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DOI: 10.1590/1413-812320152011.

10332014 3581

Processo de trabalho na Atenção Primária em Saúde:

temas livres free themes


pesquisa-ação com Agentes Comunitários de Saúde

Work Process in Primary Health Care: action research


with Community Health Workers

Luciana Cordeiro 1
Cassia Baldini Soares 2

Abstract The aim of this article was to describe Resumo O objetivo deste artigo é descrever e
and analyze the work of community health work- analisar o trabalho de agentes comunitários de
ers (CHW). The main objective of study was saúde (ACS), voltado para o desenvolvimento de
to analyze the development process of primary práticas de atenção primária em saúde, relativas
health care practices related to drug consump- ao consumo prejudicial de drogas. O estudo par-
tion. The study is based on the Marxist theoretical tiu do referencial marxista e da metodologia da
orientation and the action research methodology, pesquisa-ação, o que conduziu à realização de 15
which resulted in the performance of 15 eman- oficinas emancipatórias. O material foi analisa-
cipatory workshops. The category work process do a partir da categoria processo de trabalho. Este
spawned the content analysis. It exposed the so- revelou o abandono social do território, meio em
cial abandonment of the environment in which que o trabalho dos ACS se processa, o que foi fun-
the CHWs work is performed. The latter had an damental para o reconhecimento das causas dos
essential impact on the identification of the causes problemas relacionados às drogas. Tais revelações
of drug-related problems. These findings made it permitiram formular críticas às ações reiterativas
possible to criticize the reiterative, stressful actions e desgastantes que se desenvolvem, o que contri-
that are being undertaken there. Such an act re- buiu para o processo de desalienação e formulação
sulted in raising of the awareness and creating the de formas de atuação políticas. Os ACS se encora-
means for political action. The CHWs motivat- jaram a reconhecer o objeto do processo de traba-
ed themselves to recognize the object of the work lho na atenção primária em saúde, que foi iden-
process in primary health care, which they found tificado como sendo a doença (ou dependência,
to be the disease or addiction in the case of drug no caso do consumidor de drogas) e explicitaram
users. They have criticized this categorization as críticas a esse recorte; discutiram a divisão social
well as discussed the social division of work and do trabalho e o trabalho em si e se reconheceram
1
Programa de Pós-
Graduação de Enfermagem, the work itself whilst recognizing themselves as como meros instrumentos do processo de traba-
Escola de Enfermagem, USP. mere instruments in the work process. The latter lho, passando a desejar ser sujeitos, isto é, a ser
R. Humberto I 348, Vila has inspired the CHW to become subjects, or coprodutores das transformações das necessidades
Mariana 01518-030 São
Paulo SP Brasil. co-producers of transformations of social needs. sociais.
lucordeiro.to@gmail.com Key words Primary health care, Community Palavras-chave Atenção primária à saúde, Agen-
2
Departamento de health workers, Family health strategy, Work, Ac- tes comunitários de saúde, Programa de saúde da
Enfermagem em Saúde
Coletiva, Escola de tion-research família, Trabalho, Pesquisa-ação
Enfermagem, USP.
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Cordeiro L, Soares CB

Introdução reiterativas, realizadas por toda equipe de saúde,


baseadas na saúde pública, que utiliza tecnolo-
Atualmente, o principal modelo de atenção pri- gias que correspondem aos chamados níveis de
mária em saúde brasileiro é a Estratégia Saúde prevenção, elementos pertencentes à perspectiva
da Família (ESF)1. Nela, o Agente Comunitário multifatorial de saúde-doença8. Além disso, ape-
de Saúde (ACS), que é morador do território de sar de constituir proposta inovadora para a aten-
abrangência da Unidade de Saúde da Família ção primária em saúde, a ESF reproduz o modelo
(USF), integra-se à equipe como agente da ins- centrado no médico, com as equipes enfrentando
tituição saúde que tem proximidade com os de- limitações importantes para a elaboração de pro-
mais moradores do bairro. O processo de traba- jetos intersetoriais que busquem ações associadas
lho na USF organiza-se pela equipe, constituída ao âmbito da determinação do processo saúde-
por médico, enfermeiro, auxiliar de enfermagem, doença9,10. Em revisão integrativa, realizada com
além dos ACS. ACS americanos11, concluiu-se que a equipe de
A educação permanente de trabalhadores saúde encontra dificuldades em definir as práti-
da saúde faz parte da política pública do Siste- cas que produziriam os resultados esperados, o
ma Único de Saúde brasileiro, mas está longe de que colabora para a manutenção das práticas que
se desenvolver de forma satisfatória na atenção vêm sendo desenvolvidas.
