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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB

INSTITUTO DE ARTES – IDA / DEPARTAMENTO DE MÚSICA

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

INSTITUTO DE ARTES / DEPARTAMENTO DE MÚSICA

O CHORO DOS CHORÕES DE


BRASÍLIA

Ivaldo Gadelha de Lara Filho

Orientador: Ricardo José Dourado Freire

Dissertação de Mestrado

Brasília-DF: Outubro/ 2009


UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB
INSTITUTO DE ARTES – IDA / DEPARTAMENTO DE MÚSICA

UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

INSTITUTO DE ARTES / DEPARTAMENTO DE MÚSICA

O CHORO DOS CHORÕES DE BRASÍLIA


Ivaldo Gadelha de Lara Filho

Dissertação de mestrado submetida ao Departamento de Música da Universidade de


Brasília, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do Grau de Mestre em
Música e Contexto, área de concentração em processos e produtos na criação e
interpretação musical.

Aprovado por:

Ricardo José Dourado Freire, Doutor, UnB (Orientador)

Beatriz Duarte P. de Magalhães Castro, Doutor, UnB (Examinador Interno)

João Gabriel Lima Cruz Teixeira, Doutor, UNB - Sociologia (Examinador Externo)

Brasília-DF, 27 de outubro de 2009.


UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB
INSTITUTO DE ARTES – IDA / DEPARTAMENTO DE MÚSICA

LARA FILHO, IVALDO GADELHA DE

O Choro dos Chorões de Brasília, 208 p., (Departamento de Música-UnB, Mestre, Música e Contexto,
2009).

Dissertação de Mestrado – Universidade de Brasília. Instituto de Artes. Departamento de Música.

1. Choro 2. Brasília

3. Performance 4. Contexto

I. UnB-Música II. Título (série)

É concedida à Universidade de Brasília permissão para reproduzir cópias desta


dissertação e emprestar ou vender tais cópias somente para propósitos acadêmicos e
científicos. O autor reserva outros direitos de publicação e nenhuma parte desta
dissertação de mestrado pode ser reproduzida sem a autorização por escrito do autor.

________________________

Ivaldo Gadelha de Lara Filho


UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB
INSTITUTO DE ARTES – IDA / DEPARTAMENTO DE MÚSICA

Para Maria, Gabi e Titi.


UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB
INSTITUTO DE ARTES – IDA / DEPARTAMENTO DE MÚSICA

Agradecimentos

À Gabi, minha esposa, pelo seu amor e amparo, pela sua generosidade e extraordinária
capacidade de reflexão. Sem a sua presença na minha vida eu não conseguiria realizar
este trabalho.

Ao Tiago, Titi do Bandola, bandolinistinha danado, pela inspiração e pureza na relação


com a música.

À minha querida mãe Violeta e meus irmãos Tê, Nen, Flávia e Paulo, pelo amor e
lealdade.

À Beth Tunes, minha sogra, pelas discussões e incríveis sugestões de leituras.

Ao Bob, meu sogro, pela humildade e leveza com que trata a vida.

Aos entrevistados: Augustão, Marcelo, Dudu Maia, Dudu 7 Cordas, Leo Benon, Paulão,
Gordinho, Fabinho, Tonho, Henriquinho, Rafa, Frango, Lalá, César e Reco, meus
amigos das Rodas e da vida, pela boa vontade e por compartilhar os conhecimentos e
os ensinamentos que são a essência desse trabalho.

Ao Pedrinho Vasconcelos, a quem entrevistei, mas, traído pelos aparatos tecnológicos,


perdi o registro. Suas reflexões e palavras, contudo, estiveram comigo e, de algum
modo, estão no trabalho.

Aos chorões que não pude entrevistar, por simples falta de tempo, pelas amizades, pelo
acolhimento.

Aos amigos de todas as horas, Cacai Nunes e George Lacerda.

Ao Clube do Choro e à Escola de Choro Raphael Rabello, pelo irrestrito apoio.

À Tartaruga Lanches, ao Paulão e Gordinho, pelas sextas-feiras extasiantes, pelas pizzas


margueritas, pelas cachaças de bananinha.

Ao Serviço Social do Comércio – SESC, pelas horas semanais de dispensa para a


realização do trabalho.

A Wagner Campos, o primeiro a abrir os meus olhos para a musicologia brasileira.

Ao orientador, Ricardo Dourado Freire, pela ajuda e liberdade concedida para a


realização deste trabalho.
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA – UnB
INSTITUTO DE ARTES – IDA / DEPARTAMENTO DE MÚSICA

Resumo

O Choro é gênero instrumental brasileiro, surgido no Rio de Janeiro no final do


século XIX. Desde a criação de Brasília, a cidade abriga chorões. Neste trabalho,
músicos chorões de Brasília foram entrevistados, com vistas a identificar e analisar
conhecimentos e percepções acerca de sua prática musical. Também foram analisados,
por meio de observação em campo, dois contextos de performance típicos do gênero: a
Roda de Choro e a apresentação formal. Foram observadas as Rodas de Choro que
ocorrem semanalmente no Tartaruga Lanches, lanchonete localizada no final da Asa
Norte em Brasília, ao longo de um ano; foram também observadas apresentações de
artistas no Clube do Choro, tradicional casa totalmente dedicada ao gênero. A partir das
entrevistas e das observações, os seguintes aspectos relacionados ao Choro foram
analisados: modos de aprendizagem, contextos de performance, critérios de
performance, relação entre manutenção da tradição e inserção de inovações. Os
discursos dos chorões demonstraram que existe vasto conhecimento sobre o gênero
transmitido oralmente, e compartilhado por aqueles que a ele se dedicam.

Abstract

Choro is a Brazilian music instrumental genre, wich was born in Rio de Janeiro
at the second half of the nineteenth century. This work will discuss the Choro
performance and Choro musicians who live in Brasilia and their vision about their art
form. The research was based on interviews with musicians about their musical
knowledge and their perception about their musical practices. There were also a critical
observation of the fields where the Choro is played in Brasília, formal presentations that
occur mainly at the Clube do Choro and a more informal setting of “Roda de Choro” at
Tartaruga Lanches. The etnografic work took special attention at the modes of learning
by the musicians, the musical and social contexts, the relationship between tradition and
innovation. The musicians’ discourse showed that there is a deep knowledge about
happen musically and socially in the Choro field in Brasília, which is transmitted
basically by oral tradition, and shared by the ones who choosed to belong to the Choro
genre.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ..................................................................................................................................... 1

METODOLOGIA .................................................................................................................................. 4

PARTE A – HISTÓRIAS ......................................................................................................................... 7

A1. REVENDO O PASSADO ......................................................................................................................... 7


A2. DA LAPA AO PLANALTO CENTRAL ................................................................................................... 27

PARTE B – CONTEXTOS ......................................................................................................................44

B1. NA RODA DE CHORO ........................................................................................................................ 44


B2. NO PALCO DO CHORO ....................................................................................................................... 71

PARTE C ‐ MÚSICA .............................................................................................................................88

C1. NINGUÉM APRENDE CHORO NO COLÉGIO .......................................................................................... 88


C2. MÚSICA DAS NUVENS E DO CHÃO .................................................................................................. 104
C3. SALVE-SE QUEM SOUBER ............................................................................................................... 132
C4. IÊ, É MANDINGUEIRO, CAMARÁ! ..................................................................................................... 145
C5. MODERNO É TRADIÇÃO .................................................................................................................. 154

CONCLUSÃO .................................................................................................................................... 180

REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 185

ANEXO I – FICHAS DOS MÚSICOS ENTREVISTADOS .......................................................................... 189

ANEXO II – ROTEIRO DAS ENTREVISTAS ........................................................................................... 191

ANEXO III – CONHECIMENTO BÁSICO DO CHORO............................................................................. 192


INTRODUÇÃO

Independentemente da abordagem e do ponto de vista do pesquisador, a melhor


maneira de entender qualquer música é estando “dentro” dela, e é assim que me lanço
nessa empreitada. Cabe ressaltar que não nasci no berço do Choro mas, de algum modo,
minhas raízes voltaram-se para essa tradição, e hoje nutrem-se dela. Os caminhos que
me levaram ao seu encontro foram conjunturais, felizes e fortuitas coincidências. Por
acaso, ou destino, tanto faz, estive em Rodas, fui apresentado a determinadas músicas,
fiz determinados amigos, resolvi tocar clarineta. Fui criando profunda identidade com o
universo do Choro, que passou a ser o meu próprio, o lugar onde me sinto
verdadeiramente em casa. Se não nasci na tradição, vim morar nela e fui por ela
acolhido de braços abertos. Impossível é ser imparcial. Portanto, devo buscar ser justo.
Por isso, a referência fundante das reflexões do meu trabalho será o discurso dos
chorões, independentemente se concordo ou não com suas opiniões. Por isso, devo
postar-me com humildade perante as palavras desses que são os verdadeiros
conhecedores dessa música, entendendo que nenhum estudo ou título acadêmico me
tornarão jamais melhor do que eles. Ao dar voz a eles, não lhes faço nenhum favor. Pelo
contrário: eles, ao me revelarem o sentido que essa música tem para suas vidas, ajudam-
me a compreender o sentido da minha própria existência.

Este trabalho trata do gênero musical Choro e tem como objeto principal de
pesquisa a comunidade dos chorões de Brasília. Considerando que essa comunidade é
formada por pessoas conscientes do que fazem, e cujo conhecimento deve ser
valorizado pois, de algum modo, reflete as décadas de tradição que nos antecederam.
Optou-se por realizar um levantamento acerca dos elementos essenciais para o Choro a
partir do discurso dos próprios chorões de Brasília. Em outras palavras, busco, nas
páginas que seguem, descrever e analisar como os chorões entendem a música que
fazem, quais elementos valorizam, como a produzem, como interpretam, como
aprendem,etc.

São objetivos do trabalho identificar conceitos, modos de pensar, de tocar, de


criar e de agir próprios dos ambientes do Choro, bem como descrever e analisar

1
elementos musicais característicos do gênero. Desse modo, pretende-se contribuir para
ampliação do conhecimento acerca dessa manifestação musical brasileira.

Um sistema musical pode não se basear em uma teoria musical, mas, de acordo com
John Blacking (1973), ele se apóia em uma ordem sonora, em uma organização que
orienta o som. Supomos que é possível identificar uma ordem sonora subjacente ao
Choro; supomos, ainda, que os chorões têm consciência dessa ordem.Desse modo, se a
pesquisa investigar a percepção da ordem musical dos músicos que fazem parte do
universo do Choro, poderá identificar elementos dessa ordem. Uma forma de ter acesso
a esses conhecimentos é permitindo que os próprios músicos verbalizem seus conceitos
e suas percepções. Tais conceitos podem, então, ser organizados de acordo com temas,
que refletem justamente a ordem sonora do sistema musical a que dizem respeito. Foi
seguindo essa lógica que a estrutura desse trabalho foi elaborada.

A primeira parte do trabalho – Histórias (Parte A, tonalidade menor) - é dividida


em dois capítulos. No primeiro, “Revendo o Passado”, apresentamos um pouco sobre a
trajetória histórica do Choro desde sua fase inicial, ainda no século XIX no Rio de
Janeiro, passando pela sua profissionalização no começo do século XX, seu aparente
declínio a partir dos anos 40 do século passado, seu renascimento nos anos de 1970,
passando por novo declínio nos anos 80 e seu fortalecimento no início do século XXI.
Essa incursão ao passado permite-nos compreender melhor o contexto histórico-social
em que essa música foi sendo construída. Em “Da Lapa ao Planalto Central”,
apresentamos um histórico do desenvolvimento do Choro na cidade de Brasília, que
começa nos anos sessenta com a chegada dos pioneiros do Choro na nova capital,
passando pela fundação do Clube do Choro de Brasília em 1977, pela fundação da
Escola de Choro Raphael Rabello em 1998 e culminando na expansão do Choro em
Brasília nos dias atuais. A partir dessa descrição, compreendemos melhor algumas
particularidades do ambiente do Choro na capital do Brasil.

A segunda parte - Contextos (Parte B, tonalidade maior) - divide-se em dois


capítulos: “Na Roda de Choro” e “No Palco do Choro”. Trata da análise, a partir de
observações de campo, de dois contextos de performance comuns no Choro, quais
sejam, a Roda de Choro e a Apresentação Formal. São analisadas as características
ambientais, sociais, e musicais de cada um deles. Discutimos, ainda, de que forma o
contexto interfere na música, bem como apontamos para as diferenças de

2
comportamento dos músicos em cada um dos contextos analisados. Mostramos que a
vitalidade do Choro depende da existência das Rodas, pois nela ele foi criado e é
continuamente recriado. Mas os palcos do Choro são essenciais para sua sobrevivência,
na medida em que funcionam como vitrines para a sociedade e para o Estado, de cujo
apoio e valorização o Choro não pode prescindir.

A terceira parte – Música (Parte C, tema aberto a improvisações na tonalidade da


Subdominante) - é dividida em cinco capítulos. O primeiro, “Ninguém Aprende Choro
no Colégio” trata sobre os modos de aprendizagem do Choro, ou seja, como os chorões
aprendem e transmitem essa música, e quais os elementos que valorizam para o
aprendizado do Choro. Em “Música das Nuvens e do Chão”, tratamos dos critérios para
avaliação de desempenho (performance) dos chorões, com ênfase em dois aspectos
marcantes, o virtuosismo versus a expressividade, e a construção da identidade musical
do chorão. “Salve-se Quem Souber” trata de um importante critério de peformance,
considerado por muitos a marca registrada do Choro: a improvisação. Investigamos os
tipos de improvisação mais utilizados, bem como as formas como os chorões o realizam
e aprendem. Analisamos ainda, os conceitos estéticos adotados pelos chorões para a
avaliação dos improvisos. Em “Iê, é Mandigueiro Camará!”, ousamos discutir um
assunto também associado à performance, e bastante citado nas entrevistas: a poética da
malandragem. Investigamos de que forma esse espírito malandro se expressa
musicalmente no Choro. Por fim, “Moderno é Tradição” trata das polêmicas e
discussões no meio dos chorões sobre a tradição e as inserções de inovações ao gênero.

3
METODOLOGIA

Foram entrevistados 15 músicos que fazem parte da comunidade de chorões de


Brasília. Entre eles, estão professores da Escola de Choro Raphael Rabello, integrantes
do grupo Choro Livre e outros músicos atuantes em Brasília. Uma pequena ficha de
cada entrevistado encontra-se no Anexo I. As entrevistas foram aplicadas
individualmente ou aos pares ao grupo amostral. As perguntas feitas tratavam sobre
diversos aspectos relacionados às suas práticas musicais. Por meio dos relatos dos
chorões, buscou-se identificar e analisar conhecimentos e percepções acerca de sua
prática musical.

Tunes e Simão (1998) discorrem sobre as análises do relato verbal para a


realização de pesquisa na área de psicologia. Algumas de suas considerações são
importantes para esse trabalho. As autoras concebem o relato verbal não como uma
superestrutura da coleta de dados da pesquisa, mas como parte orgânica e integrante da
mesma (Tunes e Simão, 1998, p. 1). Todavia, os relatos utilizados em pesquisas diferem
dos informes cotidianos, na medida em que o pesquisador tem uma meta a ser
alcançada, e para tanto, orienta os relatos por meio de perguntas planejadas. Justamente
para que os relatos dos chorões contemplassem os objetivos da pesquisa, de acessar
conhecimentos e percepções de músicos sobre o Choro, foram utilizadas entrevistas
semi-estruturadas.

O roteiro das entrevistas encontra-se no Anexo II. Utilizou-se o mesmo roteiro


para todos os entrevistados, mas optou-se por ampliar a liberdade dos entrevistados para
versarem sobre os assuntos que mais lhes apraziam. O modelo de entrevistas semi-
estruturadas foi escolhido por ser mais adequado a esse tipo de abordagem, em que se
deseja conhecer como o entrevistado conceitua e pensa o seu fazer musical. Este modelo
metodológico, de acordo com Laville & Dionne (1999), consiste na elaboração de uma
série de perguntas abertas, feitas verbalmente em uma ordem prevista, mas na qual o
entrevistador pode acrescentar perguntas de esclarecimento (p. 188). Para eles, a
flexibilidade dessa metodologia permite obter informações mais ricas e fecundas. Para
Tunes e Simão (1998, p.1), é importante a possibilidade de alteração do roteiro pré-
estabelecido, pois ao pesquisador cabe organizar, inferencialmente, o conteúdo das

4
falas do sujeito, atribuindo-lhes significado, de modo a estabelecer condições para a
emergência de novos relatos. Desse modo, as entrevistas semi-estruturadas abrem
espaço para o aparecimento de elementos não previstos pelo pesquisador, enfatizando e
fortalecendo, portanto, a voz dos entrevistados.

Os relatos foram registrados em um gravador digital, e posteriormente,


transcritos. Conforme os dados coletados foram sendo analisados, constatou-se que
alguns assuntos e discussões eram citados com freqüência pelos entrevistados. A partir
daí, foram definidos eixos temáticos que orientaram as análises posteriores. Tais eixos
deram origem aos capítulos da dissertação. De fato, Tunes e Simão (1998) afirmam que
o relato verbal é, ele próprio, utilizado pelo pesquisador para dar prosseguimento à
pesquisa. Tal foi o procedimento adotado neste trabalho. O relato dos chorões conduziu
a definição dos temas que seriam abordados, e, a partir deles, foi sendo definida a
estrutura da dissertação.

A partir dos discursos, para cada eixo de análise, foram identificados e


analisados as convergências, divergências, conceitos, percepções, críticas, conflitos,
contradições, e uma série de outros aspectos considerados importantes para o
entendimento do Choro e de sua comunidade.

Paralelamente às entrevistas, foram realizadas observações in loco de uma Roda


de Choro, que acontece às sextas-feiras no Tartaruga Lanches, Asa Norte, Brasília,
durante o período de um ano. Foram feitos registros escritos e em vídeos das Rodas de
Choro. Foram observadas também 10 apresentações musicais no Clube do Choro de
Brasília.

Concomitantemente a esses procedimentos, foi realizado um extenso


levantamento bibliográfico sobre o Choro, com o objetivo de traçar um panorama geral
dos conhecimentos acerca deste assunto.

Primeiramente, foram selecionados trabalhos escritos sobre o Choro que


abordam aspectos do seu desenvolvimento histórico. Tais trabalhos consistem
basicamente nas biografias de grandes chorões, como Ernesto Nazareth, Pixinguinha,
Jacob do Bandolim, entre outros. Embora tragam elementos acerca da estrutura musical
do Choro, centram-se na história de vida dos personagens importantes para seu
surgimento e desenvolvimento. Por isso, são ricos em registros sobre os contextos

5
sociais em que o Choro aconteceu. Em segundo lugar, foram analisadas publicações
sobre o samba e outros gêneros da música brasileira, que, por comparação, podem servir
como modelo analítico para o estudo do Choro. Tais trabalhos também contribuem para
análise dos contextos sociais em que o Choro se inseriu, porque Choro e samba, ao
longo da história, estão musical e geograficamente próximos. É comum, também, a
presença de intérpretes e compositores que transitam entre os dois gêneros. Por último,
algumas teses, dissertações e artigos recentes trazem contribuições importantes para a
bibliografia do Choro. Esses trabalhos possuem análises mais detalhadas e
especializadas sobre aspectos musicais do gênero.

Os registros históricos forneceram informações e análises sobre os contextos em


que o Choro ocorre, cujo entendimento é de crucial importância para que se compreenda
com profundidade o universo do gênero; por serem ricos em registros de episódios e
fatos, esses trabalhos serviram como referências factuais. As análises sobre o samba,
tema cuja tradição de estudo é consideravelmente maior, trazem análises sócio-
antropológicas e musicais densas, e serviram como referências teórico-musicais para os
estudos sobre o Choro, pois samba e Choro são gêneros musicais aparentados. Por fim,
os trabalhos acadêmicos recentes, notadamente as dissertações de mestrado e teses de
doutorado, são contribuições importantes para a consolidação de um conhecimento
acadêmico sobre o Choro; todavia, por serem (como não poderiam deixar de ser)
altamente especializadas, foram utilizadas como referências pontuais.

Semelhantemente aos procedimentos para a definição dos eixos temáticos, as


teorias e os teóricos que serviram de base para nossas argumentações foram escolhidos
após definidos os eixos temáticos. Essa escolha foi estabelecida de acordo com as
abordagens dadas para cada eixo de análise. Foram utilizados teóricos não apenas da
musicologia, mas também de outras áreas do conhecimento como filosofia,
antropologia, sociologia e história.

Além das fontes de pesquisa citadas, foram utilizadas também fotografias,


partituras e registros de imagens.

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PARTE A – HISTÓRIAS

A1. Revendo o Passado

A realização de um trabalho acadêmico requer a definição precisa dos termos


utilizados e de seu objeto de estudo. Deste modo, em um texto sobre o Choro, espera-se
que, logo à primeira vista, seja encontrada uma definição clara e breve desse gênero
musical. Todavia, é impossível responder em poucas palavras à pergunta: o que é o
Choro1? Historicamente, é tratado como uma manifestação de música instrumental
brasileira que surgiu no final do século XIX no Rio de janeiro (Livingston e Garcia,
2005). A definição do termo refere-se a um estilo de tocar, a um gênero musical, e
também a uma formação instrumental específica. Esses três elementos fazem parte do
seu universo, mas não são suficientes para explicá-lo. Portanto, o entendimento de seu
significado depende de uma série de outros fatores. Diante disso, com vistas a situar o
leitor dentro do assunto, será apresentado um breve panorama do estado de
conhecimento atual sobre a história e tradição desse gênero musical.

É possível encontrar uma quantidade relativamente grande de escritos que


abordam aspectos do desenvolvimento histórico do Choro. Tais trabalhos consistem
basicamente nas biografias de grandes chorões, como Ernesto Nazareth, Pixinguinha,
Jacob do Bandolim, entre outros. Embora tragam elementos acerca da estrutura musical,
centram-se na história de vida dos personagens importantes para o surgimento e
desenvolvimento do gênero; todavia são bases importantes para qualquer trabalho
acadêmico sobre o assunto. Dentro desta variedade de fontes que tratam da história do
gênero, destaca-se a obra Choro: A Social History of a Brazilian Popular Music
(Livingston e Garcia, 2005), por ser a mais completa em termos de traçar um panorama
histórico geral para o gênero.

1
Encontra-se, no Anexo III, pequeno texto explicativo dos conhecimentos básicos sobre o Choro, que
deverá ser consultado pelo leitor que não tem familiaridade com o gênero.

7
Segundo seus autores, no final do século XIX, no Rio de Janeiro, a modinha e o
lundú representavam apenas uma parcela da diversidade de músicas que se expandiam
no contexto urbano carioca. Nele surgiam também os chamados ternos, nome usado
para definir os primeiros grupos instrumentais nos quais o Choro se desenvolveu. Um
dos ternos mais importantes desse período é o de Joaquim Antonio Callado, chamado
“Choro Carioca”. No âmbito desse pequeno grupo instrumental, alguns elementos do
estilo foram sendo definidos e algumas músicas começaram a ser conhecidas como
parte do “Choro”. Após Callado, três instrumentistas foram de crucial importância para
o surgimento do Choro. Livingston e Garcia (2005) afirmam que os quatro pilares da
tradição são os compositores Joaquim Antonio Callado (1848-1880), Anacleto de
Medeiros (1866-1907), Chiquinha Gonzaga (1847-1935) e Ernesto Nazareth (1863-
1934).

Livingston e Garcia (2005) apontam outras duas importantes tradições musicais


cariocas importantes para o surgimento e desenvolvimento do Choro: a música dos
barbeiros e as bandas de fazenda. Os ternos de barbeiros eram formados basicamente
por negros forros, que animavam festas populares. A formação instrumental consistia
basicamente de violão, cavaquinho, flauta e, dependendo da ocasião, juntavam-se a eles
trompetes, trompas e tambores de balde. Os repertórios variavam também conforme a
ocasião e a audiência, e constituíam-se basicamente de modinhas, lundus e fados. A
dança costumava estar presente, sendo comuns a quadrilha, a marcha dobrada, e as
versões brasileiras das danças ibéricas, como a tirana e o fandango. A música e a dança
foram sendo transformadas, dentre outras coisas, pelo gosto e costume local e
principalmente pela influência da rítmica africana. Ao mesmo tempo acontecia um tipo
de música muito semelhante à dos barbeiros no meio rural, denominada banda da
fazenda. Esses grupos eram formados por negros escravos que, influenciados pelas
tendências urbanas, tentavam reproduzir aquela música com formação instrumental e
repertório similar à música dos barbeiros. Segundo Livingston e Garcia (2005), a
história da formação instrumental e dos grupos de Choro foram diretamente
influenciadas pelos choromeleiros, pelos barbeiros e pelas bandas de fazenda.

No final do século XIX, com a mudança da capital de Salvador para o Rio de


Janeiro, desencadeou-se um processo migratório de negros recém libertos, de
nordestinos e de imigrantes portugueses e italianos. Essas comunidades amontoavam-se

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em cortiços no centro da cidade onde mantinham e misturavam suas práticas culturais.
Nesse período, o Rio de Janeiro passa por profundas transformações urbanas: os
cortiços são destruídos e surgem as favelas. Surgem, então, novas oportunidades de
trabalho no setor industrial e no funcionalismo público, e a classe média se fortalece.
Livingston e Garcia (2005) afirmam que o Choro foi a primeira expressão musical da
classe média carioca. O ambiente da classe média acolhia a musica da elite, dos
imigrantes e dos negros. Personagens importantes desse período foram as figuras das
Tias (senhoras negras com certa ascensão social), que promoviam em suas casas
verdadeiras festas, onde se reuniam políticos, músicos, malandros, negros, nordestinos,
imigrantes, enfim toda sorte de gente.

Importante contribuição para o estudo da história do Choro foi dado por José
Ramos Tinhorão (1999), na obra História Social da Música Brasileira. O autor, assim
como Livingston e Garcia (2005), aponta a importância da música dos barbeiros para o
desenvolvimento do Choro. Afirma ele que, naquele período, era comum a existência de
negros livres nas camadas de baixa renda da população, que se ocupavam das mais
diversas atividades, dentre as quais, a de barbeiro. Nos momentos de ócio, que eram
freqüentes neste oficio, se dedicavam também a outras atividades que exigiam
habilidades manuais, entre elas, a prática musical. Os barbeiros animavam festas
populares e religiosas, e como eram muito solicitados começaram a montar seus
próprios ternos (pequenos grupos instrumentais). Com a possibilidade de ganharem
algum dinheiro com a nova atividade, aqueles grupos de instrumentistas negros eram
praticamente os únicos fornecedores de música de entretenimento para a população dos
centros urbanos do Rio de Janeiro e de Salvador. Nos registros estudados por Tinhorão
(1999) não faltam alusões ao caráter alegre da música produzida pelos barbeiros. As
festas religiosas eram palco por excelência desses músicos citadinos. Segundo esse
autor, a segunda metade do século XIX assistiu ao virtual desaparecimento da música de
barbeiros, eminentemente negra, concomitantemente ao surgimento de uma classe
média baixa, mestiça, operária e assalariada. A herança da música instrumental negra
dos barbeiros foi passada para essa nova classe urbana que surgia no Rio de Janeiro pré-
industrial. De posse dessa tradição, os novos instrumentistas iriam, a partir dela e com
outras influências, criar o Choro (Tinhorão, 1999).

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Livingston e Garcia (2005) afirmam que os principais gêneros precursores do
Choro foram a modinha e o lundu. O termo modinha é o diminutivo de moda, termo
português que significa melodia. As modas eram populares em Portugal, e, trazidas ao
Brasil, faziam sucesso entre as camadas mais baixas da população. Eram parte do
repertório popular, tocadas e cantadas à luz da lua em serenatas nas pequenas vilas do
interior, ou nos bairros suburbanos das cidades maiores. A instrumentação da modinha
influenciou os conjuntos de Choro que posteriormente surgiram, pois eram comuns os
ternos formados por flauta, violão e cavaquinho. O lundu surgiu no início do século
XVIII a partir da tradição musical dos escravos bantos. Foi o primeiro gênero brasileiro
que combinou ritmos africanos com harmonia, melodia e instrumentação européias.
Tanto a modinha quanto o lundu se apresentavam em duas formas: uma popular e
informal, freqüente nas classes baixas, e outra, mais formal e com melodias mais
elaboradas, apresentadas nos salões das classes mais altas. O lundu era um gênero vocal,
mas Livingston e Garcia (2005) apontam para uma forma instrumental do lundu, em
que uma flauta ou clarineta eram responsáveis por tocar a melodia, acompanhados pela
viola (espécie de violão de cinco cordas) ou pelo violão de seis cordas. O lundu
instrumental, de acordo com esses autores, foi o precursor do maxixe e do Choro.

O maxixe emergiu no final da década de 1870, associado a uma dança sensual


que criou bastante polêmica. Apesar disso, o maxixe fez grande sucesso no Rio de
Janeiro, e chegou a ser apresentado em Paris. De acordo com Livingston e Garcia
(2005), o maxixe surgiu quando um grupo de dançantes do carnaval começou a
adicionar passos do lundu à polca. Para acomodar a música aos novos passos, a polca
era tocada em andamentos mais rápidos. Tinhorão (1999) afirma que o maxixe nasceu
conforme os músicos que acompanhavam os dançarinos naturalmente foram
aproximando a polca dos ritmos afrobrasileiros, a fim de facilitar os movimentos da
dança. A estrutura musical do maxixe é semelhante à da polca, com a melodia
construída em frases de oito compassos em uma forma rondó (ABACA); a diferença em
relação à polca está no andamento mais rápido e no ritmo tipicamente afrobrasileiro. O
maxixe é instrumental desde seu nascimento, e as melodias são construídas em escalas,
executadas com rapidez, e arpejos. O maxixe estava associado às classes baixas, e pela
sensualidade da dança, era considerado vulgar. Por isso, compositores de maxixes
(dentre os quais o próprio Ernesto Nazareth) não utilizavam esse termo para caracterizar
suas composições. Assim, era comum a existência de maxixes compostos sob a

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designação de tango ou tango brasileiro. Na década de 1930, o maxixe foi perdendo
popularidade para o novo ritmo local – o samba – e para gêneros importados, como o
foxtrot. Apesar disso, o maxixe permaneceu no repertório do Choro, estando presente
em composições contemporâneas.

Foi também a década de 1870 que José Ramos Tinhorão (1999) aponta como a
do surgimento do Choro. Ele toma por base o primeiro registro escrito sobre o Choro
(Choro: Reminiscências dos Chorões), datado de 1936, e escrito por Alexandre
Gonçalves Pinto, este registro foi reeditado pela FUNARTE em 1978. Alexandre Pinto
era funcionário dos correios, violonista e freqüentador das Rodas de Choro na virada do
século XIX para o XX. Seu relato traz biografias dos músicos mais destacados do início
do século XX, e descrições do ambiente dos chorões. A leitura do livro nos permite
perceber que seu autor não era escritor, tampouco tinha grandes conhecimentos
musicais, pois o texto apresenta erros de grafia e gramática, e não traz análises
aprofundadas sobre o Choro naquele período. Todavia, seu valor reside em registrar,
pela primeira vez, nomes e características de instrumentistas que, não fosse esse
esforço, estariam para sempre esquecidos.

Cazes (2005) também faz referência à década de 1870 como sendo o período em
que a nomenclatura “chorinho” começou a ser utilizada para designar o Choro. Mas ele
afirma que, se for para determinar uma data para o surgimento do Choro, seria 1845,
quando pela primeira vez a polca foi dançada no Brasil. Livingston e Garcia (2005)
referem-se ao período de 1870 a 1920 como o de intensa mudança no Rio de Janeiro,
que passou de vila provinciana a cidade industrializada. Como conseqüência da
industrialização, surgiu uma classe média urbana, formada por profissionais liberais e
pequenos funcionários da indústria que não se identificavam nem com a elite, muito rica
e poderosa, nem com os descendentes diretos dos escravos, extremamente pobres e
carentes. O Choro era a expressão musical dessa nova classe média. Livingston e Garcia
(2005) afirmam que são muitos os aspectos do Choro que o caracterizam como
manifestação de classe média: primeiramente, é preciso uma renda razoável para
obtenção dos instrumentos típicos do gênero (flauta, cavaquinho e violão); em segundo
lugar, os locais onde o Choro acontecia – quintais e casas – eram moradias de classe
média, diferentes dos cortiços e das “favelas” onde viviam as classes mais baixas.

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Observamos que, pela falta de registros precisos, não se pode identificar com
exatidão o momento do surgimento do Choro. Porém, principalmente pela contribuição
de Alexandre Gonçalves Pinto, podemos afirmar que a segunda metade do século XIX
foi de fundamental importância. Também outros indícios históricos, conforme já
explicitado, apontam esse período como o de consolidação do Choro como gênero
musical.

Sobre a origem do termo “Choro” existem inúmeras hipóteses. Uma atribui o


nome à forma melancólica com que os chorões executavam as modinhas e as serestas;
outra, a dois gêneros populares de música de salão portuguesa denominadas Doce
Lundu Chorado e Chorar no Pinho. Outra hipótese mencionada por Livingston e Garcia
(2005) faz a conexão do termo com um tipo de dança afro-brasileira chamada Xolo.
Baptista Siqueira (1967) afirma que o termo surgiu a partir de frases que se referiam a
gêneros portugueses, principalmente o lundu chorado. Gérard Béhague (1966) afirma
também existir uma ligação entre os termos Choro e xolo, dança afrobrasileira. Ary
Vasconcelos (1984, apud Livingston e Garcia, 2005) afirma que o termo originou-se de
choromeleiro, o tocador de choromela. A choromela, instrumento similar a clarineta e
oboé era um instrumento de sopro popular na Europa, e, trazido ao Brasil, era tocado em
Minas Gerais. Na década de 1830, muitos choromeleiros se mudaram para o Rio de
Janeiro, e esse instrumento tornou-se comum na cidade, e passou a fazer parte de sua
vida cultural. Aos conjuntos instrumentais que possuíam a choromela, dava-se o nome
de choromelos, e de choromeleiros a todos os que dele faziam parte (sendo ou não
tocadores de choromela). Quando a choromela foi substituída pela flauta, o nome foi
mantido como designação desses conjuntos instrumentais.

A partir do final do século XIX e início do século XX, grandes nomes do Choro
começaram a ter maior projeção. Eram compositores e músicos virtuoses. Em geral, a
história do Choro se conta a partir das proezas musicais desses notáveis chorões. Por
isso, um grande número de biografias de chorões estão disponíveis. A partir das
histórias pessoais dos chorões, é possível se conhecer a história e o desenvolvimento do
gênero. A seguir, são citadas algumas dessas biografias.

Considerado o pai dos chorões, Joaquim Callado viveu entre 1848 e 1880. Em
sua biografia, André Diniz (2002), narra a trajetória do flautista de fundamental

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importância para a história do Choro, por ter criado, em 1875, o primeiro conjunto de
Choro que se tem registro, formado por flauta, cavaquinho e violão.

Em 1979, Marília Trindade Barboza da Silva e Arthur de Oliveira Filho


publicaram a primeira biografia daquele que sem dúvida é considerado o maior
expoente do Choro. Filho de Ogum Bexiguento (Silva e Oliveira Filho, 1979) traça a
história de Alfredo da Rocha Vianna, o Pixinguinha, do nascimento até sua morte, em
1973. Pixinguinha, nascido em 1898 no Rio de Janeiro, esteve presente nos momentos e
lugares mais importantes da história do samba e do Choro. Desde a Casa da Tia Ciata,
que freqüentava desde menino, berço do samba, onde foi composta a famosa “Pelo
Telefone”, passando pelos “Oito Batutas”, até a inauguração do rádio, Pixinguinha
esteve presente. Teve igual e impressionante vulto em três campos da música brasileira,
principalmente o Choro: interpretação (como exímio flautista), composição e
orquestração. Na segunda metade do século XX, quando Pixinguinha se encontrava em
situação financeira difícil, foi convidado pelo flautista Benedito Lacerda a realizar uma
série de gravações de seus choros. Como condição, as composições deveriam ser
registradas como de autoria de Pixinguinha e Benedito Lacerda; além disso, Benedito
Lacerda tocaria os solos na flauta, e Pixinguinha faria os contrapontos no saxofone.
Devido a esse contexto peculiar, Pixinguinha deixou, nos contrapontos de seu saxofone,
uma de suas contribuições mais geniais para o Choro. Outra biografia de Pixinguinha
foi posteriormente publicada em 1997, por Sérgio Cabral (1997). O livro consiste em
monografia vencedora de concurso promovido pela Funarte. Editado por Almir
Chediak, o livro abarca os 62 anos de atividade artística do músico e compõe um dos
melhores retratos de sua personalidade. Um apêndice traz a discografia completa de
Pixinguinha.

Em 2005, foi publicada importante biografia de Ernesto Nazareth (Ernesto


Nazareth, Pianeiro do Brasil; Costa, 2005), um dos pilares do Choro, cuja história
permanece ainda repleta de mistérios. Ernesto Júlio Nazareth nasceu no Morro do
Nheco (hoje Morro do Pinto) em 20 de março de 1863. Aprendeu a tocar piano com a
mãe, morta quando ele tinha dez anos. Ainda na infância, sofreu uma queda que lhe
trouxe complicações auditivas. A primeira música, uma polca-lundu chamada “Você
Bem Sabe”, foi escrita aos 14 anos. Autor de peças essencialmente instrumentais, fazia
canções para serem escutadas, não dançadas, como afirmou certa vez. Se o público não

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prestasse atenção, parava de tocar. Em 1902, no mesmo ano em que foi feito o primeiro
registro fonográfico no País, teve sua composição “Está Chumbado” gravada pela
Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro, sob regência de Anacleto de
Medeiros. Anos mais tarde ganharia fama ao piano da sala de espera do cinema Odeon
— para o qual rendeu uma homenagem no tango que leva o nome da sala. Por toda a
vida renegou o maxixe, dizendo que era “ritmo menor”, embora sua música contivesse
muitos elementos desse ritmo. Em fevereiro de 1934, Ernesto Nazareth saiu escondido
da colônia Juliano Moreira, no Rio de Janeiro. Estava internado para tratar-se de um
distúrbio nervoso causado pela sífilis. Foi encontrado três dias depois, morto, na
Cachoeira dos Ciganos, localizada em uma floresta próxima. Os jornais da época,
romanticamente, noticiaram que estava sentado com os braços estendidos, como se
tocasse piano.

Outra obra de extrema importância foi publicada anteriormente, em 1967


(Baptista Siqueira, 1967). Com o título “Ernesto Nazareth na Música Brasileira”, trata-
se da primeira biografia desse compositor. Os capítulos finais do livro trazem
interessantes análises musicais de algumas peças de Nazareth, além de considerações
acerca de questões polêmicas, tais como “Opiniões falsas sobre a música de Nazareth” e
“Críticas às deturpações de toda a natureza”. Antes disso, em 1963, Aloysio de Alencar
Pinto publicou dois ensaios na Revista Brasileira de Música (Pinto, 1963, a e b), em que
relata passagens importantes da vida de Ernesto Nazareth, relacionados principalmente
à sua atuação como pianista e compositor.

Interessante obra sobre Ernesto Nazareth, publicada também em 1963, por Jaime
C. Diniz (1963), cujo título é “Nazareth: estudos analíticos”, traz a tentativa de analisar
quatro peças de Ernesto Nazareth. Segundo o autor, na análise da música de Nazareth
estariam presentes os aspectos “estético, histórico, crítico ou até polêmico”. As peças
analisadas são: Você Bem Sabe, Celestial, Favorito e Marcha Fúnebre. Nas análises de
cada peça, o autor faz comparações com outras peças do próprio Nazareth, e com
composições de outros autores. O autor analisa minuciosamente as peças trecho a
trecho, oferecendo inclusive transcrições daqueles mais importantes. No rol de obras
que se limitam a tratar da biografia dos grandes chorões, a obra de Jaime Diniz (1963)
se destaca por trazer análises musicais.

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A vida de Chiquinha Gonzaga foi relatada também em duas biografias (uma
delas deu origem a uma minissérie televisiva): Chiquinha Gonzaga: Uma História de
Vida (Edinha Diniz, 1999) e A Memória Social de Chiquinha Gonzaga (Milan, 2000).
Maior personalidade feminina da história da música popular brasileira e uma das
expressões maiores da luta pelas liberdades no país, promotora da nacionalização
musical, primeira maestrina, autora da primeira canção carnavalesca, primeira pianista
de Choro, introdutora da música popular nos salões elegantes, fundadora da primeira
sociedade protetora dos direitos autorais, Chiquinha Gonzaga nasceu no Rio de Janeiro,
em 1847. A estréia como compositora se deu em 1877, com a polca “Atraente”,
composta de improviso durante Roda de Choro em casa do compositor Henrique Alves
de Mesquita. Por desafiar os padrões familiares da época, sofreu fortes preconceitos. Já
era uma artista consagrada quando compôs, em 1899, a primeira marcha-rancho, “Ó
Abre Alas”, verdadeiro hino do carnaval brasileiro. Sua obra reúne dezenas de partituras
para peças teatrais e centenas de músicas nos mais variados gêneros: polca, tango
brasileiro, valsa, habanera, schottisch, mazurca, modinha etc. Chiquinha Gonzaga
faleceu aos 87 anos de idade, no dia 28 de fevereiro de 1935, no Rio de Janeiro.

André Diniz (2007) publicou a biografia de Anacleto de Medeiros, maestro,


compositor e arranjador de grande importância nos primórdios da história do Choro no
livro O Rio Musical de Anacleto de Medeiros, a vida, a obra e o tempo de um mestre do
choro. Para resgatar a trajetória musical de Anacleto, o autor analisa as transformações
urbanas, sociais e culturais do Rio de Janeiro na virada do século XIX para o XX.
Anacleto de Medeiros é um nome fundamental na história da música brasileira, e seu
trabalho como maestro e fundador de bandas tornou-se um marco. Anacleto rompeu
com a forma dura com que as bandas marciais tocavam, imprimindo a elas suavidade e
delicadeza na interpretação. Atribui-se a ele a “iniciação” de muitos chorões, em sua
grande maioria músicos amadores, na atividade profissional, incorporando-os às bandas
de sua criação. Suas composições influenciaram grandes nomes como Villa-Lobos,
Pixinguinha, Jacob do bandolim e Radamés Gnatalli, e são tocadas nas Rodas de Choro
até os dias de hoje.

Anacleto Augusto de Medeiros, nasceu na ilha de Paquetá no estado do Rio de


Janeiro em 1886. Filho de uma escrava liberta, iniciou seus estudos musicais na banda
de Música do Arsenal de Guerra da Corte aos nove anos, e posteriormente no

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Conservatório de Música do Rio de Janeiro. Anacleto trabalhou como regente e
instrumentista em teatros, grupos de Choro, festas familiares e religiosas, clubes e
sociedades musicais. Mas foi na Banda do Corpo de Bombeiros, organizada por ele, que
sua ação de educador, compositor e regente influenciou profundamente os rumos da
música popular e fez com que ele, definitivamente, entrasse para a história. O maestro
Anacleto, ao lado de Joaquim Callado, Chiquinha Gonzaga e Ernesto Nazareth, também
foi um dos pilares do Choro.

Jacob do Bandolim, um dos mais importante bandolinistas do Choro, teve sua


biografia escrita por Ermelinda A. Paz, em 1997. O livro descreve diversas passagens da
vida profissional e pessoal do bandolinista, e fornece vasta iconografia, partituras,
discografia e depoimentos. Jacob Pick Bittencourt nasceu em 14 de fevereiro de 1918,
no Rio de Janeiro. Despertou para a música por volta dos 12 anos de idade, época em
que tocava gaita para os colegas da escola. Seu primeiro instrumento foi um violino,
que pediu à mãe ao ouvir um vizinho francês que executava o instrumento. Não se
adaptando ao uso do arco, passou a tocá-lo com o auxílio de grampos de cabelo. Foi
então, que uma amiga de sua mãe explicou que havia um instrumento próprio para esse
tipo de execução, e assim o bandolim entrou em sua vida. Durante toda a década de
1930, se dividiu entre a música e diversos trabalhos: foi vendedor, prático de farmácia,
corretor de seguros, comerciante e escrivão de polícia, cargo que ocupou até morrer. Por
não depender financeiramente da música, pôde tocar e compor com mais liberdade, sem
sofrer pressões de gravadoras ou editoras.

Sua primeira grande chance aconteceu quando o flautista Benedito Lacerda o


convidou a participar do "Programa dos Novos - Grande Concurso dos Novos Artistas",
da Rádio Guanabara. Como intérprete, possuía não só estilo, fraseado, toque
extremamente personalizado, mas um vasto repertório que em um caderno de notas sob
o título de "repertório trivial" contava com 329 títulos. Músico extremamente exigente e
perfeccionista, era muito rígido na sua vida pessoal e musical. Por meio das
apresentações no rádio, firmou-se na música. Tocou nas mais importantes rádios da
época, desde a Rádio Guanabara, até na Rádio Nacional. A partir de 1951, e pelo
período de 10 anos, foi acompanhado pelo Regional do Canhoto. Em 1966, organizou o
conjunto Regional Época de Ouro, integrado inicialmente por Dino Sete Cordas no
violão de 7 cordas, César Faria, no violão, Carlos Leite, também no violão, Jonas da

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Silva no cavaquinho, e Jorginho no pandeiro. O Época de Ouro é, até os dias atuais,
considerado um dos melhores regionais de Choro já existentes. As composições de
Jacob, como "Noites cariocas", "Receita de Samba", "A Ginga do Mané", "Doce de
Côco", "Assanhado", "Treme-treme", "Vibrações" e "O Vôo da Mosca" tornaram-se
verdadeiros clássicos do repertório de Choro. Jacob faleceu em 13/08/1969, de infarto
do coração, quando retornava da casa de Pixinguinha.

Outra contribuição importante para o estudo do Choro foi dada por Silva (2004),
que apresenta um estudo biográfico sobre o bandolinista Luperce Miranda. Barbosa
(2004) faz um estudo da presença dos instrumentistas de cordas pinçadas no Choro e na
música brasileira. Além disso, a autora faz uma interessante análise dos elementos
contextuais que influenciaram os modos de tocar e compor dos três músicos que se
destacaram como solistas de instrumentos de cordas pinçadas no decorrer do século
XX: Luperce Miranda, Jacob do Bandolim e Waldir Azevedo (cavaquinho).

O mais importante cavaquinista da história do Choro, Waldir Azevedo, teve sua


biografia escrita por Marco Antônio Bernardo (2004). Waldir Azevedo nasceu em 27 de
janeiro de 1923, no Rio de Janeiro. Seu primeiro instrumento, uma flauta, adquiriu
quando tinha sete anos de idade. Pouco depois, trocou a flauta por um bandolim e
começou a se reunir com amigos para tocar música, aos sábados. Do bandolim foi para
o cavaquinho, instrumento com o qual se tornaria conhecido nacionalmente anos mais
tarde. Sua primeira apresentação foi como flautista, no Carnaval de 1933, quando tocou
"Trem Blindado". Até meados da década de 1940, a música era para ele uma atividade
de amador. Iniciou a carreira profissional em 1940 quando montou um Conjunto
Regional e começou a se apresentar em diversos programas de calouros. Em 1945,
entrou para o Regional de Dilermando Reis, que, posteriormente, passou o grupo para
seu comando. No final da década de 1940, compôs e gravou o “Brasileirinho”, sem
dúvida um dos Choros mais conhecidos e tocados. Waldir é reconhecido por ter trazido
o cavaquinho, instrumento sempre usado para acompanhamentos, para o solo,
explorando novas potencialidades para o instrumento. Gravou mais de cinqüenta discos,
e excursionou por diversos países. Em 1980, faleceu na cidade de Brasília.

Dilermando Reis, violonista, teve biografia escrita por Genésio Nogueira (2002).
Um dos mais importantes violonistas brasileiros, atuou como instrumentista, professor
de violão, compositor, arranjador, tendo deixado uma obra vultuosa e versátil, composta

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de guarânias, boleros, toadas, maxixes, sambas-canção e, principalmente, valsas e
choros. Iniciou sua vida profissional aos 18 anos de idade. Em 1956, por interferência
do recém-empossado presidente Juscelino Kubitschek, assinou contrato com a Rádio
Nacional, para estrelar o programa "Sua majestade, o violão", nos primeiros anos
apresentado por Oswaldo Sargentelli e, posteriormente, por César Ladeira. Foi professor
de violão do então Presidente da República Juscelino Kubitschek e de sua filha. De
1941 a 1962, lançou 34 discos de duas faces com 68 músicas em 78 rpm. Dentre essas,
43 de sua autoria. Gravou também um total de 35 LPs. Em alguns de seus LPs foi
acompanhado pelos grandes violonistas Horondino Silva, o Dino Sete Cordas, e Jaime
Florence, o Meira. Além de sua vasta obra, deixou muitos arranjos editados.

Recentemente, grande contribuição para o bibliografia do Choro foi dada por


Cazes (2005) que tenta refazer a trajetória histórica do Choro. Em seu livro Do Quintal
ao Municipal, Cazes (2005) apresenta pequenas biografias de compositores, intérpretes
e arranjadores que foram importantes para a história do Choro. A importância do livro
reside em ter sido o único, até então, a conseguir reunir os principais fatos e
personagens do Choro em um volume.

Sem reduzir o valor do livro de Henrique Cazes (2005), a publicação Choro: A


Social History of a Brazilian Popular Music (Livingston e Garcia, 2005) é a mais
completa que trata de toda a história do gênero. Os autores realizaram extensa pesquisa
nas publicações de autores brasileiros que continham alusões ao Choro e sua história.
As informações foram, então, reunidas em um livro que conta, com a maior riqueza de
detalhes e precisão possíveis, a história e o desenvolvimento do gênero até os dias
atuais.

A partir de sua consolidação como gênero instrumental brasileiro, que ocorreu


nas primeiras décadas do século XX, o Choro viveu períodos de esplendor e de declínio.
Livingston e Garcia (2005) identificaram 5 períodos para a história do Choro a partir de
1920: o da profissionalização do Choro (1920-1950); o do declínio do gênero (décadas
de 1950 a 1970); o do seu renascimento (década de 1970); o de um novo declínio
(década de 1980), e o período contemporâneo.

O período descrito como o da profissionalização do choro inicia-se na década de


1920 a partir de um processo, apontado por Hermano Vianna (1995), como crucial para

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a consolidação do Choro e do samba como gêneros tipicamente brasileiros. Trata-se da
tomada de consciência, por parte dos músicos e dos intelectuais da época, de que aquela
música produzida nos subúrbios cariocas poderia ser considerada uma autêntica
expressão da cultura brasileira. É importante ressaltar que a condição colonial do país
tornava-o um importador cultural por natureza; a subvalorização da colônia incentivava
a imitação daquilo que era considerado civilizado e nobre: a cultura e a sociedade
européias. Esse pensamento, contudo, gerava respostas no seio da sociedade brasileira,
notadamente entre os intelectuais, que buscavam encontrar, criar, enaltecer e fortalecer
uma cultura que fosse genuinamente brasileira. Conforme a mistura de raças deu origem
a um povo mestiço, esses intelectuais entendiam que uma cultura mestiça seria então a
genuína expressão de um povo mestiço. O Choro, assim como o samba, encaixou-se
perfeitamente nessa teoria.

Hermano Vianna (2005) mostra que foi com intenção deliberada de músicos e
intelectuais que o Choro e o samba passaram a ser considerados gêneros brasileiros,
expressões culturais genuínas de seu povo. Ele inclusive cita uma data como início
desse processo: precisamente em 18/09/1926. Nessa noite, ocorreu um inusitado
encontro entre intelectuais e músicos, em alguma birosca dos subúrbios cariocas. Nele
estavam presentes o sociólogo Gilberto Freyre, o jornalista Prudente de Moraes Neto, o
historiador Sérgio Buarque de Holanda, Heitor Villa-Lobos, o músico francês Luciano
Gallet, o sambista Patrício Teixeira e os chorões Pixinguinha e Donga. Sobre esse
encontro, o humor ácido no relato de Gilberto Freyre torna claro sua forma de pensar o
Brasil e a cultura brasileira, e evidencia o projeto de criação e enaltecimento de uma
música e uma cultura brasileiras, a ser empreendido pelo povo filho da mestiçagem:

Ontem, com alguns amigos – Prudente, Sérgio – passei


uma noite que quase ficou de manhã a ouvir Pixinguinha,
um mulato, tocar em flauta coisas suas de carnaval, com
Donga, outro mulato, no violão, e o preto bem preto
Patrício a cantar. Grande noite cariocamente brasileira.
Ouvindo os três sentimos o grande Brasil que cresce meio
tapado pelo Brasil oficial e postiço e ridículo de mulatos
a quererem ser helenos (...) e de caboclos interessados
(...) em parecer europeus e norte-americanos; e todos
bestamente a ver as coisas do Brasil (...) através do
pince-nez de bacharéis afrancesados (Freyre, 1979, p.
303 apud Vianna, 2005, p. 27).

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Hermano Vianna (2005) defende a idéia de que, ao mesmo tempo em que
políticas e ações eram empreendidas no sentido de coibir e impedir que manifestações
culturais e religiosas afrobrasileiras e mestiças tomavam lugar no país, grupos de
intelectuais e artistas militavam pela aceitação delas, sob o argumento de que eram
autenticamente brasileiras. Esses grupos visavam implementar um projeto nacionalista,
que rechaçava as meras imitações da vida e da cultura européias e norte-americanas. A
música – principalmente o samba e o Choro – por serem mestiços, populares e, por que
não dizer, altamente sofisticados, eram importantes exemplos de confirmação desse
projeto, e de afirmação da capacidade do povo brasileiro de produzir sua própria
cultura. Cabe aqui citar que, em 1922, a Semana de Arte Moderna, realizada cem anos
depois da independência formal do Brasil, amplificou as vozes nacionalistas, pois tinha
como objetivo declarado a valorização e o desenvolvimento de uma cultura brasileira
autêntica. Foi, então, de acordo com Vianna (1995), no âmbito desse projeto
nacionalista que se “inventou” a tradição nacional-popular brasileira, em que a música
desempenhou papel fundamental.

A partir desse encontro, e por tudo o que ele representou, o Choro passou a ser
apoiado e incentivado por importantes grupos da elite brasileira. O caldeirão fervilhante
de ideais nacionalistas induziu mudanças no próprio Choro, sendo importante a
emergência dos chamados conjuntos regionais. Até a década de 1920, o Choro era
música de amadores, pois, embora muitos chorões fossem exímios instrumentistas, a
maioria deles necessitava desempenhar outras ocupações para garantir o sustento. A
partir dessa data, apresentações de Choro começaram a ser realizadas principalmente no
cinema mudo. Juntamente com isso, surgia a incipiente indústria da gravação. Esses
novos contextos alteraram os conjuntos de Choro, que incorporaram o pandeiro como
instrumento de percussão e o violão de sete cordas em praticamente todas as
apresentações; com essas novas exigências, surge a possibilidade de chorões se
dedicarem à música como profissão. Fator de vital importância para a profissionalização
do Choro foi o surgimento da gravação e do rádio. Em 1902, a Casa Edison iniciou a
realização de gravações mecânicas no Brasil. Todavia, essas gravações eram feitas
somente com instrumentos de sopro, que atingiam volume suficiente para serem
gravados com essa tecnologia. Mas, a partir de 1920, o advento do microfone elétrico
mudou isso, e os conjuntos regionais podiam ser gravados. A primeira transmissão de
rádio brasileira se deu em 7 de setembro de 1922, na comemoração do centenário da

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independência. Influenciada pela atmosfera nacionalista da Semana de Arte Moderna, a
transmissão incluiu O Guarani, de Antônio Carlos Gomes, e alguns choros tocados por
Pixinguinha e os Oito Batutas. Os conjuntos regionais surgiram pela alteração desses
primeiros grupos de chorões que se apresentavam ao vivo nos rádios. Nas décadas de
1930 e 1940 os regionais eram os carros-chefe da indústria do Rádio, sendo esse o
período mais glorioso do Choro. Pelo rádio, os regionais alcançavam as partes mais
remotas do país. Assim, o Choro ficou conhecido não somente como música carioca,
mas como música nacional.

Nas rádios, os regionais desempenhavam inúmeras funções, sendo exigido de


seus músicos grande versatilidade e amplo conhecimento musical. Aos regionais cabia
acompanhar os cantores, fazer a música de fundo e preencher as lacunas dos programas
de rádio, momentos em que executavam o Choro. Esses conjuntos acompanhavam todo
o tipo de música, incluindo sambas, modinhas e músicas norte-americanas.
Normalmente, faziam uma introdução improvisada, para que o cantor começasse sua
performance. Nos sambas, a introdução era feita pelo bandolim, flauta ou outro
instrumento melódico. Esses instrumentos também improvisavam contrapontos à
melodia ao longo da música. As baixarias do violão de sete cordas também eram
improvisadas. Em geral, horas antes do Regional entrar no ar, os músicos se
encontravam e decidiam o quê iriam tocar, os tons, e outros detalhes musicais; apesar
disso, a performance era repleta de improvisos, não só dos violões e dos instrumentos
melódicos, pois o pandeiro e o cavaquinho criavam também variações no ritmo e no
centro.

As principais rádios atuantes nas décadas de 1930 e 1940 possuíam seus


próprios regionais. Eram elas: Rádio Guanabara (Gente do Morro e Jacob e sua gente);
Rádio Transmissora (O Regional de Claudionor Cruz); Rádio Clube (Waldir Azevedo e
Seu Regional); Rádio Tupi (Regional de Benedito Lacerda e Regional de Rogério
Guimarães); Rádio Mayrink Veiga (Regional do Canhoto); Rádio Nacional (Regional
de César Moreno e Regional de Dante Santoro); Rádio Mauá (Jacob e Seu Regional,
Regional de Darly do Pandeiro e Regional de Pernambuco do Pandeiro).

A partir do final da década de 1940, um conjunto de fatores contribuiu para o


declínio dos regionais das rádios. Primeiramente, a saída de Getúlio Vargas do poder,
em 1945, fez diminuir o teor altamente nacionalista do Estado brasileiro, que protegia

21
deliberadamente a cultura do país da entrada de culturas estrangeiras, notadamente a
norte-americana, que, com força total, já se fazia presente em outros países do planeta.
Com a saída de Getúlio do poder, as rádios, antes controladas pelo governo, tornaram-se
majoritariamente privadas, podendo incluir na programação elementos que antes não
eram permitidos. Sendo privadas e “livres”, as rádios estavam, então, à mercê das forças
do mercado. Na prática, isso significou a ampliação da influência da música norte-
americana, e a redução do espaço para os gêneros brasileiros. Os regionais foram sendo
substituídos por conjuntos semelhantes às bandas e orquestras de jazz. Mas isso durou
pouco, pois, na medida em que as rádios reduziam a programação ao vivo e utilizavam
gravações, a presença cara e desgastante de conjuntos de músicos foi se tornando
desnecessária. Os chorões ficaram desempregados. Alguns deles foram tocar em bandas
de jazz e outros simulacros da música norte-americana; outros, simplesmente
desapareceram da cena da música profissional. Nessa época, o Choro era executado em
orquestras. Apesar disso, o Choro continuava recrutando jovens músicos que, embora
não fossem muitos, eram suficientemente bons para serem notáveis. É o caso de Garoto,
violonista e compositor que marcou a história do Choro. Ele participou de regionais de
rádio mas, em 1939, foi aos Estados Unidos como parte do Bando da Lua, grupo que
acompanhava Carmem Miranda. Garoto se aproximou do jazz, o que é evidente em suas
composições, que traziam inovações em relação ao Choro “convencional”. Tais
inovações foram o primeiro passo para um novo caminho que se abria na música
brasileira: o da bossa-nova.

A emergência da bossa-nova, gênero brasileiro, em vez de reafirmar cultura e a


música brasileiras em geral, o que poderia fortalecer o Choro, acabou por marginalizá-lo
de vez. Isso porque a bossa-nova, juntamente com o rock’n’roll da Jovem Guarda, eram
considerados brasileiros e “modernos”. Juntamente com isso, a música norte-americana
era ouvida nos quatro cantos do país. O Choro, nos anos 60, sofreu forte retração, não
sendo mais visto como a “música nacional”, mas como uma música antiga, velha, que
nada tinha a ver com o Brasil moderno que parecia surgir. Apesar disso, alguns exímios
músicos mantiveram a tradição, ainda que recolhida aos quintais, e ainda trouxeram
importantíssimas contribuições para o desenvolvimento e história do gênero. Nesse
período, o esforço e o empenho individuais foram de enorme serventia. Dentre esses,
destacam-se: Garoto, Jacob do Bandolim, Waldir Azevedo, Dilermando Reis e Altamiro
Carrilho.

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A segunda metade da década de 1970 assistiu ao que Livingston e Garcia (2005)
denominaram renascimento do Choro. Eles citam um evento, produzido por Sérgio
Cabral em 1973, denominado Sarau, em que se apresentaram Paulinho da Viola
acompanhado do conjunto Época de Ouro, como o início desse ressurgimento. Para
eles, esse evento foi o ápice de um processo, iniciado ainda na década de 60, de
aproximação do Choro e do samba das classes médias cariocas. Tal processo foi
empreendido por um pequeno grupo de pessoas, do qual Sérgio Cabral, eminente
jornalista e crítico musical, fazia parte. O movimento de ressurgimento do Choro
concedia aos jovens chorões grande importância, porque aos jovens caberia manter a
tradição e a continuidade do gênero. De fato, eram poucos, pois a juventude nesses
tempos ocupava-se do rock. Apesar disso, entre eles havia grandes instrumentistas, com
destaque para Raphael Rabello, um dos maiores violonistas que o Choro já viu. Em sua
juventude, na década de 70, Raphael conhecia o Choro por meio de Rodas e pequenos
eventos freqüentados por amigos e parentes, a maioria mais velhos do que ele.
Livingston e Garcia (2005, p.136) transcrevem interessante relato desse notável
violonista acerca de seus inícios no Choro:

O que eu sei é que as pessoas realmente gostam quando


ouvem Choro. As pessoas da minha idade acham
estranho eu tocar essa música, mas ficam loucas com ela.
É simplesmente porque nunca ouviram no rádio ou na
televisão, e não têm nenhum preconceito contra ela.
(Relato de Rapahel Rabello, apud Livingston e Garcia,
2005, p. 136)

Esses jovens chorões da década de 70 eram, em geral, da classe média e homens,


embora houvesse mulheres envolvidas, como Luciana Rabello, Dolores Tomé, Beth
Ernest Dias (Livingston e Garcia, 2005). É interessante notar que todas as mulheres
citadas por Livingston e Garcia (2005) são parentes de instrumentistas (Luciana é irmã
de Raphael, Dolores é filha do flautista José Tomé e Beth é filha de Odette Ernest Dias,
renomada flautista envolvida com o Choro, e matriarca de uma enorme família de
músicos). Na década de 70, Rodas de Choro ressurgiram e tornaram-se badaladas, sendo
freqüentadas pela alta classe média carioca. É o caso do Sovaco de Cobra, boteco em
que acontecia uma Roda freqüentada pelos mestres Altamiro Carrilho, Abel Ferreira,
Paulo Moura, Dino 7 Cordas, e por jovens instrumentistas que com eles queriam
aprender mais sobre o gênero.

