana, e espera firmemente conhecê-la na mocracia, renovação, mudança, modernidade,
prática no país considerado o modelo “ ideal” eficiência, inovação, criatividade, socialização,
de República. Segundo ele, “os moldes do seu técnica, industrialização. Observamos assim,
pensamento sobre educação se moldaram na uma retórica da perfeição. Segundo Anísio
Europa. No entanto, hoje se aproximam viva- a vida americana é “[...] essencialmente di-
namyca, não de um dinamysmo verbal tão a
1 No arquivo pessoal de Anísio encontram-se algumas gosto de certa rhetórica modernista, mas de
cartas de recomendações que o autorizava a realizar
as visitas. Por meio dos seus timbres é possível com- um dinamysmo consciente e voluntario, pro-
preendermos quais tipos de escolas foram visitadas: duzido por uma força visível e formidavel – a
“Prefecture de la Seine. Directeur de L’Enseignement
Primaire”; “École Municipale dês Arts Aplliqués a L’in- indústria [...]” (TEIXEIRA, 1928, p. 54).
dustrie” e “Gabinete du Ministre de L’Instruction Pu-
blique et dês Beaux Arts”. 3 TEIXEIRA, Anísio. Anotações de viagem aos Estados
2 Sobre essas visitas Anísio produziu anotações das Unidos. Navio Pan American, 1927, 50 p. Atpi: 25.07.17
aulas observadas, metodologia, objetos didáticos, (filme 03). FGV/CPDOC. 3 TEIXEIRA, Anísio. Anotações
etc. que se encontram no seu arquivo, CPDOC, AT: pi de viagem aos Estados Unidos. Navio Pan American,
1924/270000. 1927, 50 p. Atpi: 25.07.17 (filme 03). FGV/CPDOC.

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Esse pensamento de Anísio Teixeira refle- professores. Se a escola se transformava, era


te o ideário liberal, que nas décadas de 1910 necessário também transformar o professor,
e 1920 entendiam o sentido educativo como “produzir-lhe” uma nova identidade (MARTIN
representação, justiça, cientificidade e técni- LAWN, 2000, p. 70). O antigo professor sem for-
ca. Assim, pela via da educação teria sido bus- mação qualificada não condizia com a realida-
cada a consolidação dos ideais da democracia de de uma sociedade desenvolvida por meio
representativa e da industrialização (NAGLE, da técnica, da ciência. Além da formação exigi-
1976). Dessa forma, o relatório apresenta um da do professor, era preciso uma mudança na
modelo educacional, que estava se desenvol- sua postura. Ele não deveria tomar as decisões
vendo por meio da democracia, da técnica e da da vida escolar, entregar tudo pronto aos alu-
ciência. A América do Norte, nessa represen- nos, mas auxiliá-los, pois estes são os maio-
tação é convertida em ícone da modernidade res responsáveis pelo seu processo de ensino
pedagógica pela gratuidade, obrigatoriedade, -aprendizagem. Um projeto educacional dife-
secularização e higienização do ensino; palco renciado volta-se para o sujeito, entendendo
de realizações espetaculares na área da edu- que ele precisa ser independente e pensar por
cação, signo do progresso. si mesmo.
No seu relatório Anísio descreve as carac- Das suas visitas às escolas americanas, Aní-
terísticas físicas, a organização escolar/ensino, sio entrou em contato com um modelo edu-
os programas/currículos e os métodos de en- cacional considerado diferente do europeu e
sino/metodologia das instituições educativas brasileiro. Conheceu escolas de diversificadas
americanas. O ambiente físico educacional é modalidades educativas. Isso permitiu ao via-
apresentado por vastos edifícios, instalações jante o artifício da comparação. A busca por
adequadas, oficinas para trabalhos (manuais, modelos educacionais em países estrangeiros
agrícola, mecânica e elétrica), ginásio amplo, seguiu em parte uma perspectiva de educação
banheiros com as devidas instalações sanitá- comparada. Conforme Nóvoa (2000) a compa-
rias, oficinas de cozinha e costura, refeitório ração se dava na maioria das vezes de forma
amplo e acomodativo, salas de aulas amplas, dicotômica: cultura inferior e superior, países
gabinetes de química e física, laboratórios de civilizados e não civilizados, educação mode-
ciências e história natural, bibliotecas em ex- lar e não modelar, sociedade desenvolvida e
celentes condições de uso. Os programas dos não desenvolvida etc.
cursos são flexíveis, permitindo uma adapta- Anísio considerava a educação europeia e a
ção às diferentes exigências e necessidades. brasileira como arcaicas e atrasadas e a ame-
Os métodos de ensino envolveram de simples ricana como moderna e referencial. A sua nar-
memorização de livros à participação ativa dos rativa opera no sentido de selecionar os mo-
alunos. O professor procura despertar uma li- delos educacionais a imitar ou recusar, posto
vre e independente atividade com as crianças. que pertencia, de acordo com Nóvoa (2000) a
Problemas e fontes de informações são ofe- uma determinada tradição da produção his-
recidos aos alunos, que buscam resolvê-los tórica em educação comparada, ancorada no
pensando por si mesmo, outras vezes grupos paradigma do Estado Nacional como matriz,
trabalham em conjunto para solucionarem no qual os ditos países civilizados apareciam
problemas mais complexos. como uma espécie de espelho dos contrários,
Esse novo projeto de educação exigia uma onde se refletiam imagens híbridas, complexas
formação adequada e diferenciada para os e ambíguas dos países ditos não civilizados.

