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conteúdos são abstraídos no mesmo movimento em que se reflete sobre eles – de maneira
análoga à arte. O sócios é assim o jogo entre os espaços lúcidos e as realizações “a sério”
dessas “brincadeiras”, de modo que o lúdico seria, portanto, a forma reflexiva da vida
social.
“Tudo isso que antes aderia à vida em sua seriedade, agora se subtrai a
seu fluxo, à sua matéria, desapega-se da vida. Autonomamente, escolhe
ou cria os objetos nos quais irá de testar e representar-se em sua pureza.
Isso confere ao jogo tanto sua alegria quanto seu significado simbólico,
tornando-o diferente do puro divertimento. Aqui se encontra a analogia
legítima entre jogo e arte. (...) Sempre que arte e jogo se esvaziam de
vida, tornam-se artifício e mero entretenimento [Spielerei]. Assim, seu
significado e sua essência se encontram justamente nessa mudança
fundamental pela qual as formas criadas pelas finalidades e pelas
matérias da vida se desprendem dela e se tornam finalidade e matéria
da própria existência. ” (2006: 63)
O jogo criando a vida como arte. Mais do que metáfora o jogo é criação de novas
carioca se (re)cria.
Mc Carol ou Carol Bandida é uma das mais novas cantoras na cena funk carioca.
suas próprias músicas além de inovas nas dramatizações cênicas em palco. Carol
impressiona na medida em que passa entre diferentes estilos do funk sem ser capturada
de todo por nenhum deles, tecendo assim um território próprio de criação artística. Com
letras calcadas em situações cotidianas, a Mc compõe tanto proibidões que falam do uso
de drogas ou violência, quanto funks com temática sexual – putaria –, canções de humor
e mesmo os chamados “funks conscientes”. Minha proposta é menos elaborar uma análise
evidência as diferentes linhas que atravessam paralelamente suas criações, tendo em vista
cada composição1.
O texto segue assim partindo das canções para análise do que os elementos lúdicos
e do humor dos funks de Mc Carol criam, que territórios eles possibilitam, que poderes
eles desfazem, que socialidades eles agenciam. Assim como Facina e Lopes (2012),
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Ao invés de analisa-los por meio das possíveis categorias nas quais os funks se agrupam (proibidão,
putaria, humor, “conscientes”) proponho evidenciar as linhas que atravessam cada composição.
Como se esses territórios estivessem situados em outra cidade, utilizam
um olhar que não enxerga as práticas cotidianas e concretas que por lá
circulam. Como se os sujeitos que lá habitam não fossem tão sujeitos,
criam um discurso que silencia as vozes locais e delimitam os
“territórios favelas” como um espaço genérico do perigo e da barbárie
ligada, única e exclusivamente, ao chamado tráfico de drogas. Porém,
para a juventude favelada do funk cada favela tem nome próprio e é
significada como um local heterogêneo e de habitação. Em outras
palavras, a linguagem do funk “dá sentido” à favela: “fazendo ver”
outros mapas e “desenhando” diferentes percursos na cidade do Rio de
Janeiro. (2012: 196 – 197)
resistência. Minha proposta é colocar a bibliografia que versa sobre o lúdico, sobre o
destaca da seriedade, ao mesmo tempo que implica num comprometimento com as regras
possui em si mesmo formas específicas a fim de que a criação seja possível. É brincando
que se cria, afinal a criação acontece no terreno do caos, de modo que é preciso um
lúdico e a criação:
cultura através do lúdico, na qual o jogo é entendido enquanto território lúdico por
lúdicas. A criação da vida reside nos conteúdos lúdicos que fazem fugir as formas
Huizinga o jogo é o espaço de criação de formas que ordenam a vida social. Já Certeau o
e criação, como uma arte na brincadeira, que estabelece outras formas sociais possíveis –
avó, há um muddle, uma confusão de referências e situações que cria uma nova imagem
de matriarca que faz fugir a figura da centralidade e dos comedimentos próprios de uma
Dona Benta. A vó de Mc Carol tá maluca, se diverte, consome drogas, sai com rapazes.