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Foi também na década de 70 que surgiram os Clubes do Choro, primeiramente
no Rio, em 1975, e, depois, em Brasília, em 1977. Os Clubes do Choro foram,
posteriormente, instituições importantes para a manutenção do gênero. Nesse período, o
Choro recebeu apoio governamental por meio da Fundação Nacional de Arte
(FUNARTE) e do Museu Nacional da Imagem e do Som (MIS). Gravadoras nacionais
(Marcus Pereira, CID, Eldorado, Copacabana e Continental) e transnacionais (RCA,
CBS, Warner, EMI e Polygram) lançavam gravações de Choro. Algumas dessas
gravações eram novas produções, mas a maioria eram relançamentos das gravações dos
regionais das rádios das décadas de 40 e 50. Por isso, Livingston e Garcia (2005)
caracterizam esse período como sendo o do “renascimento” do Choro tradicional. Com
isso, querem dizer que poucas inovações foram introduzidas no gênero. Os autores
destacam a gravadora Marcus Pereira pelo importante trabalho de gravar discos com
música popular brasileira, projeto em que o Choro foi agraciado com o lançamento de
18 discos (entre os 144 lançados pela gravadora em 10 anos).

No ano de 1977, dois festivais de Choro aconteceram em São Paulo. No


primeiro deles, apresentou-se o Regional do Canhoto. Um mês depois, o segundo
festival (Encontro Nacional dos Chorões), produzido pela Marcus Pereira e pela Rede
Bandeirantes de televisão, incluiu Waldir Azevedo e Pernambuco do Pandeiro, Paulinho
da Viola e Chico Buarque. Nesse mesmo ano, foram realizadas as primeiras
competições de Choro. Essas competições consistiam em eventos em que um grande
número de instrumentistas se inscrevia, e os melhores eram escolhidos por um conjunto
de jurados. Nesses eventos, interpretações e instrumentações inovadoras eram trazidas
ao Choro. Foi em um desses que o conjunto A Cor do Som, liderado pelo bandolinista
Armandinho, chocou público e audiência com o uso de guitarra elétrica e arranjos não-
convencionais. Além de chocar, Armandinho levantou a discussão, que dormia em
função do frenesi gerado pela “redescoberta” do Choro, sobre a modernização do
gênero, sobre tradição e modernidade, sobre inovação e autenticidade.

O renascimento do Choro da década de 1970 durou tão pouco que praticamente


não passou de um suspiro. Os anos 80 trouxeram outro golpe duro para nosso gênero
instrumental. Os anos 80 foram de uma grave crise político-econômico-social no Brasil.
A transição para o regime democrático se deu em meio a uma inflação galopante,
somada a uma enorme dívida externa cujos juros eram pesados para o Estado brasileiro.

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Nesse cenário, foram diminuídos os apoios à produção cultural. O Ministério da Cultura
foi reduzido a uma secretaria, e a FUNARTE foi extinta, sendo substituída pelo Instituto
Brasileiro de Arte e Cultura – IBAC. Com isso, o orçamento para a cultura caiu
drasticamente. Também foram eliminados os incentivos fiscais para investimentos do
setor privado nas artes e na música. O Choro sentiu o baque: não havia mais festivais de
Choro, e muitos grupos desapareceram. Até as Rodas nos quintais, redutos últimos da
resistência do gênero, ficaram comprometidas pelo enorme avanço da violência urbana.
Os Clubes do Choro desapareceram. Concomitantemente, as gravadoras transnacionais
atingiam seu apogeu. Foi a era dos grandes nomes da música pop, como Michael
Jackson e Madonna, que representaram o maior monopólio musical desde os Beatles.
No Brasil, bandas de rock como Paralamas do Sucesso, Titãs e Legião Urbana faziam
sucesso nas rádios e na televisão. Da década de 80 até final da década de 90, ninguém
ouvia falar de Choro (com exceção do Clube do Choro de Brasília, que retomou as
atividades em 1993).

No final da década de 90, contudo, acontece uma forte retomada do Choro


(juntamente com a de outros gêneros da tradição popular). Essa retomada coincide com
a crise da indústria fonográfica, que, durante a década de 80, funcionava a partir do
monopólio das grandes gravadoras. Estas, trabalhando de forma verticalizada e
centralizada, dominavam todas as etapas da produção fonográfica: desde a gravação em
estúdios próprios, passando pela prensagem e pela distribuição, e apoiando-se na
divulgação nas grandes emissoras de rádios e televisões por meio do pagamento do
jabá. Assim, as gravadoras conseguiam vender poucos produtos culturais em grande
quantidade. Com o advento das novas tecnologias de comunicação e de reprodução
digital de áudio, foi forçada uma reconfiguração na indústria fonográfica, que gerou
uma forte crise nas gravadoras transnacionais. Pierre Lévy (1999) afirma que a Internet
balançou os pilares do modo de comunicação “um-todos”, típica do modelo implantado
pela cultura de massa, dando lugar ao modelo “todos-todos”, que resulta da conexão
generalizada em rede, onde emissores e receptores, ou, no caso da produção artística,
artista e público se confundem ou alternam papéis. Desse modo, a partir do
enfraquecimento do monopólio musical empreendido pelas transnacionais fonográficas,
não somente o Choro, mas muitas outras manifestações tradicionais/populares foram
sendo retomadas a partir do final da década de 1990.

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No caso do Choro, a primeira década do terceiro milênio foi de grande
crescimento e enriquecimento do gênero. Novas tendências surgem a todo o momento,
juntamente com jovens instrumentistas que criam novas abordagens para o gênero.
Pelas características da comunicação contemporânea, é possível ter acesso a vasto
material sobre o Choro de qualquer lugar do mundo; por isso, em locais inusitados,
podem ser encontrados entusiasmados amantes do gênero. É, também, cada vez maior o
número de instrumentistas estrangeiros mergulhados no Choro. No Brasil, sua audiência
voltou a ter muitos e muitos jovens. Devido à complexidade e grande variedade e
riqueza de formas de tocar o Choro presentes atualmente, não é possível, em poucas
linhas, desenhar o cenário geral do Choro contemporâneo. Mas é possível discorrer
sobre recortes desse cenário que são, sem dúvida, de extrema importância. A seguir,
neste trabalho, abordaremos aspectos musicais e extra-musicais relacionados ao Choro
na cidade de Brasília, Distrito Federal.

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A2. Da Lapa ao Planalto Central

Brasília não surgiu, foi surgida, no meio de um lugar que se acreditava ser o
nada. A capital do país foi erguida em poucos anos, a partir do espírito faraônico de
Juscelino Kubitschek. Nas palavras de Lúcio Costa (1962, apud Nunes, 1999, p.1),
idealizador do plano urbanístico da cidade, Brasília nasceu de um gesto primário de
quem assinala um lugar e dele toma posse: dois eixos cruzando-se em ângulo reto, ou
seja, o próprio sinal da cruz.

Nunes (2003) afirma que Brasília, construída para ser a capital do país, recebeu,
pouco a pouco, a partir da década de 1960, a burocracia do Estado oriunda,
principalmente, do Rio de Janeiro. Note que essa simples afirmação, para quem conhece
a história social do Choro, já indica a possibilidade desse gênero musical desenvolver-se
na nova capital, uma vez que, nascido no Rio de Janeiro, era praticado pelas classes
médias associadas ao funcionalismo público. O funcionalismo público, de acordo com
Nunes (2003) é o grupo sócio-profissional que até os dias atuais dá sustentação à
cidade, tanto em termos econômicos, quanto culturais e comportamentais. É o aparelho
do Estado (federal e distrital) que injeta o dinheiro que circula no Distrito Federal. Os
setores da economia do DF – construção civil, comércio, serviços, entre outros – giram
em torno da massa monetária provida pelo Estado. Até os dias de hoje, mesmo com o
desenvolvimento do DF como pólo comercial, médico-hospitalar e turístico, o setor
público mantém a hegemonia de grande empregador local.

Com a vinda de funcionários públicos do Rio de Janeiro para a nova capital,


vieram também músicos ligados ao Choro. São eles os pioneiros do Choro no planalto
central. Alguns deles eram militares e funcionários públicos, e outros vieram pelos mais
diversos motivos. Dentre eles, podemos destacar: Pernambuco do Pandeiro, Avena de
Castro, Raimundo Brito, Hamilton Costa, Ely do Cavaco, Bide da Flauta, Waldir
Azevedo, Neusa França, Francisco de Assis Carvalho, Celso Cruz, João Tomé e,
Cicinato Simões dos Santos. Fornecendo uma contribuição que ultrapassa os requisitos
de uma monografia de final de curso, a antropóloga Luciana Portela (2003) apresenta
breves históricos acerca de algumas dessas pessoas.

27
Inácio Pinheiro Sobrinho, o Pernambuco do Pandeiro, veio para Brasília em
1959, a convite de Juscelino Kubitscheck para tocar na Rádio Nacional, juntamente com
seu Regional. Este era formado por Manuel Gomes na flauta, Hermeto Paschoal no
acordeom, Jorge Charuto no sete cordas e Ubiratan no cavaquinho. Luciana Portela
(2003) conta que problemas entre o Regional de Pernambuco do Pandeiro e o presidente
da Rádio Nacional forçaram a dissolução do grupo. Somente Pernambuco ficou em
Brasília, e os demais músicos voltaram para o Rio de Janeiro. JK ofereceu, então, um
emprego na Novacap para Pernambuco, que o manteve na nova capital por longos anos.

Hamilton Costa era inspetor de segurança da Câmara Federal no Rio de Janeiro,


e, em Brasília, foi oficial de gabinete do Presidente da Câmara. Além disso, Hamilton
abriu a primeira barbearia da cidade, na Novacap, e sua vinda para a nova capital se deu
precisamente por ocasião da inauguração da Boate do Brasília Palace Hotel.

Avena de Castro nasceu em 1919 no Rio de Janeiro. Teve formação musical


erudita, e tocou cítara até o fim de sua vida, em 1981. Na década de 50, teve seu
primeiro contato com o Choro, ao transcrever peças de Ernesto Nazareth. Daí em diante,
envolveu-se intensamente com a música popular. Veio para Brasília no final da década
de 1960, e foi fundador do Clube do Choro. Foi também presidente da Ordem dos
Músicos do Brasil. Comandou um Regional que recebeu seu nome, e que participou da
última gravação de Jacob do Bandolim, feita em Brasília.

Bide da Flauta era funcionário da Justiça Militar, e veio para Brasília em 1970.
Como flautista, já havia tocado com grandes nomes, como Carmem Miranda, Benedito
Lacerda, Jacob do Bandolim e Donga. Neusa França, pianista erudita, chegou em
Brasília em 1959; trabalhava na Orquestra do Teatro Nacional Claudio Santoro.
Organizava saraus em sua casa, onde era comum a presença de grandes chorões (como
Jacob do Bandolim e o Época de Ouro). Waldir Azevedo veio para Brasília acompanhar
a filha que, por sua vez, veio acompanhar o marido, funcionário do Banco Central, em
1971. Nilo Costa, o Tio Nilo, era saxofonista, e veio para Brasília em 1972 como
ferroviário aposentado. Odette Ernest Dias chegou em 1974, para assumir o cargo de
professor de Flauta da Universidade de Brasília; durante muito tempo, os chorões se
reuniram em seu apartamento, na 311 sul, aos sábados à tarde.

28
O violonista João Tomé chegou em Brasília na década de 1960, vindo de
Uberaba. Atuou na Rádio Nacional, lecionou na Fundação Educacional do Distrito
Federal.

De acordo com Clímaco (2008), o bandolinista Cicinato Simões dos Santos era
funcionário do Itamaraty, e chegou em Brasília em 1970. No Rio de Janeiro, chegou a
ter aulas com Villa-Lobos, e era amigo pessoal de Jacob do Bandolim. Segundo
Henrique Cazes (2005), suas composições influenciaram Jacob do Bandolim, pois ele
identificou, em “Pérolas” e “O Vôo da Mosca”, trechos de músicas de Cicinato.

Uma das personalidades mais interessantes do Choro de Brasília é Francisco de


Assis Carvalho da Silva, o Six, que recebeu esse apelido por possuir seis dedos nas
mãos. Era maranhense, mas morou no Rio de Janeiro na década de 50, onde conheceu
os grandes nomes do Choro. Na década de 1960, veio para Brasília, trabalhando como
funcionário de alto escalão do Banco do Brasil. Juntou seu cavaquinho aos chorões de
Brasília, e era conhecido por promover festas, encontros e toda a sorte de festejos
envolvendo a gente do Choro em Brasília.

Clímaco (2008) alude, também, à vinda de músicos das bandas militares para
Brasília. Mantinham relações com o Choro, pois seus nomes constam da ata de
fundação do Clube do Choro. São eles: João Batista de Moraes (chegou em Brasília em
1973, e assumiu a Banda do Comando Naval de Brasília), Francisco de Almeida
Gomes, da aeronáutica, e Manoel Vasconcelos, do Corpo de Bombeiros. Clímaco
(2008) destaca o nome do militar da marinha José Américo de Oliveira Mendes, que
veio para Brasília em 1977, e chegou a assumir a presidência do Clube em 1985, após a
saída do Six. José Américo é pai de dois grandes nomes do Choro contemporâneo: o
bandolinista Hamilton de Holanda e o violonista Fernando César Mendes.

A tirar pelos primeiros chorões do planalto central, o Choro aporta aqui muito
bem representado. Embora não tenha havido nenhum esforço oficial (apesar de JK ser
apreciador de serestas, e fizesse questão da presença de bons músicos nas festas que
promovia) para implantar uma tradição musical, a vinda de funcionários públicos trouxe
importantes pedaços do Choro carioca para Brasília. Como ímãs que se atraem, esses
músicos, com distintas origens, formações e histórias de vida, começaram a realizar
encontros musicais. O Choro em Brasília surge, então, como uma colcha de retalhos;

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não com um Regional consolidado, como os que já existiam no Rio de Janeiro, mas a
partir da reunião dos músicos disponíveis. Só que eram retalhos dos mais finos tecidos,
que deram origem a uma colcha bela e resistente.

Nos primeiros anos da década de 1970, de acordo com Clímaco (2008), os


chorões se encontravam para tocar em locais como o Brasília Palace, Hotel Aracoara, a
própria Rádio Nacional. Alguns bares eram também palco do Choro: é o caso do
Amarelinho, no Gilberto Salomão, do Xadrezinho, na 407 norte, do Bar Chorão, na 302
norte, do Bar do Dizinho, na 314 sul, do Bar Macambira, na 408 sul, e do Bar Fina Flor
do Samba.

Os encontros dos nossos pioneiros aconteciam, também, na casa do jornalista


Raimundo Brito, na 105 Sul. Eram freqüentados por Waldir Azevedo, Avena de Castro,
Pernambuco do Pandeiro, Ely do Cavaco, Celso Cruz, Odette Ernest Dias, Bide da
Flauta e Cicinato (Portela, 2003). Em 1974, com a morte de Raimundo Brito, as
reuniões passaram a ser realizadas no apartamento de Odette, na 311 Sul. Nesse mesmo
ano, chegaram a Brasília rumores de que um Clube do Choro seria fundado no Rio de
Janeiro; o valente grupo iniciou, então, a movimentar-se no sentido de fazer o mesmo
no cerrado. Em 1975, de fato, foi inaugurado o Clube do Choro do Rio de Janeiro.
Nesse ano, as reuniões de chorões permaneciam na casa de Odette. A partir de então,
mesmo sem sede, sem estatuto e sem existência oficial, o grupo de chorões de Brasília
já recebia o nome de Clube do Choro. Nesse período, apresentações eram realizadas em
alguns espaços de Brasília, dos quais podemos citar o Teatro da Escola Parque, a Sala
de Concertos da Escola de Música de Brasília, diversos pontos no campus da
Universidade de Brasília, entre outros. Zélio Zapata, em matéria publicada em 1976 no
jornal Correio Braziliense, utiliza o termo Clube do Choro para designar o grupo de
músicos:

E quem quiser terminar o domingo às voltas com algumas


músicas gostosas e bem brasileiras, é só ir ao Teatro da
Escola Parque, à partir das 21 horas e assistir a mais
uma apresentação do conhecido Clube do Choro, onde
estão Pernambuco do Pandeiro, Celso Cruz e Avena de
Castro, entre outros músicos da velha e da nova guarda.
(...) O grupo recebeu apoio da Fundação Cultural do
Distrito Federal, que cedeu o auditório da Escola Parque
e ainda auxiliou na divulgação (Zapata, 1976).

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Clímaco (2008) menciona que a própria ata de fundação do Clube do Choro
aludia à existência prévia de um Clube do Choro, em função da reunião constante de
seus elementos e da realização de apresentações públicas.

No período que antecedeu a criação oficial do Clube do Choro, alguns novos


chorões haviam se juntado ao grupo. Dentre eles podemos destacar o violonista Alencar
7 Cordas. Magda Clímaco (2008) conta que José Alencar Soares é natural de Ipu, no
Ceará; ainda jovem, teve interesse pela música, tocando banjo, violão e guitarra em
bailes em Fortaleza. Chegou a Brasília em 1971, e, alguns anos depois, juntou-se aos
chorões de Brasília tocando violão de 7 cordas. Aprofundou-se nos estudos de harmonia
e desenvolveu impressionante habilidade no violão. Alencar é o grande professor de
violão e de harmonia dos chorões brasilienses contemporâneos. Desenvolveu uma
metodologia para o ensino do acompanhamento do violão no Choro e em outros
gêneros, ao qual denomina “árvores harmônicas”. Conhecendo as famosas árvores
harmônicas do Alencar, violonistas e cavaquinistas adquirem desenvoltura para
acompanhar músicas que não conhecem. Posteriormente, na década de 1990, integrou o
Choro Livre, grupo instrumental responsável por acompanhar os solistas convidados a
tocar no Clube do Choro. Atualmente, Alencar dá aulas particulares, tendo uma
quantidade enorme de alunos, integra alguns grupos de Choro com instrumentistas
jovens e aparece nas Rodas por aí, de vez em quando, sempre para nossa alegria.

Outros então jovens, que se uniram ao grupo de chorões de Brasília em meados


da década de 1970, foram Antônio Lício, flautista aluno de Odette Ernest Dias, Jaime
Ernest Dias, violonista filho de Odette, o próprio Reco do Bandolim, o violonista
Augusto Contreiras, o cavaquinista Evandro Barcellos, entre outros.

Mas a sala de visitas do apartamento de Odette foi se tornando por demais


apertada para abrigar a quantidade de pessoas reunidas. Em 1976, nesse mesmo
apartamento, o grupo decidiu solicitar ao governador do DF, Elmo Serejo (de quem o
clarinetista Valci Tavares era assessor de gabinete), um espaço para a instalação de um
Clube do Choro em Brasília.

Em 1977, Elmo Serejo destinou ao Clube o local de sua sede até os dias de hoje:
entre a Torre de TV e o Centro de Convenções Ulysses Guimarães. O espaço físico foi
inaugurado juntamente com a edição de seu Estatuto, em 1977. A edificação havia sido

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construída para servir de vestiário do Centro de Convenções, mas nunca teve essa
utilização. As instalações eram precárias, mas, a partir de esforços e doações de seus
membros, os encontros dos chorões passaram a ser realizados ali. Conta Portela (2003)
que Pernambuco do Pandeiro vendeu uma coleção de passarinhos para comprar
geladeira e fogão para o Clube.

Reco do Bandolim, em entrevista, fala sobre os problemas que o espaço do


Clube do Choro, ainda em 1977, oferecia para seus freqüentadores, e sobre o caráter
doméstico das primeiras Rodas de Choro do Clube:

Reco do Bandolim: Aquele espaço era cheio de pia, de banheiro, era cheio de ... Era um lugar quente para
burro, tinha uma lage, e ferro ali dentro. Porque hoje tem ar condicionado. Aquilo era uma sauna, porque
o sol batia de dia, os ferros seguravam aquele calor, e de noite transmitiam aquilo para baixo. Era um
negócio insuportável, mas era ali que a gente se encontrava. Então, como mandava a tradição, cada
semana uma família preparava uma feijoada, um cozido. Só íamos nós, era só família, e a gente ia pra lá
para tocar, tomar cerveja. Todo mundo meio que descobrindo aquele negócio, encantado com aquilo,
sobretudo o pessoal de Brasília. Algumas pessoas mais jovens começaram a se aproximar, o Carlinhos
Gifoni, Paulinho do Cavaquinho, Flavinho do Bandolim, como eu também. Nós fomos nos aproximando
dali, aquilo era uma novidade, era uma beleza. Aquilo nos deixava em êxtase. Era música brasileira que a
gente não conhecia. Aquilo falava de perto com a gente, era uma loucura, rapaz! Bom, então, esses
encontros se davam sempre de uma maneira informal.

Na primeira fase do Clube do Choro, eram realizadas Rodas de Choro. Não


havia nenhuma programação, nem ensaios, nem compromisso formal de nenhum
músico estar lá para tocar. Reco afirma que:

Reco do Bandolim: Tocava quem queria tocar, subia quem queria subir. Não tinha problema nenhum,
qualquer pessoa que chegasse com seu instrumento podia subir. Tinha gente que dava show e tinha gente
que dava vexame. Tinha gente que não sabia tocar... Era Roda, todo mundo tocava. E aí era gente para
caramba, era um movimento. Mas chegou num ponto, num momento, que aquilo cansou, porque não
havia ensaio, ninguém preparava nada, eram as mesmas coisas sempre. E quando você tirava música
nova, o cara não conhecia, e o outro não conhecia ,e aí dificultava tudo.

Reco menciona que a falta de ensaios e de organização da parte musical dos


encontros reduziu seu potencial de atrair pessoas, e as Rodas do Clube começaram a ser
menos freqüentadas. Foi o roubo de todos os equipamentos que resultou no fechamento
do Clube, cuja sede sofreu sucessivos assaltos. Permaneceu fechado por 10 anos, até
1993. Nesse período, o Choro teve uma forte baixa em Brasília. Reco menciona que o
gênero andava esquecido também no Rio de Janeiro. De fato, conforme mostrado no
Capítulo A1 deste trabalho, nos anos 80 houve intensa crise econômica no Brasil, e os
incentivos para a cultura foram praticamente extintos; do mesmo modo, instituições
governamentais ligadas à cultura foram desmanteladas (como foi o caso da Funarte).
Esse período foi o do apogeu do rock, do sucesso de bandas como Legião Urbana,

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Paralamas do Sucesso e Plebe Rude (para citar as brasilienses). A década de 80 marcou
Brasília como a capital do rock.

O tempo de vacas magras abalou sobremaneira a comunidade do Choro. Se


pessoas, quando está tudo bem, há fartura e são poucas as dificuldades, intrigam-se
umas com as outras pelos mais fúteis motivos, em ocasiões em que sérias dificuldades
se colocam diante delas, os desentendimentos e as desavenças tomam enormes
proporções. No exato contexto da crise dos anos 80, em que os incentivos para a cultura
estavam em baixa, e a juventude só tinha olhos para o rock, o Choro estava
marginalizado. Os membros do Clube do Choro, de acordo com Clímaco (2008),
protagonizaram uma série de desentendimentos, que inclusive pararam nas páginas do
jornal Correio Braziliense, em matérias como O Choro é Livre?; Bar não consegue
agregar chorões; Os descaminhos do Choro no planalto; Choro: uma antiga tradição
em compasso de espera (Clímaco, 2008, p. 191-192).

No seio dessas divergências, segundo Clímaco (2008), estava a questão da


profissionalização do chorão, entendida como fundamental pelos jovens chorões, e
criticada pela velha-guarda. Todavia, observando a história do Choro, vê-se que as
tensões entre novas e antigas gerações sempre estiveram presentes, e pode-se dizer que
são parte do desenvolvimento do gênero. Conforme se poderá confirmar no capítulo
“Moderno é Tradição”, a questão da profissionalização é presente ainda hoje, e divide
opiniões. Argumentamos que a crise do Clube do Choro, na década de 80, deu-se,
principalmente, pela falta de apoio para o gênero em âmbito nacional. Nesse sentido, a
própria Magda Clímaco (2008) fornece evidências de que a carência de apoio fez o
Choro padecer nessa década. Nas suas palavras:

“(...) Cavaquinho, bandolim e violão pedem espaço é o


título de uma matéria do Correio Braziliense de junho de
1983, que informa ser Francisco de Assis Carvalho, o
Six, presidente do Clube, observando que o Clube tem um
bom público, o que não tem é divulgação. Os músicos
cariocas Déo Rian e Denásio Baptista Filho, em
consonância com Carvalho nessa mesma matéria,
comentam que instrumentistas relacionados ao chorinho
surgiram bastante, mas as gravadoras não abrem
qualquer espaço. A mesma preocupação está presente no
início da década de 1990, na reportagem A difícil arte de
chorar. Carlinhos 7 Cordas afirma que a divulgação do
chorinho é fundamental para que ele não morra,
declarando com veemência: a gente não pode deixar o
choro morrer. Lamenta o descaso da mídia,

33
principalmente áudio-visual, alegando que só a TVE tem
espaços regulares para o gênero. (...)

(...)

Por outro lado, essa matéria enfatiza também outro viés


que se tornará importante no enfoque que se segue dessas
tendências e carências relacionadas às atividades dos
chorões brasilienses que já começavam a se mostrar: a
necessidade de patrocínio, pois não há patrocínio para
esse tipo de música.”

A crise dos anos 80 acirrou as dissidências e os desentendimentos entre os


chorões, e os problemas agravaram-se. O Clube passou por sucessivas mudanças de
presidência, sem a realização de praticamente nenhuma atividade. O fundo do poço
chegou quando o Clube foi vítima dos famosos roubos, em que foram levados todos os
seus equipamentos, conforme nos conta Reco do Bandolim:

Reco do Bandolim: O Clube foi vítima de um roubo. Os bandidos entraram lá e levaram todo o
equipamento do Clube. Ficou sem equipamentos. Aí, fechamos o Clube. Aí fizemos shows beneficentes
para o Clube, juntamos uma grana, compramos.... reequipamos o Clube. Pouco tempo depois, outro
roubo. Aconteceram três roubos. No terceiro roubo, todos desistiram. Já havia aquele desgaste (...). Aí
acabou o Clube, ele ficou fechado até 1993. De 83 até 93. Dez anos fechado!

Nesse período, a sede do Clube ficou para as baratas, e, posteriormente, para três
famílias de mendigos, que a tomaram por residência.

Mas a retração do Choro em Brasília, na década de 80, não foi capaz de eliminá-
lo por completo da capital federal. Assim como no Rio de Janeiro, a resistência do
gênero deveu-se ao esforço individual de umas poucas pessoas. Se em Brasília, já eram
poucos os envolvidos com o Choro, foram menos ainda os que contribuíram para que o
gênero resistisse a tamanhas adversidades. Tão poucos que podemos citar um nome,
apenas um nome, como o mais importante nesse processo: trata-se do lendário
cavaquinista Assis, o Six. Reco do Bandolim discorre sobre a contribuição dele:

Reco do Bandolim: um grande mérito do trabalho do Assis foi o trabalho de manter os chorões unidos.
Ninguém pode tirar esse mérito do Assis. O Six era um cara que não tinha a menor vocação para
organizar coisa nenhuma, nem para profissionalizar coisa nenhuma. Ele era um boêmio, na acepção mais
completa da palavra. Assim como eu sempre fui, gosto desse tipo de coisa. Não vai aqui nenhuma crítica
ao Six, de jeito nenhum. Ele era um boêmio, gostava dos amigos, gostava de um drink. Então, ele abria a
própria casa para um, dois, três dias de grandes festas. Então, mesmo com o Clube do Choro sem
funcionar, o Assis continuou fortalecendo essa comunidade. Isso foi muito importante. Hoje eu reconheço
isso claramente. Ele teve importância vital.

O singular Six se reconhecia um boêmio. Levou a boemia tão a sério, porém,


que, numa ocasião em que quebrou o pé, escreveu um livro, que editou e publicou com
recursos próprios, narrando histórias suas e de seus amigos nas aventuras e desventuras

34
da vida boêmia. Historietas Hilariantes (Silva, 1998) conta episódios envolvendo
políticos importantes, funcionários das três esferas do poder, e músicos - de Brasília, do
Rio de Janeiro e de várias capitais do nordeste, para onde Six viajava com freqüência a
trabalho. Six distribuiu dezenas de exemplares para os amigos, e hoje é possível
encontrá-los nas estantes dos chorões da velha-guarda. A longa citação a seguir,
extraída do último capítulo de Historietas Hilariantes, foi escrita por Marília Trindade
Barbosa, importante escritora, biógrafa de Pixinguinha, Jacob do Bandolim e Luperce
Miranda. Sob o título de Radiografia de uma Festança, Ela narra uma festa ocorrida na
casa de Six, em que esteve presente. Embora a festa tenha acontecido em 1997, quatro
anos depois da reinauguração do Clube do Choro, a narração de Marília Trindade
Barbosa permite perceber o ambiente instaurado por Six em suas festas, bem como sua
incrível capacidade de articular e reunir pessoas, dentre as quais estavam sempre
representantes da nata do Choro. Devido a essas características de Six e de suas festas, a
gente do Choro de Brasília manteve-se unida durante os quase 10 anos em que o Clube
do Choro esteve fechado.

“(...) a festa de aniversário do Dr. Assis, nos dias 13 e 14 de dezembro próximos passados
[1997], me encantou tanto. Foi a primeira pessoa que vi, nessa cidade, usando o poder como simples
instrumento de prazer. Apenas isso. Bastava olhar os convidados, a mistura de pessoas, conhecidas,
anônimas, brancas, negras, mestiças, pobres, ricas, diferentes entre si, mas identificadas por três
aspectos: todos vestiam exatamente a mesma camisa, a todos distribuída pela família do aniversariante –
uma linda idéia – todos eram apaixonados pelo mesmo tipo de música e todo mundo estava feliz, muito
feliz.

A decoração da casa já era um desfrute: aquele terreno não arborizado, onde se armaram
toldos brancos, sob os quais se enfileiravam mesas cobertas por toalhas vermelhas, tão convenientes
nessa época natalina. Logo à entrada, uma escultura futurista, de balões de borracha, reproduzia o rosto
do festejado dono da festa. O maior barato! Foi armado um palco profissional, um som profissional, tudo
pronto para receber profissionais da música que vinham homenagear um profissional na arte de viver a
vida. Na parte alta da casa, à esquerda, duas baianinhas vestidas a caráter serviam divinos acarajés –
ah, que saudade da Bahia! Inquietos garçons não paravam de servir cerveja, refrigerante, água, uísque
escocês. E tome música de excelente qualidade!

No primeiro dia, mesmo enquanto eram consumidas toneladas de feijoada, o som não parou
nem um minuto, amadores e profissionais se revezavam no palco. Na mesa do aniversariante, esposa,
filhos e netos distribuíam carinho, simpatia e abraços a todos que chegassem, como se dissessem: ‘você
veio, está aqui, agora é da família. Sinta-se em casa’.

Passei dois dias – um sábado e um domingo – naquela casa. Revi amigos do Rio de Janeiro,
encontrei músicos do Recife. Conheci outros com quem, um dia, talvez me sente para ouvir choro em
torno de uma mesa. Que delícia reencontrar, no riso raro e aberto de César Faria, o sorriso encabulado
de seu filho, Paulinho da Viola. Identificar em Bruno, o primogênito de Deo Rian e Wanda, a terceira
geração de músicos que acompanho. Meu Deus, lá estavam Zé da Velha, Silvério Pontes, Mário Pereira,
Maurício Verde, Marcinho Hulk, Maionese, Pernambuco do Pandeiro, Chico de Assis, Carlinhos Sete
Cordas, César de Holanda e muitos mais. Rossini Ferreira com sua eterna e linda Ritinha, o casal
Henrique Alves e a bela voz de Dalva Torres, legítimos representantes do choro pernambucano de
Luperce Miranda. O lamento do dia não foi o choro de Pixinguinha, mas a ausência da sanfona do
Nivaldo, mandada consertar em São Paulo e que não chegou a tempo.

35
(...)

O mais inacreditável de tudo é que a festa aconteceu em Brasília, numa casa do Lago Sul, onde
não havia deputados, senadores, candidatos, ministros, diretores, os emergentes da vida, essa gente
chata que ocupa todos os espaços da cidade, nada, não se via nem um político. Ou, se existiam ou
estavam presentes, se omitiram enquanto figuras públicas e inorportunas e ficaram em seus cantos,
simpáticas, agradáveis, permanecendo enquanto pessoas, coisa rara, curtindo a vida pelo simples fato de
serem amigos do Six. Esse homem estranhamente forte e poderoso, com uma capacidade ímpar de
transformar uma singularidade – o fato de possuir seis dedos em cada mão – em marca registrada de
uma família inteira. Um clã que se orgulha de ser como é e até olha os outros, simples mortais, neles
incluindo o filho mais velho e seus descendentes, com uma pontinha de pena, pelo fato de possuírem
apenas cinco. Ele é, na palavra de seu filho caçula, o malandro que deu certo.

Além dos filhos legítimos, Assis adotou o Choro. Adotou não, legitimou. Há vinte anos ouço os
músicos cariocas falarem com respeito nesse advogado competente, amigo leal, cavaquinista do cacete!
Ouvi alguém chamá-lo de mecenas. Não gosto desse nome, que faz lembrar primordialmente ajuda com
dinheiro. Assis faz isso também. Mas prefiro vê-lo como o amigo que cuida, acompanha, respeita... e
curte. Já vi gente chamá-lo de narcisista, vaidoso. E por que não? Só quem se ama consegue amar o
outro com a força com que ele o faz. Ama, come, bebe, vive, toca, faz tudo desbragadamente. Como já
disse no início, que bom ver alguém que não vive só por interesse. Que bom poder conviver com quem faz
da vida também um exercício do prazer.” (Barbosa, 1998, apud Silva, 1998, p. 381-384)

Em 1991, Six, então presidente do Clube do Choro, elaborou um relatório de


gestão, em que argumentava que a falta de atividades na sede devia-se à deterioração do
patrimônio do clube, pois o regorgitamento de uma fossa do centro de Convenções
inundou a sede de dejetos, destruindo o que restou dos equipamentos após os furtos
(Clímaco, 2008). Nesse relatório, e no que fez subseqüentemente, em 1992, Six
ressaltava que o Clube não deixara de existir, e mencionou as atividades realizadas pela
comunidade de chorões de Brasília.

Mas eis que os anos 90 foram de substanciais mudanças. Como observado no


Capítulo A1, o Choro carioca passa por uma incrível expansão nessa década. Não por
coincidência, o Choro candango começa a sair do quintal da casa do Six e ganhar as
esquinas de Brasília novamente. A carência de apoio, que marcou os anos 80, começou
a ser minimizada pela edição de políticas públicas, bem como pelo fortalecimento de
instituições voltadas para a cultura. A edição da Lei n. 8.313, de 23 de dezembro de
1991, conhecida como Lei Rouanet, estimulou os membros do Clube a realizarem
reformas em seu Estatuto, buscando o enquadramento no programa criado por essa lei,
de modo que fosse possível conseguir apoio para colocar a sede do Clube em
funcionamento novamente. No âmbito dessas reformas, foi criado um conselho
administrativo para o Clube, e uma diretoria executiva. A presidência era ainda exercida
pelo Six, que, em 91 e 92, apesar de diversas tentativas, não conseguiu levantar recursos

36
para reformar a sede do Clube. Reco menciona que, nesse período, em função da
existência de um espaço abandonado em área tão nobre da capital federal, outras
associações e grupos demonstraram interesse em ocupar a sede do Clube. De acordo
com seu relato, uma matéria publicada no Correio Braziliense informava que o Clube
do Choro estava prestes a ser despejado de sua sede:

Reco do Bandolim: Foi quando saiu aquela famosa matéria no Correio Braziliense que dizia: o Clube do
Choro será despejado. Eu aí falei com o doutor Assis, o Six, (...) eu liguei para ele e falei o seguinte: e aí,
rapaz, e o Clube? Ele disse: olha, Reco, eu agora não tenho a menor condição. Estou ocupado com
minhas atividades aqui no Ministério. Ele era um advogado brilhante. Disse: porque você não se
candidata? Eu, na época, cuidava de três emissoras de rádio lá na Radiobrás. Três rádios FMs. Eu tinha
uma rotina, tinha minha família, eu não tinha... mas ele falou isso pra mim. E eu disse: vamos perder a
sede num lugar daquele, rapaz! O GDF já disse que se a gente não começar a funcionar, tem outros
grupos que querem aquele espaço. Ele aí disse: pô, Henrique, eu agora não posso. Porque você não se
candidata? Você tem esse perfil, faça isso. Aí eu resolvi me candidatar. Me candidatei. A primeira luta
fundamental: tinha três famílias lá dentro, e eu tinha que tirar essa famílias de lá. Isso foi uma luta, rapaz,
com o pessoal do serviço social. Porque eu tirava, eles voltavam, tirava, voltava.

Na entrevista, Reco continuou contando sobre seus primeiros feitos como


presidente do Clube. Para comprar os equipamentos de áudio, solicitou aos músicos
Armandinho Macedo e Raphael Rabello que realizassem uma apresentação beneficente,
cuja arrecadação voltar-se-ia para reequipar o Clube do Choro. Os músicos toparam, e
lotaram a Sala Villa-Lobos com venda antecipada de ingressos. Reco menciona que foi
realizada uma segunda apresentação, e isso foi suficiente para a compra dos
equipamentos. Mas não para reerguer por completo o Clube. A presidência do Clube
pediu a grupos de Choro, como Dois de Ouro e Feitiço, que realizassem ao menos uma
apresentação por semana no Clube, sem ganhar nada, apenas para manter a sede em
funcionamento. Em entrevista a Magda Clímaco (2008), Reco conta que só funcionou
no primeiro mês, porque do segundo em diante não aparecia mais ninguém. Então,
conta ele que pagava do próprio bolso para músicos tocarem com ele na quarta-feira.
Público não tinha, porque o ambiente era insuportavelmente quente. Os anos de 1993,
1994 e 1995 transcorreram assim para o Clube do Choro: sem apoio nenhum que não
fosse a enorme disposição de um grupo de chorões candangos para estar lá todas as
semanas realizando apresentações para um público ínfimo, em um ambiente insalubre e
sem receber nada. Em 1995, Reco iniciou uma verdadeira via crucis para conseguir
apoio institucional e governamental para o Clube. Ele conta:

Reco do Bandolim: Comecei a fazer pedido a todos os meus relacionamentos, do meu irmão Carlos
Henrique, do meu irmão, que é jornalista, o Ivan, do meu pai, que é um ex-parlamentar, pedindo para a

37
cultura. Eu dizia: pô, vocês têm que ajudar o Clube do Choro. Fizemos um projeto do cacete, entramos
com um pedido no Ministério da Cultura com o Rui Fabiano, irmão do Raphael, e meu irmão Carlos
Henrique para criar a Escola de Choro. (...) Levei o projeto no Ministério da Cultura, o sujeito disse:
poxa, já tem escola de música em Brasília. Mas eu disse: não é escola de música, é escola de Choro.
Fiquei discutindo com o cara 3 anos, e o cara não aprovava. Aí Rui Fabiano desistiu, Carlos Henrique
desistiu. Eu peguei o projeto e levei pra Câmara Legislativa Distrital, conversei pessoalmente com
dezenas de deputados: pô, me ajuda, eu quero fazer a Escola de Choro. É um gênero importante para
música brasileira... Eu tinha um discurso danado. Aí os caras botaram em votação e foi aprovado por
unanimidade. A Escola de Choro! Eu peguei a aprovação e consegui uma audiência com o Ministro da
Cultura. Os caras disseram: foi aprovado na Câmara, então vamos fazer o projeto. Eu aí lembrei, quando
eu tava assinando esse projeto, para o Raphael [Rabello] assinar o projeto, porque ele estava no auge, e eu
entendi que aquilo ia dar um ganho no projeto. Bem, aí o Raphael disse: olha, se é você que está fazendo
o projeto, Reco, eu não quero nem ler. Na semana seguinte ele morre, aí eu, emocionado, lembro como se
fosse hoje. Eu estava em casa almoçando, eu e Henriquinho, ele pequeno ainda, e minha mulher, aí saiu a
notícia: acaba de morrer o violonista... Bicho! Quase que eu tive um infarto, porque ninguém podia
imaginar, ninguém esperava aquilo. Aí eu, na hora, chorando muito, disse: a escola vai se chamar Raphael
Rabello. Porque foi um momento de muita emoção, então aprovamos o projeto. Foi um trabalho solitário,
sem ninguém para ajudar, ninguém. Foram anos de luta. Eu tive que pedir licença das minhas funções lá
da radiobrás porque eu não estava dando conta. Isso foi uma questão terrível lá em casa, porque eu tive
uma diminuição de grana (...). Aí eu pedi meu pai para me ajudar, eu também, com os meus
relacionamentos... Eu era superintendente da Radiobrás, eu tinha os meus contatos. Aí eu descobri que eu
tinha que identificar, no governo, autoridades que tivessem sensibilidade para cultura. Fui identificando
algumas figuras, entre elas o chefe da casa civil do governo Fernando Henrique, no começo do governo,
que era o Clóvis Carvalho. Eu descobri que ele tocava piano e que era um cara durão, uma barreira,
ninguém gostava desse cara, a imprensa não gostava, mas eu fui encontrando um jeito de descobrir um
grupo de pessoas sensíveis a isso, para apresentar um projeto para o Clube do Choro. Como seria esse
projeto, como a gente poderia fazer... Aí, começamos a discutir que as emissoras de rádio não favoreciam
os grandes compositores brasileiros, só música estrangeira. Esse grupo foi estratégico, porque eu esperava
que essas pessoas em seguida pudessem nos ajudar, ajudar efetivamente. Tinha intelectual no meio,
autoridades do governo no meio, músicos, jornalistas... Aí, fiz um grupo, bolamos o seguinte: vamos
fazer projetos anuais abordando um expoente do Choro.

Além dos problemas concretos, uma série de entraves burocráticos tomavam


tempo e paciência. Foi preciso regularizar a situação fundiária da sede do Clube, cujo
terreno foi doado oficialmente ao Clube do Choro em 1996, em solenidade em que
esteve presente o então governador do DF, Cristóvam Buarque, para assistir a uma
apresentação de Paulinho da Viola acompanhado pelo grupo brasiliense Choro Livre.
No final desse mesmo ano, as obras para a reforma foram iniciadas. Em 23 de abril de
1997, Dia do Choro, aniversário de Pixinguinha, o Clube do Choro foi reinaugurado,
com amplas instalações, capacidade para cerca de 200 pessoas, exaustores de ar, palco,
iluminação e som profissionais, revestimento acústico.

A partir de então, o Clube realiza um projeto temático por ano. Os projetos


realizados foram: 1997 - Projeto Pixinguinha; 1998 - Jacob do Bandolim; 1999 -
Tributo a Waldir Azevedo; 2000 - Chiquinha Gonzaga: Abre Alas para a Música
Popular Brasileira; 2001 - Ernesto Nazareth: Pai do Choro Moderno; 2002 - Caindo no
Choro; 2003 - Tributo a Garoto; 2004 - O Brasil Brasileiro de Ary Barroso; 2005 -
Villa-Lobos e seus Amigos do Choro; 2006 - Radamés Gnatalli: 100 Anos; 2007 –

38
Trinta Anos do Clube do Choro; 2008 - Tom Jobim: Maestro Brasileiro; e 2009 –
Dorival para Sempre Caymmi.

De 1997 para cá, o Clube do Choro, com base na Lei Rouanet, teve patrocínio de
inúmeras empresas, dentre as quais: Correios, Banco do Brasil, Telebrasília, Liderança
Capitalização, Petrobrás, Eletrobrás. As apresentações do Clube do Choro acontecem
quarta, quinta e sexta, normalmente com a apresentação de um solista convidado, de
fora de Brasília, acompanhado pelo grupo Choro Livre, formado por instrumentistas
brasilienses. Fora essas, o projeto Prata da Casa leva artistas brasilienses todos os
sábados ao palco do Clube.

Em abril de 1998, foi inaugurada a Escola de Choro Raphael Rabello, com 80


alunos. De acordo com Portela (2003), no ano de 2003 já havia 200 alunos
matriculados. Atualmente, a Escola tem cerca de 300 alunos, e oferece cursos de violão,
violão de 7 cordas, cavaquinho, flauta, bandolim, pandeiro, percussão, gaita, viola
caipira, clarineta, saxofone. A escola funcionou, durante um período, em um espaço
pertencente ao Centro de Convenções de Brasília que estava sem utilização. Por ocasião
de uma reforma do Centro de Convenções, a Escola foi retirada desse local, ficando,
inclusive, seis meses sem funcionar. O Governo do Distrito Federal construiu, então, o
“barracão” da escola, onde ela funciona atualmente. Trata-se de uma edificação feita de
madeirite pintada de branco, com telhados de amianto. As aulas alternam-se em 4 salas,
e há ainda uma sala onde funciona a secretaria. Na secretaria, existem instrumentos
disponíveis para uso dos alunos; um computador tem um acervo considerável de
partituras, que professores e alunos podem imprimir. Tal é a estrutura da Escola. Sem
dúvida, porém, o que há de mais importante na escola são os professores. São, ao todo,
dezesseis; todos excelentes músicos. São eles: Fernando César e Henrique Neto (violão
de sete cordas); Rafael dos Anjos (violão de seis cordas);Márcio Marinho e Leonardo
Benon (cavquinho); Marcelo Lima (bandolim); Sérgio Morais (flauta tranversal);
Fernando Machado (saxofone e clarineta); Amoy Ribas e Leonardo Barbosa (pandeiro);
Rafael dos Santos (percussão); Cacai Nunes (viola caipira); Pablo Fagundes (gaita);
Luis Roberto Pinheiro (teoria musical).

A escola não somente forma instrumentistas, mas, até pela enorme quantidade de
alunos, forma público para o Choro também. A Escola atrai para o universo do Choro
pessoas que não o fariam por outras vias, e que acabam se tornando grandes

39
apreciadores do gênero. Por isso, a existência da Escola fortalece o Choro na cidade. É
importante ressaltar que nem todos os alunos da escola saem dela instrumentistas
virtuoses. É verdade que muitos até abandonam seus instrumentos, e nunca mais voltam
a tocar. Mas nunca perdem a lembrança do contato que tiveram com o Choro, e
contribuem para valorização e divulgação do gênero.

Embora o Clube do Choro represente o principal pólo agregador dos chorões de


Brasília, sendo, sem dúvida, a instituição mais importante para o gênero na cidade, o
Choro não acontece somente no Clube. Vários outros locais promovem eventos,
periódicos ou esporádicos, envolvendo o Choro. Também muitos chorões não possuem
ligações formais com o Clube do Choro.

Em 2003, Luciana Portela mapeou os eventos periódicos de Choro em Brasília.


De todos aqueles por ela citados, somente um permanece até hoje (trata-se da Roda de
Choro da Lanchonete Tartaruga Lanches). Todos os outros bares, restaurantes e afins,
que realizavam Rodas ou apresentações de Choro não o fazem mais. No entanto, uma
série de outros estabelecimentos realizam esses eventos atualmente. Magda Clímaco
(2008), cuja Tese de Doutorado foi terminada em 2008, citou os seguintes locais onde o
Choro acontece semanalmente na cidade: Bar Monumental, Choperia Platz, Bar do
Calaf, Armazém do Ferreira, Bistrô Bom Demais, Feitiço Mineiro. No mês de junho de
2009, quando escrevo estas linhas, possivelmente um ano depois que Magda Clímaco
fez seu levantamento, constata-se que, dos sete locais que ela citou, apenas dois mantêm
apresentações de Choro. Com isso, deseja-se evidenciar o caráter efêmero dos locais
que abrigam o Choro em Brasília. Com algumas exceções, os estabelecimentos
comerciais não hesitam em retirar o Choro de sua programação, caso não esteja dando
lucro ou público suficiente. Apesar disso, são os bares e restaurantes os palcos semanais
do Choro na cidade de Brasília. Hoje é possível indicar estabelecimentos que tendem a
se firmar como locais de Choro na cidade, que são justamente aqueles que mantêm
apresentações de Choro por ao menos dois anos. Um deles é o Feitiço Mineiro,
localizado na 306 norte, que realiza uma Roda de Choro às terças-feiras, sob o comando
do cavaquinista Evandro Barcellos; outro, de mesmo proprietário do Feitiço Mineiro, é
o Armazém do Ferreira, na 202 norte, com Roda de Choro aos sábados à tarde; a
Tartaruga Lanches, na 914 norte, por ser de propriedade de dois músicos chorões,
também mantém a sagrada Roda de sexta-feira; a feira kituart, no Lago Norte, também

40
realiza Rodas de Choro aos sábados, comandadas por Nivaldo da Sanfona e Lício da
Flauta.

Quanto aos eventos esporádicos, acontecem nos mais variados lugares, desde
teatros, parques, palcos montados ao ar livre, shopping centers, até em aberturas de
congressos, coquetéis, seminários, lançamentos de livros, exposições de arte, eventos
políticos (nos ministérios, no Congresso Nacional, na Presidência da República), entre
outros.

Mesmo o Choro podendo ser escutado nos quatro cantos e nos dois eixos de
Brasília, o Clube do Choro continua tendo importância crucial, principalmente pela
transitoriedade de outros estabelecimentos onde o Choro acontece. Mesmo com a
existência de bares em que o Choro é presença constante, como o Feitiço Mineiro, a
Tartaruga Lanches e a Kituarte, o Clube é a instituição voltada exclusivamente para o
Choro e que, pelo menos a princípio, não estaria sujeita às vicissitudes do mercado.

Os mapeamentos dos locais de Choro em Brasília realizados por Portela (2003) e


Clímaco (2008) mostram uma faceta interessante do Choro no Distrito Federal: ele
ocorre primordialmente no Plano Piloto. Essa característica geográfica tem, obviamente,
sua implicação sócio-econômica: em Brasília, o ambiente do Choro está ligado à classe-
média e classe média-alta. Assim como no Rio de Janeiro, são muitos os funcionários
públicos envolvidos com o Choro, como músicos e audiência. Estudantes universitários,
filhos e netos do funcionalismo público compõem a jovem audiência do gênero. Entre
esses, muitos aderem ao Choro e começam a dedicar-se a um instrumento, engordando a
casta dos chorões da cidade. Esse universo sócio-cultural onde o Choro floresce em
Brasília tem características peculiares, que, por sua vez, refletem no modo como o
Choro é aqui realizado. Tais peculiaridades têm relação com a formação social da
população brasiliense.

A formação social do povo de Brasília tem como marca a mistura de gentes


diferentes, que vieram para cá a partir da criação da capital. Eram cariocas, sulistas,
paulistas, mineiros e muitos nordestinos. Deixaram suas raízes para trás, mas trouxeram
com eles linguagens e bagagens culturais. E misturaram-se, do mesmo modo como os
índios, negros e portugueses, de onde surgiu uma rica cultura brasileira, que
posteriormente se regionalizou, criando culturas nortistas, nordestinas, cariocas, sulistas,

41
que novamente vieram se misturar em Brasília. Ou seja, Brasília é a mistura da mistura,
ela é a capital do Brasil, brasileira ao quadrado. Para Pastore (1969), a coexistência de
subculturas brasileiras em Brasília faz dilatar o sentimento nacionalista na cidade.
Gilberto Freyre, um dos inventores da idéia da mistura como cerne da identidade
brasileira, afirmou que Brasília traz uma nova perspectiva para o Brasil inteiro: a
perspectiva de um Brasil verdadeiramente inter-regional no seu modo de ser Nação
una e, ao mesmo tempo, plural – um Brasil feito de Brasis. (Freyre, 1968, p. 175-177).

O resultado mais imediato dessa peculiar situação é uma espécie de indefinição


cultural diante do restante do país. A indefinição é tamanha que Brasília é a única
unidade da federação que não tem sotaque. Embora isso possa sugerir uma abertura à
diversidade e uma ampliada capacidade de assimilação, também aponta para uma
incômoda falta de identidade. Darcy Ribeiro (2001) criou o conceito de “ninguendade”
para explicar como a identidade brasileira surgiu a partir da falta de identidade:

E é a partir dessa carência essencial, para livrar-se da


ninguendade de não-índios, não-europeus e não-negros,
que eles se vêem forçados a criar a sua própria
identidade étnica: a brasileira. (Ribeiro, 2001: 131)

De certo modo, a ninguendade do brasileiro se atualizou em Brasília, e, por


paradoxal que possa parecer, seu povo se identifica com a falta de identidade que esteve
na origem do povo brasileiro. Como resultado disso, Brasília não tem cultura própria,
trata-se de uma cidade sem passado nem tradição; há somente incertezas sobre um
futuro criado a partir de tradições roubadas de outros lugares.

Foi justamente nesse estranho contexto cultural que o Choro fincou-se na


capital. Todavia, influenciado pelo contexto cultural peculiar de Brasília, o Choro aqui
adquiriu também características próprias. A cena musical de Brasília, como tudo o que
diz respeito à cultura da cidade, é diversificada. Seus habitantes convivem com o
encontro e a mistura de culturas musicais vindas das diversas partes do país. O Choro
em Brasília, assim como os chorões, recebem influências dos mais diferentes gêneros
musicais. Sendo o Choro típico das classes médias cosmopolitas do Plano Piloto, seus
adeptos têm acesso fácil a uma imensa gama de informações sobre cultura, música, artes
em geral, entre outras coisas. No caso da música, o brasiliense típico costuma ser
eclético. Tem fama de exigente, mas tem gosto variado. De fato, muitos chorões

42
aderiram ao Choro após algum tempo de dedicação a outros gêneros ou estilos musicais,
como rock, reggae, música erudita, baião, jazz, etc. Outros, das atuais gerações, são
filhos da mistura de pessoas vindas de regiões distintas do país. Além disso, em todo
lugar, os brasilienses convivem com origens e culturas diferentes. Então é comum, entre
músicos e ouvintes do Choro, o gosto eclético, por diversos gêneros musicais, nacionais
e estrangeiros. Por conseqüência, o Choro em Brasília tem particular abertura a outros
estilos, não ficando restrito a guetos culturais freqüentados apenas por iniciados. Talvez,
por isso também, em Brasília, exista mais ousadia para inserir inovações na tradição do
Choro.

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PARTE B – CONTEXTOS

B1. Na Roda de Choro

A Roda de Choro é um dos contextos de performance mais característicos do Choro,


que pode ser considerada sua matriz. A Roda é marcada pela informalidade. Nela, não
está definido, a priori, quem irá tocar, quando, como, com quem ou quanto irá tocar;
trata-se de um encontro entre músicos, com a presença de uma audiência. A Roda de
Choro tem um limite fluido entre músicos e audiência, pois todos são audiência. Em
geral, os músicos intercalam-se na performance, e cada músico é audiência dos outros
músicos no momento da execução do Choro. Podemos caracterizar a Roda como um
conjunto de círculos concêntricos, sendo que, no primeiro círculo, estão os músicos
(geralmente em volta de uma mesa); no segundo círculo, os interessados pela música,
que conhecem o universo musical do Choro e fazem parte do ambiente de relações
pessoais dos músicos; e, nos círculos subseqüentes ficam os freqüentadores do ambiente
musical, algumas vezes interessados apenas na interação social. Essa classificação
circular, contudo, nem sempre é respeitada, e as pessoas misturam-se constantemente.

A Roda é um encontro de pessoas, e vincula-se ao lazer, tendo, quase sempre, ares


de festejo. Dois aspectos musicais reforçam seu caráter informal: não há ensaio e ela é
aberta. Sendo a Roda um encontro, não há sentido em realizar, para ela, outros
encontros preparatórios – os ensaios. A Roda é também aberta: a princípio, todos podem
tocar, desde que tenham certo domínio técnico do instrumento e sejam aceitos pelos
músicos que estão tocando. A possibilidade de qualquer instrumentista presente na
ocasião da Roda ter a liberdade de tocar reforça também seu caráter de encontro social.
Ao contrário de muitas práticas musicais abordadas em estudos etnográficos, nas quais a
música é apenas um dentre diversos elementos que compõem um ritual, a Roda de
Choro tem a música por objetivo, pois é ela o elemento principal, o fator agregador de
pessoas. Por isso, podemos afirmar que a música origina o contexto, que, por sua vez,
interfere na música. O ritual da Roda de Choro acontece porque existe a música. Desse
modo, na Roda, contexto e música são indissolúveis. E, no contexto da Roda, fatores
importantes são as pessoas presentes e as relações de troca que os músicos estabelecem
entre si.

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Schutz (1977) defende que a música como modo de comunicação não se baseia
na transmissão de conteúdos sonoros, mas na possibilidade de instaurar relações
interpessoais. No caso da Roda, instrumentistas de diversos níveis tocam juntos, criando
e recriando repertórios; nela a música exerce, dentre outras coisas, o papel de
interlocução entre as pessoas. Assim, a Roda de Choro cria um ambiente de relações e,
em contrapartida, apóia-se nele. Então, o contexto interfere nos elementos musicais, que
também alteram o contexto. Com efeito, Qureshi (1987, p. 65) afirma que o som
musical varia com a variação no contexto da performance; no caso da Roda de Choro,
o inverso também é válido.

Roberto M. Moura (2004) realizou extenso trabalho sobre a Roda de Samba, que
pode servir de referência para a análise das Rodas de Choro, pois ambos os gêneros
estão ligados desde sua origem, e as características das Rodas guardam importantes
semelhanças. Do mesmo modo, outras manifestações de raiz negra (como candomblé e
capoeira, somente para citar exemplos) também reúnem características semelhantes às
das Rodas de Samba e Choro. Para o caso do Choro, a análise de Moura (2004) das
Rodas de Samba é particularmente pertinente, pois ambos são manifestações culturais
em que a música desempenha o principal papel, diferentemente da capoeira e do
candomblé, em que elementos de luta, dança e religião são tão importantes quanto a
música. Assim como no caso do samba, a Roda antecede o Choro e é sua matriz física.
Não foi o Choro que criou a Roda, mas o contrário. Ao longo de sua existência, o
gênero incorporou instrumentos, alterou formas e harmonias, criou novos estilos e
sofreu uma série de outras modificações. Mas a Roda permaneceu. Mais do que apenas
um dentre vários contextos em que o Choro ocorre, a Roda é elemento fundamental na
geração, preservação e divulgação desse gênero musical (Moura, 2004, p. 29).
Portanto, as características de performance e contexto presentes na Roda são, sem
dúvida, cruciais para o entendimento da natureza do Choro.

No livro No princípio Era a Roda: um estudo sobre samba, partido alto e outros
pagodes, Roberto Moura (2004) o autor tenta refazer a trajetória histórica do samba a
partir das Rodas de Samba no Rio de Janeiro desde o final do século XIX aos dias
atuais. Ele afirma que, embora seja um ritual, cada Roda é única e irrepetível. Seu
código se funda na família, na amizade, na lealdade, na pessoa e no compadrio
(Moura, 2004, p. 28). Como em qualquer ritual, a Roda preserva e atualiza o que está

45
em sua origem. Ela é antes de tudo um evento festivo de caráter plural, familiar; um
espaço mítico resultante da dialética entre o cotidiano e a utopia; ela instaura a ilusão da
eternidade (Moura 2004, p.23). É um espaço onde o que é íntimo se confunde e se
mistura com o que é coletivo. Compreende música, comida, bebida, alegria e um
conjunto de relações, sendo o suporte de processos de interação e comunicação entre as
pessoas. Não são os sambistas que formam a Roda, mas o contrário. Isso se deve em
grande parte ao ambiente doméstico, familiar, íntimo, caseiro em que ela se dá (Moura
2004, p.39).

Como referencial para suas análises sobre a Roda de Samba e o inexorável


processo de profissionalização dos sambistas e suas inserções no mercado fonográfico,
Moura (2004) adota as categorias sociológicas “casa” e “rua”, criadas pelo antropólogo
Roberto DaMatta. Esses termos designam mais que simples espaços geográficos ou
coisas físicas comensuráveis, designam:

(...) acima de tudo entidades morais, esferas de ação


social, províncias éticas, dotadas de positividade,
domínios culturais institucionalizados e, por causa disso,
capazes de despertar emoções, reações, leis, orações,
músicas e imagens esteticamente emolduradas e
inspiradas.” (DaMatta 1997a, apud Moura, 2004, p. 41).

Moura (2004) afirma que, do mesmo modo que é possível fazer uma leitura do
Brasil do ponto de vista da casa em contraponto à rua, é possível ler o samba através da
Roda em contraponto à Escola de Samba, que nasce como casa e se transforma em rua.
Assim, na casa/roda as leituras ressaltam a pessoa; a casa propicia a formação da Roda
como manifestação espontânea e festiva. Já na escola/rua há uma ênfase no indivíduo,
os discursos são mais rígidos e instauradores de novos processos sociais (Moura, 2004).
Então, a Roda não é passível de se transformar em produto, ao contrário do samba. Ela é
descrita antes como uma expressão comunitária (mais utópica e amadora); seu aspecto
mais comercial caminha na direção da escola de samba (mais pragmática e mercantil).

A música que soa na Roda é, coerentemente com a abordagem de Schutz (1977),


produzida verdadeiramente em conjunto. Para Moura (2004, p. 37), o ambiente musical
da Roda não separa música e vida, lazer e produção, sendo mais do que apenas um
evento musical, mas uma opção política, um modo de vida, que inclui desde círculos de

46
amizade até vestimentas, comidas, bebidas, gestos, discursos e expressões. Muitos
músicos realizam essa entrega total à música, de modo que o samba (ou o Choro) se
torna sua principal marca identitária.

A Roda apresenta muitas características das coletividades humanas, sendo a a


hierarquia uma delas. Todavia, os critérios que delimitam a hierarquia dentro de uma
Roda de Choro ou de samba são diversos daqueles que poderiam demarcar hierarquias
em outros ambientes. De modo simplificado, nada do que o sujeito é ou tem ou faz fora
da Roda importa para aqueles que estão dentro dela:

Pode (...) certo artista ser um indiscutível sucesso de


vendas ou execução. Pode ser um ídolo do rádio, do
cinema ou da televisão. Pode bater recordes. Nada disso
lhe assegura qualquer respeitabilidade ou diferenciação
dentro da Roda. Seu lugar será sempre determinado pelo
que for capaz de fazer ali – e ali não é lugar de mentira.
(Moura, 2004: 44)

No caso do Choro, sem dúvida a performance do músico é o principal elemento


que irá garantir sua respeitabilidade. Evidentemente, outros fatores podem intervir, tais
como: antiguidade na Roda, reconhecimento, histórico pessoal, ou até o carisma. Mas a
performance, a capacidade de tocar bem, a demonstração de talento e criatividade são
cruciais para um músico na Roda.

