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CARDÁPIO DA MORTE
CENA ÚNICA
BL – Não, deputado, não resolvi. Estudei a quaestio facti e estou meio confuso.
Aliás, quanto mais estudava, mais me confundia.
EB – Não entra na minha cabeça que um aspecto tão secundário como este – a
forma de execução – possa retardar a apresentação de nosso projeto de lei. O
fundamental é a morte, em sua elevada abstração teórica. Matou, morreu. Morte lá,
morte cá. Nada mais saudavelmente lógico. Agora, como se vai matar, como se vai
morrer, que importância tem isso?
BL – Não é tão simples assim, deputado Burundanga. Veja o levantamento que fiz,
nesta folha de papel. É uma espécie de cardápio da morte, uma summa divisio: aí
estão arroladas todas as formas contemporâneas e execução da pena capital, no
mundo ocidental e no mundo comunista.
BL – Japão é ocidental.
EB – Claro. Mas, diga-me uma coisa: os comunistas não são contra a pena de
morte?
BL – Não consegui entender isso direito. Lênin várias vezes afirmou que os
comunistas eram adversários da pena de morte, porém excepcionalmente a
admitiam, sob determinadas circunstâncias e enquanto tais circunstâncias
perdurassem. Garantia-se que o governo revolucionário não a conservaria além do
necessário à estabilização do poder. De fato, logo após a guerra, em 1947, aboliram
a pena de morte. Mas em 1950, com a chamada guerra fria, ela retornou para
crimes de espionagem e traição, e foi ampliada para crimes comuns em 1954 e
1961. Esta situação perdura até hoje. Ou não ligam mais para Lênin, ou o poder
ainda não está consolidado lá; tertius non datur.
BL – In thesi, sim. A comissão inglesa achava que era a melhor técnica. O verdugo
examina previamente o condenado e calcula, de acordo com seu peso e outras
características, a altura da queda. Com um saco de areia do mesmo peso, testa a
corda. No momento da execução, o padecente tem seus braços atados às costas e
é conduzido à sala própria.
EB – Não me parece mal, não me parece mal. E é barato. Por que disse, caro doutor
Brocardo, que em tese funciona bem? Na prática porventura funciona mal?
EB – Como é o garrote?
BL – Mais ou menos como a forca. São duas argolas de ferro, uma fixa e outra
móvel. Quando o torniquete é acionado, a argola móvel caminha para trás. O
padecente está sentado num banco, e o garrote ajustado num madeiro atrás dele.
Há o deslocamento de vértebras cervicais, como no enforcamento, e asfixia. O corpo
se estorcega espasmodicamente, até que o número de voltas no torniquete consiga
deslocar as vértebras e dilacerar a medula.
EB – Não, não. Vamos por outro caminho. Você aceita um uísque? Estou com a
garganta seca.
BL – ...nas espáduas. Sem gelo, por favor: bebo cowboy quando estou gripado. A
guilhotina é simples. O padecente é colocado, por um mecanismo basculante, em
posição horizontal; seu pescoço é imobilizado por um dispositivo de duas peças
grossas de madeira, cada qual com um semicírculo, chamado lunette; a lâmina tem
sobre si um peso de aproximadamente 40 quilos, ao qual é dado o nome de
mounton; acionado o declic, uma garra que prende o mounton, este e a lâmina,
dotados de carretilhas laterais, caem e promovem a decapitação.
EB – Parece eficiente.
EB – Queimaduras?
BL – É claro que se fossem aplicados 10.000 volts, alta tensão, a 100 ampéres, a
morte seria indiscutivelmente imediato. Porém sobraria na cadeira, sic et simpliciter,
um pedaço de carvão. Veja o deputado: para usar os termos da comissão inglesa,
ganharíamos 10 em certainty, mas levaríamos zero em decency. Para não
desfigurar o corpo, haverá o risco da morte aflitiva, e das reanimações.
EB – Reanimações?
EB – Enfim, uma boa notícia! Aceita uma cigarrilha? Como funciona a coisa?
EB – Se ele colaborar?
EB – Acidentes?
