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revista portuguesa de
algumas possibilidades: uma delas pode ser o existe no desajuste, e não propriamente na busca
fato de esperarmos que algumas teorias nos de um consenso apaziguador; trata-se de aliança
digam ‘o que fazer’, nos deem uma fórmula que que arrasta um e outro a ser diferente do que é.
não produza equívocos ao operarmos com elas. Talvez esse desajuste seja a potência ou ponto
Dessa forma se produz um hiato entre o que a de encontro1 entre teoria e prática, o que faz uma
teoria propunha e os resultados inesperados que arrastar a outra a regiões desconhecidas que
se produzem com ela. E se nosso posicionamento as fazem fulgurar em outras possibilidades de
quanto a esse hiato, muitas vezes, é de pensá-lo existência, a produzirem-se a partir da diferença.
como uma falta, ou falha, ou impossibilidade de
a teoria se encaixar com a prática, perdemos a 1. Revezamentos entre teoria e
chance de saltar nesse hiato, de experimentá-lo, p r át i c a
de perceber a potência de sua impossibilidade Deleuze, em diálogo com Foucault no livro
de ajuste, perdemos a chance de operar a teoria, Microfísica do Poder (2012), menciona:
fazendo-a cintilar em suas variações.
Outro motivo de tal recorrência nos parece Às vezes se concebia a prática como uma
ser que, muitas vezes, esperamos que a teoria aplicação da teoria, como uma consequência; às
venha a nos explicar os porquês de certas coisas vezes, ao contrário, como devendo inspirar a teoria,
acontecerem, e apostamos nas teorias como como sendo ela própria criadora com relação a
explicações inequívocas do mundo, como uma forma futura de teoria. De qualquer modo,
verdades vindas de pessoas quase que divinas, se concebiam suas relações como um processo
de tão legitimadas a falarem sobre o que nos de totalização, em um sentido ou em um outro.
passa, e aí novamente ocorrem desajustes, pois Talvez para nós a questão se coloque de outra
as realidades, além de múltiplas, estão a todo o maneira. As relações teoria-prática são muito mais
momento se movimentando e se produzindo, parciais e fragmentárias. Por um lado, uma teoria
implorando para si outros modos de serem é sempre local, relativa a um pequeno domínio
escritas/pensadas. e pode se aplicar a um outro domínio, mais ou
Perdemos, nesse caso, a chance de ‘conversar’ menos afastado. A relação de aplicação nunca
com a escrita/fala do autor – a qual é também é de semelhança. . . . A prática é um conjunto de
composta de uma multiplicidade, pois, como revezamentos de uma teoria a outra e a teoria um
afirma Deleuze, no livro Microfísica do Poder, revezamento de uma prática a outra. Nenhuma
de Michel Foucault (2012), quem fala e age “é teoria pode se desenvolver sem encontrar uma
sempre uma multiplicidade, mesmo que seja espécie de muro e é preciso a prática para atravessar
na pessoa que fala ou age. Nós somos todos o muro. (pp. 69-70)
pequenos grupos” (p. 70). Conversar diz respeito,
Desse modo, não se pensa a teoria e a prática
portanto, a uma escuta e produção de sentidos
como representação ou decalque uma da outra;
que se dão em um ‘entre’, que não se fixa no que
teoria e prática acontecem no fluxo de um
o autor disse nem na imposição de encaixe de
revezamento que potencializa, que faz tomar
nossas experiências com o que ele disse. Uma
fôlego, uma e outra. Operar teoria-prática implica
conversa, no modo como a entendemos aqui,
‘obrar’, atravessar muros que encontramos
1
Encontro como duplo-roubo ou dupla-captura. Como menciona Deleuze e Parnet (1998), “encontrar é achar, é capturar, é
roubar, mas não há método para achar, nada além de uma longa preparação. Roubar é o contrário de plagiar, de copiar, de imitar ou
de fazer como. A captura é sempre uma dupla-captura, o roubo, um duplo-roubo, e é isso que faz, não algo de mútuo, mas um bloco
assimétrico, uma evolução a-paralela, núpcias, sempre ‘fora’ e ‘entre’. Seria isso, pois, uma conversa” (p. 15).