primária em saúde. Especificamente, no caso dos Dentre os desafios da atenção primária à saú-
ACS, a formação para o trabalho encontra-se de e em função do despreparo dos profissionais,
fragilizada. Cursos de formação técnica e profis- encontra-se a superação de condutas baseadas na
sionalizante estão previstos pelo Ministério da queixa e o pouco espaço para educação, além da
Saúde, desde 2004, com o objetivo de melhorar a desvalorização do saber e da cultura do usuário
qualificação para o trabalho, elevar a escolarida- e sua frequente culpabilização por não atingir os
de e melhorar as possibilidades de remuneração objetivos prescritos pela direção9.
e regularização do vínculo empregatício do ACS2. Trabalhar com os problemas relacionados ao
Embora o curso estivesse planejado em torno de consumo prejudicial de drogas está, também, en-
3 módulos, há informações de que até o ano de tre os desafios da atenção primária em saúde, ten-
2010 não havia passado do primeiro3. do como agravante o alarde midiático distorcido
Dessa forma, uma certa formação ocasional acerca do tema12. Há ainda maiores problemas
acaba se concretizando no serviço, em espaços trazidos por forte julgamento moral dos usuários
de supervisão, e em capacitações rápidas e ope- e por posições de senso-comum, que ajudam a
racionais, o que não vem possibilitando reflexões marginalizar consumidores de drogas, afastan-
críticas acerca do processo de trabalho4. Revisão do-os das instituições sociais que são referência
sistemática realizada pela OMS sobre as experi- para moradores dos territórios adscritos ou adja-
ências dos ACS em países subdesenvolvidos tam- centes. As equipes de saúde têm muitas dificulda-
bém encontrou que os ACS são pouco prepara- des em lidar com essa questão e estão pouco ou
dos para o trabalho5. equivocadamente capacitadas para a prestação de
A qualificação dos ACS brasileiros está sendo cuidados à saúde aos usuários de drogas13.
tratada na interface entre os campos da saúde e Diante da realidade apresentada, este estudo
da educação3,6. De acordo com documentos re- objetiva descrever e analisar o trabalho de ACS,
guladores do trabalho e da formação dos ACS³, voltado para o desenvolvimento de práticas de
o trabalho destes é considerado simples já que atenção primária em saúde, relativas ao consumo
não requer formação específica e complexa para prejudicial de drogas.
sua realização, como no caso dos demais profis-
sionais.
No entanto, desgastes sofridos no trabalho Método
têm sido referidos na literatura como decorrentes
de atividade complexa. São discutidos: sobrecarga Neste trabalho, adotou-se o Materialismo Histó-
de trabalho, cansaço e estresse relacionados com rico e Dialético ou Marxismo para compreender o
a fragmentação deste e ausência de participação consumo prejudicial de drogas e as propostas de
dos profissionais nas decisões da unidade, bem práticas em saúde que seriam coerentes com essa
como ausência de espaços de discussão e reflexão compreensão.
sobre o serviço, além de condições precárias7. Nesse sentido, parte-se da compreensão que
Esse conjunto de questões, ainda que estuda- dentro do conjunto de mercadorias que respon-
dos de maneira fragmentada, denunciam práticas dem às necessidades de acumulação capitalista,
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encontra-se também a droga lícita ou ilícita8,14, o refere à condição humana propriamente dita já
que coloca o usuário de drogas na condição de que concretamente há diferenças que oprimem.
consumidor, assim lhe sendo atribuída condição Essa relação está baseada na pertinência, isto é,
diversa da de doente ou “desviante”. Portanto, as naquilo que provoque sentimentos e mova os su-
ações indicadas para o enfrentamento dessa pro- jeitos para as ações17.
