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Era, uma vez, uma menina-soldado

Aos 9 anos, dão-lhe uma arma e dizem-lhe: «Mata.» Era o ano 1984 e o Uganda vivia
uma guerra civil. Aos 17, consegue fugir. Agora, corre o mundo a contar a sua história e
a alertar para o drama das 250 mil crianças-soldados que combatem actualmente.
Passou por Portugal.

China Keitetsi tem 34 anos e três filhos.


Nasce em 1976 no Norte do Uganda, em África. Em 1984, tem ela 9 anos, foge com a
irmã da casa do pai e da madrasta, e procuram a mãe. Mas é capturada pelos
guerrilheiros do Exército de Resistência Nacional, comandado por Yoweri Museveni
(actual presidente de Uganda). E durante dez anos é obrigada a carregar uma arma
naquela guerrilha e a combater na guerra civil que assola o seu país.
«Vi-me transformada em soldado, deixei de ser criança. Foi-me dada uma arma que era
para matar o inimigo; era o que nos diziam. Então, não pensávamos em matar pessoas
mas em matar o inimigo», lembra ela desses tempos.

A fuga da tragédia
Tal como as outras crianças-soldados, privada do amor de pai e de mãe, na sua pré-
adolescência China Keitetsi procura impressionar os seus superiores hierárquicos na
guerrilha, e, conta ela, «faz coisas terríveis».
Keitetsi passa por experiências duras e traumáticas que lhe deixam marcas para toda a
vida. Para sobreviver, tem de matar, ser guarda-costas, cozinheira, escrava sexual,
obedece em tudo aos chefes militares. Vítima de abusos sexuais, engravida aos 13 anos.
Quando a criança nasce, é-lhe tirada. Aos 17 anos, torna a engravidar. Então, foge do
Uganda, deixando o filho para trás. Hoje Keitetsi sente vergonha por ter fugido sem ele.
«Apanhei um autocarro e fui para a África do Sul. Não tinha a menor ideia do que me ia
acontecer, ou ao filho que deixei para trás ou à filha que levava na barriga», contou
Keitetsi no Porto.
«A separação dos meus filhos foi a coisa mais dolorosa que me aconteceu»,
acrescentou.

Começo da liberdade
Em três semanas, a jovem China Keitetsi, grávida, cruza o Quénia, a Tanzânia, o
Zimbabué e chega, por fim, à África do Sul.
Seis anos mais tarde, em 1999, consegue obter o estatuto de refugiada das Nações
Unidas e é acolhida pela Dinamarca.
Em 2005, reencontra os filhos com a ajuda do Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Refugiados (ACNUR). O rapaz, que deixara no Uganda com dois anos, já tem
14. A filha, que entregara no Soweto com um ano, completou 11.
«Não tive infância e perdi as deles», lamenta Keitetsi. Actualmente vive na Dinamarca
com os seus três filhos. São, finalmente, uma família.

«Mãe» de crianças feridas


Um dia disseram a China Keitetsi: «O melhor medicamento para curar a alma é falares e
escreveres sobre o que te aconteceu.» E ela fez do conselho o objectivo da sua vida.
Em 2005, publica o livro Child Soldier: Fighting for my life (Criança-soldado. Lutar
pela minha vida»), em que relata a sua experiência.
Desde 1999, conta a sua história em conferências e debates para que se conheça a
terrível situação de 250 mil meninos e meninas que perdem a sua infância e inclusive a
vida no campo de batalha. Nestas andanças, ela recebe mensagens de crianças que lhe
dão ânimo para refazer a sua vida.
E, em Junho de 2008, abriu uma casa de acolhimento para meninos-soldados e filhos de
meninas-soldados no Ruanda. Ali encontram um lugar onde se sentem seguros, e
recebem formação e ajuda para a reintegração na sociedade. Estas crianças têm muita
dificuldade de concentrar-se, porque o passado atormenta-as.

Artífice da reconciliação
China Keitetsi começou uma nova vida na Europa.
«Os meus filhos dão-me a energia para viver e para querer viver.»
Mas ela ainda precisa de recuperar dos traumas do passado e de aprender a confiar em si
mesma.
«O mais duro é voltar a confiar nas pessoas e aprender a amar ou aceitar ser amada.
Perdoar tudo o que sofri é quase impossível. Mas se não perdoo torno-me amarga e não
posso fazer nada.» E, acrescenta: «Quando a justiça não cura as feridas, só resta a
reconciliação, que abusadores e abusados se encontrem, falem e se reconciliem.»

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