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Textos Ígneos

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Título original: El Educador Mercenario. Para una crítica radical de las


escuelas de la democracia.
Editorial Brulot, Madrid, 2009

Autor: Pedro García Olivo

Primeira edição em português: Março de 2017

Tradução: Paulo L. Marques

Revisão: Pedro Morais

Grafismo: Pedro Mota

Impressão: VASP-DPS

Depósito Legal:

Este livro está escrito segundo as regras do acordo ortográfico de 1990


ESCRITOS AFUGENTÁVEIS I
O EDUCADOR MERCENÁRIO
Para uma crítica radical das
escolas da democracia

Pedro García Olivo


«Bist Du die Nacht?»
Rilke
UMA ESPÉCIE DE PRÓLOGO

Escritos Afugentáveis I, recolhe as entrevistas que,


durante os últimos anos, serviram a Pedro García Oli-
vo de «escudo», de «barricada» íntima, contra a fonte
incomensurável do seu desassossego: a Escola. As teses
que da mesma forma estabeleceu como dispositivos de
combate, armas de arremesso, enquanto exerceu como
«antiprofessor» inexemplar e quando, apetrechado de
desespero, conseguia escapar da docência. A partir
de quase todos os registos conhecidos (teoréticos, co-
loquiais, filosóficos, poéticos,…), o autor forçou-se a
«falar» do que, talvez, não lhe permitia «viver». Esta
surpreendente «heterogeneidade» nos modos textuais,
conciliada com a centralização obstinada num objeto
único, obsessivo – a Educação –, constitui, quiçá, o traço
mais apelativo da obra que apresentamos. Para não falar
do extemporâneo e desaprazível radicalismo das suas
teses, sempre abraçadas à experiência da perseguição e,
como foi sugerido, de uma loucura plena de razão.

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Este livro, «não apto para qualquer um», como gostava
de advertir Herman Hesse a propósito do seu O Lobo das
Estepes, acertou, na nossa opinião, com o seu título: Escri-
tos Afugentáveis. Escritos que devemos «afastar», «evitar»,
«eludir» (afugentar); escritos dos quais nos podemos pro-
teger, sabedores de que nasceram com vontade de agre-
dir («seja quem fores, defende-te, pois dirigirei contra ti a
funda de uma terrível acusação», é-nos «deixado claro»
no início da «Apresentação»); escritos dos quais é sempre
factível «escapulirmo-nos», pormo-nos a salvo, como não
ocorre com essas outras literaturas «inesquiváveis», qua-
se «inevitáveis», que caem sobre nós com a desfaçatez do
dilúvio ou da geada e que se tornam tão difíceis de não
ler – best-sellers, ocorrências de autores da «moda», mon-
tagens editoriais, obras complacentes deste ou daquele
«escrevinhador» mimado pelo mercado… «Escritos afu-
gentáveis» que definem desde o princípio o seu inimigo,
o muito sacralizado «aborto» que gostariam de apagar da
face da terra: as Escolas da Democracia, nada menos do
que as melhores das nossas escolas…
«És a noite?», pergunta-nos, brutal e desconcertan-
temente, Pedro García Olivo, recolhendo um verso em
alemão de Rilke («Bist Du die Nacht?»), quase como um
«prolegómeno» para a estranha batalha contra si mesmo
a que nos conduz a leitura da sua obra. Gostaríamos de
concluir esta breve nota com uma tentativa de resposta:
não temos sido, não sabemos porque não temos podido

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sê-lo… Até nos parece ilegítima a pretensão de procurar
a noite no leitor. E, no entanto, quando pensamos em to-
das essas palavras sedentas de interpelação que quase se
amotinam em Escritos Afugentáveis, às quais acrescentá-
mos erraticamente estas poucas, ainda queríamos poder
abrigar, com Juan Rulfo, a esperança de que «algum dia...
chegará a noite».

«És a noite?»

Víctor Araya
Canícula de 2007, Valência

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APRESENTAÇÃO

«Seja quem fores, defende-te,


pois dirigirei contra ti a funda
de uma terrível acusação.»
Lautréamont

«Por onde começar?» era o título de uma pequena


obra de Roland Barthes com a qual queria aludir pre-
cisamente para esta dificuldade, agora experimentada
por nós, de dar início ao tratamento de um tema com-
plexo, com implicações que afetam, de algum modo,
todo o campo social. Por onde gostarias de começar?
Gostaria de começar por me definir, pondo todas as
cartas na mesa – ainda que, deste modo, talvez acabe
(em benefício de quem?) com aquela «partida contra um
oportunista» em que, tão frequentemente, se converte a
leitura de um texto. Sou um antiprofessor, um insubmisso
do ensino que ainda se subleva contra o discurso vanilo-
quente dos ‘educadores’ e contra a substancial hipocrisia

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das suas práticas. Partilho a opinião de Wilde: «Tal como
o filantropo é a praga da esfera ética, a praga da esfera
intelectual é o homem que se encontra sempre ocupado
a educar os outros.» E também creio que a pedagogia
moderna, apesar dessa bonacheirice algo grosseira que
destila nos seus manifestos, tem trabalhado desde o prin-
cípio para uma causa infame: a de intervir policialmente
na consciência dos estudantes, procurando sempre uma
espécie de reforma moral da juventude. «Um artifício
para domar»: assim a conceptualizou Ferrer Guardia,
como se por um instante a sua fé desesperada na ciência
tivesse cambaleado. Pugno, por fim, por desescolarizar o
meu pensamento, empreendimento árduo e interminá-
vel. Temo que também a Escola, outra velha enganadora,
se tenha introduzido na Linguagem; e por isso torna-se
muito complicado varrer da escolaridade os modos da
nossa reflexão.
Inclusive na célebre interrogação de Adorno («É ainda
possível a educação depois de Auschwitz?») percebe-se
como que um eco deste inveterado preconceito escolar.
Com a sua tão citada observação, o filósofo alemão re-
feria-se, na verdade, a uma Educação Ideal, benfeitora
da Humanidade, em que ainda lampejaria uma instância
crítica, um momento emancipatório, negador de toda
a Ordem Coativa; uma educação teimosamente fiel ao
programa do Iluminismo, desalienante, destinada a in-
fluenciar positivamente a conduta dos homens, a levar

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«mais longe» o seu pensamento; uma Educação capaz de
contribuir para a reforma da sociedade, para a reorgani-
zação da existência… Perguntava-se pela «possibilidade»,
depois de Auschwitz, de uma Educação que nunca exis-
tiu – ou só existiu como «falsa consciência», como mito,
como componente essencial da «ideologia escolar». Essa
Educação de Adorno também não foi possível «antes»
de Auschwitz. Mais ainda: os campos de concentração e
de extermínio foram concebidos e realizados graças, em
parte, à educação «verdadeira», «concreta», que tínhamos
e que temos – a educação obrigatória da juventude «en-
clausurada» em Escolas; a educação que segrega social-
mente, que aniquila a curiosidade intelectual, que modela
o carácter dos estudantes na aceitação da Hierarquia, da
Autoridade e da Norma, etc., é essa a única «educação»
que conhecemos – à qual as democracias contemporâ-
neas pretendem meramente lavar a cara. Esta educação
‘efetiva’, de cada dia em todas as aulas, tendo coadjuvado
o horror de Auschwitz, continua a ser perfeitamente pos-
sível depois…
Resumindo, defino-me como um antiprofessor, um ini-
migo de toda a pedagogia e um grande odiador da Escola.
Gosto de pensar que tendo a desescolarizar algo…

Sustentas opiniões muito críticas em relação ao sis-


tema educativo estatal e às experiências pedagógicas
alternativas (libertárias, por exemplo). A partir de que

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pressupostos? Qual é o perfil político-filosófico das tuas
observações? Poderias esboçar o teu ponto de partida?
Vou responder à tua pergunta de uma forma um pouco
brutal: eu sou um «antiprofessor», e não posso simpatizar
com a figura do ‘educador’. Também não me posso solida-
rizar com o discurso e a prática dos ‘pedagogos’, particu-
larmente dos ‘pedagogos reformistas’; um discurso e uma
prática regidos pelas duas forças que, segundo Goethe,
constituíam os maiores inimigos do homem: a Esperança
e o Temor. Esperança de ‘ilustrar’ os homens, de torná-
-los mais livres, mais sábios, independentes, autónomos,
condição de um futuro melhor, de uma sociedade trans-
formada, de uma existência pacífica. E temor do excesso,
do desborde, da voz desses homens que não se querem
deixar ‘educar’; dos discursos que descrevem a «esperan-
ça» como mero adorno do engano («O desespero é sim-
ples – escreveu Bataille –; é a ‘ausência’ de todo o engano,
o estado das superfícies desertas e, posso imaginá-lo, do
sol»); temor também da Repressão, de suscitar a ira da
Autoridade, de esquecer a Lei nalguma má hora. «Tenho
acorrentados (disse Mefistófeles a Fausto, na obra de Goe-
the) dois dos maiores inimigos do homem: a Esperança e o
Temor.» Precisamente por se aferrar à Esperança (ou seja,
à Ilusão, ao Engano, aos Mitos do Sistema), e por não po-
der ocultar o seu temor de transgredir verdadeiramente a
lei, o seu medo de desobedecer, o pânico a ganhar a male-
volência do poder, por estas duas razões, a pedagogia mo-

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derna, ainda que franza o cenho tal como os ‘reformistas’,
ainda que se inflame de retórica ‘libertadora’ ao gosto do
progressismo, continua a ajustar-se à parca definição de
Ferrer Guardia: «é – disse – um artifício para domar».
Inscrevo-me, pois, na antipedagogia. Se quiseres, posso
mais logo desenvolver essa questão…
Em segundo lugar, costumo apresentar-me como um
«desescolarizador»: procuro, pelo menos, «desescolari-
zar» o meu pensamento, o que não é tão fácil.

Como concebeste o teu ideário antipedagógico?


No meu caso, nunca houve uma «primazia» da ideo-
logia sobre a vida, uma «tutela» do pensamento sobre a
ação. Pelo contrário, o pouco que creio ter descoberto, o
pouco que tenho que dizer, provém da experiência. Eu
desemboquei no paradigma da «irresponsabilidade» no
Ensino ‘depois’ de um desencanto, de uma desilusão: de-
pois de uma prática (bem intencionada, consciente) da
docência ‘progressista’, ‘reformista’, ‘comprometida’, etc.
Durante dois anos fui, de facto, o que no O Irresponsável
mais combato: fui um «engenheiro dos métodos alterna-
tivos», um educador «moderno», «solidário», «revolu-
cionário»… O pior que posso dizer dessa experiência é
que me saí bem: conseguia o que queria, influenciava os
alunos, quase me idolatravam... Porém, por dentro, algo
em mim se rebelava contra esse poder e essa influência.
Dois alunos (o primeiro era um marrão ‘atípico’, sombrio,

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calado, insociável, misterioso entre as suas excelentes no-
tas; e o segundo era um delinquente juvenil, desequilibra-
do, adicto às drogas) tiveram a coragem de confirmar as
minhas suspeitas: «Pedro, és um pregador, mas ‘de outro
tipo’, fazes o mesmo que os outros, mas de ‘outra maneira’,
mais suportável, mais simpática. Não te dá vergonha?»
Isto foi, mais ou menos, o que me disseram, cada um por
seu lado… Comecei a horrorizar-me perante o ‘êxito’ da
minha estratégia: alunos que pensavam cada vez mais
como eu, e já se declaravam «anticapitalistas», «libertá-
rios», etc.; que se rebelavam cada vez mais contra as au-
toridades do Secundário, sobretudo se eu lhes piscava um
olho; que começavam a vestir o ‘uniforme’ da crítica e da
insubmissão – o ‘uniforme’ que eu, de algum modo, lhes
impunha… Senti, de facto, vergonha da minha prática.
Comecei a examinar-me com olhos críticos… O Ensino
parecia-me relativamente «sensível». Ganhava um salário
bastante considerável quase sem sofrimento e, aparente-
mente, com a consciência ‘tranquila’ – sem menosprezo
pela exigência da luta, sem lesar os meus ideais… Dei, por
fim, conta de que eu era o pior de todos, de que constituía
o «êxito supremo do Secundário» – o tipo de professor
que este requeria para se «reformar», para se «moderni-
zar», para enganar astutamente os alunos e se adaptar à
perversidade dos Novos Tempos. Tinha-me convertido
em algo muito mais deplorável do que um ‘professor’: ti-
nha-me convertido num ‘professor amado’. A partir daí,

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comecei a mudar de paradigma... Quis reinventar-me,
tornar-me outro. Ignoro se a esquizofrenia, que teve um
papel tão importante no meu coração e no meu cérebro,
me ajudou nesse empenho… Não me importo de reco-
nhecer que, naquele momento, eu caminhava de braços
dados com ela; era a dona secreta dos meus dias.
E, por fim, em Orihuela, nasceu esse irresponsável que
nunca poderei voltar a encarnar, que se encontra (em
dignidade, em inteligência) mil vezes acima do meu ser
atual e que me continua a merecer um imenso respeito.
A sua terrível cordura estava feita de insensatez e, quiçá
não deveria dizer isto, de arte; o seu bonito extravio sabia
demasiado dos lugares comuns onde nunca nos perdemos
e onde já está tudo perdido. Algo deve ter-se quebrado em
mim, de todas as formas. Instalei-me orgulhosamente
no imoralismo, no crime, no aborrecimento máximo da
Escola e desses homúnculos aos quais chamamos «edu-
cadores»… Perdi, primeiro, o medo da Expulsão; depois
procurei-a com o ardor de um louco.

Em face do teu posicionamento teórico e da prática


que levaste a cabo, há quem te considere um «terrorista
pedagógico». Vês-te como tal?
Se tenho de ser sincero, dir-te-ei que prefiro semear o
terror entre os professores e os pedagogos do que ter o
reconhecimento ou a divergência amável. Sou um gran-
de odiador da Escola. As palavras que encontro e reúno

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para combatê-la não estão à altura desse ódio, e dei-
xam-me sempre insatisfeito. O dano que queria infligir
à instituição escolar é infinito e atormenta-me perceber
que apenas lhe consigo fazer cócegas. Sinto, sem dúvida,
o ressentimento e a frustração de todos os terroristas; e
deve haver algum imenso amor a não sei que outra coisa
por detrás do ódio que albergo no meu coração, como a
eles lhes sucede... Mas não gosto da comparação: é injusta
para com eles. Ao lado deles, sou uma criança que brinca
a meter medo. A minha modéstia leva-me a ver-me, sem
mais delongas, como um antipedagogo. É isso que sou,
um «antipedagogo» visceral.
Como «antipedagogo», impugno um pressuposto que
está nos alicerces dessa disciplina, na fonte de todas as
críticas ‘progressistas’ ao Ensino tradicional e de todas as
‘alternativas’ disponíveis: a ideia de que compete a uma
seleta aristocracia do saber (os educadores, os professo-
res) realizar uma importantíssima tarefa em benefício
da juventude, uma operação qualificada sobre a cons-
ciência dos estudantes da qual se seguiria a melhoria ou
a transformação da sociedade. Arrogando-se uma facul-
dade demiúrgica (‘criadora’ de homens) e, como mem-
bro de uma «elite», erigido a autoconsciência crítica da
Humanidade, o ‘educador’ entregar-se-ia a uma delicada
correção do carácter dos jovens, a um trabalho muito
'ilustrado' de forjamento da personalidade, sempre com
o olhar posto no ‘bem’ do estudante e no que convém à

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sociedade – aplicar-se-ia à modelação de sujeitos ‘críticos’,
‘autónomos’, ‘criativos’, ‘independentes’, ‘livres’, ‘solidários’,
‘tolerantes’, ‘pacifistas’, etc. Embaraçoso, este elitismo, ade-
reçado de filantropia, põe de novo sobre a mesa aquela
moral da domesticação e da criação que tanto irritava
Nietzsche e incorre mil e uma vezes no que Foucault e
Deleuze, pensando não só nos educadores, denomina-
ram «a indignidade de falar pelo outro» (indignidade,
neste caso, de suplantar a voz do estudante; de 'reformar'
a Instituição em seu nome; de intervir policialmente na
sua subjetividade alegando que isso é feito pelo próprio
bem do afetado; etc.). Como um déspota ilustrado, ape-
trechado de conhecimentos ‘especializados’ e de normas
‘científicas’, o educador moderno, sucedâneo da divinda-
de, entregar-se-ia a um empreendimento ‘redentor’, ‘sal-
vífico’, quase estritamente ‘religioso’… Porém, na verdade,
nada, absolutamente nada, nem os estudos, nem as aulas,
nem a formação ‘científica’, nem os títulos ‘académicos’,
autorizam um homem (lamentável funcionário, muitas
das vezes) a elevar-se tão ‘acima’ dos outros e a decretar,
desde essas alturas, que tipo de «sujeito» a humanidade
necessita para ‘progredir’ ou para curar as suas feridas;
não há nada na sua preparação ou no seu carácter que
o capacite para tentar essa infame operação pedagógica
sobre a consciência estudantil; nada justifica que se arro-
gue um papel «divino», arremedo da Criação, e olhe para
toda a sociedade com olhos de águia… Oscar Wilde es-

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timou que os ‘educadores’ constituíam «a praga da esfera
intelectual». E os La Polla Records sugeriram-nos o que
podemos fazer com eles: «Guru! Um pontapé nos tomates
é o que te podem dar.»
Estou de acordo. No entanto, tudo isto não é «terroris-
mo», ainda não se conquistou essa qualificação: trata-se,
meramente, de «antipedagogia».

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O OBJETO DA CRÍTICA

Especificando um pouco mais: qual é a tua linha de


trabalho? Para onde diriges as tuas críticas? Que qui-
seste denunciar no teu livro O Irresponsável?
Não dirijo as minhas críticas contra a figura «clássica»
do mestre, do professor adicto ao Sistema, «tradicional»
em termos pedagógicos – o homem da «aula magistral»,
da autoridade nua, dos programas «oficiais» e dos exames
torturantes, etc. Parece-me que essa é, como diria Marx,
uma «crítica substancialmente acabada». Todas as «críticas
substancialmente acabadas» tendem a justificar o estabe-
lecido, legitimando-o ‘por contraposição’; e a obscurecer,
a obstruir, as «críticas por fazer», ou «em curso», as críti-
cas verdadeiramente ‘oportunas’, ‘perigosas’. Por exemplo,
a crítica da Ditadura, substancialmente acabada, distrai
da crítica da Democracia – e a recordação permanente
dos horrores ‘repressivos’ das ditaduras, veiculada pelos
governos, serve a «legitimação por contraposição» das
democracias, supostamente não-repressivas. No nosso

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terreno, a crítica facílima, já feita, acabada, do «professor
tradicional», dilui e posterga indefinidamente a crítica,
que considero inadiável, do «professor moderno», «pro-
gressista», «contestatário» – do «professor reformista».
É a esta crítica, que já sei que é difícil, que já sei que é
polémica, e que se pode prestar a más interpretações, que
pretendo dar a minha contribuição. A minha crítica não é
‘livresca’, exclusivamente ‘teórica’, mas procede da prática,
da minha própria experiência como «professor reformis-
ta», é uma crítica ‘desde dentro’, depois de quinze anos
vinculado de uma ou de outra forma à Educação.
Estas são as perguntas que venho fazendo a mim mes-
mo desde o princípio: é concebível uma prática do Ensi-
no genuinamente «crítica», um exercício da docência que
não coloque o professor entre os simples ‘funcionários do
consenso’, numa posição de ‘solidariedade’ secreta com
os fins e com os procedimentos do Sistema, posição de
‘culpabilidade’ política, de ‘cumplicidade’ repressiva, de
‘identificação’ – mais ou menos revoltosa – com o opres-
sor? É sustentável a pretensão de educar «na liberdade»,
«na crítica», ou «para a emancipação», partindo de uma
Instituição desenhada para inculcar o princípio de autori-
dade, para reproduzir a dominação social e para ‘sujeitar’
a juventude? Como pode um professor, um funcionário,
um empregado do Estado, alegar que desenvolve o seu
trabalho desde a perspetiva da Contestação, da Resis-
tência, da Negação do Poder? Hoje a minha resposta é

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inequívoca: isso não é concebível, não é sustentável, nada
disso é possível...
Por essência, a figura do Professor é uma figura auto-
ritária. Quer queira quer não, todo o «educador», cons-
tituído pelo Estado, exerce o poder, governa na aula, ad-
ministra, ‘dirige’ os alunos... Ampare-se numa ou noutra
ideologia, aferre-se a uma ou outra proposta pedagógica,
invente os métodos alternativos que invente, fale pouco ou
muito da exploração, da desigualdade, do racismo, etc., o
Professor, o Educador, pela natureza da sua prática social,
pela estrutura da Instituição em que trabalha, pelo modo
como a Legislação ‘definiu’ o seu ofício (delimitando um
espaço de «obediência», espaço da Norma; e também um
espaço de «desobediência induzida», de «ilegalismo útil»,
espaço da dissidência integrada, do reformismo), pelos
conceitos filosóficos a que recorre, pela ‘moral’ que vigia
os seus passos, pela ‘formação’ que recebeu, pela maneira
como o Estudo, a Universidade, o Emprego e o Salário
vão moldando o seu carácter, pelo que ‘ensina’ no plano
da «pedagogia implícita», do «currículo oculto», pelos
modelos que perpetua na sua relação com os alunos e
com as autoridades educativas, pela sua atitude perante a
Escola, pelos ‘signos’ de que se dota, etc., por tudo isso, o
Professor, o Educador, (dizia) aparece sempre como um
baluarte da reprodução ideológica do Sistema, um segre-
gador e um domesticador social, um agente da repressão
e da violência simbólica, um elo decisivo na cadeia de au-

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toritarismo, um ‘corretor’ do carácter, um recodificador
policial do desejo...
Não, não existem os «professores autenticamente con-
testatários»: há uma contradição entre os dois termos.
Como também é inimaginável um «militar pacifista», um
«padre ateu», um «polícia anticapitalista», um «verdugo
filantropo», etc., não é concebível um «professor verda-
deiramente antiautoritário», «insubmisso», «crítico» ou
«revolucionário». Tal como o ofício de verdugo, de polí-
cia, de padre, de militar, o ofício de «professor» deveria
ser deixado aos ‘partidários do statu quo’, aos adoradores
do Sistema, aos autocratas em miniatura, aos déspotas
desbravados, aos tiranos de trazer por casa. E a isso, a «au-
tocratas», a «déspotas», a «tiranos», vê-se reduzido quem,
abraçado a uma ideologia ‘subversiva’ ou ‘revolucionária’,
e alardeando os seus propósitos ‘emancipatórios’, se ins-
tala no aparelho educativo e, autoenganando-se todos os
dias, vê a forma de permanecer, com o olhar feroz e o bolso
repleto, na Instituição – autocratas ‘encobertos’, déspotas
‘inconformados’, ‘tiranos’ muito simpáticos... Contra eles
dirijo as minhas críticas: por isso sou um antiprofessor...
Proponho, pois, o abandono do Ensino – ainda que o
meu ideal se cifre em «conquistar» a Expulsão. Não um
abandono sem mais nem menos, mas uma renúncia de-
pois de um certo «percurso», depois de uma certa prática
«corrosiva», de uma certa perseverança na irresponsabi-
lidade, no Crime. E parto de uma crítica ao Reformismo

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Pedagógico, entendido como a estrutura ideológica, e a
disposição mental, em que está assente esse «autoenga-
no» – a justificação de uma instalação pretensiosamente
‘beligerante’, presumivelmente ‘transformadora’, no apa-
relho educativo.