EB – Então, vamos lá. Não me venha dizer que sai sangue; isso eu já sei. O
fuzilamento mata bem e depressa, não é?
EB – Sim?
EB – Hadock. Não, não, acho que o fuzilamento nos traria problemas com os
militares. Não vão querer assumir as funções. Ainda mais se tivermos que fuzilar um
padre; e, alguns padres, o senhor bem sabe, o merecem.
BL – Obrigado, vou ficar só nesse. Tenho contraído gripe com freqüência, e tomei
medicação antibiótica.
EB – E a injeção?
BL – Esta é que lhe traria problemas, meu deputado, muitos problemas com a classe
médica. Desde a primeira lei, que é de 1977, de Oklahoma, existem esses
problemas. Aliás, ainda em estudos, a Associação Médica Britânica se pronunciara;
“Não se deve esperar de nenhum médico que, no seu exercício profissional,
concorde em tomar parte na morte de um assassino condenado”. Quando houve a
primeira execução por esse processo – em Huntsville, Texas, 1982 – o diretor
médico do presídio teve a seguinte participação: 1º - examinou previamente as veias
do condenado para ver se eram adequadas; 2º - entregou a droga (tiopental sódico)
ao carrasco; 3º - supervisionou a aplicação da injeção; 4º - controlou os batimentos
cardíacos (o que não fugiria às tarefas comuns); 5º - indicou, em determinado
momento, que a injeção deveria continuar alguns minutos. Choveram
manifestações, das associações médicas do Texas e da Americana. O secretário
geral da Associação Médica Mundial declarou que a morte, cumprida a execução.
Aqui não seria diferente, deputado. Ainda outro dia um médico mineiro chamava
essa forma de execução de “silencioso assassinato farmacológico”.
BL – Há uns detalhes que lhe agradará. Parece que em algum dos seis estados
americanos que adotaram a injeção, tomam-se três veias do condenado. Em dois
são inoculadas substâncias inócuas, e só numa droga letal. Como no pelotão de
fuzilamento.
EB – Eu chego a pensar que na votação de certas leis poderia ser introduzido algo
semelhante. De 12 botões de votação, um votaria em branco. O deputado poderia
sempre dizer: não fui eu quem aprovou aquilo. Ou, pelo menos, pensar: talvez não
tenha sido eu.
BL – Deputado, com sua licença, vou me retirar. Estou me sentindo meio febril.
BL – A cadeira elétrica?
EB – Sim. Tem uma certa mística, é bem ocidental. A gente torna obrigatório o uso
de um aromatizador de ambientes na sala, para evitar o cheiro de carne assada. E
cobre todo o corpo do condenado, para que a cena não deprimir, com suores
profusos, queimaduras. E qualquer resistência do bandido, tascamos mais mil volts
nele. Poderíamos aproveitar nossa mão-de-obra na área da eletricidade repressiva,
que está ociosa, operando muito abaixo do que demonstrou ser capaz, por exemplo,
nos anos Médici.
EB – Dr. Brocardo, isso parece história de comunista. O senhor andou lendo demais.
Vamos dormir, que esta reunião foi dura, e o corpo merece descanso.
EB – Boa noite.
(Pano lento)
NOTA PÓSTUMA
O personagem portanto, falece antes de ver realizado seu sonho. Deposto pelo
impeachment das armas vendidas ao Irã, Reagan comparecerá pessoalmente às
exéquias. O cabo PM que dirigia a viatura será absolvido.
Pelo contrário, Brocardo Latino existe realmente. Com o óbito de Exequiel, foi
assessorar um deputado do PMDB, depois Ministro e, em pouco tempo, benquisto
no Planalto viu-se nomeado magistrado de importante corte federal. Tornar-se-ia
famoso em 1989, pelo erudito voto vencedor proferido no processo em que se
discutia a legitimidade de uma operação 63 que o Piauí realizara com bancos sul-
africanos para financiar a implantação de cinco cadeiras elétricas. Viria para
financiar a implantação de cinco cadeiras elétricas a morrer em 1990, de pneumonia.
Suas últimas palavras foram: “factum negantis probatio nulla est”.