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BATISTA, Nilo. Cardápio da morte. Revista CHRONOS.

Rio de Janeiro: UNIRIO,


2006, p. 81-90.

CARDÁPIO DA MORTE

Tragicomédia em uma cena, para uso em laboratórios de Política e Criminologia,


duas ciências a cada dia mais afins

Dramatis personae: 1. Exequiel Burundanga, deputado-constituinte. 2. Brocardo


Latino, assessor jurídico.

CENA ÚNICA

Brasília, em alguma noite da primavera de 1987, na véspera da apresentação do


projeto de lei do deputado Exequiel Burundanga sobre a pena de morte. Entra em
seu gabinete, carregado de livros, o assessor jurídico Brocardo Latino.

EB – Ora, muito bem, Dr. Brocardo. Resolveu o problema?

BL – Não, deputado, não resolvi. Estudei a quaestio facti e estou meio confuso.
Aliás, quanto mais estudava, mais me confundia.

EB – Não entra na minha cabeça que um aspecto tão secundário como este – a
forma de execução – possa retardar a apresentação de nosso projeto de lei. O
fundamental é a morte, em sua elevada abstração teórica. Matou, morreu. Morte lá,
morte cá. Nada mais saudavelmente lógico. Agora, como se vai matar, como se vai
morrer, que importância tem isso?

BL – Não é tão simples assim, deputado Burundanga. Veja o levantamento que fiz,
nesta folha de papel. É uma espécie de cardápio da morte, uma summa divisio: aí
estão arroladas todas as formas contemporâneas e execução da pena capital, no
mundo ocidental e no mundo comunista.

EB – Perfeitamente dispensável o segundo grupo. Nosso eleitorado quer a pena de


morte no e para o ocidente. A propósito, onde o senhor colocou o Japão?

BL – Japão é ocidental.
EB – Claro. Mas, diga-me uma coisa: os comunistas não são contra a pena de
morte?

BL – Não consegui entender isso direito. Lênin várias vezes afirmou que os
comunistas eram adversários da pena de morte, porém excepcionalmente a
admitiam, sob determinadas circunstâncias e enquanto tais circunstâncias
perdurassem. Garantia-se que o governo revolucionário não a conservaria além do
necessário à estabilização do poder. De fato, logo após a guerra, em 1947, aboliram
a pena de morte. Mas em 1950, com a chamada guerra fria, ela retornou para
crimes de espionagem e traição, e foi ampliada para crimes comuns em 1954 e
1961. Esta situação perdura até hoje. Ou não ligam mais para Lênin, ou o poder
ainda não está consolidado lá; tertius non datur.

EB – Não tente compreendê-los. Vamos ao nosso problema: por que é complicado o


jeito de matar?

BL – No direito antigo e intermédio não era. Matava-se como bem se queria. Ad


libtum. Mas hoje é muito diferente. Há um relatório, sempre citado nos livros, de uma
comissão inglesa, chamada Royal Comission on Capital Punishment. De 1949 a
1953, essa comissão estudou a pena de morte. Para ela, a execução da pena
capital exige três requisitos básicos: humanidade, certeza e decência. Por
humanidade, entende-se que a técnica adotada deva matar o padecente sem aflição
e sem dor (ou com perda imediata de consciência), evitando-se longos ritos ou
preparativos. Por certeza, entende-se que a forma de execução deva alcançar direta
e imediatamente a supressão da vida do padecente, sem interrupções ou
dificuldades operativas. Por decência, entende-se que o procedimento deve realizar-
se com dignidade, evitando qualquer violência inútil ou brutalidade contra o
padecente, não lhe mutilando ou deformando o corpo.

EB – Embora os assaltantes e estupradores não concedam a suas vítimas qualquer


dessas considerações, concordo em que o Estado não pode matar como um
assaltante ou um estuprador. Vejamos aqui seu cardápio. Forca. Acho interessante,
e tem tradição entre nós. Funciona bem a forca?

BL – In thesi, sim. A comissão inglesa achava que era a melhor técnica. O verdugo
examina previamente o condenado e calcula, de acordo com seu peso e outras
características, a altura da queda. Com um saco de areia do mesmo peso, testa a
corda. No momento da execução, o padecente tem seus braços atados às costas e
é conduzido à sala própria.

EB – O enforcamento não é público?