Às vezes tem-se a impressão de que manejas um con-


ceito «nebuloso» de Reformismo Pedagógico, de que o
alvo das tuas críticas é um objeto etéreo e indetermina-
do. Que entendes por «Reformismo Pedagógico»?
Com o termo «Reformismo Pedagógico» quero aludir
às práticas de ensino não-tradicionais que também não
se ajustam exatamente à ‘legalidade’ vigente em cada
momento; práticas dissidentes levadas a cabo pelo corpo
docente ‘progressista’ ou ‘revolucionário’ partindo do
aparelho educativo estatal (e paraestatal), efetuando de-
terminadas ‘retificações’, certas ‘correções’ («reformas»)
dos procedimentos oficiais, o que as coloca nas fronteiras
da lei ou nuns arrabaldes próximos, e que se amparam
sempre nas diversas correntes pedagógicas de crítica da
antiga Escola – correntes «reformistas», ou «progressis-
tas». É, sem sombra de dúvidas, o «reformismo» do corpo
docente crítico com a Instituição, mas que permanece nela
inovando, experimentando, mudando; corpo docente in-
conformado, inquieto, renovador, ‘ilustrado’, sustentador
amiúde de uma ideologia anticapitalista e, como dizia, de
alguns fundamentos de pedagogia moderna. Foi o meu

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«reformismo» durante vários anos, até que já não pude
continuar a enganar-me; e é o «reformismo» dos meus
amigos, de bastantes ex-colegas, dos meus lembrados
mestres, de muitos intelectuais de esquerda que compa-
ginam a docência e a investigação, de alguns pensadores
libertários que trabalham nesta ou naquela Faculdade...
Falo, portanto, a partir da experiência, a partir do co-
nhecimento ‘direto’, a partir da prática (interrompida).
E questiono este reformismo concreto, operativo, que se
exerce diariamente em muitas das nossas aulas, e, even-
tualmente, as suas garantias pedagógicas, as teorias que
esgrime para se justificar.
Entre os traços que, a nível empírico, ajudam a identifi-
car este «reformismo», eu destacaria os seguintes:
1) A aceitação (a contragosto, sob pressão) da obriga-
toriedade do Ensino e, portanto, o «controlo» – mais ou
menos dissimulado, sem zelo excessivo, algo displicente
– da presença dos alunos nas aulas.
2) A negação do temário ‘oficial’, da programação es-
tabelecida, dos conteúdos informativos prescritos, que
serão substituídos por outros supostamente «não-ideo-
lógicos», ou «não-manipulados», ou «mais críticos», ou
«desmitificadores», ou «mais científicos», ou «conscien-
cializadores», etc. O currículo alternativo poderá ser ela-
borado pelo próprio professor, ou de forma ‘consensual’
entre o docente e os estudantes, ou por alguma ‘comissão’
eleita para tal efeito, ou pelo ‘conselho de cooperativa’

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autogerido, ou, no limite, pela assembleia soberana dos
alunos, segundo o grau de audácia de uma ou de outra
proposta «reformista».
3) A modernização da técnica de exposição e a reorien-
tação da dinâmica das aulas («engenharia dos métodos
alternativos»). O corpo docente «reformista» explora
em profundidade os recursos didáticos dos novos meios
audiovisuais, virtuais, etc., e procura substituir o antigo
modelo da «aula magistral» por outras dinâmicas par-
ticipativas que reclamam a cumplicidade do estudante
– colóquios, debates, representações, jogos instrutivos,
oficinas,...
4) A impugnação dos modelos clássicos de «exame»
(mnemónico-repetitivos, determinantes), que serão subs-
tituídos por provas menos ‘dramáticas’, através das quais
se pretenderá classificar ‘capacidades’, ‘destrezas’, ‘faculda-
des’, etc., e já não a assimilação mecânica dos conteúdos
expostos. Ao mesmo tempo, promover-se-á a participa-
ção dos estudantes na «definição» do tipo de exame e nos
próprios sistemas de avaliação – qualificação por mútuo
acordo entre o aluno e o professor, determinação das «no-
tas» pelo coletivo da aula, autoavaliação ponderada…
5) A defesa de uma maior implicação dos alunos no ‘go-
verno’ dos Centros (presença acrescentada, por exemplo,
nos Conselhos Escolares) e o fomento do «assembleísmo»
e da «auto-organização» estudantil como modo de luta
pela ‘democratização’ do Ensino.

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Ainda que, em rigor, se devesse falar de «reformismos
pedagógicos» (no plural), pois as práticas ‘dissidentes’ de
ensino diferem umas das outras em muitos detalhes e
apresentam um claro polimorfismo, creio que, para além
desta diversidade superficial, deve-se perceber uma cer-
ta regularidade, um certo aparentamento de fundo, uma
certa afinidade substancial, na hora de afrontar e resolver,
por parte das sensibilidades professorais ‘progressistas’,
essas cinco questões fundamentais – assistência, temáti-
ca, método, exame e gestão. Por isso, tenho por hábito re-
ferir-me a elas quando, como agora, me é requerido uma
espécie de «retrato robot» do Reformismo Pedagógico...

Apresentado dessa forma, o Reformismo Pedagógi-


co parece-me sempre preferível à esclerose do ensino
tradicional, quase um avanço em muitos aspectos... O
que é que nele deve ser criticado, tendo em conta o des-
prestígio e a obsolescência das fórmulas tradicionais?
Que tenho eu contra esse Reformismo de aparência
tão «irrepreensível»? Como sistematizar as minhas acu-
sações? Tenho praticamente ‘tudo’ contra ele; tudo contra
a sua definição político-ideológica geral, contra a atitude
que exibe perante a Lei, perante a Ordem, perante a lógica
do sistema escolar... Vou tentar organizar as minhas im-
putações em torno de quatro pontos, de quatro aspectos
que identificam as práticas «reformistas» na Educação:
1) A partir de um ponto de vista político-ideológico

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geral, o Reformismo Pedagógico reproduz e difunde
uma grande parte dos mitos autojustificadores da Escola
(«ideologia profissional», «pensamento escolarizado») e
também segmentos importantes da ideologia burguesa
contemporânea, da legitimação do Capitalismo tardio:
1.1) Ideologia da competição, ou do experto, do «es-
pecialista» que, por causa da sua preparação ‘científica’
(pedagogia, psicologia do desenvolvimento, psicologia
da personalidade, sociologia...), encontrar-se-ia prepara-
do para uma alta missão social: forjar, ou ajudar a forjar,
homens ‘críticos’, independentes, criativos, solidários,
‘livres’, imunes ao fanatismo e aos dogmas, homens que
respeitem as diferenças e que cultivem a sua própria sin-
gularidade, tolerantes, reflexivos, pacifistas, adversários
do obscurantismo, das superstições, do racismo, amantes
do diálogo e da razão... Esta ideologia da competição, ou
do experto, traz consigo, além disso, como se advertirá,
uma conceção aristocrática, ou elitista, do Educador e da
sua tarefa: em todos os casos – reformismo institucional,
dissidência reformista, reformismo paraestatal – «dignifi-
ca-se» de forma abusiva, mitifica-se, a figura do Educador,
sobre a qual recai um trabalho demiúrgico, remedo da
Criação (uma operação pedagógica sobre a consciência,
moldadora de caracteres, desenhadora de homens, cons-
tituinte de ‘sujeitos’), sempre orientada para a ‘melhoria’
ou ‘transformação’ da sociedade. Enquanto autoconsciên-
cia crítica da Humanidade (conhecedores das suas ‘cica-

29
trizes’, do ‘tipo de homem’ de que necessita para progre-
dir e de como contribuir para ‘criá-lo’), os «educadores»
investem-se, então, do que Foucault chamava de poder
pastoral, dando à sua tarefa um tom ‘religioso’ difuso
mas percetível, uma dimensão ‘moral’ – aquela moral da
criação descrita por Nietzsche –, com um inconfundível
aroma a filantropia, a obra salvífica, ‘redentora’...
1.2) Em correspondência com essa pretensão de fazer
algo pelos alunos, para eles e neles, também se filtra, na
prática reformista, uma variante moderna do «despotis-
mo ilustrado», uma forma disfarçada de autoritarismo:
os estudantes concebidos como meros ‘objetos’ devem
deixar-se trabalhar, deixar-se modelar, sempre pelo seu
próprio «bem», se não pelo «bem» da comunidade no
seu conjunto; devem aceitar as novas normas, engala-
nadas com todos os atributos do ‘progressismo’ e do
‘criticismo’; devem submeter-se aos novos métodos, que
costumam exigir uma maior colaboração com a Insti-
tuição; e também devem aplaudir a retórica ‘alunista’, a
máscara ‘democrática’, que oculta o despotismo secreto
das «reformas» – programa ‘acordado’, ‘aula aberta’, ‘au-
toavaliação’ responsável, ‘participação’ na administração,
etc. Falamos de autoritarismo disfarçado porque, apesar
das quotas de poder que são «concedidas» ao estudante, é
claro que, ‘glorificado’ pela sua Missão, é o Educador que
toma as rédeas da experiência... Pouco importa que este
«autoritarismo» se exerça com o consentimento dos alu-

30
nos; pouco importa que se oriente para a ‘transformação’
da sociedade. Não deixa por isso de ser «autoritarismo»;
e de implicar, em virtude do consentimento que obtém,
da ausência de rejeição que recolhe, a ideia de Hierarquia
Necessária, Subordinação Inevitável. E há autoritarismo
nas chamadas «Escolas livres». E houve na Escola Mo-
derna. E há nas salas de aula dos professores comunistas
ou anarquistas. E haverá enquanto o professor considerar
que, como ‘educador’, lhe compete realizar um trabalho
pelos alunos e sobre os alunos...
Na medida em que este «autoritarismo», este «despo-
tismo», é conjugado com essa conceção «elitista», aristo-
crática, de um determinado grupo social, resulta que a
práxis reformista – práxis de ‘expertos’, de ‘especialistas’,
de operadores ‘científicos’ –, devido ao jogo das suas su-
gestões (sugestões de hierarquia inabalável, de obediência
conveniente, de Escola benfeitora, etc.), das separações
que estabelece – professor/aluno, sociedade ideal/socie-
dade real, tradição/modernidade, cultura/barbárie... –,
das suas categorias subjacentes, afirma e sustenta a repro-
dução ideológica do Sistema, projeta a ideologia da mes-
ma Ordem que proclama combater – ensina a fidelidade
secreta à Organização que nega expressamente.
2) Em parte por causa desta conivência de fundo, des-
ta afinidade teórico-política, não se dá uma verdadeira
«repressão administrativa» do Reformismo Pedagógico.
Na verdade, este Reformismo instala-se no espaço da

31
Desobediência Induzida, do Ilegalismo Útil. E é isso que,
do ponto de vista da «pedagogia implícita», o professor
reformista também ensina: a ‘obedecer desobedecendo’, a
dizer sim enquanto move a cabeça para os lados, a prati-
car a transgressão tolerada, a revolta aplaudida, o simu-
lacro da luta. Foucault dedicou páginas esclarecedoras a
este conceito de «ilegalismo útil»: trata-se de uma forma
de ‘ilegalidade’ tão proveitosa para o Sistema como a pró-
pria legalidade; uma forma de ‘desobediência’ ainda mais
reprodutiva do estabelecido do que a própria obediência.
«Ilegalismo útil»: um ilegalismo política e ideologicamen-
te ‘rentável’. É este o terreno do Reformismo Pedagógico...
A reprodução do Sistema baseia-se tanto na consecução
da ‘obediência’, do consentimento ou da aquiescência
por parte da população, como na canalização (previsão
e recondução; ‘gestão dos riscos’, dizia Castel) da deso-
bediência, da discordância, da discrepância. Ao âmbito
da «obediência» corresponde o conceito de responsabili-
dade professoral – e a figura ‘clássica’ do Educador. Ao
domínio da «desobediência induzida», do «ilegalismo
útil», pertence a prática ‘reformista’ – e o estereótipo do
educador ‘moderno’, ‘comprometido’, ‘crítico’.
Esta não é tanto uma crítica ‘teórica’ como é ‘empírica’:
é imediatamente comprovável, verificável, que as estraté-
gias reformistas não são perseguidas, não são canceladas
drasticamente, nada sabem da Repressão. A «Paideia»
funciona há 22 anos: não é temida, não provoca danos,

32
não está a mais. As propostas de Ferrer Guardia hoje
são, em grande medida, «pedagogia oficial». Centenas
de professores ‘libertários’ ou ‘marxistas’ dão todos os
dias «aulas» nas suas escolas, franzindo mais ou menos
a testa, falando muito sobre a desigualdade, a exploração,
a injustiça, ao abrigo de métodos perfeitamente ‘ativos’,
permitindo nalguns casos a ‘autoavaliação’ dos seus alu-
nos, promovendo o assembleísmo estudantil, etc., e sem
sofrer, por essa mesma razão, perseguições, consolidados
no seu ofício, a salvo da expulsão... O Reformismo viola
a legalidade vigente nos termos em que esta anseia ser
violada; com o tempo, até mesmo as suas propostas co-
meçam a fazer parte das sucessivas ‘legalidades’. Situa-se,
por isso, no terreno de uma transgressão da Norma que
foi delimitado pela própria Norma. Faz Estado ao comba-
tê-lo... Perante as práticas reformistas, o Castigo só apa-
rece como ‘fantasma’, como ‘simulação’. A «ameaça» da
Repressão, e não a repressão manifesta, é suficiente para
‘conter’, para regular, a falsa luta do Reformismo Pedagó-
gico. Não é o Castigo, mas sim o medo do Castigo, o que
mantém os ‘reformistas’ no seu risível papel de fantoches
da contestação amável...
Esta não é, dizíamos, uma denúncia ‘teórica’, mas ‘em-
pírica’. Os programas alternativos raramente são exigidos
pela Inspeção; e, nos poucos casos em que são remeti-
dos para as autoridades educativas, acabam por obter a
aprovação de forma quase automática ou responde-se-

33
-lhes com silêncio. A renovação da dinâmica das aulas é
sempre ‘aplaudida’; e, se mostra perfis inquietantes, passa
diretamente para algum «Gabinete de Inovações Pedagó-
gicas» que quase nunca se pronuncia. Nunca ninguém vai
arrancar os cabelos por causa do sentido das classificações,
ou por causa do tipo de exame – o professor, nesses afaze-
res, é um verdugo: pode cortar a cabeça como quiser, mas
tem de cortá-la... E as batalhas pela democratização dos
Centros, ou pela participação dos estudantes na Gestão,
são muitas vezes estimuladas pela própria Administra-
ção, já que supõem um certo «consenso» sobre questões
de fundo da prática educativa e não vão além de uma luta
em torno do «grau» e das «matérias» dessa intervenção
dos alunos.
O Reformismo não é, definitivamente, perseguido,
mesmo que se instale na periferia da legalidade ou a exce-
da abertamente. Está mal visto que os professores denun-
ciem um ‘colega’, sobretudo por introduzir uma ou ou-
tra «inovação» ainda não contemplada pela lei (sinal de
‘preocupação’ pedagógica, de ‘interesse’ pela educação...).
Os pais preferem não se meter nesses assuntos, e só se
mobilizam se aos seus filhos é causado um ‘prejuízo’ evi-
dente. A Inspeção não costuma atuar quando não medeia
a denúncia, quando não se solicitou expressamente a sua
intervenção. E nas raras ocasiões em que um processo é
aberto, passado algum tempo é fechado por ‘falta de pro-
vas’, ou fica a ‘repousar’, ou eterniza-se... O aparelho poli-

34
cial da Escola, no limite, só reage às ilegalidades frouxas,
às desobediências acobardadas.
3) Através do Reformismo Pedagógico, o sistema esco-
lar consegue, além do mais, a vantagem suplementar de
converter o estudante num cúmplice da sua própria coer-
ção. A engenharia dos métodos alternativos apresenta-se
a si mesma quase como uma «conquista» dos alunos, um
fruto da sua oposição às dinâmicas autoritárias tradicio-
nais. No entanto, não é uma «conquista», já que surge
como concessão do professor, como outorgamento, ou,
mais exatamente, como imposição dissimulada. O estu-
dante aceita as novas regras do jogo pela coloração ‘alu-
nista’ das mesmas e porque com elas se põe para sempre
de lado a figura detestada do professor autoritário. Deste
modo, ele cai nas redes do novo autoritarismo encoberto
e começa a «envolver-se» no funcionamento da Institui-
ção, a «intervir» no processo educativo (introduz temas
do seu agrado no programa, toma a palavra nas aulas,
autoavalia-se, vota no Conselho Escolar, etc.). Termina a
infligir a si mesmo, de uma forma ou de outra, a violência
do exame; a impor a si próprio a humilhação diferencial
da classificação; a corresponsabilizar-se pelo tédio e pela
rotina ‘ativa’ da educação forçada; a encarregar-se do peso
insuportável de algumas aulas ‘reformadas’; etc. Enquan-
to o professor parece desaparecer de cena (para ‘dirigir’ a
representação «de fora»), o estudante começa a exercer,
eventualmente contra si mesmo, o papel de ‘educador’, de

