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A Plenitude do Ser
por
Marcelo Hipólito
Para meus pais amados: Rubens e Marlene.
SUMÁRIO
Capítulo II – Existencialismo
Capítulo V – Ressureição
O Autor
ORAÇÃO PARA ANTES DOS ESTUDOS
Santo Tomás de Aquino
Infalível Criador,
que, dos tesouros da Vossa sabedoria,
tirastes as hierarquias dos anjos,
colocando-as com ordem admirável no céu;
Vós, que distribuístes o universo com encantadora harmonia;
Vós, que sois a verdadeira fonte da luz e o princípio supremo da sabedoria,
difundi sobre as trevas da minha mente o raio do esplendor,
removendo as duplas trevas nas quais nasci: o pecado e a ignorância.
Ensinai-me a começar,
regei-me no continuar e no perseverar até o término.
Amém.
CAPÍTULO I
A busca pela verdade
Filosofia é uma técnica humana e, portanto, imprecisa, uma vez que o ser
humano é imperfeito, subjetivo, limitado em suas capacidades cognitivas, racionais,
temporais e sensoriais.
Já a verdade absoluta, por ser perfeita, circunscrita em si mesma, revela-se
divina, ausente de subjetividade. Deus é singular na sua objetividade absoluta, uma vez
que é o criador do mundo das coisas (tanto da sua totalidade como de cada um dos seus
componentes, até dos mais ínfimos), bem como dotado de atemporalidade e
simultaneidade, conforme Santo Tomás de Aquino.
Mesmo a arrogância do moderno método fenomenológico – que supõe
amenizar a reflexão abstrata da ortodoxia filosófica através da observação crua dos
fenômenos – é incapaz de evitar a chamada interpretação da realidade, em si sujeita às
limitações típicas da percepção e racionalização humanas.
Destarte, a filosofia resta abstrata e subjetiva por excelência, ao se tratar de
exercício intelectual humano, consequentemente restrito e impossibilitado de atingir a
verdade plena.
Assim, a verdade absoluta será sempre sobre-humana, reservada ao campo
do divino.
Já a verdade humana permanece fadada a ser uma construção inacabada,
condenada à subjetividade e às abstrações típicas do intelecto mundano, restrita a tatear
pelas fronteiras do conteúdo integral, simultâneo e verdadeiro, acessível somente pelas
capacidades infinitas de Deus.
Portanto, a verdade humana se manifesta mais como estética, enquanto a
verdade plena se revela como conteúdo; ou seja, verdade na acepção máxima do termo,
inatingível às limitações do homem.
Nessa perspectiva, a filosofia se alterou substancialmente durante o tempo,
em particular a partir do século XVIII. Da escolástica medieval às linhas de análise pós-
iluministas, muitas influenciadas pelo método fenomenológico, aferradas à observação
de um fenômeno particular ou reincidente, num determinado momento ou intervalo
temporal.
Assim, a filosofia moderna se assentou mais no exame estético da superfície
do real, em vez de lutar vigorosamente contra as restrições humanas, na perseguição
pelo conteúdo inatingível em sua integralidade, porém, passível de vislumbres parciais,
sob penosa reflexão e laboriosos estudos.
Novamente, a verdade divina é conteúdo por corresponder à integralidade
do real. Destarte, o estudo da realidade cabe mais ao campo da teologia do que ao da
filosofia.
Contudo, mesmo a teologia, como atividade intelectual humana, é limitada
pela nossa corporalidade.
Ainda assim, a teologia possui uma vantagem diferenciada, singular, por se
tratar também de exercício espiritual, portanto, de diálogo com o divino, dotado de uma
amplitude superior à da filosofia para a compreensão da verdade plena, do conteúdo
integral do físico e do transcendente, do ser e da alma.
Uma linha filosófica que se alia à teologia para investigar a condição
humana se sobressai, portanto, como alternativa responsável a uma busca meramente
estética da verdade.
