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“Afro-reparações” na perspectiva dos movimentos negros no Brasil e no Uruguai na

última década1
Laura Cecilia López
Doutoranda em Antropologia Social - UFRGS, Bolsista da CAPES/CNPq - IEL Nacional -
Brasil

Resumo:
O conceito de “afro-reparações” (Mosquera et al 2006) refere ao processo político em que os
afro-latino-americanos disputam a redistribuição de riquezas e poder por conta dos danos e
prejuízos produzidos pela escravidão e as desigualdades raciais posteriores, assim como o
reconhecimento de valores (culturais, epistémicos, espirituais e estéticos) por parte dos
Estados nacionais da região. Nesta perspectiva, as ações afirmativas devem ser entendidas
como práticas que buscam uma cidadania substancial (social, civil, política, econômica e
cultural) dos afrodescendentes. Embora estes processos locais tenham conexões
transnacionais, as demandas por reparações e ações afirmativas não são homogêneas: tem
uma historicidade e particularidades conforme os contextos institucionais nacionais, de
relações raciais e trajetória de mobilização negra nos diferentes países da América Latina. No
presente trabalho, exploraremos o modo em que vêm sendo modeladas as afro-reparações no
Brasil e no Uruguai na última década, levando em conta as articulações com outros atores
envolvidos nesses processos políticos.

Palavras chaves: afro-reparações, movimentos negros, cidadania.

O presente trabalho2 tem por objetivo analisar os processos políticos que envolvem
“afro-reparações” (Mosquera et al 2006) no Brasil e no Uruguai na perspectiva dos
movimentos negros contemporâneos e outros atores relacionados.
Contextualizarei minha argumentação na constituição dos chamados movimentos
negros contemporâneos na América Latina, que coincide com um momento histórico dos anos
70 e 80 de abertura democrática após as ditaduras militares em quase todos os países da
região. Os movimentos negros, entre outros movimentos sociais da região, podem ser
entendidos no quadro das lutas políticas por projetos alternativos para a democracia. Em um
cenário mundial, a ocorrência, no mesmo momento histórico das décadas de 1960 e 70, das
mobilizações contra as ditaduras militares na América Latina, das lutas dos afro-norte-
americanos pelos Direitos Civis, as lutas pela libertação nacional no continente africano,
particularmente na África do Sul e nas colônias portuguesas propiciou, pela primeira vez, um
1
Trabalho apresentado na 26ª. Reunião Brasileira de Antropologia, realizada entre os dias 01 e 04 de junho,
Porto Seguro, Bahia, Brasil.
2
Esta reflexão forma parte do processo de elaboração da tese de doutorado, que se propõe examinar as trajetórias
dos movimentos negros contemporâneos no Cone Sul, com ênfase nas organizações e ativistas que atuam em
Porto Alegre (Brasil), Montevidéu (Uruguai) e Buenos Aires (Argentina), frente aos atuais desafios da
implementação de políticas públicas com uma perspectiva étnico-racial. Interessam-me as transformações de
movimentos, políticas e instituições e a emergência de novos sujeitos políticos em torno das ações afirmativas no
quadro geral das amplas ações empreendidas visando reparações históricas.

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clima geral favorável para um exame especificamente sócio-racial da realidade latino-
americana. Através dos debates travados em um processo de redemocratização e
fortalecimento de entidades da sociedade civil é que se organizaram as lutas contemporâneas
de afrodescendentes e de indígenas na América Latina das décadas subseqüentes (Moore,
2005).
É interessante ressaltar que a partir dos anos 80, a construção dos movimentos sociais
latino-americanos é centrada na noção de cidadania, com reconfigurações e novas estratégias
de ação. Neste cenário, grupos de filiações diversas estarão disputando na esfera pública
atenção por parte do Estado para suas demandas específicas ao se reconhecerem como
detentores de direitos legítimos.
Paralelamente, existe um processo de consolidação de ideologias do ‘pluralismo
cultural’, existindo uma pressão transnacional para as nações se declararem como
multiculturais e enquadrarem juridicamente a diversidade étnico-racial interna, e ainda um
processo de discussão do Estado de Direito a partir das demandas expressas por diferentes
segmentos da sociedade civil organizada, como sujeitos que elaboram e negociam os termos
do texto constitucional. Reformas constitucionais em vários países, como Brasil (1988),
Colômbia (1991), reconhecem simultaneamente direitos de suas populações negras e
indígenas. Em outros casos, como o da Argentina, a Constituição de 1994 reconhece direitos
dos povos indígenas.
Stuart Hall (2003) vincula este ressurgimento da “questão multicultural” como
problema político contemporâneo ao fenômeno do “pós-colonialismo”. O momento “pós-
colonial” marca a passagem de uma configuração ou conjuntura histórica de poder para outra.
No passado, eram articuladas como relações desiguais de poder e exploração entre as
sociedades colonizadoras e as colonizadas. Atualmente, essas relações são deslocadas e re-
encenadas como lutas entre forças sociais nativas, como contradições internas às sociedades,
ou entre elas e o sistema global como um todo. Assim, o movimento que vai da colonização
aos tempos pós-coloniais não implica que os problemas do colonialismo foram resolvidos ou
sucedidos por uma época livre de conflitos.
Nesse cenário, no qual se dão processos que “trazem as margens para o centro da
nação” (Cf. Hall, 2003) na estratégia ou abordagem política da questão multicultural,
podemos interpretar as “afro-reparações”. Termo amplamente explorado por Claudia
Mosquera e outros autores no livro Afro-reparaciones: Memorias de la Esclavitud y Justicia
Reparativa para negros, afrocolombianos y raizales, editado na Colômbia em 2006. Produto
do diálogo entre ativistas e intelectuais afro-latino-americanos e intelectuais brancos da
região, pensando a relação entre conhecimento científico, ética e política numa perspectiva