35
autoprofessor, perdendo assim a «dominação escolar» –
dos alunos pelo professor – a nitidez de antes. De tudo
isto resulta um reforçar da Escola, uma ‘neutralização’
do estudante como agente da negação radical, uma ‘re-
dução’ das tendências «evasivas» ou «destrutivas» tradi-
cionais. A Escola deixa de ser vista como uma máquina
contra o aluno e aparece agora como uma máquina da
qual o aluno também faz parte... E o professor continua
a ser Professor, as figuras continuam a estar delimitadas
no imaginário, os papéis não são violados, a relação não
é alterada; a hierarquia permanece intacta, assim como
os fins, as funções, os propósitos; a Ordem parece mais
ordenada do que nunca, o poder flui com mais alegria,
a pedagogia implícita faz estragos... A Escola continua a
destilar desigualdade social, continua a ensinar confor-
mismo, docilidade, continua a aniquilar a curiosidade
intelectual, a imaginação crítica... só que agora, poderia
dizer-se, com os estudantes do seu lado.
4) Os «reformistas» arraigam-se interessadamente na
queixa e veem sempre a forma de permanecer no ofício
(ou seja, nos Quadros de Pessoal), mesmo entre queixas.
A dissidência reformista intraestatal tende a ‘fossilizar-se’
sem remédio, a ‘petrificar-se’, a converter-se num ‘modelo
rígido’, numa ‘metodologia alternativa’ pouco aberta à au-
tocrítica e à autocorreção que deverá acompanhar o edu-
cador «progressista» ao longo de toda a sua vida laboral.
Desta forma, e devido ao seu encravamento, perde desde

36
logo as suas arestas mais duras, os seus fios críticos, a sua
frescura inovadora, e deixa-se integrar sem problemas no
âmbito docente estabelecido. Por fim, converte-se numa
espécie de «ritual», de cerimónia íntima, de «álibi», para
poder ‘permanecer’ numa instituição deplorada, afetando
todos os gestos, todas as poses, da consciência em luta.
Com o tempo, a «engenharia» degradou-se num esquema
sumário, quase um conjunto de manias – um tipo de di-
nâmica, uma forma de avaliar, um programa reestrutura-
do, .... –, numa espécie de ideologia pedagógica particular
que todos aceitam sem acritude e em que já não reside
o menor perigo. Serve ao educador ‘comprometido’, ou
‘solidário’, sempre ‘anticapitalista’, para tranquilizar a sua
consciência e poder desfrutar até ao fim das «bondades»
do seu emprego – salário, prestígio, férias... «O gesto ne-
gativo, repetido indefinida e invariavelmente, é ‘recupe-
rado’ como uma nova forma de afirmação»: é isto que o
Reformismo tem interesse em esquecer. A «Paideia» leva
22 anos a fazer o mesmo, e quase o mesmo que fez – há
um século atrás – a Escola Moderna... Nas nossas Univer-
sidades, nas nossas Secundárias, um monte de professores
contestatários levam já parte da vida a ‘contestar’ o mes-
mo de sempre e da mesma maneira – ou seja, «simulando
a contestação», recebendo por domar.
Em suma (e para recapitular esta longa resposta), o
Reformismo Pedagógico pode ser interpretado como um
dispositivo racionalizador da integração no aparelho do

37
Estado, ao serviço daqueles que, apesar da sua ideologia
anticapitalista, trabalham para a Escola capitalista, sob a
determinação da sua estrutura, da sua forma de legalida-
de, da sua definição sociopolítica, da sua fundamentação
filosófica, podendo contrapor-lhe apenas determinadas
correções técnico-metodológicas (relativas às temáticas,
às dinâmicas, aos procedimentos avaliativos, etc.), em
função das quais alimentam a ilusão de desenvolver uma
prática «crítica», «transformadora», «não-servil». Disse
«ilusão», porque a 'renovação', ou 'subversão', dos méto-
dos não consegue alterar o funcionamento repressivo (e
classista) da Instituição; e porque estes professores, com
independência dos conteúdos da sua 'pedagogia explíci-
ta', continuam a oferecer – do ponto de vista do «currí-
culo oculto» – modelos ‘autoritários’, ‘despótico-ilustra-
dos’, ‘elitistas’, ‘aristocráticos’, quase ‘religiosos’, modelos
de desobediência limitada, de ilegalismo admissível, de
fossilização da crítica e de permanência culpável em po-
sições de exercício de poder. Por isso, não há vontade de
procurar este Reformismo, através do qual a Escola, mo-
dernizando o seu repertório metodológico, incorporando
progressivamente as propostas didáticas ‘alternativas’, fica
ainda mais capacitada para interiorizar na subjetividade
dos alunos os princípios de autoridade, hierarquia, obe-
diência, diferenciação social e inquestionabilidade do
Estado. ‘Ressacralizada’, ‘mitificada’, a figura do Educador
Reformista, semelhante à do «pregador» clássico, demiúr-

38
gica, restaura todos os direitos da ética do Sistema (aque-
la moral da domesticação e da criação já mencionada) e
volta a projetar os conceitos ideológicos do Iluminismo,
revestidores da dominação burguesa: um saber ‘crítico’
que há que transmitir às massas; uma minoria que detém
esse saber e se consagra à sua difusão; uma população
que vive num estado de semi-obscuridade, que deve ser
‘esclarecida’ e reformada moralmente; o sonho de que,
de tudo isto, se seguirá o Progresso da Humanidade, a
melhoria da sociedade ou a sua transformação... Invisibi-
lizando-se, desaparecendo parcialmente da aula, aumen-
tando a quota de protagonismo e participação dos alunos,
o Educador Reformista contribui também para a diluição
das contradições escolares tradicionais, para a suavização
dos antagonismos, convertendo muitas vezes o estudan-
te em cúmplice da sua própria coerção, em agente da sua
própria submissão, em instância de autocontrolo e de
autorrepressão. Contra toda esta sequência teórico-po-
lítico-pedagógica revolta-se O Irresponsável, símbolo da
antipedagogia, que luta «criminalmente» contra a má-
quina, sem pretender fazer nada pelo ‘bem’ dos alunos e
desejando sofrer na pele a verdadeira repressão, sinal da
sua periculosidade política.

O alvo privilegiado dos teus ataques já não é o «en-


sino tradicional», a figura «clássica» do professor auto-
ritário, mas justamente o que hoje se apresenta como

39
uma ‘superação’ e um ‘avanço’ no âmbito educativo:
o Reformismo Pedagógico, os professores ‘inquietos’
ou ‘progressistas’, as práticas dissidentes (e inclusive
«alternativas») de ensino... Quais são os traços que de-
finem as «pedagogias reformistas» contemporâneas?
Que objeções merecem da tua parte?
Entre os traços que, a nível empírico, ajudam a iden-
tificar o «reformismo pedagógico», eu destacaria os se-
guintes:
1) A aceitação – por convencimento ou sob pressão
– da obrigatoriedade do Ensino e, portanto, o controlo
mais ou menos escrupuloso da presença dos alunos nas
aulas. As formulações reformistas aceitam este princípio
de má vontade, poderia dizer-se que a contragosto, e pro-
curam a forma de ‘dissimular’ o dito controlo, evitando
a «chamada» tradicional, omitindo circunstancialmente
alguma falta, etc. Mas nunca se dá uma rejeição absoluta,
e explícita, do correspondente requerimento administra-
tivo. Para claudicar, ainda que de forma ‘revoltosa’, ante
a exigência do mencionado controlo, o corpo docente
«dissidente» conta com os argumentos de várias tradições
da Pedagogia Crítica que aconselham a circunscrição das
iniciativas inovadoras, dos afãs transformadores, ao âm-
bito da ‘autonomia real’ do professor, ao terreno do que
pode efetivamente fazer sem violar as principais figuras
legais da Instituição – por exemplo, as pedagogias não-di-
retivas inspiradas na psicoterapia, que contam com C. R.

40
Rogers como expoente; e a chamada «pedagogia institu-
cional», que se nutre das propostas de M. Lobrot, F. Oury
e A. Vásquez, entre outros. Solicitando a compreensão e a
cumplicidade dos alunos numa situação tão desagradável,
sentindo-se justificado por pedagogos muito radicais, e
sem um zelo excessivo, o educador progressista controla,
de facto, a presença. Ignorando a célebre máxima de Eins-
tein («a educação deve ser um presente»), expõe os seus
métodos «inovadores» e «benéficos» diante do conjunto
de interlocutores forçados, de ‘participantes’ e ‘atores’
não-livres, quase prisioneiros a tempo parcial. E, por fim,
solidariza-se implicitamente com o triplo objetivo desta
«obrigação de estar presente»: dar à Escola uma vantagem
decisiva no seu duelo particular com os restantes, e menos
domináveis, veículos de transmissão cultural (estabelecê-
-la como antirrua); proporcionar à atuação pedagógica so-
bre a consciência estudantil a ‘duração’ e a ‘continuidade’
necessárias para solidificar hábitos e, deste modo, toma-
rem a forma de verdadeiras disposições caracterológicas;
tornar efetiva a primeira «lição» da educação administra-
da, que advoga a submissão absoluta aos ‘desígnios’ do Es-
tado (imiscuindo-se, como assinalou Donzelot, no que se
poderia considerar a esfera da autonomia das famílias, o
Estado não só ‘sequestra’ e ‘confina’ diariamente os jovens,
como também «força» os pais, sob a ameaça de uma in-
tervenção judicial, a consentir esse rapto e inclusive a tor-
ná-lo viável). Eis, a partir de um primeiro gesto, a duplici-

41
dade consubstancial de todo o progressismo educativo...
2) A negação (no seu conjunto ou em parte) do pro-
grama oficial e a sua substituição por «outro» considerado
‘preferível’ sob argumentos bem diversos – o seu carácter
não-ideológico, o seu criticismo superior, a sua ‘atualiza-
ção’ científica, a sua melhor adaptação ao entorno geográ-
fico e social do Centro, etc. O «novo» programa poderá
ser elaborado pelo próprio professor, ou pela assembleia
dos educadores desconformes, ou de modo ‘consensual’
entre o docente e os alunos, ou pelo ‘conselho autogerido’,
ou, no limite, só pelos estudantes, segundo o grau de atre-
vimento de uma ou de outra proposta reformista. Devida-
mente justificada, esta programação substitutiva costuma
obter a sua aprovação quase automaticamente pelas au-
toridades educativas, pois, dada a decantação ideológica
dos professores (que na maioria dos casos não vão além
de um progressismo liberal ou social-democrata), tende
a tomar como referência o modelo «oficial», e limita-se a
deslocar os acentos, a adicionar questões complementares,
a suprimir ou a aligeirar outras, etc. Só entre os profes-
sores de orientação libertária, os docentes formados no
marxismo e os educadores que – talvez por trabalharem
em zonas ‘problemáticas’ ou socioeconomicamente de-
gradadas – manifestam uma extrema recetividade às pro-
postas «consciencializadoras» como as de Freire, encon-
tramos exceções, isoladas e reversíveis, cada vez menos
frequentes, à regra citada, com um descartamento global

42
das prescrições curriculares da Democracia e uma elabo-
ração detalhada de autênticos programas ‘alternativos’. E
nestes casos em que o currículo se remoça de cima a bai-
xo, surge habitualmente uma dificuldade no próprio seio
da estratégia reformista: se é certo que esses professores
acertam na sua crítica aos programas «vigentes» (efetiva-
mente legitimadores), logo confecionam uns programas
de substituição demasiado fechados, quase dogmáticos de
novo, que servem de suporte para umas práticas em que
a componente ‘doutrinal’ não é passível de ser ocultada,
entrando em contradição com os propósitos declarados
de formar homens «críticos», «moral e ideologicamente
independentes», etc. Reproduzem, assim, de algum modo,
a aporia que habitou entre os projetos dos seus velhos
inspiradores ‘pedagógicos’ (Ferrer Guardia e os pedago-
gos libertários de Hamburgo, por exemplo, por um lado;
Blonsky e Makarenko, por outro; e o próprio Freire, com
os seus seguidores, quase insinuando uma terceira via).
Por último, e como sublinharam Illich e Reimer, registan-
do-se notórias diferenças ao nível da pedagogia «explícita»
(programas, conteúdos, mensagens,...) entre as propostas
‘conservadoras’ e as ‘revolucionárias’, o mesmo não ocorre
no plano da pedagogia «implícita», onde se constata uma
surpreendente afinidade: as mesmas sugestões de hete-
ronomia moral, uma idêntica distribuição de papéis, um
semelhante trabalho de normalização do carácter, etc.
Em suma, participe ou não o corpo discente na tare-

43
fa de «retificação curricular», e destaque-a ou não pela
sua envergadura, o revisionismo dos programas nunca
poderá considerar-se um instrumento efetivo da práxis
transformadora, pois, sujeito por vezes a afãs proselitis-
tas e de doutrinação (que constituem, em si mesmos, a
negação da autonomia e da criatividade estudantil), fica
invariavelmente preso nas redes da «pedagogia implíci-
ta» – atenazado e reduzido por essa força etérea que, a
partir do contexto do momento verbal do ensino, influi
infinitamente mais na consciência do que todo o discurso
e toda a voz.
3) A modernização da «técnica de exposição» e a modi-
ficação da «dinâmica das aulas». A Escola ‘reformada’ da
Democracia procura explorar profundamente as possibi-
lidades didáticas dos novos meios audiovisuais, virtuais,
etc., e está aberta à incorporação ‘pedagógica’ dos avan-
ços tecnológicos coetâneos – uma forma de contrariar o
tão injuriado «verbalismo» do ensino tradicional. Projeta
substituir, além do mais, o cediço modelo da «classe ma-
gistral» por outras dinâmicas participativas que exigem a
implicação do estudante: colóquios, representações, tra-
balhos de grupo, exposições por parte dos alunos, ofici-
nas… Trata-se, uma vez mais, de acabar com a típica pas-
sividade do aluno – interlocutor mudo e sem desejo de
ouvir –; ‘passividade’ que, tal como a fraude nos exames,
constituiu sempre uma forma de resistência estudantil à
violência e à arbitrariedade da Escola, uma tentativa de

44
imunização contra os efeitos do imparável discurso pro-
fessoral, um modo de não colaborar com a Instituição e
de não ‘crer’ nela...
Toda a ênfase é posta, então, nas mediações, nas estraté-
gias, no ambiente, no construtivismo metodológico. Estas
foram as inquietudes das Escolas Novas, das Escolas Mo-
dernas, das Escolas Ativas... Para aí apontou o reformismo
originário, associado aos nomes de Dewey nos EUA, de
Montessori na Itália, de Decroly na Bélgica, de Ferrière na
França,... Daí partiram igualmente os «métodos Freinet»,
com todos os seus derivados. E ainda se sente um eco
destas proposições em determinadas orientações «não-di-
retivas» contemporâneas. Talvez palpite aí, por último, o
coração do reformismo quotidiano, esse reformismo das
Escolas da Democracia, das Secundárias de hoje, dos pro-
fessores «renovadores», «inquietos», «contestatários»... É
o que, no O Irresponsável, chamei de «a Engenharia dos
Métodos Alternativos»; trabalho de ‘conceção didática’
que, nas suas formulações mais radicais, costuma apro-
priar-se do espírito e do estilo inconformista de Freinet:
uma vontade de denúncia social a partir da Escola, de
educação ‘desmitificadora’ para o povo, de crítica da ideo-
logia burguesa, apoiada fundamentalmente na renovação
dos métodos (imprensa na aula, jornal, correspondência
estudantil, etc.) e na negação incansável do sistema escolar
estabelecido – «a sobrecarga de matérias é uma sabotagem
à educação», «com quarenta alunos para um professor não

45
há método que valha», anotou, por exemplo, Freinet.
É possível detetar, parece-me, uma dificuldade insupe-
rável no seio destas propostas: a «mudança» na dinâmica
das aulas acontece sempre como uma imposição do pro-
fessor, um ditado da Autoridade, e deixa suspeitosamente
na penumbra a questão dos fins que pretende. Novas fer-
ramentas para o mesmo velho trabalho sórdido? Instru-
mentos aperfeiçoados para a mesma iníqua operação de
sempre? Assim o consideram Vogt e Mendel, para quem
a ostentação dos novos métodos escondia uma aceitação
implícita do sistema escolar e do sistema social geral. Não
se atribui à Escola outra incumbência através da simples
renovação do seu arsenal metodológico: isso é evidente.
Além disso, essa «imposição» do sistema didático al-
ternativo por um homem que declara procurar a tempo
inteiro o ‘bem’ dos seus alunos sugere – do ponto de vista
do ‘currículo oculto’ – a ideia de uma Ditadura Filantrópi-
ca (ou Ditadura de um Sábio Bom), da sua possibilidade,
e faz-nos remontar ao modelo histórico do Despotismo
Ilustrado: «Tudo para o povo, mas sem o povo». Neste
caso: «Tudo para os estudantes, mas sem os estudantes».
Como aconteceu com a mencionada experiência histó-
rica, sendo insuficiente a sua Ilustração – pouco sabe da
dimensão sociopolítica da Escola, do seu funcionamento
‘classista’, que não se altera com a simples substituição
dos métodos; confia demasiado na ‘espontaneidade’ do
estudante (Ferrière), nas contribuições da ‘ciência’ psi-

46
cológica (Piaget), na ‘magia’ dos coletivos (Oury); não
quer ouvir falar da «pedagogia implícita», da hipervalo-
rização da figura do Educador que lhe é própria, etc. –,
o seu Despotismo revela-se, pelo contrário, excessivo: é
o Professor que, na sombra e quase em silêncio, assume
as rédeas da experiência, examinando-a e avaliando-a,
e reservando-se o direito a ‘decretar’ (se for preciso) as
correções oportunas...
Graças ao vanguardismo didático, a educação adminis-
trada torna-se mais suportável, mais tolerável; e a Escola
pode desempenhar as suas funções seculares (reproduzir
a desigualdade social, ideologizar, submeter o carácter)
quase contando já com a aquiescência dos alunos, com o
agradecimento das vítimas. Não é de estranhar, portanto,
que quase todas as propostas didáticas e metodológicas
da tradição pedagógica «progressiva» tenham sido pau-
latinamente incorporadas pelo Ensino estatal; que as
sucessivas ‘remodelações’ do sistema educativo, promo-
vidas pelos governos democráticos, sejam tão recetivas
aos princípios da Pedagogia Crítica; que, devido à sua
oposição às estratégias «ativas», «participativas», etc., seja
o proceder imobilista do ‘professor tradicional’ aquele
que é compreendido, pela Administração, quase como
um perigo, como uma prática disfuncional – que gera
tédio, conflitos, ceticismo estudantil, problemas de legi-
timação,... Também não chama a atenção que boa parte
das experiências de renovação didática e metodológica se

47
levem a cabo sem que se efetuem mudanças importantes
na programação, como se se contentassem com «ameni-
zar» a divulgação das velhas verdades, com «otimizar» o
rendimento ideológico da Instituição.
4) A impugnação dos modelos clássicos de ‘exame’
(transcendentais, mnemónico-repetitivos), que serão
substituídos por testes menos dramáticos através dos
quais se pretenderá classificar ‘atitudes’, ‘destrezas’, ‘ca-
pacidades’, etc.; e a promoção da participação dos es-
tudantes na definição do tipo de exame e nos próprios
sistemas de classificação. Permitindo a consulta de livros
e apontamentos no momento do exame, ou substituin-
do-o por «exercícios» passíveis de ser feitos em casa, por
«trabalhos» de resumo ou de investigação, por pequenos
«controlos» periódicos, etc., os professores reformistas
desdramatizam o fundamento material da avaliação, mas
não o derrocam. Tal como não negam a obrigatoriedade
do Ensino, os educadores, ‘progressistas’ da Democracia,
admitem, com reservas ou sem elas, este imperativo da
avaliação. Normalmente, declaram ‘classificar’ disposi-
ções, faculdades (o exercício da crítica, a assimilação de
conceitos, a capacidade de análise,...), e não a repetição
mnemónica dos conteúdos expostos. Mas, desdramatiza-
do, sob outro nome, reorientado, o «exame» (ou o teste)
está aí; e a «classificação» – a avaliação – continua a fun-
cionar como o eixo da pedagogia, explícita e implícita.
Devido à subsistência do «exame», as práticas refor-

48
mistas estão condenadas à esclerose político-social: a sua
reiterada pretensão de estimular o criticismo e a inde-
pendência de critério choca frontalmente com a eficácia
da «avaliação» como fator de interiorização da ideologia
dominante (ideologia do fiscalizador competente, do
operador ‘científico’ capacitado para julgar objetivamente
os resultados da aprendizagem, os progressos na forma-
ção cultural; ideologia da desigualdade e da hierarquia
‘naturais’ entre os estudantes, entre estes e o professor;
ideologia dos dons pessoais ou dos talentos; ideologia da
competitividade, da luta pelo êxito individual; ideologia
da submissão conveniente, da violência inevitável, da
normalidade da dor – apesar da ansiedade que gera, dos
transtornos psíquicos que pode acarretar, da sua índole
‘agressiva’, etc., o «exame» apresenta-se como um mau
momento socialmente indispensável, uma espécie de ad-
versidade quotidiana e insuprimível; ideologia da simetria
de oportunidades, do teste unitário e da ausência de privi-
légios, etc.). De facto, componentes essenciais da ideologia
do Sistema condensam-se no «exame», que também atua
como corretor do carácter, como modelador da personali-
dade – habitua, por exemplo, à aceitação do estabelecido/
insuportável, à perseverança torturante na Norma. Por
último, tal como demostraram Baudelot e Establet para o
caso da França, o «exame», com a sua função seletiva e
segregadora, tende a fixar cada um na sua condição social
de partida, reproduzindo assim a dominação de classe.

