GOMES Os Índios e o Brasil Passado Presente e Futuro PDF

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081fTD108
EOBAA8IL
PASSADO, PRESENTE E FUTURO
Conselho Editorial
Ataliba Teixeira de Castilho
Carlos Eduardo Lins da Silva
José Luiz Fiorin
Magda Soares
Pedro Paulo Funari
Rosângela Doin de Almeida
Tania Regina de Luca

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MÉRCIO PEREIRA GOMES

081fTD108
EOBM8IL
PASSADO, PRESENTE E FUTURO

cg
editora contexto
Copyright© 20 12 do Autor

Tod os os direitos desta edição reservad os à


Editora Contexto (Editora Pinsky Leda.)

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Adelino Mendes
Montagem de capa e diagramação
Gustavo S. Vilas Boas
Preparação de textos
Fernand a Guerriero Antu nes
Revisão
Lilian Aqu ino

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Gomes, Mércio Pereira
Os índios e o Brasil : passado, presente e futu ro / Mércio
Pereira Gomes. - 1. ed . - São Paulo: Contexto, 2012.

Bibliografia.
JSBN 9 78-85-7244-742-3

1. fnd ios da América d o Sul - Brasil 2. fndios da América


do Sul - Brasil - H istória 3. fndios da América d o Sul - Brasil -
Relações com o governo J. Título.

12-12 173 CDD-980.41


fnd ice para catálogo sistemático:
1. Brasil : fnd ios d a América do Sul : História 980.4 1

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Em memória

do meu pai, Sinval Gomes de Assis,


que teria gostado de ler este livro;

dos meus mestres e amigos antropólogos,


companheiros da aventura de viver com os índios brasileiros,
Charles Wagl~ ; Eduardo Galvão, Carlos Moreira Neto e Darcy Ribeiro;

dos meus amigos indigenistas, por sua fé e dedicação aos índios,


Ezequias Heringer Filho, o Xará, Apoena Meirelles e Dinarte Madeiro;

E do cacique Xavante Mário Juruna, deputado federal eleito pelo povo do


Rio de Janeiro, através de quem este livro estende a homenagem aos índios do Brasil.
SUMÁRIO

PREFACIO ...... . .. ........ 9


Nota de esclarecimento ......... 14

INTRODUÇAO. ........ 16
A amplitude da questão indígena .... ......... 21
Uma questão ideológica ......... ......... 23
Atualidade da questão indígena ..... . ......... 26
Nota metodológica e bibliográfica .. . ......... 28

D o PONTO DE VISTA DO INDIO ....... . ........45


O paraíso que era ......... ......... 45
As experiências de convivência .. ....... 52
As guerras de extermínio ....... ......... 56
Morte por epidemias ... .... ..... 59
Escravidão e servili smo .. ....... 60
A experiência reli g iosa .. ....... 62
O índio vira caboclo ..... ......... 67
O índio se desvira caboclo ..... . ......... 69

PoUTICAS INDIGENISTAS ...... . ........ 75


A colonização do Brasil .... ..... 75
O Império .. ....... 86
A República ...... . .... ..... 89
Funai, da d itadura à democracia ..... . ...... 100
A polít ica indigenista na democracia, de 1985 a 2012 ... .... .. 108
A nova Constituição Federal de 1988 .. ...... 110
Demarcação de terras indígenas .... .. 112
Saúde indígena ..... . ...... 115
Educação: integração o u autonomia? . .... .. 117
Desenvolvimento etnoeconômico ........ ...... 118
O reconhecimento da capacidade política do índio .. .... .. 121
Novas po líticas para novos tempos .. .... .. 122
Ü QUE SE PENSA DO [NDIO . ..... 140
A humanidade dos índios ...... .... .. 144
A integração do índio na nação ....... ...... 149
O índio republicano é uma criança .. .... .. 155
A busca de uma identidade maior ... ...... 166

QUEM SAO OS POVOS IND[GENAS .. ..... 17 1


Formações socioculturais ....... ...... 171
Diante da rea li dade social ...... .... .. 183
Quantos são os índios no Brasil ...... 185
Onde estão os povos indígenas .... .. 188

A SITUAÇAO ATUAL DOS [NDIOS .... . ..... 204


Os interesses econômicos ...... .... .. 207
Garimpos .... ...... 208
Fl oresta e madeireiros ...... .... .. 214
Fazendeiros, posseiros, lavradores sem-terra
e a nova devastação da Amazônia .. .... . .... .. 219
Os gra ndes projetos econômicos ...... 223
Tra nsamazônica, BR-163, Projeto Carajás, Polonoroeste, BR-364. ... ... 224
Hidrelétricas ...... 234
Os militares .. .... . .... .. 243
A Igreja ... ...... 249
A sociedade civil .... .. 255

Ü FUTURO DOS [NDIOS ..... 269


A reversão do processo histórico ..... .... .. 269
O movimento indígena .... .. 271
O fenômeno Juruna e outras li deranças indígenas .... .. 276
Desafio ou acomodação à expansão capitalista .... .... .. 281
O pensamento ambientalista. .... .. 284
O pensamento nacionalista .. .... .. 285
Os perca lços da sobrevivência .... .. 286
Conclusão: a tensão do possível ...... .... .. 289

ANEXO ..... 295


SUGESTÕES BIBLIOGRÁFICAS. ..... 301
Ü AUTOR ....... ...... ................ . ..... 303
PREFÁCIO

Qual é a definição do termo índio? Quem é índio no Brasil? Quantos


povos ou etnias indígenas há no país? Onde estão localizados? Como v i-
vem? Quais são suas terras? O índio protege o meio ambiente? Os índios
também vivem nas c idades? O índio é preguiçoso? O índio é brasileiro?
Há preconceito contra o índio? Q uantos eram e como viv iam os índios
n o Brasil em 1500? O que aconteceu com eles? Por que os índios são
contra as hidrelétricas? Que futuro existe para os índios?
Tais questionamentos são feitos todos os dias, sempre quando o
tema íudio é foco de alguma discussão. Inte resse e c uriosidade são
ine re ntes ao brasile iro a resp e ito dos nossos índios , mas h á també m ,
evide nte me nte, um largo d esconhecime nto sobre o assunto, ainda que
muita gente fale dos índios como se soubesse muito bem quem e les são.
O presente livro vai te ntar responde r a essas perguntas de modo
que o le itor possa não som e nte obter e elaborar uma ide ia certa acerca
dos índios - que m são e com o vivem n o Brasil - , mas também se abra
para o fato de que estes (que aqui estavam antes da c hegada dos por-
tugueses e em c ujo te rritório o sistema socioeconômico de Portugal foi
implantado) são os habitantes o riginá rios desta te rra e ho je são pa1te
include nte da nação para onde migraram e urope us , a fricanos e de pois
asiá ticos - o Brasil.
Que fique claro desde já: os índios, isto é, uma boa parte dos povos
indíge nas que aqu i viv iam e m 1500, sobrevive ram e ho je estão no Brasil
como parte do Brasil - e para ficar - para todo o sempre (enquanto o
país existir como nação, por suposto).
10 0 S fN D IO S E O B RAS 1 1.

Há 25 anos escrevi um livro a respeito dos índios, sua história e sobre


o fato, até então não perceptível, de que muitos povos indígenas haviam
sobrevivido aos 500 anos de destruição, massacres, doenças e opressão
por patte do segmento populacional dominante. Na obra, denominada
Os íudios e o Brasil, uma avaliação histórica e contemporânea é feita no
tocante à situação dos índios, sendo a primeira a demonstrar a sobrevi-
vência desses povos. Durante aqueles anos todos, pensava-se que os ín-
dios estavam em declínio contínuo, "se acabando", vivendo seus últimos
dias. Não só os velhos livros tratavam disso, mas também os jornais , os
visitantes ocasionais das tribos , os missionários e os antropólogos. Estes
últimos , assim como os indigenistas (que são as pessoas que mais con-
tato próximo e profundo têm com os índios) , também achavam que os
índios estavam a caminho do extermínio. Grandes antropólogos, como
o brasileiro Darcy Ribeiro e o francês Claude Lévi-Strauss , que haviam
estudado de perto diversos povos indígenas nas décadas de 1930 a
1950 , constataram e anunciaram a extinção física e cultural dos povos
indígenas, sua dénouement fina/e.
Aquém e além de desgraças, como assassinatos, massacres, epide -
mias ou expulsão das terras, ao entrar em contato e conviver com a
sociedade brasileira (a qual, por extensão, faz parte da cultura ocidental,
europeia), os índios , cons iderados a parte mais vulnerável dessa convi-
vência , iriam eventualmente mudar seus modos de viver, suas culturas,
alé m de adotar costumes, hábitos, compo rtame ntos e atitudes cada vez
mais dife re ntes de seus costumes orig ina is e cada vez mais parecidos
com os costumes brasileiros. Por fim , perderiam de to do seus hábitos,
abandon ariam as bases de s uas culturas e se assimilariam completamen -
te ao modo de ser brasile iro . Virariam todos brasile iros - se quisessem
se salva r como indivíduos.
Pa ra a grande maioria dos p ovos indígenas originá rios de 1500, tudo
isso quase aconteceu. Porém, n ão com todos, nem completamente para
muitos . Eis a razão d e, p o r volta d e 1987, te re m sobreviv ido mais de
220 povos, os quais continuava m a se ver como índios , d ife re ntes do
restante da população brasileira.
Po r que houve tais exceções? Essa é uma das perguntas levantadas
e m Os índios e o Brasil e que foi respondida exte nsame nte pela análise
que fiz da histó ria do n osso país - não só das conquistas , dos extermí-
nios, d os massac res, das epidemias que dizimaram tantos índios, destro-
çaram tantos povos e diluíram tantas c ulturas, mas também das ambigu i-
dades da colonização luso-brasile ira, das dúvidas sobre a legitimidade
do poder real português sobre os povos indíge nas e das políticas portu -
P REFÁCIO 11

gu esas claudicantes p ara com o s índios e os n egros escravos . A histó ria


d o mo do como se desenvolveu o cato licismo impla ntad o n o Brasil , d a
Igreja conservad o ra e oficial e d a Ig reja salvacio nista d os missio ná rios;
d o malem ole nte Impé rio brasile iro, da Re púb lica p ositivista brasile ira e,
sobre tudo, d o p osic io n ame nto de a lguns n obre s p e nsado re s e h o m e ns
d e ação bras ile iros que fize ram a dife re n ça n essa a titude m a is o u me n os
ge ne ralizada d e se p osic io n ar contra o índio . Nas e ntre linhas d a histó ria
e n as brech as dos acontecime ntos ma is evide ntes é que se acha m os
m otivos pe lo s qua is o s índios sobrevive ram. E e les re sistiram!
Este livro vai recontar essa histó ria e a na lisar se us funda m e ntos
sociais d e um m o d o dife re nte d o que está costume iram e nte registrado
n a histo riografia brasile ira . D esde que su a prime ira ve rsão foi publica-
da , muita coisa continua e muita co isa se p asso u. Uma de la s é que o
sentime nto o rigina l da prime ira e dição se re alizo u. Antes, e u ap e n as
timidame nte suge ria que havia a lgo d e b om n essa histó ria d o Brasil , a
qua l a ux ilia ra a p o pulação de índios a c rescer e te r condições d e so-
breviver. Ago ra , n os últimos a n os, fi co u ev ide nte que esse sentime nto
e prev isão tinha m boas razões d e ser. Com e fe ito, os índi os que sobre -
viveram ao que c h am e i d e "h olocau sto" - p a lavra forte muito ligad a ao
m o rticínio e m m assa de jude us dura nte a e ra nazista, m as que p o dia
se r transpla ntada, com o d evido re spe ito, p a ra a compreensão d o caso
indíge na - cresce ram, con solidaram su a sobrevivên c ia, ti ve ram s uas
te rras d e m a rcadas (a m a io ria delas, p e lo me n os, pois a inda há fa lhas
ime nsas q u e serão d iscutidas a qui) e estão a í , p roc ura ndo seu es p aço
n a sociedade brasile ira .
Os índios q u e vive m no B rasil são b rasile iros, esta é a prime ira res-
p osta q u e te nho para da r n este livro . Brasile iros natos e o riginá rios .
Isso todos sabe m , o u sente m q u e sabem , o u d uvidam po u co - mesm o
aque les c uja cre nça é d e que os índios são preguiçosos, tra içoeiros,
m al-agradecidos, priv ilegiados o u que tê m te r ra d e m a is . Enfim, quase
ninguém d uvida de que os índ ios são b rasile iros, o rig iná rios, de ra iz.
Mas o que será dessa porção de socie da des, culturas e povos ind íge-
n as tão dife re ntes e ntre si e d a m aio ria d os b ras ile iros, e m um p a ís o nde
os cidad ãos p raticam m ajo rita ria m e nte uma cultura ú nica, com p o ucas
d ife re nças regio n ais? O B rasil é capaz de aceita r e viver com d ife re n ças
tão gra ndes e n tre seu s ha bitantes?
A res posta p a ra essa questão será con struída aqui , devagarzinho, à
m edida q ue os d ados fo re m sendo a n a lisados . Não h á como resp o nde r
de pro nto . Eu mesm o não sei d izer tão claram e nte se isso é possível.
Muitos b rasile iros, inte lectua is o u n ão, falando seria me nte o u e m con-
12 0 S fN D IO S E O B R A S 1 1.

vers a de b otequim, acre ditam que a c ultura brasile ira , e mbo ra com di-
fe re n ças re gio n a is, é tão forte, tão d ete rmina nte, tão h o m o ge n e iza do ra,
tão a ntro p ofágica (n o dize r d e Oswald d e Andrad e), que não d e ixa
esp aço para o flo rescime nto d e c ulturas dife re ntes que aqui apo ttam.
Basta re le mbrar o que foi fe ito com a s c ulturas d o s imigrantes desd e o
século xix! Dos espa nhó is, á rabes e ita lia no s praticame nte só re staram
as comidas prefe ridas, algumas expressões linguísticas e uma coisinha
aqui e o utra acolá . Os alem ães, u cra nianos e p olo neses, exceto p o r su as
bucólicas casas n o Pa ran á, e m Sa nta Cata rina e na se rra ga úcha, p o uco
se dife re nc ia m n o burburinho das c idades . Me smo o s ja po n eses , tão
asiá ticos, exceto pela con solidação de um certo estilo urba n o d e viver
n o b a irro da Libe rdad e, e m São Pa ulo, já misturam fe ijão com sushi
(prato que, aliá s , to do mundo apre nde u a come r e a precia r), e seus d es-
cende nte s estão se casa ndo com n ão nisse is , vivendo com o brasile iros
qua is que r , confo rme as cida des, os b a irros e as classes socia is a que
p e rte ncem. Core anos, chineses e novos imigra ntes da Am é rica do Sul e
da África estão a caminho de sere m triturado s p e la m ó ho m oge ne izad o -
ra d a c ultura bras ile ira. Assim p e nsamos muito s d e n ós, ap e sa r d as loas
que se tecem sobre as vittudes d o multicultura lismo brasile iro!
E, e ntão, será que os índios ague ntarão mante r su as c ulturas com
tanta distinção?
Conve nha m os que se rá difíc il. Mas, até ago ra , muitos as tê m ma ntido,
m esm o a p ós a nos d e conv ivên cia com segme ntos da sociedade b rasi-
le ira . Povos ind íge nas contatados p o r sertanistas do antigo Serviço de
Proteção aos Índios (sP1) o u p e la Fundação Nacio na l d o Índio ( Funa i), a
q ua l s ubstituiu a que le ó rgão e m 1967, h á ma is de 50, 60 e 70 a n os, ainda
m antêm su as c ultu ras com tod o v igo r. Exem plos deles são os Xing u a n os
e m ge ra l (Ka mayurá, Yawala piti, Wa urá e tc .), os Ka rajá, Kaya p ó, Xavan-
te, Urub u-Kaap o r, Can e la, Ta pirapé e tantos o utros que v ivem nas m a is
dife re ntes condições d e vida na flo resta , n o cer rado o u na b e ira d os rios .
Os Gu a rani, seja os subgrupos Mbyá, Ka iowá e Nandeva, que vêm d os
te mpos d as missões jesuíticas (séculos XVII e XVIII), vivem uma c ultura
com tradição rígida e pro fessam uma re ligião exem p la rme nte sing ula r,
m esm o a pós te re m a bsorvido ele me ntos d a re ligião cató lica .
Em contrapa rtida, h á povos indígenas q ue muda ram muito rapida -
m e nte, até em me nos te mpo . Apre n dera m o po rtu guês com ra pidez e
fluide z, ado ta ram e le m e ntos d a socied ad e b rasile ira e, e mbora a m a io ria
h abita ndo e m s uas te rras, muitos d os seus líd e res já vivem e m c idades,
se re lacio n am com segmentos p o líticos e c ultu ra is da sociedade b rasi-
le ira e se p osic io na m como re presenta ntes de seus p ovos para fins d e
P R E FÁ C I O 13

adaptar e le m e ntos da socie da de nacio nal e m s uas c ulturas . É o exem-


plo d e p ovos com o os Suruí e Kaxa rari , d e Ro ndô nia , os Te re na, d e
Mato Grosso do Sul , os Apurinã e dive rsos o utros do Acre, os Makuxi e
Wa pixana, de Ro ra ima, os Tikuna e até os Marubo, do Ama zo nas,
e o utro s tanto s , esp ecialme nte da região n o rdestina.
Como se vê, são tantas as p o ssibilidad es de se r indígena no Bras il
que só trab alhando a histó ria d as re lações inte ré tnicas no p a ís, junto
com a descrição d as variadas c ulturas e a a ná lise de su as ad aptações à
convivê n cia a mistosa, be m com o suas reações e res istê n cia aos mo me n-
to s d e opre ssão, é que p o de re mo s forma r uma ide ia m ais cla ra sobre
que m são os índios, como v ivem n a atualidade e qual seu futu ro .
Precisamos reconhecer que as situações pelas qua is os índios brasi-
le iros p assam são es pecífi cas . Eles estão majo ritaria m e nte instalados e m
s uas te rras, vivendo da agric ultura , da caça, da p esca e da coleta , da
venda d e a lguns p rodutos na tura is (castanha, óleo de copa íba, p e ixe)
o u fa bricad os o u catad os (artesan ato, fa rinha, o u ro e pe dras preciosas) .
Muitos já se insta la ram n as c idad es e vivem e m condições d e p obre za -
a lg uns, po ré m , e mpregados - , cria m seus filhos n o s istema c ultural d o -
mina nte da socied ad e brasile ira, m as te ntam m ante r su a ide ntidade e
tra nsmiti-la com d ignidad e p a ra seus filhos e d escen dentes .
Os índios estão p o r quase todas as pa rtes d o Bras il , e m tod o s os
e stad os . N o Pia uí e n o Rio Grande do N o rte, só nesta última d écada,
surgiram grupos de ind ivíduos que se a utoidentificaram como índios,
constituindo-se como e tnias d istintas . Segundo o Cen so 2010, do IBGE (o
qua l discutire m os ma is adia nte, com certo es p írito crítico), som a m cerca
d e 897 mil p essoas, sendo que 520 mil vivem e m suas te rras e 357 mil
estão nas c idades . O mesm o Cen so a p o nta 305 etnias específicas (em-
bora aqui também te nham os dúvidas sobre em q ue cons iste uma etnia
esp ecífi ca) e ao m e n os 274 líng uas distintas (100 a m ais d o q ue sabia
a Funa i) são fa lad as na Babel indígena ( mesmo que, e m uns 20 casos,
são p o uquíssimos os fala ntes nativos, e e m d ive rsos o utros as línguas
estejam extintas - a lgumas muito recente me nte .)
Em s uas a lde ias, e m suas te r ras, os índios exercem sua vida socia l e
p o lítica . Suas cele umas, suas divergê nc ias e disputas são resolvidas p e -
las regras e no rmas de conduta, p elas armas e p e los símbo los de poder
tradic io na is . O m a is impo tta nte é de fe n der su as te rras, tanto as reconhe -
c idas pe lo Esta do brasile iro qu anto as que h á p o r reconhecer. Q ue m
te m m a is p a re ntes, que m te m me lho r orató ria, que m vem de linhage n s e
clãs com legado de p ode r tê m ma is va ntage ns p olíticas . Velhos tê m pre -
cedê nc ia sobre joven s, ho me ns sobre mulhe res; gue rre iros têm seu q ui-
14 0 S f N D I OS E O B R AS 1 1.

nhão d e com a ndo; c h e fes cerimo nia is, sacerdo tes, xam ãs e p ajés falam
com vo z de sabe do ria. O p o de r é no rmalme nte exe rc ido com base nas
tra dições, ainda que n ovos s ímbolos de p od e r, com o o dinhe iro obtido
p o r salários o u p ela venda d e p rodutos, o u a nova o rató ria de re lacio -
name nto com os d e m a is bras ile iros, inte rfiram e, à s veze s , p rovoque m
distúrbio s e d esaven ças inte rnas te rríveis . J á nas cida des, os in strume n-
tos e os símbo los d o p od e r são o utros . Salá rios fixos, empregos segu ros,
p a tticipação e m instituições d e prestígio valem m a is . Aqui , joven s com
discursos d e prote sto, com práticas d e disputas, com manejo d e lingua -
ge ns d e pre ssão vale m mais . Nas cida de s , os a nc iãos indíge nas, com
ra ras exceções, com o Raoni , o famoso cac iqu e Kayap ó, vêm p e rde ndo
prevalê n cia n a expressão das de mandas de seus p ovos . Po rém , quem é
jovem um dia fi ca velho, e certa m e nte a roda da vida virará .
São os jovens indíge n as, e m sua ma io ria, qu e vive m nas c ida des,
que h o je coma nda m o m ovime nto indígen a com forte teor p o lítico,
aos m o ldes d as o rga nizações p o líticas e não governam e n tais brasile i-
ras , com de m a ndas p o r recurso s , e mpregos e o p o rtunida d es educa-
cio nais, p o r n ovos e spaços n a socie d ad e bras il e ira , p o r ma is resp e ito
p essoal, p e la ga ra ntia de dire itos já re zados n a n ossa Con stituição e
p o r n ovos dire itos .
É um mundo novo, esse mundo indíge na, e e le não está de cabeça
para b a ixo, m esm o porque, na socie da de m a is a mpla , essas mudanças
vêm ocorre n do com igu al inte n sidade . É um mundo muito d ife re nte
daquele d o p assado, mesm o d o p assado recente .
Este livro, p o rta nto, t rata d o presente d os p ovos indígenas brasile iros,
p o ré m com revisão d e seu p assado ( de 1500 até os dias a tu ais) e com
vistas ao seu futuro . T e nta re i de m o n stra r isso no texto que se segue,
bem com o e m m a p as e fo tos ilustrativas .
No Anexo apresento um resumo de dad os gerais e con cre tos d e
qua ntos são os p ovos indígen as, s uas p o pulações e s uas línguas falad as .

NOTA DE ESCLARECIMENTO

Info rmações sobre os índios, suas te rras, su as c ulturas, su a p artic ipa -


ção no mundo atua l d eixaram de ser exclusivas de a ntropó logos, jo rna -
listas e estudiosos . Elas se e ncontram fac ilme nte na inte rne t , e m sites,
blogs, ao to que d e c h am ada n o Google o u no Ya h oo . No Faceb ook ,
cente n as de joven s índios p a rtic ipam inserindo fotos d e suas a lde ias,
discutindo assuntos p o líticos, compa tt ilha ndo ide ias, o u simplesme nte
P REFÁCIO 15

fofocando . O site da Funai (www .funa i.gov .br) conté m ma pas d e todas
as te rras indíge nas plotados n o Google Ea rth e alguns sites esp ecia li-
zados, com o o d o Instituto Socioambie ntal (www.socioambie ntal.org),
tra z informações atualizad as sobre a ma io ria dos povos indígenas e as
n otíc ia s mais a tua is . As únic as falh as o u o que faze m falta n essa massa
d e informações são análises d os da dos e sínteses inte rpre tati vas d os
te mas . Eis p o r que livros a inda são n ecessários p a ra se compreende r o
mundo indígen a .
Po r s ua vez , a pe lo para a boa vontade d o le ito r e m duas instâ n cias .
A prime ira é p elo s n o m es do s p ovos indíge na s , que varia m muito n o
te mpo, nas grafias e em função d e a uto d e n ominações dife re ntes d os
n om es ma is conhecidos o u u sad os na lite ratura a ntropo lógica. A se-
gunda é p e los mo m e nto s e m que a lguns te ma s são tra zidos à discussão
re p etida m e nte, e m capítulos dife re nte s , p o ré m sempre e m conte xtos d e
explica ções distintos e com o intuito de escla recime ntos m ais amplos .
INTRODUÇÃO

O Brasil e o s índio s , d esde 1500, formam uma dupla in combinável. A


relação e ntre ambas a s histó rias é cla rame nte inve rsa : à m edida que o pri-
m eiro c re sce, o o utro decresce . Inde pe nde nte m e nte d o pe río do histó rico -
seja colô nia , m o narquia , re pública, ditadura o u d e mocracia - , n ota-se
sempre a má s ina d os índio s: pre ssões sobre suas te rras , d esleixo com s ua
saúde e su a e ducação, desrespe ito, injustiça e p e rseguições que sofre m ,
vindas d e tod os os qua drantes d a nação (inclusive, susp eitamos, d o n os-
so pró prio íntimo de rrotista) . Po de ría m os facilme nte chegar à conclusão
d e que não há lugar n o Bras il p a ra os índios . Não no Bras il de h o je.
A bem d a ve rda de, a re lação que os índios tê m com o Bras il , sob
ta ntos as pectos, n ão é pio r ne m m e lho r do que trinta o u o ite nta a n os
atrás . Os m esmos proble m as de séculos p assados p e rma necem: m á
vo ntad e e desleixo d as a uto ridades p ara com os h abita ntes a utócto nes
d este pa ís, po lítica indige nista dúbia, a mbição p o r pa rte das e lites po lí-
tico-econ ô micas e falta d e solida ried a de huma na . Um número expres-
s ivo da p o pulação no Bras il ins iste em conde n a r os índi os à m a rge m
d a histó ria, cons ide rando -os socie da des inviáveis e um e mpec ilh o à
con solidação d a civ ilização b rasile ira. Em contra pa rtida, vem a ume n-
ta ndo o número d e brasile iros que simpatizam com os índios e qu e
os reconhecem senho res o rigin á ri os dos te rritó rios nos qua is ha bita m ,
p a ra quem a n ação como um to d o tem um g igantesco d é bito a resga -
ta r. Po de m os nos re go zijar d e que ta l simpatia n ão é a p e n as comise-
ração, mas, s im, o início d e uma conscie ntização comprom etida que
vê os índios com o p a rceiros e a liad os d o p o te n cia l c ultural b ras ile iro.
I NTRODUÇÀO 17

Não resta dú vida : o p ovo brasile iro conhece m a is o índio 1 ago ra d o


que h á alguns a nos . Esse fato r foi d ete rmin a nte para aume ntar o se u
nív el d e con sciê n cia po lítica ao ve r a luta pela sobrevivê n cia indígen a
com o parale la à su a p e la a mpliação d os seus dire itos funda m e ntais d e
se r humano e c ida d ão d e uma n ação m od e rna.
A reversão histó rica n a d e m o grafia indígena é o que h á de ma is sur-
preende nte e extrao rdinário n a re lação e ntre os índios e o Brasil. N ão
é m ais te m e rá rio a firma r, como o fizem os e m primeira mão h á 25 a n os,
que os índios, afin al, sobreviveram, e que e sta é uma realidad e con cre -
ta e p e rmane nte . É um tanto impied oso valo rizar e m de ma sia o te rmo
sobrevivência pa ra um quadro histó rico em que 90% da p o pulação ind í-
gena o riginá ria d esapa receu num p e ríod o de po uco m ais de 500 a n os,
se compa ra do com o a no d e 1500, qua ndo hav ia cerca d e cinco milhões
d e índios no te rritó rio e m que é ho je o Brasil. Não se p od e fal a r nessa
sobrevivên cia sem se da r conta do qua nto foi p e rdido d ura nte esse pe -
río do . H o je são cerca d e 530 mil índios que vivem e m te rras indígen as
n o p a ís, e p o r volta d e 360 mil que estão n as cidades, d e acordo com o
Censo 2010 d o JBGE . Po ré m , e m m eado s da décad a d e 1950, segundo um
conhecido estudo d e Da rcy Ribeiro, os índios som avam cerca de 100 mil
indivíduos e estavam e m pe rma n e nte declínio . Não som e nte m o rre ram
e foram mo rto s milhões d e se res humanos, com o se extinguiram para
sempre, calcula -se, ma is de c inco cente n as de p ovos e specíficos, d e
e tnias e culturas huma nas pro duto de milhares de a nos de evolução e
ada p tação ao me io ambie nte físico e social em que v iviam. A humani-
d ade pe rde u com isso n ão só os valo res e conhecime ntos que, de finiti-
vame nte, d e ixaram de faze r pa rte de seu ace rvo, como se ressente pe la
d iminuição da d ive rsidade b io lógica q u e p ossibilita m ais c h a n ces de
sobrevivên cia ao Homo sapiens.2
O fato é que há fo rtes indíc ios d e que as p o pulações indígenas atua is
vêm crescendo n as últimas cinco décad as, s urpreende ndo as exp ectati-
vas ala rma ntes e as conside ra das m ais realistas de a ntro p ólogos, histo -
riad ores e indige nistas d e te mpos a trás . Alguns povos indígen as, com o
os Gua rani,3 os T e re n a, os Gu ajajara, os Tikuna, os Makux i e os Mura,
que tê m ma is de duze ntos a n os d e contato com o mundo luso-bras ile iro,
pa recem te r adquirido re forço bio lógico e c ultural p a ra de fe nde r-se d as
ad versidades mais b rutais que lhes fo ram impostas a té agora, alé m de
já te re m a lca n çad o p o pulações d e m a is de vinte mil indivíduos . Muitos
que havia m sofrido que das expressivas, d e ma is de 50% de s uas p o pula -
ções o riginais, deram um salto de crescime nto, a exemplo dos seguintes
povos : Karajá, Munduruku , Canela, Kaya pó, Xavante etc . O utros m ais,
18 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

Terras indígenas no Brasil

PARANÁ

-..
SITUAÇÃO FUNDIÁRIA ---;,-J·,.__,___,-
• Declaradas, homologadas, regularizadas ..
e encaminhadas como reservas indígenas
• Em estudo e delimitadas
. ...,.,
.-- ;,,:-:..- , SANTACATARINA

.....

Fonte: IBGE . Dis po níve l em: <www.ib ge .gov.br/ ho me / pres ide ncial no ticias/ no ticia _ vis ualiza .php?id_
notic ia =2 194&id_pagina =l >. Acesso e m : 1° set. 201 2.
I NTRODUÇÀO 19

como os U rubu-Kaapo r, Gaviões-Pa rkatejé, Kayabi , Jurun a, Yawalapiti ,


Na mbiq uara, Tapirap é e tc., que estiveram próximos de ser extintos, se
recu peram e se estabelecem b iológica e cultura lme nte.

Quadro 1 - Relação das 15 maiores populações indígenas em 201 O

População indlgena com indicação das 15 etnias com maior número de indlgenas,
por localização do domicilio - Brasil - 2010
Número Total Nas terras indígenas Fora das terras indígenas
de ordem Nome da etnia POP.ulação Nome da etnia POP.Ulação Nome da etnia p ulação
1 Tikuna 46045 Tikuna 39349 Terena 9626
2 Guarani Kaiowá 43401 Guarani Kaiowá 35276 Baré 9016
3 Kaingang 37470 Kaingang 3181 4 Guarani Kaiowá 8125
4 Makuxi 28912 Makuxi 22568 Mura 7769
5 Terena 28845 Yanomami 20604 Guarani 6937
6 Tenetehara 24428 Tenetehara 19955 Tikuna 6696
7 Yanomami 21982 Terena 19219 Pataxó 6381
8 Potiguara 20554 Xavante 15953 Makuxi 6344
9 Xavante 19259 Potiguara 15240 Kokama 5976
10 Pataxó 13588 Sateré·Mawé 11060 Tupinambá 5715
11 Sateré-Mawé 13310 Munduruku 8845 Kaingang 5656
12 Munduruku 13103 Kayapó 8580 Potiguara 5314
13 Mura 12479 Wapixana 8133 Xukuru 4963
14 Xukuru 12471 Xakriabá 7760 Tenetehara 4473
15 Baré 11990 Xukuru 7508 Atikum 4273
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 20l0.

Poré m , h á ainda o risco de muitos povos indígen as contin uarem a


sofre r reduções pop u lacio n a is e c h egare m a p o ntos sem reto rno, com o
já aco nteceu n os ú ltimos 100 a nos com os Xetá, do Para n á, os Krêjé,
do Maranhão, os Kayapó do Pau d 'Arco, do Pará, os Baenan, do sul da
Bahia, e m u itos ma is q u e, para sobrevivere m indiv id ua lme nte, tiveram
de se m esclar fís ica e cultura lmente com outras etnias m a is n umero-
sas . Os casos ma is dramáticos são : os Avá- Can oeiro, do Tocantins, q ue
soma m me n os de 12 pessoas; os J uma, apenas 5 deles, todos vivendo
e ntre os Uru-e u-wa u-wau, e m Ron dônia; os 2 irmãos, ch amados pela
Fu na i de Auré e Aurá, e n contrados no Pará, q ue h o je vive m n o Mara-
nhão, sem se saber a q ue p ovo perte nceram ; e o c h amado "ín d io do
b uraco", u m único sobrevivente d e u m povo atacado já na década d e
1970, n o sudoeste d e Rondônia, por capan gas d e faze ndeiros, que, d e
ta nto p avor, n ão quer fa la r com ninguém e vive escon d ido numa p alho -
ça dentro da q ual cavou u m buraco na te rra . Há, pelo in verso , aquelas
e tnias q ue estavam p raticame nte desaparecidas, de quem n ão se ouvia
20 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

mais falar havia muitos anos, com o os G uató, do alto rio Paragua i, os
Purubo rá, de Rondônia, que de rep e nte reapareceram , os mais velhos
ainda falando suas línguas, a exigir um lugar ao sol. H á também comu-
nidades de lavradores no sertão no rdestino e ribe irinhos da Am azônia,
a ntes vivendo com o "caboclos", que, p o r m otivos diversos, "ressurge m ",
ass ume m uma ide ntidade indíge na na base da convivê n cia comum e n a
le mbrança de te rem sido índios n o passado, de partilharem de rituais o u
h ábitos diferenciados dos seus vizinhos. São muitos esses casos e seu
ress urgime nto é explicado por uma teoria conhec ida com o "etnogên e -
se", o ri gina lme nte aplicada a casos de p opulações urbanas em c idades
africanas que recriam sua a ntiga identidade tribal. As adaptações dessa
teoria no Brasil se dão pela especific idade dos casos brasileiros. Nos
últimos 15 a n os s urgiram povos com o os Tupina mbá , no s ul da Bahia,
os Tumbala lá, no médio rio São Franc isco, os Tabajara, n a Paraíba, os
Anacé e ma is dez grupos diferentes n o Ceará, e a té os Apicuns e Borari,
n a fo z do rio T apajós. Por fim , há de se mencionar aque les povos indí-
genas que continua m a vive r como sempre vivera m , antes da c h egada
de p o rtugueses o u brasileiros , nas suas flo restas e rmas, muitas vezes
fug indo do contato com o utros índios e , acima de tudo, de brasile iros. A
e les dei o cognome de índios a utônomos, por v iverem autonomamente;
mas , na lite ra tura indige nista e a ntropo lógica a inda são c h a mados de
iso lados ou até de a rredios , o que cons iste numa a titude brasilo-cêntrica,
com p e rmissão da m á expre ssão .
Na a mplitude d e situações d e inte r-relacio name nto, que vai de sde os
índios ressu rgentes do Nordeste - quase todos fazendo parte de s iste-
mas socioecon ômicos regio n a is - até os índios autônomos, que perma-
n ece m à marge m ou nos inte rstícios da e xpansão econ ômica brasile ira,
os índios b rasile iros , o u os índios que h abitam o Brasil, luta m à su a
maneira por um luga r n a comunidade dos h omen s , sem te r ta n ta clareza
de qual seria esse luga r.
Ne m n ós , que, do outro lado (do m ais se guro), te ntamos compreen-
d e r o se ntido e a m arc h a da história da huma nidade, e specia lme nte do
Brasil , sabemos o que p oderá v ir a acontecer. Somente que o quadro
é tnico brasileiro n ão é te rminal, como s e postulava a ntes ( e muitos as-
sim o que riam). O delinea me nto de uma visão e d e uma e straté gia para
se e stabele ce r a continuidade e a p e rmanê ncia segura dos povos indíge -
n as no Bras il é complexo e a rdiloso - pois a questão indíge na se movi-
m e nta por forças adversas de gra nde poder de destruição-, suste ntado
por forças me nore s d e de fesa , influe n ciado por acontecime ntos ind ec i-
frá veis no te mpo ime d iato de uma decisão a s e r tomada. Por exe mplo , o
JN T RO D U Ç À O 21

que s ignificaria p a ra uma p o pulação indígen a re la ti va me nte peque na o


ap o rte d e recursos m o n etário s a dvindos d e royalties p ela explo ração d e
miné rios e m su as te rras, com o que re m alg uns? A su a capitalização o u o
seu a niquilame nto cultural? O que sig nificará a presente atitude do go-
verno D ilma Ro usseff, através do Decre to 303, publicado p e la Advoca-
c ia- Ge ra l d a União, d e aceita r as ressalvas de te rmina das p e lo Supre m o
Tribunal Federal (sTF) - no sentido de não te r de con sultar os índios ao
se dete rmina r a con strução, em te rras ind íge nas, de estradas, linhões de
tra nsmissão d e e letricida de, o u a in stalação de unidad es milita res?
O presente indígena está d ia nte de nós, com o um fe n ô m e no socia l
real, p o rém d ifícil d e compreende r e c h e io de ações e mo tivações ines-
p eradas . Assim, voltar-se p ara o seu p assado é imprescindível a fim d e
se cote ja r com o presente e compreendê-lo me lho r. Mas també m só fa z
sentido se p roje tado num futuro próximo o u vislumbrável, p o is está
condicio n ad o a tantos o utros acontecime ntos e fo rças socia is q ue o
exercício da p ros pectiv ização se to rna inevitável para se propor ide ias e
soluções p ossíveis à s ua e xistê n cia . A dinâ mica de seu re lacio na me nto,
q ue se dá com quase to dos os segm e ntos da nação, e o presente q ue se
constituiu a seu resp e ito deixam claro que os ín d ios são uma q uestão
de âmbito e interesse n acio na is . Não se pode fug ir ao índ io, n em que
o Brasil vire p o tê nc ia mundial. P ropom o-nos a compreendê-lo e m s ua
proble má tica m a is a mpla e discutir caminhos p ara a sua p e rma n ê n c ia n o
se io da n ação brasile ira , como parte e sse ncia l e inte grante do se u povo .

A AMPLITUDE DA QUESTÃO INDÍGENA

A q u estão indíge n a nasceu co m o de scobrime nto do Brasil, da Amé rica


e m geral, e continua rá a existir e nq ua nto ho u ver povos ind íge nas . D iz
respeito ao índ io e s uas re lações com o mundo que se c rio u ao seu
re dor e à su a revelia , co m p ungindo-o à co n d ição de e stranho n a su a
própria te rra , fo rçan do-o a té à morte o u ao de saparecime nto c ultural.
O índio é o centro da q uestão , mas a sua com posição a b range q uase
to dos os segme ntos nacio n ais , seja por contrap osição , seja e m comple -
m e nta ridad e o u até p or asce nd ê nc ia . Suas tra n sformaçõ es se dão de sde
o te mpo em q u e os ín d ios e ram uma a me aça rea l ao estabelecime nto
colo nia l p o rtu guês e , po r isso , combatidos e m gue rra , p assando p e las
re lações d e escravidão e servilism o , p e la instituição do pate rna lism o
(q u e n asce no Impé rio e se co n solida n a Re pública), até a crise d e li-
b e ttaçào q ue caracte riza os tem pos ma is rec e nte s . A que stão camin h a
22 Ü S fNDJOS E O B R A SIi.

com o d esen volvime nto do p a ís, qua se sempre e m relação inve rsa - eis
o se ntido da s ua tragédia. Q ue isso seja cons ide rado um fato n o rmal e
inexorável - eis a su a racio n alização, tão e ntranhada n o pe nsame nto
cie ntífico qu anto n o p o pula r. Para compreendê-la m e lho r, é preciso
recolocá-la na histó ria, seguir os seus p assos e os seus p e rcalços , o bse r-
var a s ua dinâmica e o s se us p o ntos d e e quilíbrio - nunca , p o ré m , d e
h armo nia e ntre as pa ttes - , e d aí re tira r as lições que ap o nte m o utras
possibilidad es n o presente e pa ra o futuro.
A questão indíge na se processa numa dime nsão histó rica mais a mpla
d o que aque la que d efine a histó ria bras ile ira o u me smo a a me ricana e m
geral. Ela é a re presentação conc re ta de um inte rcruzam e nto que infeliz-
m e nte se d á como e mbate e ntre d o is tipos de civilização, d o is grandes
comple x os d e p o ssibilidades d o ser humano .
Po r um lado, a civilização e uro pe ia, s ínte se e fulcro dispe rso r das
expe riê ncias c ulturais de 10 mil a nos d e existê ncia d e cente nas d e po -
vos que, de uma fo rma o u de o utra ( quase sempre pelas g u e rras e pe la
o pressão, ma s també m p elo diá lo go e p e la difu são d o conhecime nto),
pro duziram um comple xo dinâ mico que estava e m e xpansão incontida a
p a ttir d o século xv . Essa civilização n ão se restringe ao contine nte e uro-
pe u p ropriam e nte dito, m as e nglo ba ele me ntos de to do o Velho Mundo,
a Ásia , o O rie nte Mé dio e o Medite rrâ neo africano . Isso fic a muito cla ro
n ão so m e nte p o rque essa civilização é forma da p elo acervo d e tod os es-
ses recantos, m as ta mbém po rque o seu povo, o seu m ate ria l huma no, fe z
evoluir um sistem a imuno lógico com o um to do . Essa unidade b io lógica
foi funda m e ntal qua ndo d o confro nto com a civilização d o Novo Mundo .
Do o utro lad o, a civilização das Amé ricas, també m com um pe ríod o
de desenvolvime nto idê ntico, mas sem uma inte gração completa e ntre
os seus fulcros d e c riativida de e p od e r. Os gra ndes complexos c ulturais
m exican o, guate m alteco e andin o n ão se exp a ndiram alé m d e s uas fro n-
te iras, ne m inte rligaram os complexos inte rmediá rios, com o as c ulturas
do d eserto no rte-am e ricano e os cacicatos da Amé rica Central e d os
Andes sete ntrio na is .
No século xv as civili zações d os Astecas e d os Incas b uscavam exp an-
dir-se e a lca n ça r n ovas fro nte iras, m as sem grandes resultados . A te ntati-
va incaica d e pe ne tra r na Amazônia fo ra fru stra da e só a custo de muita
fo rça milita r é que assegura ram a lgumas p osições no pla na lto bolivia n o
e nas e n costas dos fo rma do res do grande rio . Na verdade, duze ntos o u
tre ze ntos a nos a ntes, essas civilizações h aviam alca n çad o m a io r exp an-
são e esple n dor. Os dema is p ovos v iviam em siste mas po líticos m ais
simples e de fe n d iam a su a liberdad e d e qualque r je ito .
I NTRODUÇÀO 23

Às Américas faltaram o cavalo (que aq ui se hav ia extinto 10 mil a n os


a ntes), a descoberta do fe rro, a aplicação das utilidades técnicas da roda
e, sobre tudo, o contato com o desenvolvimento do Velho Mundo, espe-
c ialme nte com suas doen ças. O sistema imuno lógico dos povos ameri-
can os n ão conhecia as te rríveis bactérias, vírus e p arasitas que durante
a n os haviam s ido o flagelo dos p ovos de lá, mas que p o r isso m esm o
adqu iriram as defesas naturais para o seu combate e a sua sobrevivên-
c ia. Ao traze r esses flagelos para o Novo Mu ndo, transportaram a sua
maio r a rma. 4
Esse aspecto uni versal da questão indíge na parece a todos como e m
vias de conclusão. Talvez uma n ova civilização, um novo complexo
c ultural , juntando os potenciais de todas as suas culturas con stituintes,
esteja e m fo rmação no nosso contine nte, certame nte com influê nc ia pre-
ponderante do seu ven cedor. Essa é, sem modéstia, a gra nde visão utó -
pica de Darcy Ribeiro. Restam, no enta nto, alg uns e nclaves da civiliza -
ção o riginária, nos Andes, n o México, n o deserto ame ricano, e nfim, n o
Brasil. Q ue m vê a força ine rte que se contém nos rostos dos Q uéchua
e dos Aymara, do Peru, da Bolívia e do Equado r, sente que talvez nem
todas as fichas estejam contadas. Mas não se liga muito a isso, embora a
experimentação que ocorre na Bolívia ve nha a ser prenúncio de n ovas
formações s inté ticas de civilização.
Quanto ao Brasil , os 230 a 240 povos que aqu i estão tê m um peso
m e nor no cômputo ge ral. Pare ce que pou cos acre d itam n ele s com o
possibilidade d e continuidade histórica ou re novaç ão cultural. São so-
breviventes de uma tragédia universal que se realizou na fo rma de um
h o loca usto , dentro de um territó rio e a propósito da fo rma ção de uma
nação. Se u p e so atual, co mo d e há muitos anos , não se ponde ra pelos
se us núme ros, mas pela qualidade que e mpre sta ao s e ntime nto da na-
c io na lidade brasileira.