Outras manifestações da cultura popular brasileira, que incluem, muitas vezes, a


música, também têm, na Roda, sua matriz. Câmara Cascudo (2002) afirma que as três
etnias que deram origem ao povo brasileiro (negros, portugueses e índios) possuíam
suas danças de roda. Segundo ele, a Roda não é nenhuma novidade, pois a primeira
dança humana, expressão religiosa instintiva, a oração inicial pelo ritmo, deve ter sido
em roda, dançada ao redor de um ídolo (Cascudo, 2002, p. 592). Com efeito,
encontramos inúmeras manifestações da cultura popular cuja organização se dá em
forma de roda. Mas teriam essas outras rodas características semelhantes àquelas
observadas nas rodas de samba, descritas por Roberto Moura (2004), e nas de Choro?
Tomemos a capoeira como exemplo. Vieira e Assunção (1998) afirmam que o jogo da
capoeira, até o início dos anos 30, integrava-se às práticas cotidianas das classes
populares de modo semelhante aos jogos de futebol informais (peladas), pois consistia
em encontros entre pessoas em que o aprendizado se dava no exercício prático do jogo.
Havia pontos tradicionais de reunião dos capoeiristas, principalmente nos domingos à

47
tarde, tais como bares, praças, mercados e feiras. Não havia indumentária especial, mas
os capoeiras mais experientes costumavam trajar ternos de linho branco, pois sua
destreza se demonstrava ao sair da brincadeira com a roupa perfeitamente limpa. Os
autores enfatizam que, embora o universo da capoeira envolvesse violência e freqüentes
embates entre grupos rivais e com a polícia, seu caráter essencial é lúdico. Portanto,
entendem a roda de capoeira como folguedo, encontro. Afirmam também que a capoeira
é marca identitária de seus praticantes, e apontam a malandragem, a mandinga, como
um dos elementos mais valorizados na performance do capoeirista. O duelo jocoso é a
marca do jogo da capoeira; embora seja complexo a ponto de ser um jogo em que quase
nunca é possível apontar um vencedor, há sempre o objetivo de derrubar o outro, por
meio de golpes desequilibrantes. Todavia, nem sempre isso ocorre, e o jogo não perde
seu valor por isso. No mesmo sentido, Reis (2000) afirma que o ethos da capoeira é
marcado pela ambigüidade lúdico-combativa, que prefere o confronto indireto,
disfarçado, ao embate aberto. A malandragem é a maliciosa capacidade de dissimular,
de esconder as verdadeiras intenções do jogador. A ginga, base móvel da capoeira, é um
tipo de movimentação que permite ao capoeira utilizar maneirismos e mandingas que
confundem o outro jogador. Desse modo, ele torna seu jogo completamente
imprevisível, nunca sujeito a ser conhecido por antecipação, mesmo nas últimas frações
de segundo que antecedem sua movimentação. O jogo da capoeira é sempre
improvisado.

O improviso é também importante para as Rodas de Choro e de Samba. São elas


os contextos onde há maior liberdade para expressão, e onde o improviso é
particularmente valorizado. Lopes (2005) discorre sobre o partido-alto, modalidade de
samba em que está presente a improvisação repentina, cantada em feitio de contenda,
numa espécie de duelo verbal (Lopes, 2005, p. 18). Lopes (2005) afirma que a
circunstância em que o partido-alto se realiza e completa, sempre de forma bem-
humorada e brincalhona, como num jogo de domingo, é a Roda de Samba; afirma
também que o partido-alto é, sobretudo, o samba da elite dos sambistas (Lopes, 2005,
p. 27), indicando que a capacidade de improvisar é aspecto muito valorizado nas
manifestações de roda de origem afrobrasileira. Esses fatos mostram que existem
convergências importantes entre os diversos jogos, danças e músicas de roda de origem
afrobrasileira, que estão além do simples fato de serem realizadas em círculo. O

48
conhecimento de outros folguedos brasileiros pode, portanto, auxiliar o entendimento da
Roda de Choro, assunto sobre o qual existem poucos estudos acadêmicos.

Em um capítulo inteiro dedicado à Roda, a obra Choro: A Social History of a


Brazilian Popular Music (Livingston-Isenhour e Garcia, 2005) destaca seus aspectos
musicais (a formação instrumental, o repertório, a improvisação, o aprendizado, a
interpretação, e outros) e também os sociais (os códigos de conduta, o papel das
amizades, a hierarquia, a interação, a informalidade, a devoção, a paixão, etc.).

É importante discutir os modos como os autores entendem a autenticidade de


uma Roda. Para eles, existem dois tipos: a Roda pura, considerada também como
original, e a Roda de Apresentação. Na primeira, os músicos não são remunerados,
qualquer um pode tocar e não existe nenhum aparato tecnológico para a amplificação
dos instrumentos. Na outra, os músicos são assalariados, contam com o apoio de uma
infra-estrutura de sonorização e a participação de outros músicos dependerá do grau de
intimidade que tiverem com os outros membros da Roda. Os autores afirmam que esse
segundo modelo descaracteriza a Roda pura, pois o fato dos chorões contarem com o
apoio de recursos tecnológicos instaura outros modos de relação entre músicos e
audiência. Ademais, o profissionalismo exigido reduz os espaços de expressão da
pessoalidade, e cria um distanciamento entre músicos e músicos e entre músicos e
audiência. A Roda só é autêntica se houver a máxima interação entre os músicos e a
audiência. (Livingston e Garcia 2005, p.54).

Nesse ponto, algumas considerações são pertinentes. O contraponto, por


excelência, da Roda de Choro, é a apresentação, geralmente realizada em teatros e
casas de espetáculos, e cujas características são opostas àquelas observadas na Roda.
Em termos gerais, o repertório é preestabelecido e a apresentação é precedida de
ensaios. Por isso, são feitos arranjos para a maioria das músicas; em muitos casos, a
estrutura e a forma do Choro são alteradas, justamente por existirem ensaios prévios. A
apresentação é marcada pela formalidade e pelo profissionalismo. O público assume a
postura de espectador, ou seja, consumidor passivo do espetáculo apresentado. Para os
músicos, não faz diferença quem os está assistindo, pois a distância que os separa da
audiência é grande, tanto no âmbito físico quanto no psicossocial. Ocorre que, muitas
vezes, as Rodas de Choro acabam por incorporar alguns elementos da apresentação,
uma vez que são capazes de atrair público. Então, é comum que produtores de eventos,

49
donos de estabelecimentos, entre outros, promovam Rodas de Choro periódicas, a fim
de ver crescer seus negócios. Todavia, para que aconteçam, para que atraiam o público,
é preciso garantir, primeiramente, que exista um mínimo de músicos presentes, capazes
de executar os Choros. Assim, nesses casos, um Conjunto Regional é contratado para
garantir a música; todavia, não lhes é exigido ensaios, repertórios definidos, e a
participação de outros músicos é aberta. Em segundo lugar, é preciso amplificar o
volume do som, para que a audiência escute a música; existem, portanto, Rodas de
Choro com som amplificado. Por fim, em alguns casos, quando alguma Roda de Choro
começa a se destacar pela qualidade musical, é comum que o dono do estabelecimento
e/ou os próprios músicos realizem filtragens daqueles que poderão participar, vetando a
entrada de músicos muito iniciantes e inexperientes, que podem comprometer o nível da
performance da Roda como um todo. Livingston-Isenhour e Garcia (2005) entendem
que quando há som amplificado, pagamento de músicos fixos e filtragem de
participantes, o evento, embora denominado Roda de Choro, perde sua autenticidade
como tal. Defendem esses autores a idéia de que somente é autêntica aquela Roda de
Choro considerada pura, ou seja, que acontece sem nenhum outro objetivo a não ser o
encontro de músicos, e sem interferências de elementos externos a ela própria e à
música.

Propomos, aqui, um outro modo de entendimento da Roda de Choro. Para tanto,


será utilizada a abordagem metodológica proposta por Max Weber (1993), que se baseia
na construção de tipos-ideais. Um tipo-ideal é uma abstração que contém um conjunto
de elementos que, embora encontrados na realidade, não necessariamente o são do
mesmo modo como estão na representação típica-ideal. O tipo-ideal não é uma
representação nem uma descrição, mas sim um conceito que funciona como ferramenta
de análise, cuja finalidade é auxiliar a compreensão da realidade. Nas palavras de
Weber:

Obtém-se um tipo ideal mediante a acentuação unilateral


de um ou vários pontos de vista, e mediante o
encadeamento de grande quantidade de fenômenos
isoladamente dados, difusos e discretos, que se podem
dar em maior ou menor número ou mesmo faltar por
completo, e que se ordenam segundo os pontos de vista
unilateralmente acentuados, a fim de se formar um
quadro homogêneo de pensamento. Torna-se impossível
encontrar empiricamente na realidade esse quadro, na
sua pureza conceitual, pois se trata de uma utopia. A
atividade historiográfica defronta-se com a tarefa de

50
determinar, em cada caso particular, a proximidade ou
afastamento entre a realidade e o quadro ideal (...) Ora,
desde que cuidadosamente aplicado, esse conceito
cumpre as funções específicas que dele se esperam, em
benefício da investigação e da representação. (Weber,
1993, p. 137).

A descrição da Roda, conforme proposta por Roberto Moura (2004), pode ser
entendida como uma construção típico-ideal de um contexto em que o Choro ocorre; a
apresentação formal teria, então, características diametralmente opostas, sendo,
também, um tipo-ideal. O que observamos no plano real, contudo, são situações
híbridas desses dois contextos, que contêm elementos de um e de outro, em maior ou
menor grau. Esse raciocínio pode ser representado pelo seguinte diagrama.

RODA RODA APRESENTAÇÃO

R E A L I D A D E

Informal

Pessoal Formal
Observam-se características tanto
Proximidade entre músicos e da Roda quanto da Apresentação, Impessoal
audiência podendo estar mais próxima de uma
ou de outra. Distanciamento entre músicos e
Não-remunerada audiência
Repertório definido na hora Remunerada
Aberta à participação de diversos Repertório pré-definido
instrumentistas
Fechada à participação de outros
Ausência de equipamentos para instrumentistas
amplificação de som
Necessidade de equipamentos
Realizada ao redor de mesas, em para amplificação do som
cadeiras comuns
Realizada no palco

É interessante notar que o livro mais recente sobre a história do Choro, escrito
em 1998 por Henrique Cazes (2005), faz referência ao antagonismo Roda/Apresentação

51
já no título – Choro: do quintal ao municipal. O título transmite a idéia de que o Choro,
em sua trajetória histórica, partiu de um ambiente amador/informal (o quintal, local
onde as Rodas mais simples e espontâneas acontecem) para um formal/profissional (o
Teatro Municipal, ambiente glamoroso, onde somente grandes artistas se apresentam),
obtendo merecido reconhecimento. Todavia, o prefácio do livro, escrito por Hermano
Vianna, traz considerações sobre o título do livro e sobre o antagonismo
roda/apresentação:

Do quintal ao Municipal sim, mas também de volta ao


quintal novamente, e assim sem parar, num movimento de
ida e vinda (não se sabe ao certo qual é o território de
origem) que confunde muitas noções preestabelecidas,
como a de alta e baixa cultura, ou como erudito e
popular. Em cinqüenta anos, a banda de Anacleto de
Medeiros já apresentara uma seleção de temas de II
Guarany, Villa-Lobos já freqüentava as rodas de Choro
na casa do pai de Pixinguinha; e o pioneiro do violão
chorista, Sátiro Bilhar, tocara também música clássica.
Então, quem veio primeiro: o quintal ou o Municipal?
Puxo a brasa para a minha sardinha, e para o que penso
ser o traço mais interessante de tudo aquilo de vital que
aconteceu e acontece na cultura carioca e brasileira:
nem o quintal nem o Municipal. O melhor acontece
“entre”, na possibilidade de ultrapassar as fronteiras
rígidas que separam os vários mundos culturais, na
tradução entre as várias linguagens musicais, na genial
atuação de mediadores (entre-mundos, entre-linguagens)
como Pixinguinha, Radamés Gnatalli (...). (Vianna,
Hermano, In: Cazes, 2005, p. 8-9)

A polaridade roda/apresentação é presente quase sempre nos discursos que


tratam do Choro. Músicos, ouvintes, apreciadores, produtores, donos de comércio,
intelectuais, acadêmicos e artistas, enfim, todos que têm alguma relação com o gênero,
costumam possuir também opinião formada acerca dessa polaridade. Alguns discursos
valorizam a apresentação em relação à Roda, apoiados na idéia de que a formalização e
a profissionalização indicam que o gênero está sendo valorizado. De outra mão, há
aqueles que defendem que o Choro “autêntico” ocorre somente nas Rodas, onde existe
informalidade e pessoalidade. Em defesa da Roda, levanta-se o argumento da tradição: é
comum associar a origem do Choro ao ambiente das Rodas. A partir daí, surge a idéia
de que está havendo uma espécie de degeneração do gênero, cuja origem é a
profissionalização dos músicos e a associação do Choro com o comércio do
entretenimento. Ao mesmo tempo, alimenta-se o desejo nostálgico de volta ao tempo do
“verdadeiro” Choro, aquele tocado em Rodas nos quintais e botecos. Esse argumento

52
contribui, também, para a criação de uma visão romântica da Roda de Choro, como
sendo um local que as pessoas freqüentam por motivos nobres e altruístas, movidas
apenas pela beleza da música e dos encontros entre pessoas, onde reinam a mais perfeita
harmonia e as mais sólidas amizades, e onde não há lugar para mesquinharias e outros
sentimentos e atitudes vis e baixos. Essa visão romântica é, obviamente, equivocada e
distante da realidade.

Ao longo da história do Choro, conforme indicou Hermano Vianna, a


polaridade roda/apresentação esteve sempre presente. Também é fato que, na maioria
das vezes, os músicos que participam das apresentações são os mesmos que freqüentam
as Rodas, sendo conhecedores dos dois contextos, das diferenças que guardam entre si e
dos códigos de conduta em cada um deles.

Livingston-Isenhour e Garcia (2005) também fazem referências à tensão


roda/apresentação. Enfatizam a importância da Roda como matriz do Choro, e a
descrevem também em contraposição ao contexto da apresentação. Todavia, não
refletem sobre a existência de situações híbridas, que misturam elementos dos dois
contextos. Segundo eles, para os chorões, o Choro “verdadeiro” somente se ouve na
Roda, e a qualidade da Roda é julgada não somente pelo nível dos músicos, mas pelo
grau de participação: uma roda em que apenas poucas pessoas tocam (...) não é
considerada “verdadeira” (Livingston-Isenhour e Garcia, 2005, p. 42). No capítulo que
dedicam às Rodas de Choro, fazem referência a várias delas. Uma ficcional, imaginada
a partir dos relatos de Alexandre Pinto (1978) sobre o ambiente do Choro no início do
século XX, com o objetivo de descrever uma Roda antiga. Duas outras tiveram
participação dos autores do livro, e cuja realização se deu exatamente para que eles
pudessem participar; a primeira foi considerada uma roda de amadores, por ser formada
por músicos de nível técnico intermediário; a segunda foi definida como roda de
profissionais, porque dela participaram músicos consagrados, como Joel Nascimento,
Maurício Carrilho e Luciana Rabello. Há também a descrição de uma Roda de Choro
em Brasília, realizada na residência do Dr. Assis, chorão conhecido na cidade por Six,
pelo fato de possuir seis dedos nas mãos. Essa Roda durou cerca de três dias, pois era
costume do Six realizar eventos intermináveis, e contou com a participação de grandes
nomes da música instrumental brasileira, como Arthur Moreira Lima e Carlos Poyares.

53
Pela longa duração da festa, a Roda teve momentos diferentes, alguns mais formais,
outros extremamente informais, e obviamente muitos choros foram repetidos.

Por fim, os autores descrevem a Roda do “Choro na Feira”, que aconteceu em


maio de 2003. Os autores diferenciam essa Roda das demais descritas por ser uma Roda
de Apresentação. Definem esse termo – Roda de Apresentação – como sendo um
contexto em que, embora dê aparência de ser uma roda espontânea, na realidade
consiste em um grupo de músicos, relativamente flexível, que se encontra todo sábado
em Laranjeiras (Livingston-Isenhour e Garcia, 2005, p. 54). São, portanto, Rodas de
Choro com características de apresentação. Os autores chegam a afirmar que, nesses
casos, os músicos são pagos para agirem como se estivessem em um “evento
espontâneo”. Então, nas rodas contratadas, como eles as denominam, haveria uma
grande dose de cinismo, pois que pretendem literalmente enganar o público. Nelas, a
aparente espontaneidade confunde a audiência: o fato de não haver palco, e dos músicos
tocarem fisicamente próximos da audiência, faz com que o público pense que se trata de
uma Roda. Quanto à participação de outros músicos, Livingston-Isenhour e Garcia
(2005) afirmam que ela é limitada a instrumentos percussivos auxiliares (qualquer um
menos pandeiro e surdo). Todavia, descrevem uma situação em que um violonista
desconhecido dos músicos solicitou a participação na Roda e foi atendido; os músicos,
contudo, consideraram sua performance ruim e, embora o tenham tratado cordialmente,
demonstraram, com sutis expressões faciais, que não estavam apreciando. Apesar disso,
o deixaram tocar por um tempo. Para Livingston-Isenhour e Garcia (2005), a
participação do violonista foi possível porque o violão tem volume baixo, e não
compromete tanto a sonoridade geral da Roda; caso fosse um trombonista, por exemplo,
certamente teria sua participação negada. Assim, Livingston-Isenhour e Garcia (2005)
entendem que quando há músicos fixos e pagos, a Roda tem falsa espontaneidade, e não
deve ser considerada como tal. Além do pagamento, os autores apontam a amplificação
do som como outro elemento que descaracteriza a Roda de Choro: a questão da
amplificação não esteve presente em nenhuma das rodas que participamos,
principalmente porque os requisitos estéticos de uma roda são substancialmente
diferentes daqueles de um concerto (Livingston-Isenhour e Garcia, 2005, p.56).

Com base nessas observações, Livingston-Isenhour e Garcia (2005) concluem


que:

54
(...) houve uma mudança crucial nos últimos vinte anos
na prática e na percepção do Choro; ele deixou de ser
uma tradição essencialmente participativa, baseada na
roda, para ser uma tradição de apresentações e
gravações, representada pelas gerações mais jovens. O
renascimento [do choro no final do século XX] introduziu
o choro a um novo setor social – a juventude
universitária de classe-média e classe-média-alta. Nesse
processo, o choro foi adaptado às preferências e à
sensibilidade musical dos novos chorões. Além de serem
capazes de ler e compor músicas, esses músicos
geralmente têm uma orientação cosmopolita que os
distingue das gerações anteriores de chorões (Livingston-
Isenhour e Garcia, 2005, p. 57)

Desse modo, fica claro que, para Livingston-Isenhour e Garcia (2005), não
existe meio-termo entre os contextos da Roda e da Apresentação, pois cada evento deve
ser enquadrado em uma ou outra categoria. Quando elementos típicos da Roda estão
ausentes, eles a consideram falsa, mesmo que seja denominada como tal. Além disso,
conforme indica a citação acima, esses autores relacionam a redução das Rodas de
Choro autênticas ao fenômeno contemporâneo do renascimento do Choro, cujos
protagonistas são, principalmente, jovens de classe-média bem formados e informados.
Esse setor da sociedade dá alto valor às apresentações e gravações de discos; desse
modo, realizam Rodas de Choro voltadas ao público, com grupos fixos, pagos para
tocar e, muitas vezes, com som amplificado. Para Livingston-Isenhour e Garcia (2005),
essas não são Rodas verdadeiras. Todavia, na história do Choro, sempre esteve presente
a polaridade roda/apresentação e seus hibridismos. Os chorões eram familiares aos
ambientes informais tanto quanto aos mais formais possíveis, pois estavam acostumados
a se apresentar para a corte e a alta sociedade. Também sempre foram comuns Rodas de
Choro em estabelecimentos comerciais, visando aumentar o movimento, e com retornos
financeiros aos músicos. Conforme afirma Hermano Vianna, o Choro não acontece nem
no quintal nem no Municipal, mas no espaço entre esses dois mundos culturais
aparentemente apartados. Com base nisso, podemos afirmar que as Rodas do Choro na
Feira não são, como afirmam Livingston-Isenhour e Garcia (2005), falsas, mas possuem
características diferentes daquelas exclusivamente domésticas, sem, por isso, serem
menos autênticas. De fato, não é possível sequer julgar em qual contexto o Choro é
“mais autêntico”, se na Roda ou na Apresentação, uma vez que ambos estiveram

55
presentes ao longo da história do gênero, são parte dele e são igualmente importantes
para o seu desenvolvimento.

Podemos, ainda, afirmar que a polaridade roda/apresentação reflete a tensão


casa/rua, descrita por Roberto DaMatta (1997a) e utilizada por Roberto Moura (2004)
para explicar os contextos da Roda e da escola de samba. A Roda equivale à casa, onde
imperam a informalidade e a pessoalidade, e a rua equivale à apresentação, marcada
pela impessoalidade e pelo profissionalismo. A partir desse aforismo, podemos dizer
que o Choro ocorre, na maior parte das vezes, não na casa, nem na rua, mas na calçada,
ou no alpendre, com o portão aberto para quem quiser entrar.

Em Brasília, Rodas de Choro ocorrem nos quintais das belas casas dos Lagos
Norte e Sul, nos apertados bares e restaurantes do Plano Piloto, nas salas dos generosos
apartamentos da Asa Sul. Uma Lanchonete, localizada na Asa Norte, realiza Rodas de
Choro todas as sextas-feiras. Essas Rodas merecem destaque pela presença de muitos e
grandes músicos da cidade, bem como pela regularidade com que ocorrem.

A Lanchonete Tartaruga Lanches localiza-se no Plano Piloto de Brasília, área


nobre, de classe-média e classe-média alta. A Roda da Tartaruga reflete as
características do ambiente do Choro na cidade. Entre os músicos que freqüentam a
Roda, existe enorme diversidade de origens familiares (cariocas, nordestinos, mineiros,
sulistas, goianos, paulistas), de classes econômicas e níveis de renda, de escolaridade e
de formação musical. Há, também, predominância de jovens, entre 20 e 35 anos,
embora a Roda seja constantemente visitada pelos chorões das velhas gerações. Entre os
ouvintes, predominam funcionários públicos, profissionais liberais e estudantes
universitários, ocupações típicas da classe média. A composição da audiência decorre,
sem dúvida, do fato de a lanchonete estar localizada em bairro nobre da cidade.

As Rodas da Tartaruga Lanches iniciaram em meados do ano de 2006, assim


que a lanchonete/bar, de propriedade de dois irmãos músicos e chorões, foi inaugurada
no final da Asa Norte. Antes disso, funcionava em um pequeno trailler de Kombi, sem
motor, estacionado no Campus da Universidade de Brasília, ao lado do Departamento
de Música. Seus donos, os dois irmãos Paulo e Rogério, desde a adolescência estavam
envolvidos com música, e participaram de várias bandas da cena da cidade. Na
Tartaruga, iniciaram contato com os estudantes de música, dentre os quais alguns jovens

56
chorões. Assim, Rogério começou a estudar pandeiro e Paulão, bandolim. A partir de
2004, a Tartaruga Lanches passou a promover modestos encontros, às sextas-feiras a
partir das 18:00, entre estudantes de música que gostavam de tocar Choro. As reuniões
eram pequenas, com menos de 30 pessoas. Como no Campus da UnB era proibida a
venda de bebidas alcoólicas, os irmãos forneciam uma garrafa de cachaça aos músicos.
As Rodinhas da Tartaruga foram sendo divulgadas boca-a-boca, e o público começou a
aumentar. Antes que virassem um evento de fato, a Prefeitura do Campus da
Universidade proibiu-as, ameaçando inclusive caçar a concessão para a permanência da
Tartaruga na UnB.

A turma que freqüentava as Rodas, então, no exato dia em que foram proibidas
na UnB, subiram para a Asa Norte, até um bar na 408 Norte, munidos de instrumentos.
Como clientes normais e pagantes, fizeram a Roda de Choro, que agradou o público e o
dono do bar, que ofereceu comes e bebes gratuitos aos músicos caso aparecessem na
outra semana. E assim fizeram. Então, a divulgação boca-a-boca fez a sua parte, e o
público do bar foi aumentando a cada semana. Cerca de seis semanas depois, via-se a
rua tomada de gente, impedindo inclusive o trânsito, todos a ver a Roda de Choro. Um
dos músicos levava duas caixas de som portáteis, em que eram ligados o violão, o
pandeiro e o bandolim. Os instrumentos de sopro tocavam sem amplificação. Na
verdade, era uma bagunça enorme. Muitas vezes, a Roda acabava com alguém ligando
um microfone e cantando sambas, ou, como em um dia de chuva, em que dezenas de
pessoas se espremiam ao redor da mesa dos músicos, sendo impossível para eles se
levantarem, o público puxou lá um samba e aos músicos não restou outra alternativa
senão acompanhar. Enfim, por toda a confusão que essas Rodas começaram a causar,
foi a vez da Administração de Brasília notificar o estabelecimento e ameaçar suspender
seu alvará, caso não parasse a bagunça. Então, ficou proibido sentar nas mesas daquele
bar com instrumentos de Choro (cavaquinho, pandeiro, bandolim, entre outros). Não
demorou para que outros bares fizessem propostas para abrigar a Roda de Choro, em
troca de comida e bebida. Um a um, vários bares foram sendo notificados pela
administração de Brasília. Um, inclusive, foi fechado porque não tinha alvará de
funcionamento. Depois de quase um ano, as Rodas de Choro não tinham mais onde
acontecer, porque os donos de bares tinham pavor de violões, pandeiros, cavaquinhos e
bandolins. Um produtor de eventos da cidade, sujeito articulado, amante do Choro,
levou a Roda de Choro para um Clube, longe de residências e confusão, onde ela

57
permaneceu por cerca de dois anos. Nesse tempo, conforme ia atraindo mais e mais
público, os olhos cresceram para a possibilidade de ganhos financeiros. Eis que o Choro
foi perdendo espaço para o samba que acontecia logo depois, e a Roda foi
desaparecendo, semana a semana, cedendo lugar a uma apresentação de choro/samba
que visava apenas entreter os jovens brasilienses. Como era previsto por muitos,
desavenças entre músicos, produtores e outros, envolvendo obviamente o dinheiro,
puseram fim no Samba do Arena.

Mas, em 2006, os irmãos transferiram a Tartaruga Lanches para um local


maior, no final da Asa Norte, e voltaram a promover os encontros musicais na sexta-
feira à tarde. As primeiras Rodas não tinham um grupo fixo de instrumentistas. Os
músicos se sentavam ao redor de uma mesa comum, em que os irmãos oferecem alguns
petiscos, uma garrafa de cachaça e cerveja. A audiência era reduzida, e composta por
amigos e músicos. Numa das primeiras Rodas, realizada em 20/10/2006, foi registrada a
presença de 12 instrumentistas, do total de 30 pessoas que estavam no local. Ao longo
de um ano, as Rodas aconteceram sem um Regional fixo, porém com a presença
constante de 10 a 15 instrumentistas.

A audiência, contudo, foi aumentando a cada semana e, atualmente, varia entre


100 e 200 pessoas. O som de todos os instrumentos é, por necessidade, amplificado,
sendo que há microfones para instrumentos de sopro e cabos para os de corda. Hoje
existe, também, um grupo fixo de músicos contratados, que têm o compromisso da
presença em todas as Rodas, e cuja função é garantir que a música aconteça,
independentemente da presença ou ausência de outros instrumentistas.

Muito embora sempre exista uma grande quantidade de músicos na Rodas, que
por vezes chega a 20 ou 30, certas regras definem a composição do grupo que toca em
cada momento. Sempre há somente um pandeiro, um violão de sete cordas e um
cavaquinho fazendo o centro (harmonia e ritmo); outro violão pode auxiliar na harmonia
e outro cavaquinho pode entrar para fazer o solo. Quanto aos solistas, vários podem
tocar a mesma música, porém sempre um de cada vez, dividindo entre si as partes da
música. As observações das Rodas documentaram que já se apresentaram como solistas:
clarineta, flauta, cavaco, bandolim, trombone, saxofone, violino, gaita, trompa,
acordeon e viola caipira.

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O objetivo da Roda de Choro é a possibilidade de os músicos tocarem uns com
os outros, sem ensaio ou pré-determinações de repertórios e arranjos. Por isso, a Roda
de Choro não dá espaço para grupos e regionais de Choro realizarem apresentações
ensaiadas. Em Junho de 2007, a Roda recebeu a visita de um Regional, residente nos
Estados Unidos, que iria se apresentar no Clube do Choro de Brasília. Eles chegaram,
assumiram seus instrumentos, e começaram a tocar o repertório próprio do grupo. Um
leve mal-estar pairou entre os demais músicos, que rapidamente foram substituindo os
forasteiros, para que se misturassem com os instrumentistas da Roda e tocassem com
eles.

Esse episódio reforça o caráter de encontro da Roda. Sendo um encontro, os


músicos se importam menos com a audiência do que com os próprios músicos. Em
entrevista, um dos músicos freqüentadores dessas Rodas afirmou: na roda, eu toco para
os músicos, e, no palco, para o público.

Outro objetivo da Roda de Choro é o aprendizado do gênero, o conhecimento do


repertório e a tomada de familiaridade com sua linguagem. A Roda é considerada a
escola por excelência do bom chorão, conforme indica o relato do violonista de sete
cordas Laércio Pimentel:

Laércio Pimentel: Geralmente quando a gente fala de Choro, a gente fala de Regional de Choro, então
fala de grupo, fala de pessoas. Ele pode ser um solista, tocar os temas, tocar sozinho, mas o esquema da
Roda de Choro é único. É diferente tocar sozinho e tocar em grupo, acompanhado pelo pandeiro, pelo 7
cordas. É uma outra pressão, um outro entendimento.

Mesmo reconhecendo o papel do aprendizado formal, Henrique Neto, violonista


de 7 cordas, atribui à Roda importância fundamental na formação do músico:

Pesquisador: O quê você acha mais importante: estudar o violão ou o conteúdo da UnB?

Henrique Neto: Em termos musicais, com certeza o violão. Meu aprendizado musical eu devo muito mais
às Rodas do que à UnB. O conhecimento acadêmico te orienta, mas pra você ser músico mesmo, aí tem
que tocar. Não deve ficar restrito à noite, tocar em boteco, isso não, porque aí o cara joga fora a vida dele
toda. No boteco ninguém está ouvindo você tocar. Tem que se gabaritar para ser um grande músico,
sacou? Fazer grandes trabalhos, isso é indispensável. A Roda de Choro, o boteco, ninguém está te
ouvindo tocar, mas mesmo assim você tem que tocar neles, acompanhar cantores e tudo o mais. Essa é a
maior escola, sem desmerecer a Universidade, claro, porque as coisas se complementam. A Universidade
te dá só um polimento.

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Observamos, pelo relato acima, que o chorão em questão tem conhecimento de
diversos contextos em que o Choro acontece. Para ele, tocar na Roda de Choro é
indispensável para o aprendizado do gênero, mas é igualmente importante tocar em
apresentações, gravações e outros contextos, bem como tocar outros gêneros além do
Choro. Isso reforça a idéia de que a polaridade Roda de Choro/apresentação é algo
sempre presente na realidade desses músicos, pois faz parte de sua formação a
performance em ambos os contextos.

Na Roda, há uma regra clara: quem quiser tocar, pode tocar, desde que seja na
Roda e que tenha capacidade para tal. Certa vez, na Tartaruga Lanches. um
desconhecido solicitou uma participação; como sua performance não foi condizente
com o nível musical da Roda, foi sutilmente expulso, com frases incentivadoras, do
tipo: “ô amigo, tente estudar mais um pouco”.

Diz-se que a Roda é aberta, ou seja, a princípio, nela é permitida a participação


de qualquer músico. A depender do nível técnico e de conhecimento do Choro daqueles
que a compõem, existe um grau de cobrança de desempenho que pode excluir um
grande número de músicos. A Roda da Tartaruga tem marcadamente essa característica.
Muitos instrumentistas iniciantes relatam que não têm coragem de tocar, acreditando
não possuir nível suficiente para participar. Essa impressão é causada, em parte, pelo
fato de músicos considerados bons em Brasília tocarem nela. Também contribui para
isso o hábito que os músicos têm de cobrar boas atuações. Não são poupados
comentários e brincadeiras, e se um participante está a comprometer por demais a
execução da música, é solicitado que algum outro músico assuma seu instrumento. Até
mesmo músicos que tocam freqüentemente na Roda são alvo de críticas que chegam a
ser severas a ponto de criar desentendimentos pessoais. O seguinte episódio mostra um
caso desses:

O cavaquinista, enquanto solava um baião rápido, olhava para o pandeirista e tentava corrigir um erro que
ele estava cometendo naquele pedaço da música. Tanto o cavaquinista quanto o pandeirista são músicos
habituais da Tartaruga Lanches. Depois, chamou novamente a atenção do pandeirista, dizendo “está
caindo, está caindo”, referindo-se ao fato de o pandeirista estar atrasando um pouco o andamento da
música. Após um breque, o pandeirista teve dificuldades em voltar a tocar no tempo certo. O
cavaquinista, então, fazia caras e bocas, dizia “não, não!”, e expressava impaciência e descontentamento;
demais participantes da Roda estavam levemente apreensivos. Alguns riam dos erros do colega, outros
aguardavam o desfecho da situação. Quando a música terminou, iniciou-se o seguinte diálogo:

Cavaquinista (dirigindo-se ao pandeirista): mas foi ruim demais, hein? Caiu muito [ou seja, o andamento
ficou mais lento], caiu demais. Assim não dá.

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Pandeirista: mas também a música é rápida demais.

Cavaquinista: Pois é. Vou te dar um conselho. Volta para a Escola de Choro [Raphael Rabello]. Volta
para lá, você consegue até uma bolsa. Volta para lá para aprender a tocar.

Pandeirista (levantando-se e deixando o pandeiro sobre a mesa): Alguém vem tocar no meu lugar aqui,
porque não tenho capacidade para tocar nessa Roda.

Nisso, alguns integrantes da Roda tentaram minimizar o mal-estar, com frases do tipo: o que é isso,
também não é assim, calma, não liga não. Em vão, pois o pandeirista, visivelmente magoado, abandonou
a Roda e foi ter com algumas jovens garotas que estavam próximas.

De fato, o que se observa na Roda é que, embora sempre se afirme que ela é
aberta, tal abertura não é absolutamente irrestrita. As limitações se impõem,
principalmente, em função de performances não satisfatórias. O caso descrito acima
mostra a exclusão de um músico considerado de casa, alguém cuja aceitação na Roda
não é comumente posta em questão, em função de sua performance ter sido considerada
ruim naquele momento.

Em geral, a Roda fica sob o comando de um músico, definido tacitamente entre


todos; o critério para tal pode ser experiência, nível técnico ou de conhecimento
musical. Se o “comandante” deixa seu posto, automaticamente o comando se transfere
para outro. No Tartaruga, há a presença constante de um cavaquinista cujo virtuosismo
é notável, embora seja muito jovem. Em geral, a Roda fica sob seu comando. Algumas
vezes, músicos mais velhos e experientes aparecem para participar; nesses momentos, é
evidente a reverência com que são tratados por todos, e o comando da Roda lhes é
gentilmente cedido.

Todavia, há casos em que instrumentistas virtuoses aparecem para tocar,


músicos que vêm se apresentar no Clube do Choro ou músicos que não freqüentam
assiduamente a Roda da Tartaruga. Nesses momentos, o comando da Roda fica em
xeque. Observa-se, então, que se iniciam duelos entre solistas e, do mesmo modo, os
acompanhadores são postos à prova. Quando isso acontece, os músicos menos
experientes ficam de fora, e são chamados para compor a Roda somente aqueles
considerados os melhores. Em entrevista, o cavaquinista Márcio Marinho afirmou:

Márcio Marinho: [para tocar Choro] tem que estar naquele convívio da Roda. Tem que ter aquele
esquema do desafio. Eu acho que Roda de Choro é isso, o desafio, testar o cara para ver se ele vai dar

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conta. Se ele se ferrar, a galera vai ficar feliz, porque você conseguiu derrubar o cara. Roda de Choro tem
muito isso.

Outro cavaquinista fez observações semelhantes:

Leonardo Benon: Roda é isso, chega o solista e diz: vou tocar tal choro, você tem que se virar pra
acompanhar (...). O tom é tal, vamos atrás. Poyares fazia isso com a gente direto, às vezes inventava uma
música e a gente tinha que acompanhar, tinha que correr atrás. Às vezes, o cavaquinista dá uma palhetada
invertida, tira a acentuação do tempo, para ver se o solista também não se perde. Igual quando a gente vai
tocar com o Evandro, ele enrola a galera. Pode estar tocando o choro mais simples do mundo, o
Carinhoso, que ele desloca a melodia, atrasa, adianta. Se o cara não estiver atento, cai na hora. É coisa da
Roda.

O duelo musical entre instrumentistas é, então, um dos elementos importantes da


Roda de Choro. Consiste basicamente na comparação entre as performances, em que
são julgados: técnica, conhecimento e criatividade para interpretar e improvisar. A
responsabilidade daquele que não quer perder o comando da Roda é grande, pois ele
não pode errar; por outro lado, tem a vantagem de “estar em casa”, ou seja, conhecer os
acompanhadores e o ambiente. O forasteiro, por sua vez, pode testar o Regional como
um todo: por exemplo, é considerado humilhante se ocorrer dele propor uma música
que os acompanhadores não conheçam e não sejam capazes de executar. Por outro lado,
ele perderá a oportunidade de permanecer tocando se cometer um deslize muito grave,
como esquecer a música que ele mesmo propôs ou cometer um erro rudimentar
(principalmente se perder o ritmo). Nesse ponto, o Regional pode testá-lo também,
fazendo variações rítmicas inesperadas – no caso do pandeiro e do cavaco -, ou frases
contrapontísticas do violão que tirem a concentração do solista, ou mesmo acelerando o
andamento da música (embora nem sempre isso seja considerado leal). O solista “de
casa” tem a incumbência também de “manter seu reinado”. Por exemplo, quando um
deles propõe uma música que ambos conhecem, o duelo então se acirra, por meio de
improvisos e aumento dos andamentos, até que fique claro qual deles se saiu melhor, ou
até que a música termine. Nem sempre sai um vencedor do duelo, mas é certo que todos
ganham nessas ocasiões, principalmente a audiência de músicos e freqüentadores:

Dudu 7 Cordas: Se eles [os músicos de casa] sacarem que o cara é carne nova no pedaço e vai dar uma
canja, dependendo do cara, eles botam quente. Se eles sacarem que o cara toca bem e está tocando tudo o

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que eles estão fazendo, uma hora eles vão jogar uma música para ferrar o cara. Ou às vezes eles podem se
ferrar. Eles acham que o cara não sabe, mas o cara sabe. Como já aconteceu no Rio com E. Foram tocar
uma música, acharam que determinada pessoa não sabia a música, mas se ferraram, porque o cara sabia e
tocou a música. Depois E. jogou contra, e puxou uma música que eles não souberam. Se ferraram. [Em
outra ocasião], E. foi para São Paulo, e os paulistas tocavam altas músicas para sacanear, músicas que
ninguém conhecia, e ele tocou todas. Então, ele puxou uma música, aquela ‘pra esquecer’, do Waldir, aí
os caras não foram. E. deixou o cavaquinho na mesa, saiu da Roda e falou: vocês não tocam nada. Então,
você pode se surpreender, querer dar uma de bonzão e se dar mal.

Outro instrumentista fez observação semelhante:

Henrique Neto: Assim, a Roda de Choro sempre tem o espírito de testar o outro. No Rio [de Janeiro],
acho que se acentua mais esse espírito, porque tem muita concorrência lá. Também tem esse lance, que
está estampado na cara do carioca, de que ele é malandro. Então ele chega já botando uma música que ele
sabe que você não vai tocar, de uma maneira até meio perversa. Aqui em Brasília também tem isso,
lógico. Mas tem um lance do desafio saudável. Lá eles derrubam para ver teu oco, mas isso é o espírito do
Choro. Acho que ele foi formado assim, isso não é uma coisa ruim. Acho que quando isso acontece, de
você não saber tocar, isso te motiva a estudar mais, a conhecer mais repertório. Tem que estar preparado
para isso.

Embora de inegável importância, o duelo nem sempre está presente. Muitas


Rodas acontecem em clima constante de amizade, compadrio e companheirismo, sem
por isso, serem consideradas piores. Outros fatores são considerados importantes no
contexto da Roda, conforme indica o seguinte relato, do violonista Dudu Sete Cordas:

Dudu 7 Cordas: Eu acho [importante para a Roda] a descontração, encontrar os amigos e aprender com o
outro. Tem gente que não traz coisas novas, tem um repertório de 15 músicas, mas tem muita gente que
traz coisas novas, tem muita canja e isso é legal. Tomar umas, descontrair.

Do mesmo modo como ocorre nas rodas de samba (Moura, 2004), as relações
pessoais, de afeto e de amizade, importantes para a vida dos músicos mesmo fora do
âmbito estritamente pessoal, têm relação com a Roda de Choro, pois ela é local de
formação de vínculos, conforme evidenciado no relato de Augusto 7 Cordas:

Augusto Contreiras: Se você toca numa Roda de Choro, já está fazendo amizade automaticamente. Claro
que essa amizade, às vezes, se restringe mais ao campo profissional, mas não deixa de ser uma amizade.

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Também tem muitos músicos antigos aqui em Brasília, e a gente já toca há muito tempo. Então, a gente
tem uma relação de amizade.

A existência, no mesmo ambiente da Roda, de dois modos de relacionamento


entre pessoas - desafio/competição e compadrio/amizade/afeto/lealdade –
aparentemente contraditórios, revela um outro aspecto interessante da Roda de Choro:
seu caráter lúdico. A música como jogo ou brincadeira amplia a sensação de
informalidade e festa. O seguinte relato menciona o desafio como brincadeira na Roda
de Choro:

Leonardo Benon: Não tem, na história do samba, grandes cantores. O que importa não é a voz, é a
interpretação, deslocando o tempo, atrasando, adiantando. Isso pra mim é improvisar (...). Toda a roda, na
cultura brasileira, tem esse negócio do desafio, do duelo. Na capoeira os caras são amigos, mas tão
duelando; na roda de partido alto, também. Era tudo improviso, só tinha o refrão. Na Roda de Choro
também tem esse lado; por ser roda, tem desafio.

Pellegrini (2005) também faz referência à brincadeira na Roda de Choro:

Pode-se testemunhar esse clima de brincadeira ainda


hoje em qualquer roda de choro em que, mesmo se
tocando melodias conhecidas, vê-se o solista alterando as
melodias de tal maneira que um acompanhamento pouco
treinado, muitas vezes, acaba por se perder. (Pellegrini,
2005, p. 25)

Imprimir a qualidade de jogo à música, contudo, não reduz o respeito com que
os músicos e audiência a consideram. Para tocar na Roda, é necessário conhecer seus
códigos e ter capacidade de tocar bem o instrumento; ou seja, é preciso levar a sério a
música e o ambiente da Roda. O termo brincadeira, na Roda de Choro, não é antagônico
à seriedade. A música como brincadeira de roda pode, porém, indicar uma resistência à
institucionalização da Roda, que a converteria em espetáculo. Se ocorrer essa
conversão, obrigatoriamente a Roda perderá algumas de suas características informais,
dentre elas, a brincadeira e o jogo. No espetáculo, não há lugar para a imprevisibilidade
do jogo, tampouco para a vulnerabilidade do jogador que pode cair ou perder a qualquer
momento; nele, tudo deve ser ensaiado previamente. Então, o ambiente de festa e
encontro cederia lugar ao formal e profissional; nesse ponto, o evento não mais poderia
ser considerado uma Roda. Esse é, sem duvida, o risco que as Rodas de Choro que

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assimilam elementos de apresentações formais (como amplificação de som e pagamento
de cachê) sempre correm. Caso as características da apresentação passem a ter primazia
sobre aquelas da Roda, ela pode, aos poucos, ir deixando de funcionar como tal, porque
a Roda é resistente à institucionalização desde a sua essência.

Embora marcada pela informalidade e pela brincadeira, há aspectos da Roda


tratados com verdadeira austeridade. Um deles é o repertório. Ele deve ser composto
majoritariamente por Choros, embora possam ser incluídos, com muito critério, sambas,
baiões e outros ritmos. O repertório das Rodas da Tartaruga varia, evidentemente, com
os músicos solistas presentes. Não há nenhuma determinação prévia do que será tocado,
mas algumas músicas fazem parte do cânone, e são tocadas em praticamente todas as
Rodas. Autores como Jacob do Bandolim, Pixinguinha, Waldir Azevedo estão sempre
presentes, sendo tocados por vários instrumentos. Uma regra rígida, em Brasília,
consiste em não repetir a mesma música na mesma Roda. Portanto, se um solista chega
depois do início da Roda, pergunta aos demais se determinado choro já foi tocado.
Outra regra firme é a proibição do uso de partituras ou outros registros escritos. É
extremamente valorizada, por parte dos músicos, a ampliação dos repertórios dos
solistas, inclusive acrescentando composições contemporâneas. Também se apreciam as
inovações interpretativas trazidas pelos solistas. A Roda cobra dos músicos a variação
nas interpretações, e critica, com sorrisos sarcásticos e olhares de lado, as reproduções
sempre iguais. Desse modo, a Roda torna-se um fator de preservação, divulgação e
renovação da tradição do Choro.

Normalmente, a Roda se inicia por volta das 18h30, com choros lentos e
cadenciados, quando a audiência é ainda pequena. A partir das 19h30, com público
maior, são tocados choros mais rápidos, e parte da audiência já se aglomera ao redor da
mesa dos músicos, dançando ou simplesmente observando as performances de choros
rápidos e alguns lentos, com clara preferência dos músicos pelos mais rápidos. É
comum os solistas realizarem seqüências de sambas, bossa-nova ou baiões, que são do
agrado do público. A partir das 20h00, o clima de informalidade aumenta, as pessoas
falam mais alto e reagem aos acontecimentos musicais da Roda. Um improviso
impressionante é reconhecido por gritos e palmas tanto dos demais músicos quanto da
audiência. Quanto maior for o número de pessoas, quanto mais sua atenção estiver
voltada para a música, quanto mais elas gritarem, maior será o incentivo para os

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músicos, e a Roda se torna mais vigorosa, crescendo em volume de som e no andamento
das músicas. Para a última música da Roda, os músicos guardam os choros
“apoteóticos”; dentre os mais comuns tocados, estão Brasileirinho (Waldir Azevedo),
Santa Morena (Jacob do Bandolim) e Aquarela na Quixaba (Hamilton de Holanda).

Em todas as músicas do repertório, o improviso pode acontecer; é comum,


contudo, que muitas músicas sejam tocadas sem improvisos, às vezes com pequenas
variações na linha melódica, ou sem variações. Existem algumas consideradas mais
“propícias” ao improviso: por exemplo, podemos citar Cochichando, de Pixinguinha, e
Noites Cariocas, de Jacob do Bandolim, como Choros em que o improviso é sempre
presente. Quando são tocadas, normalmente as partes são repetidas muitas vezes
(alterando a forma da música) para que todos os músicos participantes improvisem.
Praticamente todos os músicos entrevistados afirmaram considerar o improviso
imprescindível no Choro e na Roda. No improviso, o músico se despe das preparações
prévias à performance, e mostra o seu real domínio e conhecimento da linguagem do
Choro. Além disso, traz a possibilidade da expressão individual e pessoal. Por isso, na
Roda de Choro, contexto em que vigora o primado da pessoalidade, o improviso é
considerado fundamental.

Há, porém, falta de consenso entre os chorões acerca da quantidade de solos


improvisados que uma performance pode conter, bem como acerca do modo como são
realizados. Há aqueles que criticam os músicos que exageram nos improvisos;
normalmente, se cobra a apresentação do tema. Todavia, alguns músicos consideram
desnecessária a apresentação do tema em uma Roda de Choro (principalmente nas
músicas muito conhecidas), e não se incomodam de executar uma música inteira
somente improvisando. Essas divergências resultam, ocasionalmente, em discussões na
Roda, por vezes no meio da música, como ilustra o episódio abaixo:

A música era Cochichando, havia três solistas (cavaquinho, flauta e gaita), mais o violão de 7 cordas, o
violão de 6, o cavaquinho-centro e o pandeiro. O cavaquinho puxou a primeira parte incluindo variações e
improvisos; a flauta a repetiu sem improvisar. Na segunda parte, o mesmo se sucedeu. A partir daí, o
cavaquinista e o gaitista intercalavam improvisos, pedindo as partes da música aleatoreamente, sem
respeitar a forma. A terceira parte já havia sido repetida várias vezes (inclusive com improvisos dos
violões), sem que o tema fosse apresentado. O cavaquinista-centro pediu, então, que algum dos solistas
apresentasse o tema. Quando a música terminou, alguns músicos não esconderam a insatisfação,

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reclamando muito do excesso de improvisos e do desrespeito à forma do Choro. Seguiu-se uma pequena
discussão, até a próxima música fosse iniciada, e o entrevero esquecido.

Os seguintes relatos expressam a opinião de músicos que defendem maior


parcimônia nos improvisos:

Leonardo Benon: O respeito na Roda é todo mundo saber o que fazer e quando fazer. Chego lá na Roda
da Tartaruga, e está todo mundo estudando improviso. Tocou a música, aí repete a segunda ou a terceira
parte vinte vezes. Só o cara que está improvisando é que está gostando. Quem é músico está entendendo
tudo. Mas imagina quem não é? O público não entende nada. Fica aquela coisa massante, igual ao jazz. O
tema dura 30 segundos, mas a música dura duas horas.

Pesquisador: Você acha que o improviso tem que ter um certo limite, então.

Leonardo Benon: Tudo tem um limite.

Dudu 7 Cordas: Até nas repetições das músicas, a galera esqueceu da forma das músicas (...). Faz três
vezes a primeira, a segunda faz uma vez, aí já muda pra terceira, faz três vezes a terceira. Aí confunde
tudo, porque perde a forma.

Leonardo Benon: Isso é primordial. A forma é primordial. Porque se é uma música de improviso, você
não sabe onde ela vai acabar e o que vai acontecer. Então, pelo menos a forma tem que estar definida.

Pesquisador: Mesmo quando o solista pede para repetir a terceira de novo, por exemplo.

Leonardo Benon: Aí tudo bem, mas cansa.

Dudu 7 Cordas: Isso está acontecendo em Brasília, não é só na Tartaruga, a gente tem a referência da
Tartaruga, porque a maioria dos músicos de Choro estão se encontrando lá, e ela se tornou a maior Roda
de Choro aqui de Brasília. Os solistas, e até mesmo os violonistas, ficam toda hora pedindo para
improvisar, toda hora falam tal parte para mim, para mim. Aí então acaba afetando a forma, porque é um
tal de pedir para mim, para mim, que a gente não sabe se faz uma vez a [parte] A, outra vez a B. Porque
as vezes você está na A, então alguém fala: três, três [solicitando a parte C, às vezes chamada de terceira
ou parte três], eu pulo do A para o C, sem fazer a forma da música toda. Aí fica sem sentido a coisa, e a
música mesmo, que era pra ser apresentada, não acontece.

Leonardo Benon: Tem que apresentar o tema, e improvisar depois.

Observamos, então, que, embora o improviso seja sempre aceito e considerado


indispensável, há pontos de conflito relacionados a ele. Os músicos mais conservadores
entendem que o tema de uma música não pode desaparecer por longos períodos em sua
execução, como acontece no jazz; também há polêmicas quanto à perda da linguagem
do Choro, uma vez que muitos músicos, por sua formação eclética, utilizam técnicas do
jazz para improvisar. Por outro lado, outros defendem o acontecimento de improvisos,
principalmente nas Rodas de Choro, longos e que tomam boa parte da execução da

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música. Em virtude dessas divergências, o que se observa nas Rodas é uma grande
diversidade de modos de executar os choros, com ou sem improvisos; esses últimos
podendo ser longos ou curtos, ser próximos ou distantes da melodia da música.

Com efeito, controvérsias em relação ao improviso no Choro não são recentes.


Cazes (2005) afirma que a improvisação, do surgimento do Choro até as primeiras
décadas do século XX, era inexistente nas gravações, o que levou Hermano Vianna, no
prefácio do livro Choro: do quintal ao municipal (Cazes, 2005, p. 8) a concluir que isso
torna muito provável a afirmação de que não se improvisava na roda de choro. Korman
(2004), por outro lado, afirma que o improviso esteve presente no Choro desde suas
origens, ainda no século XIX. Segundo esse autor, no início do século XX, o Choro
incorporou influências do jazz norte-americano, do ragtime, dos fox-trots. Nas décadas
de quarenta e cinqüenta, foi influenciado pelo bebop, cool jazz, swing, ballroom e hard
bop. Em todos os casos, o uso de técnicas e de linguagens oriundas desses gêneros
estrangeiros gerava polêmicas e discussões entre os músicos brasileiros. A escassez de
registros torna difícil saber se havia ou não improvisos no Choro, bem como conhecer
com precisão como eram feitos. Mas o próprio Cazes (2005) afirma que as gravações do
início do século XX da flauta de Pixinguinha apresentam o brilho especialíssimo de
suas interpretações e improvisos. É possível que improvisos estivessem ausentes das
gravações, por questões de ordem técnica e financeira, mas isso não significa que, em
outros contextos, notadamente com alto grau de informalidade como as Rodas de
Choro, eles não ocorressem.

Korman (2004) afirma que, atualmente, na nova fase que o Choro vive, seus
praticantes têm familiaridade com a linguagem do jazz americano, e isso vem alterando
o vocabulário de improvisação do Choro. Ele identifica algumas mudanças no modo de
tocar o Choro, dentre as quais as seguintes estão presentes nas Rodas da Tartaruga
Lanches: a forma da música é alterada, possibilitando a improvisação sobre uma
seqüência harmônica cíclica; aspectos da performance jazzistica estão sendo
apropriados e usados livremente; repertório, fragmentos melódicos e fraseados da
tradição brasileira têm sido incluídos no vocabulário comum do Choro; praticantes
estrangeiros estão cada vez mais familiarizados com o gênero. Observamos, contudo,
que a inserção dessas mudanças não se dá de forma harmoniosa, pois gera desavenças
entre seus praticantes. Os relatos dos músicos também permitem concluir que os

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músicos, em geral, têm plena consciência desse processo de mudança pelo qual o Choro
está passando, e não se furtam a tomar posição perante elas, seja concordando ou
discordando. A existência dessas controvérsias, bem como a possibilidade de introduzir
inovações no modo de tocar o Choro, indicam que a Roda de Choro da Tartaruga é um
contexto onde é possível a renovação da tradição do Choro.

De fato, Roberto Moura (2004), quando afirma que a roda é a matriz do samba,
está a dizer que é precisamente nesse contexto em que se processa o desenvolvimento do
gênero; ou seja, é na Roda que as inovações são testadas, podendo ser aceitas e
incorporadas ao gênero ou não. O mesmo é válido para o Choro. As Rodas da Tartaruga
são locais onde esses testes podem acontecer, e onde as polêmicas e controvérsias
acerca das inovações ao gênero podem ser discutidas e amadurecidas. Também estão
presentes, na Tartaruga Lanches, as seguintes características da Roda de Samba
apresentadas por Moura (2004): compadrio, amizade, lealdade, hierarquia e
informalidade. Também é nítido o caráter doméstico e familiar da relação entre músicos
e boa parte da audiência. O fato de os músicos tocarem para os músicos e da Roda
cobrar que toquem juntos, sem predeterminações de arranjos ou interpretações, reforça
o caráter de construção coletiva da música. A tradição se renova, então, pela constante
reformulação interpretativa das composições.

É preciso enfatizar, contudo, que a Roda da Tartaruga Lanches incorpora alguns


elementos típicos de apresentações, sendo os mais importantes a contratação de um
grupo fixo de instrumentistas, mediante pagamento de cachê, amplificação de som e
presença de pessoas externas ao círculo de amizades e relações dos músicos. Além
disso, em determinadas situações, alguns instrumentistas não têm acesso à participar da
Roda, principalmente em função do nível de habilidade. Esses elementos, porém, não
fazem com que os músicos, nem a audiência, deixem de considerar o evento uma Roda
de Choro autêntica.

Também é presente, na Tartaruga, formas de duelo musical, que ocorrem quando


um instrumentista desafia outros, transformando a música em uma espécie de jogo. Esse
modo de executar a música remete a outras manifestações de roda típicas da cultura
afrobrasileira, baseadas em duelos e desafios. Já citados nesse trabalho como tais são a
capoeira, com duelos corpóreos e improvisados, e o partido-alto, que consiste em duelos
musico-verbais também improvisados. É interessante ressaltar que os termos

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empregados pelos chorões, ao se referirem aos duelos, se assemelham àqueles do
universo da capoeira (cair, derrubar, levantar, etc.); em um dos relatos, inclusive, um
cavaquinista chegou a comparar o duelo da Roda de Choro com o jogo da capoeira.

Os relatos dos chorões apontam para a importância da existência de Rodas para


manutenção e recriação da tradição musical do Choro. Podemos, então, afirmar que, do
mesmo modo como ocorre com o samba (Moura, 2004), a Roda é a matriz do Choro. E
as características da Roda nos mostram que, para esse gênero musical, uma série de
fatores extra-musicais interferem de modo significativo nas performances dos músicos,
no desenvolvimento e na criação da música. Esse modo de conceber a música é coerente
com a perspectiva de Gerard Béhague, que afirma que o sentido da música não pode ser
compreendido a partir de uma única fonte (Béhague, 1984, p.8). As implicações dessa
afirmação são inúmeras, e seria impossível explorá-las todas aqui. Conseguir apreender
o sentido do Choro como gênero musical talvez seja o maior desafio da musicologia que
pretende estudá-lo, e esse trabalho mostra que a Roda de Choro tem muito a nos revelar
sobre isso. Pois nela, os elementos não musicais encontram-se, de alguma maneira,
dentro da música, como partes importantes em sua execução, interpretação e criação. A
Roda de Choro é um local onde a música é tão importante quanto a existência pessoal
de músicos e ouvintes, porque não se separa dos demais aspectos da vida, e funciona
como ponte comunicativa, que permite o encontro e a relação entre pessoas.

Com efeito, John Blacking (1995, p. 31) afirma que a função da música é
melhorar, de algum modo, a qualidade da experiência individual e das relações
humanas; sua estrutura é reflexo dos padrões das relações humanas, e o valor de uma
peça musical como música é inseparável de seu valor como expressão da experiência
humana. Com outras palavras, o mesmo afirmou Márcio Marinho, o virtuoso
cavaquinista das Rodas da Tartaruga: eu acho que tocar bem é você se relacionar bem
com seus amigos de trabalho, é saber ouvir as pessoas mais experientes. Tem coisas
que estão fora da música. Tocar bem não é só tocar rápido e limpo; tocar bem, em
certos ângulos, está muito mais fora da música do que dentro dela.

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B2. No Palco do Choro

Como mencionado no capítulo anterior, a Roda é a matriz do Choro, o espaço de


preservação e revitalização da tradição do gênero, marcado pela pessoalidade e pela
informalidade. Mas a Roda não é o único local onde o Choro ocorre, e os contextos
formais das apresentações são igualmente importantes para a história e desenvolvimento
do gênero.

Diferentemente da Roda, o contexto de uma apresentação traz maiores


formalidades. Há uma série de procedimentos preparatórios, por parte dos músicos e
também do público, que antecedem uma apresentação. Em geral, o público já sabe quem
irá tocar, e os músicos já definiram os parâmetros musicais da apresentação, ou seja, o
repertório, os arranjos, em que momento irão improvisar, quem irá improvisar, em que
parte da música, etc. Em oposição à Roda, a apresentação instaura um limite bem
definido entre músicos e audiência. Se na Roda a audiência nem sempre está prestando
atenção na música, em uma apresentação formal ela está ali com esse propósito. Os
aspectos extra-musicais que interferem na apresentação são diferentes daqueles
observados nas Rodas de Choro. Nas apresentações, são importantes a qualidade do
equipamento de som, a iluminação, o figurino, a cenografia, os recursos de vídeo-
projeção, entre outros; esses elementos quase sempre estão ausentes nas Rodas de
Choro, e, no casos raros em que estão presentes, não são cruciais para ela. O contrário
ocorre na apresentação, pois a combinação harmônica desses elementos valoriza a
apresentação musical e exerce uma força persuasiva que conduz à boa receptividade da
audiência.

A audiência de uma apresentação musical exige uma eficiência técnica do


músico sempre maior do que a audiência de uma Roda de Choro. Nesse sentido, a
apresentação musical traz cobranças de outra natureza daquelas da Roda. Em
contrapartida, oferece uma série de recursos alegóricos que guiam a atenção do ouvinte.
Se na Roda, a variação e a imprevisibilidade marcam a performance, na apresentação o
primado da previsibilidade e da precisão técnica são características marcantes.

A apresentação formal, assim como a Roda de Choro, acompanha o


desenvolvimento do Choro desde seus primórdios até o tempo contemporâneo. Nos
coretos e praças públicas do final do século XIX, o maestro Anacleto de Medeiros, à

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frente de suas bandas, encantava o público com composições e arranjos inovadores. Os
salões da aristocracia carioca serviam de palco para Chiquinha Gonzaga demonstrar
suas habilidades ao piano. Ernesto Nazareth ocupava com tangos, maxixes e mazurcas,
a sala de espera do cine Odeon. Nas três décadas iniciais do século XX, os auditórios e
estúdios das rádios brasileiras difundiam o Choro para os quatro cantos do país,
enchendo de prestígio os chorões e os regionais da época.

Nos dias atuais, podemos encontrar uma grande quantidade de contextos onde
ocorrem apresentações formais, como teatros, casas de espetáculos, clubes, auditórios e
outros. É de extrema importância, para o estudo do Choro, as análises dos contextos de
apresentações formais. As apresentações são valorizadas no ambiente do Choro, sendo,
por vezes, o principal critério de julgamento de um músico ou conjunto. Assim sendo, é
praticamente obrigatório para o reconhecimento de um instrumentista popular (chorão
ou não) ter habilidade e bom desempenho em uma apresentação musical. Como já
mencionado, os discursos dos chorões apontam diferenças de performance entre os
contextos da Roda de Choro e da apresentação formal. Neste capítulo, serão
identificados e analisados os conceitos e percepções de chorões de Brasília acerca da
apresentação formal. Serão utilizados, para tanto, observações de apresentações
realizadas no Clube do Choro de Brasília, uma casa de espetáculo especializada em
Choro, bem como relatos de chorões discorrendo sobre os contextos das apresentações
formais e sobre o Clube do Choro.

O Clube do Choro é um pólo agregador da comunidade dos chorões de Brasília.


Como já mencionado, ele funciona em um subsolo, em um antigo vestiário adaptado
que pertencia ao Centro de Convenções de Brasília. Embora reconhecido
internacionalmente por sua sofisticada programação musical, sua estrutura predial é
totalmente fora dos padrões de uma casa de espetáculo convencional.

A começar pela porta de acesso, que fica atrás do palco, e o pé direito baixo, que
mede aproximadamente 3 metros, observa-se a inadequação desse espaço para abrigar
uma casa de espetáculos. Para a acomodação do público, no lugar de poltronas, há
cadeiras e mesas de bar, resultado da deliberada intenção de reduzir a formalidade do
ambiente. Nas mesas de bar são servidas comidas e bebidas. O palco fica encostado na
primeira fileira de mesas. Suas dimensões são pequenas: aproximadamente 4 metros de
comprimento, 2 metros de profundidade e 30 cm de altura. Nas paredes, encontram-se

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expostas fotografias de grandes chorões, e de shows do próprio Clube. No local, cabem
aproximadamente 200 pessoas sentadas, e o serviço de bar é feito no balcão e nas
mesas. O camarim dos músicos é improvisado em uma sala de aula da Escola de Choro
Raphael Rabello, que funciona em edificação anexa ao Clube.

A estrutura de som também é simples e, desconsiderando exceções, consegue


atender às exigências dos músicos que ali se apresentam. Depois da reforma realizada
na década de 90, o Clube passou a contar com ar-condicionado e com revestimento
acústico, o que melhorou demais o conforto dos freqüentadores e a qualidade do som.
Enfim, é nesse espaço arquitetônico peculiar, inadequado, aconchegante, redondo, com
uma pilastra enorme em seu centro, cheio de histórias de dificuldades, de vitórias e
derrotas, que grandes nomes da música instrumental brasileira se apresentam.