blemática vão muito além da proposta de mu- Enquanto Freire coloca o foco das contra-
dança do comportamento frente à droga. O que dições na opressão do homem sobre o homem,
se apoia, a partir desta leitura, é a proposição de Saviani o localiza no modo de produzir em so-
políticas estatais que respondam às necessidades ciedade. Enquanto Freire indica a igualdade en-
de saúde dos diferentes grupos sociais, com aten- tre os homens como ideal, Saviani reconhece as
ção especial aos que se encontram em frações de diferenças concretas entre as classes sociais, o que
classe a tal ponto exploradas, que ficam quase implica em transformação revolucionária. No en-
que completamente apartadas de usufruir dos tanto, ambos apresentam as contradições sociais
bens sociais. Propõe-se ações voltadas para a ga- como base para o desenvolvimento do processo
rantia de acesso à saúde, educação, moradia, em- educativo e apresentam propostas no interior da
prego, entre outros direitos, que teriam potencial sociedade capitalista, com a finalidade de trans-
para transformar situações sociais que estão na formá-la. Nesse sentido, exerceram influência na
base do consumo prejudicial de drogas15,16. formulação de educação emancipatória em saúde.
Este estudo toma por base a pesquisa-ação na Essa formulação advoga, portanto, que o proces-
perspectiva marxista, que propõe o investimento so educativo não é gerado espontaneamente, mas
em pesquisa associado à mudança, uma vez que que deve partir da realidade concreta, que perfaz
parte do pressuposto de que o conhecimento é o contexto e a prática social dos participantes,
produzido de forma a expor as contradições nem implicando todos os sujeitos envolvidos na refle-
sempre apresentadas de maneira clara na realida- xão, discussão e elaboração de instrumentos para
de concreta, tendo como consequência a trans- transformar a realidade e/ou a prática social19.
formação da práxis social8. Tem como intencionalidade o aprofundamento
Coerentemente com o marco teórico, uti- do conhecimento sobre um determinado fenô-
lizou-se a educação emancipatória em saúde, meno de saúde-doença, e não a partir do controle
construção feita no interior da saúde coletiva e empírico, da quebra da realidade em fatores que
inspirada em proposições metodológicas de Pau- podem ser medidos ou do isolamento do pesqui-
lo Freire17 e na educação histórico-crítica de Der- sador em relação a quem está sendo pesquisado.
meval Saviani18, entre outros autores críticos19. Essa concepção é coerente com a recusa metodo-
Saviani, educador Marxista, compreende a lógica que distancia sujeito e objeto de pesquisa20,
educação como como trabalho, prática social, e propondo a “participação efetiva da população
afirma que mesmo na perspectiva participativa, pesquisada no processo de geração de conheci-
que prevê o envolvimento efetivo de todos no mento, concebido fundamentalmente como um
processo educativo, o educador tem papel de ins- processo de educação coletiva”19.
trumentalizador, já que inicia a práxis educativa Dentre as diferentes modalidades de meto-
carregado de conteúdos anteriormente acumula- dologias de caráter participativo, recorreu-se à
dos pelos conhecimentos adquiridos nos livros, pesquisa-ação, pois esta possibilita e tem como
em insights e/ou em experiências anteriores18. princípio a participação dos grupos sociais no
Dessa forma, coube aos pesquisadores propo- processo de tomada de decisões21. De forma geral,
nentes da pesquisa-ação direcionar e mediar as a pesquisa-ação é um procedimento teórico-me-
atividades propostas, trazendo elementos de ins- todológico que tem variações conforme as dife-
trumentalização, com base nas discussões ocorri- rentes vertentes epistemológicas. A comunalidade,
das desde a primeira oficina e nos fundamentos independente da abordagem, fica por conta do
teóricos que nortearam a pesquisa. envolvimento dos sujeitos21.