(inventamos?) em meio ao percurso, implica frente à multiplicidade que a ela se impõe, uma
criar impossibilidades e ao mesmo tempo um vez que falar pelos outros é sempre um modo de
possível (Deleuze, 1992). Trata-se, pois, da impor uma identidade que se quer comprovar.
‘invenção de problemas’2 (Kastrup, 2005), ao
mesmo tempo em que se afirma a precariedade 2 . P o s s í v e i s e n t r e c ru z a m e n t o s
de nossos próprios discursos. c o m o s c o n c e i t o s d e e s pa ç o l i s o e
Afirmar tal precariedade implica estar atento e s pa ç o e s t r i a d o
ao que se agita a partir das verdades que
produzimos, entendendo essas verdades como Podemos estabelecer um diálogo entre esse
cascas provisórias que não aguentarão por muito revezamento (teoria-prática) e o que Deleuze
tempo, pois a teoria nunca dá conta da prática e e Guattari (2012) definem como espaço liso e
a prática nunca dá conta da teoria, já que ambas espaço estriado, uma vez que verdades injetadas
estão constantemente sendo produzidas nesse no cotidiano também podem, neste contexto,
revezamento, sempre em obra, em curso. ser mobilizadas e colocadas sob suspeita. É
Assim, nossa formulação indica que este modo com relação ao pensamento que os autores
de operar por revezamento expressa relação operam esses conceitos, pois segundo eles
de tensionamento e deserção, flexuosidade há uma imagem do pensamento que implica
que corre, não de cima para baixo ou de baixo determinados modos estruturados de pensar,
para cima, mas que transborda para os lados; a partir de uma certa organização a priori, mas
o que vaza dessa esfera teórico-prática como há também um pensamento sem imagem que
um possível afronta a fixidez das relações apenas acontece, em seu próprio fluxo, forçado
de poder que estratificam modos de agir e por um disparador inicial, mas sem obedecer a
produzir conhecimento na educação. Movemo- um modelo prévio do que seja pensar. Assim, o
nos lateralmente entre teoria e prática num espaço liso, segundo os autores, seria esse espaço
serpentear que não repousa, sempre em trânsito. nômade onde o pensamento ganha velocidade.
Sob este revezamento, se complexifica a relação Já o espaço estriado, seria um espaço sedentário,
hierárquica da teoria com a prática, ao romper, onde o pensamento se dá a partir de uma
ou, ao menos, borrar, algumas delimitações de organização.
barreiras que se erguem entre elas, de forma que Topologicamente o espaço liso se constrói
não se trata de uma apologia de uma ou de outra, como campo aberto de contínua variação
mas da potencialização de ambas, no abalo de (intensidades). Por sua vez, o espaço estriado
uma das dicotomias que sedimenta na educação. refere-se a um sistema fixo e localizável (trajetos).
Como menciona Deleuze (2009), “a teoria não Numa primeira vista, corre-se o risco de esta
totaliza; a teoria se multiplica e multiplica” (p. 71). distinção entre espaço liso e espaço estriado
A partir da perspectiva anunciada, entendemos se dar como uma forma de oposição simples;
que toda teoria que penetra em um determinado por isso sublinha-se que, a partir de Deleuze e
ponto choca-se com a impossibilidade de seu Guattari (2012), o espaço estriado e liso “existe
espelhamento, pois é sempre forma que precisa de fato graças às misturas entre si” (p. 192), o que
funcionar a cada vez; por este motivo, a noção de não impede sua distinção.
aplicação de uma teoria nos parece inadequada Mais que uma proposição geográfica, aqui
2
Segundo Kastrup (2005), “a invenção não se confunde com a criatividade. Os estudos acerca da criatividade, iniciados nos EUA
por J. P. Guilford e que ganharam força sobretudo na década de 1960, definem a criatividade como uma capacidade de produzir
soluções originais para os problemas. Mas a invenção de que eu falo, e para isso me baseio na filosofia de G. Deleuze (1988), não é
uma capacidade de solução de problemas, mas, sobretudo, de invenção de problemas” (p. 1274).