Para assistir às apresentações no Clube, é preciso fazer reservas de mesas com


antecedência ou comprar o bilhete de ingresso na hora do show. Uma parte da audiência
é formada por músicos e alunos da Escola de Choro Raphael Rabello, a outra parte, em
sua grande maioria, é formada por ouvintes especializados em Choro.

Os músicos convidados para compor a programação anual do Clube são


profissionais reconhecidos nacionalmente no universo da música instrumental. Estão
entre eles ilustres chorões, como Altamiro Carrilho, Zé da Velha, Silvério Pontes, Paulo
Moura, Yamandú Costa, Hamilton de Holanda, Hermeto Pascoal, Carlos Malta, Joel
Nascimento, Dominguinhos, entre tantos outros. Um aspecto relevante a considerar é o
fato de que os músicos convidados, na maior parte das vezes, são acompanhados em
suas apresentações por um Regional do próprio Clube, o Choro Livre. Em virtude disso,
o Choro Livre tem um lugar de destaque no cenário da música instrumental brasileira.
Cada apresentação do Choro Livre representa uma prova para seus integrantes, na
medida em que deverão dar conta de acompanhar algum grande instrumentista.
Ademais, eles têm menos de uma semana e apenas um ensaio para cada apresentação.
Desse modo, o nível de cobrança associado ao Choro Livre é alto; mas, na medida em
que a atuação do grupo é considerada sempre satisfatória, há também um enorme
reconhecimento, em âmbito nacional, para o músico que faz parte do Choro Livre.

O Choro Livre já teve diversas formações, e sempre foi o Conjunto Regional


oficial do Clube do Choro. Atualmente, o Choro Livre é formado por: Henrique Neto

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(violão de 7 cordas), Rafael dos Anjos (violão de 6 cordas), Márcio Marinho
(cavaquinho), Tonho (pandeiro) e Reco do Bandolim. Em alguns casos, a depender das
peculiaridades da instrumentação, arranjo e repertório usado pelo convidado, o Choro
Livre cede o lugar a outro grupo de acompanhadores. Muitas vezes, ex-integrantes do
Choro Livre, como Alencar 7 Cordas e Augusto Contreiras, são convidados a
acompanhar o artista. Outras vezes, o artista convidado prefere ser acompanhado por
bateria, baixo e violões; nesses casos, outros músicos, ligados ao Clube ou à Escola de
Choro, são chamados a realizar as apresentações. Em raros casos, o artista principal traz
seu próprio grupo de acompanhadores.

As apresentações costumam ter início por volta das 22:30h. Todavia, o público
começa a chegar às 21:00h. Durante a espera, aproveita para beliscar alguns petiscos e
beber alguma coisa, instaurando, assim, um clima informal no local. Interessante
observar que uma parte da audiência, formada por músicos de Brasília, geralmente
ligados ao Choro, reúne-se do lado de fora do Clube, até o início do show, numa espécie
de concentração. Aproveitam esse tempo para tecer considerações sobre o trabalho do
artista convidado, ou simplesmente botar a conversa em dia. Outro motivo para esse
encontro é que esses músicos, freqüentadores assíduos do Clube, raramente fazem
reserva de mesa. Por isso, são forçados a esperar o público que fez reserva se acomodar.
Só então, perto de começar o show, tentam encontrar algum lugar vago nas mesas. Se
não encontrarem – isso acontece quando o artista a se apresentar é um nome de peso -
acomodam-se na lateral do palco ou na parede ao fundo de frente para o palco, próxima
ao bar e aos banheiros. Enquanto não começa o show, o volume da conversa no interior
do Clube é alto, e, mesmo com dificuldades, as pessoas transitam sem cerimônias por
entre as mesas. Enquanto isso, no camarim, o artista convidado aproveita para ajustar os
últimos detalhes da apresentação com os acompanhadores. Minutos antes do início da
apresentação, as luzes de serviço se apagam indicando o inicio da programação. Em um
pequeno telão é apresentado um vídeo institucional dos patrocinadores. Por fim, sobe ao
palco o mestre de cerimônia, que é também o Presidente do Clube. Nesse momento, as
luzes do palco se acendem, a platéia silencia e o contexto anteriormente informal cede
lugar a um instante solene. O presidente, então, oferece as boas vindas ao público,
orienta as pessoas a não conversarem durante a apresentação e lê uma pequena biografia
do convidado. Anuncia primeiramente os músicos acompanhadores, e só então chama
ao palco a atração da noite.

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As apresentações acontecem nas quartas, quintas e sextas-feiras. Em geral, o
público da quarta-feira é menor; e é nesse dia que muitas mesas ficam reservadas a
convidados e patrocinadores, que nem sempre aparecem. Com a realização de apenas
um ensaio antes da apresentação, o entrosamento do solista com o conjunto se
desenvolve durante os três dias de show. O resultado disso é que na sexta-feira as
performances são melhores. A seguir serão descritas algumas dessas apresentações
realizadas no Clube do Choro.

No dia 10 outubro de 2008 numa sexta-feira, o convidado da noite era o multiinstrumentista


Carlos Malta, acompanhado do Choro Livre. Numa espécie de prelúdio, iniciou o show tocando sozinho o
Paru (flauta indígena feita com duas varas de bambu compridas). Depois dessa introdução, e antes que o
público aplaudisse, pegou o pífano e, acompanhado do Choro Livre, tocou alguns baiões. Neste momento,
em cena aberta, o público reagiu com aplausos calorosos. Após essa série de músicas, e sob um clima
eufórico da platéia, o convidado falou sobre os instrumentos que tocou e de sua relação com o Paru. Em
seguida, ao saxofone alto tocou um arranjo que fez para Espinha de Bacalhau, choro reconhecidamente
virtuosístico. O próprio Malta, ironicamente, explicou que para compartilhar as dificuldades técnicas
dessa música, fez esse arranjo para que os violões também tocassem a melodia do Choro repleto de semi-
fusas. Era evidente o esforço técnico que esse arranjo impunha ao Regional. Ao final da música, a platéia
reconheceu o empenho e respondeu com assovios e palmas. Várias outras músicas foram tocadas pelo
Choro Livre com o auxílio da partitura, com maior ou menor grau de dificuldade técnica, dependendo do
arranjo feito por Malta. Na apresentação, o multi-soprista utilizou vários instrumentos. Entre eles, flauta
transversal, flauta baixo, pífano, di-zi (flauta chinesa) e saxofones alto e barítono. A versatilidade de
Malta se mostrava também na escolha do repertório. Além de músicas de Tom Jobim, homenageado do
ano, tocou choros, baiões, frevos, cirandas, maracatus e também algumas composições próprias. Entre
uma música e outra, o convidado fazia comentários sobre o repertório, sorria para a platéia, voltava-se
para os músicos, buscando nitidamente aproximar-se do público e instaurar um ambiente informal.
Chegou a cumprimentar, de cima do palco, ao microfone, o Dudu, freqüentador assíduo do Clube,
conhecido por manifestar-se no meio das músicas, fazendo-se ouvir por todos. No intervalo da primeira
para a segunda parte do show, Carlos Malta não foi para o camarim. Ficou na escada que dá acesso ao
Clube, conversando com todos que lhe chegavam. Na segunda parte, Malta tocou algumas músicas vocais
adaptadas para formação instrumental, e propositalmente induzia o público a cantarolar as melodias.
Encerrou a apresentação tocando saxofone, interpretou uma série de choros com andamentos rápidos,
improvisou bastante e permitiu que os músicos do Choro Livre improvisassem também. Ao final, a
platéia, de pé, aplaudiu longa e entusiasticamente os músicos. Para encerrar a apresentação, Carlos Malta
tocou novamente o Paru, numa espécie de toque de partida, instaurando o mesmo clima cerimonioso do
começo do show.

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No dia 07de julho de 2008, sexta-feira, foi a vez de Paulo Sérgio Santos se apresentar,
acompanhado do Choro Livre. Diferentemente de Malta, o músico montou para a apresentação um
repertório essencialmente chorístico, com poucas músicas do homenageado, e inserindo várias obras do
compositor Guinga. O grupo Choro Livre mostrava conhecer bem o repertório do convidado. Tinham
pleno domínio da harmonia e das convenções. Podia-se notar que, embora fosse uma apresentação com
repertório definido, o clima informal do show lembrava o de uma Roda de Choro. O violonista de 7
cordas Henrique Neto ousava experimentar novas baixarias para choros conhecidos, que imediatamente
eram respondidas pelo violonista Rafael dos Anjos e pelo cavaquinista Márcio Marinho. O convidado,
percebendo este entrosamento, incentivava os músicos, e permitia que improvisassem bastante nas
músicas. O Choro Livre, em alguns momentos, passava da posição de coadjuvante a protagonista do
espetáculo. Na segunda parte do show, o clima informal instaurado pelos músicos permitiu que o próprio
público opinasse acerca do repertório. Embora com o repertório definido, o convidado, respondendo a
uma solicitação de alguém da platéia, tocou o choro Gargalhada de Pixinguinha. Terminou a
apresentação tocando uma série de choros com andamento muito rápido, arrancando do público aplausos
e assovios entusiasmados.

No dia 12 de setembro de 2008, o convidado foi o flautista e saxofonista Eduardo Neves. Para
essa apresentação, o convidado optou em substituir o Choro Livre por um conjunto formado por bateria,
baixo elétrico e violão 7 cordas. Os integrantes do grupo eram todos músicos de Brasília. O convidado
chamou ainda o virtuose trompetista brasiliense Moisés Alves para dividir com ele os solos. A presença
de um saxofone e um trompete dividindo os solos indicava que a noite seria dedicada ao Choro de
Gafieira. No repertório, além de composições próprias, o convidado tocou maxixes e choros de gafieira.
Além disso, foram incluídas algumas músicas do homenageado Tom Jobim, como Garota de Ipanema,
Corcovado, Luiza, Chega de Saudade entre outras. Todas, porém, foram tocadas ao ritmo do Choro. Essa
leitura da Bossa Nova feita pelo convidado acertou em cheio o gosto da audiência presente nesse dia, e
todos respondiam com aplausos esfuziantes. Reconhecido no ambiente do Choro como exímio
improvisador, Eduardo Neves não decepcionou. Atendeu todas as expectativas do público e preencheu o
Clube com seus improvisos vigorosos. Embora os músicos acompanhadores tenham sido arregimentados
especialmente para essa apresentação, mostravam-se bastante entrosados. Isso, em parte, deve-se ao fato
de todos terem bastante intimidade com o gênero. O show contou ainda com participação em uma música
do bandolinista brasiliense Dudu Maia. Ao final da apresentação, uma parte do público dançava, enquanto
outra aplaudia euforicamente.

As descrições das apresentações dos três sopristas – Eduardo Neves, Carlos


Malta e Paulo Sérgio Santos – são representativas do modo como o Clube do Choro

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funciona na maioria das vezes. Observa-se a alternância de momentos solenes e
descontraídos. O Presidente do Clube do Choro abre oficialmente a apresentação em
tom sentencioso tendo em vista atentar o público para a seriedade do que está por vir, e
impor o respeito merecido, não somente àquela apresentação, mas ao Choro de forma
geral. Antes disso, porém, ele mesmo passeia entre as mesas, cumprimentando amigos,
bebericando alguma coisa e jogando conversa fora, como se estivesse no botequim da
esquina. O público compreende a dinâmica da alternância entre formalidade e
descontração e participa dela, fazendo respeitoso silêncio durante as músicas. Pelo fato
de a platéia ser um bar, o barulho dos copos, talheres e garrafas não cessa, ficando
sempre no fundo das músicas, e remetendo mesmo pomposas apresentações aos ares do
mais singelo e modesto boteco. Apesar disso, em alguns casos, a formalidade é maior,
principalmente quando o artista convidado assim requer. De fato, é ele que estabelece
sua relação com o público e o grau de proximidade entre audiência e músico. Em certos
casos, é possível observar que o artista mantém formalidades até com os músicos
acompanhadores; nesses casos, os garotos do Choro Livre não esboçam sorrisos e
mantêm-se sérios e concentrados até o final da apresentação.

Mesmo com a possibilidade da descontração, que é parte do Clube do Choro, um


protocolo mínimo é sempre seguido. Não existe um artista que suba ao palco sem um
repertório pré-definido. Na maioria dos casos, o Choro Livre recebe, na semana anterior
à apresentação, os arranjos que deverão tocar. Mesmo chorões consagrados, da velha-
guarda, cujo repertório compõe-se de choros muito famosos e conhecidos, realizam um
ensaio com o Choro Livre. Com isso, se deseja enfatizar que as apresentações do Clube
do Choro não funcionam como as Rodas de Choro, exatamente por seguir esse
protocolo mínimo. Mas, sendo o Clube uma casa dedicada ao Choro, existe a
preocupação em fazer remissões à Roda de Choro, estabelecendo momentos de
descontração e informalidade. Isso é, de fato, um modo de reconhecer a importância das
Rodas para o gênero.

O Clube do Choro apresenta anualmente um projeto temático em homenagem a


um compositor brasileiro. Os artistas convidados devem preparar um repertório de
acordo com o tema daquele ano. Interessante é observar que nem todos os artistas que
tocam no Clube são especialistas no gênero. Isso, porém, não significa que sejam menos
cobrados em relação às suas performances. Todos têm a consciência da

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responsabilidade e do desafio de tocar naquela casa. Dessa maneira, são forçados a
estudar parte do repertório do homenageado, ou mesmo mergulhar a fundo em sua obra.
Isso implica que, mesmo sendo músicos consagrados, no instante que aceitam o convite
da produção do Clube, assumem um compromisso que irá demandar esforços e estudos.
Reco do Bandolim, presidente do Clube, fala sobre isso:

Reco do Bandolim: Fizemos um projeto chamado Caindo no Choro, com o objetivo de mostrar que a
música brasileira é uma só. Foi um projeto corajoso para burro. Então, o que a gente fez? Entramos em
contato com o Zimbo Trio. Eu liguei para o Hamilton Godoi e disse: eu gostaria de te convidar para tocar
no Clube do Choro. Ele disse: eu não sou chorão; eu disse: é exatamente isso, a gente quer ver o Zimbo
Trio tocando Choro, o que você acha? Que tal esse desafio? Eu disse: vamos fazer meio show de Choro, e
meio show de Bossa Nova, porque a gente quer ver vocês tocando Bossa Nova também. Aí, nós botamos
Zimbo Trio no Cai no Choro. Foi o ano inteiro assim. Pepeu Gomes... eu conheci Pepeu nos Novos
Baianos... bandolinista, tocava Lamentos, Noites Cariocas, Brasileirinho, Tico-Tico. Eu disse: Pepeu... ele
disse: você só convida Armandinho - com aquela brincadeira - nunca me convidou. Eu disse: Pepeu, eu
quero te convidar, mas tem um detalhe, eu quero que você venha de bandolim, eu quero que você toque
com um Regional. Ele disse: você está brincando! Tem 20 anos que eu não toco bandolim. Eu digo: Você
toca bandolim demais. Pega essa bandola, vamos fazer um show aqui em Brasília com o Regional. Não é
com negócio de bateria e baixo não. Pô, Reco, será? Eu digo: vamos embora. Então foi Pepeu Gomes Cai
no Choro. Aí Pepeu veio tocar Choro. Aí saiu matéria no Correio Braziliense, dizendo: o Reco está
acabando com o Choro, isso é um absurdo. Maurício Einhorn, que não é do Choro, um cara mais da bossa
nova, do jazz. Eu disse: pô, Maurício, venha! Já pensou você tocar Pedacinho do Céu nessa sua gaita?
Mesma coisa, todo mundo reagindo, mas ele tocou. Então isso daí deu uma abertura para o Clube. Hoje
vem Wagner Tiso, vem Léo Gandelmam... Ele mesmo nunca foi do Choro, e ele agradece a gente: eu
agradeço a você e ao Clube pela oportunidade de conhecer gente que eu não conhecia, o Garoto por
exemplo. E ele fez um show no clube só de Garoto, ficou encantado com Garoto.

Embora esses artistas não sejam do universo do Choro, são reconhecidos


nacionalmente pela atuação em outros estilos musicais e conseguem atrair para o Clube
o seu público. Interessante notar que o fato de serem incentivados a tocar Choro atrai,
para o gênero, artistas consagrados, como aconteceu com Léo Gandelman. A narrativa
de Reco evidencia também que, fora de seu ambiente, o Choro não é muito conhecido:
um saxofonista brasileiro, cuja vida é dedicada à música instrumental, não conhecia
bem a obra de Garoto até vir tocar no Clube. Desse modo, a difusão do Choro não deve
estar centrada apenas no público, mas também, e principalmente, nos instrumentistas. A
valorização do Choro por instrumentistas ligados a outros estilos musicais certamente
fortalece nosso gênero instrumental. Eles podem colocar o Choro em evidência e atrair
público. Público grande que, segundo Reco do Bandolim, ao conhecer melhor o Choro,
amplia o raio de atuação do Clube e do próprio gênero:

Reco do Bandolim: Sabe qual é o resultado disso? É que ampliou o público que freqüenta o Clube do
Choro, o tipo de gente que ia ao clube. Por exemplo, quando a gente convidou o Zimbo Trio, eu percebi
que um público da bossa nova, fã do Zimbo Trio - gente mais madura - foi para o Clube. Quando
convidamos o Pepeu, uma geração mais nova de guitarristas, gente que nunca, jamais iria ao Clube do

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Choro para ver Altamiro Carrilho ou Ademilde Fonseca. Começaram a ir, pô, no Clube do Choro. De
repente vem o Wagner Tiso. Pô, eu nunca vi ele tocar Choro. Então, qual é o comentário que se faz do
Clube? Nêgo vai ao Clube sem saber quem vai tocar, mas sabe que é coisa boa. Então, isso é uma coisa
que abriu os horizontes, e contribuiu nacionalmente com esse espírito.

A atuação do Clube do Choro, conforme mostra a fala de seu presidente, está


muito além de simplesmente realizar apresentações. O Clube assumiu como missão
difundir o Choro para além dos limites de seu público cativo, agregando novos ouvintes
e fazendo crescer a comunidade de chorões.

Tocar no Clube do Choro é um desafio para muitos dos músicos convidados, e


por isso, juntamente com os cuidados em manter a qualidade das apresentações, a casa
detém reconhecimento em todo o Brasil. Os músicos do Choro Livre, embora se
apresentem no Clube praticamente todas as semanas, sentem o peso da responsabilidade
que recai sobre eles. São cobrados a assimilar rapidamente os arranjos, as convenções e
as intenções interpretativas do músico convidado, como demonstram os relatos de três
de seus integrantes:

Rafael dos Anjos: Tem artista que nunca manda [os arranjos]. O Paulo Moura sempre manda as coisas em
cima da hora. O Hermeto foi muito difícil, porque a leitura do lance já é difícil, saca? A música dele já é
difícil.

Pesquisador: Você fica tenso com isso.

Rafael dos Anjos: Muito! Muito! É um fogo cruzado na hora, bicho! a gente está rindo ali, mas o couro
está comendo.

Márcio Marinho: Com Carlos Malta, eu fiquei com medo, porque ele mandou um monte de partitura.
Ainda por cima, tinha altas paradas apagadas. Aí eu falei: putz, e agora? Como é que eu vou ler esse
esquema? Aí tive que ficar decifrando, só que deu tudo certo.

Tonho do Pandeiro: Te dou um exemplo, a última vez, não essa que ele veio aqui... Paulo Moura, a última
vez que eu toquei com ele, ele trouxe umas duas composições novas que nós não conhecíamos. Para mim,
eu achei um pouco difícil, como os outros músicos acharam também. Então eu tive que gravar, e ele
chegou na terça-feira. Nós ensaiamos uma hora e pouco, para tocar na quarta à noite.

Para o experiente bandolinista, e Presidente do Clube, Reco do Bandolim, se de


um lado, o tempo de preparação para os músicos do Regional não é o ideal, por outro,
tamanha pressão acelera o aperfeiçoamento e o desenvolvimento dos garotos do Choro
Livre:

Reco do Bandolim: Para esses meninos, o Choro Livre, especialmente o Frango, o Rafa e o Henriquinho,
ao longo desses 4 anos, foi a melhor escola que eles poderiam ter na vida. Porque o que acontece - agora

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eu estou aliviando eles um pouquinho, porque um entrou na universidade, o outro formou um grupo, o
outro está fazendo uma coisa. Então, eu tenho aliviado temporariamente, porque nesses últimos 4 anos,
cada semana eles tocavam um repertório diferente. Aí vinha o Carlos Malta, que é uma coisa de louco, o
Léo Gandelman... Arranjos complicados. Então, esses moleques tiveram uma escola que é a cada semana
você ter 16, 18 músicas com arranjos. Você imagina que loucura é isso.

Os jovens integrantes do Choro Livre têm plena consciência do julgamento a


que são submetidos constantemente por parte do público e dos músicos. Ter a
capacidade de acompanhar, com eficiência e com tão pouca preparação, artistas
consagrados, não é algo que qualquer músico seja capaz. Os jovens integrantes do
Choro Livre valorizam a oportunidade de tocar no grupo, conforme fala Márcio
Marinho:

Márcio Marinho: O especial do Clube do Choro é que já passaram altos artistas por ali. O bom e de você
estar acompanhando neguinho que tem nome, isso é que é importante para caramba. Eu acho que isso é
um dos pontos mais importantes.

No relato a seguir, Rafael dos Anjos recorda a competência musical de alguns


ex-integrantes do Choro Livre:

Rafael dos Anjos: Os shows do Clube do Choro... Eu estava sempre lá. Muita gente, na época, falava:
Pôxa, mas o Choro Livre toca demais aqui! O artista nunca vem com o grupo. O Choro Livre nem sempre
dá certo com o artista. E aí eu nunca achava isso. Porque o trabalho que os caras faziam lá era um
trabalho de total risco, porque o artista chegava na terça, ensaiava, e na quarta já tinha show. Até hoje é
assim. Então tinha que memorizar aquela porra toda. Muitas vezes, o cara não mandava a partitura. Aí eu
gostava era daquele fogo ali, como o cara ia resolver aquele lance, saca? Porque ali você estava dando a
sua cara à tapa. Eu gostava desse lance. E os caras resolviam sempre, não tinha papo furado. Os caras
tocavam mesmo. E eu via todos os shows, chegava em casa tentava tocar alguma coisa.

O relato do violonista Rafael dos Anjos deixa claro que seu objetivo de ouvinte
estava focado no Regional, e não no solista, embora essa fosse a principal atração da
noite. De fato, a audiência do Clube do Choro é conhecida e reconhecida por seu
elevado nível de conhecimento do gênero e de exigências nas apresentações. Além de
ser freqüentado habitualmente pelos instrumentistas de Brasília, o Clube recebe os
aficcionados pelo Choro, que conhecem o gênero em profundidade. A composição da
audiência do Clube é um fator que aumenta o nervosismo e a tensão associados ao seu
pequeno palco. Os músicos fazem considerações sobre o público do Clube do Choro:

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Tonho do Pandeiro: Por mais que a gente conheça aquele público que está lá, tem vários amigos, amigos
músicos, e justamente, é por causa disso, você está no palco... Eu penso: olha o Tarzan ali, se vacilar,
entre aspas - todo mundo dá uma vacilada... A gente quer mostrar o melhor. Então a gente fica nervoso.
Não assim: meu amigo está aqui e vai me criticar. Quem é músico sabe, o erro é uma questão de milésimo
de segundo. Pode até ter uma brincadeira: ê, Tonho, vacilou hein! Não no tom de desmerecer o
companheiro. Mas dá esse friozinho na barriga.

Márcio Marinho: No Clube é um esquema que neguinho vai para te ver mesmo, vai para te ver tocar. Ele
vai lá, vai todo mundo ficar em silêncio. Se você errar, pode ser que todo mundo perceba ou não perceb.
Então, é um negócio que você tem que estar mais concentrado.

Rafael dos Anjos: (...) não é um público besta, vai lá para ouvir a música, sabe o que está ouvindo, sabe o
que quer ouvir.

Henrique Neto: É o lugar que é assim, requer muita concentração, por ter vários músicos na platéia, o
nível lá é muito alto. Músicos renomados e fantásticos. Você fica muito exposto. É um palco pequeno.
Você acha que isso não tem importância, bicho, mas você está ali de frente para o público. Você está a
menos de um metro do público. Então, qualquer errinho, cara, você está muito exposto ali. Então, tem que
se concentrar. O público entende do assunto.

Henrique Neto fala também da proximidade do palco em relação ao público


como algo que aumenta a dificuldade e a tensão. Os músicos do Choro Livre destacam a
necessidade de não errar nas apresentações no Clube, porque a audiência de músicos e
conhecedores do gênero irão facilmente identificar pequenos deslizes. A tolerância ao
erro é um dos aspectos que mais variam com os contextos da Roda e da apresentação. É
comum chorões afirmarem que, na Roda, o músico pode errar. Em apresentações, existe
um enorme cuidado para que os erros não aconteçam, e os músicos preocupam-se em
estarem concentrados. Rafael dos Anjos falou sobre isso:

Rafael dos Anjos: Em qualquer apresentação profissional o músico acaba ficando tenso, e perde um
pouco da qualidade. Quando erra, para o público eles não percebem, mas para os músicos, eles percebem
na hora.

Por tudo isso, o contexto da apresentação mostra-se, além de mais formal, mais
tenso também para os músicos. Em contrapartida, as atuações no palco são preparadas
em maiores detalhes, tornando-se mais lapidadas e permitindo que os músicos estejam
próximos dos seus limites em termos de concentração e perfeição nas execuções das
músicas. Desse modo, as apresentações, principalmente no Clube do Choro, acabam se
tornando importantes locais para observação e aprendizado do gênero. O jovem
violonista Rafael dos Anjos, que atualmente integra o Choro Livre, menciona freqüentes
idas ao Clube do Choro, no início de sua formação musical, para observar o Choro

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Livre de então. Para ele, essa experiência foi importante a ponto de definir os objetivos
de sua vida musical. Ele disse:

Rafael dos Anjos: O Clube do Choro é a maior casa de música instrumental do Brasil. É difícil tocar lá,
né, bicho? Porque é uma responsabilidade muito grande. Porque você está pisando num palco em que
pisaram os maiores músicos do Brasil, saca? Pisam os maiores músicos do Brasil, Alencar, Augusto,
Yamandú, enfim, só cobra! E você é o violonista do lance ali, isso pra mim é uma vitória. Então é muito
orgulho tocar lá e dividir o palco com esses caras, Dominguinhos, Oswaldinho, Sivuca. É uma vitória,
porque era um lance que eu almejava quando eu era moleque. Ia lá ver os caras tocando e falava: pô! Isso
é o que eu quero para mim. Poder integrar esse Regional aí, poder tocar com esses artistas, estar vivendo
essa experiência.

O palco do Clube do Choro abriga instrumentistas de distintas formações, de


várias gerações, que apresentam formas diversificadas de interpretar e entender o
gênero. O Choro Livre, ao tocar com todos eles, vai adquirindo versatilidade para se
virar bem com artistas muito diferentes. Rafael dos Anjos fala sobre a dessemelhança
entre dois bandolinistas, ambos formados no Choro, porém um muito jovem e outro da
velha-guarda:

Rafael dos Anjos: eu toquei com Déo Rian, e a gente tocou um repertório. O Déo já é um cara mais velho,
e ele trouxe o Sérgio Prado, que é um cavaquinista. Um cara super experiente. Então, eles gostam de tocar
o Choro do Regional pé-duro, saca? Que é um lance que eu adoro também. Então, a gente tocou um
Noites Cariocas do jeito que o Época de Ouro tocava, com aquela levada e aquele suingue. (...) Na outra
semana, eu toquei com o Danilo Brito. Apesar dele ser um chorão com alma de chorão antigo, apesar de
ser novo, ele já toca as coisas com mais vigor, mais rápidas, saca? Vai tocar 1x0, também é mais rápido.
E ele tem habilidade para isso. Aí você percebe que os aplausos para o Déo Rian eram normais. Mas, para
o Danilo, a casa ia abaixo.

O Clube é palco também de controvérsias. Querelas muito discutidas envolvem


as questões do virtuosismo versus expressividade e da manutenção da tradição versus a
modernização do gênero. Augusto Contreiras discorda de Rafael dos Anjos sobre a
preferência do público por interpretações mais modernas e virtuosísticas do Choro:

Augusto Contreiras: [No Clube] tem músico que mostra muito virtuosismo, e se esquece que está tocando
para um público mais tradicional. Ele quer mostrar seu potencial, parece que é só músico e maestro que
está ouvindo ele. A gente que conhece de música vai entender a intenção dele, mas o público não
agüenta. Então não adianta, você tem que tocar de acordo com o público local. Se está tocando, assim,
para um público que está mais acostumado com aquela coisa mais tradicional, você tem que mudar um
pouco. Então, o cara pode ter muito virtuosismo, mas às vezes alguém pode sair de lá e dizer: o cara toca
muito bem, mas eu não gostei. O cara faz muito improviso e coisa e tal, né? Lá no Clube do Choro
mesmo. Uma vez, não sei quem estava tocando, não sei se foi o Armando Macedo, mas na hora do
intervalo, algumas pessoas saíram. Diziam: poxâ! Eu vim aqui para ouvir Choro, uma coisa mais
tradicional, e não ouvir virtuosismo e demonstração de habilidade.

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Não cabe, nesta seção do trabalho, discutir em profundidade os debates presentes
no Choro, mas apontar para o fato de que eles estão presentes no Clube do Choro,
permitindo a seus freqüentadores que conheçam também as controvérsias, dissidências e
polêmicas, que fazem parte do gênero, e são cruciais para sua história e
desenvolvimento. O Clube do Choro, por tudo o que faz e representa para o Choro, é
uma das mais importantes instituições ligadas ao gênero em todo o Brasil. Desde sua
inauguração, subiram em seu palco os mais destacados instrumentistas. Embora seja
ainda jovem, com pouco mais de 30 anos, o Clube já é considerado um respeitoso
guardião da tradição do Choro. A carga histórica dessa casa é mais um fator que gera, se
por um lado nervosismo e ansiedade, por outro, orgulho e honra para os músicos que
pisam em seu palco. Os chorões mencionaram esse aspecto do Clube nas entrevistas:

Rafael dos Anjos: [O Clube do Choro] é um palco que exige muito de você. O Daniel Santiago disse: eu
já toquei com o Chick Corea lá na Europa, vários palcos, festival de jazz de Montreux, mas quando eu
chego aqui no palco do Clube do Choro, dá um frio na barriga, véio!

Márcio Marinho: No Clube do Choro é tranqüilo. Eu não tenho medo não. Nas primeiras vezes que eu
ficava assim com receio, porque eu nunca tinha tocado no Clube do Choro, nesse esquema dos 3 dias, de
acompanhar um artista com nome. Acho que foi nas primeiras vezes, com artista que eu não conhecia.

Léo Benon: Eu acho importante eu estar tocando em um palco que o Sivuca tocou, ou que foi o
Pernambuco do Pandeiro que correu atrás pra fundar. Vale a pena por isso. (...). Você vai na França, e diz
que já tocou no Clube do Choro de Brasília, as portas abrem.

Fernando César: a primeira vez que eu toquei lá, eu tinha dez anos de idade. É a minha casa. Eu estou
tocando na minha casa. Para mim é isso. Em relação ao ambiente, é a minha casa, eu me sinto bem, é o
meu lugar. Não é arrogância, é o meu lugar, onde eu fui criado para a música. Quando eu comecei a tocar
ali, era Roda de Choro. Não tinha esse esquema de show como é hoje. (...) Teve uma época que eu toquei
no Clube do Choro, e durante um bom tempo eu tocava bem relax. Depois de um tempo, eu comecei a
sentir meio pressão assim... Não sei o que aconteceu, que eu fui me sentindo muito pressionado para tocar
lá, e até mesmo em outros lugares também. Lá era complicado também porque tinha pouco tempo, e
pouco ensaio, aí tem que tocar lendo. Aí você fica meio tenso.

Os relatos mostram que, para os chorões, o Clube do Choro é um lugar único;


nenhum outro tem as mesmas características. Isso traz uma tensão e um nervosismo
próprios da casa. Márcio Marinho, que, de tanto tocar no Clube, acabou se
acostumando, menciona o receio que sentia nas primeiras vezes, associado ao fato de ter
que acompanhar um grande instrumentista. O relato de Fernando César é interessante na
medida em que esse violonista cresceu no Clube do Choro, e se apresenta nessa casa
desde criança. Ele reconhece o Clube como “sua casa”; ainda assim, não deixa de sentir
a ansiedade que é marca do Clube. Isso não ocorre somente com César. Embora ir ao

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Clube, e tocar no Clube, sejam atividades corriqueiras nas vidas dos chorões candangos,
eles não perdem de vista o caráter singular da casa:

Dudu Maia: [O Clube do Choro] é uma das casas mais respeitadas no Brasil de música instrumental. Foi o
primeiro lugar que o Choro foi cultuado com todo respeito e carinho.

Augusto Contreiras: Eu acho um espaço especial realmente, porque ali é uma vitrine. Você toca lá, as
pessoas vêm te cumprimentar. Eventualmente, às vezes, uma pessoa chega e diz assim: olha, você toca
muito bem. Você tem um outro grupo aí? Eu estou precisando de um grupo aí para tocar num local tal.
Então é uma espécie de vitrine. Então eu acho um local especial realmente. É um público que aplaude,
que presta atenção.

Laércio Pimentel: É um espaço onde se toca música de qualidade, com bons instrumentistas, e mantém
viva essa chama da música instrumental brasileira, do Choro, que é uma música tipicamente brasileira. É
ótimo ter esse espaço lá. Já me apresentei várias vezes lá, foi legal, fui muito bem tratado. Acho
maravilhoso tocar lá.

Léo Benon: [O Clube do Choro] é a maior vitrine da música instrumental do Brasil. Já vi o depoimento de
várias pessoas que vão tocar no Clube do Choro. Os caras já consagrados pedindo para vir no outro ano
de novo. Eles falam: nunca toquei em lugar que você toca e as pessoas calam a boca.

Rogerinho do Pandeiro: Para o chorão, tocar no Clube do Choro é tocar no templo sagrado. Ele se tornou
o templo do Choro nacional. Tem músicos, que nem são músicos de Choro nem nada, e falam: eu quero
conhecer o Clube do Choro. (...) Mas só tocam no Clube do Choro músicos do nível do Hamilton de
Holanda, Armandinho, Hermeto Paschoal, Gabriel Grossi, João Donato, Paulo Sérgio Santos.

A fala de Rogerinho traz uma terminologia muito utilizada para referir-se ao


Clube do Choro: templo sagrado. De fato, o imaginário dos chorões candangos
sacralizou o Clube. Essa é a medida da importância que tal instituição tem para o Choro
em Brasília, e para todos os que se envolvem com ele.

O Clube do Choro não é, evidentemente, o único contexto de apresentação


formal que existe na cidade. O Choro é apresentado em palcos de teatros, casas de
shows, bares, restaurantes, shoppings, eventos de todo o tipo, entre outros. O Clube do
Choro, contudo, é uma das poucas casas no Brasil voltadas exclusivamente para o
Choro, e que, por isso, mantêm uma programação semanal e constante de Choro. Se a
Roda é a matriz do Choro, pois nela as músicas e os músicos reinventam o gênero, não é
menos importante a existência de um local como o Clube do Choro. O Clube, além de
ser palco para a execução de Choros, fortalece o gênero ao manter agregada uma
comunidade de chorões, ao fazer essa comunidade crescer, ao mostrar o Choro para
quem nunca se aproximou do gênero, ao permitir a interação dos chorões da cidade com
os grandes instrumentistas convidados, ao difundir o Choro candango para todo o
Brasil, ao permitir também a renovação do gênero em seu palco, enfim, por esses e por
uma série de outros motivos.

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Conforme já mencionado, as apresentações formais de Choro aconteceram ao
longo de toda a história do gênero, paralelamente e complementarmente às Rodas. A
observação da história do Choro mostra que seus momentos de apogeu e decadência
estão fortemente ligados à existência de espaços de apresentação. Até mesmo as Rodas
vão se tornando raras quando escasseiam os palcos do Choro. Por isso, o Clube do
Choro é tão importante. Sem dúvida, é graças à sua existência que botecos, esquinas e
quintais de Brasília desfrutam de Rodas animadas, cheias de chorões de todas as idades.
Essas Rodas, por sua vez, realimentam o Clube, ao trazer para ele as novidades que
somente uma Roda é capaz de criar. Entre a Roda de Choro e a apresentação formal
existem diferenças significativas; não se toca em um palco como se fosse em uma Roda,
e vice-versa. Mas ambos os contextos são fundamentais para a manutenção e o
desenvolvimento do gênero. É o Clube do Choro, sem dúvida, um dos maiores
responsáveis pelo enraizamento do gênero em Brasília. Conseqüentemente, o Choro
aqui será tão mais vigoroso quanto mais forte for o Clube do Choro como instituição.
Assim, qualquer iniciativa visando proteger a tradição do Choro na cidade não poderá
ignorar o Clube, embora possa atuar fora de seus limites também.

Cabe destacar, ainda, que nem tudo são flores. O Clube do Choro depende de
patrocínios de empresas, que se amparam na Lei de Incentivo à Cultura. A cada ano, a
presidência do Clube tem que renovar projetos, a fim de conseguir verbas para manter
seu funcionamento. Desde a reforma do Clube, recursos foram conseguidos todos os
anos, mas não há garantia alguma que ano que vem, ou daqui um ano ou dois, haverá
recursos para o Clube. Recentemente, o Governo do Distrito Federal iniciou as obras de
uma nova sede para o Clube, com projeto de Oscar Niemeyer, ao lado da atual, bem
maior, com espaço adequado para a Escola de Choro, inclusive. Essa é a maior
conquista do Clube do Choro de Brasília desde sua fundação. Certamente isso irá
fortalecer o Clube, mas não é ainda suficiente. São necessárias garantias de estabilidade
para o Clube, caso contrário, a instituição não se fortalece, pois dependerá sempre do
aporte de recursos dos patrocinadores.

O real reconhecimento do Choro como patrimônio cultural brasileiro requer o


fortalecimento institucional. O Clube do Choro, apesar de sua reconhecida importância,
padece em meio à instabilidade de suas fontes financiadoras. A história de Choro,
conforme já discutido, teve períodos de grande produção alternados com outros de

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reclusão. Tais períodos estão associados ao apoio do Estado ao gênero e à cultura de
forma geral. Muller (2005) afirma que o ressurgimento do Choro ocorrido na década de
1970 teve a boa parte de seus eventos envolvida com patrocínio estatal. O Departamento
de Cultura da Secretaria de Educação do Rio de Janeiro, por exemplo, promovia
anualmente o Concurso de Conjuntos de Choro, que incentivou o surgimento e a
consolidação de vários grupos. A reboque dos eventos produzidos por órgãos
governamentais, ou amparados por patrocínio estatal, entidades privadas – gravadoras,
produtoras, redes de televisão, entre outras – voltaram-se para o Choro, como foi o caso
da Marcus Pereira. Muller (2005, p. 57), de fato, afirma que a indústria fonográfica
chegou atrasada à explosão do Choro. Mas o mercado, sozinho, não é capaz de manter o
Choro no topo das paradas de sucesso gerando lucros exorbitantes. Por isso, o apoio do
Estado é vital para o gênero. Quando, na década de 1980, os órgãos de apoio à Cultura
foram desmantelados, o Choro sofreu forte retração; gravadoras, emissoras de televisão,
produtoras de eventos, que antes pareciam ter compromisso com o gênero, perderam
interesse.

O Clube do Choro recebe, indiretamente, recursos do Estado. Embora seja


patrocinado por empresas, elas o fazem visando obter isenções fiscais previstas na
famosa Lei Rouanet. Não se pode negar a importância da Lei Rouanet para o Clube.
Mas não é possível não ver a distorção que a Lei Rouanet produz no fomento à cultura.
Botelho (2001) afirma que nas décadas de 1970-1980, as políticas culturais do governo
eram mais efetivas, e determinavam que o fomento à cultura era de responsabilidade
direta dos poderes públicos. O governo Fernando Collor de Mello, seguindo a cartilha
neoliberal, desmontou as instituições federais de apoio à cultura. A partir daí, as
políticas culturais priorizaram as leis de incentivo, dentre as quais a mais importante é a
Lei Rouanet. A Lei Rouanet obriga que os agentes culturais busquem recursos no
mercado, só que o dinheiro é público, pois decorre de renúncia fiscal. Desse modo, o
Estado continua fornecendo as verbas, mas transferiu os poderes de decisão para a
iniciativa privada (Rubim, 2007). As reformas da Lei Rouanet ampliaram a utilização
do dinheiro público subordinado à decisão privada. No caso da música instrumental, o
percentual de isenção fiscal é de 100%. Ou seja, o dinheiro investido em música
instrumental é integralmente proveniente dos cofres públicos; desse modo, não existe
contrapartida da iniciativa privada. Assim, vê-se que o financiamento do Clube do
Choro é governamental, mas o poder de decisão cabe às empresas. Esse contexto gera

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instabilidade na instituição, que vive na corda bamba, com a necessidade constante de
aprovação de seus projetos nas empresas “patrocinadoras”. De fato, isso não é uma
política cultural de governo, pois as políticas de cultura são elaboradas no âmbito da
iniciativa privada, e somente os recursos são fornecidos pelo governo. Trata-se,
portanto, de uma inversão, uma vez que o Estado deveria definir as prioridades, e
promover a participação da iniciativa privada em suas políticas culturais.

As políticas empresariais de cultura norteiam-se também pelo mercado: áreas


que estão em alta costumam receber mais apoio. Botelho (2001) defende que uma
“democracia cultural” não é aquela em que se induz toda a população a apreciar
determinadas coisas, mas oferece a todos a possibilidade de gostar ou não de algumas
delas. No caso da música instrumental, essa diretriz é fundamental, pois se trata de um
ramo da música que não alcança grandes públicos. O mercado, de fato, não é bom juiz
para a cultura. É o Estado que pode garantir que práticas culturais não pereçam, e até
mesmo desapareçam, frente às oscilações do mercado. No caso do Clube do Choro,
considerando seu papel central na manutenção de um ambiente chorístico em Brasília, é
fundamental que lhe seja garantida estabilidade de verbas e de pessoal, e isso é papel do
Estado. A dimensão política do Choro está, portanto, na luta pela criação e manutenção
de instituições voltadas ao gênero. Desse modo, vê-se que a atuação do Clube do Choro
é maior do que a realização de espetáculos e apresentações, pois ela carrega a
responsabilidade do fortalecimento do gênero fora de seu palco.

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PARTE C - MÚSICA

C1. Ninguém aprende Choro no colégio

Desde seu surgimento, a transmissão do Choro apoiou-se na tradição oral,


embora não exclusivamente, pois compositores do século XIX, como Anacleto de
Medeiros e Ernesto Nazareth, escreviam suas composições em partituras. Apesar disso,
a tradição oral é ainda o alicerce da transmissão e renovação desse patrimônio cultural.
Podemos afirmar que o modelo de produção/transmissão dos conhecimentos desse
gênero musical é resultado da mistura da transmissão oral com as tecnologias de
registros escritos, sonoros e visuais; atualmente, as novas tecnologias de comunicação,
notadamente a Internet, vêm tendo sua utilização ampliada no aprendizado e na difusão
do Choro. Os modos de aprendizado do Choro, embora utilizem todas essas tecnologias,
estão ligados ao ato de ouvir e assimilar intuitivamente ritmos, melodias e harmonias.
Se o desenvolvimento dessa música se deu em grande parte à margem das instituições
formais brasileiras ligadas à música (conservatórios, universidades e escolas de música),
seu aprendizado não foi diferente. Como conseqüência, a aprendizagem tem como
importante elemento a figura do mestre, do professor. Seu ensinamento não se resume à
transmissão de conteúdos, mas permite também a formação da pessoa. O modo como os
chorões aprendem música deixa marcas em sua personalidade, e, principalmente, na sua
relação com a música e com tudo o que a envolve. A identidade dos chorões é, portanto,
fruto de sua trajetória, que inclui, como elementos fundantes, como e com quem
aprenderam. Os chorões, ao falarem sobre o que é ser um chorão, evidenciam o peso da
tradição oral na transmissão dos conhecimentos no âmbito do Choro. Eles enfatizam a
necessidade de conviver no ambiente de chorões para aprender:

Paulão: O chorão é o cara que ouve Choro, toca Choro. Um cara que vive o Choro, porque uma
diferença... Assim, eu já era musico antes de tocar bandolim, tocava violão e guitarra. (...) Porque não
adianta o cara ser músico e tocar um chorinho, e dizer que é um chorão. Isso não é bem assim. (...) Tem
muita gente que nem é músico de Choro, e que eu considero chorão. Por exemplo: Valci, Chico Neto,
Edith, entendeu? As pessoas vivem o Choro, estão no meio dos músicos que tocam Choro, e o músico,
para ser chorão, precisa estar no meio. Não adianta o cara ser um excelente músico erudito, ou músico de
jazz, pegar a partitura de choro e simplesmente tocar. O cara tem que saber o repertório, tem que saber as
histórias. Ele tem que conviver. Enfim, para ele ser um chorão, ele precisa viver o Choro.

Márcio Marinho: Eu me considero um chorão por eu ter começado o meu aprendizado já no Choro. Então
eu me considero um chorão sim, com certeza, desde o início.

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Henrique Neto: A convivência , nem precisa ser uma aula não. Você está convivendo com uma pessoa
que toca bem, aquilo te enriquece muito. Até é uma coisa passiva. Você nem está pensando muito no que
você está aprendendo, mas isso está acontecendo de uma maneira ou de outra.

Marcelo Lima: Acho que o chorão é aquele cara que vivencia mesmo o Choro o tempo todo. Ele tem o
Choro no sangue e é uma coisa que ele quer participar. É uma coisa de roda mesmo, coisa de botar o
instrumento no sereno, mais ou menos isso. O chorão quer estar na Roda. Isso causa um problema,
quando a gente faz definições e delimitações tem outros que talvez estejam fora disso e sejam até mais
chorões. O Jacob mesmo é um que não ficava no sereno, ele não tinha essa personalidade. Os caras iam
para a casa dele para tocar. Já o Pixinguinha não, ele tocava na noite, né? Então são dois superartistas,
provavelmente as maiores referências do Choro, junto com o Waldir, um era da noite – o Pixinguinha,
que teve origem negra, filho de escravo, teve que batalhar a vida por miúdos, vendia as músicas dele
baratinho, fazia toda aquela armação; - e o Jacob, outro supergênio, mas que tinha o emprego público
dele, tinha essa visão de família, de segurança, de estabilidade, que muitas vezes não faz parte do metier
da música. O tipo de vida, way of life, do músico. Tem músico que até vira alcoólatra porque outros
músicos eram alcoólatras. Ele nem queria ser não, mas para conviver com os outros, ele entra no meio, e
acaba entrando em uma coisa que não consegue controlar e dança. Eu acho que o chorão é bem isso para
mim, a visão que eu tenho dos chorões que vejo aqui em Brasília são esses que estão na Roda. O chorão
para mim é esse que vai para a música pela música, pela diversão, pelo que a música cria, esse ambiente
maravilhoso que a música cria. De felicidade, de amizade, de conhecer pessoas.

O bandolinista Paulão afirma que para ser um chorão não basta tocar o Choro, é
preciso vivê-lo em sua totalidade. Ele reconhece que a identidade de um chorão revela-
se não apenas nos músicos, mas também naqueles considerados não músicos como o
caso de Valci e Edith. Esse aspecto revela que a preservação do gênero é resultado do
esforço e da contribuição daqueles que compõem, daqueles que tocam, daqueles que
ouvem e daqueles que escrevem sobre ele. Henrique Neto fala sobre o aprendizado
involuntário possível apenas pela convivência com chorões. Marcelo Lima fala também
da identidade do chorão criada na convivência. Ele, contudo, ressalta que existem
diferentes formas de se estar no convívio do Choro, e cita Jacob do Bandolim, sujeito
caseiro, que recebia os amigos em casa, e Pixinguinha, que viveu a boemia. Por
conclusão preliminar, pode-se afirmar que o chorão autêntico relaciona-se com aspectos
do Choro que transcendem a esfera musical.

De fato, o aprendizado do Choro se dá no ambiente humano onde ele ocorre.


Em muitos casos, os primeiros contatos de um aprendiz com o gênero ocorrem no seio
familiar. Entre os chorões de Brasília, é comum encontrar músicos que foram iniciados
dentro de casa, como demonstram os relatos a seguir:

Augusto Contreiras: Foi com o meu pai, meu pai me levava em Roda de Choro, eu tinha uns 11 anos, 12.
Meu pai nunca foi um chorão autêntico, ele tentou tocar violão de 7 cordas mas nunca conseguiu. Ele
nunca foi assim um solista de mão cheia, ele nunca estudou violão, nunca foi um músico profissional,

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aquela coisa de estudar violão, não sei quantas horas por dia. Ele sempre teve o violão como um hobby.
Ele toca muito samba canção, bolero, essas coisas. Mas foi ele que me ensinou.

Henrique Neto: Foi através do meu pai, dentro de casa, que há muito tempo ele já é músico. Ele tocava
guitarra no início depois começou a tocar bandolim. Desde quando eu comecei a me interessar por Choro
ele já era envolvido com produções de eventos culturais. Aí, em casa mesmo eu tinha contato com os
melhores músicos do Brasil. Armandinho que é amigo do meu pai, Raphael Rabello na época freqüentava
a minha casa. Aí foi bem natural, eu me interessava, ouvia aquilo tudo dentro da minha casa aquele
negócio me encantava, a música, aquela coisa bonita aquela confraternização na Roda, tocando
informalmente também, foi me impressionando, me cativando, até que chegou um dia que eu decidi
entrar na música.

Márcio Marinho: Eu comecei a tocar cavaquinho, eu tinha 13 anos de idade, com o meu tio Brito, Brito 7
cordas. Na época, eu já comecei no Choro, porque ele já tocava chorinho, e era uma música difícil. A
primeira música que eu toquei foi Brasileirinho, inclusive. E quando eu ouvia o Choro eu ficava
fascinado, entendeu? Eu tive sorte, porque o meu tio me fez ter contato com o Choro. Na verdade, isso
vem do meu avô que tocava sanfona e já tocava chorinho. Meu tio pegou essa bagagem e passou para
mim. Uns quatro tios meus já tocavam cavaquinho, e minha família muita gente tocava cavaquinho.
Tinha uns primos dele que tocavam cavaquinho. Meu pai que tocava cavaquinho, que já morreu. Então,
eu acho isso uma sorte, eu ter começado a tocar cavaquinho. Choro para mim foi uma sorte.

Tonho do Pandeiro. A minha relação começou em casa mesmo, meu pai era músico profissional, tocava
Choro , tocava samba. Foi músico da noite e a minha infância foi ouvindo música dentro de casa, e muito
Choro: Raul de Barros, Altamiro Carrilho, aquele da flauta... o Patápio e outros músicos, né?

Fernando César: Meu pai começou a freqüentar o Clube do Choro, aí ele começou a tocar nuns
botequinhos, samba, seresta aí descobriu o Choro. O Evandro Barcellos levou ele para o Clube do Choro
em 79, eu acho. Aí ele comprou um cavaquinho, se empolgou, comprou um porrada de disco de Choro e
aí era o que rolava em casa. A música que estava rolando quando eu despontei para música era o Choro.
Provavelmente por isso a gente foi tocar Choro, os instrumentos sempre soltos em casa, espalhados,
violão, cavaquinho, tinha órgão, tinha escaleta, depois comprou um 7 cordas. Eu comecei tocando
cavaquinho, e tocava escaleta. Mas aí o Hamilton, como solista, tocava mais escaleta. Eu solava choro de
cavaquinho, e comecei a tocar bandolim também. Acho que foi meio natural partir para o violão 7 cordas.
Como meu pai já tinha comprado para ele, eu ainda cheguei a tocar assim mais ou menos um ano: o
Hamilton tocando bandolim e eu tocando cavaquinho.

As linhagens de sangue são típicas de práticas transmitidas pela tradição oral.


Mas ser um chorão não significa que o músico obrigatoriamente tenha que nascer em
família de chorões. Em Brasília, há vários exemplos disso. Muitos chorões brasilienses
tiveram contato com outros gêneros e estilos antes de abraçarem o Choro. A formação
eclética é característica dos músicos de Brasília em geral, pela própria história social da
cidade. O rock, o jazz, a música erudita, ritmos nordestinos, entre outros, foram
importantes na formação musical de muitos chorões. O próprio presidente do Clube do
Choro de Brasília reafirma essa característica.

Reco do Bandolim: Nos anos setenta então, eu, você veja como são as coisas , eu tocava guitarra , eram
os anos da liberação sexual, dos hippies, dos festivais, das drogas. E nós, aqui de Brasília, como de resto

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em todo o país, a música que a gente ouvia era a música americana, era o rock. Eu conhecia todos os
guitarristas de rock. Tanto que eu tinha um grupo de Rock, era o “Carência Afetiva”. Eu tocava guitarra,
eu era conhecido como o Jimi Reco, porque eu tocava todo o repertório do Jimi Hendrix, a palhetada mais
rápida do planalto central, cabelo grande etc.

A formação e o aperfeiçoamento do chorão desenvolvem-se ao longo de anos de


dedicação e dependem de uma série de procedimentos associados ao estudo e
aprendizado do gênero. Segundo os chorões entrevistados, esse aprendizado acontece
não apenas no estudo técnico do instrumento, mas também de outras formas associadas
a ele como ouvir o repertório, observar como tocam os chorões mais experientes,
perguntar como se toca, freqüentar Rodas de Choro, procurar orientação com
professores, entre outros. O aprendizado acontece principalmente no cotidiano das
relações sociais dos chorões. Nesse convívio diário, os conhecimentos são
compartilhados, e a identidade do chorão se constrói.

Assis (2009) discorre o aprendizado do canto das quebradeiras de côco babaçu,


prática de tradição oral. Ela identifica três modos de aprender/ensinar o canto popular: a
imitação, as demonstrações práticas e as explicações orais. As três categorias
relacionam-se entre si, mas diferem quanto à intencionalidade. Na imitação, o aprendiz
assimila a prática musical apenas observando o outro, que não se preocupa em ensinar,
mas apenas realiza seu ofício. Na demonstração prática, existe a intenção do aprendiz,
que manifesta sua vontade solicitando uma demonstração prática. A demonstração
prática pode ocorrer, segundo Assis (2009), em qualquer lugar e a qualquer tempo; ela
depende apenas da vontade manifesta do aprendiz, que solicita a um mestre ou a alguém
mais experiente. Nas explicações orais, é maior o papel docente, pois é dele a intenção
de ensinar. Assis (2009) enfatiza, contudo, que a presença da intencionalidade não
significa obrigatoriedade, pois o desejo do aprendiz é ainda requisito para o
aprendizado.

No caso do Choro, o aprendizado por imitação lança mão, além da simples


observação dos músicos tocando ao vivo, de tecnologias de registros áudio-visuais. Até
a poucos anos, as gravações eram a fonte primordial desses registros; atualmente, vídeos
na Internet têm sido cada vez mais utilizados para observar outros instrumentistas. Mas
os chorões são unânimes ao afirmarem que é imprescindível ouvir o repertório, não
importando qual o meio ou suporte tecnológico para realizar isso. Naturalmente, num

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primeiro estágio, essa escuta é realizada apenas de forma contemplativa. Mas a escuta
que visa o aprendizado por imitação deve ser feita de forma analítica, com a intenção de
assimilar o maior número de informações contidas no Choro que se escuta. O virtuose
gaitista Gabriel Grossi, em depoimento no filme O Prazer de Tocar Juntos (2005),
afirma que, quando começou a tocar, sempre que ia tirar uma música nova, procurava
extrair o máximo de informações nela presentes. Ele diferenciou a audição por fruição
daquela praticada por músicos, observando que a segunda resulta no conhecimento
detalhado da música. Ele disse que, mesmo antes de começar a tocar, ouvia músicas
buscando conhecê-las profundamente. Praticar essa percepção musical, que não se
restringe apenas a escutar um único elemento musical, possibilita ao músico
compreender de forma mais ampla o repertório, e, como conseqüência, acelerar seu
aperfeiçoamento. Os relatos a seguir demonstram como essa escuta diferenciada é
importante para o aprendizado do gênero.

Henrique Neto. Repertório, escutar muito, perceber os caminhos harmônicos comuns que existem,
principalmente para o acompanhamento. Chega uma hora em que você não precisa decorar o choro,
porque é um estilo. Então, um estilo segue determinados padrões. Então, às vezes eu não conheço um
choro, mas já sei para onde vai. Esse conhecimento do repertório mais amplo possibilita isso. Você
analisa, vê as probabilidades de um caminho acontecer, e você já está mais ou menos ciente.

Rafael dos Anjos: Então eu tiro sempre de ouvido, saca? Pego a gravação, boto para ouvir e vou tirando a
harmonia. Porque a partir dela vai vir o caminho da melodia, e vai vir o caminho do contraponto, né?
Então, com a harmonia certa eu tiro a melodia, e tiro sei lá... algum contraponto que a flauta está fazendo.
Sempre tento tirar o máximo, tento espremer a música inteira. Porque na hora que eu for tocar eu vou ter
vocabulário, saca? Tanto para improvisar quanto para tocar a melodia.

Laércio Pimentel: Primeiro, é como o Alencar uma vez falou para mim: você quer aprender a tocar
Choro, então você tem que formar um repertório de Choro. Os standards. Isso é em qualquer área. Se for
bossa nova, você tem que aprender a tocar Insensatez, as músicas da bossa nova. Começa assim. Aí você
vai aumentando o seu repertório aos poucos. Pega 10, isso ajuda muito, porque as harmonias se repetem
muito. Cada vez que você toca uma música bem tocada já é uma ajuda para outra que vai aparecer. As
melodias mudam, mas os caminhos harmônicos se repetem.

Ao contrário do que possa parecer, o aprendizado por imitação, no caso do


Choro, não é simples nem fácil. Ele requer e desenvolve a capacidade de reproduzir
aquilo que se escuta; ele altera também o modo de ouvir música, pois exige uma escuta
analítica. O bandolinista Dudu Maia disse que o cara tem que fazer igual ao Titi faz:
tem que tirar as gravações e tocar coladinho. Ele fala do modo como Tiago, um jovem
bandolinista, atualmente com 12 anos, desenvolve suas habilidades no bandolim. Ele
imita as interpretações de Jacob do Bandolim nota por nota, tocando coladinho com ele;

92
para Dudu Maia, imitar um grande instrumentista de forma precisa, tocando de forma
idêntica a ele é o modo mais eficiente de estudar e aprender o Choro. Nota-se que a
imitação está presente no aprendizado tanto de iniciantes como de instrumentistas
experientes, como Laércio, Rafael dos Anjos e Henrique Neto. O hábito de ouvir e
tocar, de ver e imitar permanece com os chorões ao longo de suas vidas de
instrumentistas. Nesse sentido, o chorão nunca deixa de ser aprendiz. A imitação não se
restringe às gravações. Observar outros chorões tocando é uma maneira comum de
aprender coisas do Choro:

Leonardo Benon: Tem que ouvir sempre, e tem que ouvir as pessoas tocando. Isso é estudar também. O
pessoal acha que é só ficar numa salinha lá, e estudar. Estudar não é só isso. As idéias, tem que pegar as
idéias das pessoas, entender o que está acontecendo. Senão você fica só fazendo escalas, igual a um
computador.

Augusto Contreiras: Olha só, eu procuro aproveitar e observar o que o cara faz diferente. Ôpa! Ele fez um
acorde diferente ali. Chego em casa vou tentar fazer o que ele fez. Faço no mesmo dia. E, no outro dia, aí
que eu volto naquela questão do ouvido, da observação, percepção. Se você vai ver um cara que
supostamente toca melhor do que você, vai lá para conferir e tentar captar alguma coisa, pelo menos
alguma coisa. Não dá para pegar tudo, mas essa coisa que eu captar, vou tentar incluir na minha bagagem
musical.

Fernando César: Porque você aprende vendo, né, bicho? Eu aprendi assim. Eu tive sorte aqui.
Porque, na época que a gente começou a tocar, o Six trazia chorões aqui pra Brasília. Isso aí foi muito
bom. Eu toquei um bom tempo com o Alencar, só de tocar com o cara e ver o cara tocar... E as
orientações do meu pai, de tirar as músicas do disco, ensaiar todo dia, fazer repertório.

Em vários lugares é possível observar chorões tocando ao vivo. É comum a


presença de aprendizes em Rodas de Choro, apresentações e afins, com o objetivo
explícito de observar e aprender. As performances ao vivo trazem a vantagem de
permitir o contato e a conversa. É nesses contextos que o aprendiz pode solicitar
demonstrações práticas e explicações orais. O bom chorão carrega em si o espírito
varejeiro, vai de lugar em lugar, orbitando em torno dos mais experientes, perguntando
a um e a outro como se faz aquilo, como se toca, como resolve os problemas técnicos, e
procurando sempre extrair o máximo de informações que possam contribuir para o seu
aperfeiçoamento como músico. Os relatos a seguir revelam a importância dessas
observações, e também a presença desse espírito varejeiro no aprendizado do Choro.

Márcio Marinho: Varejando todo mundo, o meu aprendizado foi muito assim. Eu nunca paguei professor
particular. Primeiro, porque eu não tinha condições. Tive filho cedo, e meu pai e minha mãe também...
Esse negócio de tocar cavaquinho foi um negócio meu, que eu corri atrás por conta própria, que cheguei
um dia e decidi: eu quero ser o melhor cavaquinista. Então eu cheguei e pensei isso. Foi um negócio que

93
veio na minha cabeça, entendeu? Aí eu comecei a estudar o cavaquinho mesmo. Eu falei: eu quero ser o
melhor. Igual quando tu vai fazer o vestibular, concurso, que você tem que ser o melhor para passar, tipo
isso. Eu pensei nisso aí: eu quero ser o melhor, não sei se vou conseguir, mas eu vou fazer o possível para
ser.

Tonho do Pandeiro: Primeiro lugar, ouvir muito Choro e depois procurar tirar dúvidas com quem já toca,
uma pessoa mais experiente, e depois praticar. Para aqueles que não têm conhecimento nenhum, procurar
uma escola, um amigo, um professor. Mas, a princípio, ouvir muito.

Rogerinho do Pandeiro: Muito do que eu faço hoje no meu pandeiro, que não é muita coisa, eu aprendi
vendo o George tocar, vendo o Tonho tocar, perguntando. Porque eles são pessoas acessíveis para
caramba, nunca me negaram uma informação. Apesar de eu ter feito aula no Clube do Choro com o
Sandro , tive um semestre de aula lá, no final do semestre ele me falou: olha, Rogerinho, não há mais
nada para te ensinar , agora você tem que estudar, que tocar, que cair no mundo.

Rafael dos Anjos: Eu era pidão para caramba. Sempre fui pidão, sempre cheguei e perguntei mesmo. Se
eu tinha alguma dúvida, nunca tive medo de perguntar. Até porque os caras sempre foram muito abertos.
O que a gente pedisse para eles passarem, eles passavam numa boa. Já fui na casa do Augusto, ele já me
passou umas coisas. Isso eu não nego para ninguém. Eu aprendi assim mesmo.