Sob essa perspectiva, uma filosofia desprovida de Deus se automutila como
ferramenta de persecução da verdade, restando-lhe o encontro inevitável com o vazio
existencial e a fraude intelectual; destinada mais a confundir do que a revelar. Não é à
toa o existencialismo moderno restar como niilismo, celebração macabra do nada pelo
nada. Quando a humanidade se afasta de Deus, não se torna maior, nem melhor, em vez
disso decai a uma existência enfraquecida de propósito e carente de transcendência:
“É impossível não se perguntar quanto a desmistificação do cosmo não
representa a duradoura aspiração dos homens a se tornarem deuses. Eva tomou o fruto
proibido porque ele representava o poder do conhecimento, que livraria os homens da
dependência de Deus. Jó, por sua vez, sofreu para compreender um Deus que violava as
mais básicas noções humanas de equidade e justiça. De maneiras distintas, ambos os
personagens participaram do mais elementar embate do homem para descobrir e aceitar
seu lugar no drama da existência”.1
1
McAllister, Ted V. (2017). Revolta Contra a Modernidade: Leo Strauss, Eric Voegelin e a Busca de
Uma Ordem Pós-Liberal. São Paulo: É Realizações, p.23.
CAPÍTULO II
Existencialismo
EXISTENCIALISTA
CRISTÃO MODERNO
Realista Idealista / Utópico
Racional Irracional
Religioso / Transcendente Ateu / Materialista
Ama o mundo, o próximo e si mesmo Niilista
O existencialista moderno sente repulsa ou incômodo pelo mundo das
coisas, tendendo ao niilismo como mecanismo de enfrentamento dessa dor existencial.
Já o existencialista cristão ama a criação e resigna-se com inevitabilidade do
Pecado Original (fonte de angústias variadas em relação aos traumas da existência),
buscando a cura na salvação da sua alma imortal.
O existencialista moderno vale-se da dialética hegeliana e, por vezes, da
fenomenologia alemã como balizas do seu trabalho, sob um leque de referências
variadas, compreendendo um espectro de exotismos que se desdobra de Epicuro a Sade.
O existencialista cristão, por sua vez, volta-se com reverência intelectual a
grandes figuras racionais do passado, como: Aristóteles e Santo Tomás de Aquino.
2
Middelaar, Luuk van (2015). Politicídio. São Paulo: É Realizações, p.89.
Esse logro primordial de Marx constitui-se na fraude intelectual que faz
todo marxista um imbecil assumido ou involuntário; trata-se de uma escola de
pensamento inteira desprovida de evidências ou comprovação, erigida sobre os pés de
barro da assunção de abstrações mentais tomadas como realidade empírica.
Ainda assim, a teoria marxista permanece uma cilada resiliente, uma
abstração destinada a fracassar no mundo real. Na verdade, sua aplicação concreta
contribui somente à sua própria desconstrução, atestando, recorrentemente, seus
equívocos morais e lógicos.
Quando a grande revolução inaugural do marxismo eclodiu numa Rússia
apenas parcialmente industrializada, e não nas economias avançadas do Ocidente, onde
Marx previra o levante do proletário como vanguarda revolucionária, começaram os
revisionismos para se espremer a realidade nos limites falhos de uma teoria que se
provava ineficiente para descrever fenômenos palpáveis e autênticos.
Afinal, na Rússia, não havia sido o proletariado o núcleo propulsor da
Revolução, mas sim, um aglomerado de intelectuais inescrupulosos, radicais de classe
média e sociopatas como o violento ladrão de bancos Josef Stalin. O proletariado fora
inicialmente marginal ao processo, provando sua inépcia como classe revolucionária
autônoma e o embuste conceitual da chamada consciência de classe.
O segundo fracasso marcante das abstrações teóricas da Marx, quando
trazidas ao mundo das coisas, seria na revolução comunista chinesa, na qual os maoístas
se viram forçados a eleger os camponeses, em vez dos proletários, como a classe
revolucionária.