A contribuição humanista de Freire parte do Nesta investigação, a pesquisa-ação desenvol-
reconhecimento do caráter político e ideológico veu-se através de 15 oficinas emancipatórias, tipo
da relação entre sujeitos (“um que ensinando de oficina compreendida como instrumento que
aprende e outro que aprendendo ensina”) e obje- proporciona espaço de reflexão sobre a prática e
tos (conteúdos). Para ele, a educação se configura sobre as contradições da realidade para que possa
como processo mútuo e horizontal de aprendi- haver transformação social16.
zado, que embasa a reflexão e a ação transfor- A pesquisa-ação foi dividida em duas eta-
madora através do diálogo. A horizontalidade se pas. A primeira foi composta pela realização de
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9 oficinas, cujo objetivo principal foi analisar Municipal de São Paulo. Os participantes assina-
o consumo de drogas na contemporaneidade ram Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
e instrumentalizar os participantes, através do
desenvolvimento de processo educativo que to-
mou por base os fundamentos da saúde coletiva Resultados
e como estratégia a problematização da realidade
do bairro em que atuam. Na segunda, foram rea- Participaram da pesquisa-ação 18 ACS de quatro
lizadas outras 6 oficinas com o objetivo de cons- Unidades de Saúde da Família do distrito de Sa-
truir material de apoio para o enfrentamento do popemba, município de São Paulo. A maioria foi
consumo prejudicial de drogas, direcionado aos composta por mulheres (17 participantes), com
trabalhadores da ESF. idades entre 22 e 59 anos.
O material produzido nas oficinas foi deno- Durante o procedimento, os ACS discutiram
minado “Álcool e drogas: um milhão de ações. suas práticas cotidianas, formulando críticas aos
Caderno de Trabalho do Agente Comunitário processos de trabalho dos quais participam, o
de Saúde: em foco as necessidades de Saúde e o que permitiu perceber o rico processo de desa-
Consumo Prejudicial de drogas”, o qual se en- lienação, por meio da discussão da rotina da USF,
contra disponível em http://www.ee.usp.br/noti- do trabalho que desenvolvem e dos casos viven-
cias/2013/alcool_drogas.asp. ciados. Esse processo foi revelando o abandono
Na concepção da pesquisa ação, todos seus su- social do território e propondo práticas comple-
jeitos são considerados participantes, de maneira xas, para além do espaço da USF e das orienta-
que, nesta investigação, os temas e as propostas ções sobre prevenção de doenças.
não foram previamente definidos, o que ocorria Entre as questões concernentes ao processo
em função do problematizado na oficina imedia- de trabalho, os ACS compartilharam dificuldades
tamente anterior, isto é, a partir da avaliação das referentes à relação hierárquica e à ausência de
necessidades teórico-práticas apresentadas pelos respaldo da equipe técnica, sobretudo em casos
participantes, o que conduzia às próximas etapas difíceis, nos quais a equipe se via “sem saída”.
da investigação. Os ACS discutiram a precariedade da forma-
O processo educativo, eixo condutor da pes- ção, retratando as contradições existentes no tra-
quisa-ação, foi descrito e avaliado em outros es- balho, visto que executam sua parcela mais com-
paços22,23. plexa, embora sejam os que apresentam menos
Todos os momentos foram gravados (áudio). capacitação técnica em saúde. Os participantes se
Foi realizada a transcrição das falas dos partici- deram conta de que com frequência deixam de
pantes, e a partir disso procurou-se seguir as eta- mediar a relação entre os moradores do bairro e a
pas propostas por Bardin24 para análise de conte- equipe técnica, para ser anteparo dos problemas
údo, com apoio do método dialético, que valoriza sociais que existem no território em que atuam, e
a análise a partir de uma categoria teórica que se para os quais a equipe não tem resposta, dada sua
expressa na realidade através de outras empíricas. formação eminentemente clínica.
As práticas de trabalho do ACS foram anali- Percebeu-se que os ACS trouxeram para o
sadas a partir da categoria processo de trabalho, espaço educativo suas angústias em relação ao
nos moldes da proposição Marxista, conforme trabalho como um todo, e não se restringiram
leitura de Ricardo Bruno Mendes-Gonçalves25. àquelas referentes às intervenções sobre o consu-
Nessa leitura, foram tomadas como sociais, cujos mo problemático de drogas. Os ACS deram depoi-
elementos (objeto, finalidade, trabalho em si e mentos de que as capacitações desenvolvidas em
meios e instrumentos) foram sendo apreendidos serviço enfocam as doenças a serem tratadas na
durante o processo educativo, o qual norteou a atenção primária em saúde (hipertensão e diabe-
pesquisa-ação. Tomou-se como referência estudo tes, por exemplo), e nesse sentido não amenizam o
anterior de Santos et al.26, que buscou analisar o desconforto com a total ausência de instrumentos
cotidiano de trabalho de trabalhadores da ESF26. para lidar com as demandas sociais do território.
