Você está na página 1de 4

A casa-grande

Eles se autoproclamam
não racistas e acusam
os negros desse crime.
Escondidos atrás da
cortina da “democracia
racial” brasileira e
apavorados com a
legalização de políticas
compensatórias
reivindicadas pelos
movimentos sociais,
representantes
do pensamento
conversador do país
usam todos os sofismas
possíveis nos meios de
comunicação para, a
pretexto de defender
direitos para todos,
manter a população
negra no degrau
debaixo. Se possível,
ainda na senzala...
Lincoln Secco e
Marcos Cordeiro Pires
Joaquim Duarte

Teoria e Debate 85 H novembro/dezembro 2009 42


opinião

nao descansa
D
uas frentes de luta contra a achará estranho ver num mesmo rol distorcer a realidade com o objetivo de
adoção de cotas pelo Esta- o Mein Kampf de Hitler, o “racialis- frear a ascensão social e o consequente
do brasileiro têm chamado mo” de Evo Morales, a “mitificação” aumento da concorrência em setores
a atenção1. No Parlamento de Palmares, a “depreciação” da Abo- em que a elite branca local sempre teve
e na Justiça, o DEM (Par- lição por parte de uma “elite negra”, 100% das cotas. Vejamos a seguir.
tido dos Democratas), fiel intérprete a “ocultação” de que a escravidão na
do pensamento conservador, lidera África já existia antes do tráfico inter- O Haiti é aqui
os questionamentos à transformação nacional introduzido por europeus e Já no século 19 o ensaísta Silvio Ro-
em lei de demandas do movimento o “fato” de que a escravidão mercantil mero dizia que “o negro é um ponto de
negro. A segunda frente é a mídia. Não só perdurou com o apoio de elites e vista vencido na escala etnográfica, e o
por acaso, recentemente dois livros Estados africanos que apresavam ou- Brasil não é, não deve ser, o Haiti”. De
foram lançados para combater o que tros negros e os vendiam aos brancos. certa forma, a imagem haitiana contida
eles chamam de “políticas racialistas” Cada um desses argumentos é uma na afirmação de Romero evoca duas
do Estado. meia-verdade e, por isso mesmo, uma categorias de problemas que permeiam
Em 2006, Ali Kamel, diretor da meia-mentira. Cada um deles é sofisti- a vida social brasileira: a arrogância de
Central Globo de Jornalismo, fez pu- cado o suficiente para isentar o autor uma elite que tem seu poderio político
blicar um livro com o título autodefen- da manifestação de um sentimento e econômico baseado na escravidão e
sivo Não Somos Racistas. Agradecendo racista. Quando o livro se volta para o um medo incontido de uma revolta das
à família Marinho pela “pluralidade genocídio de Ruanda, ele diz que em classes populares contra os próprios
de ideias” que a Rede Globo garante, 1973 uma lei limitou a “9% as vagas privilégios. Por conta disso, qualquer
o autor escreveu um libelo contra o que poderiam ser preenchidas por contestação das classes subalternas
que chama de “nação bicolor”, a qual candidatos tútsis” ao funcionalismo. foi combatida com a maior ferocidade
apagaria a mestiçagem brasileira. Bem, como decênios depois houve um pelas forças militares da ordem, como
Menos original, o jornalista e soció- massacre de tútsis, podemos imaginar expressão desse medo incontido de um
logo, doutor em Geografia pela USP, que as cotas e a “recriação” da História levante da maioria massacrada.
Demétrio Magnoli lançou com grande por ideólogos e historiadores hútus fo- Para amenizar esse receio, já sob
apoio da imprensa escrita e falada, em ram os responsáveis2. O autor quer nos a lógica de uma ordem capitalista em
2009, a obra Uma Gota de Sangue: His- induzir a acreditar, maliciosamente, que formalmente as pessoas deveriam
tória do Pensamento Racial. Se por um que quaisquer cotas raciais levam a ser iguais, são entronadas as ideias de
lado repete algumas ideias de Kamel, genocídios. Além disso, o que ele não
por outro adensa muitas análises e faz quer perceber é que lá as cotas limi-
1 Retiramos o título de um discurso do depu-
retrospectivas sutis para reforçar a tavam o acesso de um grupo étnico, tado Emiliano José – PT-BA (Câmara dos
tese central daquele: somos um povo já no Brasil, ao contrário, incentivam Deputados, 11/8/2009).
único, mestiço, e a promoção de cotas a integração dos negros e pobres em 2 Ignora o geógrafo que a delimitação das
institui o ódio racial entre nós. universidades. Ainda assim, o autor fronteiras que colocaram tútsis e hútus em
diferentes Estados nacionais (Ruanda, Con-
Magnoli faz incursões cirúrgicas e poderá sempre afirmar que não fez tal go, Burundi, Tanzânia e Uganda) decorreu
seletivas em várias regiões e épocas da ilação. Afinal, ele não é racista. do imperialismo europeu que, em 1885, reta-
História para repor aquela tese central. Assim como Magnoli, outros auto- lhou o continente africano na Conferência de
Berlim e que os processos de independência
Todavia, suas derrapagens são sempre res, de ontem e de hoje, buscam se es- não conseguiram superar esse pecado ori-
sutis. Um leitor desavisado sempre corar numa cientificidade acadêmica e ginal de cada novo Estado nacional?

