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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Dissertação de Mestrado
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Aprovado por:
João Gabriel Lima Cruz Teixeira, Doutor, UNB - Sociologia (Examinador Externo)
O Choro dos Chorões de Brasília, 208 p., (Departamento de Música-UnB, Mestre, Música e Contexto,
2009).
1. Choro 2. Brasília
3. Performance 4. Contexto
________________________
Agradecimentos
À Gabi, minha esposa, pelo seu amor e amparo, pela sua generosidade e extraordinária
capacidade de reflexão. Sem a sua presença na minha vida eu não conseguiria realizar
este trabalho.
À minha querida mãe Violeta e meus irmãos Tê, Nen, Flávia e Paulo, pelo amor e
lealdade.
Ao Bob, meu sogro, pela humildade e leveza com que trata a vida.
Aos entrevistados: Augustão, Marcelo, Dudu Maia, Dudu 7 Cordas, Leo Benon, Paulão,
Gordinho, Fabinho, Tonho, Henriquinho, Rafa, Frango, Lalá, César e Reco, meus
amigos das Rodas e da vida, pela boa vontade e por compartilhar os conhecimentos e
os ensinamentos que são a essência desse trabalho.
Aos chorões que não pude entrevistar, por simples falta de tempo, pelas amizades, pelo
acolhimento.
Resumo
Abstract
Choro is a Brazilian music instrumental genre, wich was born in Rio de Janeiro
at the second half of the nineteenth century. This work will discuss the Choro
performance and Choro musicians who live in Brasilia and their vision about their art
form. The research was based on interviews with musicians about their musical
knowledge and their perception about their musical practices. There were also a critical
observation of the fields where the Choro is played in Brasília, formal presentations that
occur mainly at the Clube do Choro and a more informal setting of “Roda de Choro” at
Tartaruga Lanches. The etnografic work took special attention at the modes of learning
by the musicians, the musical and social contexts, the relationship between tradition and
innovation. The musicians’ discourse showed that there is a deep knowledge about
happen musically and socially in the Choro field in Brasília, which is transmitted
basically by oral tradition, and shared by the ones who choosed to belong to the Choro
genre.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 1
METODOLOGIA .................................................................................................................................. 4
Este trabalho trata do gênero musical Choro e tem como objeto principal de
pesquisa a comunidade dos chorões de Brasília. Considerando que essa comunidade é
formada por pessoas conscientes do que fazem, e cujo conhecimento deve ser
valorizado pois, de algum modo, reflete as décadas de tradição que nos antecederam.
Optou-se por realizar um levantamento acerca dos elementos essenciais para o Choro a
partir do discurso dos próprios chorões de Brasília. Em outras palavras, busco, nas
páginas que seguem, descrever e analisar como os chorões entendem a música que
fazem, quais elementos valorizam, como a produzem, como interpretam, como
aprendem,etc.
1
elementos musicais característicos do gênero. Desse modo, pretende-se contribuir para
ampliação do conhecimento acerca dessa manifestação musical brasileira.
Um sistema musical pode não se basear em uma teoria musical, mas, de acordo com
John Blacking (1973), ele se apóia em uma ordem sonora, em uma organização que
orienta o som. Supomos que é possível identificar uma ordem sonora subjacente ao
Choro; supomos, ainda, que os chorões têm consciência dessa ordem.Desse modo, se a
pesquisa investigar a percepção da ordem musical dos músicos que fazem parte do
universo do Choro, poderá identificar elementos dessa ordem. Uma forma de ter acesso
a esses conhecimentos é permitindo que os próprios músicos verbalizem seus conceitos
e suas percepções. Tais conceitos podem, então, ser organizados de acordo com temas,
que refletem justamente a ordem sonora do sistema musical a que dizem respeito. Foi
seguindo essa lógica que a estrutura desse trabalho foi elaborada.
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comportamento dos músicos em cada um dos contextos analisados. Mostramos que a
vitalidade do Choro depende da existência das Rodas, pois nela ele foi criado e é
continuamente recriado. Mas os palcos do Choro são essenciais para sua sobrevivência,
na medida em que funcionam como vitrines para a sociedade e para o Estado, de cujo
apoio e valorização o Choro não pode prescindir.
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METODOLOGIA
4
falas do sujeito, atribuindo-lhes significado, de modo a estabelecer condições para a
emergência de novos relatos. Desse modo, as entrevistas semi-estruturadas abrem
espaço para o aparecimento de elementos não previstos pelo pesquisador, enfatizando e
fortalecendo, portanto, a voz dos entrevistados.
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sociais em que o Choro aconteceu. Em segundo lugar, foram analisadas publicações
sobre o samba e outros gêneros da música brasileira, que, por comparação, podem servir
como modelo analítico para o estudo do Choro. Tais trabalhos também contribuem para
análise dos contextos sociais em que o Choro se inseriu, porque Choro e samba, ao
longo da história, estão musical e geograficamente próximos. É comum, também, a
presença de intérpretes e compositores que transitam entre os dois gêneros. Por último,
algumas teses, dissertações e artigos recentes trazem contribuições importantes para a
bibliografia do Choro. Esses trabalhos possuem análises mais detalhadas e
especializadas sobre aspectos musicais do gênero.
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PARTE A – HISTÓRIAS
1
Encontra-se, no Anexo III, pequeno texto explicativo dos conhecimentos básicos sobre o Choro, que
deverá ser consultado pelo leitor que não tem familiaridade com o gênero.
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Segundo seus autores, no final do século XIX, no Rio de Janeiro, a modinha e o
lundú representavam apenas uma parcela da diversidade de músicas que se expandiam
no contexto urbano carioca. Nele surgiam também os chamados ternos, nome usado
para definir os primeiros grupos instrumentais nos quais o Choro se desenvolveu. Um
dos ternos mais importantes desse período é o de Joaquim Antonio Callado, chamado
“Choro Carioca”. No âmbito desse pequeno grupo instrumental, alguns elementos do
estilo foram sendo definidos e algumas músicas começaram a ser conhecidas como
parte do “Choro”. Após Callado, três instrumentistas foram de crucial importância para
o surgimento do Choro. Livingston e Garcia (2005) afirmam que os quatro pilares da
tradição são os compositores Joaquim Antonio Callado (1848-1880), Anacleto de
Medeiros (1866-1907), Chiquinha Gonzaga (1847-1935) e Ernesto Nazareth (1863-
1934).
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em cortiços no centro da cidade onde mantinham e misturavam suas práticas culturais.
Nesse período, o Rio de Janeiro passa por profundas transformações urbanas: os
cortiços são destruídos e surgem as favelas. Surgem, então, novas oportunidades de
trabalho no setor industrial e no funcionalismo público, e a classe média se fortalece.
Livingston e Garcia (2005) afirmam que o Choro foi a primeira expressão musical da
classe média carioca. O ambiente da classe média acolhia a musica da elite, dos
imigrantes e dos negros. Personagens importantes desse período foram as figuras das
Tias (senhoras negras com certa ascensão social), que promoviam em suas casas
verdadeiras festas, onde se reuniam políticos, músicos, malandros, negros, nordestinos,
imigrantes, enfim toda sorte de gente.
Importante contribuição para o estudo da história do Choro foi dado por José
Ramos Tinhorão (1999), na obra História Social da Música Brasileira. O autor, assim
como Livingston e Garcia (2005), aponta a importância da música dos barbeiros para o
desenvolvimento do Choro. Afirma ele que, naquele período, era comum a existência de
negros livres nas camadas de baixa renda da população, que se ocupavam das mais
diversas atividades, dentre as quais, a de barbeiro. Nos momentos de ócio, que eram
freqüentes neste oficio, se dedicavam também a outras atividades que exigiam
habilidades manuais, entre elas, a prática musical. Os barbeiros animavam festas
populares e religiosas, e como eram muito solicitados começaram a montar seus
próprios ternos (pequenos grupos instrumentais). Com a possibilidade de ganharem
algum dinheiro com a nova atividade, aqueles grupos de instrumentistas negros eram
praticamente os únicos fornecedores de música de entretenimento para a população dos
centros urbanos do Rio de Janeiro e de Salvador. Nos registros estudados por Tinhorão
(1999) não faltam alusões ao caráter alegre da música produzida pelos barbeiros. As
festas religiosas eram palco por excelência desses músicos citadinos. Segundo esse
autor, a segunda metade do século XIX assistiu ao virtual desaparecimento da música de
barbeiros, eminentemente negra, concomitantemente ao surgimento de uma classe
média baixa, mestiça, operária e assalariada. A herança da música instrumental negra
dos barbeiros foi passada para essa nova classe urbana que surgia no Rio de Janeiro pré-
industrial. De posse dessa tradição, os novos instrumentistas iriam, a partir dela e com
outras influências, criar o Choro (Tinhorão, 1999).
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Livingston e Garcia (2005) afirmam que os principais gêneros precursores do
Choro foram a modinha e o lundu. O termo modinha é o diminutivo de moda, termo
português que significa melodia. As modas eram populares em Portugal, e, trazidas ao
Brasil, faziam sucesso entre as camadas mais baixas da população. Eram parte do
repertório popular, tocadas e cantadas à luz da lua em serenatas nas pequenas vilas do
interior, ou nos bairros suburbanos das cidades maiores. A instrumentação da modinha
influenciou os conjuntos de Choro que posteriormente surgiram, pois eram comuns os
ternos formados por flauta, violão e cavaquinho. O lundu surgiu no início do século
XVIII a partir da tradição musical dos escravos bantos. Foi o primeiro gênero brasileiro
que combinou ritmos africanos com harmonia, melodia e instrumentação européias.
Tanto a modinha quanto o lundu se apresentavam em duas formas: uma popular e
informal, freqüente nas classes baixas, e outra, mais formal e com melodias mais
elaboradas, apresentadas nos salões das classes mais altas. O lundu era um gênero vocal,
mas Livingston e Garcia (2005) apontam para uma forma instrumental do lundu, em
que uma flauta ou clarineta eram responsáveis por tocar a melodia, acompanhados pela
viola (espécie de violão de cinco cordas) ou pelo violão de seis cordas. O lundu
instrumental, de acordo com esses autores, foi o precursor do maxixe e do Choro.
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designação de tango ou tango brasileiro. Na década de 1930, o maxixe foi perdendo
popularidade para o novo ritmo local – o samba – e para gêneros importados, como o
foxtrot. Apesar disso, o maxixe permaneceu no repertório do Choro, estando presente
em composições contemporâneas.
Foi também a década de 1870 que José Ramos Tinhorão (1999) aponta como a
do surgimento do Choro. Ele toma por base o primeiro registro escrito sobre o Choro
(Choro: Reminiscências dos Chorões), datado de 1936, e escrito por Alexandre
Gonçalves Pinto, este registro foi reeditado pela FUNARTE em 1978. Alexandre Pinto
era funcionário dos correios, violonista e freqüentador das Rodas de Choro na virada do
século XIX para o XX. Seu relato traz biografias dos músicos mais destacados do início
do século XX, e descrições do ambiente dos chorões. A leitura do livro nos permite
perceber que seu autor não era escritor, tampouco tinha grandes conhecimentos
musicais, pois o texto apresenta erros de grafia e gramática, e não traz análises
aprofundadas sobre o Choro naquele período. Todavia, seu valor reside em registrar,
pela primeira vez, nomes e características de instrumentistas que, não fosse esse
esforço, estariam para sempre esquecidos.
Cazes (2005) também faz referência à década de 1870 como sendo o período em
que a nomenclatura “chorinho” começou a ser utilizada para designar o Choro. Mas ele
afirma que, se for para determinar uma data para o surgimento do Choro, seria 1845,
quando pela primeira vez a polca foi dançada no Brasil. Livingston e Garcia (2005)
referem-se ao período de 1870 a 1920 como o de intensa mudança no Rio de Janeiro,
que passou de vila provinciana a cidade industrializada. Como conseqüência da
industrialização, surgiu uma classe média urbana, formada por profissionais liberais e
pequenos funcionários da indústria que não se identificavam nem com a elite, muito rica
e poderosa, nem com os descendentes diretos dos escravos, extremamente pobres e
carentes. O Choro era a expressão musical dessa nova classe média. Livingston e Garcia
(2005) afirmam que são muitos os aspectos do Choro que o caracterizam como
manifestação de classe média: primeiramente, é preciso uma renda razoável para
obtenção dos instrumentos típicos do gênero (flauta, cavaquinho e violão); em segundo
lugar, os locais onde o Choro acontecia – quintais e casas – eram moradias de classe
média, diferentes dos cortiços e das “favelas” onde viviam as classes mais baixas.
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Observamos que, pela falta de registros precisos, não se pode identificar com
exatidão o momento do surgimento do Choro. Porém, principalmente pela contribuição
de Alexandre Gonçalves Pinto, podemos afirmar que a segunda metade do século XIX
foi de fundamental importância. Também outros indícios históricos, conforme já
explicitado, apontam esse período como o de consolidação do Choro como gênero
musical.
A partir do final do século XIX e início do século XX, grandes nomes do Choro
começaram a ter maior projeção. Eram compositores e músicos virtuoses. Em geral, a
história do Choro se conta a partir das proezas musicais desses notáveis chorões. Por
isso, um grande número de biografias de chorões estão disponíveis. A partir das
histórias pessoais dos chorões, é possível se conhecer a história e o desenvolvimento do
gênero. A seguir, são citadas algumas dessas biografias.
Considerado o pai dos chorões, Joaquim Callado viveu entre 1848 e 1880. Em
sua biografia, André Diniz (2002), narra a trajetória do flautista de fundamental
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importância para a história do Choro, por ter criado, em 1875, o primeiro conjunto de
Choro que se tem registro, formado por flauta, cavaquinho e violão.
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prestasse atenção, parava de tocar. Em 1902, no mesmo ano em que foi feito o primeiro
registro fonográfico no País, teve sua composição “Está Chumbado” gravada pela
Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, sob regência de Anacleto de
Medeiros. Anos mais tarde ganharia fama ao piano da sala de espera do cinema Odeon
— para o qual rendeu uma homenagem no tango que leva o nome da sala. Por toda a
vida renegou o maxixe, dizendo que era “ritmo menor”, embora sua música contivesse
muitos elementos desse ritmo. Em fevereiro de 1934, Ernesto Nazareth saiu escondido
da colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro. Estava internado para tratar-se de um
distúrbio nervoso causado pela sífilis. Foi encontrado três dias depois, morto, na
Cachoeira dos Ciganos, localizada em uma floresta próxima. Os jornais da época,
romanticamente, noticiaram que estava sentado com os braços estendidos, como se
tocasse piano.
Interessante obra sobre Ernesto Nazareth, publicada também em 1963, por Jaime
C. Diniz (1963), cujo título é “Nazareth: estudos analíticos”, traz a tentativa de analisar
quatro peças de Ernesto Nazareth. Segundo o autor, na análise da música de Nazareth
estariam presentes os aspectos “estético, histórico, crítico ou até polêmico”. As peças
analisadas são: Você Bem Sabe, Celestial, Favorito e Marcha Fúnebre. Nas análises de
cada peça, o autor faz comparações com outras peças do próprio Nazareth, e com
composições de outros autores. O autor analisa minuciosamente as peças trecho a
trecho, oferecendo inclusive transcrições daqueles mais importantes. No rol de obras
que se limitam a tratar da biografia dos grandes chorões, a obra de Jaime Diniz (1963)
se destaca por trazer análises musicais.
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A vida de Chiquinha Gonzaga foi relatada também em duas biografias (uma
delas deu origem a uma minissérie televisiva): Chiquinha Gonzaga: Uma História de
Vida (Edinha Diniz, 1999) e A Memória Social de Chiquinha Gonzaga (Milan, 2000).
Maior personalidade feminina da história da música popular brasileira e uma das
expressões maiores da luta pelas liberdades no país, promotora da nacionalização
musical, primeira maestrina, autora da primeira canção carnavalesca, primeira pianista
de Choro, introdutora da música popular nos salões elegantes, fundadora da primeira
sociedade protetora dos direitos autorais, Chiquinha Gonzaga nasceu no Rio de Janeiro,
em 1847. A estréia como compositora se deu em 1877, com a polca “Atraente”,
composta de improviso durante Roda de Choro em casa do compositor Henrique Alves
de Mesquita. Por desafiar os padrões familiares da época, sofreu fortes preconceitos. Já
era uma artista consagrada quando compôs, em 1899, a primeira marcha-rancho, “Ó
Abre Alas”, verdadeiro hino do carnaval brasileiro. Sua obra reúne dezenas de partituras
para peças teatrais e centenas de músicas nos mais variados gêneros: polca, tango
brasileiro, valsa, habanera, schottisch, mazurca, modinha etc. Chiquinha Gonzaga
faleceu aos 87 anos de idade, no dia 28 de fevereiro de 1935, no Rio de Janeiro.
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Conservatório de Música do Rio de Janeiro. Anacleto trabalhou como regente e
instrumentista em teatros, grupos de Choro, festas familiares e religiosas, clubes e
sociedades musicais. Mas foi na Banda do Corpo de Bombeiros, organizada por ele, que
sua ação de educador, compositor e regente influenciou profundamente os rumos da
música popular e fez com que ele, definitivamente, entrasse para a história. O maestro
Anacleto, ao lado de Joaquim Callado, Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth, também
foi um dos pilares do Choro.
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Silva no cavaquinho, e Jorginho no pandeiro. O Época de Ouro é, até os dias atuais,
considerado um dos melhores regionais de Choro já existentes. As composições de
Jacob, como "Noites cariocas", "Receita de Samba", "A Ginga do Mané", "Doce de
Côco", "Assanhado", "Treme-treme", "Vibrações" e "O Vôo da Mosca" tornaram-se
verdadeiros clássicos do repertório de Choro. Jacob faleceu em 13/08/1969, de infarto
do coração, quando retornava da casa de Pixinguinha.
Outra contribuição importante para o estudo do Choro foi dada por Silva (2004),
que apresenta um estudo biográfico sobre o bandolinista Luperce Miranda. Barbosa
(2004) faz um estudo da presença dos instrumentistas de cordas pinçadas no Choro e na
música brasileira. Além disso, a autora faz uma interessante análise dos elementos
contextuais que influenciaram os modos de tocar e compor dos três músicos que se
destacaram como solistas de instrumentos de cordas pinçadas no decorrer do século
XX: Luperce Miranda, Jacob do Bandolim e Waldir Azevedo (cavaquinho).
Dilermando Reis, violonista, teve biografia escrita por Genésio Nogueira (2002).
Um dos mais importantes violonistas brasileiros, atuou como instrumentista, professor
de violão, compositor, arranjador, tendo deixado uma obra vultuosa e versátil, composta
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de guarânias, boleros, toadas, maxixes, sambas-canção e, principalmente, valsas e
choros. Iniciou sua vida profissional aos 18 anos de idade. Em 1956, por interferência
do recém-empossado presidente Juscelino Kubitschek, assinou contrato com a Rádio
Nacional, para estrelar o programa "Sua majestade, o violão", nos primeiros anos
apresentado por Oswaldo Sargentelli e, posteriormente, por César Ladeira. Foi professor
de violão do então Presidente da República Juscelino Kubitschek e de sua filha. De
1941 a 1962, lançou 34 discos de duas faces com 68 músicas em 78 rpm. Dentre essas,
43 de sua autoria. Gravou também um total de 35 LPs. Em alguns de seus LPs foi
acompanhado pelos grandes violonistas Horondino Silva, o Dino Sete Cordas, e Jaime
Florence, o Meira. Além de sua vasta obra, deixou muitos arranjos editados.
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a consolidação do Choro e do samba como gêneros tipicamente brasileiros. Trata-se da
tomada de consciência, por parte dos músicos e dos intelectuais da época, de que aquela
música produzida nos subúrbios cariocas poderia ser considerada uma autêntica
expressão da cultura brasileira. É importante ressaltar que a condição colonial do país
tornava-o um importador cultural por natureza; a subvalorização da colônia incentivava
a imitação daquilo que era considerado civilizado e nobre: a cultura e a sociedade
européias. Esse pensamento, contudo, gerava respostas no seio da sociedade brasileira,
notadamente entre os intelectuais, que buscavam encontrar, criar, enaltecer e fortalecer
uma cultura que fosse genuinamente brasileira. Conforme a mistura de raças deu origem
a um povo mestiço, esses intelectuais entendiam que uma cultura mestiça seria então a
genuína expressão de um povo mestiço. O Choro, assim como o samba, encaixou-se
perfeitamente nessa teoria.
Hermano Vianna (2005) mostra que foi com intenção deliberada de músicos e
intelectuais que o Choro e o samba passaram a ser considerados gêneros brasileiros,
expressões culturais genuínas de seu povo. Ele inclusive cita uma data como início
desse processo: precisamente em 18/09/1926. Nessa noite, ocorreu um inusitado
encontro entre intelectuais e músicos, em alguma birosca dos subúrbios cariocas. Nele
estavam presentes o sociólogo Gilberto Freyre, o jornalista Prudente de Moraes Neto, o
historiador Sérgio Buarque de Holanda, Heitor Villa-Lobos, o músico francês Luciano
Gallet, o sambista Patrício Teixeira e os chorões Pixinguinha e Donga. Sobre esse
encontro, o humor ácido no relato de Gilberto Freyre torna claro sua forma de pensar o
Brasil e a cultura brasileira, e evidencia o projeto de criação e enaltecimento de uma
música e uma cultura brasileiras, a ser empreendido pelo povo filho da mestiçagem:
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Hermano Vianna (2005) defende a idéia de que, ao mesmo tempo em que
políticas e ações eram empreendidas no sentido de coibir e impedir que manifestações
culturais e religiosas afrobrasileiras e mestiças tomavam lugar no país, grupos de
intelectuais e artistas militavam pela aceitação delas, sob o argumento de que eram
autenticamente brasileiras. Esses grupos visavam implementar um projeto nacionalista,
que rechaçava as meras imitações da vida e da cultura européias e norte-americanas. A
música – principalmente o samba e o Choro – por serem mestiços, populares e, por que
não dizer, altamente sofisticados, eram importantes exemplos de confirmação desse
projeto, e de afirmação da capacidade do povo brasileiro de produzir sua própria
cultura. Cabe aqui citar que, em 1922, a Semana de Arte Moderna, realizada cem anos
depois da independência formal do Brasil, amplificou as vozes nacionalistas, pois tinha
como objetivo declarado a valorização e o desenvolvimento de uma cultura brasileira
autêntica. Foi, então, de acordo com Vianna (1995), no âmbito desse projeto
nacionalista que se “inventou” a tradição nacional-popular brasileira, em que a música
desempenhou papel fundamental.
A partir desse encontro, e por tudo o que ele representou, o Choro passou a ser
apoiado e incentivado por importantes grupos da elite brasileira. O caldeirão fervilhante
de ideais nacionalistas induziu mudanças no próprio Choro, sendo importante a
emergência dos chamados conjuntos regionais. Até a década de 1920, o Choro era
música de amadores, pois, embora muitos chorões fossem exímios instrumentistas, a
maioria deles necessitava desempenhar outras ocupações para garantir o sustento. A
partir dessa data, apresentações de Choro começaram a ser realizadas principalmente no
cinema mudo. Juntamente com isso, surgia a incipiente indústria da gravação. Esses
novos contextos alteraram os conjuntos de Choro, que incorporaram o pandeiro como
instrumento de percussão e o violão de sete cordas em praticamente todas as
apresentações; com essas novas exigências, surge a possibilidade de chorões se
dedicarem à música como profissão. Fator de vital importância para a profissionalização
do Choro foi o surgimento da gravação e do rádio. Em 1902, a Casa Edison iniciou a
realização de gravações mecânicas no Brasil. Todavia, essas gravações eram feitas
somente com instrumentos de sopro, que atingiam volume suficiente para serem
gravados com essa tecnologia. Mas, a partir de 1920, o advento do microfone elétrico
mudou isso, e os conjuntos regionais podiam ser gravados. A primeira transmissão de
rádio brasileira se deu em 7 de setembro de 1922, na comemoração do centenário da
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independência. Influenciada pela atmosfera nacionalista da Semana de Arte Moderna, a
transmissão incluiu O Guarani, de Antônio Carlos Gomes, e alguns choros tocados por
Pixinguinha e os Oito Batutas. Os conjuntos regionais surgiram pela alteração desses
primeiros grupos de chorões que se apresentavam ao vivo nos rádios. Nas décadas de
1930 e 1940 os regionais eram os carros-chefe da indústria do Rádio, sendo esse o
período mais glorioso do Choro. Pelo rádio, os regionais alcançavam as partes mais
remotas do país. Assim, o Choro ficou conhecido não somente como música carioca,
mas como música nacional.
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deliberadamente a cultura do país da entrada de culturas estrangeiras, notadamente a
norte-americana, que, com força total, já se fazia presente em outros países do planeta.
Com a saída de Getúlio do poder, as rádios, antes controladas pelo governo, tornaram-se
majoritariamente privadas, podendo incluir na programação elementos que antes não
eram permitidos. Sendo privadas e “livres”, as rádios estavam, então, à mercê das forças
do mercado. Na prática, isso significou a ampliação da influência da música norte-
americana, e a redução do espaço para os gêneros brasileiros. Os regionais foram sendo
substituídos por conjuntos semelhantes às bandas e orquestras de jazz. Mas isso durou
pouco, pois, na medida em que as rádios reduziam a programação ao vivo e utilizavam
gravações, a presença cara e desgastante de conjuntos de músicos foi se tornando
desnecessária. Os chorões ficaram desempregados. Alguns deles foram tocar em bandas
de jazz e outros simulacros da música norte-americana; outros, simplesmente
desapareceram da cena da música profissional. Nessa época, o Choro era executado em
orquestras. Apesar disso, o Choro continuava recrutando jovens músicos que, embora
não fossem muitos, eram suficientemente bons para serem notáveis. É o caso de Garoto,
violonista e compositor que marcou a história do Choro. Ele participou de regionais de
rádio mas, em 1939, foi aos Estados Unidos como parte do Bando da Lua, grupo que
acompanhava Carmem Miranda. Garoto se aproximou do jazz, o que é evidente em suas
composições, que traziam inovações em relação ao Choro “convencional”. Tais
inovações foram o primeiro passo para um novo caminho que se abria na música
brasileira: o da bossa-nova.
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A segunda metade da década de 1970 assistiu ao que Livingston e Garcia (2005)
denominaram renascimento do Choro. Eles citam um evento, produzido por Sérgio
Cabral em 1973, denominado Sarau, em que se apresentaram Paulinho da Viola
acompanhado do conjunto Época de Ouro, como o início desse ressurgimento. Para
eles, esse evento foi o ápice de um processo, iniciado ainda na década de 60, de
aproximação do Choro e do samba das classes médias cariocas. Tal processo foi
empreendido por um pequeno grupo de pessoas, do qual Sérgio Cabral, eminente
jornalista e crítico musical, fazia parte. O movimento de ressurgimento do Choro
concedia aos jovens chorões grande importância, porque aos jovens caberia manter a
tradição e a continuidade do gênero. De fato, eram poucos, pois a juventude nesses
tempos ocupava-se do rock. Apesar disso, entre eles havia grandes instrumentistas, com
destaque para Raphael Rabello, um dos maiores violonistas que o Choro já viu. Em sua
juventude, na década de 70, Raphael conhecia o Choro por meio de Rodas e pequenos
eventos freqüentados por amigos e parentes, a maioria mais velhos do que ele.
Livingston e Garcia (2005, p.136) transcrevem interessante relato desse notável
violonista acerca de seus inícios no Choro:
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Foi também na década de 70 que surgiram os Clubes do Choro, primeiramente
no Rio, em 1975, e, depois, em Brasília, em 1977. Os Clubes do Choro foram,
posteriormente, instituições importantes para a manutenção do gênero. Nesse período, o
Choro recebeu apoio governamental por meio da Fundação Nacional de Arte
(FUNARTE) e do Museu Nacional da Imagem e do Som (MIS). Gravadoras nacionais
(Marcus Pereira, CID, Eldorado, Copacabana e Continental) e transnacionais (RCA,
CBS, Warner, EMI e Polygram) lançavam gravações de Choro. Algumas dessas
gravações eram novas produções, mas a maioria eram relançamentos das gravações dos
regionais das rádios das décadas de 40 e 50. Por isso, Livingston e Garcia (2005)
caracterizam esse período como sendo o do “renascimento” do Choro tradicional. Com
isso, querem dizer que poucas inovações foram introduzidas no gênero. Os autores
destacam a gravadora Marcus Pereira pelo importante trabalho de gravar discos com
música popular brasileira, projeto em que o Choro foi agraciado com o lançamento de
18 discos (entre os 144 lançados pela gravadora em 10 anos).
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Nesse cenário, foram diminuídos os apoios à produção cultural. O Ministério da Cultura
foi reduzido a uma secretaria, e a FUNARTE foi extinta, sendo substituída pelo Instituto
Brasileiro de Arte e Cultura – IBAC. Com isso, o orçamento para a cultura caiu
drasticamente. Também foram eliminados os incentivos fiscais para investimentos do
setor privado nas artes e na música. O Choro sentiu o baque: não havia mais festivais de
Choro, e muitos grupos desapareceram. Até as Rodas nos quintais, redutos últimos da
resistência do gênero, ficaram comprometidas pelo enorme avanço da violência urbana.
Os Clubes do Choro desapareceram. Concomitantemente, as gravadoras transnacionais
atingiam seu apogeu. Foi a era dos grandes nomes da música pop, como Michael
Jackson e Madonna, que representaram o maior monopólio musical desde os Beatles.
No Brasil, bandas de rock como Paralamas do Sucesso, Titãs e Legião Urbana faziam
sucesso nas rádios e na televisão. Da década de 80 até final da década de 90, ninguém
ouvia falar de Choro (com exceção do Clube do Choro de Brasília, que retomou as
atividades em 1993).
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No caso do Choro, a primeira década do terceiro milênio foi de grande
crescimento e enriquecimento do gênero. Novas tendências surgem a todo o momento,
juntamente com jovens instrumentistas que criam novas abordagens para o gênero.
Pelas características da comunicação contemporânea, é possível ter acesso a vasto
material sobre o Choro de qualquer lugar do mundo; por isso, em locais inusitados,
podem ser encontrados entusiasmados amantes do gênero. É, também, cada vez maior o
número de instrumentistas estrangeiros mergulhados no Choro. No Brasil, sua audiência
voltou a ter muitos e muitos jovens. Devido à complexidade e grande variedade e
riqueza de formas de tocar o Choro presentes atualmente, não é possível, em poucas
linhas, desenhar o cenário geral do Choro contemporâneo. Mas é possível discorrer
sobre recortes desse cenário que são, sem dúvida, de extrema importância. A seguir,
neste trabalho, abordaremos aspectos musicais e extra-musicais relacionados ao Choro
na cidade de Brasília, Distrito Federal.
26
A2. Da Lapa ao Planalto Central
Brasília não surgiu, foi surgida, no meio de um lugar que se acreditava ser o
nada. A capital do país foi erguida em poucos anos, a partir do espírito faraônico de
Juscelino Kubitschek. Nas palavras de Lúcio Costa (1962, apud Nunes, 1999, p.1),
idealizador do plano urbanístico da cidade, Brasília nasceu de um gesto primário de
quem assinala um lugar e dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou
seja, o próprio sinal da cruz.
Nunes (2003) afirma que Brasília, construída para ser a capital do país, recebeu,
pouco a pouco, a partir da década de 1960, a burocracia do Estado oriunda,
principalmente, do Rio de Janeiro. Note que essa simples afirmação, para quem conhece
a história social do Choro, já indica a possibilidade desse gênero musical desenvolver-se
na nova capital, uma vez que, nascido no Rio de Janeiro, era praticado pelas classes
médias associadas ao funcionalismo público. O funcionalismo público, de acordo com
Nunes (2003) é o grupo sócio-profissional que até os dias atuais dá sustentação à
cidade, tanto em termos econômicos, quanto culturais e comportamentais. É o aparelho
do Estado (federal e distrital) que injeta o dinheiro que circula no Distrito Federal. Os
setores da economia do DF – construção civil, comércio, serviços, entre outros – giram
em torno da massa monetária provida pelo Estado. Até os dias de hoje, mesmo com o
desenvolvimento do DF como pólo comercial, médico-hospitalar e turístico, o setor
público mantém a hegemonia de grande empregador local.
27
Inácio Pinheiro Sobrinho, o Pernambuco do Pandeiro, veio para Brasília em
1959, a convite de Juscelino Kubitscheck para tocar na Rádio Nacional, juntamente com
seu Regional. Este era formado por Manuel Gomes na flauta, Hermeto Paschoal no
acordeom, Jorge Charuto no sete cordas e Ubiratan no cavaquinho. Luciana Portela
(2003) conta que problemas entre o Regional de Pernambuco do Pandeiro e o presidente
da Rádio Nacional forçaram a dissolução do grupo. Somente Pernambuco ficou em
Brasília, e os demais músicos voltaram para o Rio de Janeiro. JK ofereceu, então, um
emprego na Novacap para Pernambuco, que o manteve na nova capital por longos anos.
Bide da Flauta era funcionário da Justiça Militar, e veio para Brasília em 1970.
Como flautista, já havia tocado com grandes nomes, como Carmem Miranda, Benedito
Lacerda, Jacob do Bandolim e Donga. Neusa França, pianista erudita, chegou em
Brasília em 1959; trabalhava na Orquestra do Teatro Nacional Claudio Santoro.
Organizava saraus em sua casa, onde era comum a presença de grandes chorões (como
Jacob do Bandolim e o Época de Ouro). Waldir Azevedo veio para Brasília acompanhar
a filha que, por sua vez, veio acompanhar o marido, funcionário do Banco Central, em
1971. Nilo Costa, o Tio Nilo, era saxofonista, e veio para Brasília em 1972 como
ferroviário aposentado. Odette Ernest Dias chegou em 1974, para assumir o cargo de
professor de Flauta da Universidade de Brasília; durante muito tempo, os chorões se
reuniram em seu apartamento, na 311 sul, aos sábados à tarde.
28
O violonista João Tomé chegou em Brasília na década de 1960, vindo de
Uberaba. Atuou na Rádio Nacional, lecionou na Fundação Educacional do Distrito
Federal.
De acordo com Clímaco (2008), o bandolinista Cicinato Simões dos Santos era
funcionário do Itamaraty, e chegou em Brasília em 1970. No Rio de Janeiro, chegou a
ter aulas com Villa-Lobos, e era amigo pessoal de Jacob do Bandolim. Segundo
Henrique Cazes (2005), suas composições influenciaram Jacob do Bandolim, pois ele
identificou, em “Pérolas” e “O Vôo da Mosca”, trechos de músicas de Cicinato.