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O modelo educacional norte-americano cas universais” e se impôs como fator decisivo


para Anísio era o melhor. Havia um plano na- das regulações culturais e econômicas presen-
cional, estadual e municipal de educação. As tes na cena internacional” (HOUSSAYE, 2007, p.
instalações, os espaços, as condições higiê- 302). Atravessou fronteiras na criação, expan-
nicas dos prédios escolares eram excelentes. são e consolidação dos sistemas públicos de
Assim, os quesitos materiais e organizativos ensino, num processo de difusão mundial e de
eram critérios que deixavam o modelo de uma cultura escolar histórica e socialmente
educação americano à frente do europeu e construída (DOMINIQUE JULIA, 2001). Dessa for-
brasileiro. O que também chama atenção nas ma, o discurso pedagógico veiculado no rela-
escolas americanas é as suas características tório de Anísio caracteriza-se pela valorização
arquitetônicas: espaços amplos, abertos, seus desse novo paradigma – de uma nova peda-
belos jardins, hall de entrada, salas de aulas gogia, de um modelo escolar diferenciado, de
ventiladas, espaçosas, prédios econômicos e professores e alunos.
práticos, diferentes do aspecto monumental
dos prédios escolares europeus e alguns bra-
Elementos da educação
sileiros. Para Anísio o modelo a seguir seria o
americano por dispor de uma ampla, adequa-
estrangeira em Anísio Teixeira
da, eficiente e moderna rede de escolas, e isso Anísio não somente conheceu por leituras ou
constituía uma das condições principais para por narrativas de outras pessoas, que haviam
que a renovação educacional na Europa e no viajado a países estrangeiros, outro mode-
Brasil fosse possível. lo de educação; ele teve a oportunidade de
A institucionalização da educação de mas- presenciar outras experiências educacionais,
sas nos Estados Unidos rompe definitivamente especialmente a norte-americana. Isso lhe
com o modelo de educação clássica, voltado permitiu contar ou provar o visto, ouvido e o
somente à elite, com um currículo exclusiva- vivido (VIÑAO, 2000), concedendo-lhe um lugar
mente humanista. O objetivo da educação de destaque no campo educacional. Ele pre-
americana era formar um sujeito voltado para senciara na América um modelo de educação,
o trabalho e a indústria, especializado e não que para a época era considerado referencial
mais o homem de letras. O novo padrão de es- e modelar.
cola estava relacionado a estas ideias. Era pro- Silva (2005) observa que a transmissão de
clamada então uma educação que associasse ideias abriu a possibilidade da invenção e da
pensamento e prática. Essa escola diferencia- renovação porque, ao serem comunicados,
da, segundo Buendía (2000), surgiu como um os saberes dispersaram-se, multiplicaram-se,
imperativo sociopolítico e econômico, decor- confundiram-se, numa pluralidade infinita de
rentes das grandes transformações ocorridas sentidos. Dessa forma, a troca das informa-
nos sistemas produtivos, na organização e ções não foi um movimento de colheita, cópia
gestão políticas do mundo ocidental. Esse mo- e sim de transporte, de comunicação. Os co-
delo escolar é aclamado como instituição refe- nhecimentos educacionais estrangeiros foram
rencial, modelar e especializada para atender traduzidos nas mais diversas partes do mun-
novas demandas provocadas pelas mudanças do. Eles serviram mais como inspiração do que
sociais. propriamente cópia. Em cada lugar e contexto
Nascido e consolidado no mundo europeu, tiveram a sua própria forma de recepção e res-
o novo padrão escolar “adquiriu “característi- significação.