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reparativa, ou seja, num olhar para a responsabilidade do Estado e da sociedade em geral por
um passado de opressão étnica e racial no processo escravista – julgado na Declaração Final
da Conferência de Durban como um crime de lesa humanidade-, assim como pela reprodução
de formas de desigualdade racial até a atualidade. Perspectiva substancializada tanto na
redistribuição de bens, direitos e poder, como no reconhecimento de valores (culturais,
epistémicos, espirituais e estéticos) dos afro-americanos. Seguindo a Mónica Carrillo (2005),
uma intelectual afroperuana, a reparação não seria um anseio de vingança, e sim uma
exigência de justiça. As ações afirmativas devem ser entendidas dentro de este referencial
como práticas que buscam uma cidadania substancial (social, civil, política, econômica e
cultural) dos afrodescendentes.
Um ponto que os autores desta coletânea exploram é o das demandas por reparações e
ações afirmativas não serem homogêneas: tem uma historicidade e particularidades conforme
os contextos institucionais nacionais, de relações raciais e trajetória de mobilização negra nos
diferentes países das Américas, mas em conexão com processos transnacionais e espaços de
identificação diaspórica.
No panorama mundial, a década de 80 é marcada por Lao Montes (2006) como a
virada do epicentro das mobilizações negras a nível transnacional. Nos anos 30, e mais
fortemente nos anos 60 e 70 os movimento negros anti-sistêmicos negros (nas suas versões
nacionalistas e socialistas) nos Estados Unidos eram vanguarda nas Américas nas discussões
sobre afro-reparações, entendidas como um postulado ético-político que refere às medidas
requeridas para buscar modos de corrigir os efeitos negativos do racismo na modernidade
capitalista. Depois do declínio da onda de movimentos anti-sistémicos, destacando-se o
movimento de libertação negra dos Estados Unidos e as lutas anti-colonistas do continente
africano, houve uma revolução neoconservadora nos Estados Unidos como tentativa de
recuperar a hegemonia mundial com ofensivas e políticas, elemento entre outros que
marginou o radicalismo negro e nutriu uma cultura política afroamericana conservadora. Esta
conjuntura propiciou ataques às ações afirmativas que, mantidas numa racionalidade de
justiça reparativa, tinham desenvolvido medidas de promoção para a admissão dos
“excluídos” (minorias raciais, mulheres) em universidades e empregos. Este cenário
reformulou o debate público, junto a medidas legais e legislativas que iam contra os princípios
das ações afirmativas alcançadas como resultado das lutas históricas pelos direitos civis e o
poder negro3.

3
Segundo o autor, a expressão mais notável desta tendência da nova direita norte-americana foi a delegação
estadunidense se retirar da Conferência de Durban como protesto contra as afro-reparações.

3
Em contraponto, a partir do processo político em torno da Conferência Mundial contra
o Racismo, em Durban, 2001, as afro-reparações emergiram como eixo central na agenda
global contra o racismo como elemento chave da justiça social a escala mundial, tanto no
discurso das Nações Unidas, quanto das ONGs e movimentos sociais. Lao Montes argumenta
que o mundo afro-latino se constituiu nesse contexto como lócus principal nas Américas dos
movimentos negros que efetuam propostas substanciais a favor da igualdade social e o
pluralismo cultural através de políticas públicas.
A partir da Conferência de Durban, os ativistas negros da América Latina
consensuaram o uso do termo afrodescendente para identificar à população da diáspora
africana nas Américas. “Afrodescendente” foi assumido pelos ativistas como categoria de
auto-identificação e de pronunciamento político, transformando a categoria “negro”, já que a
militância a avaliava como ainda ligada à ideologia colonial que denunciava. Neste
pronunciamento a delegação afro-uruguaia, teve um papel protagónico, somado à delegação
afro-brasileira, particularmente representada por mulheres negras.
Desse modo, o processo em torno da Conferência de Durban trouxe um importante
espaço de reflexão sobre a idéia de reparação, conformando-se num ponto culminante e
fundamental para compreender as atuais construções das afro-reparações em escala
transnacional e nos planos nacionais.
Analisarei três dimensões que nos ajudem a entender a complexidade das reparações,
tomando os casos do Brasil e do Uruguai. Em primeiro lugar, destacarei a construção de
sujeitos coletivos negros em diálogo com um espaço de identificação diaspórica. As lutas por
redescobrir as “rotas” africanas no interior das complexas configurações das culturas
nacionais (Cf. Hall, 2003) contribuíram a descentrar uma perspectiva nacionalista e a propor
uma abordagem da problemática racial e da construção de identidade étnica em perspectiva
mundial, deslocando significados e símbolos das culturas nacionais que situavam a população
negra numa situação de subordinação ou invisibilidade.
Em segundo lugar, destacarei a pluralidade dos movimentos negros e suas diferentes
frentes de representação e atuação, as alianças com outros movimentos nacionais e
transnacionais e a potencialização em alguns âmbitos. Isto nos ajuda a pensar a
heterogeneidade das afro-reparações rompendo com uma visão homogênea, como nos
advertem Mosquera et al 2006.
Num terceiro momento refletirei sobre as dificuldades da permeabilidade da temática
racial nos Estados no Uruguai e no Brasil, para pensar as problemáticas de viabilização e as
ênfases locais dadas às afro-reparações.

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Descentrando a nação

Como argumenta Hall, as lutas por redescobrir as “rotas” africanas no interior das
complexas configurações das culturas nacionais e falar, através desse prisma, das rupturas do
navio, da escravidão, colonização, exploração e racialização produziram a formação do
sujeito negro nas Américas e a “África” na diáspora. Desse modo, estas lutas contribuíram a
descentrar uma perspectiva nacionalista e a propor uma abordagem do problema racial e da
construção de identidade étnica em perspectiva mundial.
Enquanto movimento social, o movimento negro no Brasil (e pode ser estendido ao
resto da América Latina) pode ser interpretado como um processo constante de organização
de forças culturais e sociais bastante heterogêneas em torno de um projeto histórico. Gestado
num contexto em que o que se interpretava como movimento social era o conjunto de
organizações de caráter operário e popular4, amparadas na idéia de luta contra as
desigualdades sociais e solidariedade entre os oprimidos, e tendo uma base discursiva
elaborada na experiência da igreja católica, dos grupos de esquerda e sindicatos; e de certa
forma tributário dos antecedentes que marcaram os anos 30 aos anos 60 (com a Frente Negra
Brasileira, o Teatro Experimental do Negro, a União dos Homens de Cor em vários estados do
Brasil), as mobilizações políticas negras contemporâneas agregarão a partir dos anos 70 e 80 o
racismo ao horizonte das lutas sociais, trazendo assim para a cena política os debates sobre
discriminação e identidade racial como marcas distintivas em relação aos demais
movimentos: “a questão da identidade racial se coloca como um desafio ético, estético e
político para o Movimento Negro” (Cardoso, 2001: 12).
Para Cardoso, a própria idéia de movimento social é construída a partir dos
movimentos operários e populares dos anos 70, e a sua referência para pensar a luta anti-
racista brasileira inscreve-se neste mesmo período com a fundação do MNUCDR -
Movimento Negro Unificado contra a Discriminação Racial5, em 1978, na cidade de São
Paulo. Embora o autor não negue a trajetória construída anteriormente pelas entidades da
primeira metade do século XX, será na singularidade da idéia de resistência negra, absorvida
na experiência histórica dos quilombos como a metáfora do Estado livre dentro do Estado
escravocrata, ou no potencial das culturas afro-americanas como manifestação política, que

