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Fichamento “O Homem e a Comunicação – a prosa do mundo” -

Maurice Merleau Ponty (1969)

QUEM FOI MERLÔPO? (fonte: wikipedia)

 Nascido em 1908 na França, estudou na École Normale Supérieure em Paris com Simone
de Bouvoir, Sartre, Jean Hyppolite, assistiu a palestras de Husserl e tornou-se professor de
filosofia, primeiro em Paris e depois em Lyon. Era leitor de Marx e chegou a converter
Sartre ao Marxismo. Depois, desiludiu-se do comunismo, mas Sartre continuou. Morreu de
infarto aos 53 anos, em 1961.

 Sua tese de doutorado deu origem às suas duas primeiras obras: “La Structure du
Comportement” (1942) e seu principal escrito, “Fenomenologia da Percepção” (1945). Sua
teoria do “le corps propre” (seu próprio corpo, corpo sujeito) era uma oposição ao dualismo
cartesiano. O corpo é todo órgão perceptivo, subjetividade encarnada, condição
permanente da experiência, capaz de perceber o fenômeno por sua implicação nele. O
próprio fenômeno é um correlato do corpo que o percebe: mundo e senso de self em devir
constante.

 O aspecto parcial, incompleto das percepções (limitadas pelos órgãos perceptivos) não
atenta contra a realidade do mundo, mas, ao contrário, a funda: é apenas por essa via
enviesada que se pode perceber o mundo. A coisa se mostra aos poucos, pelo infinito de
perspectivas parciais pelo qual pode ser notada, que se tornam figura destacando-se do
fundo de relações significativas que aquele objeto estabelece com os demais objetos.
Cada objeto é um “espelho de todos os outros”, e a percepção na verdade é a de uma
gestalt (figura-objeto, fundo-rede de relações significativas que conferem sentido ao objeto
contextualmente). O mundo é contínuo, porém sempre aberto.

 A percepção, portanto, não é o produto causal de sensações atômicas/ isoladas (como


acreditou a tradição empirista iniciada por John Locke e que alcança até o behaviorismo).
A abertura para o Lebenswelt faz da percepção uma dimensão ativa noético-noemática, e
que tem o primado sobre os juízos intelectuais. Todavia, ao fazer uma revisão de Husserl,
Merlôpo descobre que certos fenômenos não se encaixam na relação entre ato intencional
subjetivo (noese) e objeto intencional (noema):
o a fenomenologia do corpo (e da percepção) complica as coisas ao tornar noese e
noema simultâneos (corpo como sujeito e objeto);
o a vivência subjetiva do tempo não é um ato de pensamento nem uma percepção;
o o “outro”: em Husserl, essa relação mesmo-outro caía no solipsismo (só existe o eu
e minhas sensações… nada é objetivo, tudo é subjetivo).
o No extremo oposto, a ciência positivista pode levantar dados e mensurações, mas
nada pode dizer sobre a subjetividade humana. No prefácio de Fenomenologia da
Percepção ele acusa a ciência de ser ingênua e desonesta.

 Ao relativizar a universalidade da relação noese-noema, Merlôpo subverte a


fenomenologia: substitui a máxima Husserliana “toda consciência é consciência de algo”
para “toda consciência é consciência perceptual”. Tanto a oposição ao cognitivismo da
ciência positivista quanto a proposição desta teoria do primado da percepção influenciaram
no desenvolvimento de teorias psicológicas pós-cognitivistas (teorias da mente estendida e
da mente corporificada de Maturana, Varela, Hubert Dreyfus, Andy Clark etc). Além disso,
ele também influenciou movimentos feministas, ecofenomenologia etc.

 A Fenomenologia da percepção apresenta uma distinção entre o modo primário e o


secundário de expressão. Na Prosa do Mundo esta teoria está como “fala falante”, langage
parlant e “fala falada”, langage parlé. O modo secundário é um acesso ao arcabouço
linguístico acumulado pela humanidade, todas as relações de significação convencionadas
(domínio da ciência, uma empresa coletiva de acúmulo de saber). O modo primário é a
produção de sentido, a criação com a linguagem (domínio da arte, empresa individual de
criação).

PREFÁCIO DE CLAUDE LEFORT

 “A Prosa do Mundo” é um livro póstumo, que está inacabado: era para ter continuidade
num segundo volume que conteria uma teoria da verdade a partir da fenomenologia da
percepção, de um mundo que é indiviso, espontaneamente percebido (se há um “espírito”
percebedor, ele é objetivo) e só depois arbitrariamente codificado intelectualmente. “A
prosa do mundo” é um tratado sobre a natureza da linguagem e literatura. Há indícios que
ele iria aplicar o formato da prosa e da poesia a temas como a literatura, o amor, a religião
e a política.