Clímaco (2008) alude, também, à vinda de músicos das bandas militares para
Brasília. Mantinham relações com o Choro, pois seus nomes constam da ata de
fundação do Clube do Choro. São eles: João Batista de Moraes (chegou em Brasília em
1973, e assumiu a Banda do Comando Naval de Brasília), Francisco de Almeida
Gomes, da aeronáutica, e Manoel Vasconcelos, do Corpo de Bombeiros. Clímaco
(2008) destaca o nome do militar da marinha José Américo de Oliveira Mendes, que
veio para Brasília em 1977, e chegou a assumir a presidência do Clube em 1985, após a
saída do Six. José Américo é pai de dois grandes nomes do Choro contemporâneo: o
bandolinista Hamilton de Holanda e o violonista Fernando César Mendes.
A tirar pelos primeiros chorões do planalto central, o Choro aporta aqui muito
bem representado. Embora não tenha havido nenhum esforço oficial (apesar de JK ser
apreciador de serestas, e fizesse questão da presença de bons músicos nas festas que
promovia) para implantar uma tradição musical, a vinda de funcionários públicos trouxe
importantes pedaços do Choro carioca para Brasília. Como ímãs que se atraem, esses
músicos, com distintas origens, formações e histórias de vida, começaram a realizar
encontros musicais. O Choro em Brasília surge, então, como uma colcha de retalhos;
29
não com um Regional consolidado, como os que já existiam no Rio de Janeiro, mas a
partir da reunião dos músicos disponíveis. Só que eram retalhos dos mais finos tecidos,
que deram origem a uma colcha bela e resistente.
30
Clímaco (2008) menciona que a própria ata de fundação do Clube do Choro
aludia à existência prévia de um Clube do Choro, em função da reunião constante de
seus elementos e da realização de apresentações públicas.
Em 1977, Elmo Serejo destinou ao Clube o local de sua sede até os dias de hoje:
entre a Torre de TV e o Centro de Convenções Ulysses Guimarães. O espaço físico foi
inaugurado juntamente com a edição de seu Estatuto, em 1977. A edificação havia sido
31
construída para servir de vestiário do Centro de Convenções, mas nunca teve essa
utilização. As instalações eram precárias, mas, a partir de esforços e doações de seus
membros, os encontros dos chorões passaram a ser realizados ali. Conta Portela (2003)
que Pernambuco do Pandeiro vendeu uma coleção de passarinhos para comprar
geladeira e fogão para o Clube.
Reco do Bandolim: Aquele espaço era cheio de pia, de banheiro, era cheio de ... Era um lugar quente para
burro, tinha uma lage, e ferro ali dentro. Porque hoje tem ar condicionado. Aquilo era uma sauna, porque
o sol batia de dia, os ferros seguravam aquele calor, e de noite transmitiam aquilo para baixo. Era um
negócio insuportável, mas era ali que a gente se encontrava. Então, como mandava a tradição, cada
semana uma família preparava uma feijoada, um cozido. Só íamos nós, era só família, e a gente ia pra lá
para tocar, tomar cerveja. Todo mundo meio que descobrindo aquele negócio, encantado com aquilo,
sobretudo o pessoal de Brasília. Algumas pessoas mais jovens começaram a se aproximar, o Carlinhos
Gifoni, Paulinho do Cavaquinho, Flavinho do Bandolim, como eu também. Nós fomos nos aproximando
dali, aquilo era uma novidade, era uma beleza. Aquilo nos deixava em êxtase. Era música brasileira que a
gente não conhecia. Aquilo falava de perto com a gente, era uma loucura, rapaz! Bom, então, esses
encontros se davam sempre de uma maneira informal.
Reco do Bandolim: Tocava quem queria tocar, subia quem queria subir. Não tinha problema nenhum,
qualquer pessoa que chegasse com seu instrumento podia subir. Tinha gente que dava show e tinha gente
que dava vexame. Tinha gente que não sabia tocar... Era Roda, todo mundo tocava. E aí era gente para
caramba, era um movimento. Mas chegou num ponto, num momento, que aquilo cansou, porque não
havia ensaio, ninguém preparava nada, eram as mesmas coisas sempre. E quando você tirava música
nova, o cara não conhecia, e o outro não conhecia ,e aí dificultava tudo.
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Paralamas do Sucesso e Plebe Rude (para citar as brasilienses). A década de 80 marcou
Brasília como a capital do rock.
33
principalmente áudio-visual, alegando que só a TVE tem
espaços regulares para o gênero. (...)
(...)
Reco do Bandolim: O Clube foi vítima de um roubo. Os bandidos entraram lá e levaram todo o
equipamento do Clube. Ficou sem equipamentos. Aí, fechamos o Clube. Aí fizemos shows beneficentes
para o Clube, juntamos uma grana, compramos.... reequipamos o Clube. Pouco tempo depois, outro
roubo. Aconteceram três roubos. No terceiro roubo, todos desistiram. Já havia aquele desgaste (...). Aí
acabou o Clube, ele ficou fechado até 1993. De 83 até 93. Dez anos fechado!
Nesse período, a sede do Clube ficou para as baratas, e, posteriormente, para três
famílias de mendigos, que a tomaram por residência.
Mas a retração do Choro em Brasília, na década de 80, não foi capaz de eliminá-
lo por completo da capital federal. Assim como no Rio de Janeiro, a resistência do
gênero deveu-se ao esforço individual de umas poucas pessoas. Se em Brasília, já eram
poucos os envolvidos com o Choro, foram menos ainda os que contribuíram para que o
gênero resistisse a tamanhas adversidades. Tão poucos que podemos citar um nome,
apenas um nome, como o mais importante nesse processo: trata-se do lendário
cavaquinista Assis, o Six. Reco do Bandolim discorre sobre a contribuição dele:
Reco do Bandolim: um grande mérito do trabalho do Assis foi o trabalho de manter os chorões unidos.
Ninguém pode tirar esse mérito do Assis. O Six era um cara que não tinha a menor vocação para
organizar coisa nenhuma, nem para profissionalizar coisa nenhuma. Ele era um boêmio, na acepção mais
completa da palavra. Assim como eu sempre fui, gosto desse tipo de coisa. Não vai aqui nenhuma crítica
ao Six, de jeito nenhum. Ele era um boêmio, gostava dos amigos, gostava de um drink. Então, ele abria a
própria casa para um, dois, três dias de grandes festas. Então, mesmo com o Clube do Choro sem
funcionar, o Assis continuou fortalecendo essa comunidade. Isso foi muito importante. Hoje eu reconheço
isso claramente. Ele teve importância vital.
34
da vida boêmia. Historietas Hilariantes (Silva, 1998) conta episódios envolvendo
políticos importantes, funcionários das três esferas do poder, e músicos - de Brasília, do
Rio de Janeiro e de várias capitais do nordeste, para onde Six viajava com freqüência a
trabalho. Six distribuiu dezenas de exemplares para os amigos, e hoje é possível
encontrá-los nas estantes dos chorões da velha-guarda. A longa citação a seguir,
extraída do último capítulo de Historietas Hilariantes, foi escrita por Marília Trindade
Barbosa, importante escritora, biógrafa de Pixinguinha, Jacob do Bandolim e Luperce
Miranda. Sob o título de Radiografia de uma Festança, Ela narra uma festa ocorrida na
casa de Six, em que esteve presente. Embora a festa tenha acontecido em 1997, quatro
anos depois da reinauguração do Clube do Choro, a narração de Marília Trindade
Barbosa permite perceber o ambiente instaurado por Six em suas festas, bem como sua
incrível capacidade de articular e reunir pessoas, dentre as quais estavam sempre
representantes da nata do Choro. Devido a essas características de Six e de suas festas, a
gente do Choro de Brasília manteve-se unida durante os quase 10 anos em que o Clube
do Choro esteve fechado.
“(...) a festa de aniversário do Dr. Assis, nos dias 13 e 14 de dezembro próximos passados
[1997], me encantou tanto. Foi a primeira pessoa que vi, nessa cidade, usando o poder como simples
instrumento de prazer. Apenas isso. Bastava olhar os convidados, a mistura de pessoas, conhecidas,
anônimas, brancas, negras, mestiças, pobres, ricas, diferentes entre si, mas identificadas por três
aspectos: todos vestiam exatamente a mesma camisa, a todos distribuída pela família do aniversariante –
uma linda idéia – todos eram apaixonados pelo mesmo tipo de música e todo mundo estava feliz, muito
feliz.
A decoração da casa já era um desfrute: aquele terreno não arborizado, onde se armaram
toldos brancos, sob os quais se enfileiravam mesas cobertas por toalhas vermelhas, tão convenientes
nessa época natalina. Logo à entrada, uma escultura futurista, de balões de borracha, reproduzia o rosto
do festejado dono da festa. O maior barato! Foi armado um palco profissional, um som profissional, tudo
pronto para receber profissionais da música que vinham homenagear um profissional na arte de viver a
vida. Na parte alta da casa, à esquerda, duas baianinhas vestidas a caráter serviam divinos acarajés –
ah, que saudade da Bahia! Inquietos garçons não paravam de servir cerveja, refrigerante, água, uísque
escocês. E tome música de excelente qualidade!
No primeiro dia, mesmo enquanto eram consumidas toneladas de feijoada, o som não parou
nem um minuto, amadores e profissionais se revezavam no palco. Na mesa do aniversariante, esposa,
filhos e netos distribuíam carinho, simpatia e abraços a todos que chegassem, como se dissessem: ‘você
veio, está aqui, agora é da família. Sinta-se em casa’.
Passei dois dias – um sábado e um domingo – naquela casa. Revi amigos do Rio de Janeiro,
encontrei músicos do Recife. Conheci outros com quem, um dia, talvez me sente para ouvir choro em
torno de uma mesa. Que delícia reencontrar, no riso raro e aberto de César Faria, o sorriso encabulado
de seu filho, Paulinho da Viola. Identificar em Bruno, o primogênito de Deo Rian e Wanda, a terceira
geração de músicos que acompanho. Meu Deus, lá estavam Zé da Velha, Silvério Pontes, Mário Pereira,
Maurício Verde, Marcinho Hulk, Maionese, Pernambuco do Pandeiro, Chico de Assis, Carlinhos Sete
Cordas, César de Holanda e muitos mais. Rossini Ferreira com sua eterna e linda Ritinha, o casal
Henrique Alves e a bela voz de Dalva Torres, legítimos representantes do choro pernambucano de
Luperce Miranda. O lamento do dia não foi o choro de Pixinguinha, mas a ausência da sanfona do
Nivaldo, mandada consertar em São Paulo e que não chegou a tempo.
35
(...)
O mais inacreditável de tudo é que a festa aconteceu em Brasília, numa casa do Lago Sul, onde
não havia deputados, senadores, candidatos, ministros, diretores, os emergentes da vida, essa gente
chata que ocupa todos os espaços da cidade, nada, não se via nem um político. Ou, se existiam ou
estavam presentes, se omitiram enquanto figuras públicas e inorportunas e ficaram em seus cantos,
simpáticas, agradáveis, permanecendo enquanto pessoas, coisa rara, curtindo a vida pelo simples fato de
serem amigos do Six. Esse homem estranhamente forte e poderoso, com uma capacidade ímpar de
transformar uma singularidade – o fato de possuir seis dedos em cada mão – em marca registrada de
uma família inteira. Um clã que se orgulha de ser como é e até olha os outros, simples mortais, neles
incluindo o filho mais velho e seus descendentes, com uma pontinha de pena, pelo fato de possuírem
apenas cinco. Ele é, na palavra de seu filho caçula, o malandro que deu certo.
Além dos filhos legítimos, Assis adotou o Choro. Adotou não, legitimou. Há vinte anos ouço os
músicos cariocas falarem com respeito nesse advogado competente, amigo leal, cavaquinista do cacete!
Ouvi alguém chamá-lo de mecenas. Não gosto desse nome, que faz lembrar primordialmente ajuda com
dinheiro. Assis faz isso também. Mas prefiro vê-lo como o amigo que cuida, acompanha, respeita... e
curte. Já vi gente chamá-lo de narcisista, vaidoso. E por que não? Só quem se ama consegue amar o
outro com a força com que ele o faz. Ama, come, bebe, vive, toca, faz tudo desbragadamente. Como já
disse no início, que bom ver alguém que não vive só por interesse. Que bom poder conviver com quem faz
da vida também um exercício do prazer.” (Barbosa, 1998, apud Silva, 1998, p. 381-384)
36
para reformar a sede do Clube. Reco menciona que, nesse período, em função da
existência de um espaço abandonado em área tão nobre da capital federal, outras
associações e grupos demonstraram interesse em ocupar a sede do Clube. De acordo
com seu relato, uma matéria publicada no Correio Braziliense informava que o Clube
do Choro estava prestes a ser despejado de sua sede:
Reco do Bandolim: Foi quando saiu aquela famosa matéria no Correio Braziliense que dizia: o Clube do
Choro será despejado. Eu aí falei com o doutor Assis, o Six, (...) eu liguei para ele e falei o seguinte: e aí,
rapaz, e o Clube? Ele disse: olha, Reco, eu agora não tenho a menor condição. Estou ocupado com
minhas atividades aqui no Ministério. Ele era um advogado brilhante. Disse: porque você não se
candidata? Eu, na época, cuidava de três emissoras de rádio lá na Radiobrás. Três rádios FMs. Eu tinha
uma rotina, tinha minha família, eu não tinha... mas ele falou isso pra mim. E eu disse: vamos perder a
sede num lugar daquele, rapaz! O GDF já disse que se a gente não começar a funcionar, tem outros
grupos que querem aquele espaço. Ele aí disse: pô, Henrique, eu agora não posso. Porque você não se
candidata? Você tem esse perfil, faça isso. Aí eu resolvi me candidatar. Me candidatei. A primeira luta
fundamental: tinha três famílias lá dentro, e eu tinha que tirar essa famílias de lá. Isso foi uma luta, rapaz,
com o pessoal do serviço social. Porque eu tirava, eles voltavam, tirava, voltava.
Reco do Bandolim: Comecei a fazer pedido a todos os meus relacionamentos, do meu irmão Carlos
Henrique, do meu irmão, que é jornalista, o Ivan, do meu pai, que é um ex-parlamentar, pedindo para a
37
cultura. Eu dizia: pô, vocês têm que ajudar o Clube do Choro. Fizemos um projeto do cacete, entramos
com um pedido no Ministério da Cultura com o Rui Fabiano, irmão do Raphael, e meu irmão Carlos
Henrique para criar a Escola de Choro. (...) Levei o projeto no Ministério da Cultura, o sujeito disse:
poxa, já tem escola de música em Brasília. Mas eu disse: não é escola de música, é escola de Choro.
Fiquei discutindo com o cara 3 anos, e o cara não aprovava. Aí Rui Fabiano desistiu, Carlos Henrique
desistiu. Eu peguei o projeto e levei pra Câmara Legislativa Distrital, conversei pessoalmente com
dezenas de deputados: pô, me ajuda, eu quero fazer a Escola de Choro. É um gênero importante para
música brasileira... Eu tinha um discurso danado. Aí os caras botaram em votação e foi aprovado por
unanimidade. A Escola de Choro! Eu peguei a aprovação e consegui uma audiência com o Ministro da
Cultura. Os caras disseram: foi aprovado na Câmara, então vamos fazer o projeto. Eu aí lembrei, quando
eu tava assinando esse projeto, para o Raphael [Rabello] assinar o projeto, porque ele estava no auge, e eu
entendi que aquilo ia dar um ganho no projeto. Bem, aí o Raphael disse: olha, se é você que está fazendo
o projeto, Reco, eu não quero nem ler. Na semana seguinte ele morre, aí eu, emocionado, lembro como se
fosse hoje. Eu estava em casa almoçando, eu e Henriquinho, ele pequeno ainda, e minha mulher, aí saiu a
notícia: acaba de morrer o violonista... Bicho! Quase que eu tive um infarto, porque ninguém podia
imaginar, ninguém esperava aquilo. Aí eu, na hora, chorando muito, disse: a escola vai se chamar Raphael
Rabello. Porque foi um momento de muita emoção, então aprovamos o projeto. Foi um trabalho solitário,
sem ninguém para ajudar, ninguém. Foram anos de luta. Eu tive que pedir licença das minhas funções lá
da radiobrás porque eu não estava dando conta. Isso foi uma questão terrível lá em casa, porque eu tive
uma diminuição de grana (...). Aí eu pedi meu pai para me ajudar, eu também, com os meus
relacionamentos... Eu era superintendente da Radiobrás, eu tinha os meus contatos. Aí eu descobri que eu
tinha que identificar, no governo, autoridades que tivessem sensibilidade para cultura. Fui identificando
algumas figuras, entre elas o chefe da casa civil do governo Fernando Henrique, no começo do governo,
que era o Clóvis Carvalho. Eu descobri que ele tocava piano e que era um cara durão, uma barreira,
ninguém gostava desse cara, a imprensa não gostava, mas eu fui encontrando um jeito de descobrir um
grupo de pessoas sensíveis a isso, para apresentar um projeto para o Clube do Choro. Como seria esse
projeto, como a gente poderia fazer... Aí, começamos a discutir que as emissoras de rádio não favoreciam
os grandes compositores brasileiros, só música estrangeira. Esse grupo foi estratégico, porque eu esperava
que essas pessoas em seguida pudessem nos ajudar, ajudar efetivamente. Tinha intelectual no meio,
autoridades do governo no meio, músicos, jornalistas... Aí, fiz um grupo, bolamos o seguinte: vamos
fazer projetos anuais abordando um expoente do Choro.
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Trinta Anos do Clube do Choro; 2008 - Tom Jobim: Maestro Brasileiro; e 2009 –
Dorival para Sempre Caymmi.
De 1997 para cá, o Clube do Choro, com base na Lei Rouanet, teve patrocínio de
inúmeras empresas, dentre as quais: Correios, Banco do Brasil, Telebrasília, Liderança
Capitalização, Petrobrás, Eletrobrás. As apresentações do Clube do Choro acontecem
quarta, quinta e sexta, normalmente com a apresentação de um solista convidado, de
fora de Brasília, acompanhado pelo grupo Choro Livre, formado por instrumentistas
brasilienses. Fora essas, o projeto Prata da Casa leva artistas brasilienses todos os
sábados ao palco do Clube.
A escola não somente forma instrumentistas, mas, até pela enorme quantidade de
alunos, forma público para o Choro também. A Escola atrai para o universo do Choro
pessoas que não o fariam por outras vias, e que acabam se tornando grandes
39
apreciadores do gênero. Por isso, a existência da Escola fortalece o Choro na cidade. É
importante ressaltar que nem todos os alunos da escola saem dela instrumentistas
virtuoses. É verdade que muitos até abandonam seus instrumentos, e nunca mais voltam
a tocar. Mas nunca perdem a lembrança do contato que tiveram com o Choro, e
contribuem para valorização e divulgação do gênero.
40
realiza Rodas de Choro aos sábados, comandadas por Nivaldo da Sanfona e Lício da
Flauta.
Quanto aos eventos esporádicos, acontecem nos mais variados lugares, desde
teatros, parques, palcos montados ao ar livre, shopping centers, até em aberturas de
congressos, coquetéis, seminários, lançamentos de livros, exposições de arte, eventos
políticos (nos ministérios, no Congresso Nacional, na Presidência da República), entre
outros.
Mesmo o Choro podendo ser escutado nos quatro cantos e nos dois eixos de
Brasília, o Clube do Choro continua tendo importância crucial, principalmente pela
transitoriedade de outros estabelecimentos onde o Choro acontece. Mesmo com a
existência de bares em que o Choro é presença constante, como o Feitiço Mineiro, a
Tartaruga Lanches e a Kituarte, o Clube é a instituição voltada exclusivamente para o
Choro e que, pelo menos a princípio, não estaria sujeita às vicissitudes do mercado.
41
que novamente vieram se misturar em Brasília. Ou seja, Brasília é a mistura da mistura,
ela é a capital do Brasil, brasileira ao quadrado. Para Pastore (1969), a coexistência de
subculturas brasileiras em Brasília faz dilatar o sentimento nacionalista na cidade.
Gilberto Freyre, um dos inventores da idéia da mistura como cerne da identidade
brasileira, afirmou que Brasília traz uma nova perspectiva para o Brasil inteiro: a
perspectiva de um Brasil verdadeiramente inter-regional no seu modo de ser Nação
una e, ao mesmo tempo, plural – um Brasil feito de Brasis. (Freyre, 1968, p. 175-177).
42
aderiram ao Choro após algum tempo de dedicação a outros gêneros ou estilos musicais,
como rock, reggae, música erudita, baião, jazz, etc. Outros, das atuais gerações, são
filhos da mistura de pessoas vindas de regiões distintas do país. Além disso, em todo
lugar, os brasilienses convivem com origens e culturas diferentes. Então é comum, entre
músicos e ouvintes do Choro, o gosto eclético, por diversos gêneros musicais, nacionais
e estrangeiros. Por conseqüência, o Choro em Brasília tem particular abertura a outros
estilos, não ficando restrito a guetos culturais freqüentados apenas por iniciados. Talvez,
por isso também, em Brasília, exista mais ousadia para inserir inovações na tradição do
Choro.
43
PARTE B – CONTEXTOS
44
Schutz (1977) defende que a música como modo de comunicação não se baseia
na transmissão de conteúdos sonoros, mas na possibilidade de instaurar relações
interpessoais. No caso da Roda, instrumentistas de diversos níveis tocam juntos, criando
e recriando repertórios; nela a música exerce, dentre outras coisas, o papel de
interlocução entre as pessoas. Assim, a Roda de Choro cria um ambiente de relações e,
em contrapartida, apóia-se nele. Então, o contexto interfere nos elementos musicais, que
também alteram o contexto. Com efeito, Qureshi (1987, p. 65) afirma que o som
musical varia com a variação no contexto da performance; no caso da Roda de Choro,
o inverso também é válido.
Roberto M. Moura (2004) realizou extenso trabalho sobre a Roda de Samba, que
pode servir de referência para a análise das Rodas de Choro, pois ambos os gêneros
estão ligados desde sua origem, e as características das Rodas guardam importantes
semelhanças. Do mesmo modo, outras manifestações de raiz negra (como candomblé e
capoeira, somente para citar exemplos) também reúnem características semelhantes às
das Rodas de Samba e Choro. Para o caso do Choro, a análise de Moura (2004) das
Rodas de Samba é particularmente pertinente, pois ambos são manifestações culturais
em que a música desempenha o principal papel, diferentemente da capoeira e do
candomblé, em que elementos de luta, dança e religião são tão importantes quanto a
música. Assim como no caso do samba, a Roda antecede o Choro e é sua matriz física.
Não foi o Choro que criou a Roda, mas o contrário. Ao longo de sua existência, o
gênero incorporou instrumentos, alterou formas e harmonias, criou novos estilos e
sofreu uma série de outras modificações. Mas a Roda permaneceu. Mais do que apenas
um dentre vários contextos em que o Choro ocorre, a Roda é elemento fundamental na
geração, preservação e divulgação desse gênero musical (Moura, 2004, p. 29).
Portanto, as características de performance e contexto presentes na Roda são, sem
dúvida, cruciais para o entendimento da natureza do Choro.
No livro No princípio Era a Roda: um estudo sobre samba, partido alto e outros
pagodes, Roberto Moura (2004) o autor tenta refazer a trajetória histórica do samba a
partir das Rodas de Samba no Rio de Janeiro desde o final do século XIX aos dias
atuais. Ele afirma que, embora seja um ritual, cada Roda é única e irrepetível. Seu
código se funda na família, na amizade, na lealdade, na pessoa e no compadrio
(Moura, 2004, p. 28). Como em qualquer ritual, a Roda preserva e atualiza o que está
45
em sua origem. Ela é antes de tudo um evento festivo de caráter plural, familiar; um
espaço mítico resultante da dialética entre o cotidiano e a utopia; ela instaura a ilusão da
eternidade (Moura 2004, p.23). É um espaço onde o que é íntimo se confunde e se
mistura com o que é coletivo. Compreende música, comida, bebida, alegria e um
conjunto de relações, sendo o suporte de processos de interação e comunicação entre as
pessoas. Não são os sambistas que formam a Roda, mas o contrário. Isso se deve em
grande parte ao ambiente doméstico, familiar, íntimo, caseiro em que ela se dá (Moura
2004, p.39).
Moura (2004) afirma que, do mesmo modo que é possível fazer uma leitura do
Brasil do ponto de vista da casa em contraponto à rua, é possível ler o samba através da
Roda em contraponto à Escola de Samba, que nasce como casa e se transforma em rua.
Assim, na casa/roda as leituras ressaltam a pessoa; a casa propicia a formação da Roda
como manifestação espontânea e festiva. Já na escola/rua há uma ênfase no indivíduo,
os discursos são mais rígidos e instauradores de novos processos sociais (Moura, 2004).
Então, a Roda não é passível de se transformar em produto, ao contrário do samba. Ela é
descrita antes como uma expressão comunitária (mais utópica e amadora); seu aspecto
mais comercial caminha na direção da escola de samba (mais pragmática e mercantil).
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amizade até vestimentas, comidas, bebidas, gestos, discursos e expressões. Muitos
músicos realizam essa entrega total à música, de modo que o samba (ou o Choro) se
torna sua principal marca identitária.
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tarde, tais como bares, praças, mercados e feiras. Não havia indumentária especial, mas
os capoeiras mais experientes costumavam trajar ternos de linho branco, pois sua
destreza se demonstrava ao sair da brincadeira com a roupa perfeitamente limpa. Os
autores enfatizam que, embora o universo da capoeira envolvesse violência e freqüentes
embates entre grupos rivais e com a polícia, seu caráter essencial é lúdico. Portanto,
entendem a roda de capoeira como folguedo, encontro. Afirmam também que a capoeira
é marca identitária de seus praticantes, e apontam a malandragem, a mandinga, como
um dos elementos mais valorizados na performance do capoeirista. O duelo jocoso é a
marca do jogo da capoeira; embora seja complexo a ponto de ser um jogo em que quase
nunca é possível apontar um vencedor, há sempre o objetivo de derrubar o outro, por
meio de golpes desequilibrantes. Todavia, nem sempre isso ocorre, e o jogo não perde
seu valor por isso. No mesmo sentido, Reis (2000) afirma que o ethos da capoeira é
marcado pela ambigüidade lúdico-combativa, que prefere o confronto indireto,
disfarçado, ao embate aberto. A malandragem é a maliciosa capacidade de dissimular,
de esconder as verdadeiras intenções do jogador. A ginga, base móvel da capoeira, é um
tipo de movimentação que permite ao capoeira utilizar maneirismos e mandingas que
confundem o outro jogador. Desse modo, ele torna seu jogo completamente
imprevisível, nunca sujeito a ser conhecido por antecipação, mesmo nas últimas frações
de segundo que antecedem sua movimentação. O jogo da capoeira é sempre
improvisado.
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conhecimento de outros folguedos brasileiros pode, portanto, auxiliar o entendimento da
Roda de Choro, assunto sobre o qual existem poucos estudos acadêmicos.
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donos de estabelecimentos, entre outros, promovam Rodas de Choro periódicas, a fim
de ver crescer seus negócios. Todavia, para que aconteçam, para que atraiam o público,
é preciso garantir, primeiramente, que exista um mínimo de músicos presentes, capazes
de executar os Choros. Assim, nesses casos, um Conjunto Regional é contratado para
garantir a música; todavia, não lhes é exigido ensaios, repertórios definidos, e a
participação de outros músicos é aberta. Em segundo lugar, é preciso amplificar o
volume do som, para que a audiência escute a música; existem, portanto, Rodas de
Choro com som amplificado. Por fim, em alguns casos, quando alguma Roda de Choro
começa a se destacar pela qualidade musical, é comum que o dono do estabelecimento
e/ou os próprios músicos realizem filtragens daqueles que poderão participar, vetando a
entrada de músicos muito iniciantes e inexperientes, que podem comprometer o nível da
performance da Roda como um todo. Livingston-Isenhour e Garcia (2005) entendem
que quando há som amplificado, pagamento de músicos fixos e filtragem de
participantes, o evento, embora denominado Roda de Choro, perde sua autenticidade
como tal. Defendem esses autores a idéia de que somente é autêntica aquela Roda de
Choro considerada pura, ou seja, que acontece sem nenhum outro objetivo a não ser o
encontro de músicos, e sem interferências de elementos externos a ela própria e à
música.
50
determinar, em cada caso particular, a proximidade ou
afastamento entre a realidade e o quadro ideal (...) Ora,
desde que cuidadosamente aplicado, esse conceito
cumpre as funções específicas que dele se esperam, em
benefício da investigação e da representação. (Weber,
1993, p. 137).
A descrição da Roda, conforme proposta por Roberto Moura (2004), pode ser
entendida como uma construção típico-ideal de um contexto em que o Choro ocorre; a
apresentação formal teria, então, características diametralmente opostas, sendo,
também, um tipo-ideal. O que observamos no plano real, contudo, são situações
híbridas desses dois contextos, que contêm elementos de um e de outro, em maior ou
menor grau. Esse raciocínio pode ser representado pelo seguinte diagrama.
R E A L I D A D E
Informal
Pessoal Formal
Observam-se características tanto
Proximidade entre músicos e da Roda quanto da Apresentação, Impessoal
audiência podendo estar mais próxima de uma
ou de outra. Distanciamento entre músicos e
Não-remunerada audiência
Repertório definido na hora Remunerada
Aberta à participação de diversos Repertório pré-definido
instrumentistas
Fechada à participação de outros
Ausência de equipamentos para instrumentistas
amplificação de som
Necessidade de equipamentos
Realizada ao redor de mesas, em para amplificação do som
cadeiras comuns
Realizada no palco
É interessante notar que o livro mais recente sobre a história do Choro, escrito
em 1998 por Henrique Cazes (2005), faz referência ao antagonismo Roda/Apresentação
51
já no título – Choro: do quintal ao municipal. O título transmite a idéia de que o Choro,
em sua trajetória histórica, partiu de um ambiente amador/informal (o quintal, local
onde as Rodas mais simples e espontâneas acontecem) para um formal/profissional (o
Teatro Municipal, ambiente glamoroso, onde somente grandes artistas se apresentam),
obtendo merecido reconhecimento. Todavia, o prefácio do livro, escrito por Hermano
Vianna, traz considerações sobre o título do livro e sobre o antagonismo
roda/apresentação:
52
contribui, também, para a criação de uma visão romântica da Roda de Choro, como
sendo um local que as pessoas freqüentam por motivos nobres e altruístas, movidas
apenas pela beleza da música e dos encontros entre pessoas, onde reinam a mais perfeita
harmonia e as mais sólidas amizades, e onde não há lugar para mesquinharias e outros
sentimentos e atitudes vis e baixos. Essa visão romântica é, obviamente, equivocada e
distante da realidade.
53
Pela longa duração da festa, a Roda teve momentos diferentes, alguns mais formais,
outros extremamente informais, e obviamente muitos choros foram repetidos.
54
(...) houve uma mudança crucial nos últimos vinte anos
na prática e na percepção do Choro; ele deixou de ser
uma tradição essencialmente participativa, baseada na
roda, para ser uma tradição de apresentações e
gravações, representada pelas gerações mais jovens. O
renascimento [do choro no final do século XX] introduziu
o choro a um novo setor social – a juventude
universitária de classe-média e classe-média-alta. Nesse
processo, o choro foi adaptado às preferências e à
sensibilidade musical dos novos chorões. Além de serem
capazes de ler e compor músicas, esses músicos
geralmente têm uma orientação cosmopolita que os
distingue das gerações anteriores de chorões (Livingston-
Isenhour e Garcia, 2005, p. 57)
Desse modo, fica claro que, para Livingston-Isenhour e Garcia (2005), não
existe meio-termo entre os contextos da Roda e da Apresentação, pois cada evento deve
ser enquadrado em uma ou outra categoria. Quando elementos típicos da Roda estão
ausentes, eles a consideram falsa, mesmo que seja denominada como tal. Além disso,
conforme indica a citação acima, esses autores relacionam a redução das Rodas de
Choro autênticas ao fenômeno contemporâneo do renascimento do Choro, cujos
protagonistas são, principalmente, jovens de classe-média bem formados e informados.
Esse setor da sociedade dá alto valor às apresentações e gravações de discos; desse
modo, realizam Rodas de Choro voltadas ao público, com grupos fixos, pagos para
tocar e, muitas vezes, com som amplificado. Para Livingston-Isenhour e Garcia (2005),
essas não são Rodas verdadeiras. Todavia, na história do Choro, sempre esteve presente
a polaridade roda/apresentação e seus hibridismos. Os chorões eram familiares aos
ambientes informais tanto quanto aos mais formais possíveis, pois estavam acostumados
a se apresentar para a corte e a alta sociedade. Também sempre foram comuns Rodas de
Choro em estabelecimentos comerciais, visando aumentar o movimento, e com retornos
financeiros aos músicos. Conforme afirma Hermano Vianna, o Choro não acontece nem
no quintal nem no Municipal, mas no espaço entre esses dois mundos culturais
aparentemente apartados. Com base nisso, podemos afirmar que as Rodas do Choro na
Feira não são, como afirmam Livingston-Isenhour e Garcia (2005), falsas, mas possuem
características diferentes daquelas exclusivamente domésticas, sem, por isso, serem
menos autênticas. De fato, não é possível sequer julgar em qual contexto o Choro é
“mais autêntico”, se na Roda ou na Apresentação, uma vez que ambos estiveram
55
presentes ao longo da história do gênero, são parte dele e são igualmente importantes
para o seu desenvolvimento.
Em Brasília, Rodas de Choro ocorrem nos quintais das belas casas dos Lagos
Norte e Sul, nos apertados bares e restaurantes do Plano Piloto, nas salas dos generosos
apartamentos da Asa Sul. Uma Lanchonete, localizada na Asa Norte, realiza Rodas de
Choro todas as sextas-feiras. Essas Rodas merecem destaque pela presença de muitos e
grandes músicos da cidade, bem como pela regularidade com que ocorrem.
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chorões. Assim, Rogério começou a estudar pandeiro e Paulão, bandolim. A partir de
2004, a Tartaruga Lanches passou a promover modestos encontros, às sextas-feiras a
partir das 18:00, entre estudantes de música que gostavam de tocar Choro. As reuniões
eram pequenas, com menos de 30 pessoas. Como no Campus da UnB era proibida a
venda de bebidas alcoólicas, os irmãos forneciam uma garrafa de cachaça aos músicos.
As Rodinhas da Tartaruga foram sendo divulgadas boca-a-boca, e o público começou a
aumentar. Antes que virassem um evento de fato, a Prefeitura do Campus da
Universidade proibiu-as, ameaçando inclusive caçar a concessão para a permanência da
Tartaruga na UnB.
A turma que freqüentava as Rodas, então, no exato dia em que foram proibidas
na UnB, subiram para a Asa Norte, até um bar na 408 Norte, munidos de instrumentos.