49
Elemento da perpetuação da desigualdade social (Bour-
dieu e Passeron), destila além disso um tipo de «ideologia
profissional» (Althusser) que coadjuva à legitimação da
Escola e à mitificação da figura do Professor...
Toda esta sequência ideo-psico-sociológica, tão com-
prometida com a salvaguarda do Existente, encontra
paradoxalmente o seu aval nas práticas avaliadoras dessa
porção do corpo docente que – quem acredita nele? – diz
simpatizar com a causa da «melhora» ou da «transforma-
ção» da sociedade...
Tratando, como sempre, de distanciar-se do modelo do
«professor tradicional», seu inimigo declarado, os educa-
dores reformistas podem promover, além disso, a partici-
pação do corpo discente na ‘definição’ do tipo de exame
(para que os estudantes se impliquem decididamente na
conceção da tecnologia avaliadora a que se submeterão) e,
transpondo um limiar inquietante, nos próprios sistemas
de classificação – nota acordada, classificação por mútuo
acordo entre o aluno e o professor, avaliação pelo coletivo
da aula, ou, inclusive, autoclassificação ‘arrazoada’... Este
afã de envolver o aluno nas tarefas vergonhosas da ava-
liação, e o caso extremo da autoclassificação estudantil,
que encontra a sua justificação entre os pedagogos fasci-
nados pela psicologia e pela psicoterapia, procura, apesar
do seu formato progressista, a absoluta «claudicação» dos
jovens ante a ideologia do exame – e, portanto, do siste-
ma escolar – e gostaria de sancionar o êxito supremo da

50
Instituição: que o aluno aceite a violência simbólica e a
arbitrariedade do exame; que interiorize como ‘normal’,
como ‘desejável’, o jogo de distinções e de segregações que
estabelece; e que seja capaz, se for caso disso, de se sus-
pender a si mesmo, ocultando desta forma o despotismo
intrínseco do ato avaliador. No que concerne ao Ensino,
e graças ao ‘progressismo’ benfeitor dos reformadores
pedagógicos, já teríamos o polícia de si mesmo, já vive-
ríamos no neofascismo.
Recorrendo a uma expressão de López-Petit, Calvo
Ortega falou do «modelo do autocarro» para se referir às
formas contemporâneas de vigilância e controlo: nos au-
tocarros antigos, um ‘revisor’ certificava-se de que todos
os passageiros tinham pago bilhete (um vigiava todos);
nos autocarros modernos, através da mediação de uma
máquina, cada passageiro ‘pica’ o seu bilhete sabendo que
está a ser observado por todos os outros (todos vigiam
um). No que diz respeito ao Ensino, e graças à invenção
da «autoavaliação», em muitas aulas deu-se mais um
passo: não é ‘um’ que controla todos (o professor classi-
ficando os estudantes); nem sequer são ‘todos’ os que se
encarregam do controlo de cada um (o coletivo da turma
avaliando, em assembleia ou através de qualquer outra
fórmula, cada um dos seus componentes); é o ‘próprio’
que se ‘autocontrola’, o próprio que se aprova ou chum-
ba (autoavaliação). Neste autocarro, que provavelmente
levará a uma forma inédita de fascismo, mesmo que ca-

51
sualmente não haja ninguém, mesmo que esteja vazio,
sem revisor e sem testemunhas, cada passageiro ‘picará’
religiosamente o seu bilhete (vigiar-se-á a si mesmo).
Converter o estudante em polícia de si mesmo: é este o
objetivo procurado pelo «reformismo pedagógico» da
Democracia. Converter cada cidadão num polícia de
si mesmo: eis a meta para a qual avança a Democracia
no seu todo. Trata-se, em ambos os casos, de reduzir ao
máximo o aparelho visível de coação e de vigilância; de
camuflar e de travestir os seus agentes; de delegar no
próprio indivíduo, no cidadão anónimo, através da «res-
ponsabilidade», do «civismo» e da «educação», as tarefas
decisivas da Velha Repressão.
5) O favorecimento da participação dos alunos na ges-
tão dos Centros (através de ‘representantes’ nos Claus-
tros, nas Comissões, nos Conselhos Escolares, etc.) e o
fomento do «assembleísmo» e da «auto-organização»
estudantil, como forma de luta pela ‘democratização’ do
Ensino. No primeiro destes pontos confluem o refor-
mismo administrativo dos governos democráticos e o
«alunismo» sentimental dos docentes progressistas, com
uma discrepância relativa em torno do «grau» dessa in-
tervenção estudantil (número, maior ou menor, de alunos
no Conselho Escolar, por exemplo) e das «matérias» da
sua competência (os problemas de ordem disciplinar?, os
aspectos da avaliação?, a distribuição dos orçamentos?).
Pondo de lado esta discrepância, docentes e legisladores

52
somam os seus esforços para alcançar um mesmo e úni-
co fim: a integração do estudante, a quem se concederá
– como que urdindo-lhe uma armadilha – uma quota de
poder enganadora.
Dentro da segunda linha reformadora, em princípio
radical, situam-se as experiências educativas não-estatais
de inspiração anarquista – como a «Paideia, Escola Li-
vre», por exemplo – e as práticas de pedagogia «antiauto-
ritária» (‘institucional’, ‘não-diretiva’ ou de fundamenta-
ção psicanalítica) que se traduzem circunstancialmente,
de forma individual, em aulas do ensino público. Culmi-
nam, em todos os casos, num fomento do assembleísmo
estudantil e da autogestão educativa – e numa renúncia
expressa ao poder professoral. A Instituição (estatal ou
paraestatal) converte-se, assim, numa escola de demo-
cracia; mas de «democracia viciada», na minha opinião.
Viciada, sobretudo, porque, tal como acontecia com a pi-
rotecnia dos Métodos Alternativos, é o professor que im-
põe a nova dinâmica, que obriga ao assembleísmo; e este
gesto, em si mesmo ‘paternalista’, semelhante ao que o
Despotismo Ilustrado instituiu, não deixa de ser um gesto
autoritário, de ambíguo valor «educativo»: contém a ideia
de um Salvador, de um Libertador, de um Redentor, ou,
pelo menos, de um Cérebro que implanta o que convém
nos estudantes como reflexo do que conviria à Humani-
dade. Nada mais resta aos jovens do que «estar agradeci-
dos»; e começar a exercer um poder que lhes foi ‘doado’,

53
‘oferecido’. A sugestão de que a «liberdade» (entendida
como democracia, como autogestão) se conquista, que
se apresenta como «um despojo que caberá ao vencedor»
(Benjamin), está excluída dessa abordagem. Além disso,
parece que aos alunos não é outorgado o próprio poder,
mas apenas o seu ‘usufruto’, já que a «cessão» tem as suas
condições e há, acima da esfera autogestionária, uma Au-
toridade que definiu os limites e que vigia o seu desenvol-
vimento. Como se apreciará, estas estratégias rebentam
em contradições insolúveis, motivadas pela circunstância
de que nelas o «professor», em vez de se autodestruir, se
magnifica: com a razão do seu lado, reorganiza tudo em
benefício dos alunos e, ao mesmo tempo, para contribuir
para a transformação da sociedade. Concebe-se, assim,
uma miragem de democracia, um simulacro de ‘cessão’
do poder. De facto, o professor continua investido de toda
a autoridade, ainda que procure invisibilizá-la; e a liber-
dade dos seus alunos é uma liberdade contrita, manieta-
da, ajustada aos moldes criados por ele.
Esta conceção «estática» da liberdade – uma vez insta-
lados no seio da mesma, os alunos já não podem ‘recriá-
-la’, ‘reinventá-la’ –, e da liberdade «circunscrita», «limita-
da», vigiada por um Homem que tem a certeza absoluta
de ter encontrado a Ideologia Justa, com a organização
‘ideal’, é, e não me importa dizê-lo, a conceção da liberda-
de do estalinismo, a negação da liberdade. Inclusive, nas
suas formulações mais extremas, a Escola da Democracia

54
acaba por se definir como uma Escola sem Democracia...
Devido à conjunção de todos estes deslizamentos pon-
tuais, algo de substancial está a alterar-se na Escola sob a
democracia: o nítido dualismo professor-aluno tende a
esbater-se, adquirindo progressivamente o aspecto de uma
associação ou de um emaranhamento. Produz-se, funda-
mentalmente, uma «delegação» no aluno de determinadas
incumbências tradicionais do professor; um transvase de
funções que converte o estudante em sujeito/objeto da prá-
tica pedagógica... Tendo participado, de um modo ou de
outro, na Retificação do programa, terá agora de ‘padecê-
-lo’. Estabelecendo-se como protagonista das aulas reativa-
das, mais tarde ‘corresponsabilizar-se-á’ pelo fracasso ine-
vitável das mesmas e pelo tédio que voltará aos seus trilhos
conforme o fator «rotina» eroda a camada de novidade das
dinâmicas participativas. Envolvendo-se nos processos
avaliadores, não saberá já contra quem se revoltar quando
sofra as consequências da classificação discriminatória e
hierarquizadora. Aparentemente ao leme do navio escolar,
a quem deitará as culpas do seu naufrágio? E se não nau-
fraga, de quem esperará um motim quando se descubra
que o leva a um mau porto? Em poucas palavras: pela via
do Reformismo Pedagógico, a Democracia confiará ao
estudante as tarefas cardinais da sua própria coerção. Daí
segue-se uma invisibilização do educador como agente da
agressão escolar e um ocultamento dos procedimentos de
domínio que definem a lógica interna da Instituição.

55
Declaraste-te «um inimigo de toda a pedagogia»... Po-
derias explicitar o alcance desse teu antipedagogismo?
Que reprovas, de concreto, na disciplina pedagógica?
No O Irresponsável, e mesmo antes no «A hora do an-
tigo suicídio» (a minha participação no livro Contra el
fundamentalismo escolar, editado pela Vírus em 1998),
procurei avançar, na verdade, com uma ‘antipedagogia’.
Como antipedagogo, contesto uma suposição que está
na própria raiz dessa disciplina, no coração de todas as
críticas ‘pedagógicas’ ao ensino tradicional e de todas
as ‘alternativas’ disponíveis. É a ideia de que compe-
te aos «educadores» (parte seleta da sociedade adulta)
desenvolver uma importantíssima tarefa em benefício
da juventude; um trabalho ‘pelos’ estudantes, ‘para’ eles
e inclusive ‘neles’ – uma determinada operação sobre a
sua consciência: «moldar» um tipo de homem (crítico,
autónomo, criativo, livre, etc.), «fabricar» um modelo de
cidadão (agente da renovação da sociedade ou indivíduo
felizmente adaptado à mesma, segundo a perspetiva),
«inculcar» certos valores (tolerância, antirracismo, paci-
fismo, solidariedade, etc.)…
Esta pretensão, que atribui ao educador uma função
demiúrgica, constituinte de «sujeitos» (na dupla aceção
de Foucault: «A palavra ‘sujeito’ tem dois sentidos: sujeito
submetido ao outro pelo controlo e pela dependência, e
sujeito preso à sua própria identidade pela consciência ou
pelo conhecimento de si. Nos dois casos, a palavra suge-

56
re uma forma de poder que subjuga e assujeita»), sempre
orientada para a «melhoria» ou para a «transformação» da
sociedade, é hoje absolutamente ilegítima: por que razão
está um educador capacitado para uma tão ‘alta’ missão?
Por causa dos seus estudos? Por causa das suas leituras?
Por causa da sua impregnação «científica»? Por que razão
se situa tão ‘acima’ dos estudantes, quase como um «salva-
dor», um sucedâneo da divindade, «criador» de homens?
Por que razão pode um triste funcionário, por exemplo,
arrogar-se o título de forjador de sujeitos críticos?
Torna-se muito difícil responder a estas perguntas sem
recair na achacosa «ideologia da competência», ou do
«experto»: fantasia de especialistas que, em virtude da
sua formação ‘científica’ (pedagogia, psicologia, sociolo-
gia, etc.), se encontrariam verdadeiramente preparados
para um cometimento tão sublime. Torna-se muito di-
fícil procurar para essas perguntas uma resposta que não
ressuma idealismo, que não feda a metafísica (idealismo
da Verdade, ou da Ciência; metafísica do Progresso, do
Homem como sujeito/agente da História, etc.). E há em
todas as respostas concebíveis, como na própria medula
daquela solicitude demiúrgica, um elitismo pavoroso: a
postulação de uma nutrida aristocracia da inteligência
(os professores, os educadores), que se consagrará a essa
delicada correção do carácter – ou, melhor, a um certo
desenho industrial da personalidade. Subjaz aí um con-
ceito moral antiquado, uma ética da ‘amputação’ e do

57
‘enxerto’, um proceder estritamente religioso, um traba-
lho de ‘pregação’ e de ‘inquisição’. Palpita aí uma mitifi-
cação expressa da figura do Educador, que se erige em
autoconsciência crítica da Humanidade (conhecedor
e artífice do «tipo de sujeito» de que esta necessita para
‘progredir’), revestindo-se de um genuíno poder pastoral
e incorrendo mil e uma vezes naquela «indignidade de
falar pelo outro» a que tanto se referiu Deleuze. E tudo
isso com um inconfundível aroma a ‘filantropia’, a obra
‘humanitária’, ‘redentora’...
Esta pressuposição, este preconceito de que há algo a
corrigir e algo a forjar na subjetividade dos jovens, com
matizes, encontra-se em todas as realizações da pedago-
gia, em todas as suas propostas, conservadoras, reformis-
tas ou aparentemente ‘revolucionárias’; encontra-se em
Freinet, em Oury, em Neill, em Ferrer Guardia, em Ma-
karenko...; encontra-se, hoje mesmo, por exemplo, subja-
cente nas análises de Jurjo Torres Santomé ou de Teresa
San Román, no espírito da recente fornada de educadores
‘antirracistas’; encontra-se em todo o lado...
Outro pressuposto da pedagogia moderna reside no
axioma de que «para educar é necessário encerrar». To-
das as propostas reformistas partem desta aceitação do
Encerramento; e depois estudam o modo de «amenizá-
-lo», de «guarnecê-lo» (procedimentos, didáticas, estra-
tégias), sempre com o olhar posto no ‘bem’ do estudan-
te e na ‘melhoria’ da sociedade... Contudo, a juventude

58
também se autoeduca na sociedade civil, fora dos muros
da Instituição, através da leitura não-dirigida, do apro-
veitamento dos diversos canais de transmissão cultural
independentes da Escola (entidades culturais, meios de
comunicação, associações,...), da relação ‘informal’ com
os adultos, das viagens, da assimilação das experiências
laborais, etc. Há, pois, à margem da Escola, um vasto
campo de possibilidades de autoformação, de autoeduca-
ção, difuso e complexo, que impregna quase todo o tecido
da vida quotidiana, da interação social; campo de possibi-
lidades que está a ser explorado, de facto, pela juventude,
e provavelmente mais pela juventude não-escolarizada do
que pela escolarizada, mais pelos trabalhadores do que
pelos estudantes (demasiado encastelados, estes últimos,
na mansão universitária). Quem, ao longo da sua vida,
não se cruzou, numa ou noutra ocasião, com algum jo-
vem trabalhador «sem estudos» (rejeitado pelo sistema
escolar ou que desertou voluntariamente do mesmo) que
nos surpreendeu, apesar disso, pela riqueza e consistência
de sua bagagem cultural, pelo modo como se autoeducou
e pela forma de entender o saber, tal como Artaud queria,
«como um instrumento para a ação, um novo órgão, uma
espécie de segunda respiração»?
Como foi comprovado por Querrien, precisamente
para fiscalizar (e neutralizar) os inquietantes processos
populares de «autoeducação» – nas famílias, nas taber-
nas, nas fábricas, etc. –, os patrões e os governantes dos

59
primórdios do Capitalismo tramaram o Grande Plano
de um «confinamento educativo» da Juventude. Não es-
queçamos que o ensino moderno, estatal, se generaliza
ao longo do século XIX com o intuito de conjurar um
problema crescente de deterioração da ordem pública,
em grande medida estimulado pela não-regularização
administrativa dos processos de transmissão cultural.
Pouco a pouco, a escolarização, rigorosamente obrigató-
ria, começa a competir com êxito pela hegemonia como
instrumento de socialização da Cultura, debilitando o
influxo das restantes instâncias, mas não acabando lite-
ralmente com elas.
Quero dizer com tudo isto que, como sublinhou Ivan
Illich, o «encerramento» não é a condição fundamental
da Educação, não é uma premissa insuprimível, ainda
que a ideologia escolar assim o postule. Foi essa ideolo-
gia profissional dos pedagogos e dos docentes, de acordo
com os interesses do Estado, que centrou todo o debate a
propósito da Educação em torno da figura da Escola. Na-
turalizada, presa do que Lukács denominou como «ma-
lefício da coisificação», a instituição escolar converteu-se
finalmente num fetiche, num ídolo sem crepúsculo. E a
exigência do confinamento educativo aparece hoje como
um dogma de toda a pedagogia, reformista ou não; como
um «credo» ao qual os Estados, ditatoriais ou democráti-
cos, se abraçam sem exceção.

60
Tens falado de «antipedagogia»... A que te referes
com esse conceito? Que recriminas ao ‘pedagogismo’
moderno?
Essencialmente, entendo por «antipedagogia» a ne-
gação do dogma fundacional desse saber taimado: o
preconceito de que há algo a corrigir e algo a forjar na
subjetividade dos jovens. Como antipedagogo, nego essa
suposição; e, para o exercício da Corrosão que sugiro, e
que durante dois anos levei a cabo, proponho precisa-
mente o contrário: não pretender fazer nada «pelos» estu-
dantes, deixar a juventude em paz, não nos imiscuirmos
nos «seus» assuntos, permitir que cada qual decida onde
reside o seu próprio ‘bem’... Lutar contra a máquina esco-
lar, obstruir os seus movimentos característicos, dificultar
o seu funcionamento coercivo. Lutar contra a máquina,
mas já não pelos alunos. Contra a máquina e, acidental-
mente, com os alunos (já que a resistência estudantil pode
‘convergir’ com a prática corrosiva dos antiprofessores; e
é possível uma certa cumplicidade na fraude, uma certa
solidariedade na transgressão); mas nada mais.
Ao não se situar «acima» dos outros, ao não incorrer na
infâmia de usurpar a voz do outro (infâmia de falar ‘pe-
los’ estudantes, de transformar os métodos em seu nome,
etc.), o antiprofessor ainda em exercício, em pleno ‘per-
curso’, não pretende salvar ninguém, não procura ajudar
ninguém – como, se apenas está seguro de saber ajudar-se
a si mesmo? A cabeça do estudante não lhe interessa de

61
todo: o seu objetivo é desmontar a maquinaria escolar,
desescolarizar-se. A isto se refere o termo «antipedago-
gia», que está no meu ponto de partida. Os La Polla Re-
cords, em «Gurú», tema do seu álbum Salve, centraram
muito bem esta questão:

«Vieste salvar-me do outro lado do mundo;


trazes-me a salvação, mas isso é por tua conta e risco.
Quem caralho te enviou?
Guru! Um pontapé nos tomates é o que te podem dar...
Vai salvar a teu pai, só pretendes ganhar dinheiro!»