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Para Schriewer (2001), no interior de cada em escolas do Rio de Janeiro e da Bahia uma
país, a análise dos desenvolvimentos educa- experiência semelhante. Esse modelo escolar
cionais estrangeiros é entendida como um valorizava a arborização, a salubridade, a hi-
componente indispensável de discussão da giene, a economia, a ventilação, espaços di-
política educativa, e, ainda, os critérios de ferenciados de salas de aula, não existindo
seleção e as linhas de abordagem analítica a forma tradicional das carteiras, oferecendo
acordam-se com as questões sociais e cul- aos alunos uma maior liberdade de movimen-
turais. As descrições da alteridade cultural to para realizar as tarefas em grupo ou indi-
levada a cabo nesta perspectiva são conver- vidualmente. Abrangia um tipo de currículo
tidas em formas de processar e apropriar co- baseado em aspectos interdisciplinares que
municativamente modelos, de acordo com as envolvia o estudo de línguas, ciências, músi-
necessidades de legitimação e de tomada de ca, teatro, literatura, artes, etc e realizações
decisão de cada país. Os saberes e projetos de atividades de lazer e físicas. Anísio Teixeira
educacionais referenciais foram apropriados descreve essa proposta educativa em seu rela-
pelos educadores, desmontados e depois tório de observação das instituições educacio-
incorporados nos seus discursos e ações de nais norte-americanas:
acordo com as intenções e as estratégias par-
O systema Platoon se destina a satisfazer es-
ticulares de cada local, acabando por configu- ses actuaes requerimento da escola moder-
rar discursos híbridos sobre a escola, mode- na: – adoptando uma forma moderna e mais
los e práticas educativas. flexível de organização da escola elementar e
Anísio Teixeira não se apropriou na integra construindo edifícios que sejam especialmente
adaptados aos fins dessa nova organização. O
de um modelo educacional estrangeiro, mas
dia escolar de seis horas, em duas sessões de
sim se apropriou daquilo que era funcional
tres horas: das 8 hs., 30 da manhã às 11 hs., 30
e pragmático nesse modelo. Ele se aprovei- da manhã, e das 12 hs., 30 às 3 hs., 30 da tar-
tou de elementos nos quais acreditava poder de. Os alumnos são dividos em grupos ou “pla-
ajudar a desenvolver ou melhorar a educa- toons”. O curriculo é dividido em: 1) Materias
ção brasileira. Compreendemos que nunca se fundamentaes, isto é, leitura, escripta ortho-
graphia, arithmetica e língua, 2) matérias espe-
transfere um modelo, mas sim alguns de seus
ciaes: arte, musica, desenho, trabalho manual,
elementos.
sciencia, etc. Emquanto um grupo está estu-
Os limites que nos impõem este texto ex- dando as materias fundamentaes (home-room-
plicitaremos para título de exemplo uma ex- subjects), ao outro está sendo ministrado o en-
periências educativa – evidentemente que há sino das matérias especiaes (special subjects).
muitas outras – que foi densamente comen- De sorte que metade dos alumnos se acha nas
salas communs de aula (home-rooms), ao mes-
tada por Anísio Teixeira no seu relatório de
mo tempo em que a outra metade se acha nas
viagem e colocada em prática – todavia apre-
salas especiaes. O dia escolar é dividido em
sentando diferenças na forma de apropriação quatro periodos de 90 minutos para o ensino
– no projeto educacional desenvolvido na sua das matérias fundamentaes e 12 periodos de 30
gestão do ensino no Rio de Janeiro (1931-1935) minutos para das matérias especiaes. O nume-
e na Bahia (1947-1951). São as experiências das ro de salas depende do numero de classes ou
escolas experimentais do tipo Platoon. de alumnos. Si, por exemplo, a escola tem 24
classes, isto é, 960 alumnos, ella deve ter dous
Inspirado na escola norte-americana em
platoons, de 480 alumnos cada um. Isto requer
Detroit, cujo sistema era o Platoon, com algu- 12 salas ordinárias de aula (home-rooms) para
mas semelhanças e diferenças, Anísio realizou o primeiro grupo de 480 alumnos; e a distribui-