Dessa forma, nesta pesquisa foram analisadas as Ademais, os ACS passam a expor, de ma-
práticas, suas críticas e as propostas de mudan- neira clara, contradições no trabalho que eram
ças. Procurou-se evidenciar ao longo das oficinas anteriormente apenas sensações que os rondava
as descobertas dos ACS sobre a estrutura e a di- há muito tempo e que causavam desconforto.
nâmica do seu trabalho. Exemplo das contradições é que a prática desen-
O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética volvida se baseia na repetição de conteúdos que
em Pesquisa da Secretaria da Saúde da Prefeitura lhes foram ensinados de maneira aligeirada, a
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partir do conhecimento clínico, o qual faz parte gundo eles, devido à dedicação, ao compromisso
da formação de enfermeiros e médicos que estu- e ao vínculo com a população, conforme já des-
daram em universidades. crito na literatura27.
Além disso, os participantes se ressentem de Apesar da prerrogativa de que se desenvolva
que seus conhecimentos, abordagens e contribui- trabalho interdisciplinar na atenção básica, bus-
ções nas discussões de casos com a equipe técni- cando interação, não somente entre os diversos
ca pouco são levados em conta. Não conseguem profissionais, mas também entre estes e usuá-
compartilhar sequer que são eles que sofrem o rios1, os ACS apontam falta de apoio dos demais
maior desgaste do trabalho na ESF, seja enfren- trabalhadores da ESF24. As equipes na ESF traba-
tando ações policiais no território, fazendo visi- lham a partir de diferentes dinâmicas, revelando
tas em casas com condições insalubres, ou outras a inexistência de responsabilidade coletiva, o que
situações. leva à descontinuidade e à desarticulação das
Como resultado dessa dinâmica da equipe, os ações desenvolvidas no território27-30.
ACS tentam resolver individualmente problemas Dessa forma, apartados de participar das
de toda sorte. Nesse sentido, as práticas tendem discussões de casos e do planejamento das ativi-
a ser desgastantes e passam a ter como objeto dades da USF, os ACS vão participando do pro-
um indivíduo ao invés da coletividade. Perse- cesso de trabalho de maneira instrumental, ba-
gue-se, dessa forma, a preservação ou a proteção sicamente reproduzindo orientações de conduta
de alguns moradores individualmente, em geral aos moradores. Nesse contexto, a equipe técnica
crianças, no que calculam estar ajudando. monitora esse instrumento, que reproduz a lógi-
Os ACS também debateram o quanto seu ca de controle sanitário da população, sem consi-
trabalho, mesmo no setor público, é atravessado derar as necessidades locais ou as demandas das
pela lógica privada, com avaliações sendo reali- famílias que não correspondam às indicações e
zadas através de cumprimento de metas quanti- protocolos previamente definidos nas unidades
tativas (visitar número determinado de famílias, de saúde27,29. A esse respeito, a OMS sugere que
detectar determinada porcentagem de doentes, os ACS sejam supervisionados continuamente
etc.). Os participantes refletiram sobre os inte- de forma que possam participar ativamente das
resses das empresas privadas quando incentivam decisões e práticas propostas. Ademais, devem
e investem no funcionário. receber equipamentos e suprimentos adequados
No início do processo educativo, os ACS sen- para a realização do trabalho5.