Fazer perguntas a instrumentistas mais experientes é hábito comum entre


chorões. Mesmo entre instrumentistas de mesmo nível, o compartilhamento de
conhecimentos é feito em conversas em que se pergunta como se faz isso ou aquilo.
Embora exista o desejo de aprender e a intenção de ensinar, o ato ensinar/aprender não
está separado das demais atividades realizadas por essas pessoas. Em outras palavras, o
ensino, nesse caso, não se dá em local e tempo especiais para isso, mas nos tempos e
lugares em que as atividades dos chorões tomam curso. Assis (2009) afirma que a
intencionalidade, nesse modo de aprender/ensinar, não é continuada, pois emerge
quando o aprendiz solicita alguma demonstração ou explicação. No caso das
explicações orais, é necessária a disponibilidade irrestrita dos mestres para executar essa
tarefa. Assis (2009) afirma que a permanente abertura dos mestres do canto popular à
concessão de explicações orais aos seus aprendizes reflete a preocupação com a
manutenção da tradição. As entrevistas revelaram que tal abertura é presente e universal
entre os chorões. Do mesmo modo como aprendem as técnicas e os conteúdos, os
chorões aprendem também que é preciso ensinar sempre que forem solicitados.

Os chorões enfatizaram a importância da iniciativa do aprendiz. É ele que irá


conduzir seu aprendizado, sendo livre para aprender o que quer e do modo como deseja.
Para Bartholo e Tunes (2008, p. 4), o aprendizado não poderia ocorrer de outro modo,
pois a verdadeira aprendizagem implica o esforço ativo próprio, em condição de

94
liberdade. Tamanha liberdade tem como compensação a necessidade de estar sempre
correndo atrás de alguém, de algum conhecimento ou informação. O modelo de ensino
centrado na liberdade é importante para o próprio Choro, que exige o desenvolvimento
de uma identidade musical própria, única e criativa. É a liberdade do aprendiz que o
permite exercitar, ainda na iniciação musical, sua criatividade. Uma característica
marcante no aprendizado do Choro é o uso das habilidades criativas e inventivas do
professor e do aluno. Henrique Neto reforça o papel do interesse do aprendiz:

Henrique Neto: Porque professor não vai fazer nada por você. Ele vai te orientar, te dar os caminhos, e a
gente vai se criar, a gente vai se instruir. De certa maneira, eu acho indispensável uma orientação. Agora,
são duas coisas: uma coisa é ele te apontar os caminhos; mas, se você não for, não adianta nada. Então, é
50%, eu acho. Principalmente no início da sua carreira musical, você não sabe o que estudar. Depois não
existe mais professor, eu acho. Depois de uma certa maturidade musical, não existe mais o professor, nem
aluno, é uma troca só. É uma coisa que gira, que roda. Porque nem todo mundo vai saber tudo o que eu
sei, e nem eu vou saber tudo que o outro sabe. Então, é sempre uma coisa que roda.

Henrique reconhece que o papel do professor, em um modo de aprendizagem


centrado no aluno, é limitado, e depende do empenho do aluno. Mas, para aqueles que
decidem aprofundarem-se no estudo do Choro, sem dúvida a figura do professor é
marcante. A existência de professores, e o hábito de aprendizes tomarem aulas não
alteram, contudo, os modos de aprendizagem do gênero. Em Brasília, o Choro é
comumente ensinado e aprendido em aulas particulares, que consistem em encontros
semanais de professor e aluno, em que o primeiro passa ao segundo conhecimentos,
técnicas e percepções sobre o Choro e sobre o instrumento. O conteúdo e o método de
ensino são definidos pelo professor e pelo aluno ao longo das aulas. As aulas
particulares estabelecem, muitas vezes, uma relação de mestre-discípulo. Nesse caso, o
professor é mais do que o simples portador de conhecimentos. É o mestre, que, além de
transmitir ao aprendiz técnicas e conhecimentos, é o espelho, o exemplo a ser seguido;
ele efetivamente forma o aluno, em termos de concepções musicais, estilo e modo de
relação com a música. Sua função transcende a esfera pedagógica e invade outras
esferas da vida do seu aprendiz. Para Martin Buber (1977), mestre é aquele que ensina
por meio de sua própria existência como pessoa. Essa assertiva reflete a relação entre
mestres/discípulos no âmbito do Choro. O relato a seguir mostra como Marcelo Lima
faz referência e reverência ao seu mestre Hamilton de Holanda, e como aprendeu com
ele muito mais do que simplesmente tocar:

95
Marcelo Lima: Aí foi a sorte da minha vida. Eu fui logo encontrar com o Hamilton, e foi por ele que eu
entrei de verdade no Choro. (...). Quando eu encontrei o Hamilton, eu percebi aquela paixão que ele tinha,
que ele tem pelas coisas, e com ele que eu aprendi essas coisas sobre como organizar um evento, como
fazer um show, como organizar uma banda. Porque na convivência com ele... Eu trabalhava nos shows do
Dois de Ouro, eu ia lá ser roadie, eu ia lá fazer essas coisas só para ver como é que eles trabalhavam. Ao
mesmo tempo, eu via como o Hamilton agia no camarim, com a banda, como ele falava com os caras,
como ele tratava os ensaios, como ele tratava um músico por ter ou não ter ido no ensaio. Esse tipo de
coisa eu aprendi com ele ali trabalhando no show, botando cadeira no palco, tirando cadeira do palco,
arrumando troco para bilheteria. (...) Foi um ídolo que eu tive a grande sorte de conviver. Porque a gente
tem muito pouca chance de conviver com os ídolos. Apesar desse pequeno espaço de tempo que eu tinha
para conviver com o Hamilton, porque ele já começou a despontar. Isso foi para mim e foi para o Dudu
Maia também. Eu e Dudu tivemos essa chance. Na mesma época, a gente conheceu ele. (...) Porque
quando você está perto do Hamilton, é difícil você não se contagiar com aquela alegria que ele tem. (...) A
alegria dele contagia todo mundo, e é só coisa alegre que acaba acontecendo com ele. Para mim, as aulas
dele eram tão importantes quanto estar perto dele. Muitas vezes, nas aulas, eu ia lá só para ver ele tocar.
Eu falava: pô, bicho, tem uma música difícil para caramba, toca isso aí pra eu ver como é que faz.

Outros entrevistados contam sobre seus mestres:

Laércio Pimentel: Quando eu comecei fazer aula com o Alencar, ele foi me demonstrando as coisas,
como é que funcionavam. Até no incentivo, porque você tocando com um camarada muito mais
experiente, ele te acompanhando, vai te dando dicas com relação à técnica do instrumento, qual a melhor
forma de fazer os baixos, tocar ligado... Esse tipo de coisas assim. Ele encurta um caminho no
aprendizado. Já passou por coisas que a gente vai passar, e já dá o toque logo: vai por esse caminho aqui
que é melhor para você.

Rafael dos Anjos: Tem um fato que é legal destacar também, que eu tive aula com o Alencar. Eu tive
aula com o Alencar porque eu queria me aprimorar no lance de tocar o violão de 6 no Regional. Então, eu
ia lá para aula do Alencar e como eu já tocava, ele tirou alguns vícios meus de harmonia, me disse o que
era certo e o que era errado. A preguiça de tocar em certos tons, por exemplo. Deu uma fortalecida
lascada no lance do violão de 6. Era legal porque ele botava o bolachão, e a gente ia acompanhando, ele
tocava o 7 e eu tocava o 6. Ele dizia: agora faz esse baixo aqui, a gente já combinava uns lances assim...
Agora: faz esse baixo; eu dizia: vamos lá... Faz essa terça aqui. Então, tudo que o Alencar me passou foi o
seguinte: tudo o que ele fazia, na segunda vez, no tema, eu tinha que fazer a terça. Então esse era o
desafio. Ele chegava e começava um choro em ré menor, fazia uma frase para começar a música. Quando
voltava a música para a parte A de novo, ele fazia a mesma frase e eu tinha que voltar com a terça. Se eu
não fizesse, a gente voltava desde o começo até eu acertar. Então era mais para treinar esse lance. Ele
começou do Lá, eu tenho que começar do Dó#; eu vou começar a escala de Dó#. Então, era esse o
treinamento. Fora as aulas, e ele sempre me levava para umas Rodas de Choro para a gente treinar. Então,
esse lance do Alencar foi muito bom.

Dudu Maia: Cara, o que eu sempre lembro, o que fez a diferença é que eu não tocava porcaria nenhuma
quando eu conheci eles [os professores], e eles acreditaram em mim. Me fizeram acreditar que eu podia
ser músico, sacou? Os caras lá, o Alencar, o Gamela e o Hamilton, eles tiveram esse papel muito forte.
Eles sempre acreditaram, sempre me incentivaram, vai...vai...vai... Além de tudo o que eles me ensinaram
musicalmente. Eu me lembro bem, foi isso. Eu olhando, há dez anos, eu penso: que bom que eles
acreditaram, porque eu não tocava nada, porcaria nenhuma. Podia ser qualquer um, mas os caras
chegaram e disseram: vai que você consegue! Eles poderiam dizer: vai fazer um concurso aí qualquer,
esquece isso.

O papel relevante dos mestres permite que, no Choro, sejam criadas linhagens de
instrumentistas. Observamos que alguns instrumentistas desempenham com

96
proeminência a função de mestres. Um caso importante em Brasília é Alencar 7 Cordas.
Não só os chorões entrevistados, mas a maioria dos instrumentistas acompanhadores
(violonistas, cavaquinistas e bandolinistas) de Brasília já estiveram nas mãos do mestre
Alencar. De fato, Alencar gasta a maior parte de seu tempo dando aulas de harmonia.
Outro importante mestre é Hamilton de Holanda, que, embora não resida mais em
Brasília, formou os bandolinistas atuantes na cidade; aqueles que não foram seus alunos
são alunos de seus alunos. Eis aí a linhagem de bandolinistas criada por Hamilton. Do
mesmo modo, outros instrumentistas, em maior ou menor intensidade, exercem a
maestria.

A formação dos chorões, conforme observado, costuma se dar


independentemente dos ambientes escolares, muito embora é comum chorões
freqüentarem aulas de música, principalmente na Escola de Música e na Universidade
de Brasília. Todavia, convém ressaltar que o Choro nunca de fato se fixou nessas
instituições, apesar de serem freqüentadas por chorões, tanto alunos como professores.
Um dos motivos para isso é a dificuldade de adequação do Choro às regras do ensino
formal e vice-versa. A criação da Escola de Choro Raphael Rabello, em 1998, alterou
essa realidade, pois, por primeira vez, era possível iniciar-se no Choro por meio do
ingresso em uma escola, ainda que não seguisse os padrões escolares convencionais.
Conforme a Escola de Choro vem ganhando visibilidade e, conseqüentemente,
aumentando o número de alunos, nota-se uma tendência ao enquadramento da Escola de
Choro ao modelo escolar convencional. Atualmente, a direção da escola discute com
seus professores assuntos como: adoção de currículos, avaliações, seriação, entre outros.
Convém alertar que a completa realização dessa tendência poderá levar a um
empobrecimento do ambiente de ensino-aprendizagem do Choro nessa Escola. Este é,
sem dúvida, um risco que a Escola de Choro Raphael Rabello corre, caso o modelo de
ensino/aprendizagem convencional passe a ter primazia sobre a liberdade e a
criatividade de professores e alunos, característica tradicional do modo de aprendizagem
do Choro.

Cabe aqui afirmar que a estrutura escolar convencional não é problemática


apenas para o ensino de Choro. Críticos da escola afirmam que ela é ruim para se
aprender qualquer coisa. Um dos mais eminentes e ácidos críticos da escola
convencional foi Ivan Illich. Ele afirma que a escola contemporânea importou a

97
organização industrial. Ele descreve a escola como uma instituição que escraviza as
pessoas, pois as torna dependentes dela para poderem aprender. Ele identifica, na
organização social contemporânea, a tendência à tutelarização da vida, ou seja, à perda
da capacidade das pessoas de conduzirem suas vidas. Várias instituições exercem o
papel de potências tutelares. A escola é uma delas, pois elimina a autonomia das pessoas
ao tutelar-lhes o aprendizado:

Pobres e ricos dependem igualmente das escolas e hospitais


que dirigem suas vidas, formam sua visão de mundo e definem
para eles o que é legítimo e o que não é. O medicar-se a si
próprio é considerado irresponsabilidade; o aprender por si
próprio é olhado com desconfiança; a organização
comunitária, quando não é financiada por aqueles que estão
no poder, é tida como forma de agressão ou subversão. (Illich,
1979, p.23)

A escolarização acentuada que observamos atualmente é o sintoma mais radical de


uma sociedade que transforma as necessidades básicas em mercadorias cientificamente
produzidas (Illich, 1979, p.24). A ideologia ligada à escolarização prega que quanto
maior for o tempo de escolarização, melhores os resultados; dessa forma, confunde-se
ensino com aprendizagem, obtenção de graus com educação, diploma com
competência, fluência no falar com capacidade de dizer algo novo (Illich, 1979, p. 21).

Os anos encarcerados em salas de aula, que resultam na obtenção de um certificado


de posse de conhecimentos, são também consumidos como mercadorias. Segundo Ivan
Illich (1979), a escola é instituição fundamental na manutenção das ideologias do
consumo e do progresso; é ela a iniciadora das pessoas no Mito do Consumo
Interminável, que versa que o processo de consumo é capaz de produzir algo de valor.
Assim, se há a produção, deve haver o consumo; ou, em outras palavras, a produção cria
a demanda. A escola reproduz esse processo exatamente dessa forma, pois a existência
de escolas produz a demanda por escolarização (Illich, 1979, p. 75). Pelo fato de
existirem escolas, cria-se o mito de que o aprendizado só pode ser realizado na escola:
confunde-se aprendizado com instrução, e criam-se métodos de quantificar níveis de
aprendizado, relacionados com a freqüência à escola e aos títulos e certificados assim
obtidos.

98
A estrutura curricular da escola, que agrupa os alunos em séries, por critérios de
idade, e vai fornecendo-lhes inputs de conhecimentos à medida em que avançam nas
séries, é o modelo de produção industrial para a fabricação de cérebros. A escola é a
indústria de fabricação de indivíduos detentores de conhecimento, e a materialização do
conhecimento que a escola vende são os títulos e certificados:

A escola vende currículo – um monte de bens de consumo


feitos pelo mesmo processo e tendo a mesma estrutura
que outras mercadorias. A produção do currículo
começa, na maioria das escolas, com uma pretensa
pesquisa científica na qual engenheiros educacionais se
baseiam para predizer a demanda futura e as ferramentas
da linha de montagem [...].

O resultado do processo de produção curricular


assemelha-se ao de qualquer outro processo
mercadológico moderno. É uma embalagem de
significados planejados, um pacote de valores, um bem de
consumo cuja propaganda dirigida faz com que se torne
vendável a um número suficientemente grande de pessoas
para justificar os custos de produção. (Illich, 1979, p. 78-
79)

O aprendizado livre, característico da tradição do Choro, certamente não cabe


nas quatro paredes de uma sala de aula. Mas isso não significa que a existência de uma
Escola de Choro irá necessariamente produzir distorções ou prejudicar a formação de
seus alunos. Pelo contrário. É possível que uma instituição formal, que receba até a
alcunha de “escola”, seja um lugar importante para a formação de chorões. Não é outro
senão esse o caso da Escola de Choro. Desde seu início, em 1998, a Escola de Choro
tem aberto a possibilidade de aprender e de entrar em contato com o Choro para pessoas
que, de outra forma, não o fariam. Por meio da Escola, os alunos conhecem a tradição
do Choro e os chorões de Brasília; ela funciona como um portal que permite a entrada
no ambiente chorístico.

Nas aulas, os alunos recebem as noções dos instrumentos, as orientações sobre o


que estudar e como estudar. No cotidiano da escola, conhecem o repertório do Choro,
ouvem suas histórias, tocam com professores, enfim, realizam uma série de atividades,
programadas ou não, que contribuem para o aprendizado. Mas certamente este
transcende os muros da instituição. Muitos alunos da Escola de Choro freqüentam
Rodas, apresentações de Choro, compram discos, vasculham a internet atrás de coisas

99
sobre o gênero. Outros não. Os próprios professores enfatizam que os primeiros
aprendem; os outros recebem apenas noções. Para eles, ficar restrito ao ministrado nas
aulas não garante o aprendizado do gênero. É preciso sair da Escola, correr atrás de
outras coisas, descobrir formas próprias de aprender. É preciso, mais ainda, definir o
quê e como se deseja aprender. O professor de cavaquinho Leonardo Benon fala sobre a
falta de iniciativa de alguns alunos:

Léo Benon: É falta de interesse dos alunos, de correr atrás. Oitenta por cento dos meus alunos só fazem o
que eu passo para eles. Os outros vinte por cento chegam e mostram alguma coisa que viram ou que
descobriram. O cara pesquisar é importante, é uma questão de interesse. Esse negócio de dar tudo
mastigadinho... Aí rola isso: todo mundo tocando só com partitura, sem partitura não toca, não decora,
mudou o tom não sabe tocar. (...). Tirar de ouvido, eu não posso tirar de ouvido para o aluno. Ele é que
tem que fazer. A gente ensina os caminhos.

A Escola de Choro, em âmbito institucional, não possui currículos e seriações. O


ingresso de alunos é realizado mediante sorteio, pois o numero de vagas é menor do que
a demanda. Também não há a emissão de certificados, e nem existe o momento da
conclusão do curso. Ou seja, não existe um curso com início, meio e fim, legalmente
reconhecido, do mesmo modo como ocorre nas escolas convencionais. Esse modo de
organização da Escola de Choro permite, certamente, que os elementos do aprendizado
tradicional do gênero estejam nela presentes. O aluno tem liberdade para entrar, sair; é
ele quem decide quando parar de freqüentar as aulas. Do mesmo modo, os alunos não
esperam certificados, porque eles não existem. Estão lá para aprender.

Esse grau de liberdade traz, obviamente, implicações incômodas para aqueles


acostumados com as estruturas escolares convencionais. Uma delas é a falta de
uniformidade dos alunos. Existem aqueles que aprendem muito rápido, aqueles que são
mais lentos e até aqueles que não aprendem nada. Não por incompetência ou
incapacidade, mas, na maioria das vezes, por falta de dedicação, falta de motivação de
procurar modos de aprender, ou mesmo porque não querem aprender. Conforme já dito,
os que ficam apenas com as aulas efetivamente aprendem pouco. Mas, em
contrapartida, há aqueles que, em pouco tempo, desenvolvem-se tanto que passam a
compartilhar conhecimentos com os professores nas aulas. De sua estrutura
organizacional, decorre que a passagem pela Escola de Choro realmente não garante o
aprendizado, pois ele é centrado no aluno e depende muito mais dele do que da Escola.

100
Como a Escola tem muitos alunos, uma boa parte deles não desenvolve a habilidade no
instrumento necessária para realizar o mínimo esperado de um instrumentista. Além
disso, entram e saem alunos em grandes números; muitos deles freqüentam a Escola por
períodos pequenos, como seis meses ou um ano. Outros permanecem por anos
freqüentando as aulas, e, como não há conclusão de curso, não saem e nem pretendem
fazê-lo. O resultado disso é que existem centenas de pessoas em Brasília que foram
alunos da Escola de Choro e tocam de forma incipiente. Mas isso não significa que não
aprenderam, mas apenas que aprenderam somente o que desejaram aprender. Esse não
é, definitivamente, um bom critério para se julgar a Escola de Choro. Bartholo e Tunes
(2009, p.4), ao discorrerem sobre o verdadeiro aprendizado, enfatizam que:

O aprender é próprio da nossa condição no mundo: algo


que nos é dado como possibilidade. Desde o nascimento
até o dia final, enquanto houver vida, a possibilidade está
posta, mas jamais imposta. Ela pode ser recusada pelo
nosso fechamento ao encontro com o mundo. No decorrer
da vida, alteram-se os modos de aprender e os seus
mecanismos. (...).Conforme essa visão, não há uma
teleologia do aprender e uma hierarquia que conduza a
uma terminalidade: busca-se sempre porque sempre
podemos melhorar o exercício das virtudes. O aluno é o
arquiteto de sua aprendizagem. Portanto, não se submete
a currículos e programas pré-definidos. Somente segundo
essa visão pode-se dizer que a aprendizagem é,
verdadeiramente, um processo ativo, pois decorre do
esforço de uma vontade para exercer sua inteligência.
Aprende-se o que se quer, como se quer, quando se quer e
com quem se escolher como mestre. O mestre é também
uma pessoa comprometida com a busca incansável. O
que se aprende tem um valor pessoal intransferível.

A sociedade escolarizada, que, segundo Ivan Illich (1979), é a que vivemos, não
vê com bons olhos uma instituição de ensino com as características da Escola de Choro.
Ela cobra da Escola de Choro a “eficiência” e a “eficácia” na produção de virtuoses do
Choro, como se isso fosse possível de ser feito em escala e padrão industriais. A
ausência desses critérios de eficiência e eficácia é rotulada como falta de seriedade.
Ademais, por questões de sobrevivência, a Escola necessita de reconhecimento formal.
As mensalidades não pagam os custos, e os patrocínios são vitais. Os patrocinadores
querem resultados quantificáveis, mensuráveis e que, de preferência, tragam números
impressionantes. Eles cobram também que a Escola busque reconhecimento junto aos
órgãos educacionais do Estado, a saber, o Ministério da Educação e a Secretaria de

101
Educação do Distrito Federal. Tal reconhecimento, contudo, esbarra nos labirintos da
burocracia escolar. Não basta apenas ensinar e aprender. É preciso avaliar, hierarquizar,
uniformizar, seriar, aprovar, reprovar, certificar, vigiar, punir, cobrar e obrigar. Ou seja,
tudo o que a Escola de Choro nunca fez, e tudo o que não fez parte do aprendizado de
Choro dos mestres e dos professores. Por isso, a Escola enfrenta dificuldades
operacionais para enquadrar-se em um modelo escolar convencional.

Então, fica criado o dilema: a Escola de Choro ensina, é reconhecida como


instituição importante para o Choro e para a música em Brasília e no Brasil, mas não
pode receber reconhecimento formal por sua atuação, o que cria barreiras para a
obtenção de recursos. O óbvio a ser feito seria reconhecer a Escola tal como ela é, e não
exigir enquadramentos ao sistema escolar convencional. Mas isso não é simples, e
depende de vontades alheias à Escola e aos chorões. Por enquanto, a Escola tem
funcionado e tem servido como lócus de preservação e de transmissão dos
conhecimentos musicais do Choro. Gabriel Teixeira (2008, p. 41) reconhece isso:

Pode-se também adicionar que o deslanche recente de


construção do Complexo Cultural do Choro (...)
corrobora a sua relevância enquanto preservador de um
gênero musical, a originalidade desse processo de
preservação e a sua competência pedagógica. Sobre essa
competência, (...) o resultado é que ela permite aos
chorões brasilienses, (...) na opinião de Holanda, tocar
de ouvido e improvisar, colocando a técnica em função
da música e jamais o contrário.

As análises aqui realizadas, assim como a observação de Teixeira (2008),


mostram que a Escola de Choro encontrou uma forma de institucionalizar o ensino do
Choro sem deixar que isso eliminasse elementos importantes que são parte de uma
prática transmitida por tradição oral. De fato, Teixeira (2008) considera a Escola um
exemplo de preservação musical bem sucedida. Apesar disso, a Escola sofre pressões
por mudar seus métodos, e adequar-se aos modelos escolares convencionais, que vão de
encontro ao tradicional modo de aprendizagem do Choro. Ora, já se realizou a façanha
de criar uma Escola de Choro, retirando seu ensino da completa informalidade,
facilitando o acesso ao aprendizado, e sem, contudo, distorcer o modo de aprendizagem
do gênero. A Escola está repleta de alunos, e com imensa fila de espera. Não se ouvem
reclamações. Então, cabe a pergunta: para quê mudar? A resposta pode ser extraída de

102
uma máxima do futebol, que, assim como o Choro, é uma expressão da identidade
brasileira: em time que está ganhando não se mexe.

103
C2. Música das Nuvens e do Chão

No Choro, assim como em qualquer outro tipo de manifestação de música


popular, o estudo da prática da interpretação (performance) torna-se um desafio para
trabalhos de natureza acadêmica, pois inclui uma série de elementos subjetivos e
complexos de serem descritos com precisão. Todavia, a interpretação é um dos aspectos
mais importantes no gênero, sendo uma de suas marcas registradas. Em sua trajetória
histórica, os compositores e suas obras exerceram um papel importante, mas foi na arte
da interpretação que essa música alcançou sua marca identitária mais contundente.
Músicos e ouvintes do Choro, ao observarem performances de chorões, são capazes de
emitir julgamentos sobre ela. Muitas vezes, os julgamentos de pessoas diferentes irão
divergir em alguns aspectos, mas, na maioria das vezes, os julgamentos sobre uma
determinada atuação coincidem. Isso permite inferir que há uma ordem que organiza o
Choro como sistema musical, e que tal ordem é conhecida pelos chorões, músicos ou
não. A seguir, serão discutidos, a partir da fala de chorões, os modos como julgam as
performances e os critérios que utilizam para tal.

Gerard Behágue (1984), em estudos sobre performance musical, afirma que a


etnografia da perfomance deve trazer à luz os modos como os elementos não-musicais,
numa determinada ocasião influenciam os musicais. O referencial fornecido por
Béhague (1984) aponta para a impossibilidade de compreender um sistema musical
desvinculado do contexto geral onde se insere. O conhecimento do contexto permite
que as análises dos parâmetros musicais sejam mais facilmente realizadas e
compreendidas, porque abordadas a partir do conhecimento do ambiente musical do
Choro, que inclui não só a música, mas inúmeros outros elementos.

O Choro possui critérios e significados próprios para a avaliação do desempenho


dos músicos. Tais critérios ligam-se intimamente ao modo de produção, de aprendizado
e de transmissão dessa música. Ligam-se, portanto, ao ambiente humano onde ela
ocorre e se desenvolve. Pelos relatos dos músicos, podemos observar que os critérios de
performance variam conforme os contextos onde ela ocorre.

Dudu Maia: Numa Roda de Choro, eu vou brincar, vou arriscar. A gente vai se jogar. Numa apresentação,
primeiro você pensa no começo meio e fim, no repertório que vai tocar.

104
Laércio Pimentel: (...) de certa forma, na Roda você tem um pouco mais de liberdade. Na apresentação,
você está mais preocupado. Não que não se possa arriscar, mas tem que pensar nisso: tocar para a música.

Fernando César: Eu cansei de tocar no palco mesmo, e nem aí, tocava como Roda. Mas eu vejo isso
também como a evolução do Choro, né? O show deixou de ser Roda, porque o show é Roda também, né?
O choro que você toca há a maior data , no palco toca ... mas na Roda você fica testando uns baixos
novos... antes eu testava no palco, na hora do show, agora não....

Henrique Neto: O que eu venho trabalhando é o seguinte: tocar com a mesma seriedade em qualquer
ambiente. Agora, é claro que na Roda de Choro você está cercado de amigos, é muito mais espontâneo.
Você não se preocupa tanto com a execução perfeita. Já no show, você deve um respeito ao público
também, né? Na gravação, um registro que fica para sempre... Então tem essa diferença no nível de
cuidado que você tem que ter.

Augusto Contreiras: Se você está numa Roda num churrasco você improvisa. Agora, em um show, você
tem que fazer aquilo que está ensaiado, porque tem muita gente assistindo, tem muita gente prestando
atenção. Mas, mesmo assim, quando você percebe que você está bem à vontade, você estudou bem o
instrumento, aí você tem que improvisar. Mas depende do lugar onde você está tocando.

As falas dos chorões mostram que é comum a distinção entre dois contextos de
performance: a Roda e a apresentação. Conforme já mostrado no Capítulo B1, a Roda é
um ambiente informal, em que os músicos se sentem mais à vontade para arriscar e
improvisar. Na apresentação, por oposição, tendem a realizar aquilo que já fizeram
previamente em ensaios, ou aquilo que não traz riscos de erros. O improviso, conforme
disseram Fernando César e Augusto Contreiras, é mais comum nas Rodas, dado que,
por ser elaborado no instante da execução, traz sempre um risco; mas esses músicos não
dispensam seu uso em apresentações, ressalvando que fazem isso somente quando estão
perfeitamente seguros, ou seja, quando os riscos de errar são pequenos. Desses relatos,
de antemão, podemos afirmar que não errar é um critério de performance importante no
Choro; seu peso, contudo, é consideravelmente maior nos contextos cerimoniosos das
apresentações do que na informalidade das Rodas.

Nos dois relatos a seguir, identificamos que a performance também pode variar
de acordo com a instrumentação utilizada e com o repertório; pode ser também adaptada
às peculiaridades individuais dos músicos presentes na ocasião.

Fernando César: Depende da música, depende da formação, depende do instrumento. Se eu toco com um
violão de aço ou de nylon... Cada uma dessas situações tem uma maneira diferente. (...) Depende da
música. Geralmente, você tem que segurar muito mais a harmonia para fazer o ritmo, e vai fazendo o
baixo. Se tiver um cavaquinho, eu toco com o violão de aço, e nem faço muita força para tocar os
acordes, não. Não faço muita levada, seguro mais a baixaria. Não que eu faça o baixo toda hora, mas vou
pá pá pá pá pá, e o cavaquinho segura a levada e a harmonia, né? É uma opção, usar o violão de aço e
fazer dessa maneira.

Rafael dos Anjos: (...) Tento tocar parecido com o que o cara toca, saca? Eu nunca vou tentar colocar uma
outra linguagem ou então me sobrepor àquela pessoa, eu vou sempre procurar tocar dentro da onda, saca?

105
Por exemplo, se eu for tocar no Tartaruga, eu vou encontrar com o Henriquinho. Com ele eu toco de um
jeito. Mas se o Alencar pegar o violão, eu vou tocar de outro jeito.

Embora o contexto da performance altere os critérios de julgamento e avaliação,


alguns elementos musicais podem ser considerados essenciais para a execução do
Choro, em qualquer contexto. Quais são esses elementos? Como acessar os critérios
utilizados pelos chorões para avaliar performances e instrumentistas? De acordo com
diversos autores (dentre eles, podemos destacar Blacking, 1973; e Quresh, 1987), no
estudo de sistemas musicais não totalmente ancorados no registro escrito convencional,
é importante levar em consideração os conceitos, as teorias, e os conhecimentos
musicais dos músicos que compõem tais sistemas. Isso quer dizer que o uso das
ferramentas da teoria musical ocidental pode não ser adequado para o entendimento e
para as análises desses sistemas musicais (de fato, quase nunca o é). Para os
musicólogos, os conceitos cunhados pelos próprios músicos são aqueles que melhor
representam seus sistemas musicais. Portanto, é tarefa do pesquisador identificar esses
conceitos e conhecimentos, tentando manter fidelidade ao modo como são expressos
dentro de seu sistema cultural originário. Mesmo que um sistema musical não se baseie
em uma teoria musical, existem conhecimentos acerca da ordem sonora que lhe são
subjacentes. Nas palavras de John Blacking (1973):

Quando afirmo que a música não pode existir sem a


percepção da ordem que orienta o som, não estou
argumentando que algum tipo de teoria musical deva
preceder a composição e a performance musical: isso
deve ser obviamente falso para a maior parte das grandes
composições clássicas e para o trabalho dos chamados
músicos ‘folk’. Estou sugerindo que a percepção da
ordem musical, não importa se inata ou aprendida ou
ambas, deve estar na mente antes de emergir como
música (Blacking, 1973, p. 11)

Tomando como válida a assertiva de Blacking, supomos que é possível identificar


uma ordem sonora subjacente às performances do Choro; supomos, ainda, que os
chorões têm consciência dessa ordem. Existem, obviamente, entendimentos pessoais e
individuais da ordem sonora do Choro, que irão, inclusive, contribuir para a
consolidação dos estilos individuais de instrumentistas. Mas é possível identificar
elementos cuja presença é crucial para as performances do Choro.

106
Desse modo, se a pesquisa investigar a percepção da ordem musical dos músicos
que fazem parte do universo do Choro, poderá identificar elementos dessa ordem. Uma
forma de ter acesso a esses conhecimentos é permitindo que os próprios músicos
verbalizem seus conceitos e suas percepções. Blacking (1995) postula que o julgamento
da performance no âmbito de uma tradição musical, ou seja, a capacidade de dizer o que
é bom ou ruim, certo ou errado em um determinado sistema musical, baseia-se em
princípios adquiridos na vida social em processos que nem sempre estão diretamente
ligados à prática musical. Com isso, Blacking (1995) quer dizer que é possível aprender
música simplesmente sendo parte de uma coletividade humana, organizada por uma
ordem que se expressa, entre outros, na música dessa coletividade.

Todavia, para Kerman (1987), toda interpretação é uma questão individual, pois
o músico deve imprimir à obra a sua personalidade, seu sentimento e sua intuição.
Assim, a interpretação é o modo como a individualidade do músico influi na
individualidade da obra (Kerman,1987). Ele ressalta que os músicos inseridos em uma
tradição viva não precisam escrever ou falar sobre a música que executam para manter a
tradição. Importante para isso é a constante produção, interpretação e reinterpretação
das músicas. Para Kerman (1987), uma tradição musical não mantém sua “vida” ou
continuidade por meio de livros e sabedoria livresca. Ela é transmitida em lições
privadas, não tanto por palavras quanto pela linguagem corporal, e não tanto pelo
preceito quanto pelo exemplo. Para o autor, isso não significa que os músicos não
reflitam ou pensem sobre sua prática musical; pelo contrário, apenas não têm o hábito
de articular isso em palavras ou de registrar em pentagramas, porque, no fundo, isso não
é necessário, pois a prática musical já é suficiente. No Choro, não é comum o registro
escrito das interpretações. As gravações, contudo, deixam registradas interpretações que
acabam se tornando célebres. Elas eternizam a criatividade de grandes intérpretes, que
são as principais influências, os exemplos a serem seguidos pelos instrumentistas. Mas,
de algum modo, ao seguir os exemplos e se deixar influenciar, o intérprete deve
subverter a imitação do modelo, e criar seu estilo interpretativo próprio. John Blacking
(1995) afirma que, se a música é o som organizado pelos homens, ela deve conter
reflexos da organização social em que os homens que a produzem se inserem. Se
considerarmos que a interpretação é o modo como um indivíduo expressa sua
pessoalidade em um sistema musical, pode-se inferir que a interpretação deve conter,
também, reflexos do modo como o intérprete compreende sua realidade e seu sistema

107
social. Portanto, a interpretação traz elementos que estão além do seu entendimento da
ordem sonora de um sistema musical; levando em conta os conceitos de Blacking
(1995) e Kerman (1987), é a verdadeira expressão de uma pessoa. Portanto, o estudo da
performance e da interpretação irá acessar aspectos da ordem sonora de um sistema
musical, que é reflexo da ordem social que organiza uma coletividade; mas irá, também,
acessar os modos como cada intérprete compreende tal ordem sonora, e como ele se vê
e se insere na ordem social da qual faz parte.

No discurso dos chorões, podem ser identificados diversos elementos musicais


utilizados na avaliação da performance de modo geral. Dentre eles, podem ser
destacados: sonoridade, formação instrumental, repertório, virtuosismo, expressividade
e emoção, capacidade de decorar (não tocar lendo), erros (o modo como o músico lida
com erros), ritmo (citado como balanço, ginga, malandragem – elementos próprios do
Choro e de outras manifestações da cultura brasileira), variações e improvisação.

A sonoridade é entendida como a capacidade de extrair do instrumento o melhor


som possível, em termos de intensidade e limpeza do som (definição das notas e dos
acordes emitidos pelo instrumento). De modo geral, há grande preocupação com a
sonoridade por parte dos instrumentistas, tanto em relação à sua própria performance,
quanto em relação à performance de outros músicos, como mostram os relatos a seguir:

Leonardo Benon: A minha referência sempre foi o Waldir [Azevedo]. Você vê, nos últimos dois discos
dele, principalmente no último... eu vejo ele tocando, e era a época que ele estava tocando melhor. Você
vê a pancada que ele dá, mas a corda não distorce, não desafina, não dá som de palheta. Ele consegue tirar
o som do instrumento, ele arranca som do instrumento. O cavaquinista tem que tirar o som doce do
instrumento. Outra coisa legal é aproveitar os efeitos que o instrumento oferece. O Waldir abriu um leque
de possibilidades, ele desenvolveu uns falsos harmônicos. É aí que o lance do cara tocar bem o
cavaquinho. (...) Aí entra o lance de tirar o som, cavaquinho como instrumento solista... Tocar bem não é
só tocar. Acho que tocar bem é o cara tirar o som. Porque o cavaquinho, o problema dele esta aí, em tirar
som. Não desmerecendo os outros instrumentos, mas, se você pega um bandolim, é muito mais fácil de
você tirar um som. A flauta já sai um som bonito... o bandolim é diferente, tem que aprender a tirar
volume.

Dudu Maia: O bandolim é um instrumento muito pesado, é muito tenso. Só a corda Mi tem uma tensão de
dez quilos. Quase cem quilos de tensão... Instrumento muito tenso e de muito ataque, muito duro. O som
é duro. Para encontrar o doce é difícil... Amaciar, suavizar sem perder a pressão é muito difícil. É um
instrumento pesado, cansativo. Eu demorei para tocar mais relaxado, para conseguir tirar o som com
leveza, mesmo com a tensão.

Henrique Neto: [No violão], se você tem o recurso da técnica, você tem condições de ir mais longe com
certeza. Agora, não é uma coisa só que vai determinar isso, entendeu? O que chega no ouvido das pessoas
é a qualidade do som. Se é um som gostoso de ouvir, né, bicho? Na minha concepção, é isso.

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Paulão: A primeira coisa é o som que o cara tira do instrumento. O mesmo instrumento na mão de várias
pessoas tem um som diferente.

Rogerinho: No meu caso, quando eu chego numa Roda, naturalmente eu observo primeiramente quem
está tocando o meu instrumento. A primeira coisa é o som do pandeiro, depois como está sendo a
execução daquele pandeiro naquela música específica

Nota-se, nas falas dos chorões, a freqüente alusão à sonoridade como o primeiro
aspecto a ser observado no ato do julgamento de uma performance. Conseguir extrair
um som satisfatório do instrumento é a primeira condição para que um músico tenha
boa atuação. Pelo que foi dito nas entrevistas, pode-se concluir que existe, entre os
chorões, denso conhecimento acerca dos sons que podem ser emitidos pelos
instrumentos. Com efeito, os mais diversos nomes são dados aos diferentes tipos de som
que um instrumento produz. Tais nomes podem refletir óbvias sensações auditivas,
como agudo, grave, estridente, baixo, alto, etc. Há nomes que indicam a sonoridade pela
sensação que causam na audiência: gostoso, agradável, entre outros. Outras
nomenclaturas são metafóricas, e certamente indicam com grande precisão uma
determinada sonoridade; dentre elas, podemos citar: som duro, som cheio, som pesado,
som leve, som doce, entre outros. Os relatos de Dudu Maia e Leonardo Benon mostram
que a estrutura física de seus instrumentos traz dificuldade em extrair um som doce do
bandolim e do cavaquinho, instrumentos que, por soarem nos registros mais agudos, são
naturalmente estridentes. Os músicos buscam, então, minimizar o desconforto auditivo
que tamanha estridência causa, tornando o som do instrumento doce. De fato, cada
instrumento apresenta dificuldades peculiares em relação ao som que pode emitir.
Transpor essa dificuldade exige intimidade com o instrumento e habilidade técnica.
Com efeito, grande parte dos critérios de desempenho estão associados à competência
técnica:

Rafael dos Anjos: Sempre tem várias dificuldades. Tocar a levada já é difícil para cacete. Tocar a levada é
muito difícil porque você não pode tocar um lance que seja fora do Regional. Você tem que conseguir
casar sua levada com a do pandeiro e a do cavaquinho, e com o 7 cordas. A função do violão de 6 é dar
suporte para o solista. É difícil fazer a levada, fazer as firulas. Nem sempre as firulinhas que você vai
fazer... Os contrapontos saíram na hora errada, tem uns que batem com a melodia..., às vezes sai fora do
tempo. Então, tudo isso tem que ser bastante treinado. Tocar o violão, em si, dentro do Choro, é difícil
para caramba.

Laércio Pimentel: Tem muita coisa difícil, não acho fácil tocar não, cara. Tem que estar estudando sempre
a parte técnica. Você tem que estar com a técnica em dia para tocar determinadas coisas.

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Dudu Maia: Outra coisa difícil é harmonizar. Porque as notas ficam muito longe, pela afinação em
quintas [do bandolim]. Você pega as vozes depois da oitava... Harmonizar é um pouco mais difícil. Para
você pegar uma terça no violão é mais fácil, porque elas estão ali pertinho. Aqui [mostra o bandolim],
você pega a terça acima da oitava ou a sexta para baixo. Por exemplo, o Sol. Muitas vezes você vai pegar
a terça depois da oitava, né? Ou então você pega o Si para baixo.

Henrique Neto: Na área do acompanhamento, você tem que fazer as duas coisas, tanto a baixaria quanto a
harmonia. Porque, quando você começa a fazer uma baixaria, você tem que saber onde você vai cair, com
qual inversão você vai cair. Então, é todo um trabalho antecipado. Você vai abrindo caminho para o
solista. Reflexo e planejamento. Tem que ter muito conhecimento do instrumento, do braço.

Cada instrumento, obviamente, apresenta dificuldades técnicas diferentes. Os


chorões demonstram conhecê-las em profundidade. As dificuldades surgem, também,
dependendo da função que o instrumento se propõe a exercer. Rafael dos Anjos aponta
para a dificuldade em fazer a levada (condução rítmica). Para ele, unir a sua levada com
os outros instrumentos e fazer os contrapontos na hora certa exigem muita habilidade.
Dudu Maia discorre sobre os problemas encontrados no bandolim, instrumento solista,
quando é usado para fazer acompanhamentos, e menciona quais soluções são dadas.
Henrique Neto, por sua vez, afirma ser necessário aperfeiçoamento técnico e total
domínio do instrumento para executar o violão de 7 cordas de forma satisfatória. Para
ele, conhecer as inversões e sua correta aplicação torna-se um pré-requisito para isso.
Os estudos visando o aperfeiçoamento da habilidade técnica são parte do cotidiano dos
chorões, conforme eles mesmos disseram. O domínio do instrumento, que requer
enorme dedicação, é um dos principais critérios na avaliação de uma performance no
Choro. É esse domínio, inclusive, que irá permitir que os chorões executem os choros
mais rápidos e mais difíceis, como se verá a seguir.

Um dos critérios de desempenho mais característicos do Choro refere-se ao


andamento das músicas. O próprio repertório do Choro está repleto de músicas em
andamentos muito acelerados; sua execução exige grande habilidade técnica. Portanto, a
capacidade de executar Choros rápidos é um dos aspectos que mais pesam no
julgamento do instrumentista:

Rogerinho: A dificuldade que eu tenho é quando eu estou numa Roda de Choro, e chega o Frango
[Márcio Marinho], que toca um choro a duzentos por hora. Aí você tem que tocar a duzentos por hora
sem cair e, se possível, fazer uma viradinha, uma graça, para mostrar que você está ali e está bem. Senão
você se arrasa. Se você não quiser fazer nenhuma viradinha, tudo bem. Mas, pelo menos, mantenha o
andamento do início ao fim. E não se preocupe que você vai fazer careta, porque, quando você pensar que
ele vai acabar, ele chama a dois de novo.

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Márcio Marinho: Teve um dia, lá na Roda, que eu derrubei o Gordinho [Rogerinho]. Puxei aquela
música, o “Araponga”. Puxei numa velocidade muito rápida, bicho! Que ele não conseguiu. Falei: vai
estudar! O bicho ficou puto.

Rafael dos Anjos: É um lance que eu estudo, acho importante também, porque chama a atenção. O cara
olha quando você está tocando um lance rápido. O cara fica atento, e o cara aplaude. (...) Isso tem a ver
com o andamento: quanto mais rápido, mais habilidade você tem que ter. Porque, se você vai tocar o Bole
Bole rápido, você vai ter que improvisar rápido, conseguir pensar rápido, imprimir aquele estilo
rapidamente, saca? Não vai poder tocar qualquer improviso. Tem que ser virtuose mesmo, né, bicho?

Laércio Pimentel: Porque Choro tem uma dificuldade. Porque, dependendo do andamento da musica, da
velocidade, fica mais difícil, porque a quantidade de acordes é muito grande.

Paulão: Então, eu já ouvi vários depoimentos de que acham legal o desafio. Porque, às vezes o andamento
é mil vezes maior do que o que a música foi gravada, mas é um desafio para o cara conseguir tocar.

Leonardo Benon: O motivo das pessoas puxarem as músicas muito rápidas é para fazer a animação do
público.

Em função da capacidade de tocar rápido ser um critério muito comum de


performance, ele acaba por tornar-se uma espécie de clichê entre os chorões. O relato de
Rafael dos Anjos mostra que a velocidade impressiona principalmente o público, e
demonstra a habilidade do músico. É comum, entre aprendizes, que despendam enormes
esforços para conseguir executar choros muito rápidos, pois, assim, pensam eles,
entrarão no rol dos bons músicos. Em contraposição, instrumentistas experientes
discorrem sobre as dificuldades de se tocar os choros mais lentos. Estes exigem do
músico um cuidado especial com o pulso constante da música:

Rogerinho do Pandeiro: Os choros lentos são difíceis de tocar porque a tendência é acelerar. Quando você
está aprendendo, você só quer tocar as músicas mais lentas. Por incrível que pareça, depois que você
aprende a tocar, você quer tocar as mais rápidas. Mas, depois, voltar a tocar as lentas fica mais difícil.
Manter a cadência, o ritmo ali, lentinho. Porque muitas músicas são lentas, e a execução delas é bonita se
for lenta. Ela foi feita pra emocionar mesmo.

Dudu 7 Cordas: [ o Choro] mais lento é o mais difícil para todo mundo. Porque, no mais lento, acontece o
seguinte: é mais difícil de interpretar para o solista. Você vai ter que tirar som, e você não vai ter a
velocidade. Se catar [errar] não tem esse negócio de neguinho não perceber, ou, então, está fazendo a nota
certa, mas não está tirando som. Porque, quando a música está rápida, o que impressiona é a velocidade,
não é a melodia. Para o cavaquinho centro, ele nem sempre vai conseguir completar a batida. A música
rápida também é difícil, mas, na música lenta, o que vai contar é todo mundo ter tocado bem.

Tonho do Pandeiro: gosto muito de choro canção, o pessoal fala: ah, vamos tocar rápido... mas tocar lento
é que é difícil, tocar rápido se torna mais fácil. Agora, tocar lento é que é difícil. Eu gosto do choro
canção por essa dificuldade. Porque a música lenta ou faz a pessoa atrasar o ritmo ou então adiantar. Se
você adiantar um pouquinho, melhor. Geralmente respeitam isso, mas o lento torna-se mais difícil até, a
execução.

Pelos relatos dos pandeiristas Tonho e Rogerinho, observamos que fazer a


condução rítmica correta, respeitando o pulso lento e constante de certas músicas, exige

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maior competência do instrumentista. A precisão rítmica é critério valorizado por
músicos experientes, e faz parte da ordem sonora do Choro.

Os chorões falam, também, sobre a capacidade do músico de ouvir os outros, e


tocar junto com eles. Esse critério de performance pode ser denominado entrosamento
do conjunto. Importante para o entrosamento do conjunto é o conhecimento da função
específica que cada instrumento tem na execução de um choro. Os critérios para a
avaliação do entrosamento consideram o contexto onde ocorre a performance, os
ensaios, a competência individual do músico, a intimidade pessoal e musical dos
instrumentistas, a vivência e a maturidade musical de cada um. Os relatos a seguir
demonstram como os chorões entrevistados tratam essa questão:

Leonardo Benon: O cara que segure o ritmo, que sabe interagir com os outros instrumentos... Não é só
coisa de pandeirista. O músico da Roda de Choro tem que ficar atento à interação: baixou o volume, baixa
também. Tem que aparecer na hora certa. O pessoal só quer botar muita nota numa música, só quer
mostrar tudo o que sabe. Aí o 7 cordas chega lá, está tocando, não pára de fazer o contraponto. E tem um
solista que não deixa ninguém tocar. (...) A função original do 7 cordas é ligar os acordes com a melodia,
entendeu? Ele faz essa ponte. Agora, o cara o tempo todo mete uma frase paralela com o solo. Isso não é
contraponto. Se eu deixar de fazer a minha levada para fazer gracinha, cadê o cavaquinho? Faz um
buraco, entendeu? Então tem que ser consciente. Vou deixar de dar sustentação para alguém? Mesma
coisa o pandeiro. O cara vai ficar virando toda hora, onde é que vou ficar sabendo onde é o tempo 1? Uma
hora ele vai derrubar alguém. O pandeiro é a base de todo mundo. Eu vou estar apoiado nele, e o violão
vai estar apoiado em mim. Se o pandeiro bobear e eu bobear, cai todo mundo.

Fernando César : [o violonista 7 cordas] Se ele colocar aquela coisa rápida no lugar certo e na hora certa,
vai chamar muito mais atenção do que o tempo todo. Então, tem os lugares. Por isso é que o Dino é o
Dino. Porque ele botava as coisas certas no lugar certo e nas horas certas. Por isso eu sempre me espelhei
muito nele.

Henrique Neto: Se ele [o músico] está contribuindo para o contexto todo. Porque eu acredito nisso, na
maturidade musical que a pessoa chega. Se ele está contribuindo para o conjunto... É claro que é bom
você ver um cara comendo o violão, assim bonito. Mas eu acho mais bonito ainda essa... Colocar as
coisas na hora certa, na brecha ali. É nessa malandragem. Porque é sempre um jogo de pergunta e
resposta na música, né? Você pergunta uma coisa no instrumento, o outro responde. Então, se toda hora
está todo mundo falando muito, em termos de nota... Tudo tem seu momento, tem seu valor, mas é uma
conversa.

Tonho do Pandeiro: É a percepção dos outros amigos. Para uma boa execução, em primeiro lugar, nós
devemos ouvir a todos. Se nós conseguirmos ouvir cada instrumento, é sinal de que nós estamos numa
onda sonora, no mesmo patamar. E o bom desempenho é a concentração, tocar concentrado, e tocar para
os outros músicos.

Dudu Maia: É um cara que está tocando junto contigo, está te ouvindo. Tem cara que não te ouve. É
impressionante. Agora, quando o cara está te ouvindo... A primeira coisa que você percebe se o cara está
te ouvindo é a dinâmica: ele começa a sacar a sutilezas de dinâmica, e ele está junto contigo. Fui tocar
com um colega um dia falei: beleza, vou segurar a melodia para você solar. Não estava ouvindo pôrra
nenhuma do que eu estava fazendo, a gente tocava do começo até o fim na pressão, mas não rolava aquela
inspiração dos dois crescerem e voltarem. O cara tem que ser seu amigo.

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Rogerinho do Pandeiro: O breque tem que sair certinho, todo mundo na hora certa , então requer uma
atenção, então quando isso dá certo... Como é um trabalho em conjunto, a sensação é maravilhosa. Você
vê cinco pessoas tocando, fazendo um negócio, e, quando dá certo, você se emociona. As pessoas que
estão te assistindo se emocionam em forma de assovios e de palmas. Então, quer dizer, é uma troca de
energia entre público e artista, que é fantástica .

Observa-se que o entrosamento envolve elementos ligados até à personalidade


do músico, como egoísmo, generosidade e companheirismo. O cavaquinista Leonardo
Benon critica o individualismo de alguns músicos. Para ele, na ânsia de mostrar
virtuosismo, o músico se esquece de fazer a sua função, e isso compromete o conjunto.
Dudu Maia tece críticas semelhantes ao afirmar que existem músicos que não se
predispõem a escutar os outros instrumentistas. Para Fernando César e Henrique Neto,
as baixarias do 7 Cordas devem ser executadas com parcimônia para não sobrepujar os
demais elementos do conjunto. Para todos os músicos entrevistados, as demonstrações
individuais de habilidade e virtuosismo são válidas desde que contribuam para o
conjunto. Esse é um exemplo de um aspecto da ordem sonora do Choro que se estende
para além dos elementos musicais, pois depende da personalidade do instrumentista. No
Choro, música que pode ser executada sem ensaios, o entrosamento do conjunto
depende da capacidade individual de prestar atenção no conjunto no momento da
performance. Por isso, é possível que dois chorões que não se conhecem tenham grande
entrosamento em um primeiro encontro, sem sequer terem trocado duas palavras antes
de compartilharem a execução de uma música. Por outro lado, aspectos negativos da
personalidade de um músico, como excessiva vaidade, falta de humildade ou
egocentrismo, são capazes de comprometer o entrosamento do conjunto, denunciando
impiedosamente esses indesejáveis defeitos. Por isso, alguns poucos anos de
experiência já tornam o músico preocupado em ouvir os outros, a fim de que a execução
da música dê espaço para a aparição de todos os instrumentos.

Um dos componentes mais importantes em uma performance de Choro é o


repertório. O repertório tocado indica, de antemão, o nível técnico dos músicos e seu
conhecimento da tradição do gênero. Em Brasília, o repertório do Choro é composto
majoritariamente por músicas de compositores consagrados. Inclui choros, baiões,
valsas, maxixes, frevos, polcas, e também adaptações de sambas. Para os músicos
entrevistados, ouvir as gravações e conhecer o repertório torna-se um pré-requisito para
qualquer pessoa que queira ter um desempenho satisfatório:

Márcio Marinho: Ah, tem que escutar muito e tocar. Tocar e escutar, né? Isso, eu acho isso.

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Henrique Neto: Se você não tiver passado por essa bagagem de ouvir as gravações, de ter tirado o
repertório, eu acho que, com certeza, o cara vai tocar mal. Quem toca violão e não conhece o trabalho do
Dino, do Baden e do Raphael Rabello, João Pernambuco e Dilermando Reis no Brasil, não vai poder
tocar violão. Porque não sabe a linguagem, o que foi feito, o que já foi desenvolvido nessa área. Então, se
você pular essa etapa, eu acho, muito provavelmente você não vai conseguir alçar vôos mais altos no
violão. Com certeza não.

Fernando César: Fazer repertório... uma coisa que a galera de hoje está devendo. Tem que fazer
quantidade de repertório. Isso aí não vai ajudar só na questão da pegada, é muito mais. O ouvido do cara
vai começar a se ligar em melodia, em harmonia. Cada vez que ele vai tirando, vai se ligando mais.

Leonardo Benon:. As pessoas estão acomodadas em chegar, tocar os 24 hits do Choro, e falam que estão
tocando Choro. Não estão.

Tonho do Pandeiro: Se ele não conhecer o repertório, não conhecer o Choro, ele não vai saber das
dinâmicas, não vai saber dos breques, ele não vai saber de uma baixaria de violão, ele não vai saber
entrar. Então, a primeira coisa para um pandeirista é conhecer o repertório, conhecer os choros que ele vai
executar.

Dudu Maia: Se o cara tiver jogo de cintura ele chega e sai tocando, né? É raro, mas você sabe, não é todo
dia que rola... Agora, tocar bem o Choro, tem que tirar as gravações e tocar coladinho , por exemplo eu
tava conversando com um bandolinista e ele disse: eu não tenho esse vocabulário de Choro eu tenho
dificuldade de tocar, porque eu não tenho temas suficientes de choro embaixo dos dedos. O cara tem que
construir um vocabulário, uma enciclopédia, sei lá. Ele vai ter que tirar várias músicas., Aí, se ele for
esperto, ele vai colar no Jacob, vai ver as soluções que ele arruma, as diferentes interpretações sobre a
mesma coisa, os ornamentos e o ritmo, principalmente. Muita coisa está no ritmo. Tem que colar no
Pixinguinha, no Jacob, né?

Augusto Contreiras: O cara tem que ouvir as gravações de um, dois ou mais grupos. A questão de ouvir é
importante. Quem está começando agora tem que ouvir os regionais e os grandes instrumentistas para o
cara saber como se tocava aquilo. Dependendo do que ele ouvir, ou ele tenta imitar ou pelo menos tenta
identificar como que os caras faziam, como é que os caras tocavam, para ele tentar atingir a sensibilidade
musical do cara.

Os relatos mostram que é fundamental para o chorão acumular o maior número


de repertório possível. Isso fornecerá ao músico ferramentas eficazes para o
desenvolvimento de sua percepção musical e para o aprimoramento de seu desempenho.

O repertório do Choro tem algumas peculiaridades interessantes, que permitem


entender certos aspectos das performances. A primeira delas diz respeito às tonalidades
das músicas. A regra, sempre seguida à risca, com poucas exceções, é tocar as músicas
nas tonalidades originais em que foram compostas ou gravadas. Fernando César fala
sobre isso:

Fernando César: Por exemplo, se você toca clarineta, e tenta tocar o repertório de bandolim, uma música
ou outra é difícil. Então, pega o que rola e toca, sempre procurando também, se for para uma Roda tocar,
no tom da gravação original. Porque nem sempre vai ter alguém que saiba acompanhar [em outros
tons].

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Com efeito, a maioria dos choros é sempre gravada nos mesmos tons. Raras são
gravações de choros convencionais tocados em outros tons. Por exemplo, podemos citar
Pedacinhos do Céu, sempre tocado em sol maior; Cochichando, de Pixinguinha e
Benedito Lacerda, em Ré Menor; Lamentos, em Ré Maior; Doce de Côco, em Sol
Maior, e uma infinidade de choros. Todavia, alguns choros consagrados, como Tico-
Tico no Fubá, Espinha de Bacalhau, Brasileirinho, Saxofone Porque Choras, entre
outros, por uma questão de adaptação às características mecânicas de alguns
instrumentos, costumam ser transpostos para outras tonalidades, principalmente em
função dos instrumentos solistas - clarineta, saxofone, trompete, flauta, bandolim,
cavaquinho, entre outros. Isso se deve ao fato de ser quase impossível para esses
instrumentos tocarem determinados choros rápidos na tonalidade original. Mas, em
geral, a tonalidade dos choros é fixa. A seguir, Dudu Maia discorre sobre tonalidades
difíceis para o bandolim; Rafael dos Anjos, para o violão:

Dudu Maia: Porque o bandolim, por ser muito tenso, tem tonalidades que são mais fechadas. As com
corda mais presas, né? Lá bemol, Dó sustenido.

Pesquisador: Nossa! Não tem choro em Lá bemol.

Dudu Maia: De repente, aparece um doido aí, e faz isso. Sol no bandolim é mais fácil. Ré também. Esses
dois são os mais fáceis. Dó maior também é tranqüilo. Mas essas mais acidentadas... Si bemol rola bem
também. Si já é um pouco chatinha, Mi também. Quanto mais corda presa, fica mais difícil, porque é um
instrumento muito tenso. Ele tem a característica da sonoridade da música brasileira, quando fica muita
nota presa é perigoso , fica mais difícil de tirar aquele som, né?

Rafael dos Anjos: No repertório, sempre tem as tonalidades chatas, né? Tipo Mi bemol, que só tem o sol
solto no violão, La bemol, Si bemol. Eu prefiro estudar mais elas do que Re menor e Fá, que são mais
fáceis. Então, tem essas tonalidades que sempre são um problema para o violão. Até para tocar a
harmonia, para acompanhar... Porque é tudo preso, né, cara? Você não tem um acorde solto, faz muita
pestana, saca?

Outro aspecto relevante na performance é que o fato de tocar de acordo com as


gravações originais estabelece, para o gênero, um repertório universal. Isso permite que
músicos transitem facilmente por outros lugares, transpondo barreiras geográficas ou
idiomáticas. Laércio Pimentel valoriza essa característica do Choro:

Laércio Pimentel: Eu tive uma vez em Belo Horizonte, até no Maranhão, e o repertório nos dois se repete.
Então, isso é interessante. Você pode sair daqui e ir para BH, encontrar um pessoal que você nunca viu na

115
sua vida e tocar sem o menor problema, porque tem um repertório em comum. Mas tem as diferenças de
sotaque. Aqui em Brasília, você vai ouvir Choro de um jeito.

Observamos que um dos aspectos que mais impressiona a audiência “leiga” do


Choro – a facilidade com que músicos que não ensaiaram ou sequer não se conheciam –
consigam tocar juntos e sem grandes tropeços, decorre do simples fato de conhecerem
os mesmos repertórios e as mesmas gravações. Somente para citar um exemplo, a
gravação de Jacob do Bandolim para “Lamentos” de Pixinguinha, apresenta, na
introdução, um conjunto de convenções realizadas por todos os instrumentos; a grande
maioria dos chorões conhece o arranjo de Jacob e o reproduz. Assim, a execução desse
choro sempre passa a impressão de que houve ensaios prévios, sem, contudo, que isso
seja necessário.

Cabe ressaltar que o repertório guarda diferentes níveis de dificuldades técnicas,


por isso, em alguns casos, ele próprio torna-se um critério para medir a habilidade dos
solistas e dos instrumentistas do acompanhamento. Essas dificuldades incluem o
andamento, ornamentação, digitação, afinação, e as tonalidades. Nos relatos a seguir,
identificou-se como os músicos tratam a questão das dificuldades técnicas do repertório.

Rafael dos Anjos: Ah, tem uns choros que são legais para o violão. Tem uns choros que sempre exigem
do violonista, né? Claro que qualquer violonista vai gostar, tipo “Cuidado Violão”, “Sofres Porque
Queres”, enfim, as músicas que o Regional do Canhoto gravou. “Homenagem a Velha Guarda”, “Músicos
e Poetas”, do Sivuca, todas essas músicas que o Regional do Canhoto gravou. “Pitoresco” também. Essas
músicas exigem muito do violão, até porque o Regional tinha os dois maiores violonistas, né, bicho, da
época, que eram o Dino e o Meira, né? Que foram os dois caras que fizeram uma escola no violão bi-
regional do Brasil; o violão de 6 e o violão de 7 cordas. Então essas músicas são muito boas para o violão,
né? Eu gosto quando eu sou exigido, então sempre tocar essas músicas para mim é massa demais.

Laércio Pimentel: [o repertório] é difícil de tocar porque você trabalha com vários acordes, e sempre com
formatos diferentes. Porque você começa um choro, a primeira parte está em sol maior, geralmente no
meio da primeira parte, ele já tem uma modulação para outro campo harmônico, seja de ré, dó ou mi
menor, ou seja, já modulou na primeira parte, já estou tocando em dois tons. Vai para segunda parte que
já é em outra tonalidade, e provavelmente vai ter alguma modulação naquela segunda parte. Terceira
parte, a mesma coisa, outro centro, tons com possíveis modulações.