Traça movimentos que não só provocam riso – posto que se opõe a imagens consolidadas
da velhice da mulher – mas também indexam uma outra imagem possível de família, que
Minha vó ta maluca
Minha vó ta maluca
Tanta coisa pra comprar
Ela comprou uma peruca
Deu 120 na peruca - na peruca
Minha vó ta maluca
Tá rodando de twister2
Com um playboy da jurujuba
Minha vó ta maluca
Crack o tema é o uso de drogas, que ao mesmo tempo que escapa ao pânico moral e social
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Modelo de motocicleta da Honda.
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“Caralho, caralho / Bateu uma onda forte / Tô vendo um macaco em cima do poste / Ai caralho, que mina
maluca / Tô vendo um macaco em cima do poste / Caralho, bateu uma onda forte / Tô sentindo um rato
dentro do meu short / Novinho interesseiro, eu vou te deixar forte / Vai fumar maconha segurando o meu
malote / Novinho interesseiro, eu vou te deixar forte / Vai fumar maconha segurando o meu malote. ”
droga não mais como decadência moral e física, mas na sua potência recreativa, de fuga
e escape.
assunto está sendo tratado social e politicamente. De modo que frente ao pânico moral e
a criminalização que orbita as cenas de uso do crack, bem como medidas de estado como
contextos de uso, ela menos romantiza a droga e mais revela outras realidades possíveis
Tô usando crack
Tô usando crack
No copo de Guaravita
Eu fico suave!
Tô usando crack
Tô usando crack
A maconha te engorda,
Use crack que é mais light!
Tô usando crack
Tô usando crack
imagens e debates públicos, nas quais a criação é lúdica e provoca o riso na medida em
que desloca ordens consolidadas. Certeau (1987) fala da linguagem como espaço dos que
detém poder e da astúcia, por sua vez, como ferramenta “dos mais fracos”, o meio pelo
Carol esses rasgos, traçados por meio de táticas, localizadas, circunstanciais. Trata-se de
daqueles que Certeau identifica como “os mais fracos” não conformam, por conseguinte,
uma estratégia, posto que não são providos de objetividade/finalidade4. Dessa forma, o
distintamente, o lúdico está assim associado à subversão das formas realizada através de
oposição a tática como conjunto de usos daqueles que tem de aproveitar as oportunidades.
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Por oposição aos programas e estratégias de governo para a “solução” do problema da droga, as
composições de Mc Carol são fabulações artísticas, por definição não-objetivas, que provocam riso por
meio de jogos que deslocam as formas estabelecidas de se falar do crack, por exemplo.
reapropria das formas consolidadas, indexando resistências localizadas nos espaços
dominados.
pela reflexão de Freud (1991) a respeito do chiste e suas funções catárticas, no que se
refere a uma certa economia das emoções – da qual derivaria o prazer do humor. De modo
que o humor é como uma recusa ao sofrimento, tal como o chiste consiste na liberação
dos mecanismos sociais de repressão. Enquanto os teóricos sociais do lúdico que vimos
até aqui estão preocupados com aspectos não intencionais do lúdico, Freud tem como
que se cria ao mesmo tempo em que é condição necessária para a piada se estabelecer),
aquele que ri com e aquele que não ri na medida em que é ele mesmo a piada. No momento
não é. Além disso, o chiste não é apenas rápido, mas oportuno na medida em que é ele
mesmo uma contra efetuação. As piadas têm um tempo, tem um ciclo. A linguagem tem
próprio Certeau faz referência. Sendo assim, saber fazer o chiste é saber fazer uma relação
com o tempo, constituir o momento atual, indexá-lo. A piada mais cria um contexto do
que se refere a um contexto, ela tem a capacidade de circunscrever, de capturar uma certa
atualidade. O chiste cria o atual no mesmo movimento que estabelece uma relação com
ele.
Voltamos, por conseguinte, ao tema do humor como criação – de territórios,
resistências, das próprias formas da vida social. No caso do chiste o mesmo cria um
tecido, cria e reforça relações. Fazer uma piada e obter reconhecimento é em certo sentido
para não precisar explicar, desenvolver, economia da qual deriva o prazer, bem como do
O humor por sua vez é rebelde, é não-resignado, seu prazer deriva da recusa ao
sofrimento, da afirmação do ego frente a inevitabilidade da dor. Para Freud (1927) essa
em que nível essa “recusa ao sofrimento” é “ilusória” por oposição ao sofrimento “real”
proponho trazer análises de outros autores no que se refere ao que o humor pode criar –
de utilizar sistemas impostos” que por sua vez “constitui a resistência à lei histórica de
Professora me desculpe
Mas agora vou falar
Esse ano na escola
As coisas vão mudar
Nada contra ti
Não me leve a mal
Quem descobriu o Brasil
Não foi Cabral
Treze Caravelas
Trouxe muita morte
Um milhão de índio
Morreu de tuberculose
Falando de sofrimento
Dos tupis e guaranis
Lembrei do guerreiro
Quilombo Zumbi
referências.