UMA QUESTÃO IDEO LÓGICA

A permanência da questão indígen a deve-se não somente à lem-


brança histórica , à p re se n ça dos sobreviventes e à continuidade de sua
e strutura , mas també m à sua influê ncia ide o lógica e na for ma ção da
n acio n a lidade brasile ira. A despeito da magnitude da vio lê n cia que fo i
usada contra os povos indígenas , essa realidade inquestion ável se deu
d e uma form a não totalme nte conse nsual. É mais do que inte ressante
notarmos que dúvidas morais e fo tte se ntime nto de culpa pelo que
24 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

faziam ou viam fazer acome tiam muito s segme ntos da civ ilização e uro-
p e ia o u , e specificame nte, da nação p o rtug uesa, ao de stroçar a lde ia s e
re duzir os índios à condição d e seres infe riores . N ão som e nte as fo rças
d a Ig reja Cató lica ( que, sob o p o nto de vista histó rico, fazia pa rte d o
pro je to p o rtuguê s , acatava-o e promovia -o à s ua ma ne ira), ma s a pró -
pria Coroa po rtuguesa - isto é, o re i e a buroc racia e statal e, até e m a l-
gumas ocas iões, os pró prios colo n os (sobre tudo de p o is que sentiram o
p e rigo já controlad o) - de mo n stro u um inte resse esp ecial pelos índios :
o lhavam-no s de uma forma sutil e mais resp e itosa d o que o faziam com
o s ne gro s , p o r exe mplo, reconhecendo naque le s alguma s qualidades
e alguns d ire itos . Certame nte, n ão é p o r o utro m otivo que o prime iro
conjunto de le is p o rtuguesas em re lação aos índ ios, contidas no Re gi-
m e nto d e 1548, d e To mé de Souza, recome nda explicita me nte que os
índio s d evam ser tratados com re spe ito e amistosidade .5 Vere mo s m a is
adia nte que a principal caracte rística d a p olítica indige nista da Coroa
é uma a titude d e m á-fé qua nto à p osição que o índio d everia te r n o
pro je to colo nial - se e scravo, se livre, conqua nto que fosse s údito . Essa
caracte rística atinge a Igre ja, secular e mo n ástica, o ra d e braços dados
com os inimigos dos índios, o ra de fe nde ndo -os sob p e rigo de desaca-
to, punição e expulsão, p ela d esob ediê n cia às o rde ns d a Coroa e pe la
re b e ldia aos p od e re s colo niais . O s colo nizad o res que ria m ga nhar seu
espaço econ ô mico e p o lítico, achava m os índios infe nsos ao trabalho
rotine iro e fo rçad o - p o rta nto, um e mpecilho à sua exp a n são - , m as
reconhecia m a sua existê nc ia livre . Redu ziam-nos à n atureza, à a nima -
lidade p a ra d estroçá-los quando precisavam de seus be ns p atrimo nia is;
d ep o is, criava m le is p a ra integrá -los .
Essa p e rnic iosa atitude adquire conto rnos ma is de lineáveis qua ndo
o Brasil se to rna inde p e nde nte e urge se criar uma ide ntidade pró pria
e da r à nação um proje to . José Bo nifácio d e Andrad e e Silva, o Pa tria r-
ca d a Inde p e ndê n cia, com seus "Apo nta m e ntos p a ra a Civilização d os
Índios Bá rbaros d o Brasil", escrito e m 1819 e a presen tado à Assemble ia
Con stituinte de 1823, ina u gura a preocupação brasile ira e m e ncontra r
o lugar ade qua do p a ra os índios, ta nto n o sentime nto nacio n a l quanto
n o pró prio te rritó rio . Liberais e conservad o res, senho res de te rra e a
p eque n a classe m édia que se fo rmava p assa ra m a trava r uma batalha d e
p alavras e conceitos que te rmino u se conc retiza ndo e m le is, precon cei-
tos e idealizações, a lg umas das qua is a inda ho je tê m re pe rc ussão .6 No
início, as discussões e as p rop ostas são centradas n o Instituto Histó rico e
Geográfico Brasile iro, funda do em 1838, a presentadas p o r literatos b ra -
sile iros e estra nge iros, com o o n aturalista ale mão Carl von Ma rtius, que
JN T RO D U Ç À O 25

aqui estivera e ntre 1817 e 1821, e que sugeriu, p ara a formação é tnica
do Bras il , a imagem de um grande rio, n o qual o índio representaria
um dos três afluentes, junto com o branco e o n egro. 7 Daí por diante,
essa imagem e suas va riações se mantêm n a consciência n acional de
uma forma inde lével, mesmo e ntre aque les que são declaradamente
a nti-indíge nas, como o historiado r Francisco Adolpho de Va rnhagen , o
c ientista H e rmann von Ihe ring e tantos mais que se juntam na c rença da
inviabilidade histórica do índio n o Brasil. Liberais, românticos, positivis-
tas, militares, a Igreja e a chamada sociedade c ivil , bem com o o próprio
Estado, em um momento o u o utro, já foram grandes defensores dos
interesses indígenas. Hoje amigos, aman hã inimigos.
Em comparação com países como a Argentina, a Venezuela, a Colômbia
e os Estados Unidos, o Brasil se apresenta va ntajosame nte com um pa-
drão de ideologia e de políticas indigenistas ambíg uo e instável, o que
demonstra a sua busca por um equacionamento da questão, que reflete
a sua própria busca de identidade. (A comparação com o utros países,
como Paraguai, Bo lívia, Peru, Equador, México etc. é mais difícil devido à
composição e densidade étnicas muito diversas do caso brasileiro.) Des-
de a independência, n ão há n o Brasil uma política de extermínio, assim
como ocorreu na Argentina e nos Estados Unidos. É ve rdade que em
a lg umas províncias brasileiras já se extinguiram grupos indígenas sim-
plesmente por decreto, como o fez o presidente da província do Ceará
na d écada d e 1860. Tam b ém é fato que a Lei d e Te rras d e 1850 fo i ma is
fundamental ne sse processo de se e sbulhar o índio de suas terras, ao não
registrá-las e, assim, inviabilizar o u destruir dezenas de alde ias por todo
o país. Por s ua vez, a própria le i indigenista do Impé rio , que crio u as Di-
retorias dos Índios e manda prote ge r as a ldeias, c ivilizar e catequizar os
índios , a partir de 1845, também falhou em garantir te rras aos índios que
já estavam no processo de integração n a n ação. Nesse sentido, o Brasil
é mais s util que a Argentina , país que , em 1879 , simplesmente e n viou
tropas para d estru ir os índios ao sul do rio Colorado, ou que os e sta-
dunidenses , os quais os expulsam de toda a reg ião le ste do Mississipi. 8
Os efeitos e as con sequê n cias das atitudes políticas brasile iras são
diferentes mesmo assim. A influê n cia do positivismo sobre os militares e
re publicanos os levou à cria ção do Serviço d e Proteção aos Índ ios (sPi),
já na Re pública, em 1910, cuja máxima "Morre r se prec iso fo r, matar
nunca", adotada pelos sertanistas e indigenistas em relação aos índios
a rredios ao con tato, constitui uma das poucas contribuições brasileiras
a uma filosofia humanista ou a uma forma d e cristianismo tupiniquim.
Assim , a dime nsão ide ológica do indige nismo nacional é fundame ntal
26 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

para se e nte nde r os proble mas atuais da que stão indígena. O índio e stá
n o cerne d a con sciê nc ia nac io na l - e is a s ua força m aio r d e so brevivên-
c ia, be m com o a su a instabilidad e, p o is essa consciê n cia n em sempre se
coaduna com a realidade .9

ATUALIDADE DA Q UESTÃO INDÍGENA

A questão indíge na se d esenrola na histó ria bras ile ira com um sa ldo
o b viame nte negativo p a ra o s índios . A n ação brasile ira se constró i so -
bre o p atrimô nio te rrito rial dos cinco milhões d e índios que a qui hav ia,
suga o seu sangue e o tra nsforma em "o uro vermelho" (n a expressão do
Padre Antô nio Vie ira), e receb e de doação e p o r osmose a lgumas d as
s uas principa is caracte rísticas c ultura is . Em troca, não os inte gra com
a uto no mia e libe rdade n em resolve seus principa is e a tua is p roblem as
d e sobrevivên c ia : não some nte falta um ceita número d e te rras a ser d e -
marcad as, como a quelas já ho mo loga das e registrad as com o Pa trimô nio
da União a inda são a m eaçadas d e se re m revogadas p o r muda n ças na
legislação e invadidas o u assediadas p o r inte resses econ ômicos . Embora
su as cond ições de saúde te nham m elho rado substancialme nte, que se
p e rceb e n o se u cre scime nto de m ográ fico, muitas condições b ásicas d e
saúde continua m infinitame nte infe rio res e m re lação ao a te ndime nto
d os dem ais brasile iros, a exemplo do índ ice de m o1talidade infa ntil que
a inda se ma nté m o dobro da m édia b rasile ira (25% p a ra 52%) . No ite m
e ducação escolar e oportunidad es de d esen volvime nto p essoal, a d efa-
sagem e ntre índios e não índios é assustado ra!
Um a estrutura d inâmica d e p o de r infinita me nte des igu al é fo rmada
p o r muitos e va riados elem e ntos que con stitue m a questão ind íge na n o
presente, tais como os p ovos indígen as, o Estado, a Igreja, a situação d e
d esen volvime nto socioecon ô mico e s uas fo rças d e e nfre ntame nto, os
milita res, os intelectua is (antropólogos, jo rnalistas, lite ratos, ad vogad os
e tc .), a classe mé dia urbana, os faz e nde iros, os posseiros . O que m otiva
essa estrutura va ria n o te mpo : a m ão d e o bra , a exp a n são agrícola, o
valo r d a te rra, os mine rais . Está ma is d o que claro p ara to dos que a te rra
e s uas rique zas, co1no 1ne rcado ria e co1no reserva de valo r , a tu alme nte,
são a gra n de pro pulsara da d inâmica da questão indígena . Os povos
indígenas re tê m e m seus dire itos a p osse efe ti va, reconhecida o fic ia l-
m e nte o u e m p o te n c ia l de a p rox imad am e nte 13% d o te rritó rio n ac io na l.
Desafiam , assim, p olíticas desenvolv ime ntistas a uto ritárias, inte resses
mine rado res e m adeire iros, e mpresas ag rop ecuá rias susten tadas p o r be-
JN T RO D U Ç À O 27

n e fícios fiscais e fina nceiros, o capital nacio n a l e o multinacional. Esses


interesses dominantes, de maneira direta o u por inte rven ção política,
corroem qualquer te ntativa que parte do governo o u fo ra dele para esta-
belecer os parâmetros da questão indígena a partir da definição final da
demarcação de todas as terras indígenas. A expectativa é, sem dúvida,
de que, assim permanecendo , as terras indígen as da Ama zônia , ou onde
h ouver inte resse econômico de peso , possam vir a ser utilizadas à reve-
lia de seus legítimos senhores. As hidre létricas, a política de segurança
nacio n a l, a abe rtura de terras ao capital beneficiado e aos despossuídos
de o utras regiões também integram o quadro da problemática atual.
A Fundação N acio n al do Índio (Funa i), ó rgão do governo e ncarre -
gado da questão indíge n a, criada, e ntre o utros mo ti vos, com a expressa
fun ção de demarcar todas as terras a té 1978 (c in co anos após a le i do
Estatuto do Índio) , depois a té 1993 (cinco anos depois da promulgação
da Constituição Federal brasileira), obvia mente n ão cumpriu sua missão.
Po r quê? Prime iro, p o rque não é fácil , tantos são os problemas. Depois,
em razão da proverbial incompetê n cia burocrática b rasile ira, por g ran-
des dificuldades de retira r invasores, por inte rpretações jurídicas sobre
o que é te rra indíge na, m as também por um motivo muito próprio da
questão indíge na. Q ua l seja, uma boa parte das te rras indíge nas até
agora a inda n ão demarcadas somente fo ram assim reconhecidas pouco
tempo a ntes (e até depois) dos refe ridos documentos legais. Em a n os
recentes, com o detalharemos mais adia nte, o judiciá rio brasileiro tem
expedido inte rpretações sobre o que é te rra indígen a que vão contra
o e nte ndime nto previsto nas n o rmas estabelecidas pela Constituição
Federal e pe las inte rpretações da Funai. O auge dessas inte rven ções
se deu e m 19 de m a rço de 2009, quando o Supre m o Tribunal Federal
(sTF) pronunciou-se sob re uma série de pontos re lativos à demarcação,
apa re nte me nte com algum nível de flexib ilidade de inte rpretação, já que
os tribunais regio n a is passaram a hesita r na emissão de suas decisões,
sempre suje itas a novos reclamos . Dessa fo rma, a Funa i, e p o r extensão
o Estado brasileiro , n ão consegue con cretiza r uma p o lítica indige nista
estável, com re gras e no rmas que assegurem um novo lugar e um novo
p ap e l p ara os índios n o panorama político-cultural n acio na l. Por outro
lado, permanece uma estra nha ambigu idade, para n ão dizer dubiedade,
a res pe ito do caráter jurídico do índio brasile iro. Se a Constituição Fede-
ra l gara nte todos os d ire itos d e cidada nia aos grupos indígenas e ainda
os admite como cultu ras diferenc iadas e com direitos específi cos - por
exemplo, o direito da posse coleti va e o usufruto excl us ivo da terra - ,
e m contrapa1tida, o novo Código Civil, de 2000, qu e retirou o estatuto de
"capac idade jurídica re lativa" (e, po1tanto, da mino ridade legal do índio
28 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

e da tute la d o Estad o), de ixo u pa ra o legislativo a d ete rminação sobre a


n ova condição jurídica do índio . Conseque nte m e nte, nunca se sabe se
uma d ecisão o u a to po lítico o u econô mico indígena tem valo r a bsoluto
o u rela ti vo . Enqu anto isso, os ga nho s obtidos p e los índios n o con ceito
d a o pinião pública n acio n al, a través d a luta conscie nte p o r seus dire itos
às te rras, à saúde e à e ducação se confunde m com a d esestruturação
administrativa, funcio n al e ética da Funai e as p rop ostas divers io nistas
d e o utros segme ntos d o Estado p o r franqui as simbó lic as que p o uco
valo r tê m p a ra a solução dos pro ble mas re ais d os índios . A visão n acio na l,
a simpatia p e lo índ io e a pró pria p olítica indigenista p e rdem com isso .
Verem os ma is adia nte que este é um mo me nto histó rico es pecial n a
questão indíge na que traz e spe ranças e p e rigos, uma é poca de tra ns ição
sobre c ujo s resultado s finais n ão tem o s ainda cla ri vidê nc ia.

NOTA METO DO LÓGICA E BIBLIOGRÁFI CA

Este livro busca c umprir a ta re fa d e inte rpreta r as relações e ntre os ín-


dios e a n ação brasile ira à luz do d ad o histó rico m a is impo rta nte d os úl-
timos te mpos - o c rescime nto de m ográ fico das p opulações indígenas -
e do surgime nto de uma nova a utocon sciê nc ia ind ígen a e m re lação à
su a posição no Brasil e n o mundo . Ele pre te nde a n alisar , a nunc ia r c ie n-
tificam e nte e avalia r as consequê n cias desses acontecime ntos de gra nde
s ig nificado pa ra os índios e p ara o Bras il.
Estamos fazen do uma revisão cautelosa da histó ria ind íge na b rasile ira,
a pro funda ndo-a p o r uma n ova v isão e stratégica da fo rmação do Brasil,
p a ra dela ext ra ir os funda m e ntos socio lógicos e a ntro po lógicos que n os
p e rmita m de m o n st ra r como e p o r que a gra nde ma io ria dos p ovos indí-
ge nas se extinguiu , e como e p o r q u e uma pequena mino ria sobreviveu
e aos p o ucos vem se recu perando, luta ndo p a ra traçar o seu fu tu ro .
A p a rtir d essa visão me to do lógica que e n foca a histó ria p e la pers -
p ecti va do índio que sobrevive (que é, d e fato, o que n os inte ressa),
p e rcorrem os o caminho d esde a d e scoberta do Brasil, com os olhos
d e quem vive e ntre d o is mundos : o seu , p ropria m e nte dito - de bra-
s ile iro comum e de b ras ile iro inte lectu al e p o lítico - e o d o índio, o u
p elo que dele lhe é dado saber por intermédio de pesquisas de cam-
p o e em a rquivos, de con tatos p essoais, de re uniões e de trabalhos
p o líticos com muitos índios e di ve rsos p ovos esp ecíficos, esp ecia lme n-
te como preside nte da Funa i ( 2003-2007), tudo isso ao lo n go de q ua -
se 40 a n os ininte rruptos . Para o antrop ó logo que viveu meses a fi o
e m alde ias dos índ ios G u ajaja ra ( que têm ma is de 400 anos de con-
JN T RO D U Ç À O 29

vivênc ia com a c iv ilização luso-bras ile ira), dos Urubu-Kaapor (" paci-
ficados" em 1928), e e ntre vá rios subgrupos Guajá (alguns dos quais
a inda permanecem autônomos, isto é, fora do re lac ioname nto com a
Funai, o u m esm o com o utros segme ntos indigenistas , como o Conse -
lh o Indige nista Missionário - Cimi - da Igreja Cató lica), a le itura da
histó ria brasileira, no que con cerne aos índios, ganha uma colo ração
mais íntima, e mesmo as informações e os dados mais recônditos, as
in venc io nices de cronistas e a m á-fé inte rpre tati va de histo riadores o fi-
c iosos p odem ser compreendidos e inte rpretados com ma is segurança
qua nto ao conteúdo e ao sentido da presença indígena nessa histó ria.
É claro que o histo riador sensível é capaz de discernir o significado
da histó ria indíge na , mesm o sem te r tido conhecime nto pessoal direto
de culturas indíge nas - e a lgun s o fizeram, como Capistrano de Abreu
e João Franc isco Lisboa. Mas a visão histó rica se to rna muito m ais rica e
densa se você experime nta a v ivên cia prolongada numa alde ia; acompa -
nha durante semanas a marc ha forçada de um povo pela flo resta, sendo
transfe rido de um te rritó rio para o utro; administra sem recursos médicos
uma epidemia de g ripe que abate e a rrasa um punhado de h omens, mu-
lh e res e crianças; presen c ia o tra b a lho de um velho missio n ário capu-
c hinho no seu miste r d e cate quese de 'desobriga'; compa rtilha do pavor
coletivo de um povo diante do perigo de um ataque de invaso res; dis-
c ute com fazendeiros e com e rciantes de pequenas cidades e povoados
que tê m desave nças com índios , com quem vive m e m re lação de ex-
ploração econômica , repúdio socia l e, ao mesmo temp o, de compadrio
condescende nte; se esforça para conven cer autoridades e burocratas
de uma ação n ecessária para a sobrevivê n cia d e um p ovo, e não logra
resu ltados positivos; vê o relacio n a mento tenso e a mbíg uo e ntre índios
e lavradores sem te rra ; e exerce por quase quatro a n os a presidência
do ó rgão oficial indige nista, sentindo na pele as agruras da ine ficácia
do Estado b rasile iro e as pressões d e todos os lados . Enfim, tudo isso
faz a sua compreensão do que foi um "descimento" se e nquadrar numa
realidade conc reta, ta ngível, n ão só imaginada, ag uçando desse m odo
a sua inte rpretação histórica daque le s mome ntos e do mome nto atual.
Entende-se por descimento a tra n sferê n cia fo rçada de m ais de 1 .500
índios , de uma só vez (amarrados a lg uns, segu indo cabisbaixos a m aio -
ria), d e seus te rritórios para vilas portuguesas - como acontece u tantas
vezes nos três prime iros séculos de colo nização : as missões, os ataques
de bandeirantes p aulistas e de bugreiros, mais recente me nte, as g ue r-
ras de extermínio , as epidemias devastadoras, as quedas populacionais
abruptas e irreversíveis, a fo rmação do mundo rural b rasile iro por cima
dos índios e d e suas te rras, e o utros fatos históricos ma is .
30 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

Visita do autor aos Xavante da aldeia São Marcos, Barra do Garças, MT.

Essa "vantage m " do a ntropó logo é e m tese, claro. O olhar p essoal


e as ca rê n cias inte lectuais também fazem m o lecagens no p e nsame nto
de qua lq ue r a uto r. Esta é uma condição p ossível do traba lho do an-
tropólogo brasile iro da a tualidade e um priv ilé gio c ultural que muitos
brasile iros pode m v iver , e a partir dela avançar n o conhecime nto da su a
realidade socia l. Mu itas vezes não n os da mos conta de que tal va ntagem
é um fator metod o lógico de impo rtâ n cia transcende ntal , p o rque insere
o p esqu isador numa realidade histórica que p ode ser vivida e observa-
da p o r todas as p e rspectivas p ossíveis, no m e u modo d e ver teórico,
hipe rdiale ticamente .10 Embora as nossas academias ins istam em seguir
o modelo exterior, n ão é m a is necessário que o traba lho antropológico
consista num esforço tempo rá rio de p esquisa, seguido p ela elaboração
d e uma tese, a p a rtir da qual se vai extrair por muitos anos o mate rial
e mpírico para se e laborar ideias e teo rias dos mais di versos ma tizes e
satisfazer todos os gostos de m oda. No Brasil , o mate ria l empírico está
a algumas h oras d e voo, n o m áximo a poucos dias de barco; está n os
a rrabaldes das cidades, nos hospitais e casas d e saúde, nas fa culdades
I NTRODUÇÀO 31

públicas e mais frequentemente n as privadas, viaja ndo para re uniões


em Brasília e no exte rio r, e n os corredores do Con gresso Nacional.
Está hoje, como esteve ontem, nos escritos e nos relatos de muitos in-
digenistas, antropólogos e índios - e estará amanh ã. Tal realidade se
sobrepõe com muito dinamismo à estratégia de pesquisa de estudiosos
de outros países. Quantos n ão têm s ido os a ntropólogos que já vêm ao
Brasil sonhando em ser os primeiros a estudar um determinado povo,
desprezando o conhecime nto anterior, mesmo que fosse elaborado pe-
los cânon es da metodologia o fic ia l, e voltaram aos seus países pensan-
do e aspirando que fossem os últimos , por bem ou por aza r? Depois,
os seus pesquisados vêm à luz da realidade brasileira e queixam-se: o
que falaram deles não é exatamente assim ou não tem sido mais por
muito tempo. O conhecimento sobre a estrutura de uma sociedade se
refaz em virtude tanto do tempo mutável em que foi adqu irido, quanto
da própria mutabilidade desta estrutura. A estratégia hiperdialética do
conhecimento é, po1tanto, um princípio metodológico , o conhecimento
de uma realidade e a realidade do conhecimento.
Nesses tempos sentimo-nos seguros de anunciar que a a ntropologia
indígena brasileira pode ousar mais no conhecimento e na ação sobre
a realidade brasileira , sem sentir-se compungida a buscar fórmulas de
conh ecime nto em outras plagas. Não, quiçá , por v irtudes próprias, mas
pela realidade cultural e política que se lhe impõe.
Mas isso não vem d e agora, como uma mutação . Existe uma tradição
na antropologia brasile ira que dá raízes e mantém uma linha d e conti-
nuidade. O pioneiro inigualável dessa tradição é o a lemão naturalizado
brasileiro , Curt Nimuendajú (1883-1 945), que v ive u 40 anos de s ua vida
p e rcorre ndo praticame nte todo o te rritório brasile iro, conhecendo pes-
soalme nte quase todos os povos indígenas da é p oca, le ndo e p esquisan-
do com rigor livros etnográficos e históricos , perscrutando os arqu ivos
brasileiros , batalhando incessantemente pela causa indígena que abra -
çara com tanto ardor e comprome time nto , a ponto d e quase v irar índio,
de se naturalizar brasile iro com sobrenome indígena, sem, no e ntanto,
deixar de registrar as mais preciosas informações sobre esses povos e
suas histórias, de e laborar análises e inte rpretações das mais férteis que
existem na historiografia indígena. Quando morre u , em 1945, numa al-
deia dos índios Tikuna , no a lto Solimões, Nimue ndajú deixava um rico
e precioso acervo de obras, a maioria das quais permanece inédita no
Brasil , sob a g uarda, há tanto tempo, do Museu Nacional. Suas mono-
grafias sobre os índios Guarani, Xerente, Timbiras, Apinajé e T ikuna e o
seu Mapa Etna-Histórico do Brasil e Adjacências u constitu em a licerces
32 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

do conhecime nto a ntropo lógico sobre os povos indíge nas , fundamen-


tam uma metodologia esp ecial e representam a figura excepcio nal de
um intelectual e ngajado. 12
O o utro pilar da a ntropologia indíge n a é também te uto-brasileiro. Tra-
ta-se do professor He rbe rt Ba ldus. Embora Nimue ndajú tenha pesquisado
com afin co a histó ria indíge na , foi Baldus, no Museu Paulista, quem se de-
dicou à tarefa de agregar e sistematiza r as fontes da etno -histó ria indíge-
n a, produzindo uma obra de grande vulto: Bibliografia crítica da etn olo-
gia brasileira (1954-1 968). 13 Praticame nte tudo que está publicado sobre
índios até e ntão se e n contra n essa obra, comentada e indexada. T anto
Baldus quanto Nimue ndajú são pioneiros e m inserir o índio nos contex-
tos histó ricos que o e nvolvem n ão de uma fo rma ilustra tiva, como se fazia
na a ntropologia praticada n a é p oca, m as como p a rte integrante, perden-
do e reagindo, se extinguindo, fugindo o u transforma ndo-se e m função
de uma dinâmica c ultural própria e por força das compulsões que sofria.
Essa fo rma de pensar a a ntropo logia tem um exemplo n otável n o
traba lho de Flo restan Fernandes sobre os índios Tupinambá, realizado
e m duas etapas e ntre 1949 e 1952. Nos livros A organização social dos
í11,dios Tupinantbá e Função social da guerra na socied ade Tupinantbá,
e em outros artigos, os Tupinambá são inte rpretados academicamente
pelo viés fun cio nalista, p o ré m , de fato, p o r uma metodologia histó rica
de grande força dinâmica, na qual as diversas instituições socia is desses
índios são analisadas por suas estruturas próprias e pe la totalidade que
fo rmam em si e e m confronto com outras totalidade s sociais exte rnas,
inclus ive a vinda dos portugueses e fra nceses . Por o utro lado , essas
obras provam cabalme nte que os Tupinambá não foram passivos à c h e -
gada dos invasore s , mas reagiram valorosam e nte , se ndo de rrotados por
m otivos que verem os m ais adia nte .14
Darcy Ribeiro e Eduardo Galvão são os dois grandes a ntropólogos
que con solidam essa tradição Nimuendajú/ Baldus n as suas pesquisas
e na sua de dicação à causa indíge n a . Ambos trabalharam no Se rviço
d e Proteção aos Índ ios , ao lado do ve n e rando Marec ha l Rondon, o r-
ganiza ndo e fomentando o estudo empírico , a documentação histó rica
e cin ematográ fica e o conhecime nto sistemático sobre os índios , e
suge rindo n o vos modos e práticas indige nistas. Darcy Ribe iro passou
d e z a n os no SPI (1948-57), pe squ isou as culturas e os re lacionam e ntos
inte ré tnicos dos índios Xokle ng , Kadiwéu , Bororo , Urubu-Kaapor e
outros mais , fundou o Museu do Índio , dedicado à luta contra o pre-
co n ceito indíge na no Brasil , e e laborou os argume ntos para a c riação
do Parque Indíge n a ( a n te s Nacional) do Xingu , marco do ind ige nismo
JN T RO D U Ç À O 33

brasileiro da década d e 1950, colocando a defesa do índio em a li a n ça


com a preservação da nature za e do patrimônio ambiental da n ação
como um todo. O seu trabalho no SPI, como o de outros intelectu a is,
aglutinava os esforços do inte lectual e do político, do pensador e do
administrado r, n ão fazendo distinção valorati va e ntre o a ntropólogo
e o indige nista. Eis a razão da fe rtilidade do indige nismo lato sensu
àquela época, ga nha n do o reconh ecimento da Unesco, da O rganiza-
ção Inte rnacio nal do Trabalho (oIT), inclusive pela segunda indicação
de Rondon ao prêmio Nobel da Paz e a utilização de muitos con ce itos
do indige nismo brasileiro n os seus dois principais documentos sobre
direitos dos povos indígenas, as conven ções 107 e 169. A Conven ção
169, de 1989, 15 dá um gra nde salto de valo rização dos povos indíge-
n as no panorama mundial, acompa nha ndo a con sc iê n cia universal da
sobrevivên c ia e da conseque nte permanência do índio n o mundo.
Incorpo ra as experiências de a utonomia indíge na em muitas partes do
mundo e, n a minha visão, toma emprestado, sem reconh ecê-lo, muito
da atitude pró-indígena contida n o Estatuto do Índio, de 1973, pro-
mulgado pelo gove rno Médici (1969-1 974), porém influ e n c iado direta
e indiretamente por antropólogos e indigenistas comprometidos com a
questão indígena, e por juristas partidários da visão do indigenato 16 na
histó ria do Brasil. 17 Com a Funai (criada para substituir o sr1 em 1967),
a unidade do pensador com o ativista va i ser quebrada propositada-
m e nte p e los milita res, como tática d e manipulação da opinião pública
e das forças pró-indíge nas no país , para ser recupe rada ao fim do p e -
ríodo ditatorial brasileiro , redimindo o papel da Funai.
A principal obra a ntropo lógica de Darcy Ribeiro, Os índios e a ci-
vilização, con cebida e parc ia lme nte escrita na década de 1950, mas
publicada e m 1970, constitui a mais impo rtante síntese inte rpre tativa do
conhecime nto a té e n tão sobre os povos indígenas e s uas relações com
a história do desenvolvime nto do Brasil no século xx. Sua tese principal
é a de que as culturas indígenas, qu e pode m ser a n alisadas como parte
de um processo evolutivo das socie dades huma n as, são autossu fic ie ntes
e integradas numa lógica própria , e não se diluem em o utras c ulturas,
cons ideradas, sob o ponto de vista produtivo, s uperiores, embora pos-
sam adaptar-se às circunstãnc ias exóge nas e desenvolve r instituições
que as integrem social e economicame nte àquelas c ulturas e sociedades .
Nesse processo, que pode ser concebido como um diálogo , mas que,
em geral, é caracterizado por uma dominação política , as cultu ras mu-
dam e se transfiguram, criam novas modalidades de ser, mas nunca se
assimilam , não se autodestroem. Mas pode m ser d estruídas. 18
34 Ü S fNDJOS E O B R A SIi.

A concepção inte lectua l e a metodologia usada neste livro de grande


visão integrativa se situa n o âmbito de pensamento daquilo que po-
demos c h amar de paradigma da aculturação, seguindo a concepção
do filósofo da ciência Thomas Kuhn. O paradigma da aculturação é
um conjunto variado de ide ias, proposições , preconceitos, intuições,
a n á lises, teorias, sentime ntos e atitudes, que remontam ao Iluminis -
mo, passando pela teoria da evolução, por Darwin, Marx, Durkh eim e
Malinowski, pelo positivismo e por quase todas as escolas antropológi-
cas, até recentemente, que declara a eventual e inevitável extinção das
culturas e sociedades indíge nas diante da inexorável força de expansão
da civilização ocidental. As análises e interpretações daquele livro, por-
tanto , pautam-se por esse espírito, como o fazem todos os estudos da
época. Entretanto , antes de se r frio ou indiferente, permeia no livro um
sentimento de indignação e pesar, de h o rror e desesperança, que proje-
ta , nas conclusões de cada interpretação elaborada, uma visão de rigor
científico mesclado pela insatisfação humanista do autor.
Nesse contexto, pode-se compreender a formulação do conceito de
transfiguração étn ica, isto é, de que as sociedades indígenas não se assimi-
la1n ne1n se aculturam, 1nas se recria1n e1n novas sínteses culturais, co1no
uma tentativa do autor de transcende r à camisa de força do paradigma da
aculturação. Por e le, é refutada a inev itabilidade da extinção, são sugeri-
das formas de acomodação e denominação política , econ ômica e c ultu-
ral da socie dade dominante (brasile ira) sobre a d o minada (indígena), e
esp e ra-se uma melhor sorte, de a lgum modo, para os índios. O livro, ao
usar esse conceito como espinha dorsal , ganha um sentido de prospec-
tiva de grande alca nce, s ina l de que captava indícios da reve rsibilidade
histórica na d emografia indígena. Porém, o con ceito d e transfiguração
é tnica não c h ego u a ser utilizado por outros antropólogos da é poca . Ou -
tras correntes teóricas , o utras temáticas que também se e nq uadram na
tentativa de explicar as novas condições de sobrevivênc ia étnica iriam
dominar as últimas décadas do século passado e a prime ira d este século.
Eduardo Galvão foi um grande pesquisador d e campo, um apaixo-
nado pelo seu ofício, tendo começado a fazer pesquisas aos 17 anos,
em 1939, quando esteve e ntre os índios Tapirapé , no rio Araguaia , até
praticam e nte a sua m01te, em 1976. Conh eceu e estudou dezenas d e
povos e s ituações inte ré tnicas, por toda a bacia amazônica, por Mato
Grosso e no Maranhão. Escreveu artigos sobre aculturação e mudança
c ultural , sobre a integração e ndógena dos índios do a lto rio Negro e do
alto Xingu, c riando a noção de "compressão c ultural" para caracte rizar
esse processo, e d edicou-se ao estudo da produção e d ifusão de ele-
JN T RO D U Ç À O 35

m e ntas d a c ultura ma te ria l, com o o propulsor d e flech as, a cerâ mica e


a lg uns do s principais c ultíge nos s ul-ame ricano s. Pesquisou e e n gajo u-se
com o cabo clo amazô nico, descobrindo n o seu sistem a c ultural e n as
su as c re n ças relig iosas uma ligação d ire ta com os p ovos indígen as d e
que m d escende m. Fo i, verdad e irame nte, um seguido r de Nimue ndajú ,
te mpe rando s ua carre ira com uma visão p o lítica d e larga amplitude e
ge ne rosida de . Alguns dos seu s a rtigos fo ram e ditad os p ostuma me nte
com o título Encontro de sociedades: índios e brancos no Brasil. Um
d os ma is influe ntes é o que classifica os p ovos indíge nas brasile iros p o r
á reas c ulturais, um conceito c ria do p e la a ntro po logia n o rte -a me rican a
que buscava compreender a similitude d e c ultu ras que têm histó rias e
gê neses ling uísticas d ife re ntes . P rop ôs 11 á reas culturais p a ra o Brasil,
utiliza ndo -se de c rité rios diversos, com o tipo d e c ultura , re lacio na me nto
intraétnico, compressão cultura l, adaptação ecológica e conta to exte rno .
Pub licou o seu estudo sobre o cabo clo am azô nico e m Santos e Visagens
e, junto com Cha rles Wagley, uma mo nografia sobre os índios T e n e -
te ha ra ( regio na lme nte conhecidos com o Guajaja ra) intitula da Os índios
Teuetehara: uma cultu ra em transição. Galvão foi també m p esquisad o r
d o Museu Nacio n al, o nde inic io u s ua carre ira, e d o Mu seu Parae n se
Emílio Goeldi ; ajudo u a implantar, com Darcy Ribe iro, n o Mu seu do
Índio, o prime iro curso de p ós-graduação e m a ntropo logia no Bras il , e
d ep o is fundo u e foi direto r do Instituto d e Ciê n cias Huma nas da recém-
c riada U niversidade de Brasília, de o n de saiu cassado e m 1965 .19
Para os nossos prop ósitos aqui, reconhecem os a importâ n cia de Galvão,
sobre tudo p o rque fo i e le o prime iro a ntrop ó logo brasile iro e ce rta me n-
te um dos prime iros n o mundo, a p ô r e m d úvida a in exorabilida de d o
p rocesso de extinção dos p ovos ind ígenas, ao re p e n sar a con clusão que
fizera, com Cha rles Wagley, sobre o d estino d os ín d ios Te n ete h a ra . Eis
como a na lisa a questão, e m 1955, n a introdução b ras ile ira ao livro o ri-
gina lme nte pub licad o e m ing lês e m 1949, b asead o e m pesquisas fe itas
e ntre 1941 e 1945 .

Concluímos com a a firmação d e qu e dentro d o es paço de vida de


uma geração, o u p o uco ma is, o processo de muda n ça dessa cultura triba l
ind ígen a p a ra uma regio n a l, b rasile ira, esta ria e m vias d e se com p leta r.
Afirmação esta qu e te m va lido a lgumas c ríticas . Umas que a conside -
ram otimista, ou tras qu e põem sérias dú vidas sobre a possib ilidade de
realiza r-se o p rocesso assimila tivo. As d úvidas tê m fund a me nto . Muitas
tribos indígenas existe m , a té o presente, que tê m resistido , e nada indica
que n ão resistirão n o futu ro, ao processo ele integração à comunida de
b rasile ira. Em muitas situ a ções ele conta to, a res ulta nte não se trad uz
36 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

em ass imilação do tipo que descrevemos para os Tenetehara, mas em


despovoamento, em desmoralização da sociedade indígena que, não re-
sistindo ao traumatismo de uma situação adversa, se decompõe. A brutal
diminuição da população indígena, hoje reduzida a cerca de 100.000
indivíduos, é um exemplo. Outras tribos, graças a um mínimo de con-
dições favoráveis , mantêm cultura e organização próprias, embora com
muitos e lementos modificados pela influência de brasileiros. É preciso
estudar os casos especiais de resistência e os de assimilação. 20

À sua brilhante intuição, Galvão logo adic iona uma proposta de temá-
ticas de estudos: assimilação e res istê n cia. Até a década de 1970, a maio-
ria dos estudos de relacionamento interétnico seria sobre assimilação ou
aculturação, embora sob perspectivas mais críticas, com conteúdo histó-
rico e sociológico de maior densidade do que os clássicos estudos sobre
aculturação e mudança social da antropologia anglo-americana. Depois
viriam a ser sobre os processos de resistência e sobrevivência é tnica, em
que os índios são vistos em princípio como vitoriosos, ou, pelo menos,
não como perdedores indefectíveis.
Roberto Cardoso de O liveira, um dos primeiros estudantes do cu rso
de antropologia do Museu do Índio, foi um dos principais responsá-
veis pelo desenvolvimento de estudos, pessoais ou por influência como
professor, tanto dos temas de assimilação e acaboclamento - os quais
denominou "estudos de fricção inte rétn ica" - , como, após 1972, pelo
te ma da resistência, através da introdução, no país, da discussão sobre o
conceito d e ide ntidade é tnica , como fator d e resistência e sobrevivê nc ia
dos povos indíge nas. 2 1 Esse conceito serviu de fundamento básico para
diversos estudos sobre sociedades indígenas e mes mo sobre outras mi-
norias no país , como comunidades rurais, n egras ou caboclas, minorias
c ulturais e sexuais urbanas, movime ntos socia is e políticos e tc .22 Cardoso
de O liveira prosseguiu em sua carreira trazendo temas diversificados
que estavam na moda nos países centrais da antropologia, tais com a
análise de ide ntidade é tnica por ê nfase me todológica nas inte rações so-
ciais ( não mais cultural) e o multiculturalismo, ambos com p e rtinê n c ia
à temática indígena. Um dos seus estudantes , João Pacheco de O liveira,
depois de fazer uma revisão do estudo de seu mestre sobre a integração
dos índios Tikuna à sociedade d e classes, e vendo qu e aqueles índios
continuavam a ser índios, e mbora com mudanças c ulturais, abre uma
nova senda de pesquisas sobre a s ituação étnica e socia l dos índios do
Nordeste , precisamente aqueles que mais tinham sofrido a opressão lu-
so-brasile ira e a inda mantinham te imosamente sua ide ntidade indíge na.
Sua grande contribuição aos estudos sobre populações indíge nas , com
JN T RO D U Ç À O 37

consequê nc ias políticas p ositivas ao indige nism o brasileiro , foi a aplica-


ção da noção de "etn ogênese", trazida da antropologia inglesa sobre a
urbanização de populações tribais na África. Expung indo a ve rbo rrag ia
do filósofo Gilles Deleuze, utilizada por Pach eco, que aplica o te rmo
"te rrito ria lização" para s ignificar os modos de formação de ide ntidades,
e nte nde -se p o r etnogên ese o processo de reaglutinação de comunida -
des de pessoas que v ivem um destino comum e m to rno de uma visão
de ide ntidade própria, separada da ide ntidade cultura l corrique ira das
p essoas a ntes vizinhas, a partir de e ntão caracte rizadas com o fora do
n ovo grupo autorreconhecido. Uma nova ide ntidade se forma a partir
da m emória de um passado, em geral com aspectos histó ricos, m as
também re ligiosos e míticos , que re lembra aos novos me mbros uma
visão ma is generosa de sua vida pregressa e uma pro messa de uma vida
m e lho r a p a rtir da n ova ide ntidade. Com essa atitude, e a judados por
associações de indigenistas e de relig iosos cató licos, com supo1te do
ó rgão indigenista e do Ministé rio Público Federal (MPF), diversos g rupos
de caboclos no rdestinos e de ribe irinhos a mazô nidas a lçaram-se e m
m ovime ntos de constituição de n ovas ide ntida des e, a de ma is, de reco-
nhecime nto por parte das a uto ridades, tais como os ó rgãos indige nista,
de saúde e educação indígen as, o MPF e o utros, dessa identidade. O que
os m otiva é, em essênc ia, a vontade de uma nova ide ntidade fora da
corriqueira ide ntidade de gente rura l p obre e destituída , mas é, comple -
m e ntarme nte, a segurança d e uma m aio r proteção econô mica e oportu-
nidades socia is que a ide ntidade indígena be m o u mal lhes proporcio n a .
Com uma ê n fase maior n o ap rofunda me nto da an álise histórica, e m
que os povos indígenas são inte rpre tados como totalidades histó rico-po -
lítico-culturais, agindo e reagindo ao contato exte rno por compulsiona-
m e nto e por con sciê n c ia parc ial da sua realidade, fora m desenvolv idos
estudos que demonstram a qualidade da fusão que deve h ave r e ntre a
sensibilidade histó rica, o sen so do real e a a n siedade do imaginado, isto
é, e ntre o historiador , o político e o c ie ntista . O livro Í1tdios da Antazô-
1tia: de maioria a nti1toria, e seu livro sobre a política indige nista do Im-
p é rio, Os í1tdios e a ordem imperial, de Carlos de Araújo More ira Neto,
são exemplos dessa contínua busca de adaptação m e todológica e cria -
ção teórica para explicar o universo empírico da a ntropologia brasile ira
atual. 23 Antes de ser publicado , esse texto foi p assado de mão e m mão
e m cadern o mimeografado como estudo exempla r e pio ne iro da histó ria
do Brasil focada n a questão indígen a . Nele con stam a n á lises e ruditas
dos dados e ncontrados nos re latórios dos preside ntes de província de
todo o Brasil, dem onstrando não somente os m e ios e políticas abe1tos
38 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

e escusos que levavam a e lite impe ria l e os novos "bandeirantes" , cria -


dores de gado, comercia ntes das n ovas c idades a açambarcar as te rras
indígenas, como explicita a cooperação e a conivênc ia dos novos mis -
sio nários n esse mister. Ao lo ngo de quase setenta anos de independê n-
c ia, o Bras il a rrefeceu pouco o legado que recebera dos p o rtugueses.
Nessa linha de abo rdage m , mas com uma perspectiva localizada e
menos pessimista, situ o o m eu livro sobre a e tno-história dos índios
Tenetehara, O índio na história: a saga d o povo Tenetehara em busca
da liberdade. Fruto da minha primeira p esquisa com esses índios , que
redundara numa tese de doutorado , esse livro me levou 23 a nos para ser
concluído, durante qual tempo volte i diversas vezes a alde ias te n e te ha -
ras e pesquisei em a rquivos os ma is evide ntes como a Biblioteca N acio-
nal do Rio de J a n e iro, o Arquivo Público do Pará , o Instituto Histó rico
e Geográ fi co Brasileiro, até os arquivos paroquiais de pequenas c idades
do Mara nhão, como Viana, Pindaré-mirim e Godofredo Via n a. Esse livro
procura demonstrar que a histó ria indíge na n ão é tão linear quanto pa-
receria , tão inexoravelme nte declinante, havendo momentos de re lacio -
name nto mais fluido e o utros mais agressivos, momentos de opressão
e momentos de cooperação; que h á fissuras n o controle social sobre
os índios, e, sobretudo, que os índios reagiram à opressão, às vezes
pela rebelião e fugas , o utras pela estratégia da con vivênc ia próxima o u
distanciada. Os índios , concluo, buscam a volta ao seu status quo ante,
sonh am e fantasiam com a é poca em que re inavam soberanos, com os
te mpos da libe rdade e igualdade de condições com seus adversários . Nas
décadas de 1980 e 1990, deu-se um flo rescer de estudos e tn o-históricos
por antropó logos e historiadores, aqui destacados n o livro editado pela
antropóloga Manuela Carneiro da Cunha, História dos íudios 1w Brasil.24
Não restam dúvidas de que a antropologia b rasile ira, n o que con cer-
n e ao estudo das re lações inte rétnicas, alca n çou um nível de descrição,
a n á lise e inte rpre tação bastante rigoroso . Nos últimos quarenta a n os
fo ram produ zidas dezen as de teses com temática indígena, la rga me nte
baseadas e m p esquisa d e cam po, a lgum as de monstrando conhecime nto
da líng ua indígen a, alca nçando um excele nte n ível de qualidade e tno -
gráfica . Ressalvadas as proporções nas grandezas étnicas, a a ntropo logia
brasile ira se compara com a a ntropologia mexican a, até p e lo seu aspec-
to do compromisso político com o seu objeto de estudo. Se a inda nos
falta uma gama mais extensa de etnografi as, cob rindo o espect ro das
c ultu ras indígenas, isso se deve aos seguintes aspectos: preocupação
do antropólogo-cidadão b rasile iro com os estudos que valo rizem o co-
nhecime nto das possibilidades de sobrevivên cia dos índios ; d eficiê n c ia
JN T RO D U Ç À O 39

acadêmica ao não enfatizar estudos linguísticos como base para a com-


preensão das culturas indígenas; falta de estímulos instituc ionais e finan-
ceiros dos centros de pesquisa; contradições políticas e tensões culturais
surgidas nos últimos quarenta anos que dificultam a permanência mais
prolongada de antropólogos entre os índios. As pesquisas etnográficas
acontecem muitas vezes motivadas por temas teóricos de curto fôlego,
mas que viram uma espécie de moda. Dezenas de teses e artigos fo-
ram produzidos sob inspiração de uma temática menor proposta por
Lévi-Strauss no seu portentoso livro sobre o parentesco, As estruturas
elementares do pare1ttesco, por sua vez um recorte reducionista desse
grande tema antropológico inventado ainda no século XIX, pelo pioneiro
da antropologia Lewis Herny Morgan. Tratava-se de demonstrar que
os s istemas socia is dos povos indígenas das c h amadas terras baixas da
América do Sul - que incluem todo o Brasil e mais as vertentes orienta is
dos países andinos - se baseiam na rivalidade entre primos cruzados,
isto é, entre os primos que são filhos de uma irmã e de um irmão , po-
tencialmente parceiros casadoiros, ao contrário dos filh os de dois irmãos
do mesmo sexo ( neste caso, c hamados de primos paralelos e que se
consideram irmãos entre si). Com tal foco e com um malabarismo inte-
lectual digno de admiração, esses trabalhos terminavam relevando todo
o mais do sistema de parentesco , da liturg ia do poder, da relação do
s istema sociopolítico indígena com o mundo de fora , e da sociabilidade
dessas sociedades .
Em contrapattida, a maior carê nc ia da antropologia brasile ira e m re -
lação a estudos sobre sociedades indígenas diz respeito às economias
indígenas e à relação delas com o mundo circundante. Todo mundo que
trabalha com índios sabe que raros são os casos d e economias indíge nas
autossu fic ie ntes . Naturalme nte, quando v iviam para si, autônomas, essas
sociedades produziam o suficiente para sobreviver, sempre com a lgum
excedente para os momentos de carência, como uma safra perdida por
falta de chuvas no te mpo certo ou destroçada por uma va ra de porcos
que ixada. Poré m , o convívio com a socie dade brasile ira produz novas
necessidades, desde o simples sal, passando por panelas , facões, roupas,
calçados , chegando a rádios , fogões, geladeira, telev isão , e, agora, com-
putadores e objetos de adorno, todos os quais custam d inhe iro. Como
obter esses objetos? Nos casos mais simples, há doações por patte da Fu-
nai ou de outras instituições . Mas o limite de doações logo é alcançado,
enquanto o desejo de ter mais e mais variado é bastante e lástico. Cabe
saber como as economias podem se desenvolve r de dentro para fora,
e ncontrar bens e produtos que podem ser vendidos e aumenta r sua pro-
40 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

dutiv idade, sem transformar s uas sociedade s e m siste ma de produção .


