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Aula 2

Pensamento e
discurso:
a linguagem
História e Filosofia

Meta da aula

Introduzir a questão da linguagem, perguntando pela distinção entre a consciência


crítica e o senso comum, pela relação sujeito-objeto, pelo pensamento e sua expressão
no discurso.

Objetivos

Esperamos que, após o estudo do conteúdo desta aula, você seja capaz de:

1. compreender o que é o conhecimento científico e o conhecimento filosófico;


2. compreender a linguagem em sua relação com o real.

Pré-requisito

Para que você encontre maior facilidade na compreensão desta aula, é importante
ter em mãos um bom dicionário da língua portuguesa. Um dicionário é um excelente
instrumento para que você compreenda o significado de expressões e termos novos
que surgirão ao longo da aula.

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Aula 2 – Pensamento e discurso: a linguagem

INTRODUÇÃO

O pensamento – conhecimento e senso


comum
A filosofia, o amor ao saber, pertence à esfera do que
chamamos consciência. A palavra “consciência” inclui, em si, como O nome grego da
seu determinativo, o termo ciência. Por isso, para compreendermos ciência é episteme,
¯
um termo muito antigo
o que significa “consciência” é importante conhecer o significado
da língua grega.
da palavra “ciência”. Vamos buscar a compreensão da “ciência”
Inicialmente, episteme¯
para, então, saber o que queremos dizer quando dizemos “a significava aquilo que
filosofia é um saber que pertence à esfera da consciência”. Não chamamos de “raízes”
dos seres vegetais,
falaremos de alguma ciência determinada, como a biologia, a física
estendendo-se, com o
ou a antropologia. Neste momento, perguntaremos apenas pelo desenvolvimento da
significado do substantivo “ciência”. linguagem filosófica,
ao significado de
“Ciência” é uma palavra derivada do substantivo latino “fundamento” das
scientia que, por sua vez, procede do verbo scire (saber). Mas saber coisas. Aos poucos,

a origem de uma palavra é só uma pista para a compreensão do seu desenvolveu-se


no sentido de um
significado, pois as palavras vão mudando de sentido conforme são
conhecimento das
utilizadas pelas sociedades. Há muitos saberes que não pertencem, coisas por suas causas
atualmente, ao que consideramos “ciência”, por exemplo, o saber ou por suas leis, ou
seja, um conhecimento
não-crítico do senso comum, os saberes práticos do dia-a-dia, que
bem fundamentado
são saberes “não-científicos”. sobre as coisas. Platão,
no século IV a. C.,
Sabemos, certamente, muitas coisas que nenhum de nós
aplicava a palavra a
ousaria apresentar como se fossem saberes científicos: saber, por um corpo organizado
exemplo, que o ator X operou a vesícula, ou que a cantora Y se de conhecimentos.
casou, ou que tamancos verdes com bolinhas roxas são a última Episteme,
¯ na língua
grega, significa um
moda, tudo isso é saber algo, mas nada disso pode ser denominado
conhecimento teórico,
“científico”. Deste modo, é muito importante sabermos que há oposto ao conhecimento
várias formas de “saber”, mas nem todos os saberes são saberes prático (praktike;
praxis).
científicos. Talvez usemos, na nossa fala quotidiana, o verbo saber
muito livremente, num sentido muito amplo.

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Vejamos que tipo de saber é o saber científico. O que é o


saber científico? Várias respostas podem ser dadas a esta pergunta,
por exemplo: “é um saber teórico”, ou “é um saber metódico”, ou “é
um saber rigoroso”. Essas respostas nos dão algumas informações
para a compreensão de “ciência”, mas não explicam muita coisa,
pois não especificam nada. Precisamos, então, de perguntar pela
natureza do saber científico, para que possamos compreender a
diferença específica entre o saber comum (opinião), o saber científico
(ciência) e o saber da filosofia.

Busquemos uma primeira resposta: a ciência é um modo de


conhecimento que tenta formular, por meio de linguagens rigorosas,
explicações gerais, racionais, dos fenômenos (FERRATER MORA,
Dicionário de Filosofia, s.v. “ciência”). Essas explicações gerais e
racionais são chamadas “leis” pelos cientistas.

Fenômeno Essas leis são de diversos tipos e se referem aos fenômenos


Termo que hoje físicos (como a “lei da gravidade”), aos biológicos (por exemplo, as
tendemos a utilizar,
“leis da genética”), aos psicológicos (como as “leis da percepção”)
no dia-a-dia, como
algum acontecimento e até aos sociais (como alguns esquemas teóricos da antropologia).
extraordinário. Significa Todas essas leis, contudo, têm algumas coisas em comum:
“aquilo que se dá a
conhecer”, ou seja 1ª. são capazes de descrever toda uma série de fenômenos,
“aquilo que vem à então, são leis “gerais”. Por exemplo, a lei da gravidade se aplica
luz”, que “aparece”
a todas as maçãs que se soltarem da macieira e a todos os satélites
para nós. Na língua
artificiais que orbitam em torno da Terra;
grega, fenômeno é
phainomenon, um termo 2ª. são comprováveis por meio da observação dos fatos e da
cujo radical é phai, uma
experimentação. Por exemplo: um homem e uma mulher juntos não
palavra do grupo de
phós (luz), como vimos conseguem gerar um cachorrinho, nem que tentem por toda a vida;
na nossa primeira aula.
3ª. são capazes de predizer o que ocorrerá no futuro. Por
exemplo, as maçãs que no futuro se soltarem dos galhos continuarão
a cair no chão, mesmo que não se queira.