43 Teoria e Debate 85 H novembro/dezembro 2009


Gilberto Freyre acerca da brandura do tualidade, fortemente enraizada na tituição, contribuindo na redução das
escravismo brasileiro e de seu grande Universidade e na imprensa, busca desigualdades sociais, mas a manipu-
legado, que foi a “tolerância” criada desacreditar os movimentos sociais. lação dessa doutrina com o propósito
por nossa mestiçagem. Em contrapo- Isso vale tanto para o movimento ne- de racializar a vida social no país3.
sição, tem-se a violenta experiência gro organizado como para as lutas dos A esses argumentos poderíamos
norte-americana que situou o debate trabalhadores rurais sem terra, que se acrescentar outros, pinçados aqui e ali
no “branco e preto”, sem concessões irmanam com os negros como alvos em debates em comissões parlamenta-
para qualquer dégradé. O ideário preferenciais das elites. res, programas de entrevistas, fóruns
freyriano cria a ideologia oficial bra- Especificamente quanto ao primei- de alguns partidos ditos “de esquer-
sileira sobre o debate racial no Brasil, ro caso, os detratores de qualquer ini- da” ou outras fontes impressas. Por
valorizando o mestiço e a democracia ciativa política que signifique melhorias exemplo: o Brasil é uma “democracia
racial e fazendo vistas grossas a todo para a população negra no Brasil usam racial e a exclusão decorre menos da
tipo de sordidez a que é submetida dia- argumentos sutis para se contrapor às cor da pele do que da condição social”;
riamente a população negra brasileira. ações afirmativas. Kamel e Magnoli são o país não precisa importar “modelos

Como pode um intelectual dizer que políticas compensatórias racializariam

O receio do imaginário haitiano meros musicistas numa orquestra bem norte-americanos que não se aplicam
ou qualquer outro que possa inspirar articulada. Tomemos outro exemplo ao Brasil”; “a contradição fundamental
as camadas populares a questionar a característico: o Manifesto contra as da sociedade brasileira é a luta entre
ordem vigente traz consigo a face me- Cotas Raciais, assinado por parcela da exploradores e explorados e soluções
nos cordata da elite brasileira e de seus intelectualidade dita “progressista”. parciais visam arrefecer o fervor re-
aparelhos no Estado, não só o apara- Queremos um Brasil onde seus ci- volucionário das massas”; “políticas
to repressivo, mas a pena e a boca de dadãos possam celebrar suas múltiplas universalistas são a melhor solução
certa fração da intelectualidade, que origens, que se plasmam na criação para as desigualdades sociais no Bra-
busca justificar a realidade social do de uma cultura nacional aberta e to- sil”; e “a introdução de mecanismos
país como “o melhor dos mundos lerante, no lugar de sermos obrigados de promoção social baseados na raça
possíveis, em constante progresso a escolher e valorizar uma única an- tende a criar conflitos raciais até então
civilizatório”. Em verdade, depara- cestralidade em detrimento das outras. inexistentes no Brasil”.
mos com uma situação de completa O que nos mobiliza não é o combate à Mais uma vez, meias-verdades e
marginalização a que estão sujeitas doutrina de ações afirmativas, quando meias-mentiras. Em abstrato, todas
parcelas significativas da população entendidas como esforço para cumprir são verdadeiras. Na vida concreta tor-
brasileira, marginalização essa que, as declarações preambulares da Cons- nam-se o seu contrário, ou seja: frases
em última instância, é atestada pelas
Jesus Carlos

disparidades de renda que separam


negros e não negros.
Por outro lado, quando se procura
encontrar mecanismos para mino-
rar essa situação angustiante, como
políticas de reforma agrária ou ações
afirmativas, parcela dessa intelec-