BL – Na América, o último enforcamento público em 1831, em Nova Iorque. Na


Inglaterra, em 1868. Depois disso, e enquanto se usou a forca (na Inglaterra, até
1969), as execuções se deram no interior das prisões. Levando à sala própria, que
fica contígua à cela dos condenados, coloca-se em sua cabeça um capuz e passa-
se a corda em seu pescoço. O laço corrediço era colocado, na Inglaterra, sob a
mandíbula, do lado esquerdo, na América, sob a orelha, também do lado esquerdo.
Trata-se de uma dissidência entre carrascos: a posição submental e a posição
subaural são defendidas por correntes distintas, a primeira perfilhada pelos verdugos
ingleses, a segunda pelos americanos. De qualquer forma, aberto o alçapão, o corpo
cai e o deslocamento violento das vértebras cervicais promove a maceração ou
ruptura da medula. Isso leva à perda imediata da consciência. O coração fica
batendo ainda quase 20 minutos, mas a comissão inglesa garante que se trata de
uma função inteiramente automática.

EB – Não me parece mal, não me parece mal. E é barato. Por que disse, caro doutor
Brocardo, que em tese funciona bem? Na prática porventura funciona mal?

BL – A prática registra vários inconvenientes. Se o verdugo erra o cálculo da queda,


haverá problemas. Se ele erra para menos, não ocorre o deslocamento das
vértebras cervicais, a medula não é atingida, e a morte sobrevém por asfixia. A
morte por asfixia na forca é um espetáculo deprimente. Os antigos verdugos
cavalgavam os padecentes para acelerar a sua morte. Houve caso de o desgraçado
conseguir, aos corcovos, apoiar as pernas nas bordas do alçapão. Mas se o verdugo
erra para mais, pode a cabeça do padecente ser arrancada. Pelos critérios da
comissão inglesa, na primeira hipótese, falta o requisito da humanity; na segunda,
falta o requisito da decency. Mas não é só isso. São inúmeros os casos de
reanimação de enforcados que a literatura registra. Imagine o coração de um corpo,
no Instituto Médico Legal, voltar a bater! A reação jurídica foi estipular prazos de
permanência do corpo pendurado. Na Inglaterra, em 1969, o prazo era de uma hora,
ex-vi legis. A tecnologia tornou coisas do passado as cordas que rebentavam, mas
esse coração batendo quase 20 minutos continua ensejando muita polêmica. Há
também reações fisiológicas desagradáveis que...

EB – Não. Melhor tentarmos outro caminho.

BL – Devo então desconsiderar o garrote?

EB – Como é o garrote?

BL – Mais ou menos como a forca. São duas argolas de ferro, uma fixa e outra
móvel. Quando o torniquete é acionado, a argola móvel caminha para trás. O
padecente está sentado num banco, e o garrote ajustado num madeiro atrás dele.
Há o deslocamento de vértebras cervicais, como no enforcamento, e asfixia. O corpo
se estorcega espasmodicamente, até que o número de voltas no torniquete consiga
deslocar as vértebras e dilacerar a medula.

EB – Não, não. Vamos por outro caminho. Você aceita um uísque? Estou com a
garganta seca.

BL – Acompanharei. Interessa-lhe a decapitação?


EB – Usa-se no ocidente cristão?

BL – A guilhotina é o método moderno de decapitação. Tem o grave inconveniente


de mutilar o corpo do padecente, mas foi muito prestigiada. Seu inventor dizia que o
executado não sentiria mais do que uma sensação gelada...

EB – Duas ou três pedras?

BL – ...nas espáduas. Sem gelo, por favor: bebo cowboy quando estou gripado. A
guilhotina é simples. O padecente é colocado, por um mecanismo basculante, em
posição horizontal; seu pescoço é imobilizado por um dispositivo de duas peças
grossas de madeira, cada qual com um semicírculo, chamado lunette; a lâmina tem
sobre si um peso de aproximadamente 40 quilos, ao qual é dado o nome de
mounton; acionado o declic, uma garra que prende o mounton, este e a lâmina,
dotados de carretilhas laterais, caem e promovem a decapitação.

EB – Parece eficiente.