O repertório do Choro tem músicas acessíveis a instrumentistas com diferentes


níveis de habilidade. Os muito iniciantes costumam tocar aqueles mais simples.
Podemos citar Carinhoso, Doce de Coco, Flor Amorosa e Pedacinhos do Céu como os
primeiros choros de qualquer chorão. É interessante citar o choro Palhetinha, de

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Everaldo Pinheiro , utilizado na Escola de Choro Raphael Rabello para fins
pedagógicos; ele apresenta uma série de notas repetidas, e é de facílima execução.
Porém, nunca se ouve em Rodas ou apresentações. Os chorões de nível de habilidade
intermediário, entre o iniciante e o virtuose, não costumam tocar os choros muito fáceis,
embora sejam capazes de fazê-lo. Preferem executar os choros que para eles
representam desafios, e, para a audiência, ensejam admiração. Existe uma infinidade de
choros de nível intermediário de dificuldade. Esta também se amplia conforme aumenta
o andamento. Choros intermediários podem ser tocados em andamentos muito variados.
Há, também, aqueles choros que pedem execução rápida; quando um solista se propõe a
tocá-lo, de antemão sugere que é habilidoso. Dentre eles, podemos citar: 1x0, Descendo
a Serra, Segura Ele, de Pixinguinha e Benedito Lacerda; O Vôo da Mosca, Diabinho
Maluco, A Ginga do Mané, de Jacob do Bandolim; Espinha de Bacalhau, e Chorinho
em Aldeia, de Severino Araújo; Picadinho à Baiana, de Luperce Miranda; Desvairada,
de Garoto, dentre outros. Esses choros, considerados virtuosísticos, são para poucos.

Na contramão da escala de dificuldades que o Choro possui (que vai daqueles


mais fáceis, passando pelos intermediários e difíceis, e chegando aos impossíveis),
chorões consagrados, cujo virtuosismo é inegável e reconhecido, freqüentemente tocam
os choros considerados mais fáceis, buscando mostrar sua habilidade na capacidade de
fazer interpretações geniais e sofisticadas a partir de músicas simples. Desse modo,
surpreendem a audiência, que sempre espera demonstrações de virtuosismo e
sofisticação. Essa estratégia é tão eficaz que rendeu a Hamilton de Holanda o prêmio
Icatu-Hartford, em 2001, pela execução de Carinhoso de Pixinguinha, e a Yamandu
Costa, o prêmio Visa também em 2001, pela execução de Brejeiro, de Ernesto Nazareth.

Muito evidente no Choro é a ausência das partituras nos momentos da


performance. Principalmente nas Rodas, os choros são memorizados. Em relação à
leitura de partituras, podemos classificar os chorões candangos em três tipos: i) aqueles
que dominam a leitura e a teoria musical européia; são geralmente os mais jovens ou os
que tiveram algum tipo de aprendizado formal de música; ii) aqueles que conseguem
identificar as notas no pentagrama, porém sem fluência na leitura; iii) e aqueles que não
dominam a leitura e seus conhecimentos sobre a teoria musical européia são incipientes;
entretanto, possuem uma capacidade de percepção sonora e uma audição musical

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invejáveis; são, principalmente, os chorões mais antigos. Os chorões falam sobre o uso
de partituras no Choro:

Fernando César: (...) Só estudando a partitura não, porque o que está escrito não é o choro, é uma
referência. As notas podem até ser, mas a divisão que se escreve não é a que se toca, não. Nesse sistema
de notação, para você escrever todas as nuances de uma interpretação, fica muito difícil. Na verdade, eu
acho que a escrita musical é uma coisa para ficar documentada, e não tocada, né? Lógico, se você vai
fazer um arranjo, tudo bem.

Henrique Neto: [a partitura] ajuda muito para você visualizar, para você poder raciocinar melhor, né?
Você é muito intuitivo e, às vezes, não materializar aquilo que você está fazendo... Nesse sentido, eu
acho, de ter liberdade para escrever minhas composições também, de Choro. Mas, para tocar mesmo, não
[acho a leitura importante]. Acho que não precisa.

Fernando César e Henrique Neto são claros ao defender que o uso da partitura é
perfeitamente dispensável na interpretação. Apesar disso, concordam sobre sua utilidade
para registros de composições e elaboração de arranjos. Cabe ressaltar que ambos têm
uma audição musical treinada e bastante desenvolvida. Para os chorões, mesmo como
modo de registro dos choros, a partitura apresenta limitações. Eles não dispensam seu
uso, mas apontam a gravação como o registro mais importante de um choro. Leonardo
Benon fala sobre as limitações do sistema de notações musicais para registro do Choro:

Leonardo Benon: O Waldir lançou um caderno de partituras com todas as músicas dele. Está tudo escrito
errado. Algumas estão certas, outras estão em outro tom. Eu acho que o jeito que está escrito é para fins
didáticos. Igual eu faço com meus alunos: toca com a partitura em casa, mas daqui um mês eu não quero
essa partitura aqui. Porque eu pego a partitura e não está escrito como a gravação. Já é a interpretação de
quem escreveu. No Choro não funciona. É só uma referencia inicial, mas a maior referencia é a gravação.
Não tem jeito.

Para Leonardo Benon, embora a partitura sirva como referência inicial para a
prática da interpretação, só mesmo por meio das gravações o instrumentista pode
compreender todas as suas nuances. Se a partitura é insuficiente para representar a
complexidade de uma interpretação chorística, em alguns casos é de grande valia na
preparação dos músicos para a performance. Músicos experientes recorrem a elas para
aprender uma música nova, mesmo sem ter fluência na leitura. Eles falam sobre isso:

Márcio Marinho: Eu já tirei alguns choros de partitura, porque partitura também é importante, a gente
acha que não, mas é. Às vezes você não tem a gravação. Se você tem a partitura, e você já ouviu a
música, então fica mais fácil.

Rafael dos Anjos: Aprendi a ler cifra lá na escola. Peguei uns contrapontos de violão lá na Escola de
Choro, aprendi a ler partitura lá. Então, foi um lance importante. Não com tanta fluência para sair lendo
de primeira. Aprendi o básico da leitura.

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Paulão: O cara te dá uma partitura, mesmo se você não for especialista em ler partitura, se você tiver o
conhecimento básico, você vai conseguir tocar a música. Pega a música, ouve, tem a partitura, tem os
acordes, tem as notas, tem os tempos das notas.

Tonho do Pandeiro: [Uma música nova] quando o cara não consegue pegar... Porque, por exemplo, uma
pessoa vem com um choro diferente, ou uma composição própria, o cara quer fazer um tipo de batida ou
mudar o compasso no meio da música... Se o pandeirista ou o percussionista não lê ou não tem
conhecimento, ele pode até pegar, mas vai demorar um pouco mais do que aquele que lê. Porque ele lê
umas duas ou três vezes, e já está fazendo a melodia juntinho. Então, é muito importante.

Atualmente, com a difusão de partituras de Choro, elas se tornaram facilmente


acessíveis. São inúmeras as publicações com partituras de centenas de Choros. Também
há um grande número de partituras de choros na Internet. Chorões da velha-guarda, que
viveram a época dos choros tocados apenas de ouvido, reconhecem a necessidade de se
dominar a técnica da leitura. De fato, no julgamento da performance, pouco importa
para músicos e audiência se o choro foi tirado inteiramente de ouvido ou se o
instrumentista utilizou a partitura. O xis da questão está justamente na capacidade dele
de dar ao choro tocado a sua interpretação, ou seja, ser capaz de alterar o que está
prescrito na partitura ou mesmo o que ele tirou da gravação. Por isso, o ouvido bom é
ainda considerado fundamental nas performances do Choro, pois é por meio dele que o
chorão se liberta das prescrições e insere suas criações na interpretação. Assim, pode-se
afirmar que o uso de registros escritos no Choro continua sendo acessório e secundário,
embora cada vez mais esse recurso seja utilizado.

De fato, o Choro não é uma música para ser executada conforme a prescrição da
partitura. Seu valor e significado não residem no que o pentagrama revela, mas no que o
intérprete for capaz de extrair dele. É o intérprete que dá a forma, que molda, que
imprime sua marca pessoal. Os chorões construíram, ao longo da história do gênero,
uma rica e variada tradição de interpretação, vital para a difusão, renovação e
preservação do gênero. Desse modo, qualquer tentativa de atribuir ao intérprete apenas
o papel de mero executor será frustrada, pois, além de interferir nas obras por meio de
variações e improvisos, e a tradição cobra que ele assim o faça, é ele o guardião do
patrimônio e do acervo musical chorístico. Todavia, as variações e improvisos devem
respeitar as peculiaridades interpretativas de cada Choro, pois cada música possui o seu
próprio estilo. Rafael dos Anjos fala sobre isso:

Rafael dos Anjos: Se você vai tocar uma música mais lenta, sei lá, você vai brincar com o ritmo. Pode ser
que fique bom, mas pode ser que não fique tão legal, saca? Se você só brincar com o ritmo e meter uma

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escalinha ali, pode ser que não fique legal. Por exemplo, no caso de Vibrações, que é uma música super
dolente, eu acho que quando você vai construir um improviso ali, tem que estar por dentro de tudo o que
está acontecendo. Qual é o estilo da música? Ela te traz uma tristeza? Então você tem que improvisar
naquele lance, saca? Tem que criar uma imagem assim, e assimilar aquela imagem, e fazer um improviso
que complete o quadro, saca?

Essa peculiaridade de estilo pode ser observada nas próprias partituras. Logo
abaixo do título de cada música encontram-se termos, às vezes pitorescos, como Choro-
Serenata, Choro-Ligeiro, Choro-Triste, Choro-Puladinho, Samba-Choro, Choro-Canção,
Choro-Melódico, Chorinho-Batucada, etc. Esses termos podem indicar tanto o
andamento quanto o estilo a ser seguido pelo intérprete. Mas eles não carregam o
mesmo rigor da notação musical européia em relação aos batimentos por minuto que
deverá ter uma semínima ou uma colcheia. Ao contrário, são flexíveis, e permitem ao
músico escolher qual o andamento é mais adequado para determinada música, bem
como estabelecer o seu entendimento pessoal para o que seja choro-puladinho, choro-
melódico, choro-alegre, choro-brejeiro, etc. No Choro, a força que o intérprete inflige é
tão marcante que os próprios compositores, ao fazerem o registro de suas músicas em
partituras, assumem que nunca terão o controle das muitas interpretações que serão
feitas da sua obra, que estará sempre aberta a novas leituras e interpretações individuais.

Nicholas Cook (1998) defende que tanto a prescrição normativa da partitura


como a interpretação que se dá a ela fazem parte dos elementos que definem uma
determinada cultura musical. Para ele, esses elementos refletem não apenas o modo
como a música é transmitida, mas como o significado dessa música vai sendo
construído coletivamente dentro de uma cultura. Esse modo de pensar pode ser
transferido para o universo do Choro. Aparentemente, são as partituras que criam o
cânone do repertório. Todavia, podemos afirmar que clássicos como Lamentos
(Pixinguinha), Brejeiro (Ernesto Nazareth) e Doce de Côco (Jacob do bandolim) entre
tantas outras, tiveram suas histórias consolidadas a partir das versões e interpretações
que os músicos deram a elas. Para esses choros, cujas partituras podem ser obtidas a
partir de um clique no Google, as performances nunca refletem o que está escrito.
Ouvindo músicos de Brasília tocando Lamentos, por exemplo, podemos identificar
trechos extraídos de gravações de Jacob do Bandolim, de Altamiro Carrilho e de outros
intérpretes consagrados, além de alterações feitas pelos próprios músicos da cidade. Isso
acontece para uma série de outros choros. Assim, a performance individual, no Choro,

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apóia-se em uma série de artefatos: as partituras, as gravações, a técnica do
instrumentista e sua criatividade para alterar as prescrições e improvisar. O modo como
estas alterações e improvisos são realizados é que possibilita ao intérprete construir o
seu vocabulário musical e o seu estilo próprio de tocar. De fato, criar uma identidade
própria, além de diferenciá-lo dos demais, pode assegurar-lhe o reconhecimento do
público e o respeito entre os músicos. Isso não é alcançado com facilidade, pois, exige
muita prática e intimidade com o gênero. Os relatos a seguir demonstram que o critério
de identidade interpretativa é bastante valorizado entre os chorões:

Márcio Marinho: As influências nunca ficam de lado, porque elas sempre ficam na sua cabeça. Porque,
enquanto você está tocando, as influências estão rolando aqui na cabeça. Não é deixar as influências de
lado, é questão de você dar a sua cara. Do instrumento, quando falar, neguinho sacar: foi fulano que
tocou. Quem está tocando aí? É o Nêgas! Quem está tocando aí é o Frango, quem está tocando aí é o
Tarzan, quem está tocando aí é a Gabi, já sei porque que é. Porque ela fez isso, fez aquilo, entendeu?
Porque que eu sei que é o Frango? Ah é porque o Frango... o Henrique Cazes falou que eu tenho o furor
do cavaquinho. Então, é neguinho ouvir e saber que sou eu, sacou? Eu acho que isso é criar uma
identidade. [O Rafael dos Anjos] demorou para sacar isso. Depois que a gente montou o trabalho desse
quarteto, ele parou com esse negócio de querer copiar os outros, e criar um estilo próprio, né? Porque toda
vez que ele tocava - eu já fiz isso também -, hoje eu vou tocar que nem o Lula Galvão, hoje eu vou tocar
que nem o Guinga. E não tocava do jeito que ele queria. Está entendo o que eu estou falando? Não dava a
cara dele. Pô, eu sou o Nêgas. Tenho que fazer isso aqui, eu quero fazer isso aqui e vou fazer isso aqui.
Eu sou o Márcio, eu quero tocar essa nota aqui...

Dudu 7 Cordas: Tudo é baseado em influência, aí você cria sua identidade. Porque não tem como... vou
tocar igual ao Raphael Rabello. Você estuda horas e horas, você não vai tocar igual ao Raphael Rabello.
Você tem que criar sua identidade, senão você fica apagado. Toca bem, mas e aí? Não tem nada
marcante. Toni, do Época de Ouro, e daí? Já ouviu falar? Toca igual ao Dino, mas e aí? O que é
identidade? É a Gabi estar tocando e eu estou sabendo que é ela sem olhar. Ou, então, estou chegando na
Roda, o fulano está tocando e eu estou passando do lado da Roda e sei que é o fulano. Isso é a identidade
da parada.

Henrique Neto: Essa é a parada mais difícil, que eu acho da música, é você descobrir a sua... Agora eu
estou formando a minha identidade musical, depois de ter estudado várias vertentes. Acho que agora...
Acho que a minha batalha é essa, o meu objetivo é esse. (...) Eu sei disso, na minha identidade musical
vai ter esse lance de improvisação, e a pegada um pouco mais forte.

Como foi mencionado no início do capítulo, embora sejam os compositores


figuras cruciais para o Choro, pois são responsáveis pela criação das obras que
compõem o repertório, não é menor a importância dos intérpretes e das interpretações.
O processo de criação, no Choro, não se dá somente no momento da composição da
música, pois cada interpretação é capaz de recriá-la. Os intérpretes, mesmo não sendo
compositores, são responsáveis também pela criação nesse gênero. Por exemplo, são
célebres as interpretações de Jacob do Bandolim para Lamentos e Ingênuo, de

121
Pixinguinha, Brejeiro, de Ernesto Nazareth, a que Jacob, inclusive, acrescentou uma
terceira parte. Por vezes, uma interpretação é tão genial que sobrepuja a versão original
do choro, passando a ser mais conhecida e reproduzida. Por isso, o Choro pode ser
considerado um gênero essencialmente interpretativo. A liberdade e as infinitas
possibilidades de interpretação dos choros permitem que o intérprete deixe uma marca
pessoal nas performances, mesmo não sendo compositor. Essa capacidade de ter um
estilo pessoal marcado é grandemente valorizada pelos chorões. Possuir uma identidade
musical evidencia maturidade e experiência. A liberdade interpretativa possibilita,
também, que choros antigos sejam tocados com elementos contemporâneos, de forma
que a liberdade de interpretação é fundamental para que a tradição se mantenha viva e
atual.

Dado que o Choro é um gênero interpretativo, e considerando as limitações da


partitura para encerrar em si toda a complexidade e as infinitas possibilidades
interpretativas de uma música, é o desenvolvimento do ouvido o fator determinante para
que se consiga compreender e executar os choros. A competência em ouvir, identificar e
executar acordes e melodias, no jargão do Choro conhecida como tocar de ouvido,
depende de muito treino. As palavras de Augusto Contreiras, veterano chorão de
Brasília, evidenciam a valorização da capacidade de tocar de ouvido:

Augusto Contreiras: Porque a raiz do Choro é o cara que tem o ouvido bom, o cara que consegue tocar
várias músicas. Porque ele já sabe para onde vai a harmonia, ou seja, ele tem uma noção para onde vai a
harmonia. Então, eu acho que o bom chorão é aquele que tem um ouvido bom. Esse negócio de: está aqui
a cifrazinha, coisa e tal, não existia não.

A fala dos chorões, independentemente da idade, permite perceber que a


capacidade de tocar de ouvido é muito considerada, mesmo atualmente sendo fácil o
acesso a partituras e cifras. O valor concedido a essa capacidade tem uma razão
histórica. Até pouco tempo atrás, não era simples adquirir partituras ou cifras de choros.
As edições de livros de partituras são recentes. Então, aos chorões da velha guarda
estavam disponíveis as gravações, por meio das quais conseguiam tirar os choros. Há
relatos de músicos que dependiam do rádio para tirar algumas músicas. O próprio Jacob
do Bandolim treinava a memória musical e o ouvido tirando choros de Luperce Miranda
que ele ouvia no rádio. Desse modo, era vital para o chorão que ele fosse capaz de tirar
músicas de ouvido com facilidade. Não é à toa, portanto, que tal capacidade se tornasse

122
tão valorizada, a ponto de converter-se em motivo de orgulho para os músicos, como
mostram os relatos de Augusto Contreiras e Reco do Bandolim:

Augusto Contreiras: Agora, claro com o passar dos anos, essa coisa de tocar de ouvido ficou superada. Os
chorões começaram a sofrer influência dos músicos clássicos. Eles tiveram que aprender teoria musical,
harmonia,e isso levou a um aperfeiçoamento espetacular. Esse negócio de cifra não existia não, a coisa
funcionava assim: vinha esse pessoal do Rio tocar aqui, e às vezes eles tinham o hábito de querer testar os
músicos daqui. Diziam assim: vem cá, você consegue acompanhar um choro chamado “Cuidado Violão”?
Não sei! Não sabe? Então, você não serve. Esse negócio de está aqui a cifrazinha, coisa e tal não tinha
isso não. Ou você sabia ou não sabia. Você tinha que ouvir. Hoje em dia, não. Com o avanço, repito, os
músicos de Choro foram obrigados a estudar. Isso foi muito bom, porque o tal do clássico puxou esse
pessoal do Choro. Eu acho que ouve um intercâmbio aí. Em compensação, o pessoal do clássico, que não
consegue aquela interpretação, aquela coisa do improviso, eles perguntam para o pessoal do Choro: vem
cá, como é que vocês fazem isso? Porque o pessoal do clássico só é aquela partiturazinha ali, coisa e tal.
Só faz aquilo ali. Então, eu acho que esse intercâmbio foi muito bom.

Reco do Bandolim: Era um conceito bem diferente, muito diferente. Quer dizer, é a coisa improvisada. O
orgulho que o sujeito tinha de tocar de ouvido. Não sei ler nada, eu toco de ouvido. Isso era dito de
boca cheia. Que negócio de partitura o quê? Música pronta - preconceito total - é o talento, a inspiração, a
mão de Deus na sua cabeça. Por isso você toca aquele negócio. Eu me relacionei com todo mundo assim,
e hoje, essa coisa do estudo, eu acho uma benção. Você poder ter essa Escola de Choro, e você poder
sistematizar isso.

Reco denuncia a existência de preconceito contra músicos que não possuíssem


ouvido bom. Ele afirma ser falsa a idéia de que o bom músico tem talento inato, citando
ironicamente a expressão “a mão de Deus na sua cabeça”. A partir de seu relato, pode-
se extrair que os chorões antigos, que, de algum modo, treinavam o ouvido e a
habilidade de ouvir, decorar e tocar, referiam-se a essas habilidades como uma dádiva
divina. Esse argumento excluía de antemão aqueles que não possuíssem o ouvido bom.
O relato de Reco, assim como observações em campo, e a própria convivência no
ambiente dos chorões, evidenciam que, contemporaneamente, embora tocar de ouvido
seja indispensável para o bom desempenho no Choro, a maioria dos instrumentistas
admite que o ouvido aguçado se obtém com treino, e que são necessárias horas e horas
de estudo para aperfeiçoar essa habilidade. De fato, a idéia do talento inato, do
indivíduo que não escolheu a música, mas foi escolhido por ela, vem perdendo força no
ambiente do Choro, à medida em que ferramentas e tecnologias de estudo e
aperfeiçoamento são desenvolvidas e difundidas. Portanto, a ampliação dos acervos de
partituras, as maiores facilidades em acessá-las, entre outros fatores, não só tornam mais
rápido e fácil o aprendizado do gênero, como também menos excludente. Mas o ouvido
bom é ainda um importante critério para julgar a musicalidade do chorão. Quando
alguém é considerado musical, espera-se dele melhor desempenho; se um músico

123
iniciante possui os atributos da musicalidade, ele passa a ser um grande instrumentista
em potencial; a ele faltariam apenas técnica e experiência, que vêm com o tempo. Do
outro lado, daquele considerado amusical espera-se a realização de esforços inúteis, e a
eterna incapacidade de tocar bem. No Choro, conforme já dito, o conceito de
musicalidade está umbilicalmente ligado ao ouvido bom. Mas Reco denuncia a mentira
inerente à idéia de uma musicalidade excludente, que seria privilégio de alguns
escolhidos por Deus ou pelo acaso. Para ele, e para muitos chorões, as habilidades
advêm do treino e do estudo, inclusive o bom ouvido. Portanto, aquilo que, no Choro, se
considera musicalidade não é de nascença, mas se adquire por treinamento. Todavia, é
preciso ressaltar que é comum, entre os chorões, o julgamento da musicalidade alheia, e
a completa desqualificação daqueles considerados amusicais. Esses assuntos, porém,
não são tratados abertamente ou em público, pois evidentemente carregam preconceitos.
Apesar disso, nota-se, em Brasília, algum movimento de abertura do Choro a todos,
com a desmitificação da idéia dos escolhidos por Deus.

Nesse sentido, Patrícia Pederiva (2009) defende que a musicalidade é inerente ao


ser humano, mas como potencial universal, que pode ou não ser desenvolvido. Para ela,
o potencial para a música nos é dado a todos os seres humanos, de nascença, assim
como o potencial para a fala:

Essa base biológica da atividade de caráter musical


permite afirmar a universalidade da musicalidade. Isto é,
se depender das nossas possibilidades como animais
humanos, todos somos capazes de nos expressar
musicalmente, de expressar nossas emoções por meio de
sons, do mesmo modo como, de modo geral, se depender
da anatomia e da fisiologia humana, todos somos capazes
de nos expressar por meio da linguagem falada. Isso é
dado ao ser humano, independentemente das formas que
possa assumir. A musicalidade possui, assim, caráter
universal. Não se trata de um dom para alguns. É um
dom para todos. (Pederiva, 2009, p. 38)

Patrícia Pederiva (2009) discorre sobre a invenção da amusicalidade, ou seja,


sobre a exclusão de algumas pessoas, consideradas amusicais, da música, no âmbito da
música erudita ocidental. Segundo ela, alguns fatores contribuíram para a apropriação
da expressão musical por uma classe de indivíduos, com a conseqüente exclusão de
todos os demais da atividade musical. Foram eles o aperfeiçoamento da escrita musical,
juntamente com a idéia de que a música deve ser tocada exatamente como foi composta,
o surgimento do conceito de obra musical, que enseja laboriosa preparação, e a

124
emergência da figura do intérprete solista, o portador da mensagem do compositor.
Esses três fatores surgiram na música ocidental entre os séculos XVI e XIX, e, segundo
Pederiva (2009), forçaram a criação de uma elite musical, separada dos demais seres
inaptos para a música. Esses, contudo, não eliminaram as práticas musicais baseadas
sobretudo na transmissão oral. Pederiva (2009) aponta para uma das causas da atual
separação entre erudito e popular, que, para ela, é um abismo difícil de ser transposto.

No caso do Choro, conforme mostram os relatos e a experiência em seu


ambiente, dificilmente a escrita poderá adquirir o mesmo papel desempenhado na
música erudita, uma vez que a tradição do gênero concede importância à interpretação
pessoal do músico, à sua capacidade inventiva e à improvisação. Desse modo, o
conhecimento formal de música não tende a ser um fator de exclusão de pessoas. Mas,
do mesmo modo como acontece na música erudita, a ênfase no virtuosismo, juntamente
com o julgamento da musicalidade, podem gerar a exclusão dos amusicais e dos
medíocres que não atingem os níveis técnicos do virtuosismo. Patrícia Pederiva (2009)
discorre sobre as conseqüências da ênfase no virtuosismo observada na música erudita a
partir do século XIX. A análise que ela realiza para esse fenômeno da música erudita
serve de alerta para o Choro:

Assim, pela apropriação oficializada da expressão


musical na figura do intérprete solista, a música culta, ou
seja, aquela disseminada pela ideologia dominante,
distancia-se cada vez mais de sua função como atividade
expressiva de uma coletividade e, sendo afastada, desse
modo, de todos e de cada um, torna-se cada vez mais
domínio reservado a poucos. A interpretação, por sua
vez, condiciona-se progressivamente à norma do
virtuosismo, de modo que a técnica da arte musical, de
meio auxiliar para aprimoramento da função expressiva
da música, torna-se ela própria o objetivo primeiro e
maior da atividade, solapando do homem as suas
possibilidades criadoras, deixando de servi-lo e
escravizando-o. Institucionalmente, esse é o modelo
adotado na formação de um intérprete musical, já que se
buscam formar virtuoses, talentosos. Saímos, assim, do
campo da educação para penetrar no cárcere do
adestramento de habilidades malabarísticas feitas com o
corpo para servir ao instrumento.

A possibilidade de o virtuosismo tornar-se o objetivo primeiro e maior do Choro


é um risco sempre iminente, dado o importante papel que esse elemento desempenha no
gênero. O virtuosismo, ou a habilidade técnica é, conforme os discursos revelam, um

125
importante critério de desempenho no Choro. O próprio repertório tem diferentes níveis
de dificuldade, sendo que, em alguns casos, poucos são os instrumentistas capazes de
tocar certas músicas. As demonstrações de virtuosismo arrancam aplausos em qualquer
contexto, desde Rodas em quintais até apresentações em teatros municipais. Há, porém,
outro critério de desempenho que minimiza a ênfase no virtuosismo. O contraponto do
virtuosismo, doravante denominado expressividade, cria, com ele, uma polaridade
característica do gênero. Os discursos dos chorões contêm constantes alusões aos
perigos do exagero no virtuosismo:

Augusto Contreiras: Agora, transformar o instrumento numa metralhadora musical, como esses
violonistas mais novos aí, eu acho que isso já é um exagero. Porque eu vejo o 7 cordas como um
instrumento de acompanhamento. Um instrumento para preencher os espaços vazios, quando a melodia
pára. Então, você não pode competir com o solista.

Laércio Pimentel: Por incrível que pareça, eu valorizo a simplicidade, fazer os baixos na hora certa.
Porque é um caminho natural, principalmente. Quando você está estudando, você quer tocar um monte de
nota, né? Mas nem sempre a música está pedindo isso. Às vezes, você coloca os baixos na hora certa, e já
dá o clima. Virtuosismo e expressividade, as duas coisas. Tem que medir as coisas, porque aquela história
do virtuosismo gratuito, ele cansa, na verdade. O Hamilton [de Holanda] falou uma vez: você tem que
usar o virtuosismo como uma ferramenta, e não como um meio; e procurar trabalhar para musica, e não
só a técnica pela técnica.

Henrique Neto: Eu não desvinculo uma coisa da outra. Sse não tiver uma das coisas perde um pouco. Eu
não acredito que uma pessoa que só tenha a capacidade de se expressar... Assim, sem técnica, fica uma
coisa boba, fica faltando alguma coisa. E o contrário também. Se você só tiver a técnica, acaba limitando
o seu horizonte também.

Rafael dos Anjos: Eu não me considero um virtuose, mas eu estudo para isso. Virtuosismo é um lado que
eu gosto, porque qualquer violonista que ouve o Raphael Rabello quer tocar igual, saca? Então, é um
lance que eu estudo, acho importante também, porque chama a atenção. O cara olha quando você está
tocando um lance rápido, o cara fica atento, o cara aplaude, então ... Agora, eu acho que o sentimento é
para poucos, saca? Até porque muita gente não entende isso, saca? Muita gente não tem ouvido para isso.
É difícil você tocar uma música lenta, e todo mundo ouvir e apreciar aquela música, apreciar sua
interpretação. Você vê nas próprias Rodas de Choro, a receptividade do público é bem diferente . Eu acho
que se você conseguir dosar isso bem, você vira um Hamilton de Holanda.

Os chorões são categóricos ao afirmarem que nem o virtuosismo e nem a


expressividade devem ser tratados isoladamente. Pelo contrário, um depende do outro.
As palavras simples do violonista Rafael dos Anjos - Se você conseguir dosar isso bem,
você vira um Hamilton de Holanda - revelam o pensamento de grande parte dos
músicos da nova geração de Brasília. Para eles, Hamilton de Holanda sintetiza este
perfeito equilíbrio, ele é a grande referência e o símbolo da excelência musical. Na
concepção dos chorões candangos, Hamilton resolve a tensão entre virtuosismo e
expressividade por meio de um delicado equilíbrio entre ambos. Alcançar esse

126
equilíbrio significa ter elevada maturidade musical, conforme nos revela a opinião de
Augusto Contreiras sobre Hamilton de Holanda:

Augusto Contreiras: O Hamilton de Holanda, na minha concepção, na minha concepção, já superou quase
todas as barreiras. Então, é um músico que tem uma capacidade de improvisação enorme, que tem uma
criatividade enorme. É uma referência para muitos bandolinistas de hoje.

O equilíbrio entre virtuosismo e expressividade presente na música de Hamilton de


Holanda requer profundos conhecimentos musicais, elevada habilidade técnica e
apurado senso estético, não sendo, portanto, facilmente alcançado. A expressividade,
por ser um critério altamente subjetivo, nem sempre é percebida, nem sempre evidencia
com clareza as habilidades do músico. O virtuosismo, de outro lado, por ser um critério
objetivo e, por vezes, até quantitativo (pois pode ser medido pela quantidade de notas
que um músico é capaz de produzir por segundo), mostra escancaradamente a
competência. Por isso, instrumentistas inexperientes, na ânsia de adquirirem
reconhecimento, confundem tocar bem com a capacidade de executar músicas difíceis e
rápidas. Fernando César, irmão de Hamilton, percebe isso e não poupa críticas:

Fernando César: O cara pega, tira o último disco do Hamilton, toca male, male, toca qualquer coisa, em
vez de tirar dez músicas fáceis, tira uma difícil e não consegue tocar direito. Perde muito tempo. Como é
que o cara vai adquirir sonoridade e pegada tocando uma coisa muito difícil? Não vai rolar, não acontece.
Então, vai sempre ficar o Joazinho Xôxo, né?

Dosar expressividade e habilidade significa aliar técnica e criatividade; significa que a


habilidade no instrumento, sozinha, não é capaz de gerar um desempenho satisfatório;
tampouco, a criatividade sem domínio técnico pode fazê-lo. César aponta para a falta de
senso do músico iniciante que se propõe a executar um choro para o qual não possui
ainda habilidade suficiente, resultando em uma performance ruim. De fato, a
expressividade e a habilidade são como duas faces de uma mesma moeda. A
expressividade somente é possível quando apoiada sobre o domínio técnico do
instrumento; de outra mão, o domínio técnico, por si só, não produz uma interpretação
com expressividade. O Choro, como nos dizem os chorões, pede e incentiva o exercício
da criatividade, que não se pode conseguir sem as duras horas de estudos técnicos. No
Choro, a possibilidade de alçar vôos criativos deve estar apoiada na segurança terrena
do domínio técnico do instrumento; é, portanto, uma “Música das Nuvens e do Chão2”.

2
Música das Nuvens e do Chão é música de Hermeto Paschoal, que dá título ao CD de Hamilton de
Holanda, lançado pela Velas em 2004.

127
Hamilton de Holanda fala sobre a relação entre técnica e expressividade em seu blog.
Segundo ele:

Dentro dessa busca constante pela excelência, beleza,


música de arte, música de coração, me deparo com essa
sinceridade da música comigo. Sempre quando toco,
quero a profundidade, mas também a coisa
despretensiosa, só pela diversão, com humor, como
contar um piada. Pois é. Hoje estava aqui tocando e me
toquei pra uma coisa: quando a gente estuda, pratica
sozinho, já tem que ser definitivo. Como assim? Se eu
estiver praticando uma música, ou mesmo um exercício,
já imagino que tem um monte de gente me vendo, como se
já fosse o show; ou então como se eu estivesse em um
estúdio gravando. É muito saudável acostumar a cabeça
e os dedos a estarem nessa sensação de ‘fazer música’.
Dá uma segurança na hora que precisa. (...) Uma boa
maneira de praticar é gravar os estudos. Quando tinha
meus 15 anos, me lembro de estudar o ‘Chorinho para
Ele’, do Hermeto, dessa maneira. Eu gravava várias
vezes até chegar ao ponto onde sentia a intimidade com
os acertos, e a partir daí a música virava de coração.”
(Holanda, 2009, 7 de julho)

Hamilton aponta a necessidade de tomar conhecimento íntimo de cada música


como condição para a expressividade. O modo como essa tomada de conhecimento se
dá é a repetição infindável da música, até que se obtenha pleno domínio técnico dela. A
partir daí, o músico então é capaz de fazer uma interpretação com beleza e emoção.

A habilidade técnica é a primeira condição para a boa execução de um choro – é


a condição material, terrena, que exige estudo e dedicação. A expressividade, por outro
lado, é o exercício livre da criatividade, é a capacidade de transmitir sensações por meio
da música; é a condição espiritual e etérea da boa execução do choro. É a
expressividade o elemento responsável pela conversão de uma simples execução de um
choro em obra de arte. Com efeito, Leon Tolstói (1994, p. 51) define a arte como sendo
uma atividade humana em que um homem, conscientemente, através de certos signos
exteriores, comunica a outras pessoas sentimentos que ele vivenciou, de modo a
contaminá-las, e fazê-las vivenciar os mesmos sentimentos. Tolstói (1954) afirma que a
obra de arte é capaz de suscitar, em seu apreciador, a emoção estética, ou seja,
sensações e sentimentos relativos a situações que não necessariamente foram por ele
vividos. Para ele, no caso da música:

Existe arte quando uma pessoa sente ou imagina


experimentar sentimentos de alegria, de tristeza, de
desespero, de coragem, de acabrunhamento, bem como

128
as transições entre um e outro desses sentimentos,
expressando tudo isso em sons que dão aos outros
condições de experimentar, também eles, iguais emoções
(Tolstói, 1994, p. 51).

O notável cavaquinista Márcio Marinho mais uma vez surpreende ao formular,


com suas palavras, conceito de arte semelhante ao proposto por Leon Tolstói:

Márcio Marinho: Eu acho que música é muito coisa do momento. Se você está feliz, se você está triste...
Se eu conseguir transmitir isso para o público, já fiz a minha parte. Eu acho que o artista tem que tocar do
fundo do coração dele, passar para o instrumento o que ele está sentindo naquele momento. Às vezes, o
cara toca uma nota e diz tudo; e, às vezes, o cara toca vinte mil notas e não diz nada.

Não cabe aqui discutir as diversas concepções de arte encontradas na literatura;


somente se deseja mostrar que a concepção de arte apresentada por Leon Tolstói auxilia
o entendimento da importância desse critério altamente subjetivo na performance dos
chorões, denominado expressividade. Tolstói atribui à arte um caráter de comunicação,
pois ela funciona como ponte de transmissão de sentimentos e sensações. A música, tal
como entendida pelos chorões, tem essa capacidade de funcionar como linguagem.
Aquilo que se busca transmitir aos ouvintes por meio dessa linguagem instrumental é a
emoção estética de que nos fala Tolstói. Quando os chorões mencionam o termo
expressividade, estão se referindo à capacidade de o músico dominar a linguagem a
ponto de ser capaz de transmitir emoções. De fato, os seguintes relatos nos mostram que
emocionar os outros é busca constante na prática musical:

Márcio Marinho: Eu já cheguei a pensar que tocar bem era tocar rápido, há um tempo. Mas... e limpo, né?
É lógico que tocar bem é tocar limpo, e da melhor maneira que você pode executar uma música. Só que
não é só isso: tem que emocionar.

Henrique Neto: O que me encanta no violonista, o que me chama atenção, é alguma coisa além da
técnica. É realmente ele e o violão virarem uma coisa só. É ele conseguir transmitir toda a emoção.

Rogerinho do Pandeiro: Porque muitas músicas são lentas e a execução delas é bonita se for lenta. Foi
feita para emocionar mesmo.

Dudu Maia: Quanto melhor você toca, você pode potencializar esse poder, de você expressar isso tudo na
plenitude, de emocionar. Mas não se afirmar, enquanto o ego da parada: olha como eu toco para
caramba... Não é isso. Tem muita gente assim, que toca muito, mas não toca meia dúzia de pessoas.

A subjetividade da expressividade não a torna um critério menos importante, e


isso se evidencia nas falas dos chorões. Mesmo com dificuldades em encontrar
conceitos precisos que definam o que é, para eles, expressividade, não cansam de
mencioná-la. E explicam, usando diversas comparações e diferentes construções

129
conceituais, o que entendem por expressividade e qual é o seu papel na música. Da
dificuldade, então, enfrentada para conceituar algo difícil de ser posto em palavras,
surgiram ricas e belas construções, como quando Henrique diz que violonista e violão
viram uma coisa só, e Dudu Maia critica os virtuoses sem alma, que tocam muito, mas
não tocam meia-dúzia de pessoas.

As falas dos chorões candangos sobre sua prática musical mostram que existe
um sistema consolidado de conhecimentos sobre o Choro, sobre formas de tocar, sobre
instrumentos, e sobre diversos outros parâmetros musicais. Tais parâmetros são
utilizados tanto no julgamento do desempenho quanto nos processos de aprendizagem e
desenvolvimento dos músicos. Eles refletem a ordem sonora que organiza as
performances coletivas do gênero. Segundo Quresh (1987), tradições musicais cujos
praticantes verbalizam e conceitualizam parâmetros musicais possuem uma teoria
musical própria, mesmo quando os conhecimentos não estão sistematizados ou escritos.
Para ela, uma teoria musical pode ancorar-se na transmissão oral. Estudos dessas
tradições, portanto, devem ser feitos à luz de suas teorias musicais. De fato, é vasto o
conhecimento teórico e conceitual no universo do Choro. Quresh (1987) afirma que,
para o caso da música indiana, existe um edifício teorético que cobre as dimensões da
melodia, do ritmo e da forma; como a música indiana tem por característica a primazia
das linhas melódicas, a teoria musical indiana tem foco na análise das tonalidades.

No Choro, embora a linha melódica seja uma referência primordial, pois ela
guarda o tema da música, outros parâmetros musicais parecem ter a mesma importância
da melodia. O ritmo, no Choro, não é exclusivo dos instrumentos percussivos; são
muitas as referências ao balanço e ao espírito malandro, que se apóiam no domínio do
ritmo. Quanto à harmonia, existe um sistema complexo de conhecimentos sobre os
caminhos harmônicos possíveis para várias tonalidades; do mesmo modo, existem
técnicas e treinamentos específicos para que tais caminhos possam ser identificados no
momento da performance, permitindo que violonistas e cavaquinistas acompanhem
músicas que nunca ouviram antes. Há, também, um conjunto de conhecimentos sobre as
baixarias do violão de 7 cordas. A teoria musical do Choro, portanto, tem focos
múltiplos, sendo complexa. Os relatos mostram que os instrumentistas conhecem
melhor as partes da teoria que mais dizem respeito ao instrumento que tocam. Em
palavras simples, pandeiristas sabem de ritmos, solistas conhecem linhas melódicas,

130
possibilidades de variação e harmonia; violonistas são profundo conhecedores da
harmonia; cavaquinistas, por sua vez, conhecem ritmo e harmonia. Embora
especializados em suas áreas, os chorões não deixam de conhecer ao menos um pouco
da teoria relativa aos demais instrumentos. A capacidade de tocar Choro depende muito
do acesso a esses conhecimentos teóricos que, embora não estejam sistematizados em
registros escritos, existem como sistema musical. O julgamento da performance também
se faz apoiado em tais conhecimentos.

Os chorões usam, também, critérios não-exclusivos do Choro para o julgamento


do desempenho, tais como sonoridade, limpeza do som, domínio da técnica e do
instrumento. Mas nunca dissociam completamente esses critérios daqueles intrínsecos
ao gênero. Nesse capítulo, discorreu-se longamente sobre o equilíbrio entre virtuosismo
e expressividade, e sobre criação de identidade musical como critérios de performance
importantes para o Choro. Estes, contudo, não estão separados de dois outros critérios
de desempenho muito típicos do Choro, que podem ser considerados elementos-chave
para a compreensão do espírito que anima o gênero. Pelas suas peculiaridades, serão
tratados em capítulos à parte. São eles: a improvisação e a malandragem.

131
C3. Salve-se Quem Souber

Talvez por se tratar de uma linguagem complexa que sofre influências


importantes de outras músicas, nacionais e estrangeiras, e onde é comum a presença de
instrumentistas de diferentes formações musicais, exista dificuldade na definição precisa
do estilo de improvisação próprio do Choro, e que, portanto, requer um estudo
aprofundado sobre o assunto. A seguir, serão analisados relatos de músicos acerca do
improviso no Choro, com o objetivo de identificar os tipos de improviso mais
utilizados, as maneiras como são realizados, bem como sua forma de aprendizagem e
estudo no gênero.

Observamos que a improvisação no Choro segue algumas convenções


norteadoras para a sua realização. Essas convenções não são, contudo, um conjunto de
regras fixas, pois podem variar conforme o repertório, a ocasião, o nível técnico dos
músicos, entre outros. Cabe ressaltar que a improvisação não é necessária no gênero,
mas costuma estar sempre presente. Podemos observar que a improvisação no Choro é o
momento em que o instrumentista utiliza todo o seu arsenal técnico para se expressar. É
no momento da improvisação que o chorão exerce a plenitude da sua liberdade criadora
para construir e desconstruir frases melódicas.

O improviso é também presente em outras manifestações culturais afro-


brasileiras. Lopes (2005) discorre sobre o partido-alto, modalidade de samba em que
está presente a improvisação repentina, cantada em feitio de contenda, numa espécie de
duelo verbal (Lopes, 2005, p. 18). Ele afirma que a circunstância em que o partido-alto
se realiza e completa, sempre de forma bem-humorada e brincalhona, como num jogo
de domingo, é a Roda de Samba; afirma também que o partido-alto é, sobretudo, o
samba da elite dos sambistas (Lopes, 2005, p. 27), indicando que a capacidade de
improvisar é aspecto muito valorizado no samba, gênero musical próximo ao Choro.
Esses fatos mostram que existem convergências importantes entre os diversos jogos,
danças e músicas de roda de origem afrobrasileira. O conhecimento de outros folguedos
brasileiros pode, portanto, auxiliar o entendimento do Choro, assunto sobre o qual
existem poucos estudos acadêmicos.

132
Do mesmo modo, não existem trabalhos aprofundados sobre o improviso em
gêneros musicais brasileiros. Por isso, a definição de improviso a ser utilizada neste
trabalho terá como referência o THE NEW GROVE DICTIONARY OF JAZZ
(Kernfeld,2006). Esse autor define improviso como a criação espontânea da música ao
mesmo tempo em que é tocada. Ela pode envolver a composição imediata de toda a obra
pelos músicos, ou apenas a alteração/variação de estruturas pré-existentes, ou qualquer
coisa entre esses dois extremos. No jazz, assim como no Choro, não somente o solista,
mas todos os músicos em um grupo podem improvisar. As baixarias (condução da linha
do baixo realizada pelo violão de 7 cordas) por exemplo, são, em sua maioria,
improvisadas; do mesmo modo, o pandeiro e o cavaquinho podem criar variações
ritmicas ao longo da performance, que, de acordo com a definição de Kernfeld (2006),
podem ser consideradas improvisos. Os relatos dos chorões demonstram que eles
denominam improvisos as variações e alterações realizadas por todos os instrumentos
numa performance:

Dudu Maia: o Choro tem isso. O cara toca o tema, o outro vai lá e repete a mesma coisa. É justamente
para isso... Mostra para o outro assim: olha o que eu estou fazendo com essa melodia, mas tem que fazer
de uma forma inteligente. (...) O que me atrai é a brincadeira, você pegar um tema e brincar, dá uma volta
com ele.

Laércio Pimentel: a questão do improviso é uma questão de você se divertir também, de tocar algo fora do
que foi escrito, de você ficar tocando sempre os mesmos baixos, e correr o risco de errar uma baixaria no
meio e não saber pra onde ir, entendeu? Então a improvisação te dá liberdade porque existe a
possibilidade de errar. Deu uma nota fora, corrige e continua o caminho.

Leonardo Benon: Tem que ter aquele negócio do improviso, às vezes o cara do pandeiro faz uma virada
(...); o cara faz uma outra batida, eu vou mudar a minha palhetada junto com ele.

Tonho do Pandeiro: quando ele vem tocando reto e, quando ninguém espera, pensa que ele vai entrar com
a melodia, ele entra com o improviso...

Rafael dos Anjos: você tem que conseguir casar sua levada com a do pandeiro e a do cavaquinho e a do 7
cordas. A função do violão de 6 é dar suporte para o solista. É difícil fazer a levada, fazer as firulas. Nem
sempre as firulinhas que você vai fazer... Os contrapontos saíram na hora errada, tem uns que batem com
a melodia; às vezes saem fora do tempo.

Henrique: Tem que ter muito conhecimento do instrumento, do braço, porque é um trabalho de
improvisação o tempo todo. Improvisações curtas, aí te exige conhecimento de todas as inversões do
instrumento, de várias possibilidades, de uma linguagem... É complexa a linguagem do 7 cordas.

Os músicos fazem referência ao improviso sobre a melodia, sobre o ritmo, sobre o


centro, sobre a harmonia (no caso do violão de 6 cordas) e sobre a baixaria. No caso das
baixarias, os violonistas de 7 cordas nos deixam entender que, em todas as músicas,
ocorrem improvisos. Os relatos mostram que, a partir de estruturas rítmicas, melódicas e

133
harmônicas pré-estabelecidas para cada música, ocorrem, nas performances do Choro,
variações improvisadas em todos os instrumentos.

Kernfeld (2006) identifica, para o jazz, três categorias de improviso. A paráfrase é


definida como sendo a ornamentação da melodia do tema ou de alguma parte dela, de
modo que a melodia permaneça reconhecível. A improvisação formulada consiste na
construção de um novo material a partir de um corpo de idéias fragmentadas. Por fim, a
improvisação motívica consiste na construção de novo material a partir do
desenvolvimento de uma única idéia rítmica. O autor enfatiza que, na prática, os
músicos lançam mão dessas três categorias, ao mesmo tempo, nas performances que
realizam.

Os relatos dos chorões, bem como a análise de gravações e de registros escritos,


mostram que a paráfrase e a improvisação formulada são mais comuns no gênero, e a
motívica é pouco utilizada. Também é muito comum, no Choro, outro tipo de
improvisação, à qual, neste trabalho, será denominada improvisação por cromatismo. A
seguir, serão analisadas as formas como essas categorias de improvisação estão
presentes no Choro.

Segundo Kernfeld (2006), a paráfrase pode ser simples, consistindo apenas na


introdução de poucos ornamentos, ou pode envolver uma reformulação altamente
criativa da melodia da música. Nesta categoria de improvisação, a estrutura harmônica
da música permanece inalterada, embora possam ocorrer pequenas alterações e
ornamentações. A paráfrase é comum e valorizada nas performances do Choro,
conforme mostram os relatos transcritos a seguir:

Leonardo Benon: o Waldir (Azevedo) lançou um caderno de partituras com todas as músicas dele. Está
tudo escrito errado, algumas estão certas, outras estão em outro tom. Eu acho que o jeito que está escrito é
para fins didáticos. Igual eu faço com meus alunos: toca com a partitura em casa, mas daqui um mês eu
não quero essa partitura aqui. Porque eu pego a partitura e não está escrito como a gravação, já é a
interpretação de quem escreveu. No Choro não funciona, é só uma referencia inicial. Mas a maior
referencia é a gravação, não tem jeito. (...) Às vezes o cara nem improvisa, mas mostra a música de um
jeito diferente (...) aí eu acho que já vale a pena, no caso o improviso fica no segundo plano, o efeito é o
mesmo, já fica todo mundo feliz, já está fazendo uma coisa nova.

Laércio Pimentel: [dando a definição de baixo obrigatório] baixo obrigatório: tem o breque, e abre para o
violão fazer. É bom você conhecer o original, e depois fazer outros também. Com o tempo você vai vendo
que tem diversas formas de fazer aquele encaminhamento ali, aquela ponte, vamos dizer assim. Aquela
passagem. É uma questão de vocabulário.

Dudu Maia: Eu digo improviso não é como o improviso no jazz não, você obrigatoriamente tem que fazer
os turnarounds, sempre nada haver com o tema. Tem que ser uma brincadeira com o tema, primeiramente

134
rítmica.(...) É lógico que você pode sair, mas volta e brinca. (...) O que me atrai é a brincadeira, você
pegar um tema e brincar, dá uma volta com ele.

Marcelo Lima: Não é improviso de tocar uma parte inteira improvisada, é você botar uma nota mais longa
do que ela é. O improviso acho que nasce dessa releitura da partitura. Já é um improviso. Quando você
tem a partitura, o cara toca uma vez a música. Aí, na segunda vez, ele já vai tocar outra coisa. Você ouve
o Lamentos e diz: Porra, cadê aquela partitura que você tava tocando aí? E ninguém escreve os
ornamentos. Escreve a melodia. (...)

Fernando César: O improviso no Choro é fundamental. Porque na verdade sempre houve improviso. Você
pega uma gravação, é igual fofoca, ela vai aumentando. Tem uma gravação que o cara toca de um jeito,
noutra o cara toca de outro. Ainda não é aquela coisa assim: O improviso, como seria chamado hoje, mas
é improviso. É um improviso acanhado.

Alguns chorões não concedem à paráfrase o status de improviso, como é o caso de


Dudu Maia, Laércio Pimentel e Leonardo Benon, embora reconheçam que é criação
espontânea de cada músico. O bandolinista Marcelo Lima, assim como o violonista
Fernando César, chamou a paráfrase de improviso, mas fez questão de diferenciá-la do
improviso “de tocar uma parte inteira improvisada”. Cabe ressaltar, contudo, que
nenhum dos entrevistados utilizou a terminologia “paráfrase” para definir essa categoria
de improvisação.

Com efeito, o relato a seguir demonstra que a paráfrase é tão comum no Choro que se
confunde com o próprio modo de tocar e aprender o gênero:
Marcelo Lima: mas é engraçado que o Choro tem uma coisa dessa, sabia? Porque quando você vê uma
partitura de choro, ela raramente está bem escrita. Raramente, na partitura de choro, o cara respeita as
figuras. Ele faz quadradinho. Se você fosse tocar o vibrações seria [canta a música conforme a partitura]...
Quando eu passo a partitura para o aluno ler, eu falo: ó, tá massa, agora você pegou as notas. Agora
vamos dar um valor diferente para elas. Agora você vai mexer. Olha, pode estender essa aqui. Isso aqui
não vê como semicolcheia, não. Pode ver como colcheia, deixa ela durar um pouquinho mais. Puxa essa
para trás, joga essa para frente. Porque isso, de puxar para trás e jogar para a frente, é que dá mais
balanço, dá mais suingue na música, ela fica mais viva, né?

Ambos os bandolinistas citados mencionam as interpretações de Jacob do Bandolim,


repletas de paráfrases bem elaboradas; Dudu Maia afirma ainda ser necessário imitar as
paráfrases criadas por Jacob do Bandolim e Pixinguinha para o aprendizado do Choro.
Pode-se dizer que a alteração da duração das notas da melodia é característica universal
nas performances do Choro. Em função disso, muitos músicos entendem que ouvir as
gravações é o melhor modo de tocar o Choro, pois nelas é possível conhecer as
paráfrases dos grandes intérpretes, normalmente ausentes dos registros escritos. Em
uma recente publicação do songbook Tocando com Jacob (2006), houve a preocupação
de transcrever as variações – paráfrases - realizadas por Jacob do Bandolim para uma
série de choros. As transcrições abaixo mostram a partitura original e as paráfrases

135
criadas por Jacob do Bandolim para o choro “Proezas de Solon”, de Pixinguinha e
Benedito Lacerda.

Exemplo 1. Transcrição da parte A de “Proezas de Solon”, de Pixinguinha e Benedito Lacerda (extraído


de Tocando com Jacob, 2006).

Exemplo 2. Transcrição das variações criadas por Jacob do Bandolim para “Proezas de Solon”, de
Pixinguinha e Benedito Lacerda (extraído de Tocando com Jacob, 2006).

136
Jacob do Bandolim insere paráfrases na 3ª, 4ª e 5ª repetições da parte A3; a melodia
original é alterada, mas as notas-chave, que a caracterizam, permanecem presentes (na
5ª repetição da parte A, por exemplo, a melodia inicia com variações, porém repousa
nas notas Lá e Sol, características da melodia original).

Almada (2006) discorre também sobre a paráfrase no Choro, à qual denomina


variação:

A improvisação (ou, mais apropriadamente, a variação)


no choro difere em relação ao jazz tanto quanto à
realização e às técnicas empregadas, quanto ao próprio
sentido de sua existência. Não cabe aqui apresentarmos
as origens da improvisação jazzística, mas, no que se
refere à variação no choro, é relativamente fácil deduzir
que esta se origina diretamente de suas características
formais (únicas na música popular), em rondó. O simples
fato de a parte A (a principal), na execução de um choro
convencional ser apresentada por quatro vezes, fornece
uma boa pista das razões pelas quais os instrumentistas
de maior talento (que sempre existiram em grande
quantidade na longa e gloriosa história do choro) tenham
se sentido naturalmente impelidos em direção à variação
melódica. É inegavelmente mais artístico e mais
desafiador tratar sob diferentes aspectos uma melodia
recorrente. (Almada, 2006, p.55).

A improvisação formulada, também muito comum no Choro, é considerada mais


difícil de ser realizada pelos chorões entrevistados, porque exige conhecimentos
aprofundados de harmonia. De acordo com Kernfeld (2006), a improvisação formulada
é aquela em que diversos fragmentos melódicos se entrelaçam e se combinam em uma
melodia contínua. No jargão do jazz, tais fragmentos melódicos são denominados licks.
A improvisação formulada se baseia no tema da música original; sua estrutura rítmica e
harmônica ficam inalteradas em termos de métrica, tamanho das frases, relações tonais e
objetivos harmônicos principais. Mas a forma como o tema é tratado é mais livre do que
na paráfrase, e as harmonias podem variar por meio do uso de acordes alterados e
substitutos. Os relatos dos chorões demonstram que a improvisação formulada é
presente no Choro, e baseia-se também na combinação de fragmentos melódicos,

3
Nesta gravação de “Proezas de Solon”, Jacob do Bandolim fez uma alteração da forma do Choro, tocado
da seguinte maneira: AA-BB-A-CC-AA.

137
visando a construção de uma melodia em cima de um encadeamento harmônico pré-
estabelecido:

Dudu Maia: Na hora de improvisar, ele tem dificuldade de improvisar dentro da linguagem. Porque não
tem temas, vivências suficientes, porque, na hora da linguagem, na hora de improvisar, você vai pegar
todos estes temas, esse vocabulário, vai mudar as notas e vai brincar com elas. Vai usar aquele repertório
de palavras, aquele vocabulário, aquelas idéias rítmicas para caramba. Aí, para isso, o cara tem que
construir um vocabulário, uma enciclopédia, sei lá. (...) Mas, para improvisar bem, é preciso construir o
vocabulário. O repente, por exemplo... Eles inventam na hora, mas têm um vocabulário. Quanto maior o
vocabulário, mais fácil brincar com isso. Na verdade, na minha visão, você pode pensar o improviso
como a combinação de vários fragmentos. Como a gente pega letras, sílabas, frases e brinca com essas
combinações. E o ritmo faz toda a diferença. Com duas notas, se a sua idéia rítmica for boa, dá para fazer
um monte de coisa legal. Acho que o ritmo é noventa por cento; depois é que você tem as notas.

Marcelo Lima: Porque, para você improvisar bem, vai ter que sacar bastante do som, o acorde que está
rolando, a harmonia, e as técnicas que você tem que desenvolver. Essa técnica você pode malhar sozinho,
você pode malhar as escalas, só escala, pode criar frases em cima da escala, frases em cima do arpejo. Aí
você cria esse acervo. Quando você vai tocar, vai usar mecanicamente.

Laércio Pimentel: [explicando como estuda improviso] basicamente arpejo. Os violões de 7 cordas usam
muito arpejo, escalas e os intervalos. Basicamente isso. Começar os estudos pela onda do arpejo. Tocar
primeiro as notas dos acordes. Vai colocando as escalas, depois vai fazendo a ligação de uma escala para
outra, de um acorde para outro, e assim, vão surgindo os baixos. (...) Você tem que criar mesmo, ir
inventando na hora. Pega um padrão rítmico, usa uma escala, faz um arpejo. Meio que você vai fazendo
na hora mesmo, porque senão não fica um improviso.

Frango: Sempre fica uma frase ou outra que você usa naquele momento, que você acha adequado. A frase
é decorada, mas você manda outra que está criando na hora, naquele momento. A partir dela, você já cria
uma outra, sacou? Um fragmento dela, e você já cria uma outra. Então, o bom do improviso é isso. Você
nunca vai tocar a mesma coisa. Depois de um tempo que você está praticando isso, depois de um tempo,
você pode tocar as mesmas notas, mas nunca vai ser a mesma coisa. [Ao dizer] Nunca, eu estou sendo
muito radical, mas você sempre vai fazer alguma coisa diferente. Depois de ter uma certa habilidade com
o improviso, você vai administrando bem melhor isso.

Henrique: [Improviso] foi uma das primeiras coisas que eu estudei. Então, a primeira fase é aquela da
ralação, do estudo, do suor. Chata para caramba, que é você decorar as escalas, destrinchar o braço todo.
Depois você aprende a aplicação das escalas. Eu estudei assim: decorar as digitações, depois aplicação
dos acordes. Para isso, você precisa ter conhecimento harmônico, e aí pegar repertorio para você tocar.
Também tirar o máximo de gravações possíveis de pessoas que você admire e que sejam bons
improvisadores. Porque você não pode criar nada se não conhece o que já foi feito. Então, pega um
grande improvisador, vê todos os caminhos que ele faz, e depois acrescenta sua parcela de criatividade.
Agora a improvisação tem que ser muito cuidadosa, para não descaracterizar a linguagem do Choro.
Aproveitando os arpejos, sabe? Brincando ritmicamente com as células. Principalmente isso, os ritmos e
os arpejos.

Os chorões criam um vocabulário de frases melódicas a partir do estudo das escalas


e dos arpejos, e realizam combinações no momento da performance improvisada.
Concedem grande importância às variações rítmicas, porque demonstram a criatividade
do improvisador. Entendem esses músicos que, quando baseado em escalas e arpejos, o

138
improviso não descaracteriza a linguagem do Choro. Se for utilizado o jargão do jazz,
podemos dizer que os chorões constroem os licks a partir das escalas e dos arpejos.

A principal fonte, de onde os chorões extraem as frases que formam seu acervo, são
os próprios choros. Por isso, a maioria deles afirma ser importante “tirar” muitos
choros, inclusive os improvisos de outros intérpretes, para que o músico possa, a partir
dessas referências, construir um vocabulário. A partir daí, ele pode começar criar seus
próprios improvisos. Os relatos mostram também que o domínio técnico do instrumento
é fundamental, pois, sem ele, não há como improvisar. Com efeito, a publicação
“Vocabulário do Choro”, editada pelo saxofonista Mário Sève, é composta de exercícios
de escalas e arpejos extraídos de choros. Segundo o autor da publicação, os exercícios
mais importantes são os “estudos melódicos”, compostos em cima de células (ou
fragmentos melódicos) extraídas de composições de Choro e agrupadas dentro de uma
seqüência harmônica ou melódica escolhida. Por meio da execução desse tipo de
exercício, o músico ganha intimidade com a linguagem do Choro. A publicação de
Mário Sève traz, de forma sistematizada, exercícios que os chorões aprendem a realizar
por conta própria, ouvindo gravações, participando de Rodas e conversando com
instrumentistas mais experientes.

A improvisação motívica é definida por Kernfeld (2006) como aquela em que um


motivo rítmico é tomado como base, e repetido inúmeras vezes com variações de
ornamentação, com transposições, acréscimo ou diminuição de notas, entre outras. Nas
entrevistas realizadas, os chorões não citaram seu uso nos improvisos. Embora não seja
comum em improvisos, esse recurso é bastante utilizado nas composições. O choro
“Araponga”, de Luiz Gonzaga, transcrito a seguir, apóia-se na repetição de um motivo
rítmico:

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Exemplo 3. Parte A de “Araponga”, de Luiz Gonzaga (extraído de Tocando com Jacob, 2006).

A seguir, exemplos de improvisos motívicos realizados por Jacob do Bandolim para


essa música:

Exemplo 4. Variações da parte A de “Araponga”, de Luiz Gonzaga, tocadas por Jacob do


Bandolim (extraído de Tocando com Jacob, 2006).

Jacob do Bandolim inseriu ornamentos na segunda repetição da parte A, e manteve


as notas e o ritmo conforme os originais. Na quarta repetição, contudo, criou outros
motivos rítmicos e repetiu-os apenas duas vezes cada. A repetição de motivos rítmicos
não ocorre com grande freqüência nas performances do Choro; mesmo quando a
composição baseia-se nesse recurso, o modo de tocar dos chorões acaba por modificar
os ritmos das células, de forma que não se repetem. Talvez por isso os chorões
entrevistados não tenham feito referência à repetição de motivos rítmicos como técnica
de improvisação utilizada no Choro.

Recurso muito utilizado no Choro, tanto em composições quanto nos improvisos, é


o uso da escala cromática. Não há improvisos totalmente baseados em escalas
cromáticas, mas, em geral, os chorões inserem frases cromáticas no decorrer de
improvisos baseados em escalas e arpejos maiores e menores. Relatos fazem referência
ao cromatismo:

Rafael do Anjos: Porque o Choro usa muita escala menor harmônica, usa muito a escala melódica, muito
a escala cromática.

Marcelo Lima: Mas o Choro tem a onda do cromatismo, que nada mais é do que qualquer nota. Todas as
notas. Quando você faz uma escala cromática, você fez todas as notas da escala. A questão é: quais são as
notas importantes de todas essas? Assim como num texto, que tem as palavras que são importantes, e
outras que são de junção. Mas tem palavras-chave. Assim como na frase musical. Tem notas que são mais
importantes. Mas, na verdade, você pode botar qualquer nota.

Léo Benon [explicando a característica do fraseado do Choro]: semicolcheias e arpejos. Basicamente


semicolcheias. Rítmica é isso, consonantes maiores, com sexta, com nona. Existe o cromatismo também.

140
A seguir, a transcrição de um trecho de improviso de Jacob do Bandolim sobre a
música “Naquele Tempo”, de Pixinguinha, repleto de cromatismos, ilustra como esse
recurso é utilizado no Choro:

Exemplo 5. Improvisos de Jacob do Bandolim sobre “Naquele Tempo”, de Pixinguinha e


Benedito Lacerda (extraído de Tocando com Jacob, 2006).