4
Nessa denominação, Cardoso (2001) enquadra os movimentos comunitários como associações de moradores,
clubes de mães, comunidades eclesiais de base da igreja católica, grupos de jovens, etc.
5
O MNUCDR, posteriormente MNU, surge com a proposta de unificar as diversas organizações negras, em
torno da luta política contra a discriminação racial, tendo seu foco, naquele momento, no repúdio e denúncia dos
atos de discriminação e violência policial, entendidos como atos cotidianos contra a população negra brasileira.

5
parece atender a lógica dos anos 70, em que a liberdade e garantias individuais plenas não
faziam parte do cenário sócio-político. Discursos e práticas de auto-afirmação e recuperação
da identidade étnica e cultural marcam uma transição que se opera nas entidades dos
movimentos negros, as quais tinham nas primeiras décadas um caráter “integracionista” não
questionador do modelo social vigente, mas que a partir dos anos 70 e 80 buscam referenciais
próprios de intervenção na arena política.
Do ponto de vista do movimento é valorizada “raça” como a percepção racializada de
si mesmo e do outro, significando a base de um anti-racismo. Trata-se de uma reconstrução da
negritude a partir do duplo vínculo, por um lado, com a rica herança africana – a cultura afro-
brasileira das religiões de matriz africana, dos blocos de carnaval; no Uruguai, a cultura
performática dos tambores de candombe-, e com a apropriação do legado cultural e político
do “Atlântico Negro”, isto é, o pan-africanismo, o Movimento pelos Direitos Civis nos
Estados Unidos, a renascença cultural caribenha, a luta contra o apartheid na África do Sul,
etc. (Guimarães, 2005).
Diversas são as entidades que surgem no bojo desse período, pautadas pela
reafirmação identitária e resistência negra. No Brasil, é o caso do Grupo Palmares, de Porto
Alegre, surgido em 1971. O grupo gaúcho que se autodenominara “Palmares”, em uma alusão
ao quilombo do século XVII, reuniu militantes, intelectuais, poetas e escritores na proposição
do deslocamento das comemorações da data 13 de maio para a de 20 de novembro - data da
morte de Zumbi dos Palmares e destruição do quilombo homônimo – esta data passa a ser o
“Dia da Consciência Negra”. O Grupo Palmares propunha uma revisão da história do Brasil
para desvelar a “tradição de resistência” a fim de recuperar a auto-estima étnica, valorizando
os espaços culturais negros da cidade (Campos, 2006).
Neste contexto, entraram as idéias que mobilizavam os negros na diáspora. A
valorização dos negros na África e na diáspora estimulou processo culturais de
reafricanização do Brasil, considerando que nos antigos territórios negros algumas referencias
eram feitas a essa ancestralidade africana diretamente, como no caso da religião, ou
indiretamente, no caso do carnaval ou dos clubes negros. Também surgiu a motivação
nacional para a ressignificação da identidade negra, construída a partir de então no
comunitarismo do Quilombo do Palmares, através do 20 de novembro, substituindo a idéia de
“liberdade concedida” da comemoração do 13 de maio. As aproximações com o movimento
pan-africanista contribuíram a romper com uma perspectiva nacionalista, propondo uma
abordagem do problema do racismo e da construção de identidade étnica em perspectiva
mundial. Isto levou ao duplo vínculo com os territórios negros, como clubes sociais, blocos de
carnaval, terreiros de matriz africana, e com o pan-africanismo.

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Este ressurgimento étnico começa travar uma luta contra o racialismo universalista e
ilustrado que as elites nacionais impuseram durante longos períodos históricos, com posições
racialistas assumidas das hierarquias entre as raças de fins do século XIX e princípios do
século XX até as interpretações da “democracia racial” feitas pela geração de intelectuais de
Gilberto Freyre dos anos 30 e 40, que traduziram para o discurso cultural um fundo
ideológico racialista. O Movimento Negro Unificado de fins dos anos 70 assumirá esta
agenda, contrária ao “mito da democracia racial”.
Um processo similar de “descoberta” das rotas/raízes africanas (Cf. Hall, 2003) pode
ser examinado também no Uruguai. A década de 1980 marca uma reformulação do ativismo
afrouruguaio, por romper com uma ideologia nacionalista de integração e assimilação que
deixava de fora da mobilização a defesa das formas culturais africanas, com táticas de
dissimulação da condição racial, assim como com os termos de uma prática de intercambio de
favores por lealdades políticas na esfera pública. Ao igual que no Brasil, os projetos
alternativos de sociedade dos movimentos sociais em oposição ao regime militar, abriram
brechas na sociedade uruguaia. Novas idéias e modalidades de consciência entre os
afrodescendentes haviam incubado e, ao madurecer, se confrontam e provocam momentos
rápidos de desagregação e reorganização, rupturas, alianças e reconfigurações de uma série de
forças, grupos e lideranças6.
É nesse contexto que surge o Grupo Amandla a fins dos anos 80. A pan-africanidade
aparece como elemento importante nos anos 80 como solidariedade com um terceiro, expressa
através de mobilizações e campanhas em defesa de causas dos povos africanos. Por exemplo,
a campanha realizada em Montevidéu contra o apartheid na África do Sul. Ou o próprio nome
do Grupo Amandla, palavra que significa “corpo e alma da nação” na língua bantu, que é
tomado da saudação do Congresso Nacional Africano da África do Sul. Assim, o grupo
Amandla se baseia em suas reivindicações na identidade cultural do tambor de candombe no
Uruguai e na solidariedade com Mandela e a luta contra o apartheid. A cultura performática
dos tambores de candombe, com seus nexos com o Atlântico negro, passa a ser considerada
como elemento que gera “unidade” entre os afrodescendentes. Reformulação, desse modo, a
excisão que existia entre a cultura letrada e a cultura tradicional do candombe entre os
diferentes setores afrodescendentes, diferenciação que produzia o estigma do “primitivismo”
em relação aos tambores, e que celebrava a cultura letrada como modo de ascensão social.
Porém, o Grupo Amandla contestará as relações paternalistas na cultura do tambor, assim
como a visão evolucionista da África, ressaltando uma concepção da África como um lugar
civilizatório.