BL – Devo dizer-lhe, deputado, que há inconvenientes. Como a lunette é uma, e os


pescoços múltiplos, o ajudante do carrasco tem que se garantir de que o padecente
não faça movimentos para retrair sua cabeça. Ele segura pelos cabelos e, quando
calvo, pelas orelhas.

Se o padecente se retrai, podem acontecer carnicerias desagradáveis, como no


caso daquele que teve a mandíbula cortada. Esse ajudante usa uma espécie de
máscara, para proteger-se a sangueira que jorra da garganta.

EB – Pelo menos, é um processo de morte imediata.

BL – É que o senhor não conhece as estórias macabras de decapitados. Não me


refiro, é claro, ao rubor de Charlotte Corday, esbofeteada no patíbulo, que tem um ar
de lenda. Mas o relatório do médico Wendt, no início do século XIX, que, junto a
alguns colegas, testou a percepção sensorial da cabeça recém-degolada de um
executado chamado Troer, bem como o relatório semelhante do médico Bearieux,
no início do século XX, que trabalhou sobre a cabeça do executado Larguille, são de
arrepiar. Um decreto de 1904, na Prússia, proibiu que se realizasse “qualquer
espécie de excitação mecânica ou galvânica em qualquer parte do corpo dos
decapitados e em suas cabeças”. Isso tudo pode ser questionado. Mas quem
presenciou a execução de Gorguloff, o assassino do presidente Dourmer, não deve
ter dormido por uns dias. Seu pescoço era muito grosso, impedindo que a lunette se
fechasse completamente; a madeira, fora da posição normal, passou provavelmente
a frear, pelo atrito, a queda da lâmina. Foram sucessivas quedas, cada uma das
quais arrancava um pedaço da cabeça de Gorguloff. Para que os berros inumanos
do padecente cessassem, Rogis, ajudante do verdugo Deiber, deu-lhe um golpe
com uma chave inglesa desacordá-lo.
EB – Basta, meu caro Dr. Brocardo. Com acidente desses, não me elejo nunca
mais. Vai uma fatia de salaminho? E o que se pode dizer da cadeira elétrica?

BL – Obrigado. A comissão inglesa registrava inconvenientes nos preparativos


longos, uma vez que o condenado tem que ser raspados os cabelos da parte
superior da cabeça e da perna, onde serão fixados os eletrodos, além de ser atado
por diversas correias à cadeira, para não ser projetado pela primeira descarga. Mas
acho que o pior são as queimaduras e as reanimações, durante e depois.

EB – Queimaduras?

BL – Sim. Muitas testemunhas presenciais mencionaram a fumaça que sai do corpo


do padecente, mas todas, absolutamente todas, sentem o cheiro da carne
queimada. E os laudos registram, inúmeras vezes, queimaduras, no rosto ou na
perna. Isso aconteceu com Spenkelink, executado na Flórida em 1979; sua face
estava queimada. A primeira descarga é de mais ou menos 2.000 volts, por uns 6
segundos. Reduz-se para 500 volts por quase um minuto, aplicam-se 1.000 volts por
uns 10 segundos, e após novo minuto de 500 volts vem a última descarga de 2.000
volts, como um coup-de-grâce. A 2.000 volts, a temperatura do cérebro do
padecente vai a 140 Fahrenheit. O pastor Potter, que assistiu à execução de um
criminoso chamado Crowley, fez um relato que se detém muito sobre isso: os suores
profusos, às vezes sangue pela boca e nariz, indicando, ao lado do cheiro, que o
corpo está sendo assado. E – o que é pior – frequentemente é preciso a segunda
descarga, e por vezes a terceira. O médico vai até lá, e o homem está vivo. O
deputado podia passar-me uma torradinha por favor?

EB – Pois não. Mas e se aumentarmos a voltagem?

BL – É claro que se fossem aplicados 10.000 volts, alta tensão, a 100 ampéres, a
morte seria indiscutivelmente imediato. Porém sobraria na cadeira, sic et simpliciter,
um pedaço de carvão. Veja o deputado: para usar os termos da comissão inglesa,
ganharíamos 10 em certainty, mas levaríamos zero em decency. Para não
desfigurar o corpo, haverá o risco da morte aflitiva, e das reanimações.

EB – Reanimações?