 Em um livro (não só na poesia, mas na literatura em geral), as palavras não cumprem a


função de resgatar um conhecimento já esclarecido a priori, mas sim de operar a produção
de uma novidade no elemento significante – isto é feito por meio da sistematização de uma
experiência que é intuitiva, “rebelde”, obnubilada, e que vai aos poucos durante a leitura
esclarecendo-se e revelando traços subjetivos do texto: um sotaque, uma intenção crua,
um afeto. Escrever assim é “comunicar no risco”, manter viva a fala falante.

 Os esboços do livro datam de 1951-2. Depois, o trabalho foi interrompido pela metade,
embora ele ainda discutisse o tema da linguagem na universidade. É que ao mesmo tempo
ele passou a estudar Marx, Lênin, Trotsky, Lukács, Weber etc, para publicar em 1955 “as
aventuras da dialética”. Depois, dedica-se ao “Visível e o Invisível”, que seria publicado em
1964. No entanto, neste último livro está presente uma crítica à FDP: as “filosofias da
consciência” levam a um engodo. Ele se volta contra o tema da metafísica e posterga
novamente “a prosa do mundo” em nome de uma abrupta interrogação sobre o ser que
transcende os escritos de 1952.

 Em carta escrita em 1952, Merlôpo afirmava que os dois primeiros livros publicados
(inclusive a FDP) dariam às pesquisas futuras seu itinerário e seu método. Posteriormente,
passou a achar que só valiam pelo confronto com a prática. O leitor de “A Prosa do Mundo”
irá perceber na noção de “linguagem indireta” os rudimentos da “ontologia indireta”
encontrada no “Visível e o Invisível”.

CAPÍTULO 1 – O FANTASMA DE UMA LINGUAGEM PURA

 Os casos puros da expressão, as afirmativas, por exemplo “está chovendo lá fora”,


descrevem o mundo e a natureza de maneira a não deixar nada a desejar. Há, todavia,
uma fala abstrata por sobre o plano do natural, que remete a outras palavras e conceitos,
uma fala “ao quadrado”.

 Mesmo ao descrever objetos ou relações novas, a linguagem faz uso de um conjunto de


signos já estabelecidos: letras, palavras, expressões idiomáticas; estes signos por sua vez
também se articulam em um determinado número de formas estabelecidas que a garantem
coesão (embaralhá-la cria a “fala do mestre Yoda”, cuja função transmissiva é menos
eficaz).

 Há uma veneração por um ideal “fabuloso” de linguagem que, lançando mão destes
recursos de reapropriação de relações sintáticas já definidas, consiga descrever a
totalidade do mundo. Por isso, todos os nossos pensamentos e conceitos são descritos
linguisticamente. A ciência é uma linguagem mais exata, que tem no algoritmo sua
manifestação mais madura, visto que está eximida de toda subjetividade e seus símbolos
dispensam qualquer dubiedade: significam apenas aquilo para o qual foram designados.
Um algoritmo precisa apenas da quantidade exata de signos que permitem a expressão de
toda a mensagem intencionada. Uma fórmula física como “f = m.a” só faz uso dos signos
que representam as três grandezas envolvidas na operação descrita (força, massa e
aceleração gravitacional). O algoritmo é um atentado contra a multiplicidade da linguagem,
e arranca dela sua história.

 A teoria da linguagem ideal a priori que contém em si o germe de toda significação é


descrita por Merlôpo: “é o verbo interior que é juiz desse verbo exterior” (p.21). A
linguagem é o duplo do ser, a única maneira pela qual se pode representa-lo. O falante, no
início do ato de fala, é mudo, e intenciona comunicar algo; as palavras são o meio pelo
qual esta mensagem pode vir à tona e se preservarem como registro. Há uma combinação
de signos específica que pode representar qualquer ideia – ela só precisa ser descoberta.

 No entanto, esta língua ideal pré-histórica não tem mistério. Assim interpretadas, os atos
linguajeiros não transmitem nada além da mensagem que lhes foi condicionada pelo
emissor. Dois sujeitos presos neste paradigma não veriam no outro nada além dos
“problemas que podem resolver (p.24), suas próprias significações, mas não veriam nada
do outro: quando alguém informa “minha mãe morreu”, está falando de uma dor que não é
bem expressa pelas palavras “mãe”, “morte” etc.

 Essa teoria da linguagem, enfim, considera como se não tivesse havido linguagem.

CAPÍTULO 2 – A CIÊNCIA E A EXPERIÊNCIA DA EXPRESSÃO

 A linguagem se faz esquecer; ela torna sua articulação de signos transparente na medida
em que deixa transpor a mensagem indicada. Merlôpo está aqui defendendo uma primazia
funcional da linguagem sobre a estrutura. Gestalticamente, a linguagem expressa
totalidades de sentido do pensamento, e descreve objetos completos; só se pode dar
conta das partes constituintes e mensurar detalhes “com a condição de fechar um olho”
(p.25).

 Há duas linguagens: a linguagem falada, composta de todos os signos compartilháveis e


institucionalizados, já disponíveis aos falantes de uma língua; e a linguagem falante, que
se constrói no momento da expressão. Esta última faz com que a leitura cative, afete,
“pegue como fogo pega” (p.27) e dê conta de expressar ao leitor por significações novas o
pensamento intencionado pelo autor, mas isso só ocorre por efeito de um descentramento
da língua que já existe: a linguagem falante percorre como figura o fundo de sentidos
comuns da linguagem falada.