Nessa carê nc ia d e conhecime nto há uma ime ns a falha da a ntropo logia
brasile ira .25 Po r fim, compele reconhecer que uma p arte d e nossa lacu-
n a e tnoló gica é preen c hida p elas teses d e p esquisado res estrange iros,
c uja preocupação ma io r se focaliza e m te mas com o c ultura, o rga nização
p o lítica , relação com m e io ambie nte etc ., n ão n o seu re lac io na me nto
inte rétnico, devido, certame nte, à s ua pró pria condição d e estrange i-
ro e d e n ecessidade de voltar a seus países para seguir su as carre iras .
Não p od e m os d e ixa r d e m e n cio na r a qui , a inda que breveme nte, os
e studo s de arqueologia brasile ira. Há e fetivam e nte uma tradição arqueo-
ló gica brasile ira que discute gra ndes tem as relacio n ad os à presen ça d o
h om em n as Amé rica s, e no Brasil e m p artic ula r , com ad a ptações c ultu-
rais a tod os o s m e ios a mbie nte s d o n osso te rritó rio, com as mudanças
d e s iste mas econ ô micos e sociais e ntre socied ad e s indígenas . Inclus ive,
h á de m o n strações d e que n o p assado já ho uve socie dades m ais d e n sas
d em ograficame nte e p o de rosas p o liticam e nte . Em su a gra nde m a ioria,
o inte resse a ntropo lógico c ie ntificame nte re levante trata de conhecer o
passado pré -colo mbia no das socie dades indíge nas, ainda que h aja b o ns
estudos sobre com o os índios v iveram nas missões o u e m te rras de o nde
fora m expulsos já e m tempos recentes .
Enfim, há de ze na s de p ovos indíge nas bras ile iros que precis am ser
conhecido s mais intimame nte, p e lo que p e nsam do se u mundo, p e lo
que p roduze m d e conhecime nto, p o r seu s m o dos de viver e, sem dúv i-
da , p elas su as pe rs p ectivas de continuidade é tnica . O trabalho d e p ro-
duzir m o n ografias ( que é um d os p o los funda me ntais do conhecime nto
a ntrop o ló gico) n ão tem n ecessaria mente de se r fe ito n os m o ldes tradi-
ciona is con cebidos e estilizad os no iníc io d o século xx . Fa z-se n ecessá-
rio que se incorpo re m na pró pria m e tod o logia do trabalho as condições
p o líticas e cultu ra is d o Bras il e d a tradição a ntrop o lógica bras ile ira , e
que essa me to do logia se conceb a com o um instrume nto integ rati vo d a
histó ria e da estrutura, ta nto nas a ná lises sobre as relações inte ré tnicas
que d ete rmina do p ovo te m com o mundo e nvolve nte, quanto n as a ná li-
ses e teorizações sobre a pró pria c ultura estudad a . Uma m o n ografia não
precisa s er descritiva e estática, ne m se p a utar pela busca ob sessiva de
n ovida des etnográficas - uma verdad e ira ma nia d a a ntrop o logia e nq u an-
to disciplina acadê mica, a qua l, muitas vezes, resulta n a impossibilidad e
de aferição dos d ad os pelo que e les vêm a te r de e xótico e esdrúx ulo .
A s ingula rida de de c ulturas e p ovos d eve ser compreendida com o
p a tte d a diversida de human a, o que implica també m o tem a d a com-
p a ração e d e su a universalidade . Se conceb e rmos a c ultura com o uma
I NTRODUÇÀO 41

re lação humana tanto con scie nte quanto incon scie nte, regida pe lo so -
c ial e pelo individua l, e se localiza rmos essa d ialé tica numa p e rsp ecti-
va histó rico-estrutural , de e n vergadura hipe rdialé tica , com um sentido
d e continuidade c ultural , transcende re mos a s teo rias qu e re duze m os
p ovos indíge nas, necessa ria me nte, a seres infe rio re s , d o min ado s p o r
formas d e p e nsame nto basead o e m preceitos imutáveis e sem histó ria .
O presente livro n ão trata d e exp o r as bases teóricas da a ntropo logia
hipe rpe rdia lética , já a b o rda da n o m e u livro ho m ô nimo . A e xpos ição e
discussão da te m ática indíge n a, tratada com o uma questão d e inte re sse
m ais a mplo do que n o rmalme nte se con cebe n a a ntro p ologia tradicio nal,
é o rie ntada p e la v isão hipe rdia lética . Po r ela, o índio - o u as socied ades,
c ulturas e p ovos indíge n as - é con cebido um ser único, e m si e p a ra s i,
que se o p õe a o utras e ntidad es seme lh antes, formando re lações de con-
vivênc ia o ra amistosas o ra confro ntantes, e m círculos e contextos cada
vez m ais amplos . É dize r, os índios são seres que estão na histó ria, p o is
mantê m s uas c ulturas p o r d ecisão pró pria, sem e lha nte me nte a o utros
p ovos e culturas . São parcialme nte ta nto con scie ntes qu anto inconscie n-
tes de s uas po te n cialidades, virtudes, carê n cias, d esequilíbrios e destino .
Em re lação dire ta com a socie da de bras ile ira forma-se uma te m ática pró -
pria, d e c unho p o lítico, uma questão . D e finimos essa qu estão como o
conjunto d os povos indígen as e d as forças que os e n volvem , formando
uma estrutura de relações num e ixo tempo ral , e obte ndo o seu sentido
p e la luta inte rn a, p e la re flexão con scie nte e p o r s uas conexões com a
a mplitude dos p ovos e cultu ras de to do o mundo . O índio, assim, é
compreen d ido p o r si e em relação com o todo . A explicação p a ra a su a
sobrevivên cia o u o seu exte rmínio ad vém desse princípio m etodológico .
Na relação com o mundo, o índio to m a autocon sciê n cia de sua existê n-
c ia m a is a mpla e age, ao m od o p oss ível que lhe é dad o, p a ra se e nte n-
der com a n ova realidad e . Perder o u ganha r , não se pode saber ; importa
é que vive n a luta p o r sua continuidade e ascensão p o lítico-c ultural.
O escopo de m e u trab a lho é a histó ria indígen a, suas d e rrotas e
p e rdas, mas ta mbé m su as p e que n as, p o ré m s ig nificativas, vitó rias e ga-
nhos . Abo rdo essa histó ria a p a rtir de d o is po ntos de vista - do índ io
e da c ivilização bras ile ira - , com e n foque p ara a opinião que te mos a
resp e ito d o índio, o qu e este p e n sa sobre o Bras il , seu presente e so-
b re suas p e rsp ectivas futuras . Este liv ro é impregnad o, necessaria me nte,
p elos sentime ntos d a indignação e d o incon fo rmismo . Mas que r ale nta r
ta mbé m um rasgo de esp e ran ça, justificado p e los acontecime ntos m a is
recentes e po r n ovas inte rpre tações histó ricas que m ostram não some nte
a face n egativa, mas també m a p ositiva do te mpo presente, e n os a ux i-
liam a div isar as p ossibilidades do futuro .
42 0 S fN D IO S E O B R AS 1 1.

NOTAS
1
A palavra fndio é às vezes refu tada em discussões acadêmicas, porqu e parece gene ra liza r e,
conseque ntemente, ofusca r a d ivers idade das ide ntidades e c ultu ras indígenas. Essa ca utela me
pa rece exagerad a. É evid e nte que os índios são d iversos, mas, na h istó ria d a fo rmação brasile ira,
essa categoria socia l é fundamenta l para a s ua compreensão. Os índios se veem dife re ntes uns
d os o utros, mas seme lhantes e m confro nto o u contraste com a sociedad e brasile ira e m gera l. Por
o utro lado, não se incomoda m d e sere m cha mad os d e índios, mesmo sab e ndo que esse termo
nasceu de um e ngano d e Cris tóvão Colombo.
2
A de mografia indígena e m 1500 é motivo de diversos estudos, cálculos e especulações. U m re -
s u mo pode ser e ncontrado e m John He mming, Red Cold : The Conquest ofthe Brazi/ian Jndians,
15 00-1 760, Cambridge, Mass., Harva rd Univers ity Press, 1978. O próprio He mming cons idera
especulativo o número qu e p ropõe: 2.400.000. O número arred o ndad o de cinco milhões é p roduto
d e várias s u posições. No ca pítulo '·Do po n to d e vista do índ io" explica mos como chega mos a e le.
O utros a uto res já pro puseram núme ros que vão d e 800 mil (ver a análise d e J ulia n Steward, Native
Peoples of South America, New York, McGraw-Hill, 1959, p p . 5 1-60) a um núme ro pro jetado q ue
certa me nte excede ria os dez milhões ( Pie rre Clas tres, "Ele me ntos da demograf ia ame rínd ia'', em A
sociedade contra o Estado, Rio de Jane iro, Francisco Alves, 1978). O meno r nú mero é s ubes ti mado
po r desconhecimento e descre nça quanto às descrições e cifras a p resentadas pelos cronis tas e
missio nários dos séculos XVI e XVII. Hoje e m d ia, essas d escrições são mais acatadas e levadas
em consideração. A d ific uldade ma io r está em saber quantos povos, q ua ntas unid ades po lítico-
c ulturais existiam . No ca pítulo "O que se pe nsa d o índio" d iscutire mos os d iversos crité rios de se
ava lia r essa quest.'\o. Se corre laciona rmos língu a específica com unidad e po lítica, o nú mero po de
va ria r em torno de 2.500 a cerca d e 340. Ver J. Alclen Mason, "The Languages o f Sou th Ame rica n
Indians·•, e m Handbook ofSouth Am erican Jndians, New York, Cooper Square Publis he rs, 1963,
v. vr, p . 163, que ca lc ula u m nú mero d e 5 m il língu as/ povos pa ra toda a Amé rica do Sul. Curt
N im ue ndajú no seu Mapa Etna-Histórico (Rio: IBGE, 1982), soma l.400 povos; Chestimir Louko tka,
"Língu as Indígenas do Brasil", e m Revista do A rquivo Municipal, v. 54, 1939, São Pa ulo, soma
237 línguas pa ra o Brasil. Aryon Da ll 'Igna Rodrig ues, e m Línguas brasileiras, São Pa ulo, Loyola,
1986, ide ntif ica 170 línguas atua is e p rojeta o do b ro como u m nú mero míni mo de línguas ind íge-
nas e m 1500. O nú mero a tual d e 890 mil índios ad vém do Censo 2010, d o IBGE. Desses, 510 mil
esta riam vivendo e m terras indíge nas o u e m zona rural, e nqu a nto 370 mil mora riam nas cidades.
O número e os no mes d as etnias a q ue essas populações se filiariam a inda não fo ra m publica -
d os. O IBGE publicou in tempestiva me n te que seriam ma is de 305 no mes étnicos, m uito acima
d os no mes d e etnias reconhecidos pela Funa i. Na prime ira edição deste livro, dad os d o Cim i, de
1987, somava m 230 mil índios dist ribu ídos e m 220 etnias, com a população crescendo cerca de
4,5% para os anos d e 1986 e 1987. Já o Centro Ecumê nico de Docu mentação e Info rmação (Cedi)
clava, e m p ublicação sobre terras indígenas, um total de 2 13 mil índios . Ver Cimi, Mapa '·Povos
Indíge nas no Brasil e Presença Missio ná ria ·•, 1985; Ced i/Museu Nacional, Terras Indígenas no
Brasil. São Pa ulo: Tempo e Presença , 1987 . Ver, também, Funai, Situação das Terras Ind ígenas
do Brasil: Dados Estim ativas. Brasília, 1984, que apresent.1 um número incompleto d e 166.417.
3 Por convenção estabelecida pelos antro pó logos e linguistas brasile iros, desde 1953, os gentílicos dos

povos indígenas sempre escrevem-se em letras ma iúsculas. São grafados no s ingular, a não ser q ue
sejam pa lavras portuguesas. O único caso em que ficam e m letras minúsculas é qua ndo são usados
como adje tivos. Assim, escreve-se "os Munduru ku", mas "as vest ime nt.1 s munduru kus ·'; "os índios
Cintas-Largas", e ··os a rcos cintas-largas". Ver Revista d e Antropologia, v. 2, n. 2, p p. 150- 152, 1954 .
' Há uma exte nsa bibliografia sobre essas questões, d a pa rte de mexicanos, peru anos, no rte-
ame ricanos e e u ropeus. De fác il acesso a brasile iros e de gra nde influê ncia na Amé rica Latina,
ver o livro de Da rcy Ribeiro, As Amé ricas e a civilização, Petrópolis, Vozes, 1977. Ver tamb ém
Leopo ldo Zea, América en la História, México, Fonclo de Cultu ra Econó mica, 1957 .
5 Esse reg imento con tinha os p lanos e as recome ndações do re i D. João III para a colo nização d o

Brasil. Uma seleção de trechos pertine ntes aos índios pode ser e ncontrada no livro de Georg
T ho mas, A p olítica indigenista dos portugueses no Brasil, 1500-1640, São Paulo, Loyola, 1982. A
nossa discussão desse regime n to e d as o utras le is e regulame nt.1 ções incligenistas e ncontra-se no
capítulo "Po líticas indigenistas·•.
6
As p ro postas contidas nesse texto fo ra m prime iramente apresentadas nas Cortes Gerais de Lisboa .
Em l 82 l , junto com algu mas o utras de re p resentantes b ras ile iros - como Francisco Muniz Tava res,
d e Pernambuco; Fra ncisco Rica rdo Za ne, do Pará; e Domingos Borges de Barros, da Bahia - ,
visavam equacio na r o p roble ma indígena com o Estado luso-b rasile iro . Muniz Tava res e Borges
JN T RO D U Ç À O 43

d e Barros tinham, assim como José Bonifácio, propostas de '·civilizar" os índios. Já Francisco
Ricardo Za ne, que havia sido um a no antes o guia admin istrativo dos cientistas alemães Carl
von Martius e Johann Baptist von Spix, pelo rio Amazonas e seus aflu e ntes, e representava os
interesses mercantis da região, propunha métodos de escravizaç.'io ou de erradicação dos índios.
A Assembleia Constituinte de 1823 rejeitou as propostas de José Bonifácio, as quais, d e qualquer
modo, foram anulad as pela revogaç.'io dessa Assembleia e pela imposiç.'io de uma Constituição
pelo novo imperador. Seja como for, as ide ias de integração dos índios como parte da nação
brasileira perma neceram na consciência liberal nacional e foram posterio rme nte d e grande
import.'incia para a consolidação de uma atitude positiva em relação a eles. Compare esse fato,
por exemplo, com a situação indígena nos Estados Unidos da América nessa mesma época, q ue
d ecretara , em 1828, a exclusão d e todos os povos indígenas que viviam na costa leste para além
d o rio Mississipi. Ver Carlos de Araújo Moreira Neto, "A Política Indigenist,1 Brasileira dura nte o
século XJx··, Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia, Ciências e letras de Rio Claro, São Paulo,
1971. Essa tese é fundament.11 para se compreender a política indigenista d o Império e contém
muitas informações sobre os períodos his tóricos imediatamente anteriores e posteriores.
7 Ver Carl F. von Martius, "Como se deve escrever a História do Brasil", em Revista do Instituto

Histórico e Geográfico Brasileiro, ano VII, n. 24, janeiro de 1845. Ver, do mesmo au tor, em p u-
blicação mais recente, O estado do direito entre os autóctones do Brasil, Coleção Reconquista
d o Brasil, Nova série, v. 58, Belo Horizonte, Itatiaia , São Paulo, Edusp, 1982. Sobre os textos de
Varnhagen e Von Ihering, ver os capítulos '·Políticas indigenist.1s" e "O que se pensa do índio".
8
Sobre a Argentina, ver Guillermo R. Ruben , "les Ma puc hes: l'lllus ion d e l'lndianité", Tese de
Doctorat D'Etat, Universidade de Pa ris, 1980. Os números estimados de índios massacrados nessa
expedição e na seguinte, de 1880, totalizam 23 mil guerreiros. Sobre os Est.1dos U nidos d a América,
ver, por exemplo, Wilbur Jacobs, Dispossessing the American lndian: lndians and lYfhites on the
Colonial Frontier, New York, Charles Scribne r's Sons, 1972; Harold E. Driver, lndians of North
America, Chicago e london, The U niversity of Chicago Press, 1969. Sobre a Colômbia, ver Marino
Baleazar Pardo, Disposiciones sobre Indígenas Baldios y Estados Antisocia/es ( vagos, maleantes y
rateros) , Popayán, Universidad Popayán, 1954. Ver também Alfonso Uribe, Misas, Las Misiones
Cato/icas ante la I.egis/ación Colombiana y e/ Derecho Internacional Público, Bogotá, Lumen
Chris ti, a/ d. Sobre a Venezuela, ver Nelly Arvelo de Jimenez, "Análisis dei Indigenismo oficial
en Venezuela" e Esteb an E. Mosonyi, "la Situación d e i Indíge na e n Venezue la: Perspectivas y
Soluciones", respectiva me nte, p p. 3 1-42 e 43-63, em Georg G rünberg (coord.), La Situación dei
Indígena en América dei Sur, Montevideo, Tierra Nuova, 197 l.
9 Estar no cerne não significa esta r na vontade nem no discurso oficiais. Ne m é necessa riame nte

u m senti mento positivo. Q uer dizer apenas que é motivo constante e atual d e reconhecimento,
mesmo que seja negativo.
10
Sobre a visão hiperdialética e m antropologia, ver me u livro Antropologia biperdia/ética, São Paulo,
Contexto, 20 l l.
11
Para visualizar melhor esse mapa, ver: http ://biblio.wdfiles.corn/local--files/ nimuendaju -l98l -mapa/
nimue ndaju_l98 l _mapa.jpg. Acesso e m : 24 set 2012.
12
A vida e obra d e Curt Nimue ndajú , inclusive a s ua bibliografia p ublicada, estão res u midas no livro
Textos indigenistas, São Paulo, loyola, 1982, editado por Pa u lo Su ess e com prefácio de Ca rlos
d e Araú jo Moreira Neto.
13 O primeiro volume foi editado e m São Paulo pela Comissão do 1v Cente nário da Cidade de São

Paulo, 1954. O segundo, que e ngloba o primeiro, foi editado na Alema nha peL1 Kommissionsverlag
Münstermann Druck GMBH, Hannover, 1968. O terceiro volume foi compilado peL1 antropóloga
Thekla Hartmann e publicad o e m Berlim por Dietrich Reimer Verlag, 1984.
14 Florestan Ferna ndes, A organização social dos índios Tupinambá, São Pa ulo , Instituto Editorial

Progresso, 1949 (2. ed. Difusão Eu ropeia do livro, 1963); Ajimção social da guerra na sociedade
tupinambá, São Pau lo, Editora Revist,1 do Museu Paulista , 1952 (2. ed., São Paulo, livraria Pioneira,
1970); lnwstigação etnológica no Brasil e outros ensaios, Petró polis, Vozes, 1975.
,s A Conve nç.'io 107 se chama Convenção sobre Populações Indígenas e Tribais, e nquanto a Con ven-
ção 169, refle tindo o novo caráte r d e reconhecimento dos povos indígenas, c hama -se Convenção
sobre os Povos Indígenas e Tribais. Uma compilaç.'io d e gra nde parte da legis lação sobre os índios
brasileiros o u sobre temas que lhes dizem respe ito, dos últimos 70 anos, pode ser e ncontrada
no livro o rganizado por Ed va r Magalhães, Legislação indigenista brasileira e normas correlatas,
2. ed., Brasília, Funa i/cGDOC, 2003.
16
Po r indige nato com preende-se a visão jurídica segundo a q ual a legis lação colonial portug uesa
reconhece o caráter originário da presença indíge na no território b rasileiro, c ujos direitos sobre
as te rras que ocupa m a ntecedem quaisquer outros direitos posteriores.
44 ÜS fNDJOS E O BRASIi.

17
Vale aqui comentar brevemente q ue uma parte expressiva dos antropólogos b rasileiros foi influe n-
ciada pela visão pós-moderna do filósofo Michel Fou cault em re lação ao poder como e ntidade
onipresente e onisciente nas rebções huma nas. Na aplicação dessa teoria do poder, a política
indigenista de Rondon é interpretada como te ndo por propósito fundamental ga nhar pode r sobre
os índios, controlá-los e diminuir seus te rritórios, circundá-los nu m ··cerco d a paz", mudar suas
culturas - tudo para a brir camin ho à expansão econômica do Brasil. A his tó ria brasileira, vista
sob essa ó tica, congela o sentid o d as relações humanas na atualidade e assim é interpretada no
contexto do p resente. Aqu e les q ue não fizeram no passad o o q ue é exigido que seja fei to no
presente viraram motivos de opróbrio e conde nação. Assim, toda a história do Brasil se torna u m
d esenrolar de acontecime ntos vis, realizad os por pessoas vis e indignas do presente. Desafo rtu-
nada1nente essa visão da história do Brasil, e particularn1ente da extraordinária saga rondoniana,
inclusive d e seus seguidores -como os irmãos Villas-Boas, Francisco Meire lles, Cícero Cavalcanti e
tantos o utros serta nistas e indige nistas heroicos que fi zeram diferença e hoje se torna ram anônimos
d a nossa his tória - , p reva leceu pelas últimas d uas décadas, influe nciando toda uma geraç.10 de
jovens antropólogos, jornalistas, membros d o Ministério Público e outros pabdinos da morali-
d ade nacional, embora já se veja m sinais d e seu descrédito. O livro O cerco da paz, d e Antônio
Carlos d e Souza Lima, é o mais citado por aderentes dessa visão descontextualizada da história.
18 Darcy Ribeiro, Os índios e a civilização, 2. ed ., Petrópolis, Vozes, 1977 ( 1. ed., Rio d e Ja ne iro:

Civilizaç.10 Brasile ira, 1970).


19 Eduardo Galvão, Encontro de sociedades: índios e brancos no Brasil, Rio d e Ja neiro , Paz e Terra ,

1979; Santos e visagens, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1955; com Charles Wagley, Os índios
Tenetehara: uma cultura em transição, Rio de Janeiro, Ministé rio da Edu caç.10 e Cultura, 1961;
ver a versão inicial inglesa The Tenetehara lndians: a culture in transition, New York, Columbia
University Press, 1949. Sobre Galvão, pessoalmente, ver o prefácio no seu livro de artigos feito
por Darcy Ribeiro. Ver também a a nálise d a obra de Galvão por Orla ndo Sampaio Silva, Eduardo
Galvão: índios e caboclos, São Paulo, Annablu me, 2007.
"' Eduardo Galvão e Charles \Vagley, Os índios Tenetehara: uma cultura em transição, Rio de
Ja ne iro, Minis té rio da Educação e Cultura, 1961, p. 10.
21
Robe rto Cardoso de Oliveira, O processo de assimilação dos Terena, Rio de Janeiro, Publicação
d o Museu Nacional, 1960; "Estudo d e áreas de fricção interétnica no Brasil", em America L1tina
v. v, n. 3, pp. 85-90; '·Aculturação e Fricç.10 l nterétnica", em América Latina, v. VI, n. 3, pp. 33-45;
O índio e o mundo dos brancos: a situação dos Ti/zuna do alto Solimões, São Pa ulo, Difel, 1967;
Urbanização e tribalismo: a integração dos índios Terena numa sociedade de classes, Rio de
Ja ne iro, Za har, 1968; Identidade, Etnia e Estrn.tura Social, São Paulo, Pioneira, 1976.
22
Ver Carlos Rodrigu es Brandão, Etnia e Identidade, São Paulo, Brasiliense, 1985, para um bala nço
d esse conceito.
23 Carlos de Araújo Moreira Neto, Índios da Amazônia: d e maioria a minoria, Petrópolis, Vozes,

1988. Os índios e a ordem imperial, Brasília, Editora Funai, 2005.


24
Manu eb Carneiro d a Cunha (Org.), História dos fndios no Brasil, São Pa ulo , Compa nhia das
Letras/ Fapesp/ Secretaria Municipal de Cultura, 1992.
25
Um excelente exemplo d e estudo sobre a relação entre a economia indígena, os impactos d a
e ntrada d e dinhe iro e as interpretações indíge nas sobre essa relação é o livro de Cesar Gordo n,
Economia selvagem: ritual e mercadoria entre os índios Xikrin -Mebêngôkre, São Paulo, Editora
Unesp; ISA ; Rio d e Ja ne iro, N uti, 2006.
Do PONTO DE VISTA DO ÍNDIO

O PARAÍSO Q UE ERA

Para que m vivia n o mundo e u rope u do século xv1, recém-libe rto


da hegemo nia cató lica e já se e n galfinhando e m n ovas lutas re ligiosas
que representava m m a is con strangime ntos e menos libe rdades, a visão
deslumbrada nas praias da costa brasileira foi realme nte extas iante. O
escri vão da a rma da cabralina , Pero Vaz de Caminha ( assim como o utros
visitantes mais ta rde), não se conteve com o que viu à s ua fre nte: as
praias , o a rvore do , as barras dos ribe irões, a luxú ria da te rra , índios an-
dando em sua nudez natural , rindo e propondo abe1tame nte um diálo-
go .1 Esse e ncantame nto durou pouco, precisamente até o mo me nto em
que as visitas viraram empresas , m as foi s uficie nte p ara p rovocar e ntre
os e uropeus o re nascer dos seus sonhos subliminares d e conte ntame nto
e fe licidade . N avegantes e aventure iros n o rmandos, ingleses, irlandeses
e até a le m ães tro uxeram de volta às suas p átrias as histó rias impressio -
n antes desse paraíso sem maldades nem desonras , c h e io de bonança e
abundân cia , com igualdade e gen erosidade de e p ara todos. E com uma
b rutalidade que lhes parecia ingê nua e insen sata, com o d e c rian ças.
Tho mas Morus, e m s ua obra Utopia/ publicada em 1518, fo i o pri-
m e iro a espelha r a fe licidade socia l num idea l perdido em a lgu m a ilha
ao sul do Atlântico, com um sistema de v ida sem elh a nte ao que d es-
c revia m dos povos que v iv iam n o litoral b rasile iro . Com e fe ito, Thom as
Morus re lata no começo do livro que conversara com marinheiros irlan-
deses que hav ia m estado n a feito ria estabelecida e m Cabo Frio , no lito -
ra l do Rio d e Jane iro . Estes lhe disse ra m com o e ra a v ida e ntre os índios
da região, precisame nte os Tupina mbá . A ilha da Utopia que descreve
46 Os INDJOS E O B RASIi.

tem a forma de meia-lua, abrigando uma baía, tendo ao fundo uma ca-
d eia de m o nta nhas . Algu é m p od e p e nsa r que um marinhe iro irla ndês
ad e ntrou a baía de Gua na ba ra muito m ais cedo do que se imagina! O
mundo mudou e mudaria muito mais com a Utopia. No decorre r d os
a n os, muitos o utros p e nsado re s iria m re fle tir com a dmiração, às vezes
com e spanto, o je riza e inc redulidade, pe lo que viram o u p elo que lhes
disseram daqu ele mundo ao sul d o Equa do r, e compara riam essa visão
com su as v idas, pro je tando-as afinal com o seu passad o rem oto o u com o
seu futuro d esejado . O e ncantado r e ns aio d e Mich el d e Mo nta igne inti-
tulado Os canibais, 3 produzido e m 1574 , é talvez a mais influe nte a ná li-
se filosófica sobre os índios Tupina mbá ja ma is escrita. Nele, Montaig n e
conta qu e conhecera e m Pa ris alguns índ ios Tupinambá trazidos d o Rio
d e J a n e iro, o nde h avia p o uco te mpo h o uve ra uma colô nia fra n cesa, e
d ele s e xtraíra três re fle x ões impo rtante s , da s qua is esquecera uma! O h ,
h om em esquecido! Uma delas qu estio n ava po r que os fra n ceses e ra m
governados por um simples me nino, o e ntão delfim que m ais tarde seria
o re i Luís X111, e n ão p o r um líde r gue rre iro, com o e ra o costume d e les;
o segundo com e ntá rio indígena é sobre o fato de na França e xistire m
h om e ns riquíssimos e h o me ns p a upé rrimos, muita d esig u aldad e, e os
pobres não se re b ela rem contra os ricos . Com esses d ados, e o utros
mais , certame nte, Mo ntaig n e traça um p e rfil fascinante sobre os Tu-
pina mbá e s ua socie dad e, c uidando na d escrição d e se us hábitos e
costumes, compa ran do a sua a ntro p ofagia com os m assacres e to rturas
das gue rras religiosas n a Europ a e c h ega ndo a conclusões singelas e
to le rantes ao costume tupina mbá, tão o die nto qua nto repugna nte aos
o lhos e u rop e us, que le ntame nte começavam a fo caliza r o resto d o mun-
do à sua image m e semelha nça . O e nsaio d e Montaign e fez escola e
pe rma neceu , tendo influe nciad o uma corre nte mais o u m e n os contínua
d e p e nsado res - d e ntre os qua is os iluministas fra n ceses - , m a nte ndo os
ideais de libe rtação, o espírito de to le râ n cia e a c uriosida de inte lectual,
acréscimos temporais às tradições mile na ristas do Velho Mundo .4
Mas, pa ra os índios, até e ntão, o p a ra íso n ão estava perdido .
Era uma realidad e fís ica e c ultural , c ria da p o r cente n as de prá ticas
di versas, m as asse m elhad as e ntre alg uns milhões d e p essoas . Uma ebu-
lição social e política que levara vários milha res de a nos para se fo rma r,
que já fo ra m ais complexa a nte rio rme nte e vivia em consta nte inte rcâm-
bio mútuo, com uma de te rminação pró pria e um fulc ro dinâmico que até
h o je nos escapa m. Nas costas brasile iras, d a foz d o Ama zo n as à Lagoa
dos Patos, com exceções aqui e acolá, h abitavam cerca de um milhão de
índ ios T upinambá, 5 localizad os em aldeias que continha m d e 300 a 1000
D O PONTO D E VISTA D O fN D I O 47

pessoas, aldeias autossuficientes economicamente e coligadas entre si


de acordo com circunstâncias totalmente mutáveis , como o inefável
sentimento de tradição e fidelidade , um conjunto de regras sociais de
parentesco e os inte resses imediatos de defesa mútua. Acima de tudo,
muitas coisas mais trabalhava m contra a formação de alianças e a fa vo r
da dispersão e da anarquia. A autossuficiência econômica, a uniformi-
dade ecológica que desencorajava a esp ecialização e a falta de inimigos
verdade irame nte ameaçadores mantiveram os Tupinambá n essa enorme
expansão geográfica e com uma grande p opulação, sem n ecessidade
de se o rganizar e m formas mais complexas e arregimentadas de vida
social. As alianças e ntre aldeias duravam p o uco tempo; logo se ro m-
piam para se recompo r e m o utras linhas, e ntre o utros parceiros. Disso
souberam muito b e m se aproveitar portugueses, fran ceses e h o landeses,
e esse foi certamente o p o nto mais v ulne rável dos índios Tupinambá.

Três est ilos de casa dif erentes. Aldeia Waiwai, Terra Indígena Mapuera, Pará.

A luta intestina dos Tupinambá , que não perdoava nem parentes


n e m adere ntes, resultara n a a ntropofagia, uma espécie de "e ndocídio"
re quintado, já que as vítimas pre fe re n ciais e ra m os seus próprios pa-
trícios. A prática da a ntropofagia o u canibalismo e ntre os Tupinambá
estava associada diretamente com a intens ificação da guerra intestina e
fratricida . O motivo, todos explicitava m , era a vinga nça pela mo rte dos
seus pare ntes que ridos . Obtinham-se os prisione iros e m batalhas , com
todo o aparato d e gu e rra, ou e m futtivos ataqu es de surpresa, p e lo sim-
48 Ü S fNDJOS E O B R A SIi.

pies gesto do captor de tocar-lhes o ombro com a mão. Com esse ritua l,
o guerreiro virava prisioneiro e era levado para a aldeia do seu captor,
o qual virava seu senhor - e, tempos depois (até anos), seu algoz, num
ritual de duelo estilizado em que a vítima era ama rrada e segurada por
uma corda, mas tinha o direito a insultar os presentes prometendo-lhes
vingança de seus parentes e atirando pedras e areia sobre o seu atacan-
te. Quando enfraquecia, uma bordunada era desferida em sua cabeça,
bem como os golpes finais de misericórdia. Em segu ida , o prisioneiro
era lavado, esqua rtejado, despedaçado, desentranhado , tal qual uma
peça de caça, e posto para assar em moquém. Sua carne era comida
com muito gosto e glutonia, sobretudo pelas anciãs. Mas enquanto vi-
vesse na aldeia , antes de chega r o seu dia de suplício (o u melhor, de
h onra suprema, como viam a ocasião), o prisioneiro era tratado como
um cunhado, um parente afim: recebia uma mulher que compattilhava
de seus afazeres e do seu leito, podendo até se apaixona r e gerar nela
um filho. À vo ntade, e le não fugia para a sua a lde ia de origem - e,
caso o fizesse , seria mal recebido por seus parentes, como um poltrão
e indigno da fibra tupinambá. Ora, tal costume só poderia funcionar
se o prisioneiro con cordasse com essas regras. Assim, fica claro que
o canibalismo tupinambá se destinava quase que exclusivamente aos
próprios Tupinambá. Qualquer outro povo indígena que não compar-
tilhasse das mesmas ideias e sentimentos não teria o menor problema
em ab rir mão dessa boa vida temporária e voltar para casa como h e ró i.
Com os portugueses e o utros europeus, o ritual de caniba lismo virava
praticam e nte uma farsa , taman h o e ra o despre zo com que os Tupinam-
bá dava m cabo d esses h omens choramingas, ajoelhados e suplicantes .
O paraíso dos Tupinambá dava-lhes com desprendimento o s ustento
para o seu crescimento e s ua a legria de viver ; para se rir dos franceses
que vinham de tão longe só para buscar made ira e faz e r tinta vermelha.
Subitamente, podiam abandonar a lde ia, roças, locais d e caça e pesca e
tomar os caminhos do Ocidente, em busca da Terra sem males. O pa-
raíso socia l, constituído por um s istema de ig ualdades econômicas, de
liberdades p essoais amplas e de um controle do pode r que pe rmitia a
todos , por idade ou por mérito , alcançar os seus graus mais e levados,
continh a, no entanto, a s ua própria negação: a falta de um mecanismo
de conte nção que fosse capaz de aglutinar forças dispe rsas, dar um
sentido mais fo1te de nacionalidade e criar um sistema social e político
mais coeso, menos fragmentado. Os Tupinambá não conseguiram fazer
o que o utros povos com menos população c h egaram a obter. A inte ns i-
ficação de suas guerras intestinas e do canibalismo , com a che gada dos
portugueses, só e ra contrabalançada pela presen ça dos famosos caraí-
D O PONTO D E VISTA D O fN D I O 49

bas o u p ajés-guaçu, os seus g randes sacerdotes o u p rofetas, c ujo p apel


p olítico n a sociedade tu p inambá a inda é m o tivo de controvérsia . De
qualque r fo rma, os ca raíbas profetizavam uma vida me lho r e m alg um
lu ga r a oeste (ta lvez n o céu), acima d o h o rizo nte, e exortavam a todos
p ara se unir e to m a r o seu rumo imedia tame nte, da nçando, cantando e
je jua ndo . De fato, te m-se n otíc ia de vá rios desses êxodos, e muitos m a is
d evem te r aco ntecido sem conhecime nto, registra do n a Histó ria . Um
d e les c h egou a atravessa r to do o Bras il , p a rtindo d os lad os d e Pe rnam-
buco e a lca nçando os Andes, e m Chach ap oya, e m 1549, o nde h aviam
c h egado fazia p o uco os esp a nhó is, que iria m conquista r o Impé rio Inca .
A busca p elo p a ra íso, sempre alhures, significa que o te rrestre tinha
a lgo d e e rrado, que e ra certame nte o p roble m a p o lítico . Não o b stante,
p od e -se dize r q ue a vida dos índios Tupina mbá e ra qua litati vame nte su-
p e rio r à dos p o ttug u eses . ( Este é um julgame nto de valo r que o presente
a uto r fa z c ie nte das con sequê n cias mo ra is e c ie ntíficas, e ce1to de que
seria contestado ao se usar c rité rios de comparação tecn o ló gicos, mili-
ta res e p olíticos.) Era, de qua lque r fo rma, uma v ida de abundânc ia a li-
m e ntar e ple n a de liberdad e p essoal. Os seu s velh os ch egavam a idades
provectas (até 100, 120, dizia m inge nua m e nte os cronistas), os h o me ns
tinha m o dire ito d e p a lavra n as assemble ias e con selhos; ta l e ra a igua l-
d ade impe ra nte que a ma io r ho nra d o che fe gue rre iro era simplesme nte
"caminha r n a fre nte dos seus h om e n s" e te r vá rias mulhe res - privilégio
n ão exclus ivo . E a sua baixa p rodução econ ô mica se re p rodu zia sem
d anificar a qua lidad e do seu m e io a mbie nte .
A d is p e rsão Tu p ina mbá foi reconhecida p o r todos que os visitaram ,
de n o ite a sul. Su a cultura e ra inc rivelmente h om ogênea, bem com o
s ua líng ua . No mes com o Carijó, Ta mo io, T upiniquim, T e miminó, Caeté,
Potig uara, To b ajara o u Tabajara e tc . eram q u ase tod os p a tro n ímicos
o u te rmos ge né ricos de p a re n tesco (tam o io : avó; temiminó : n eto). Não
representam nações o u povos sep arados, n em mesmo subdiv isões geo-
grá ficas o u unidad es p o líticas . Em a lguns mo me ntos, unidades p o líticas
m ais o u m e n os estáveis fo ram configu radas, com o a fa mosa Confede-
ração dos Tam o ios o u a união d as a ldeias da baía de São Marcos, na
ilh a d e São Luís do Maranhão . Possíveis fo rmações p o líticas m a is hie -
ra rquizadas, m as que não ti vera m continuida de . Esse ú ltimo caso reve-
la a composição h eterogênea d os g ru pos federados, alg u ns vindo do
Pote n gi, no Rio G ra nde do Norte, o utros d e Itam aracá, e m Pe rnam b u co .
E a s ua instabilidad e : a p ós a de rrota d os fra n ceses, q ue os ma ntinh am
unidos, e les se d isp e rsaram pelas matas do Pa rá .
Por o utro lado, n om es como Aimo rés, Goitaca zes, Gu aia n ases, J an-
du ís, Cariris e, m a is ta rde, Puris, Coroados, Botocudos, Kayap ós e tc ., não
50 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

re presentavam s ubgrupos tupinambá s. Suas p o pulações, e m prime iro


luga r, e ram muito me no res, o que os colocava e m de svantagem e m re la -
ção aos Tupina mbá . Na verdad e, segundo o conhecime nto m e morial da
é poca , vá rios desses p ovos e ram antigos h abitantes d o lito ral e h avia m
s ido expulsos dessas pla gas p e lo s invaso res Tupinambá . Assim, po ucos
tive ram um contato ma is íntimo com os e urope us . No Ama zo nas, vá rios
p ovos não Tupinambá mantiveram alianças com ingleses, irla ndeses e
h ola ndeses, até o te rceiro qua rtel do século XVII, qua ndo os p o rtug u eses
e esp a nhó is os d esbarata ram, m as são raros os escritos a resp e ito d e les .
No N o rde ste, o s ho landeses forta leceram sua s p o sições e m a lia nça com
os J a nduís e o utros p ovos gene ricame nte chama dos d e Ta puias . Po ré m ,
são po bres os de po ime ntos e as a ná lises d e cunho etnográfico . Assim,
sab e mo s p o uco sobre tod os esses p ovos T apuia s - a té praticame nte
o século XIX, quando se inicia o te mpo do s n aturalistas e reto ma-se a
c uriosidade e tnográfica dos e uro p e u s e brasile iros .
Sem sabe rmos tanto, n o e ntanto, p o de -se dize r que, social e p oliti-
cam e nte, o s T apuias dife ria m c ulturalme nte, mas não tanto e m compo -
s ição p o lítico-social dos Tupinambá . Não e ram p á reo de gue rra, mas
se de fe ndiam como p odiam e p e rmitiam os seus contingentes po pu-
lacio nais . Pe las re lações de cronistas com o Gabriel Soares de Souza
(1584), André Thevet (1560), Fe rnão Ca rdim (1584) e o utros mais , e ram
numerosos com o p ovos indep e nde ntes, m as de de n sida de de mográ fi ca
n ão muito ex pre ssiva . Soare s de Souza e nume ra m a is d e 150 povos, a
gra nde m aio ria de Ta puias , a p e nas nas reg iõ es q ue e le conhec ia , com o
o inte rio r da Bahia , Perna mb uco , Cea rá e Pia uí e p a rtes do Sudeste bra-
s ile iro, Rio de J a n e iro, São Pa ulo . Ao incluirmos to das as o utras regiões
do Brasil , exce tua n do a Am a zô nia , pod e rem os calcular, hipote ticame n-
te, e ssa população e m m ais d e um milhão d e pe ssoas . J á a g ra nde Ama -
zô nia ( atua lme nte b rasile ira), p e los re latos dos navegantes d o gra nde
rio , a p a rtir de Fra n cisco de Ore lla n a , era muito d e n sam e nte povoada .
Trê s milhõ e s d e p e ssoas n ão é um núme ro exage rado . N o to tal, po1tan-
to , na minha e stimativa , d ev ia h aver a p roximada me nte c inco milhõe s d e
índios no te rritó rio qu e é o Brasil a tua lme nte .6
No Ama zo n as, n a ilha d e Marajó e n a fo z d o Ta pajós , os povos q ue lá
se ac havam e ram d e scen d e nte s d e o utros p ovos que ha via m tido c ulturas
m ais com p lexas e m ate ria lme nte ma is b e m elaborad as do que as ex iste n-
tes nos séc ulos XVI e xv11 . Sua cerâ mica e s uas con struções ha bitacio n a is ,
que sobre viveram às inte mpé ries de c inco a de z séculos, e ram sofisti-
cadas e expressivas , re flexo talv e z d e uma o rga nização política coesa e
hie ra rquizada . Mas não se su ste ntaram p o r tanto te mpo , o que é mo tivo
D o PONTO DE VISTA DO ÍNDIO 51

d e dife re ntes d eduções a rqueológicas e a té de esp eculações escab rosas .