Como clientes normais e pagantes, fizeram a Roda de Choro, que agradou o público e o
dono do bar, que ofereceu comes e bebes gratuitos aos músicos caso aparecessem na
outra semana. E assim fizeram. Então, a divulgação boca-a-boca fez a sua parte, e o
público do bar foi aumentando a cada semana. Cerca de seis semanas depois, via-se a
rua tomada de gente, impedindo inclusive o trânsito, todos a ver a Roda de Choro. Um
dos músicos levava duas caixas de som portáteis, em que eram ligados o violão, o
pandeiro e o bandolim. Os instrumentos de sopro tocavam sem amplificação. Na
verdade, era uma bagunça enorme. Muitas vezes, a Roda acabava com alguém ligando
um microfone e cantando sambas, ou, como em um dia de chuva, em que dezenas de
pessoas se espremiam ao redor da mesa dos músicos, sendo impossível para eles se
levantarem, o público puxou lá um samba e aos músicos não restou outra alternativa
senão acompanhar. Enfim, por toda a confusão que essas Rodas começaram a causar,
foi a vez da Administração de Brasília notificar o estabelecimento e ameaçar suspender
seu alvará, caso não parasse a bagunça. Então, ficou proibido sentar nas mesas daquele
bar com instrumentos de Choro (cavaquinho, pandeiro, bandolim, entre outros). Não
demorou para que outros bares fizessem propostas para abrigar a Roda de Choro, em
troca de comida e bebida. Um a um, vários bares foram sendo notificados pela
administração de Brasília. Um, inclusive, foi fechado porque não tinha alvará de
funcionamento. Depois de quase um ano, as Rodas de Choro não tinham mais onde
acontecer, porque os donos de bares tinham pavor de violões, pandeiros, cavaquinhos e
bandolins. Um produtor de eventos da cidade, sujeito articulado, amante do Choro,
levou a Roda de Choro para um Clube, longe de residências e confusão, onde ela
57
permaneceu por cerca de dois anos. Nesse tempo, conforme ia atraindo mais e mais
público, os olhos cresceram para a possibilidade de ganhos financeiros. Eis que o Choro
foi perdendo espaço para o samba que acontecia logo depois, e a Roda foi
desaparecendo, semana a semana, cedendo lugar a uma apresentação de choro/samba
que visava apenas entreter os jovens brasilienses. Como era previsto por muitos,
desavenças entre músicos, produtores e outros, envolvendo obviamente o dinheiro,
puseram fim no Samba do Arena.
Muito embora sempre exista uma grande quantidade de músicos na Rodas, que
por vezes chega a 20 ou 30, certas regras definem a composição do grupo que toca em
cada momento. Sempre há somente um pandeiro, um violão de sete cordas e um
cavaquinho fazendo o centro (harmonia e ritmo); outro violão pode auxiliar na harmonia
e outro cavaquinho pode entrar para fazer o solo. Quanto aos solistas, vários podem
tocar a mesma música, porém sempre um de cada vez, dividindo entre si as partes da
música. As observações das Rodas documentaram que já se apresentaram como solistas:
clarineta, flauta, cavaco, bandolim, trombone, saxofone, violino, gaita, trompa,
acordeon e viola caipira.
58
O objetivo da Roda de Choro é a possibilidade de os músicos tocarem uns com
os outros, sem ensaio ou pré-determinações de repertórios e arranjos. Por isso, a Roda
de Choro não dá espaço para grupos e regionais de Choro realizarem apresentações
ensaiadas. Em Junho de 2007, a Roda recebeu a visita de um Regional, residente nos
Estados Unidos, que iria se apresentar no Clube do Choro de Brasília. Eles chegaram,
assumiram seus instrumentos, e começaram a tocar o repertório próprio do grupo. Um
leve mal-estar pairou entre os demais músicos, que rapidamente foram substituindo os
forasteiros, para que se misturassem com os instrumentistas da Roda e tocassem com
eles.
Laércio Pimentel: Geralmente quando a gente fala de Choro, a gente fala de Regional de Choro, então
fala de grupo, fala de pessoas. Ele pode ser um solista, tocar os temas, tocar sozinho, mas o esquema da
Roda de Choro é único. É diferente tocar sozinho e tocar em grupo, acompanhado pelo pandeiro, pelo 7
cordas. É uma outra pressão, um outro entendimento.
Pesquisador: O quê você acha mais importante: estudar o violão ou o conteúdo da UnB?
Henrique Neto: Em termos musicais, com certeza o violão. Meu aprendizado musical eu devo muito mais
às Rodas do que à UnB. O conhecimento acadêmico te orienta, mas pra você ser músico mesmo, aí tem
que tocar. Não deve ficar restrito à noite, tocar em boteco, isso não, porque aí o cara joga fora a vida dele
toda. No boteco ninguém está ouvindo você tocar. Tem que se gabaritar para ser um grande músico,
sacou? Fazer grandes trabalhos, isso é indispensável. A Roda de Choro, o boteco, ninguém está te
ouvindo tocar, mas mesmo assim você tem que tocar neles, acompanhar cantores e tudo o mais. Essa é a
maior escola, sem desmerecer a Universidade, claro, porque as coisas se complementam. A Universidade
te dá só um polimento.
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Observamos, pelo relato acima, que o chorão em questão tem conhecimento de
diversos contextos em que o Choro acontece. Para ele, tocar na Roda de Choro é
indispensável para o aprendizado do gênero, mas é igualmente importante tocar em
apresentações, gravações e outros contextos, bem como tocar outros gêneros além do
Choro. Isso reforça a idéia de que a polaridade Roda de Choro/apresentação é algo
sempre presente na realidade desses músicos, pois faz parte de sua formação a
performance em ambos os contextos.
Na Roda, há uma regra clara: quem quiser tocar, pode tocar, desde que seja na
Roda e que tenha capacidade para tal. Certa vez, na Tartaruga Lanches. um
desconhecido solicitou uma participação; como sua performance não foi condizente
com o nível musical da Roda, foi sutilmente expulso, com frases incentivadoras, do
tipo: “ô amigo, tente estudar mais um pouco”.
O cavaquinista, enquanto solava um baião rápido, olhava para o pandeirista e tentava corrigir um erro que
ele estava cometendo naquele pedaço da música. Tanto o cavaquinista quanto o pandeirista são músicos
habituais da Tartaruga Lanches. Depois, chamou novamente a atenção do pandeirista, dizendo “está
caindo, está caindo”, referindo-se ao fato de o pandeirista estar atrasando um pouco o andamento da
música. Após um breque, o pandeirista teve dificuldades em voltar a tocar no tempo certo. O
cavaquinista, então, fazia caras e bocas, dizia “não, não!”, e expressava impaciência e descontentamento;
demais participantes da Roda estavam levemente apreensivos. Alguns riam dos erros do colega, outros
aguardavam o desfecho da situação. Quando a música terminou, iniciou-se o seguinte diálogo:
Cavaquinista (dirigindo-se ao pandeirista): mas foi ruim demais, hein? Caiu muito [ou seja, o andamento
ficou mais lento], caiu demais. Assim não dá.
60
Pandeirista: mas também a música é rápida demais.
Cavaquinista: Pois é. Vou te dar um conselho. Volta para a Escola de Choro [Raphael Rabello]. Volta
para lá, você consegue até uma bolsa. Volta para lá para aprender a tocar.
Pandeirista (levantando-se e deixando o pandeiro sobre a mesa): Alguém vem tocar no meu lugar aqui,
porque não tenho capacidade para tocar nessa Roda.
Nisso, alguns integrantes da Roda tentaram minimizar o mal-estar, com frases do tipo: o que é isso,
também não é assim, calma, não liga não. Em vão, pois o pandeirista, visivelmente magoado, abandonou
a Roda e foi ter com algumas jovens garotas que estavam próximas.
De fato, o que se observa na Roda é que, embora sempre se afirme que ela é
aberta, tal abertura não é absolutamente irrestrita. As limitações se impõem,
principalmente, em função de performances não satisfatórias. O caso descrito acima
mostra a exclusão de um músico considerado de casa, alguém cuja aceitação na Roda
não é comumente posta em questão, em função de sua performance ter sido considerada
ruim naquele momento.
Márcio Marinho: [para tocar Choro] tem que estar naquele convívio da Roda. Tem que ter aquele
esquema do desafio. Eu acho que Roda de Choro é isso, o desafio, testar o cara para ver se ele vai dar
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conta. Se ele se ferrar, a galera vai ficar feliz, porque você conseguiu derrubar o cara. Roda de Choro tem
muito isso.
Leonardo Benon: Roda é isso, chega o solista e diz: vou tocar tal choro, você tem que se virar pra
acompanhar (...). O tom é tal, vamos atrás. Poyares fazia isso com a gente direto, às vezes inventava uma
música e a gente tinha que acompanhar, tinha que correr atrás. Às vezes, o cavaquinista dá uma palhetada
invertida, tira a acentuação do tempo, para ver se o solista também não se perde. Igual quando a gente vai
tocar com o Evandro, ele enrola a galera. Pode estar tocando o choro mais simples do mundo, o
Carinhoso, que ele desloca a melodia, atrasa, adianta. Se o cara não estiver atento, cai na hora. É coisa da
Roda.
Dudu 7 Cordas: Se eles [os músicos de casa] sacarem que o cara é carne nova no pedaço e vai dar uma
canja, dependendo do cara, eles botam quente. Se eles sacarem que o cara toca bem e está tocando tudo o
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que eles estão fazendo, uma hora eles vão jogar uma música para ferrar o cara. Ou às vezes eles podem se
ferrar. Eles acham que o cara não sabe, mas o cara sabe. Como já aconteceu no Rio com E. Foram tocar
uma música, acharam que determinada pessoa não sabia a música, mas se ferraram, porque o cara sabia e
tocou a música. Depois E. jogou contra, e puxou uma música que eles não souberam. Se ferraram. [Em
outra ocasião], E. foi para São Paulo, e os paulistas tocavam altas músicas para sacanear, músicas que
ninguém conhecia, e ele tocou todas. Então, ele puxou uma música, aquela ‘pra esquecer’, do Waldir, aí
os caras não foram. E. deixou o cavaquinho na mesa, saiu da Roda e falou: vocês não tocam nada. Então,
você pode se surpreender, querer dar uma de bonzão e se dar mal.
Henrique Neto: Assim, a Roda de Choro sempre tem o espírito de testar o outro. No Rio [de Janeiro],
acho que se acentua mais esse espírito, porque tem muita concorrência lá. Também tem esse lance, que
está estampado na cara do carioca, de que ele é malandro. Então ele chega já botando uma música que ele
sabe que você não vai tocar, de uma maneira até meio perversa. Aqui em Brasília também tem isso,
lógico. Mas tem um lance do desafio saudável. Lá eles derrubam para ver teu oco, mas isso é o espírito do
Choro. Acho que ele foi formado assim, isso não é uma coisa ruim. Acho que quando isso acontece, de
você não saber tocar, isso te motiva a estudar mais, a conhecer mais repertório. Tem que estar preparado
para isso.
Dudu 7 Cordas: Eu acho [importante para a Roda] a descontração, encontrar os amigos e aprender com o
outro. Tem gente que não traz coisas novas, tem um repertório de 15 músicas, mas tem muita gente que
traz coisas novas, tem muita canja e isso é legal. Tomar umas, descontrair.
Do mesmo modo como ocorre nas rodas de samba (Moura, 2004), as relações
pessoais, de afeto e de amizade, importantes para a vida dos músicos mesmo fora do
âmbito estritamente pessoal, têm relação com a Roda de Choro, pois ela é local de
formação de vínculos, conforme evidenciado no relato de Augusto 7 Cordas:
Augusto Contreiras: Se você toca numa Roda de Choro, já está fazendo amizade automaticamente. Claro
que essa amizade, às vezes, se restringe mais ao campo profissional, mas não deixa de ser uma amizade.
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Também tem muitos músicos antigos aqui em Brasília, e a gente já toca há muito tempo. Então, a gente
tem uma relação de amizade.
Leonardo Benon: Não tem, na história do samba, grandes cantores. O que importa não é a voz, é a
interpretação, deslocando o tempo, atrasando, adiantando. Isso pra mim é improvisar (...). Toda a roda, na
cultura brasileira, tem esse negócio do desafio, do duelo. Na capoeira os caras são amigos, mas tão
duelando; na roda de partido alto, também. Era tudo improviso, só tinha o refrão. Na Roda de Choro
também tem esse lado; por ser roda, tem desafio.
Imprimir a qualidade de jogo à música, contudo, não reduz o respeito com que
os músicos e audiência a consideram. Para tocar na Roda, é necessário conhecer seus
códigos e ter capacidade de tocar bem o instrumento; ou seja, é preciso levar a sério a
música e o ambiente da Roda. O termo brincadeira, na Roda de Choro, não é antagônico
à seriedade. A música como brincadeira de roda pode, porém, indicar uma resistência à
institucionalização da Roda, que a converteria em espetáculo. Se ocorrer essa
conversão, obrigatoriamente a Roda perderá algumas de suas características informais,
dentre elas, a brincadeira e o jogo. No espetáculo, não há lugar para a imprevisibilidade
do jogo, tampouco para a vulnerabilidade do jogador que pode cair ou perder a qualquer
momento; nele, tudo deve ser ensaiado previamente. Então, o ambiente de festa e
encontro cederia lugar ao formal e profissional; nesse ponto, o evento não mais poderia
ser considerado uma Roda. Esse é, sem duvida, o risco que as Rodas de Choro que
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assimilam elementos de apresentações formais (como amplificação de som e pagamento
de cachê) sempre correm. Caso as características da apresentação passem a ter primazia
sobre aquelas da Roda, ela pode, aos poucos, ir deixando de funcionar como tal, porque
a Roda é resistente à institucionalização desde a sua essência.
Normalmente, a Roda se inicia por volta das 18h30, com choros lentos e
cadenciados, quando a audiência é ainda pequena. A partir das 19h30, com público
maior, são tocados choros mais rápidos, e parte da audiência já se aglomera ao redor da
mesa dos músicos, dançando ou simplesmente observando as performances de choros
rápidos e alguns lentos, com clara preferência dos músicos pelos mais rápidos. É
comum os solistas realizarem seqüências de sambas, bossa-nova ou baiões, que são do
agrado do público. A partir das 20h00, o clima de informalidade aumenta, as pessoas
falam mais alto e reagem aos acontecimentos musicais da Roda. Um improviso
impressionante é reconhecido por gritos e palmas tanto dos demais músicos quanto da
audiência. Quanto maior for o número de pessoas, quanto mais sua atenção estiver
voltada para a música, quanto mais elas gritarem, maior será o incentivo para os
65
músicos, e a Roda se torna mais vigorosa, crescendo em volume de som e no andamento
das músicas. Para a última música da Roda, os músicos guardam os choros
“apoteóticos”; dentre os mais comuns tocados, estão Brasileirinho (Waldir Azevedo),
Santa Morena (Jacob do Bandolim) e Aquarela na Quixaba (Hamilton de Holanda).
A música era Cochichando, havia três solistas (cavaquinho, flauta e gaita), mais o violão de 7 cordas, o
violão de 6, o cavaquinho-centro e o pandeiro. O cavaquinho puxou a primeira parte incluindo variações e
improvisos; a flauta a repetiu sem improvisar. Na segunda parte, o mesmo se sucedeu. A partir daí, o
cavaquinista e o gaitista intercalavam improvisos, pedindo as partes da música aleatoreamente, sem
respeitar a forma. A terceira parte já havia sido repetida várias vezes (inclusive com improvisos dos
violões), sem que o tema fosse apresentado. O cavaquinista-centro pediu, então, que algum dos solistas
apresentasse o tema. Quando a música terminou, alguns músicos não esconderam a insatisfação,
66
reclamando muito do excesso de improvisos e do desrespeito à forma do Choro. Seguiu-se uma pequena
discussão, até a próxima música fosse iniciada, e o entrevero esquecido.
Leonardo Benon: O respeito na Roda é todo mundo saber o que fazer e quando fazer. Chego lá na Roda
da Tartaruga, e está todo mundo estudando improviso. Tocou a música, aí repete a segunda ou a terceira
parte vinte vezes. Só o cara que está improvisando é que está gostando. Quem é músico está entendendo
tudo. Mas imagina quem não é? O público não entende nada. Fica aquela coisa massante, igual ao jazz. O
tema dura 30 segundos, mas a música dura duas horas.
Pesquisador: Você acha que o improviso tem que ter um certo limite, então.
Dudu 7 Cordas: Até nas repetições das músicas, a galera esqueceu da forma das músicas (...). Faz três
vezes a primeira, a segunda faz uma vez, aí já muda pra terceira, faz três vezes a terceira. Aí confunde
tudo, porque perde a forma.
Leonardo Benon: Isso é primordial. A forma é primordial. Porque se é uma música de improviso, você
não sabe onde ela vai acabar e o que vai acontecer. Então, pelo menos a forma tem que estar definida.
Pesquisador: Mesmo quando o solista pede para repetir a terceira de novo, por exemplo.
Dudu 7 Cordas: Isso está acontecendo em Brasília, não é só na Tartaruga, a gente tem a referência da
Tartaruga, porque a maioria dos músicos de Choro estão se encontrando lá, e ela se tornou a maior Roda
de Choro aqui de Brasília. Os solistas, e até mesmo os violonistas, ficam toda hora pedindo para
improvisar, toda hora falam tal parte para mim, para mim. Aí então acaba afetando a forma, porque é um
tal de pedir para mim, para mim, que a gente não sabe se faz uma vez a [parte] A, outra vez a B. Porque
as vezes você está na A, então alguém fala: três, três [solicitando a parte C, às vezes chamada de terceira
ou parte três], eu pulo do A para o C, sem fazer a forma da música toda. Aí fica sem sentido a coisa, e a
música mesmo, que era pra ser apresentada, não acontece.
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música. Em virtude dessas divergências, o que se observa nas Rodas é uma grande
diversidade de modos de executar os choros, com ou sem improvisos; esses últimos
podendo ser longos ou curtos, ser próximos ou distantes da melodia da música.
Korman (2004) afirma que, atualmente, na nova fase que o Choro vive, seus
praticantes têm familiaridade com a linguagem do jazz americano, e isso vem alterando
o vocabulário de improvisação do Choro. Ele identifica algumas mudanças no modo de
tocar o Choro, dentre as quais as seguintes estão presentes nas Rodas da Tartaruga
Lanches: a forma da música é alterada, possibilitando a improvisação sobre uma
seqüência harmônica cíclica; aspectos da performance jazzistica estão sendo
apropriados e usados livremente; repertório, fragmentos melódicos e fraseados da
tradição brasileira têm sido incluídos no vocabulário comum do Choro; praticantes
estrangeiros estão cada vez mais familiarizados com o gênero. Observamos, contudo,
que a inserção dessas mudanças não se dá de forma harmoniosa, pois gera desavenças
entre seus praticantes. Os relatos dos músicos também permitem concluir que os
68
músicos, em geral, têm plena consciência desse processo de mudança pelo qual o Choro
está passando, e não se furtam a tomar posição perante elas, seja concordando ou
discordando. A existência dessas controvérsias, bem como a possibilidade de introduzir
inovações no modo de tocar o Choro, indicam que a Roda de Choro da Tartaruga é um
contexto onde é possível a renovação da tradição do Choro.
De fato, Roberto Moura (2004), quando afirma que a roda é a matriz do samba,
está a dizer que é precisamente nesse contexto em que se processa o desenvolvimento do
gênero; ou seja, é na Roda que as inovações são testadas, podendo ser aceitas e
incorporadas ao gênero ou não. O mesmo é válido para o Choro. As Rodas da Tartaruga
são locais onde esses testes podem acontecer, e onde as polêmicas e controvérsias
acerca das inovações ao gênero podem ser discutidas e amadurecidas. Também estão
presentes, na Tartaruga Lanches, as seguintes características da Roda de Samba
apresentadas por Moura (2004): compadrio, amizade, lealdade, hierarquia e
informalidade. Também é nítido o caráter doméstico e familiar da relação entre músicos
e boa parte da audiência. O fato de os músicos tocarem para os músicos e da Roda
cobrar que toquem juntos, sem predeterminações de arranjos ou interpretações, reforça
o caráter de construção coletiva da música. A tradição se renova, então, pela constante
reformulação interpretativa das composições.
69
empregados pelos chorões, ao se referirem aos duelos, se assemelham àqueles do
universo da capoeira (cair, derrubar, levantar, etc.); em um dos relatos, inclusive, um
cavaquinista chegou a comparar o duelo da Roda de Choro com o jogo da capoeira.
Com efeito, John Blacking (1995, p. 31) afirma que a função da música é
melhorar, de algum modo, a qualidade da experiência individual e das relações
humanas; sua estrutura é reflexo dos padrões das relações humanas, e o valor de uma
peça musical como música é inseparável de seu valor como expressão da experiência
humana. Com outras palavras, o mesmo afirmou Márcio Marinho, o virtuoso
cavaquinista das Rodas da Tartaruga: eu acho que tocar bem é você se relacionar bem
com seus amigos de trabalho, é saber ouvir as pessoas mais experientes. Tem coisas
que estão fora da música. Tocar bem não é só tocar rápido e limpo; tocar bem, em
certos ângulos, está muito mais fora da música do que dentro dela.
70
B2. No Palco do Choro
71
frente de suas bandas, encantava o público com composições e arranjos inovadores. Os
salões da aristocracia carioca serviam de palco para Chiquinha Gonzaga demonstrar
suas habilidades ao piano. Ernesto Nazareth ocupava com tangos, maxixes e mazurcas,
a sala de espera do cine Odeon. Nas três décadas iniciais do século XX, os auditórios e
estúdios das rádios brasileiras difundiam o Choro para os quatro cantos do país,
enchendo de prestígio os chorões e os regionais da época.
Nos dias atuais, podemos encontrar uma grande quantidade de contextos onde
ocorrem apresentações formais, como teatros, casas de espetáculos, clubes, auditórios e
outros. É de extrema importância, para o estudo do Choro, as análises dos contextos de
apresentações formais. As apresentações são valorizadas no ambiente do Choro, sendo,
por vezes, o principal critério de julgamento de um músico ou conjunto. Assim sendo, é
praticamente obrigatório para o reconhecimento de um instrumentista popular (chorão
ou não) ter habilidade e bom desempenho em uma apresentação musical. Como já
mencionado, os discursos dos chorões apontam diferenças de performance entre os
contextos da Roda de Choro e da apresentação formal. Neste capítulo, serão
identificados e analisados os conceitos e percepções de chorões de Brasília acerca da
apresentação formal. Serão utilizados, para tanto, observações de apresentações
realizadas no Clube do Choro de Brasília, uma casa de espetáculo especializada em
Choro, bem como relatos de chorões discorrendo sobre os contextos das apresentações
formais e sobre o Clube do Choro.
A começar pela porta de acesso, que fica atrás do palco, e o pé direito baixo, que
mede aproximadamente 3 metros, observa-se a inadequação desse espaço para abrigar
uma casa de espetáculos. Para a acomodação do público, no lugar de poltronas, há
cadeiras e mesas de bar, resultado da deliberada intenção de reduzir a formalidade do
ambiente. Nas mesas de bar são servidas comidas e bebidas. O palco fica encostado na
primeira fileira de mesas. Suas dimensões são pequenas: aproximadamente 4 metros de
comprimento, 2 metros de profundidade e 30 cm de altura. Nas paredes, encontram-se
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expostas fotografias de grandes chorões, e de shows do próprio Clube. No local, cabem
aproximadamente 200 pessoas sentadas, e o serviço de bar é feito no balcão e nas
mesas. O camarim dos músicos é improvisado em uma sala de aula da Escola de Choro
Raphael Rabello, que funciona em edificação anexa ao Clube.
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(violão de 7 cordas), Rafael dos Anjos (violão de 6 cordas), Márcio Marinho
(cavaquinho), Tonho (pandeiro) e Reco do Bandolim. Em alguns casos, a depender das
peculiaridades da instrumentação, arranjo e repertório usado pelo convidado, o Choro
Livre cede o lugar a outro grupo de acompanhadores. Muitas vezes, ex-integrantes do
Choro Livre, como Alencar 7 Cordas e Augusto Contreiras, são convidados a
acompanhar o artista. Outras vezes, o artista convidado prefere ser acompanhado por
bateria, baixo e violões; nesses casos, outros músicos, ligados ao Clube ou à Escola de
Choro, são chamados a realizar as apresentações. Em raros casos, o artista principal traz
seu próprio grupo de acompanhadores.
As apresentações costumam ter início por volta das 22:30h. Todavia, o público
começa a chegar às 21:00h. Durante a espera, aproveita para beliscar alguns petiscos e
beber alguma coisa, instaurando, assim, um clima informal no local. Interessante
observar que uma parte da audiência, formada por músicos de Brasília, geralmente
ligados ao Choro, reúne-se do lado de fora do Clube, até o início do show, numa espécie
de concentração. Aproveitam esse tempo para tecer considerações sobre o trabalho do
artista convidado, ou simplesmente botar a conversa em dia. Outro motivo para esse
encontro é que esses músicos, freqüentadores assíduos do Clube, raramente fazem
reserva de mesa. Por isso, são forçados a esperar o público que fez reserva se acomodar.
Só então, perto de começar o show, tentam encontrar algum lugar vago nas mesas. Se
não encontrarem – isso acontece quando o artista a se apresentar é um nome de peso -
acomodam-se na lateral do palco ou na parede ao fundo de frente para o palco, próxima
ao bar e aos banheiros. Enquanto não começa o show, o volume da conversa no interior
do Clube é alto, e, mesmo com dificuldades, as pessoas transitam sem cerimônias por
entre as mesas. Enquanto isso, no camarim, o artista convidado aproveita para ajustar os
últimos detalhes da apresentação com os acompanhadores. Minutos antes do início da
apresentação, as luzes de serviço se apagam indicando o inicio da programação. Em um
pequeno telão é apresentado um vídeo institucional dos patrocinadores. Por fim, sobe ao
palco o mestre de cerimônia, que é também o Presidente do Clube. Nesse momento, as
luzes do palco se acendem, a platéia silencia e o contexto anteriormente informal cede
lugar a um instante solene. O presidente, então, oferece as boas vindas ao público,
orienta as pessoas a não conversarem durante a apresentação e lê uma pequena biografia
do convidado. Anuncia primeiramente os músicos acompanhadores, e só então chama
ao palco a atração da noite.
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As apresentações acontecem nas quartas, quintas e sextas-feiras. Em geral, o
público da quarta-feira é menor; e é nesse dia que muitas mesas ficam reservadas a
convidados e patrocinadores, que nem sempre aparecem. Com a realização de apenas
um ensaio antes da apresentação, o entrosamento do solista com o conjunto se
desenvolve durante os três dias de show. O resultado disso é que na sexta-feira as
performances são melhores. A seguir serão descritas algumas dessas apresentações
realizadas no Clube do Choro.
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No dia 07de julho de 2008, sexta-feira, foi a vez de Paulo Sérgio Santos se apresentar,
acompanhado do Choro Livre. Diferentemente de Malta, o músico montou para a apresentação um
repertório essencialmente chorístico, com poucas músicas do homenageado, e inserindo várias obras do
compositor Guinga. O grupo Choro Livre mostrava conhecer bem o repertório do convidado. Tinham
pleno domínio da harmonia e das convenções. Podia-se notar que, embora fosse uma apresentação com
repertório definido, o clima informal do show lembrava o de uma Roda de Choro. O violonista de 7
cordas Henrique Neto ousava experimentar novas baixarias para choros conhecidos, que imediatamente
eram respondidas pelo violonista Rafael dos Anjos e pelo cavaquinista Márcio Marinho. O convidado,
percebendo este entrosamento, incentivava os músicos, e permitia que improvisassem bastante nas
músicas. O Choro Livre, em alguns momentos, passava da posição de coadjuvante a protagonista do
espetáculo. Na segunda parte do show, o clima informal instaurado pelos músicos permitiu que o próprio
público opinasse acerca do repertório. Embora com o repertório definido, o convidado, respondendo a
uma solicitação de alguém da platéia, tocou o choro Gargalhada de Pixinguinha. Terminou a
apresentação tocando uma série de choros com andamento muito rápido, arrancando do público aplausos
e assovios entusiasmados.
No dia 12 de setembro de 2008, o convidado foi o flautista e saxofonista Eduardo Neves. Para
essa apresentação, o convidado optou em substituir o Choro Livre por um conjunto formado por bateria,
baixo elétrico e violão 7 cordas. Os integrantes do grupo eram todos músicos de Brasília. O convidado
chamou ainda o virtuose trompetista brasiliense Moisés Alves para dividir com ele os solos. A presença
de um saxofone e um trompete dividindo os solos indicava que a noite seria dedicada ao Choro de
Gafieira. No repertório, além de composições próprias, o convidado tocou maxixes e choros de gafieira.
Além disso, foram incluídas algumas músicas do homenageado Tom Jobim, como Garota de Ipanema,
Corcovado, Luiza, Chega de Saudade entre outras. Todas, porém, foram tocadas ao ritmo do Choro. Essa
leitura da Bossa Nova feita pelo convidado acertou em cheio o gosto da audiência presente nesse dia, e
todos respondiam com aplausos esfuziantes. Reconhecido no ambiente do Choro como exímio
improvisador, Eduardo Neves não decepcionou. Atendeu todas as expectativas do público e preencheu o
Clube com seus improvisos vigorosos. Embora os músicos acompanhadores tenham sido arregimentados
especialmente para essa apresentação, mostravam-se bastante entrosados. Isso, em parte, deve-se ao fato
de todos terem bastante intimidade com o gênero. O show contou ainda com participação em uma música
do bandolinista brasiliense Dudu Maia. Ao final da apresentação, uma parte do público dançava, enquanto
outra aplaudia euforicamente.
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funciona na maioria das vezes. Observa-se a alternância de momentos solenes e
descontraídos. O Presidente do Clube do Choro abre oficialmente a apresentação em
tom sentencioso tendo em vista atentar o público para a seriedade do que está por vir, e
impor o respeito merecido, não somente àquela apresentação, mas ao Choro de forma
geral. Antes disso, porém, ele mesmo passeia entre as mesas, cumprimentando amigos,
bebericando alguma coisa e jogando conversa fora, como se estivesse no botequim da
esquina. O público compreende a dinâmica da alternância entre formalidade e
descontração e participa dela, fazendo respeitoso silêncio durante as músicas. Pelo fato
de a platéia ser um bar, o barulho dos copos, talheres e garrafas não cessa, ficando
sempre no fundo das músicas, e remetendo mesmo pomposas apresentações aos ares do
mais singelo e modesto boteco. Apesar disso, em alguns casos, a formalidade é maior,
principalmente quando o artista convidado assim requer. De fato, é ele que estabelece
sua relação com o público e o grau de proximidade entre audiência e músico. Em certos
casos, é possível observar que o artista mantém formalidades até com os músicos
acompanhadores; nesses casos, os garotos do Choro Livre não esboçam sorrisos e
mantêm-se sérios e concentrados até o final da apresentação.
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responsabilidade e do desafio de tocar naquela casa. Dessa maneira, são forçados a
estudar parte do repertório do homenageado, ou mesmo mergulhar a fundo em sua obra.
Isso implica que, mesmo sendo músicos consagrados, no instante que aceitam o convite
da produção do Clube, assumem um compromisso que irá demandar esforços e estudos.
Reco do Bandolim, presidente do Clube, fala sobre isso:
Reco do Bandolim: Fizemos um projeto chamado Caindo no Choro, com o objetivo de mostrar que a
música brasileira é uma só. Foi um projeto corajoso para burro. Então, o que a gente fez? Entramos em
contato com o Zimbo Trio. Eu liguei para o Hamilton Godoi e disse: eu gostaria de te convidar para tocar
no Clube do Choro. Ele disse: eu não sou chorão; eu disse: é exatamente isso, a gente quer ver o Zimbo
Trio tocando Choro, o que você acha? Que tal esse desafio? Eu disse: vamos fazer meio show de Choro, e
meio show de Bossa Nova, porque a gente quer ver vocês tocando Bossa Nova também. Aí, nós botamos
Zimbo Trio no Cai no Choro. Foi o ano inteiro assim. Pepeu Gomes... eu conheci Pepeu nos Novos
Baianos... bandolinista, tocava Lamentos, Noites Cariocas, Brasileirinho, Tico-Tico. Eu disse: Pepeu... ele
disse: você só convida Armandinho - com aquela brincadeira - nunca me convidou. Eu disse: Pepeu, eu
quero te convidar, mas tem um detalhe, eu quero que você venha de bandolim, eu quero que você toque
com um Regional. Ele disse: você está brincando! Tem 20 anos que eu não toco bandolim. Eu digo: Você
toca bandolim demais. Pega essa bandola, vamos fazer um show aqui em Brasília com o Regional. Não é
com negócio de bateria e baixo não. Pô, Reco, será? Eu digo: vamos embora. Então foi Pepeu Gomes Cai
no Choro. Aí Pepeu veio tocar Choro. Aí saiu matéria no Correio Braziliense, dizendo: o Reco está
acabando com o Choro, isso é um absurdo. Maurício Einhorn, que não é do Choro, um cara mais da bossa
nova, do jazz. Eu disse: pô, Maurício, venha! Já pensou você tocar Pedacinho do Céu nessa sua gaita?
Mesma coisa, todo mundo reagindo, mas ele tocou. Então isso daí deu uma abertura para o Clube. Hoje
vem Wagner Tiso, vem Léo Gandelmam... Ele mesmo nunca foi do Choro, e ele agradece a gente: eu
agradeço a você e ao Clube pela oportunidade de conhecer gente que eu não conhecia, o Garoto por
exemplo. E ele fez um show no clube só de Garoto, ficou encantado com Garoto.
Reco do Bandolim: Sabe qual é o resultado disso? É que ampliou o público que freqüenta o Clube do
Choro, o tipo de gente que ia ao clube. Por exemplo, quando a gente convidou o Zimbo Trio, eu percebi
que um público da bossa nova, fã do Zimbo Trio - gente mais madura - foi para o Clube. Quando
convidamos o Pepeu, uma geração mais nova de guitarristas, gente que nunca, jamais iria ao Clube do
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Choro para ver Altamiro Carrilho ou Ademilde Fonseca. Começaram a ir, pô, no Clube do Choro. De
repente vem o Wagner Tiso. Pô, eu nunca vi ele tocar Choro. Então, qual é o comentário que se faz do
Clube? Nêgo vai ao Clube sem saber quem vai tocar, mas sabe que é coisa boa. Então, isso é uma coisa
que abriu os horizontes, e contribuiu nacionalmente com esse espírito.