 Ademais, mesmo esse pensamento é distorcido na relação com o ouvinte pela abertura
oferecida pela linguagem falante, visto que esta é uma confrontação entre “os corpos
gloriosos e impalpáveis de minha palavra e [d]a do autor”.

 A tese central do capítulo parece ser que, dentre as duas, a linguagem falante tem
precedência sobre a falada: as interações linguísticas cotidianas é que dão origem à
posterior sistematização gramatical definidora das relações morfológicas (função que cada
palavra ocupa na articulação frasal), léxicas (arcabouço de vocabulário de uma língua),
sintáticas (construção coesa da frase), semânticas (sentido dos termos) etc. Uma tentativa
de construção de uma gramática absolutamente previsível como a que Husserl intencionou
na proposta da gramática pura, em que “a significação dos sinais que empregamos,
retomada e redefinida, nunca exceda o que nela pusemos e o que sabemos nela
encontrar” (p.31) seria aceder a linguagem à categoria de algoritmo. Todavia, isto impediria
qualquer produção de novidade da linguagem falante que permite a derivação dinâmica da
língua.

 A linguagem não é um impedimento para a consciência; antes, é nos acasos da linguagem


viva que a consciência autônoma habita. Uma noção de “eu” como um lugar em que ação
e reflexão são coincidentes não seria um lugar de fala possível, já que a fala exige
suposições e abertura de sentido. Isto ocorre na literatura e também na comunicação
cotidiana.

 O “eu” não é puro, mas na fala está aberto à relação com o interlocutor; “O eu é dotado de
um corpo” (p.33) – isto será importante futuramente na discussão do corpo vazado,
poroso. Só com a reflexão é que se pode decompor as funções do falante e do ouvinte, e
suas respectivas ações; quando isso ocorre, deixa-se de perceber a pessoa para que se
perceba a palavra. A postura irrefletida da fala falante é generalizante, despersonalizante,
na medida em que faz com que não perceba senão um “outro eu mesmo” (p.34).

 A psicologia foca o aspecto de auto-expressão da linguagem, enquanto a linguística foca o


aspecto de nomeação do visível, imprescindível para a comunicação entre eu e outro.
Paradoxalmente, estas duas ciências da linguagem, a que trata de seu uso vivo e a que
trata de seu uso institucionalizado, nos reconduzem melhor ao sujeito falante.
 O paradoxo aqui consiste no fato de que a linguagem é originalmente feita de diversos
acidentes e acasos, que só posteriormente serão sistematizados, mas que ainda assim –
ou por isso mesmo, precisamente por sua dinâmica estar em função da funcionalidade dos
falantes – nada se produz na linguagem sem que tenha motivo. Deste modo, dentre o
universo possibilístico que a linguagem oferece, ela ainda é capaz de transmitir com
precisão e eficácia a mensagem pretendida por meio de uma articulação de signos
altamente compreensível.

 Se renunciamos ao ideal utópico de uma língua pura e transparente, a condição de


possibilidade desta compreensibilidade precisa ser encontrada na História. Saussure
mostra como se pode prescindir deste ideal sem cair no irracionalismo: não se pode
procurar os deslizamentos semânticos no passado da palavra (etimologia), pois boa parte
dos falantes a ignora; antes, cabe fazê-lo em seu sentido atual e voltado a funções
comunicativas na troca intersubjetiva com outros sujeitos falantes.

 Ao estudo do sentido diacrônico da linguagem – análise de suas transformações ao longo


do tempo – opõe-se o estudo de seu sentido sincrônico – análise de um termo como
produto resultante de deslizamentos dos sentidos convencionados. “Os processos de
experiência codificados em nossa língua seguem as próprias articulações do ser, porque é
através dela que aprendemos a visa-lo” (p.41).

 Na medida em que a (re)estruturação da linguagem obedece aos critérios dinâmicos da


tarefa comunicativa e expressiva, entende-se que suas partes podem metamorfosear-se
em função do sentido geral. Merleau-Ponty localiza a “claridade da linguagem” no tempo
futuro, na mensagem intencionada.

 O sentido, como um universo expressado pela letra, está sempre além desta. Exemplo: a
língua inglesa prescinde do pronome relativo “que” (the man I love = the man that I love,
onde o “that” é opcional), mas isto não torna a ideia expressada menos ou mais complexa
que sua versão em outras línguas. O conjunto de signos é objeto de uma primeira reflexão,
mas em um segundo momento reflete-se sobre o “funcionamento efetivo da palavra”
(p.45). QUESTÃO MINHA: será? Ele não estava até agora defendendo o contrário, a
primazia da apreensão do todo?
 Esta mudança dos termos acontece contingencialmente pelo uso ou falta de uso da
comunidade de falantes; em seguida, a mudança é sistematizada como regra. Merleau-
Ponty dá o exemplo da mudança posicional dos acentos do latim para o francês, como um
processo natural que foi incorporado à gramática francesa. “A língua é toda acaso e toda
razão” (p.49), naturalmente ambígua entre o fortuito e o racional. Por esta razão é que a
gramática é cheia de exceções: ela é o retrato de um processo repleto de acidentes,
acasos. É a pertença de um termo à totalidade do sistema linguístico que proporciona a ele
seu sentido, “não porque tenha sido instituído por Deus ou pela Natureza para designar
uma significação” (p.50).