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Embasei a reconstituição da trajetória do movimento afro-uruguaio nos anos 80 e 90 em Ferreira (2003).

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A construção de um grupo de oposição no campo político que lograsse levar adiante
denuncias e concretizar demandas surgiu em 1989, denominado Mundo Afro, em parte, da
experiência nos partidos políticos de esquerda a inícios dos anos 70 e dos movimentos sociais
da sociedade majoritária ao final do governo militar. Implicou na leitura das formas locais de
mobilização (no caso, do Partido Autônomo Negro dos anos 30 e a Revista Nuestra Raza
vinculada a ele, que atuou até os anos 407) e na leitura da experiência dos afrodescendentes da
diáspora local e internacional. A prática reflexiva, o fluxo de informação mobilizado
discursivamente nas redes de movimentos, e a elaboração de novas perspectivas, valores e
objetivos sustentou entre os ativistas dois aspectos: por um lado, a resignificação da produção
cultural tradicional através de uma noção amplia de cultura como usos, costumes, sistema de
crenças e de conhecimento, simbólicos e religiosos, e, por outro, a consciência do grau de
descumprimento da promessa igualitária respeito à minoria, através de estratégias de
desenvolvimento econômico autônomo do setor, e de fazer ouvir as denuncias de racismo e
desigualdade frente à sociedade nacional e o Estado.
Um tema interessante para pensar o recentramento das margens da nação é o caso da
figura de Ansina e os pleitos da militância afrodescendente por lhe otorgar um lugar
protagónico na narrativa de fundação da nação. Nas narrativas dos textos escolares ao longo
do século XX, a figura de Ansina aparece centralmente na história fundante da nação como o
fiel ajudante negro que acompanhou em seu exílio a Paraguai ao prócer Artigas, até sua
morte. Várias tentativas foram feitas por militantes negros ao longo do século XX para que
Ansina seja incluído na narrativa da nação, nome de rua, placa, estatua e nos rituais do
Estado. A década de 1990 foi prolífica na ação da militância e na divulgação de ensaios
literários e palestras em que o estereótipo de Ansina como fiel servidor negro do prócer
Artigas é reformulado, mostrando-o como hábil militar e conselheiro do prócer, poeta músico
e conhecedor de ervas medicinais.

Pluralidade do movimento negro e alianças com outros movimentos

Este item tenta ressaltar a pluralidade dos movimentos negros e suas diferentes frentes
de atuação e representação, e quanto esta compreensão pode nos ajudar a desconstruir uma

7
O Partido Autônomo Negro – PAN surge na década de 1930 impulsionado pelo Doutor em Direito Salvador
Betervide (o terceiro profissional afrodescendente formado no Uruguai) e um grupo de ativistas e simpatizantes
de uma camada de cultura letrada de classe média, com uma experiência variada de ativismo no jornalismo
negro, em associações recreativas e em partidos político da sociedade majoritária. O ideário socialista-
cooperativista de Betervide e de caráter internacionalista, sua preocupação pela segregação racial nos Estados
Unidos, o levam a buscar uma candidatura negra no Parlamento para promover leis que beneficiem ao setor
afrodescendente (Ferreira, 2003).

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idéia [que muitas vezes é um ideal a alcançar mantido pelo próprio movimento negro] de
movimento homogêneo e unificado, que leva a desconsiderar sua potencialidade de atuação
disseminada; assim como mostrar o poder das alianças entre movimentos. Destacarei a
potencialização em alguns âmbitos, por exemplo, o caso da militância de gênero e raça.
O que se identifica como “movimento negro contemporâneo” no Brasil está
constituído por uma variedade de organizações com fins políticos e culturais diversos e muito
vezes em conflito. Podemos observar uma pluralidade de trajetórias, de eixos de debate,
trânsito e junção de militâncias em diferentes movimentos. Ressaltarei alguns desses trânsitos
e articulações.
Um dos eixos de militância definidos ao longo dos anos 80 é o de raça/classe.
(particularmente pelos militantes do MNU). Os partidos políticos de esquerda surgidos no
bojo da democratização (como o PT no Brasil e o Frente Amplio no Uruguai) foram espaços
de militância de ativistas negros, ou também se constituíram como os interlocutores
privilegiados do movimento negro, em sua discussão sobre raça e poder. Tanto na faceta da
discussão no sentido de que os negros ocupassem espaços de decisão em seus âmbitos de
participação (partidos, sindicatos, empregos privados e públicos), ou no debate sobre como
permear o Estado, que foi aprofundado nos anos 90, com a reformulação do formato
organizativo dos movimentos em ONGs e a profissionalização da militância.
Desde fins dos anos 80 a confluência entre sindicatos e movimento negro abriu a
discussão da inserção dos negros no mercado de trabalho, com a discussão nas diferentes
categorias, e a criação de núcleos anti-racismo nos sindicatos, protagonizados por pessoas
com dupla militância no movimento sindical e negro. Foi criado em 1995 o Instituto Sindical
Interamericano pela Igualdade Racial – INSPIR, impulsionado pela CUT entre outras centrais
sindicais, que em 1998 lança o Mapa do Negro no Mercado de Trabalho com dados
reveladores de desigualdades.
A discussão com partidos e sindicatos é ressaltada pela militância negra, até a
atualidade, como um aspecto problemático devido à ênfase destes interlocutores na questão de
classe, visando uma defesa mais voltada à inclusão social do que racial, por aderirem de
algum modo à ideologia da não existência do conflito racial.
Outra linha de convergência foi a dos Agentes Pastorais Negros (APNs) e os teólogos
negros da libertação, que denunciaram o racismo na Igreja Católica. Num contexto onde se
expande a Teologia da Libertação, estes religiosos negros apontam que a liberação só
acontece quando os oprimidos, a partir da consciência de sua situação, organizam-se para
lutar por seus direitos, assumindo sua negritude.