Rafael dos Anjos: Tem artista que nunca manda [os arranjos]. O Paulo Moura sempre manda as coisas em
cima da hora. O Hermeto foi muito difícil, porque a leitura do lance já é difícil, saca? A música dele já é
difícil.
Rafael dos Anjos: Muito! Muito! É um fogo cruzado na hora, bicho! a gente está rindo ali, mas o couro
está comendo.
Márcio Marinho: Com Carlos Malta, eu fiquei com medo, porque ele mandou um monte de partitura.
Ainda por cima, tinha altas paradas apagadas. Aí eu falei: putz, e agora? Como é que eu vou ler esse
esquema? Aí tive que ficar decifrando, só que deu tudo certo.
Tonho do Pandeiro: Te dou um exemplo, a última vez, não essa que ele veio aqui... Paulo Moura, a última
vez que eu toquei com ele, ele trouxe umas duas composições novas que nós não conhecíamos. Para mim,
eu achei um pouco difícil, como os outros músicos acharam também. Então eu tive que gravar, e ele
chegou na terça-feira. Nós ensaiamos uma hora e pouco, para tocar na quarta à noite.
Reco do Bandolim: Para esses meninos, o Choro Livre, especialmente o Frango, o Rafa e o Henriquinho,
ao longo desses 4 anos, foi a melhor escola que eles poderiam ter na vida. Porque o que acontece - agora
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eu estou aliviando eles um pouquinho, porque um entrou na universidade, o outro formou um grupo, o
outro está fazendo uma coisa. Então, eu tenho aliviado temporariamente, porque nesses últimos 4 anos,
cada semana eles tocavam um repertório diferente. Aí vinha o Carlos Malta, que é uma coisa de louco, o
Léo Gandelman... Arranjos complicados. Então, esses moleques tiveram uma escola que é a cada semana
você ter 16, 18 músicas com arranjos. Você imagina que loucura é isso.
Márcio Marinho: O especial do Clube do Choro é que já passaram altos artistas por ali. O bom e de você
estar acompanhando neguinho que tem nome, isso é que é importante para caramba. Eu acho que isso é
um dos pontos mais importantes.
Rafael dos Anjos: Os shows do Clube do Choro... Eu estava sempre lá. Muita gente, na época, falava:
Pôxa, mas o Choro Livre toca demais aqui! O artista nunca vem com o grupo. O Choro Livre nem sempre
dá certo com o artista. E aí eu nunca achava isso. Porque o trabalho que os caras faziam lá era um
trabalho de total risco, porque o artista chegava na terça, ensaiava, e na quarta já tinha show. Até hoje é
assim. Então tinha que memorizar aquela porra toda. Muitas vezes, o cara não mandava a partitura. Aí eu
gostava era daquele fogo ali, como o cara ia resolver aquele lance, saca? Porque ali você estava dando a
sua cara à tapa. Eu gostava desse lance. E os caras resolviam sempre, não tinha papo furado. Os caras
tocavam mesmo. E eu via todos os shows, chegava em casa tentava tocar alguma coisa.
O relato do violonista Rafael dos Anjos deixa claro que seu objetivo de ouvinte
estava focado no Regional, e não no solista, embora essa fosse a principal atração da
noite. De fato, a audiência do Clube do Choro é conhecida e reconhecida por seu
elevado nível de conhecimento do gênero e de exigências nas apresentações. Além de
ser freqüentado habitualmente pelos instrumentistas de Brasília, o Clube recebe os
aficcionados pelo Choro, que conhecem o gênero em profundidade. A composição da
audiência do Clube é um fator que aumenta o nervosismo e a tensão associados ao seu
pequeno palco. Os músicos fazem considerações sobre o público do Clube do Choro:
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Tonho do Pandeiro: Por mais que a gente conheça aquele público que está lá, tem vários amigos, amigos
músicos, e justamente, é por causa disso, você está no palco... Eu penso: olha o Tarzan ali, se vacilar,
entre aspas - todo mundo dá uma vacilada... A gente quer mostrar o melhor. Então a gente fica nervoso.
Não assim: meu amigo está aqui e vai me criticar. Quem é músico sabe, o erro é uma questão de milésimo
de segundo. Pode até ter uma brincadeira: ê, Tonho, vacilou hein! Não no tom de desmerecer o
companheiro. Mas dá esse friozinho na barriga.
Márcio Marinho: No Clube é um esquema que neguinho vai para te ver mesmo, vai para te ver tocar. Ele
vai lá, vai todo mundo ficar em silêncio. Se você errar, pode ser que todo mundo perceba ou não perceb.
Então, é um negócio que você tem que estar mais concentrado.
Rafael dos Anjos: (...) não é um público besta, vai lá para ouvir a música, sabe o que está ouvindo, sabe o
que quer ouvir.
Henrique Neto: É o lugar que é assim, requer muita concentração, por ter vários músicos na platéia, o
nível lá é muito alto. Músicos renomados e fantásticos. Você fica muito exposto. É um palco pequeno.
Você acha que isso não tem importância, bicho, mas você está ali de frente para o público. Você está a
menos de um metro do público. Então, qualquer errinho, cara, você está muito exposto ali. Então, tem que
se concentrar. O público entende do assunto.
Rafael dos Anjos: Em qualquer apresentação profissional o músico acaba ficando tenso, e perde um
pouco da qualidade. Quando erra, para o público eles não percebem, mas para os músicos, eles percebem
na hora.
Por tudo isso, o contexto da apresentação mostra-se, além de mais formal, mais
tenso também para os músicos. Em contrapartida, as atuações no palco são preparadas
em maiores detalhes, tornando-se mais lapidadas e permitindo que os músicos estejam
próximos dos seus limites em termos de concentração e perfeição nas execuções das
músicas. Desse modo, as apresentações, principalmente no Clube do Choro, acabam se
tornando importantes locais para observação e aprendizado do gênero. O jovem
violonista Rafael dos Anjos, que atualmente integra o Choro Livre, menciona freqüentes
idas ao Clube do Choro, no início de sua formação musical, para observar o Choro
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Livre de então. Para ele, essa experiência foi importante a ponto de definir os objetivos
de sua vida musical. Ele disse:
Rafael dos Anjos: O Clube do Choro é a maior casa de música instrumental do Brasil. É difícil tocar lá,
né, bicho? Porque é uma responsabilidade muito grande. Porque você está pisando num palco em que
pisaram os maiores músicos do Brasil, saca? Pisam os maiores músicos do Brasil, Alencar, Augusto,
Yamandú, enfim, só cobra! E você é o violonista do lance ali, isso pra mim é uma vitória. Então é muito
orgulho tocar lá e dividir o palco com esses caras, Dominguinhos, Oswaldinho, Sivuca. É uma vitória,
porque era um lance que eu almejava quando eu era moleque. Ia lá ver os caras tocando e falava: pô! Isso
é o que eu quero para mim. Poder integrar esse Regional aí, poder tocar com esses artistas, estar vivendo
essa experiência.
Rafael dos Anjos: eu toquei com Déo Rian, e a gente tocou um repertório. O Déo já é um cara mais velho,
e ele trouxe o Sérgio Prado, que é um cavaquinista. Um cara super experiente. Então, eles gostam de tocar
o Choro do Regional pé-duro, saca? Que é um lance que eu adoro também. Então, a gente tocou um
Noites Cariocas do jeito que o Época de Ouro tocava, com aquela levada e aquele suingue. (...) Na outra
semana, eu toquei com o Danilo Brito. Apesar dele ser um chorão com alma de chorão antigo, apesar de
ser novo, ele já toca as coisas com mais vigor, mais rápidas, saca? Vai tocar 1x0, também é mais rápido.
E ele tem habilidade para isso. Aí você percebe que os aplausos para o Déo Rian eram normais. Mas, para
o Danilo, a casa ia abaixo.
Augusto Contreiras: [No Clube] tem músico que mostra muito virtuosismo, e se esquece que está tocando
para um público mais tradicional. Ele quer mostrar seu potencial, parece que é só músico e maestro que
está ouvindo ele. A gente que conhece de música vai entender a intenção dele, mas o público não
agüenta. Então não adianta, você tem que tocar de acordo com o público local. Se está tocando, assim,
para um público que está mais acostumado com aquela coisa mais tradicional, você tem que mudar um
pouco. Então, o cara pode ter muito virtuosismo, mas às vezes alguém pode sair de lá e dizer: o cara toca
muito bem, mas eu não gostei. O cara faz muito improviso e coisa e tal, né? Lá no Clube do Choro
mesmo. Uma vez, não sei quem estava tocando, não sei se foi o Armando Macedo, mas na hora do
intervalo, algumas pessoas saíram. Diziam: poxâ! Eu vim aqui para ouvir Choro, uma coisa mais
tradicional, e não ouvir virtuosismo e demonstração de habilidade.
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Não cabe, nesta seção do trabalho, discutir em profundidade os debates presentes
no Choro, mas apontar para o fato de que eles estão presentes no Clube do Choro,
permitindo a seus freqüentadores que conheçam também as controvérsias, dissidências e
polêmicas, que fazem parte do gênero, e são cruciais para sua história e
desenvolvimento. O Clube do Choro, por tudo o que faz e representa para o Choro, é
uma das mais importantes instituições ligadas ao gênero em todo o Brasil. Desde sua
inauguração, subiram em seu palco os mais destacados instrumentistas. Embora seja
ainda jovem, com pouco mais de 30 anos, o Clube já é considerado um respeitoso
guardião da tradição do Choro. A carga histórica dessa casa é mais um fator que gera, se
por um lado nervosismo e ansiedade, por outro, orgulho e honra para os músicos que
pisam em seu palco. Os chorões mencionaram esse aspecto do Clube nas entrevistas:
Rafael dos Anjos: [O Clube do Choro] é um palco que exige muito de você. O Daniel Santiago disse: eu
já toquei com o Chick Corea lá na Europa, vários palcos, festival de jazz de Montreux, mas quando eu
chego aqui no palco do Clube do Choro, dá um frio na barriga, véio!
Márcio Marinho: No Clube do Choro é tranqüilo. Eu não tenho medo não. Nas primeiras vezes que eu
ficava assim com receio, porque eu nunca tinha tocado no Clube do Choro, nesse esquema dos 3 dias, de
acompanhar um artista com nome. Acho que foi nas primeiras vezes, com artista que eu não conhecia.
Léo Benon: Eu acho importante eu estar tocando em um palco que o Sivuca tocou, ou que foi o
Pernambuco do Pandeiro que correu atrás pra fundar. Vale a pena por isso. (...). Você vai na França, e diz
que já tocou no Clube do Choro de Brasília, as portas abrem.
Fernando César: a primeira vez que eu toquei lá, eu tinha dez anos de idade. É a minha casa. Eu estou
tocando na minha casa. Para mim é isso. Em relação ao ambiente, é a minha casa, eu me sinto bem, é o
meu lugar. Não é arrogância, é o meu lugar, onde eu fui criado para a música. Quando eu comecei a tocar
ali, era Roda de Choro. Não tinha esse esquema de show como é hoje. (...) Teve uma época que eu toquei
no Clube do Choro, e durante um bom tempo eu tocava bem relax. Depois de um tempo, eu comecei a
sentir meio pressão assim... Não sei o que aconteceu, que eu fui me sentindo muito pressionado para tocar
lá, e até mesmo em outros lugares também. Lá era complicado também porque tinha pouco tempo, e
pouco ensaio, aí tem que tocar lendo. Aí você fica meio tenso.
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Clube, e tocar no Clube, sejam atividades corriqueiras nas vidas dos chorões candangos,
eles não perdem de vista o caráter singular da casa:
Dudu Maia: [O Clube do Choro] é uma das casas mais respeitadas no Brasil de música instrumental. Foi o
primeiro lugar que o Choro foi cultuado com todo respeito e carinho.
Augusto Contreiras: Eu acho um espaço especial realmente, porque ali é uma vitrine. Você toca lá, as
pessoas vêm te cumprimentar. Eventualmente, às vezes, uma pessoa chega e diz assim: olha, você toca
muito bem. Você tem um outro grupo aí? Eu estou precisando de um grupo aí para tocar num local tal.
Então é uma espécie de vitrine. Então eu acho um local especial realmente. É um público que aplaude,
que presta atenção.
Laércio Pimentel: É um espaço onde se toca música de qualidade, com bons instrumentistas, e mantém
viva essa chama da música instrumental brasileira, do Choro, que é uma música tipicamente brasileira. É
ótimo ter esse espaço lá. Já me apresentei várias vezes lá, foi legal, fui muito bem tratado. Acho
maravilhoso tocar lá.
Léo Benon: [O Clube do Choro] é a maior vitrine da música instrumental do Brasil. Já vi o depoimento de
várias pessoas que vão tocar no Clube do Choro. Os caras já consagrados pedindo para vir no outro ano
de novo. Eles falam: nunca toquei em lugar que você toca e as pessoas calam a boca.
Rogerinho do Pandeiro: Para o chorão, tocar no Clube do Choro é tocar no templo sagrado. Ele se tornou
o templo do Choro nacional. Tem músicos, que nem são músicos de Choro nem nada, e falam: eu quero
conhecer o Clube do Choro. (...) Mas só tocam no Clube do Choro músicos do nível do Hamilton de
Holanda, Armandinho, Hermeto Paschoal, Gabriel Grossi, João Donato, Paulo Sérgio Santos.
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Conforme já mencionado, as apresentações formais de Choro aconteceram ao
longo de toda a história do gênero, paralelamente e complementarmente às Rodas. A
observação da história do Choro mostra que seus momentos de apogeu e decadência
estão fortemente ligados à existência de espaços de apresentação. Até mesmo as Rodas
vão se tornando raras quando escasseiam os palcos do Choro. Por isso, o Clube do
Choro é tão importante. Sem dúvida, é graças à sua existência que botecos, esquinas e
quintais de Brasília desfrutam de Rodas animadas, cheias de chorões de todas as idades.
Essas Rodas, por sua vez, realimentam o Clube, ao trazer para ele as novidades que
somente uma Roda é capaz de criar. Entre a Roda de Choro e a apresentação formal
existem diferenças significativas; não se toca em um palco como se fosse em uma Roda,
e vice-versa. Mas ambos os contextos são fundamentais para a manutenção e o
desenvolvimento do gênero. É o Clube do Choro, sem dúvida, um dos maiores
responsáveis pelo enraizamento do gênero em Brasília. Conseqüentemente, o Choro
aqui será tão mais vigoroso quanto mais forte for o Clube do Choro como instituição.
Assim, qualquer iniciativa visando proteger a tradição do Choro na cidade não poderá
ignorar o Clube, embora possa atuar fora de seus limites também.
Cabe destacar, ainda, que nem tudo são flores. O Clube do Choro depende de
patrocínios de empresas, que se amparam na Lei de Incentivo à Cultura. A cada ano, a
presidência do Clube tem que renovar projetos, a fim de conseguir verbas para manter
seu funcionamento. Desde a reforma do Clube, recursos foram conseguidos todos os
anos, mas não há garantia alguma que ano que vem, ou daqui um ano ou dois, haverá
recursos para o Clube. Recentemente, o Governo do Distrito Federal iniciou as obras de
uma nova sede para o Clube, com projeto de Oscar Niemeyer, ao lado da atual, bem
maior, com espaço adequado para a Escola de Choro, inclusive. Essa é a maior
conquista do Clube do Choro de Brasília desde sua fundação. Certamente isso irá
fortalecer o Clube, mas não é ainda suficiente. São necessárias garantias de estabilidade
para o Clube, caso contrário, a instituição não se fortalece, pois dependerá sempre do
aporte de recursos dos patrocinadores.
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reclusão. Tais períodos estão associados ao apoio do Estado ao gênero e à cultura de
forma geral. Muller (2005) afirma que o ressurgimento do Choro ocorrido na década de
1970 teve a boa parte de seus eventos envolvida com patrocínio estatal. O Departamento
de Cultura da Secretaria de Educação do Rio de Janeiro, por exemplo, promovia
anualmente o Concurso de Conjuntos de Choro, que incentivou o surgimento e a
consolidação de vários grupos. A reboque dos eventos produzidos por órgãos
governamentais, ou amparados por patrocínio estatal, entidades privadas – gravadoras,
produtoras, redes de televisão, entre outras – voltaram-se para o Choro, como foi o caso
da Marcus Pereira. Muller (2005, p. 57), de fato, afirma que a indústria fonográfica
chegou atrasada à explosão do Choro. Mas o mercado, sozinho, não é capaz de manter o
Choro no topo das paradas de sucesso gerando lucros exorbitantes. Por isso, o apoio do
Estado é vital para o gênero. Quando, na década de 1980, os órgãos de apoio à Cultura
foram desmantelados, o Choro sofreu forte retração; gravadoras, emissoras de televisão,
produtoras de eventos, que antes pareciam ter compromisso com o gênero, perderam
interesse.
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instabilidade na instituição, que vive na corda bamba, com a necessidade constante de
aprovação de seus projetos nas empresas “patrocinadoras”. De fato, isso não é uma
política cultural de governo, pois as políticas de cultura são elaboradas no âmbito da
iniciativa privada, e somente os recursos são fornecidos pelo governo. Trata-se,
portanto, de uma inversão, uma vez que o Estado deveria definir as prioridades, e
promover a participação da iniciativa privada em suas políticas culturais.
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PARTE C - MÚSICA
Paulão: O chorão é o cara que ouve Choro, toca Choro. Um cara que vive o Choro, porque uma
diferença... Assim, eu já era musico antes de tocar bandolim, tocava violão e guitarra. (...) Porque não
adianta o cara ser músico e tocar um chorinho, e dizer que é um chorão. Isso não é bem assim. (...) Tem
muita gente que nem é músico de Choro, e que eu considero chorão. Por exemplo: Valci, Chico Neto,
Edith, entendeu? As pessoas vivem o Choro, estão no meio dos músicos que tocam Choro, e o músico,
para ser chorão, precisa estar no meio. Não adianta o cara ser um excelente músico erudito, ou músico de
jazz, pegar a partitura de choro e simplesmente tocar. O cara tem que saber o repertório, tem que saber as
histórias. Ele tem que conviver. Enfim, para ele ser um chorão, ele precisa viver o Choro.
Márcio Marinho: Eu me considero um chorão por eu ter começado o meu aprendizado já no Choro. Então
eu me considero um chorão sim, com certeza, desde o início.
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Henrique Neto: A convivência , nem precisa ser uma aula não. Você está convivendo com uma pessoa
que toca bem, aquilo te enriquece muito. Até é uma coisa passiva. Você nem está pensando muito no que
você está aprendendo, mas isso está acontecendo de uma maneira ou de outra.
Marcelo Lima: Acho que o chorão é aquele cara que vivencia mesmo o Choro o tempo todo. Ele tem o
Choro no sangue e é uma coisa que ele quer participar. É uma coisa de roda mesmo, coisa de botar o
instrumento no sereno, mais ou menos isso. O chorão quer estar na Roda. Isso causa um problema,
quando a gente faz definições e delimitações tem outros que talvez estejam fora disso e sejam até mais
chorões. O Jacob mesmo é um que não ficava no sereno, ele não tinha essa personalidade. Os caras iam
para a casa dele para tocar. Já o Pixinguinha não, ele tocava na noite, né? Então são dois superartistas,
provavelmente as maiores referências do Choro, junto com o Waldir, um era da noite – o Pixinguinha,
que teve origem negra, filho de escravo, teve que batalhar a vida por miúdos, vendia as músicas dele
baratinho, fazia toda aquela armação; - e o Jacob, outro supergênio, mas que tinha o emprego público
dele, tinha essa visão de família, de segurança, de estabilidade, que muitas vezes não faz parte do metier
da música. O tipo de vida, way of life, do músico. Tem músico que até vira alcoólatra porque outros
músicos eram alcoólatras. Ele nem queria ser não, mas para conviver com os outros, ele entra no meio, e
acaba entrando em uma coisa que não consegue controlar e dança. Eu acho que o chorão é bem isso para
mim, a visão que eu tenho dos chorões que vejo aqui em Brasília são esses que estão na Roda. O chorão
para mim é esse que vai para a música pela música, pela diversão, pelo que a música cria, esse ambiente
maravilhoso que a música cria. De felicidade, de amizade, de conhecer pessoas.
O bandolinista Paulão afirma que para ser um chorão não basta tocar o Choro, é
preciso vivê-lo em sua totalidade. Ele reconhece que a identidade de um chorão revela-
se não apenas nos músicos, mas também naqueles considerados não músicos como o
caso de Valci e Edith. Esse aspecto revela que a preservação do gênero é resultado do
esforço e da contribuição daqueles que compõem, daqueles que tocam, daqueles que
ouvem e daqueles que escrevem sobre ele. Henrique Neto fala sobre o aprendizado
involuntário possível apenas pela convivência com chorões. Marcelo Lima fala também
da identidade do chorão criada na convivência. Ele, contudo, ressalta que existem
diferentes formas de se estar no convívio do Choro, e cita Jacob do Bandolim, sujeito
caseiro, que recebia os amigos em casa, e Pixinguinha, que viveu a boemia. Por
conclusão preliminar, pode-se afirmar que o chorão autêntico relaciona-se com aspectos
do Choro que transcendem a esfera musical.
Augusto Contreiras: Foi com o meu pai, meu pai me levava em Roda de Choro, eu tinha uns 11 anos, 12.
Meu pai nunca foi um chorão autêntico, ele tentou tocar violão de 7 cordas mas nunca conseguiu. Ele
nunca foi assim um solista de mão cheia, ele nunca estudou violão, nunca foi um músico profissional,
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aquela coisa de estudar violão, não sei quantas horas por dia. Ele sempre teve o violão como um hobby.
Ele toca muito samba canção, bolero, essas coisas. Mas foi ele que me ensinou.
Henrique Neto: Foi através do meu pai, dentro de casa, que há muito tempo ele já é músico. Ele tocava
guitarra no início depois começou a tocar bandolim. Desde quando eu comecei a me interessar por Choro
ele já era envolvido com produções de eventos culturais. Aí, em casa mesmo eu tinha contato com os
melhores músicos do Brasil. Armandinho que é amigo do meu pai, Raphael Rabello na época freqüentava
a minha casa. Aí foi bem natural, eu me interessava, ouvia aquilo tudo dentro da minha casa aquele
negócio me encantava, a música, aquela coisa bonita aquela confraternização na Roda, tocando
informalmente também, foi me impressionando, me cativando, até que chegou um dia que eu decidi
entrar na música.
Márcio Marinho: Eu comecei a tocar cavaquinho, eu tinha 13 anos de idade, com o meu tio Brito, Brito 7
cordas. Na época, eu já comecei no Choro, porque ele já tocava chorinho, e era uma música difícil. A
primeira música que eu toquei foi Brasileirinho, inclusive. E quando eu ouvia o Choro eu ficava
fascinado, entendeu? Eu tive sorte, porque o meu tio me fez ter contato com o Choro. Na verdade, isso
vem do meu avô que tocava sanfona e já tocava chorinho. Meu tio pegou essa bagagem e passou para
mim. Uns quatro tios meus já tocavam cavaquinho, e minha família muita gente tocava cavaquinho.
Tinha uns primos dele que tocavam cavaquinho. Meu pai que tocava cavaquinho, que já morreu. Então,
eu acho isso uma sorte, eu ter começado a tocar cavaquinho. Choro para mim foi uma sorte.
Tonho do Pandeiro. A minha relação começou em casa mesmo, meu pai era músico profissional, tocava
Choro , tocava samba. Foi músico da noite e a minha infância foi ouvindo música dentro de casa, e muito
Choro: Raul de Barros, Altamiro Carrilho, aquele da flauta... o Patápio e outros músicos, né?
Fernando César: Meu pai começou a freqüentar o Clube do Choro, aí ele começou a tocar nuns
botequinhos, samba, seresta aí descobriu o Choro. O Evandro Barcellos levou ele para o Clube do Choro
em 79, eu acho. Aí ele comprou um cavaquinho, se empolgou, comprou um porrada de disco de Choro e
aí era o que rolava em casa. A música que estava rolando quando eu despontei para música era o Choro.
Provavelmente por isso a gente foi tocar Choro, os instrumentos sempre soltos em casa, espalhados,
violão, cavaquinho, tinha órgão, tinha escaleta, depois comprou um 7 cordas. Eu comecei tocando
cavaquinho, e tocava escaleta. Mas aí o Hamilton, como solista, tocava mais escaleta. Eu solava choro de
cavaquinho, e comecei a tocar bandolim também. Acho que foi meio natural partir para o violão 7 cordas.
Como meu pai já tinha comprado para ele, eu ainda cheguei a tocar assim mais ou menos um ano: o
Hamilton tocando bandolim e eu tocando cavaquinho.
Reco do Bandolim: Nos anos setenta então, eu, você veja como são as coisas , eu tocava guitarra , eram
os anos da liberação sexual, dos hippies, dos festivais, das drogas. E nós, aqui de Brasília, como de resto
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em todo o país, a música que a gente ouvia era a música americana, era o rock. Eu conhecia todos os
guitarristas de rock. Tanto que eu tinha um grupo de Rock, era o “Carência Afetiva”. Eu tocava guitarra,
eu era conhecido como o Jimi Reco, porque eu tocava todo o repertório do Jimi Hendrix, a palhetada mais
rápida do planalto central, cabelo grande etc.
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primeiro estágio, essa escuta é realizada apenas de forma contemplativa. Mas a escuta
que visa o aprendizado por imitação deve ser feita de forma analítica, com a intenção de
assimilar o maior número de informações contidas no Choro que se escuta. O virtuose
gaitista Gabriel Grossi, em depoimento no filme O Prazer de Tocar Juntos (2005),
afirma que, quando começou a tocar, sempre que ia tirar uma música nova, procurava
extrair o máximo de informações nela presentes. Ele diferenciou a audição por fruição
daquela praticada por músicos, observando que a segunda resulta no conhecimento
detalhado da música. Ele disse que, mesmo antes de começar a tocar, ouvia músicas
buscando conhecê-las profundamente. Praticar essa percepção musical, que não se
restringe apenas a escutar um único elemento musical, possibilita ao músico
compreender de forma mais ampla o repertório, e, como conseqüência, acelerar seu
aperfeiçoamento. Os relatos a seguir demonstram como essa escuta diferenciada é
importante para o aprendizado do gênero.
Henrique Neto. Repertório, escutar muito, perceber os caminhos harmônicos comuns que existem,
principalmente para o acompanhamento. Chega uma hora em que você não precisa decorar o choro,
porque é um estilo. Então, um estilo segue determinados padrões. Então, às vezes eu não conheço um
choro, mas já sei para onde vai. Esse conhecimento do repertório mais amplo possibilita isso. Você
analisa, vê as probabilidades de um caminho acontecer, e você já está mais ou menos ciente.
Rafael dos Anjos: Então eu tiro sempre de ouvido, saca? Pego a gravação, boto para ouvir e vou tirando a
harmonia. Porque a partir dela vai vir o caminho da melodia, e vai vir o caminho do contraponto, né?
Então, com a harmonia certa eu tiro a melodia, e tiro sei lá... algum contraponto que a flauta está fazendo.
Sempre tento tirar o máximo, tento espremer a música inteira. Porque na hora que eu for tocar eu vou ter
vocabulário, saca? Tanto para improvisar quanto para tocar a melodia.
Laércio Pimentel: Primeiro, é como o Alencar uma vez falou para mim: você quer aprender a tocar
Choro, então você tem que formar um repertório de Choro. Os standards. Isso é em qualquer área. Se for
bossa nova, você tem que aprender a tocar Insensatez, as músicas da bossa nova. Começa assim. Aí você
vai aumentando o seu repertório aos poucos. Pega 10, isso ajuda muito, porque as harmonias se repetem
muito. Cada vez que você toca uma música bem tocada já é uma ajuda para outra que vai aparecer. As
melodias mudam, mas os caminhos harmônicos se repetem.
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para Dudu Maia, imitar um grande instrumentista de forma precisa, tocando de forma
idêntica a ele é o modo mais eficiente de estudar e aprender o Choro. Nota-se que a
imitação está presente no aprendizado tanto de iniciantes como de instrumentistas
experientes, como Laércio, Rafael dos Anjos e Henrique Neto. O hábito de ouvir e
tocar, de ver e imitar permanece com os chorões ao longo de suas vidas de
instrumentistas. Nesse sentido, o chorão nunca deixa de ser aprendiz. A imitação não se
restringe às gravações. Observar outros chorões tocando é uma maneira comum de
aprender coisas do Choro:
Leonardo Benon: Tem que ouvir sempre, e tem que ouvir as pessoas tocando. Isso é estudar também. O
pessoal acha que é só ficar numa salinha lá, e estudar. Estudar não é só isso. As idéias, tem que pegar as
idéias das pessoas, entender o que está acontecendo. Senão você fica só fazendo escalas, igual a um
computador.
Augusto Contreiras: Olha só, eu procuro aproveitar e observar o que o cara faz diferente. Ôpa! Ele fez um
acorde diferente ali. Chego em casa vou tentar fazer o que ele fez. Faço no mesmo dia. E, no outro dia, aí
que eu volto naquela questão do ouvido, da observação, percepção. Se você vai ver um cara que
supostamente toca melhor do que você, vai lá para conferir e tentar captar alguma coisa, pelo menos
alguma coisa. Não dá para pegar tudo, mas essa coisa que eu captar, vou tentar incluir na minha bagagem
musical.
Fernando César: Porque você aprende vendo, né, bicho? Eu aprendi assim. Eu tive sorte aqui.
Porque, na época que a gente começou a tocar, o Six trazia chorões aqui pra Brasília. Isso aí foi muito
bom. Eu toquei um bom tempo com o Alencar, só de tocar com o cara e ver o cara tocar... E as
orientações do meu pai, de tirar as músicas do disco, ensaiar todo dia, fazer repertório.
Márcio Marinho: Varejando todo mundo, o meu aprendizado foi muito assim. Eu nunca paguei professor
particular. Primeiro, porque eu não tinha condições. Tive filho cedo, e meu pai e minha mãe também...
Esse negócio de tocar cavaquinho foi um negócio meu, que eu corri atrás por conta própria, que cheguei
um dia e decidi: eu quero ser o melhor cavaquinista. Então eu cheguei e pensei isso. Foi um negócio que
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veio na minha cabeça, entendeu? Aí eu comecei a estudar o cavaquinho mesmo. Eu falei: eu quero ser o
melhor. Igual quando tu vai fazer o vestibular, concurso, que você tem que ser o melhor para passar, tipo
isso. Eu pensei nisso aí: eu quero ser o melhor, não sei se vou conseguir, mas eu vou fazer o possível para
ser.
Tonho do Pandeiro: Primeiro lugar, ouvir muito Choro e depois procurar tirar dúvidas com quem já toca,
uma pessoa mais experiente, e depois praticar. Para aqueles que não têm conhecimento nenhum, procurar
uma escola, um amigo, um professor. Mas, a princípio, ouvir muito.
Rogerinho do Pandeiro: Muito do que eu faço hoje no meu pandeiro, que não é muita coisa, eu aprendi
vendo o George tocar, vendo o Tonho tocar, perguntando. Porque eles são pessoas acessíveis para
caramba, nunca me negaram uma informação. Apesar de eu ter feito aula no Clube do Choro com o
Sandro , tive um semestre de aula lá, no final do semestre ele me falou: olha, Rogerinho, não há mais
nada para te ensinar , agora você tem que estudar, que tocar, que cair no mundo.
Rafael dos Anjos: Eu era pidão para caramba. Sempre fui pidão, sempre cheguei e perguntei mesmo. Se
eu tinha alguma dúvida, nunca tive medo de perguntar. Até porque os caras sempre foram muito abertos.
O que a gente pedisse para eles passarem, eles passavam numa boa. Já fui na casa do Augusto, ele já me
passou umas coisas. Isso eu não nego para ninguém. Eu aprendi assim mesmo.
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liberdade. Tamanha liberdade tem como compensação a necessidade de estar sempre
correndo atrás de alguém, de algum conhecimento ou informação. O modelo de ensino
centrado na liberdade é importante para o próprio Choro, que exige o desenvolvimento
de uma identidade musical própria, única e criativa. É a liberdade do aprendiz que o
permite exercitar, ainda na iniciação musical, sua criatividade. Uma característica
marcante no aprendizado do Choro é o uso das habilidades criativas e inventivas do
professor e do aluno. Henrique Neto reforça o papel do interesse do aprendiz:
Henrique Neto: Porque professor não vai fazer nada por você. Ele vai te orientar, te dar os caminhos, e a
gente vai se criar, a gente vai se instruir. De certa maneira, eu acho indispensável uma orientação. Agora,
são duas coisas: uma coisa é ele te apontar os caminhos; mas, se você não for, não adianta nada. Então, é
50%, eu acho. Principalmente no início da sua carreira musical, você não sabe o que estudar. Depois não
existe mais professor, eu acho. Depois de uma certa maturidade musical, não existe mais o professor, nem
aluno, é uma troca só. É uma coisa que gira, que roda. Porque nem todo mundo vai saber tudo o que eu
sei, e nem eu vou saber tudo que o outro sabe. Então, é sempre uma coisa que roda.
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Marcelo Lima: Aí foi a sorte da minha vida. Eu fui logo encontrar com o Hamilton, e foi por ele que eu
entrei de verdade no Choro. (...). Quando eu encontrei o Hamilton, eu percebi aquela paixão que ele tinha,
que ele tem pelas coisas, e com ele que eu aprendi essas coisas sobre como organizar um evento, como
fazer um show, como organizar uma banda. Porque na convivência com ele... Eu trabalhava nos shows do
Dois de Ouro, eu ia lá ser roadie, eu ia lá fazer essas coisas só para ver como é que eles trabalhavam. Ao
mesmo tempo, eu via como o Hamilton agia no camarim, com a banda, como ele falava com os caras,
como ele tratava os ensaios, como ele tratava um músico por ter ou não ter ido no ensaio. Esse tipo de
coisa eu aprendi com ele ali trabalhando no show, botando cadeira no palco, tirando cadeira do palco,
arrumando troco para bilheteria. (...) Foi um ídolo que eu tive a grande sorte de conviver. Porque a gente
tem muito pouca chance de conviver com os ídolos. Apesar desse pequeno espaço de tempo que eu tinha
para conviver com o Hamilton, porque ele já começou a despontar. Isso foi para mim e foi para o Dudu
Maia também. Eu e Dudu tivemos essa chance. Na mesma época, a gente conheceu ele. (...) Porque
quando você está perto do Hamilton, é difícil você não se contagiar com aquela alegria que ele tem. (...) A
alegria dele contagia todo mundo, e é só coisa alegre que acaba acontecendo com ele. Para mim, as aulas
dele eram tão importantes quanto estar perto dele. Muitas vezes, nas aulas, eu ia lá só para ver ele tocar.
Eu falava: pô, bicho, tem uma música difícil para caramba, toca isso aí pra eu ver como é que faz.