operamos com esses conceitos para pensar o regiões outras ainda por vir.
espaço e o território da educação, enquanto Pensar um revezamento entre teoria e
atuação em sala de aula e movimento na produção prática implicaria pensar nessas provocações
de pesquisas. Compreendemos estes espaços entre espaço liso (prática) e espaço estriado
(liso e estriado) como processos de provocação (teoria). O espaço liso é aquele que abriga uma
mútuos, jogo intensivo em que, se um é condição experimentação singular de pensamento, que
de alisamento espacial, o outro é passível de acaba por arrastar as bordas da razão, produzidas
estriação. Embora apresentem uma diferença por um espaço estriado, para o estiramento de
de natureza, estes dois espaços não param de uma problemática imanente, que se ensaia na
se provocar um ao outro, de se produzir um ao própria errância do pensamento, num espaço
outro. Estão, pois, em pressuposição recíproca. desconhecido, sem pontos de referência, nem
Os movimentos pelos quais esses espaços destino projetado a priori.
buscam se manter são diferentes: enquanto o Este revezamento enquanto operação espacial,
espaço estriado busca capturar o liso, freando-o, que por vezes territorializa e por vezes faz fugir,
colocando-o em ordem, o espaço liso busca se resulta de práticas concretas, isto é, de modos de
diluir no espaço estriado, procurando fendas atuar frente à suposta linearidade dos trajetos,
para vazar e para desterritorializá-lo. O espaço imbricados nas relações que produzimos,
liso ou nômade é marcado apenas por traços que nos limites que se erguem entre a verdade e a
se apagam e se deslocam com o trajeto. Ele se aparência, entre a ordem e o caos, entre a teoria
insinua ‘entre’ os espaços estriados, que tentam e a prática, em que se busca dar visibilidade aos
limitá-lo refreando seu desenvolvimento. É estilhaços que nos constituem, lá mesmo onde
sobre o espaço estriado que o espaço liso se volta não há mais identidade, onde o eu se encontra
contra, buscando vazar e transbordar. dissipado na multiplicidade que o concebeu.
A partir desses conceitos de espaço liso e Apostamos na alternância, engendrada
espaço estriado, nos colocamos a pensar que enquanto modo de equilíbrio frente à
operar uma teoria (enquanto prática) seria, degeneração das formas de conhecer e produzir
talvez, um modo de alisar o espaço estriado, que conhecimento. Essa degeneração cultural iniciada
ela mesma (a teoria) organiza enquanto arquivo3, pelo pensamento socrático-platônico aguça-se,
provisoriamente; operar uma teoria seria, talvez, como denunciado por Nietzsche (1998), com
inventar modos singulares de deslocamento, o advento do cristianismo (deus unificado) e,
fluidos, que possam passar entre uma região e posteriormente, com o cientificismo e as teorias
outra (do que já foi dito, teorizado) arrastando positivistas, na racionalização sistematizada
essas produções de outrora para outros modos como pressuposto único para a compreensão do
de existência; esse ato operatório do espaço liso mundo4. Traçar entre a teoria (epistemologia) e
(prática) poderia, quem sabe, inventar – com a prática (empiria) linhas para um deslocamento
o espaço estriado do que já foi dito (teoria) – desejável, tendo em vista que cada um destes
3
A noção de arquivo é entendida aqui a partir de Foucault (1997): “É, de início, a lei do que pode ser dito, o sistema que rege o
aparecimento dos enunciados como acontecimentos singulares” (p. 149). É o sistema que determina que enunciados permanecerão
em cena e quais desaparecerão. Assim sendo, é um estrato, uma lei, composta de saberes (enunciados e visibilidades). Estrato do que
é possível ver e dizer em determinada época.
4
Vejamos o que Deleuze (2009) tem a dizer sobre essa questão: “A degenerescência da filosofia aparece claramente com Sócrates.