Todo o debate em torno da Educação tende a centrar-


-se hoje em dia na figura da Escola (a sua reforma, a sua
reorganização). Dir-se-ia que falar da Educação é falar
da Escola... Parece-me que fazes uma distinção entre os
dois termos, muito na linha de Ivan Illich. É isso?
É isso mesmo. Outro dogma da pedagogia reside no
postulado de que «para educar é necessário encerrar».
Todas as propostas reformistas partem desta aceitação
do encerramento; e depois estudam o modo de torná-lo
mais ‘apresentável’, de ‘mitigá-lo’, de ‘amenizá-lo’ – méto-
dos, didáticas, estratégias,... No entanto, trata-se de um
«a priori» controverso. Há, à margem da escola, um vasto
campo de possibilidades de autoformação, de autoeduca-
ção, difuso e complexo, que cobre quase todo o âmbito da
vida quotidiana e que está a ser explorado, de facto, pela

62
juventude. Daí, por exemplo, esses jovens «sem estudos»
que nos surpreendem pela solidez e pela riqueza da sua
bagagem cultural. Daí essa sensação comum de que não
devemos à Escola o nódulo das nossas crenças, dos con-
ceitos que defendemos contra todo o mundo e até contra
nós mesmos, mas sim a outras instâncias, a outros acasos,
a outras fontes – os círculos de amigos, os encontros e de-
sencontros familiares, o desenlace caprichoso das nossas
buscas intelectuais, etc. Era nestas outras fontes de for-
mação, nestes outros canais de impregnação cultural, que
Marx estava a pensar quando argumentou que nas escolas
se deveriam ensinar unicamente disciplinas «neutras»,
como as matemáticas ou a gramática, disciplinas que não
admitissem divergências de interpretação segundo uma
ou outra doutrina, segundo este ou aquele partido. O
resto, as matérias «polémicas», deveria ser deixado à au-
toeducação da juventude, da população, de acordo com as
suas inquietudes e interesses, potenciando e protegendo
os meios dessa aprendizagem informal.
Tal como Marx, tal como Nietzsche, tal como Illich e
Reimer, eu não ‘venero’ o ídolo do Confinamento Educa-
tivo, não faço meu esse dogma. Considero, além do mais,
que, desde o ponto de vista da «resistência», da «contes-
tação», da «oposição» ao Sistema, o mais coerente seria
negar essa exigência do Encerramento, do Enclausura-
mento; e trabalhar para que, fora da Escola, na sociedade
civil, na periferia das instituições estatais, os jovens vejam

63
multiplicados os meios (os recursos, os instrumentos) da
sua autoeducação: colaborar, por exemplo, na criação e
no funcionamento de ateneus, de bibliotecas alternativas,
de associações culturais, de foros de discussão, de revis-
tas, de galerias independentes, de editoras, de coletivos de
um ou de outro tipo, de oficinas de criação, etc.
Reivindicar o abandono do ensino estatal (e paraes-
tatal), sempre depois de um ‘percurso’, de uma prática
‘corrosiva’, intensa e criminal, não significa, de nenhu-
ma forma, abdicar da luta cultural: significa ‘deslocar’
os acentos, sair da órbita do Estado, deitar borda fora as
miragens e ilusões pedagogistas... Propor o abandono do
ensino também não equivale a deixar os estudantes, por
assim dizer, nas mãos da Reação, a ‘traí-los’. Pelo contrá-
rio, os estudantes não necessitam, nunca necessitaram,
dos «professores progressistas» para ‘resistir’, para com-
bater a Ordem da Escola. Levam toda a vida a lutar por
sua própria conta; e a intromissão dos professores ‘belige-
rantes’ só tem servido para atenuar esse confronto, para
atribuir-lhe outros fins, para adulterá-lo... De mil manei-
ras diversas, os estudantes têm vindo a negar o sistema
escolar: absentismo, fraude nos exames, intimidação dos
educadores, ludismo, greves, manifestações, desinteresse
quotidiano, etc. Neste contexto, o palavreado ‘possibi-
lista’ (reconciliador) dos professores «modernos» só tem
semeado confusão. As pedagogias ‘reformistas’, é sabido,
reforçavam o Sistema ao torná-lo menos odioso. Neill, o

64
fundador da «Summerhill», chamou várias vezes a aten-
ção para este extremo.

De um ponto de vista prático, não é preferível um


«bom professor», um homem dialogante e compreen-
sivo, que domina a sua matéria, com o qual os alunos
sofrem de facto menos, a um «professor tradicional»,
daqueles de ‘mão à palmatória’, desconhecedor da sua
própria disciplina?
O conceito de «bom professor» é um conceito ideo-
lógico. O mesmo se passa com o de «bom pai», ou de
«bom empregado», ou de «bom ministro»... Chama-se
«bom professor» àquele através do qual a Escola alcan-
ça os seus fins ‘clássicos’ – domar o carácter dos jovens,
ideologizar, inculcar o princípio de Autoridade, segregar
socialmente,... – sem provocar a aversão dos estudan-
tes ao próprio processo educativo. Através da figura do
Bom Professor, a Escola contribui para a reprodução do
Sistema sem correr o risco de despertar a oposição es-
tudantil. De alguma forma, o «bom professor» constitui
o êxito supremo da Instituição: mesmo fora da aula, na
rua, num bar, por exemplo, lá, onde os alunos ‘rodeiam’
um «bom professor”», continua a «aula». Mesmo fora da
Escola, o «bom professor» (por ter interiorizado de forma
absoluta a ‘ideologia escolar’; pelo papel de ‘professor’,
de ‘educador’, que torna seu com orgulho; pelos sinais
de ‘autoridade’ intelectual de que se investe; por tudo o

65
que ‘ensina’ no plano simbólico) dá escola. É, de alguma
maneira, uma pequena escola ambulante, um «escola-
rizador» da própria periferia da Escola. Desse modo, a
operação pedagógica sobre a consciência, a que se resume
todo o ato educador, perde o seu carácter imediatamente
coercitivo, evita aquela componente de ‘imposição’ incó-
moda (de ‘artifício’ repressivo) que ainda conservava na
aula. A Reforma quer «bons professores» precisamente
para aumentar a área de influência da Escola. Só há uma
figura que lhe interessa tanto ou mais do que a do «bom
professor»: a do «bom estudante» – ou seja, o jovem re-
conciliado com a Instituição, que por fim partilha a «éti-
ca» escolar, o «bom senso» docente; o estudante ‘integra-
do’, ‘participativo’, ‘respeitoso’, mais ou menos o mesmo
marrão de sempre. Figuras, ambas, da estupidez e de um
acriticismo clamoroso, tanto uma como outra (o «bom
professor» e o «bom estudante») situam-se no ponto de
mira do Reformismo Pedagógico.
Por serem ‘disfuncionais’, ‘anacrónicos’, por mostra-
rem claramente todo o autoritarismo secreto da educa-
ção institucionalizada, por granjearem a inimizade dos
estudantes, por exacerbarem a sua irritação, o seu res-
sentimento, a sua vontade de resistência, etc., os «maus
professores» (tirânicos, incompetentes, não-alunistas)
tendem hoje a converter-se num obstáculo, numa obs-
trução, num escolho dificilmente salvável, num muro
contra o qual tropeçam repetidamente as estratégias ‘re-

66
formistas’, os programas ‘modernizadores’ do Ensino. Se
tenho de escolher, prefiro os «maus professores», já que
não enganam ninguém... Graças a eles, a Escola funciona
‘pior’ – ou seja, não é tão eficaz na hora de dominar a
subjetividade estudantil.

O Reformismo Pedagógico «oficial», representado


em Espanha nos nossos dias pela LOGSE (Ley Orgá-
nica General del Sistema Educativo), parece por vezes
‘inspirar-se’ no programa da Escola Moderna. A ne-
cessidade de incrementar a participação dos alunos na
dinâmica educativa converte-se, em ambos os casos,
quase numa obsessão. De facto, essa ênfase nos meios e
nas formas de aprofundar essa «participação» poderia
considerar-se como uma constante, um leitmotiv, nos
principais textos de renovação pedagógica. Qual seria
a função de toda essa «ideologia da participação» que,
em primeiro lugar, a Escola projeta para os alunos?
A «participação» dos alunos, a todos os níveis (na hora
de ‘conceber’ a programação e de confecionar o temário,
na própria dinâmica das classes ‘ativas’, na definição do
tipo de exame e nos sistemas de classificação, na gestão
‘democrática’ dos centros de ensino, etc.), é, na verdade,
uma das obsessões centrais do Reformismo Pedagógico e,
como sugeres, tem sido ‘assimilada’ paulatinamente pelas
sucessivas «legalidades» educativas. A «Escola Ativa» de
Freinet, as recomendações «paidocêntricas» dos pedago-

67
gos ‘progressivos’ (a «educação centrada na criança» de
Ferrière, por exemplo; as experiências das «Escolas No-
vas»; etc.), e inclusive a ênfase no assembleísmo e na auto-
gestão estudantil que distinguiu as chamadas «pedagogias
institucionais» (Lobrot, Oury, Vásquez, etc.), têm girado
invariavelmente em torno deste «motivo fundamental» do
Reformismo, este inocultável «acordo tácito» constituído
pela conveniência de envolver os estudantes na prática
educativa e de integrá-los no aparelho de gestão da Escola.
Trata-se, sempre e por todos os meios, de «neutralizar»
o estudante como elemento de crítica e oposição à lógica
escolar. Negar a Escola leva a ‘defender-se’ dela, a prote-
ger-se, a não-colaborar, a obstruir o seu funcionamento
opressivo. Participar na dinâmica das aulas e na adminis-
tração dos Centros supõe ‘afirmar’ a Instituição, transigir
com ela, abdicar da autoproteção. Aí reside a perversi-
dade dos projetos «participativos»: concedem ao sujeito
uma certa quota de ‘poder’, de ‘protagonismo’, uma certa
margem de ‘autonomia’, inclusive uma sensação de li-
berdade, em troca de «inseri-lo» no funcionamento da
Instituição, de «vaporizá-lo» como agente da negação da
mesma, de desarmá-lo política e ideologicamente.
A ‘participação’ dos trabalhadores nos lucros e na ges-
tão das empresas leva, como é sabido, à desmobilização
proletária, à reconciliação dessas duas figuras estrutu-
ralmente opostas, com interesses antagónicos, que são o
Empresário e o Trabalhador. A ‘participação’ dos estudan-

68
tes na mecânica das aulas, nos processos de avaliação e na
regência dos Centros leva, igualmente, à desmobilização
estudantil, à reconciliação de outro par de figuras estrutu-
ralmente em confronto: a figura do Aluno e a do Professor.
Deleuze referiu-se a esta estratégia com um termo muito
expressivo: «hipocrisia». É a hipocrisia substancial de
todo o Reformismo: dissimular a privação da liberdade, e
o exercício despótico do poder, através de uma ‘concessão’
mínima e envenenada, de um simulacro de protagonismo
e de autonomia. «Não é por dar mais trela ao cão que este
deixa de estar preso», dizia Martín Fierro...

69
QUE FAZER? - A PERGUNTA CULPÁVEL

Que fazer, então, na Escola e contra a Escola? Como


e onde conceber a possibilidade de uma «educação
livre»? Como luta o antiprofessor, esse símbolo do
desprezo por toda a pedagogia a que aludes nos teus
escritos?
Por oposição ao trabalho dos «educadores», à prática
social dos «professores», procurei esboçar no O Irrespon-
sável um paradigma distinto, uma ‘estratégia corrosiva’
que exige, pelo contrário, a figura insólita do «antipeda-
gogo», do «deseducador», do «contra-professor». Esta
figura já não se reconhece nas ideias e na práxis de um
Freire, de um Blonsky ou de um Neill. Sintoniza me-
lhor com o gesto de um Groucho Marx que, em Sopa de
Ganso, nomeado Reitor, confessa a sua intenção de que,
com ele, a Universidade funcione «ainda pior»; com a
antipregação de um Zaratustra que fala desta forma aos
seus discípulos: «afastai-vos de mim e defendei-vos con-
tra Zaratustra»; com a maravilhosa odisseia interior de

71
Heliogábalo, o «anarquista coroado» de Antonin Artaud,
imperador que se veste de prostituta e se vende por qua-
renta centavos nas portas das igrejas cristãs e dos templos
romanos...
O paradigma da irresponsabilidade, que leva a uma
prática criminal da docência, exige (dizia) a figura do
antipedagogo, do contra-professor que não pretende
fazer nada «pelos» estudantes, «para» eles e «neles» –
nada pelo ‘bem’ dos alunos e, já agora, pela ‘melhoria’, ou
‘transformação’, da sociedade, nenhum tipo de homem
que modelar... Só assim se pode conceber a «antipeda-
gogia». O Irresponsável luta ‘contra’ a máquina escolar e
aspira a provocar a sua avaria. É um ‘mecânico’ perverso,
um destruidor sem escrúpulos, um génio da sabotagem,
um artista da decomposição, um maníaco do estrago...
Procura sempre transgredir a Lei desde fora da Moral,
exceder o âmbito da ‘desobediência induzida’, do ‘ilega-
lismo útil’, para se arraigar no domínio do Intolerável, do
Inaceitável, do Insuportável – o lugar do crime na Insti-
tuição. Daí a sua inclinação para o «ludismo», valorizado
como forma legítima de contestação, como insubmissão
absoluta ao princípio da realidade capitalista, como sub-
versão simbólica de toda a ordem coativa, como negação
insubornável da ética do Sistema. O antiprofessor em
exercício, sabotador da máquina escolar, simpatiza, por-
tanto, com o ludismo dos estudantes (destruição do «mo-
biliário escolar»: secretárias, cadeiras, quadros e outros

72
instrumentos de tortura; mas não só isso: também com
a fraude nos exames, a falsificação dos impressos, a in-
timidação dos classificadores, a burla, a troça, a paródia,
as alcunhas, o absentismo, com ‘dar cabo’ das aulas, levar
pouco a pouco o docente a atingir um estado neurótico,
com as pintadas, os roubos, as risadas, a agressão, a in-
subordinação clamorosa, a maledicência..., formas, todas
elas, de resistência estudantil, de defesa da própria subje-
tividade, do próprio «carácter», situado invariavelmente
no ponto de mira de uma Escola por definição policial
e de um corpo docente, no fim de contas, mercenário) e
desenvolve-o no seu terreno, importunando e sublevan-
do o resto dos «ensinantes», obstruindo – ou eternizando
– os Claustros, as Comissões, as Reuniões, coadjuvando
no ‘extravio’ das atas, dos documentos, das cartas, das
‘papeladas’ oficiais, saqueando a biblioteca e oferecendo
os livros depois, denunciando este ou aquele colega por
«maus tratos» e o próprio Inspetor como «incompeten-
te», não tomando nunca a sério nenhuma das palavras
proferidas pelos ‘corpos dirigentes’ do Centro, permitin-
do-se todo o tipo de gestos obscenos e de ‘provocações
simbólicas’ ante as autoridades educativas, exibindo des-
de o princípio um comportamento «inexemplar» e até
francamente «delitivo», rindo-se na cara de toda a gente e
manifestando sem descanso um brutal esquecimento dos
seus ‘deveres’ profissionais, dando sempre a impressão
de não temer ninguém e de viver como se estivesse de

73
passagem pela Instituição, brincando e destruindo, des-
frutando e violentando,... A luta do Irresponsável contra a
Escola assume assim uma estranha condição, uma índole
singular, fugitiva, sem dúvida «imoral» (toda a luta é imo-
ral), trágica e festiva ao mesmo tempo, aberta à fantasia,
ao humor, à imaginação, ao jogo, ao gratuito, ao gesto, ao
supostamente absurdo, ao incompreensível e insubscreví-
vel, ao terrorífico, ao criativo, ao patético, ao transtornan-
te, ao comovedor – aberta, resumindo, à arte e à loucura.
Parte, por conseguinte, da Dor; e não saberíamos dizer
para onde aponta...
Enquanto fator de desescolarização, por outro lado,
o antiprofessor tende a apagar a Escola «na» própria
Escola: à sua volta não há controlo de presença, não há
programação, não há temário, não há disciplina, não há
‘dinâmica’ (nem sequer participativa), não há teste... Na
verdade, à sua volta não há «aulas», não há Escola. Po-
de-se ver o Irresponsável pelos corredores, pelas aulas,
pelos departamentos, não fazendo aparentemente nada
(no entanto, está sempre a tramar algo, a conceber algum
mal, a corromper não se sabe o quê), como um simples
«instrumento» ao qual os estudantes podem recorrer se
lhes apetecer. Apresenta-se desta forma: desde o ponto
de vista da transmissão cultural, como um recurso para a
‘autoformação’ dos jovens, um utensílio que se pode usar
ou não; desde o ponto de vista da negação do poder, como
um destruidor da máquina... De tudo o que foi dito de-

74
preende-se que, pela sua oposição à lógica docente, pela
sua insubmissão às principais figuras legais da Escola (as-
sistência, programa, método, exame, gestão, disciplina...),
pela sua propensão para o ludismo (tal como Baudrillard
sustentou «a importância dos vidros partidos no protesto
dos trabalhadores», o Irresponsável defende «o interesse
e o sentido da Escola queimado na revolta estudantil»), os
antiprofessores desenvolveram a sua tarefa num ambiente
de ininterrupta «repressão administrativa» – admoesta-
ções, denúncias, processos, sanções, etc. – e resumem a
sua ‘vitória’ absoluta, o seu ‘êxito’ definitivo, à conquista
da Expulsão. A estratégia ‘corrosiva’ concebe-se como
um «percurso»; tem um princípio e um fim: o fim que
pretende é a Expulsão, única garantia do perigo da sua
luta, da verdade da sua sublevação. Diria, por último, que
o paradigma da irresponsabilidade na docência, ao qual
me sujeitei durante dois anos, lida com a experiência da
criação artística (do teatro, ainda que da Crueldade, da
poesia, mesmo que ‘maldita’, da literatura, mas escrita a
sangue) e é inseparável de um inquietante processo es-
quizofrénico. Encontra, sem dúvida, no Heliogábalo de
Antonin Artaud o que mais se parece a um ‘modelo’...
Depois do ‘percurso’ pela «mansão do embrutecimen-
to» (assim definia Lautréamont a Escola), resta ainda a
possibilidade de uma implicação nos processos não-
-institucionais de ‘educação’ e de transmissão cultural:
o envolvimento na retícula cultural não-estatal (centros

75
sociais, ateneus, coletivos, editoriais não-mercantis, asso-
ciações de um ou de outro tipo, etc.), ter que ver com os
modos e processos de autoeducação da população, com
as estratégias ‘informais’ de aprendizagem e socialização
da cultura. Na minha opinião, a «educação livre» a que
te referias dá-se precisamente onde termina a Escola, só
começa quando a Escola termina...

Como consideras que se deveria desenvolver uma


luta, por parte dos alunos e dos professores, desde den-
tro do sistema educativo vigente e contra esse mesmo
sistema? Encontrar-se-ia intrinsecamente ligada ao
prazer da destruição/criação?
Há uma figura que me irrita tanto como a do «educa-
dor» clássico: a do ‘metodólogo’ da insurgência, a do ‘es-
pecialista’ na subversão, o homem que se julga facultado
para nos dizer como nos devemos e como não nos de-
vemos insubordinar. Parece-me que ninguém se deveria
arrogar a função de definir «estratégias corretas», «tipos
eficazes de contestação», «modalidades adequadas de re-
sistência», etc. Tudo isso liberta um insuportável fedor a
estalinismo, a uma curiosa «divisão do trabalho» no âm-
bito da luta (de um lado, os que pensam e se encarregam
de ‘estabelecer’ os objetivos e as formas de confronto, a
ortodoxia da rebelião; e, do outro, os que verdadeiramen-
te se sublevam, a carne para canhão quotidiana, o alvo
material dos polícias e dos juízes...). Por tudo isto, não

76
vou responder à tua pergunta. A luta dos alunos é um as-
sunto dos alunos, e eu não vou permitir-me a infâmia
de pontificar sobre ela. A luta dos professores, temo que
não exista – eu, pelo menos, não a conheço... Só posso
falar do que fui e do que fiz, às vezes ‘acompanhado’ por
outros homens que também não se sentiam ‘professo-
res’ e que respeitavam demasiado os alunos para tentar
‘reconduzir’ a sua insurreição. Só posso falar da luta dos
«antiprofessores»; e nem sequer para ‘propô-la’ como um
modelo. Sou um cronista da minha própria luta. Tive a
sorte de um dia ter lutado, e falo disso. Simultaneamente,
procuro não me deixar enganar pelas pseudo-lutas dos
educadores – particularmente dos «professores reformis-
tas», dos «ensinantes inquietos», os mais mentirosos de
todos. Não me cabe definir como se deve combater a Es-
cola; mas ‘mostrar’ uma forma de insubmissão e desmas-
carar as falsas confrontações, as batalhas arranjadas, do
Reformismo Pedagógico, dos docentes ‘revolucionários’,
dos ensinantes ‘comprometidos’, de todos aqueles que se
instalam no aparelho educativo (ou seja, no Prestígio e no
Salário) e que, a partir dessa posição de poder, ‘soldados’
aos fins e aos procedimentos do Estado, ainda se atrevem
a apresentar-se como lutadores anticapitalistas, ou «an-
tiautoritários», ou «antissistema». Que terrível hipocrisia,
a destes funcionários da desigualdade e da opressão que
falam da necessidade de ‘transformar’ a sociedade e pro-
clamam dedicar-se a isso a partir dos seus postos de tra-

77
balho mercenário! Que terrível vigarice, a que arrasta o
próprio conceito de uma «luta dos professores»! Ninguém
luta menos do que os professores: a essência da sua prá-
tica consiste em extirpar até a mais pequena raiz de uma
resistência legítima...
O paradigma da irresponsabilidade no Ensino exige,
pelo contrário, a figura do ‘antiprofessor’, do ‘desedu-
cador’, do ‘contra-pedagogo’ inexemplar. E é certo que,
partindo do seu radicalismo (violação da Lei desde fora
da Moral, vontade de Crime), da sua explícita inclinação
para o ludismo, se encontra intrinsecamente ligado ao
prazer de uma ‘destruição’ que é ao mesmo tempo ‘cria-
ção’... Por outro lado, concebe-se como um ‘percurso’; e
abomina o enraizamento, o enquistamento no aparelho
educativo: como fim quer a Expulsão. Durante todo o
trajeto, estende pontes até à arte, à imaginação crítica, à
poesia da desestabilização. Não ‘ensina’ a lutar; desilude
das lutas aparentes... Há dias em que me vejo tentado a
acrescentar que este paradigma requer, por sua vez, o pri-
vilégio da loucura e a única nobreza verdadeira, que tem
sido sempre a nobreza da dor...