BL – A literatura anota diversos casos em que se deu reanimação. Nem deles, ad


exemplum, referido por Von Hentig, o médico legista requisitou o retorno do – não
sei se digo corpo ou réu – à cadeira elétrica, para que voltasse a morrer. Uma lei
nova-iorquina de 1914 determinaria a imediata realização da autópsia, logo que
encerrada a execução, e o motivo era enunciado com louvável sinceridade: “to
prevent any possible chance of the subject ever returning to life”. Veja bem o que
essa lei, na verdade, pedia ao médico de plantão!

EB – Começo a entender suas dificuldades, Dr. Brocardo. Fale-me algo sobre... a


câmara de gás.
BL – A câmara de gás tem desde logo a vantagem de não apresentar um só caso de
reanimação.

EB – Enfim, uma boa notícia! Aceita uma cigarrilha? Como funciona a coisa?

BL – Obrigado, prefiro o meu Hollywood. A coisa é simples. Uma câmara hermética,


com uma ou duas cadeiras, cujo assento deve ser vazado – tipo palhinha – para não
impedir a ascensão do gás. Sob a cadeira, um recipiente, que será cheio com certa
quantidade de ácido sulfúrico; neste recipiente, no momento da execução, cairão
algumas pastilhas de cianureto de potássio, dando surgimento ao gás cianídrico. Na
cadeira, amarrado pelo pescoço, braços e pernas, o padecente tem um estetoscópio
preso à altura do coração, conectado a um tubo que sai da câmara e permite a um
médico constatar a interrupção dos batimentos. Se o réu colaborar...

EB – Se ele colaborar?

BL – Sim, se o réu colaborar, inspirando fortemente, a perda da consciência é quase


imediata. Sem essa colaboração, tudo é mais lento, e o condenado sofre uma
asfixia.

EB – Quanto tempo demora?

BL – De uns três a 12 minutos. Houve um caso em que um espectador conversou,


pelos sinais dos surdos-mudos, através das janelas de vidro, 4 minutos e meio com
o padecente, em plena execução. Veja este relatório do médico Hamer. O gás
começou a sair às 4:37:30h. O último batimento cardíaco foi às 4,47, mas a
respiração estava convulsiva, espasmódica e irregular desde 4:38. Por exemplo, às
4:41:30 eram 100 batidas; às 4,44, eram 80. Mas só quem percebe isso é o médico,
com seu estetoscópio.

EB – E as testemunhas o que vêem?

BL – Nada excepcionalmente terrível – dentro de nosso tema, naturalmente. A


língua, quando a cabeça pende, costuma sair dos lábios, junto com uma baba.
Como, segundo os autores de Medicina Legal, esse envenenamento produz enjôos,
dor de cabeça, aumento da pressão sanguínea, perda da visão e opressão sobre o
peito, tornando a respiração difícil, como num ataque de asma, não se pode dizer
que a coisa seja isenta de dor. O padecente às vezes não evita transmitir suas
sensações.

EB – Acidentes?

BL – Insignificantes. Um condenado que teve que ser sentado à força, tentou o


suicídio cortando o pescoço com um pedaço de espelho; outro, magrinho, que
conseguiu tirar as mãos e já estava desafivelando as correias, para seu azar – ou
para sua sorte? – ainda não haviam lançado o cianureto, e ele foi reamarrado. Não,
os inconvenientes maiores não vêm, neste caso de acidentes e sim das conotações
políticas.

EB – Que conotações políticas?

BL – Milhares de pessoas, principalmente judeus, foram exterminadas da forma


mais arbitrária e impiedosa por esse processo. Muitos textos chamam a atenção
para isso.

EB – Veja, caro doutor como, no fundo, no fundo, dessa ou daquela forma, os


judeus realmente intervêm em todas as decisões importantes... Assim fica de fato
muito difícil. Vamos ao fuzilamento. Talvez este seja o caminho, porque o
fuzilamento já existe no direito brasileiro, não é?

BL – Sim, já existe no Código Penal Militar, para crimes militares em tempo de


guerra.

EB – Então, vamos lá. Não me venha dizer que sai sangue; isso eu já sei. O
fuzilamento mata bem e depressa, não é?