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Narrativas de viagem nos escritos de um educador viajante – Anísio Teixeira: memórias, formação, modelos de educação e saberes

ção dos restantes 480, em salas especiaes, pe- tor de trabalho: artes aplicadas, industriais e
las seguintes actividades: auditorio, gymnasio, plásticas; no setor recreativo ou de educação
musica, arte, litteratura, bibliotheca, sciencia,
física: jogos, recreação e ginástica; no setor ar-
geographia, recreio e artes manuaes. (Teixeira,
tístico: teatro, música e dança; no setor de ex-
1928, p. 151-152)
tensão cultural ou biblioteca: leitura, estudo e
É possível dizer que as escolas do tipo Pla- pesquisa; no setor socializante: grêmio, jornal,
toon brasileiras adquiriram formas próprias rádio-escola, banco e loja. O regime escolar
de ressignificação, elaboração e complexidade caracterizava-se como semi-internato. Quando
como a carga horária, o currículo, um cuida- abandonada de pai e mãe, a criança receberia
do integral dos alunos, desde a sua higiene, o regime de internato.
alimentação e saúde como a sua preparação As escolas experimentais no Rio de Janeiro
para a cidadania. Nas escolas do tipo Platoon também seguiram essa lógica. Anísio Teixeira
americanas, o horário escolar era de cinco a denominou-as de escolas-laboratório, avalia-
seis horas e não havia um cuidado tão intenso doras de métodos e técnicas. Essa experiência
com os alunos. A alimentação, apesar de ser foi bem marcante na escola Argentina. Sobre
um preço mais baixo, era paga pelos alunos, essa escola, Chaves (2000) diz que a mesma
os cuidados com a saúde, era responsabili- se tornou um modelo de escola experimental.
dade da família. Nas escolas do tipo Platoons Estabeleceu uma educação integral, que so-
brasileiras o horário escolar era de sete a oito mando-se ao sistema administrativo e ao pro-
horas e havia muito mais atividades intelec- jeto arquitetônico do tipo Platoon, promoveu
tuais, de lazer, exercícios, desenvolvidos pelos a ampliação do tempo de duração das aulas.
professores e alunos. E ainda, havia regime de A introdução de novas disciplinas na grade
semi-internato e internato. Aqui no Brasil esse curricular reestruturou a ocupação e circula-
tipo de escola foi construído especialmente ção dos alunos no espaço da escola, de acordo
a crianças e adolescentes de classes baixas, com o plano de atividades dirigido (salas de
excluídos, pertencentes a famílias que viviam aulas, salas ambientes, jornal-escolar, clubes
a margem social, assim, era preciso oferecer literários, cooperativa, oficina agrícola, teatro,
“tudo” a quem não tinha “nada”. biblioteca, etc.).
O Centro Educacional Carneiro Ribeiro – Em estilo neocolonial, situada no bairro do
mais conhecido como Escola Parque, fundada Engenho Novo, a Escola Argentina muda para
em 1950 em Salvador por Anísio Teixeira, foi um prédio moderno situado no bairro de Vila
baseado em um modelo de escola Platoon. Isabel, construído em consonância com o sis-
Construído em três amplas áreas arborizadas tema Platoon. Segundo Chaves Isto permitiu o
no bairro popular da Liberdade. Ali se instala- ensino tornar-se mais dinâmico e participati-
ra uma grande “invasão”, denominação baia- vo, ao mesmo tempo em que abriu novas vagas
na da favela carioca, consolidada pela desa- possibilitadas pelo aumento do número de sa-
propriação da terra, asseguradas desse modo, las construídas e pelo uso racional do espaço
aos invasores condições para construir suas escolar.
casas e barracos (Hermes Lima, 1978). O Cen- O percurso das escolas experimentais,
tro dividia a escola primária em dois setores: conforme Xavier (2007), não foi longo, pois a
Escolas-Classes, envolvendo o ensino de letras continuidade desse projeto necessitava da
e ciências e Escola-Parque, abrangendo uma permanência de uma política que o apoiasse
multiplicidade de práticas educativas – no se- ou, na pior das hipóteses, não o consideras-