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Vinculado com este movimento surgem preocupações com a educação, expressas num
primeiro momento, nos anos 80, com as campanhas de alfabetização a partir do ideário de
Paulo Freire da educação como caminho de emancipação. Depois, com os cursinhos pré-
vestibular para o ingresso de estudantes negros e carentes nas universidades públicas
brasileiras, criando uma rede pelo Brasil todo. Uma das características é que esses cursos
incluem, entre outras, a disciplina Cultura e Cidadania para que os alunos pensem também
sobre seu papel na sociedade, e não apenas no vestibular, com caráter emancipatório.
É na confluência desta linha de militância na educação como emancipação e a que
problematiza a desigualdade dos negros no mercado de trabalho assim como na ocupação de
espaços de poder e prestígio, que devem ser pensadas as cotas para negros nas universidades
brasileiras.
Outro eixo de debate que perpassou desde a década de 70, reforçando-se a fins dos
anos 80 com a inclusão do artigo 68 na Constituição, e criando uma das teses de militância
nos anos 90, é o vínculo entre raça e território. Militantes negros cuja trajetória nos anos 80
esteve mais vinculada a partidos e sindicatos abriram o debate sobre a constituição de espaços
sociais negros e a sociabilidade em torno de práticas culturais de matriz afro-brasileira,
através de exaltar sentimentos de pertencimento étnico, dimensões não contempladas pelo
eixo raça/classe que muitos dos militantes do movimento negro aderiam. Assim, os terreiros,
as comunidades remanescentes de quilombos, os espaços urbanos de sociabilidade, voltam à
cena das discussões. As preocupações desta militância foram o questionamento de geografias
racializadas, dos deslocamentos forçados de populações pelos processos de urbanização8 e
dos processo dificultosos de regularização fundiária de comunidades quilombolas9.
O último eixo que ressaltarei será o da discussão que se dá desde fins dos anos 70 e ao
longo dos 80, sobre raça/gênero. Uma preocupação com a diferença de status entre mulheres
negras e brancas começou a ser articulada mais explicitamente por mulheres negras que
atuaram no movimento feminista no final dos anos 70.
A discussão da militância de raça/gênero coloca com um dos pontos de partida que os
legados da escravidão no Brasil em termos de dominação racial e de gênero e as
desigualdades da sociedade pós-abolição conduziram a experiências sociais diferentes para
mulheres negras e brancas: problemas presumivelmente comuns, como sexualidade, saúde

8
Como foi o caso da Vila Mirim de Porto Alegre nos anos 90, que foi reassentada por decisão de um governo do
PT (o que causou um impacto entre os militantes negros que também aderiam a esse partido).
9
Um ponto importante é o a interlocução desta militância com as universidades, particularmente com
antropólogos, na feitura de laudos para o reconhecimento das comunidades. Não me deterei nesse ponto devido a
que é um campo complexo que por questões de espaço e de abrangência de meu objetivo não poderia dar conta
no presente trabalho.

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reprodutiva e trabalho remunerado passaram a ter significações diferentes para mulheres
negras e brancas. Ao reconhecer essas diferenças, as mulheres negras no movimento feminista
passaram a desafiar noções generalizadas da opressão das mulheres que não levaram em conta
a relação entre ideologia patriarcal e racismo (Caldwell, 2000). Feministas negras como Lelia
Gonzalez e Luisa Bairros afirmaram que a liberação aparente de feministas brancas estava
relacionada à subordinação continuada de mulheres negras: o serviço doméstico das negras
nas casas de famílias brancas permitiu às mulheres brancas entrar cada vez mais na força de
trabalho. Outra crítica ao movimento feminista foi a de ignorar a exploração sexual das
mulheres negras, particularmente as que trabalham no serviço doméstico.
A mobilização de mulheres negras na convergência do movimento feminista e o
movimento negro permitiu incorporar a perspectiva racial e de classe aos temas que o
movimento feminista vinha trabalhando desde inícios dos anos 80, numa atuação centrada na
violência e na saúde. Interessante ressaltar que o movimento de mulheres negras nas
Américas deu um pontapé inicial na constituição de uma rede transnacional de militância: a
Rede de Mulheres Negras durante o I Encontro de Mulheres Afro-Latino-Americanas e Afro-
caribenhas, em Santo Domingos, República Dominicana no ano 1992, e estipulou-se a data 25
de julho como o Dia da Mulher Afro-Latino-Americana e Caribenha. Inclusive em artigo de
1988, Lélia Gonzáles já ressaltava a importância das alianças entre as mulheres negras e
indígenas da América Latina.
No contexto preparatório da Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em
Bejing, em 1995, o movimento de mulheres negras teve forte atuação. Esta atuação resultou
na incorporação da temática racial na Declaração das Mulheres Brasileiras para a IV
Conferência Mundial sobre a Mulher, e fez com que o governo brasileiro sustentasse o
“reconhecimento da discriminação racial enquanto um grave problema que atinge grande
parte das mulheres do mundo” (Roland, 2000). No mesmo sentido cabe destacar que a
Conferência de Durban, em 2001, foi acompanhada de uma intensa mobilização do
movimento de mulheres negras, principalmente através da Articulação de Organizações de
Mulheres Negras Brasileiras (AMNB), que na atualidade se apresenta como um importante
Fórum visando o monitoramento e efetivação de políticas públicas de raça e de gênero.
Se olharmos o caso do Uruguai em torno da militância de raça e gênero, o Grupo de
Apoio à Mulher Afro – GAMA surge em 1989 com militantes de anterior Grupo Amandla,
que junta sua força à também incipiente Mundo Afro. Nos anos 90 surge a iniciativa de criar
uma cooperativa de moradia para mulheres afrodescendentes chefas de família. Em 1996
Mundo Afro inicia conversações com o Ministério da Vivenda para um projeto de construção
de 40 moradias no Barrio Sur, bairro de população africana e afrodescendente mais antigo de

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Montevidéu. Uma centena de famílias afrodescendentes foi despejada e disseminada para a
periferia da cidade pelos projetos desenvolvimentistas do governo militar em 1979. Através
de negociações com o governo o grupo de mulheres conseguiu um empréstimo, um terreno e
uma antiga estrutura edilícia doados pelo município. A cooperativa implicava para suas
promotoras uma história concreta de resistência e de confrontação à discriminação racial e ao
projeto de exclusão social. Implica na consideração ao antigo bairro com as formas de vida ao
redor da cultura dos tambores e o candombe, mas também a memória de uma história de
moradias deterioradas e de cortiços em decadência, e a expulsão policiada de segmentos da
população negra. Na atualidade, este processo é considerado pelos militantes como a
“primeira ação afirmativa no Uruguai”.