tiam que as práticas que realizavam eram frágeis Tendo o ACS a condição de morador do ter-
e que não davam conta do volume de trabalho e ritório em que trabalha, consegue vivenciar as
das questões demandadas. No decorrer das ofici- duas pontas da relação hierárquica imposta: na
nas, eles identificaram as causas dessa fragilidade, equipe da USF ocupa posição instrumental, de
o que possibilitou fundamentar melhor suas crí- inferioridade, de pouco saber; no território e nas
ticas e até mesmo propor ações em saúde menos visitas domiciliares é detentor de conhecimento,
precárias, com práticas criativas e ampliadas em sendo o responsável pela transmissão do saber
relação à prática clínica. Essa síntese, que cons- técnico-simplificado à população. A argumen-
truíram, permitiu que se aproximassem da dis- tação utilizada na proposição de mudança de
cussão sobre as raízes dos problemas de saúde, comportamento é o convencimento, este baseado
ocasionando, dessa forma, a busca por soluções. na possibilidade de morte ou de consequências
Além disso, essa compreensão fez com que os desastrosas caso suas orientações não sejam aca-
participantes se sentissem menos frustrados com tadas6,31.
o serviço, e se motivassem a compor novas pro- Por atuar e fazer parte do território, comu-
postas de trabalho. mente são chamados pela população para serem
ouvidores do serviço de saúde, tornando-se de-
positários dos anseios desta32. Ademais, com fre-
Discussão quência são abordados pelos usuários da USF
fora do horário de serviço para responder ques-
A análise dos dados a partir da categoria “proces- tões referentes ao trabalho, para as quais nem
so de trabalho” demonstra os desgastes sofridos sempre há recursos previstos pela gestão. Deno-
pelos ACS no dia-a-dia dos serviços. tam-se componentes toyotistas de organização
Os ACS se consideram, e são reputados pela do trabalho, como a exploração da subjetividade
equipe técnica, como profissionais da saúde. No do trabalhador, conforme exposto em outro es-
entanto, constituiriam um grupo separado, se- tudo na ESF26.
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O papel do ACS não é claramente definido, cipalmente de ACS7,9,35. Considerando que o pro-
seu trabalho nem sempre é documentado, em- cesso saúde-doença é socialmente determinado,
bora provoque altas expectativas¹¹. Ademais, as isto é, tem relação direta com as formas de repro-
raras ações coletivas e de educação desenvolvidas dução social36, é consenso que a submissão a con-
nos serviços, consideradas potenciais de fortale- dições de trabalho precarizado e instável, além de
cimento, são pouco valorizadas na ESF em geral, comprometer a qualidade do serviço prestado,
já que a ênfase está voltada na produtividade me- leva ao frequente adoecimento do trabalhador.
dida através de metas estabelecidas26,31. Há também agravante em relação à fragmen-
Os ACS são cobrados pela equipe técnica e tação do trabalho no processo de produção em
também pela população, encontrando dificul- saúde, no qual a função do trabalhador se reduz a
dades em ambas as pontas. Com frequência são uma tarefa específica ou a várias tarefas também
acionados pelos moradores a solucionar os pro- fragmentadas. Dessa forma, tal como em toda
blemas sociais em que se encontram, sendo que produção capitalista, que rouba a intencionali-
não recebem formação sólida ou, em muitos ca- dade de transformação do objeto, o trabalhador
sos, supervisão apropriada, e não encontram es- perde a compreensão da totalidade do processo
paços de discussão consolidados para essas ques- de trabalho, tornando-se mero instrumento da
tões28. “O agente se vê imbricado em um trabalho produção33.
que vai além de suas competências e possibilida-
des de resolução”32.
O ACS, então, encontra-se na linha de frente Considerações finais
da ESF e se depara com a ambiguidade de ser, por
um lado, o profissional com menos formação e A divisão social e técnica do trabalho estabele-
menor salário da ESF, e, por outro, o “super-he- ce as condições a que os ACS são submetidos no
rói”33 diante das expectativas da população e da cotidiano do trabalho, conforme aqui relatadas:
própria instituição. Esse lugar ocupado pelo ACS ocupar a posição mais baixa na relação hierár-
gera sentimentos contraditórios e desgaste. quica estabelecida na ESF e ter um precário res-
Como reiterado pelos participantes desta paldo do restante da equipe; a desconsideração
pesquisa, é comum que se sintam fracassados e do conhecimento que trazem; a insegurança da
frustrados, principalmente quando não conse- formação; a escassez tecnológica e de outros re-
guem encaminhar os problemas detectados no cursos no trabalho; a realização de práticas rei-
território (por exemplo, marcação de consulta terativas; e as metas de produtividade como fi-
com especialista), assumindo sozinhos a respon- nalidade do trabalho. Estes se configuram como
sabilidade da instituição e do Estado, como iden- potenciais de desgaste para esses trabalhadores,
tificado em outro trabalho26 em pesquisa sobre sendo que impactam diretamente na produção
o processo de trabalho com enfermeiros da ESF. do serviço de saúde.