Laércio Pimentel: Quando eu comecei fazer aula com o Alencar, ele foi me demonstrando as coisas,
como é que funcionavam. Até no incentivo, porque você tocando com um camarada muito mais
experiente, ele te acompanhando, vai te dando dicas com relação à técnica do instrumento, qual a melhor
forma de fazer os baixos, tocar ligado... Esse tipo de coisas assim. Ele encurta um caminho no
aprendizado. Já passou por coisas que a gente vai passar, e já dá o toque logo: vai por esse caminho aqui
que é melhor para você.
Rafael dos Anjos: Tem um fato que é legal destacar também, que eu tive aula com o Alencar. Eu tive
aula com o Alencar porque eu queria me aprimorar no lance de tocar o violão de 6 no Regional. Então, eu
ia lá para aula do Alencar e como eu já tocava, ele tirou alguns vícios meus de harmonia, me disse o que
era certo e o que era errado. A preguiça de tocar em certos tons, por exemplo. Deu uma fortalecida
lascada no lance do violão de 6. Era legal porque ele botava o bolachão, e a gente ia acompanhando, ele
tocava o 7 e eu tocava o 6. Ele dizia: agora faz esse baixo aqui, a gente já combinava uns lances assim...
Agora: faz esse baixo; eu dizia: vamos lá... Faz essa terça aqui. Então, tudo que o Alencar me passou foi o
seguinte: tudo o que ele fazia, na segunda vez, no tema, eu tinha que fazer a terça. Então esse era o
desafio. Ele chegava e começava um choro em ré menor, fazia uma frase para começar a música. Quando
voltava a música para a parte A de novo, ele fazia a mesma frase e eu tinha que voltar com a terça. Se eu
não fizesse, a gente voltava desde o começo até eu acertar. Então era mais para treinar esse lance. Ele
começou do Lá, eu tenho que começar do Dó#; eu vou começar a escala de Dó#. Então, era esse o
treinamento. Fora as aulas, e ele sempre me levava para umas Rodas de Choro para a gente treinar. Então,
esse lance do Alencar foi muito bom.
Dudu Maia: Cara, o que eu sempre lembro, o que fez a diferença é que eu não tocava porcaria nenhuma
quando eu conheci eles [os professores], e eles acreditaram em mim. Me fizeram acreditar que eu podia
ser músico, sacou? Os caras lá, o Alencar, o Gamela e o Hamilton, eles tiveram esse papel muito forte.
Eles sempre acreditaram, sempre me incentivaram, vai...vai...vai... Além de tudo o que eles me ensinaram
musicalmente. Eu me lembro bem, foi isso. Eu olhando, há dez anos, eu penso: que bom que eles
acreditaram, porque eu não tocava nada, porcaria nenhuma. Podia ser qualquer um, mas os caras
chegaram e disseram: vai que você consegue! Eles poderiam dizer: vai fazer um concurso aí qualquer,
esquece isso.
O papel relevante dos mestres permite que, no Choro, sejam criadas linhagens de
instrumentistas. Observamos que alguns instrumentistas desempenham com
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proeminência a função de mestres. Um caso importante em Brasília é Alencar 7 Cordas.
Não só os chorões entrevistados, mas a maioria dos instrumentistas acompanhadores
(violonistas, cavaquinistas e bandolinistas) de Brasília já estiveram nas mãos do mestre
Alencar. De fato, Alencar gasta a maior parte de seu tempo dando aulas de harmonia.
Outro importante mestre é Hamilton de Holanda, que, embora não resida mais em
Brasília, formou os bandolinistas atuantes na cidade; aqueles que não foram seus alunos
são alunos de seus alunos. Eis aí a linhagem de bandolinistas criada por Hamilton. Do
mesmo modo, outros instrumentistas, em maior ou menor intensidade, exercem a
maestria.
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organização industrial. Ele descreve a escola como uma instituição que escraviza as
pessoas, pois as torna dependentes dela para poderem aprender. Ele identifica, na
organização social contemporânea, a tendência à tutelarização da vida, ou seja, à perda
da capacidade das pessoas de conduzirem suas vidas. Várias instituições exercem o
papel de potências tutelares. A escola é uma delas, pois elimina a autonomia das pessoas
ao tutelar-lhes o aprendizado:
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A estrutura curricular da escola, que agrupa os alunos em séries, por critérios de
idade, e vai fornecendo-lhes inputs de conhecimentos à medida em que avançam nas
séries, é o modelo de produção industrial para a fabricação de cérebros. A escola é a
indústria de fabricação de indivíduos detentores de conhecimento, e a materialização do
conhecimento que a escola vende são os títulos e certificados:
99
sobre o gênero. Outros não. Os próprios professores enfatizam que os primeiros
aprendem; os outros recebem apenas noções. Para eles, ficar restrito ao ministrado nas
aulas não garante o aprendizado do gênero. É preciso sair da Escola, correr atrás de
outras coisas, descobrir formas próprias de aprender. É preciso, mais ainda, definir o
quê e como se deseja aprender. O professor de cavaquinho Leonardo Benon fala sobre a
falta de iniciativa de alguns alunos:
Léo Benon: É falta de interesse dos alunos, de correr atrás. Oitenta por cento dos meus alunos só fazem o
que eu passo para eles. Os outros vinte por cento chegam e mostram alguma coisa que viram ou que
descobriram. O cara pesquisar é importante, é uma questão de interesse. Esse negócio de dar tudo
mastigadinho... Aí rola isso: todo mundo tocando só com partitura, sem partitura não toca, não decora,
mudou o tom não sabe tocar. (...). Tirar de ouvido, eu não posso tirar de ouvido para o aluno. Ele é que
tem que fazer. A gente ensina os caminhos.
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Como a Escola tem muitos alunos, uma boa parte deles não desenvolve a habilidade no
instrumento necessária para realizar o mínimo esperado de um instrumentista. Além
disso, entram e saem alunos em grandes números; muitos deles freqüentam a Escola por
períodos pequenos, como seis meses ou um ano. Outros permanecem por anos
freqüentando as aulas, e, como não há conclusão de curso, não saem e nem pretendem
fazê-lo. O resultado disso é que existem centenas de pessoas em Brasília que foram
alunos da Escola de Choro e tocam de forma incipiente. Mas isso não significa que não
aprenderam, mas apenas que aprenderam somente o que desejaram aprender. Esse não
é, definitivamente, um bom critério para se julgar a Escola de Choro. Bartholo e Tunes
(2009, p.4), ao discorrerem sobre o verdadeiro aprendizado, enfatizam que:
A sociedade escolarizada, que, segundo Ivan Illich (1979), é a que vivemos, não
vê com bons olhos uma instituição de ensino com as características da Escola de Choro.
Ela cobra da Escola de Choro a “eficiência” e a “eficácia” na produção de virtuoses do
Choro, como se isso fosse possível de ser feito em escala e padrão industriais. A
ausência desses critérios de eficiência e eficácia é rotulada como falta de seriedade.
Ademais, por questões de sobrevivência, a Escola necessita de reconhecimento formal.
As mensalidades não pagam os custos, e os patrocínios são vitais. Os patrocinadores
querem resultados quantificáveis, mensuráveis e que, de preferência, tragam números
impressionantes. Eles cobram também que a Escola busque reconhecimento junto aos
órgãos educacionais do Estado, a saber, o Ministério da Educação e a Secretaria de
101
Educação do Distrito Federal. Tal reconhecimento, contudo, esbarra nos labirintos da
burocracia escolar. Não basta apenas ensinar e aprender. É preciso avaliar, hierarquizar,
uniformizar, seriar, aprovar, reprovar, certificar, vigiar, punir, cobrar e obrigar. Ou seja,
tudo o que a Escola de Choro nunca fez, e tudo o que não fez parte do aprendizado de
Choro dos mestres e dos professores. Por isso, a Escola enfrenta dificuldades
operacionais para enquadrar-se em um modelo escolar convencional.
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uma máxima do futebol, que, assim como o Choro, é uma expressão da identidade
brasileira: em time que está ganhando não se mexe.
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C2. Música das Nuvens e do Chão
Dudu Maia: Numa Roda de Choro, eu vou brincar, vou arriscar. A gente vai se jogar. Numa apresentação,
primeiro você pensa no começo meio e fim, no repertório que vai tocar.
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Laércio Pimentel: (...) de certa forma, na Roda você tem um pouco mais de liberdade. Na apresentação,
você está mais preocupado. Não que não se possa arriscar, mas tem que pensar nisso: tocar para a música.
Fernando César: Eu cansei de tocar no palco mesmo, e nem aí, tocava como Roda. Mas eu vejo isso
também como a evolução do Choro, né? O show deixou de ser Roda, porque o show é Roda também, né?
O choro que você toca há a maior data , no palco toca ... mas na Roda você fica testando uns baixos
novos... antes eu testava no palco, na hora do show, agora não....
Henrique Neto: O que eu venho trabalhando é o seguinte: tocar com a mesma seriedade em qualquer
ambiente. Agora, é claro que na Roda de Choro você está cercado de amigos, é muito mais espontâneo.
Você não se preocupa tanto com a execução perfeita. Já no show, você deve um respeito ao público
também, né? Na gravação, um registro que fica para sempre... Então tem essa diferença no nível de
cuidado que você tem que ter.
Augusto Contreiras: Se você está numa Roda num churrasco você improvisa. Agora, em um show, você
tem que fazer aquilo que está ensaiado, porque tem muita gente assistindo, tem muita gente prestando
atenção. Mas, mesmo assim, quando você percebe que você está bem à vontade, você estudou bem o
instrumento, aí você tem que improvisar. Mas depende do lugar onde você está tocando.
As falas dos chorões mostram que é comum a distinção entre dois contextos de
performance: a Roda e a apresentação. Conforme já mostrado no Capítulo B1, a Roda é
um ambiente informal, em que os músicos se sentem mais à vontade para arriscar e
improvisar. Na apresentação, por oposição, tendem a realizar aquilo que já fizeram
previamente em ensaios, ou aquilo que não traz riscos de erros. O improviso, conforme
disseram Fernando César e Augusto Contreiras, é mais comum nas Rodas, dado que,
por ser elaborado no instante da execução, traz sempre um risco; mas esses músicos não
dispensam seu uso em apresentações, ressalvando que fazem isso somente quando estão
perfeitamente seguros, ou seja, quando os riscos de errar são pequenos. Desses relatos,
de antemão, podemos afirmar que não errar é um critério de performance importante no
Choro; seu peso, contudo, é consideravelmente maior nos contextos cerimoniosos das
apresentações do que na informalidade das Rodas.
Nos dois relatos a seguir, identificamos que a performance também pode variar
de acordo com a instrumentação utilizada e com o repertório; pode ser também adaptada
às peculiaridades individuais dos músicos presentes na ocasião.
Fernando César: Depende da música, depende da formação, depende do instrumento. Se eu toco com um
violão de aço ou de nylon... Cada uma dessas situações tem uma maneira diferente. (...) Depende da
música. Geralmente, você tem que segurar muito mais a harmonia para fazer o ritmo, e vai fazendo o
baixo. Se tiver um cavaquinho, eu toco com o violão de aço, e nem faço muita força para tocar os
acordes, não. Não faço muita levada, seguro mais a baixaria. Não que eu faça o baixo toda hora, mas vou
pá pá pá pá pá, e o cavaquinho segura a levada e a harmonia, né? É uma opção, usar o violão de aço e
fazer dessa maneira.
Rafael dos Anjos: (...) Tento tocar parecido com o que o cara toca, saca? Eu nunca vou tentar colocar uma
outra linguagem ou então me sobrepor àquela pessoa, eu vou sempre procurar tocar dentro da onda, saca?
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Por exemplo, se eu for tocar no Tartaruga, eu vou encontrar com o Henriquinho. Com ele eu toco de um
jeito. Mas se o Alencar pegar o violão, eu vou tocar de outro jeito.
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Desse modo, se a pesquisa investigar a percepção da ordem musical dos músicos
que fazem parte do universo do Choro, poderá identificar elementos dessa ordem. Uma
forma de ter acesso a esses conhecimentos é permitindo que os próprios músicos
verbalizem seus conceitos e suas percepções. Blacking (1995) postula que o julgamento
da performance no âmbito de uma tradição musical, ou seja, a capacidade de dizer o que
é bom ou ruim, certo ou errado em um determinado sistema musical, baseia-se em
princípios adquiridos na vida social em processos que nem sempre estão diretamente
ligados à prática musical. Com isso, Blacking (1995) quer dizer que é possível aprender
música simplesmente sendo parte de uma coletividade humana, organizada por uma
ordem que se expressa, entre outros, na música dessa coletividade.
Todavia, para Kerman (1987), toda interpretação é uma questão individual, pois
o músico deve imprimir à obra a sua personalidade, seu sentimento e sua intuição.
Assim, a interpretação é o modo como a individualidade do músico influi na
individualidade da obra (Kerman,1987). Ele ressalta que os músicos inseridos em uma
tradição viva não precisam escrever ou falar sobre a música que executam para manter a
tradição. Importante para isso é a constante produção, interpretação e reinterpretação
das músicas. Para Kerman (1987), uma tradição musical não mantém sua “vida” ou
continuidade por meio de livros e sabedoria livresca. Ela é transmitida em lições
privadas, não tanto por palavras quanto pela linguagem corporal, e não tanto pelo
preceito quanto pelo exemplo. Para o autor, isso não significa que os músicos não
reflitam ou pensem sobre sua prática musical; pelo contrário, apenas não têm o hábito
de articular isso em palavras ou de registrar em pentagramas, porque, no fundo, isso não
é necessário, pois a prática musical já é suficiente. No Choro, não é comum o registro
escrito das interpretações. As gravações, contudo, deixam registradas interpretações que
acabam se tornando célebres. Elas eternizam a criatividade de grandes intérpretes, que
são as principais influências, os exemplos a serem seguidos pelos instrumentistas. Mas,
de algum modo, ao seguir os exemplos e se deixar influenciar, o intérprete deve
subverter a imitação do modelo, e criar seu estilo interpretativo próprio. John Blacking
(1995) afirma que, se a música é o som organizado pelos homens, ela deve conter
reflexos da organização social em que os homens que a produzem se inserem. Se
considerarmos que a interpretação é o modo como um indivíduo expressa sua
pessoalidade em um sistema musical, pode-se inferir que a interpretação deve conter,
também, reflexos do modo como o intérprete compreende sua realidade e seu sistema
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social. Portanto, a interpretação traz elementos que estão além do seu entendimento da
ordem sonora de um sistema musical; levando em conta os conceitos de Blacking
(1995) e Kerman (1987), é a verdadeira expressão de uma pessoa. Portanto, o estudo da
performance e da interpretação irá acessar aspectos da ordem sonora de um sistema
musical, que é reflexo da ordem social que organiza uma coletividade; mas irá, também,
acessar os modos como cada intérprete compreende tal ordem sonora, e como ele se vê
e se insere na ordem social da qual faz parte.
Leonardo Benon: A minha referência sempre foi o Waldir [Azevedo]. Você vê, nos últimos dois discos
dele, principalmente no último... eu vejo ele tocando, e era a época que ele estava tocando melhor. Você
vê a pancada que ele dá, mas a corda não distorce, não desafina, não dá som de palheta. Ele consegue tirar
o som do instrumento, ele arranca som do instrumento. O cavaquinista tem que tirar o som doce do
instrumento. Outra coisa legal é aproveitar os efeitos que o instrumento oferece. O Waldir abriu um leque
de possibilidades, ele desenvolveu uns falsos harmônicos. É aí que o lance do cara tocar bem o
cavaquinho. (...) Aí entra o lance de tirar o som, cavaquinho como instrumento solista... Tocar bem não é
só tocar. Acho que tocar bem é o cara tirar o som. Porque o cavaquinho, o problema dele esta aí, em tirar
som. Não desmerecendo os outros instrumentos, mas, se você pega um bandolim, é muito mais fácil de
você tirar um som. A flauta já sai um som bonito... o bandolim é diferente, tem que aprender a tirar
volume.
Dudu Maia: O bandolim é um instrumento muito pesado, é muito tenso. Só a corda Mi tem uma tensão de
dez quilos. Quase cem quilos de tensão... Instrumento muito tenso e de muito ataque, muito duro. O som
é duro. Para encontrar o doce é difícil... Amaciar, suavizar sem perder a pressão é muito difícil. É um
instrumento pesado, cansativo. Eu demorei para tocar mais relaxado, para conseguir tirar o som com
leveza, mesmo com a tensão.
Henrique Neto: [No violão], se você tem o recurso da técnica, você tem condições de ir mais longe com
certeza. Agora, não é uma coisa só que vai determinar isso, entendeu? O que chega no ouvido das pessoas
é a qualidade do som. Se é um som gostoso de ouvir, né, bicho? Na minha concepção, é isso.
108
Paulão: A primeira coisa é o som que o cara tira do instrumento. O mesmo instrumento na mão de várias
pessoas tem um som diferente.
Rogerinho: No meu caso, quando eu chego numa Roda, naturalmente eu observo primeiramente quem
está tocando o meu instrumento. A primeira coisa é o som do pandeiro, depois como está sendo a
execução daquele pandeiro naquela música específica
Nota-se, nas falas dos chorões, a freqüente alusão à sonoridade como o primeiro
aspecto a ser observado no ato do julgamento de uma performance. Conseguir extrair
um som satisfatório do instrumento é a primeira condição para que um músico tenha
boa atuação. Pelo que foi dito nas entrevistas, pode-se concluir que existe, entre os
chorões, denso conhecimento acerca dos sons que podem ser emitidos pelos
instrumentos. Com efeito, os mais diversos nomes são dados aos diferentes tipos de som
que um instrumento produz. Tais nomes podem refletir óbvias sensações auditivas,
como agudo, grave, estridente, baixo, alto, etc. Há nomes que indicam a sonoridade pela
sensação que causam na audiência: gostoso, agradável, entre outros. Outras
nomenclaturas são metafóricas, e certamente indicam com grande precisão uma
determinada sonoridade; dentre elas, podemos citar: som duro, som cheio, som pesado,
som leve, som doce, entre outros. Os relatos de Dudu Maia e Leonardo Benon mostram
que a estrutura física de seus instrumentos traz dificuldade em extrair um som doce do
bandolim e do cavaquinho, instrumentos que, por soarem nos registros mais agudos, são
naturalmente estridentes. Os músicos buscam, então, minimizar o desconforto auditivo
que tamanha estridência causa, tornando o som do instrumento doce. De fato, cada
instrumento apresenta dificuldades peculiares em relação ao som que pode emitir.
Transpor essa dificuldade exige intimidade com o instrumento e habilidade técnica.
Com efeito, grande parte dos critérios de desempenho estão associados à competência
técnica:
Rafael dos Anjos: Sempre tem várias dificuldades. Tocar a levada já é difícil para cacete. Tocar a levada é
muito difícil porque você não pode tocar um lance que seja fora do Regional. Você tem que conseguir
casar sua levada com a do pandeiro e a do cavaquinho, e com o 7 cordas. A função do violão de 6 é dar
suporte para o solista. É difícil fazer a levada, fazer as firulas. Nem sempre as firulinhas que você vai
fazer... Os contrapontos saíram na hora errada, tem uns que batem com a melodia..., às vezes sai fora do
tempo. Então, tudo isso tem que ser bastante treinado. Tocar o violão, em si, dentro do Choro, é difícil
para caramba.
Laércio Pimentel: Tem muita coisa difícil, não acho fácil tocar não, cara. Tem que estar estudando sempre
a parte técnica. Você tem que estar com a técnica em dia para tocar determinadas coisas.
109
Dudu Maia: Outra coisa difícil é harmonizar. Porque as notas ficam muito longe, pela afinação em
quintas [do bandolim]. Você pega as vozes depois da oitava... Harmonizar é um pouco mais difícil. Para
você pegar uma terça no violão é mais fácil, porque elas estão ali pertinho. Aqui [mostra o bandolim],
você pega a terça acima da oitava ou a sexta para baixo. Por exemplo, o Sol. Muitas vezes você vai pegar
a terça depois da oitava, né? Ou então você pega o Si para baixo.
Henrique Neto: Na área do acompanhamento, você tem que fazer as duas coisas, tanto a baixaria quanto a
harmonia. Porque, quando você começa a fazer uma baixaria, você tem que saber onde você vai cair, com
qual inversão você vai cair. Então, é todo um trabalho antecipado. Você vai abrindo caminho para o
solista. Reflexo e planejamento. Tem que ter muito conhecimento do instrumento, do braço.
Rogerinho: A dificuldade que eu tenho é quando eu estou numa Roda de Choro, e chega o Frango
[Márcio Marinho], que toca um choro a duzentos por hora. Aí você tem que tocar a duzentos por hora
sem cair e, se possível, fazer uma viradinha, uma graça, para mostrar que você está ali e está bem. Senão
você se arrasa. Se você não quiser fazer nenhuma viradinha, tudo bem. Mas, pelo menos, mantenha o
andamento do início ao fim. E não se preocupe que você vai fazer careta, porque, quando você pensar que
ele vai acabar, ele chama a dois de novo.
110
Márcio Marinho: Teve um dia, lá na Roda, que eu derrubei o Gordinho [Rogerinho]. Puxei aquela
música, o “Araponga”. Puxei numa velocidade muito rápida, bicho! Que ele não conseguiu. Falei: vai
estudar! O bicho ficou puto.
Rafael dos Anjos: É um lance que eu estudo, acho importante também, porque chama a atenção. O cara
olha quando você está tocando um lance rápido. O cara fica atento, e o cara aplaude. (...) Isso tem a ver
com o andamento: quanto mais rápido, mais habilidade você tem que ter. Porque, se você vai tocar o Bole
Bole rápido, você vai ter que improvisar rápido, conseguir pensar rápido, imprimir aquele estilo
rapidamente, saca? Não vai poder tocar qualquer improviso. Tem que ser virtuose mesmo, né, bicho?
Laércio Pimentel: Porque Choro tem uma dificuldade. Porque, dependendo do andamento da musica, da
velocidade, fica mais difícil, porque a quantidade de acordes é muito grande.
Paulão: Então, eu já ouvi vários depoimentos de que acham legal o desafio. Porque, às vezes o andamento
é mil vezes maior do que o que a música foi gravada, mas é um desafio para o cara conseguir tocar.
Leonardo Benon: O motivo das pessoas puxarem as músicas muito rápidas é para fazer a animação do
público.
Rogerinho do Pandeiro: Os choros lentos são difíceis de tocar porque a tendência é acelerar. Quando você
está aprendendo, você só quer tocar as músicas mais lentas. Por incrível que pareça, depois que você
aprende a tocar, você quer tocar as mais rápidas. Mas, depois, voltar a tocar as lentas fica mais difícil.
Manter a cadência, o ritmo ali, lentinho. Porque muitas músicas são lentas, e a execução delas é bonita se
for lenta. Ela foi feita pra emocionar mesmo.
Dudu 7 Cordas: [ o Choro] mais lento é o mais difícil para todo mundo. Porque, no mais lento, acontece o
seguinte: é mais difícil de interpretar para o solista. Você vai ter que tirar som, e você não vai ter a
velocidade. Se catar [errar] não tem esse negócio de neguinho não perceber, ou, então, está fazendo a nota
certa, mas não está tirando som. Porque, quando a música está rápida, o que impressiona é a velocidade,
não é a melodia. Para o cavaquinho centro, ele nem sempre vai conseguir completar a batida. A música
rápida também é difícil, mas, na música lenta, o que vai contar é todo mundo ter tocado bem.
Tonho do Pandeiro: gosto muito de choro canção, o pessoal fala: ah, vamos tocar rápido... mas tocar lento
é que é difícil, tocar rápido se torna mais fácil. Agora, tocar lento é que é difícil. Eu gosto do choro
canção por essa dificuldade. Porque a música lenta ou faz a pessoa atrasar o ritmo ou então adiantar. Se
você adiantar um pouquinho, melhor. Geralmente respeitam isso, mas o lento torna-se mais difícil até, a
execução.
111
maior competência do instrumentista. A precisão rítmica é critério valorizado por
músicos experientes, e faz parte da ordem sonora do Choro.
Leonardo Benon: O cara que segure o ritmo, que sabe interagir com os outros instrumentos... Não é só
coisa de pandeirista. O músico da Roda de Choro tem que ficar atento à interação: baixou o volume, baixa
também. Tem que aparecer na hora certa. O pessoal só quer botar muita nota numa música, só quer
mostrar tudo o que sabe. Aí o 7 cordas chega lá, está tocando, não pára de fazer o contraponto. E tem um
solista que não deixa ninguém tocar. (...) A função original do 7 cordas é ligar os acordes com a melodia,
entendeu? Ele faz essa ponte. Agora, o cara o tempo todo mete uma frase paralela com o solo. Isso não é
contraponto. Se eu deixar de fazer a minha levada para fazer gracinha, cadê o cavaquinho? Faz um
buraco, entendeu? Então tem que ser consciente. Vou deixar de dar sustentação para alguém? Mesma
coisa o pandeiro. O cara vai ficar virando toda hora, onde é que vou ficar sabendo onde é o tempo 1? Uma
hora ele vai derrubar alguém. O pandeiro é a base de todo mundo. Eu vou estar apoiado nele, e o violão
vai estar apoiado em mim. Se o pandeiro bobear e eu bobear, cai todo mundo.
Fernando César : [o violonista 7 cordas] Se ele colocar aquela coisa rápida no lugar certo e na hora certa,
vai chamar muito mais atenção do que o tempo todo. Então, tem os lugares. Por isso é que o Dino é o
Dino. Porque ele botava as coisas certas no lugar certo e nas horas certas. Por isso eu sempre me espelhei
muito nele.
Henrique Neto: Se ele [o músico] está contribuindo para o contexto todo. Porque eu acredito nisso, na
maturidade musical que a pessoa chega. Se ele está contribuindo para o conjunto... É claro que é bom
você ver um cara comendo o violão, assim bonito. Mas eu acho mais bonito ainda essa... Colocar as
coisas na hora certa, na brecha ali. É nessa malandragem. Porque é sempre um jogo de pergunta e
resposta na música, né? Você pergunta uma coisa no instrumento, o outro responde. Então, se toda hora
está todo mundo falando muito, em termos de nota... Tudo tem seu momento, tem seu valor, mas é uma
conversa.
Tonho do Pandeiro: É a percepção dos outros amigos. Para uma boa execução, em primeiro lugar, nós
devemos ouvir a todos. Se nós conseguirmos ouvir cada instrumento, é sinal de que nós estamos numa
onda sonora, no mesmo patamar. E o bom desempenho é a concentração, tocar concentrado, e tocar para
os outros músicos.
Dudu Maia: É um cara que está tocando junto contigo, está te ouvindo. Tem cara que não te ouve. É
impressionante. Agora, quando o cara está te ouvindo... A primeira coisa que você percebe se o cara está
te ouvindo é a dinâmica: ele começa a sacar a sutilezas de dinâmica, e ele está junto contigo. Fui tocar
com um colega um dia falei: beleza, vou segurar a melodia para você solar. Não estava ouvindo pôrra
nenhuma do que eu estava fazendo, a gente tocava do começo até o fim na pressão, mas não rolava aquela
inspiração dos dois crescerem e voltarem. O cara tem que ser seu amigo.
112
Rogerinho do Pandeiro: O breque tem que sair certinho, todo mundo na hora certa , então requer uma
atenção, então quando isso dá certo... Como é um trabalho em conjunto, a sensação é maravilhosa. Você
vê cinco pessoas tocando, fazendo um negócio, e, quando dá certo, você se emociona. As pessoas que
estão te assistindo se emocionam em forma de assovios e de palmas. Então, quer dizer, é uma troca de
energia entre público e artista, que é fantástica .
Márcio Marinho: Ah, tem que escutar muito e tocar. Tocar e escutar, né? Isso, eu acho isso.
113
Henrique Neto: Se você não tiver passado por essa bagagem de ouvir as gravações, de ter tirado o
repertório, eu acho que, com certeza, o cara vai tocar mal. Quem toca violão e não conhece o trabalho do
Dino, do Baden e do Raphael Rabello, João Pernambuco e Dilermando Reis no Brasil, não vai poder
tocar violão. Porque não sabe a linguagem, o que foi feito, o que já foi desenvolvido nessa área. Então, se
você pular essa etapa, eu acho, muito provavelmente você não vai conseguir alçar vôos mais altos no
violão. Com certeza não.
Fernando César: Fazer repertório... uma coisa que a galera de hoje está devendo. Tem que fazer
quantidade de repertório. Isso aí não vai ajudar só na questão da pegada, é muito mais. O ouvido do cara
vai começar a se ligar em melodia, em harmonia. Cada vez que ele vai tirando, vai se ligando mais.
Leonardo Benon:. As pessoas estão acomodadas em chegar, tocar os 24 hits do Choro, e falam que estão
tocando Choro. Não estão.
Tonho do Pandeiro: Se ele não conhecer o repertório, não conhecer o Choro, ele não vai saber das
dinâmicas, não vai saber dos breques, ele não vai saber de uma baixaria de violão, ele não vai saber
entrar. Então, a primeira coisa para um pandeirista é conhecer o repertório, conhecer os choros que ele vai
executar.
Dudu Maia: Se o cara tiver jogo de cintura ele chega e sai tocando, né? É raro, mas você sabe, não é todo
dia que rola... Agora, tocar bem o Choro, tem que tirar as gravações e tocar coladinho , por exemplo eu
tava conversando com um bandolinista e ele disse: eu não tenho esse vocabulário de Choro eu tenho
dificuldade de tocar, porque eu não tenho temas suficientes de choro embaixo dos dedos. O cara tem que
construir um vocabulário, uma enciclopédia, sei lá. Ele vai ter que tirar várias músicas., Aí, se ele for
esperto, ele vai colar no Jacob, vai ver as soluções que ele arruma, as diferentes interpretações sobre a
mesma coisa, os ornamentos e o ritmo, principalmente. Muita coisa está no ritmo. Tem que colar no
Pixinguinha, no Jacob, né?
Augusto Contreiras: O cara tem que ouvir as gravações de um, dois ou mais grupos. A questão de ouvir é
importante. Quem está começando agora tem que ouvir os regionais e os grandes instrumentistas para o
cara saber como se tocava aquilo. Dependendo do que ele ouvir, ou ele tenta imitar ou pelo menos tenta
identificar como que os caras faziam, como é que os caras tocavam, para ele tentar atingir a sensibilidade
musical do cara.
Fernando César: Por exemplo, se você toca clarineta, e tenta tocar o repertório de bandolim, uma música
ou outra é difícil. Então, pega o que rola e toca, sempre procurando também, se for para uma Roda tocar,
no tom da gravação original. Porque nem sempre vai ter alguém que saiba acompanhar [em outros
tons].
114
Com efeito, a maioria dos choros é sempre gravada nos mesmos tons. Raras são
gravações de choros convencionais tocados em outros tons. Por exemplo, podemos citar
Pedacinhos do Céu, sempre tocado em sol maior; Cochichando, de Pixinguinha e
Benedito Lacerda, em Ré Menor; Lamentos, em Ré Maior; Doce de Côco, em Sol
Maior, e uma infinidade de choros. Todavia, alguns choros consagrados, como Tico-
Tico no Fubá, Espinha de Bacalhau, Brasileirinho, Saxofone Porque Choras, entre
outros, por uma questão de adaptação às características mecânicas de alguns
instrumentos, costumam ser transpostos para outras tonalidades, principalmente em
função dos instrumentos solistas - clarineta, saxofone, trompete, flauta, bandolim,
cavaquinho, entre outros. Isso se deve ao fato de ser quase impossível para esses
instrumentos tocarem determinados choros rápidos na tonalidade original. Mas, em
geral, a tonalidade dos choros é fixa. A seguir, Dudu Maia discorre sobre tonalidades
difíceis para o bandolim; Rafael dos Anjos, para o violão:
Dudu Maia: Porque o bandolim, por ser muito tenso, tem tonalidades que são mais fechadas. As com
corda mais presas, né? Lá bemol, Dó sustenido.
Dudu Maia: De repente, aparece um doido aí, e faz isso. Sol no bandolim é mais fácil. Ré também. Esses
dois são os mais fáceis. Dó maior também é tranqüilo. Mas essas mais acidentadas... Si bemol rola bem
também. Si já é um pouco chatinha, Mi também. Quanto mais corda presa, fica mais difícil, porque é um
instrumento muito tenso. Ele tem a característica da sonoridade da música brasileira, quando fica muita
nota presa é perigoso , fica mais difícil de tirar aquele som, né?
Rafael dos Anjos: No repertório, sempre tem as tonalidades chatas, né? Tipo Mi bemol, que só tem o sol
solto no violão, La bemol, Si bemol. Eu prefiro estudar mais elas do que Re menor e Fá, que são mais
fáceis. Então, tem essas tonalidades que sempre são um problema para o violão. Até para tocar a
harmonia, para acompanhar... Porque é tudo preso, né, cara? Você não tem um acorde solto, faz muita
pestana, saca?
Laércio Pimentel: Eu tive uma vez em Belo Horizonte, até no Maranhão, e o repertório nos dois se repete.
Então, isso é interessante. Você pode sair daqui e ir para BH, encontrar um pessoal que você nunca viu na
115
sua vida e tocar sem o menor problema, porque tem um repertório em comum. Mas tem as diferenças de
sotaque. Aqui em Brasília, você vai ouvir Choro de um jeito.
Rafael dos Anjos: Ah, tem uns choros que são legais para o violão. Tem uns choros que sempre exigem
do violonista, né? Claro que qualquer violonista vai gostar, tipo “Cuidado Violão”, “Sofres Porque
Queres”, enfim, as músicas que o Regional do Canhoto gravou. “Homenagem a Velha Guarda”, “Músicos
e Poetas”, do Sivuca, todas essas músicas que o Regional do Canhoto gravou. “Pitoresco” também. Essas
músicas exigem muito do violão, até porque o Regional tinha os dois maiores violonistas, né, bicho, da
época, que eram o Dino e o Meira, né? Que foram os dois caras que fizeram uma escola no violão bi-
regional do Brasil; o violão de 6 e o violão de 7 cordas. Então essas músicas são muito boas para o violão,
né? Eu gosto quando eu sou exigido, então sempre tocar essas músicas para mim é massa demais.
Laércio Pimentel: [o repertório] é difícil de tocar porque você trabalha com vários acordes, e sempre com
formatos diferentes. Porque você começa um choro, a primeira parte está em sol maior, geralmente no
meio da primeira parte, ele já tem uma modulação para outro campo harmônico, seja de ré, dó ou mi
menor, ou seja, já modulou na primeira parte, já estou tocando em dois tons. Vai para segunda parte que
já é em outra tonalidade, e provavelmente vai ter alguma modulação naquela segunda parte. Terceira
parte, a mesma coisa, outro centro, tons com possíveis modulações.