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No caso de alguma dessas leis falhar em sua aplicação, então,


ela tem de ser substituída. É por isso que novos fenômenos exigem
novas pesquisas científicas, e leis científicas são revistas, criadas ou
abandonadas de vez em quando.

Deste modo, vemos que o saber científico se diferencia do saber


comum. Vemos, também, que ele se aplica àquilo que chamamos
de “realidade”, seja ela física (no caso das ciências exatas ou
das ciências biológicas), ou social (no caso da antropologia, da
etnologia, da psicologia, etc.).

O saber científico é, então, um saber teórico – por se apoiar


em modelos de explicação da realidade; é um saber metódico – por
proceder a partir de métodos e experimentações; e é um saber
rigoroso – por ser formulado por meio de uma linguagem própria,
ou seja, não usa a linguagem que usamos em nosso dia-a-dia, e
sim é expresso por meio de linguagens especiais, por exemplo, a
linguagem matemática.

Quem jamais se aborreceu quando, ao buscar o resultado


de um simples hemograma, ou ao tentar ler a bula de um remédio,
se depara com uma série de palavras que não usamos na nossa
fala quotidiana? Pois é, para “decifrar” essas palavras, geralmente
precisamos de um “especialista” que nos ajude, seja um médico, um
farmacêutico ou um técnico laboratorista. A linguagem da ciência
é uma linguagem específica, apropriada aos seus objetivos, não
fazendo parte da linguagem comum, quotidiana, e os “falantes”
dessa língua – os cientistas e os técnicos – a utilizam para que todos
se entendam entre si e não haja dúvidas em relação ao sentido
das palavras. Todos nós temos uma iniciação a estas linguagens
específicas na escola, mas nem todos continuam a estudá-las, pois
outros interesses ou outras atividades nos afastam delas.

Deste modo, “ciência” é uma palavra que, em geral, se refere


a um saber muito específico que tem uma linguagem própria. Mesmo
assim, a palavra “ciência” conservou algo do seu sentido original no
latim, que era muito amplo. Percebemos este sentido quando dizemos

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“tomei ciência disso” ou “tenho de tomar ciência daquilo”, ou “fulano


está ciente de algo”. Neste caso, vemos o sentido original do substantivo
“ciência”, o saber algo que está fora de nós, no mundo.

Quando dizemos “estou ciente de algo”, o sentido da nossa


frase parece muito simples, não é mesmo? Mas vamos observar um
pouco mais esta frase: estou ciente de algo. Como é que podemos
estar cientes de seja lá o que for? Dizemos, por exemplo, “estou
ciente de que amanhã farei uma prova” e, com isso, queremos dizer
que sabemos que, no dia seguinte ao dia da nossa fala, faremos
uma prova. Mas como sabemos isso? Hoje não é amanhã e, se
pensarmos bem, como podemos afirmar que sabemos que, amanhã,
faremos uma prova? Certamente, não é porque já vivemos o dia
de amanhã e já tivemos certeza de que fizemos a prova... então,
falamos tais frases por algum outro motivo, concorda?

Não vivemos ainda o amanhã, ainda não fizemos a tal prova,


mas “estamos cientes” de que a faremos no dia seguinte. “Estar
ciente” é, então, “saber para si”, e a este tipo de saber denominamos
“consciência” (“saber consigo e para si”). “Estar ciente” é “ser
consciente” de que amanhã há que fazer uma prova determinada.
Consciência é um saber que se debruça sobre si e nos faz, segundo
o nosso exemplo, acordar no dia seguinte dispostos a irmos a um
determinado lugar para fazer uma prova.

Vamos continuar a pensar: levantamo-nos, então, determinados


a fazer a tal prova, mas por que motivo? Podemos imaginar alguns
motivos pelos quais nos movemos a fazer provas: esta prova é
obrigatória para obter a aprovação em determinada disciplina, ou
em determinado concurso, ou esta prova é importante para medirmos
o nosso conhecimento sobre algum assunto, ou é necessária para que
obtenhamos alguma vantagem em nossos trabalhos, etc. São vários
os motivos possíveis. Podemos perceber, então, que sabemos para
nós mesmos, ou seja, temos consciência de que devemos fazer tal
prova não pela prova em si. Poucas são as pessoas que se dispõem
a fazer provas por as considerarem uma boa diversão, ou um bom

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passatempo. Geralmente, as pessoas fazem provas porque provas


são importantes para outras coisas que não elas mesmas, não é?
Mas como sabemos disso?