 Quanto à psicologia e à linguística, não se trata destas ciências negligenciarem o aspecto


histórico da linguagem. Antes, elas revelam o sujeito falante como aquele que visa às
coisas e utiliza a linguagem como via de acesso a elas.

 A descoberta de que a linguagem remete a significações que transcendem aquelas


previstas pelos encadeamentos morfológicos da linguagem falada é o que afasta
irrevogavelmente a linguística do positivismo. Cada classe gramatical só funciona
amparada pelas demais, e não há fronteiras possíveis que sejam definidas previamente ao
uso contextual. No recorte histórico – vir-a-ser – da derivação linguística não se pode fazer
um corte rigoroso.

 A universalidade abstrata da linguagem pura, já tendo sido abandonada, dá lugar à


universalidade concreta da linguagem expressiva de totalidades de sentido. Esta função
primordial da linguagem permite a poliglotia, a adoção de outros sistemas linguísticos
como ferramentas para expressar ideias semelhantes, ou também ideias que são melhor
transmitidas por esta ou aquela língua (pois “saudade” é substantivo em português e verbo
em diversas outras línguas, por exemplo).

 Afirmar que a língua expressa em totalidades não é o mesmo que dizer que ela expressa
tudo. Sempre parcial, a língua jamais é capaz de expressar com transparência o absoluto
de um dado pensamento, “não penetra nunca completamente o silêncio eterno da
subjetividade” (p.57).

 Expressões e palavras remetem a sentidos levemente distintos, com sofisticação em


diferentes graus. As significações que as palavras visam funcionam na composição de
uma dada Gestalt; são “da ordem do percebido, ou do presente, não da ordem da ideia ou
do eterno” (p.55). Em outras palavras: é no presente da percepção que reside o poder da
linguagem – ou ao menos em sua dimensão nominalista e de linguagem falante. Primeiro
vemos a cadeira completa, e assim a denominamos, para só então refletir minuciosamente
sobre os critérios específicos daquele objeto e o quão precisamente atendem aos
necessários para a adequação à categoria “cadeira”.

 Eis, em última análise, a justificação da linguagem é que conquanto transitória, a


comunicação é possível, tanto pelas palavras como pela ausência delas: “pelo menos, eu
disse alguma coisa, e o quase silêncio [...] é ainda alguma coisa que foi expressa” (p.52).
Assim como o exemplo do pintor Matisse, que teve uma sessão de pintura filmada e
reproduzida em câmera lenta, revelando alguns ensaios de pinceladas que precediam o
movimento enfim levado a cabo pelo artista, com a linguagem também ocorre de
possibilidades de articulação serem abandonadas em favor de uma escolha específica.
Matisse, neste exemplo, não dispunha de onisciência e não contemplou a totalidade de
escolhas possíveis; também o falante não domina a ferramenta da linguagem em toda a
extensão de suas possibilidades, mas mesmo no ínterim de sua limitação, faz escolhas
cujo potencial alienado é revelado pelos momentos de silêncio.

CAPÍTULO 3 – A LINGUAGEM INDIRETA

 Este capítulo fala da pintura e da linguagem como duas vias capazes de expressar
abstrações que não estão, necessariamente, correlacionadas aos dados imediatos de
realidade. Como o pintor faz uso das cores e da tela arbitrariamente, “segundo um certo
segredo” (p.61), como um mínimo de matéria necessária para produzir uma novidade que
lhes “descentra” de sua inerência, também o falante ou escritor descentra a inerência da
língua falada: sintaxe, vocabulário etc. e passa, por meio delas, a exprimir um “mundo
imaginário” (p. 62).

 A pintura clássica também esteve submetida à intenção de idealidade – neste caso, o ideal
de servir ao Ser e prestar-lhe homenagem pela expressão de um perfeito/ sagrado em si
(não apenas pelos temas associados à Igreja Católica) que já estivesse pressuposto. As
técnicas utilizadas, como a pintura a óleo por exemplo, objetivavam a representação das
próprias coisas e o próprio homem: a meta da pintura era a obra-prima, que tornaria
obsoletos todos os esforços artísticos anteriores.

 Por sua vez, a intenção de reinventar subjetivamente o autor no observador e produzir


efeitos que são singulares àquela interação, isto é, fazer aparecer na pintura um outro eu
mesmo, é um problema da arte moderna. Na idade clássica a percepção era um aparato
comum e natural aos homens; todos aqueles dotados da visão seriam capazes de
perceber a mesma representação evidenciada pelo quadro. Todavia, a pintura, mesmo à
revelia das intenções dos artistas da época, se fazia expressão criadora tanto quanto
representativa.