116
Everaldo Pinheiro , utilizado na Escola de Choro Raphael Rabello para fins
pedagógicos; ele apresenta uma série de notas repetidas, e é de facílima execução.
Porém, nunca se ouve em Rodas ou apresentações. Os chorões de nível de habilidade
intermediário, entre o iniciante e o virtuose, não costumam tocar os choros muito fáceis,
embora sejam capazes de fazê-lo. Preferem executar os choros que para eles
representam desafios, e, para a audiência, ensejam admiração. Existe uma infinidade de
choros de nível intermediário de dificuldade. Esta também se amplia conforme aumenta
o andamento. Choros intermediários podem ser tocados em andamentos muito variados.
Há, também, aqueles choros que pedem execução rápida; quando um solista se propõe a
tocá-lo, de antemão sugere que é habilidoso. Dentre eles, podemos citar: 1x0, Descendo
a Serra, Segura Ele, de Pixinguinha e Benedito Lacerda; O Vôo da Mosca, Diabinho
Maluco, A Ginga do Mané, de Jacob do Bandolim; Espinha de Bacalhau, e Chorinho
em Aldeia, de Severino Araújo; Picadinho à Baiana, de Luperce Miranda; Desvairada,
de Garoto, dentre outros. Esses choros, considerados virtuosísticos, são para poucos.
117
invejáveis; são, principalmente, os chorões mais antigos. Os chorões falam sobre o uso
de partituras no Choro:
Fernando César: (...) Só estudando a partitura não, porque o que está escrito não é o choro, é uma
referência. As notas podem até ser, mas a divisão que se escreve não é a que se toca, não. Nesse sistema
de notação, para você escrever todas as nuances de uma interpretação, fica muito difícil. Na verdade, eu
acho que a escrita musical é uma coisa para ficar documentada, e não tocada, né? Lógico, se você vai
fazer um arranjo, tudo bem.
Henrique Neto: [a partitura] ajuda muito para você visualizar, para você poder raciocinar melhor, né?
Você é muito intuitivo e, às vezes, não materializar aquilo que você está fazendo... Nesse sentido, eu
acho, de ter liberdade para escrever minhas composições também, de Choro. Mas, para tocar mesmo, não
[acho a leitura importante]. Acho que não precisa.
Fernando César e Henrique Neto são claros ao defender que o uso da partitura é
perfeitamente dispensável na interpretação. Apesar disso, concordam sobre sua utilidade
para registros de composições e elaboração de arranjos. Cabe ressaltar que ambos têm
uma audição musical treinada e bastante desenvolvida. Para os chorões, mesmo como
modo de registro dos choros, a partitura apresenta limitações. Eles não dispensam seu
uso, mas apontam a gravação como o registro mais importante de um choro. Leonardo
Benon fala sobre as limitações do sistema de notações musicais para registro do Choro:
Leonardo Benon: O Waldir lançou um caderno de partituras com todas as músicas dele. Está tudo escrito
errado. Algumas estão certas, outras estão em outro tom. Eu acho que o jeito que está escrito é para fins
didáticos. Igual eu faço com meus alunos: toca com a partitura em casa, mas daqui um mês eu não quero
essa partitura aqui. Porque eu pego a partitura e não está escrito como a gravação. Já é a interpretação de
quem escreveu. No Choro não funciona. É só uma referencia inicial, mas a maior referencia é a gravação.
Não tem jeito.
Para Leonardo Benon, embora a partitura sirva como referência inicial para a
prática da interpretação, só mesmo por meio das gravações o instrumentista pode
compreender todas as suas nuances. Se a partitura é insuficiente para representar a
complexidade de uma interpretação chorística, em alguns casos é de grande valia na
preparação dos músicos para a performance. Músicos experientes recorrem a elas para
aprender uma música nova, mesmo sem ter fluência na leitura. Eles falam sobre isso:
Márcio Marinho: Eu já tirei alguns choros de partitura, porque partitura também é importante, a gente
acha que não, mas é. Às vezes você não tem a gravação. Se você tem a partitura, e você já ouviu a
música, então fica mais fácil.
Rafael dos Anjos: Aprendi a ler cifra lá na escola. Peguei uns contrapontos de violão lá na Escola de
Choro, aprendi a ler partitura lá. Então, foi um lance importante. Não com tanta fluência para sair lendo
de primeira. Aprendi o básico da leitura.
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Paulão: O cara te dá uma partitura, mesmo se você não for especialista em ler partitura, se você tiver o
conhecimento básico, você vai conseguir tocar a música. Pega a música, ouve, tem a partitura, tem os
acordes, tem as notas, tem os tempos das notas.
Tonho do Pandeiro: [Uma música nova] quando o cara não consegue pegar... Porque, por exemplo, uma
pessoa vem com um choro diferente, ou uma composição própria, o cara quer fazer um tipo de batida ou
mudar o compasso no meio da música... Se o pandeirista ou o percussionista não lê ou não tem
conhecimento, ele pode até pegar, mas vai demorar um pouco mais do que aquele que lê. Porque ele lê
umas duas ou três vezes, e já está fazendo a melodia juntinho. Então, é muito importante.
De fato, o Choro não é uma música para ser executada conforme a prescrição da
partitura. Seu valor e significado não residem no que o pentagrama revela, mas no que o
intérprete for capaz de extrair dele. É o intérprete que dá a forma, que molda, que
imprime sua marca pessoal. Os chorões construíram, ao longo da história do gênero,
uma rica e variada tradição de interpretação, vital para a difusão, renovação e
preservação do gênero. Desse modo, qualquer tentativa de atribuir ao intérprete apenas
o papel de mero executor será frustrada, pois, além de interferir nas obras por meio de
variações e improvisos, e a tradição cobra que ele assim o faça, é ele o guardião do
patrimônio e do acervo musical chorístico. Todavia, as variações e improvisos devem
respeitar as peculiaridades interpretativas de cada Choro, pois cada música possui o seu
próprio estilo. Rafael dos Anjos fala sobre isso:
Rafael dos Anjos: Se você vai tocar uma música mais lenta, sei lá, você vai brincar com o ritmo. Pode ser
que fique bom, mas pode ser que não fique tão legal, saca? Se você só brincar com o ritmo e meter uma
119
escalinha ali, pode ser que não fique legal. Por exemplo, no caso de Vibrações, que é uma música super
dolente, eu acho que quando você vai construir um improviso ali, tem que estar por dentro de tudo o que
está acontecendo. Qual é o estilo da música? Ela te traz uma tristeza? Então você tem que improvisar
naquele lance, saca? Tem que criar uma imagem assim, e assimilar aquela imagem, e fazer um improviso
que complete o quadro, saca?
Essa peculiaridade de estilo pode ser observada nas próprias partituras. Logo
abaixo do título de cada música encontram-se termos, às vezes pitorescos, como Choro-
Serenata, Choro-Ligeiro, Choro-Triste, Choro-Puladinho, Samba-Choro, Choro-Canção,
Choro-Melódico, Chorinho-Batucada, etc. Esses termos podem indicar tanto o
andamento quanto o estilo a ser seguido pelo intérprete. Mas eles não carregam o
mesmo rigor da notação musical européia em relação aos batimentos por minuto que
deverá ter uma semínima ou uma colcheia. Ao contrário, são flexíveis, e permitem ao
músico escolher qual o andamento é mais adequado para determinada música, bem
como estabelecer o seu entendimento pessoal para o que seja choro-puladinho, choro-
melódico, choro-alegre, choro-brejeiro, etc. No Choro, a força que o intérprete inflige é
tão marcante que os próprios compositores, ao fazerem o registro de suas músicas em
partituras, assumem que nunca terão o controle das muitas interpretações que serão
feitas da sua obra, que estará sempre aberta a novas leituras e interpretações individuais.
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apóia-se em uma série de artefatos: as partituras, as gravações, a técnica do
instrumentista e sua criatividade para alterar as prescrições e improvisar. O modo como
estas alterações e improvisos são realizados é que possibilita ao intérprete construir o
seu vocabulário musical e o seu estilo próprio de tocar. De fato, criar uma identidade
própria, além de diferenciá-lo dos demais, pode assegurar-lhe o reconhecimento do
público e o respeito entre os músicos. Isso não é alcançado com facilidade, pois, exige
muita prática e intimidade com o gênero. Os relatos a seguir demonstram que o critério
de identidade interpretativa é bastante valorizado entre os chorões:
Márcio Marinho: As influências nunca ficam de lado, porque elas sempre ficam na sua cabeça. Porque,
enquanto você está tocando, as influências estão rolando aqui na cabeça. Não é deixar as influências de
lado, é questão de você dar a sua cara. Do instrumento, quando falar, neguinho sacar: foi fulano que
tocou. Quem está tocando aí? É o Nêgas! Quem está tocando aí é o Frango, quem está tocando aí é o
Tarzan, quem está tocando aí é a Gabi, já sei porque que é. Porque ela fez isso, fez aquilo, entendeu?
Porque que eu sei que é o Frango? Ah é porque o Frango... o Henrique Cazes falou que eu tenho o furor
do cavaquinho. Então, é neguinho ouvir e saber que sou eu, sacou? Eu acho que isso é criar uma
identidade. [O Rafael dos Anjos] demorou para sacar isso. Depois que a gente montou o trabalho desse
quarteto, ele parou com esse negócio de querer copiar os outros, e criar um estilo próprio, né? Porque toda
vez que ele tocava - eu já fiz isso também -, hoje eu vou tocar que nem o Lula Galvão, hoje eu vou tocar
que nem o Guinga. E não tocava do jeito que ele queria. Está entendo o que eu estou falando? Não dava a
cara dele. Pô, eu sou o Nêgas. Tenho que fazer isso aqui, eu quero fazer isso aqui e vou fazer isso aqui.
Eu sou o Márcio, eu quero tocar essa nota aqui...
Dudu 7 Cordas: Tudo é baseado em influência, aí você cria sua identidade. Porque não tem como... vou
tocar igual ao Raphael Rabello. Você estuda horas e horas, você não vai tocar igual ao Raphael Rabello.
Você tem que criar sua identidade, senão você fica apagado. Toca bem, mas e aí? Não tem nada
marcante. Toni, do Época de Ouro, e daí? Já ouviu falar? Toca igual ao Dino, mas e aí? O que é
identidade? É a Gabi estar tocando e eu estou sabendo que é ela sem olhar. Ou, então, estou chegando na
Roda, o fulano está tocando e eu estou passando do lado da Roda e sei que é o fulano. Isso é a identidade
da parada.
Henrique Neto: Essa é a parada mais difícil, que eu acho da música, é você descobrir a sua... Agora eu
estou formando a minha identidade musical, depois de ter estudado várias vertentes. Acho que agora...
Acho que a minha batalha é essa, o meu objetivo é esse. (...) Eu sei disso, na minha identidade musical
vai ter esse lance de improvisação, e a pegada um pouco mais forte.
121
Pixinguinha, Brejeiro, de Ernesto Nazareth, a que Jacob, inclusive, acrescentou uma
terceira parte. Por vezes, uma interpretação é tão genial que sobrepuja a versão original
do choro, passando a ser mais conhecida e reproduzida. Por isso, o Choro pode ser
considerado um gênero essencialmente interpretativo. A liberdade e as infinitas
possibilidades de interpretação dos choros permitem que o intérprete deixe uma marca
pessoal nas performances, mesmo não sendo compositor. Essa capacidade de ter um
estilo pessoal marcado é grandemente valorizada pelos chorões. Possuir uma identidade
musical evidencia maturidade e experiência. A liberdade interpretativa possibilita,
também, que choros antigos sejam tocados com elementos contemporâneos, de forma
que a liberdade de interpretação é fundamental para que a tradição se mantenha viva e
atual.
Augusto Contreiras: Porque a raiz do Choro é o cara que tem o ouvido bom, o cara que consegue tocar
várias músicas. Porque ele já sabe para onde vai a harmonia, ou seja, ele tem uma noção para onde vai a
harmonia. Então, eu acho que o bom chorão é aquele que tem um ouvido bom. Esse negócio de: está aqui
a cifrazinha, coisa e tal, não existia não.
122
tão valorizada, a ponto de converter-se em motivo de orgulho para os músicos, como
mostram os relatos de Augusto Contreiras e Reco do Bandolim:
Augusto Contreiras: Agora, claro com o passar dos anos, essa coisa de tocar de ouvido ficou superada. Os
chorões começaram a sofrer influência dos músicos clássicos. Eles tiveram que aprender teoria musical,
harmonia,e isso levou a um aperfeiçoamento espetacular. Esse negócio de cifra não existia não, a coisa
funcionava assim: vinha esse pessoal do Rio tocar aqui, e às vezes eles tinham o hábito de querer testar os
músicos daqui. Diziam assim: vem cá, você consegue acompanhar um choro chamado “Cuidado Violão”?
Não sei! Não sabe? Então, você não serve. Esse negócio de está aqui a cifrazinha, coisa e tal não tinha
isso não. Ou você sabia ou não sabia. Você tinha que ouvir. Hoje em dia, não. Com o avanço, repito, os
músicos de Choro foram obrigados a estudar. Isso foi muito bom, porque o tal do clássico puxou esse
pessoal do Choro. Eu acho que ouve um intercâmbio aí. Em compensação, o pessoal do clássico, que não
consegue aquela interpretação, aquela coisa do improviso, eles perguntam para o pessoal do Choro: vem
cá, como é que vocês fazem isso? Porque o pessoal do clássico só é aquela partiturazinha ali, coisa e tal.
Só faz aquilo ali. Então, eu acho que esse intercâmbio foi muito bom.
Reco do Bandolim: Era um conceito bem diferente, muito diferente. Quer dizer, é a coisa improvisada. O
orgulho que o sujeito tinha de tocar de ouvido. Não sei ler nada, eu toco de ouvido. Isso era dito de
boca cheia. Que negócio de partitura o quê? Música pronta - preconceito total - é o talento, a inspiração, a
mão de Deus na sua cabeça. Por isso você toca aquele negócio. Eu me relacionei com todo mundo assim,
e hoje, essa coisa do estudo, eu acho uma benção. Você poder ter essa Escola de Choro, e você poder
sistematizar isso.
123
iniciante possui os atributos da musicalidade, ele passa a ser um grande instrumentista
em potencial; a ele faltariam apenas técnica e experiência, que vêm com o tempo. Do
outro lado, daquele considerado amusical espera-se a realização de esforços inúteis, e a
eterna incapacidade de tocar bem. No Choro, conforme já dito, o conceito de
musicalidade está umbilicalmente ligado ao ouvido bom. Mas Reco denuncia a mentira
inerente à idéia de uma musicalidade excludente, que seria privilégio de alguns
escolhidos por Deus ou pelo acaso. Para ele, e para muitos chorões, as habilidades
advêm do treino e do estudo, inclusive o bom ouvido. Portanto, aquilo que, no Choro, se
considera musicalidade não é de nascença, mas se adquire por treinamento. Todavia, é
preciso ressaltar que é comum, entre os chorões, o julgamento da musicalidade alheia, e
a completa desqualificação daqueles considerados amusicais. Esses assuntos, porém,
não são tratados abertamente ou em público, pois evidentemente carregam preconceitos.
Apesar disso, nota-se, em Brasília, algum movimento de abertura do Choro a todos,
com a desmitificação da idéia dos escolhidos por Deus.
124
emergência da figura do intérprete solista, o portador da mensagem do compositor.
Esses três fatores surgiram na música ocidental entre os séculos XVI e XIX, e, segundo
Pederiva (2009), forçaram a criação de uma elite musical, separada dos demais seres
inaptos para a música. Esses, contudo, não eliminaram as práticas musicais baseadas
sobretudo na transmissão oral. Pederiva (2009) aponta para uma das causas da atual
separação entre erudito e popular, que, para ela, é um abismo difícil de ser transposto.
125
importante critério de desempenho no Choro. O próprio repertório tem diferentes níveis
de dificuldade, sendo que, em alguns casos, poucos são os instrumentistas capazes de
tocar certas músicas. As demonstrações de virtuosismo arrancam aplausos em qualquer
contexto, desde Rodas em quintais até apresentações em teatros municipais. Há, porém,
outro critério de desempenho que minimiza a ênfase no virtuosismo. O contraponto do
virtuosismo, doravante denominado expressividade, cria, com ele, uma polaridade
característica do gênero. Os discursos dos chorões contêm constantes alusões aos
perigos do exagero no virtuosismo:
Augusto Contreiras: Agora, transformar o instrumento numa metralhadora musical, como esses
violonistas mais novos aí, eu acho que isso já é um exagero. Porque eu vejo o 7 cordas como um
instrumento de acompanhamento. Um instrumento para preencher os espaços vazios, quando a melodia
pára. Então, você não pode competir com o solista.
Laércio Pimentel: Por incrível que pareça, eu valorizo a simplicidade, fazer os baixos na hora certa.
Porque é um caminho natural, principalmente. Quando você está estudando, você quer tocar um monte de
nota, né? Mas nem sempre a música está pedindo isso. Às vezes, você coloca os baixos na hora certa, e já
dá o clima. Virtuosismo e expressividade, as duas coisas. Tem que medir as coisas, porque aquela história
do virtuosismo gratuito, ele cansa, na verdade. O Hamilton [de Holanda] falou uma vez: você tem que
usar o virtuosismo como uma ferramenta, e não como um meio; e procurar trabalhar para musica, e não
só a técnica pela técnica.
Henrique Neto: Eu não desvinculo uma coisa da outra. Sse não tiver uma das coisas perde um pouco. Eu
não acredito que uma pessoa que só tenha a capacidade de se expressar... Assim, sem técnica, fica uma
coisa boba, fica faltando alguma coisa. E o contrário também. Se você só tiver a técnica, acaba limitando
o seu horizonte também.
Rafael dos Anjos: Eu não me considero um virtuose, mas eu estudo para isso. Virtuosismo é um lado que
eu gosto, porque qualquer violonista que ouve o Raphael Rabello quer tocar igual, saca? Então, é um
lance que eu estudo, acho importante também, porque chama a atenção. O cara olha quando você está
tocando um lance rápido, o cara fica atento, o cara aplaude, então ... Agora, eu acho que o sentimento é
para poucos, saca? Até porque muita gente não entende isso, saca? Muita gente não tem ouvido para isso.
É difícil você tocar uma música lenta, e todo mundo ouvir e apreciar aquela música, apreciar sua
interpretação. Você vê nas próprias Rodas de Choro, a receptividade do público é bem diferente . Eu acho
que se você conseguir dosar isso bem, você vira um Hamilton de Holanda.
126
equilíbrio significa ter elevada maturidade musical, conforme nos revela a opinião de
Augusto Contreiras sobre Hamilton de Holanda:
Augusto Contreiras: O Hamilton de Holanda, na minha concepção, na minha concepção, já superou quase
todas as barreiras. Então, é um músico que tem uma capacidade de improvisação enorme, que tem uma
criatividade enorme. É uma referência para muitos bandolinistas de hoje.
Fernando César: O cara pega, tira o último disco do Hamilton, toca male, male, toca qualquer coisa, em
vez de tirar dez músicas fáceis, tira uma difícil e não consegue tocar direito. Perde muito tempo. Como é
que o cara vai adquirir sonoridade e pegada tocando uma coisa muito difícil? Não vai rolar, não acontece.
Então, vai sempre ficar o Joazinho Xôxo, né?
2
Música das Nuvens e do Chão é música de Hermeto Paschoal, que dá título ao CD de Hamilton de
Holanda, lançado pela Velas em 2004.
127
Hamilton de Holanda fala sobre a relação entre técnica e expressividade em seu blog.
Segundo ele:
128
as transições entre um e outro desses sentimentos,
expressando tudo isso em sons que dão aos outros
condições de experimentar, também eles, iguais emoções
(Tolstói, 1994, p. 51).
Márcio Marinho: Eu acho que música é muito coisa do momento. Se você está feliz, se você está triste...
Se eu conseguir transmitir isso para o público, já fiz a minha parte. Eu acho que o artista tem que tocar do
fundo do coração dele, passar para o instrumento o que ele está sentindo naquele momento. Às vezes, o
cara toca uma nota e diz tudo; e, às vezes, o cara toca vinte mil notas e não diz nada.
Márcio Marinho: Eu já cheguei a pensar que tocar bem era tocar rápido, há um tempo. Mas... e limpo, né?
É lógico que tocar bem é tocar limpo, e da melhor maneira que você pode executar uma música. Só que
não é só isso: tem que emocionar.
Henrique Neto: O que me encanta no violonista, o que me chama atenção, é alguma coisa além da
técnica. É realmente ele e o violão virarem uma coisa só. É ele conseguir transmitir toda a emoção.
Rogerinho do Pandeiro: Porque muitas músicas são lentas e a execução delas é bonita se for lenta. Foi
feita para emocionar mesmo.
Dudu Maia: Quanto melhor você toca, você pode potencializar esse poder, de você expressar isso tudo na
plenitude, de emocionar. Mas não se afirmar, enquanto o ego da parada: olha como eu toco para
caramba... Não é isso. Tem muita gente assim, que toca muito, mas não toca meia dúzia de pessoas.
129
conceituais, o que entendem por expressividade e qual é o seu papel na música. Da
dificuldade, então, enfrentada para conceituar algo difícil de ser posto em palavras,
surgiram ricas e belas construções, como quando Henrique diz que violonista e violão
viram uma coisa só, e Dudu Maia critica os virtuoses sem alma, que tocam muito, mas
não tocam meia-dúzia de pessoas.
As falas dos chorões candangos sobre sua prática musical mostram que existe
um sistema consolidado de conhecimentos sobre o Choro, sobre formas de tocar, sobre
instrumentos, e sobre diversos outros parâmetros musicais. Tais parâmetros são
utilizados tanto no julgamento do desempenho quanto nos processos de aprendizagem e
desenvolvimento dos músicos. Eles refletem a ordem sonora que organiza as
performances coletivas do gênero. Segundo Quresh (1987), tradições musicais cujos
praticantes verbalizam e conceitualizam parâmetros musicais possuem uma teoria
musical própria, mesmo quando os conhecimentos não estão sistematizados ou escritos.
Para ela, uma teoria musical pode ancorar-se na transmissão oral. Estudos dessas
tradições, portanto, devem ser feitos à luz de suas teorias musicais. De fato, é vasto o
conhecimento teórico e conceitual no universo do Choro. Quresh (1987) afirma que,
para o caso da música indiana, existe um edifício teorético que cobre as dimensões da
melodia, do ritmo e da forma; como a música indiana tem por característica a primazia
das linhas melódicas, a teoria musical indiana tem foco na análise das tonalidades.
No Choro, embora a linha melódica seja uma referência primordial, pois ela
guarda o tema da música, outros parâmetros musicais parecem ter a mesma importância
da melodia. O ritmo, no Choro, não é exclusivo dos instrumentos percussivos; são
muitas as referências ao balanço e ao espírito malandro, que se apóiam no domínio do
ritmo. Quanto à harmonia, existe um sistema complexo de conhecimentos sobre os
caminhos harmônicos possíveis para várias tonalidades; do mesmo modo, existem
técnicas e treinamentos específicos para que tais caminhos possam ser identificados no
momento da performance, permitindo que violonistas e cavaquinistas acompanhem
músicas que nunca ouviram antes. Há, também, um conjunto de conhecimentos sobre as
baixarias do violão de 7 cordas. A teoria musical do Choro, portanto, tem focos
múltiplos, sendo complexa. Os relatos mostram que os instrumentistas conhecem
melhor as partes da teoria que mais dizem respeito ao instrumento que tocam. Em
palavras simples, pandeiristas sabem de ritmos, solistas conhecem linhas melódicas,
130
possibilidades de variação e harmonia; violonistas são profundo conhecedores da
harmonia; cavaquinistas, por sua vez, conhecem ritmo e harmonia. Embora
especializados em suas áreas, os chorões não deixam de conhecer ao menos um pouco
da teoria relativa aos demais instrumentos. A capacidade de tocar Choro depende muito
do acesso a esses conhecimentos teóricos que, embora não estejam sistematizados em
registros escritos, existem como sistema musical. O julgamento da performance também
se faz apoiado em tais conhecimentos.
131
C3. Salve-se Quem Souber
132
Do mesmo modo, não existem trabalhos aprofundados sobre o improviso em
gêneros musicais brasileiros. Por isso, a definição de improviso a ser utilizada neste
trabalho terá como referência o THE NEW GROVE DICTIONARY OF JAZZ
(Kernfeld,2006). Esse autor define improviso como a criação espontânea da música ao
mesmo tempo em que é tocada. Ela pode envolver a composição imediata de toda a obra
pelos músicos, ou apenas a alteração/variação de estruturas pré-existentes, ou qualquer
coisa entre esses dois extremos. No jazz, assim como no Choro, não somente o solista,
mas todos os músicos em um grupo podem improvisar. As baixarias (condução da linha
do baixo realizada pelo violão de 7 cordas) por exemplo, são, em sua maioria,
improvisadas; do mesmo modo, o pandeiro e o cavaquinho podem criar variações
ritmicas ao longo da performance, que, de acordo com a definição de Kernfeld (2006),
podem ser consideradas improvisos. Os relatos dos chorões demonstram que eles
denominam improvisos as variações e alterações realizadas por todos os instrumentos
numa performance:
Dudu Maia: o Choro tem isso. O cara toca o tema, o outro vai lá e repete a mesma coisa. É justamente
para isso... Mostra para o outro assim: olha o que eu estou fazendo com essa melodia, mas tem que fazer
de uma forma inteligente. (...) O que me atrai é a brincadeira, você pegar um tema e brincar, dá uma volta
com ele.
Laércio Pimentel: a questão do improviso é uma questão de você se divertir também, de tocar algo fora do
que foi escrito, de você ficar tocando sempre os mesmos baixos, e correr o risco de errar uma baixaria no
meio e não saber pra onde ir, entendeu? Então a improvisação te dá liberdade porque existe a
possibilidade de errar. Deu uma nota fora, corrige e continua o caminho.
Leonardo Benon: Tem que ter aquele negócio do improviso, às vezes o cara do pandeiro faz uma virada
(...); o cara faz uma outra batida, eu vou mudar a minha palhetada junto com ele.
Tonho do Pandeiro: quando ele vem tocando reto e, quando ninguém espera, pensa que ele vai entrar com
a melodia, ele entra com o improviso...
Rafael dos Anjos: você tem que conseguir casar sua levada com a do pandeiro e a do cavaquinho e a do 7
cordas. A função do violão de 6 é dar suporte para o solista. É difícil fazer a levada, fazer as firulas. Nem
sempre as firulinhas que você vai fazer... Os contrapontos saíram na hora errada, tem uns que batem com
a melodia; às vezes saem fora do tempo.
Henrique: Tem que ter muito conhecimento do instrumento, do braço, porque é um trabalho de
improvisação o tempo todo. Improvisações curtas, aí te exige conhecimento de todas as inversões do
instrumento, de várias possibilidades, de uma linguagem... É complexa a linguagem do 7 cordas.
133
harmônicas pré-estabelecidas para cada música, ocorrem, nas performances do Choro,
variações improvisadas em todos os instrumentos.
Leonardo Benon: o Waldir (Azevedo) lançou um caderno de partituras com todas as músicas dele. Está
tudo escrito errado, algumas estão certas, outras estão em outro tom. Eu acho que o jeito que está escrito é
para fins didáticos. Igual eu faço com meus alunos: toca com a partitura em casa, mas daqui um mês eu
não quero essa partitura aqui. Porque eu pego a partitura e não está escrito como a gravação, já é a
interpretação de quem escreveu. No Choro não funciona, é só uma referencia inicial. Mas a maior
referencia é a gravação, não tem jeito. (...) Às vezes o cara nem improvisa, mas mostra a música de um
jeito diferente (...) aí eu acho que já vale a pena, no caso o improviso fica no segundo plano, o efeito é o
mesmo, já fica todo mundo feliz, já está fazendo uma coisa nova.
Laércio Pimentel: [dando a definição de baixo obrigatório] baixo obrigatório: tem o breque, e abre para o
violão fazer. É bom você conhecer o original, e depois fazer outros também. Com o tempo você vai vendo
que tem diversas formas de fazer aquele encaminhamento ali, aquela ponte, vamos dizer assim. Aquela
passagem. É uma questão de vocabulário.
Dudu Maia: Eu digo improviso não é como o improviso no jazz não, você obrigatoriamente tem que fazer
os turnarounds, sempre nada haver com o tema. Tem que ser uma brincadeira com o tema, primeiramente
134
rítmica.(...) É lógico que você pode sair, mas volta e brinca. (...) O que me atrai é a brincadeira, você
pegar um tema e brincar, dá uma volta com ele.
Marcelo Lima: Não é improviso de tocar uma parte inteira improvisada, é você botar uma nota mais longa
do que ela é. O improviso acho que nasce dessa releitura da partitura. Já é um improviso. Quando você
tem a partitura, o cara toca uma vez a música. Aí, na segunda vez, ele já vai tocar outra coisa. Você ouve
o Lamentos e diz: Porra, cadê aquela partitura que você tava tocando aí? E ninguém escreve os
ornamentos. Escreve a melodia. (...)
Fernando César: O improviso no Choro é fundamental. Porque na verdade sempre houve improviso. Você
pega uma gravação, é igual fofoca, ela vai aumentando. Tem uma gravação que o cara toca de um jeito,
noutra o cara toca de outro. Ainda não é aquela coisa assim: O improviso, como seria chamado hoje, mas
é improviso. É um improviso acanhado.
Com efeito, o relato a seguir demonstra que a paráfrase é tão comum no Choro que se
confunde com o próprio modo de tocar e aprender o gênero:
Marcelo Lima: mas é engraçado que o Choro tem uma coisa dessa, sabia? Porque quando você vê uma
partitura de choro, ela raramente está bem escrita. Raramente, na partitura de choro, o cara respeita as
figuras. Ele faz quadradinho. Se você fosse tocar o vibrações seria [canta a música conforme a partitura]...
Quando eu passo a partitura para o aluno ler, eu falo: ó, tá massa, agora você pegou as notas. Agora
vamos dar um valor diferente para elas. Agora você vai mexer. Olha, pode estender essa aqui. Isso aqui
não vê como semicolcheia, não. Pode ver como colcheia, deixa ela durar um pouquinho mais. Puxa essa
para trás, joga essa para frente. Porque isso, de puxar para trás e jogar para a frente, é que dá mais
balanço, dá mais suingue na música, ela fica mais viva, né?
135
criadas por Jacob do Bandolim para o choro “Proezas de Solon”, de Pixinguinha e
Benedito Lacerda.
Exemplo 2. Transcrição das variações criadas por Jacob do Bandolim para “Proezas de Solon”, de
Pixinguinha e Benedito Lacerda (extraído de Tocando com Jacob, 2006).
136
Jacob do Bandolim insere paráfrases na 3ª, 4ª e 5ª repetições da parte A3; a melodia
original é alterada, mas as notas-chave, que a caracterizam, permanecem presentes (na
5ª repetição da parte A, por exemplo, a melodia inicia com variações, porém repousa
nas notas Lá e Sol, características da melodia original).
3
Nesta gravação de “Proezas de Solon”, Jacob do Bandolim fez uma alteração da forma do Choro, tocado
da seguinte maneira: AA-BB-A-CC-AA.
137
visando a construção de uma melodia em cima de um encadeamento harmônico pré-
estabelecido:
Dudu Maia: Na hora de improvisar, ele tem dificuldade de improvisar dentro da linguagem. Porque não
tem temas, vivências suficientes, porque, na hora da linguagem, na hora de improvisar, você vai pegar
todos estes temas, esse vocabulário, vai mudar as notas e vai brincar com elas. Vai usar aquele repertório
de palavras, aquele vocabulário, aquelas idéias rítmicas para caramba. Aí, para isso, o cara tem que
construir um vocabulário, uma enciclopédia, sei lá. (...) Mas, para improvisar bem, é preciso construir o
vocabulário. O repente, por exemplo... Eles inventam na hora, mas têm um vocabulário. Quanto maior o
vocabulário, mais fácil brincar com isso. Na verdade, na minha visão, você pode pensar o improviso
como a combinação de vários fragmentos. Como a gente pega letras, sílabas, frases e brinca com essas
combinações. E o ritmo faz toda a diferença. Com duas notas, se a sua idéia rítmica for boa, dá para fazer
um monte de coisa legal. Acho que o ritmo é noventa por cento; depois é que você tem as notas.
Marcelo Lima: Porque, para você improvisar bem, vai ter que sacar bastante do som, o acorde que está
rolando, a harmonia, e as técnicas que você tem que desenvolver. Essa técnica você pode malhar sozinho,
você pode malhar as escalas, só escala, pode criar frases em cima da escala, frases em cima do arpejo. Aí
você cria esse acervo. Quando você vai tocar, vai usar mecanicamente.
Laércio Pimentel: [explicando como estuda improviso] basicamente arpejo. Os violões de 7 cordas usam
muito arpejo, escalas e os intervalos. Basicamente isso. Começar os estudos pela onda do arpejo. Tocar
primeiro as notas dos acordes. Vai colocando as escalas, depois vai fazendo a ligação de uma escala para
outra, de um acorde para outro, e assim, vão surgindo os baixos. (...) Você tem que criar mesmo, ir
inventando na hora. Pega um padrão rítmico, usa uma escala, faz um arpejo. Meio que você vai fazendo
na hora mesmo, porque senão não fica um improviso.
Frango: Sempre fica uma frase ou outra que você usa naquele momento, que você acha adequado. A frase
é decorada, mas você manda outra que está criando na hora, naquele momento. A partir dela, você já cria
uma outra, sacou? Um fragmento dela, e você já cria uma outra. Então, o bom do improviso é isso. Você
nunca vai tocar a mesma coisa. Depois de um tempo que você está praticando isso, depois de um tempo,
você pode tocar as mesmas notas, mas nunca vai ser a mesma coisa. [Ao dizer] Nunca, eu estou sendo
muito radical, mas você sempre vai fazer alguma coisa diferente. Depois de ter uma certa habilidade com
o improviso, você vai administrando bem melhor isso.
Henrique: [Improviso] foi uma das primeiras coisas que eu estudei. Então, a primeira fase é aquela da
ralação, do estudo, do suor. Chata para caramba, que é você decorar as escalas, destrinchar o braço todo.
Depois você aprende a aplicação das escalas. Eu estudei assim: decorar as digitações, depois aplicação
dos acordes. Para isso, você precisa ter conhecimento harmônico, e aí pegar repertorio para você tocar.
Também tirar o máximo de gravações possíveis de pessoas que você admire e que sejam bons
improvisadores. Porque você não pode criar nada se não conhece o que já foi feito. Então, pega um
grande improvisador, vê todos os caminhos que ele faz, e depois acrescenta sua parcela de criatividade.