Se definimos a metafísica pela distinção de dois mundos, pela oposição da essência e da aparência, do verdadeiro e do falso, do
inteligível e do sensível, é preciso dizer que Sócrates inventou a metafísica: ele faz da vida qualquer coisa que deva ser julgada,
medida, limitada, e do pensamento, uma medida, um limite, que exerce em nome dos valores” (p. 20).
campos opera sob condições próprias, que não uma estrutura aberta, intensiva, nota-se que o
são equivalentes nem redutíveis entre si, ajusta-se conhecimento estratificado atua simplificando;
a um plano experimental, uma vez que entende portanto, generalizando em categorias fechadas
o pensamento numa vertente ininterrupta, uma multiplicidade de realidades que sempre
porém não fácil ou gratuita, mas que requer auto escapam. As categorias lógicas, os espaços
superação e transgressão. estriados acabam por expressar, não nossas
Pensar é uma prática infinita, acionada antes experiências singulares, mas o desejo de verdade.
mesmo de tomar uma possível forma. Antes da Nosso objetivo ao cunhar tais aproximações é
forma, o que existe é o informe, o pensamento propiciar (ao menos para nós) um trânsito acerca
errante a vagar em velocidades e lentidões, das possibilidades e impossibilidades de variar
a experienciar um espaço liso, onde vai como forma de conhecer, menos disciplinares,
cartografando regiões ao passo que as produz. mais permissivas, a partir do disforme (Oliveira,
Mas, muitas vezes, colocamos as formas como 2015), e que não se deem tão atreladas às
primeiras, e aí corremos o risco de entendê- tradicionais experiências no campo educacional.
las como verdades petrificadas, impossíveis Neste aspecto, este revezamento, esta variação,
de quebrar, o que acaba por nos petrificar em compõe uma espécie de anormalidade que pode
camadas duras também. ser assumida como forma de resistência, como
Cabe aqui mencionar um trecho do que Tony nos sugere Boutang (1988-1989).
Hara (2012) expõe no ensaio A Errância e o Mar Percebemos assim, na tensão do par razão
de Mil Caminhos, ao se referir ao pensamento de e desrazão, uma relação intrínseca em que se
Foucault no livro História da Loucura: arquitetam os saberes e que permite traçar alguns
degradês de uma pretensa linha mediana. Na
O que se procura nessa obra memorável é promoção de uma conversa que vai até o limite
justamente a abertura, a possibilidade de um extremo do que pode uma e outra a cada vez,
diálogo entre a razão e a desrazão, uma certa entre o que se explica (trajetos) e o que se sente
unidade tensa, ou se preferir, trágica, entre as (intensidades), e suas partilhas, das quais não se
verdades petrificantes laboriosamente esculpidas tem como escapar.
pelo cinzel da razão e as verdades vaporosas que E a ideia de ‘conversa’ surge, novamente, como
chegam dançando no dorso das ondas e que uma ‘unidade tensa’, e não como calmaria. Uma
desvanecem por obra do acaso. (p. 35) conversa entre espaço liso e espaço estriado, entre
teoria e prática, entre as verdades produzidas pelas
O arrolamento entre razão e desrazão compõe teorias e as verdades vaporosas que se produzem
o cerne de uma perspectiva adotada por Foucault e dançam em meio às experimentações singulares
no início da década de 60, na formulação de do nosso corpo/pensamento, as quais deixam no
um saber sobre a loucura no Ocidente. Como ar algumas questões: Que vapores se erguem do
anuncia Hara (2012), buscou-se, neste estudo, que lemos? Como essas leituras afetam nosso
uma abertura implicada no trânsito dos discursos corpo/pensamento? Como atravessam nossas
em que se produzem as verdades, animadas por atuações, nossos modos de vida? De que modo
jogos de poder. Na obra citada, nota-se a crítica podemos produzir uma relação potente com
à racionalidade pura, enquanto modelo que a leitura, com a teoria, abrindo-nos a possíveis
constrói sua identidade através da exclusão do encontros, ao que elas podem disparar em nosso
outro, neste caso “a desrazão”. corpo/pensamento?