Na chegad a dos e uro p e us , suas p o pulações, b e m com o a d e o utros p o -
vos nos Solimões, a inda e ram altas, u sufruindo d a rique za das vá rzeas,
d a p rote ína d o p e ixe e até d e uma semidom esticação d e tartaru gas.7
Do s índios c h a mados Tapajós e d os O máguas, quase e m s iste m a
p o lítico p ós-triba l, aos cla ssicam e nte tribais Tupinambá e aos b a ndos
Aimo rés e Puris, de pa rca agric ultura e fo 1te dep e ndê nc ia na caça e
coleta , havia dife re n ças sufic ie ntes p a ra se no ta r, mesmo p o r a dminis -
trado res e missio ná rios p o uco inte ressados e m e tnografia, d ep o is d o sé-
c ulo xv11 . As dife re nças e ntre si també m e ram reconhecidas mutua me nte
(até e ntão, únicas e ntre eles e a na ture za) . A vinda d os e uro p e u s, com o
inversam e nte pa ra os pró prios e u rop e u s, abriu-lhes um mundo n ovo,
c h e io d e magia e e ncantos, po tê nc ia, rique za e inesgotabilidad e, e sofri-
m e ntos indizíveis . A p e regrinação de índios Tupina mbá a té os Andes, o
contato da c ivilização incaica com os p ovos tropicais através do Chaco
b olivia n o e d os aflu e ntes d o Amazo n as d em o n stram que a dinâ mica
p o lítica n o contine nte s ul-ame ricano e ra , provavelme nte, ma is inte n sa
d o que no s p a rece ho je e m dia . Os índios da costa b rasile ira certame nte
sabiam d a c iv ilização incaica e de o utras formas d e o rganização p o lítica
inte rme diá rias . Seria inútil esp ecula r se, d e ixados p o r su a conta, e les
d esen volveria m formas sociop o líticas ma is complexas . O que é certo é
que ser ag riculto r tribal o u caçad o r n ô m ad e d ep e ndia d e muitos fato res
altame nte d inâmicos e depende ntes e ntre si. O a ume nto de mográfico,
a competição p o r território, as inovações e ada p tações tecn ológicas, a
vastidão e gen erosidade d a te rra e o utros fato res se m esclava m com
as fo rmas sociais que valo rizava m a indep e ndê nc ia e a uto n o mia d os
gru pos locais, coagidos apen as p o r regras de parentesco m a is o u m e -
n os flexíveis e pela necessidade de a utodefesa . Dessa fo rma, podem os
concluir que a liberdad e e a gue rra e ram os do is p o los fo rma do res da
fil osofia triba l, tão te n az e resilie nte às investidas d e tra n sformação que,
p odemos q uase d ize r, seguindo o a ntropólogo fra n cês Pie rre Clastres,
ela produz a "sociedade contra o Estado" - isto é, a liberdade social
contra o pod e r coe rc itivo .8 Pod e mos concluir que o paraíso da liberda -
d e e da igu alda de é uma p rodução a utoconscie nte d o ho me m , autos-
sufic ie nte e a utossuste n tável, mas, infe lizme nte, frágil d iante d o poder
hie ra rq uiza nte . Os índios d o Brasil perderam a gu e rra em pou co m a is
d e um século . Sua última grande cha nce, já com fo rma s in crética, se fo i
com a derrocada da Caban age m , a gra nde re be lião q ue ocorre u n o Pa rá
e ntre 1838 e 1840 . O paraíso se esvaiu ; restou-lhes sobreviver na be irada
do purgatório .
52 0 S fN D IO S E O B R A S 1 1.

AS EXPERIÊNCIAS DE CONVIVÊNCIA

O machado de ferro chegou aqui como um milagre da tecnologia dos


encantados estrangeiros. Um mito muito divulgado entre vá rios povos
indíge nas coloca o seu he ró i civilizador, o seu demiurgo, como contro-
lado r do trabalho agrícola, mais precisamente como o dono dos macha-
dos, os quais obedecem à sua ordem de derrubar as árvores e capinar
as roças automaticamente, sem o trabalho humano. Outro mito conta
que aos índios foi oferecida pelo demiurgo a escolha entre os objetos
de ferro e os de pedra e madeira, e os índios preferiram o machado de
pedra e o arco de madeira; já os brancos, o machado de ferro e a es-
pingarda. Vários estudos ergológicos atestam que o uso do machado de
ferro diminui em mais de dois terços o tempo de trabalho efetuado pelo
machado de pedra para se fazer uma roça, por exemplo.9 Sua utilidade
e eficiência sempre foram óbvias para os índios.
O ferro chamou a atenção do índio ao contato, ao convívio e à depen-
dência. Com o ferro, as miçangas colo ridas de vidro, e daí por diante. Nada
escapa ao interesse, à cu riosidade e ao desejo do índio, à medida que o
novo vai sendo incorporado ao seu universo de conhecimento e a sede de
saber se expande pela curiosidade e pela necessidade de sistematização.
Os europeus sempre colocaram em segundo e terceiro planos esses
motivos indíge nas. Fundamentalmente , e les ab riram essa frente de re -
lacionamento por motivos estritame nte econômicos. O pau-brasil foi,
durante os prime iros c inque nta anos, a principal fonte d e riqueza desses
ave nture iros. A coleta era feita pelos próprios índios, que derrubavam
as árvores, cortavam-nas e aparavam-nas em toras de um a três metros
e as transportavam para os navios ancorados nas baías e e nse adas. Em
troca clarame nte desigual, recebiam objetos de fe rro e quinquilharias,
como espelhos, chapé us, roupas , contas etc. A convivência era amisto-
sa, porém com tensões. De vez em quando estou ravam desavenças , e
o melhor para os aventureiros e ra levantar âncora e zarpar fora. Desde
cedo se obteve mão d e obra indígena p e la escravidão. Prisione iros ob-
tidos em guerras intestinas dos próprios Tupinambá eram comprados e
levados para a Europa. Em 1512, por exemplo, o navio Bretoa, capita-
n eado por Cristóvão Pires, re laciona, e ntre suas me rcadorias para levar
para Lisboa , 35 índios escravos. As exp edições d e outros e urope us não
atestam a obtenção de escravos, pelo menos como mercadoria a ser
exportada. É possível que eles fizessem escravos aos prisioneiros de
gu e rra , mas é mais provável que a insegurança das fe itorias comercia is
não avalizaria esse tipo de relação de produção .10
D O PONTO D E V I ST A D O fN D I O 53

Mesmo a ntes d a instalação do Gove rno Geral, na Ba hia, e m 1549, os


p o rtug ueses já h aviam te ntado, com p o uco s ucesso, o estab e lecime n-
to de colo nizações p e rma ne ntes, p o r m e io do sistem a das capitanias
hered itárias. Constituíam as capitanias em 15 grandes glebas de te rra
recortadas e m faixas pa rale las, com tama nhos dife re ntes, d e n o rte a
s ul , resp e ita ndo o limite inte rio rano da linha d o Tratado de To rdesilhas .
Fo ram doadas a 12 n obres e h om e ns de cabedal com o intuito de asse-
gura r as te rras descobe rtas e impla ntar colô nias . Os capitães-gerais, os
d o n os d as capita nias, tinha m dire itos seme lh antes aos dire itos d e fe udos
m edieva is : alocavam te rras p a ra que m quisesse, m a ndava m estab e lecer
faze ndas, e ngenhos, vilas e fo1tes; orden avam g u e rras aos índ ios; d iri-
mia m d is putas e desaven ças e podiam inclusive julga r e con den a r acu-
sad os d e d e litos e crimes até com a m o rte . Era m senho res fe udais - e ssa
é a razão de se dize r que o Bras il n asce u sob a égide de um re trocesso
p olítico-c ultural, q ua ndo comparad o com algumas colô nias na Amé rica
d o Norte, embora con cessões p a recidas ta mbém te nham sido fe itas p e -
las Coroas ing lesa e fran cesa às s uas p ossessões a m e rican as . De q ua l-
q ue r m odo, po u cas capitanias deram certo - como as de D ua rte Coelho,
e m Pe rna mbuco, e Ma1tim Afon so de Souza, em São Vicente - p o r conta
do s ucesso de su as po líticas e m relação aos índios . Em São Vicente, fi-
ze ram a liança com os c h a m ados Tupiniquim , um ramo d os Tupinambá,
através do deg redado po rtug uês J oão Ra ma lho . Em Pe rna mb uco , o nde
h avia um gra nd e continge nte de índ ios T upinam bá - c h am ados na re -
gião d e Tabajara , Potig u a r e Caeté - , uma p a1t e dos índios se re belou ,
m as fo i b atida e fugiu e m gra nde qua ntidade para o inte rio r do p aís,
e m dire ção ao rio Amazo nas , num m ov ime nto de caráte r messiâ nico,
d e fuga e m b u sca da Te rra sem Male s; o utra parte se a lio u ao capitão e
se us a ux ilia res e apa niguados , inclu sive pelo casam e nto e m e stiçage m
livre . Nessas d uas capita nias fora m estab e lecidos os p rime iros e n ge nhos
de açúcar, que iria m se r a princ ipa l fo nte de rique za exp o rtável p e los
próximos d u ze n tos a n os . As d em a is capitanias não vingaram , a exe m-
plo da capita nia d e Po1to Se gu ro, exatam e nte por n ão te r re solvido, e m
definiti vo , o dile ma indígena . D ura nte a n os, a capitania se e ntrinc h e i-
rou e m com bate aos ta m bém ch a m ados Tupiniquim, pa ra de po is vir a
se r p e riodicam e nte atacada pelos Aimoré s , que ousara m incurs io n a r d e
se us te rritórios no inte rio r para aqu elas p raias, d e pois do vazio de ixado
p e los Tupiniquim q u e h aviam se re tirado para o Espírito Santo .11
Os franceses , principalme nte b re tões e n o rma n dos, e o utros, p e lo
contrário , m antive ra m dura nte mais d e um s éc ulo um re lacio na me n to
come rc ial c h am ado "escam bo", isto é, a troca ime d iata de me rcadorias.12
54 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

De um lado, os índios contribuía m com toras de pau-brasil e de tatajuba


(da qual se obté m um corante amarelo), a lgodão e pássaros domesti-
cados, como papagaios e a raras. Em troca recebia m machados, facas,
tesouras, miçangas, espelhos e pentes - um conjunto de quinquilharias
que, p o r muitos anos (e a inda h o je, se n ecessário for), tem sido usado
pelos sertanistas do sr, e da Funai , prova irre futável do seu fascínio
para os índios e da falta de mudança nas relações de contato com
índios autô n o mos.
Muitos já pensaram que se o Brasil ti vesse sido colo nizado p o r fran-
ceses, as re lações com os índios te riam sido menos vio le ntas, como
atestam aqueles primeiros tempos. Além de vá rias feitorias passageiras,
os fra n ceses instalaram dois projetos de colo nização: a "França Antátti-
ca", na Baía da Gua nabara , e a "França Equinocia l", n a ilha de São Luís
do Maranhão. Com uma diferença de quase 60 anos e ntre uma e o utra
(1555 e 1612, respectivamente), su as administrações fo ram muito seme-
lhantes quanto às re lações com os índios. Os franceses se compottavam
com cordia lidade e respeito; os Tupinambá com reverê nc ia e obediê n-
c ia. Tudo parecia bem. Sem preconceitos, os fra n ceses adaptavam-se à
cultura tupinambá, tomando esposas e ntre as joven s e patticipando di-
re tamente em suas vidas. Os Tupinambá trabalhavam para os franceses,
defendiam-nos dos p o rtugueses, eram levados à França e recebidos nas
Co rtes e urope ias, dando os primeiros s inais de que estavam e n cantados
com esses rapapés, conforme se pode ver nos desenhos do livro d e
Léry . Porém, nos vá rios re latos qu e nos transmitiram os cronistas dessas
colô nias, transparece certo n ível de tensão, pelo qual os Tupinambá se
sentiam coagidos e e nc urralados, e os franceses ne rvosos e frustrados . É
possível, po1tanto, que, com o te mpo, o equilíbrio viesse a ser p e rdido .
Ce1tame nte, nesse aspecto, n ão é invejável a he ra n ça francesa em suas
colô nias p e rma ne ntes n o Ca ribe .13
Os ho la ndeses que dominaram e se instalaram no Nordeste , a partir
d e 1630 , tive ram uma exp e riê n cia mais estável com os índios. Com o
a região coste ira já h avia sido va rrida da rebeldia dos seus habita ntes
o ri gina is, o problema indígena fi cou mais fácil para e les . Po r exemplo,
em 1631, só havia 4 mil índios do sexo masculino na costa, de Alagoas
ao Rio Gra nde do Norte .14 Os Potiguares e Caetés, que e m 1500 deve-
riam somar cerca d e 150 mil, h aviam migrado e m levas d ife re ntes rumo
a oeste, uma parte para o Amazonas e outros grupos para o Maranhão
e Pará, o u estavam dominados , vivendo ag regados às novas vilas e a
faze ndas d e cana-de-açúca r. Por essa é poca h avia escravos índios que
os pottugueses haviam impo ttado do Ma ranh ão e do Pará, onde fora m
D O PONTO D E V I ST A D O fN D I O 55

apris io nados nas gue rras p e rpe tradas na conquista d aque las te rras, a l-
guns a nos a ntes .15 Só no sertão p e rman ecia m os Tapuias, e os h o lan-
d eses os trata ra m com cautela e certo resp e ito . Qu ase no final d e s ua
administração com o gove rnad o r h o landês de Pe rnambuco e p a1tes d o
No rde ste, o prínc ipe Maurício d e Nassau convoco u uma esp écie d e
assemble ia indíge na , n a vila d e Itapecerica, p e rto d e Rec ife, pa ra conso -
lidar p elo mé to do pa rlam e n ta r o a p o io d os Ta puias aos ho la ndeses .16 A
expe riê nc ia pa rlam e ntar indíge n a num nível n acio na l só seria re p etida
n o Bras il 350 a nos de p o is, e m 1982, com a e le ição do de putado indíge -
na Mário Juruna ao Congresso Nacio na l. Em a mbos os casos, a e xpe ri-
ê nc ia foi , infelizme nte, de curta duração .
Ao contrário dos ingleses n a Am é rica do No rte, os p o rtu gueses nun-
ca trata ram o s índios como nações (embo ra o te rmo fosse corre nte n a
é poca), e se us h abitantes com o c idad ãos, mas com o vassalos, ha bitantes
submetidos a uma a uto ridade ma io r, com dire itos tão som e nte o uto r-
gad os caso a caso . Assim, a p e nas e m duas ocasiões se te m no tíc ias d e
acordos formais e ntre a Coroa p o rtuguesa e os índios . A prime ira foi
qua ndo uma d as a lde ias d os índios J a nduís, que ha bitava m os sertões
d o Rio Gra nde d o Norte, Pa raíba e Ceará, d ecidiu e n viar uma d e legação
à c idad e de São Salvador da Ba hia, capital do Brasil , para firma r um
acordo d e p a z que d esse fim ao que m a is tarde foi c h a m ad a de Gue rra
d os Bá rbaros. Essa foi a ma is p rolo ngada e consta nte p e rseguição fe ita a
p ovos indíge n as , d ura n do do fim da ex pulsão dos h ola nd e ses e m 1654,
até 1714, q u an do as últimas re sistê nc ias fo ram batidas e os índios re -
s iste ntes fora m m o rtos, escraviza dos o u re duzidos a missões o u a lde ias
controla das p e las a uto rida des loca is . A de legação fo i a Salvado r, e m
1691 e firmo u aco rdo, com ga ra ntias à ma nute nção do que lhes sobrara
d e su as te rras , que n ão foi cump rido .17
A segunda ocasião d e aco rdo se de u um século de p o is , e m 1791.
Dessa vez foi com os c h a m ad os "índios Ca va le iros" (os G uaicuru o u
Kadiwéu d o p res e nte) e o gove rnador-ge ral do Brasil, no Rio de J a ne iro .18
O inte re sse dos portugu ese s e ra ma nte r o te rritó rio gua icuru de ntro das
fro nte iras b ras ile iras , n o a tua l estado de Mato Grosso do Sul , dia nte das
inde fini ções provenie nte s do T ratado de Madri , d e 1750, que serviu d e
fro nte ira e ntre os re inos d e Esp a nha e Po 1t u gal. Os ín d ios Cava le iros , à
m ane ira dos Pele s-Ve rme lhas das pla nícies da Amé rica d o No rte, tinham
adotad o o cavalo como me io de tra nsp o rte e de gue rra , e com isso ha -
viam se to rna do senho res absolutos e imbat íveis d a região do Panta na l.
Os d e ma is índ ios da reg iã o lhe s prestavam obe d iê nc ia e p agava m-lhes
trib u to . O acordo firmado n o Rio d e Jane iro foi bom p ara Po1t ugal, e
56 O s INDJOS E O B R A S Ii.

eventua lme nte para o Bras il , mas não conso lido u a sob e rania d esses ín-
dios sobre as te rras confirma das; p a ulatiname nte, foram pe rde ndo te rre -
n o p a ra a e ntra da d e n ovos colo nos . Os Kadiwe u n ão p e rde ram d e tod o .
Ho je m a ntê m uma p a rte d o seu te rritó rio garantido uma vez m ais p e lo
seu p apel d esempe nha do na G ue rra do Para gua i, a fa vo r d o Bras il , com o
recompe n sa e prê mio . O Ma recha l Ro ndo n , com o s upe rvisor d o SPI, con-
firmo u m a is uma vez os dire itos dos Kad iweu a um te rritó rio que soma
530 mil hectares, o m aio r te rritó rio indíge n a fo ra d a região am azô nica.
Po ré m , uma pa rte substantiva d essas te rras , cerca de 120 mil hecta res,
foi ocupa da p o r faze nde iro s a legando p ossuíre m títulos d o ados p e lo
governo do Estad o, a inda n a década de 1960. Este é um d os ca sos d e
disputa jurídica que está h á uns b o n s 40 a nos n o Supre m o Tribunal
Fe de ral , m e io e ngaveta do . Neste a no de 2012, ma is d e 100 gue rre iros
Kadi we u e ntra ram e m uma das faze nda s invasoras e xigindo a re tirada
d os d e ma is faze nde iros e n o a gua rdo d e uma to m ada d e decisão p o r
p a 1te d o STF .
Q ua nto aos J anduís, não e xiste m ma is .

AS GUERRAS DE EXTERMÍNI O

Já c itamo s a prolo n gada Gue rra d os Bá rbaro s , c uja mo ti vação maio r


e ra d o mina r os p ovos indígenas que havia m se a liad o aos ho la ndeses
o u p oderia m se aliar, caso estes voltassem - receio o u p ara n o ia que a
Coroa não conseguia supe ra r. Havia ta mbém uma m otivação econô mica :
com o d e cl ínio d o preço d o aç úca r, muitos pla ntado res d e cana h aviam
ab raçad o a c riação de gado e estavam pe n etra ndo p e los sertões d o rio
São Francisco, ao sul, e os settões e caatingas no rdestinas ao n o ite e
oeste . Os p ovos indígenas, d e o rigem Ta puia - que significava falantes
de línguas das fa mílias Kariri , J ê e o utras não conhecidas - , precisavam
das vá rzeas d os p a rcos rios d e águas sazo na is e la rgos tratos de te rra p ara
caçar a nimais po uco abunda ntes, precisame nte os luga res bon s pa ra cria r
gado exte n siva me nte . Os índios resistiam com dete rminação a tal p o nto
que o governado r d e Pe rna mbuco fe z p o r bem convocar o bande irante
Do mingos J o rge Velho p a ra ser o capitão-mo r d essa g ue rra . Domingos
J o rge Velho e ra um p a ulista rude que falava mal o pottuguês, e saíra
de São Paulo com o bande irante, à procura de índios p ara a prisio na r e
vende r. Fo rmo u um verdadeiro exérc ito de índios e m ame lucos d e o ri-
gem Tupina mbá e com e le conquisto u uma p arte substancia l d o Pia uí.
Arrasou muitas aldeias e p ovos indígen as e su bm ete u m a is o utro ta nto
D O PONTO D E V I ST A D O fN D I O 57

ao se u com ando . A cada submissão de índios re que ria d a Coro a uma ses-
ma ria pa ra conso lidar seu p o de r. 19 O devassame nto do Pia uí foi inic iad o
p o r J o rge Velho, mas a respo nsabilidade p e lo vazio indígen a naquele
estad o não p o de ser imputada exclusiva me nte ao velho ba nde irante .
Durante to do o século seguinte foram muitas as g ue rras de exte rmínio
p e rpe trad as naque le te rritó rio, e ntão p e rte ncente ao govern o do Mara -
nhão, a mando d e governado res e sob o com ando p essoal de capitães-
mo res . Gu egu ê, Acroá, Pime nte ira , Ga mela - e até Xava nte - p assaram
p o r essas gue rras. Os sobreviventes e ram distribuídos e ntre as faze ndas
de gado , inclus ive as dos pró prios je suítas que h aviam he rdado tod o o
p atrimô nio da famosa Casa de To rre, o que constituía e ntão g rande p a rte
do te rritó rio pia uie n se .20 Até p o ucos a nos n ão havia índ ios reconhecidos
ne m a uto ide ntificados no Pia uí, e o s p o ucos descende ntes que h aviam
sobrevivido se recusavam a admitir a s ua ascendê nc ia . Entre ta nto , uma
comunida de de descende ntes dos Gu egu ê, que havia sido tra nsfe rida da
vila de Oeiras pa ra a be ira do rio Pa rnaíb a , te m d ad o sinais de que re r e n-
tra r no p rocesso d e etnogênese e se apresentar ao mundo com o índios .
Na con solidação do do mínio po rtug uês n o Bras il , a cada novo te r-
ritó rio conhecido e a ser colo nizad o v inham as g u e rras d e exte rmínio .
A incompa tibilidad e e ntre colo nizadores e índios p a recia inevitável. A
começa r p e la Ba hia, em 1558, qua ndo Mem d e Sá arrasou a resistê n c ia
e re b e ldia tupina mbá , m atando e ntre 15 mil e 30 mil índios , com a com-
placênc ia e e n co rajam e nto d e todos .21 Após a expulsão dos fra n ceses ,
se gue -se uma g u e rra de exte rmínio aos Tu p inam bá d e Cabo Frio e do
Vale do Paraíba .22 A conquista da Paraíba ( do Norte), a p artir de 1585,
n ecessito u d o acirra m e nto das rivalidad es tupina mbás ( potig ua res), e , ao
final, da p e rse guição e morta ndade da fa cção ad versá ria , a nte rio rme nte
aliada a ave nture iros fra n ces es .23 A co nq uista do Mara nhão, a pattir d e
1614 , resulto u , a lg uns a nos depois , n a destruição de cerca de 30 mil ín-
dios Tupina mbá q ue v ivia m e ntre a ilha de São Lu ís e a região atua l d e
Belé m. No d ize r de um c ro nista oficial, com e ssa mo rta ndade, o ca pitão
Be nto Macie l Pa re nte h avia "ex tinguido as últimas relíquias de sse povo ".24
Para a conquista do ba ixo Amazo nas , q ue começa ap ós a re to mad a
d o Maranhão aos fra nceses , em 1614, e a fun dação de Be lé m , e m 1616,
n ecessito u-se d e todo o conhecime nto já adquirido durante o s éculo an-
te rio r n o que d iz re s p e ito às téc nicas de g u e rra , a prisio n am e ntos e ins -
tigação de rivalidades indígenas . Com e fe ito , a lição fo i b e m a pre ndida ,
e o mo rticínio ultrapassou os limites da necess idade de conquista . T anto
q ue, por ve rdade iro o u por exage ro , o je su íta Pad re Antô nio Vie ira , ao
o uvir a confissão de um velh o colo nizador no se u le ito d e m o1t e, a cusou
58 Ü S fNDJOS E O B R A SIi.

e d e nunc io u o s p o rtugueses d e te re m a niquilado n ão m e no s que d o is


milhões de índios em qua trocenta s a lde ias , e ntre São Luís e Be lé m , n o
p e ríod o e ntre 1616 a 1656 .25 Na minha visão, não p o de ria te r havido tan-
tos índios a p e nas n a re gião pre te nd ida p o r Vie ira, m as um qua rto d esse
núme ro é p ossível, se aceitarmos o re lato d e O re lla n a, d atado de 1547, e
o utros que visita ram o rio Amazo nas cem anos a ntes . Ap e na s na ilha d e
Ma rajó ainda havia cerca de quare nta mil índios quando Vie ira p rom oveu
a p a z n a d écada d e 1650 , qua ndo viveu n aque la região . E já e ram muitos
o s mo rtos, p o is a que les índios servia m antes de escudo à s prete nsões
d os irla ndeses e escoceses d e cria r colô nias com estabe lecime nto s d e
troca na região .26 A tragé dia do ba ixo rio Ama zo n as e d o b a ixo rio Ne gro
se comple ta com a Cab an agem , em 1840, cuja de rrocada promoveu um
d os m a io re s ba nhos de san gue d a histó ria bras ile ira. Ao fina l, n ão re sto u
um único p ovo indíge na v ivendo ao lo ngo d o b aixo Amazo n as, s itua -
ção só compa rável aos estados devastados pela Gu e rra dos Bá rbaros .27
Gu e rras d e exte rmínio caracte riza ram a colo nização p o ttug u esa d o
começo ao fim. No se u ocaso, com a c hegad a de D. J oão v1 ao Bras il ,
pro moveu-se a G ue rra aos Bo tocudos dos vales dos rios Doce e Muc uri -
com dire ito à usurpação d as te rras e à escravização d os sobrevive ntes . Po r
exte n são, fo ram incluídos nos a lva rás d o início do século XIX os Timbiras,
d o Ma ranhão, e os c hamados Coroad os, d e São Pa ulo e d o Paraná .28
No Brasil inde p e nde nte, os e xte rmínio s se d e ram e m promoções pri-
vad as, de caráter empresarial, ta nto n o N o ite com o n o Sul do pa ís . Os
Coroad os - atua is Ka inga n g e Xokle n g - sofre ra m ataques constantes
d os "bugre iros", esp écie d e "esquadrões da m o rte" esp ecia lizados e m
índios .29 Os índios que viviam nas á reas de cauc h o, b o r racha, castanha
e o utros p rodutos extrativos e ram atacados po r g rupos semelh antes -
e m ambos os casos, fina n ciados p o r empresas e p a rtic ulares .30 Nas zon as
p asto ris, com o o cerrado go ia n o e ma ranhe nse, exp e dições de faze n-
d e iros foram fre que ntes e a rrasado ras, du ra ndo to do o século x1x e c h e -
ga n do ao século xx. Em 1913, na região centrad a na c idade de Barra d o
Corda, MA, d e uma aldeia fo rmada por 180 índios Can ela, cerca de 130
fora m assassinad os a tiros e facadas, d e p o is d e e mb riagados .3 1 Po r quase
duze ntos a nos, os Avá-Can oeiro, que viv ia m ao lo ngo do a lto rio Tocan-
tins, fo ra m v ítimas de gru pos de exte rmínio . Po r volta do te rceiro qua1tel
do século XVIII eles somavam um contingente de 1.500 p essoas . Em 1968,
s ua última a lde ia foi atacad a p o r jag un ços a m a ndo dos faze nde iros que
estava m se impla ntando no município d e Minaç u , e m Goiás, de o nde só
sobreviveram quatro índ ios, que som am a pe n as seis ho je e m d ia, viven-
d o numa te rra d em a rcada ao lado da us ina hidrelétrica UHE Serra da Mesa .
D O PO NTO D E V I S T A DO fN DIO 59

Não pretendemos contar todos os casos, nem falar das te ntativas


frustradas o u só parcialmente s ucedidas, como a que se deu em 1963,
quando um bando de jagunços, guiado por um ex-servido r do SPI, foi
contratado por madeireiros de Mato G rosso para completar o trabalho
de exte rmínio de uma alde ia dos índios Cintas-La rgas, o qual havia s ido
iniciado pelo se u bombardeamento aéreo. 32 Atualmente, todas essas
práticas são apropriadame nte chamadas de genocídio e e tnocídio, por-
que implicam não só a destruição do homem, como das bases cultura is
que o constituem e lhe dão sentido.

MORTE POR EPIDEMIAS

Mais devastador a inda, segundo as avaliações dos historiado res e


e tno -histo riado res, foram as epidemias de doenças trazidas pelos e uro-
peus e africa n os. Varío la, sarampo, catapo ra - as famigeradas bexigas-,
febre amarela, tube rculose e as gripes e pneumonias a rrasaram a lde ias
inte iras, a niquilaram povos inte iros. Muitas vezes foram a lde ias que nem
contato com as fontes irradiadoras tinham, mas que recebiam a doença
por tra n smissão de outros índios em contatos até fo rtuitos.
Os povos ame ricanos, o riginários de migrações que vieram da Ásia
através do Estre ito de Be rin g, provavelmente num período e ntre 15 mil
a 20 mil a n os a trás, evoluíram o se u sistema imuno lógico diferentemente
dos h abitante s dos o utros contine ntes, que m antiveram contatos e ntre
si. A Amé rica foi o último contine nte a ser povoado pelo ho m em , e
manteve-se praticamente isolado até 1492. Assim, seus habitantes não
desen volvera m resistênc ias às doenças s urgidas em outras partes do
mundo. Daí a sua fragilidade tão trágica .33
Mas é p reciso ligar esse fator bio lógico com o social.
As epidemias se deram num quadro de con vulsões históricas que
inte n s ificaram, sem sombra de dúv idas, o se u poder de destr uição. Elas
e ram mais destrutivas quando ocorriam associadas a guerras de exte r-
mínio ou de escravização p e rpetradas contra essas populações . Por
exemplo, durante o tempo em que os fra n ceses viveram na Baía da
Gua n abara -dez anos ou mais-, apenas uma epidemia c h egou a ca usar
danos. Após a guerra de expulsão e de exte rmínio dos seus a liados, e las
pipocaram com grande virulê n cia. As grande s e pidemias ocorridas na
Bahia foram mais devastadoras após a g ue rra de exte rmínio realizada
por Mem de Sá. O mesmo ocorre u com as primeiras epidemias em São
Paulo , no Maran hão e no Pará. 34
60 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

Mesmo sem guerras, as e pide mias esp ocavam com frequê n cia e du-
ravam basta nte tempo ( uma delas, de 1743 a 1750, e m todo o Amazo -
n as).35 O poder das epidemias é ainda maior quando elas surgem e m
ocasiões de escasse z e m que aumentam as dificuldades para se obte r
a lime ntos, apressando a morte dos doentes p o r ina nição aguda. Darcy
Ribe iro n os dá um teste munho desse processo, ao presenciar uma epi-
demia de sarampo e ntre os índios Urubu-Kaapor, em 1949. 36
Q ua ndo foi descoberta a etiologia das epidemias e su a contamina -
ção, portugueses e brasileiros n ão sentiram ne nhum escrúpulo e m uti-
lizar-se desse conh ecime nto para promover o exte rmínio de aldeias e
povos indígenas que estavam n o seu caminh o. Esta mistura mais c ruel
de guerra e epidemia é o que se chama h o je de guerra bacteriológica.
Sua primeira utilização conhecida n o Brasil se deu e m 1815, em Caxias,
n o estado do Maranhão, te rra de Gon çalves Dias. Lá grassava uma epi-
demia de va río la quando um bando de índios Can e las Finas apa receu
de visita. As auto ridades os receberam com tal h ospitalidade que lhes
distribuíram brindes e roupas previamente conta minadas por doentes.
Os índios pegaram a doença e, dando-se conta do ca rá te r do contágio,
fug iram desesperadamente de volta para suas te rras, muitos morrendo
pelo caminho. Os sobreviventes contaminaram outros mais, e meses
depois essa epidemia alca nçava os índios já e m Goiás.37
No fim do século passado , os bugreiros de Santa Cata rina e Paraná,
sob soldo das companhias de imigração, d e ixavam nos pontos d e trocas
de presentes já estabe lecidos com os índios de á rea a inda sem contato
coberto res infectados de sarampo e va río la .38
Epidemias programadas, realme nte, representam o fin o de um espíri-
to p e rverso de exte rmínio e gen ocídio . Poucas vezes na história foi uti-
lizada dessa fo rma . Qu e o te nha sido no Brasil contra os seus habitantes
o ri gina is é exemplo ve rgonhoso da con stituição moral de segmentos de
s ua população.

ESCRAVIDÃO E SERVILISMO

Aos sob reviventes apris io n ados das gue rras n ão restava destino ho n-
roso . A escravidão p essoal ou uma servidão compulsória e ram mais a
regra do que a exceção, sobretudo n os te mpos inic ia is da colonização e
a ntes da utilização em massa da escrav ização dos negros a frican os . Con-
tra isso protestaram os missionários em vá rias épocas e, às vezes, por
sua pressão, conseguiram modificar le is de escravatura , revogando-as
D o PONTO D E V I ST A DO ÍND I O 61

p o r a lgum te mpo o u re duzindo -as parc ia lme nte . Em última instâ nc ia,
até me ados d o século xv111, havia sempre a justificativa das cha mad as
"gue rras justas " que p odiam ser p e rpe trad as contra p ovos indígen as
que a meaça va m a expansão colo nialista e m d ete rminadas áreas . Dessas
gu e rras, os colo n os, e m esm o a Co roa e o s missio ná rios, obtinha m mão
d e obra p ara s uas tare fas d o mé sticas e para o trabalho n o s canav ia is, ta -
b acais e faz e ndas d e gado . Pa dre Antô nio Vie ira , qu e luto u brava me nte
contra as forças que se de te rminavam a escraviza r os índios, re lata su a
e xpe riê nc ia d e p a rticipação e m uma e xpedição de d escime nto d e índios
livres p a ra o s centros colo niza do re s , como Be lé m , e m 1653, d e o nde
e ram distribuídos p a ra as a lde ias d e missões, a lde ias d o re ino e faze ndas
p a tticula res . As "juntas d e missões", es pécie de tribuna l que dirimia as
que stões indígen as, formad as p o r re presenta nte s d o cle ro, da Coroa e
d os colo no s , d e te rminavam a lega lida de d o processo e a distribuição d a
m ão de o bra e quase sempre aceitavam a condição d e escravidão d os
índios proposta p or seus capto res .39
As le is que compõem o cha ma do Dire tó rio d e Po mba l, p romulgad o
e m 1757, exting uiram a e scrav idão indíge na, d ecretando a libe rdade
incondic io na l aos índios . Mas e m 1808 foi o pró prio regente D. J oão VI
que, e m sua c h e ga da ao Brasil , pro mulgo u uma série d e alvarás incenti-
vando p artic ula res a forma re m "b a ndos " o u "bande iras" p a ra p romover
ataques aos índio s Bo tocudos , Coroad os , Can oeiros e Timbiras, de vá-
rias p a rtes d o p a ís, com o ince ntivo e xtra d e u surpar as te rras e e scra -
vizar os índios aprisio na dos por p e ríodos de 10 a 20 a n os (varia n do d e
acordo com a idad e e o sexo dos cativos) .40
A serv idão , instalad a n as a lde ias d o re ino, o nde g rupos indígen as
e ram a locados p ara se rvir às câma ras munic ipa is o u aos oficia is do re i
e m se rviços d e construção de e stra das , p o nte s , ed ifíc ios públicos e igre -
jas , p rodução d e a lime ntos p ara sere m transfo rmad os e m re nda, o u
como g ue rre iros, foi uma fo rma muito corre nte e m to do o Bras il Co-
lô nia . Pode -se até a rgume nta r que a fo rma de re lação social ex iste nte
n as missõe s estav a ma is p a ra a se rvidão do que p a ra a e scravidão, o u
muito m e n os p a ra a libe rdade . Os índios sob esse regime e ram vistos
como servos de um fe udo . Po dia m t ra ba lha r s uas pró prias roças, con-
ta nto que pre stasse m se rviços p ara se u s s e nho re s qua ndo convocad os .41
Po r essa fo rma d e trabalho muitas ald e ias indíge n as fo ram e sta be lec idas
próximas a v ilas e povoados de po rtug ueses, e sobrevivera m p o r muito
te mpo , chegando a lg umas até o século xx, quando fo ram e n golidas pe la
ex pa nsão d e mográfica do p aís . São Migue l Pa ulista e Pinhe iros - h o je
bairros da c idade d e São Paulo - , São Lo ure n ço, em Nite ró i, Vinha es ,
62 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

e m São Luís , Aldeota, e m Fo rta le za e tc., foram antigas aldeias que man-
tinha m esse tipo de re lação com os luso-brasile iros dominantes.
Do ponto de vista do índio, a servidão e ra uma re lação imposta pe-
los po1tugueses como uma espécie de domínio sobre si, como povo. A
escravidão não reconhecia esse caráte r e reduzia-o à condição de m e r-
cadoria. Pe lo lado dos colo nizado res, a servidão lhes parecia uma van-
tagem aos índios, uma fo rma de "se c iviliza rem". Também aliv iava ao
patrão-colonizador sua respon sabilidade de alime ntar e cuida r da saúde
do índio quando estava a trab a lho e, muito m e n os, quando voltava à s ua
a lde ia. No e nte nde r do colo nizado r, a obrigação ao trabalho impunha
aos índios a lguma disciplina , probidade e respeito pela o rde m vigente.
Com o ve remos mais adia nte, essa é a raiz ideológica do paternalismo
que s urge n o Impé rio e vai continuar pelos anos adiante , até o presente. 42

A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA

Os índios do Brasil não tê m fé, n e m le i, ne m re i, diziam os portugueses


do séc ulo XVI. Na verdade, com certe za não tinham re i, mas possuíam le i
e fé, como todos os o utros povos do mundo. Já vimos como se caracte -
rizava o seu s istema socia l, isto é, a sua lei, e agora vere m os com o a sua
re ligião, a s ua fé, se apresentou aos o lhos dos invaso res e com o, pos-
te rio rme nte, foi moldada pela doutrinação c ristã ao lo ngo dos séculos .
Não passou despercebido aos cronistas dos Tupinambá que estes
elaborava m um sistema re ligioso m a is ou m e n os coere nte, se be m que
carecessem de uma fi gura s uprapate rna l e o nipote nte com o a majestade
do Deus c ristão . Ao escolhe re m o te rmo tupã para designar o Deus c ris -
tão, os jesuítas e capuc hinhos franceses que conviveram com os Tupi-
nambá sabiam que estavam arriscando uma con ceituação apen as apro-
ximada . De fato , tupã n ão era mais do que o te rmo usado p ara "trovão",
e incluía um personagem mitológico que , ao perambular pelos céus,
provocava o ribo mbar caracte rístico e sinalizador de chuvas . Nada m a is .
Não ac reditar num De us todo-poderoso, portanto , e ra significativo d e
um povo que n ão tinha fé. O "Diálogo sobre a conve rsão do gentio", do
Padre Manue l da Nób rega, primeiro escrito com te m ática genuinamente
brasile ira, confe re essa dú vida dos portugueses e esse precon ceito c ris -
tão que a inda h oje p e rmanecem no p e nsame nto d e muitas p essoas .43
O que sabemos sobre a re ligião dos Tupinambá, compilado e m um
livro de igual expressão p e lo a ntropólogo Alfred Métraux, deixa claro
que o sentime nto re ligioso d esses índios e, por exte nsão , dos outros po-
D O PO NTO D E V I S T A DO fN DIO 63

vos indígen as n o Brasil , era socio lógica e tecn o logicamente comple to.
Tinham cre nças e ritua is como em o utras re lig iões, buscavam explica-
ções especia is para os fe n ômen os incontroláveis da na ture za, temiam
e lem e ntos sobre n atura is e u savam de meca nism os mágicos para inte rce-
der p e la ajuda às suas dúvidas e sofrime ntos. Tinha m um s iste m a mito -
lógico complexo e a ntrop o mó rfico q ue p rete ndia explicar o mundo e a
su a c ultu ra de uma fo rma simbólica , a legórica e pedagógica. Tal s iste ma
re ligioso percolo u n o processo d e miscigenação cultura l para as muitas
c re nças regio n ais e n os s inc re tism os re lig iosos constitu ídos e ntre o c ris -
tia nism o e as re lig iões afri can as impo rtadas. A sua influê n cia se percebe,
acima de tudo, na fig ura do p ajé e n a su a liturgia caracte rística de fuma r
c h arutões, defuma r os p acie ntes , incorporar espíritos de a nimais, tran ses
e uso de re médios farmacop a icos re ti rados de e rvas e p la ntas do conhe -
c ime nto p opula r e tradicio n a l .44
As pesquisas antrop o lógicas cond uzidas no espírito c ie ntífico com-
p rova m as desc rições dos cronistas q uinhe ntistas q ua nto às re ligiões indí-
ge nas e a dic io na m uma ab o rdagem integra dora d essas c re n ças e ritua is.
Todos os povos indígen as conceb e m a m o rte com o o corte abrup to da
vida e o início de uma o utra vida , desta fe ita sem padecime ntos carna is
e re pleta de alegria tra nquilizadora - e nfim , de um p araíso. Alg uns d i-
vide m a a lma e m d uas fo rças , uma d as q ua is perma n ece n a T e rra e m
s ituação de p e rigo p ara os seres viventes, a o utra se transp o ndo p a ra o
paraíso . Ente n de m que é possível a inte rcessã o so b re o s v ivos através
dos sacerdote s , das a lmas dos q u e já m o rre ram ou dos e s píritos d e o utros
seres da n atu re za , como os a nima is e as pla ntas . O seu m u n do mítico
da criação tra nsco rre num limia r e m que ho me ns e a nima is se integram
co m c aracte rísticas típicas e imutáveis, prototípicas o u paradigmáticas . É
n esse mundo q ue habita m os se us h e ró is civ ilizadore s e de miurgos q u e
dão sentido ao uni ve rso e às s uas c ulturas e m p a rticula r. Mas n ão são
h e ró is capazes de inte rceder pelos vivos, p o is , ao concl uíre m s uas obras
e ge stos sobre -huma n os , aba ndon am a vida te rrestre e p e rman ecem
ape nas no p e n sam e nto e na me mó ria dos v ivos . Não são de uses n e m n o
sentido da mito logia grega dos temp os de Ho mero - p o is n ão h á m a is
interação e ntre v ivos e demiurgos - n e m no sentido cristão dos santos - ,
pois a inte rcessão n ão é possível. O ú nico e lo q ue h á é e ntre h om e ns
e os e spíritos dos animais , o u , e m a lguns casos , co m as a lmas dos se us
m o rtos . É n esse a mbie nte q ue a fe itiça ria e a paje la n ça e ncontra m s ua
justificativa e seu m e io con d uto r .45
O catolicismo q uinhe ntista , m o n ote ísta na te o ria e polite ísta n a su a
a plicação social, e ncon tro u d ificuldades e n o rme s p a ra converte r índ ios
64 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

que não tinham de uses, n em hierarquia , n em disciplinamento litúrgico.