Agora a improvisação tem que ser muito cuidadosa, para não descaracterizar a linguagem do Choro.
Aproveitando os arpejos, sabe? Brincando ritmicamente com as células. Principalmente isso, os ritmos e
os arpejos.
138
improviso não descaracteriza a linguagem do Choro. Se for utilizado o jargão do jazz,
podemos dizer que os chorões constroem os licks a partir das escalas e dos arpejos.
A principal fonte, de onde os chorões extraem as frases que formam seu acervo, são
os próprios choros. Por isso, a maioria deles afirma ser importante “tirar” muitos
choros, inclusive os improvisos de outros intérpretes, para que o músico possa, a partir
dessas referências, construir um vocabulário. A partir daí, ele pode começar criar seus
próprios improvisos. Os relatos mostram também que o domínio técnico do instrumento
é fundamental, pois, sem ele, não há como improvisar. Com efeito, a publicação
“Vocabulário do Choro”, editada pelo saxofonista Mário Sève, é composta de exercícios
de escalas e arpejos extraídos de choros. Segundo o autor da publicação, os exercícios
mais importantes são os “estudos melódicos”, compostos em cima de células (ou
fragmentos melódicos) extraídas de composições de Choro e agrupadas dentro de uma
seqüência harmônica ou melódica escolhida. Por meio da execução desse tipo de
exercício, o músico ganha intimidade com a linguagem do Choro. A publicação de
Mário Sève traz, de forma sistematizada, exercícios que os chorões aprendem a realizar
por conta própria, ouvindo gravações, participando de Rodas e conversando com
instrumentistas mais experientes.
139
Exemplo 3. Parte A de “Araponga”, de Luiz Gonzaga (extraído de Tocando com Jacob, 2006).
Rafael do Anjos: Porque o Choro usa muita escala menor harmônica, usa muito a escala melódica, muito
a escala cromática.
Marcelo Lima: Mas o Choro tem a onda do cromatismo, que nada mais é do que qualquer nota. Todas as
notas. Quando você faz uma escala cromática, você fez todas as notas da escala. A questão é: quais são as
notas importantes de todas essas? Assim como num texto, que tem as palavras que são importantes, e
outras que são de junção. Mas tem palavras-chave. Assim como na frase musical. Tem notas que são mais
importantes. Mas, na verdade, você pode botar qualquer nota.
140
A seguir, a transcrição de um trecho de improviso de Jacob do Bandolim sobre a
música “Naquele Tempo”, de Pixinguinha, repleto de cromatismos, ilustra como esse
recurso é utilizado no Choro:
Augusto: Quando você vai fazer os baixos, você sente que ficou ruim, não bateu com a melodia, não
bateu com a harmonia. Mas é aquela famosa lei da tentativa e erro, porque o chorão tem essa coisa de
mostrar a sua criatividade perante os outros.
Laércio Pimentel: Você vai estudando o vocabulário, vai colocando umas coisas suas e acaba que nem
todo solo fica bom, né? Mas, às vezes, tem solos que ficam ótimos, e fica uma coisa que você nunca fez
na sua vida.
Frango: Fui batendo cabeça, tentando de um jeito, tentando de outro. Agora eu estou vendo o improviso
de uma outra forma. Porque eu aprendia muito as escalas assim, né, e não fazia no braço todo do
instrumento. Ficava só na região grave. (...) Um dia, o Hamilton de Holanda me pagou um sapo. Ele
falou: velho, você tem que estudar todas as escalas no braço todo do instrumento. Foi a partir daí que eu
comecei a estudar improvisação mesmo. Foi quando ele foi assistir o show do trio Cai Dentro e sacou que
eu me ferrei em alguns improvisos. Eu sabia mais ou menos o que era, mas eu me ferrei. Quando chegava
na região aguda do braço, eu me ferrava. (...) Ele disse que eu tinha que estudar todas as escalas no braço
todo do cavaco. Aí eu tive uma outra concepção do improviso, porque eu tava achando que improvisar era
só aquela coisa dos arpejos dos acordes (...). E é brincando.
Rafael dos Anjos: Arrisco, eu acho que é bom viver em risco. Quanto mais você se arrisca, melhor você
fica, porque uma hora você vai acertar, né? Algumas coisas dão certo, outras não. As que não dão certo eu
boto no bolso, e as que dão certo eu deixo ali pra sempre.
141
Além do domínio das técnicas (paráfrase, improviso formulado e cromatismo), o
improviso no Choro submete-se a julgamentos subjetivos, ligados à estética do gênero.
Todos os músicos entrevistados afirmam preferir a ausência de improvisos àquele mal-
feito ou considerado sem beleza. Defendem também a parcimônia na improvisação,
tanto em relação à quantidade de tempo em que se improvisa em uma música quanto em
relação às demonstrações de virtuosismo que metralham os ouvintes com centenas de
notas por segundo.
Dudu Maia: a gente tava ouvindo um improviso do Jacob. Nove minutos improvisando numa música,
bicho! Mas parece que ele está tocando o tema de tão bom que é, né? Totalmente dentro do contexto da
música, tudo muito claro.
Tonho do Pandeiro: Eu não sou muito fã, nada contra, eu estou falando a minha preferência, de muito
improviso durante a música. Eu prefiro, acho até que aparece muito mais, valoriza muito mais o
instrumentista, quando ele vem tocando reto e, quando ninguém espera, vai pensar que ele vai entrar com
a melodia, ele entra com o improviso. Mas uma coisa sutil. Eu gosto é desse jeito.
Leonardo Benon: Tocou a música, aí repete a segunda ou a terceira parte vinte vezes. Só o cara que está
improvisando é que está gostando. (...) Fica aquela coisa maçante, igual ao jazz, o tema dura 30 segundos,
mas a música dura duas horas. (...) Os solistas, e até mesmo os violonistas, ficam toda hora pedindo para
improvisar (...). Fica sem sentido a coisa, e a música mesmo, que era pra ser apresentada, não acontece.
Às vezes neguinho começa a tocar, faz a A, e na B já manda bala. Nem expõe o tema! Tem que
apresentar o tema, e improvisa depois.
Rafael dos Anjos: Improvisar para mim, bicho, é sempre ser o mais melódico possível. É sempre uma
melodia, sabe? O improviso só é bom se for melhor do que a melodia. E tem que permear a melodia, tem
que ter a ver com a melodia. Você tem que respeitar os estilos. Que é uma coisa que eu tenho estudado e
acho que pouca gente enxerga isso. E os caras que enxergam isso são os maiores improvisadores. Por
exemplo, você vai tocar um “Flor Amorosa”, é um lance diatônico, Sol com sétima menor e Dó maior.
Por exemplo, o Paraíba, que é um trompetista maravilhoso aqui de Brasília. Se ele vai tocar o Flor
Amorosa, ele não vai tocar o Flor Amorosa com a linguagem do Miles Davis. (...) Vai improvisar com a
linguagem do Callado, com a linguagem diatônica. Se for improvisar, vai ser com o melhor som, com
escala de Dó maior e tocando as melhores notas dentro daquele estilo, sacou? Cada música tem um estilo.
Por exemplo, Aquarela na Quixaba, do Hamilton (de Holanda) é um choro um pouco mais moderno.
Então, se o Paraíba for tocar, ele já vai entender que pode arriscar um jazz ali. Então eu tenho esse lance
de estudar respeitando o estilo.
Marcelo Lima: Os improvisos são coisas muito difíceis de fazer bem feito, eu acho. Acho que fazer bem
feito é você conseguir dizer coisas bonitas na música. Por exemplo, você toca um “Vibrações”. Pô, se
você for improvisar em cima do Vibrações, que é uma música linda e maravilhosa, você vai ter que fazer
uma coisa linda e maravilhosa. Não adianta eu querer improvisar e meu improviso não dizer nada perto
da música. Se a música é muito superior a tudo que eu estou fazendo, eu não conseguir fazer uma sacada
legal, aí não vou improvisar não. Toco a música como ela é. Mas eu acho que o bom improvisador é
aquele que consegue respeitar a música que ele está... Ele não sai da música. Ele está fazendo outra
história, mas dentro do mesmo contexto. Tudo o que o Jacob faz... isso é um talento que aquele cara tinha.
Todos os improvisos do Jacob são maravilhosos. Ele não gasta nota em nada. É gastar nota! Esse é o
argumento. Bom improvisador é o que não fica gastando nota. Ele não fica tocando qualquer nota porque
ta fora do tema. Não!!!! Ele quer aquele som ali. Ele quer aquelas notas ali.
Fernando César: Bom improviso é a coisa mais intuitiva, e não aquela coisa programada. Aquele monte
de escala colada uma na outra. Bom improviso é o Dominguinhos. Ele cria outra melodia. Ele não
142
improvisa, ele faz outra música em cima da melodia que já existe. Ele compõe outra música. Não fica
nessa edição. Porque pode colar errado. Às vezes fica bom, mas muitas vezes fica uma m.!
Os chorões entendem o improviso como parte da essência do Choro, pois, para eles,
o bom chorão é aquele que, toda vez que toca, é capaz de alterar elementos da música,
mesmo sem realizar grandes mudanças em sua estrutura original. Além das ferramentas
técnicas, como vocabulário e habilidade com o instrumento, o julgamento de um
improviso envolve a capacidade do músico dialogar com a melodia original da música,
e seu domínio da linguagem do Choro. Além disso, para os chorões, o improviso deve
143
construir uma melodia - com começo, meio e fim -, coerente com a linguagem do Choro
e com o espírito da música especifica que se está executando.
144
C4. Iê, é mandingueiro, camará!
Rita Segato (1995) realiza um estudo sobre a Okarilé, uma toada para Iemanjá,
deusa mística de religiões afro-brasileiras. Segundo ela, à personalidade mítica de
Iemanjá, corresponde uma característica musical, presente na toada. Ela aponta Iemanjá
como um ícone, definido como imagem alegórica ou representação de um personagem.
O ícone é um símbolo que contém em si, representa e exibe um conjunto de
características. O ícone é uma abstração, uma construção conceitual que representa algo
que existe na realidade. O malandro, sujeito portador da malandragem, pode ser
compreendido como um ícone, no sentido descrito por Segato (1995). Sendo uma
abstração, ele não existe em sua forma pura na realidade, mas suas características estão
presentes de forma dispersa nos elementos que constituem o universo real. Portanto, o
malandro completo é um arquétipo com o qual se busca identificação, ainda que não
seja possível o total enquadramento nele.
145
Também não é nenhuma novidade que o personagem malandro, tão singular e
repleto de significados, seja amplamente estudado pela sociologia e antropologia. Na
música, a expressão mais forte da malandragem ocorre no samba. A própria identidade
do sambista se confunde com a identidade do malandro. As letras dos sambas estão
carregadas de menções à malandragem, e o próprio modo de criação e composição dos
sambas orienta-se pela ordem da malandragem.
Cláudia Matos (1982) realiza uma análise do discurso malandro presente nas
letras de alguns sambas cariocas produzidos entre os anos 30 e 50 do século passado,
tentando identificar as características específicas de sua linguagem e poética. O
malandro, segundo ela, é um ser de linguagem, uma metáfora coletivamente instituída e
formalizada por alguns: um mito (Matos, 1982 ,p. 186). Para ela, o malandro antes de
ser uma figura social ou histórica, é a encarnação de um comportamento estético, de
146
um estilo. Ele é a expressão, em figura humana, da ginga, maleabilidade e dinâmica do
próprio samba.
Ainda assim, é possível apontar para elementos musicais que são parte de uma
ordem sonora orientada pela estética da malandragem. No Choro, o entendimento da
lógica mandingueira é fundamental para a prática interpretativa. Os chorões falam sobre
isso:
Leonardo Benon: Aí que está o lance do cara ser malandro, mas o mais importante é a condução, não ter
excesso, saber entrar na linguagem das coisas. (...) Nas Rodas que eu tenho ido os pandeiristas estão sem
malícia
Henrique Neto: Na brecha ali, nessa malandragem (...). Tem esse lance, que está estampado na cara do
carioca que ele é malandro.
147
Dudu Maia: Quando você vai tocar o Choro, tem que pensar tchá tchá tchá.... [faz a levada do cavaco].
Aí é outra articulação, né? Porque o cara pode chegar na Roda e tocar o tema certinho, tocar para
caramba, mas sem uma coisa, né, que é o espírito vadio.
148
São movimentos livres específicos da moleza da prosódia
brasileira. São movimentos livres não acentuados. São
movimentos livres acentuados por fantasia musical,
virtuosidade pura, ou por precisão prosódica. Nada tem
com o conceito tradicional da sincopa e com o efeito
contratempado dela. Criam um compromisso sutil entre o
recitativo e o canto estrófico. São movimentos livres que
tornaram-se específicos da música nacional (Andrade,
2006, p. 29).
149
contrametricidade; é aquele que, quando se espera a acentuação no contra-tempo, ele a
faz no tempo, e vice-versa.
Frango: É uma forma de desafio, mas nada para sacanear o cara, para fazer chacota da cara do cara, para
dizer você é ruim. Não, não é isso. É um jogo, igual a capoeira.
Marcelo Lima: Eu vejo o Choro como a linguagem que a gente traz da capoeira. O jogo de desafio.
Então você está aqui e: ô, vê se tu pega essa harmonia aí! Ah é? Então faz esse solo aí que eu quero ver!
Então improvisa agora que eu quero ver aí! Fica um jogando para o outro, né? Agora é o pandeiro! É
como se cada um estivesse entrando na roda num momento. Fica esse jogo de brincadeira. Um desafio
de brincadeira. Uma fantasia, como se fosse um jogo. Como a capoeira mesmo. De brincar.
Fernando César: Às vezes você quer fazer uma graça, e não faz o que é mesmo [para ser feito]. Faz uma
coisa que o cara não estava esperando. Às vezes você faz para testar, porque a Roda tem aquela parada de
um desafiar o outro. É igual roda de capoeira, tem todo um jogo ali. Tem umas coisas que são certas ali,
mas você pode fazer uma coisa que não está prevista.
150
Buber (1988) discorre sobre o papel da linguagem no diálogo, e aponta para os
caminhos alternativos do discurso: de um lado, o discurso apoiado na precisão,
denominado monólogo; de outro, o discurso ambíguo, apoiado na pessoalidade daquele
que o profere, denominado diálogo. O monólogo busca apoiar-se na segurança, na
precisão, no controle. Ele quer se assegurar da possibilidade da repetição infinitamente
enumerável de coisas já sabidas. Seu empenho maior é por superar qualquer
imprevisibilidade. O discurso monologal sabe de antemão que resposta dará à questão
que formula, e quer se assegurar de que essa formulação não sofrerá mudanças
imprevistas. Busca para tanto valer-se das potências da objetivização. Mas Buber (1988)
afirma como valor mais alto da linguagem não a precisão monologal que fixa a palavra
e seu significado, mas sim sua intrínseca ambigüidade. A ambigüidade da palavra
permite que o discurso esteja repleto da existência pessoal daquele que o profere. O
discurso musical do Choro ancora-se na possibilidade de ser ambíguo, reforçando,
portanto, o caráter pessoal/relacional e dialógico do contexto da Roda, sua matriz. Essa
argumentação, novamente, reforça a idéia de Schutz (1977) de que a música tem
natureza coletiva e serve de suporte de relações pessoais.
Marcelo Lima: Na capoeira, você bate, mas não bate. Faz o movimento, acerta, mas não acerta.(...) No
jogo, você faz o movimento, e quanto mais perto de acertar, mais perfeito, mais bonito. O cara faz todo o
movimento para acertar, mas ele pára pertinho do rosto e sai. Esse é o cara bom. É o cara que consegue
fazer isso. Porque o cara que desce o pé, esse aí é só um brigão, não tem valor artístico para a capoeira.
Mas o cara que faz aquele movimento perfeito, a perna vai lá e não acerta. Ou quando o cara esquiva bem
151
de um golpe que não estava esperando. Às vezes tem essa onda, nem foi o que era para ser, mas foi
bonito. É mais a brincadeira.
Marcelo Lima: Deixa ela [a nota] durar um pouquinho mais. Puxa essa [nota] para trás, joga essa para
frente. Porque isso de puxar para trás e jogar para a frente é que dá mais balanço, dá mais suingue na
música. Ela fica mais viva, né?
152
virtuosismo numa ginga e numa malandragem
tremendamente naturais4.
4
Renato Roschel. Jackson do Pandeiro. Almanaque da Música Popular Brasileira. Jornal Folha de São
Paulo. Disponível em http://almanaque.folha.uol.com.br/jacksondopandeiro.htm, acesso em agosto/2009.
153
C5. Moderno é Tradição
154
Tonho do Pandeiro: o pessoal se prende. Quando eu digo que se prende ,[refiro-me a] os chorões mais
tradicionais, que eu gosto também. Como eu te falei, eu gosto de Choro autêntico. Parece que eu tiro a
autenticidade da música [não convencional]. Não! Eu acho que a renovação cabe em tudo, mas se a
proposta é tocar Choro, então é Choro. Eu posso tocar um choro cheio de virada pro jazz, ou pro samba.
Não! Eu vou tocar Choro. Agora, se eu vou para uma Roda, vale tudo. Mas se a proposta for tocar Choro,
eu acho que tem que ser o mais próximo possível da obra que o compositor fez, eu acho que até que em
respeito a ela... Nada contra... Pôxa, uma música não tinha nada e o camarada fez uma coisa linda. Isso é
válido. Mas depende da proposta, depende do que a pessoa vai fazer. Mas a melhoria vale em qualquer
música.
Rafael dos Anjos: Porque hoje em dia não tem como você tocar só Choro, saca? Não tem mais como,
porque eu acho que a música tem que caminhar junto com o mundo. É isso. Quando você vai tocar lá
fora, é isso que as pessoas estão querendo ouvir, saca? Estão esperando ouvir música brasileira, mas estão
querendo ouvir também um negócio contemporâneo.
Augusto 7 cordas: Eu acho que o Choro tem que se modernizar, mas você não pode esquecer as raízes,
que raízes são essas. Músicos mais antigos, você tem que ouvir como eles tocavam, ouvir os violões,
como eles tocavam, ver as baixarias que eles faziam, e depois criar o seu próprio estilo.
Dudu 7 Cordas: Porque se não tiver desenvolvimento, a gente vai ficar só nessa também, né? Se a gente
bota limite no desenvolvimento, a gente não vai ficar atual com o que está acontecendo. É só saber dosar.
Daqui uns dias vai estar assim: feijoada com Choro tradicional no feitiço, ou então feijoada com Choro
moderno. Acho que vai acabar virando isso. Assim com o rock, teve vários subtítulos, saíram vários
estilos de Rock, então o Choro está indo para esse lado. O interessante dessa onda é que a gente está
fazendo isso, a gente está participando disso, desse movimento. Isso é que é legal. Esse momento de
transição, de divisão do Choro, se acontecer, eu vou estar participando.
Leonardo Benon: No Choro você tem a possibilidade de fazer os experimentos. Mas, por outro lado, você
tem que manter as coisas.
Augusto 7 cordas: Tem que conhecer as bases, como tudo começou - bandolim, cavaquinho...
Leonardo Benon: Tem que ouvir até para ver como se tocava. Você pega o Regional do Canhoto, aquilo é
a velha escola do cavaquinho. O canhoto foi o maior cavaquinista de Regional, e tocava da forma antiga,
e até hoje agrada. Antigamente, o acompanhamento era feito totalmente de braço. Só tocavam com o
bração duro, não tinha munheca. Hoje em dia se toca com o pulso. Tem que entender como se tocava
155
antes pra saber por que eu toco assim hoje, qual foi a progressão disso. Acho que isso é importante para
você entender outras músicas também. O cara chega querendo fazer o moderno, mas não tem base para
fazer o básico. Se você sabe fazer tudo, então faz o que quiser. É legal você pegar umas bases daqui,
outras dali, para fazer o seu som. O cara quer ser o Hamilton [de Holanda], mas não conhece o Luperce
[Miranda]. Primeiro porque não pesquisa. É preciso ter um interesse maior pela coisa.
Dudu 7 Cordas: tem que saber fazer tudo, o aluno chega lá [na escola de Choro] e já quer ser o Hamilton
de Holanda hoje, já quer tocar as músicas do Hamilton hoje. Nunca tocou bandolim e já quer um
bandolim de 10 cordas. Para quê? Ele nem usa as oito, para quê quer um de 10? O Raphael Rabello falou
assim numa entrevista: tu tem sete cordas, tu tem que usar as 7. Tem sete e vai usar seis? Tem que usar as
sete.
Henrique Neto: Quem toca violão e não conhece o trabalho do Dino, do Baden e do Raphael Rabello,
João Pernambuco e Dilermando Reis no Brasil não vai poder tocar violão. Porque não sabe a linguagem,
o que foi feito, o que já foi desenvolvido nessa área. Então, se você pular essa etapa eu acho que muito
provavelmente você não vai conseguir alçar vôos mais altos no violão.
Rafael dos Anjos: tinha um solo do Damásio, que foi o mestre do Jacob. Uma música chamada
“Quebrando o Galho”. Quando eu ia tocar aquela música com algum bandolinista, ele queria que tocasse
aquela música com aquele solo. Ele está esperando aquele lance, saca? Então, é legal tirar. Pô, você vai
estar estudando as escalas, os arpejos. Você vai estar decorando um solo maravilhoso de um puta
violonista. E você vai estar respeitando uma certa tradição também, né,bicho?
Dudu Maia: Outro dia teve uma produtora aqui, para uns shows com a gente, já tinha feito uns quatro
comigo. Só que ela não queria que fosse Choro mais, porque já tinha feito quatro semanas. Aí disse: como
é que eu vou divulgar essa coisa? Porque eu penso em você e só me vem chorinho. Sua imagem é
totalmente chorinho. Ela falou de forma meio pejorativa. Por um segundo, eu me senti discriminado.
Engraçado, velho, eu tava tocando esses tempos com aquela Gig de batera e baixo... Bicho, cada vez mais
eu estou a fim de ser chorão na minha vida. Até essa coisa de viajar para fora, aí sim você reconhece o
valor mesmo do que a gente faz aqui que é só nosso. Que é suingue, é malandragem, são todos os nossos
traços culturais. Eu tava tocando com batera, baixo... Eu já eliminei isso daí, quero ser cada vez mais pé
de serra.
156
Essa difícil relação entre convencional e moderno se dá não somente com o
encontro de jovens e antigos instrumentistas, mas na própria música de cada um deles.
Ou seja, eles identificam a existência de coisas convencionais, diferenciam daquilo que
é moderno e são capazes de executar o Choro de formas distintas. A seguir, Rafael dos
Anjos, jovem violonista, discorre sobre a capacidade de transitar entre diferentes modos
de tocar, desde o mais convencional até o considerado mais moderno:
Rafael dos Anjos: Tento tocar parecido com o que o cara toca, saca? Eu nunca vou tentar colocar uma
outra linguagem, ou então me sobrepor àquela pessoa. Por exemplo, se eu for tocar no Tartaruga, eu vou
encontrar com o Henriquinho. Com ele eu toco de um jeito. Mas se o Alencar pegar o violão, eu vou
tocar de outro jeito. Até porque o meu instrumento depende do 7 cordas. Então, eu respeito essa
hierarquia, saca? Tocando com o Laércio eu já toco de outro jeito, toco mais parecido, toco mais moderno
que ele gosta também. Porque ele toca o violão que é moderno também, mas gosta de tocar o violão mais
Regional, mais pé duro, tipo pé de boi, saca? Então eu toco perto dele. Até porque, se eu tocar um lance
distante dele, vai soar esquisito, saca? Se ele coloca ré maior, eu coloco ré maior com sétima maior e
nona e décima primeira aumentada, aí ferrou. Aí vai desconstruir toda uma estrutura. Então, eu sempre
respeito isso. Eu vou tocar com o Augusto, com o Poyares, que é um cara que eu toquei, eu procuro tocar
igual ao cara que tocou com ele, que é o cara que ele gosta. Então eu respeito isso, até porque isso me dá
a possibilidade de tocar vários estilos de violão. Toco esse violão mais tradicional, e consigo tocar esse
violão mais moderno. Então, eu acho isso legal também, ter essas duas vertentes.
Os tipos de tempo descritos por Guerreiro Ramos (1981) são: o chronos - tempo
linear ou cronológico, o tempo antropológico ou convivencial e o kairos - o tempo de
salto. O chronos é o tempo que transcorre conforme a lógica causal que ordena passado-
presente-futuro. Nele, o passado é a causa do presente, e esse, a do futuro. O contexto
do tempo linear é altamente ordenado, estabelecido para a produção de bens e/ou para
a prestação de serviços (Ramos, 1981, p. 147). Dentro da lógica da causalidade
eficiente que caracteriza o chronos, os indivíduos comportam-se de acordo com regras
157
administrativas, ou de causalidade eficiente. O indivíduo faz o que deve ser feito, de
forma impessoal e desresponsabilizada. A vivência exclusiva desse tempo elimina o
espaço das decisões pessoais e da criatividade. Ela é, contudo, um imperativo de
sobrevivência, pois, por meio dela, o ser humano instrumentaliza a vida, a natureza e a
cultura e, assim, satisfaz suas necessidades vitais. Todavia, o autor aponta para uma
tendência da civilização ocidental contemporânea, cuja organização centra-se nas regras
de mercado, de eliminação das outras vivências temporais. Segundo ele, a nossa
sociedade tende ao monocronismo; ele afirma, porém, que a sociedade ideal é
policrônica. No caso do Choro, é evidente que sua comunidade vive o chronos, pelo
simples fato de estar no mundo. Muitos dos acontecimentos de seu universo têm relação
com as regras mercantis; muitas relações pessoais são feitas e desfeitas também em
função de questões relacionadas ao mercado, ao dinheiro, à fama, às colocações sociais
e profissionais, entre outros elementos que fazem parte da vivência do chronos. O
chronos é o único tipo de tempo que não pode ser eliminado de nossa vida, pois ele está
imbricado em nossa constituição biológico-cultural. As outras duas experiências
temporais podem ter seus espaços reduzidos e eliminados sem comprometer nossa
sobrevivência; Ramos (1981), porém, afirma que isso poderia transformar o mundo em
um universo mecanomórfico, onde não há espaço para o exercício da criatividade.
Ao segundo tipo de tempo, Ramos (1981) denominou convivial. Martin Buber (1977)
concede ao mesmo tipo de tempo o nome de tempo antropológico. O tempo convivial é
o tempo da relação pessoal face-a-face, em que o presente é a medida do passado e este
somente adquire sentido porque atualizado para o presente por meio da memória. Nessa
vivência temporal, são importantes os vínculos pessoais e o compromisso firmados na
imediatez dos encontros face-a-face. Nelas, as atividades dos indivíduos são orientadas
por critérios relacionados à realização dos objetivos intrínsecos à própria atividade, e
não por critérios ligados à eficiência instrumental.
5
Em ambas as representações de tempo (cíclico e linear) existe uma lógica que não é só temporal, mas é
também causal, que agrupa o passado, o presente e o futuro. O passado é causa do presente, o presente é
causa do futuro, não importando se o tempo é linear ou cíclico. O presente seria, então, o intervalo entre o
158
de compreender seus corpos, suas histórias, a natureza, o cosmos, tudo que é, enfim,
passível de ser apreensível pela razão. Ele possui passado, presente e futuro, lógica e
cronologicamente encadeados. O tempo antropológico tem sua origem no presente e
subverte a lógica passado-presente-futuro. Nele, o presente é a medida do passado.
Essa primazia não implica qualquer seqüência cronológica de causalidades. O que
importa é que, de acordo com Buber (1977), somente é capaz de possuir
verdadeiramente o passado quem consegue viver efetivamente o presente.
passado e o futuro, o que vem depois do passado e antes do futuro, ou a conseqüência do passado e a
causa do futuro. Dessa forma, o tempo é uma continuidade (tanto faz se cíclica ou linear) da qual o
presente faz parte, assim como o passado e o futuro. Aquilo que Guerreiro Ramos denomina tempo linear
corresponde ao que Buber denomina tempo cosmológico. A diferenciação entre os tempos
linear/cosmológico e antropológico não tem correspondência com a diferenciação entre tempos cíclico e
linear.
159
industrial capitalista quanto o socialismo real atuavam de modo a desenraizar o homem
da criação, da tradição, da história, engendrando as condições da mais plena escravidão
(Bartholo, 2002, p. 78).
160
com outros chorões, pois isso significa estar enraizado em uma tradição. De fato, o
seguinte relato evidencia, em outras palavras, a importância do enraizamento, e a
possibilidade de ser realizado por meio do Choro:
Marcelo Lima: E a Roda é interativa, totalmente interativa. Numa Roda, você nunca tocou, mas você
pega um ganzá ali, ó, e já está tocando, conversando, participando. Porque as pessoas que ficam em volta
da Roda participam da Roda. Isso é muito importante. É a questão do valor da música. É quando a música
realmente tem um valor humano muito grande. Não fica aquela coisa de ganhar dinheiro, porque
infelizmente existe esse lado profissional, e o lado do ego; quanto mais se admira o cara... Carlos Malta –
caramba, o Carlos Malta!!!! – aí você paga 50 reais para ver ele lá. Claro, porque que coisa é você ver o
cara e tal. Enquanto na Roda não vai ter nada disso. Você pode até ir para ver alguém que você acha que
toca legal. Mas esse alguém acaba de tocar e você já está abraçando ele ali, já está conversando, já troca
uma idéia. É pessoal, a Roda, né?
A terceira vivência temporal descrita por Guerreiro Ramos (1981) diz respeito
precisamente ao modo como a tradição se modifica, ou seja, à forma como ela se deixa
alterar por inovações. Segundo ele, o tempo de salto é aquele em que ocorre o
desenvolvimento, pois é onde a criatividade humana é exercida. O tempo de salto não se
refere ao chronos grego, nem ao tempo antropológico buberiano, mas sim a outro
conceito temporal também grego, o kairos. A palavra kairos designa um tempo não
quantificável que é constitutivo das percepções humanas do processo que conduz a
eventos críticos (Ramos, 1981, p. 169). A vivência do tempo de salto é uma experiência
simbólica, em que a pessoa rompe os limites sociais que se lhe impõem e, lançando às
161
profundezas, aprende a ajudar-se a si mesma (Kierkgaard6, 1962, p. 58, apud Ramos,
1981, p. 170). O kairos é o tempo do exercício da criatividade individual, e a ação das
pessoas é auto-motivada, autônoma e responsabilizada. A vivência do kairos permite o
máximo de opção pessoal e o mínimo da subordinação a prescrições operacionais
formais (Ramos, 1981, p. 152). O kairos é o tempo da aventura artística e criativa,
vivenciado em momentos críticos de ruptura. O desenvolvimento, se concebido de
acordo com o tempo de salto, cuja medida é a ruptura, pode ser entendido como o
aparecimento de novidades.
6
Kierkegaard, Sore. The Present Age. New York, Harper & Row, 1962.
162
comunicativa, tecnicamente bem resolvida (...). Livingston e Garcia (2005) afirmam que
Garoto revolucionou o Choro com sofisticação harmônica sobre ritmo e melodia
tradicionais; suas composições eram diferentes de tudo o que havia sido feito antes. Por
fim, afirmam que foram tão importantes as inovações de Garoto, que ele pode ser
considerado o precursor da Bossa-Nova.
Tonho do Pandeiro: Nós temos aquele Dirceu Leite, né? Ele traz vários tipos de instrumentos. Às vezes
uns saxofones diferentes, um barítono, tuba. Às vezes colocam a tuba pra fazer o papel... Não tem no
Choro, mas colocam para fazer o papel do 7 cordas. [No caso da percussão], eu acho que um surdo, não
digo bateria, porque aí já passa pro outro lado, mas um surdo, uma caixeta, um tamborim determinadas
músicas (...) Eu acho que, tocando suavemente, eu acho que fica legal.
163
Augusto 7 Cordas: tem que trazer formações diferentes com teclados, instrumentais modernos, teclados,
contrabaixo. Não sou contra isso.
Laércio Pimentel: A própria formação do Regional e do próprio Choro (...) ele já é sincrético. Você tem
elementos harmônicos europeus, ritmo africano, música brasileira, elementos indígenas. Então, ele, por si
só, é uma mistura. Porque se o camarada chegar com uma trompa, um fagote bem tocados, fica um
negócio diferente do usual. Às vezes pode ficar muito interessante, pode fazer um arranjo pra harpa e 7
cordas. Por que não? A música não tem essa fronteira de instrumentação. Tem gente que - talvez os mais
puristas sim - fala que não pode ter tamborim na Roda. Por que não, velho? Por que não pode?
Marcelo Lima: Acho que é muito bem vindo, instrumentos de fora, a sanfona.... Acho que também todo
instrumento é instrumento. Todos produzem sons. Todos são bem vindos. Se o cara vai tocar acordeon,
bandoneon, ou dgeridoo, como chama aquele australiano? Se o cara consegue fazer uma melodia, e ele
consegue tocar o choro, é bem vindo. É uma forma de transformar a música. Porque a gente não pode
ficar simplesmente congelado no tempo.
Henrique Neto: é uma questão de linguagem, né? Você pode dar a sua contribuição nesse sentido, se for
de bom gosto, e que não descaracterize muito. Porque não adianta também a gente querer misturar muito
as coisas. Porque senão fica uma forçação de barra. Porque a coisa foi construída de uma maneira, então
tem uma maneira de ser feito com os instrumentos que tem um apelo ali para aquela música. Por
exemplo, uma guitarra com distorção no Choro, eu acho que não encaixa, em determinados... o
Armandinho faz isso muito bem, mas ele pega choros que tem a ver com esse lance, choros mais
animados, sacou? Aproveitando a levantada de bola da música, entendeu? Porque, se ele pegar uma
música lenta, uma coisa sofrida, e botar uma guitarra com distorção, vai ficar forçação de barra. Então
tem que ter bom gosto. Mas eu não acho que seja impossível não.
Leonardo Benon: Acho legal outros instrumentos. Vê o Cacai tocando viola [caipira] na Roda... Toca
bem, acho que o cara pode até tocar guitarra, o importante é manter a linguagem.
Dudu 7 Cordas: Você não está tocando a harmonia do choro. Está empenando sempre, então não é Choro.
O violonista que acompanha, empena sempre, não consegue fazer um Fá maior com a tríade. O violão de
7 cordas não sabe fazer um arpejo, só estuda escala. Se for fazer uma Roda de samba, vai tocar tudo
empenado, vai dar base pra quem? O sete cordas faz só pentatônica, e o cavaquinho faz ré menor com
sexta e sétima maior. Se o cavaquinho só usa isso, não é mais samba e não é mais Choro. Então, a coisa
vai mudar. Não vai ser mais Choro. Bom pra quem está indo para esse lado, porque eu não vou tocar isso.