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Silmara de Fatima Cardoso

se negativamente, como focos de divergência 1931 a 1935. Essas ideias consideradas inova-
do padrão oficial de organização escolar. Após doras e modernas atravessaram o Atlântico e
a demissão de Anísio da Secretaria Geral de encontraram um novo caminho na experiência
Educação e Cultura, foram extintas as Escolas brasileira.
Experimentais. Contudo, a perspectiva expe- A partir de seus estudos e conhecimentos
rimentalista seria retomada nas décadas de in loco de uma experiência educacional es-
1950-60, em nível nacional, com a nomeação trangeira foi possível a Anísio colaborar para
de Anísio para a direção do Inep. estruturar a educação de seu país. Ele se valeu
Na capital carioca foram implantadas esco- desse modelo promovendo alguns dos seus
las tipo Platoon com 12, 16 e 25 salas de aula. pressupostos, eliminando ou omitindo outros.
A cada sala correspondiam 40 alunos no turno Procurou repensá-lo em função de uma nova
da manhã das 08:30 às 11:30 e o mesmo núme- experiência. Para Anísio tudo deveria ser revis-
ro no turno da tarde das 12:30 às 15:30. Seriam to e aprimorado, pois nada era perfeito e defi-
dois “pelotões” que se revezavam, tendo cada nitivo. Assim, ele não foi um mero copiador de
qual, no respectivo turno oposto, atividades ideias e teorias, mas, apropriando-se delas foi
em salas especiais. possível pôr em prática um projeto educativo
Esse tipo de escola é apontado por Anísio levando em conta a realidade educacional, so-
Teixeira como solução para a educação primá- cial e política brasileira.
ria no seu livro “Educação não é Privilégio”. Não se tratou de uma pura e simples trans-
Além de integral, pública, laica e obrigatória, posição daquilo que Anísio apreendeu em suas
ela deveria ser municipalizada, para atender observações e estudos. Ele era por demais
aos interesses de cada comunidade. sensível e criativo para deixar de perceber que
as tentativas de cópia são sempre desastro-
sas. Assim, à luz da experiência americana de
Considerações Finais
educação, Anísio pode adaptá-la à realidade
Uma viagem é experiência positiva, uma vez educacional de seu país. Sempre em vista às
que habilita os sujeitos a fazer comparações questões políticas, sociais e culturais; o seu
baseados na multiplicidade e na diversidade trabalho resultou em uma maneira de utilizar,
das informações adquiridas, pois o viajante apropriar e reconfigurar sistemas desejados
sempre compara o inédito com aquilo que já de escolarização.
conhece. Assim, foi possível a Anísio nas suas Como intelectual, educador, escritor, ad-
observações e estudo em outros países, com- ministrador ou gestor ele pôs em prática uma
parar modelos educacionais e procurar pôr em série de iniciativas no intuito de apresentar,
prática aquele considerado o mais eficiente. fazer circular e estabelecer os princípios da
Da viagem realizada ao Novo Mundo voltou Escola Nova, base da pedagogia conhecida nas
não só com uma boa dose de encantamento, escolas americanas. Uma dessas primeiras ini-
mas também com projetos de pôr em prática ciativas foi a publicação do seu relatório das
no Brasil um modelo de educação “ideal”. Lon- visitas às instituições educativas norte-ame-
ge de uma assimilação acrítica de ideias sem ricanas. Para Carvalho (2007, p. 278) “relatar a
lugar na realidade educativa, Anísio serviu- viagem e dar publicidade ao relato são práti-
se desse referencial estrangeiro para realizar cas indissociáveis na realização de objetivos
uma grande reforma da instrução pública, es- comuns: propagar ideias, promover aproxima-
pecialmente no Rio de Janeiro do período de ções, difundir iniciativas”.

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Silmara de Fatima Cardoso é Doutora em Educação pela Universidade de São Paulo – FEUSP. Professora da Rede Muni-
cipal de Educação de São Paulo, Secretaria Municipal de Educação de São Paulo. E-mail: sfcardoso2011@hotmail.com

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