O primeiro mandamento cristão, que reque r uma visão monoteísta do
mundo , era, assim, quase impossível de ser compreendido. Adicio ne -se
a isso a re lação socio lógica e ntre re ligião e sociedade e logo compreen-
deremos por que Manuel da Nóbrega e os o utros insignes e dedicados
missionários se angustiaram tanto e m n ão conseguir manter a fide lidade
dos seus recém-convertidos dentro dos padrões católicos da época. A
conversão imediata e ra fácil , sobretudo depois que os índios eram con-
quistados e m guerra o u ameaçados de escravidão e aprisionamento. O
que os missionários lhes falavam soava como os seus próprios mitos
pelo que tinham de grandioso e fantástico - e, portanto, perfeitamente
crível. Só que não era para ser levado a sério o tempo todo, o que per-
turbava os padres sobremaneira.46
O magistral "Diálogo sobre a conversão do gentio", já re ferido, co-
loca todo o dilema do projeto missionário, a corre lação da força bruta
com a conversão, a desintegração do sistema social para a penetração
do novo s istema re ligioso e o se u a rraigame nto com o explicador dos
n ovos tempos. Entre o Pad re Gon çalo Álva res, o intelectual doutrinário,
e o irmão e fe rre iro Mateus Nogueira, o prático popular, se confrontam
as principais opiniões opostas sobre a natureza religiosa e huma n a dos
índios. À rigidez precon ceituosa de Gonçalo Álvares , que , apesar do
seu conhecime nto da língua indíge n a, n ão vê m ais do que um animal
com corpo humano, Mate us Nogueira, do seu convívio p essoal com os
índios , ao conse rtar-lhes as suas fe rramentas, vê n e les a imagem e se-
melhança de Deus, seres com a lma (isto é, com e nte ndime nto, memória
e vontade), portanto passíveis de serem con vertidos, embora a muito
custo e talvez só através do trabalho a se faze r com as suas crianças.
Mateu s Nogue ira dá exemplos d e índios conve rsos e, no final, compara-os
aos filósofos, c hega ndo ã conclusão de que os índios são mais fáce is de
conversão do que estes últimos. Mas o segredo da a rte de con ve rter se
p e rde nas explicações de fé, p e rmanecendo, unicam e nte, um mistério e
um d esígnio d e D e us.
O dilema permanece em nossos dias. Sabemos, por exemplo, que
a missão dos padres salesia n os e ntre os índios Bororo , n o que tange a
resultado de conversão, d eveu-se à estratégia dos missionários d e modi-
ficar fundame ntalme nte a estrutura arquitetônica da alde ia bororo, base
de s ua o rganização socia l e de s ua filosofia, para , assim, desintegrar o
seu fulcro cultura l e abrir uma b recha para a penetração do novo pen-
sam e nto religioso. 47 Pode -se dize r que todos os índios convertidos ao
cristianismo, h oje e m dia, seja na versão católica, seja nas evangé licas,
D O PO NTO D E V I S T A DO fN DIO 65

passaram necessariamente por um período de liminaridade em sua fé


o riginal mo tivada pela perplexidade e, consequentemente, incerteza so-
bre o valor de suas convicções culturais. Na relação e ntre missionários
e índios hav ia um limite de to le rância que não podia ser ultrapassado.
Pressões mais agressivas e desab ridamente desrespeitosas sobre esse ful-
cro c ultural resultava m em resistência na mesma altura. Tal foi o caso da
missão dos capuchinhos no final do século XIX e ntre os índios Guajajara,
a qual, por ferir descaradamente o âmago cultural guajajara, sofreu as
consequê nc ias de uma rebelião explosiva e violentíssima , na qual mor-
reram c inco missionários e se is freiras , além de mais de 180 brasile iros
da região, de um lado, e cerca de 400 Guajajara, do o utro.48 O u , como na
missão dos frades dominicanos, pelo mesmo p e ríodo, e ntre os Kayapó
do T ocantins, onde o res ultado foi a mo rte total d e to do um grupo des-
ses índios, os cha mados Kayap ó do Pa u d 'Arco, e m cerca de 40 a n os de
trabalho missio nário. 49 Em todos esses casos, a documentação n os mos-
tra que o sentimentalismo religioso estava acima do sentimento religioso
e da preocupação huma nitária p e la sorte físi ca desses povos. É farta a
literatura que descreve o desvelo missio ná rio em o uvir a confissão e dar
a extre ma-unção a índios mo ribundos para que, ao menos, suas almas
fossem direto convive r "no seio de Deus" .
Po ré m , n ão resta dúvida de que muitos p ovos indíge nas, sobrevi-
ventes aos muitos anos de doutrinação jesuítica, capuc hinha, salesiana
ou m e smo p o r clé rigos secula res, adquiriram um sentime nto religioso
que te m muito de cristão, tanto e m su as c re nças quanto em seu s rituais
e s uas m oti vações sociais que v isam a uma integração ideológica com
os segme ntos populacionais ao se u redor. A cre nça em um deus todo-
poderoso p e ne tra no âm ago dessas culturas sinc réticas o u tra n sfigura -
das não some nte com o símbo lo d e su a subordinação a um sistema d e
p od e r centralizado em a lg um luga r, mas também como fator novo de
a juda e a mparo nas n ecessidades socia is e existenciais p o r que passam
esses povos. Em o utros casos, con stata-se que p e rma n ecem dois siste -
mas re ligiosos paralelos preenc h e ndo funções dive rsas : uma c ultural,
o utra ma is social. De qualquer m odo, n ão conhecem os casos de povos
indígenas que rete nha m um a lto grau de autonomia p o lítica e ideológica
que te nha adquirido um sentime nto c ristão significativo. As técnicas d e
apre nde r cie ntificame nte a língua dos índios, usadas por missionários
para p oder traduzir a Bíblia para os seus idio mas n a esperan ça de que a
palav ra divina iluminasse de s úbito os corações dos índios , já eram co-
nhecidas dos jesuítas e nunca se m ostraram s uficie ntes p ara a conve rsão
integral e p e rmane nte . Com o se diz n o "Diálogo" de Nóbrega , "o ofício
66 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

de converte r almas é o mais grande de quantos h á na te rra e por isso


reque r mais alto estado de perfeição que n e nhum o utro" .50
Na ve rdade, a gra nde experiê nc ia que os índios tiveram com a re li-
gião católica foi mais de o rdem social do que propriamente re ligiosa.
Foi através da re ligião que os portugueses se v iram forçados a acata r a
humanidade dos índios e a sofre r um pouco de dor de consciê n cia pela
violência e desumanidade que sobre eles praticavam. E foi pelas expe-
riências socia is nos aldeamentos jesuítas que os índios sobrevive ntes se
in corporaram ao universo colo nial e, posteriormente , ao sistema socia l
brasileiro. Na Amazônia , e m especial , a expulsão dos jesuítas e m 1759
levou à extinção uma gra nde pa1te das sessenta e tantas alde ias que os
jesuítas controlavam em todos os sentidos, isto é, pelo poder temporal.51
Extinção o u desaparecimento le nto de a lde ias motivara m o extermínio
c ultural de muitas das etnias que lá vivia m , o u sua incorporação física
e social ao n ovo mundo caboclo da sociedade brasileira. Algumas des-
sas a ldeias se transforma ram em vilas e depois c idades, como Ó bidos,
Santaré m , Bragança , Viana , Guimarães, Paço do Lumia r e o utros tantos
luga res com patronímicos portugueses clássicos que existe m por aquela
região. Mais dramaticamente , a decisão do Tratado de Madri, de 1750,
assinado pelas Coroas portuguesa e espanh ola para definir os limites de
s uas te rras na América do Sul , de deslocar as a lde ias das Missões dos
Sete Povos, localizadas e m Santa Catarina e n o Rio Grande do Sul , para
o lado ocidental do rio Uruguai (onde h avia outras 16 alde ias sem e -
lhantes - decisão, e ntre tanto, reje itada pelos jesuítas espanhóis e pelos
índios G uara ni), resultou no ataque das fo rças portuguesas e espanho las
e ao a rrasamento dessas alde ias . Pelo menos 20 mil índios foram dizi-
mados e m poucos m eses e os sobreviventes ou migraram para as te rras
espanholas do Paraguai , Missio n es e Corrie ntes, o u p e rma n ecera m n a
região como famílias desgarradas que eventua lme nte iriam se ag rega r ao
n ovo m odelo econ ômico de criação de gado n a região, como gaúch os .
Essas missões, com o outras localizadas e m Mato Grosso, já h aviam sido
alvo de re p e tidos ataques de bande ira ntes paulistas durante todo século
xv11, de o nde traziam cente n as de índios apris io n ados p ara s uas fazendas
de trigo o u para sere m vendidos n o m e rcado do Rio de Janeiro. Contu-
do, os jesuítas es panhóis havia m p e rsistido e m seus propósitos e esta-
belecido novas missões, que sobrevive ram e se estabilizaram por quase
um século, o nde insta uraram uma re lação socia l com os índios que já
foi c h a m ada de "comunism o primitivo c ristão", por seus defensores , e
de "fe udalismo jesuítico", pe los detratores . Eram aglom e rados organi-
zados de índios Guara ni (e uns ocasio na is Kaingang e Charrua) que
D O PO NTO D E V I S T A DO fN DIO 67

o b e d ecia m ao com a ndo do s jesuítas, ta nto na sua produção econ ô mica


qua nto na sua mo tivação re ligiosa . Conhecida a e ficácia do s jesuítas na
o rga nização social e no gere n ciam e nto econ ômico, esses aldeame ntos
se tra nsformaram em p o ntos de gra n de pro dução ag rícola, p asto ril e
d e e rva-mate, provocando n o s colo nizado res e func io ná rios do s re inos
d e Espanha e Po rtugal a ide ia de e nriquecime nto d esme surado e talvez
ilícito . As ativida des ind íge n as se exp andira m com a aquisição e o a p e r-
fe içoam e nto de n ovas técnicas de pro dução de a1tefatos semi-ind u stria -
lizad os na s o fic inas e carpintarias dos a lde ame nto s. A grandios idad e d as
ruína s d e igrejas e a b e le za d as e státuas d e sa nto s , como a s e ncontrad as
e m Santo Ângelo e São Miguel , atestam a p e rícia da arte e da cap acidad e
c ria tiva dos índios e do exp e rime nto jesuítico . A sua destruição, se não
planejad a, p o ré m de te rminad a, comp rova a serie da de do de sa fi o e a
p eque n e z d o proje to colo nial.52

O ÍND IO VIRA CABOCLO

Após a Cab an age m ,53 digamo s a p a rtir de 1841, a que stão indíge n a
n o Brasil de ixa e fe tivam e nte d e ser um p roblem a d e controle p o lítico-
milita r, d e gue rra de clarada p a ra extermínio o u de ataques incentivad os,
e p assa a ser de a dministração d e conflitos localizad os e que re las . Não
existe ma is e fe tiva m e nte um po d e r milita r indígena q ue d esafie o Esta -
do nacio n al. Aliás, fo ra da Ama zô nia a situação já estava definida quase
que completam e nte desd e o fim d a Gu e rra dos Bárbaros, n o No rdeste,
sendo que no Sul te rminara com a de rrocad a fin a l dos Sete Povos d as
Missões, e m 1759 .
O índio sobrevivente, m o ra do r d e a ldeias próximas a v ilas, nos a r-
ra baldes das c idades, e ntão, vira caboclo; é con siderado e c ham ad o
d e caboclo p e las a uto ridad es e p e la p opulação local. Un s m a is bravos
o u rudes, o utros ma is ma nsos o u s ubmissos . T od os estão sob o o lha r
vigila nte das a uto ridades e sob o inte resse e contro le dos fa ze nde iros
regio n a is, sempre de o lho em s uas te rras, as qua is vão sendo p rogres-
s iva m e nte invadidas e us urpad as p e la fo rça d e jagunços e ta mbém pela
coop tação de lideran ças e mbasb acadas, p o r m e rcado rias o u be ne fícios
m e n o res . Mesm o p e rto de c idad es a inda havia te rras p a ra o nde as a l-
deias indígen as resistentes p odia m se refugia r, como é exemplo d isso
ta ntas histó rias d e comunidades, especialme nte no No rdeste e e m Minas
Gerais, mas ta mbé m e m Ma to Grosso do Sul , que ho je estão re que re ndo
o dire ito de reaver te rras perdidas p o r u surpação de faze nde iros .
68 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

Mais distante do controle econômico local estavam aqueles povos


indígenas que permaneciam à ma rgem da expan são socioeconômica do
país, mantendo-se autô n om os cultural e politicamente, ignorados até o
m omento e m que os inte resses econ ô micos se faziam presentes politica-
m e nte. Sua contínua existê n c ia estava condicio n ada ao distanc ia me nto
das vilas e cidades e das fre ntes de expan são econ ômica. Po r muito te m-
po a presença de índios autô n om os, "puros", e ra motivo de indisfarçada
ve rgo nha p o r parte dos ideólogos do Brasil mo de rno, a té o surgimento
de uma visão favorável, criada pelos p oetas indianistas e conso lidada
n a prática por Rondon e seus corre ligio nários. Hoje, a Funai menciona
cerca de 60 indícios de presença de g rupos a utô n om os pela Amazô nia,
incluindo Maranhão e Goiás, porém , na realidade, os s inais con cretos
seriam de 20 a 30 casos de povos indígenas autônomos vive ndo e m
condições de continuidade de seu modo de vida tradicio n al. Contudo,
h á casos extremos de sobrevivê nc ia , como o já mencionado "h omem do
buraco" e p eque nos grupos familiares que fazem parte de povos indí-
genas já contatados e em re lacionamento permanente com a Funai, m as
que recusam aproximação o u convívio com seu s patrícios.
A grande ma io ria dos povos indígenas no Brasil conhece, em varia -
dos graus de precisão , os principais mecanismos que dinamizam o país.
É um conhecime nto adquirido por um ponto de vista próprio e por
uma vivência comum a todos. A passagem da condição de povo autô-
n o m o cultura lme nte e livre politicamente p a ra uma conv ivên cia pacífi-
ca, porém s ubme tida à sociedade brasileira , se dá por uma espécie de
pacto n o qual os índios aceitam as re gras derivadas o riginalme nte das
re lações de servidão, agora em fo rma de clie nte lismo . A eles é p e rmiti-
do a manutenção de parte do seu patrimônio histórico e é facultado o
conhecime nto parcial e a experiê n cia mínima dos desenvolvimentos da
sociedade brasile ira. Em compe nsação, é -lhes exigida a submissão aos
inte resses maio res da n ação, e també m aos m e nores .
Esta é a condição de caboclo, c ujo significado o ri gina lme nte é mestiço,
filh o de índio com branco ou negro . É um termo pejorativo e recusado
por todos, constituindo motivo até de proibição de seu uso num dos arti-
gos do Diretório de Pombal. A palavra p egou prime irame nte e ntre os ín-
clios que eram dominados pelas g ue rras e aceitavam as condições da paz
imposta, e e ntre os que sobreviveram aos anos de convivência próxima
às c idades e povoados. Só d e pois , quando a proporção de índios para os
o utros habitantes rurais diminuiu muito, é que o uso de "caboclo" se es-
te nde u para os n ão índios pobres , moradores o u agregados n as faze ndas .
Mas ainda h oje, nas regiões d e antiga colonização e baixo d esenvolvime n-
to econ ômico, os índios são cha mados de caboclos, o u "índios ma nsos".
D o PONTO DE VISTA DO ÍNDIO 69

Ser caboclo, n o sentido ma is a brange nte, e ra o d estino m a is pie doso


re se rva do ao s índios, n o e nte nde r da p o lítica indige nista que se inic ia n o
Impé rio e n a pró pria avaliação de historiad o res e a ntrop ólogos até po u-
co tempo atrás . Ne m tanto p ara e fe itos d e c riação d e m ão de obra , e m-
b o ra essa fosse a arg ume ntação principal de vário s indigenista s famosos,
d e J osé Bo nifácio ao próprio Ro ndo n , mas como forma de so brevivên-
c ia física. De fato, muitos g rupos ind íge nas che ga ra m a tal p o nto d esse
processo que o u desap a receram o u p e rde ram e m grande p a rte o seu
patrimô nio c ultural , com o o idio m a próprio, a re ligião, ritua is d e so lida -
rie d a de socia l e tc . É cla ro que essa p e rda é con comitante com a redução
o u esbulho de s uas te rras e a cooptação pressio n ad a às le is socia is e
econ ômicas do mundo e n volvente . Muitos povos indíge nas, que h o je
te ntam recupe rar um mínimo op e rante d o seu antigo ace rvo cultural , es-
tava m d ecretados à diluição física n o cadinho huma no bras ile iro. Muitos
o foram , lite ralme nte, p o r decre to, com o o ca so dos índios do Ceará, e m
1860, e d e muitas alde ias d as várias provín cias o itocentistas .54 Nesse caso,
o inte resse e ra , precisa m e nte, a nular os se us dire itos ime mo ria is, o u até
o s o uto rgados p e la Coroa , à s te rras que ha bitava m. O utros se diluíram
num p rocesso social ma is constante d e invasões de suas te rras, p o r
coação econô mica , e pide mias, casame ntos mistos e mig rações fo rçadas .

O ÍND IO SE DESVIRA CAB OCLO

Ma is do que p o r voluntarism o, com o s upunha o a ntrop ó logo Edua rdo


Galvão ainda na décad a de 1950 :55 p a rte do p rocesso socia l d a histó ria
conte m porâ nea do p a ís, os índios de ixa ram de ser caboclos, recusando
uma posição d e ma rgina lida de ambígu a p ara b u scar, num esforço gen e -
ra lizado e ab sorve nte, a a firmação de sua ide ntidad e é tnica e uma n ova
p osição socia l n a realida de po lítica qu e os e n volve e os impe le a n ovas
atitudes e ações . A fo rça propulsara n esse processo é a própria exp an-
são d o capitalism o brasile iro e sua le i inexorável de tra nsforma r to das as
re lações socia is e m re lações d e p roprie da de, valo rizando a te rra e seus
atributos como m e rcad o ria e reserva d e lucro . Nesse sentido, os índios
se transformam , junto com o utras p a rcialida des cam pon esas de tra dições
pré -capitalistas o u trib utárias ao capitalismo, e m bolsões de resistên c ia,
e m negação do p rocesso de capitalização da te rra e da vida . Do No rdeste
ao Sul , regiões colo niza das h á muito te mpo, a té o Centro-Oeste e No rte,
c ujas fre ntes pio n e iras são subsid ia das p e lo Estado b rasile iro, numa in-
te ns idad e qu ase inus itada na histó ria d as re lações inte rétnicas n o p a ís,
70 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

os povos indígenas, em diferentes graus de aculturação ou "cabocla-


mento" ou integração, reagem na defesa de seu patrimônio territorial e
cultural.56 Em certas regiões, a reação é mesmo de defesa e manutenção
do que já obtiveram, como no caso dos Xavante, Kayapó, Munduruku
etc. Entre outros - como diversos povos do Nordeste, os Xukuru-Kariri,
Tuxá, Truká, Potiguara, no Sul, os Guarani, Kaingang, Terena etc. - ,
é de recuperação do território parcialmente perdido, inclusive seu acer-
vo cultural, pelos tempos de pactuação com a realidade anterior .57
Embora não sejam peças de manipulação da histó ria , os índios, como
todos os povos e realidades sociais, vivem na histó ria e percorrem o
seu itinerário em função da força da corrente dominante. Essa força
atual não é absolutamente onipotente, inexorável e irredutível, mas não
se pode subestima r o seu poder e permanência por simples devaneios
idealistas. O capita lismo brasileiro existe por força e tradição; assim,
os índios criam as suas estratégias de sobrevivência e fortalecimento
levando-o em consideração. Os bolsões de anticapitalismo de feição
indíge na ou cabocla, ou campesina, existem como lagos e água parada
nas bordas de um grande rio espraiado. Talvez como reserva, talvez na
espera de novos mecanismos para encarar o seu oponente - sobretudo,
por não desafiá-lo de fato - , o capitalismo passa ao largo da continui-
dade dos povos indígenas e, em certo sentido, até a promove. De que
outra forma pode-se explicar a ação do Banco Mundial ou de ONGS inte r-
nacionais que servem a inte resses do sistema dominante (até sem que re r
se dar conta d essa realidade), qu e, ao financiar proje tos d e desenvol-
vime nto claramente capita listas, exige da parte do governo brasileiro a
demarcação das terras indígenas e a proteção dos seus h abitantes?58
A reflexão inte lectual indíge na que transparece em seus disc ursos ge-
nuínos e a sua própria ação demonstram que os índios estão conscie ntes
do processo histórico que atravessam. 59 Sabem que este é um momento
de agir com determinação pelo fortalecimento de s uas bases é tnicas e
pela busca d e uma posição nova no panorama nacional. Veremos mais
adiante qu e existem os seus p e rcalços nessa caminhada de tomada d e
consciê n cia, que o parto de libertação das formas de relacionamento
paternalista é doloroso, e que pode , inclus ive, até matar o bebê. Eles
sabem, por m e io da tradição e de sua história oral, que a história que
se lhes impôs os reduziu a uma posição d e marginalidade de mográfica
e socia l no contexto político em que vivem. Sabem que já tiveram todo
o continente para si, que já viveram experiências de convivê nc ia muito
mais favoráveis e pode riam e n contrar formas d e re lacionamento mais
e quilibradas e dignificantes . Sabem e lutam por isso.
D o PONTO D E V I ST A DO ÍND I O 71

De outro lado, aquele aparentemente mais confortável, nós temos


um papel de nos unirmos na busca dessa nova via , pois aí também está
a nossa sobrevivência futura.

NOTAS

' Ver Sílvio Castro (org.), A carta d e Per o Voz de Ca minha, Po rto Aleg re , 1.&PM, 1985; ver também
Américo Vespúc io, Novo M undo: cartas de viagens e d esco bertas, Porto Aleg re , r.&PM, 1984 ;
Cris tóvão Colombo, D iár io d a descoberta da A mé r ica, Po rto Alegre, 1.& PM, 1984.
T ho mas Mo rus , Utop ia, Lisboa , Publicações Europa-Amé rica, 1973.
3 Miche l d e Mo ntaigne, "Os ca nibais", e m E nsa ios, ca p . xxxr, Coleção "Os Pe nsadores", São Pa ulo,

Abril Cultural, 1972.


' Ver Sérg io Bua rque de H o landa , Visão d o paraíso, Brasilia na, São Pa ulo , Com panhia Editora
Nac io na l, 1977, v. 333; Afonso Arinos d e Me lo Franco, O índio brasileiro e a Revolução Fran cesa .
Rio d e Ja ne iro , José O lympio, 1937.
s A b ib liografia sobre os índ ios Tu p inamb á é a mais exte nsa d e tod as que descrevem e a na lisam
povo s indígenas no Bras il. Os livros de Flo restan Fernandes, que serão vistos mais adia nte, incluem
u ma boa pa rte d e la, dos cro nistas, missio nários, viaja ntes e a ntropólogos, até 1950 . Ver ta mb ém
as seguintes obras de Alfred Mé traux, Les M ig rations Historiques des Tup i -Guaran i, Paris, Ma ison
Neuve Frê res, 1927; A religião d os Tupinam bá e su as relações com as demais Tribos Tupi-Guara n i,
Prefácio, tradução e notas de Estevão Pinto , São Pa ulo , Compa nhia Edito ra Naciona l, 1950 . Os
traba lhos mais recentes se a po ia m sobre essa bibliog rafia, já que não e xis te m mais Tupina mbá,
o u , pe lo menos, não ex istem mais a c ultura e a sociedad e Tu pinambá.
6
Gabrie l Soares de Souza, Tratado descrit ivo do Brasil em 1587, Bras ilia na, v. 117, São Pa ulo , Com-
pa nhia Editora Nacio na l, 1971; André Thevet, As singula rid a des d a Fra nça Antártica, Coleção
Reconquis ta d o Brasil, v. 45, Belo Ho rizonte/São Pa ulo , Edito ra da usP e Livraria Itatiaia, 1978;
Fe rnão Ca rdim, Tratados d a ter ra e gente d o Brasil. Bras ilia na, v. 168, São Pa ulo, Compa nhia
Edito ra Nacional, 1978; Pe ro de Maga lhães Ga ndavo, !. Tra tad o d e Terra d o Brasil . 11. História da
Província de Sama Cna. No ta b ibliográfica de Rod o lfo Ga rcia e introdução d e Ca pistrano de Abre u,
Rio d e Jane iro , Edição Anuário do Bras il, 1924; Simão d e Vasconce los, Crônica da Companh ia
de jesus, Petrópolis, Vozes, 1977, 2 v.; Frei Vice nte d o Salvado r, História do Brasil, 1500-1627,
nova ed iç.'i o re vis ta po r Capistra no d e Abre u, São Paulo/ Rio d e Ja ne iro, Editores Weiszflog Irmãos,
19 18;Jea n d e Lé ry, Viagem à Terra d o B rasil, 3. ed, São Paulo, Livra ria Ma rtins, 1960. Esses cro nis tas
relacio nam e loca lizam os povos indígenas na região conhecida no século XVI. Não se pode confia r
inteira me nte ne m nos no mes que dão ne m na s u a localização p recisa , já que parte da informação
que tinha m vinha de notícias vagas d e outros povos indígenas o u de pessoas que passavam po r
essas reg iões . As info rmações de mográficas sobre os Tu p inambá que habitava m a costa b rasile ira
são ma is idô neas . As regiões d e São Paulo , Rio de Ja ne iro , Espírito Santo , Recôncavo Ba iano,
Pe rnambuco, Ma ra nhão e b aixo Amazonas concentravam razoáve is contingentes popubcionais .
Jean d e Lé ry, po r exemplo, re lata qu e p resenciou uma bata lha com 10 mil índios Tupina mbá
na baía de G ua na ba ra, e m 1557. Isso pode s ignifica r uma populaç.1 0 d e 100 mil índios e ntre
Cabo Frio e Sa ntos, e ma is 50 mil no p lanalto de Piratininga. Mem d e Sá é creditado pe la morte
d e cerca de 30 mil no Recôncavo Ba ia no , e m 1558. Ao co nta rmos as e pidemias a nte rio res e os
sobre viventes é possíve l qu e a populaç.1 0 Tupina mbá d essa região ultrapassasse os 100 mil.
Deveria have r ce rca d e 50 mil na reg ião do Espírito Sa nto e no s ul da Ba hia. Em Pernamb uco,
Paraíb a, Rio G rande do Norte e b a ixo São Fra ncisco, ca lc ulamos que teria havido de 150 mil a
200 mil. No Mara nhão, no início do século XVIII , hav ia 50 mil Tu p inambá. Na reg ião de Belé m,
o utros 50 mil. Os Tupina mbá ao s ul d e Ca nane ia , São Pa ulo, cha mados d e Ca rijós e mais ta rde
G uara ni, poderiam tota liza r 500 mil. Pie rre Cbstres calcula e m l.500 milhão. Total glo ba l de
l milhão de Tu p inambá . As concentrações d e índios no in terio r se localizava m no médio rio São
Francisco, nos sertões d a Ba hia e e m Mato G rosso. Mas mesmo nas caatingas do Nordeste havia
índios e m q ua ntidade. É poss íve l que em ne nhu ma parte d o te rritó rio brasile iro deixasse d e ha -
ver povos in díge nas. Um milhão não é u m núme ro exagerad o para expressar essas populações
interio ra nas. Na Amazônia, es pecialme nte no p ró prio rio , e ram gra ndes e exte nsas as povoações
72 ÜS fNDJ O S E O B RASIi.

d e índios, conforme os primeiros cronis tas. Ver Cristóbal de Acuõa , Gaspar de Carvajal e Alonso
Rojas, Descobrimentos do Rio das Amazonas, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1941. Padre
Antônio Vieira, em 1656, achava qu e os portugueses já haviam destruído cerca d e 2 milhões de
índios só no baixo Amazonas, um evid e nte exagero. De qualque r modo, concentrações de 20 mil
a 30 mil pessoas em aldeias ribeirinhas de até 9 quilômetros d e exte nsão não e ra m incomuns.
Três miU1ões de indivíduos nos parecem u ma estimativa razoável.
7
Esses pontos estão resumidos na obra de Betty Meggers, Amazônia: a ilusão de um paraíso, Rio
d e Janeiro, Civilização Brasileira, 1977.
8
Ver de Pierre Clastres, A sociedade contra o Estado, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978. Arqueologia
da violência. São Paulo, Brasiliense, 1982.
9 Ver, por exemplo, o estudo sobre a introdução do machado de ferro e facões na ilha Nova

G uiné, do antropólogo australiano R. F. Salísbu ry, From Stone to Steal, Melbourne, Universit y o f
Melbourne Press, 1962; Marshall Sahlins, Stone Age Economics, Chicago, Aldine, 1972. No Brasil,
ver as observações d e Robert Carneiro, "Slash-and-Burn Cu ltivatio n among the Kuikuru and its
lmplications for Cultural Development in the Amazon Basin ", e m Y. Cohe n (ed.), Man in Adapta-
tion: The Cultural Present, Chicago, Aldine, 1968.
10
"O Diário do Navio Bretoa" est,1 p ublicado em F. A. de Varnhagen, História geral do Brasil, revisão
e notas de Rodolpho Garcia, Rio de Janeiro, MeU1oramentos, 1962, 5 v. As expedições dos fra nceses
estão rebtadas em Pa ul Gaffarel, HistoireduBrésil Français au SeiziêmeSiêc/e, Paris, Maison ne uve
et Cie, Libraires-Editeurs, 1878. A colôn ia francesa instalada no Rio de Ja ne iro manteve escravos
índios obtid os de grupos riva is aos seus aliados. Ver Jean d e Lery, Viagem à Terra do Brasil,
op. cit.
11
Ver F. A. Va rnhagen , op. cit., v. l , seção 12, pp. 192-2 11.
12
Alexande r Marchant, Do escambo à escravidão, Brasiliana, v. 225. Rio d e Janeiro, Compa nhia
Editora Nacional, 1943.
13 Essas tensões est.1 0 docume ntadas em Jean d e Lery, Viagem à Terra do Brasil, op. cit. e Yves

d 'Evreux, Viage111 ao Norte do Brasil, feita nos anos de 1613 e 1614, São Luiz do Maranhão, Ty-
pographia do Frias, 1874. Há uma nova traduç.10 revista e a ume ntada deste último livro, ainda
inédita.
14 Ver José Antô nio Gonç.1lves de Mello (org.), Fontes para a história do Brasil holandês: A economia

açucareira, Recife, Parq ue Histórico Nacional dos G uara rapes, 1981, pp. 182-6; Gedeon Morris de
Jonge, "Relatórios e cartas", em Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. 58, 1896,
p p. 237-3 19.
,s Ver José Antô nio Gonça lves de Me llo, Tempo dos flamengos, Coleção Docume ntos Brasileiros 54,
Rio d e Janeiro, José Olympio, 1947.
16 Ver Ped ro Souto Maior, "Fastos pernamb ucanos", em Revista do Instituto Histórico e Geográfico

Brasileiro, v . 75, parte 1, 1912, p p. 4 14-26.


17 Ver Afonso d'Escragnole Taunay, A Guerra dos Bárbaros, Separata da Revistado ArquivoMunicipal

de São Paulo, v. 22, 1936.


18 Ver Francisco Rodrigues de Prado, "His tó ria dos índios Cavaleiros o u da Nação Gu aykuru'', e m

Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. LXX, 1908, p p. 2 1-44.


19 Ver Afonso d'Escragnole Ta unay, História geral das bandeiras paulistas, São Paulo, 1924-1950,

v . 8, p p. 290-95. Ernesto Ennes, As Guerras dos Palmares, Brasiliana , 127, São Paulo, Companhia
Editora Nacional, 1938.
"' Sobre o extermínio dos índios do Pia uí e o pa pel dos b andeirantes, a Casa d e Torre e a Casa de
Ávila, e o domínio dos jesu ítas com s uas faze ndas de gado, ver Francisco Aug us to Pereira da Costa,
Cronologia histórica do estado do Piauí, Recife, 1909; Barbosa Lima Sobrinho, O devassamento
do Piauí, Rio de Janeiro, Companhia Editora Nacional, 1946; Ennes, As Guerras dos Palmares,
op. c it. Ta unay, História geral das bandeiras paulistas, op. c it. , v. 8.
21
Mem de Sá é considerado, "aba ixo de Deus, o homem da catequ ese" pe lo Padre Rui Pereira, em
1560. Apud Mecenas Dourado, A conversão do gentio, op. cit., p. 85.
22
Sobre o extermínio dos Tu pinamb á após a expu lsão dos franceses, ver Simão d e Vasconcelos,
Crônica da Companhia d e Jesus, op. cit. e as Cartas dos primeirosJesuítas no Brasil, edit.1 d as por
Serafim Leite, 3 v., São Pa ulo, Comissão de Publicação do 4° Centenário, 1954.
23 Sobre a conq uista da Paraíba, ver J. F. de Almeida Prado, A conquista da Paraíba (séculos x17 e

Xl'll) , Brasiliana 321, São Pa ulo, Compan hia Editora Nacional, 1964.
24
Sobre a destruição dos Tupinambá no Maranhão, ver Bernardo Pere ira de Berredo, Annaes históricos
do estado do Maranhão, 2. ed ., São Luiz, Typographia B. de Mattos, 1849. Há uma nova e dição
fac -similar da primeira edição sendo p ublicada na Coleção Monu ment,1 Amazônica, pelo Centro
d e Estudios Amazônicos, e m lquitos, com notas e prefácio de Carlos de Araújo Moreira Neto.
D O PO NTO D E V IST A DO fN DIO 73

25 O Padre An tônio Vie ira u tiliza esse número e m diversas ocasiões e diz que o ou viu de uma
teste munha ocula r da conquis ta d o Ma ra nhão, o Cônego Ma nue l Teixe ira, que o juro u e m seu
le ito de mo rte. Ver '·Direcções a respeito d a fo rma que se d eve te r no julga me nto e liberdad e no
cativeiro dos índios d o Ma ranhão", e m Obras escolhidas, v. v, Lis boa, Livra ria Sá de Cortes, 1851.
Ver ta mbé m João Lúcio de Azevedo, História d e Antônio Vieira, 2. ecl., Lisb oa, Livraria CL~ssica ,
1931, 2 v., especia L,,ente os capítulos "O Missio ná rio'' e "O Revoltado'' . Ver també m d o mesmo
autor, Cartas do Pa d re Antôn io Vieira, 3 t., Coimbra, Impre nsa da Univers idade , 1925-1926.
26 Essas colô nias fo ra m destruídas e ntre 1616 e 1630, quando os po rtugu eses se estabelecera m de
vez no b aixo An1azonas. Con tudo, navios irlandeses continuara ,n a comerciar co,n índ ios da
região até b e m mais ta rde. Ver John He mming, Red Gold, o p . cit. , p p . 223-28.
v Ver Ca rlos d e Araújo More ira Neto , De maioria a minoria, o p. c it.
28 E até os T imbiras cio Mara nhão. Ver Francisco de Pa ula Ribeiro, "Me mó ria sobre as nações gentias
que presente me nte hab itam o contine nte do Mara nhão", em Revista d o Instituto Histórico e Geográf ico
Brasileiro, v. m, 1841, p p. 184-197; 297-322; 442-456. Ver, também, Ca rlos de Araújo More ira Neto,
"A Po lítica Incligenis ta Brasile ira durante o século XIX" , op. cit. ; "Alguns dados pa ra a his tó ria
recente cios índios Ka inga ng", e m La Situación dei indígena en A mérica de i Sur, coorde nado po r
Georg G rünbe rg , Mo n tevidé u , Tie rra Nueva, 197 1, p p. 381-419.
29 Ver Ca rlos de Araújo Mo re ira Ne to, "Alguns dad os .. .'', o p ., cit., p p . 395, 399; Sílvio CoeU,o cios
San tos, Ín dios e brancos no Sul do Brasil, Flo rianó po lis, Ecleme, 1973.
Yl Ver Darcy Ribe iro, Os ín dios e a civiliz a ção, o p. cit ., p p . 42-7; Franz G aspar, Tupari, Lo nd res, G.
Bell a nel Sons Ltcla., 1956.
3' Ver Fra ncisco de Paula Ribe iro , o p . c it. Ver tamb é m J úlio Césa r Me latti, Í ndios e criadores, Rio de
Ja ne iro, Instituto d e Ciê ncias Socia is, 1967; Cure Nimue ndaju , The Eastern Timbira, Berke ley anel
Los Angeles, T he University of California Publica tio n in Ame rica n A rchaeology a nel Ethno logy,
V, 41 , 1946.
32 Este caso foi filmad o fi cciona lmente por Zelito Viana, e m 1984, com o título A vaeté.
33 Ver Gordo n R. W'illey, A n lntrodu ction toAme rican Archaeo/ogy, v. u, South A merica, Eng lewoocl

Cliffs, N.J., Pre ntice-Hall, 197 1.


34 Ver John Hemming , Red Gold, o p . cit. , cap. 7, p p. 139-148.
35 Manoel Nunes D ias, "Colo nizaç.10 d a Amazônia ( 1755-1778)'', e m Revista de História, v . 34,

1967, pp. 471-90, c ita uma fo nte da é p oca q ue esti mo u e m 40 mil o n ú mero d e mo rtes só e m
Belé m . João Lú cio d e Azeve d o, Os j esuítas no Grão-Pará , o p . cit., p . 199, diz q u e a população
indígena nas a ld e ias jesuítas b a ixou , nesse período, d e 50 mil para 30 mil.
y, Da rcy Ribe iro, Virá vai à p rocu ra de Deus, Rio de Jan e iro , Paz e T e 1rn, 1974; Diários índios,
São Paulo , Compa nhia d as Let ras, 1995.
37 Ver Fra ncisco de Pa ula Ribeiro, "Me mó rias sobre as nações ge ntias ... ", o p . cit .; ver, ta mbém, cio

mesmo a uto r, "Descri pção d o Territó rio de Pastos Bons, nos sertões d o Maranhão", e m Revista
do Instituto Histórico Geográfico B rasileiro, t. x11 , 1849, p p . 4 1-86 .
.lB Ver L. B. H o rta Ba rbosa, A pacificação: dos Gaingangs Paulistas: hábitos, costumes e instituições
desses índios, Rio d e Ja ne iro, 1913.
39 Ver o capítulo "O q ue se pen sa d o índio " para uma a ná lise e d efinições d esses te mas e insti-
tuições co lo niais. Sobre o Padre Antô nio Vie ira, ve r João Lúcio d e Azeved o, História de Antônio
Vieira, o p. c it.; e Os Jesuítas no Grão-Pará , op. cit. Ver també m as Obras escolhid as, ele Vie ira,
p ublicadas pela Livraria Sá d a Cos ta Lis b oa, especia lme nte o vo lume v, q u e co nté m diversos
d ocume ntos sobre os índ ios d a Amazônia , Maranhão e Cea rá escritos pelo au tor, inclus ive s u as
opiniõ es sobre escravizaç.10, co lo nos e as juntas de missões .
40
Ver Agostinho Perdigão Ma lhe iro , A escra v idão no Brasil, Petrópo lis, Vozes, 1976, t. 11.
41 Há uma contrové rs ia a respeito d o ca ráte r do trab a lho indíge na e m a lde ia s d e administração

e nas missões jesuítas. Enquan to Ne lson \Verneck Sodré cons idera esse trab alho pa rte de um
s is te ma "semife uda l", Jacob Gore nder acha que faz ia pa rte cio esc rav is mo v igente , e mbora de
uma fo rma "incom p le ta ". Jacob Gore nde r, O escravislllO colonial, São Pa ulo , Ática, 1978, pp.
124-133; 468 e 485.
42
Sobre a serv idão praticad a com os índ ios e s uas consequê ncias na formação socia l b rasile ira, ve r
a aná lise rea lizad a e m me u livro O índio na História, o p . cit. , ca p . xx.
43
Padre Ma nue l da Nóbrega, ''D iá logo sobre a conve rsão d o gentio (1557)", apud Mecenas
Dou rad o, A conversão do gentio, Rio d e Jane iro , Liv raria São José, 1958. Ve r ta m bém Alfre d
Mé trau x , A religião dos Tupinambá, o p. c it.
44 Ver Edu ardo Galvão, Santos e visagens, op. cit.
45
Ver, como exemp los consagrados, Alfred Métra ux, A religião dos Tupinambá, op. cit. ; Cha rles
Wag ley, "Xama nismo Ta pira pé", e m B oletim d o Museu Nacional, nº 3, 1943.
74 0 S fN D IO S E O BRAS 1 1.

46
Ver Mecenas Dourado, A conversão do gentio, op. cit. São muito frequ e ntes essas observações nas
cartas dos primeiros jesuítas, inclusive Nóbrega, Anchieta e Aspicue lta. Ver Cartas dos primeiros
Jesuítas no Brasil, editadas por Serafi m Le ite, op. cit.
47 Ver análise de Claude Lévi-Stra uss em Tristes trópicos, São Pa ulo, Anhembi, 1955, parte VI.
48
Ver o capítulo 1x do meu livro O índio na História, op. cit.
49 Ver Fátima Roberto, "Salvemos nossos índios''. Tese de Mestrado, 1983, Depa rtame nto de Ciências

Sociais, Universidade Estadual d e Campinas.


so Para u ma visão atualíssima sobre o dilema missionário, ver o livro do ex-missioná rio eva ngélico
e not.'Ível linguist.1, Daniel L. Everett, Don 't Sleep, there are snakes, Nova York, Vintage Books,
2008, sobre os inefáveis índios Pira hã.
5' Ver João Lúcio de Azevedo, Os jesuítas no Grão-Pará, op. cit.
5' Ver C. Lugon, A República "comunista" cristã dos Guarani, 1610-1768, Rio de Janeiro, Paz e

Terra, 1977.
53 A Cabanagem (1 835-1841) foi uma revolt.1 popula r na Amazônia que teve a participação efetiva

d e muitas alde ias indíge nas e muit.1 s vilas ex-aldeias jesuíticas. Em relação à repressão q ue as
forças oficiais p romoveram contra os índios, ver Ca rlos d e Ara újo Moreira Neto, De maioria a
minoria, op. cit.
54 Ver Ca rlos d e Araújo More ira Neto, "A política indige nista brasileira du rante o século x1x·', op. cit.

ss Ver Eduardo Galvão, "Introdução" ao livro Os índios Tenetehara, o p . cit.


56 Ver She lton D avies, Vítimas do milagre, Rio de Ja ne iro, Jorge Zahar, 1978; José de Souza Martins,

Não há terra para plantar neste verão, Petrópolis, Vozes, 1986.