Uma vez que se entende o pensamento como Larrosa (2011) faz algumas provocações nesse
5
Concordamos com Nietzsche (1998) quando refere: “Existe apenas uma visão perspectiva, apenas um conhecer perspectivo, e
quanto mais afetos permitimos falar sobre uma coisa, quanto mais olhos, diferentes olhos, soubermos utilizar para essa coisa, tanto
mais completo será nosso conceito dela” (p. 109).
borramentos dessas fronteiras, nas conexões e a partir das aulas, das atividades propostas e das
nos compartilhamentos realizados entre a arte, a produções escritas, começam a ser instigados a
docência e a pesquisa (Mossi, 2016). se inventar nesse processo. O professor, ao criar
No projeto de pesquisa que Cristian Poletti sua aula, também vai se criando nesse percurso.
Mossi desenvolve na Universidade Federal do Rio Dissolve-se nessas ações, reinventando-se a todo
Grande do Sul (UFRGS), intitulado ‘Laboratório instante.
de Produção de Docências: Pesquisa e Criação A docência sem pesquisa não existe, tampouco
em Educação das Artes Visuais’, o autor tem existiu ou existirá. Essa afirmação de Corazza
procurado olhar para as aulas de licenciatura (2013) abre as discussões para o segundo ponto
como laboratórios, visando investigar que de força. A autora discorre sobre a questão do
possíveis vínculos podem ser estabelecidos professor-pesquisador que apresenta um espírito
entre produção artística, formação docente e investigativo, pois, enquanto educa, entra em
pesquisa em educação das artes visuais, em meio devires-pesquisadores, estando atento a seus
a visualidades, leituras e escritas de professores movimentos em relação às suas problemáticas
em formação. Esse projeto tem investido na profissionais e às suas experimentações de
ideia de uma docência inseparável da pesquisa, criações pedagógicas, estriando, escrevendo-
que busca se singularizar em vez de se adequar a se, pensando-se, e, ao mesmo tempo, sendo
figuras já prontas de ser professor, o que implica provocado a lançar-se em um espaço liso;
também um revezamento de teoria e prática. no revezamento desses espaços, nos quais
Podemos entender o próprio ato de pesquisar experimenta velocidades e lentidões, pode
como esse revezamento, como essa constante inventar um modo singular de estar docente.
movimentação entre produção de espaços lisos e O ensino-pesquisa é uma invenção, visto que
estriados, que ora produzem/definem contornos não representa ou reforça o que foi sistematizado
(estriando provisoriamente o espaço), ora anteriormente. Sua contribuição é interromper
são arrastados em velocidade pelas potências a mesmice da formação docente que assegura a
dos encontros que borram as bordas antes permanência das supostas formas universais do
delimitadas. pensamento sobre como ser professor.
Nesse viés, a prática docente no ensino de artes O pensamento educacional que se tece
visuais atrelada à pesquisa passaria a compartilhar aqui, envolto por multiplicidades, implica
e a compor saberes, experimentações, questi- um estado de abertura e atenção à diferença
onamentos, dúvidas, equívocos e acertos. Esse como valor fundante do mundo da vida. Em
trânsito entre arte, docência e pesquisa soa que despontam, igualmente válidas, as formas
favorável a contribuir para a criação de algo ‘outro’, tradicionais do conhecimento, outras possíveis
distanciando-se tão somente da reprodução direções. Compreendemos, assim, a produção
de saberes apreendidos ou do desvelamento de de conhecimentos diretamente ligada à ideia
alguma realidade escondida. Nessa imbricação, de movimento e potencialização da vida.
torna-se, por vezes, impossível reconhecer onde A partir dessa perspectiva nos valemos da
começa uma e termina a outra. variação entre os planos liso e estriado para
Essa zona de criação contribui para uma pensar a educação, tendo em vista a natureza do
invenção constante do docente, que investiga deslocamento que leva de um a outro, capaz de
suas práticas e suas inquietudes junto com gerar desterritorializações e reterritorializações
os estudantes. Essa postura investigativa do constantes que podem perpassar as estruturas
professor passa a respingar nos estudantes, que, postas, ou ainda resistir a elas.