Como se pode caracterizar a «arte de fazer pensar»


de que falas no teu livro? Porque apontas que essa prá-
tica deveria estender a sua influência a todos os âmbi-
tos do espaço socioinstitucional – fábricas, famílias,
hospitais, prisões,...?

78
Ainda que o Irresponsável procure não intervir na cons-
ciência do estudante, também não ignora que, pela mera
lógica da «exposição» circunstancial ao seu discurso, dos
«encontros» que se produzem entre ele e os alunos, ficará
sempre uma ‘réstia’ de influência, um 'traço' de incidên-
cia sobre a subjetividade dos jovens. Como mal menor,
reorienta esse inevitável resíduo de poder para que, para
variar, não trabalhe para a «divulgação da cultura», para
a «transmissão do saber» – eufemismos cínicos que ocul-
tam, sem mais delongas, um trabalho de doutrinação da
população, de ideologização do coletivo escolar, de difu-
são dos mitos do Sistema. O que o ‘antiprofessor’ procura
é algo muito distinto, e que o põe a salvo dos desvelos
proselitistas ainda percetíveis nas «Escolas Alternativas»
(mesmo reconhecendo o mérito e o valor da obra de Fer-
rer Guardia, podemos negar que desde o princípio se viu
tisnada de um dececionante anseio ‘proselitista’?): procu-
ra a provocação intelectual, a comoção crítica do recetor,
esse «fazer pensar» a que te referes... Não se apresenta
como o portador privilegiado de um conjunto de ‘verda-
des’ desmascaradoras, desmitificadoras, explosivas – fa-
zendo-o, não se poderia subtrair à lógica doutrinadora –,
mas como um artista da decomposição das certezas, um
grande suscitador da «expectativa reflexiva».
Disse «artista» porque esta meta difícil de fazer pensar
não está ao alcance de uma determinada ‘metodologia
científica’, não pode ser garantida por nenhum sistema

79
pedagógico, por nenhuma proposta didática. A Didática,
o Pedagógico e o Cientificismo, apesar das suas declara-
ções autojustificativas, procuraram sempre a impregna-
ção ideológica da sociedade, a conversão da «ideologia
dominante» em senso comum, em consciência anónima,
em verosímil popular. Gramsci, Horkheimer, Barthes e
Althusser aludiram convincentemente para este efeito
‘ideologizador’ das práticas científicas e culturais... «Fa-
zer pensar» não é um objetivo que de verdade interesse
a tais práticas; nem sequer estaria nas suas mãos no caso
insólito de que um dia se sublevassem contra os seus se-
nhores, o Estado e o Capital. Só à arte foi concedido esse
poder fascinante de semear a desconfiança e mobilizar as
energias intelectuais do recetor. Só a arte nos pode levar
àquele «treino do esquecimento do alheio e do prazer da
opinião pessoal, regresso às perguntas primordiais e às
respostas que não foram dadas, reconquista da afirmação
órfã e do orgulho primitivo de falar por si mesmo» a que
aludia no meu ensaio. A melhor literatura, a pintura e a
escultura não-complacentes, o teatro mais cruel, inclusive
o cinema consciente da sua especificidade, têm consegui-
do manifestamente esse efeito... Por isso falava de uma
«arte do fazer pensar»; e por isso o Irresponsável afasta-se
da docência e atenta contra a Escola pelos caminhos da
criação artística.
Considero que este propósito de não ‘infundir’ um
determinado pensamento, de não ‘inculcar’ um dado

80
sistema ideológico, e, por sua vez, de semear o princípio
da desconfiança, a vocação de dissentir, é o único que
mereceria a pena generalizar pelo resto das instituições
sociais e dos espaços de dominação, famílias, hospitais,
manicómios, prisões, fábricas, quartéis, etc. Em todos es-
tes recintos, a lógica implacável da repetição do saber (sa-
ber psicológico, saber médico, saber sindical, saber penal,
etc.), tendo forjado já uma ideologia profissional – esse
discurso empobrecido e empobrecedor dos médicos, dos
psiquiatras, dos sindicalistas, dos funcionários das pri-
sões,... –, um senso comum laboral endurecido, só pode
ser combatida a partir daquele convite, artisticamente
induzido, a uma «procura do discurso virginal e da in-
terpretação selvagem, perseguição incessante da narração
que não anda mais ao sabor da citação porque quererá
retornar ao desamparo da pele nua e saberá agradecer o
estímulo do frio verdadeiro» – e não através do simples
confronto com um conjunto ‘adverso’ de postulados ideo-
lógicos e de asseverações doutrinais supostamente ‘críti-
cas’. «Fazer pensar»: parece simples, mas é hoje o mais
difícil do mundo...

Não gostamos de estar de braços cruzados; que po-


demos fazer enquanto a ansiada mudança não chega?
Para começar, não voltar a formular essa pergunta. Não
voltar a colocá-la porque, estritamente falando, ninguém
tem o direito de respondê-la. São já de sobra os «meto-

81
dólogos da luta» que nos apontam os caminhos e os mo-
dos da contestação; de sobra a Vanguarda Ilustrada; de
sobra os «especialistas em resistência social»; de sobra as
«minorias esclarecidas» que creem saber o que se deve
fazer nesse entretanto. Acabou-se, por sorte, o tempo dos
Catecismos Revolucionários, das Sagradas Escrituras da
Rebeldia, das Estratégias Objetivamente Corretas e dos
pedantes que se afanavam por responder à pergunta leni-
nista – «Que fazer?».
Estamos sós, nesse «entretanto». E somos autónomos.
Nenhuma «luz» virá de fora...
O que decidam fazer é assunto vosso: não me permi-
tirei a infâmia de recomendar-vos nada. Já me basta ter
de me orientar nestas minhas trevas de contradições e
vislumbrar os meios da minha própria e incerta luta…

Alguns de nós pensam ser futuros professores... Que


conselho nos poderias dar?
Nenhum conselho. Ou, no máximo, o de Zaratustra:
«afastai-vos de mim e defendei-vos contra Zaratustra».
Mas gostaria de alertá-los para um perigo que vos vai
atacar de surpresa: o perigo do autoengano, da autojus-
tificação, da racionalização de uma prática infame e de
um emprego mercenário. Já deveriam saber que vão ser
contratados pelo poder, pelo Capital e pelo Estado, para
levar a cabo os quotidianos e terroríficos «trabalhos su-
jos» sobre a subjetividade dos jovens; já deviam saber

82
que, como pequenos Faustos, vão vender a vossa alma ao
Diabo. Redimir-vos-ia de algum modo que, nesse mo-
mento, manchadas as mãos e alugada a consciência, pelo
menos não se enganassem a vocês mesmos...
Oxalá pudessem não existir. Oxalá pudéssemos não
existir. Temo que, com o passar do tempo, a culpabilidade
e o patetismo vos farão exclamar aquilo que também eu
repito e digo a mim mesmo: «vivo na cratera de um vul-
cão e, de vez em quando, ameaço desaparecer»...

É possível uma prática «anarquista» da docência?


Em que sentido Heliogábalo, o «anarquista coroado»
de Antonin Artaud, se constituiu, como reconheces, no
inspirador de O Irresponsável, o teu protótipo de anti-
professor em exercício?
A prática antipedagógica, antiprofessoral, de O Ir-
responsável tomou certamente em parte Heliogábalo, o
«anarquista coroado» de Antonin Artaud, como modelo...
Tal como Heliogábalo é um «anti-imperador» que exer-
ce, aparentemente, de imperador; o Irresponsável é um
«antiprofessor» que, segundo dizem, se dedica ao ensino.
Tal como o primeiro questiona toda a ordem político-
-social, e moral, do Império Romano; o segundo atenta
contra a Ordem da Escola e a ‘ética’ educativa. Tal como
Heliogábalo não tem «nada» que fazer pelos seus súbdi-
tos e, no fundo, só os contempla como ‘público’; o Irres-
ponsável «nada» faz pelos seus alunos, em quem amiúde

83
não descobre mais do que uns ‘espectadores’. Tal como o
primeiro introduz o teatro e a poesia no trono de Roma
(contra o trono de Roma); o segundo concebe a sua práti-
ca corrosiva como exercício da criação artística. Tal como
se pode dizer do primeiro que estava «louco», poder-se-á
considerar que o segundo foi constituído pela esquizo-
frenia. Tal como Heliogábalo, segundo Artaud, não foi
«um louco», mas um «libertário», e um «libertário» des-
respeitoso, em luta contra o Sistema desde a sua própria
cúpula; o Irresponsável, na minha opinião, é muito mais
do que «um esquizofrénico», e o seu trabalho responde
exatamente ao que se deveria esperar de uma prática «an-
tiautoritária» da docência, voltada contra a própria do-
cência. E tal como o primeiro «se fez assassinar» para pôr
um ponto final na sua terrível odisseia interior, o segundo
pretende «fazer-se expulsar» para que o aparelho nunca
encontre a forma de ‘integrá-lo’.
«Na primeira reunião de alguma solenidade (conta-
-nos Artaud sobre Heliogábalo), pergunta brutalmen-
te aos grandes do Estado, aos nobres, aos senadores na
disponibilidade, aos legisladores de toda a ordem, se não
tinham eles também conhecido a pederastia durante a
juventude, se não tinham praticado a sodomia, o vam-
pirismo, o sucubato, a fornicação com animais, e faz
essas preguntas, diz Lamprídio, nos termos mais crus.
Vê-se daqui Heliogábalo fardado, atravessando, com os
seus meninos e mulheres, por entre os velhos barbaças,

84
dando-lhes pancadinhas na barriga e perguntando se não
tinham também levado no cu quando jovens; estes, lívi-
dos de vergonha, baixam a cabeça sob o ultraje, comem
aquela humilhação.» O Irresponsável apoia a sua mão no
ombro dos seus ‘colegas’, pisca-lhes um olho e pergunta-
-lhes: «E então? Quantos chumbaram desta vez? Quase
toda a turma? Assim sim, toda a turma reprovada! É as-
sim mesmo!» Heliogábalo veste-se de prostituta e vende-
-se por quarenta centavos nas portas das igrejas cristãs e
dos templos pagãos. Atenta assim contra a própria figura
do imperador, contra a ‘dignidade’ do trono – e contra a
religião, contra a moral... Um «antiprofessor» desfrutou
em segredo no dia em que os seus alunos, pondo-lhe uma
navalha de barbear na garganta, lhe sugeriram que essa
era a maneira correta de ‘acordar’ as classificações. Como
deu a todos «excelente» (e havia ‘razões’ para isso: a na-
valha estava muito afiada), os rapazes, apiedando-se dele,
limitaram-se a barbear-lhe o bigode e a pêra. Dando lugar
a isto, tornando-o possível conscientemente, o antiprofes-
sor atenta contra a própria figura do Educador e contra a
suposta ‘dignidade’ da sua função – e, ao mesmo tempo,
atenta contra o exame, contra a classificação, contra a
‘ética’ escolar... Pouco tempo depois de chegar a Roma,
Heliogábalo expulsa os homens do senado e substitui-os
por mulheres. Nomeia um bailarino como chefe da sua
guarda pretoriana; e coloca em postos de alta respon-
sabilidade um arrieiro, um atleta, um cozinheiro e um

85
serralheiro. Escolhe, por fim, os seus ministros pela enor-
midade dos seus membros... Heliogábalo, diz Artaud,
«espreme a ordem estabelecida, as ideias, as noções co-
muns das coisas. Pratica a anarquia minuciosa e perigosa,
pois expõe-se aos olhos de todos. E isso é de um anarquis-
ta corajoso.» Um ‘irresponsável’, certa vez, apanhou um
vagabundo bêbado na autoestrada e, dando-lhe cinco mil
pesetas, nomeou-o seu substituto para as aulas de «éti-
ca» do dia. Fez o mesmo mais tarde com uma estranha
dona de casa, adúltera e esquizofrénica; e com um jovem
‘inexemplar’, ex-presidiário, ex-desertor, delinquente em
ativo... Heliogábalo tinha projetado – conta o historiador
Lamprídio – «estabelecer em cada cidade, como prefei-
tos, pessoas que fazem profissão da corrupção da juven-
tude. Roma teria quatorze; se não fosse eliminado, teria
levado avante tal projeto, disposto como era a cumular
de honrarias o que há de mais abjeto e os homens das
mais baixas profissões.» O antiprofessor detesta os «de-
legados de turma» sérios e razoáveis; prefere instituir, no
seu lugar, «comités de fuga» enlouquecedores, destempe-
rados. De entre os alunos, indignam-lhe os ‘aplicados’, os
‘estudiosos’, os ‘responsáveis’; e tende a simpatizar com os
‘inassimiláveis’ e com os ‘perturbadores’. Como assinala
Artaud, «é fácil atribuir à puberdade e à demência tudo o
que nele é rebaixamento sistemático da ordem e corres-
ponde a um desejo concertado de desmoralização. Vejo
em Heliogábalo não um doido, mas um insurrecto. A sua

86
insurreição é sistemática e sagaz e dirigi-a em primeiro
lugar contra si próprio.» Aprofundando nesta empresa de
desorganização moral, de degradação dos valores, o an-
ti-imperador faz coisas difíceis de ‘interpretar’, de ‘assu-
mir’, de apreender ‘racionalmente’: castra uma boa parte
dos parasitas da Corte, nobres, conselheiros, potentados,
etc., e lança os seus membros, junto com grãos de trigo,
em pequenos sacos, das torres do seu Palácio, no dia das
festas ao deus Pítio. «Alimenta um povo castrado», in-
terpreta Artaud... Também os antiprofessores, na sua luta
contra a moral educativa, na sua prática corrosiva, fazem
coisas difíceis de ‘justificar’, como subtrair as estúpidas
pastas dos seus ‘colegas’, atormentar meditadamente os
‘diretores’ dos Centros, entupir os canos dos lavabos, pe-
gar fogo às Atas de Avaliação ou sabotar as reuniões do
Conselho Escolar... Contudo, não costumam errar o alvo:
não costumam ‘atingir’ os alunos. Pode-se dizer deles o
que Artaud disse a propósito de Heliogábalo: «E o povo
nunca é atingido, nunca é ferido pela sua tirania sangui-
nária que nunca erra o alvo. Os que ele condena às galeras,
castra, faz açoitar, são recrutados entre os aristocratas, os
nobres, os pederastas do séquito privado, os parasitas
do palácio.» Heliogábalo, por fim, introduz o teatro e a
poesia livres no trono de Roma: «O seu amor do teatro
e da poesia em liberdade manifesta-se na ocasião do seu
primeiro casamento. Faz colocar junto dele, durante todo
o rito romano, uma dezena de energúmenos bêbedos que

87
gritam sem cessar: “Fura, enterra”, com grande escândalo
das gazetas da época, que são omissas quanto às reações
da noiva.» O Irresponsável, por sua vez, quando toma a
palavra na Instituição não o faz para ‘expor’, para ‘ilustrar’,
para ‘formar’; mas, dentro das coordenadas do Teatro da
Crueldade, para ‘criar’, ‘estremecer’, convidar ao riso ou ao
choro, configurar uma obra artística que deveria conser-
var o poder de ferir...
A partir de uma perspetiva de «negação do Sistema»,
de rejeição do Capitalismo, todos os professores francos
consigo mesmo durante a sua insubmissão, insubornável,
hão de reconhecer-se na posição de anarquistas coroados.
A figura do Educador, do Ensinante, do Professor, é, em si
mesma, uma figura de poder, uma figura autoritária. Por
isso, um professor genuinamente «crítico», capaz de uma
clara «autoperceção», deve negar-se, em primeiro lugar,
a si mesmo como aborto do poder e fonte da autoridade;
deve «autodestruir-se» como Heliogábalo, exercer con-
tra o que representa, dessacralizar-se, construir-se como
antiprofessor ‘magistral’, contra-educador inadmissível,
ridículo. Em certo sentido, há de converter-se em «víti-
ma» dos seus alunos. Caso contrário, adira à ideologia
que adira, continuará a funcionar como propagandista
psíquico do Sistema, agente dominado da Dominação,
modelo de autoridade e de hierarquia, tanto na aula como
no bar, não menos na rua do que no Centro...
O Irresponsável sabe tudo isso, aspirando a que al-

88
gum dia se possa dizer dele o que Antonin Artaud sus-
tentou a propósito do seu maravilhoso, e quiçá sonhado,
«anti-imperador»: «Prossegue sistematicamente, já o
disse, a perversão e a destruição de todos os valores e de
toda a lei […]. E é então que o veem empalidecer, o veem
tremer na ânsia de um lampejo, de uma aspereza a que
possa agarrar-se no meio da queda pavorosa de tudo. E é
então que se manifesta uma espécie de anarquia superior
onde a sua profunda inquietação pega fogo; e vai de pedra
em pedra, de luz em luz, de forma em forma e de fogo em
fogo como se fosse de alma em alma, numa misteriosa
odisseia interior que depois dele ninguém retomou.»

89
PEDAGOGIA LIBERTÁRIA?

Pode a pedagogia libertária fornecer os fundamentos


teórico-práticos de uma Nova Escola desejável?
Chegados a este ponto, vejo-me obrigado a mostrar a
minha cara mais antipática... Parece-me que a Nova Esco-
la «oficial» do amanhã, a Escola Reformada da «pós-de-
mocracia», se vai nutrir precisamente dos fundamentos
e das técnicas das escolas libertárias contemporâneas
– simulacro de ‘liberdade’ nas aulas, ‘participação’ dos
alunos na administração dos Centros e na dinâmica das
classes, invisibilização do poder professoral, etc. E que,
desse modo subtil, brando, alunista, se capacitará para sa-
tisfazer «melhor» os requerimentos político-ideológicos e
psicossociológicos do Sistema. E, com esta ideia, que con-
travém os pressupostos e as práticas das chamadas «Es-
colas Livres» (tipo ‘Paideia’), não me situo, de nenhum
modo, fora do movimento anarquista – em todo o caso,
distancio-me de uma fração do mesmo, ‘construtivista’
no domínio pedagógico.