57 Até a p rimeira edição d este livro, os resumos de no tícias jornalísticas dessas lutas pod em ser

encontrados nos docu mentos p ublicados pe lo Centro Ecumê nico de Docu me ntação e Informação
(Cedi), Povos indígenas no Brasil, anos 1981, 1982, 1983, 1984, 1985/ 1986, São Paulo, Tempo e
Presença. A partir daí, essas compilações jo rnalísticas e report.1gens especiais passaram a se r p u-
blicadas com o mesmo nome, q uinque nalmente, pe lo Instituto Socioambiental, que também tem
u m va lioso site de informações sobre povos indígenas na atua lidade (www.socioambiental.org).
58 É até vergonhoso para o Brasil que assim o seja, já que este é um dever próprio e d e rivado de

lei constitucional. Pior ainda é quando o Banco Mundia l ameaça o governo brasileiro de rompe r
acordo e s uspende r convênios d e fin anciamentos porque não há cumprime nto nas cláus ulas de
d emarcação das te rras indíge nas o u assistê ncia devida.
59 Ver Márcio Souza (org.), Os índios vão à luta, Rio de Janeiro, Marco Zero, 1981, q ue trata d o

alvorecer da consciência política indíge na ainda durante o período dit.1torial. Nos últimos dez
anos, o movimento indígena ficou ma is o rganizado e estruturado para voca lizar seus protestos
e propor novas políticas públicas, as quais nem se mpre são acatadas pelos governantes. Ver o
capítulo "O futuro dos índios" para uma a nálise det.1 lhada do movime nto indíge na e da nova
autoconsciência indíge na sobre s u a posição his tórica.
POLÍTICAS INDIGENISTAS

A COLONIZAÇÃO DO BRASIL

Levou pouco tempo para que Po rtugal delineasse suas bases de e nte n-
dimento com os povos indíge nas do Brasil e, assim, pudesse formular e
aplicar s ua política indige nista. Sua exp e riê nc ia conte mpo râ nea na África
do No rte e na Ásia, agressiva e incle me nte, foi passada p ara o Bras il sem
relevantes modificações - e, muitas vezes, p o r inte rmédio dos mesmos
gestores . D e fato , muitos dos prime iros capitães e governado res que vie -
ram ao Bras il tinha m sido antes capitães e conquistado res na Ásia , e os
interesses econ ô micos da a tiva burguesia m e rcantil p o rtuguesa, que im-
pulsionavam o comé rc io e a colo nização, não haveriam de ser d ife re ntes .1
O projeto colo nial ja mais p e rmitiu va riações além do que aquelas
que fixava m , por princípio, a p osição dos povos indígenas como s údi-
tos do rei , vassalos e m sua própria terra e seres socialmente infe rio res
aos p o rtu gueses . Por resolução do Tratado de Tordesilhas, firmado e n-
tre Po1tugal e Espanha a 7 de junho de 1494, o Novo Mundo, recém-
descoberto, fora dividido pelo meio e ntre esses dois países a partir de
uma linha imaginá ria que se localiza ria a 370 léguas a oeste das ilhas
d e Cabo Verde, e m cujo lado o rie nta l, p e rte ncente a Po1tugal, estava
situada boa pa1te do Brasil. Embora Pottugal n ão tivesse dúvidas quanto
à legitimidade de suas pre te nsões, vale no ta r que esse tratado foi fe ito
sem a interme diação do p apa , caracte rizando -o como um ato de auto-
n omia vis-à -vis o pode r p o ntifíc io . De u també m ocasião p ara que o utros
países, poste riorme nte - com o a França - , se sentissem n o dire ito d e
também conquistar e colo niza r terras e p ovos nas Amé ricas .2
76 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

Po ré m , Po rtugal já se achava acautelado por sanção papal desde


1454, quando Nicolau v, p e la Bula Rontanus Pontifex, garantira-lhe o
direito de conquistar terras n ovas, de "bárbaros" o u de "infiéis", e sub-
m ete r seus povos à servidão pelo uso da guerra. A Esp a nha também
o btivera o seu direito cristão de conquista p e la Bula InterCoetera, exp e -
dida pelo papa Alexandre VI, e m 1493. 3
Para n ão deixar dúvidas, esse direito foi reafirmado aos portugueses
e m 1529 (po rtanto, já h á a lgum te mpo desde a descoberta, quando se
debatia p o r toda a Europa a legitimidade e a brutalidade da conquis -
ta). A Bula Inter Arcana, expedida pelo papa Clemente VII a 8 de maio
daquele ano, u sa de expressões que parecem desconhecer os argu-
m e ntos do fre i Ba rto lo m e u de Las Casas e m favor dos direitos naturais
dos índios, representa ndo uma indife re nça total à sua integridade físi ca
e espiritual. Po ntifica o seguinte: "[ ... ] que as n ações bárbaras venham
ao conhecime nto de Deus não por meio de editos e admonições com o
também p e la força e p e las armas, se for n ecessário, para que suas a lmas
possam participar do re ino do céu " .4
Reconhecendo as dificuldades da conversão e a ntecipa ndo o dilema
da catequ ese, o papa não p oderia te r s ido ma is realista do que o re i. E o
re i, por sua vez, n ão preciso u fazer inge ntes esfo rços p ara seguir as s uas
recomendações e permanecer c ristão. A justificativa do uso de a rmas
para catequiza r foi sempre uma das principais ra zões para se declarar e
p raticar guerras justas contra os índios durante quase todo o período da
colo nização portuguesa.
Naturalme nte, aos índios essas gue rras não pareceram legítimas. Por-
tanto, não acolhe ram passivam e nte a b rusca invasão dos seus te rritó rios
e a perseguição que lhes acometeram os portugueses desde os primei-
ros a nos . Ficou patente que a disposição indígen a não era p ara a aceita -
ção d e um controle sobre suas vidas . Seus modos d e ser e seu s sistem as
políticos n ão admitia m a obediê ncia cega n e m a hie rarquização estatutá-
ria. As demandas impostas, mesm o em tempos de p a z, e ram excessivas
ao extremo e incompreen síveis para quem sempre vivera e m libe rdade .
A reação indígena, através d e gue rras, gue rrilhas, fugas à escravidão
e ao t rabalho fo rçado, bem com o seu sofrimento em m assa, a bruta-
lidade praticada nas conquistas e na colo nização - de um exagero e
grav idade até e ntão incon cebíveis p ara uma nação c ristã ( mesmo te ndo
e m v ista o que os portugueses já h avia m fe ito contra os sarracen os e
os hindus) - , provocaram escrúpulos e preocupação na a lta cúpula da
Coroa, sobre tudo p o rque o discurso colo nia lista rezava que o p ropós ito
da presença portuguesa nessas plagas e ra propagar a fé católica pe la
conversão dos ge ntios . Ade ma is, havia questões de o rde m jurídica a
P Ol.fTJCAS INDIGENJSTAS 77

serem con veniadas a respeito da do utrina do dire ito natural d os povos


n ão c ristãos que iam sendo conquistados. As le is eram e lab oradas pelos
juriscons ultos da Coite, que, em grande parte, e ram religiosos e, assim,
procura va m o be decer aos cân o n es da doutrina e m vigo r.
Em diversas ocasiões foram explicita m e nte reconhecidos os direitos
de soberania indíge n a. Na Carta Régia de 9 de março de 1718, os índios
ch egaram a ser cons iderados isentos da jurisdição real.5 Ao m esmo tem-
p o, n o e ntanto, Po rtugal ma nteve a escravidão como n o rma e p oss ibi-
lidade de ser aplicada sobre qualque r p ovo indíge na. Ao contrá rio dos
espanhó is (sempre mais formais e legalistas), que desde 1542 h aviam
decretado a libe rdade incondicio n al dos índios, Po1tugal fo i fazê-lo a p e -
nas e m 1609, para revogar esse dispositivo dois a nos depois , decretá-la
n ovam e nte só em 1757 e voltar a ab rir exceções e m 1808. O padrão por-
tuguês de políticas indige nistas pode ser caracte rizado, na me lho r das
hipóteses, como maleável, ambíguo e casuístico. A lógica da conquista,
da colo nização, a defesa do território e a n ecessidade de mão de obra
exigiam, em determinados mo me ntos, n o e nte nde r da Coroa, medidas
de extrema dureza e inflexibilidade, pois jamais se deveria afastar do
propósito de dominação absoluta.
As prime iras n o rmas legais e recomendações de como se re lacio nar
com os índios estavam contidas n os regimentos que o re i dava aos capi-
tães de n avios que fossem come rciar n as te rras do Brasil. Embora suge -
rindo que se desse bom trato aos índios , já aí se previa a possibilidade
de escravizá -los e e n viá-los a Lisboa, mesmo que , hipocritamente, vies-
sem sob a linguagem de "apreensão voluntá ria ". A partir do ch am ado
Regime nto d e Tomé de Souza, de 1549, e a le i d e 1570, todas as de cla-
rações rea is que se propunham escla recer melhor essa questão sempre
deixaram b rechas para que se pudesse fazer guerra contra os índios,
aprisio n á-los, esbulha r-lhes suas te rras, realoca-los - e nfim, o que fosse
n ecessário para não comprom ete r a segu rança do empreen d ime nto co-
lo nia l. É impo rtante que conheçam os a lgu n s te rmos essenciais usados
n a época colo nia l a respeito dos índios:

• nação (gentílica) - n ação o u povo n ão cristão;


• aldeia - vila indígena, ou agrupa m e nto de índios a locados por
o fic iais da Coroa ou missionários;
• descintento - transladação de grupos d e índios de seus te rritó rios
para locais determinados , esp ecia lme nte próximos à costa;
• e1ttrada- expedição p ara efetua r descimentos. Em geral, e ra dirigida
por uma autoridade o fic ia l (m as podia ser por um particular), ordena-
da por uma junta de missão, com o u sem a presença de missio ná rios;
78 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

• bandeira - e mpresa particular que e fe tuava expedições para dar


caça e apris io n a r índios ( o u procurar ouro o u pedras preciosas) .
Muitas foram contratadas por o fic iais da Coroa; o utras e ram ilegais -
sobretudo associadas aos paulistas;
• resgate- ato de obte r prisioneiro índio de o utro grupo indíge na por
troca, supostamente para salvá-lo de m o1te certa. Posterio rmente,
o pretexto invocado foi a salvação dos índios das penas do infe rno;
• aldeias de repartição-aldeias p ara o nde eram tra zidos índios desci-
dos para depois serem distribuídos e ntre autoridades e particulares;
• aldeias de administração - alde ias de índios descidos sob a ju-
risdição das Câmaras o u dos gove rnadores o u capitães-ge n e rais;
• cativeiro - escravidão;
• guerra justa - declaração de guerra a partir de decisão tomada e m
junta que determinava pela juste za da guerra que se pretendesse
e fetua r contra determinado povo indígen a. Os principais c rité rios
p ara tanto eram: (a) que os índios punham e mpecilho à propa-
gação da fé católica; (b) que atacavam povoados o u fazendas
portuguesas; (c) que e ra m antropófagos; ( d) que e ram a liados de
inimigos dos portugueses;
• junta ou junta de missão - conselho local formado pelos repre -
senta ntes das missões, o bispo e o ficiais do re i, que decide sobre
a legitimidade das questões indígen as, sobre tudo as guerras e a
distribuição de índios descidos.
Apresentamos a seguir as p rinc ipa is no rmas , regime ntos e le is indige-
nistas até a indepe ndê nc ia do Brasil.
1. Re gime nto d e Tomé de Souza , de 15 de de ze mbro de 1548 :
Recomenda a paz com os índios para que os "cristãos" possam
povoar o território. Gue rra aos inimigos . Ajuntamento de a lde ias
próximas aos povoados cristãos para melho r se doutrinare m.
2 . Le i d e 20 d e març o d e 1570 , sobre a libe rdade dos índios:
Reagindo às práticas de escravidão indiscriminada , proíbe o cati-
veiro dos índios , salvo os tomados em "g ue rras justas" fe itas só
com a lic e n ça do re i ou do gove rnador. Afirma os crité rios d e
gue rra justa e m e nciona os Aimoré s , em particular, como alvo
de g uerras planejadas.
3 . Le i de 24 de fe ve re iro de 1587, que d e clara os índios que pode m
se r cativos e os que não pode m:
Baseia-se na Lei de 1570 , que proíbe incursões ao sertão sem a
auto riza ção do gove rnador e de padres jesuítas . Regulamenta a
re pattição d e índios "p e rsuadidos" a ire m à costa para trabalhar
n os e n ge nhos e faze n das .
P Ol.fTJCAS INDIGENJSTAS 79

4. Lei de 11 de n ovembro de 1595, "sobre n ão se p o de re m cativa r


os gentios das partes do Brasil , e vivere m e m s ua libe rda de, salvo
n o caso declarado n a dita le i":
Revoga a Le i de 1570 e proíbe guerra e cativeiro, salvo por expressa
licença do rei. "[... ] Q uero que aqueles contra quem e u n ão man-
dar fazer guerra v iva m e m qualquer das ditas partes e m que esti-
ve rem em sua libe rdade n atural, como h omens liv res que são [...]"
5. Alvará e Regimento de 26 de julho de 1596:
Regula me nta o papel dos jesuítas n os descimentos dos índios e
na s upe rvisão do seu traba lho nas fazendas, pelo p e ríodo máxi-
mo de dois meses, seguidos de igual período de folga. Cria os
cargos de procurador e juiz o rdiná rio dos índios. Determina que
cabe ao governador a locar as áreas o nde os índios descidos de-
ve m habitar, que serão aque las não aproveitadas pelos capitães.
6. Provisão de 5 de junho de 1605, sobre a libe rdade total dos índios:
Apesar de reconhecer que o cativeiro é aceitável em algu n s casos,
declara liv res to dos os índios, cristãos o u pagãos. Proíbe os a busos, os
descimentos irregulares e o briga o p aga me nto p o r serviço prestado.
7. Lei de 30 de julho de 1609, sobre a libe rdade dos gentios da terra:
Confirma a Provisão de 1605 e os te rmos do Alvará de 1596.
Proíbe os capitães-generais de exerce re m qualquer p oder a mais
sobre os índios do que já exercem sobre o utros h o m e ns livres.
Re ite ra a libertação dos índios cativados.
8 . Lei de 10 d e setembro d e 16 11, que d eclara a liberdade dos ge n-
tios do Brasil , excetua ndo os to m ados em gue rra justa, e revoga
as leis a nte rio res :
Re nova as guerras justas conve niadas pelo gove rnador em junta com
o b ispo, os desemba rgadores, cha n cele r e os prelados das o rde ns
religiosas, sob a aprovação do rei ou, em caso de urgên cia, com o
seu refe re ndo posterior. Aceita a escravidão dos cati vos e de índios
comprados o u resgatados q ue estive re m conde nados à mo rte . Cria
o ofício de capitão, substituindo o juiz o rdiná rio, para administra r
as a lde ias, as quais devem te r um p adre reside nte . Estabelece o
n ú m ero de 300 casa is por alde ia de índios descidos do sertão .
9 . Leis d e 15-3-1624 , 8-6-1 625, 10-11-1 647 e 5-9-1 649 :
Re gula me ntam a administração das a ldeias, o tempo e ta,xa de
serviço dos índios.
10 . Ca rta Régia de 21 de o utub ro de 1652:
Autoriza o Padre Antônio Vie ira a re gulame ntar o descime nto de
índios no Pará e Maranhão.
80 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

11. Provisão de 17 de outubro de 1653:


Restabelece os termos de guerras justas, permite entradas e proí-
be a presença de capitães nas aldeias. Cria as juntas das missões
no estado do Maranhão e Grão-Pará.
12. Provisão de 12 de setembro de 1663:
Retira os poderes dos jesuítas. Permite entradas e repartições de índios.
13. Provisão de 9 de abril de 1665:
Restabelece poderes aos jesuítas para fazerem entradas e regula-
mentarem o serviço dos índios. Continua a escravidão.
14. Lei de 19 de abril de 1680:
Declara a liberdade dos índios, conforme a Lei de 1609, manten-
do, porém, os escravos existentes. Continua a admitir as guer-
ras justas e o aprisionamento de índios, porém com a ressalva
de que os prisioneiros sejam tratados "como as pessoas que se
tomam nas guerras de Europa ". Dá plenos poderes aos jesuítas
para estabelecerem missões exclusivas onde haja índios que não
queiram "descer". Nas alde ias cristãs, os índios deveriam ser go-
vernados por seus c h efes e pelo pároco local. A repartição de
índios descidos fica a cargo do bispo junto com o prelado dos
franciscanos e um representante da Câmara.
15. Lei de 2 de setembro de 1684:
Concede a administração de índios descidos a particulares, especi-
ficam e nte no estado do Maranhão e Grão-Pará. Regulame nta o tra-
balh odosíndios liv res(umasemana parasi,outra para os senhores).
16. Carta régia de 21 de dezembro de 1686 ou Regimento das Missões:
Dá poder espiritual e temporal a jesuítas e franciscanos pelas
a lde ias e missões c riadas nos rios e sertões da Amazônia. Regula-
m e nta a administração das aldeias, proibindo a presença de não
índios. Ordena que as alde ias tenham pelo menos 150 casais e,
no caso de povos indígenas de diferentes culturas (nações) des-
cidos para um m esmo local, qu e sejam a locados separadamente.
Regulame nta a re pattição d e índios e ntre moradores e missões .
17. Carta régia de 19 de fevereiro de 1696:
Concede aos moradores de São Paulo a admin istração de índios
livres, que ficam obrigados a trabalhar m ediante um salário. Re -
gulame nta os casame ntos mistos e ntre índios e escravos negros .
18. Resolução de 11 de janeiro de 1701 , endereçada ao governador
de Pernambuco:
Pe rmite a compra e venda de índios somente e m praça pública.
Nos settões, pode ser feita na presen ça d e juízes .
p O 1. f TI C AS I N D I G EN IS TAS 81

19. Provisão de 12 de o utubro de 1727:


Proíbe o uso da língua-geral e manda e ns inar a língua portugue-
sa nas povoações.
20. Alvará de 3 de maio de 1757 o u Diretório de Po mbal:
Conjunto de 95 artigos que estabelece um n ovo o rde name nto so-
bre os índios. Confirma a re tirada dos poderes te mporal e espiritua l
dos jesuítas. Con cede libe rdade para todos os índios. Favorece a
e ntrada de não índios n as alde ias, incentiva casamentos mistos,
extingue missões e as substitui por vilas (com câmaras e pelouri-
nho) e luga res ( povoados) de índios e brancos. No me ia diretores
le igos. Promove a produção agrícola e c ria impostos. Manda de-
marcar á reas para os índios. Proíbe o e n sino das línguas indíge -
nas e torna obrigató rio o português.
21. Ca rta régia de 12 d e maio de 1798:
Abole o Diretório de Po mbal. Institui explic itame nte a relação
paternalista de amo para c riado e ntre brancos e índios a serviço.
Re to ma o conceito de gue rras defensivas. Promove o índio à
condição de ó rfão. Pe rmite o liv re estabe lecime nto de brancos
em te rras dos índios.
22. D iversas cartas régias de 1806, 1808 e 1809:
Pro movem guerras ofens ivas aos índios Botoc udos, Coroados,
Gueré ns, Can oeiros e Timbiras , dando con cessões a quem o fiz e r
particularme nte, inclusive com d ire itos a escravização d e prisio-
n e iros por p e ríodos e ntre 10 e 15 a n os .
Essa pequena compilação e resumo de le is indigenistas apresentados
n ão exaure a legislação portuguesa sobre o ass unto . O número de a l-
varás e cartas régias dirigidas aos governadores e capitães-ge rais é bas-
ta nte m aio r e d iversificado. Muitos diziam resp e ito a questões locais e
específi cas a certos g rupos indígenas, sem maiores consequên cias sobre
os demais. As n o rmas e le is aqu i descritas se rvem tão som e nte para dar
uma boa ide ia do que fora m esses m a is de 300 a n os de re lacio na me nto
o fic ial e ntre a Coroa pottuguesa e os índios do B rasil.
Em prime iro luga r, cabe nota r a persistência de le is extremamente
c rué is p ara com os índios. A escrav idão foi um fato quase que perma-
n e nte . Até o Dire tó rio de Pombal , apen as e ntre 1605, 1611 , 1680 e 1684
é que a legislação se de clarou contra qualque r fo rma e justificativa de
escravidão . Cons iderando que uma le i, n aquele tempo , levava de três
m eses a a té um a n o para vir de Po rtugal a seu local de destino, pode-
se concluir que elas raram e nte tiveram efe ito real e ime diato, a não ser
provoca r a ira dos "m o radores", isto é, dos colo nizado res o u faze nde iros
82 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

que se utilizavam d o braço indíge na. E, p o r isso me smo, e ram rapida -


m e nte mo dificad as o u a nulada s p o r uma le i seguinte . Ao contrá rio d os
esp anhó is, com seu formalis mo jurídico, c ujas le is muito b e m elabora -
d as n ão e ram , necessariame nte, p a ra sere m "c umplicias", os p o rtug u eses
e ram bastante d esle ixados - a té na linguage m - na formulação de le is e
p o líticas e ainda muito ma is le nie ntes n o seu cumprime nto . So bretudo
qua ndo e ram contra o seu inte resse . Eis po r que Padre Antô nio Vie ira
re clam a, com tanta veemê n cia, d a d eslealdad e e corrupção de oficia is
d o re i e d e colo nos e m ge ral.
Em segundo luga r, cumpre discutir um p o uco o re lac io na me nto e ntre
a Coroa e as o rde n s religiosas na formulação e administração de p olíti-
cas indige nistas . É n ecessário, d e ime dia to, colocar os p o de res secula r e
e spiritual n ão com o o p ostos um ao o utro (com o é fre que nte na histo rio -
grafia brasile ira), ma s numa dinâ mica comple m e ntar n o proje to colo nia l
e no processo civiliza tó rio, levando e m con side ração, ob viame nte, que
essa dinâmica implica ocas io n a is o u fre que ntes d esen contros, conforme
o inte resse ime dia to d e cada uma das partes . A instituição d o Pa droado,
pacto e ntre a Igreja e a Coroa, representa forma lme nte uma aliança e m
to rno da conquista colo nial. Essa p e rsp ectiva é ainda ma is n ecessária
com relação aos índ ios, já que e les estavam fora d as mo tivações histó -
ricas ante rio res à de scobe rta das Amé ricas . D o ponto d e vista do índio,
Igreja e Estado lhe p a receram como p a rtes d e um m e smo corpo, e,
e mbora costumassem agir d ife re ntem e nte e ntre si, n a maio ria das vezes
tinha m atitudes idê nticas .
J á vimos com o o governad o r Me m de Sá e o Padre Manue l d a
Nóbrega se d avam b e m e pa rtilhava m de ide ias seme lha ntes a resp e ito
de com o traze r os índios p a ra de ntro d o sistem a colo nial. Essa ide ntifi-
cação d e táticas, baseada numa ide ntificação de pro p ósitos, foi , de fato,
o pre d o mina nte n as re lações e ntre a Igreja e o Estad o n o p e ríod o colo -
nial, com resp e ito aos índios . Ape n as e m 1755, qua ndo Po rtugal te ntava
m od e rniza r-se através da administração d e um "d ésp o ta escla recido " -
o Ma rquês de Po mbal - , é que p arece te r havido uma c isão ab rupta e
d o lorosa e ntre a Coroa e a Igreja, o u ao m e n os se u segm e nto missio ná -
rio, no que se re fe re ao trato administrativo dos índios . Para isso, ficou
p roibida a inte rve n ção d e qualq ue r ord em re ligiosa n a administração,
o u "governo " (com o se de n ominava n a é p oca), das a lde ias ind ígen as
já estabelecidas . Esp ecificam e nte dirigidas aos jesuítas, fo ra m a o rde m
d e sua expulsão d o te rritó rio brasile iro e s ua ulte rio r conde nação e m
Po1tugal. Vale no ta r , o utrossim, que a Compa nhia d e Jesu s ta mbém foi
expulsa d as colô nias espa nho las, da Fra nça e, p o r fim, ab-rogad a com o
p O 1. fT IC A S I N D I G E N IS T A S 83

o rdem re ligiosa pelo próprio papa, num prazo de menos de vinte anos.
O que vale dizer que o se u problema não era específi co ao Estado por-
tuguês, nem exclusivamente sobre a questão indígena .6
No plano local, as re lações e ntre Ig reja e Estado, isto é, entre as o r-
dens re ligiosas e os governadores o u capitães-gen era is, eram mais ten-
sas e, muitas vezes, c h egaram às vias de fato. Aqui os inte resses eram
mais imediatos e a disputa , portanto , mais real e sem n e nhuma aura de
onisciência ou o nipotên cia. Basicamente, a d isputa e ra para ver quem
tinha direitos sobre os índios e qual a m e lho r mane ira de civilizá -los. Os
o fic ia is da Coroa achavam que os índios deveriam ser c ivilizados p e lo
trabalho individual que prestassem ao projeto colo nial; os relig iosos,
pela doutrinação e pela o rganização do trabalho coletivo. Os ofic ia is
queriam as aldeias de administração, das quais convocavam os índios
para trabalhar nos se rviços públicos, b e m como n as fazendas e em e n-
ge nhos particulares; os religiosos te nc io nava m as a lde ias de missões e
a exclusividade do trabalho indíge n a. Outro motivo de disputas estava
na própria repartição o u distribuição de índios descidos o u resgatados,
para o que e ra n ecessário definir a condição de índio livre o u legitima -
mente escravizado. Em todas essas disputas , n em sempre a Ig reja estava
unida. Pelo contrário, muitas vezes o clérigo secula r se aliava aos oficia is
da Câmara e da Coroa contra os jesuítas ; em o utras , havia e n o rmes dis-
putas e ntre jesuítas, fra nc iscanos e ca rmelitas. Em muitos casos, as le is
portuguesas refle tem essas disputas e a tomada de posição ora em favo r
dos jesuítas, o ra e m favor dos franciscanos o u carmelitas, o ra em favor dos
seus o fic iais. Naturalme nte, essa falta de consen so demonstra que o
projeto colo nia l n ão era e nte ndido da mesma fo rma por todas as partes
que integrava m a socie dade portuguesa, m esmo e m relação aos índios.
Se isso tornou a questão indígena um osso d e d isputa, n ão foi, no e n-
ta nto, motivo sufi cie nte para to rna r a sorte dos índios mais favo recida
n o resu ltado fina l. 7
Em te rceiro luga r, há d e se ver que os índios e ram motivo de gran-
d e inte resse por patte dos colo nos, inic ia lme nte, como m ão d e obra
n ecessária à con strução de e n genhos e à defesa do te rritó rio contra a
in vasão de aventure iros estran geiros; posteriormente , como adversários
n a disputa p e las te rras .8 Fazia parte dos d everes da Coroa promove r a
paz e a tranquilidade e ntre colo nos e índios para que a economia local
flo rescesse, e isso e la fez sem maiores escrúpulos . Po rém, quanto ao
desejo dos colo nos pelo braço indígen a, a Coroa se dividia e ntre a rgu -
m e ntos contrários e a fa vo r da escravidão, ou a fo rmas inte rme diárias.
Por isso, h ouve tantos desenten d ime ntos e ntre os colo n os e as o rde ns
84 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

re ligiosas , sobretudo o s jesuítas . Em con sequê nc ia, os jesuítas foram


forçados a sair d e vá rios núcleos d e p ovoame nto p o r movime ntos con-
trá rios d os colo n os . D e São Pa ulo eles fo ram expulsos n o a u ge d a cam-
p a nha dos b a nde irantes contra as missões do Gu a irá e Itatins, de o nde
abduziram d e ze nas d e milha res de índios G ua rani , o s qua is e ram, e m
seguida, vendidos aos faze nde iros d e São Pa ulo, Rio d e J a n e iro e até da
Ba hia, na prime ira me tade do século XVJI. No Rio de J a ne iro e na Ba hia,
p o r diversas vezes c h e ga ram próximos à expulsão, só conto rnad as p o r
n egociações que te rminava m diminuindo o seu po d e r te mpo ral sobre
o s índios e a s ua força m o ral sobre o s colo n os . Na Pa raíba , foram e xpul-
sos e pro ibidos de re to rnar, o que fe z a Coroa d esig n a r os fra n ciscan os
p a ra a dministra r as a lde ias indígenas daquela capitania . No Maranhão e
n o Pa rá, foram e xpulsos três vezes e ntre 1625 e 1680 e a m eaçados d e
e xpulsão o utras tantas vezes - e m to d os os casos, p o r dis puta sobre o
u so d o tra balho indíge n a nessa região . Na prime ira vez , foi fácil, p o r de-
c isão do pró prio governado r-gera l, Be nto Ma ciel Pare nte . N a segunda,
e m 1655, o pró prio Padre Antô nio Vie ira (que lá e stava hav ia três a no s),
pre stigiado p e lo re i D. J oão 1v, o Re sta urado r, regressou a Po rtugal,
conven ceu o re i do valo r d e seus pro p ósitos ta nto p ara os inte resses da
m etró p o le qua nto p a ra os índios e re to rno u com mais p o de res sobre
e stes últimos - zangando a inda mais os colo n os . Padre Antô nio Vie ira
to rno u-se famo so e m to do o re in o p o rtuguês e n o mundo e uro p e u ca-
tó lico p ela extraordinária o rató ria, p o r d efe nde r a presen ça dos ju deus
n o Re ino e p o r acredita r que Po ttugal iria se to rna r o "quinto re inad o "
sobre a Te r ra . Já na te rceira vez, e m 1661, o utra re be lião dos colo n os
impôs a Vie ira provações e humilhações a inda m a io res junto com seus
irmãos, te ndo a sua volta se d ado num n avio carregado de açúca r. Os
jesuítas qu ase fo ram expulsos p ela qua1ta vez na ocasião m a is d ram áti-
ca d a histó ria colo nia l do Maranhão, a cha mad a Revolta d e Bequimão
(cogn o mina da e m razão de seu líde r ma io r, Manuel Beckman , e m 1684),
m otivad a pe la insatisfação dos colo nos contra o mo no p ólio de venda
de p rodutos p ortu gueses e compra de muitos produtos locais pela Com-
p a nhia do Comé rc io do Maranhão - esta criad a p e la Coroa e m 1682 . O
controle qu e e les havia m obtido pe la Le i d e 19 d e abril d e 1680 sobre
e ntrad as, d escime ntos e repattição de índios desfavorecia os colo n os,
que ch ega ram a to ma r a c idad e de São Luís, n a a usê n cia do gove rnad o r-
ge ral , e e nv ia r um e missário a Lisboa e m ap e lo p o r se u gesto o usad o .
A Coroa n ão teve complacê nc ia e, ao fin al, o governad o r-geral Gom es
Fre ire d e Andrade pre nde u os rebeldes e e nfo rcou os do is princ ipa is
líderes, Ma nue l Beckma n e J o rge Sampa io . Em to d os os casos d e desa-
p O 1. fT IC A S I N D I G E N IST A S 85

ven ças contra os jesuítas, a Coroa in va riavelme nte assegurou ap o io aos


missio n á rios, às vezes com ma is, às vezes com m e n os p o de res. A Provi-
são de 12 de setembro de 1663 reflete o re to rno negociado dos jesuítas
sem poderes gerais sobre os índios (o btido pela Provisão anterior de 9
de abril de 1655, con cedida diretame nte ao Pa dre Vie ira) . Já a Carta Ré -
gia de 21 de dezembro de 1686, que cria o Regime nto das Missões ( que
vigo raria até 1757), refle te o desejo da Coroa e m prestigiar os jesuítas
diante da rebeldia dos colo n os e, ao mesmo temp o, assegurar destes
últimos a sua fide lidade pela concessão igua litária de índios re partidos. 9
Po r fim, cab e uma p a lavra sobre o famoso Dire tó rio de Po mbal e as
le is que o antecederam de imediato. A expulsão definitiva dos jesuítas
do te rritó rio brasile iro , em 1759, a transformação das aldeias indígen as
e m vilas e luga res e a promoção da miscige nação físi ca e c ultural dos
índios fazem parte ta nto de uma p o lítica de m odernização do Estado
p o rtug u ês e da definição de su as fro nte iras, quanto da eliminação hi-
pocritamente pacífica do índio enquanto socied ades autônomas , como
nações o u e tnias específi cas. De fato , alguns a nos após a inic iação da
p o lítica que levou à haste pública os be ns e benfeitorias dos jes uítas -
abrindo, dessa forma , caminho para a e ntrada da incipie nte elite fazen-
deira nas antigas alde ias indígenas - , já se sabia que a ideia de promover
o desenvolvimento econ ô mico dos índios implicava a s ua destruição,
e nqua nto povo o rganizado, transformando -os e m me ros posseiros e m
suas próprias te rras ou s imples a rtesãos n as n ovas vilas p o rtu guesas, o u
a inda agregados em te rras d e novos faze nde iros . Some nte e m alguns
locais isolados, esses luga res o u vilas se m anti vera m indígen as, e , por-
ta nto, cole tiva mente coesas e p obres, cons iderados decadentes. A Carta
Régia d e 1798, a qual foi motivada por alguns re latórios d e pre lados e
e missários reais que criticam os resultados n egativos do D ire tó rio d e
Pombal , extingue o D ire tó rio e institui , fo rma lme nte, a relação p ate r-
n alista, de amo para dependente , com o medida de controle dos índios
re manescentes e como base d e uma futura política indigenista .10 Só na
Amazônia , m a is de 60 a lde ias jesuítas h aviam se transformado e m vilas
e lugares, a lguns dos quais h o je são c idades, e m geral com nomes por-
tugueses, como Santa ré m , Óbidos, Bragança, Via na, G uima rães e tc . A
maio ria dos luga res de ixou de existir, transformando-se em faze ndas d e
patticulares, a exemplo das antigas alde ias do baixo rio Xin gu e do rio
Itap ec uru.11 A histó ria das missões jes uíticas n o Sul do p a ís con stitui uma
ve rsão m a is dramática e v io le nta do que ocorreu n o Norte e exemplifica,
clarame nte, a incapac idade do Estado p o rtuguês em compo rta r n o seu
seio va riações v iáveis do seu sistem a colo nial. 12
86 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

No ocaso do do mínio po rtugu ês, e certa m e nte m ovido p e la para -


n o ia n ap o leônica, foram promulga das a s ma is duras e c rué is le is contra
p ovos indíge n as esp ecíficos, re instituindo as gue rras o fe n sivas oficia is,
p romovendo a vio lê nc ia p a tticula r e a escravização d e cativos (em o u-
tras palavras, a volta d o ban deirantismo) e a ntecipando a ação d os bu -
greiros, que iriam infesta r o Sul d o país p o r ocasião da colo nização d e
imig rantes e u rop e us .13
Eis, p o ttanto, o saldo final d a po lítica indige nista p o rtuguesa no Brasil.
Po r certo, mais crue l e desuma na d o que o n ecessário para conquistar
o s p ovos indíge n as e estabe lecer o se u controle colo nial. Não some nte
foram p o ucos e c u1tos os p e río d os d e liberda de p ara os índios, com o
foram contínuas as e ntra das oficia is, as gue rras d e exte rmínio e as b an-
d e iras d e predação d e índios . Se e m uma o u o utra ocasião, uma le i o u
carta régia fala e m "libe rda de natural" d o s índio s o u o s trata como "se -
nho res primários" de su as te rras, sempre o faz e m circ unstânc ias esp ecí-
ficas, no contexto d e um ato já discric io ná rio, como a muda n ça d e seus
te rritó rio s o u atos d e d escime nto s d e índio s para p e rto de p ovoame n-
to s d e p o rtugueses . Em n e nhum caso conhecido p o de -se a firmar que
a Coroa te nc io nava firmar e legitimar um dire ito indígen a originário .14
Dos cinco milhões d e índios talvez restassem 600 mil (se contarmos
to dos e les) de aldeados e ex-missio nizados livre s e a utô n o m os . Duze n-
to s mil se riam os Ta puios do baixo Ama zo nas, cerca d e 150 mil se ria m
os re ma nescentes a lde ados p elo p a ís e 250 mil seria m os a utô n om os,
pela Ama zô nia, Centro- Oeste e Sul d o p a ís.15

O IMPÉRIO

A inde p e ndê n c ia d o Brasil teve iníc io, ge n erosame nte, com a p rop os-
ta de J osé Bo nifácio sobre a catequese e civili zação dos índios e n viad a
à Constituinte de 1823. Ao ser dissolvida p o r D. Pedro 1, caiu a p rop osta
e a Con stituição o utorgad a no a n o seguinte n ão m e nc io no u a existê n-
c ia d e índios, re m ete ndo a qu estão p a ra o â mbito d as províncias . Até a
saíd a d o prime iro imperado r, a questão indíge na foi legislad a p o r avi-
sos e recom e ndações aos con selhos p rovinciais, p e rma n ecen do ainda a
legislação ante rio r de gue rras o fe n sivas e escravização . Po ré m , as ide ias
d e Bo nifácio tinha m raízes num segm e nto d a e lite po lítica bras ile ira
que d esejava cria r o sentime nto de uma n ova n ação e achava que os
índ ios d everiam faze r p a rte dessa comunhão a través de me ios p acíficos,
esp ecia lme nte p ela cate quese . Re n ovou-se a ide ia d e que som e nte pela
P O l. fT J C A S I ND I G E N J ST AS 87

religião os índios chegariam ã c ivilização, e pensou-se até em c h ama r


de volta os jesu ítas (cuja O rdem se havia reconstituído em 1814), o u ,
posteriormente, convidar os monges trapistas, te rminando por se optar
pelos capuchinhos italianos. Com a Regência, iniciou-se a promulgação
das primeiras le is indige nistas de caráte r nacio na l. 16

1. Le i de 27 de o utubro de 1831:
Revoga as cartas régias de 1808. Reinstitui o estatuto de ó rfãos
para os índios e os juízes de paz são nomeados seus tuto res. To-
dos os índios até e ntão e m servidão são desonerados.
2. Le i de 12 de agosto de 1834 (Ato Adicio nal).
Determina que as Assembleias Legislativas provinciais e os seus
governos c uidarão da civilização e catequese dos índios.
3. Decreto n. 426 de 24 de julho de 1845, o u Regime nto das Missões.
Cria as Diretorias Gera is d os índios em cada província, que, por
sua vez , ficam e ncarregadas de cria r as diretorias parciais para
cada alde ia o u conjunto de alde ias. A n omeação do diretor-geral
fi ca a cargo do imperad o r.
Dispõe sobre o regulamento, favorece a catequese, proíbe a se rvidão
dos índios e os maus-tratos. O briga os índios ao serv iço público, sob
o rientação dos poderes locais, m edia nte salá rio, e ao serviço mili-
tar, mas sem coação , e determina prisão correcio na l de até seis dias.

Esse d ecreto constitui a le i básica do Impé rio para a que stão indíge na e
é conhe cido , també m , com o Re gime nto das Missõe s . Dura nte e sse p e río-
do, pequenos aditivos vão sendo fe itos, e m fo rma de avisos e ofícios , para
os diretores gerais , a le rta ndo sobre determinados aspectos de s ua á rea ou
sobre questõe s novas . Por e xe mplo, e m 1865, foi este ndido o dire ito d e
habeas corpus aos índios. O b inômio "cate quese e c ivilização" va lo riza a
religião; nesse sentido, é expendido um e n orme esforço para trazer frades
capuchinh os e colocá-los ã fre nte das diretorias p a rc ia is o u de colô nias
indíge nas que ia m se ndo c riadas para apressar o processo d e inte graç ão .
Poré m , h á d e se frisar que o ma is d e te rmina nte na política indige nista
impe ria l foi a promulgação da c h a m ada Lei das Terras , de 1850 . Essa le i
o fic ia lizo u o latifúndio , não p e rmitindo o direito de posse. Para registrar
se u dire ito sobre as te rras que usufru ía , e ra necessária a aprese n tação d e
doaç õe s d e se smarias ou a compra às províncias. Isso te rmino u excluin-
do pequenos lavradores indep e nde ntes e muitas a lde ias indíge nas . Em-
bora e m a lg umas províncias houvesse p essoas de boa-fé que reconhe -
c iam aos índios o dire ito às te rras que habitavam, e trabalhavam com
88 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

afinco para demarcá-las, a regra geral foi o desleixo e a incúria por parte
dos e n carregados desse se rviço de demarcação, como também por
patte dos diretores-gerais dos índios, em cada província. Po r consequê n-
cia dessa lei, após a criação do Ministério da Agricultura, em 1860,
e a passagem da política indige nista para o seu âmbito de jurisdição,
dezenas de a lde ias indíge nas a inda e m existê ncia foram extintas for-
malmente, e os seus habitantes conde n ados a virar posseiros sem-te rra
e a perder suas características culturais específicas. Um exemplo lo -
calizado desse processo deu-se e m Pinhe iro, pequena vila do inte rio r
do Maranhão. Em 1816, foi doada aos índios da região, que nunca são
n ominados, uma gleba de te rras de "três léguas de comprido por uma
de la rgo", isto é, aproximadame nte, 10.800 hectares. Em 1854, essa gle-
ba foi confirmada e registrada n o Livro de Registro de Te rras de Santa
He le na de Pinheiro. Vinte anos depois , foi anulado esse reconhecime n-
to, alegando -se que já não h avia mais índios vivendo n essa á rea. A gleba
passou a constituir terra da Câmara da vila, e ho je é de patticulares , não
havendo mais índios n o distrito da cidade ne m no município.17
No Ceará, de um só a to, e m 1860, o seu presidente extinguiu todas
as aldeias existentes. 18
O Impé rio já foi caracte rizado como um período de paz e lento pro-
gresso. Na verdade, foi o período que estabeleceu o poder dos grandes
senho res p e la manute nção da escravatu ra e do latifúndio, e o nde se cer-
ra ram as pottas para um possível surgime nto da p eque na propriedad e
e, portanto, de uma atitude de mocrática e ntre seu povo . Em relação aos
índios, foi consolidada a s ua posição no quadro nacio na l como de um
ser incapaz tanto p o lítica quanto mental e juridicamente. Grande parte
de suas te rras foi usurpada , até mesmo as já doadas a nte riorm e nte com o
sesma rias que, não sendo registradas após 1850, pe rde ra m a sua validade
aos o lhos do governo impe rial e das províncias. O estabelecime nto do
ca rá te r de o rfandade fundamentou o paternalismo o ficia l, como demons-
tra o decreto de 1845. Até os libe rais e os amigos dos índios , como o ge -
ne ral Couto de Magalhães, ach avam que essa e ra a m aneira correta d e se
tratar os índios: com o crianças, gu ia ndo -os na sua vontade, admoestan-
do-os e punindo-os n os seus e rros, e p rocura ndo o melhor para eles pelo
trabalho, a obediê ncia e a re ligião . Isso não eximia o Estado d e aplicar
form as m e nos brandas de e nsiname nto, como o uso das polícias prov in-
ciais e milícias particulares para atacar aldeias e dar lições punitivas aos
índios sob o pretexto de defender povoados e fazendas de seus ataques .
Foi no século passado, e nfim, que se firmou o pe nsame nto de que os
índios estavam fadados ao exte rmínio, não n ecessariame nte por culpa
P Ol.fTJCAS INDIGENJSTAS 89

d e p o líticas indige nistas pre se ntes e passada s , mas p o r s ua ina daptabili-


dade à evolução huma na . De a lguma forma, isso apaziguava a m á cons -
c iê nc ia dos h om e n s escla recidos da é p oca . Po r o utro lado, justificava a
ino p e râ n cia na d efesa do patrimô nio indíge n a e su a tra n sfe rê n cia p ara
as forças econ ô micas d o minantes . O nde que r que a s te rras d o s índios
fossem valo rizada s , o dire ito ime mo rial o u adquirido d e les fora retirado .
Essa foi a pio r he ra n ça impe rial que os índios receb e ra m.
No final d o século, po d em os calcular e m talvez 300 mil os índios
sobreviventes, um d é fic it imputado à n ação brasile ira inde p e nde nte d e
300 mil. Fo ram e xtintos quase to do s o s índios do ba ixo Ama zo n as, gran-
d e pa rte d os aldeame ntos conhecidos, e decaíra m as p o pulações d e
to dos os p ovos a utô no mos, a té e ntão, como os Munduruku , os Mura, os
Ka rajá, os Timbiras e tc .