Nas composições e mais notadamente nos shows Carol faz referências constantes
asfalto –, seja pela raça e/ou classe social. A patricinha é ridicularizada na sua falta de
conhecimento – da dança, dos espaços, das músicas –, sua atitude esnobe ou indecisa
Dá ou desce
Pra todas patricinhas
Que gostam de se envolver com o chefe
Dá ou desce, dá ou desce
Andou de picape
Andou de Peugeot
E só dá estresse
Dá ou desce, dá ou desce
Se vacilar com o chefe
Vai trabalhar de garçonete
Dá ou desce, dá ou desce
Pra todas patricinhas
Que gostam de se envolver com o chefe
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Chefe ou patrão é o primeiro homem na estrutura de comando do tráfico. Para uma análise mais
aprofundada das diferentes funções que compõe essa estrutura, vale conferir: para o contexto do Rio,
Barbosa (1998); para o contexto de São Paulo, Biondi (2009).
Em Dá ou Desce o humor reside na ausência de um comportamento sexual ativo,
Keith Basso (1979) em “Portraits of ‘the whiteman’” faz uma etnografia das
cômicas que os mesmos criam dos “homens brancos”. Trata-se de uma certa antropologia
reversa, na medida em que através das piadas é possível entender como os Apaches
sobre o outro e sobre si. O humor se conforma enquanto uma das ferramentas para lidar
A presença do “whiteman” é como uma presença ausente, que por sua vez causa
Assim o humor está em evidenciar a hierarquia das relações inscrevendo-as por meio do
informa também sobre as relações entre as pessoas que brincam, na medida em que
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Essa sexualidade não-censurada e ativa fica evidente por exemplo no funk Vou Tirar Sua Virgindade:
Eu me amarro em novinho / Diz pra mim a sua idade / Porque essa noite / Eu vou tirar sua virgindade /
Novinho de 15 anos / Eu vou tirar sua virgindade / Vou tirar / Senta no sofá e fica à vontade / Porque a
Carol Bandida / Vai tirar sua virgindade.
inglês se transforma no frame, na forma a entrada no frame da piada/do humor. De modo
linguagem, essa caricatura é como um comentário sobre um modo de ser que se distingue.
modos da língua. Fala-se inglês ou para falar com os brancos ou para fazer piada dos
metacomunicação.
branca, daquilo que no limite qualifica a alteridade branca naquilo que ela mais se
afasta/se opõe aos modos apache. A brincadeira é então feita através do contraste e da
analítico-reflexiva na medida em que ao mesmo tempo que faz uma avaliação moral do
outro reflete também sobre si próprio e aquilo que lhe caracteriza. Há, por conseguinte
uma dimensão criativa do próprio joker, quem sabe brincar é quem tem capacidade de
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“Dramatizations of Western Apache experience, joking imitations are also Western Apache interpretations
of it. And, like all successful dramatic forms, they entail a modification of experience in such a way that its
significance can be more tellingly stated and more acutely perceived. By making of 'the Whiteman' an
improbable buffoon, Apache jokers isolate and accentuate significant contrasts between their own cultural
practices and those of Anglo-Americans. And by presenting the behavior of Anglo-Americans as something
laughable and "wrong," by displaying with the help of butts how and why it violates the rights of others,
they denounce these standards as morally deficient and unworthy of emulation. In sum, joking
performances make it emphatically clear that White men and Western Apaches come to social encounters
with conflicting ideas of what constitutes deferential comportment – ideas that are ultimately grounded in
conflicting conceptions of what it means to be a person and the kinds of actions that can discredit a person's
worth in public situations.” (1979: 64)
refletir, de produzir uma análise ontológica, um comentário social indireto, e, por
do dominante.
narram tensões, violências e dinâmicas de poder na relação nas quais em boa parte das
música que dá título a esse tópico o namorado é tratado com desdém no mesmo
A inversão de papeis é de fato uma das linhas lúdicas que atravessa a letra desse
funk, no entanto não se trata somente de contrapor papeis binários de gênero. Trata-se da
Doze8:
Filho da puta
Me deixou a pé
Veio pra cá pro Baile
Pra comer outra mulher
Me trancou em casa
Me deixou sem dinheiro
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Doze é uma referência a espingarda de calibre 12.