Estas reivindicações se vieram reforçadas pelos dados obtidos no Diagnóstico


socioeconómico y cultural de la Mujer Afrouruguaya, levado a cabo pelo GAMA com o
apoio do PNUD e o Centro de Investigação, Estudo e Desenvolvimento de Itália (CIES), no
ano de 1997, que teve, além do objetivo do diagnóstico propriamente dito, um objetivo
político de empoderamento das mulheres afro-uruguaias, no contexto de consolidação do
GAMA, cujas lideranças estavam estabelecendo trânsitos entre o movimento negro e o
feminismo10.

É interessante pensar que nos anos 2000 é criada a Secretaria da Mulher


Afrodescendente dentro do Instituto Nacional da Mulher, como veremos mais adiante, fato
que consolida a possibilidades de políticas com recorte de gênero e raça, questão que por
exemplo, no Brasil, com a articulação de mulheres negras importante não consegui se instalar
como interesse de Estado.

A emergência da organização Mundo Afro implicou na incidência nos mecanismos de


constituição de hegemonia. Isto foi possível por um cenário cambiante de novas alianças
nacionais (imprensa, outras organizações de minorias e de Direitos Humanos), e
internacionais no cenário da globalização, com os vínculos com organismos multilaterais e
agencias financiadoras.
Em seu acionar político, Mundo Afro juntou uma atuação de pressão ao Estado com
ações mais pontuais e especializadas de assessoria mais características das ONGs. Inclusive

10
Alguns dados impactaram imediatamente os agentes de governo e os militantes. Evidenciavam que 50% das
mulheres entrevistadas estavam ocupadas no emprego doméstico, ganhando salários muito baixos sem conseguir
resolver a sobrevivência da pessoa e da família. Também a metade das mulheres entrevistadas não tinha chegado
a cursar o ensino médio (secundário), e só um 4% chegou ao ensino superior (universidade ou professorado), “en
un país como el Uruguay que las posibilidades de acceso a los niveles superiores de enseñanza constituyen un
indicador privilegiado de igualdad de oportunidades sociales” (como diz o documento de apresentação dos
dados).

12
nos anos 90 se transformou numa federação de organizações, com uma centralização de
lineamentos políticos. Esta tendência à centralização se encontra na atualidade numa situação
inversa, existe um processo de fragmentação e formação de novas organizações com
diferentes focos. Este fenômeno pode ser visto como uma disseminação da temática racial
através de diferentes recortes: de gênero principalmente, etário, de ocupação, artístico, etc.11,
embora seja vivenciado por seus protagonistas como um espaço de tensão política.
Ao longo dos anos 90 e nos anos 2000, Mundo Afro foi constituindo paralelamente
seus interlocutores no plano nacional e internacional, ou seja, suas intervenções nacionais
traziam o referencial transnacional para repensar o contexto de racismo uruguaio, se
constituindo num mediador entre o global e o local através de articulações com o governo
nacional e municipal, e instancias financiadoras externas. Este é um ponto importante para
entender a construção atual da trama de políticas públicas, que se fortalece com o capital
social, cultural e simbólico acumulados pela militância de Mundo Afro nos trânsitos e nas
intervenções em diferentes planos12, liderando, por exemplo, a criação de uma rede
transnacional em 1994 (a Red Continental de Organizaciones Afro), assim como a Alianza
Estratégica de Afrodescendientes de América Latina y el Caribe, conformada para a
elaboração de estratégias afro-latino-americanas no processo da Conferência de Durban.
Um elemento interessante a destacar em referência às alianças é o fenômeno ocorrido
em 1992 em torno dos protestos pelos 500 anos da “descoberta de América”. Um fato
importante da militância dos primeiros anos de Mundo Afro foi a organização, junto a
organizações políticas dos povos indígenas, de uma manifestação contra a celebração dos 500
anos da “descoberta de América” em 12 de outubro de 1992 com o lema: “500 años: Ahora
Basta!!”. Foi realizada uma saída de tambores pela avenida central 18 de Julio no dia 11 de
outubro como contra-festejo, afirmando que esse seria o “último dia da liberdade americana”.
Esta manifestação contou com o apoio de vários setores da sociedade uruguaia, num contexto
intelectual crítico em que o processo colonial e republicano vinha sendo questionado por
ensaísta e escritores conhecidos, como o caso de Eduardo Galeano, e seu livro As veias
abertas da América Latina. Um capital cultural – os grupos de tambores de candombe –

11
É o caso de UAFRO, organização de universitárias afro; MIZANGA, organização de mulheres jovens negras;
MAAUI, organização de mulheres afro-artesãs; AFROGAMA, coral de mulheres negras; Quilombo Timbó,
organização de universitários afro.
12
Exemplos da construção de alianças regionais são o 1º Encontro de Entidades Negras do Cone Sul, organizado
por Mundo Afro no ano 90, e na atualidade a realização do Fórum Kizomba na cidade de Rivera (cidade
uruguaia de fronteira com a cidade brasileira de Santana do Livramento), desde o ano 2003, em torno do Dia
Universal da Luta Contra a Discriminação Racial (21 de março). O evento reúne diferentes atores para a
articulação, negociação e comprometimento para executar políticas regionais / nacionais que promovam a
equidade étnico-racial.

13
despolitizado no processo da modernização e conformação da nação, tinha sido transformado
em capital político durante o ato. E ainda foi um exercício de reescrita da história americana e
da diáspora afro-atlântica, assumindo uma releitura do candombe como forma de resistência.