De fato, em meio aos terríveis níveis de subdesenvolvimento, à economia de
base rural e à pobreza extrema da China, seria impossível lançar na conta de uma
industrialização praticamente inexistente a condição prévia à radicalização socialista.
Ainda assim, a mentira vermelha restava evidente, os camponeses famélicos
que se uniam aos comunistas faziam-no pelas miseráveis rações que estes lhes
provinham para subsistirem.
Novamente, a revolução era um feito de intelectuais e homens talhados à
violência. Uma vez mais, não havia povo na liderança da Revolução.
O maoísmo desgraçou de vez qualquer presunção de verdade científica do
marxismo ao virar de ponta-cabeça a estrutura lógica da luta de classes e da superação
do capitalismo.
Contudo, prestou-se como uma luva aos movimentos de esquerda do mundo
subdesenvolvido.
Subitamente, os extremistas de sociedades atrasadas podiam reivindicar para
suas realidades, complemente incondizentes com a teoria marxista, a condição de
vanguarda revolucionária, prontas a superar o capitalismo.
Marx teria se revirado nas chamas do Inferno diante das inconsistências
cada vez mais evidentes das suas abstrações filosóficas.
Do Brasil ao Camboja, da Síria ao Zimbábue, da Coréia do Norte ao Chifre
da África, a revolução eclodia como ameaça real ou vitoriosa em qualquer sociedade do
mundo, exceto naquelas identificadas pela lógica marxista como as realmente
apropriadas: as grandes nações ocidentais.
Nada de revolução socialista nos EUA, Inglaterra, França. Quando muito,
seus irmãos fascistas tomavam o poder e fuzilavam os comunistas na Itália e Alemanha.
Diante do fracasso lógico e cognitivo do marxismo como teoria científica ou
mesmo como destroço filosófico aproveitável, por que então ele resiste como receituário
a tantos radicais para a transformação sangrenta da sociedade?
Essa sobrevida desponta das suas diversas correntes revisionistas. Desde o
citado maoísmo ao gramscismo, passando pelos movimentos identitários, a Nova
Esquerda cada vez mais abandona a representação das classes trabalhadores e se volta
para a política de empoderamento das “minorias”.
Em pleno século XXI, o conservadorismo se espraia pelo Ocidente sobre as
ruínas do colapso da velha e superada estrutura de alianças do trabalhismo agonizante.
O marxismo – nos termos formulados por Karl Marx – está morto, o que
resta do seu cadáver putrefato caminha como um zumbi identitário se alimentando da
carne dos vivos (os impostos extraídos dos verdadeiros trabalhadores, aqueles que
geram riqueza, independente de serem proprietários ou não dos chamados “meios de
produção”).
CAPÍTULO IV
A morte e o ser reduzido
3
Aquino, S. T. (2015). Compêndio de Teologia. Porto Alegre: Editora Concreta, p.81.
Todavia, de onde surge a convicção de que os seres humanos não
conservam a consciência do Eu pleno quando reduzidos de volta ao estado espiritual?
Se os seres humanos não são deuses, como Deus se acha em Cristo?
Cada ser humano tem um instante determinado que marca o início da sua
existência espiritual, da sua existência plena e da sua existência reduzida.
Esses marcos temporais distintos no tempo (linearidade temporal) e no
espaço (mundo das coisas) atestam a ausência da simultaneidade de Deus na alma
ordinária dos homens, a qual, por ser criação, não se demonstra imóvel como o criador.
Ademais, esses três diferentes momentos delimitam os três estados distintos
do Eu: o Eu original (espírito aguardando a encarnação), o Eu carnal-espiritual (estado
próprio do ser humano; mortal e temporal) e o Eu reduzido (estado espiritual posterior à
encarnação). Trata-se claramente de uma tríade de formas distintas do Eu, cada uma
dotada de consciência, experiência e identidade próprias.