 As próprias ferramentas de representação é quem produziam o efeito criador. Merlôpo cita


o exemplo da perspectiva: ela não é uma propriedade inata do mundo natural, mas provém
da cultura e das escolhas humanas. Na percepção irrefletida, a comparação não acontece:
percebemos os objetos com grandezas e pequenezas absolutas. A perspectiva é
resultante de uma escolha do observador que a adota, “renunciando à simultaneidade dos
objetos” (p.66) e evidenciando uma parte como figura destacada do fundo. Ao estabelecer
esta elencagem de profundidade, ela apazigua um conflito entre os objetos componentes
que aquela totalidade assintética (a própria definição de Gestalt) sustentava: a partir de
então os objetos cessam de rivalizar pela prioridade da visão integral do observador e
podem coabitar um mesmo plano, cada objeto ocupando uma dimensão que lhe cabe na
perspectiva.

 É nesse sentido que Merlôpo afirma que a elencagem de figura-e-fundo é tal que “cada
ganho é ao mesmo tempo perda” (p.67). Ele descreve a formação e destruição de
Gestalten, pois a cada vez que alterno minha perspectiva destruo aquela totalidade
perceptiva que outrora apreendi. Este processo de contato é dinâmico, e congelar na
pintura uma única perspectiva é prender a obra ao tempo passado na tentativa de dominá-
lo. Sobretudo, esta perspectiva congelada é, ela mesma, uma criação arbitrária: a de um
mundo visto pelos olhos do adulto seguro; mesmo a representação da infância na pintura
clássica se assemelha à de um adulto meditando, contemplativo.

 O argumento de Merlôpo é que em última instância o único tema da pintura é o próprio


pintor. Os pintores modernos parecem ter aprendido a diferença entre uma obra acabada e
uma obra feita. O processo de elaboração de obra se encerra, a pintura é exposta e
entregue ao público, mas o faz sustentando o inacabado e a abertura para produção de
novos sentidos. Importante distinção: não se trata de um abandono do sentido pela pintura,
mas do “reconhecimento de uma maneira de comunicar que não passa pela evidência
objetiva, de uma significação que não visa o objeto já dado, mas o constitui” (p.69).

 Quando se fala do estilo que um autor imprime em seu quadro, trata-se não de um
acúmulo inventariável de trejeitos que o autor tenha apresentado em produções anteriores,
mas de uma relação original deste sujeito com o mundo. A origem da significação a partir
do mundo não-significante (qualquer que seja ela, não apenas na arte) se dá pela relação
pré-reflexiva com o próprio objeto em circunstâncias determinadas. Só “no ponto de
contato do pintor e do mundo” (p.72), quando os dados do mundo sofrem pelo sujeito uma
certa deformação de figuras e de fundos, uma dimensionalização do mundo, é que o estilo
aparece. Por isso é que a pintura instaura em quem a aprecia uma nova ordem do mundo,
que não necessariamente é a utilitária: uma janela pode ser armação de cachimbo, as
cores dos objetos podem estar invertidas e os objetos se prestam à metaforização.

 A relação que uma pintura pode ter com a verdade não é a da representação fiel do mundo
natural e humano, mas a da sua coerência interna e da presença de um princípio único
(sem modelo exterior) que foi arbitrariamente adotado, trazendo à evidência certos perfis
das coisas – esta é a dimensionalização do mundo, o estabelecimento de figuras e fundos.

 O pintor não é um super-homem com segredos que transcendam sua vida empírica e
confiram a ele capacidade de revelar o que o “homem comum” não conseguiria sozinho:
talvez esta seja a imagem fantasiada por um observador da obra quando pronta. Durante o
processo de criação ele é um “homem ao trabalho” (p.79), sujeito às vicissitudes do
cotidiano e em relação espontânea e aberta com as coisas, continuando-as enquanto as
ultrapassa, interpretando-as enquanto as deforma (p.80). Expor a obra nos museus é
instaurar uma relação de tempo passado: torná-la reverenciável, acedê-la à
sobrehumanidade, reificar estilos e distanciar pintor e observador. Merlôpo defende que,
em vez desta má-consciência, conviria abordar a pintura no tempo presente, como um
convite ao diálogo, à continuidade da abertura para a criação.

 Sobre a fx ato: As mais triviais ações no mundo implicam a abertura para um sem-número
de possibilidades que cotidianamente passam despercebidos, “como o nadador sobrevoa
sem querer todo um universo soterrado (…) ou como Aquiles efetua na simplicidade de um
passo uma soma infinita de espaços e de instantes” (p.89). Não há aqui afetação de um
suposto espírito transcendente do mundo: isto se dá na imanência mesma do gesto e da
percepção, em que “olho onde está o objetivo, sou aspirado por ele, e toda a máquina do
corpo faz o que tem que fazer para que eu chegue a ele” (p.89).