Para os chorões entrevistados, realizar um improviso compreende um risco e uma


prova, pois a afirmação de sua capacidade como músico requer que corra o risco de
errar. E os relatos mostram que é por tentativa e erro que a capacidade de improvisar se
aprimora:

Augusto: Quando você vai fazer os baixos, você sente que ficou ruim, não bateu com a melodia, não
bateu com a harmonia. Mas é aquela famosa lei da tentativa e erro, porque o chorão tem essa coisa de
mostrar a sua criatividade perante os outros.

Laércio Pimentel: Você vai estudando o vocabulário, vai colocando umas coisas suas e acaba que nem
todo solo fica bom, né? Mas, às vezes, tem solos que ficam ótimos, e fica uma coisa que você nunca fez
na sua vida.

Frango: Fui batendo cabeça, tentando de um jeito, tentando de outro. Agora eu estou vendo o improviso
de uma outra forma. Porque eu aprendia muito as escalas assim, né, e não fazia no braço todo do
instrumento. Ficava só na região grave. (...) Um dia, o Hamilton de Holanda me pagou um sapo. Ele
falou: velho, você tem que estudar todas as escalas no braço todo do instrumento. Foi a partir daí que eu
comecei a estudar improvisação mesmo. Foi quando ele foi assistir o show do trio Cai Dentro e sacou que
eu me ferrei em alguns improvisos. Eu sabia mais ou menos o que era, mas eu me ferrei. Quando chegava
na região aguda do braço, eu me ferrava. (...) Ele disse que eu tinha que estudar todas as escalas no braço
todo do cavaco. Aí eu tive uma outra concepção do improviso, porque eu tava achando que improvisar era
só aquela coisa dos arpejos dos acordes (...). E é brincando.

Rafael dos Anjos: Arrisco, eu acho que é bom viver em risco. Quanto mais você se arrisca, melhor você
fica, porque uma hora você vai acertar, né? Algumas coisas dão certo, outras não. As que não dão certo eu
boto no bolso, e as que dão certo eu deixo ali pra sempre.

141
Além do domínio das técnicas (paráfrase, improviso formulado e cromatismo), o
improviso no Choro submete-se a julgamentos subjetivos, ligados à estética do gênero.
Todos os músicos entrevistados afirmam preferir a ausência de improvisos àquele mal-
feito ou considerado sem beleza. Defendem também a parcimônia na improvisação,
tanto em relação à quantidade de tempo em que se improvisa em uma música quanto em
relação às demonstrações de virtuosismo que metralham os ouvintes com centenas de
notas por segundo.

Dudu Maia: a gente tava ouvindo um improviso do Jacob. Nove minutos improvisando numa música,
bicho! Mas parece que ele está tocando o tema de tão bom que é, né? Totalmente dentro do contexto da
música, tudo muito claro.

Tonho do Pandeiro: Eu não sou muito fã, nada contra, eu estou falando a minha preferência, de muito
improviso durante a música. Eu prefiro, acho até que aparece muito mais, valoriza muito mais o
instrumentista, quando ele vem tocando reto e, quando ninguém espera, vai pensar que ele vai entrar com
a melodia, ele entra com o improviso. Mas uma coisa sutil. Eu gosto é desse jeito.

Leonardo Benon: Tocou a música, aí repete a segunda ou a terceira parte vinte vezes. Só o cara que está
improvisando é que está gostando. (...) Fica aquela coisa maçante, igual ao jazz, o tema dura 30 segundos,
mas a música dura duas horas. (...) Os solistas, e até mesmo os violonistas, ficam toda hora pedindo para
improvisar (...). Fica sem sentido a coisa, e a música mesmo, que era pra ser apresentada, não acontece.
Às vezes neguinho começa a tocar, faz a A, e na B já manda bala. Nem expõe o tema! Tem que
apresentar o tema, e improvisa depois.

Rafael dos Anjos: Improvisar para mim, bicho, é sempre ser o mais melódico possível. É sempre uma
melodia, sabe? O improviso só é bom se for melhor do que a melodia. E tem que permear a melodia, tem
que ter a ver com a melodia. Você tem que respeitar os estilos. Que é uma coisa que eu tenho estudado e
acho que pouca gente enxerga isso. E os caras que enxergam isso são os maiores improvisadores. Por
exemplo, você vai tocar um “Flor Amorosa”, é um lance diatônico, Sol com sétima menor e Dó maior.
Por exemplo, o Paraíba, que é um trompetista maravilhoso aqui de Brasília. Se ele vai tocar o Flor
Amorosa, ele não vai tocar o Flor Amorosa com a linguagem do Miles Davis. (...) Vai improvisar com a
linguagem do Callado, com a linguagem diatônica. Se for improvisar, vai ser com o melhor som, com
escala de Dó maior e tocando as melhores notas dentro daquele estilo, sacou? Cada música tem um estilo.
Por exemplo, Aquarela na Quixaba, do Hamilton (de Holanda) é um choro um pouco mais moderno.
Então, se o Paraíba for tocar, ele já vai entender que pode arriscar um jazz ali. Então eu tenho esse lance
de estudar respeitando o estilo.

Marcelo Lima: Os improvisos são coisas muito difíceis de fazer bem feito, eu acho. Acho que fazer bem
feito é você conseguir dizer coisas bonitas na música. Por exemplo, você toca um “Vibrações”. Pô, se
você for improvisar em cima do Vibrações, que é uma música linda e maravilhosa, você vai ter que fazer
uma coisa linda e maravilhosa. Não adianta eu querer improvisar e meu improviso não dizer nada perto
da música. Se a música é muito superior a tudo que eu estou fazendo, eu não conseguir fazer uma sacada
legal, aí não vou improvisar não. Toco a música como ela é. Mas eu acho que o bom improvisador é
aquele que consegue respeitar a música que ele está... Ele não sai da música. Ele está fazendo outra
história, mas dentro do mesmo contexto. Tudo o que o Jacob faz... isso é um talento que aquele cara tinha.
Todos os improvisos do Jacob são maravilhosos. Ele não gasta nota em nada. É gastar nota! Esse é o
argumento. Bom improvisador é o que não fica gastando nota. Ele não fica tocando qualquer nota porque
ta fora do tema. Não!!!! Ele quer aquele som ali. Ele quer aquelas notas ali.

Fernando César: Bom improviso é a coisa mais intuitiva, e não aquela coisa programada. Aquele monte
de escala colada uma na outra. Bom improviso é o Dominguinhos. Ele cria outra melodia. Ele não

142
improvisa, ele faz outra música em cima da melodia que já existe. Ele compõe outra música. Não fica
nessa edição. Porque pode colar errado. Às vezes fica bom, mas muitas vezes fica uma m.!

Os chorões reconhecem que a técnica do improviso formulado, de unir fragmentos


melódicos, nem sempre funciona bem, porque às vezes o resultado final é esteticamente
ruim. Suas falas evidenciam que o bom improviso é aquele que produz uma melodia,
diferente da original, mas que mantém, com ela, um diálogo. Eles enfatizam a
necessidade de aprimoramento técnico, da aquisição de conhecimentos sobre harmonia,
e do domínio das escalas e arpejos como ferramentas para execução do improviso. O
uso delas, contudo, deve ser feito à luz de um senso estético adquirido pela experiência
de freqüentemente tocar e ouvir o repertório do Choro. Indicam que um caminho para o
aprendizado pode ser a simples imitação dos grandes intérpretes, e a partir dessas
influências, iniciar o desenvolvimento de um estilo próprio de improviso.

A beleza do improviso, para eles, requer a união do conhecimento e da técnica com


a criatividade pessoal do músico. Requer, também, profundo conhecimento do gênero,
para que as nuances dos trechos improvisados guardem relação com a linguagem
característica do Choro. Dizem eles que é possível identificar, em cada música tocada,
elementos que a caracterizam, e que, se o improviso conseguir fazer referência a eles,
será aquele considerado o mais belo.

Apesar do Choro não possuir métodos sistematizados para orientar o estudo e a


prática da improvisação, existe, no gênero, um sistema de conhecimentos e conceitos
consolidados sobre o assunto. A transmissão oral é o modo como tal sistema se difunde
entre instrumentistas. Na convivência cotidiana, na prática de tocar em conjunto, na
observação de performances, nas conversas entre músicos, conhecimentos e percepções
sobre o improviso são compartilhados.

Os chorões entendem o improviso como parte da essência do Choro, pois, para eles,
o bom chorão é aquele que, toda vez que toca, é capaz de alterar elementos da música,
mesmo sem realizar grandes mudanças em sua estrutura original. Além das ferramentas
técnicas, como vocabulário e habilidade com o instrumento, o julgamento de um
improviso envolve a capacidade do músico dialogar com a melodia original da música,
e seu domínio da linguagem do Choro. Além disso, para os chorões, o improviso deve

143
construir uma melodia - com começo, meio e fim -, coerente com a linguagem do Choro
e com o espírito da música especifica que se está executando.

A beleza do improviso ancora-se em conhecimento e criatividade, e, por isso, não


exclui a possibilidade de surpresa. A imprevisibilidade do improviso, contudo, submete-
se a julgamentos baseados em critérios estéticos. Para os chorões, o improviso tem que
ser bonito. E a definição do que é belo é altamente subjetiva, e, mesmo por aqueles
profundos conhecedores do Choro, é difícil de ser colocada em palavras. Eis que toda a
arte tem seus mistérios. E mesmo que tenha sido esmiuçada em seus mínimos detalhes,
os mistérios continuarão para serem fruídos, e nunca para serem decifrados.

144
C4. Iê, é mandingueiro, camará!

Um aspecto bastante peculiar no estudo da performance do Choro, amplamente


mencionado pelos chorões nas entrevistas, refere-se ao modo malandro com que alguns
músicos conduzem suas interpretações musicais, principalmente nas Rodas de Choro.
Pelo enorme grau de subjetividade presente nesse termo, traduzir o seu significado
conforme o rigor científico não é simples. Simples, porém, é o entendimento prático dos
chorões acerca da lógica da malandragem.

O personagem malandro, associado a práticas culturais afro-brasileiras, como


samba, capoeira e Choro, historicamente foi representado por um conjunto de
estereótipos. Em princípio, o malandro é a pessoa avessa ao trabalho pesado, que vive
do jogo e da cafetinagem; é boêmio e inveterado aplicador de golpes nos otários.
Nascido no contexto urbano carioca, sua vestimenta é o terno de linho branco, o chapéu
panamá, a navalha no bolso e o lenço no pescoço. Evidentemente, o personagem que
representa fielmente a figura do malandro não existe mais. Todavia, a malandragem
permanece ainda no imaginário do Brasil como uma marca identitária de seu povo. É
possível encontrar elementos da malandragem na música, nos gestos, na dança, na
linguagem verbal, na movimentação e no comportamento em geral.

Rita Segato (1995) realiza um estudo sobre a Okarilé, uma toada para Iemanjá,
deusa mística de religiões afro-brasileiras. Segundo ela, à personalidade mítica de
Iemanjá, corresponde uma característica musical, presente na toada. Ela aponta Iemanjá
como um ícone, definido como imagem alegórica ou representação de um personagem.
O ícone é um símbolo que contém em si, representa e exibe um conjunto de
características. O ícone é uma abstração, uma construção conceitual que representa algo
que existe na realidade. O malandro, sujeito portador da malandragem, pode ser
compreendido como um ícone, no sentido descrito por Segato (1995). Sendo uma
abstração, ele não existe em sua forma pura na realidade, mas suas características estão
presentes de forma dispersa nos elementos que constituem o universo real. Portanto, o
malandro completo é um arquétipo com o qual se busca identificação, ainda que não
seja possível o total enquadramento nele.

145
Também não é nenhuma novidade que o personagem malandro, tão singular e
repleto de significados, seja amplamente estudado pela sociologia e antropologia. Na
música, a expressão mais forte da malandragem ocorre no samba. A própria identidade
do sambista se confunde com a identidade do malandro. As letras dos sambas estão
carregadas de menções à malandragem, e o próprio modo de criação e composição dos
sambas orienta-se pela ordem da malandragem.

Roberto DaMatta (1997b, p. 274) define o malandro como um personagem cuja


marca é saber converter todas as desvantagens em vantagens, sinal de todo bom
malandro e de toda e qualquer boa malandragem. Para ele, Macunaíma, de Mário de
Andrade, representa a essência do malandro, o herói sem nenhum caráter, sujeito
subversivo e perseguidor dos poderosos que, no entanto, não entra em embates diretos
com ele, procurando sempre negociar vantagens. DaMatta (1997b) menciona um
aspecto interessante da personalidade malandra, que auxilia o entendimento da relação
entre malandros e música. Segundo esse autor, a vadiação e a astúcia (a malandragem)
podem ser traduzidas sociologicamente como a recusa de transacionar comercialmente
com a própria força de trabalho (DaMatta, 1997b, p. 290). O malandro prefere reter sua
energia, sua força, para realizar feitos que possam trazer retorno para ele, e não para um
patrão. A música – o samba, o Choro -, a capoeira, e outras atividades associadas ao
malandro, trazem essa característica de exigir grande empenho e dispêndio de energia
em atividades que trarão reconhecimento ao próprio malandro, e nunca ao patrão. A
questão é que elas não trazem o sustento. È parte da astúcia do malandro, então, entrar e
sair do mercado de trabalho, e flutuar na estrutura social sem se deixar prender. O
jeitinho, uma forma de astúcia, consiste em utilizar as regras vigentes na ordem social
em proveito próprio, mas sem destruí-las ou colocá-las em causa (DaMatta, 1997b,
p.291)

Cláudia Matos (1982) realiza uma análise do discurso malandro presente nas
letras de alguns sambas cariocas produzidos entre os anos 30 e 50 do século passado,
tentando identificar as características específicas de sua linguagem e poética. O
malandro, segundo ela, é um ser de linguagem, uma metáfora coletivamente instituída e
formalizada por alguns: um mito (Matos, 1982 ,p. 186). Para ela, o malandro antes de
ser uma figura social ou histórica, é a encarnação de um comportamento estético, de

146
um estilo. Ele é a expressão, em figura humana, da ginga, maleabilidade e dinâmica do
próprio samba.

A malandragem é facilmente identificável nas artes verbais, como a música


cantada e a literatura. São muitas as análises das personagens malandras da literatura
brasileira, que tão bem representam esse interessante aspecto de nossa identidade
cultural. No samba, a malandragem é tema de muitas letras. Mas como identificar a
estética da malandragem na música instrumental e em outras artes não-verbais?

John Blacking (1995) discorre sobre a existência de padrões musicais originados


a partir de elementos constituintes da ordem social vigente. Assim, de acordo com o
pensamento desse autor, é esperado que exista uma expressão musical associada à
malandragem. Mas ele mesmo aponta para a dificuldade de descrever esses padrões em
termos musicais; afirma que as descrições sozinhas das notas como padrões de sons
não irão necessariamente revelar os processos cognitivos utilizados (ou não) na criação
musical (Blacking, 1995, p. 55). É necessária, então, uma descrição completa do sistema
cognitivo que lhe deu origem. Tal é o caso da malandragem. A transcrição, por mais
exata que seja, das interpretações vadias dos chorões para uma série de músicas, por si
só, não será capaz de revelar o espírito malandro que as organiza. É preciso, também,
conhecer a estética da malandragem em suas outras manifestações. Para John Blacking
(1995), a ordem sonora é criada a partir de princípios de organização que não são
musicais. Portanto, compreender a lógica da malandragem fora da música é também
uma forma de entender sua expressão musical.

Ainda assim, é possível apontar para elementos musicais que são parte de uma
ordem sonora orientada pela estética da malandragem. No Choro, o entendimento da
lógica mandingueira é fundamental para a prática interpretativa. Os chorões falam sobre
isso:

Leonardo Benon: Aí que está o lance do cara ser malandro, mas o mais importante é a condução, não ter
excesso, saber entrar na linguagem das coisas. (...) Nas Rodas que eu tenho ido os pandeiristas estão sem
malícia

Henrique Neto: Na brecha ali, nessa malandragem (...). Tem esse lance, que está estampado na cara do
carioca que ele é malandro.

Fernando César: Tem aquela coisa da Roda, né? As malandragens (...).

147
Dudu Maia: Quando você vai tocar o Choro, tem que pensar tchá tchá tchá.... [faz a levada do cavaco].
Aí é outra articulação, né? Porque o cara pode chegar na Roda e tocar o tema certinho, tocar para
caramba, mas sem uma coisa, né, que é o espírito vadio.

As explicações sobre o espírito vadio, a mandinga e a malandragem, nas falas


dos chorões, não vão além do exposto acima. Para eles, apenas mencionar os termos
associados à malandragem é suficiente para indicar uma complexa lógica musical. Este
trabalho não pretende decifrar detalhadamente tal lógica, dado que isso deve ser
impossível; apesar disso, a seguir, com base em análises de outros autores, buscar-se-á
somente apontar para alguns modos de expressão da malandragem no Choro.

Um dos elementos musicais, considerados típicos da música brasileira, muito


estudados é a síncope. A síncope, tal como se apresenta na música brasileira, gera uma
acentuação no tempo fraco, e produz um soluço que tem a ver com a estética da
malandragem, sem, contudo, conseguir abarcá-la por completo. Sandroni (2001) cita a
Carta do Samba, escrita na ocasião do I Congresso Nacional do Samba, em 1962, como
um documento oficial que tenta definir através de um termo técnico (a síncope), o que
seriam as características musicais tradicionais do samba que se queria preservar
(Sandroni, 2001, p. 19). Ele menciona vários musicólogos que defendem que a síncope
é definidora não apenas do samba, mas da música popular brasileira em geral; a síncope
é tão mencionada que definir a música brasileira a partir dela tornou-se um lugar
comum. Além disso, a síncope, por suas características, simboliza a estética malandra, e
permite àqueles não-iniciados em malandragem compreendê-la tecnicamente. O próprio
Sandroni (2001, p.20) afirma que na síncope, é como se o douto musicólogo paulista e o
malandro carioca encontrassem enfim um vocabulário comum.

Mário de Andrade (2006), ainda em 1928, ponderava que o termo “síncope”,


utilizado para designar um aspecto essencial da música brasileira, passou a abarcar
muito mais tipos de variações rítmicas do que a síncope propriamente dita, conforme
descrita pela teoria musical. Mas ele admite ser possível que a sincopa (...) tenha
ajudado a formação da fantasia rítmica do brasileiro (Andrade, 2006, p.26). Apesar
disso, Mário de Andrade entendia que o remelexo da música brasileira não se resume à
síncope; para ele, o que constitui a melodia típica das canções brasileiras:

148
São movimentos livres específicos da moleza da prosódia
brasileira. São movimentos livres não acentuados. São
movimentos livres acentuados por fantasia musical,
virtuosidade pura, ou por precisão prosódica. Nada tem
com o conceito tradicional da sincopa e com o efeito
contratempado dela. Criam um compromisso sutil entre o
recitativo e o canto estrófico. São movimentos livres que
tornaram-se específicos da música nacional (Andrade,
2006, p. 29).

Sandroni (2001) aprofunda a análise da síncope, e baseia-se em estudiosos da


música africana para afirmar que a característica marcante de certas músicas africanas,
incorporada a muitos gêneros brasileiros, não é a síncope, mas a contrametricidade. A
síncope, segundo ele, foi o modo como os músicos e musicólogos ocidentais, cujo
pensamento musical ancora-se na teoria musical convencional, encontraram para
representar os ritmos contramétricos africanos. Parece, então, óbvio que a
contrametricidade inclui a síncope, mas é mais abrangente. A contrametricidade ocorre,
segundo o etnomusicólogo Kolinski (1960, apud Sandroni, 2001), quando o ritmo da
música contradiz o fundo métrico. Para esse estudioso, a métrica é a infra-estrutura
permanente sobre a qual são realizadas as variações no ritmo. No caso do Choro, a
métrica é o 2/4, que constitui o fundo constante, e o ritmo, as diferentes articulações da
música real (Sandroni, 2001, p. 21). Para Kolinski (1960, apud Sandroni, 2001), o ritmo
pode confirmar ou contradizer o fundo métrico constante. A síncope, portanto, seria um
caso de contrametricidade, entre uma série de outros possíveis. O Choro é, de acordo
com a terminologia de Kolinski (1960, apud Sandroni, 2001), uma música altamente
contramétrica.

A contrametricidade é um dos atributos da expressão instrumental da


malandragem mas, assim como ocorre com a síncope, não a resume. No Choro, é
enorme a liberdade na interpretação rítmico-melódica, pois células rítmicas e notas
musicais podem ser acrescentadas ou suprimidas a qualquer momento sem que o
entendimento e o sentido da música sejam alterados; isso dependerá do domínio que o
instrumentista tiver sobre a métrica e sobre o ritmo da música que está interpretando. As
variações rtimo-melódicas consideradas malandras e vadias podem aproximar-se ou
afastar-se da metricidade, ou seja, podem ser métricas ou contramétricas. O
instrumentista malandro é justamente aquele que escorrega da metricidade para a

149
contrametricidade; é aquele que, quando se espera a acentuação no contra-tempo, ele a
faz no tempo, e vice-versa.

A malandragem, conforme já dito, é também marca de outras manifestações da


cultura afro-brasileira. Uma delas pode auxiliar o entendimento da malandragem
chorona, não por ser musical, mas por ser, assim como o Choro, não-verbal. Trata-se da
capoeira. De fato, alguns chorões entrevistados utilizaram a capoeira como alegoria para
explicar o espírito do Choro, conforme mostram os relatos:

Frango: É uma forma de desafio, mas nada para sacanear o cara, para fazer chacota da cara do cara, para
dizer você é ruim. Não, não é isso. É um jogo, igual a capoeira.

Marcelo Lima: Eu vejo o Choro como a linguagem que a gente traz da capoeira. O jogo de desafio.
Então você está aqui e: ô, vê se tu pega essa harmonia aí! Ah é? Então faz esse solo aí que eu quero ver!
Então improvisa agora que eu quero ver aí! Fica um jogando para o outro, né? Agora é o pandeiro! É
como se cada um estivesse entrando na roda num momento. Fica esse jogo de brincadeira. Um desafio
de brincadeira. Uma fantasia, como se fosse um jogo. Como a capoeira mesmo. De brincar.

Fernando César: Às vezes você quer fazer uma graça, e não faz o que é mesmo [para ser feito]. Faz uma
coisa que o cara não estava esperando. Às vezes você faz para testar, porque a Roda tem aquela parada de
um desafiar o outro. É igual roda de capoeira, tem todo um jogo ali. Tem umas coisas que são certas ali,
mas você pode fazer uma coisa que não está prevista.

O espírito malandro apóia-se na capacidade de surpreender e de realizar cada


interpretação de uma forma diferente. O capoeirista usa o corpo para dissimular e
surpreender. No instante após dar um enorme salto, ele encolhe-se no canto da roda; ele
cresce e diminuiu, é rápido e preciso, ele derruba o parceiro com uma rasteira e sorri. A
malandragem na capoeira associa-se à malícia da finta, da dissimulação. Do mesmo
modo, o instrumentista malandro é maleável, flexível; sua interpretação caminha entre
opostos: ora faz a frase com notas curtas e pontuadas; ora faz a mesma frase
melodiosamente; ora realiza um improviso cheio de notas; ora improvisa muitos
compassos com apenas uma ou duas notas; ora cresce seu volume de som, ora reduz;
ora faz a melodia com as acentuações nos contra-tempos, ora realiza as acentuações nos
tempos. Ele produz todas essas variações sem se deixar prever. Por isso, necessita de
domínio, controle e criatividade. A imprevisibilidade é marca do malandro.

Matos (1982) menciona que o atributo principal da poética malandra é a


ambiguidade. A ambigüidade é, de fato, o oposto da precisão. Se a música pode ser
entendida como linguagem de interlocução, conforme aponta Schutz (1977), Martin

150
Buber (1988) discorre sobre o papel da linguagem no diálogo, e aponta para os
caminhos alternativos do discurso: de um lado, o discurso apoiado na precisão,
denominado monólogo; de outro, o discurso ambíguo, apoiado na pessoalidade daquele
que o profere, denominado diálogo. O monólogo busca apoiar-se na segurança, na
precisão, no controle. Ele quer se assegurar da possibilidade da repetição infinitamente
enumerável de coisas já sabidas. Seu empenho maior é por superar qualquer
imprevisibilidade. O discurso monologal sabe de antemão que resposta dará à questão
que formula, e quer se assegurar de que essa formulação não sofrerá mudanças
imprevistas. Busca para tanto valer-se das potências da objetivização. Mas Buber (1988)
afirma como valor mais alto da linguagem não a precisão monologal que fixa a palavra
e seu significado, mas sim sua intrínseca ambigüidade. A ambigüidade da palavra
permite que o discurso esteja repleto da existência pessoal daquele que o profere. O
discurso musical do Choro ancora-se na possibilidade de ser ambíguo, reforçando,
portanto, o caráter pessoal/relacional e dialógico do contexto da Roda, sua matriz. Essa
argumentação, novamente, reforça a idéia de Schutz (1977) de que a música tem
natureza coletiva e serve de suporte de relações pessoais.

A malandragem, ou o pseudomorfismo, pode ser entendida como a maliciosa


capacidade de dissimular, de esconder as verdadeiras intenções do instrumentista.
Utilizando as artimanhas da estética malandra, ele torna a performance completamente
imprevisível, nunca sujeita a ser conhecida por antecipação, mesmo nas últimas frações
de segundo que antecedem cada nota. O pseudomorfismo é o elemento que garante a
imprevisibilidade, que permite a surpresa. A malandragem impede qualquer
antecipação; impede que o conhecimento racional e objetivo capture o som, garantindo
que a imediatez do encontro face-a-face tenha primazia sobre as tentativas de previsão.
A malandragem torna a linguagem musical do Choro imprecisa e imprevisível. Na
capoeira, o pseudomorfismo é imprescindível. O bandolinista Marcelo Lima fala do
pseudomorfismo na capoeira, como metáfora para entender a linguagem malandra do
Choro:

Marcelo Lima: Na capoeira, você bate, mas não bate. Faz o movimento, acerta, mas não acerta.(...) No
jogo, você faz o movimento, e quanto mais perto de acertar, mais perfeito, mais bonito. O cara faz todo o
movimento para acertar, mas ele pára pertinho do rosto e sai. Esse é o cara bom. É o cara que consegue
fazer isso. Porque o cara que desce o pé, esse aí é só um brigão, não tem valor artístico para a capoeira.
Mas o cara que faz aquele movimento perfeito, a perna vai lá e não acerta. Ou quando o cara esquiva bem

151
de um golpe que não estava esperando. Às vezes tem essa onda, nem foi o que era para ser, mas foi
bonito. É mais a brincadeira.

A malandragem se expressa musicalmente também como ambigüidade. Músicos


experientes lançam mão da malandragem quando erram, fingindo ser proposital,
fazendo não parecer erro; ou, ao contrário, acertando, fingindo errar, deixando a
audiência e demais músicos em dúvida sobre sua real intenção. Nas interpretações,
mesmo que sigam as notas originais da melodia, elas escorregam pelos compassos de
forma que, se alguém, mesmo conhecendo a melodia, tentar ‘cantar’ junto, jamais
conseguirá que sua interpretação antecipe a do instrumentista realmente malandro. A
capacidade de variar sempre o modo como uma melodia é executada é associada ao
espírito vadio. No Choro, as alterações que o intérprete faz nas figuras rítmicas da
melodia é comumente denominada divisão. O chorão malandro é bom de divisão, ou
seja, ele modifica as durações das notas da melodia, atrasa ou adianta o ataque de uma
nota, e faz a melodia escorregar pelos compassos. Os chorões mencionam isso:

Fernando César: A divisão que se escreve não é a que se toca não.

Marcelo Lima: Deixa ela [a nota] durar um pouquinho mais. Puxa essa [nota] para trás, joga essa para
frente. Porque isso de puxar para trás e jogar para a frente é que dá mais balanço, dá mais suingue na
música. Ela fica mais viva, né?

A divisão rítmica da melodia, conforme falam os chorões, é presente e


valorizada também no samba e em outros ritmos brasileiros. Alguns cantores são
reconhecidos por serem bons em divisão rítmica. É o caso, por exemplo, de Zeca
Pagodinho e Jackson do Pandeiro. Sobre este último, o jornalista Renato Roschel
afirmou:

Muito pouco se escreveu e se falou da capacidade que


Jackson tinha em fazer misérias com a divisão rítmica
das músicas, sincronizando essa habilidade com seu
inigualável virtuosismo no pandeiro. Jackson era um
virtuose do ritmo. Fazia o que queria com ele. Entortava-
o, deixava-o sem alguns pedaços, iluminava-o,
aumentava-lhe a velocidade e escancarava todo esse

152
virtuosismo numa ginga e numa malandragem
tremendamente naturais4.

No Choro, as alterações no ritmo da melodia são uma forma de expressar a


poética malandra. Mas o modo de assimilar essa poética advém da vivência e da
convivência. Assim como a própria malandragem, jamais poderá ser descrito em um
método, pois não se deixa capturar por nenhuma categoria racional de análise.
Malandragem se aprende na Roda, na dança, nos, no boteco; jamais na escola ou nos
livros.

4
Renato Roschel. Jackson do Pandeiro. Almanaque da Música Popular Brasileira. Jornal Folha de São
Paulo. Disponível em http://almanaque.folha.uol.com.br/jacksondopandeiro.htm, acesso em agosto/2009.

153
C5. Moderno é Tradição

Quando Armandinho Macedo e o grupo A Cor do Som tocaram no Segundo


Festival Nacional do Choro, em 1978, com guitarra elétrica, bandolim eletrificado e
arranjos próprios para essa instrumentação, chocaram jurados e audiência. Em meio ao
grande número de grupos que tocavam com o Regional convencional, chamaram a
atenção para a questão, sempre presente no universo das culturas tradicionais, da
manutenção dos modos consagrados de sua realização versus a inserção de inovações.

José Jorge de Carvalho (1992) discorre sobre as possibilidades de se pensar a


tradição como algo dinâmico. Para ele, certas tradições populares ritualizadas trazem
formas eficazes de identificação coletiva e grande possibilidades de reinterpretações. A
tradição não é um conjunto de significados que resiste incólume ao tempo, mas é um
lugar privilegiado e constante de possibilidades interpretativas. A tradição tem,
portanto, algo que muda e algo que permanece. Segundo Carvalho (1992), sempre
sobrevive na tradição o lugar de expressão que não se desfaz; que muda, mas não se
desintegra totalmente. De acordo com o seu pensamento, uma Roda de Choro, ou
mesmo uma apresentação de um Regional, não é hoje o que foi há cinqüenta anos. E
não será a mesma coisa daqui a cem anos. É justamente por permanecer presente que a
tradição se recusa a fixar-se no tempo.

A argumentação de Carvalho (1992) aponta para a existência de mudanças na


tradição. Mas não indica precisamente onde e como tais processos de mudanças tomam
curso. No caso do Choro, as possibilidades de inovação não são consensuais; longe
disso, geram polêmica e controvérsia, como aconteceu com Armandinho e A Cor do
Som em 1978. Contemporaneamente, a grande expansão do Choro tem gerado os mais
variados tipos de reinterpretações de sua tradição. Estas, por sua vez, geram diferentes
respostas na comunidade de músicos e audiência do gênero.

Os chorões de Brasília mostram ter plena consciência da tensão existente entre


tradição e novidade, e suas palavras expressam o modo como lidam com esses dois
elementos:

154
Tonho do Pandeiro: o pessoal se prende. Quando eu digo que se prende ,[refiro-me a] os chorões mais
tradicionais, que eu gosto também. Como eu te falei, eu gosto de Choro autêntico. Parece que eu tiro a
autenticidade da música [não convencional]. Não! Eu acho que a renovação cabe em tudo, mas se a
proposta é tocar Choro, então é Choro. Eu posso tocar um choro cheio de virada pro jazz, ou pro samba.
Não! Eu vou tocar Choro. Agora, se eu vou para uma Roda, vale tudo. Mas se a proposta for tocar Choro,
eu acho que tem que ser o mais próximo possível da obra que o compositor fez, eu acho que até que em
respeito a ela... Nada contra... Pôxa, uma música não tinha nada e o camarada fez uma coisa linda. Isso é
válido. Mas depende da proposta, depende do que a pessoa vai fazer. Mas a melhoria vale em qualquer
música.

Rafael dos Anjos: Porque hoje em dia não tem como você tocar só Choro, saca? Não tem mais como,
porque eu acho que a música tem que caminhar junto com o mundo. É isso. Quando você vai tocar lá
fora, é isso que as pessoas estão querendo ouvir, saca? Estão esperando ouvir música brasileira, mas estão
querendo ouvir também um negócio contemporâneo.

Augusto 7 cordas: Eu acho que o Choro tem que se modernizar, mas você não pode esquecer as raízes,
que raízes são essas. Músicos mais antigos, você tem que ouvir como eles tocavam, ouvir os violões,
como eles tocavam, ver as baixarias que eles faziam, e depois criar o seu próprio estilo.

Dudu 7 Cordas: Porque se não tiver desenvolvimento, a gente vai ficar só nessa também, né? Se a gente
bota limite no desenvolvimento, a gente não vai ficar atual com o que está acontecendo. É só saber dosar.
Daqui uns dias vai estar assim: feijoada com Choro tradicional no feitiço, ou então feijoada com Choro
moderno. Acho que vai acabar virando isso. Assim com o rock, teve vários subtítulos, saíram vários
estilos de Rock, então o Choro está indo para esse lado. O interessante dessa onda é que a gente está
fazendo isso, a gente está participando disso, desse movimento. Isso é que é legal. Esse momento de
transição, de divisão do Choro, se acontecer, eu vou estar participando.

Leonardo Benon: No Choro você tem a possibilidade de fazer os experimentos. Mas, por outro lado, você
tem que manter as coisas.

Os relatos mostram que os chorões identificam a presença da tensão


tradição/novidade no cotidiano de sua prática musical. Todos eles concordam com a
inserção de inovações sem, contudo, ofender a tradição. A modernização do Choro, para
eles, é imperativa, do mesmo modo como a manutenção da tradição. O relato de Dudu 7
Cordas é interessante na medida em que antevê a possibilidade de surgimento de dois
subgêneros do Choro: o tradicional e o moderno. O músico não blasfemou o Choro
moderno como desvirtuamento do gênero; tampouco não considerou o Choro
convencional obsoleto. Para ele, é possível a coexistência de ambas as vertentes no
mesmo espaço, e quase no mesmo tempo (na mesma semana, em dias diferentes, no
Feitiço Mineiro). Podemos dizer que os chorões consideram que a inovação, no Choro,
em relação à tradição, se dá com ela e por sobre ela. Por isso, afirmam que fundamental
é conhecê-la profundamente.

Augusto 7 cordas: Tem que conhecer as bases, como tudo começou - bandolim, cavaquinho...

Leonardo Benon: Tem que ouvir até para ver como se tocava. Você pega o Regional do Canhoto, aquilo é
a velha escola do cavaquinho. O canhoto foi o maior cavaquinista de Regional, e tocava da forma antiga,
e até hoje agrada. Antigamente, o acompanhamento era feito totalmente de braço. Só tocavam com o
bração duro, não tinha munheca. Hoje em dia se toca com o pulso. Tem que entender como se tocava

155
antes pra saber por que eu toco assim hoje, qual foi a progressão disso. Acho que isso é importante para
você entender outras músicas também. O cara chega querendo fazer o moderno, mas não tem base para
fazer o básico. Se você sabe fazer tudo, então faz o que quiser. É legal você pegar umas bases daqui,
outras dali, para fazer o seu som. O cara quer ser o Hamilton [de Holanda], mas não conhece o Luperce
[Miranda]. Primeiro porque não pesquisa. É preciso ter um interesse maior pela coisa.

Dudu 7 Cordas: tem que saber fazer tudo, o aluno chega lá [na escola de Choro] e já quer ser o Hamilton
de Holanda hoje, já quer tocar as músicas do Hamilton hoje. Nunca tocou bandolim e já quer um
bandolim de 10 cordas. Para quê? Ele nem usa as oito, para quê quer um de 10? O Raphael Rabello falou
assim numa entrevista: tu tem sete cordas, tu tem que usar as 7. Tem sete e vai usar seis? Tem que usar as
sete.

Henrique Neto: Quem toca violão e não conhece o trabalho do Dino, do Baden e do Raphael Rabello,
João Pernambuco e Dilermando Reis no Brasil não vai poder tocar violão. Porque não sabe a linguagem,
o que foi feito, o que já foi desenvolvido nessa área. Então, se você pular essa etapa eu acho que muito
provavelmente você não vai conseguir alçar vôos mais altos no violão.

Rafael dos Anjos: tinha um solo do Damásio, que foi o mestre do Jacob. Uma música chamada
“Quebrando o Galho”. Quando eu ia tocar aquela música com algum bandolinista, ele queria que tocasse
aquela música com aquele solo. Ele está esperando aquele lance, saca? Então, é legal tirar. Pô, você vai
estar estudando as escalas, os arpejos. Você vai estar decorando um solo maravilhoso de um puta
violonista. E você vai estar respeitando uma certa tradição também, né,bicho?

Conhecer a tradição, para os chorões, é saber exatamente como o choro foi


tocado pelos instrumentistas mais velhos – as notas da melodia, os acordes, as baixarias,
as levadas do cavaquinho e do pandeiro. E tocá-las dessa forma, nota por nota, acorde
por acorde. Cada música, cada choro, apresenta uma história de interpretações; para ser
tocado, essa história deve ser não somente conhecida, mas reproduzida. Mesmo que o
desejo do músico seja inovar naquela música, ele fará isso depois que dominar o modo
como ela foi anteriormente tocada. O relato de Rafael dos Anjos, transcrito acima,
evidencia essa necessidade. Os chorões, mesmo sendo abertos a inúmeras possibilidades
de inovação, demonstram conhecer profundamente a tradição do gênero, em detalhes
mínimos. E reconhecem nela fonte de conhecimento e aperfeiçoamento, como mostra o
relato do bandolinista Dudu Maia:

Dudu Maia: Outro dia teve uma produtora aqui, para uns shows com a gente, já tinha feito uns quatro
comigo. Só que ela não queria que fosse Choro mais, porque já tinha feito quatro semanas. Aí disse: como
é que eu vou divulgar essa coisa? Porque eu penso em você e só me vem chorinho. Sua imagem é
totalmente chorinho. Ela falou de forma meio pejorativa. Por um segundo, eu me senti discriminado.
Engraçado, velho, eu tava tocando esses tempos com aquela Gig de batera e baixo... Bicho, cada vez mais
eu estou a fim de ser chorão na minha vida. Até essa coisa de viajar para fora, aí sim você reconhece o
valor mesmo do que a gente faz aqui que é só nosso. Que é suingue, é malandragem, são todos os nossos
traços culturais. Eu tava tocando com batera, baixo... Eu já eliminei isso daí, quero ser cada vez mais pé
de serra.

156
Essa difícil relação entre convencional e moderno se dá não somente com o
encontro de jovens e antigos instrumentistas, mas na própria música de cada um deles.
Ou seja, eles identificam a existência de coisas convencionais, diferenciam daquilo que
é moderno e são capazes de executar o Choro de formas distintas. A seguir, Rafael dos
Anjos, jovem violonista, discorre sobre a capacidade de transitar entre diferentes modos
de tocar, desde o mais convencional até o considerado mais moderno:

Rafael dos Anjos: Tento tocar parecido com o que o cara toca, saca? Eu nunca vou tentar colocar uma
outra linguagem, ou então me sobrepor àquela pessoa. Por exemplo, se eu for tocar no Tartaruga, eu vou
encontrar com o Henriquinho. Com ele eu toco de um jeito. Mas se o Alencar pegar o violão, eu vou
tocar de outro jeito. Até porque o meu instrumento depende do 7 cordas. Então, eu respeito essa
hierarquia, saca? Tocando com o Laércio eu já toco de outro jeito, toco mais parecido, toco mais moderno
que ele gosta também. Porque ele toca o violão que é moderno também, mas gosta de tocar o violão mais
Regional, mais pé duro, tipo pé de boi, saca? Então eu toco perto dele. Até porque, se eu tocar um lance
distante dele, vai soar esquisito, saca? Se ele coloca ré maior, eu coloco ré maior com sétima maior e
nona e décima primeira aumentada, aí ferrou. Aí vai desconstruir toda uma estrutura. Então, eu sempre
respeito isso. Eu vou tocar com o Augusto, com o Poyares, que é um cara que eu toquei, eu procuro tocar
igual ao cara que tocou com ele, que é o cara que ele gosta. Então eu respeito isso, até porque isso me dá
a possibilidade de tocar vários estilos de violão. Toco esse violão mais tradicional, e consigo tocar esse
violão mais moderno. Então, eu acho isso legal também, ter essas duas vertentes.

A conexão entre tradição e novidade é presente no discurso e no cotidiano dos


chorões entrevistados. Sem ela, a tradição não se renova, e o resultado disso é sua
morte. A atualização da tradição permite que, no caso do Choro, as performances não
sejam somente a reprodução de práticas ancestrais, mas tenham um sentido presente.
Alberto Guerreiro Ramos (1981) sugere a possibilidade de existência de três vivências
temporais distintas nas culturas. Para ele, as coletividades policrônicas são as que
admitem esses três tipos de tempo. O modo como a comunidade do Choro se organiza
aponta para a existência de policronismo em seu ambiente. As ferramentas conceituais
de Guerreiro Ramos (1981) auxiliam a compreensão da relação do Choro com o tempo,
e conseqüentemente, permitem entender, conceitualmente, como se dá a conexão entre
tradição e novidade.

Os tipos de tempo descritos por Guerreiro Ramos (1981) são: o chronos - tempo
linear ou cronológico, o tempo antropológico ou convivencial e o kairos - o tempo de
salto. O chronos é o tempo que transcorre conforme a lógica causal que ordena passado-
presente-futuro. Nele, o passado é a causa do presente, e esse, a do futuro. O contexto
do tempo linear é altamente ordenado, estabelecido para a produção de bens e/ou para
a prestação de serviços (Ramos, 1981, p. 147). Dentro da lógica da causalidade
eficiente que caracteriza o chronos, os indivíduos comportam-se de acordo com regras

157
administrativas, ou de causalidade eficiente. O indivíduo faz o que deve ser feito, de
forma impessoal e desresponsabilizada. A vivência exclusiva desse tempo elimina o
espaço das decisões pessoais e da criatividade. Ela é, contudo, um imperativo de
sobrevivência, pois, por meio dela, o ser humano instrumentaliza a vida, a natureza e a
cultura e, assim, satisfaz suas necessidades vitais. Todavia, o autor aponta para uma
tendência da civilização ocidental contemporânea, cuja organização centra-se nas regras
de mercado, de eliminação das outras vivências temporais. Segundo ele, a nossa
sociedade tende ao monocronismo; ele afirma, porém, que a sociedade ideal é
policrônica. No caso do Choro, é evidente que sua comunidade vive o chronos, pelo
simples fato de estar no mundo. Muitos dos acontecimentos de seu universo têm relação
com as regras mercantis; muitas relações pessoais são feitas e desfeitas também em
função de questões relacionadas ao mercado, ao dinheiro, à fama, às colocações sociais
e profissionais, entre outros elementos que fazem parte da vivência do chronos. O
chronos é o único tipo de tempo que não pode ser eliminado de nossa vida, pois ele está
imbricado em nossa constituição biológico-cultural. As outras duas experiências
temporais podem ter seus espaços reduzidos e eliminados sem comprometer nossa
sobrevivência; Ramos (1981), porém, afirma que isso poderia transformar o mundo em
um universo mecanomórfico, onde não há espaço para o exercício da criatividade.

Ao segundo tipo de tempo, Ramos (1981) denominou convivial. Martin Buber (1977)
concede ao mesmo tipo de tempo o nome de tempo antropológico. O tempo convivial é
o tempo da relação pessoal face-a-face, em que o presente é a medida do passado e este
somente adquire sentido porque atualizado para o presente por meio da memória. Nessa
vivência temporal, são importantes os vínculos pessoais e o compromisso firmados na
imediatez dos encontros face-a-face. Nelas, as atividades dos indivíduos são orientadas
por critérios relacionados à realização dos objetivos intrínsecos à própria atividade, e
não por critérios ligados à eficiência instrumental.

O tempo antropológico, ou o tempo de viver a vida vivida, é uma experiência


temporal essencialmente distinta da do tempo cosmológico (que inclui o tempo cíclico
grego e o tempo linear cristão)5. Com referência ao tempo linear, os homens são capazes

5
Em ambas as representações de tempo (cíclico e linear) existe uma lógica que não é só temporal, mas é
também causal, que agrupa o passado, o presente e o futuro. O passado é causa do presente, o presente é
causa do futuro, não importando se o tempo é linear ou cíclico. O presente seria, então, o intervalo entre o

158
de compreender seus corpos, suas histórias, a natureza, o cosmos, tudo que é, enfim,
passível de ser apreensível pela razão. Ele possui passado, presente e futuro, lógica e
cronologicamente encadeados. O tempo antropológico tem sua origem no presente e
subverte a lógica passado-presente-futuro. Nele, o presente é a medida do passado.
Essa primazia não implica qualquer seqüência cronológica de causalidades. O que
importa é que, de acordo com Buber (1977), somente é capaz de possuir
verdadeiramente o passado quem consegue viver efetivamente o presente.

Essa posse do passado na perspectiva antropológico-filosófica buberiana não


significa ter conhecimento dos acontecimentos que porventura transcorreram, mas sim
ter a capacidade de atualizar esses acontecimentos no tempo presente, de modo que
possam ter efetivamente sentido no presente. Com efeito, Buber (1977) afirma que por
meio da memória conseguimos atualizar o passado. Em outras palavras, a memória
permite-nos transformar em presença presente uma ausência; pela memória, podemos
trazer o passado para o presente.

A vivência do tempo antropológico é condição de possibilidade para o


enraizamento, conforme conceituado por Simone Weil (2001). Em suas palavras:

Um ser humano tem raiz por sua participação real, ativa


e natural na existência de uma coletividade que conserva
vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos
do futuro. Participação natural, ou seja, ocasionada
automaticamente pelo lugar, nascimento, profissão, meio.
Cada ser humano precisa ter múltiplas raízes. Precisa
receber a quase totalidade de sua vida moral, intelectual,
espiritual, por intermédio dos meios dos quais faz parte
naturalmente. (Weil, 2001, p. 43)

O ser humano desenraizado é expropriado de sua própria vida, perde a capacidade


de conduzi-la e de encontrar nela sentido. Entra em estado de escravidão, pois necessita
de critérios e recursos exogenamente originados que dão sentido à sua vida. Inúmeros
fatores podem promover o desenraizamento. Simone via que tanto a modernidade

passado e o futuro, o que vem depois do passado e antes do futuro, ou a conseqüência do passado e a
causa do futuro. Dessa forma, o tempo é uma continuidade (tanto faz se cíclica ou linear) da qual o
presente faz parte, assim como o passado e o futuro. Aquilo que Guerreiro Ramos denomina tempo linear
corresponde ao que Buber denomina tempo cosmológico. A diferenciação entre os tempos
linear/cosmológico e antropológico não tem correspondência com a diferenciação entre tempos cíclico e
linear.

159
industrial capitalista quanto o socialismo real atuavam de modo a desenraizar o homem
da criação, da tradição, da história, engendrando as condições da mais plena escravidão
(Bartholo, 2002, p. 78).

No caso do Choro, a Roda é o locus principal de manutenção do tempo


antropológico. Não se deseja afirmar que nela essa vivência temporal é exclusiva;
tampouco que o tempo antropológico só seja vivenciado em Rodas de Choro. Porém,
pelas suas características (conforme descritas no capítulo X), observamos que sua
organização se orienta pelo tempo antropológico. A Roda é o local onde a existência
pessoal e os vínculos interpessoais efetivamente dão o tom da música. Com efeito, a
Roda é entendida como local de encontro de pessoas, abordagem coerente com o
entendimento buberiano de tempo antropológico (como sendo aquele em que acontecem
os encontros face-a-face). A Roda é, também, uma coletividade em que todos
participam; não é, como um espetáculo, uma aglomeração de pessoas que pretendem
assistir ou consumir uma apresentação musical. Essa participação, conforme nos ensina
Simone Weil (2001) tem potencial enraizante. A Roda, portanto, é instituição
fundamental no enraizamento das pessoas na tradição do Choro.

A tendência de redução dos espaços de vigência do tempo antropológico,


presente na sociedade contemporânea, centrada no mercado, tem potencial
desenraizante. Martin Buber, Alberto Guerreiro Ramos e Simone Weil apontam para a
necessidade de fundar a vida humana na realidade enraizada e enraizante do encontro
face-a-face. No transcorrer do tempo antropológico, a tradição atualiza-se, deixa de ser
passado e se torna presente. O tempo antropológico é uma experiência temporal difusa,
não coerente com linhas cronológicas, mas crucial para a plena realização da condição
humana. Se o Choro mantém um lugar onde o tempo antropológico é preservado, as
análises desses autores apontam para papéis importantes desempenhados por ele e sua
tradição na vida concreta das pessoas que participam de seu ambiente. Participar da
coletividade chorona nos enraíza; esse pequeno fato, em um mundo em que crescem as
potências desenraizantes, torna essa participação vital. Ela pode trazer, aos chorões,
uma plenitude não encontrada de outras maneiras. Assim, as motivações para o
envolvimento no Choro estão para além do simples desfrute de belas músicas, ou do
aprimoramento de instrumentistas, ou da possibilidade de projeção como músico. A
realização musical de um chorão pode estar no ordinário fato dele poder tocar e estar

160
com outros chorões, pois isso significa estar enraizado em uma tradição. De fato, o
seguinte relato evidencia, em outras palavras, a importância do enraizamento, e a
possibilidade de ser realizado por meio do Choro:

Marcelo Lima: E a Roda é interativa, totalmente interativa. Numa Roda, você nunca tocou, mas você
pega um ganzá ali, ó, e já está tocando, conversando, participando. Porque as pessoas que ficam em volta
da Roda participam da Roda. Isso é muito importante. É a questão do valor da música. É quando a música
realmente tem um valor humano muito grande. Não fica aquela coisa de ganhar dinheiro, porque
infelizmente existe esse lado profissional, e o lado do ego; quanto mais se admira o cara... Carlos Malta –
caramba, o Carlos Malta!!!! – aí você paga 50 reais para ver ele lá. Claro, porque que coisa é você ver o
cara e tal. Enquanto na Roda não vai ter nada disso. Você pode até ir para ver alguém que você acha que
toca legal. Mas esse alguém acaba de tocar e você já está abraçando ele ali, já está conversando, já troca
uma idéia. É pessoal, a Roda, né?

Tunes et al. (2006) afirmam que a salvaguarda de uma tradição é importante na


medida em que cria e mantém os patrimônios da comunidade, podendo ser destacado,
dentre eles, o patrimônio relacional, constituído por relações interpessoais. Os
patrimônios culturais, sociais, econômicos, entre outros, não estão desvinculados do
patrimônio relacional, e sua manutenção e ampliação também se fundamentam na
tradição. Uma prática cultural, como uma Roda de Choro, por exemplo, que tem
capacidade de criar e manter patrimônios relacionais, pode ser considerada o que Ivan
Illich (1976) denomina ferramenta convivencial. A tradição adquire sentido presente
quando permite, facilita e promove o exercício da convivência. De acordo com essa
argumentação, a Roda de Choro tem papel fundamental na manutenção e atualização da
tradição do gênero. Essa perspectiva é coerente com a de Roberto Moura (2004), que
identifica, na Roda de Samba, o lugar de atualização da tradição.

A terceira vivência temporal descrita por Guerreiro Ramos (1981) diz respeito
precisamente ao modo como a tradição se modifica, ou seja, à forma como ela se deixa
alterar por inovações. Segundo ele, o tempo de salto é aquele em que ocorre o
desenvolvimento, pois é onde a criatividade humana é exercida. O tempo de salto não se
refere ao chronos grego, nem ao tempo antropológico buberiano, mas sim a outro
conceito temporal também grego, o kairos. A palavra kairos designa um tempo não
quantificável que é constitutivo das percepções humanas do processo que conduz a
eventos críticos (Ramos, 1981, p. 169). A vivência do tempo de salto é uma experiência
simbólica, em que a pessoa rompe os limites sociais que se lhe impõem e, lançando às

161
profundezas, aprende a ajudar-se a si mesma (Kierkgaard6, 1962, p. 58, apud Ramos,
1981, p. 170). O kairos é o tempo do exercício da criatividade individual, e a ação das
pessoas é auto-motivada, autônoma e responsabilizada. A vivência do kairos permite o
máximo de opção pessoal e o mínimo da subordinação a prescrições operacionais
formais (Ramos, 1981, p. 152). O kairos é o tempo da aventura artística e criativa,
vivenciado em momentos críticos de ruptura. O desenvolvimento, se concebido de
acordo com o tempo de salto, cuja medida é a ruptura, pode ser entendido como o
aparecimento de novidades.

A história do Choro, com efeito, está repleta de eventos críticos de mudanças


associadas ao seu desenvolvimento. Para encontrar um exemplo, basta olhar o sumário
do livro de Cazes (2005), e observar que o autor concedeu ao Capítulo 10 o título de
Carinhoso e Lamentos: Revolução no Choro. Ele afirma que tais Choros mudaram a
história do gênero; todavia, geraram polêmica. A estranheza causada pelo lançamento
desses choros de Pixinguinha, segundo o autor, se deve ao fato deles apresentarem
formatos diferentes dos choros que se faziam até então. Os dois Choros revolucionários
não seguiam à risca o padrão Rondó, forma usual do Choro; para complicar ainda mais,
“Lamentos” apresenta uma pequena introdução. Um crítico musical da época, Cruz
Cordeiro, escreveu na Revista Phonoarte que, em Lamentos, não se encontra um
caráter perfeitamente típico; quanto ao Carinhoso, afirmou: parece que nosso
compositor anda muito influenciado pelos ritmos e melodias do jazz (...), e termina: não
nos agradou. Apesar de os choros continuarem sendo escritos em 3 partes, a existência
de choros em duas partes, com ou sem introdução, se consolidou na tradição do gênero,
tornando-se comum. Pixinguinha, considerado o maior expoente do Choro, foi
responsável ainda por mudanças em sua condução rítmica, com a introdução de
instrumentos percussivos, como o pandeiro, omelê, prato e caixa, entre outros, ainda nos
primórdios do gênero (Cazes, 2005). Pixinguinha também deixou um legado ao criar
seus famosos contrapontos no saxofone, mais tarde em sua carreira.

Outros proeminentes nomes do Choro também ousaram inovar. Garoto, de


acordo com Cazes (2005), conseguiu amalgamar informações oriundas do jazz e da
música de concerto, fazendo com isso um tipo de composição altamente moderna,

6
Kierkegaard, Sore. The Present Age. New York, Harper & Row, 1962.

162
comunicativa, tecnicamente bem resolvida (...). Livingston e Garcia (2005) afirmam que
Garoto revolucionou o Choro com sofisticação harmônica sobre ritmo e melodia
tradicionais; suas composições eram diferentes de tudo o que havia sido feito antes. Por
fim, afirmam que foram tão importantes as inovações de Garoto, que ele pode ser
considerado o precursor da Bossa-Nova.

Jacob do Bandolim, de acordo com Livingston e Garcia (2005), criou um novo


padrão para as composições no Choro, ao introduzir as tríades diminutas e os acordes
com sétima. Os autores afirmam que esse padrão é ainda abraçado por muitos. Waldir
Azevedo, por sua vez, criou o cavaquinho solo. Trilhando a história do Choro,
observamos que eventos críticos de mudanças estão associados ao gênio criador de
grandes intérpretes e compositores. Essas mudanças podem ocorrer em todos os
elementos da música, desde instrumentação, passando pela harmonia, melodia, ritmo,
forma, técnica, enfim, tudo está sujeito à mudança. Mas, de forma geral, sempre que
uma mudança se introduz, cria controvérsia, polêmica, e não agrada a todos. Isso ocorre
justamente porque as mudanças não são graduais; elas sempre representam o
rompimento com alguma convenção.

No exato ponto de falar sobre as mudanças contemporâneas do Choro, os


músicos entrevistados mostram discordar em vários aspectos. Fornecem definições
imprecisas, ou mesmo afirmam não conseguir definir alguns novos rumos que o Choro
tem tomado. Mas não deixam de manifestar opinião sobre tais acontecimentos, que
demonstram conhecer bem. Reconhecem vanguardas do gênero e as associam com
instrumentistas contemporâneos.

O rompimento com as convenções da tradição é facilmente identificável por


aqueles que vivem mergulhados no gênero. Mas o difícil não é isso. Segundo os
entrevistados, trata-se de conseguir identificar aquilo que pode ou deve e aquilo que não
pode ou não deve ser alterado. É precisamente nesse ponto em que não são unânimes.
Em termos de instrumentação, os chorões, em geral, são favoráveis à inserção de novos
instrumentos no gênero, mas alguns deles colocam ressalvas:

Tonho do Pandeiro: Nós temos aquele Dirceu Leite, né? Ele traz vários tipos de instrumentos. Às vezes
uns saxofones diferentes, um barítono, tuba. Às vezes colocam a tuba pra fazer o papel... Não tem no
Choro, mas colocam para fazer o papel do 7 cordas. [No caso da percussão], eu acho que um surdo, não
digo bateria, porque aí já passa pro outro lado, mas um surdo, uma caixeta, um tamborim determinadas
músicas (...) Eu acho que, tocando suavemente, eu acho que fica legal.

163
Augusto 7 Cordas: tem que trazer formações diferentes com teclados, instrumentais modernos, teclados,
contrabaixo. Não sou contra isso.

Laércio Pimentel: A própria formação do Regional e do próprio Choro (...) ele já é sincrético. Você tem
elementos harmônicos europeus, ritmo africano, música brasileira, elementos indígenas. Então, ele, por si
só, é uma mistura. Porque se o camarada chegar com uma trompa, um fagote bem tocados, fica um
negócio diferente do usual. Às vezes pode ficar muito interessante, pode fazer um arranjo pra harpa e 7
cordas. Por que não? A música não tem essa fronteira de instrumentação. Tem gente que - talvez os mais
puristas sim - fala que não pode ter tamborim na Roda. Por que não, velho? Por que não pode?

Marcelo Lima: Acho que é muito bem vindo, instrumentos de fora, a sanfona.... Acho que também todo
instrumento é instrumento. Todos produzem sons. Todos são bem vindos. Se o cara vai tocar acordeon,
bandoneon, ou dgeridoo, como chama aquele australiano? Se o cara consegue fazer uma melodia, e ele
consegue tocar o choro, é bem vindo. É uma forma de transformar a música. Porque a gente não pode
ficar simplesmente congelado no tempo.

Henrique Neto: é uma questão de linguagem, né? Você pode dar a sua contribuição nesse sentido, se for
de bom gosto, e que não descaracterize muito. Porque não adianta também a gente querer misturar muito
as coisas. Porque senão fica uma forçação de barra. Porque a coisa foi construída de uma maneira, então
tem uma maneira de ser feito com os instrumentos que tem um apelo ali para aquela música. Por
exemplo, uma guitarra com distorção no Choro, eu acho que não encaixa, em determinados... o
Armandinho faz isso muito bem, mas ele pega choros que tem a ver com esse lance, choros mais
animados, sacou? Aproveitando a levantada de bola da música, entendeu? Porque, se ele pegar uma
música lenta, uma coisa sofrida, e botar uma guitarra com distorção, vai ficar forçação de barra. Então
tem que ter bom gosto. Mas eu não acho que seja impossível não.

Leonardo Benon: Acho legal outros instrumentos. Vê o Cacai tocando viola [caipira] na Roda... Toca
bem, acho que o cara pode até tocar guitarra, o importante é manter a linguagem.

Trinta anos depois da apresentação de Armandinho Macedo no Segundo Festival


Nacional de Choro, aquela novidade por ele apresentada é ainda olhada com
desconfiança por chorões bem mais jovens do que ele, como é o caso do violonista
Henrique Neto e do cavaquinista Leonardo Benon. Eles afirmam que a guitarra elétrica
pode até ser usada, desde que com bom gosto e mantendo a linguagem. O uso da
bateria, embora seja freqüente em apresentações de Choro contemporâneas, inclusive no
Clube do Choro de Brasília, é criticada pelo pandeirista entrevistado. Por outro lado,
nenhum deles se mostrou totalmente contrário à inserção de novos instrumentos no
Choro, nem à existência de formações instrumentais diferentes do Regional.

Alguns entrevistados mostraram rejeitar as alterações na harmonia que vêm


ocorrendo nas performances do Choro. Outros entrevistados não fizeram referência a
esse aspecto.

Dudu 7 Cordas: Você não está tocando a harmonia do choro. Está empenando sempre, então não é Choro.
O violonista que acompanha, empena sempre, não consegue fazer um Fá maior com a tríade. O violão de
7 cordas não sabe fazer um arpejo, só estuda escala. Se for fazer uma Roda de samba, vai tocar tudo
empenado, vai dar base pra quem? O sete cordas faz só pentatônica, e o cavaquinho faz ré menor com
sexta e sétima maior. Se o cavaquinho só usa isso, não é mais samba e não é mais Choro. Então, a coisa
vai mudar. Não vai ser mais Choro. Bom pra quem está indo para esse lado, porque eu não vou tocar isso.

164
E bom também para quem está ficando nessa parte do meio termo. (...) Acho que vai acabar mudando o
nome disso aí. [Meu objetivo é] tocar uma coisa que eu estou gostando, sem objetivo de empenar as
coisas. Também não quero ser o que chamam de tradicional. Eu quero fazer um som sem muita loucura,
sem muita doideira, que hoje em dia está tendo. Meu objetivo é esse. Sem fugir dos princípios, sem
esquecer os princípios de samba e de Choro.

O violonista Dudu 7 Cordas claramente rejeita as alterações nas harmonias do


Choro; já o cavaquinista Leonardo Benon aceita naturalmente essas inovações. Ambos
são jovens instrumentistas, evidenciando que, nem sempre, a aceitação ou rejeição de
alterações no Choro vincula-se à idade.

Leonardo Benon: As influências de hoje são da bossa nova, do jazz. Essas harmonias quebradas... é
diferente o entendimento. Você pega as gravações do Choro Livre... É tudo diferente, o jeito de tocar... É
diferente do que nêgo fazia no Rio de Janeiro. Você vê lá aquela coisa quadradinha... É outra história, é
legal, é legal também.

O relato a seguir mostra que o violonista de 7 cordas, pertencente à primeira


geração do Choro em Brasília, tem restrições ao excesso de virtuosismo nas
performances do violão, que ele considera uma tendência contemporânea:

Augusto 7 cordas: agora, fazer essa coisa de metralhadora musical... transformar o instrumento numa
metralhadora musical, como esses violonistas mais novos aí... Na minha concepção, isso já é um exagero.
Porque eu vejo o 7 cordas como um instrumento de acompanhamento. Um instrumento para preencher os
espaços vazios quando a melodia pára. Então, você não pode competir com o solista.

Já outro violonista vê mais possibilidades para o violão, além do acompanhamento:

Henrique Neto: Depois do trabalho principalmente do Raphael Rabello, que introduziu esse instrumento
em violão solo, outras pessoas estão desenvolvendo isso. E você pode pegar grande parte dos violonistas
que já estão seguindo essa linha também. Então, o violão de 7 cordas tem muito recurso, ele tem uma
região mais grave, que você, sabendo usar, não precisa de um acompanhamento... (...) Então ele é um
violão que se presta muito a esse trabalho também, de solo.