A atemporalidade da alma se confunde com o tempo linear do mundo das
coisas somente em três ocasiões: no instante em que Deus a cria, no momento da
encarnação e na ocasião da desencarnação.
Logo, a alma humana não é simultânea já que criada, dessa forma posterior
a Deus, o único e verdadeiro ser simultâneo. Ademais, o Eu reduzido se mostra
atemporal e eterno a partir de um ponto de recomeço (a morte física), o qual precede o
infinito da consciência reduzida.
A criação (tudo que não é Deus) tem início e fim no mundo das coisas, bem
como começo e infinitude na existência espiritual. Sua eternidade é devida à
similaridade do espírito com Deus. À semelhança de Deus, porém, jamais igual a Deus.
A atemporalidade de Deus é simultaneidade. A atemporalidade da alma tem
início, mas não fim. O não fim advém da similaridade. A ausência de simultaneidade da
alma afasta-a de ser idêntica a Deus, pois é característica da criatura, e não, do criador.
“Ademais, se o ser de algo não é todo simultaneamente, é-lhe necessário
que algo lhe possa desaparecer ou que algo lhe possa advir. Desaparece-lhe, com efeito,
o que passa e advém-lhe o que se espera no futuro. Mas em Deus nada desaparece nem
se acresce, porque ele é imóvel. Logo, seu ser é todo simultaneamente”.4
Por não existir simultaneamente, todo ser humano é definido pela sua
condição mortal. Nascemos e morremos no mundo das coisas. Somos feitos de carne e
espírito.
4
Ibidem, pp. 81-82.
Contudo, se a carne decai, a alma perdura.
O ser humano vive como criatura plena até cessar de existir com a morte
física. Sua consciência e identidade desaparecem nesse momento de ruptura traumática,
quando a redução o obscurece e somente suas experiências enquanto ser vivente
prosseguem no seio da consciência espiritual reduzida da alma.
A consciência humana, portanto, não é a mesma da espiritual, nem antes,
nem depois da existência temporal e mortal no mundo das coisas.
A existência carnal é temporal. A existência espiritual é atemporal.
O Eu carne-espírito (ser humano) se caracteriza, portanto, por seu
componente empírico (carnal), como um ente temporal, tornado atemporal quando
reduzido pela morte física. Da mesma forma, a consciência atemporal da alma não-
encarnada é subitamente arremessada à condição temporal pelo nascimento físico no
mundo mortal (mundo das coisas).
O reconhecimento da alma é um fenômeno comum às civilizações humanas.
Seu adversário niilista se encontra no ateísmo, a negação de Deus.
Essa negação, a despeito de minoritária em relação à população geral,
impõe-se como racional a pessoas que, conscientemente ou não, percebem a finitude da
morte como destino também da consciência humana.
Ainda que o fato de recusar Deus não altere essa verdade, resta como
compreensiva a tendência à rebelião diante do nada que aguarda a consciência humana.
Um nada relativo, já que nossas experiências sobrevivem na alma, ainda que
numa consciência que não é a nossa, uma vez que reduzida somente a uma consciência
própria, espiritual, particularizada no momento da desencarnação.
Ainda que o ateísmo seja parte da experiência humana, a despeito de
representar um ceticismo restrito, por si só jamais erigiu nenhuma civilização ou legado
cultural relevante. De fato, mesmo os grupos humanos mais afastados sempre tiveram
em comum a fé em alguma forma de eternidade espiritual.
A fé é um ato livre inverificável, como bem compreendia o existencialista
moderno Gabriel Marcel. A fé verdadeira é livre para ser exercida ou não na intimidade
de cada ser humano.
Manifestações externas da fé podem se mostrar insinceras por vontade
própria do indivíduo ou imposição de terceiros, porém, a verdade interior que se abriga
no coração de cada um de nós permanece inteligível à percepção de Deus.
Marcel, corretamente, compreende na filosofia uma tentativa de interpretar a
fé através da reflexão intelectual, valendo-se até do método dialético, quando possível.