 A relação entre o corpo vidente e o objeto visível é descrita fenomenologicamente por


Merlôpo: a suposição de uma primazia de uma parte ou de outra exigiria que o objeto se
acomodasse por suas próprias propriedades ao meu olhar, ou, ao contrário, que a
percepção elaborasse um complexo cálculo de correções e efeitos de modo a acomodar o
objeto: antes, trata-se de uma correlação noético-noemática, uma sinergia entre ambos.
Ademais, esta sinergia acarreta já em uma expressão primordial, na medida em que a
percepção é já conversão de sinais em signos, inaugura significação e ordem.

 Sobre a questão de pinturas elaboradas em lugares distantes do mundo que se parecem,


Merlôpo dispensa a hipótese de um “Espírito da Pintura” e elege como inquérito mais
relevante “por que culturas tão diferentes se engajam na mesma procura” (p.91), sendo
que os modos de expressão similares tenderão a ser encontrados neste processo de
procura mesmo. A ordem da cultura, ele defende, é a ordem do advento, provém de uma
sintaxe comum de modo que todo gesto é comparável aos outros no fato de que
transcende os sentidos dados e cria novos: “o próprio do corpo humano é não comportar a
natureza” (p.92). O pensamento analítico perde de vista esta semelhança contingencial e
procura uma unidade de espírito ou de ordem lógica. Não há no curso da história uma
outra ordem suprassensível que transcenda ou antecipe os acontecimentos; há, sim, uma
ocupação criativa do mundo a partir de corpos que, embora singulares, desempenhem
funções perceptivas e criativas que lhes são afins.

 Como maneira de expressão deste modo de ser na História, a linguagem é “o que temos
de mais individual, ao mesmo tempo que, dirigindo-se aos outros, ela se faz valer como
universal” (p.96). Entendida como uma reunião de todos os atos humanos – os atos
linguajeiros estão aqui inclusos – no contexto em que foram praticados, a História é o
tribunal em que os homens podem ser juízes de suas ações; ela, sobretudo, impõe sobre
eles o dever de compreender outras situações além das suas próprias.

 Contra o formalismo empobrecido de uma análise que negligencia o poder significante da


forma, Merlôpo afirma que o aspecto mais rico da obra de arte não são as ideias que ela
expressa representativamente, mas as matrizes de ideias que ela oferece – estes é que
oportunizam a posterior produção de novas significações e deslocamentos de sentido.
Para a linguagem, igualmente, esta abertura é imprescindível, pois “o Livro só é escrito em
vários” (p.119). A incompletude de qualquer obra é “o preço que é preciso pagar para ter
uma linguagem conquistadora, que não se limite a enunciar o que já sabíamos, mas nos
introduza a experiências estranhas, a perspectivas que não serão jamais as nossas”
(p.101).

 Mesmo a filosofia e a crítica, que poderiam ser consideradas investimentos de apropriação


do potencial de deformação de significação da linguagem e da arte, também estão abertas.
A produção filosófica é porosa, se alça sobre a transformação do que já foi produzido
anteriormente e será, ela mesma, reapropriada no futuro pela deformação e pela
contestação dos pensadores vindouros que ela antevê e anuncia: “nenhum pensamento se
deixa separar” (p.104). Assim como o pintor que, durante a criação, está constrito a sua
própria imanência laboral, também o pensador ou filósofo só poderá ser pensado em seu
absoluto quando distanciado de sua própria produção, seja pela interrupção momentânea
de seu processo para a reflexão, seja a posteriori, pela interpretação da obra finda.

 O que rompe com a circularidade hermética da preservação de tradições é que a


derivação da cultura – já que não cabe falar em evolução – se dá em devir, num continuum
de significações, por retomadas ora sincrônicas, ora contestatórias. Merlôpo cita o exemplo
da criança que recebe uma educação rígida e, ao crescer, decide por oferecer a seus filhos
uma educação libertária; estes, na vida adulta, optam por retomar uma estratégia de
segurança e limites na criação de seus filhos, e assim por diante. O que ocorre na
passagem de uma geração para outra é o deslocamento para outros eu-mesmos, em que
muitas vezes as conclusões são transmitidas sem o amparo das premissas, não só
possibilitando mas de fato compelindo à reconstrução de sentidos deslocados.

 “Um presente que contivesse realmente o passado em todo o seu sentido de passado e,
em particular, o passado de todos os passados, o mundo em todo o seu sentido de mundo,
seria também um presente sem futuro, já que nisso não haveria mais nenhuma reserva de
ser de onde alguma coisa pudesse lhe vir” (p.119).

 A linguagem é um rico exemplo desta díade preservação-destruição: cada falante não cria
para si uma linguagem inteiramente nova, mas faz uso daquela já compartilhada; todavia,
na medida em que opera deslocamentos de sentido, ele deveras realiza a linguagem, isto
é, põe-na em ato para fins expressivos. Ademais, a criação se sedimenta e se acumula ao
arcabouço maior da linguagem falada: “a obra da linguagem, construída a partir deste bem
comum que é a língua, pretende nela se incorporar” (p.111).