Os desgastes sofridos pelos ACS no trabalho, Os ACS recebem os menores salários da equi-
citados pelos participantes desta investigação pe da ESF, pois seu trabalho é considerado o mais
e também comumente relatados na literatura, simples ou de menor exigência em termos de
são resultado da construção das condições de qualificação. Essa situação está relacionada com o
trabalho vigentes no processo de produção em lugar que ocupam na divisão social do trabalho,
saúde. Esse processo de produção acompanha os ou seja, sua classe social, a de moradores dos es-
de produção em geral, favorecendo a precariza- paços urbanos mais marginalizados e com menos
ção do trabalho, com crescimento da informa- acesso à infraestrutura. Do lado oposto ao de “elo
lidade, das formas flexíveis de contratação e do mais fraco na cadeia”, a pesquisa mostra a com-
desemprego, e transferindo responsabilidades ao plexidade do processo de trabalho em que os ACS
trabalhador32. Evidencia-se, dessa forma, a entra- estão envolvidos, já que se defrontam com os mais
da da lógica privada no setor público de serviços, graves problemas sociais, o que os obriga a mobi-
com a chamada reestruturação produtiva, o pro- lizar conjunto expressivo de recursos emocionais e
cesso de flexibilização do trabalho que desregula- afetivos, quando não materiais também.
menta os direitos sociais e trabalhistas por meio Além de participarem apenas da execução
da redução do número de operários, do aumento das tarefas, fica visível que, como esperado nos
da produtividade, da terceirização dos serviços e processos de produção capitalistas em geral, os
da primazia do operário polivalente34. ACS estranham o objeto do trabalho na atenção
Autores apontam precariedade e instabilida- primária e passam a se constituir apenas como
de nas contratações de profissionais da ESF, prin- instrumentos. Percebe-se, por seu turno, que a
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evidenciação dessa condição de instrumentos Como desafio para a atenção primária em
potencializa a discussão sobre o que seria a con- saúde, e particularmente para a ESF, coloca-se a
dição de sujeitos; isto é, a de coprodutores das necessidade de estabelecer espaços de discussão
transformações do objeto de trabalho. sobre o processo de trabalho que contribuam
Nesse sentido, o processo educativo, eixo da para o fortalecimento dos trabalhadores e o de-
pesquisa-ação desta investigação, permitiu que senvolvimento de práticas criativas intersetoriais,
os ACS formulassem críticas organizadas acer- que tenham impacto sobre as causas dos proble-
ca da posição em que são colocados na ESF. Os mas do setor. No campo do consumo prejudicial
resultados apresentados contribuem com o co- de drogas, tais espaços poderiam contribuir para
nhecimento na área ao evidenciar que é possível o estabelecimento de práticas de redução de da-
politizar a discussão sobre o processo de trabalho nos emancipatórias, incentivando atos políticos
em saúde através de processos educativos. que visem transformações sociais.

Colaboradores Referências

L Cordeiro e CB Soares participaram igualmente 1. Brasil. Ministério da Saúde (MS). Política Nacional de
Atenção Básica. Brasília: MS; 2012. (Série E. Legislação
da concepção, análise e interpretação dos dados e
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da redação do artigo. 2. Brasil. Ministério da Saúde (MS), Ministério da Edu-
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Agradecemos ao CNPq pelo financiamento con- de. Rio de Janeiro: Fiocruz; 2010.
cedido para realização da investigação que origi- 4. Trapé CA, Soares CB, Dalmaso, ASW. Trabalho do
nou este manuscrito. Agente Comunitário de Saúde: a dimensão educativa
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