Jorginho me empresta a 12
Vou matar esse maconheiro
Ôh Jorginho me empresta a 12
Pra mim fazer um barulho
Vou matar esse maconheiro
gêneros, em uma discussão na qual o homem ameaça abandonar uma mulher grávida e
ela por sua vez o coage a ficar por meio de uma infinidade de ameaças.
Clastres (2003) em “De que riem os índios? ”, analisa através de dois mitos, tanto
desejo por “mais poder”. A reapropriação das relações hierárquica diverte, a diversão é
essa própria desestabilização. Por fim, conclui o autor: a obsessão secreta de rir daquilo
que se teme revela no riso um equivalente da morte, afinal entre os Chulupi o ridículo
mata.
Idade Média realiza uma certa cosmologia do riso. Ao diferenciar as festas – a oficial e a
mesmo, a festa é o campo do inescapável. É ali mesmo na fronteira entre a arte e a vida
festas populares criam, portanto, um outro mundo possível, que escapa aos controles e
regulações do Estado e da Igreja, é aquilo que o autor chama de segunda vida do povo.
Trata-se de uma liberação mesmo da vida, análoga a arte sem estar, entretanto,
como um segundo mundo que é vivido intensamente fora da Igreja e do Estado, das
contato com o mundo em contraste com o corpo isolado. São corporalidades em relação,
negação realizada pelo grotesco é aquela da recriação da vida – como na imagem da velha
socialidades que passam menos por uma noção de estrutura e mais por uma noção de
temporalidade.
assim para um riso que se faz no corpo despedaçado, desmembrado – no enfoque nas
protuberâncias, orifícios e excrescências, em tudo aquilo que abre o corpo, que coletiviza
dos funks da cantora Valesca e do grupo Gaiola das Popuzadas. Gahyva fala de como o
realismo grotesco se insere inclusive nos corpos opulentos e grandes das Popozudas. Com
Carol não é diferente, a funkeira esbanja uma sexualidade e sensualidade que passam
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Disponível em: http://revistapittacos.org/2011/09/02/ola-mundo/. Acessado em 11 de agosto de 2015.
necessariamente por um corpo de grandes proporções. De modo que o enfrentamento a
ordem estética passa pelo próprio corpo de Mc Carol, chegando as suas protuberâncias e
culminando num corpo opulento que se despedaça e refaz no sexo. Como em Vou Te
Fazer Homem:
desidentitários das fronteiras corporais. Para que o sujeito se torne coletivo é preciso que
os corpos sejam violados, desfeitos e o princípio para tal é o jogo. O corpo torna-se
coletivo no momento em que se ri, em que o mesmo é ridicularizado, como em Liga pra
SAMU12:
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Referência a rede social ‘Facebook’.
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SAMU: Serviço de Atendimento Móvel de Urgência.
Deu hemorragia no cu
Eu fui atrás
Eu avisei
Quando eu fui ver
Ela foi embora com três
O DJ anunciou
Tô muito preocupada
A minha amiga tá na treta desmaiada
O povo é assim sujeito coletivo do riso no funk, um humor geral que está associado
sujeito coletivo composto por um corpo coletivo entrecortado por forças contrapostas –
de riso e alegria, na medida em que põe em evidência a composição mutua entre morte e
Bibliografia
Basso, Keith (1979) Portraits of “the whiteman”. Linguistic play and cultural symbols
Detienne, Marcel e Vernant, Jean Pierre (2008) Metis: as astúcias da inteligência. São
Paulo: Odysseus.
Facina, Adriana; Lopes, Adriana Carvalho. Cidade do funk: expressões da diáspora negra
nas favelas cariocas. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro, v. 6, p. 193-
206, 2012.
Freud, Sigmund. 1991 [1905]. Obras Completas. Volume 8: El chiste y su relación con
___ O humor (1927). In: Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas.
Huizinga, Johan (1980 [1938]). Homo Ludens. O jogo como elemento da cultura. São
Paulo, Perspectiva.
Simmel, George (1950) “Sociability”; “The lie”; In Wolff, Kurt (editor) The Sociology of