Vamos dar mais alguns passos em nossas mentes. Retomando o


nosso exemplo da tal prova, podemos entrar em acordo quanto ao fato
de que temos consciência da necessidade de fazer provas por motivos
outros que não são uma predileção por fazer provas, por acharmos
provas divertidas. Provas não costumam ser divertidas. Fazemos provas
porque sabemos que temos de fazê-las para conseguir ou obter outras
coisas que estão além da prova. Então, submetemo-nos a provas porque
queremos algo com elas, algo que está no futuro delas, não é mesmo?
Mas, para fazer uma prova, temos de lançar mão de conhecimentos
que não adquirimos no momento mesmo em que estamos fazendo
a prova, concorda? Sabemos que se formos fazer uma prova,
por exemplo, de geometria, sem saber nada de geometria, não
conseguiremos sequer começar a prova, não é? Então, parece-nos
óbvio que quem não sabe nada de geometria não pode fazer uma
prova de geometria bem-sucedida, e não precisamos de nos esforçar
muito para compreender os motivos de tal impossibilidade. É preciso
saber geometria para fazer uma prova de geometria e todos nós
sabemos que geometria não é algo que se aprenda em um piscar
de olhos... Antes de fazermos uma prova de geometria, temos de
aprender geometria e isso leva algum tempo. Temos de nos dedicar
ao seu estudo, temos de ser rigorosos, temos de deixar de fazer outras
coisas, talvez mais divertidas, para estudar geometria, pelo menos
o mínimo necessário para fazer a tal prova. Chegamos, então, ao
outro lado da prova: algo que está no passado dela e que a torna
possível, ou seja, a sua causa.

Você pode observar, agora, que estamos lidando com uma


série de fatores: uma finalidade, que está no futuro; uma preparação,
que está no passado, e uma prova, que ocorrerá em um presente
determinado, um dia e um local específicos, e tudo isso é decorrente
de uma meta de vida, uma vontade, um desejo, uma vocação ou
uma necessidade, não é mesmo?

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Estamos falando aqui da situação do ser humano neste nosso


mundo, estamos falando do ser no mundo. Todas as nossas ações
ocorrem sempre em um hinc et nunc (“aqui e agora”, como diziam
os romanos). E todas elas foram antecipadas por algo e têm uma
finalidade, seja lá o que for. Nada do que fazemos escapa a essas
determinações. Mas a maioria das pessoas age irrefletidamente, ou
seja, age sem parar para refletir sobre suas ações e o que querem
com elas. Sendo bem sinceros agora, nós mesmos, muitas vezes,
agimos sem refletir sobre as nossas ações, não é mesmo? Ou falamos
sem parar para pensar sobre o que estamos dizendo, ou se o que
estamos dizendo é, de fato, o que queremos dizer.

Quantas vezes perguntamos a um amigo por que, afinal, ele


fez alguma coisa e obtemos como resposta um sei lá, porque todo
mundo faz assim. Muitas vezes, não é? E quantas vezes compramos
uma roupa que, se parássemos para pensar, não a compraríamos, pois
chega às raias do ridículo, só por “estar na moda” e “todo mundo”
Doxa
Em grego, significa usa? Quem é esse cidadão, esse “todo mundo”? Quem é esse sujeito
opinião e distingue-se indeterminado e genérico que muitas vezes manda em nós?
daquilo que é
considerado um A esse “todo mundo”, a filosofia chama de “senso comum”,
conhecimento “opinião” ou “doxa”. Esse “todo mundo” faz “todo mundo” usar,
¯
verdadeiro (episteme).
“todo mundo” querer, “todo mundo” saber etc., é o senso comum,
A dicotomia entre doxa
e episteme¯ é constante
que não reflete criticamente sobre si. É o saber das opiniões comuns,
na história da filosofia, é o saber do modismo, é o saber que se move na superfície das
pois a doxa é um coisas, é o saber superficial, é, então, o “não saber”, ou seja, o
tipo de conhecimento
contrário do verdadeiro saber, o saber que se debruça sobre si e
não-crítico, no qual as
possibilidades de pergunta pelas razões de si, pelos critérios de si. O verdadeiro saber
um juízo falso são é o oposto do saber de “todo mundo”, esse sujeito indeterminado
muito grandes.
que nos leva a fazer o que não queremos, o que não desejamos
intimamente. É o “fazer e ser sem saber”.
Alteridade
Significa a qualidade O “todo mundo” é o oposto da filosofia, que se move no âmbito
do que é outro; da consciência e produz o verdadeiro conhecimento, que é, sempre,
expressão derivada do
conhecimento de si – num movimento de interioridade – e conhecimento
termo latino alterum que
significava “diferente”,
do outro – num movimento de si em direção ao que é o outro de si, a
“outro”, “estrangeiro”. alteridade. Vamos, então, conhecer um pouco mais esse processo.

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