Tal traço vem potencializando a compreensão cria’ (Corazza, 2011). Nesse processo, ocorre a
imanente ao ensino-pesquisa, uma vez que não autocriação do professor, ou seja, um diferenciar,
nos cabe perguntar o que determinada coisa é, uma pura potencialidade de atualização, um
mas com o que ela se encontra e em que ponto produzir-se em alguém que não seja aquele que
de tensão desterritorializa. Corazza (2013), neste já é (Corazza, 2013).
sentido, explicita que os piores inimigos para o
ensino-pesquisa são os manuais de autoajuda, 4 . A l g u m a s e x p e r i m e n ta ç õ e s . . .
em que são oferecidas receitas de como dar
uma boa aula, desenvolver um ótimo currículo, Algumas experimentações têm sido realizadas
formas eficazes de ensinar ou maneiras de ser um no ambiente educativo-formativo no campo
professor criativo. O ensino-pesquisa abandona da Educação e Arte, tanto em disciplinas da
todo e qualquer anseio à universalização e graduação como nas da pós-graduação. A
uniformidade de seus resultados. Essa atitude disciplina de Prática Educacional IV, do Curso
investigativa do professor, em contrapartida, irá de Graduação em Artes Visuais da Universidade
exigir um nível de tolerância à frustação, pois a Federal de Santa Maria, prevê a elaboração de
incerteza, a imprevisibilidade e a transgressão um projeto de estágio que contemple ensino e
estarão à espreita lado a lado em seu percurso. pesquisa. Nessa disciplina, os acadêmicos têm
O intuito de produzir um pensamento condições de elaborar, durante todo o semestre,
educacional pela diferença nos leva ao exercício de um projeto com uma problemática que, nos
perspectivar a elaboração de projetos de ensino- semestres seguintes, será proposta para os
pesquisa versáteis como forma de potencializar estudantes das escolas, onde irão desenvolver
a produção dos conhecimentos, quer seja do seus quatro semestres de Estágio Curricular
estudante, quer seja do professor. O revezamento Supervisionado.
que propomos entre teoria e prática, a nosso A partir de um problema de pesquisa para
ver, tende a desconstruir rótulos e vícios de investigar, e não apenas com a preocupação de
linguagem e ação, agindo no que está estabelecido ensinar, mas de aprender também com o grupo,
como terreno de atuação. E o fazemos como uma o projeto de ensino e pesquisa é revisitado a cada
forma de devir, que se encontra sempre no ‘entre’, semestre, pois no decorrer da prática dos estágios
vazando e arrastando o estático e os modelos. surgem questões para dar conta das exigências
Podemos intuir, no decorrer deste processo, e demandas de cada diferente escola, sendo
que é possível decompor espaços estriados em necessárias algumas mudanças, adaptações e
espaços de passagem, em que se permite ganhar acréscimos no corpo do mesmo.
maior velocidade. Por esta perspectiva, entra- Esta colocação reafirma a implicação da teoria e
se em devir, em ações, em rupturas que lancem da prática, pois, devido à premência do momento,
sempre a um outro ponto, para aquilo que ainda necessita-se rever e buscar outros conceitos para
não habitamos, desafixando nossos próprios pensar o que está acontecendo. Gallo (2010), a
modos de ser docentes e pesquisadores. partir dos estudos de Foucault, coloca que uma
Vale pontuar que o ensino-pesquisa consiste teoria faz sentido quando é operativa e permite
em criar soluções, mas também novos problemas, a atuação daqueles que dela fazem uso. A teoria,
pois, a cada desafio, diferentes enigmas se nesse sentido, passa a ser uma ferramenta que
produzem. Isso leva o professor a estar em produz circuitos instantâneos com as várias
processo constante de variação, levando-o a práticas, como também opera mudanças ou a
experienciar uma ‘docência-pesquisa-que- construção de novas ferramentas teóricas.