BL – Depende muito deputado Burundanga, da pontaria do pelotão. No famoso


fuzilamento do soldado Slovik, em 1945, com um pelotão de 12 homens, nem uma
só das balas acertou no coração. Os projéteis se alojaram entre o pescoço e o
ombro esquerdo, atingindo a parte esquerda do peito, acima e abaixo do coração.
Slovik ficou se debatendo, amarrado ao poste, gemendo, enquanto nova descarga
era preparada. Acontece que, pelo regulamento militar americano, a preparação da
descarga leva uns 15 minutos. Quando ficou pronta, Slovik cessara de debater-se.
Um quarto de hora de intensa hemorragia o matara. Não desanime, deputado; às
vezes a morte é imediata.

EB – Sim?

BL – Na execução de Pedro Martinez, em 1972, o tiro de misericórdia não foi


necessário. À frente do pelotão, por uma fraqueza qualquer – quiçá compreensível –
o condenado caiu de joelhos, e quase todas as balas o atingiram na cabeça.

EB – Mas, afinal, onde se atira? E quantos atiram?

BL – Há diversos sistemas. Pode fuzilar-se disparando à cabeça, ao peito e às


costas – tradicionalmente, essa última modalidade implicava um demérito,
reservando-se a traidores e quejandos. Não vou deter-me sobre o fuzilamento por
disparo na nuca, que teve pouca receptividade no Ocidente – pelo menos, no
Ocidente oficial. O pelotão pode ser de 5, 8, 10 ou 12 homens. Uma norma muito
frequentemente obriga a que uma das armas – sem que se saiba qual – esteja
municiada com disparo de festim.
EB – Isso me parece engenhoso! Quer dizer: uma das armas tem um cartucho só
com pólvora, sem bala. Todos ficam com o direito de achar que aquela era a sua
arma. Engenhoso!

BL – Infelizmente, dessa gentil fantasia não pode beneficiar-se o comandante do


pelotão, a quem toca o tiro de misericórdia.

EB – Mas esse tiro é a regra ou a exceção?

BL – É a regra. E é feio. Ao descrever os efeitos de uma bala 9 milímetros que


rebentou o crânio de um réu, e fez com que a massa encefálica lhe saltasse sobre
os olhos, Naud disse que parecia “uma couve-flor rosada”. No histórico fuzilamento
do padre Hidalgo, as regras não previam tiro de misericórdia. Após três descargas, o
tenente Armandáriz pediu a dois dos soldados que disparassem com o cano colado
ao peito do padre. Essa pastinha é de salmão?

EB – Hadock. Não, não, acho que o fuzilamento nos traria problemas com os
militares. Não vão querer assumir as funções. Ainda mais se tivermos que fuzilar um
padre; e, alguns padres, o senhor bem sabe, o merecem.

BL – Poderia ficar a cargo da Polícia Militar...

EB – Com aquela pontaria? Imagine as cenas horripilantes, a cada execução. E isso


iria despertar ciúmes em alguns correligionários da Polícia Civil, que nos são muito
fieis. Não, Dr. Brocardo, muita gente nessa história de matar não dá certo. Mais
uísque?

BL – Obrigado, vou ficar só nesse. Tenho contraído gripe com freqüência, e tomei
medicação antibiótica.

EB – E a injeção?

BL – Não, foram cápsulas.

EB – A injeção letal, Dr. Brocardo! A injeção letal!

BL – Esta é que lhe traria problemas, meu deputado, muitos problemas com a classe
médica. Desde a primeira lei, que é de 1977, de Oklahoma, existem esses
problemas. Aliás, ainda em estudos, a Associação Médica Britânica se pronunciara;
“Não se deve esperar de nenhum médico que, no seu exercício profissional,
concorde em tomar parte na morte de um assassino condenado”. Quando houve a
primeira execução por esse processo – em Huntsville, Texas, 1982 – o diretor
médico do presídio teve a seguinte participação: 1º - examinou previamente as veias
do condenado para ver se eram adequadas; 2º - entregou a droga (tiopental sódico)
ao carrasco; 3º - supervisionou a aplicação da injeção; 4º - controlou os batimentos
cardíacos (o que não fugiria às tarefas comuns); 5º - indicou, em determinado
momento, que a injeção deveria continuar alguns minutos. Choveram
manifestações, das associações médicas do Texas e da Americana. O secretário
geral da Associação Médica Mundial declarou que a morte, cumprida a execução.
Aqui não seria diferente, deputado. Ainda outro dia um médico mineiro chamava
essa forma de execução de “silencioso assassinato farmacológico”.