Permeabilidade do Estado

Como coloca José Jorge de Carvalho (2005), uma questão central, e mais geral, a ser
pensada com cuidado na luta por implementar o Programa de Ação de Durban, é a conversão
das minorias étnico-raciais a um tipo de Estado eurocêntrico e monológico. Eurocêntrico por
sua própria origem colonial, sem revisão algum da simbologia européia do poder e dos
aparelhos ideológicos do estado; e monológico porque não há nenhum sinal dos governos de
levar a sério uma reformulação da concepção de Estado como multicultural (mesmo, no caso
do Brasil, estando presente na sua constituição).
Este problema é analisado por Sonia Alvarez (2000) para o feminismo latino-
americano13, particularmente na inserção de feministas no Estado. Se por um lado este foi um
esforço de transformar as representações predominantes de gênero a partir de permear as
estruturas do Estado, por outro, corre-se o perigo de que a dimensão ética-política do projeto
fundador de transformação feminista possa ser esquecido pela absorção por essas estruturas e
ignorado (e finalmente silenciado) por instituições políticas, econômicas e culturais
dominantes. Este mesmo problema pode ser pensado para a questão racial: tal como menciona
Alvarez para as relações de gênero, a absorção dos discursos feministas (e raciais, apontamos
nós) nos planos nacionais vem sendo parcial e seletiva. Os governos continuam hesitando em
adotar as reivindicações feministas e raciais porque isso provocaria uma grande perturbação
nos arranjos predominantes de poder entre os sexos e entre segmentos da população
racializados.
Pensando na permeabilidade da temática racial no Estado brasileiro, podemos pensar o
fenômeno da Marcha Zumbi dos Palmares Contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida,
organizada pelos movimentos negros e feita em Brasília em 1995. O evento obteve como
resultado mais concreto a criação, por decreto presidencial, do Grupo de Trabalho
Interministerial para a Promoção da População Negra (GTI). Tal grupo tinha como objetivo

13
Sonia Alvarez analisa esta problemática dentro do processo por ela chamado de “ONGuização” dos
feminismos latino-americanos que, nos anos 90, perpassou o campo em expansão do movimento. Com efeito, a
absorção de alguns dos itens mais aceitáveis culturalmente da agenda feminista promoveu a especialização e
profissionalização progressiva de um número crescentes de ONGs dedicadas a intervir nos processos nacionais e
internacionais, e a sua vez levou a um número crescente de ativistas a privilegiar alguns espaços da política
feminista, tais como o Estado e as arenas políticas internacionais.

14
fundamental estabelecer canais de interlocução política entre todos os ministérios, a fim de
chamar a atenção e a responsabilidade para a urgência de políticas voltadas à superação das
desigualdades raciais. Porém, o GTI não foi suficientemente investido do ponto de vista
institucional e de recursos financeiros necessários para seu pleno funcionamento,
enfraquecendo-se a ponto de tornar-se inativo pouco após sua criação. O então presidente
Fernando Henrique Cardoso assumiu como chefe de Estado, que o racismo é estruturante das
desigualdades sociais no Brasil14.
A partir de 2001, com a Conferência de Durban, é recolocada a discussão do racismo e
a necessidade de políticas públicas. É nesse contexto que ações afirmativas passam a constar
das agendas internacionais e nacionais. Um reflexo desse contexto é a criação da Secretaria
Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) em 2003. Novos pactos de
combate ao racismo são estabelecidos, configurados na proposição de uma política de
promoção da igualdade racial.
O cenário que se apresentava no final de 2002, com a conclusão de dois mandatos
consecutivos do presidente Cardoso era de uma teia de programas pontuais e localizados, que
não guardavam coerência e interligação entre si. A criação da SEPPIR no início do governo
do presidente Lula, foi recebida como uma sinalização concreta de que o governo federal
havia assumido como tarefa do executivo uma ação articulada de combate ao racismo
evocadas pelo movimento negro desde as décadas anteriores.
A orientação da SEPPIR é a de coordenar ações integradas com os demais ministérios,
não se responsabilizando diretamente pela execução das ações, mas cumprindo o papel de que
as ações sejam cumpridas e monitoradas. Sua atuação têm se concentrado nas áreas de
educação, saúde e direitos das comunidades quilombolas, além de esforços no campo da
diversidade cultural e religiosa, mercado de trabalho e relações internacionais, desenvolvendo
programas e projetos para a construção da transversalidade nas ações da administração
pública. Ainda devem ser levadas em conta as universidades federais e estaduais que
implementaram Programas de Ações Afirmativas, que hoje chegam às 50 instituições.
O Estatuto da Igualdade Racial, que está em processo de votação, responde também a
essa transversalidade. Chamo a atenção para o fato da transversalidade, no sentido de debater

14
É importante ressaltar que no ano 1996 aconteceu o primeiro debate sobre ações afirmativas no âmbito do
governo, no Seminário Internacional Multiculturalismo e racismo: a ação afirmativa nos estados democráticos.
Organizado pelo Ministério da Justiça, o seminário reuniu intelectuais brasileiros e brasilianistas especialistas em
relações raciais a fim de debaterem se haveria ou não condições adequadas para a implementação de políticas de
ação afirmativa no contexto brasileiro. As críticas feitas pelo movimento negro a este seminário foi, por um lado,
a quase inexistente participação de militantes e intelectuais negros como palestrantes. Os debates foram entre
intelectuais majoritariamente brancos. Por outro lado, porque a idéia de fortalecer o modelo de uma brasilidade
mestiça foi o pano de fundo das discussões (Santos, 2005).

15
a idéia de senso comum de que a reserva de vagas nas universidades seria o único tipo de ação
afirmativa existente.
Como ressalta Heringer (2005), nos anos 2000 a tônica do debate público em torno do
papel do poder público tem sido: deve o Estado outorgar a si o papel de promover a igualdade
racial? Se a resposta for sim, de que forma? É possível promover a igualdade racial
independente do projeto político que se adote? Ou a promoção da igualdade racial define por
si uma orientação de um determinado projeto nacional?
Neste ponto – o da não existência de um projeto político maior anti-racista - talvez
resida o cerne das dificuldades enfrentadas hoje no Brasil para que se concretizem as políticas
de ação afirmativa como uma importante ferramenta de promoção da igualdade, e ainda uma
incompreensão dessas políticas no horizonte transnacional e nacional das reparações.
E ainda fica a problemática da absorção das lideranças negras que entraram para o
Estado: elas ficaram em uma condição ambivalente, nem mais representantes da sociedade
civil, nem inteiramente integradas à estrutura de poder do governo Lula. Fato que está
produzindo em certa forma uma moderação das ações de pressão do movimento negro ao
Estado brasileiro.