A REPÚBLI CA

A que stão indíge na n ão e stava e ntre o s te mas que ag lutinava m as


diversas forças sociais que propug n avam pelo fim d o Impé rio e pe la
c riação de um governo re publican o . Isso n ão que r dize r que n ão hav ia
d e fe n sore s da causa indígena nas h ostes p o líticas e inte lectua is d o p a ís .
O te m a e ra cande nte, româ ntico, e tocava no sentime nto de nac io na -
lid ade b rasile ira d e sde Gon çalves D ias e os liv ros d e J osé de Ale n car.
Na Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, os a rtigos sobre
a presença e o exte rmínio d e p ovos indígen as continuava m a ser p ro-
duzidos p o r histo ria do res e cronistas d e tod as as p rovínc ias . Po ré m , o
ass unto virou questão p o lítica séria som e nte com os p ositiv istas, através
d e su a p a ra rre ligião, a Ig reja do Apostolad o Positivista, e d os seu s in-
flue ntes m e mb ros militares e inte lectua is . Junto com o utros segme ntos
d as classes m é dias e d a b u rocracia impe ria l, que lidavam d e a lguma
m ane ira com índ ios, reconheciam que e les e ra m uma questão n acio nal
e que seu principal proble ma e ra a ga rantia de su as te rras . Se as diversas
comissões prov inciais e ncarregad as d e regula ri zar p e la d e m a rcação as
te r ras dos a ldeam e ntos indíge nas (d e aco rdo com o Dec re to n. 1.318, d e
1854, que regula me ntava a Le i das Te rras) quase sempre descumpriram
seu p a p e l, ho uve casos e m que o fize ram com certo e mpe nho e contra
os inte resses de faze nde iros loca is . Pesquisas fe itas po r mim e m a rqui-
vos d e registros de d ocume ntos de te rras do Maranhão m ostra m que
p essoas dessas comissõe s to ma ram iniciativas ne sse sentido . Em o utras
p rovíncias d eve te r havido casos sem elh a ntes, pois e m algumas de las,
9Q ÜS fNDJOS E O B RASIi.

como Pe rnambuco, São Pa ulo e Ba hia, alguns lo te s de te rras foram d e -


marcad o s pa ra o s índios .19
Surpreende ntem e nte, a Con stituição de 189 1 n ão atribuiu ne nhuma
le i aos índ ios . Ape nas o seu a rtigo 64 transfe re p a ra os Estados o d o -
mínio d as te rras devolutas . Entre e las, p o dia m-se conta r a s te rras indí-
ge nas que a inda não h o uvessem s ido reconhecidas, e mbo ra aque las
já de marcad as o u reservadas não o devessem ser. De qualque r forma ,
como a n alisaram diversos juristas e d efe nsores d os dire itos d os índios, a
a mbiguida de dessa tra n sfe rê n cia p e rmitiu aos novos Estad o s e aos se us
municípios a rguir le gitimidad e p a ra utilizar-se de te rra s indíge nas e m
seus d omínios te rrito ria is .20
Mesmo sem te r pro mulgado le is, n os tra balhos constituintes discutiu-
se uma proposta extre m a m e nte inovado ra e ra dical que foi a pre se ntad a
p e lo Apo sto lado Po sitivista, sob a direção de Migue l Le m os, um mé di-
co d e Nite ró i, e Ra imundo Te ixeira Me ndes, um advogad o o riundo d o
Ma ranhão, ambos vivendo no Rio d e J a n e iro. A proposta mantinha que
o s índio s d everiam se r cons ide rados nações livre s e so b e ranas, e que
fossem o rganizados e m Estados com o título de "Estado s Ame ricanos
d o Brasil" em distinção aos o utros estados d a Fe d e ração d e no minad os
"Estados d o Brasil ocide ntal" . T ais Estados te riam a uto n omia inte rna e
controle sobre se us te rritó rio s. Q ualque r inte rve n ção que fosse n ecessá-
rio faze r, p o r p a rte d o governo central , com o a construção d e estrad as
(dir-se-ia, ho je em dia, tam bém d e hid re lé tricas!), só poderia ser re a -
lizada com a p e rmissão expressa das nações ind íge nas con cerne ntes .
Alé m d o m a is, e las te ria m a p roteção do gove rn o fe d e ral contra p ossí-
veis invasores .21 Eis um trech o ipsis litteris dessa p rop osta à Assemble ia
Con stituinte d e 1890:

A Re pública Bras ile ira é constituída: l pelos Estados do Brasil oci-


Q,

dental sistematicamente confederados, os quais provêm da fusão de ele-


mentos e uropeus com o elemento africano e o abo rígene americano;
2Q, pelos Estados a mericanos do Bras il, e mpiricamente confederados,
os quais se compõem de hordas fetichistas espalhados sobre o territó rio
da Repúb lica. Esta federação consiste, de um lado, e m manter com elas
re lações amistosas, hoje reconhecidas como um dever entre nações es-
clarecidas e simpáticas, e de o utro, garantir-lhes a proteção do governo
federal contra toda a violência que as possa atingir, que r e m suas pessoas,
que r em seus te rritó rios, que não pode rão ser pe rcorridos sem seu pré-
vio consentimento, solicitado pacificamente e somente obtido por
meios pacíficos. [ênfase minha]
p O 1. f TI C AS I N D I G EN IS TAS 91

A ide ia foi vista com pouca s impatia e considerada esdrúxula. Parecia


uma fó rmula juridic ista vazia de realismo p o lítico. Por o utro lado, a p o lí-
tica indige nista já havia passado, por decreto republican o, para a alçada
dos governos estaduais, que h aviam adquirido o direito de e laborar suas
próprias constituições e c uida r das te rras devolutas. Alguns estados, como
o Maranhão e o Amazonas, esboçaram c ria r s uas políticas indige nistas,
mas n ão tiveram motivações e pessoal para se inte ressar verdadeiramente
pela questão. Já o Rio Gra nde do Sul deu um salto à fre nte e criou o seu
próprio se rviço de assistê nc ia aos índios, sob a égide da visão p ositivista
prevalente e ntre seus prime iros líde res, de Júlio de Castilhos a Borges de
Medeiros, e pelo qual demarcou vá rias reservas indígenas, os c h amados
"toldos indígen as". Entretanto, a ma io ria dos estados simplesmente man-
teve as práticas do tempo do Impé rio. Alguns deram prosseguime nto à
política de con vidar o rde ns re ligiosas para catequizar os índios, emb ora
já sofre ndo as críticas abe rtas e contundentes dos positivistas. Estes con-
tinuavam a dar publicidade às suas ide ias sobre os índios, con side ran-
do-os uma questão n acio n al e fator de moral e respeito para o país. 22
Pe lo fim do século, com a c hegada de imigrantes e urope us nos es-
tados do Sul do país - Rio Gra nde do Sul, Santa Catarina e Paraná - ,
ace nderam-se as disputas pelas te rras e ntre esses futuros colo n os e os
índios que n e las habitavam. E começaram a ser veic ulados e m jo rnais e
revistas de n otícias come ntá rios e a rgume ntos de que o progresso da-
que las re giõe s não compo ttaria a pre se nça d e índios - sina l das ações
que vinh am sendo tomadas de contratar m atadore s profissionais d e ín-
dios, os conhecidos bugreiros , a fim de limpar o te rre n o à imigração e
à esp eculação da te rra . Já no estado de São Paulo , com os trabalhos de
abe rtura da Estrada d e Fe rro Noroe ste do Brasil, a partir d e Sorocaba,
que atrave ssava te rritó rio d e vários grupos Kaingang e novos grupos
Guara ni chegando do Parag ua i, desencadeou-se uma arre lia armada e n-
tre esses índios e os trabalhado res da estrada, inclusive com contratação
d e b ugre iros , a qual viro u notícia n acio na l. O cie ntista te uto -brasile iro
He rmann von Ihe ring , dire tor do Muse u Paulista e simpatizante orgâ-
nico da imigração europeia , propôs explic itamente o extermínio desses
índios e m a rtigo escrito na revista do referido Museu, em 1907 .23 Logo
e m seguida , n o XVt Con gre sso d e Ame ricanistas, re alizado e m Vie na , e m
1908 , surgira m de núncias d e que no Brasil estavam m assacrando índios
como parte de uma política n acio na l de exte rmínio , uma fam a certa -
mente ime recida e ntão e até n os dias de hoje . O Brasil virava notíc ia
e m foros inte rnacionais mais p e la má re putaç ão de suas açõ e s contra os
índios do que pelos dons oratórios de se us políticos.
92 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

A cele uma que se crio u nos jo rnais, institutos e centros inte lectuais
e lite rá rios e o utros m eios de comunicação, que parecia fe rir os brios
huma nitários da p á tria , levou o governo federal a criar uma a utarquia
federal para c uidar da questão indíge na brasileira. O utra questão e m
discussão era a au sên c ia de políticas de apoio à massa ime n sa de po-
bres rura is brasileiros, tanto os descendentes de escravos e ex-escravos
quanto os cab o clos, ca ipiras, tabaré us , to dos aque les apelida dos p e lo
escrito r Monteiro Lobato iro nicam e nte de "jecas-tatus". Um segmento
da classe média brasileira reclamava que o governo só se inte ressava
e m prove r a juda para imigrantes e urope u s, re legando o povo miúdo,
uma multidão de lavradores sem-terra perambulando p e los campos e
c idades, ao deus-dará. Assim, a n ova agência fo i instituída com o títu-
lo de Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores
Nac io nais, e m 1910, e com a ob rigação de c uida r ta nto dos índios
quanto dos trabalhadores rura is. Para dirigi-la, o governo Nilo Peçanha
conv ido u o e n tão Corone l Cândido Maria no da Silva Ro ndo n , um mi-
litar positivista que se n otab ilizara p e los lo ngos e á rduos trabalhos de
insta lação de red es te legrá fi cas p e lo inte rio r m a is re moto do país, e m
c ujas opo1tunidades havia ma ntido contato com diversas tribos indí-
genas, sempre num clima de paz e diálogo. 24 A grandeza das tarefas e
a dificuldade e m reconc iliar esses dois segm e ntos nac io nais foi de tal
m o nta que, em 1918, a n ova agênc ia passou a cuida r exclusivam e nte
dos índios e restring iu seu nome para s implesmente Serv iço de Prote-
ção aos Índios ( sP1) .
O SPJ foi produto orgânico do positivismo e parcial do liberalism o,
m as também m otivado pela e moção nacio na l. Em n e nhum mo m e nto
c h egou a re n ovar as propostas con stituc io n a is do Apostolado Posi-
tivista para os índios n e m os tratou com o n ações soberanas . Via o
índio com o um ser digno de conv iver na comunh ão n acio n a l, em bora
infe rio r numa escala cultural e evolutiva . Como pensava quase todo
mundo à época, a exemplo do próprio Sigmu nd Freud, os índios - o
primitivo - tinham uma me nta lidade infantil, que n ecessitava da tu-
tela do Estado. Era dever de o Estado dar-lhes condi ções de evoluir
le ntame nte a um estágio c ultu ra l e econ ômico s upe rio r, p ara daí se
inte grar à nação . Para tanto , d everia d em a rcar suas te rras , protegê-las
d e invaso res e usurpadores e m pote ncial, defendê-los da esp e rteza
dos brasil e iros, especia lme nte dos comerc ia ntes e m ascates que os
exploravam , e nsinar-lhes n ovas técnicas de c ultivo e de administra -
ção de seus bens, e socorrê-los e m suas doe n ças . Os índios autôno-
p O 1. fT IC A S I N D I G E N IS T A S 93

mos, chamados "arredios", seriam "p acificad os", caso fossem brav ios,
à c usta , se necessário, do pró prio sacrifício dos servidores do ó rgão,
que nunca d everiam u sar da força o u de a rmas. Os povos em contato
p e rmane nte o u e m vias d e integração já p o d e riam apre nde r o fíc ios
mecânicos e ser edu cados formalmente. Não seria n ecessário o e n sino
re ligioso para tanto. 25
A d ete rminação e a liderança de Ro ndo n , reconhecidas e m muitas
esferas nac io na is, atraía muita gente de dicada ao SPI. Em 1912, quando
o ministro da G u e rra re quisito u a volta dos militares que estava m no SPI
aos quadros do Exé rcito, muitos abandonaram s uas carre iras para fi ca r
n o ó rgão indige nista. Grande parte desses quadros era formada p o r ge-
n e rais e coron é is, engenh e iros militares, a ntigos ajudantes de Ro ndo n
n o serv iço te legráfico. A e les foram se agregando cientistas, antropó lo -
gos, c ineastas, mé dicos e e n genhe iros, nacio n a listas, con servado res e
até comunistas. Com a Revolução d e 1930, o SPI foi re tirado do Minis-
té rio da Agric ultura, caiu de prestígio e passou um bo m período irre -
gular e obscuro, c h egando a ser um simples de partame nto da seção de
fro nte iras do Ministério da Gue rra. Aparentemente, isso se dera porque
Ro ndo n e ra um positivista 01todoxo que não admitia, ne m n a teoria
n e m n a prá tica, movime ntos revolu cio n á rios, e sim e tapas evoluc io ná -
rias. Getúlio Va rgas era um p ositivista pragmá tico, cercado de revolu-
c io ná rios pragmáticos , que fize ram uma revolução para to ma r o pode r,
e não gostara da falta de ap o io explícito de Rondon. ( Aliás, Rondon
h avia com a ndado um destacamento militar que tentara p ara r n o Paraná
a m a rc h a d e Getúlio rumo ao Rio d e Jane iro .)
Q u estão p essoal o u n ão, é impo rta nte n otar que d ura nte quase
toda a década de 1930, com esse vazio de prestígio político , muita
te rra indíge na foi p e rdida para faze nde iros locais e m São Paulo , Mato
Grosso, Mara nhão, Goiás e o utras regiões brasile iras e m e xpansão
agrícola . Entretanto , ao fin a l da década , depois que Rondon passara
três a n os como mediado r brasileiro do conflito e ntre Pe ru e Colô mbia,
n o alto rio Solimões, n a c idade de Taba tinga , Getú lio reconheceu o
valo r m oral e político do se u corre li gio n á rio e to m o u medidas para
recupera r o prestígio do SPI . Fo i cri ado, e m 1939, o Con selho Nacional
d e Proteção ao Índio, sob o com ando d e Rondon , para o rie nta r e s u-
p e rv is ionar as ações ind ige nistas do SPI. As ins p e torias regio n a is, loca -
lizadas e m 12 estados brasileiros , passaram a ter melh o res condições
d e trabalho , com novos quadros e p e rspectivas rea is d e d em a rcação
d e te rra s indíge n as .
94 Ü S fNDJOS E O B R A SIi.

Com e fe ito, na d écada d e 1940 e a té o govern o Juscelin o Kubitsche k ,


o sP1 viveu um m om e nto d e b om relac io n ame nto e ntre os pro p ósitos
indige nistas e os governos fe de ra is e até a o pinião pública. O Brasil re -
c upe rou a b o a image m qu e h avia obtido n os prime iros a no s d o sr, tanto
n acio n al como inte rnacio n alme nte .
O a uge de su a a tuação tem como m a rca d o is eventos ocorridos e n-
tre 1952 e 1954. O prime iro foi a c riação do Museu d o Índi o (sediad o
n o Rio de Jane iro) - con ceito e o bra d e D a rcy Ribe iro e Ro ndo n - ,
d edicado a luta r contra o preconceito indíge na e prestig ia do p o r diversas
instituições inte rnacio na is, como o Smithsonian Institute, de W ashingto n ,
a O rga nização Inte rnacio na l d o Trabalho (01T) e a Unesco .26 Alé m d e
alo jar um substa n cial acervo de a rte e cultura mate rial indíge na , uma
biblio teca de g rande valo r etno ló gico, um excep cio n al acervo fo tográ fi-
co e um centro de docume ntação histó rica, fo i n o Museu do Índio que
se crio u o prime iro p rog rama de p ós-g raduação em a ntropo lo gia, e m
1955, e lá se es p ecia liza ram com o a ntrop ó logos Ro be 1to Cardoso d e
Oliveira , Ca rlos Mo re ira Neto, Ro b e rto Las Casas, e ntre o utros .
O segundo g rande evento foi a formulação d os con ceitos e te rmos
d o Pa rque Indígen a do Xing u (PIX), obra de Darcy Ribe iro, O rla ndo
Villas-Boas, Edua rdo Galvão e Ro ndo n , a p a rtir de uma n ova visão d o
que se ria uma te rra indíge n a. Ao invés d e ser d e m a rcada com o "gleb a
de te rra ", para cada um d os do ze p ovos que lá viv iam , como vinha sen-
d o fe ito desd e a Colô nia, o r1x foi con ceb ido te rritó rio ú nico ocupad o
e c ultu ralizad o p o r dive rsos povos indígen as . A p rop osta o rig ina l d o
PIX compreen d ia uma á rea p o ligon al d e m a is d e 200 mil km2, o u 20 mi-
lhões d e h ectares, e n tre os rios Aragua ia e Jurue n a, incluindo te rras d os
Xava nte, Baka iri , os Xingua nos p ro pria m e nte, os Kayabi, Munduruku e
o utros p ovos a utô n o mos que só ma is ta rde iriam ser conta tados . Getúlio
Va rgas acato u a pro p osta dos ind ige nistas e o rden o u p rosseguime nto
ao ass unto . Mas, a p ós s ua mo rte e no gove rn o Juscelino, a proposta
fo i sendo mina d a e inv ia biliza da p o r governad o res e p o líticos d e Mato
Grosso e pela ven da e con cessão de te rras estaduais para imigra ntes
vindos do Sul do país . Ao fin a l, o r1x se ria dema rcado com o Pa rque
Nacio n a l d o Xing u , com p o u co m a is de 20 mil km 2 , o u 2,1 milhões d e
h ecta re s . E le vou um á rd uo te mpo, com muita luta para se dem a rcar as
te rras d os dem a is povos ind ígen as a ntes incluídos, e m tam anhos m e -
n o res e isolad os e ntre si.
P Ol.fTJCAS INDIGENJSTAS 95

//

Luta cerimonial jawary, realizada na aldeia Kalapalo, alto Xingu.


Por meio desse ritual , rivalidades entre povos autônomos são dissipadas.

Os seguintes dispositivos legais rege ram a política indige nista e se


constituíram e m legado do SPI na história do indigenismo brasile iro .
1. Decreto n. 8 .072, de 20 de junho de 1910, cria o Serviço de Pro-
teção ao Índio e Localização de Trabalhadores Nacionais , com
d efinições sobre os índios e s uas s ituações de relacio na me nto, a
proteção e de marcação d e te rras, no caso, com a anuên cia dos
estados . São c riadas 13 inspeto rias regio n a is e previstas c riações
de "p ovoações indígen as".
2 . D ecre to n. 9 .214, d e 15 d e d ezembro d e 1911 , traz pe que nas
mudanças e m re lação ao decre to anterio r.
3 . Código Civil de 1916 exon era o índio da condição de ó rfão e da
tute la dos juizados respecti vos, mas o cons ig n a com o re lati va-
m e nte incapaz a certos atos .
4 . Lei n. 5 .484, de 27 de junho d e 1928, regula a situação jurídica
dos índios , exonerando -os da tute la o rfa no lógica e colocando -
os sob a tute la do Estado. Grupos indígen as são classificados
d e acordo com o gra u d e relacio nam e nto com a sociedade b ra -
sile ira, resp ectivame nte com o "grupos n ôm ades", "aldeados ou
96 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

a rrancha dos", "incorporados a centros agrícolas" e "re unidos e m


povoações indíge n as", sendo que as três primeiras categorias são
protegidas pela tutela , n ão podendo ser presos, a n ão ser por
determinação de inspeto res do sr,, em colô nias de co rreção. Os
índios incorporados à sociedade o u e m centros ag rícolas são
responsáveis por seu s atos.
5. Con stituição Federal de 1934, no artigo 129, põe o índio pela
prime ira ve z numa constituição brasileira, porém admite-o, ainda
timidame nte, só e m re lação às te rras que habitam: "Será resp e ita -
da a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanen-
temente localizados, sendo-lhes, no e ntanto, vedado alie ná-las".
6. Decreto Exec uti vo n. 736, de 6 de ab ril de 1936, com 47 artigos,
cons titui o m ais comple to regulame nto do sr, até e ntão: (a) o
sr1 passa a ser um ó rgão da Inspetoria Especial de Fro nte iras do
Ministé rio do Exé rc ito; (b) determina que os índios devem ser
nac io na lizados para sere m inco rporados à nação brasileira; (c)
esclarece os m e ios para a demarcação das terras indígenas, defi-
nidas da seguinte forma:

Aquelas em que presentemente vivem e já primariamente habitava m;


aquelas em que habitam e são necessárias para o meio de vida compa-
tível com seu estado social: caça e pesca, indústria extrativa, lavoura ou
c riação; aquelas que já lhes te nham s ido ou venham a ser reservadas para
seu uso o u reconhecidas como de sua propriedade a qualquer título.

Esse Decre to se ca racte riza pela dureza com que p ropõe com o ob-
je tivo do sr1 a nacionalização e incorporação dos índios. É e m função
dos te rmos desse Decre to que os críticos do srr e n contram mo tivos para
ach a r que a incorporação do índios à "comunhão nacion al" seria o pro-
pósito principal do ó rgão indige nista . Poré m h á que se le mbra r que,
n esse pe ríodo de 1930 a 1938, o sr1 havia sido re tirado do Ministé rio
da Agricultura e passara a integra r o Ministério do Exército com o uma
simples seção do De partame nto de Fronte iras, num claro sinal d e d es-
prestígio do espírito rondo nia n o .
Por sua ve z, a d efinição do que é te rra indígena vai se tornar d e ex-
tre m a impo rtânc ia para a histó ria do processo de demarcação de terras
indígenas . O se u fraseado é a inda um ta nto desengonçado , mas já con-
tém caracte r ísticas antropo lógicas n o m odo em que demonstra as vá rias
formas de ocup ação de uma te rra. Vale assina lar que e le veio regula -
mentar o a rtigo 5, item x1x, alínea m , da Constituição Federal , que to r-
n ara exclusivo da União a política indigenista ( visada com o objetivo de
in corpora r o índio à "comunhão n acio na l"), acaba ndo por fim a dubie-
p O 1. fT IC A S I N D I G E N IST A S 97

dade que a inda existia em re lação ao pape l dos estados, sobretudo n o


que se refe re ao domínio sobre as te rras indíge n as. São ide ias vindas do
positivismo, porém temperadas pelo momento militaresco, que ganham
legitimidade constitucio nal. 27 Antes de 1934, as terras indíge n as o u terras
ocupadas permanentemente por índios só p odia m ser demarcadas por
a nuê n cia dos estados e s uas assemble ias legisla tivas, pois, apesa r das
a rgumentações de impo rtantes juristas - como J oão Mendes Júnio r-,
faziam p a rte das chamadas "te rras devolutas", das quais a Con stituição de
1891 h avia con signado s ua jurisdição aos estados. Assim, era sempre difícil
obte r terras para os povos indígenas, pois e ra n ecessário antes convencer
as forças políticas estaduais a aceitá-las. Daí está uma das razões por que
foram de tama nhos tão pequenos as prime iras te rras demarcadas p e lo
SPJ, sob retudo n os estados em expansão econômica, como Para n á, Santa
Cata rina e Mato Grosso do Sul. O utra impo rta nte ra zão era a falta de
compreen são, à época, do que seria te rrito rialidade dos povos indíge-
nas. E, com isso, os Kaingang e Gu arani foram aquinh oados com terras
de tamanho caracte rísticos de velhas glebas coloniais.
7. Con stituição Federal de 1937:
Art. 154. Será respeitada aos selvícolas a posse das terras em que
se achem localizados e m caracte r permanente, sendo-lhes, p o -
rém, vedada a alienação das mesmas.
8. Decreto-Lei n. 1.794, de 22 de novembro de 1939:
( a) Cria o Con selho Nacio n a l de Proteção aos Índios, com sete mem-
bros, sendo um do Muse u Nacio n a l e outro do Serv iço Florestal;
(b) Te m com o função apresenta r sugestões ao Governo, v ia sP1,
sobre a adoção de medidas sobre qu estõe s indígenas .
O C NPI seria presidido pelo Gen eral Rondon a té sua morte , em janei-
ro de 1958 . Esse marco legisla ti vo indica se u retorno ao comando da
política indige nista e, consequentem e nte, um d ivisor de água e m rela-
ção à d écada ante rio r, quando o SPI ficara sob o controle do Ministério
da G ue rra . O prestígio político de Rondon já é e ntão inquestio nável e
tem consequên cias positivas n a política indige nista . Com efeito, a partir
de 1940 as inspetorias regionais do SPI vão ser re novadas com novos
quadros ind igenistas e o rçame ntos mais compatíveis com suas funções .
Igualme nte, no re lacio n amento direto com os índios , os postos indígen as
irão receber novos quadros, com sentido re novado de responsabilidade
e com m ais poder para questionar ações de faze ndeiros e dar início ao
processo de reconhecimento e demarcação de n ovas te rras . A partir
do fim da Segunda Gue rra Mundia l, o SPI começo u a atrair antropólo -
gos para seus quadros - dentre eles, Darcy Ribe iro, e m 1948, Eduardo
Galvão, em 1952, e Roberto Cardoso de O liveira , em 1955 .
98 ÜS fNDJOS E O B RASIi.

9. Constituição Fed e ral d e 1946:


Art. 216. Será resp e itada aos silvícolas a posse das te rras o nde
se ac h em permanentemente localizados, com a condição de n ão
a transfe rirem.
Ao lo n go dos a n os, a de finição e o reconhecime nto formal do que são
te rras indíge nas iria m se con centrar acerca da noção de ocupação per-
manente ou de modo tradicional de ocupação, e da maior o u me no r pro-
fundidade histórica sobre o te mpo pretérito de ocupação. As discussões
sobre esse te ma permanecem até agora, e será re to ma do mais adiante.
Não restam dúvidas de que foi a existê n cia e a presença ativa do SPI
n o seu trabalho de assistê nc ia aos índios e de dignificação de sua pessoa
que consolido u na nação o sentime nto de responsabilidade histó rica
para com o índio , e fe z que a Constituição de 1934 viesse a ser a pri-
m e ira das constituições brasileiras a reconhecer os índios como parte da
n ação e a promulgar no rma geral sobre os índios, no caso, condize nte
com as ide ias que caracte rizavam o SPI .
As Constituições seguintes, a o uto rgada de 1937 e a liberal-de m ocrata
de 1946, segu em esses mesmos pontos, muda ndo a linguagem minima -
mente , numa clara demonstração da con solidação dos direitos indíge n as
perante as diferentes forças sociais e políticas da nação. A questão indí-
ge na n ão é, a té e ntão, um osso de disputa e ntre ideologias, mas e ntre
inte resses econô micos, de um lado, e inte resses m orais e de reparação
histórica d e o utro . O que prevalece durante todo esse tempo é a visão
de que os índios d evem ser incorporados à nação . Nesse sentido, pode-
se até a lega r a rgu m e ntos con servado res para defendê-los; em muitos
casos, a rgumentos progressistas são usados para desmerecer o valo r dos
índios para a nação e criticar o tamanho das te rras indígenas . No côm-
puto geral da história, a questão indíge na transcende essa dicotomia , e
só na s ua integração ao sentime nto da nacio n alidade brasileira é que e la
e ncontrará os seus a rgumentos mais fortes e duradouros.
A atuação do sPr abra nge u quase todos os pontos do te rritório nacio-
n al, ch egando a te r, por volta d e 1955, 106 postos indíge nas . Porém , foi
n esse período que os índios ch egaram ao seu nadir populacional , com
menos de 150 mil pessoas, talvez umas 100 mil , segundo uma estim ativa
conhecida .28 A pa1tir daí, eles com eçaram a crescer le nta e quase impe r-
ceptivelme nte . (Som e nte no fim da década de 1970, essa recupe ração
demográfica p asso u a ser percebida por a lg uns antropó logos e lingu is -
tas, a inda ina rtic ulados sobre o que estavam vendo.) Muitos dos povos
autônomos que fo ram contatados a pattir de 1910 te rminaram sendo
extintos ou reduzidos a populações mínimas e, sobre tudo , a tamanh os
P Ol.fTJCAS INDIGENJSTAS 99

diminutos de te rras indígenas . Alg uns exemplos : os Xe tá, d a Serra d os


Do urad os, no Paran á; os O ti-Xavante, da região do rio Para n a p a n e ma,
e m São Pa ulo; os diversos grupos b otocudos, do leste de Minas Gerais;
o s Pa taxó, Baen an e Mon goió, n o sul da Ba hia; os Ke pkiriwat e Purubo -
rá, de Ro ndô nia; a lg un s subg rupos Na mbiqua ra , do oeste d e Mato Gros -
so - e d e ze n as d e o utros ma is, às vezes subg rupos e aldeias inte iras .
Muitos sofre ram e n o rmes ba ixas p o pulacio na is, ch egando ao mínimo
n ecessário à sobrevivên cia étnica, já b astante descaracte rizados c ultu-
ralme nte, a e xe mplo dos Krejé, do Maranhão, dos Ama najó e o utros
grupos tupis, do leste p a raen se, de alg uns su bgrupos dos Pataxó, dos
Gu ató, do a lto rio Pa ragua i, dos Arara, do rio Xin gu , n o oeste p arae n se,
d e a lg uns s ubgrupos dos Kayap ó, no sul d o Pa rá .29
O sr, n ão foi cap az d e b a rrar o avan ço sobre as te rras ind ígen as n as
regiões e m d esenvolv ime nto, como o n oroeste d e São Pa ulo, o Para n á,
Santa Catarina e Mato Grosso, e nesses casos serviu a p e nas como "p aci-
fi cad o r" d e índios a rre dios, a pós as te rras sere m loteadas pe los inte ressa-
d os . D ize r que isso te nha sido fe ito como p a tte d e uma estratégia do Es -
tado p a ra desba ra tar os índios e tom a r suas te rras, do qu al o sr1 seria um
m ero b raço ingênuo o u cretino, é n ão q ue re r ver a histó ria da formação
ideológica do indige nism o b rasile iro, rondo nia n o, e prete nde r imputa r a
qualq u e r figura histó rica e seus fe itos institucio n a is sentime ntos e p ro p ó -
sitos v is . Ta mpo uco foi cap a z de evita r ataques armados contra os índios
p o r p a rte de castanhe iros e seringalistas da Amazônia . Po r o utro lado,
teve de se a lia r e m vários m o m e ntos à Igreja Cató lica e a lg umas n ovas
missões re lig iosas, como os p adres salesia nos n o alto rio Negro e e m
Mato Grosso, bem como a igrejas protestante s inglesas e n o rte-a me rica-
n as, p ara p o de r ate nde r às de ma ndas mínimas dos índios dessas regiões .
O sr, a firmo u o sentime nto de p e rtinê nc ia do índio à n ação brasile ira,
como sua parte integra nte e sofredora . Luto u p a ra dem a rcar terras indí-
ge nas, m otivado pela a titu de d e reconhecime nto de d ire itos ind ígen as e
d e solida ried ade às s uas c ultu ras . Ava nçou e evoluiu na sua con cepção
do índ io e na s ua prá tica ind igenista . Crio u o conce ito de p a rq ue ind í-
gena, indo muito alé m da su a matriz am e rican a, alinhava ndo a defesa
das c ulturas com a defesa do me io am b ie nte . Conc retame nte, dem arcou
cerca de um te rço das á reas ind ígen as até e ntão conhecidas, to taliza ndo
400/o do te rritório indígena reconhecido até a que le m om e nto . Impla n tou ,
através da dedicação invulga r (m as n ão ú nica) dos irmãos Villas-Boas,
o Pa rq ue Nacio n a l do Xi n gu , c ria do e m 1961 p o r decre to pres iden cia l -
m arco m aio r desse te m po de indigenism o e cuja con ceituação iria servir
de mo de lo p ara a dem a rcação das novas te rras que ia m sendo reconhe -
c idas à m edida que n ovos povos indígen as iam sen do contatados .
100 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.

A princ ipa l contribuição d o sr, ao indige nism o nacio n a l está n a e fe -


tivação de uma p olítica d e resp e ito à p essoa do índio, de res po n sabili-
d ade histó rica p o r pa rte da nação b rasile ira, p elos destinos dos p ovos
indígena s que ha bitam o te rritó rio nacio nal , e n o mo d o de dicado e
a ltruísta p e lo qua l se us age ntes fo ram tre inad os p a ra resp e itar a auto n o -
m ia ine re nte d os índios e a a te n der às su as n ecessidades básica s . Q ue os
resultad os te nha m ficad o muito a quém d o esp e rado constitui um óbice
n ão some nte de uma po lítica que sempre fo i p o uco valo rizada p e lo p o -
d e r (e ta mbé m p o r seus d e svios p essoais), mas també m se deve à falta
d e fo rça p olítica e ntre os aliados histó ricos d os índios diante d as fo rças
a nti-indígenas predomina ntes .
Vale citar, à guisa d e conclu são, um p e que n o trecho d e uma carta
que Ro ndo n escreve u a um corre lig io ná rio gaúc h o que lhe p ediu e m-
prego no sr, p a ra um afilha do . Dep o is de objetar ao p e dido, Ro ndo n
faz uma declaração que d em o n stra su a filiação ao espírito d a p rop osta
d o Ap osto la do Positivista, a qua l d eve ressoa r a inda h o je como uma
p roposição de sua v isão e d e su as inte n ções sobre os índios brasile iros,
e que está a inda pa ra v irar uma realida de social e p o lítica no Brasil: "Os
índios n ão devem se r tra tados como proprie da de do Estado de ntro d e
c ujo s limites fi cam se us te rritó rios, m as com o Nações Autô no mas, com
as q ua is que rem os estabe lecer relações de amizad e" .30

FUNAI , DA DITADURA À DEMOCRACIA

O golpe de 1964, que instalo u o regime milita r, aboca nho u ta mbém o


sr,, ao d estituir incon tin enti a direto ria presidida p e lo m édico sanita rista
Noel Nute ls, que tinha s ido levad o a essa p osição p e lo gove rno J oão
Goula rt como tentativa de recondu zir o ó rgão aos padrões d o início da
década de 1950 . Os novos donos do p oder, ao contrá rio, administra ra m
o sr, d e tal mo do q ue, do is a n os depois, di ve rsos fun cio n á rios seus te r-
minaram sendo acusad os de p a rticipar de a tos d e to rtura e m assacre a
índ ios, com o no caso dos ín d ios Cintas-Largas do Parale lo 11. O regime
milita r prom oveu uma devassa n o ó rgão, concluindo com um dossiê de
m ais de mil p áginas de acu sações d e s upostos crimes e irres po n sabili-
dades administrativas cometidas contra os índ ios . Nunca, poré m , esse
dossiê foi publicado, m as, com o em 1908, a re p e rcu ssão inte rnacio n al e
n acio n a l negati va fe z que o sr, fosse afin a l extinto (n ão sem a ntes sofre r
um in cêndio e m seus a rqui vos, já tra n sfe ridos para Brasília).31
Os milita res - parecia - que riam redimir a história b rasile ira dos seus
e rros passados e começa r tudo d e n ovo . Assim, com muito a la rde, fo i
p O 1. f TI C AS I N D I G EN IS TAS 101

c ria da a Fundação Nac io na l d o Índio (Funai), e m 5 de de ze mbro d e


1967 . Com o só i acontecer na c riação d e ó rgãos d essa n ature za, cumpria
d e imediato m o ralizar o quadro ante rio r, tirando os "m au s ele me ntos"
e implantando uma n ova me ntalida de . O n ovo ó rgão veio com o ím-
p eto buroc rático de resolver a que stão indíge na de uma vez p o r to -
das . Isso s ignificaria, e fe tivame nte, transforma r os índio s e m brasile iros,
integrá-los à n ação e assimilá -los culturalme nte ao seu p ovo . De qua l-
que r mo do, e ra n ecessário tra ns p o r e tapas, seguir os caminhos traçad os
p e lo sr, ( só que com ma is inte ns idade) e atre lar o sentido do trabalho
à ideologia d o d esen volvime nto com segurança. Era preciso de ma rcar
as te rras ind ígen as, contatar os p ovos autô n om os, dar e ducação formal,
c uida r d a saúde, viabilizar a econ omia indíge na p a ra e ntrar no me rca-
d o, e faze r o pró prio ó rgão a utossuficie nte a pa rtir das re ndas a ufe ridas
inte rna me nte . Ne nhuma d essas me ta s foi alca n çada integralme nte - e m
alg uns ca sos, felizme nte .
A Con stituição d e 1967 e o Ato Instituc io na l n. 1, que o utorgo u a
Constituição de 1969, a pre se nta ram artigo s e qui vale nte s ao s da s consti-
tuições ante ri o res, po ré m com uma m odificação impo rtante : as te rras d os
índios p assam a ser conside rad as te rras da União, sobrando -lhes ap e n as
a p osse exclusiva e a inalie n abilidade . O ra, isso sig nificou um p asso
atrás na his tó ria da con ceituação bras ile ira sobre te rras indígena s , um
grave re trocesso jurídico e po lítico . Po r o utro lado, a re dação do a rtigo
198 favo receu o trabalho de d e ma rcação de te rras indígen as, to rna ndo
explíc itos os seus d ire itos de ime m o rabilidad e indíge n as o u a ntecedên-
c ia histó rica sobre qua isque r o utros dire itos p oste ri o rme nte a legad os .

Art. 198 - As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos te rmos
que a le i federal dete rminar, a eles cabendo a sua posse pe rmanente e
ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclus ivo das riquezas
naturais e de todas as utilidades nelas existentes .
§ lQ - Ficam declarados a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de
qualquer natureza que tenham por objetivo o domínio, a posse ou a
ocupação de te rras habitadas pelos silvícolas.
§ 2Q - A nulidade e extinção de que trata o pa rágrafo anterio r não dão
aos ocupantes direito a qualquer ação ou inde nização contra a União e
a Fundação Nacional do Índio .

A p a rtir d esse a rtigo, foi e laborado o d e n o minad o Estatuto do Índio,


que, votado no Con gresso, tran sformo u-se n a Le i n. 6 .001, de 19 d e
d e ze m bro de 1973 . Esse Estatuto é uma re gulame ntação da le gislação
bras ile ira sobre os índios, e m seus asp ectos jurídicos e administrativos .
102 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.

Determina a condição social e p o lítica do índio p erante a n ação e esti-


pula medidas de assistê nc ia e promoção dos povos indíge nas, sobretu-
do como indivíduos. Con side ra o índio menor de idade e "rela tivamente
capaz" a certos atos, sob a tutela do Estado, representado pela Funai. Es -
tabelece as condições de eman cipação da tute la tanto individual quanto
coletivam e nte. Cria os mecanismos que determinam a demarcação das
te rras indígenas, to rnando a Funai o age nte único respon sável pela de-
finição do que é te rra indígena e pela sua demarcação em todas as e ta-
pas. O a to fina l de h o m o logação fica sob a prerrogativa do presidente
da República.
Um dos seus artigos previa a demarcação de todas as reservas indí-
genas n o prazo de c inco a n os, isto é, a té o final de 1978. Ao invés disso
(e n ão tem sido cumprida essa determinação) , o governo Geisel, num
gesto que ca uso u s urpresa e indignação e m âmbito nacio na l - e com
repercussões inte rnaciona is - , decidiu promover e acelerar o processo
de eman cipação dos índios da tutela do Estado, em n o me da sua inte -
gração total à nação brasile ira , e, obvia me nte, p ara fugir da ob rigação
de demarcar as te rras indíge nas, conforme previsto em le i, além de abrir
caminho para a e ntrada de comprado res de te rras indígen as já demar-
cadas. Pareceu a todos um ato de despotismo militar, e a ide ia de trans-
formar os índios e m brasileiros iguais aos o utros já não tinha adeptos
na consciê nc ia nac io na l. Dividir as te rras indíge nas e m lo tes familiares
ou individua is e p e rmitir a sua ve nda não se nsibilizou ne m os libe rais
e de fe nsore s mais radicais da proprie dade priv ada . Os principais me ios
de comunicação se m a nifestaram , quase em m assa , contra esse projeto
que , assim, foi e ngavetado no governo Figueiredo . Porém, essas ide ias
permane cem n os me ios que posicionam os índios como pontos de d e -
safio da se gurança nacio n al.3 2
A Funa i tem tido impo rtantes períodos de a ti vidades demarcatórias.
Entre 1970 e 1979, fora m demarcadas ou demarcadas de n ovo , a partir
dos trabalhos rea lizados pelo SPI , ce rca de 30% das terras indíge nas e n-
tão reconh e cidas , be m com o fo ra m reco nhecidas novas te rras , d e povos
indígenas contatados n essa década. A Funai foi primeiramente dirigida
p o r generais , depois por coroné is - e m quase todos os casos , pessoas
que n ão h av iam tido ne nhum se ntime nto positivo ou ne nhuma razão
d e visão histórica ou nacionalista para lutar p elos índios. Um d esses
ge nera is-pres ide nte até se esforçou, e m determinados momentos, em
favor da demarcação de diversas terras indígen as. N os primeiros a n os , a
maioria dos dire tore s do órgão se comportava com d escaso , se não com
d eboch e, e com laivos d e corrupção . Mas outros fora m pouco a pouco
p O 1. f TI C AS I N D I G E N I S TA S 103

se sensibiliza ndo pela causa indíge na e te rminaram a juda ndo aque les
que estavam na luta direta, n o o lho do furacão da expansão ag rícola
brasileira, te nta ndo gara ntir te rras para os índios que conheciam e com
quem trabalhavam. O impulso para essas atividades, no meu entende r,
vinha de um sentime nto inefável de amo r e devoção pela causa indíge -
na , c uja raiz mais profunda pode ser atribuída aos poetas e escrito res
indianistas do século XIX e ao sentimento de nacionalidade. Uma n ova
geração de indigenistas foi se formando pelos caminhos trilhados por
Rondon e seus seguido res que a inda continuava m na luta , apesa r da
ojeriza dos militares, como os irmãos Villas-Boas, Francisco Meirelles,
Noel Nutels, Cícero Cavalcanti , Carlos Moreira Neto, Gilbe rto Pinto e
tantos outros mais. Vinh am de todas as regiões do Brasil, de categorias
profissionais va riadas - desde e ngenhe iros, agrô nomos e topógrafos,
a a ntropólogos, advogados, contado res e jornalistas, técnicos va riados,
vendedores de lojas, ex-militares, motoristas, ex-comissárias de bordo
e tc. Gosta r do índio nunca foi atributo exclusivo de antropó logos e
afins. Assim, a n ova turma de indigenistas foi se formando n a prática,
vivendo nas a lde ias indígenas, comp ara ndo -se com os sertanistas do
passado , n o diálogo com os antropó logos e no relacio n amento te n so
com o resto da sociedade. Aos poucos, iriam se confrontar com os diri-
ge ntes militares e seus auxiliares , tanto na burocracia quanto no campo.
Em 1980, esses novos indige nistas criaram uma associação parassin-
dical que visava e n contrar m e ios e fo rça políticos para re alizar suas ati-
vidades com convicção, e não ficare m de p e nde ntes de suas funções o fi-
ciais e dos inte resses dos militares. Em resposta, em maio , a diretoria da
Sociedade Brasileira de Indigenistas e mais cerca de 40 membros foram
demitidos sumariamente da Funai. Por certo , desafiavam a presidê n c ia
do ó rgão, n aquela ocasião n as mãos de coron é is com estre ita ligação
com o Conselho de Segurança Nacional (csN) . Acossado a inda mais pela
opinião pública e pelos políticos da oposição, o governo militar la nçou
o Decreto n. 88 .11 8, de 23 de fevere iro de 1983, que re tirou da Funai
a p re rrogativa legal d e definir á reas indíge nas e d emarcá-las através de
um processo administrativo . Este passou a ser feito por um Grupo de
Trabalho que inclui diversos ministérios, como o da Reforma Agrária
(então Assuntos Fundiários) , Inte rio r , Planejamento e o p róprio Conse -
lho de Segurança Nacional, pode ndo esse GT convoca r quaisque r outros
órgãos federais o u governos estadua is para opinar sobre a legitimidade
ou n ão dos direitos indígen as sobre as te r ras postuladas. Consegu iu a
colabo ração de alguns antropólogos para avalia r a legitimidade das de-
m andas indígenas por n ovas te rras . Os processos de de marcação passa-
104 Os INDIOS E O B RASIi.

ram, e ntão, a ser demorados, à me dida que os inte resses anti-indígenas


foram conc retiza dos e m inte resses fundiá rios, p o líticos o u militares.
Sem autonomia para demarcar á reas indíge nas , a Funai perdeu tam-
bém a sua legitimidade perante a opinião pública nacional e interna-
cional, que passou a apo ia r os traba lhos de indige nistas e antropólogos
e mpe nhados individualme nte o u através de suas uni ve rs idades e asso-
ciações na defesa da causa indígena, bem com o perante os próprios
índios, que com eçam a reviver uma época lo ngínqu a (e, p o r isso, não
conhecida modername nte), d e te r voz a ti va n os seus destinos, lutando
sobre tudo pelo direito às s uas te rras, mas também pela sua dignidade ét-
nica. Surgiu o movimento indígena, com alguns líde res de várias p a1tes
do Brasil, que se re uniram em Brasília e criaram a União Nacional dos
Índios (uNI), com o vere m os ma is adiante. N os últimos anos da ditadura,
a Funa i e ntro u e m convulsão, com c ríticos exte rnos e inte rnos, esva zia -
da de seus poderes demarcatórios, e e nfraq ueceu por falta de verbas. Os
coron é is se desmoralizam e passam o bastão para um civil, ainda sob a
s upe rv isão do CSN. Enquanto isso, antropólogos, jo rnalistas , advogados
e indige nistas resistiram, de dentro o u de fora do ó rgão, e tivera m seu
momento de gló ria quando, em janeiro de 1985, n a sede do ó rgão, e m
estado de "ale rta", desafiaram o governo Figueiredo: forçaram-no a re -
vogar um decreto recém-publicado pelo Ministério de Minas e Ene rgia
que prete ndia ab rir as te rras indíge nas à mineração. O presidente civil
continu ou por alguns m eses, mas não resistiu ao gove rno Sarney, que
te rmino u por escolhe r um jovem administrador d e empresas para dirigir
a Funai. Este desbaratou o movime nto dos indigenistas, desafogou o
ó rgão de demandas dos índios e c resce u se u p atrimô nio ao lo ngo dos
a n os, abrindo várias te rras indíge nas para o garimpo d e o u ro e diaman-
tes, e cobrando p edágio sobre os resultados.
Nessa s ua fase militar, a Funai teve mais baixos do que a ltos . Po rém,
p o r obra dos se us agentes e dos te mpos, restabelece u a n oção de res -
ponsabilidade do Estado para com os povos indíge nas, d e modo que,
m esm o nos gove rnos mais d esenvolvime ntistas e m e n os preocupados
com a sorte dos índios, o ó rgão nunca deixou de se sentir cobrado e
de cria r seus m ecanismos para te nta r ate nde r às demandas básicas dos
indíge nas . No que tange aos povos autônomos (agora chamados d e
isolados), a Funai m a nteve as mesmas técnicas d e contato e stabelecidas
pelo SPI, evitando a v io lê n cia e utilizando as táticas de apresenta r "fre n-
tes de atração", inte rditar as áreas indígen as à presença de estranhos,
d eslocar os grupos contatados para outras á reas - quando as suas te rras
e ram d e inte resse econômico - e, e nfim, usar de sua posição d e po-
p O 1. f TI C AS I N D I G E N I S TA S 105

der p ara con stra nge r os índios ao sistema paternalista de re lac io namen-
to. Entre os mais de vinte grupos contatados, todos sofreram s ubstan-
ciais decréscimos populacionais e muitas perdas te rrito riais. Os índios
Kubenkrãkem - hoje conh ecidos por Pana rá - , Avá-Canoeiro, Waimiri-
Atroari, Paraka nã, Araweté, As urini , G uajá, Arara, Uru-eu-wau-wau,
Cintas-Largas, Suruí, Zoró, Salumã -atualme ntech amados Enawenê -Nawê,
Mynk y - e outros mais ficaram bastante conhecidos pelas reportagens
e matérias de televisão, a lgumas até excessivamente sensacionalistas.
Os Kubenkrãkem, contatados por conta da passagem da BR-163, que
e m três ou quatro a nos sofreram perdas demográficas de 70% de s ua
população, foram transferidos de seus te rritó rios para o norte do Parque
Indígena do Xingu. As te rras de vários outros foram invadidas pelas
e mpresas mineradoras, agropecuá rias e madeireiras, como nos Waimiri-
Atroari, Parakanã, Guajá, Cintas-Largas, Arara e tc. Entretanto, muitas de-
las viriam a ser recuperadas n o decorre r das décadas de 1990 e 2000.
Há ainda no Brasil cerca de 20 ou 30 povos autô n omos, ou me-
lh o r, grupos autô n omos, já que podem pertencer a povos já contatados,
muitos em á reas cobiçadas por inte resses econômicos ou projetos go-
vernamentais de mineração, estradas e hidrelétricas. Segundo a Funai,
esse número pode ser maior ou menor, já que os vestígios de presença
indígena são em número mais elevado, ressalvando-se que sinais de
vestígio de presença indígena e m determinado local se confunde m com
sinais em o utros locais, pode ndo ter s ido d eixados pe lo m esmo grupo
indígena. N esse sentido, a Funai, embora não estando aparelhada para
proteger esses povos , tem exercido uma sábia política de deixá-los vive r
à vontade, evita ndo apen as que venham a ser contatados por te rceiros
invasores de seus te rritórios. Essa política surgiu das m alfadadas exp e -
riê nc ias do indigenismo b rasile iro e m relação aos povos a utô nomos,
que, qua ndo contatados, sofriam te rríveis c h oques cultu ra is, eram aco-
metidos por gravíss imas epidemias e te rminavam perdendo express ivos
continge ntes populacionais. Os povos autôn om os agradecem por essa
sabedoria, poré m ninguém pode se ilud ir que a iminê n c ia de conta-
to com diversos desses grupos autôn omos n ão esteja se aproxima ndo,
como é o caso dos Guajá, que vivem n a T. I. Arariboia , n o Maranhão,
e os que vivem na projetada T. I. Fradinho , no oeste mato-grosse nse .
A maioria dos povos indígenas sobreviventes te m contato estabeleci-
do h á muitos a n os com a sociedade nacio n al mais ampla, a lgu ns deles
de forma muito inte nsa, seja pela proximidade aos centros urbanos , seja
p ela identificação com certos aspectos da socie dade rural e nvolvente.
Na velha te rminologia do Estatuto do Índ io, estão "em vias de integra -
106 Os INDIOS E O B RASIi.