De forma acertada, Marcel reconhece as limitações da filosofia no estudo
da fé, como em tantos assuntos. Afinal, a fé é um tópico especialmente inatingível por
exceder o alcance material do mundo das coisas. Sua compreensão, inclusive teológica,
resta parcial, como tudo mais relacionado à condição humana.
Todavia, é possível um vislumbre sobre a veracidade da fé ao se considerar
o amor cristão, uma vez que este une o indivíduo ao mundo das coisas através do seu
amor por Deus, por si mesmo, pelo próximo e por toda a criação.
A experiência desse amor deriva da consciência, entendida como a noção de
si mesmo e da própria existência. Se a existência física é a presença no mundo físico
(mundo das coisas), a consciência humana deriva desse autoconhecimento. Enquanto, a
existência espiritual se impõe como mistério não relevado, apenas parcialmente tocado
pela limitação inerente às capacidades humanas.
O desespero do isolamento humano, da angústia e da solidão existencial,
preocupação relevante dos existencialistas modernos, permanece a negação dessa
verdade essencial, da presença indispensável de Deus em nossas vidas.
Ao rejeitarem Deus, por vezes confundido com o sentimento de repulsa em
relação à própria criação, os pós-iluministas se autossabotam, tornando impossível o
diagnóstico adequado do problema, sequer compreendendo que a cura para as doenças
da alma se encontra justamente naquilo que rejeitam de antemão: o reconhecimento da
existência da Deus e da sua essencialidade à condição humana.
Deus e o homem são inseparáveis. A criatura depende da aceitação do
criador como razão única da sua própria existência, definidora da sua consciência,
propósito e identidade.
O reconhecimento da nossa identidade como criatura permite-nos melhor
compreender nosso propósito como seres dotados de consciência. Existência com
propósito afasta o vazio maligno do niilista, supera o desespero, silencia a angústia e
debela a solidão.
Existência com propósito é existência com plenitude.
O Eu pleno necessita de propósito para vivenciar uma existência moral,
enquanto o amor cristão dignifica a existência conferindo proximidade com Deus.
Uma existência satisfatória, coerente e racional se prova viável somente
com uma existência baseada na proximidade com Deus. A sanidade humana é, portanto,
consequência desse reconhecimento e submissão moral e espiritual a Deus. Um
reconhecimento que reside na aceitação lógica da nossa existência como consequência
singular de um ato divino. Ou seja, a criatura existe somente pela vontade do criador.
Nessa verdade basilar, assentam-se as fundações últimas do existencialismo
cristão.
Destarte, o desespero existencial representa uma falha do indivíduo em
enxergar a verdade definidora da sua própria existência: somos criaturas físicas
integradas a uma realidade física; a despeito de possuirmos alma, jamais deixamos de
pertencer ao mundo das coisas.
A tendência de incômodo ou repulsa contra a realidade é uma doença da
alma causada pelo Pecado Original, presente em todos os seres humanos, para qual a
única cura possível se encontra na proximidade e submissão plena a Deus. Isolamento,
angústia e solidão são erros da percepção humana sobre a realidade, manifestadas pela
falta de propósito individual em relação ao mundo das coisas.
Tudo na criação possui um propósito intrínseco.
Propósito é aquilo que define nossa existência, conferindo clareza, foco e
sentido às nossas vidas e sobre nosso lugar na criação, nossa relação com Deus e nossa
função no mundo das coisas.
A incerteza da falta de propósito é uma debilidade que enfraquece o espírito
e lança-o nas trevas do niilismo, causando abatimento, depressão, raiva, angústia e, no
limite, o suicídio, o fim voluntário e terrível da própria existência física, devastando o
Eu espiritual pós-encarnado (reduzido).
Esse estado deplorável da alma representa um afastamento dramático em
relação a Deus, como um “apagão” da consciência individual, pois nenhuma criatura é
verdadeiramente desprovida de propósito, quando muito falha em percebê-lo,
provocando uma profunda sensação de rompimento e alienação para com as realidades
física e espiritual.