 Neste sentido, linguagem e pintura são opostas: a linguagem exige um certo esforço de
retomada da língua – tanto nos aspectos gramaticais quanto no tangente às ideias – de
uma época, enquanto a comunicação do quadro é instantânea e facilmente acessível pela
percepção imediata, independente do intervalo de tempo entre a elaboração da obra e sua
contemplação. Não obstante, pela maneira como a significação está disposta em cada um
destes meios, a pintura evoca nuances de uma época de forma vaga, ao passo que a
escrita dispõe de um potencial descritivo muito mais consistente em seus enunciados cujos
sinais podem ser ultrapassados na direção do sentido: “a linguagem diz e as vozes da
pintura são as vozes do silêncio” (p.112). Outra distinção relevante consiste na pintura ser
um modo de expressão menos acessível em comparação com a linguagem, com a qual o
homem comum está muito mais confortável quando precisa manifestar-se e lançar-se às
relações cotidianas.

 A pintura e o gesto são as formas mudas da expressão – em oposição à verborragia da


linguagem. Eles produzem no mundo natural imediato uma deformação coerente, em que
as coisas têm seu sentido alterado em função das determinações contextuais, como no
exemplo do chimpanzé que vê um galho de árvore como “bastão possível” caso enxergue
também uma oportunidade de utilizá-lo como tal em seu ambiente imediato. O objeto
(galho) é investido de “um feixe de intenções práticas que o reúnem ao objetivo” (p.114). A
linguagem, ao contrário, oferece significações que estão desprendidas dos objetos e das
circunstâncias; por meio dela, inaugura-se a compreensão e a historicidade do mundo,
pois o deslocamento se dá entre significações equivalentes. Ainda assim, o pensamento
em ato – que faz uso desta linguagem para ser expressado – se dá no ínterim do campo
de presença, na relação com o percebido. As relações semióticas da linguagem não
precisam ser retomadas a cada ato linguístico, mas estes guardam sempre uma relação
funcional com a experiência.

CAPÍTULO 4 – O ALGORITMO E O MISTÉRIO DA LINGUAGEM

 O modo de ser da linguagem é tão abrangente que chega a orientar a elaboração de


nossos próprios pensamentos, de modo que nada consegue ser expresso verbalmente ou
pelo diálogo interno que não seja uma significação de ordem linguajeira. Pode-se dizer que
a palavra não apenas designa pensamentos, mas se transforma neles. Ainda assim, a
relação entre linguagem e significação é convencionada; a “profusão de gestos” (p. 125),
os fonemas, os signos crus são anteriores às palavras. Quando falamos, não nos importa
as palavras, o pacote “de carne e osso” ou de sinais linguísticos, mas a presença de
outrem que pelas palavras se manifesta.

 Ela sempre nos escapa em sua totalidade – há sempre algo de linguagem viva que resta
inapreensível, “sempre lá quando nos pomos a evoca-la, mas sempre um pouco mais
longe que o ponto onde acreditamos atingi-la” (p.126). Esse traço de forma alguma impede
a compreensão, mas obriga o falante – e o filósofo, aquele que se presta a construir uma
segunda linguagem, um discurso sobre o próprio ato de expressão de pensamento pela
fala – a pensar a linguagem de forma enviesada para permitir que ela preserve seu
mistério.

 “Quando tenho o sentimento de só ter a ver com palavras é que a expressão falhou, e, ao
contrário, se é bem sucedida, parece-me que penso lá, em voz alta, nestas palavras que
eu não disse” (p. 127). Esta é uma crítica que Merlôpo faz à filosofia extrativista, que
intenciona obter da linguagem seus sentidos possíveis e explica-la estruturalmente,
demovendo dela a potência dúbia que a mantém viva e intrinsecamente misteriosa.
Essencialmente, na linguagem, a manifestação de outrem garante que nas palavras do
outro eu encontre algo de mim, e vice-versa.

 Merlôpo então introduz a demonstração que apresentará neste capítulo, de como a


potência falante se faz presente mesmo nas ocasiões em que a linguagem é
deliberadamente reduzida ao status de construto imutável de relações entre
representações, no caso dos algoritmos. Ao fazê-lo, ele retorna ao argumento do primeiro
capítulo, a denúncia da ilusão de uma língua pura cuja transparência absoluta cubra a
totalidade dos sentidos nela articulados sem espaço algum para a criação da linguagem
falante.

 A série matemática dos números inteiros apresenta certas propriedades que parecem
preceder quaisquer análises humanas. Somos levados a crer que, mesmo antes do
desenvolvimento do pensamento matemático, a sequência {1, 2, 3, ... n} já era dado em

uma reserva de verdade da natureza, bem como a relação Sn= ( n2 ) .(n+1), onde Sn
representa a soma dos “n” primeiros números inteiros. Assim sendo, quando demonstro
esta relação, nada faço além de evidenciar um aspecto que antes estava despercebido.