No caso do Uruguai, os anos 90 e 2000 foram um período de aprofundamento das


articulações nacionais e fundamentalmente transnacionais da militância afrodescendente.
Através de seu trabalho, os ativistas de Mundo Afro propiciaram durante a década de 1990
uma dimensão emergente na sociedade nacional uruguaia em torno da consideração explícita
da questão das relações raciais como assunto de governo. Em 1994 foram realizados dois
Seminários, um de alcance nacional e outro internacional, cuja temática era o racismo, e que
foi a primeira manifestação pública do governo uruguaio assumindo a existência de racismo
na sociedade nacional.
Vários fenômenos relacionados se deram entre a década de 90 e começo dos anos
2000. A realização do primeiro estudo estatístico apresentado em 1998 tomando a variável de
auto-identificação racial aplicada na Encuesta Continua de Hogares (o equivalente da amostra
por domicílio PNAD do Brasil) na rodada 1996- 1997 – que foi a primeira vez que uma
contabilidade oficial no Uruguai durante o século XX incluísse a auto-identificação por
categorias raciais-, resultando no reconhecimento do quadro de desigualdades sócio-
econômicas que afeta à população afrodescendente. Estas constatações embasaram uma
denuncia apresentada por Mundo Afro frente ao CERD15 a fins da década de 90, que implicou

15
Comitê para Eliminação da Discriminação Racial da ONU.

16
numa série de recomendações que as Nações Unidas fizeram ao governo uruguaio para
solucionar o quadro de racismo. Ainda a participação ativa no ano 2000 no processo em torno
da Conferência de Durban, deu visibilidade para o problema na esfera transnacional16.
A partir de 2005, no contexto pós-Durban, com o começo da gestão no governo
nacional do Frente Amplio17, se aprofundaram as relações que Mundo Afro tinha com esta
coalizão de esquerda desde suas gestões na Intendência de Montevidéu nos anos 90. Esta
gestão foi referida pelos militantes como sensível à promoção da equidade social dos
diferentes setores que conformam o Uruguai, e dentro dessa idéia entra a promoção da
igualdade racial.
Uma das ações está sendo a de propiciar que os agentes protagonistas ocupem espaços
de poder para influenciar nas decisões sobre políticas para a população negra. Desse modo,
vários integrantes de Mundo Afro passaram a ocupar cargos no governo, se responsabilizando
pelos novos “escritórios de promoção da equidade racial” criados em diferentes órgãos do
Estado. Esta participação e a criação dos escritórios têm por objetivo incorporar o recorte
racial no desenho de políticas públicas, nas áreas de políticas para as mulheres, juventude,
saúde, educação e cultura.
Um exemplo é a Secretaria da Mulher Afro-uruguaia (no Instituto das Mulheres dentro
do Ministério de Desenvolvimento Econômico e Social – MIDES). A atuação política no
cruzamento de raça e gênero foi potencializada com a aliança com o movimento feminista
através de coordenar uma secretaria vinculada ao Instituto Nacional da Mulher, como
mencionamos anteriormente. Ainda a potencialização se deu porque o Instituto está dentro de
um ministério novo, o MIDES. A incidência da Secretaria se dá particularmente na inserção
do recorte racial nas políticas de gênero do Instituto, e mais amplamente, a inserção de
categorias étnico-raciais nos diferentes programas do MIDES, que nos primeiros programas
não tinha sido incorporado este recorte. A Secretaria é o único escritório de equidade racial
que conta com orçamento, os outros não contam com recursos econômicos para sua ação, o
que ocasiona sérios problemas para sua atuação. Esta situação foi chamada pela militância
negra como “racismo orçamentário”. Este problema, junto com as reações a incorporar o
recorte racial nas políticas públicas, estão sendo fatores que impedem a continuidade de
alguns dos escritórios.

16
Inclusive Mundo Afro foi responsável pela organização local do Taller [oficina] Regional para la Adopción e
Implementación de Medidas Afirmativas para Afrodescendientes de América Latina y el Caribe em 2003, como
parte do processo pós-Durban, convocado pelo Alto Comissionado das Nações Unidas para os Direitos
Humanos, que contou com a participação da sociedade civil organizada e dos governos, reforçando a
responsabilidade destes últimos na implementação de políticas públicas de combate ao racismo.
17
Cabe frisar que foi a primeira vez que o Frente Amplio ganhou as eleições presidenciais. Historicamente as
eleições se disputaram no bi-partidismo entre Blancos e Colorados.

17
A situação atual da relação da militância negra com o poder público está sendo
vivenciada pelos militantes de Mundo Afro como um drama. Por um lado, a inserção de
representantes do movimento negro em espaços do poder público abre uma problemática de
como constituir a mediação política entre os agenciamentos estatais e as percepções e
linguagens representadas pelas lideranças do movimento negro, numa complexa trama de
poder. Por outro lado, esta inserção está ocasionando impactos tanto interpessoais entre os
militantes quanto nas transformações das formas de organização e de aliança da militância.
Este último ponto está relacionado também com o processo de fragmentação do qual falei
anteriormente.
Um último aspecto que gostaria de ressaltar é o fato de que em 2006 foi aprovada uma
lei que institui o 3 de dezembro como o Dia Nacional do Candombe, a Cultura Afro-uruguaia
e a Equidade Racial e o candombe como patrimônio cultural do Uruguai. Esta lei, produto da
ação da Assessoria em Temas Afrodescendentes da Presidência, introduz já em seu texto uma
resignificação do candombe, lido não só como patrimônio da nação num sentido etnicizado,
como “cultura afro-uruguaia”; mas também junto à “equidade racial” como ideal a alcançar.
Ainda foi escolhido o 3 de dezembro por evocar a data (3/12/1978) em que “sonaron los
tambores” em defesa do cortiço do qual foram despejadas as famílias moradoras para demolir
o prédio posteriormente, fenômeno relacionado à expansão urbana de caráter “higienista” que
expulsou as famílias negras do centro da cidade para os bairros periféricos montevideanos. A
escolha dessa data para festejar o candombe como símbolo que condensa múltiplos
significados e lutas, traz a cena nacional o tema das afro-reparações, esta vez referindo aos
processos de exclusão gerados a partir do despejo das famílias negras e, de maneira ampla,
aos abusos da ditadura militar para com a população afrouruguaia.
*****
Com estas considerações gerais sobre algumas das dimensões que as afro-reparações
abrem para pensar os contextos de diversidade dentro de Estados-nação construídos e
mantidos como eurocêntricos e monológicos, tentamos contribuir a uma compreensão maior
do que as reparações, viabilizadas através de ações afirmativas, trazem para repensar o pacto
social como um todo através da construção de um horizonte comum de igualdade e diferença.

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19

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