Um aspecto interessante quanto à modernização do Choro diz respeito à sua


relação com o jazz norte-americano. Na década de 1920, Pixinguinha recebeu críticas às
músicas Lamentos e Carinhoso ancoradas na idéia de que tais composições importavam
elementos do jazz, e não poderiam mais ser consideradas música brasileira. Noventa
anos depois, ninguém associa Carinhoso e Lamentos com jazz norte-americano. Essas
são composições brasileiríssimas. Mas alguns repetem a mesma crítica feita por Cruz
Cordeiro ao Carinhoso de Pixinguinha, quando se trata de avaliar as inovações
contemporâneas do Choro. Outros, contudo, afirmam ser importante a influência do jazz
em suas próprias formações, e afirmam buscar aproximação com esse gênero:

Dudu Sete Cordas: Dá pra contar no dedo as pessoas que não estão nessa onda de tocar jazz.

165
Marcelo: Aqui em Brasília, os caras que eu conheço tocando há dez anos, quando eu me tornei
profissional, e que tocava só Choro, hoje todos estão tocando jazz. Quase todos. Tocam mais pro lado do
jazz. Você vai ver show deles é assim: você vê o Choro, as interpretações, mas vê que a linguagem já
entrou na linha do jazz.

Augusto: O que você tem visto ultimamente, salvo engano, é jazz.

Leonardo Benon: hoje em dia, você vê o pessoal tocando... A galera anda tocando muita coisa com
linguagem modal, e o Choro não é baseado por aí, a harmonia do Choro não é baseada na do jazz. Tanto
que até o Garoto vir dos Estados Unidos... porque o Garoto fez uma revolução na parte harmônica da
música brasileira. Antes, a música brasileira se restringia no máximo a tétrades, uma coisa básica, um
acorde com sétima. Aí o Garoto viu o que estava sendo feito nos Estados Unidos e conseguiu adaptar.
Ficou moderno para caramba, legal! O Choro está sempre aberto para essas coisas, mas ele nunca perdeu
a linguagem na parte da melodia. A mesma coisa no contraponto. O pessoal está pegando muitas escalas
de jazz. É muito mais fácil. O cara aprende um desenho de uma escala no violão. Aí, se ele botar um
semiton pra frente, ele faz o mesmo desenho. Muito mais fácil você aprender assim do que na corda solta.
Fazer no arpejo, tocar com escalas armadas é muito mais fácil. Mas o som fica mais preso.

Frango: Porque, hoje em dia, a gente está fazendo um quarteto. O “Galinha Caipira Completa” não
envolve só o Choro. Envolve o Choro, o baião, o jazz. São vários elementos que compõem o estilo de
música que é esse trabalho novo que a gente está fazendo. (...) Então, tem o negócio do cavaquinho no
jazz, por exemplo. Dessas influencias do jazz, por exemplo. Dessas misturas todas que a gente ta fazendo
agora nesse quarteto

Laercio: Essas aulas de improvisação que eu tive são mais do mundo jazzístico, né? Porque a gente tem a
escola da vivência do Choro. Você aprende a tocar. Mas uma escola tão fundamentada como a do jazz, o
Choro não tem.

Henrique Neto: Eu procuro estudar música clássica, que é muito importante, e jazz. Não me fecho muito.

Rafael dos Anjos: No jazz tem a escala alterada, e no Choro já não tem muito. Dependendo do choro, né?
Hoje em dia, com tantas informações, os compositores já estão botando isso. O próprio Rogerinho
[Caetano], o Hamilton [de Holanda]. Na música deles já tem isso.

A estranha relação do Choro com o jazz, de fato, remonta às origens do gênero


brasileiro. Se o Choro nasceu já filho de outros gêneros e ritmos, embora tenha seguido
seu próprio rumo, como nos mostra sua história, nunca se desvinculou completamente
daquelas que lhe deram origem ou de outras músicas do estrangeiro. O que se deseja
afirmar é que o Choro nunca deixou de olhar e ouvir a música produzida em outros
lugares. As tendências predominantes na música erudita e no jazz, principalmente,
foram e ainda são importantes influências. Portanto, embora mesmo que o pensamento
contemporâneo tenda a não mais considerar a música européia (ou o jazz, ou qualquer
outro gênero) como centrais, a própria música brasileira, os músicos brasileiros, trazem,
como parte de sua tradição, o hábito de olhar para fora do Brasil, buscando identificar
vanguardas, novidades e tendências. Essa característica do Choro não pode, portanto,
ser ignorada. Carlos Sandroni (2001) afirma que, no período que coincide com o

166
surgimento do samba, em que coabitavam os ambientes musicais populares a polca, o
lundu e o maxixe, houve uma mudança nos ritmos africanos, caracterizados por
acentuada contrametricidade:

Essa forte contrametricidade o submeteu [o samba] a uma espécie de


recalcamento operando a diversos níveis: cognitivo, pois o ouvido
tende a rejeitar ou reinterpretar informações essencialmente
diferentes dos padrões habituais numa cultura musical dada; social,
pois sua diferença excessiva remetia a seus portadores - os negros,
escravos até 1988, marginalizados desde então – no que possuem de
irredutível, de desconhecido, de incontrolável. Finalmente, o ritmo em
questão foi submetido também ao que poderíamos chamar de
recalcamento estético, pois mostrando de maneira demasiado gritante
a marca de música de negros, ele fazia-se atribuir a mesma
inferioridade atribuída a seus portadores. De todas essas atribuições
há inúmeros exemplos na literatura. Eles são manifestações verbais
do recalque da música afro-brasileira, assim como a ausência de
registros de ritmos demasiado contramétricos antes de 1930 é
manifestação musical do mesmo recalque.” (Sandroni, 2001, p. 222).

Podemos dizer, a partir da analise de Sandroni (2001), que a música brasileira,


em geral – e isso é válido para o Choro -, não somente é aberta às influências do
estrangeiro, mas padece (ou ao menos, ao longo de sua história, padeceu) também de
um complexo de inferioridade frente às músicas produzidas na Europa e nos EUA. De
alguma maneira, a música brasileira tenta se igualar, ser aceita, ou ser considerada uma
música digna do reconhecimento dentre os grandes nomes da música mundial. Tamanha
é a complexidade do universo musical brasileiro que, sem se livrar do recalque, a
música brasileira conseguiu (e consegue) ser original. O Choro, como música brasileira,
carrega em si esse paradoxo: embora sendo original e se reconhecendo como tal, segue
tentando se afirmar perante a música do exterior; para isso, assimila seus elementos e se
deixa influenciar por suas tendências. Negar isso, ou sugerir que o Choro dê as costas
para a produção musical estrangeira, é negar um elemento que faz parte de sua própria
essência.

A figura a seguir ilustra, imageticamente, o paradoxo citado acima.

167
Figura 1. Os Oito Batutas, no início do século XX.

Observamos que a fotografia tenta tornar o conjunto Regional de Pixinguinha


semelhante a uma banda de jazz. O pandeiro não está presente, e foi substituído pela
bateria. O violão, parte dos Regionais de Choro desde sempre, também está ausente. Em
contrapartida, estão presentes dois saxofones, o trombone e o trompete; o banjo ocupa o
lugar do cavaquinho. Essa foto serviu como divulgação dos Oito Batutas, e evidencia
que, àquela época, parecer-se com um conjunto de jazz era valorizado; ainda assim, as
composições tocadas eram primordialmente choros. Do ponto de vista musical, a
mesma postura era válida. Por exemplo, o Choro 1x0, de Pixinguinha, foi elaborado
visando demonstrar a capacidade virtuosística dos instrumentistas brasileiros, provando
que poderiam fazer frente aos norte-americanos do jazz, famosos pelo virtuosismo.

Em Brasília, uma novidade instrumental é o grupo Galinha Caipira Completa,


formado por jovens instrumentistas (que, inclusive, foram entrevistados) ligados ao
Choro (três integrantes do quarteto são professores da Escola de Choro Raphael
Rabello). A imagem de divulgação do grupo não deixa de ser uma atualização da foto
dos Oito Batutas:

168
Figura 2. Galinha Caipira Completa, no início do século XXI.

Interessante é também o texto de identificação do grupo, publicado no site de


relacionamento myspace (www.myspace.com/galinhacaipiracompleta):

O grupo instrumental, formado pelos músicos Márcio


Marinho (Cavaquinho), Rafael dos Anjos (Violão),
Hamilton Pinheiro (Contrabaixo) e Rafael dos Santos
(Bateria), tem uma proposta totalmente inovadora em
termos musicais. Versáteis por terem influências e
formações musicais variadas, que vão do choro, samba,
baião ao jazz, compõem um estilo bem contemporâneo de
se fazer boa música instrumental com swing
brasileiríssimo e influência dos grandes improvisadores
do jazz. O resultado é um som vigoroso, vibrante, preciso
e inesperado. Composições e arranjos bem elaborados,
na dose certa, sem exageros.

As imagens nos mostram que a olhada para o exterior conformou e conforma o


Choro. Sem essa olhada, ele certamente seria outro. O paradoxo que advém do modo
como olha para o exterior também está, de alguma forma, inscrito em sua sonoridade.
Mas isso significa que o Choro anda, desde sempre, à reboque do jazz? Ou que o
desenvolvimento do gênero depende daquilo que é produzido no exterior? A resposta
óbvia é: não. Isso, contudo, não elimina a possibilidade de o Choro manter, por tradição,
o hábito de se inspirar no jazz e em outras músicas estrangeiras.

169
Ainda no início do Século XX, na Semana de Arte Moderna de 1922, essa
questão era amplamente discutida, não somente em relação à música, mas em termos de
toda a cultura brasileira. Um dos conceitos mais interessantes cunhados pelos
modernistas é o da antropofagia. O princípio antropofágico, segundo Rolnik (2000, p.
452) é engolir o outro, sobretudo o outro admirado, de forma que partículas do
universo desse outro se misturem às que já povoam a subjetividade do antropófago e,
na invisível química dessa mistura, se produza uma verdadeira transmutação. De
acordo com ele, a cultura brasileira funciona como um estômago, processando tudo o
que vem de fora, transformando aquilo em algo próprio, sem que isso comprometa sua
identidade. Os dois manifestos produzidos por Oswald de Andrade durante a década de
1920 – Manifesto da Poesia Pau-Brasil e Manifesto Antropófago (Schwartz, 1995),
defendem o livre contato das culturas, sem a preocupação em definir o que é cultura
local e o que é cultura estrangeira. Todavia, alertavam para o perigo de a cultura externa
engolfar por completo a cultura brasileira, ainda em formação, descaracterizando-a; por
outro lado, criticava o isolacionismo e o conseqüente exotismo da cultura (e da música)
brasileira, que a transformariam em “macumba para turistas”.

O princípio antropófago dos modernistas foi uma expressão artístico-filosófica


da resposta ao paradoxo da cultura brasileira, que, embora buscando autenticidade, foi
conformada numa realidade de dependência, pela condição colonial do Brasil. O
aforismo mais famoso do Manifesto Antropófago, que muito bem expressa a tensão
desse paradoxo, é TUPI OR NOT TUPI, uma paródia da dúvida existencial hamletiana
(Schwartz, 1995, p. 141). As falas dos chorões sobre a modernização do Choro e sua
relação com o jazz são, sem dúvida, uma atualização dessa dúvida Andradeana.

A reflexão do filósofo Leopoldo Zea (1978), acerca do lugar do homem latino-


americano no mundo, tem profundas implicações para o entendimento da relação do
Choro com as músicas estrangeiras. De fato, nosso gênero depara-se continuamente
com o problema da autenticidade, da originalidade e da universalidade. Repete
constantemente a indagação se é ou não uma música autêntica e original, que é parte de
uma questão maior, se somos ou não um povo capaz de fazer música de qualidade. Essa
é a dúvida de uma música que enfrenta a questão do colonialismo e da dependência.
Mas é autêntica a música que emana da realidade concreta vivida por aqueles que a
produzem. Portanto, considerando que a realidade em que se encontra o povo brasileiro

170
é essencialmente diferente da realidade norte-americana, sobretudo pela dependência,
mas também pela miscigenação racial e cultural, sua música irá refletir as questões que
emanam dessa realidade, que são diferentes das questões que a música ocidental se
propôs. Em outras palavras, a originalidade da música requer seu enraizamento em uma
realidade concreta e vivida. E tal realidade abarca uma constante olhada para o exterior.
Por isso, a dúvida “é choro ou é jazz?” existe desde os primórdios do Choro, e podemos
dizer que continuará existindo. Sem, com isso, que perca sua autenticidade e
originalidade.

A música brasileira depara-se também com a questão de sua universalidade.


Considerando que qualquer música, para ser música, necessita ser universal (ou seja,
deve ser capaz de transmitir algo a qualquer homem), a música brasileira – o Choro -
não deve ser a etno-música do homem brasileiro para esse mesmo homem brasileiro;
mas uma música que, embora tenha sua origem na realidade desse homem, é realmente
uma música sem mais, do homem para o homem, onde quer que se encontre.

Buscando tornar sua música universal, os chorões andam mudando as coisas,


com influências do jazz e do que se convencionou chamar world music. Para eles, estar
aberto a outras influências é condição de possibilidade de expansão do Choro, e de seu
reconhecimento no exterior. O relato de Rafael dos Anjos não deixa dúvidas quanto ao
seu interesse por outros gêneros musicais; deliberadamente, se deixa influenciar por
eles:

Rafael: O que eu coloco na minha música é tudo o que eu aprendo, o que eu ouço. Tudo o que me inspira.
Não é só Choro. Eu gosto de jazz, de world music, de música pop para caramba. Eu curto mesmo. Gosto
de bossa nova. Eu gosto do Brasil inteiro, mas gosto de música americana também. Gosto do que eles
fazem lá. Eles são muito competentes no que fazem, né? É tudo isso. A minha música é tudo isso. Teve
uma época na minha vida que eu ouvi muito Pat Matheni ; ele infuenciou muito a minha música, porque
ele tem uma forma muito simples de compor. Até botei umas para o Frango tocar, passei a partitura.

O flautista carioca Fábio Luna, por sua vez, defende a idéia de que as fronteiras
entre gêneros musicais são artificais, pois eles se influenciam mutuamente, e são abertos
a influências de todo o tipo de música.

Fabio Luna: E essa história do jazz. A gente viu no Youtube o Tom Jobim falando sobre o que é o jazz,
né? Ele disse que originalmente é tudo o que balança. Depois foi estreitando essa visão, e descobriu-se
que o jazz é uma estrutura musical que tinha uma certa harmonia. Com o Choro também: era uma coisa
muito mais ampla, e depois começaram a estreitar uma coisa que era muito mais ampla.

171
Um dos aspectos mais interessantes mostrados pelas entrevistas, no âmbito da
modernização do Choro, refere-se à citação muito freqüente, por parte dos músicos
entrevistados, quando discorriam sobre inovações no Choro, da música de Hamilton de
Holanda. É importante enfatizar que Hamilton de Holanda não foi mencionado pelos
pesquisadores. A referência a ele se deu de forma espontânea. Esse notável bandolinista
teve sua carreira iniciada ainda na infância, e, muito jovem, tornou-se um virtuose do
bandolim. Foi fundador da Escola de Choro Raphael Rabello mas, por força dos
compromissos de sua profissão de músico, fixou residência no Rio de Janeiro. Apesar
disso, o som das dez cordas de seu bandolim ecoa ainda em Brasília. A relação que os
músicos guardam com ele é fundamentalmente de reverência e admiração, ainda que
alguns achem sua música por demais complexa, ainda que outros pensem que não se
trata mais de Choro, ainda que não consigam sequer defini-la. A seguir, os relatos dos
chorões sobre a nova cara do velho Choro, como o próprio Hamilton já definiu sua
música:

Dudu Maia: Eu acho que o som do Hamilton é mais um som do Hamilton. Acho que ele vai fazer tanto
som ainda... Porque ele já fez um monte de coisa, já gravou muito, já fez muita coisa diferente.
Recentemente, veio com aquele projeto íntimo, só tocando música conhecida bem relax, bem à vontade.
Eu acho que ele está trazendo muita gente desentendida para o entendimento, acho que ele tem esse
poder. Como o Yamandú também. Esse projeto Brasilianos, que é jazz ou World music, sei lá, uma
parada que virou uma linguagem universal, eu acho que tem a ver com o que está acontecendo de novo no
mundo. (...) Como o Hamilton está tocando no mundo inteiro, ele está recebendo muita informação. A
música dele virou uma coisa universal, entre aspas. Porque ele está vendo muita gente legal tocando, de
várias etnias. Não tem como não mexer com o cara, ainda mais inteligente como ele é. Ele consegue
absorver as paradas e sabe usar, né? Com esse négocio que eu tive com ele, de tocar com o Mike Marshal,
o cara do blue grass, eu vi o contexto do bandolim americano. Ele já estava lá há algum tempo. Ele
conseguiu unificar isso no bandolim dele. Ele absorveu aquela informação, e aplica e usa.

Dudu Maia descreve a encarnação do princípio antropófago na música de


Hamilton de Holanda, que consegue utilizar o bandolim norte-americano na música
brasileira. Ainda assim, ele não classifica a música de Hamilton como Choro, nem
como jazz. Deixa claro para o leitor que não é capaz defini-la. Outros instrumentistas
compartilham essa opinião:

Leonardo Benon: Vê o Hamilton, não tem nem o que falar do cara, o cara é um monstro. Sabe tudo. Foi
fazendo o Choro moderno, Choro moderno, e agora está fazendo o som dele, que não é Choro. Na
verdade não é nada, é o som do Hamilton.

Marcelo Lima: Inclusive, falando do nosso mestre Hamilton, o que aconteceu com ele, na verdade foi
isso. De Choro, ele passou a tocar world music, e hoje em dia, sei lá o que ele toca. Que música é essa.
Não tem nem estilo definido. Daqui alguns anos é que vai se definir o estilo que ele toca. Mas eu tenho
certeza que a onda dele ter tocado jazz, outras coisas, fez com que ele , quando volta para o Choro, tenha
um acervo, um arquivo de possibilidades maior.

172
Reco do Bandolim: Hamilton de Holanda, quando você vê ele tocando, ele tem uma pegada do Choro. Só
que o que ele faz hoje não é Choro, ele tem uma linguagem, quando ele improvisa, fruto do talento dele,
do estudo dele. Ele tem elementos do jazz ali.

Apesar de não rotularem o som do Hamilton como Choro, os entrevistados


reconhecem nele um profundo conhecedor da tradição do gênero:

Dudu Maia: o Hamilton tem um outro jeito de tocar música brasileira, né,velho? Agora, bota ele numa
Roda de Choro. Ele vai tocar tudo e para caramba, e vai ficar na linguagem, e vai fazer Choro também.
Ao mesmo tempo [em que ele mesmo não classifica sua música como Choro] eu já ouvi ele falar que tudo
é Choro.

Leonardo Benon: mas, se você falar: Hamilton, vamos fazer um chorinho? Ele vai usar a linguagem.

Na genialidade da música de Hamilton de Holanda parece estar presente sua


capacidade de articular tradição e novidade. O próprio Hamilton demonstra ter
consciência disso, ao escrever, em grandes letras, no encarte de um de seus CDs, a
frase: Moderno é Tradição.

Os relatos, de forma geral, indicam que Hamilton de Holanda é uma grande


referência para os jovens instrumentistas de Brasília. Mas os que já têm alguma
experiência, e são professores, por exemplo, enfatizam que tocar como o Hamilton é
praticamente impossível. Ensinam aos seus alunos que é preciso primeiro ouvir o Jacob,
ou seja, ter conhecimento e domínio da tradição do Choro. Hamilton de Holanda, assim
como outros jovens instrumentistas de talento impressionante, formados em Brasília,
inauguraram, com ele, o que se denomina “uma nova geração” do Choro candango. Mas
interessante é observar a convivência de duas gerações distintas do gênero, e o diálogo
travado entre elas. O depoimento de Reco do Bandolim mostra, com clareza, a relação
entre essas duas gerações:

Reco do Bandolim: eu estou tendo o privilégio de conviver com duas gerações bastante opostas. Eu
convivi com o Choro tradicional - eu pretendo escrever um livro -, e o conceito era um conceito bem
diferente, muito diferente.

Uma diferença marcante entre as duas gerações do Choro em Brasília está na


possibilidade de, contemporaneamente, adotar-se a música como profissão. Isso exige
do músico a aquisição de novas habilidades, como a leitura de partituras, como mostra o
relato de Reco do Bandolim. Augusto 7 Cordas afirma que essa mudança alterou,
também, a relação que os instrumentistas têm com a música:

173
Augusto 7 Cordas: Na minha época não tinha essa questão da profissionalização. Assim, do cara seguir
carreira de músico, ou tocar por cachê. A gente tocava muito por farra e tudo, né? Quando eu tinha lá
minha adolescência, quatorze, quinze anos, tinha muito esse négocio de você tocar por diletantismo, né?
Agora, a coisa mudou muito. Hoje, às vezes você liga para a pessoa e você já sabe que o cara vai...Você
já tem que dizer para o cara quanto que é o cachê. O cara fala: tá bom, Augusto. Quanto é que é o cachê e
tudo, né? Eu, particularmente, penso assim: se o negócio for profissional, eu já falo: vamos tocar de tal
hora até tal hora, e o cachê vai ser de tanto.

Tonho do Pandeiro: Por exemplo, essa turma da velha guarda, eles se reuniam. Eles tinham uma sala aqui
na 305 norte, e toda a segunda feira eles iam ensaiar, brincar. Ninguém tocava profissionalmente, mas era
sagrado: toda segunda feira eles tocavam.

O pandeirista Tonho, que conviveu intensamente com a velha guarda, aponta,


também, para um maior grau de profissionalização dos músicos mais jovens. Dudu
Maia reconhece isso também, e atribui a possibilidade de profissionalização ao
fortalecimento do Clube do Choro em Brasília:

Dudu Maia: Se me profissionalizei, eu devo muito, muito ao Reco. Porque a primeira oportunidade de
viver de música foi através do Clube do Choro. Não só eu, mas ele profissionalizou muita gente. Isso é
um mérito, velho, indiscutível, gigantesco, de respeito com o gênero musical. Porque essa coisa do Choro
estar associado com feijoada, boemia...

Mas nem tudo são flores na profissionalização dos chorões. As dificuldades


financeiras são constantes, porque os trabalhos são inconstantes. Mas, ainda assim, os
jovens instrumentistas tentam viver exclusivamente de música, e sonham com
reconhecimento e melhorias na renda. Dudu 7 Cordas é um exemplo:

Dudu 7 Cordas: Na minha situação hoje, hoje - não sei amanhã, pode ser que melhore, dependendo da
grana que entrar - está difícil, está contadinho. Estou dando graças a Deus porque eu estou conseguindo.
Porque você viver tocando, eu acho isso maravilhoso. Eu acho show de bola. É tudo o que eu quero. É
igual jogador de futebol: viveu jogando pelada, aí o olheiro viu e mandou ele para o Flamengo. O que o
cara quer mais da vida? A diferença é que o jogador ganha bem, e músico é no perrengue.

Marcelo Lima mostra como viver de música exige muito mais do que
simplesmente ser capaz de tocar:

Marcelo Lima: Mas a profissionalização aparece muito porque alguns artistas ganham muito dinheiro,
mas são muito poucos. A profissionalização fica muito desgastante no sentido que a gente quer conquistar
alguma coisa, mas não tem espaço para todo mundo. Muito poucos são aqueles que vão ganhar de
verdade. A maioria ganha mal, e uma parte que consegue trabalhar ganha bem, mas não tanto. Não está
caindo na miséria. Na hora em que você começa a ter muito problema financeiro, você não vai conseguir
tocar, porque não vai conseguir comer, não vai pagar seu aluguel, não vai pagar nada. Então, vai ter muito
problema. A profissionalização acaba fazendo isso. Você tem que vencer, né? Então fica todo mundo
querendo essa vaga, mas é um lugar bem pequeno. No fundo, a gente acaba diversificando. A gente toca
várias coisas, faz vários trabalhos tocando. Tem as aulas, as gravações, o músico acaba tendo uma série
de atividades. Eu acho que o músico, músico mesmo, que vive da própria música, que só faz ali o que ele
quer, são os popstars mesmo. Todos os outros estão sempre com projeto. Mesmo caras grandes, famosos,
estão sempre com projetos em Caixa Econômica. Você acha que eles não precisam disso? Precisam que é
uma beleza. Agora, como eles já têm nome, têm a tendência a ganhar muito mais as coisas. Mas todos
eles trabalham muito em função disso, né?

174
A diversificação das habilidades do músico exige tempo e estudo. Exige
dedicação a outras atividades, que não só ouvir e tocar Choro. Por isso, músicos jovens
tendem a aprender a ler partituras, a desenvolver técnicas de ensino e aprendizagem, a
ter desenvoltura em tocar outras coisas fora do Choro. O veterano Augusto, que
trabalha como professor de história, reconhece que é preciso grande dedicação para
desenvolver novas habilidades; por isso, ele afirma não querer desempenhar outras
atividades ligadas ao Choro que não sejam somente tocar:

Augusto: E essa é a diferença que eu tenho para essa meninada nova, que tem tempo, tem energia e vive
de música. Você pode marcar ensaio nove da manhã, três da tarde. Eu tenho outra profissão, eu não posso
fazer isso. Se eu fosse um cara profissional e tivesse o dia inteiro, escovasse os dentes com violão,
almoçasse violão, aí tudo bem, né?

A profissionalização também traz o risco de converter a música em mera


obrigação para os músicos. No caso do Choro, gênero fortemente ligado à informalidade
de encontros entre amigos, a radicalização da postura profissional enseja críticas.
Marcelo Lima aponta para a perda da capacidade criativa que o profissional da música
pode enfrentar:

Marcelo Lima: Quando você se profissionaliza, você, por exemplo, vira funcionário de uma empresa tal.
Vai ter que seguir certas regras, vai entrar na regra de mercado. Sua rotina de viagens, sei lá.... Então, isso
pode, às vezes, cair naquela coisa de você não ter nem tempo livre de verdade para criar, para deixar sua
cabeça à vontade para receber uma idéia nova.

Marcelo preocupa-se com a possibilidade de que a profissionalização do músico


chegue ao extremo de, embora se dedicando exclusivamente à música, não tenha tempo
livre para criar, para destinar à prática musical livre e descompromissada. Ele questiona
se vale a pena tornar-se um escravo do mercado do entretenimento. Os chorões da
velha-guarda não tinham e não têm essa preocupação. Como sua sobrevivência não
depende da música, é justamente no tempo livre que se dedicam a ela. Por isso, é mais
fácil que mantenham com ela uma relação de liberdade. O potencial escravizante do
trabalho e o conceito de tempo livre são objetos da reflexão de Theodor Adorno (2007).
Ele afirma que o tempo livre está acorrentado ao seu oposto; em outras palavras, ele
existe em função da existência do tempo não-livre. Essa oposição é característica da
sociedade industrial, em que o trabalho maçante, árduo, duro e não-gratificante é
realizado mediante inúmeras formas de opressão e coerção. Na lógica dessa civilização,
o que uma pessoa faz fora do trabalho deve estar em estrita oposição a ele. O tempo
livre serve para restaurar o corpo e a mente para o trabalho. Nada, pois, que possa

175
lembrar o trabalho deve ser realizado no tempo livre. Se, por meio do trabalho, uma
pessoa realiza sua produção, então, conseqüentemente, o tempo livre é improdutivo. É
o momento de realização de imbecilidades, inutilidades e futilidades. Para Adorno
(2007), essa é a essência do conceito de hobby. Um hobby é algo que não se leva
realmente a sério; ele só gera a produção de supérfluos, ou então seus produtos têm
qualidade inferior. Quando alguém abraça a música por hobby, por conseguinte, espera-
se dela que não produza nada de relevante. Essa pessoa seria, no máximo, a paródia de
um músico. Do contrário, quando alguém é músico profissional, ele tem obrigação de
mostrar produção relevante nessa área. Sendo ele operário da indústria do
entretenimento, necessariamente lhe cabe algum tempo livre. Pela mesma lógica de
nossa civilização, não poderá dedicar-se a coisas relacionadas ao trabalho em seu tempo
livre. Portanto, a radicalização da postura profissional, que é parte da lógica de nossa
sociedade, pode levar o músico profissional a não querer saber de música, de nenhuma
forma, quando não se tratar de trabalho. Reco do Bandolim identifica essa tendência
nos jovens músicos brasilienses, todos profissionais, que compõem o Choro Livre:

Reco do Bandolim: Por exemplo, agora nós estávamos com o Choro Livre. Vou fazer uma pequena
crítica aos meus queridos companheiros do Choro Livre, mas amorosamente. A gente estava não sei
aonde num desses países aí, e eu louco para tocar, já tínhamos cumprido o nosso compromisso. E quando
acabou o compromisso, ninguém queria mais saber de tocar. Nêgo quer saber de sair pra passear. Aquilo,
depois do primeiro dia, a gente geralmente fica uns três ou quatro dias passeando, ninguém mais fala em
tocar. Pô, de manhã acordam estudando (solfeja uma escala); acabou aquilo, guarda o instrumento e
falam: vamos passear. Eu fiquei olhando, e disse: gente, antigamente o sujeito ficava louco para tocar,
vamos sentar e vamos fazer uma Roda. A gente! Não é compromisso não, é pelo prazer.

Reco reclama da falta de disposição dos garotos para tocar apenas por tocar.
Menciona a relação que antigamente os chorões tinham com a música: queriam
simplesmente tocar. Os garotos fazem questão de gastar o tempo livre passeando; eles
estudam, cumprem a obrigação, mas depois desejam se ver livres daquilo que para eles
representa trabalho. Claro que esse tipo de reação à música não ocorre o tempo todo
com os jovens músicos profissionais, conforme inúmeros de seus relatos nos deixam
perceber. Todavia, o veterano Reco do Bandolim identifica neles essa tendência, e
afirma ser novidade no ambiente dos chorões. Se tal tendência se radicaliza, não mais
serão vistos chorões tocando por – nas palavras de Augusto Contreiras – diletantismo.

Mas e aqueles músicos que não têm a música como profissão? Seria correto
dizer que o Choro é para eles um hobby, no sentido entendido por Adorno (2007)? A
óbvia resposta a esse questionamento é não. Do contrário, deveríamos aceitar que Jacob

176
do Bandolim, que exerceu a profissão de escrivão durante a maior parte de sua vida,
seria uma paródia de músico. Uma afirmação imensamente absurda, considerando o
legado musical que Jacob deixou. Apenas um centésimo de sua produção no tempo livre
foi certamente muito mais relevante do que tudo o que ele datilografou em toda uma
vida de trabalho. Tampouco não são paródias de músicos os chorões veteranos de
Brasília, que, em sua maioria, exercem ou exerceram outras profissões, como é o caso
de Alencar 7 Cordas, Augusto Contreiras e o próprio Reco do Bandolim. Não, de fato o
Choro não é um hobby. O tempo livre dedicado ao Choro não produz inutilidades, nem
músicas de qualidade baixa. Os chorões não tocam somente por diversão, no sentido
entendido por Adorno (2007, p. 38), que afirma que a diversão desenfreada é a antítese
da arte. A diversão é possível somente quando o sujeito se aliena de sua realidade; para
ele, a arte requer enraizamento na realidade, pois ela é deve ser um modo de reflexão
sobre a realidade. Nas palavras de Adorno (2007, p.41): divertir significa que não
devemos pensar, que devemos esquecer a dor, mesmo onde ela se mostra. Na base do
divertimento planta-se a impotência. As falas dos chorões mostram que, embora tenham
abraçado o Choro por livre opção, essa escolha não está isenta de sofrimento. Músicos
como Augusto poderiam abandonar o Choro e seguir sua vida trabalhando durante a
semana e se divertindo nas horas vagas. Mas ele escolhe passar pelos dilemas que
música traz, submeter-se a julgamentos, por vezes impiedosos, sobre sua prática
musical, e enfrentar seu próprio senso crítico, que o compara a outros violonistas. Tudo
isso gera sofrimento. Ele gasta seu tempo livre com uma atividade que traz, entre outras
coisas, é certo lembrar, uma dose de sofrimento. Para Adorno (2007), esse é o preço
pago por aqueles que conseguem converter tempo livre em liberdade.

No complexo contexto do Choro, a oposição tempo livre x tempo produtivo, se


existe, não tem proeminência; nele, a capacidade produtiva e a liberdade criadora não se
separam. O modo de organização de nossa sociedade, que separa o trabalho do lazer, a
produtividade da liberdade, tem potencial desenraizante. A separação entre tempo livre
x tempo produtivo indica, utilizando a terminologia proposta por Guerreiro Ramos, que
a organização de nossa sociedade é monocrônica; nela, somente transcorre o tempo
linear, ligado à produtividade e à economia. O Choro, conforme já discutido, tem um
modo de organização que permite a policronia. A radicalização da profissionalização do
chorão pode, contudo, levar à redução dos espaços de vigência do tempo convivial e do

177
tempo de salto. Em realidade, quando os chorões falam da importância de tocar por
tocar, estão defendendo a manutenção do espaço em que o Choro ocorre fora do
ambiente estritamente profissional, cujas regras, ligadas ao conceito de produtividade,
opõem-se à lógica do tempo convivial. Este encontra refúgio nas Rodas de Choro, que,
por suas características, negam os critérios de eficiência e produtividade. Nas Rodas, o
músico experimenta a verdadeira liberdade, e exerce sua prática em maior plenitude.
Isso, contudo, não elimina a necessidade da profissionalização, como ferramenta de
fortalecimento e reconhecimento do gênero, e como possibilidade de aperfeiçoamento
dos músicos. As Rodas e o hábito de tocar por tocar têm algo a ver com a essência do
Choro, e, por isso, sua manutenção é tão importante. De fato, a fala de Marcelo Lima
transporta a reflexão de Theodor Adorno (2007) para o universo do Choro:

Marcelo Lima: A gente precisa ter muito mais Rodas e menos artistas famosos. Artistas famosos podem
ser poucos, mas muitas Rodas seria interessante.

Os chorões da velha-guarda, que possuem a sabedoria da experiência,


aconselham os jovens músicos, que muito cedo se profissionalizam, a tomarem cuidado
com o modo como estão se relacionando com a música. Alertam para que não caiam nas
armadilhas da profissionalização. Eles enfatizam a necessidade de manter, como parte
da tradição do Choro, as Rodas de Choro associadas ao hábito de tocar por tocar. Mas
não é só isso. A Roda não é somente um lugar físico; não adianta criar espaços de
informalidade onde os músicos obrigatoriamente têm que tocar. É necessária a vontade
autônoma de fazer aquilo; é preciso identificar algo que somente ali é possível, e que é
imprescindível. Reco e Henrique definem esse algo como sendo a alegria:

Henrique Neto: ...pela mentalidade do Choro, por essa alegria, por esse prazer de tocar. Porque o que é
você sentar e tocar com a galera? É alegria. Confraternizar... é todo mundo que gosta da música. Então,
eu tenho isso no meu espírito, de gostar de tocar, que o Choro me deu muito.

Reco do Bandolim: A profissionalização oferece um ângulo que eu tenho reservas. Eu não sinto aquela
alegria que a gente tinha quando tocávamos a troco de nada. Eu não sinto. Eu sinto que as Rodas de
Choro que acontecem aqui em Brasília acontecem em bar pagando ao sujeito. Nêgo só vai se reunir se
tiver pagando. (...) Pergunte ao Alencar. Bicho, não tinha um final de semana que a gente... eu trabalhava
no Banco Central, (...) e a noite eu ficava em casa tirando um chorinho novo. E nós ficávamos o final de
semana de bar em bar, na casa de um e na casa de outro tocando por alegria. É o mesmo que o futebol de
Ronaldo Fenômeno... você chegou a ver Ronaldo jogando quando ele tinha 17 anos? Que alegria, que
encantamento! O Garrincha... o futebol dele. É isso que eu digo: é você jogar futebol por alegria, por
prazer, por necessidade, porque aquilo faz parte da sua vida. (...) Para mim, o sujeito, para ser um chorão
autêntico, precisa ter a alegria do Ronaldo fenômeno aos 17 anos jogando bola. Eu sentia isso com os
meus companheiros. A gente ia para tudo quanto é boteco. Quero repetir, acho importantíssima a
profissionalização. Tem que pagar, tem que receber. Mas eu sinto falta daquele espírito que existia
antigamente, todo mundo ia para casa de um, para casa de outro, ia pra um boteco. Ia tocar por alegria de
tocar. E hoje eu não vejo isso em lugar nenhum.

178
Reco discorre ainda sobre a falta que sente do espírito de alegria que existia
antigamente, e associa isso à profissionalização. Mostra, portanto, ter consciência do
risco que a radicalização das posturas profissionais traz em si, e da importância de
manter espaços onde as regras do mercado, da eficiência e da economia não têm
proeminência. Marcelo Lima completa os relatos de Reco e Henrique afirmando que a
alegria não é somente um estado de espírito dos músicos no ato da performance. Ela
está no próprio som que emana dos instrumentos. Ela não pode desaparecer, porque faz
parte da essência do Choro.

Marcelo Lima: Mas o Choro, para mim, basicamente é uma música alegre. Toda vez que eu penso em
Choro é alegria. Até a música triste do Choro é nostálgica. Ela não é depressiva. É uma saudade de uma
coisa legal que ficou na sua vida. Mas o cara não fica mal. Tipo “qui nem jiló”. Sente saudade, mas não
vai ficar chorando. Mas ele sente saudade. Faz um acorde para a pessoa que ele gostou, para o lugar que
ele esteve. Não é igual no blues, ou em algumas músicas, que a pessoa, quando perde a mulher vai se
matar, não sabe o que fazer, fica todo cheio de dor. O Choro não. As próprias linhas harmônicas e
melódicas do Choro mostram isso. O Choro tem muito acorde maior, menor e maior com sétima.

O grande mestre Hamilton de Holanda, referência da juventude, orgulho da


velha-guarda, sabe tudo. Com seu enorme poder de síntese, resumiu toda essa
argumentação em uma frase, encontrada no encarte de um de seus CDs: “Viva o Poder
da Alegria”.

179
CONCLUSÃO

Uma das maiores dificuldades encontradas ao longo da realização desse trabalho


foi selecionar quais falas dos chorões seriam utilizadas em cada capítulo. Essa, que
aparentemente não passaria de uma questão metodológica, revela aspectos interessantes
do Choro e de seu universo. Os chorões, ao falarem do Regional, falavam também de
tradição e modernização; ao falarem de tradição, falavam de aprendizagem; ao falarem
sobre improviso, falavam sobre história do gênero; ao falarem da Roda, falavam de
seus mestres, de como aprenderam, e de seus amigos; ao falarem de arpejos, falavam da
Roda; ao falarem do ambiente do Choro, falavam sobre os critérios de avaliação do
desempenho. Enfim, os chorões, quando se referem a um aspecto do Choro, ligam-no
parece que a todos os demais. Isso evidencia a forte coesão entre a música e tudo aquilo
que está fora da música. Mostram os chorões que a música está presente em muitos
lugares e de muitas formas, nem sempre quando se está tocando, nem sempre quando se
escuta música. Eles ensinam que sua arte não advém de um toque de mágica, ou do
dedo divino, mas da convivência no ambiente musical e, mais importante, da vontade de
fazer parte daquilo.

A chave para entender e tocar o Choro é simples, porém não é fácil. É simples,
pois basta adentrar o universo do gênero, que tem as portas sempre abertas, e vasculhar,
destrinchar, bisbilhotar; a partir daí, nos tornamos chorões, e então é uma questão de
tempo para que nosso desempenho no instrumento seja reconhecido como bom. É
difícil, porque requer alto nível de envolvimento; é preciso que nossa vida pessoal esteja
ligada ao Choro. É preciso gostar muito daquilo, a ponto de querer estar sempre com os
chorões em casa, nas festas, nos bares, nas viagens de férias. Não dá para ser chorão e
gostar mais ou menos de Choro, ou gostar só um pouco, ou só às vezes. Mesmo não
sendo profissional, não vivendo de música, é preciso que aquilo faça parte de nossas
vidas, e que tenhamos desejo sincero de fazer parte do Choro.

A imbricação entre música e contexto é tão marcante no Choro que não é


possível falar de Choro sem se referir ao seu contexto. Essa inseparabilidade não é,
como nos ensinam musicólogos como Jonh Blacking e Gérard Bàhague, exclusiva do
Choro. Ela faz parte da música. Não existe sistema musical em que a música esteja

180
separada das coisas não-musicais. A música é coisa dos homens, das coletividades
humanas organizadas por suas culturas. Jonh Blacking diz que a música é o som
organizado pelos homens, e que a ordem sonora é reflexo da ordem vigente na
sociedade. Então, a música está enraizada na realidade, e é daí que emana seu sentido.
Para entendê-lo, portanto, precisamos entender a realidade onde a música está
enraizada.

Mas a realidade é complexa. Ela não é compartimentalizada como a ciência. Ela


não separa cultura, sociedade, natureza, ambiente, política, etc., em caixinhas de onde
podemos entrar e sair. A realidade é multifacetada, porém una. Então, se, nos discursos
dos chorões sobre o Choro não é possível separar com facilidade aqueles que tratam de
música daqueles que tratam de cultura, de tradição, de amizades, de aprendizagem, etc.,
é sinal de que o Choro tem uma forte ligação com a realidade, com o universo em que
vivem seus músicos.

A utilização do termo contexto, no âmbito do Choro, portanto, não se refere


apenas aos contextos imediatos onde as performances tomam curso – a saber, as Rodas
e as apresentações. O contexto do Choro diz respeito às dimensões social, histórica,
cultural, relacional e política. É complexo, portanto, o contexto do Choro, assim como
toda a realidade onde ele acontece. Se, conforme nos ensina John Blacking, é possível
encontrar elementos que organizam um sistema musical fora da música, ou seja, nos
ambientes humanos (que incluem todas as dimensões da vida humana; social, política,
histórica, relacional, cultural), é forçoso concluir que uma infinidade de coisas
interferem na ordem sonora do Choro. Decorre daí que, conforme inclusive foi
mostrado nesse trabalho, a ordem sonora do Choro não pode ser compreendida apenas
pelos registros escritos das músicas; mais ainda, nem apenas escutando os choros; mais
ainda, nem apenas escutando o Choro e conhecendo sua história e tradição. A forma
como comumente se aprende a tocar o Choro, que evidentemente requer o entendimento
de sua ordem sonora, é imergindo no universo do gênero. Para realizar esse trabalho nos
apoiamos em uma poderosa ferramenta, que expõe o pensamento daqueles que realizam
essa imersão: o relato verbal. Por meio dele, os chorões falam o que sabem e, assim,
acessamos o quê, para eles, é importante para o gênero e para sua prática.

As falas dos chorões mostram que sua prática musical emerge e se aprimora no
seio de uma coletividade humana envolvida com o Choro. Eles aprendem com as

181
pessoas, tocam com as pessoas e para elas. Do mesmo modo, a maior parte dos
conhecimentos associados ao gênero estão com as pessoas, e são transmitidos pela via
oral, no percurso de amizades e convivências. Os chorões vêem com naturalidade o
aprendizado informal, que desenvolve a capacidade de ouvir e reproduzir, e valorizam
essa característica. Valorizam, também, o aperfeiçoamento técnico nos limites das
capacidade do corpo humano, almejando o virtuosismo extraordinário. Por contraponto,
subordinam o uso indiscriminado da técnica, tão dura de ser adquirida, e do virtuosismo
à criatividade e à sensibilidade que produzem interpretações com expressividade.

Os chorões sentem-se livres para interpretar e para criar. Eles não interpretam,
mas verdadeiramente se apropriam das grandes obras dos compositores consagrados e
criam e recriam interpretações. Suas falas mostram que o aperfeiçoamento da prática
interpretativa, que inclui o domínio de técnicas e elementos da linguagem do gênero,
como a improvisação e a malandragem, fornece a eles os conhecimentos que necessitam
para atuar em outras áreas ligadas ao gênero, tais como ensinar, compor, elaborar
arranjos, entre outros.

A ênfase na interpretação força, nos chorões, o mergulho na tradição do gênero.


É preciso conhecer as interpretações dos choros, principalmente os consagrados. Tão
fundamental é a interpretação que os chorões, para tocar um determinado choro,
costumam pesquisar e reproduzir as interpretações de grandes chorões. Desse modo,
eles passam a dominar diferentes modos de executar e entender o gênero, que variam
com a época, o lugar, entre outros. Ou seja, eles, assim, vão adquirindo conhecimento e
domínio da tradição musical do gênero. A partir daí – somente quando se tem o domínio
da tradição – surgem as condições para que um chorão possa criar inovações, e altere
elementos da tradição. Os chorões reconhecem que a tradição não se fixa no tempo, e
que o sentido de conhecê-la profundamente é justamente ter capacidade de modificá-la.

Um trabalho de natureza acadêmica busca descrever e analisar os elementos da


realidade. Para tanto, é preciso ordenar e sistematizar tais elementos de acordo com
teorias e conceitos, visando a facilitar o entendimento. Os relatos foram organizados,
então, em capítulos, que abordaram temas mencionados pelos chorões em suas
entrevistas. Esses temas constituem elementos importantes da ordem sonora do Choro.
Eles nos fornecem pistas sobre aquilo que é essencial para o gênero; eles apontam para

182
uma imagem da alma do Choro, que, de tão fincada em nossa realidade, anda de mãos
dadas com a alma do Brasil.

A alma do Choro é redonda. A Roda é sua matriz, lugar onde foi criado e é
continuamente recriado. Na Roda, os encontros face-a-face dão o tom da música, que
acontece como diálogo instrumental. A música torna-se suporte da comunicação de
pessoas que a utilizam para estarem juntas. A Roda não é o lugar de tocarmos para
ninguém, mas de tocarmos com nossos companheiros musicais. Nesse contexto,
evidencia-se o caráter coletivo do Choro. Ela teve importância política, pois ajudou o
gênero a sobreviver às adversidades, pois ela acontecia em quintais, redutos últimos do
gênero, quando nenhum palco abrigou o Choro. A Roda, informal, alegre, dos amigos e
da cerveja, transforma qualquer mesa de boteco em altar, reverenciando a tradição e
seus mestres e sacralizando choros tocados em feitio de oração.

A alma do Choro é alegre. As melodias, instrumentação, e o modo de tocar


evocam um espírito de alegria e exaltação da vida. Até os choros tristes, melancólicos,
como disse um chorão, não são deprimentes, refletindo dor ou revolta, e sim
nostálgicos, transmitindo uma saudade boa de algo que se foi ou a certeza de que as
coisas vão melhorar.

A alma do Choro é livre. Ele não se prende aos registros, escritos ou gravados,
nem as convenções sobre sua forma, sobre o modo como deve ser tocado, sobre os
instrumentos que lhes são característicos. O chorão é, antes de qualquer coisa, um
intérprete. Ele nunca foi, em toda sua vida de chorão, um reprodutor da partitura. Se um
dia assim o fez, ele não era ainda chorão. Pois que se nasce como chorão no exato
momento em que se faz a primeira interpretação própria de um choro, quando se ousa,
pela primeira vez, alterar qualquer coisa na música, seja ela Carinhoso de Pixinguinha
ou O Vôo da Mosca de Jacob do Bandolim.

A alma do Choro é vadia. Ela se inspira no comportamento do brasileiro para


encher suas músicas de maneirismos, malandragens e malícias, compondo uma
linguagem musical complexa, imprecisa e imprevisível.

Por fim, a alma do Choro é verde e é amarela. Ela reflete nosso modo brasileiro
de estar no mundo. O Choro é uma resposta nossa aos problemas que a realidade nos

183
impôs. Nossa música reflete o que pensamos, o quê desejamos e como agimos. Desse
modo, sem palavras, o Choro diz muito sobre nós.

184
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188
ANEXO I – FICHAS DOS MÚSICOS ENTREVISTADOS

Antônio Carlos Affonso (Tonho do Pandeiro) – Nascido em 03 de setembro de 1961


no Rio de Janeiro. Instrumento: pandeiro. Um dos pandeiristas mais respeitados do
Brasil, considerado por muitos como mestre. Desde a primeira formação integra o
Grupo Choro Livre. Entrevistado em 03/04/2009

Augusto Cézar Contreiras – Nascido em 19/09/1961 em Salvador. Instrumento: violão


e violão 7 cordas. Ex- integrante do grupo Choro Livre, músico respeitado pelas velha e
nova geração, é uma referência para grande parte dos violonistas do Choro de Brasília.
Entrevistado em 22/04/2008.

Eduardo Maia Venturini (Dudu Maia) – Nascido em 27 de janeiro de 1977 em


Brasília. Instrumento: bandolim. A convite de Hamilton de Holanda, de quem foi aluno,
substituiu o mestre na Escola de Choro Raphael Rabello. Músico atuante do Choro,
integra atualmente os grupos Caraivana e AQuattro. Entrevistado em 10/11/2008.

Fábio Luna de Morais – Nascido em 16 de setembro de 1974 no Rio de Janeiro.


Instrumentos: flauta e bateria. Músico atuante na cena do Choro nacional, integrou o
grupo de Sivuca e da cantora Zélia Duncan, atualmente é flautista do grupo Caraivana.
Entrevistado em 10/11/2008.

Fernando César Vasconcelos Mendes – Nascido em 18 de setembro de 1970, no Rio


de Janeiro. Instrumento: violão de 7 cordas. Professor de violão, ex-integrante do grupo
Choro Livre e atual Diretor da Escola de Choro Raphael Rabello. Ainda garoto criou,
junto com seu irmão, o bandolinista Hamilton de Holanda, o grupo Dois de Ouro.
Entrevistado em 07/06/2009

Henrique Lima Santos Filho (Reco do Bandolim). Nascido em 24 de julho de 1954.


Instrumento: bandolim. Bandolinista do grupo Choro Livre, é fundador e atual
presidente do Clube do Choro de Brasília. Idealizador e fundador da Escola de Choro
Raphael Rabello. Entrevistado em 23/06/2009

Henrique Lima Santos Neto (Henriquinho) - Nascido em 19 de agosto de 1986, em


Brasília. Instrumento: violão 7 cordas. Professor de violão 7 cordas da Escola de Choro
Raphael Rabello, integra o grupo Choro Livre e o Trio Cai Dentro. Entrevistado em
17/10/2008

Laércio Vasconcelos Pimentel – Nascido em 01 de outubro de 1978 em Brasília.


Professor de violão 7 cordas e teoria na Escola de Choro Raphael Rabello. Músico
atuante na cena do Choro de Brasília é freqüentador assíduo das Rodas de Choro da
cidade. Entrevistado em 03/03/2009.

Leonardo Bodstein Benon – Nascido em 04 de maio de 1983 em Brasília.


Instrumento: cavaquinho. Professor de cavaquinho da Escola de Choro Raphael

189
Rabello, músico atuante em apresentações e Rodas de Choro de Brasília. Entrevistado
em 07/04/2008.

Luiz Eduardo de Souza (Dudu 7 Cordas) – Nascido em 31 de agosto de 1985 no Rio


de Janeiro. Instrumentos: violão de 7 cordas e cavaquinho. Freqüentador assíduo das
Rodas de Choro de Brasília, é primo do cavaquinista Márcio Marinho. Entrevistado em
07/04/2008.

Marcelo Lima Campos – Nascido em Brasília em 19 de maio de 1971. Instrumento:


bandolim. Professor de bandolim da Escola de Choro Raphael Rabello e integrante do
grupo Marambaia.

Márcio Marinho de Souza (Frango) – Nascido em 28 de novembro de 1984 em


Brasília. Instrumento: cavaquinho. Professor de cavaquinho da Escola de Choro
Raphael Rabello e integrante dos grupos Choro Livre, Trio Cai Dentro e Galinha
Caipira Completa. Entrevistado em 27/05/2008

Paulo Hélder Mendes Córdova (Paulão) – Nascido em 31 de agosto de 1971.


Instrumento: bandolim. Bandolinista conhecido na cena do Choro de Brasília, é
proprietário da Tartaruga Lanches, estabelecimento comercial onde ocorre
semanalmente uma Roda de Choro freqüentada por grande parte dos chorões da cidade.
Entrevistado em 28/11/2008.

Rafael dos Anjos Amorim – Nascido em 15 de maio de 1985 em Brasília. Instrumento:


violão 6 cordas. Professor de violão da Escola de Choro Raphael Rabello e integrante
dos grupos Choro Livre, Trio Cai Dentro e Galinha Caipira Completa. Entrevistado em
14/04/2009

Rogério Henrique Mendes Córdova (Rogerinho) – Nascido em 24 de fevereiro de


1974. Instrumento: pandeiro. Pandeirista atuante nas Rodas de Choro de Brasília, é
proprietário, junto com seu irmão Paulão, da Tartaruga Lanches. Entrevistado em
28/11/2008.

190
ANEXO II – ROTEIRO DAS ENTREVISTAS
1. Qual é sua relação com o choro? Você se considera um chorão? Por quê toca choro?
2. Você toca outros estilos de música?
3. Para você, o quê significa ter boa execução no choro? O que é tocar bem no universo do choro?
4. Existem músicos que tocam mal o choro? Se sim, por quê? O quê é tocar mal o choro?
5. Como você estuda? Quanto tempo dedica ao estudo da música?
6. Como você estuda ou “tira” os choros?
7. O que você considera difícil em relação à execução dos choros?
8. O que considera fácil?
9. Você identifica diferenças entre o choro tocado em rodas, tocado em apresentações, e gravado em discos?
Quais são elas?
10. Você costuma tocar em rodas de choro? O que prefere, as rodas ou o palco?
11. Qual é o papel do professor ou dos professores na sua vida musical?
12. Como deve ser o aprendizado do choro? O que é importante para aprender a tocar choro?
13. Você tem fluência na leitura de partituras? O quê é mais fácil para você: tocar lendo ou tocar de ouvido?
14. O que é uma boa interpretação no choro, em termos musicais? E uma interpretação ruim?
15. Fale sobre a importância dos seguintes elementos na execução do choro, em Rodas, em apresentações em
geral, no Clube do Choro e no estúdio de gravação:
a. Virtuosismo/técnica
b. Musicalidade
c. Sonoridade
d. Conhecimento de teoria musical (o que é importante saber da teoria musical para executar o choro)
e. Conhecimento do repertório do choro, da história do choro, das gravações, etc.
f. Algum outro elemento importante?
16. Para você o improviso é imprescindível na execução do choro?
17. Como você improvisa?
18. O que é um bom improviso? E um improviso ruim?
19. O que é um bom acompanhamento no choro? E um acompanhamento ruim?
20. Você acha que o choro pode/deve ser tocado por instrumentos não-convencionais em relação ao regional?
21. Para você, como é tocar no Clube do Choro? Existe alguma diferença entre essa casa e outras casas de
espetáculo?
22. Para você, qual é o problema mais grave existente no universo do choro?
23. Qual seria a solução?

191
ANEXO III – CONHECIMENTO BÁSICO DO CHORO

Embora o entendimento do Choro e seus significados seja uma questão bastante


ampla, de forma sucinta, seis aspectos musicais podem ser considerados importantes
para a compreensão deste gênero musical são eles, a melodia, a harmonia, o centro, a
linha do baixo, a linha rítmica e a forma. Embora a melodia possa ser tocada por
qualquer instrumento e as gravações mais recentes mostram isso, geralmente os
instrumentos usados para fazer o solo são, flauta, bandolim, cavaquinho, clarineta e
saxofone. A linha melódica do Choro é construída fundamentalmente a partir de
diversas formas de combinações de arpejos e inflexões melódicas ( transformações das
linhas melódicas arpejadas em melodias de Choro). As células rítmicas básicas que
constituem o fraseado melódico do Choro são:

As possíveis combinações das células rítmicas expostas acima também são


amplamente utilizadas no Choro.

Embora exista uma grande quantidade de composições publicadas em livros de


partituras, o músico de Choro altera constantemente as prescrições da notação original
composta pelo autor, imprimindo a elas sua própria interpretação. Outro aspecto
importante é que muitos músicos de Choro não recorrem a elas para aprender a tocar.
Diversos gêneros são tocados pelos músicos de Choro principalmente, polcas, valsas,
maxixes, frevos, baiões e choros. Um aspecto musical relevante referente à construção
melódica, emblemático do gênero, é a improvisação. Talvez por se tratar de uma
linguagem complexa que sofre influências importantes de outras músicas, nacionais e
estrangeiras, e onde é comum a presença de instrumentistas de diferentes formações
musicais, exista dificuldade na definição precisa do estilo de improvisação próprio do
Choro, embora alguns autores afirmem que a improvisação no Choro deva sempre
dialogar com a melodia original. Pode-se observar que a improvisação no Choro segue
algumas convenções norteadoras para a sua realização. Essas convenções não são,
contudo, um conjunto de regras fixas, pois podem variar conforme o repertório, a
ocasião, o nível técnico dos músicos, entre outros. Cabe ressaltar, que é no momento da

192
improvisação que o chorão exerce a plenitude da sua liberdade criadora para construir e
desconstruir frases melódicas.

Outro aspecto importante é a harmonia, podemos apontar que, com o


desenvolvimento da prática composicional no Choro, estabeleceu-se um esquema
harmônico bastante simples, em que as tonalidades das partes B e C são vizinhas da
tonalidade central de A. O esquema formal da harmonia de um Choro, desconsiderando
exceções, apresenta-se da seguinte maneira:

[B] na região dominante


[A] em tonalidade maior [C] na região subdominante
[B] na região relativa menor

[A] em tonalidade menor [B] na região relativa maior [C] na região homônima maior

As tonalidades mais comuns no Choro são:

- Tonalidades maiores: fá, dó, sol e ré

- Tonalidades menores: ré, lá, mi e sol

Cabe ressaltar, que a estrutura relativamente simples do esquema harmônico do


Choro não exclui a complexidade de encadeamentos que foram sendo desenvolvidos ao
longo dos anos.

Outro aspecto importante sempre citado pelos chorões refere-se ao centro


realizado pelo cavaquinho. Segundo Livingston e Garcia (2005) o centro é considerado
um elemento chave para o Choro. O instrumento responsável por fazer o centro é o
cavaquinho. O cavaquinho é um instrumento de madeira cujo formato assemelha-se ao
violão, porém, de dimensões menores; é tocado com palhetas e possui quatro cordas
afinadas da seguinte maneira: ré, si, sol ré, de baixo para cima. Embora utilizado
também como instrumento solista a presença do cavaquinho centro é peça fundamental
em um Regional de Choro, pois além de fazer, junto com os violões, a condução
harmônica, é também responsável pela condução rítmica. Por isso, o cavaquinho tem a
importante função de fazer a ligação entre os violões e o pandeiro. A qualidade

193
percussiva do cavaquinho é reforçada pelo seu registro agudo, pois é afinado uma oitava
acima do violão (Livingston e Garcia, 2005).

O cavaquinho produz variações rítmicas que constituem um fator importante da


interpretação do Choro, conhecidas entre os chorões por molho. Há um repertório de
variações rítmicas comumente utilizados nas performances; todavia, sempre ocorrem
novas variações, criações e improvisos. A mão direita do cavaquinista é responsável
pela execução das diferentes variações rítmicas, que são obtidas na maior parte das
vezes tocando as quatro cordas simultaneamente. Também é importante função do
cavaquinho realizar com precisão as convenções dos choros; por isso, exige-se do
cavaquinista conhecimento profundo do repertório, não bastando conhecer apenas a
harmonia da música. Abaixo estão algumas das variações rítmicas mais comuns:

Outro aspecto musical importante é a linha do baixo. O instrumento responsável


por conduzir as linhas do baixo é o violão de sete cordas. Trata-se de um violão comum
acrescido de uma corda mais grave afinada em dó. Conhecido entre os chorões por
baixaria, a linha do baixo é produzida nas cordas mais graves do violão de sete cordas,
com o uso de um anel de metal com uma pequena palheta na ponta, colocado no dedo
polegar, conhecido como dedeira. Livingston e Garcia (2005) afirmam que a criação de
uma linha de baixo utiliza alguns recursos estilísticos: preencher os acordes dominantes
e tônicos com escalas, utilizar um “baixo caminhante” (melodias ascendentes ou
descendentes usando graus conjuntos e arpejos), inserir respostas melódicas ou rítmicas
ao cavaquinho ou ao solo, improvisar melodias contrapontísticas, e produzir riffes e
pedais. Embora grande parte das baixarias sejam feitas de forma improvisada, algumas
estão tão consolidadas pela tradição que já são tratadas como convenções da música,
sendo denominadas obrigações. Essa nomenclatura indica que espera-se que tais
baixarias sejam sempre tocadas. De forma geral as baixarias preenchem lacunas das

194
melodias e dialogam com elas; é muito comum que as baixarias façam as preparações
para os instrumentos solistas e para as modulações.

Outro aspecto importante do Choro é a linha rítmica. O instrumento percussivo


mais usado no Choro é o pandeiro. É constituído de um aro circular de madeira de
aproximadamente 25 cm de diâmetro e 5 cm de altura, com uma pele de couro
recobrindo todo o centro do aro. Mecanismos de tensão permitem afinar o instrumento.
Abaixo da pele, orifícios no aro de madeira possuem pequenas platinelas de metal
(normalmente 12, duas em cada orifício). O pandeirista destro segura o pandeiro com a
mão esquerda, e produz movimentos oscilatórios. A mão direita toca a pele ora com o
polegar, ora com os dedos indicador, médio e anelar, ora somente com o indicador, ora
com a base do punho, ora com a palma da mão. Daí, consegue extrair uma grande
variedade de sons (mais graves, mais agudos, mais abafados, mais estridentes, mais
longos, mais curtos). O pandeiro normalmente toca seguindo um padrão de semi-
colcheias em 2/4. As acentuações variam a depender do estilo tocado; os mais comuns
são choros, valsas, maxixes, polcas e baiões. No Choro convencional, o pandeiro
enfatiza o segundo tempo do compasso, por meio da execução de uma nota mais grave,
produzida com o polegar sem abafar a pele, lembrando a marcação do surdo no samba
(Livingston e Garcia, 2005). É função do pandeiro manter o andamento da música, e na
maior parte do tempo, o pandeirista toca sem variar a marcação dos tempos forte e
fraco; esse modo de conduzir o ritmo é dito tocar reto. Todavia, em alguns momentos da
música, essa ordem pode ser alterada, e diz-se que o pandeirista quebrou o ritmo. Tocar
reto é importante para dar segurança e estabilidade ao conjunto, de forma que é o padrão
mais comum na maior parte do tempo de uma música; quebrar é importante para criar
surpresas, e é um recurso utilizado com parcimônia, principalmente nas convenções.

A forma do Choro tradicionalmente segue o padrão Rondó, com algumas


exceções. O Rondó do Choro consiste, geralmente, em três partes de 16 compassos
cada. Segundo Almada (2006), o Rondó consiste basicamente em uma parte principal,
que retorna após intervenções de outras partes. O esquema formal de um Choro segue a
seguinte estrutura: AA BB A CC A.

A parte A é a principal, funcionando como um refrão. É apresentada quatro


vezes durante a execução de um choro: as duas primeiras em ritornelo e as duas outras
intercalando as entradas das partes B e C, também apresentadas com repetições em

195
ritornelo. Há, contudo, muitos choros com duas partes, inclusive que fazem parte do
repertório mais comum do gênero. A forma do Choro é importante porque,
principalmente nos contextos das Rodas de Choro, os choros são tocados sem ensaio.
Portanto, é a partir da forma fixa que os músicos podem tocar sem o risco de se perder.

196

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