Você está na página 1de 2

BIGNOTTO, Newton.

As aventuras da virtude: as ideias republicanas na França do século


XVIII. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

CAP I – O léxico republicano: a contribuição do Iluminismo

→ [25-85] Por mais que os ilustrados franceses não fossem, em sua grande maioria,
republicanos, eles se inspiraram nas ideias dessa forma de organização da polis, criando
um substrato cultural decisivo para a crítica da monarquia. Montesquieu é um claro
exemplo disso [29]. Em seus comentários sobre Roma, ele apresentava “uma cidade
cujo povo tinha tido um único espírito, um mesmo amor pela liberdade, um mesmo ódio
pela tirania” [32]. Era a virtude republicana sendo louvada, virtude essa associada por
Montesquieu “à igualdade, à liberdade e ao direito de participar da vida pública”. O
ilustrado não resgatava os romanos por mero diletantismo. Fazia-o no sentido de
apresentar experiências transatas como alternativas possíveis para o seu próprio
presente. “o mundo antigo não é apresentado como fato isolado e incompreensível aos
olhos dos modernos, mas como um exemplo para a estruturação de uma república. É
difícil imitar as lições do passado, mas não impossível” [33]. Mas o tempo trouxe
algumas dificuldades. Os políticos antigos, os gregos, para citar um exemplo, pautavam
sua existência na virtude. “Os de hoje”, escreve Montesquieu, “só falam de manufatura,
de comércio, de finanças, de riqueza e de luxo” [41]. A virtude teria cedido à “ambição”
e à “avareza”, tendo suas componentes desacreditadas. O “respeito e submissão às leis,
obediência às regras de conduta, frugalidade e uso consciente dos recursos públicos”, já
não estavam na ordem do dia [42]. Mas não seria muito mais fácil entregar-se às nossas
paixões egoístas que praticar os sacrifícios republicanos? Desse ponto de vista, a
“virtude” não seria sobremaneira artificial em comparação com nossos desejos
mundanos? Como ser republicanos se nossos impulsos são de outra natureza? [43].
“Montesquieu parece inteiramente consciente das dificuldades de se viver de acordo
com os princípios que ele mesmo enuncia, particularmente no que diz respeito às
repúblicas – tanto que se detém num instrumento muito valioso para desenvolvê-los: a
educação” [45]. Talvez somente por meio desse instrumento poder-se-ia viabilizar a
virtude, também definida pelo autor “como o amor pelas leis e pela pátria. Esse amor
que exige sempre a supremacia do interesse público sobre o interesse particular produz
todas as virtudes individuais; elas nada mais são do que essa preferência” [46].
Montesquieu, contrapondo o antigo ideal heroico, esclarece que “a virtude republicana
não exige a presença de cidadãos extraordinários para se realizar. Basta que se ame a
igualdade e estaremos diante dela. O problema é que não é evidente que se possa amar a
igualdade” [49]. Na Modernidade, melhor seria “uma república comerciante”. Afinal, o
comércio é um fator de civilização para Montesquieu... [50]. Por fim, ele coloca a
questão do Estado, salientando que este deve “agir como garantidor de direitos”, mas
com limites, para não ameaçar a liberdade dos indivíduos [53].

Depois de Montesquieu, a Encyclopédie prosseguiu nas análises sobre a república. No


verbete “república”, Jaucourt a associa à soberania popular, de sorte que na república “o
povo ou parte do povo detém a potência soberana” [58]. Debatendo a decadência de
Roma, o autor identifica na sede de glória e no desprezo pelas riquezas a razão disso.
Roma teria decaído devido ao espírito de conquista de alguns particulares, que em nome
desse desejo, corromperam o interesse público e “destruíram as mais sólidas
constituições da Antiguidade” [60]. A exemplo de Montesquieu, para Jaucourt, “a
república, sobretudo em sua forma democrática, é um regime muito interessante, mas
pouco adaptado às condições das nações modernas”. Ela seria anacrônica, por assim
dizer [61]. Afinal, se um dos traços decisivos do republicanismo é “a participação dos
cidadãos na vida pública”, como fazer com que isso ocorra no contexto das nações
modernas, sendo elas de grande território e fartamente habitadas? [63]. Mesmo assim,
as qualidades republicanas não deixaram de ser alardeadas e tiveram eficácia na luta
contra o Antigo Regime. “A crítica aos valores e sua substituição por uma nova visão da
moralidade, tanto quanto dos saberes e dos costumes, não levam por si só à Revolução,
e tampouco poder ser caracterizadas como uma teoria política no sentido estrito, mas
fazem parte do processo de criação de uma nova linguagem para pensar o mundo, a
partir da qual emergiu o republicanismo francês” [57].

Voltaire também pensou a república. Sua inspiração vinha da Inglaterra. Em suas


Cartas filosóficas, havia elogiado os quakers por não apoderarem sacerdotes, notórios
por se servirem das necessidades espirituais dos homens para fazer valer seus interesses
particulares. Os quakers não distinguiam esses potenciais aproveitadores da comunidade
de fieis. Ademais, não tinham o costume de se dirigir a ninguém utilizando o epíteto de
majestade e combatiam as separações de classe [70]. Dessa maneira, praticavam valores
republicanos que, para Voltaire, incluía ainda a “liberdade de expressão” e a
“tolerância”. Quanto a essa última virtude, o comércio podia contribuir crucialmente
para promovê-la. Afinal, quando estabelecemos relações de troca, a religião de nosso
parceiro é o de menos. O que importa é o lucro [74]. Assim como a maioria dos
ilustrados que tematizaram a república, Voltaire também chama a atenção para a sua
fragilidade. “Fica claro que Voltaire esposa as dúvidas de seu tempo quanto à
possibilidade de existência de uma república em grandes territórios, e também o receio
de que a fragilidade de uma forma de governo tão preciosa não consiga resistir aos
ataques externos” [80]. Repetia, assim, a “dificuldade com um regime que, mesmo
sendo elogiado por alguns, não parecia possível nas condições europeias do século
XVIII” [83]. Uma importante observação de Voltaire nos esclarece que “o homem
virtuoso está bem mais à vontade em uma república, pois nela não precisa bajular
ninguém”. Esse aspecto também se inclui nas vantagens apresentadas pelo autor quanto
às repúblicas [82].

Concluindo, “de um lado, não podemos falar em sentido estrito de republicanismo dos
iluministas; de outro, não há como negar a presença de temas, conceitos e de uma
sincera admiração por alguns valores associados à tradição republicana”. Os iluministas
não pregavam a revolução - longe disso. Mas construíram um léxico, uma linguagem
republicana, altamente fecunda e eficaz na crítica ao regime monárquico [83].

Você também pode gostar