91
Atualmente, ante o problema da Escola, as sensibili-
dades acratas bifurcam-se em duas grandes orientações:
para uns, trata-se de «inventar» uma Nova Escola, radi-
calmente distinta da «oficial», aproveitando o legado de
Ferrer Guardia, dos pedagogos libertários de Hambur-
go, de experiências como a de ‘Summerhill’, etc. Esta é a
opção construtivista... Para outros, pelo contrário, o mal
radica na própria ‘forma’, na Escola em si, no facto da es-
colarização «obrigatória» (e no preconceito subjacente de
que «para educar é necessário encerrar»). A partir desta
perspetiva, toda a ‘reforma’ da Escola e toda a ‘invenção’
de uma Nova Escola (por mais «livre» que diga ser) serve
os interesses do Estado e do Capital, e só propende para
uma otimização do rendimento político e ideológico da
Instituição. Esta é a opção desescolarizadora, avalizada
por autores como Illich e Reimer, entre outros. Homens
e mulheres anarquistas quebram hoje a cabeça procuran-
do conceber uma Escola não-opressiva, não-autoritária,
não-domesticadora; e, ao mesmo tempo, outros homens
e mulheres não menos anarquistas lutam por arrancar os
seus filhos das garras da Escola e provê-los da educação
que necessitam sem transigir por isso com o «encerro»
– educação pela família, educação na comuna, coletivi-
dade educadora, autoeducação,... Durante estes últimos
meses tive ocasião de conversar com partidários de uma
e de outra corrente: companheiros libertários envolvidos
em experiências pedagógicas antiautoritárias («Escolas
Livres», «Escolas Convivenciais», etc.); e companheiros
anarquistas empenhados em tornar viável, para os seus
filhos em primeiro lugar, a educação sem Escola...
Eu trabalho na linha de uma crítica radical da Escola, de
todo tipo de Escola; e não posso simpatizar por isso com
os afãs «construtivistas». Gosto de me apresentar como
um «antiprofessor», um «desescolarizador». Aponto para
um novo exercício político da corrosão do Ensino, para a
culminação, como dizia anteriormente, de um ‘percurso’
subversivo, perturbador, empenhado na conquista da Ex-
pulsão. E sou partidário de um fomento consciente, sis-
temático, infatigável, dos distintos meios e instrumentos
da autoeducação da juventude – formas de transmissão
da cultura, de socialização do saber, independentes da
Escola, desligadas do Estado, como os ateneus, as distri-
buidoras, os coletivos, as bibliotecas alternativas, as re-
vistas e as editoras não-capitalistas, etc. Há, à margem da
Escola, um vasto campo de recursos para a autoeducação
da juventude, da população, que garante hoje em dia a
possibilidade de uma transmissão não-vigiada da cultura.
Procuro implicar-me nesse processo, apoiar na medida
das minhas possibilidades o nascimento e a consolidação
dessas entidades culturais hostis ao aparelho de Estado,
e favorecer uma expansão dos meios e das ocasiões para
a aprendizagem informal, para a divulgação não institu-
cional dos conhecimentos. Não tenho ilusões: não espero
milagres desta pequena retícula cultural não-escolar. Mas,

93
na minha opinião, nada há a esperar das experiências
escolares alternativas, nada desde o ponto de vista da
‘resistência’ anticapitalista... O meu coração diz-me que
«o libertário» na Escola não é ‘reformá-la’ e ‘preservá-la’,
mas ‘convulsioná-la’ e ‘abandoná-la’.

Qual seria para ti a Escola ideal? Existiria?


Uma escola sem mestres, sem professores, sem educa-
dores. Uma escola sem alunos...
A «maldade» da escola não reside, por assim dizer, na
arquitetura, mas nas posições de subjetividade que pres-
creve, nas práticas sociais que a recorrem. Onde há um
«professor», e um «aluno» que dele se aproxima, na aula
ou no bar, no corredor ou na rua, a «aula» é retomada,
faz-se «escola». O professor é uma escola ambulante, es-
teja onde estiver, de dia e de noite, às segundas como aos
domingos...
Sem professores e sem alunos (portanto, sem horários,
disciplinas, exames...), a estrutura física da escola recu-
pera a sua inocência: passa a ser um utensílio, uma ferra-
menta, um meio para a autoeducação da juventude, um
depósito de materiais culturais...
O terrível é que toleramos a existência de «educado-
res». O meu ideal consiste num extermínio quase apoca-
líptico de toda essa praga de mestres, professores, ensi-
nantes, pedagogos, educadores e outros subjugadores da
juventude.

94
Durante a II República, em todas as aldeias da pro-
víncia de Sevilha em que a CNT se tinha enraizado,
existia, promovida por esta organização, uma Escola.
Segundo o relato dos nossos pais, nela eram os pró-
prios trabalhadores que abordavam e expunham, de
forma rotativa e em função da época, os temas que des-
pertavam o seu interesse. Sem professores profissionais
e abolindo o dualismo professor/aluno, estas «escolas»
(que, devido à sua precariedade, hoje não se considera-
riam dignas de tal nome) apareciam como autênticos
refúgios de transmissão cultural não regulada pelo Es-
tado, verdadeiras ferramentas para a autoeducação dos
trabalhadores... Que opinião tens sobre este modelo,
tão distante das práticas ‘docentes’ contemporâneas?
Não conheço o assunto o suficiente para poder respon-
der à tua pergunta. Direi apenas uma coisa: não tenho
nada que objetar às experiências ‘educativas’ que se en-
raízam de forma deliberada no informal, que não se ins-
titucionalizam, que não se olham ao «espelho» da Escola
(com a sua divisão de funções; os seus professores e os
seus alunos, separados e delimitados; o seu controlo da
assiduidade; os seus programas prescritos; os seus ‘exa-
mes’, de um tipo ou de outro tipo; o seu afã doutrinador,
a sua obsessão proselitista; a sua exigência de ‘encerra-
mento’, de ‘clausura’, de quatro paredes insuperáveis; os
seus ‘regulamentos de ordem interna’; etc.). Na medida
em que a experiência educativa de que me falas não de-

95
calcasse o modelo da Escola, não se desvelasse por obter
o beneplácito do Estado, e constituísse em si mesma um
«fator de desescolarização», conta com toda a minha sim-
patia, com a minha adesão. Mas nunca podemos excluir a
outra possibilidade: que, mesmo ao abrigo de uma ideo-
logia anticapitalista, e num contexto ‘revolucionário’ ou
‘pós-revolucionário’, se reinstitucionalize a velha Escola
de sempre, a Escola burguesa, a Escola do Capitalismo,
como ocorreu na URSS com as «colónias educativas» de
Makarenko...

Para finalizar, que opinião tens sobre os esforços de


determinados pais, professores e pais/professores que,
nas margens do sistema, tentam desenvolver modelos
alternativos de educação de inspiração libertária?
Eu faço a crítica do Reformismo Pedagógico, e as ex-
periências a que te referes (as chamadas Escolas Livres,
tipo «Paideia») não constituem, na minha opinião, mais
do que uma formulação, uma modalidade, desse ‘refor-
mismo’. Como antiprofessor, como antipedagogo, como
desescolarizador, não me posso solidarizar com os mo-
delos «alternativos» de que me falas, que ainda tendem a
legitimar as figuras – para mim odiosas – do Professor, da
Escola, do Saber Pedagógico. A mim interessa-me a ‘des-
truição’ da Escola, não a ‘invenção’ de uma Escola Nova
que, por muito «livre» que se apresente, coincide quase
exatamente, nos seus traços de fundo, com a Escola de

96
sempre – as diferenças são só ideológicas, ou retóricas.
Tudo o que eu tenho sustentado contra o Reformismo
Pedagógico é aplicável, por exemplo, ao caso da «Pai-
deia», na qual não consigo ver mais do que um pouco
de cristianismo (não assumido, é claro) e muito de esta-
linismo. Também há anarquismo na «Paideia»? Eu creio
que não. Hoje em dia, represento a «Paideia» como uma
escola confessional privada, uma organização paraestatal
que não constitui o menor perigo para o Sistema. A lei-
tura dos Manifestos de Verão dessa Instituição levou-me a
estas conclusões…

97
IMPLICAÇÕES

Amiúde alega-se que a resistência anticapitalista se


deve «apoderar» da Linguagem. Mas de que forma? Ela-
borando uma própria? Ou arrebatando-a, de um modo
ou de outro, não consigo ver como, aos seus possuidores?
Neste assunto sou bastante mais pessimista. Parece-me
que há muito tempo que a Linguagem se apoderou de nós,
ao ponto de hoje já não sermos mais do que as palavras
que nos falam. Somos falados pela Linguagem; e o pior
de tudo é que essa linguagem encarnada em nós é uma
linguagem discriminadora e segregadora, que arrasta a
mácula da dominação, do sexismo, da xenofobia, do ex-
termínio da diferença,... Nietzsche foi um dos primeiros
a adverti-lo, com uma observação certeira, fulminante:
«temo que não vamos desembaraçar-nos de Deus, porque
continuamos a acreditar na Gramática.» Também lhe
pertence uma frase inequívoca, que assinala a origem de
todos estes males da linguagem: «Este direito de dar nomes
vai tão longe que se pode considerar a própria origem da

99
linguagem como um ato de autoridade que emana dos
que dominam.» De alguma forma, com estas duas refe-
rências do «velho martelo filosófico», já está quase tudo
dito acerca da perversidade da Linguagem: tendo a sua
origem na desigualdade e na dominação de uns homens
por outros, na violência e no exercício do poder, é já todo
o seu corpo o que se encontra infectado, corrompido, e
não só a semântica. A responsabilidade da Linguagem
na reprodução da dominação não deriva só do «signifi-
cado» das palavras que proferimos quotidianamente, das
suas conotações ‘belicistas’ ou ‘racistas’, das implicações
‘sexistas’ deste ou daquele termo; é também – e sobretudo
– um assunto de ordem sintática, de ordem gramatical.
Desde a sua própria raiz, a Linguagem está investida de
odiosos efeitos de poder e de segregação. O seu mal é tão
profundo que já não admite reforma. Por acréscimo, as
condições sociais e políticas em que a nossa existência
contemporânea se desenvolve asseguram que toda a outra
linguagem que possamos inventar manifestará semelhan-
tes deficiências, a mesma malevolência substancial. Não
está no nosso poder elaborar, de um dia para o outro, uma
linguagem livre de culpa. A nossa sociedade está doente,
o nosso coração apodrecido, das relações de poder e de
exploração já não escapa nem o mais esquecido dos nos-
sos órgãos,... Qualquer linguagem que sejamos capazes
de conceber ver-se-á afetada (constituída) por este traço
da barbárie e da exploração de que não nos conseguimos

100
livrar. Mais ainda: será uma arma, um instrumento, dessa
barbárie e dessa exploração...
Que fazer, então? Prefiro que cada qual responda a
esta questão à sua maneira. Uns dedicar-se-ão a ‘marcar’
a linguagem com signos que constantemente delatem a
iniquidade das suas intenções e a baixeza das suas origens
(corrigirão os termos, invariavelmente ‘masculinos’, ou
complementá-los-ão com os correspondentes femininos;
apagarão determinados vocábulos do seu léxico e substi-
tui-los-ão por ‘outros’ menos nocivos; etc.). E essa é uma
iniciativa louvável, com a qual é difícil não simpatizar.
Mas é insuficiente... Outros procurarão ‘destruir’ nas suas
obras esta Linguagem suja que nos asfixia, desmembran-
do-a, invertendo-a, pervertendo-a,... E este é um «gesto»
que não carece de interesse, sem dúvida saudável. Mas só
um gesto, um meter os dedos no olho da Linguagem, ação
tão atrevida como insuficiente. Alguns nada farão, e con-
tinuarão a utilizar resignadamente uma Linguagem con-
tra a qual, no fim de contas, acumulam as mesmas acusa-
ções que contra o Trabalho, a Família ou a Casa. E quem
lhes vai atirar a primeira pedra da desaprovação, se todos
baixamos quotidianamente a cabeça ante algo ou alguém
e lamentavelmente sabemos de várias ‘resignações’? Eu
optei por percorrer a Linguagem armado de intenções
insubmissas, dessangrando com metáforas e enfrentando
sem descanso as misérias da sua condição servil. E este
meu proceder é também insuficiente, é nalguma medida

101
resignado, é provavelmente pouco mais do que um gesto...
Mas ‘creio’ nesta luta contra a linguagem e na linguagem,
com a linguagem e pela linguagem; ‘creio’ ainda – não sei
até quando – na necessidade de uma escrita sublevada...

Porque há que ser irresponsável?


A noção de «responsabilidade» desprende-se de um
conceito metafísico de Homem.
Exige, em primeiro lugar, o postulado da unicida-
de da consciência, da identidade e da inalterabilidade
substancial do sujeito. Pressupõe, também, que ao indi-
víduo corresponde, de forma suficiente, uma liberdade
real de realizar uma autonomia concreta no cenário
histórico. Porém, a partir do deslocamento epistemo-
lógico operado pelas teses de Marx, Freud e Nietzsche,
como referido por Foucault, essa conceção logocêntrica
viu-se definitivamente desacreditada. Como responder
pelas minhas ações se desconheço quase todos os ho-
mens que sou (essa pluralidade contraditória que me
constitui), se a minha subjetividade é um conflito e um
devir, um descentramento e uma dispersão radicais,
uma dança errática de dilaceramentos e cisões? Como
responder se aparecemos como se fossemos simples
marionetes das circunstâncias sociais, produtos do
historicamente dado, se somos «pensados», «falados» e
«movidos» pela sombria organização do real, desenho
na areia da praia que a primeira onda apaga, folhagem

102
à mercê de um qualquer vento?
Além disso, o conceito de «responsabilidade», instituí-
do sobre essa mentira transcendental, tem sido utilizado
durante séculos pela Moral dominante, alojando-se no
princípio da realidade capitalista, no «senso comum» da
classe política, na «ética verosímil», como diria Barthes,
dos possuidores e das populações integradas. Pela sua
mão, quis-se educar-nos na obediência axiológica e na
subordinação psíquica, na aceitação de um código onto-
-teo-teleológico recrutado para salvaguardar o existente;
com a sua ajuda, consegui-se adestrar-nos na repugnante
disciplina da autoconstrição e da autovigilância, numa
indefinida «prestação de contas» ante um espelho interior
em que se refletem sem descanso as mais odiosas figuras
da polícia social anónima (Horkheimer).
Longe desse domínio de mentiras pararreligiosas e arti-
manhas repressivas, lançando laços à criação artística e ao
jogo que desmitifica, à poesia da destruição, em suma, a
«irresponsabilidade» consciente de si mesma, orgulhosa de
si, desata, liberta, desagrega, complica, estorva, assusta, foge
e ajuda a escapar. Só na «irresponsabilidade» habita hoje,
como num atentado contra toda a ordem social, o perigo e a
dissidência de fundo, a insubmissão abissal, o «bom diabo»
da rebeldia insubornável. Lamento não poder aprofundar,
pela natureza desta entrevista, um assunto tão importante...
Acrescentaria, não obstante, que aspiro a poder declarar-me
algum dia «felizmente irresponsável de todos os meus atos».

103
Neste mundo, há capitalismo ou imbecilismo?
Creio que, no âmbito do pensamento, sim, está a ocor-
rer um processo de imbecilização, um tipo de idiotiza-
ção progressiva que encontra as suas melhores vítimas
entre os intelectuais, os funcionários, os educadores, os
políticos, os psicólogos, os sociólogos, os psiquiatras,...
Basta analisar a produção teórica e filosófica do chamado
Pensamento Único, do liberalismo-ambiente, para nos
darmos conta de que, na melhor das hipóteses, se trata
de «pequenos debates entre imbecis». Estou a referir-me,
por exemplo, às obras de Giddens, Gray, Rorty, Taylor,
Habermas, Walzer, Rawls, Gellner, MacIntyre, Sandel,
Michelman e de tantos outros na esfera sociológica e
politológica. Estou a referir-me, em concreto, à «nata»
da reflexão ocidental, uma publicística surpreendente e
definitivamente idiota...
A decadência do Ocidente, a lenta mas indissimulável
crise terminal do Capitalismo, os estertores da nossa Cul-
tura, estão a ser correspondidos, entre os vapores irrespi-
ráveis do conformismo e do ceticismo, por um resplendor
filosófico minimalista, esquelético, uma insuperável ane-
mia, um esgotamento insondável e uma desvalorização
absoluta na produção intelectual – o que, no El enigma
de la docilidad, denominei como Pensamento Zero ou
«pensamento ausente», a reflexão da imbecilidade que se
desconhece a si mesma...

104
Os alunos padecem dos efeitos do autoritarismo es-
colar, da família opressiva, do trabalho alienante, etc., e
nem sempre «reagem» a isso. Dever-se-á, talvez, a uma
autocoerção, como às vezes sugeres nos teus textos?
Creio que, em grande medida, sim. Mas esclarecendo,
desde logo, que se trata de uma «autocoerção» induzida,
de uma «autorrepressão» trabalhada, estudada, promovi-
da desde fora. Nietzsche disse-o: o estudante é uma vítima
culpável. Existem, hoje em dia, a autocoação e a coação
externa, a autodomesticação e as estratégias ‘exteriores’
de sujeição, alimentando-se sempre umas das outras,
sustentando-se mutuamente: consentimos o horror do
‘de fora’ devido à força das mordaças interiores, das au-
tovigilâncias pessoais, e, ao mesmo tempo, essa iniquida-
de do real, essa infâmia do existente, surte ‘argumentos’,
‘razões’ (e expedientes, e procedimentos, e tecnologias),
sem cessar, para que nos apliquemos na docilidade e na
autocoerção... Mas, a longo prazo, estimo que, de facto, o
decisivo vai ser a solidez do aparelho de autorrepressão, a
solvibilidade dos dispositivos de autocontrolo. Na minha
opinião, encontramo-nos no amanhecer da pós-democra-
cia, uma formação político-social que terá feito de cada
homem um policía de si mesmo e que, como complemen-
to, reduzirá espetacularmente todo o aparelho de repres-
são física estatal (polícias, agentes, etc.). Avançamos para
a sub-repção – invisibilização, ocultamento – de todas as
tecnologias de poder de domínio, com uma aposta deci-

105
dida pelos mecanismos de controlo psíquico (simbólico)
e um paulatino descartamento do recurso à força, à vio-
lência explícita.
O «polícia de si mesmo» aparece já por algumas das
nossas aulas (nas Escolas Alternativas, por exemplo), sob
a forma desse estudante ‘participativo’, ‘ativo’, que inter-
vém na gestão dos Centros, na confeção dos programas,
na dinâmica das classes, etc., e que, tentando a autoclas-
sificação, estará a um passo de se «chumbar a si mesmo»
sem remorsos... Com estudantes assim, já quase não fa-
zem falta os professores. Com cidadãos assim, para que
se quererão os polícias?
Um dos traços mais percetíveis das sociedades demo-
cráticas contemporâneas reside, precisamente, na mis-
teriosa e inquietante «docilidade» das populações, uma
‘ausência de resistência’ estulta e quase suicida, uma con-
formidade com o dado que nos converte, como anotou
E. M. Cioran, em «aspirantes sorrateiros à dignidade de
monstros», cúmplices e partícipes do horror do planeta,
consentidores e beneficiários de toda a desigualdade e de
toda a violência que o nosso sistema semeia diariamente
sobre a Terra, responsáveis morais de quantos Auschwitzs
colheremos ao longo dos anos. Esta docilidade misteriosa
e potencialmente homicida, que nos erige em monstros,
vive irmanada, por assim dizer, com a «autocoerção» que
assinalavas na tua pergunta…

106
Tens colocado, claramente, os professores como
alvo das tuas críticas, se não mesmo do teu desprezo...
Mas os ensinantes encontram-se também na posição
de «trabalhadores», e podem ser concebidos como
vítimas, como objeto da exploração. Não devemos es-
quecer que desempenham o seu trabalho em condições
muito difíceis, um pouco entre ‘a espada’ das autorida-
des educativas e das normativas vigentes e ‘a parede’ de
alguns alunos amiúde hostis. Exercendo sempre entre
a espada e a parede, sob a determinação de estruturas
obsoletas, etc., não ignoras que os educadores arriscam
com frequência o seu equilíbrio psíquico, a sua saúde
mental, nas aulas... E tudo isso por um salário relati-
vamente ‘modesto’... Estas circunstâncias suscitam em
ti alguma reflexão? Que opinião tens a respeito disso?
Não estou seguro se entendi muito bem o sentido da
tua pergunta... O professor é um «trabalhador» como
também o são os polícias, os militares profissionais, os
guardas prisionais, etc. Enquanto «trabalhador», pode ser
concebido, de facto, como uma vítima, com um emprego
‘desagradável’, com um salário que sempre lhe parecerá
‘modesto’, com determinados ‘inconvenientes’ laborais,
etc. E pode «queixar-se» por isso, como também se quei-
xam os «polícias antimotim», que queriam que o seu
uniforme nunca fosse salpicado de sangue, receber mais,
ser aplaudidos a todo o momento pela população, que
ninguém lhes atirasse tijolos à cabeça, etc. Expõe-se, ob-

107
viamente, a um certo «desgaste psíquico», como o «des-
gaste emocional», o «sofrimento nervoso», dos militares
que assumem de antemão, como ‘efeito colateral’ das suas
campanhas pacificadoras, uma percentagem variável de
«vítimas civis»; ou dos ‘agentes da ordem’ que por vezes
têm de enfrentar homens e mulheres humilhados, que
protestam com a razão do seu lado, e que – com grande
‘dor’, com um enorme ‘pesar’ – têm de calar à cacetada...
O mínimo que o professor, como o polícia antimotim,
o militar ou o agente da ordem, pode fazer é sofrer pela
ignomínia do seu ofício. E tem direito a ‘queixar-se’, a
protestar pelas ‘misérias’ do seu emprego; mas a sua
revolta será sempre a dos «privilegiados». Mais ainda:
uma «revolta dos opressores». Enquanto ‘trabalhador’, o
professor é uma vítima (dizia Apple que o ‘educador’ era
sem remédio «a primeira vítima da Escola», pois na Ins-
tituição acabava por se tornar idiota, ‘imbecilizava-se’);
mas, como anotaria Nietzsche, uma vítima culpável, um
inocente tornado culpado.
Depois de me ter dedicado oito anos à docência direta,
padecendo a Escola e fazendo-a padecer, não me estra-
nha, de todo, que alguns professores se tornem literal-
mente «loucos», que muitos se afundem na depressão
ou na neurose. É lógico: não é tão fácil fazer o mal cons-
cientemente, não é tão fácil viver alegremente na mentira.
A dose de autoengano que um professor necessita cada
dia que passa para continuar a exercer com a consciên-

108
cia tranquila é imensa, excessiva, e tem também os seus
próprios ‘efeitos secundários’. A mim o que me estranha,
e quase me aterroriza, é que nem todos percam a razão
na aula; o que me horroriza e quase me deprime é que há
professores (e polícias, e militares, e guardas prisionais)
«felizes», que gostam do seu emprego, clinicamente sãos.
Isso é o que não entendo. Um professor ‘moderno’, com a
consciência em paz, o sorriso sempre fresco nos lábios e o
coração em equilíbrio, amante do seu oficio, feliz, ‘realiza-
do’, é para mim uma imagem de pesadelo. Um tipo assim
não só encarna a máxima imbecilidade concebível neste
mundo; há de ser, também, um homúnculo desalmado...