EB – É fogo. Esses médicos comunistas.

BL – Há uns detalhes que lhe agradará. Parece que em algum dos seis estados
americanos que adotaram a injeção, tomam-se três veias do condenado. Em dois
são inoculadas substâncias inócuas, e só numa droga letal. Como no pelotão de
fuzilamento.

EB – Eu chego a pensar que na votação de certas leis poderia ser introduzido algo
semelhante. De 12 botões de votação, um votaria em branco. O deputado poderia
sempre dizer: não fui eu quem aprovou aquilo. Ou, pelo menos, pensar: talvez não
tenha sido eu.

BL – Deputado, com sua licença, vou me retirar. Estou me sentindo meio febril.

EB – Será a cadeira elétrica, Dr. Brocardo.

BL – A cadeira elétrica?

EB – Sim. Tem uma certa mística, é bem ocidental. A gente torna obrigatório o uso
de um aromatizador de ambientes na sala, para evitar o cheiro de carne assada. E
cobre todo o corpo do condenado, para que a cena não deprimir, com suores
profusos, queimaduras. E qualquer resistência do bandido, tascamos mais mil volts
nele. Poderíamos aproveitar nossa mão-de-obra na área da eletricidade repressiva,
que está ociosa, operando muito abaixo do que demonstrou ser capaz, por exemplo,
nos anos Médici.

BL – Conviria então que o senhor soubesse que criminólogos americanos


identificam a origem da cadeira elétrica numa disputa comercial. Edison queria
eletrificar as cidades americanas com corrente contínua, de baixa tensão, conduzida
por cabos subterrâneos; Westinghouse era partidário da corrente alternada, de alta
tensão, conduzida por cabos aéreos. Em 1888, um operário de Westinghouse
esbarrou num cabo e morreu. Edison não perdeu a oportunidade. Além de divulgar
ao máximo o fato, construiu um aparelho – antepassado direto da cadeira elétrica –
destinado a demonstrar, pela eletrocução de animais, as desvantagens e perigos da
corrente alternada. Um tal Harold P. Brown foi o encarregado da tournée
demonstrativa. Parece que Edison quis levar sua tese a comissão parlamentar. Aí
começaria...

EB – Dr. Brocardo, isso parece história de comunista. O senhor andou lendo demais.
Vamos dormir, que esta reunião foi dura, e o corpo merece descanso.

BL – É verdade. O corpo merece descanso. Boa noite, deputado.

EB – Boa noite.
(Pano lento)

NOTA PÓSTUMA

O deputado Exequiel (com x mesmo, cognato de exéquias) Burundanga é um


personagem de ficção. Qualquer semelhança com pessoas reais é mera
coincidência. Enquanto personagem, morrerá em 1988, num conto denominado
“Apetite Fatal”, atropelado, ao sair de sua casa para ir comprar um saquinho de
pipocas, por uma viatura policial, em mau estado de conservação, que se deslocava
para atender a um falso alarme de assalto bancário.

O personagem portanto, falece antes de ver realizado seu sonho. Deposto pelo
impeachment das armas vendidas ao Irã, Reagan comparecerá pessoalmente às
exéquias. O cabo PM que dirigia a viatura será absolvido.

Pelo contrário, Brocardo Latino existe realmente. Com o óbito de Exequiel, foi
assessorar um deputado do PMDB, depois Ministro e, em pouco tempo, benquisto
no Planalto viu-se nomeado magistrado de importante corte federal. Tornar-se-ia
famoso em 1989, pelo erudito voto vencedor proferido no processo em que se
discutia a legitimidade de uma operação 63 que o Piauí realizara com bancos sul-
africanos para financiar a implantação de cinco cadeiras elétricas. Viria para
financiar a implantação de cinco cadeiras elétricas a morrer em 1990, de pneumonia.
Suas últimas palavras foram: “factum negantis probatio nulla est”.

Os episódios, personagens, relatórios, depoimentos, normas e referências “técnicas”


sobre execução da pena de morte são todos rigorosamente verdadeiros.

O Cardápio da Morte – Tragicomédia em uma cena para uso em Laboratórios de


Interpretação de Política e Criminologia, duas ciências a cada dia mais afins. IN Batista,
Nilo. Punidos e mal pagos. Rio de Janeiro: Revan, 1990.

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