Mesmo um paciente em coma incurável num hospital oferece alguns
propósitos secundários, como: esperança aos seus familiares e amados de que um dia
possa se recuperar; justificativa à presença da equipe médica que o conserva vivo. Sua
ausência de consciência não lhe remove os potenciais propósitos inerentes à própria
existência humana; por mais precária que esta possa aparentar, uma certeza permanece:
o paciente, mesmo preso num estado de inconsciência perene, enquanto carne viva e
mortal, continua a fazer parte do mundo das coisas. Só a morte física encerra essa
condição fundamental da existência, pois, como bem conceitualizado por Friedrich
Schelling, o sujeito empírico se revela inteiramente temporal; de fato, sua existência no
tempo é mais do que o tempo.
O Eu pleno, por ser carne e espírito, faz com que sua existência hoje seja
diferente do que era ontem e distinta do que será amanhã. Contudo, o ser humano é
também, linearmente, o mesmo de ontem, hoje e amanhã, uma vez que apresenta uma
só identidade, um senso de continuidade e de unidade física e espiritual no decorrer do
tempo e espaço.
Essa identidade singular advém da consciência individual de cada um de
nós, associada ao conjunto das nossas memórias e experiências particulares e
intransferíveis.
O ponto de vista de cada Eu pleno resulta da consciência individual e da
narrativa linear única formada pelo conjunto das experiências de vida de cada ser
humano, formando um senso de identidade interior que particulariza o indivíduo em
relação ao restante da criação, que permanece externa ao íntimo de cada um de nós.
A identidade deriva significativamente das nossas memórias e experiências.
Se perco minhas memórias, a consciência permanece, o Eu pleno se conserva, contudo,
a identidade perde suas âncoras na realidade. Um homem bom pode se esquecer da
própria benevolência e cometer atos vis que o atormentariam se recuperadas as
memórias da sua “vida prévia”.
Esse dilema filosófico deriva de uma constatação empírica real possível, um
fato biológico capaz de ilustrar de forma consistente a diferença entre identidade e
consciência, ambas fundamentais à definição da experiência humana e, por conseguinte,
da própria existência, com reflexos no que o Eu reduzido carregará da existência plena à
existência atemporal desencarnada. Logo, reafirma-se a condição do Eu pleno (carnal e
espiritual) de somente pensar e existir como ser encarnado, dotado de carne decadente e
alma eterna.
O Eu original (a alma antes da encarnação temporal) somente consegue
pensar e existir como ser espiritual e imortal exclusivo, contudo, fadado a experimentar
a temporalidade (uma vez que destinado a encarnar em forma mortal e humana).
Já o Eu reduzido (a alma depois de encerrada a encarnação temporal) tem
seu Big Bang no momento da morte física do Eu pleno, restando a sua experiência
(memórias) como ser pleno (ser humano), agora reduzida para a eternidade cristã, sem
possibilidade de reencarnação como ditam as religiões orientais.
Logo, o Eu reduzido é atemporal e eterno, surgido a partir de um ponto
específico do tempo linear, quando o Eu humano (pleno) experimenta a morte física,
precedendo o infinito que aguarda a existência reduzida, a consciência reduzida, a
identidade reduzida, enfim o futuro como ser reduzido, destino comum a todos nós,
seres humanos.
O propósito do ser reduzido é, portanto, único: sua aproximação com Deus,
na eternidade. Ou, como bem deduziu Santo Tomás de Aquino, “(...) o fim último da
criatura intelectual é ver Deus por essência”.5
Mas, diante dessa perspectiva, seria o propósito último do Eu pleno apenas
fornecer experiências (memórias) à alma, antes de esta desencarnar?
Não é bem assim, como veremos a seguir.
5
Ibidem, pp. 223.
CAPÍTULO V
Ressureição