Um «professor» é um homem que também não se


pôde tornar imune aos efeitos, sobre a sua subjetivi-
dade, do aparelho educativo; que foi inevitavelmente
‘modelado’ pela Escola e pela Universidade; que deixou
de ser uma coisa e se converteu noutra depois de ‘pade-
cer’ do processo de «formação» (ou de «deformação»)
a que chamamos curso e que culmina com a conquista
de um título. Quando um desses homens, tendo termi-
nado o curso e com o título debaixo do braço, erigido
a «profissional» da educação, começa a dar aulas, a
manifestar o que o Sistema fez dele, fez com ele, o que
é que encontramos? Diante de que tipo de homem, de
que produto da nossa sociedade e das nossas institui-
ções, se sentam os jovens dia após dia nas escolas?

109
Estudar nas nossas Escolas, nas nossas Secundárias,
nas nossas Universidades, é perigoso, nocivo para a saúde
intelectual. O aparelho cultural da sociedade burguesa foi
concebido, entre outras coisas, para aniquilar o desejo de
aprender, para extirpar a curiosidade intelectual e sujeitar
de maneira duradoura o carácter dos jovens. Quem se viu
«exposto» a esse aparelho durante mais anos (doutores,
funcionários, etc.) e quem já não pode viver de costas
para ele (graduados, licenciados,...), apresenta, no seu ca-
rácter, na sua conduta e no seu raciocínio, ‘regularidades’,
‘similitudes’ e ‘coincidências’ espantosas, horripilantes.
Uma inteligência massacrada, uma sensibilidade infla-
mada, uma criatividade medíocre, uma capacidade crí-
tica nula: estas são as características do licenciado típico,
desde logo disposto a candidatar-se a um Concurso que
o converta em «professor». São também as características
dos nossos ‘cientistas’, dos nossos ‘especialistas’, dos nos-
sos ‘intelectuais’ e, em geral, de todos aqueles que consu-
miram boa parte das suas vidas nesse cemitério do espírito
que é a Universidade. Estes homens, assim ‘modelados’
pelo aparelho cultural da nossa sociedade, já só servem
para obedecer. E para mandar. Carne para docência, por-
tanto.
Cioran advertiu-o: «Deveremos vestir-nos de luto pelo
homem no dia em que desapareça o último iletrado». E
Bataille foi ainda mais rotundo: «A Ciência é feita por
homens cujo desejo de aprender morreu». «Ler (a es-

110
sência da ‘preparação universitária’ em Humanidades)
não só corrompe o escrever; degrada também o pensar»,
escreveu Nietzsche muito antes... Recordo, por fim, que
há alguns anos, num Congresso Mundial de Intelectuais,
celebrado – parece-me – em Granada, um estudioso in-
glês pediu a palavra e originou um considerável alvoroço.
Sustentou que todos os que ali se encontravam congre-
gados, ele incluído, eram uns «impostores», uns «falsos
intelectuais», homens adestrados na técnica de ‘repetir’ e
de ‘não pensar’. Indicou, além do mais, que os verdadei-
ros intelectuais nunca acudiriam a um Congresso como
aquele; e que haveria que procurá-los nos campos, nas
fábricas, nos recantos das nossas cidades, nas prisões, em
qualquer lugar menos na Universidade e nas Secundárias.
Estou de acordo... A Universidade, como a Escola, é o lu-
gar do «professor», degradação tragicómica do ‘intelec-
tual’, homem que nada tem que ver com a Cultura. Esta é
a minha opinião.

Na tua perspetiva, toda a atividade pedagógica é po-


licialesca, essencialmente nociva. Mas, não se poderia
dizer o mesmo de muitas outras profissões, como a de
médico, que nos faz adoecer ‘artificialmente’, e exclui
e persegue todas as vias «alternativas» de proteção e
restabelecimento da saúde; ou a de engenheiro, que
sanciona a destruição do ambiente, a degradação do
meio natural ou histórico; ou a de jornalista, que dá

111
asas à mentira deliberada e procura apagar mesmo o
menor eco das verdades inquietantes, perigosas para a
ordem estabelecida; etc.? Na realidade, todas as profis-
sões definidas pelo sistema capitalista são destrutivas e
corrompem tanto quem as exerce (médicos, engenhei-
ros, jornalistas,...) como quem afetam circunstancial-
mente (pacientes, cidadãos, leitores,...). A que se deve
essa tua particular aversão ao corpo docente? Porque
te enfureces especialmente com os professores, ‘empre-
gados’ como outros, ‘culpados’ como todos, mas pro-
vavelmente nem melhores nem piores que os outros?
Move-te alguma razão pessoal?
Sou consciente de que, na sociedade capitalista, todos
os ofícios, todos os trabalhos, estão manchados de horror.
Dizia Genet que «pedir é mais digno do que trabalhar, e
roubar mais edificante do que pedir». Temo que esteja de
acordo. Dá-me vergonha ‘pedir’, mas ‘roubo’ tudo o que
posso. E procuro trabalhar o mínimo... Infelizmente, ain-
da não encontrei uma forma de «escapar» ao trabalho,
de poder viver «sem» trabalhar (e, é claro, sem explorar
ninguém, sem que outro trabalhe por mim). Conheço
um tipo que se chateia quando lhe perguntam: «em que
trabalhas?». «Eu não trabalho em nada, ouves bem? Em
nada! Sou um busca-vidas», costuma responder. Lamen-
tavelmente, eu sou um péssimo «busca-vidas»; e tenho de
trabalhar para subsistir. O meu trabalho mínimo consiste
em levar a pastar um rebanho de cabras, o que – pelo me-

112
nos – deixa a minha cabeça em paz e permite-me ler ou
escrever. Mas também esta tarefa me salpica de horror, me
torna cúmplice do sistema, me culpabiliza: trabalho para
o Mercado, no cumprimento mais ou menos respeitoso da
Lei; cevo uma casta de parasitas (intermediários, magare-
fes, carniceiros,...); extraio os meus meios de vida precisa-
mente da morte de outros animais; etc. Creio, no entanto,
que há ‘diferenças’, ‘gradações’, um ‘estar mais acima ou
mais abaixo’ na escala da Cumplicidade, da Culpabilidade,
do Afundamento no Horror. Como cabreiro, salpica-me
o horror, e sou culpado; como professor administrava o
horror, e a minha culpa não podia ser maior. Não simpa-
tizo com os médicos, os engenheiros, os jornalistas, etc.; e
prefiro mil vezes a companhia de um pastor à de um ‘em-
pregado’. Mas detesto, odeio, os funcionários – particular-
mente os funcionários da Educação. Ninguém pode, no
seio da nossa sociedade, presumir ser puro, politicamente
inocente, não servir de um modo ou de outro a Opressão;
mas, como dizia, há ‘graus’, há ‘tonalidades’ entre o «bran-
co» (ou, melhor, o «amarelo») dos busca-vidas que não
exploram nem se deixam explorar, não obedecem nem se
fazem obedecer, e o «negro» absoluto, de noite sem lua,
dos empresários, dos políticos, dos policías, dos professo-
res,... Parece-me que, como cabreiro, vivo no «cinzento».

113
À VOLTA DE O IRRESPONSÁVEL

Que papéis desempenham na tua obra as figuras do


Desertor, do Esquizofrénico, do Libertino, do Come-
diante, do Fugitivo, do Apátrida,...? Que sentido assu-
mem, real ou simbólico, ante uma sociedade como a
atual?
Todos estes «personagens» aparecem como especifica-
ções de uma figura central, na qual se fundem conflitiva-
mente: a figura do Irresponsável, o homem que já não res-
ponde pelos seus atos perante ninguém. O Irresponsável,
desde o ponto de vista da sua relação com as ideologias,
é um desertor; atendendo ao veredito ‘clínico’ da Razão
psicológica (e psiquiátrica), converte-se em esquizofréni-
co; pela sua forma de detestar a Casa, a Nação, os Lares,...
revela-se apátrida; observando a sua forma de atuar na
aula, ante os alunos (e na sala de professores, ante os seus
‘supostos’ colegas), dir-se-ia que pratica a comédia; me-
dindo-o com a régua da moral, aparece sem dúvida como
um libertino; pela sua maneira de reagir ao poder, aos mil

115
cenários dispersos da dominação, pode-se defini-lo como
«fugitivo»; etc.
O que fui construíndo dessa forma no meu livro, ao
apresentar estas ‘figuras’ que se remetem umas às outras,
que se inscrevem umas nas outras, que se reclamam e so-
brepõem, é o perfil de uma Subjetividade Rigorosamente
Insubmissa, um tanto ou quanto «inumana» devido ao
seu carácter absoluto, ao seu excesso de ‘pureza’, ao seu
aspecto ‘diamantino’. Quem, de entre nós, não se sentiu
alguma vez ‘tocado’ pela esquizofrenia? Quem não se
reconheceu como ‘fugitivo’, ‘desertor’, ‘apátrida’,... Quem
não se permitiu, por exemplo, amar e amar-se a si mesmo
na ‘libertinagem’? A forma de inumanidade arrostada por
O Irresponsável reflete a inumanidade que me constituía
naqueles anos: inumanidade de um homem devorado pela
sua própria luta, inumanidade de um ser que vivia para a
Revolta Integral, que vivia só dessa revolta. Como te di-
zia, essa postura, que não pude conservar o tempo todo,
merece-me um tremendo respeito; e não serei eu quem
agora vai lutar contra ela... Pelo contrário, reconhecendo-
-me hoje incapaz de assumi-la com o valor e a verdade de
há anos, «acredito» nela. Admito que, na sociedade atual,
essa disposição infinita para o combate, essa sede insaciável
de luta, pode conduzir a lugares sombrios (manicómios,
autodestruições, suicídios, criminalidades,...) e corre o
risco de não ser compreendida. Mas é-me indiferente...
Continuo a opinar que a ‘resistência’, a sublevação contra

116
os poderes coercitivos do Capitalismo global, passa por
essas figuras inclementes e quase inabitáveis da deserção
temerária, da comédia espantosa, do crime arrogante, da
guerrilha sem desalento, da esquizofrenia intranquiliza-
da,... E dedico-me a denunciar – isto se pude continuar
a fazê-lo – a impostura mesquinha, a falsidade radical, de
todas as outras modalidades ‘mais razoáveis’, ‘mais sensa-
tas’, ‘mais eficazes’, ‘realistas’, ‘positivas’, ‘construtivas’, ‘pos-
sibilistas’, etc., de «luta» – o «reformismo pedagógico» e
as «escolas alternativas», por exemplo, ou o «sindicalismo
de Estado» e as organizações «representativas», ou as pe-
quenas travessuras «não-governamentais», ou as iniciati-
vas parlamentares ‘esquerdistas’, ou...
Não sei se, desta forma, respondi à tua pergunta... Mas
que pergunta! Como podemos dizer algo em relação a ela
sem sentir a obrigação de ter de dizer tudo?

O Comediante representa-se a si mesmo, mas, por


sua vez, desempenha um sem-fim de papéis. É dessa
forma que pretendes que os estudantes adquiram um
pensamento crítico, reconhecendo-se no modelo de
um «ator errático»?
Em toda a elaboração de uma obra há passagens nas
quais o autor se sente particularmente «seguro», em que
aborda questões que considera praticamente «fechadas»,
suficientemente meditadas, discutidas, revistas. E outras
desassossegantes, em que se manifesta mais a intenção,

117
ou a inclinação, do que a conclusão em si, quase mais o
processo de procura de uma tese do que a própria tese;
passagens ‘abertas’, ‘inacabadas’ para sempre, ‘esboçadas’,
‘movediças’ – sobretudo movediças –, cheias de pontos de
fuga, de cláusulas interrompidas, inclusive de contradi-
ções latentes... Este é o caso das minhas páginas sobre o
Comediante (páginas «definitivamente inacabadas», para
utilizar a expressão de Marcel Duchamp). Não as estimo
menos por isso; mas custa-me responder às interrogações
que suscitam... Sentir-me-ia satisfeito se, para responder
à tua pergunta, conseguisse simplesmente explicitar com
claridade, como te dizia, a inclinação, a intenção a que
obedecem...
O capítulo de O Irresponsável intitulado «Comedian-
te. A Representação Errática» aborda, justamente, um
dos aspectos mais lacerantes, mais dolorosos, da prática
discursiva deste ‘antiprofessor’: aquele em que, apesar
de tudo, ou por causa de tudo, deve falar na Instituição,
tomar a palavra na aula. É algo que não gosta, mas tam-
bém não se exclui a isso. E há ocasiões, que nem sequer
são poucas, nas quais, por diversas razões (um interesse
manifesto dos alunos por este ou aquele assunto, que pro-
voca um pedido de ‘explicação’; a solicitação de um cole-
tivo; um desejo feroz do ‘irresponsável’, ao qual não pode
resistir e que o empurra a espraiar-se ante os estudantes;
etc.), há de falar, quase se diria que «há de dar aula» – po-
dendo «dar aula» circunstancial e excecionalmente, o ‘an-

118
tiprofessor’ jamais «dá escola»... Como haveria de fazê-lo,
então? Como o faz? Como o fez? Com isto adentro-me
num terreno acidentado, num assunto que de nenhuma
forma tenho ‘resolvido’, campo de intuições, de suspeitas,
de céus ofuscados e de neblina volúvel sobre a mais pe-
quena nota de ideia...
Pareceu-me, em primeiro lugar – quer dizer, senti-o
dessa forma no momento em que «tive de falar» –, que
era preciso desatar-me, não ‘interpretar’ nenhum papel
definido, não me deixar apanhar por nenhum estereótipo
(o estereótipo do professor ‘contestatário’, ‘alunista’, ‘refor-
mista’, por exemplo). Não «interpretar» – não fazer, por-
tanto, de ‘educador’, de ‘professor’, de ‘ensinante’ –, mas
«ser». Ser, por um lado, fiel a si mesmo, jurando lealdade
profunda aos desejos, caprichos, manias, ‘estilos’, etc.,
que constituem a nossa idiossincrasia; e ser, pelo outro,
qualquer homem imaginável, tudo o resto (estar aberto à
fragmentação da personalidade, à fratura do carácter, à
multiplicação, ao desmembramento, ao enriquecimento
do eu...). O que emerge desta forma na aula, como supor-
te da palavra, é o mais oposto ao que se poderia esperar
de um «funcionário da Educação»: emerge um comedian-
te, um ‘ator’ inapreensível e imprevisível...
Senti, em segundo lugar, que a prática ‘verbal’ do anti-
professor não devia caber em nenhum molde concebível,
não devia degenerar numa «fórmula», num «esquema»,
num «método» racionalizado... Se assim fosse, se se for-

119
malizasse, perderia o seu ‘perigo’, que procede sempre da
imprevisibilidade, da surpresa, do temor que suscita a
ausência de sistema. Abrir-se-ia então, devido a este du-
plo movimento – não «interpretar» e não «formalizar» –,
uma porta para a arte, a criatividade, a poesia, o teatro
(forçosamente, «da Crueldade»)...
Em terceiro lugar, acreditei compreender que o mais
importante não era o ‘conteúdo’ das palavras – a sua rela-
ção com a Verdade e a Mentira postuladas, por exemplo
–, mas o ‘modo’ como estas estalavam ante o público, ante
o auditório, ante os alunos. Daí deduzi uma vindicação
da «intensidade» e da procura da eficácia dolorosa: o
«irresponsável» só falaria para açoitar alguém; as suas
‘palestras’ deveriam ser realmente feridas, atentados,
transtornos... Quando, a meio do terror de ter de o fazer,
um ‘antiprofessor’ toma a palavra na aula, algo sucede...
Denúncias, abertura de processos, escândalos de impren-
sa, uma tentativa de homicídio... no meu caso; mas não só
isso – algo sucede, também, na vida do ‘recetor’.
Conforme avanço nestas ideias, noto que me vou per-
dendo. Peço desculpas por isso... Quero acrescentar, por
fim, e antes que me perca completamente, que as ‘propos-
tas’ do Comediante não estão destinadas aos alunos, nada
lhes indicam em seu benefício, em seu proveito... O irres-
ponsável vira respeitosa e humildemente as costas aos alu-
nos: ao não situar-se ‘acima’ dos estudantes, nada tem que
fazer ‘por’ eles e ‘neles’ – nenhuma operação ‘pedagógica’

120
sobre a sua consciência. Deixa-os em paz, simplesmente.
O que lhe diz respeito tem que ver exclusivamente com a
máquina escolar, com os modos e as tretas de um comba-
te de morte contra a Ordem da Escola. A pretensão de fa-
zer algo «pelo bem» dos alunos parece-lhe simplesmente
indigna. Por que razão está um triste ‘docente’ capacitado
para um trabalho tão «honroso»? São os estudantes que
devem decidir qual é o seu próprio bem e lutar por ele
se o consideram conveniente... O comediante olha para
outro lado; nunca perde de vista essa máquina escolar
que gostaria de sabotar definitivamente, de desmontar
com o rigor de um mecânico perverso, de avariar para
toda a eternidade... Dizendo-o de uma forma um pouco
provocativa: o ‘antiprofessor’ estima que não lhe compete
de nenhuma forma infundir um pensamento crítico nos
seus alunos. Já lhe basta, quase em demasia, ter de salva-
guardar o rescaldo de ‘criticismo’ que nele possa subsistir
e transportá-lo para onde ainda seja possível originar um
incêndio. Está-se nas tintas para a ‘cabeça’ do estudante...

121
Este trabalho recolhe as abordagens antiescolares e an-
tipedagógicas que Pedro García Olivo verteu numa série
de entrevistas, a partir da publicação de O Irresponsável
(2000). Para que se perceba melhor a estrutura do seu po-
sicionamento teórico, reordenámos o conjunto das suas
respostas, organizando-as tematicamente. Deste modo,
devido ao jogo das reiterações e dos deslocamentos, é
necessário apreender imediatamente o núcleo gerador da
sua crítica à Escola e a diversidade de implicações que
pode assumir.
FONTES

Entrevista proposta pela revista basca «Ekintza Zuze-


na», publicada em 2003, com o título «Posible aún des-
pués de Auschwitz».

Entrevista para o jornal CNT, que foi publicada, resu-


mida, extratada e retocada, com o título «Para bajarle los
humos a la Educación» ( CNT, n.º 260, Granada, julho de
2000). Para a composição deste livro utilizámos a versão
original, inédita.

Entrevista proposta pelo Ateneu Libertário de Villa-


verde Alto, que continua igualmente inédita. Intitulou-se
«Sobre la infamia de la disposición pedagógica».

Entrevista proposta pelo Grupo de Zamora, que se di-


fundiu pela Internet, com o título «Vivo en el cráter de un
volcán y, de vez en cuando, amenazo con irme». Não foi
publicada em papel.
Índice

UMA ESPÉCIE DE PRÓLOGO


Victor Araya 7
APRESENTAÇÃO 11
O OBJETO DA CRÍTICA 21
QUE FAZER? - A PERGUNTA CULPÁVEL 71
PEDAGOGIA LIBERTÁRIA 91
IMPLICAÇÕES 99
À VOLTA DE O IRRESPONSÁVEL 115
Pedro García Olivo
Blog: “¿Eres la Noche?” (pedrogarciaolivo.wordpress.com)
Email: pedrogarciaolivo@gmail.com
Endereço: Paraje Alto Juliana, en la solana de la Madre Puta.
Aldea Sesga, Ademuz - 46140, Valencia (España)

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