A dupla, razão e desrazão, volta mais uma “também se torna um prisioneiro do mar de mil
vez a este texto, pois permite aproximar do caminhos” (p. 36). Assim, “a errância pelo mar
campo educacional sua formulação axiológica pleno de interpretações” seria como um “ensaio
e problematizar na educação o que ela deixa por esses mil caminhos, a experimentação
entrar e o que exclui, ou invisibiliza. O texto consigo mesmo, visando tanto o abandono das
foucaultiano diz do que é exilado, demonstra crenças metafísicas enraizadas na subjetividade,
a situação liminar do louco no horizonte das quanto a abertura para a constituição de novas
inquietações do homem medieval. Em que o formas de viver e de agir” (Hara, 2012, p. 36).
sujeito louco “é jogado no interior do exterior” Não será, então, quando somos lançados no mar,
(Foucault, 1972, p. 16). Pensamos, assim, esta aprisionados no mar de mil caminhos (de mil
relação como disparador para questionar os interpretações), que o pensamento é forçado a
modelos de produzir ensino-pesquisa em nossas pensar e inventar contralugares?
universidades, em cuja forçosa “navegação do Frente à questão que desponta, compreendemos
louco” acontece ainda, e a cada vez que uma que o problema das teorias, ditos e vistos,
atuação “se opõe à estabilidade luminosa e adulta pelos quais muitas vezes nos apaixonamos, é
do espírito” (Foucault, 1972, p. 18). justamente esse: nos apaixonarmos cegamente
Esta passagem capturada em Foucault por eles, entendendo-os como modelos e não
expressa o horizonte cultural em que se como ‘ferramentas’ (Foucault, 1991). O desafio,
inscreve a racionalidade, envolta por jogos de portanto, consiste em colocá-los para vibrar em
verdade, correlata à padronização dos modos diferentes situações, explorando desse modo
e ao cumprimento dos modelos. Com a variações que operem rachaduras em suas
dogmatização6 do mundo moderno, produtora composições e oportunizem o nascimento de
de obediência e renúncias, a excessiva planificação outros modos de pensá-los; ao mesmo tempo,
da educação, movida por um ideal positivista, outros modos singulares de pensar-nos e de
levou-nos a alguns impasses. Cotidianamente, pensarmos.
percebe-se uma asfixia em meio aos discursos Note-se que não há aqui uma perspectiva
pedagógicos hegemônicos. Daí a busca por novos moral, uma busca por um fim. Apenas o desejo
ares para pensar a educação e a possibilidade de de experimentar outros lugares, a cada vez. Tal
produzir e produzir-se no ‘limiar’ dos discursos exercício que fazemos, de revezamento de teoria
em que se encerram as verdades sobre educação. e prática, enquanto movimento à produção
Desejamos pensar essa navegação do louco de de saberes que se fazem em meio a capturas e
Foucault de modo afirmativo, assim como ele interdições no fazer ensino-pesquisa, requer que
também pensa o navio como a ‘heterotopia por não falemos em nome da verdade, mas apenas
excelência’, esses contralugares que contestam e pelos fragmentos que nos compõem a partir de
invertem o espaço ‘real’ em que vivemos (Hara, biografemas.
2012) e “criam ilusões e mentiras necessárias à Sabemos que esse não é um movimento fácil,
vida” (Hara, 2012, pp. 47-48). Hara (2012) também pois convivemos com as visões de outros tempos
pensa um “filósofo singular” como “aquele que e espaços, que coexistem no emaranhado que
entende a filosofia enquanto experimentação, pulsa na superfície cotidiana que habitamos.
ensaio com o próprio pensamento”, aquele que Carregamos heranças que muitas vezes não
6
De acordo com Nietzsche (1998), a vida, a partir de Sócrates, passa a ser configurada como expressão de uma estrutura puramente
racional, em que os dogmáticos reduzem a pluralidade de perspectivas a um único discurso acerca da verdade.
desejamos carregar, concepções que grudam preserva a sensibilidade dos dedos de quem
em nosso corpo, e que, em muitas situações, tateia a fim de manter-se em movimento. Trata-
acabamos por reproduzir, ou vemos reproduzidas se mais de um ‘obrar’ nas brechas (ou mesmo na
por aí. Essas circunscrições vão persistindo e se produção delas), escavando o presente a partir
infiltrando em tessituras atuais, e por vezes nos das superfícies sedimentadas, as quais muitas
prendem em concepções que já não dão conta vezes habitamos (em sala de aula, projetos
do que vivenciamos, mas, por estarem coladas e de estágios, produção de dissertações e teses,
aderidas em nós, por vezes não conseguimos nos orientações, etc.), para que possamos, como um
desvencilhar delas. dos resultados possíveis em nosso agir cotidiano
Nesse sentido, o que nos cabe? Talvez a de pesquisadores/docentes, criar estratégias que
resposta esteja em apenas lembrar... Lembrar? façam fugir, gerando outra coisa.