 O chimpanzé que apanha um galho para utilizá-lo como bastão para alcançar uma fruta de
uma árvore próxima que esteja em seu campo de visão e, com isso, transforma o sentido
daquele objeto de modo que ele deixa de ser um galho para tornar-se bastão, ilustra o
caso da inteligência prática e das estruturações perceptivas que ela engendra, criando
soluções temporárias, contingentes, que se prestam a um uso pragmático e eventualmente
são desfeitas.

 Em oposição a ela, as relações para com a verdade são autocoincidentes, de si para si,
resistem através do tempo e precisam ser garantidas “pela imanência do novo no antigo”
(p. 130). Ademais, as fórmulas que as expressam são incumbidas de demonstrar a
totalidade da relação e todos os seus componentes, num esgotamento de sentido em que
o desejo não encontra passagem.
 O caráter de verdade dos postulados das ciências exatas não é questionado por Merlôpo,
particularmente no tangente à uma descrição precisa do mundo que extrapola os limites da
percepção individual. O fato de que 1 + 4 = 5, por exemplo, é verificável por qualquer
indivíduo com suas faculdades cognitivas em bom funcionamento. O que se contesta aqui
é à pré-existência das relações matemáticas à elaboração dos enunciados que as
expressam: há de se considerar a hipótese do próprio Merlôpo da própria palavra ser
fundante destas relações, isto é, delas serem fruto de escolhas humanas.

 Estas escolhas são pontuais: a humanidade tem a liberdade de determinar quaisquer


objetos para estabelecer o foco de sua análise. Uma vez determinados como ponto de
partida, entretanto, estes objetos não se prestam a uma descrição livre, mas demandam
um escrutínio rigoroso na expressão de suas características e das outras relações
derivadas que deles se desdobram como consequências, embora não pré-existissem à
tematização.

 O conhecimento é deste modo estabelecido por Merlôpo como um vir-a-ser, acontecimento


de saber – e não desvelo de verdades transcendentes – engendrado por sujeitos que são
engajados em campos perceptivos a partir dos quais a oportunidade para conhecer é
aberta. A intuição das formas geométricas, por exemplo, é fundada pela percepção destas
formas como perfis dos objetos do mundo. No momento seguinte, a percepção é
apropriada pela linguagem, abstraída e tornada discurso inteligível – e este construto
cultural não tem a mesma “solidez das coisas naturais” (p.133).

 O conhecimento está entranhado na percepção e, no mesmo momento em que a


atravessa, distingue-se dela, de modo que nos conscientizamos que a coisa percebida já
estava em funcionamento no mundo antes de nossa apreensão sensível. A atribuição de
sentido aos objetos dados é simultânea à evasiva de parte deste sentido, e esta é a
relação possível que o humano tem com a verdade evidente; o que este movimento duplo
ocasiona é uma reestruturação do mundo sensível para o organismo que o percebe
segundo um estilo (como visto no capítulo anterior).

 O conjunto dos números inteiros dispõe de propriedades que lhe foram atribuídas no
momento em que as percebeu, e não antes; todas estas propriedades, e também o
horizonte possibilístico que se mantém aberto para o estabelecimento de novas relações,
formam conjuntamente a série matemática em questão: “é preciso que eu note que o
progresso de 1 a 5 é exatamente simétrico da regressão de 10 a 5” (p. 135), e perceber
esta propriedade a partir de uma interrogação dirigida à série Sn implica um acréscimo que
tem na própria estrutura desta série específica as condições de sua possibilidade, uma
novidade ao conhecimento já estabelecido, que compele o conhecedor a reestruturar toda
a série de modo a contemplar esta relação que foi recém-inaugurada, mas que já estava
estruturalmente antevista.

 A linguagem matemática, portanto, não se insere na ordem do sensível, mas nem por isso
é menos criadora. É ilusão retrospectiva, segundo Merlôpo, afirmar que a fórmula derivada
que se obteve é condição para a fórmula original da qual esta mais recente derivou, e que
a fórmula original não estaria completa ou sustentável sem a derivada. “É assim que meu
conhecimento presente vê meu próprio passado, não é assim que ele foi, mesmo no
inverso das coisas” (p.136). O vir-a-ser do sentido é tomado no sentido mais direto do
termo, o de um ser que fora tornado possível pela estruturação da relação previamente
descrita, mas que é trazido à existência a partir de um ato de consciência.

 A noção de verdade que é corroborada por este ato não é aquela da absoluta consonância
entre a hipótese e a conclusão, mas o da fidelidade da fórmula derivada aos postulados da
fórmula original, a despeito de suas eventuais incompletudes e parcialidades. “O lugar
próprio da verdade é, então, esta retomada do objeto de pensamento em sua significação
nova” (p.137). Como nos demais casos da linguagem, o algoritmo é mutável e seus
sentidos podem – e precisam – ser deslizados, reapropriados, para que a verdade se
mostre.

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