164
E bom também para quem está ficando nessa parte do meio termo. (...) Acho que vai acabar mudando o
nome disso aí. [Meu objetivo é] tocar uma coisa que eu estou gostando, sem objetivo de empenar as
coisas. Também não quero ser o que chamam de tradicional. Eu quero fazer um som sem muita loucura,
sem muita doideira, que hoje em dia está tendo. Meu objetivo é esse. Sem fugir dos princípios, sem
esquecer os princípios de samba e de Choro.
Leonardo Benon: As influências de hoje são da bossa nova, do jazz. Essas harmonias quebradas... é
diferente o entendimento. Você pega as gravações do Choro Livre... É tudo diferente, o jeito de tocar... É
diferente do que nêgo fazia no Rio de Janeiro. Você vê lá aquela coisa quadradinha... É outra história, é
legal, é legal também.
Augusto 7 cordas: agora, fazer essa coisa de metralhadora musical... transformar o instrumento numa
metralhadora musical, como esses violonistas mais novos aí... Na minha concepção, isso já é um exagero.
Porque eu vejo o 7 cordas como um instrumento de acompanhamento. Um instrumento para preencher os
espaços vazios quando a melodia pára. Então, você não pode competir com o solista.
Henrique Neto: Depois do trabalho principalmente do Raphael Rabello, que introduziu esse instrumento
em violão solo, outras pessoas estão desenvolvendo isso. E você pode pegar grande parte dos violonistas
que já estão seguindo essa linha também. Então, o violão de 7 cordas tem muito recurso, ele tem uma
região mais grave, que você, sabendo usar, não precisa de um acompanhamento... (...) Então ele é um
violão que se presta muito a esse trabalho também, de solo.
Dudu Sete Cordas: Dá pra contar no dedo as pessoas que não estão nessa onda de tocar jazz.
165
Marcelo: Aqui em Brasília, os caras que eu conheço tocando há dez anos, quando eu me tornei
profissional, e que tocava só Choro, hoje todos estão tocando jazz. Quase todos. Tocam mais pro lado do
jazz. Você vai ver show deles é assim: você vê o Choro, as interpretações, mas vê que a linguagem já
entrou na linha do jazz.
Leonardo Benon: hoje em dia, você vê o pessoal tocando... A galera anda tocando muita coisa com
linguagem modal, e o Choro não é baseado por aí, a harmonia do Choro não é baseada na do jazz. Tanto
que até o Garoto vir dos Estados Unidos... porque o Garoto fez uma revolução na parte harmônica da
música brasileira. Antes, a música brasileira se restringia no máximo a tétrades, uma coisa básica, um
acorde com sétima. Aí o Garoto viu o que estava sendo feito nos Estados Unidos e conseguiu adaptar.
Ficou moderno para caramba, legal! O Choro está sempre aberto para essas coisas, mas ele nunca perdeu
a linguagem na parte da melodia. A mesma coisa no contraponto. O pessoal está pegando muitas escalas
de jazz. É muito mais fácil. O cara aprende um desenho de uma escala no violão. Aí, se ele botar um
semiton pra frente, ele faz o mesmo desenho. Muito mais fácil você aprender assim do que na corda solta.
Fazer no arpejo, tocar com escalas armadas é muito mais fácil. Mas o som fica mais preso.
Frango: Porque, hoje em dia, a gente está fazendo um quarteto. O “Galinha Caipira Completa” não
envolve só o Choro. Envolve o Choro, o baião, o jazz. São vários elementos que compõem o estilo de
música que é esse trabalho novo que a gente está fazendo. (...) Então, tem o negócio do cavaquinho no
jazz, por exemplo. Dessas influencias do jazz, por exemplo. Dessas misturas todas que a gente ta fazendo
agora nesse quarteto
Laercio: Essas aulas de improvisação que eu tive são mais do mundo jazzístico, né? Porque a gente tem a
escola da vivência do Choro. Você aprende a tocar. Mas uma escola tão fundamentada como a do jazz, o
Choro não tem.
Henrique Neto: Eu procuro estudar música clássica, que é muito importante, e jazz. Não me fecho muito.
Rafael dos Anjos: No jazz tem a escala alterada, e no Choro já não tem muito. Dependendo do choro, né?
Hoje em dia, com tantas informações, os compositores já estão botando isso. O próprio Rogerinho
[Caetano], o Hamilton [de Holanda]. Na música deles já tem isso.
166
surgimento do samba, em que coabitavam os ambientes musicais populares a polca, o
lundu e o maxixe, houve uma mudança nos ritmos africanos, caracterizados por
acentuada contrametricidade:
167
Figura 1. Os Oito Batutas, no início do século XX.
168
Figura 2. Galinha Caipira Completa, no início do século XXI.
169
Ainda no início do Século XX, na Semana de Arte Moderna de 1922, essa
questão era amplamente discutida, não somente em relação à música, mas em termos de
toda a cultura brasileira. Um dos conceitos mais interessantes cunhados pelos
modernistas é o da antropofagia. O princípio antropofágico, segundo Rolnik (2000, p.
452) é engolir o outro, sobretudo o outro admirado, de forma que partículas do
universo desse outro se misturem às que já povoam a subjetividade do antropófago e,
na invisível química dessa mistura, se produza uma verdadeira transmutação. De
acordo com ele, a cultura brasileira funciona como um estômago, processando tudo o
que vem de fora, transformando aquilo em algo próprio, sem que isso comprometa sua
identidade. Os dois manifestos produzidos por Oswald de Andrade durante a década de
1920 – Manifesto da Poesia Pau-Brasil e Manifesto Antropófago (Schwartz, 1995),
defendem o livre contato das culturas, sem a preocupação em definir o que é cultura
local e o que é cultura estrangeira. Todavia, alertavam para o perigo de a cultura externa
engolfar por completo a cultura brasileira, ainda em formação, descaracterizando-a; por
outro lado, criticava o isolacionismo e o conseqüente exotismo da cultura (e da música)
brasileira, que a transformariam em “macumba para turistas”.
170
é essencialmente diferente da realidade norte-americana, sobretudo pela dependência,
mas também pela miscigenação racial e cultural, sua música irá refletir as questões que
emanam dessa realidade, que são diferentes das questões que a música ocidental se
propôs. Em outras palavras, a originalidade da música requer seu enraizamento em uma
realidade concreta e vivida. E tal realidade abarca uma constante olhada para o exterior.
Por isso, a dúvida “é choro ou é jazz?” existe desde os primórdios do Choro, e podemos
dizer que continuará existindo. Sem, com isso, que perca sua autenticidade e
originalidade.
Rafael: O que eu coloco na minha música é tudo o que eu aprendo, o que eu ouço. Tudo o que me inspira.
Não é só Choro. Eu gosto de jazz, de world music, de música pop para caramba. Eu curto mesmo. Gosto
de bossa nova. Eu gosto do Brasil inteiro, mas gosto de música americana também. Gosto do que eles
fazem lá. Eles são muito competentes no que fazem, né? É tudo isso. A minha música é tudo isso. Teve
uma época na minha vida que eu ouvi muito Pat Matheni ; ele infuenciou muito a minha música, porque
ele tem uma forma muito simples de compor. Até botei umas para o Frango tocar, passei a partitura.
O flautista carioca Fábio Luna, por sua vez, defende a idéia de que as fronteiras
entre gêneros musicais são artificais, pois eles se influenciam mutuamente, e são abertos
a influências de todo o tipo de música.
Fabio Luna: E essa história do jazz. A gente viu no Youtube o Tom Jobim falando sobre o que é o jazz,
né? Ele disse que originalmente é tudo o que balança. Depois foi estreitando essa visão, e descobriu-se
que o jazz é uma estrutura musical que tinha uma certa harmonia. Com o Choro também: era uma coisa
muito mais ampla, e depois começaram a estreitar uma coisa que era muito mais ampla.
171
Um dos aspectos mais interessantes mostrados pelas entrevistas, no âmbito da
modernização do Choro, refere-se à citação muito freqüente, por parte dos músicos
entrevistados, quando discorriam sobre inovações no Choro, da música de Hamilton de
Holanda. É importante enfatizar que Hamilton de Holanda não foi mencionado pelos
pesquisadores. A referência a ele se deu de forma espontânea. Esse notável bandolinista
teve sua carreira iniciada ainda na infância, e, muito jovem, tornou-se um virtuose do
bandolim. Foi fundador da Escola de Choro Raphael Rabello mas, por força dos
compromissos de sua profissão de músico, fixou residência no Rio de Janeiro. Apesar
disso, o som das dez cordas de seu bandolim ecoa ainda em Brasília. A relação que os
músicos guardam com ele é fundamentalmente de reverência e admiração, ainda que
alguns achem sua música por demais complexa, ainda que outros pensem que não se
trata mais de Choro, ainda que não consigam sequer defini-la. A seguir, os relatos dos
chorões sobre a nova cara do velho Choro, como o próprio Hamilton já definiu sua
música:
Dudu Maia: Eu acho que o som do Hamilton é mais um som do Hamilton. Acho que ele vai fazer tanto
som ainda... Porque ele já fez um monte de coisa, já gravou muito, já fez muita coisa diferente.
Recentemente, veio com aquele projeto íntimo, só tocando música conhecida bem relax, bem à vontade.
Eu acho que ele está trazendo muita gente desentendida para o entendimento, acho que ele tem esse
poder. Como o Yamandú também. Esse projeto Brasilianos, que é jazz ou World music, sei lá, uma
parada que virou uma linguagem universal, eu acho que tem a ver com o que está acontecendo de novo no
mundo. (...) Como o Hamilton está tocando no mundo inteiro, ele está recebendo muita informação. A
música dele virou uma coisa universal, entre aspas. Porque ele está vendo muita gente legal tocando, de
várias etnias. Não tem como não mexer com o cara, ainda mais inteligente como ele é. Ele consegue
absorver as paradas e sabe usar, né? Com esse négocio que eu tive com ele, de tocar com o Mike Marshal,
o cara do blue grass, eu vi o contexto do bandolim americano. Ele já estava lá há algum tempo. Ele
conseguiu unificar isso no bandolim dele. Ele absorveu aquela informação, e aplica e usa.
Leonardo Benon: Vê o Hamilton, não tem nem o que falar do cara, o cara é um monstro. Sabe tudo. Foi
fazendo o Choro moderno, Choro moderno, e agora está fazendo o som dele, que não é Choro. Na
verdade não é nada, é o som do Hamilton.
Marcelo Lima: Inclusive, falando do nosso mestre Hamilton, o que aconteceu com ele, na verdade foi
isso. De Choro, ele passou a tocar world music, e hoje em dia, sei lá o que ele toca. Que música é essa.
Não tem nem estilo definido. Daqui alguns anos é que vai se definir o estilo que ele toca. Mas eu tenho
certeza que a onda dele ter tocado jazz, outras coisas, fez com que ele , quando volta para o Choro, tenha
um acervo, um arquivo de possibilidades maior.
172
Reco do Bandolim: Hamilton de Holanda, quando você vê ele tocando, ele tem uma pegada do Choro. Só
que o que ele faz hoje não é Choro, ele tem uma linguagem, quando ele improvisa, fruto do talento dele,
do estudo dele. Ele tem elementos do jazz ali.
Dudu Maia: o Hamilton tem um outro jeito de tocar música brasileira, né,velho? Agora, bota ele numa
Roda de Choro. Ele vai tocar tudo e para caramba, e vai ficar na linguagem, e vai fazer Choro também.
Ao mesmo tempo [em que ele mesmo não classifica sua música como Choro] eu já ouvi ele falar que tudo
é Choro.
Leonardo Benon: mas, se você falar: Hamilton, vamos fazer um chorinho? Ele vai usar a linguagem.
Reco do Bandolim: eu estou tendo o privilégio de conviver com duas gerações bastante opostas. Eu
convivi com o Choro tradicional - eu pretendo escrever um livro -, e o conceito era um conceito bem
diferente, muito diferente.
173
Augusto 7 Cordas: Na minha época não tinha essa questão da profissionalização. Assim, do cara seguir
carreira de músico, ou tocar por cachê. A gente tocava muito por farra e tudo, né? Quando eu tinha lá
minha adolescência, quatorze, quinze anos, tinha muito esse négocio de você tocar por diletantismo, né?
Agora, a coisa mudou muito. Hoje, às vezes você liga para a pessoa e você já sabe que o cara vai...Você
já tem que dizer para o cara quanto que é o cachê. O cara fala: tá bom, Augusto. Quanto é que é o cachê e
tudo, né? Eu, particularmente, penso assim: se o negócio for profissional, eu já falo: vamos tocar de tal
hora até tal hora, e o cachê vai ser de tanto.
Tonho do Pandeiro: Por exemplo, essa turma da velha guarda, eles se reuniam. Eles tinham uma sala aqui
na 305 norte, e toda a segunda feira eles iam ensaiar, brincar. Ninguém tocava profissionalmente, mas era
sagrado: toda segunda feira eles tocavam.
Dudu Maia: Se me profissionalizei, eu devo muito, muito ao Reco. Porque a primeira oportunidade de
viver de música foi através do Clube do Choro. Não só eu, mas ele profissionalizou muita gente. Isso é
um mérito, velho, indiscutível, gigantesco, de respeito com o gênero musical. Porque essa coisa do Choro
estar associado com feijoada, boemia...
Dudu 7 Cordas: Na minha situação hoje, hoje - não sei amanhã, pode ser que melhore, dependendo da
grana que entrar - está difícil, está contadinho. Estou dando graças a Deus porque eu estou conseguindo.
Porque você viver tocando, eu acho isso maravilhoso. Eu acho show de bola. É tudo o que eu quero. É
igual jogador de futebol: viveu jogando pelada, aí o olheiro viu e mandou ele para o Flamengo. O que o
cara quer mais da vida? A diferença é que o jogador ganha bem, e músico é no perrengue.
Marcelo Lima mostra como viver de música exige muito mais do que
simplesmente ser capaz de tocar:
Marcelo Lima: Mas a profissionalização aparece muito porque alguns artistas ganham muito dinheiro,
mas são muito poucos. A profissionalização fica muito desgastante no sentido que a gente quer conquistar
alguma coisa, mas não tem espaço para todo mundo. Muito poucos são aqueles que vão ganhar de
verdade. A maioria ganha mal, e uma parte que consegue trabalhar ganha bem, mas não tanto. Não está
caindo na miséria. Na hora em que você começa a ter muito problema financeiro, você não vai conseguir
tocar, porque não vai conseguir comer, não vai pagar seu aluguel, não vai pagar nada. Então, vai ter muito
problema. A profissionalização acaba fazendo isso. Você tem que vencer, né? Então fica todo mundo
querendo essa vaga, mas é um lugar bem pequeno. No fundo, a gente acaba diversificando. A gente toca
várias coisas, faz vários trabalhos tocando. Tem as aulas, as gravações, o músico acaba tendo uma série
de atividades. Eu acho que o músico, músico mesmo, que vive da própria música, que só faz ali o que ele
quer, são os popstars mesmo. Todos os outros estão sempre com projeto. Mesmo caras grandes, famosos,
estão sempre com projetos em Caixa Econômica. Você acha que eles não precisam disso? Precisam que é
uma beleza. Agora, como eles já têm nome, têm a tendência a ganhar muito mais as coisas. Mas todos
eles trabalham muito em função disso, né?
174
A diversificação das habilidades do músico exige tempo e estudo. Exige
dedicação a outras atividades, que não só ouvir e tocar Choro. Por isso, músicos jovens
tendem a aprender a ler partituras, a desenvolver técnicas de ensino e aprendizagem, a
ter desenvoltura em tocar outras coisas fora do Choro. O veterano Augusto, que
trabalha como professor de história, reconhece que é preciso grande dedicação para
desenvolver novas habilidades; por isso, ele afirma não querer desempenhar outras
atividades ligadas ao Choro que não sejam somente tocar:
Augusto: E essa é a diferença que eu tenho para essa meninada nova, que tem tempo, tem energia e vive
de música. Você pode marcar ensaio nove da manhã, três da tarde. Eu tenho outra profissão, eu não posso
fazer isso. Se eu fosse um cara profissional e tivesse o dia inteiro, escovasse os dentes com violão,
almoçasse violão, aí tudo bem, né?
Marcelo Lima: Quando você se profissionaliza, você, por exemplo, vira funcionário de uma empresa tal.
Vai ter que seguir certas regras, vai entrar na regra de mercado. Sua rotina de viagens, sei lá.... Então, isso
pode, às vezes, cair naquela coisa de você não ter nem tempo livre de verdade para criar, para deixar sua
cabeça à vontade para receber uma idéia nova.
175
lembrar o trabalho deve ser realizado no tempo livre. Se, por meio do trabalho, uma
pessoa realiza sua produção, então, conseqüentemente, o tempo livre é improdutivo. É
o momento de realização de imbecilidades, inutilidades e futilidades. Para Adorno
(2007), essa é a essência do conceito de hobby. Um hobby é algo que não se leva
realmente a sério; ele só gera a produção de supérfluos, ou então seus produtos têm
qualidade inferior. Quando alguém abraça a música por hobby, por conseguinte, espera-
se dela que não produza nada de relevante. Essa pessoa seria, no máximo, a paródia de
um músico. Do contrário, quando alguém é músico profissional, ele tem obrigação de
mostrar produção relevante nessa área. Sendo ele operário da indústria do
entretenimento, necessariamente lhe cabe algum tempo livre. Pela mesma lógica de
nossa civilização, não poderá dedicar-se a coisas relacionadas ao trabalho em seu tempo
livre. Portanto, a radicalização da postura profissional, que é parte da lógica de nossa
sociedade, pode levar o músico profissional a não querer saber de música, de nenhuma
forma, quando não se tratar de trabalho. Reco do Bandolim identifica essa tendência
nos jovens músicos brasilienses, todos profissionais, que compõem o Choro Livre:
Reco do Bandolim: Por exemplo, agora nós estávamos com o Choro Livre. Vou fazer uma pequena
crítica aos meus queridos companheiros do Choro Livre, mas amorosamente. A gente estava não sei
aonde num desses países aí, e eu louco para tocar, já tínhamos cumprido o nosso compromisso. E quando
acabou o compromisso, ninguém queria mais saber de tocar. Nêgo quer saber de sair pra passear. Aquilo,
depois do primeiro dia, a gente geralmente fica uns três ou quatro dias passeando, ninguém mais fala em
tocar. Pô, de manhã acordam estudando (solfeja uma escala); acabou aquilo, guarda o instrumento e
falam: vamos passear. Eu fiquei olhando, e disse: gente, antigamente o sujeito ficava louco para tocar,
vamos sentar e vamos fazer uma Roda. A gente! Não é compromisso não, é pelo prazer.
Reco reclama da falta de disposição dos garotos para tocar apenas por tocar.
Menciona a relação que antigamente os chorões tinham com a música: queriam
simplesmente tocar. Os garotos fazem questão de gastar o tempo livre passeando; eles
estudam, cumprem a obrigação, mas depois desejam se ver livres daquilo que para eles
representa trabalho. Claro que esse tipo de reação à música não ocorre o tempo todo
com os jovens músicos profissionais, conforme inúmeros de seus relatos nos deixam
perceber. Todavia, o veterano Reco do Bandolim identifica neles essa tendência, e
afirma ser novidade no ambiente dos chorões. Se tal tendência se radicaliza, não mais
serão vistos chorões tocando por – nas palavras de Augusto Contreiras – diletantismo.
Mas e aqueles músicos que não têm a música como profissão? Seria correto
dizer que o Choro é para eles um hobby, no sentido entendido por Adorno (2007)? A
óbvia resposta a esse questionamento é não. Do contrário, deveríamos aceitar que Jacob
176
do Bandolim, que exerceu a profissão de escrivão durante a maior parte de sua vida,
seria uma paródia de músico. Uma afirmação imensamente absurda, considerando o
legado musical que Jacob deixou. Apenas um centésimo de sua produção no tempo livre
foi certamente muito mais relevante do que tudo o que ele datilografou em toda uma
vida de trabalho. Tampouco não são paródias de músicos os chorões veteranos de
Brasília, que, em sua maioria, exercem ou exerceram outras profissões, como é o caso
de Alencar 7 Cordas, Augusto Contreiras e o próprio Reco do Bandolim. Não, de fato o
Choro não é um hobby. O tempo livre dedicado ao Choro não produz inutilidades, nem
músicas de qualidade baixa. Os chorões não tocam somente por diversão, no sentido
entendido por Adorno (2007, p. 38), que afirma que a diversão desenfreada é a antítese
da arte. A diversão é possível somente quando o sujeito se aliena de sua realidade; para
ele, a arte requer enraizamento na realidade, pois ela é deve ser um modo de reflexão
sobre a realidade. Nas palavras de Adorno (2007, p.41): divertir significa que não
devemos pensar, que devemos esquecer a dor, mesmo onde ela se mostra. Na base do
divertimento planta-se a impotência. As falas dos chorões mostram que, embora tenham
abraçado o Choro por livre opção, essa escolha não está isenta de sofrimento. Músicos
como Augusto poderiam abandonar o Choro e seguir sua vida trabalhando durante a
semana e se divertindo nas horas vagas. Mas ele escolhe passar pelos dilemas que
música traz, submeter-se a julgamentos, por vezes impiedosos, sobre sua prática
musical, e enfrentar seu próprio senso crítico, que o compara a outros violonistas. Tudo
isso gera sofrimento. Ele gasta seu tempo livre com uma atividade que traz, entre outras
coisas, é certo lembrar, uma dose de sofrimento. Para Adorno (2007), esse é o preço
pago por aqueles que conseguem converter tempo livre em liberdade.
177
tempo de salto. Em realidade, quando os chorões falam da importância de tocar por
tocar, estão defendendo a manutenção do espaço em que o Choro ocorre fora do
ambiente estritamente profissional, cujas regras, ligadas ao conceito de produtividade,
opõem-se à lógica do tempo convivial. Este encontra refúgio nas Rodas de Choro, que,
por suas características, negam os critérios de eficiência e produtividade. Nas Rodas, o
músico experimenta a verdadeira liberdade, e exerce sua prática em maior plenitude.
Isso, contudo, não elimina a necessidade da profissionalização, como ferramenta de
fortalecimento e reconhecimento do gênero, e como possibilidade de aperfeiçoamento
dos músicos. As Rodas e o hábito de tocar por tocar têm algo a ver com a essência do
Choro, e, por isso, sua manutenção é tão importante. De fato, a fala de Marcelo Lima
transporta a reflexão de Theodor Adorno (2007) para o universo do Choro:
Marcelo Lima: A gente precisa ter muito mais Rodas e menos artistas famosos. Artistas famosos podem
ser poucos, mas muitas Rodas seria interessante.
Henrique Neto: ...pela mentalidade do Choro, por essa alegria, por esse prazer de tocar. Porque o que é
você sentar e tocar com a galera? É alegria. Confraternizar... é todo mundo que gosta da música. Então,
eu tenho isso no meu espírito, de gostar de tocar, que o Choro me deu muito.
Reco do Bandolim: A profissionalização oferece um ângulo que eu tenho reservas. Eu não sinto aquela
alegria que a gente tinha quando tocávamos a troco de nada. Eu não sinto. Eu sinto que as Rodas de
Choro que acontecem aqui em Brasília acontecem em bar pagando ao sujeito. Nêgo só vai se reunir se
tiver pagando. (...) Pergunte ao Alencar. Bicho, não tinha um final de semana que a gente... eu trabalhava
no Banco Central, (...) e a noite eu ficava em casa tirando um chorinho novo. E nós ficávamos o final de
semana de bar em bar, na casa de um e na casa de outro tocando por alegria. É o mesmo que o futebol de
Ronaldo Fenômeno... você chegou a ver Ronaldo jogando quando ele tinha 17 anos? Que alegria, que
encantamento! O Garrincha... o futebol dele. É isso que eu digo: é você jogar futebol por alegria, por
prazer, por necessidade, porque aquilo faz parte da sua vida. (...) Para mim, o sujeito, para ser um chorão
autêntico, precisa ter a alegria do Ronaldo fenômeno aos 17 anos jogando bola. Eu sentia isso com os
meus companheiros. A gente ia para tudo quanto é boteco. Quero repetir, acho importantíssima a
profissionalização. Tem que pagar, tem que receber. Mas eu sinto falta daquele espírito que existia
antigamente, todo mundo ia para casa de um, para casa de outro, ia pra um boteco. Ia tocar por alegria de
tocar. E hoje eu não vejo isso em lugar nenhum.
178
Reco discorre ainda sobre a falta que sente do espírito de alegria que existia
antigamente, e associa isso à profissionalização. Mostra, portanto, ter consciência do
risco que a radicalização das posturas profissionais traz em si, e da importância de
manter espaços onde as regras do mercado, da eficiência e da economia não têm
proeminência. Marcelo Lima completa os relatos de Reco e Henrique afirmando que a
alegria não é somente um estado de espírito dos músicos no ato da performance. Ela
está no próprio som que emana dos instrumentos. Ela não pode desaparecer, porque faz
parte da essência do Choro.
Marcelo Lima: Mas o Choro, para mim, basicamente é uma música alegre. Toda vez que eu penso em
Choro é alegria. Até a música triste do Choro é nostálgica. Ela não é depressiva. É uma saudade de uma
coisa legal que ficou na sua vida. Mas o cara não fica mal. Tipo “qui nem jiló”. Sente saudade, mas não
vai ficar chorando. Mas ele sente saudade. Faz um acorde para a pessoa que ele gostou, para o lugar que
ele esteve. Não é igual no blues, ou em algumas músicas, que a pessoa, quando perde a mulher vai se
matar, não sabe o que fazer, fica todo cheio de dor. O Choro não. As próprias linhas harmônicas e
melódicas do Choro mostram isso. O Choro tem muito acorde maior, menor e maior com sétima.
179
CONCLUSÃO
A chave para entender e tocar o Choro é simples, porém não é fácil. É simples,
pois basta adentrar o universo do gênero, que tem as portas sempre abertas, e vasculhar,
destrinchar, bisbilhotar; a partir daí, nos tornamos chorões, e então é uma questão de
tempo para que nosso desempenho no instrumento seja reconhecido como bom. É
difícil, porque requer alto nível de envolvimento; é preciso que nossa vida pessoal esteja
ligada ao Choro. É preciso gostar muito daquilo, a ponto de querer estar sempre com os
chorões em casa, nas festas, nos bares, nas viagens de férias. Não dá para ser chorão e
gostar mais ou menos de Choro, ou gostar só um pouco, ou só às vezes. Mesmo não
sendo profissional, não vivendo de música, é preciso que aquilo faça parte de nossas
vidas, e que tenhamos desejo sincero de fazer parte do Choro.
180
separada das coisas não-musicais. A música é coisa dos homens, das coletividades
humanas organizadas por suas culturas. Jonh Blacking diz que a música é o som
organizado pelos homens, e que a ordem sonora é reflexo da ordem vigente na
sociedade. Então, a música está enraizada na realidade, e é daí que emana seu sentido.
Para entendê-lo, portanto, precisamos entender a realidade onde a música está
enraizada.
As falas dos chorões mostram que sua prática musical emerge e se aprimora no
seio de uma coletividade humana envolvida com o Choro. Eles aprendem com as
181
pessoas, tocam com as pessoas e para elas. Do mesmo modo, a maior parte dos
conhecimentos associados ao gênero estão com as pessoas, e são transmitidos pela via
oral, no percurso de amizades e convivências. Os chorões vêem com naturalidade o
aprendizado informal, que desenvolve a capacidade de ouvir e reproduzir, e valorizam
essa característica. Valorizam, também, o aperfeiçoamento técnico nos limites das
capacidade do corpo humano, almejando o virtuosismo extraordinário. Por contraponto,
subordinam o uso indiscriminado da técnica, tão dura de ser adquirida, e do virtuosismo
à criatividade e à sensibilidade que produzem interpretações com expressividade.
Os chorões sentem-se livres para interpretar e para criar. Eles não interpretam,
mas verdadeiramente se apropriam das grandes obras dos compositores consagrados e
criam e recriam interpretações. Suas falas mostram que o aperfeiçoamento da prática
interpretativa, que inclui o domínio de técnicas e elementos da linguagem do gênero,
como a improvisação e a malandragem, fornece a eles os conhecimentos que necessitam
para atuar em outras áreas ligadas ao gênero, tais como ensinar, compor, elaborar
arranjos, entre outros.
182
uma imagem da alma do Choro, que, de tão fincada em nossa realidade, anda de mãos
dadas com a alma do Brasil.
A alma do Choro é redonda. A Roda é sua matriz, lugar onde foi criado e é
continuamente recriado. Na Roda, os encontros face-a-face dão o tom da música, que
acontece como diálogo instrumental. A música torna-se suporte da comunicação de
pessoas que a utilizam para estarem juntas. A Roda não é o lugar de tocarmos para
ninguém, mas de tocarmos com nossos companheiros musicais. Nesse contexto,
evidencia-se o caráter coletivo do Choro. Ela teve importância política, pois ajudou o
gênero a sobreviver às adversidades, pois ela acontecia em quintais, redutos últimos do
gênero, quando nenhum palco abrigou o Choro. A Roda, informal, alegre, dos amigos e
da cerveja, transforma qualquer mesa de boteco em altar, reverenciando a tradição e
seus mestres e sacralizando choros tocados em feitio de oração.
A alma do Choro é livre. Ele não se prende aos registros, escritos ou gravados,
nem as convenções sobre sua forma, sobre o modo como deve ser tocado, sobre os
instrumentos que lhes são característicos. O chorão é, antes de qualquer coisa, um
intérprete. Ele nunca foi, em toda sua vida de chorão, um reprodutor da partitura. Se um
dia assim o fez, ele não era ainda chorão. Pois que se nasce como chorão no exato
momento em que se faz a primeira interpretação própria de um choro, quando se ousa,
pela primeira vez, alterar qualquer coisa na música, seja ela Carinhoso de Pixinguinha
ou O Vôo da Mosca de Jacob do Bandolim.
Por fim, a alma do Choro é verde e é amarela. Ela reflete nosso modo brasileiro
de estar no mundo. O Choro é uma resposta nossa aos problemas que a realidade nos
183
impôs. Nossa música reflete o que pensamos, o quê desejamos e como agimos. Desse
modo, sem palavras, o Choro diz muito sobre nós.
184
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Teixeira, João Gabriel L. C.. A Escola Brasileira de Choro Raphael Rabello de Brasília: um
estudo de caso de preservação musical bem-sucedida. Sociedade e estado, v. .23, n.1, pp. 15-
50, 2008.
Tinhorão, José Ramos. História Social da Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro: Ed. 34,
365 pp, 1999.
Tocando com Jacob: partituras & playbacks. Rio de Janeiro: Irmãos Vitale, 2006. 140 p.
Tunes, Elizabeth e Simão, Lívia Mathias. Sobre Análise do Relato Verbal. Psicol. USP, vol.9,
n.1, pp. 303-324, 1998.
Vasconcelos, Ary. Panorama da Música Popular Brasileira. Rio de Janeiro: Martins, 1964.
Vianna, H. O Mistério do Samba. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1995. 193 pp.
Vieira, Luiz Renato e Assunção, Matthias Rohrig. Mitos, Controvérsias e Fatos: Construindo a
História da Capoeira. Revista de Estudos Afro-Asiáticos n° 34. Rio de Janeiro: Universidade
Cândido Mendes, 1998.
Zapata, Zélio. O Clube do Choro (mais uma vez) na Escola Parque. Correio Braziliense,
Brasília, 14 de novembro de 1976. Generalidades.
Zea, Leopoldo. Filosofia de la Historia Americana. México: Editora Tierra Firme, 1978. 296
pp.
188
ANEXO I – FICHAS DOS MÚSICOS ENTREVISTADOS
189
Rabello, músico atuante em apresentações e Rodas de Choro de Brasília. Entrevistado
em 07/04/2008.
190
ANEXO II – ROTEIRO DAS ENTREVISTAS
1. Qual é sua relação com o choro? Você se considera um chorão? Por quê toca choro?
2. Você toca outros estilos de música?
3. Para você, o quê significa ter boa execução no choro? O que é tocar bem no universo do choro?
4. Existem músicos que tocam mal o choro? Se sim, por quê? O quê é tocar mal o choro?
5. Como você estuda? Quanto tempo dedica ao estudo da música?
6. Como você estuda ou “tira” os choros?
7. O que você considera difícil em relação à execução dos choros?
8. O que considera fácil?
9. Você identifica diferenças entre o choro tocado em rodas, tocado em apresentações, e gravado em discos?
Quais são elas?
10. Você costuma tocar em rodas de choro? O que prefere, as rodas ou o palco?
11. Qual é o papel do professor ou dos professores na sua vida musical?
12. Como deve ser o aprendizado do choro? O que é importante para aprender a tocar choro?
13. Você tem fluência na leitura de partituras? O quê é mais fácil para você: tocar lendo ou tocar de ouvido?
14. O que é uma boa interpretação no choro, em termos musicais? E uma interpretação ruim?
15. Fale sobre a importância dos seguintes elementos na execução do choro, em Rodas, em apresentações em
geral, no Clube do Choro e no estúdio de gravação:
a. Virtuosismo/técnica
b. Musicalidade
c. Sonoridade
d. Conhecimento de teoria musical (o que é importante saber da teoria musical para executar o choro)
e. Conhecimento do repertório do choro, da história do choro, das gravações, etc.
f. Algum outro elemento importante?
16. Para você o improviso é imprescindível na execução do choro?
17. Como você improvisa?
18. O que é um bom improviso? E um improviso ruim?
19. O que é um bom acompanhamento no choro? E um acompanhamento ruim?
20. Você acha que o choro pode/deve ser tocado por instrumentos não-convencionais em relação ao regional?
21. Para você, como é tocar no Clube do Choro? Existe alguma diferença entre essa casa e outras casas de
espetáculo?
22. Para você, qual é o problema mais grave existente no universo do choro?
23. Qual seria a solução?
191
ANEXO III – CONHECIMENTO BÁSICO DO CHORO
192
improvisação que o chorão exerce a plenitude da sua liberdade criadora para construir e
desconstruir frases melódicas.
[A] em tonalidade menor [B] na região relativa maior [C] na região homônima maior
193
percussiva do cavaquinho é reforçada pelo seu registro agudo, pois é afinado uma oitava
acima do violão (Livingston e Garcia, 2005).
194
melodias e dialogam com elas; é muito comum que as baixarias façam as preparações
para os instrumentos solistas e para as modulações.
195
ritornelo. Há, contudo, muitos choros com duas partes, inclusive que fazem parte do
repertório mais comum do gênero. A forma do Choro é importante porque,
principalmente nos contextos das Rodas de Choro, os choros são tocados sem ensaio.
Portanto, é a partir da forma fixa que os músicos podem tocar sem o risco de se perder.
196