Sim... Lembrar que as nossas escolhas não são
neutras, elas produzem realidades e modos de R eferências
vida. Lembrar que as nossas escolhas foram Barthes, R. (2003). Roland Barthes por Roland
inventadas por alguém... Lembrar que elas são Barthes. São Paulo: Estação Liberdade.
apenas uma das possibilidades imagináveis... Boutang, P.-A. (Realizador) (1988-1989). O
E lembrar que infinitas outras possibilidades abecedário de Gilles Deleuze [Entrevista a Giles
permanecem aguardando a nossa invenção Deleuze por Claire Parnet] [DVD]. Paris:
conforme as exigências e contingências de cada Éditions Montparnasse.
momento. Corazza, S. M. (2011). A formação do professor-
Esse texto deu-se como um exercício que se pesquisador e a criação pedagógica. Revista da
propôs a pensar nossos modos de relacionar teoria Fundarte, 11, 13–16.
e prática. Apostamos, assim, no revezamento Corazza, S. M. (2013). O que se transcria em
educação? Porto Alegre: UFRGS.
entre ambas como impulso para encontrar
Deleuze, G. (1992). Conversações. São Paulo: Ed.
possibilidades outras de fazer pesquisa/docência,
34.
ocupados mais em problematizar do que em nos
Deleuze, G. (2006). A ilha deserta e outros textos.
fecharmos em soluções. Apropriamo-nos da São Paulo: Iluminuras.
filosofia, torcendo alguns conceitos em proveito Deleuze, G. (2009). Nietzsche. Lisboa: Edições
do pensamento aqui disparado, bem como das 70.
experimentações com a arte, e da produção de Deleuze, G., & Guattari, F. (2012). Mil platôs 5.
pesquisas (em universidades distintas) para São Paulo: Ed. 34.
viabilizar zonas de vizinhança entre teoria e Deleuze, G. & Parnet, C. (1998). Diálogos. São
prática, produção de saberes e vida, justamente Paulo: Editora Escuta.
por compreender a educação enquanto Deligny, F. (2015) O aracniano e outros textos.
acontecimento. São Paulo: n-1 edições.
Em vista disso, o texto emergiu como força Foucault, M. (1972). História da loucura. São
em ato de pensar coletivamente, também Paulo: Perspectiva.
como meio de produzir diferenças, enquanto Foucault, M. (1991). Ditos e escritos (vol. 2). Rio
de Janeiro: Forense Universitária.
vontade de potência do corpo/pensamento que
Foucault, M. (1997). A arqueologia do saber (5ª
se encoraja a pensar. Por isso mesmo, não tem
ed.). Rio de Janeiro: Forence Universitária.
sentido ser tomado como modelo, ou exemplo
Foucault, M. (2012). Os intelectuais e o poder
a ser seguido, dado que, por dar-se como uma (Conversa entre Gilles Deleuze e Michel
experimentação, já é corpo desfeito; apenas
i
Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Brasil. ORCID: 0000-0002-5092-
8806
ii
Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Brasil. ORCID: 0000-0002-3087-
8995
iii
Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Brasil. ORCID: 0000-0003-
3525-9517
iv
Programa de pós-graduação em Educação - Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) Brasil. Universidade Estadual de
Maringá (UEM) Brasil. ORCID: 0000-0001-6401-5429
Toda a correspondência relativa a este artigo deve ser enviada para: Marilda Oliveira,
Recebido em março de 2018
Rua Elvino Brondani, 171, Parque Residencial Novo Horizonte, CEP 97050-210 –
Revista Portuguesa de Educação,
Bairro Camobi – Santa Maria, RS, Brasil. Email: marildaoliveira27@gmail.com
31(1) Aceite para publicação em maio de 2018