3 Cidadãos Antirracistas contra as Leis Raciais.


Disponível em: http://www1.folha.uol.com.
br/folha/educacao/ult305u401519.shtm

Teoria e Debate 85 H novembro/dezembro 2009 44


ocas que visam impedir a igualdade atentar contra os princípios da Cons- bem informado sabe que eles nunca
racial. Não é difícil entender que pelo tituição ao manipular os preceitos de ligaram para trabalhadores e nunca
próprio movimento de suas antino- redução das desigualdades sociais, gostaram do PT, radical ou não.
mias internas os belos princípios do “com o propósito de racializar a vida O jornalista Magnoli segue pela
Iluminismo se inverteram e serviram social no país”. Isto é uma impostura: mesma via. No capítulo de seu livro
por muito tempo para impedir as mu- criminalizar a vítima e vitimizar o cri- intitulado “A cor da pobreza”, mostra
lheres, por exemplo, de exercitar sua minoso! Ora, a vida social do país já é como a desigualdade não se dá pela
diferença e, assim, obter direitos iguais. racializada, o que cabe agora é lutar raça, e sim pela renda. Decerto saudo-
O manifesto contra as cotas se para que ninguém crie obstáculos a so de seus tempos engajados à esquer-
previne contra isto: “As leis que ofe- outras pessoas por conta de sua cor da, o professor apoia o “Movimento
recem oportunidades de emprego a de pele, o que implica adotar políticas Negro Socialista”, que seria estimu-
deficientes físicos e que concedem co- que reparem o massacre a que foi sub- lado por uma tendência de natureza
tas a mulheres nos partidos políticos metida a população negra no Brasil. trotskista e reafirma o critério “de clas-
são invocadas como precedentes para Diante dessas questões, como pode se”. Se não conhecêssemos suas outras

o país e criariam um perigoso potencial de conflitos para o futuro?

sustentar a admissibilidade jurídica um intelectual dizer que políticas opiniões, é do que se trata, poderia
de leis raciais. Esse segundo sofisma compensatórias seriam um grave aten- até ser confundido com um marxista
é ainda mais grave, pois conduz à na- tado ao Estado democrático porque ortodoxo. Para difundir a ideia de que
turalização das raças. Afinal, todos racializariam a política e criariam um as cotas só servem a uma “burguesia
sabemos quem são as mulheres e os perigoso potencial de conflitos para negra”, distorce a estatística e se vale
deficientes físicos...” o futuro? De onde viria esse “perigo da exceção da UnB para negligenciar
E isso é bem verdadeiro. Como haitiano”? Das populações negras o fato de que as universidades brasi-
dizia o velho Marx, “um negro é um que seriam beneficiadas por ações leiras, em geral, usam o critério étnico
negro, só em certas condições ele se que minorassem seu calvário ou de combinado com o econômico. A cota
torna um escravo”. Nunca foi difícil ressentimentos de parcela racista da não é só racial, é também para alunos
reconhecer um escravo. Assim como população branca que viu sua cota de (quase) brancos de escola pública.
hoje, à polícia, aos porteiros de prédio privilégio mitigar de 100% para 80%? Se a igualdade vigorasse e estivés-
e aos professores universitários não semos todos numa sociedade socialis-
tem sido difícil reconhecer os negros Em defesa de quem? ta, cotas talvez fossem desnecessárias.
(em sua maioria pobres ou com essa Sofisma, todos sabem, é uma ma- Até lá (ou talvez antes) elas precisarão
marca em sua pele e em seu corpo). É neira de induzir ao erro por meio de ser usadas. De certa maneira, os crí-
certo que os signatários do manifes- argumentos aparentemente lógicos, ticos têm uma razão. Elas não foram
to, mesmo sendo intelectuais, nunca como vimos. Um bom sofista pode até pensadas para ajudar os negros a se
foram gentilmente abordados à porta mesmo fazer uma inesperada defesa conscientizarem. Sua consciência é
de um centro cultural ou de uma me- da classe trabalhadora e de tradicio- forjada por eles próprios em sua vida
gastore com a frase: “Pois não?” E nin- nais bandeiras da esquerda. O jorna- social. Elas servirão para educar as eli-
guém lhes deu, num estacionamento, lista Ali Kamel, por exemplo, criticava tes brancas, pois agora terão de olhar
a chave para manobrar o carro. o Bolsa Família por supostamente não os ex-escravos na mesma mesa, na
Um sofisma interessante é men- atender aos mais pobres. Outros insis- mesma sala, na mesma escola. ✪
cionado pelo discurso antipolíticas tem em lembrar o quanto o “PT radi-
Lincoln Secco é professor de História
compensatórias, quando afirma in- cal” dos anos 80 era bom para o país. Contemporânea na USP
diretamente que os racistas são os ne- Agora, o partido teria abandonado o Marcos Cordeiro Pires é professor de
gros e, mais ainda, quando os acusa de socialismo... É evidente que o leitor Economia na Unesp – Marília (SP)

45 Teoria e Debate 85 H novembro/dezembro 2009

Você também pode gostar