ção" o u "integrados" à comunhão nac io nal. Na verdade, esses conceitos


dizem mais respeito ao projeto político mais amplo de diluir os povos
indígenas e suas culturas no caldeirão social e ideológico brasileiro do
que a uma realidade antropológica. Os povos sobreviventes o são e m
virtude , exatamente, de sua difere nciação com o restante das populações
brasileiras, n e m que minimamente o sejam mais por fatores sociais -
como casamentos e ndógenos e uma econ omia cooperativista - do que
p o r símbolos c ultura is específicos. Nesses casos, efetivame nte, a inte -
gração é uma realidade irre futável, mas isso não quer dizer que seja um
passo a uma assimilação ( a não ser que programada e forçada), pois
esses povos continuam a mante r-se indíge n as.
Os programas de educação criados n os primeiros a n os da Funa i, a
partir de 1972, baseavam-se e m um pressuposto ma is realista do que
aque les desenvolvidos pelo SPI, quando a ê nfase era e m o fícios com o
marcenaria, carpintaria, mecânica o u e m conhecime ntos gerais. Uma das
cartilhas de Po rtuguês usada n a década de 1940, por exemplo, começa-
va com a frase: "A T e rra é um pla n eta do Siste ma Solar". Na ép oca das
missões jesuíticas e nsinava-se até gramática latina. Ao contrário, a Funa i
pattiu da ide ia de que os índios apre nde riam me lho r se fossem e nsinados
e m su a própria língua e p o r professores indíge nas. Assim, os "programas
bilíngues" fun cio naram, e m de te rmina dos casos, p o r alguns a n os. 33 Os
Guajajara, os Kaingang, os Karajá e outros mais chegaram a te r bons pro-
fesso re s até o nível d e te rceira ou quarta séries do prime iro grau . Após
alguns a n os, os p rogramas p e rde ram o incentivo do ó rgão e passaram a
ser repetiti vos e sem obje tivo . No m áximo, os a lunos adia ntados foram
levados para as c idades para darem prosseguimento ao se u apre ndizado
n o ambie nte social dos o utros brasile iros. Muitos índios fora m alfabeti-
zados e passaram a de m anda r novas posições e m te rmos de e mpregos e
privilégios socia is . Em algu n s casos, eles se tra n sformara m n os líderes de
seus p ovos em relação à Funai e ao mundo e nvolvente, o que, de certa
fo rma, n ão de ixa d e preenc h e r as exp ectativas do processo educacio nal.
Na sua grande ma io ria, n o e nta nto, os programas educacio n a is vêm
sendo conduzidos em líng ua portuguesa , e m a lg un s casos até por exi-
gê nc ias das próprias comunidades indígenas, e seguem o modelo tradi-
cional da e ducação primária brasile ira. É certo que muitos índios , h o je
e m dia , sabem que a T e rra é um planeta d o Sistema Sola r , m as esse
ap re ndizado é mais re flexo dos tempos do que de uma política educa-
cional con siste nte por parte da Funai.
A saúde dos índios é motivo de preocupação nacio n al desd e o
te mpo dos jesuítas, que muito se va n glo riava m de ate nde r aos e nfe r-
p O 1. f TI C A S I N D I G E N I S TA S 107

m os aplicando-lhes m e zinh as, san grame ntos e sacrame ntos na h o ra fi-


nal. O SPI inic io u prog ramas ma is e fe tivos de combate à s epide mias,
através das vacinações, e d as e ndemias com o m alária e tube rc ulose,
p o r inte rmé dio de m e dica ção m od e rna e preventiva . É conhecido o
traba lho d o sa nita rista Noel Nutels no comba te à tube rculose e n a
instalação de e quipes volante s de saúde .34 A Funai d e u continuida -
d e a esses pro gram as já mais facilitados p e las estra das d e acesso às
te rras ind ígen as e pelo tra n s p o rte aéreo . Em alguns casos, foram fe i-
to s con vênios com instituições de sa úde, como a Escola Pa ulista d e
Me dic ina, que, desd e 1965 , ve m m o nito rando a saúde d o s índios d o
Parque Indígen a d o Xing u. Ne nhum p rogram a de saúde ch egou a
evitar os decréscimos p o pulacio n a is d os p ovos e m contato, mas con-
tribuiu p a ra o e quilíbrio p opulacio na l e m áre as d e contato a ntigo .
Não está to talme nte estabe lecido se o recente a ume nto d e mográ fi co
indígena se d eve a esses prog ramas o u a uma reversão de cunho imu-
n ológico e ndogen am e nte o btido ao lo ngo d os a nos d e conta to e à c u sta
d e muitas mo rtes . Em a lgun s casos, com o p a ra os Urubu-Kaap o r, foi a
inte rvenção d e mé dicos d a Funa i, e fora de la , que, d etectando a altíssi-
m a inc idê nc ia d e s ífilis n essa p o pulação (em 1977 e ra de quase 95%),
conseguiu reverte r a su a c urva p o pulacio nal d e clinante (em 1928, e ram
1.200; e m 1950, 630 ; em 1977, 460; e m 1985 , 550). Mas o cre scime nto
d os p ovos com o os Ka ingang , G uarani , Guajaja ra , Tikuna , Makuxi etc . já
vinha aco ntecendo de sde a dé cad a d e 1950 . O que está claro é que aso-
b revivên cia física dos índios é p e rfe itam e nte possível em nossos tem pos .
As expe riê nc ias mé dicas d a Funa i e d e o utros ó rgãos e e ntida des assis -
te nciais de mo n stra m que é p ossível p arar de sacrifica r vidas indígen as
e m n o me da fata lidade o u da a usê nc ia imunológica às e p id e mias tra zi-
d as pelos e u rop e u s . Mas é n ecessário torna r a assistê n cia mé dica m a is
e fic ie nte e muni-la d os recursos necessá rios , sobre tudo os huma n os .35
A Funa i també m te nto u d ar continuidad e aos p roje tos econ ô micos d o
sP1 , sobre tudo no que ta nge à p rodução d e be n s com e rciáveis . Ad ic io na -

va-se a isso a p o lítica inte rna d e to rna r-se a utossufic ie nte finan ceirame n-
te através da cha m ad a "re nda indígen a". As á reas que p o dia m p roduzir
m ade ira , com o as dos Ka ingan g e Gua rani , no Paran á , Santa Catarina e
Rio G rand e do Sul, rece b e ra m investime ntos e m fo rma d e impla ntação
d e se rra rias, o u fo ram arre ndadas p a ra e mpre sas mad e ire iras , n a ide ia
d e que iria m resulta r e m altos di vide ndos p ara os índios e pa ra o ó rgão .
Esses p roje tos n ão de ram certo , p rovocara m o d esm ata me nto d as reser-
vas flo re stais a inda ex iste nte s , e xtinguiram a fa una e até favo recera m as
invasõe s e ale gações d e p ropried ad e adquirida p o r p a rte d essas empre -
108 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.

sas. No Paraná, até a década de 1990, os Kaingang e a Funa i brigavam


com a e mpresa Slaviero e Irmãos pela propriedade de uma á rea que lhe
fora a rre ndada desde o tempo do SPI. Nos a n os 1980, a empresa Capemi
contrato u da Funai e da Eletronorte o direito de re tira r toda a madeira
da á rea dos índios Parakanã, que iria ser inundada pela barragem de
Tuc uruí. Os índios foram transferidos , a made ira não foi retirada e h o je
essas te rras (exceto os 315 mil hectares que foram reservados aos índios,
ao sul do lago de Tucuru O estão parcialmente inundadas ou em mãos
de p eque n os lavrado res e fazendeiros.
Em escala mais reduzida e sob o pretexto de fazer os índios produzir
excedentes econ ômicos, a Funai c rio u diversos "projetos comu nitários",
que também fracassaram. Esses projetos supunham que os índios sem-
pre trabalham em forma coletiva p ara depois us ufruir em comum os
bens produzidos. Então, um m étodo de a rregime ntação de s ua força de
trabalho e ra imposto a e les, em troca de bens de consumo, como óleo,
alimentos, querosene, sabão etc. - os quais seriam pagos com o produ-
to final da colheita , da soja, do milho, do a rroz, o u do que viesse a ser
plantado. Em a lguns casos, usou-se até da força mecânica, como tratores
para a ra r a terra e colheitade iras. Começava o projeto , mas, pelo meio
do cronograma de produção, os índios perdiam o e ntusiasmo, paravam
de traba lha r com o a fin co exigido, e os projetos quebravam. 36
As análises posteriores mostraram que o problema n ão era de pregui-
ça indígena, como que r o preconce ito, mas de uma falta de compreen-
são d essas atividades n a totalidade sociocultural desses índios. Nesse
sentido, n em a Funai n em mesmo o conhecime nto especializado dos
a ntropólogos - a lgu ns dos quais trabalharam como programa dores e
assessores - conseguiram resolver o proble ma, po is depende sobretudo
da d e finição da posição das socie dades indígenas no panoram a nacio -
n al. Não é uma questão de técnica econ ô mica, mas de examiná-la n o
contexto de uma política indigenista moderna que defina o luga r do
índio na n ação b rasile ira e crie as bases d e um relacionam e nto m ais
condigno e p e rma n e nte . Sabendo para que produzir , os índios e ntão
saberão o que e como produzir.

A POLÍTICA INDIGENISTA NA DEMOCRACIA, DE 1985 A 2012

A democ rac ia fez bem à Funai , como não podia deixar de ser, mas
a custo d e muita confusão e muitas frustra çõe s po r parte de to d os, es-
pecialme nte dos povos indíge nas. Os anos do governo Sarney foram
p O 1. f TI C AS I N D I G E N I S TA S 109

d o mina do s p o r uma atitude contrá ria, se n ão o pressiva, ao m ovime nto


indígena e aos indigenistas, te ndo inclus ive sido abo lido o c urso de in-
dige nismo que era d ad o durante o p e ríod o ditato ria l p a ra os n ovos ser-
vido res d o qua dro . Uma leva de mais de 1.300 funcio n á rios e ntro u n o
ó rgão um p o uco a nte s da Constituição de 1988 , quando a inda e ra p e r-
mitida a contratação sem con curso público . Be m o u ma l, apre nde ram
seu ofício, a inda que mais e mpiricame nte do que os ind ige nistas fo r-
m ados, e são esses func io nários que têm levado o ó rgão adia nte . Nes-
se prime iro p e ríod o de re d e m ocratização vivia-se a inda sob a sombra
re trógrada d o velh o CSN, que supe rv isio nava a Funa i d e p e rto, sobretudo
p o r causa dos v ultosos e impactantes empreendime ntos n a Ama zô nia -
como a Usina Hidre létrica de Tucuruí e seu s linhões de tra nsmissão elé -
trica, a grande mina de Carajá s e a Estrada d e Fe rro Carajá s , a construção
d e n ovas ro dovia s , a imigração maciça p a ra Ro ndô nia e Ro raima, a ação
d e m adeire iros e a g ra nde qua ntidade d e explo ração d e minas e ga rimpas
que h aviam se esp alha do p or to d a p a rte (inclus ive e m te rras indígen as
como as d os Xikrin , Kayap ó, Ya no ma mi e Cintas-La rga s) . Esses índios,
assim como os Gaviões-Pa rka tejé, G uajaja ra , Urubu-Ka apo r, G uajá, Suruí,
Zoró, Na mbiqua ra , e ntre o utros, iriam sofre r pressões d e tod os os lad os .
Dura nte a d écada d e 1980, muitos joven s indígen as tinham s ido a lfa-
b etiza dos e e ducados p e las escolas primárias da Funa i o u das missões
e fre que ntavam escolas secundá rias nas c idades . Dive rsos havia m se es-
p ecializad o e m cursos técnicos de e nfe rmagem , agrono mia e zootecnia;
um o u o utro já e ntra ra n as fac uldades e se fo rmava em D ire ito, Pe d agogia
o u Histó ria, sempre com o intuito de volta r p ara s uas alde ias p a ra aju-
d ar seus povos . Essa te ndê n cia só iria crescer n os a n os seguintes, d e
tal m odo que, e m 2012, há cerca de 5 mil joven s ind ígen as m atricula -
dos e m faculdad es p e lo Brasil afora . Com uma nova con sciê n cia p o -
lítica, o movime nto indígena to mo u fô lego, esp ecia lme nte de p o is d a
Con stituição, com a c riação de associações indígen as e m dive rsas p a r-
tes do Brasil , quase sempre coadjuvad as po r O NGS b rasile iras e p elo
Con selh o Indige nista Missio n ário (c1M1). Assim, a pressão sobre o go -
ve rno d e mocrático to mo u v ulto m a io r, ma is contunde nte e m a is liber-
tá rio . A Funa i, com isso, p assou a viver o utros te mpos, às vezes d e -
fe n siva, às vezes ine rme, o utras cola bo rativa com as p olíticas estata is .
É d ifícil re sumir em p o ucas linhas qual tem sido o p ap el da Funa i
n esses últimos 27 a n os, mesmo p o rque fiz pa rte d e s ua gestão, com o
preside nte d o ó rgão, e ntre sete mbro d e 2003 e m arço de 2007, o qu e p o -
deria dar a essa con sideração uma caracte rização ma is subjetiva . Muito
d o m e u p e nsame nto sobre esse tem a e n contra -se n o me u blog p essoal
110 0 S f N D I OS E O 8 R AS 1 1.

(Blo g do Mé rcio: Índio s, Antropo logia , Cultura- <merc io gomes.blo gspot.


com.br>), e m que muito s temas p od em ser cons ultad o s a p a rtir de mar-
ço d e 2007, inclusive uma aná lise resumida d a histó ria dos 40 anos d o
ó rgão . Não o bsta nte, com o tem sido um ó rgão mais vilipe ndiado d o que
admirado, e specia lme nte p e las ONG S de cunh o indige nista que surgiram
com a prete nsão de não som e nte guia r, ma s també m sobre p o r-se às
ações estatais, e com uma voz m a is son o ra e mais autoconfiante do que
a da Funai , uma breve análise obje tiva se faz n ecessária . Apresento esse
re sumo p o r te ma s a se guir.

A nova Constituição Federal de 1988

A Asse mble ia Constituinte con vocada para e lab o rar a n ova Constitui-
ção abriu-se p a ra a contribuição e p a tticipação de índios, do m ovime nto
indígena, d e a ntropó lo gos individu alme nte (inclu sive e u m esm o), d as
ONG S la icas e re ligio sas e da Associação Brasile ira d e Antropo logia . Po r

e ssa p a rticipação e p elo clima fa vo rável aos dire itos de mino rias e m
ge ral, o resultad o foi extrem am e nte p ositivo p a ra os p ovos indíge n as,
ga rantindo-lhes seu s dire itos com m a is cla re za . A Con stituição Fe de ral
d e 1988 , além de vário s artigo s concern e nte s aos índios como cida dãos
e como uma das mino rias da nação, produziu um artigo fundame nta l
que trata de seu s d ire itos específicos e um seguinte sobre a obrigação
do Ministé rio Púb lico Fede ral de lhes assistir juridicame nte e m es pecial.

Art. 231. São reco nh e cidos aos índios su a o rga nização social, costumes,
líng uas, cre n ças e tra dições, e os dire itos o riginá rios sobre as te rras que
tra dicion alme nte ocupa m , compe tindo à União d e ma rcá-las, proteger e
faz e r resp e ita r to dos os seus be ns .
§ 1 Q São te rras tradicion a lme nte ocupad as p e los índios as por e les ha bita -
d as e m cará te r pe rma n e nte, as utiliza das p o r s uas a tividad es pro dutivas,
as imprescindíveis à preservação d os recursos a mbie nta is n ecessá rios a
seu bem-esta r e as n ecessárias a s ua re produção física e c ultura l, segun-
d o seus usos, costumes e tradições .
§ 2Q As te rras tradicio na lme nte ocupa d as p e los índios destina m-se a su a
posse pe rma n e nte, cabendo -lhes o usufruto exclusivo das riquezas d o
solo, d os rios e d os lagos n e las existentes.
§ 3Q O a proveita me nto d os recursos hídricos , incluídos os po te nci a is
e n e rgéticos, a pesquisa e a lavra das riqu ezas mine rais em te rras indíge-
n as só p od e m ser e fe tiva dos com a uto rização d o Con g resso Naciona l,
o uvidas as comunida d es afe ta d as, ficando -lhes assegura d a pa rticipação
n os resultados da lavra, n a fo rma d a le i.
P OJ.fTJC AS INDIGENJSTAS 111

§ 42 As terras de que trata este a rtigo são inalie náveis e indisponíveis, e


os dire itos sobre elas, imprescritíveis.
§ 52 É vedada a remoção dos grupos indígenas de s uas terras, salvo, ad
referendum do Cong resso Nacio nal, em caso de catástrofe ou epidemia
que ponha em risco sua população, o u no inte resse da soberania do
País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer
hipótese, o retorno imed iato logo que cesse o risco.
§ 62 São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que
tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que
se refere este a rtigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos
rios e dos lagos nelas exis tentes, ressalvado relevante interesse público
da União, segundo o que dispuser le i comple mentar, não gerando a nu-
lidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra União, salvo,
na forma da le i, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa-fé.
§72 Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, §§ 32 e 42 .
Art. 232 Os índios, suas comunidades e o rganizações são pa rtes legítimas
para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervin-
do o Ministério Público em todos os atos do processo.

O a rtigo 231 é aclamado por todos p e la inovação constitucio na l de


conside rar as te rras indíge n as como advindas de um direito "o riginário",
o que que r dizer que antecede à chegada dos portugueses, como se
fosse uma reafirmação, um eco, da que la famosa expressão presente e m
a lgumas ca rtas régias , conforme já m e n cio n ado, e m que os índios são
ch amados d e "primá rios senho res de suas te rras" . Assim, por exemplo, a
ale gação de d ire ito de proprie dade privada sobre a lguma te rra consid e -
ra da indíge n a n o presente ou n o passado seria de n atureza secundária.
Ta l conce ituação fa vo receu a a ntropólogos e ao Ministério Público a
d efe nde r d ire itos dos índios sobre te rras que lhes h aviam sido usurpa-
das n o passado , independenteme nte d e hoje p e rte ncere m a te rceiros .
Com ta l inte rpre tação, muitos juízes deferiram processos de demarcação
acata ndo o d ireito o rig iná rio como carro-c h e fe da a rgumentação . Muitas
disputas de te rra foram dirimidas d esse modo . Entretanto , em ma rço d e
2009, ao decidir sobre a legitimidade da ho mo logação da Te rra Indígen a
Raposa Serra do Sol, o sTF exarou uma súmula com d ive rsas ressalvas
sobre con sagrados direitos indígen as - e m uma de las, a data da pro-
mulgação da Constituição Fe de ra l, 5 de o utubro de 1988, seria o tempo
legal e m que um grupo indíge n a n ecessitaria estar ocupa ndo uma d ete r-
minada á rea para e la ser cons iderada "tradicio n a lmente ocupada ". Com
essa data simbó lica, porém a ntropo logicamente a leató ria e a rbitrária,
dive rsos processos d e d emarcação vêm sendo contestadas n os tribunais
regionais, ao não se pode r prov ar que um grupo indíge na te nha estado
11 2 0 S f N D I OS E O 8 R A S 1 1.

e m ocupação de uma certa á rea n aque la da ta. É de se esp e rar que mui-
tos p rocessos de d e m a rcação e m a nda m e nto p e los tribuna is regio n a is
d e ju stiça eventualme nte faça m o seu caminho até o sTF p a ra decisão
final, o u p ara ma is indecisões jud ic ia is .
O utro p o nto que viro u osso d e disputa diz resp e ito à inte rpre tação
d o § 3º, esp ecia lme nte e m re lação ao licen cia m e nto d e hidre létricas . O
caso da Usina Belo Monte dem o n strou o quão difícil é o bte r a legiti-
midad e p a ra se construir uma hidrelétrica pela con sulta às p o pulações
indíge nas, como ve re mos m a is adia nte, n a seção "Os inte resses econ ô -
micos" d o capítulo "A s ituação a tua l dos índios ".
Um te rceiro p o nto de valo rização da Con stituição Fed e ral é precisa-
m e nte a prime ira con ceituação sobre índ ios, e ncontrada no caput do
a rtigo 231, qua l seja, o reconhecime nto da o rga nização socia l, costumes,
lín guas, c re n ças e tradições d os povos indígenas . Segundo uma inte rpre -
tação corriq ue ira e ntre ad vogad os e a ntro p ólogos , some nte através des-
sa sente n ça é que os índios p assaram a ser efe tiva me nte conside rados
p ovos n o se u próprio dire ito, e não socie dad es o u g rupos que deveria m
ser integradas à socie da de bras ile ira. Pa ra muitos, o Estatuto do Índio,
e mbora resp o n sável pe la d e marcação d e tantas te rras ind ígen as , estaria
cadu co p o r con star com o seu p rop ósito funda me ntal: embo ra preser-
vando s uas c ulturas, os índios d everia m se r integrados, "p rog ressiva
e ha rmo niosam e nte , à comunhão nacio n a l". Po r conta d esse frasead o ,
da contra rie dade à n oção d e integração , muita m ovime n tação p o lítica
vem se n do c riada p elas O NG S e pe lo m ovime nto ind íge na p ara q u e o
Con gresso N acio n a l vote uma pro p osta de um n ovo estatuto p a ra os
índios , reti rando a questão da integração, com o se esta n ão fosse uma
re alidade a uto e vid e n te , e com o se fosse o me sm o q ue assimilação o u
n ecessária de struição de autoid e ntidade, e adic io na ndo a rtigos que re -
gula me nte m te mas com o mine ração e m te rras indígen as, construção d e
hidre lé tricas que a fe te m te rras indígenas , valo rização dos recursos na tu-
ra is e o utros m ais . O risco d e que o Con gre sso te rmine m odifica ndo o
velh o e se g u ro Estatuto do Índ io, retira n do pre rrogativas d e de m arcação
d a Funai e mo difican do obrigações d o governo federal, p o de faze r essa
m ovime ntação p o lítica to ma r juízo p o lítico e re fluir.

Demarcação de terras indígenas

Mesmo a ntes da n ova Con stituição Federal, as te rras indígen as vi-


nham se ndo d em a rcadas com base n os artigos do Estatuto do Índ io .
p O 1. f TI C AS I N D I G E N I S TA S 113

Efe tivame nte, o título u1, e os a rtigos 17 a 25, que tratam d as te rras
indígena s , constitue m , com muita cla re za, o s ele m e nto s jurídicos pa ra a
d em a rca ção dessas te rras . Eles consideram a ocupação indíge na da te rra
d e acordo com os u sos, costumes e tra dições triba is; reconhecem os di-
re itos d os índios às sua s te rras "inde pende nte d e s ua de marcação"; e
d ão com o um d os crité rios pa ra o reconh ecime nto do dire ito sobre d e -
te rminada te rra "a situação a tu al de ocupação e o con senso histó rico so-
bre a a ntiguidade da ocupação" . Esses artigos d e ram uma pro fundidad e
jurídica , numa m od e rna conceituação d o antigo conceito d e indige na to,
que favo rece u n ão som e nte a d e m a rc ação d as te rras a té e ntão reconhe -
c idas, como fo rtaleceu as condições indígen as p a ra sua continuidad e
histó rica e su a p e rmanê n cia n a n ação brasile ira. Se e les suste ntaram os
principa is a rgume nto s p a ra a d e m a rcação da s te rras indíge nas até agora,
p od e rão auxilia r a concluir esse processo n os pró ximos anos .
Muitas ONGs têm criticado o Estado brasile iro p o r não te r até agora
concluído a de m arcação d as te rras indígen as, cujo pra zo, aliás, hav ia
s ido d ad o com o de c inco anos p e las Disposições Transitó rias da Cons -
tituição - portanto, a té o utubro d e 1993 . O ra , de ma rcar te rras indígenas
nunca foi fác il e as dific uldad es só tê m piorad o; poré m , diversas n ovas
te rras fo ra m reconhecidas a p ós o ve n cime nto d esse prazo . O u dilata, o u
igno ra esse prazo, p o is não have rá razão para se fix ar n o te mpo algo
que conté m a impre scindível ma leabilidade d o processo histó rico .
Desde a Constituição Federa l, o p rocedime nto de d em a rcação das
te rras ind íge nas te m sido m odificado ao lo ngo d os anos, p o ré m , sempre
sob a inic ia ti va e pre rrogativa d a Funa i. Em linhas gerais, cabe ao ó r-
gão : reconhecer as d e m a ndas indígen as; a n a lisar seu m é rito; d e limitar,
junto com os índ ios inte ressad os (através de um Grupo de Trabalho),
o p e rímetro d a te rra; publicar o relató rio a ntro p ológico p a ra ser revis -
to o u contestado p o r te rceiros; a na lisar as objeções, reconhecê-las e m
to do, e m pa rte, o u d e negá-las; e, ap ós o aval d o Ministé rio da Justiça,
contrata r e mpresas d e d em a rcação p a ra realizar a ta re fa in situ . Po r fim,
colhe r as cade rnetas d e de ma rcação, faze r os m a p as com limites e le -
var o pro duto fin a l p a ra o Ministé rio da Justiça d ete rminar s uas ú ltimas
ave ri guações e d ecisões p a ra chega r à presidê n cia da Re púb lica pa ra
h om ologação fina l. Com o última ta re fa administrativa, cabe uma vez
m ais à Funa i registra r a terra ind íge na nos livros do Serv iço d e Patrimô -
nio Federal com o te rras da União . Mesmo n o p e ríod o difícil dos a n os
Sarney, a Funa i n ão de ixo u d e cria r g rupos de trabalh o p a ra ide ntifica r
te rras ind ígen as . Q ua ndo o presid e nte Collo r tom o u p osse, e m 1990,
n os dois a n os seguintes, uma qua ntidad e su perio r a 120 terras indígen as
114 0 S f N D I OS E O 8 R AS 1 1.

foram h o m o logadas, p o rtanto, já te ndo sido reconhecidas , delimitadas


e d e marcadas. No governo do preside nte Fe rna ndo He nrique Cardoso,
o utra grande quantidade de te rras indíge n as foi demarcada e h omologa-
da. No governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, por volta de 87
te rras foram ho mo logadas e 40 n ovas demarcadas.
Remeto n este mo me nto o le ito r ao documento "Te rras indíge nas
reconhecidas pela Funai", que pode ser acessado n o site da Edito ra
Contexto (www .editoracontexto.com.br) '1l.
Como se pode ve r, há um afunila m e nto de demarcações de te rras
n os últimos anos, o qual se deve n ão n ecessariame nte a um desleixo
dos governos do PT, com o muitos c riticam. O período de inte nsas e
la rgas demarcações deu-se, e m primeiro lugar, e m função do momento
histó rico e do mo do como a ocupação de te rras era con cebido; e m se-
gundo luga r, as d e marcações foram facilitadas p o rque o valo r da te rra
n os estados agríco las estava baixo o suficiente para que os ocupantes
fazendeiros o u posseiros abrissem mão das te rras irregularme nte ocupa-
das (agora reconhecidas com o indíge nas), pelo valo r das inde nizações
sobre as be nfe ito rias ne las contidas. Com efeito, com a valo rização as-
tronômica dessas terras em vittude da expansão do agronegócio n os
últimos 15 anos, os faze ndeiros passaram a colocar dificuldades de toda
sorte, e n ão me n os com a mediação de advogados traquejados nas lides
agrá rias e nos tribunais regio na is.
Há ainda muitas de m andas por d e ma rcação de te rras indíge nas . Os
índios Gua rani , s ubgrupo Kaio wá, que v ivem e m Mato Grosso do Sul,
seus irmãos do subgrupo Mbyá , e os Kaingang , que vivem n os estados
s ulinos - diversos povos indígenas ressurgidos do Nordeste e em outras
pattes do Brasil-, també m carecem do mínimo d e abrigo te rrito rial para
continu ar su a existência étnica . Se não conseguirem obter essas te rras
n os próximos vinte a n os, terão dificuldades em evitar a urbanização de
seus filh os nas próximas gerações . Trabalhando numa linha de crítica
irre freável ao Estado, c umprindo um pape l aos m o ldes da ime mo rial
disputa e ntre Igreja e Estado , o Cimi apresen ta dados de que são m ais
de 500 as terras que a inda precisam ser demarcadas. A Funa i te m tra-
balhado com um número bem mais cauteloso, por volta de 650 terras
indíge nas no total , das quais já mais de 600 estariam em processo con-
clusivo o u e m a nda me nto. Sem dú vida, essa história a inda está em vigo r
e re nde rá muitas disputas n os próximos a n os, a me n os que o sTF, com
clareza , sem dubiedade , determine um parâmetro de reconhecime nto
do que seja "ocupação pe rma n e nte", bem com o um "conse nso históri-
co" sobre a profundidade no te mpo em que uma te rra te nha sido usur-
P OJ.fTJC AS INDIGENJSTAS 115

pada de um grupo indíge na e p ossa ser rec uperada p ara seus legítimos
donos. A súmula de 19 de março de 2009, com uma dureza de decisões
contrárias à Funai e aos índios, vem sendo contestada por ambos os
lados de inte resses e já foi julgada por diferentes ministros do sTF com
resultados diferentes.

Saúde indígena

Até 1999, a assistê n cia à saúde dos índios era atribuição da Funai,
e m conso n â n cia com o Estatuto do Índio. Os índios estavam em le nto,
mas con sistente crescimento populacional há pelo menos 30 anos, mes-
mo aqueles que tinham sido contatados na década de 1970 e sofrido
inte n sas perdas populacionais n os primeiros a n os de con vivê nc ia com
segmentos da sociedade nacio nal. Porém, era evide nte que a Funai não
tinha o rçamento nem quadros para expandir seu serviço de saúde a
conte nto. Calhava ou de aumentar seu efetivo ou mudar. Naquele a n o,
depois de muitas re uniões com lideranças indíge nas e ONGS, a respon-
sab ilidade sobre a saúde indíge na foi passada p o r decreto presidencial
para a Funasa, ó rgão do Ministério da Saúde, sob a justificativa tecnocrá -
tica de que saúde indígen a, embora devesse ser cuidada com a devida
especificidade, era para ser tratada pelo ministério próprio. Desde 1986,
a liás, o gove rno, sob a consulto ria de a lg uns raros a ntropó logos, vinha
plane jando re tirar da Funai algumas ações que lhe pareciam inadequa-
das , como a saúde, a e ducação e o fom e nto às atividades produtivas.
Naquele tempo , a maioria dos a ntropólogos a inda ac h ava que a Funai
deveria continuar a ser o único ó rgão a c uida r da questão indíge na,
m esmo porque tinha uma tradição ind ige nista já bastante res p e itável,
própria e he rdada do m e lho r do velho SPI . O fra cionam e nto da Funai e ra
visto como seu e nfraquecimento e, portanto , como uma política de des-
valo rização do Estado para com os índios. Entretanto , fo ram as ONGS que
influe n ciaram o governo Fttc a faz e r essa transfe rê n cia, justificando-a
inclusive com a ide ia d e e ficácia e aumentos orçamentários.
Nos 12 a n os de ativ idades sanitá rias, a Funasa c umpriu o excele nte
papel de obter, para a gra nde maioria das a lde ias indíge nas do país,
cerca de 5.500 de las, água potável, seja através de poços semia 1tesia n os
ou p ela canalização d e água d e fontes potáve is. Embora com muitas
exceções, as a lde ias h oje desfrutam de s istemas de captação e san ea-
mento de água e de distribuição em pontos gerais, como os chafarizes
d e outrora . Poré m , não tanto valorizados esteticame nte . Com isso, a
116 0 S I N D I OS E O B R AS 1 1.

m o rtalida de infantil caiu n o p e río do de 2005 de uma m é dia de 100 por


1.000 para 53 por 1.000; e m 2010, e ra de 35 por 1.000. É um feito resp e i-
tável dentro da linha de m e lhoria da saúde indígena , que propulsionou
um alentado a ume nto demográfico, porém ainda defasado em re lação
a o utras estatísticas de saúde n o Brasil. As grandes epidemias, como
sarampo, tuberculose, gripes e m geral, que tantas vidas haviam ceifado
até a década de 1960, estão controladas e com efeitos deletérios muito
infe rio res aos do passado. Entretanto, comparativamente, a assistência à
saúde indíge na foi operada de um m odo bastante insatisfató rio para os
índios. Daí porque em todo esse período a Funasa foi o bjeto das mais
intensas manifestações e protestos por parte das populações indígenas,
às vezes com rete n ções de veículos e equipes médicas, tomadas das
casas de saúde indíge n a, invasão das sedes regio na is do ó rgão etc. Por
que isso? Em primeiro luga r, p o rque faltou sempre à Funasa um espírito
indigenista, de tradição rondoniana, o que significa um respeito espe-
cífico para as populações atendidas ( que só se obtém pelo convívio
mais próximo). As equipes de saúde da Funasa se caracte rizavam por
uma a lta rotati vidade de seus membros, deixando sem continuidade o
tra tamento dos e nfe rmos o u a assistê n cia àqueles que necessitavam de
uma cuidado temporário ou ocasio n al. Em segundo lugar, porque as
equipes médicas eram contratadas por ONGS o u p e las prefeituras munici-
pais, muitas vezes atrasando salários e muito freque nte me nte incapazes
d e pagar as multas por de missão dos funcionários , provocando frus -
trações e até m o rtes pela ausência de fun cion á rios e equipes m édicas
n as a lde ias (e muito mais pelo desleixo que tomava conta das equipes
médicas e dos funcionários das ONGs).
Em 2010, o governo Lula, pressionado havia alguns anos por seg-
m e ntos do m ovime nto indígena e pelas ONGs e m ge ral, dete rmino u a
criação, via medida provisória , de uma secretaria especia l para a saúde
indígena - Secreta ria Especial de Saúde Indígen a (Sesa i) - dentro do
o rgan ograma do Ministério da Saúde . O pe ríodo de transição da Funasa
para essa secretaria se a rrastou por m ais de um ano, só sendo instalado
n o governo segu inte . Entretanto , as dificuldades continuaram em vir-
tude dos velhos problemas de contratar equ ipes médicas mais estáveis
e fo rma r um espírito indigenista de ate n d ime nto m édico e h ospitala r.
Os índios sofrem p essoalme nte com o atendime nto , a trasladação para
h ospitais, a indiferen ça das equ ipes médicas , os tempos de recuperação .
Eles reclamam, invadem as sedes regio n a is, exigem a presença do secre -
tá rio da Sesai. Quanto tempo mais será n ecessário para se e stabilizar a
assistência d e saúde aos índios está a inda por ser d e te rminado.
P OJ.fTJC AS INDIGENJSTAS 117

Educação: integração ou autonomia?

Tal como no caso da assistência à saúde, no governo FHC a tarefa da


educação aos índios foi repassada da Funai para o Ministério da Edu-
cação e deste para as secretarias estadua is de educação, com o mesmo
espírito de desconcentrar esforços e aplicar o princípio de descentrali-
zação da gestão pública. Confirma-se, assim, a tendência política des-
ses últimos governos de desfederalizar a questão indígena, isto é, de
repassar para os estados e municípios parte das obrigações federais, ou
ao menos compartilhá-las. Se recordarmos que, n o Impé rio, os gover-
nos provinciais aplicavam a política indigenista imperial, com resu ltados
predominantemente negativos para os povos concernidos, pode-se an-
tecipar que a repetição dessa visão política poderá produzir os mesmos
tipos de resultado. Mas o modismo da descentralização da educação
indígena prevalece por enquanto.
A educação fo rmal , escolar e no fundo c ivilizacional de índios e ra
um dos principais obje tivos da ideologia positivista indige nista. O pro-
pósito de educá-los era de e levar os índios a um estágio superio r de
entendimento para que pudessem tomar conta de si e serem integrados
à nação. Evidentemente, não é este mais o discurso que se vocaliza,
nem a ideologia predominante que move educadores de vários matizes
para prover educação escola r aos jovens indígenas. Diz-se, ao contrá rio,
que o produto da educação atual é para forta lecê-los e m suas culturas e
dar-lhes instrumentos para sua de fesa diante das forças dominantes que
os cercam. Fortalecê-los s ignifica ensinar as matérias fo rmais da educa-
ção tradicional brasileira , primeiro através de suas línguas maternas e
usando de exemplos de suas c ulturas e histórias; segundo, incutindo-
lhes um sentido de autoestima e valorização d e suas c ulturas. A edu-
cação vira , assim, duplamente um instrumento de proteção c ultural e
de conhecime nto do mundo externo. Subentende-se que foi assim que
outros povos nativos, d e outros países e contine ntes, com o as tribos
africanas, apre nde ram a tomar consc iê nc ia de suas posições no mundo
e terminaram por criar os mecanismos políticos que resultaram na s ua
independência e, eventua lmente, na soberania sobre se us novos países.
O disc urso e a ideologia são politicame nte corre tos , mas a ingenuida -
de com que freque ntem e nte os aplica no d ia a d ia termina diminuindo
esses esperados resultados e dando aos jovens uma ilusão que não cor-
responde aos efeitos posteriores. Por exemplo, ao se formar em Direito,
um jovem guarani pode se tornar um advogado das causas de seu povo,
mas, para isso, teria d e passar por con cursos públicos re fratários ao
118 0 S f N D I OS E O 8 R AS 1 1.

conhecime nto que este s tê m a ma is, reduzindo s ua e fi cácia ao forma -


lismo jurídico bras ile iro. Muito s programa s de educ ação pós-secundária
aos índios se orie nta para a formação d e professores primá rios d as es-
colas indíge n as já constituídas . Assim, os professores são qualificad os
e m m a io r grau , apre nde m a dar a ula s com novos conte údos e a usar
fe rrame ntas atua is, como v ídeos, computado res e tablets, e p od e m au-
fe rir salários m a is altos e ison ômicos dos estados o u municípios . De
to do mo do, são tre inad os e instruídos p a ra e n sina r seu s patrícios m a is
joven s a e nte nde r o mundo que os rode ia , a se a da ptar a e le, seja pa ra
se inco rpo rar o u para de le escapulir. Po r e nquanto, e consoante o utras
formas d e re lac io name nto (esp ecialme nte o econ ô mico), é p a ra nele se
integrar, o u - no dize r p ós-mod e rno - inserir-se socia lme nte .

Desenvolvinlento etnoeconôm.ico

Sob esse título incluo tod as as ativ idad es que traze m alg um tipo d e
re nda para o s p ovos indígenas . Etn oeconontia é um te rmo que p od e
implicar tão some nte a econ o mia pró pria d e cada povo indígena , no seu
m od o de a uto n o mia p o lítica, talvez num sentido de a ume nto de produ-
tivida de . Entretanto, con side rando que a grande m aio ria d os p ovos indí-
ge nas vive e m contato com a socie dade brasile ira, p o lítica e econo mica-
m e nte , te ndo ad otado h ábitos exógen os às suas cultu ras que n ecessita m
d e ingresso de be ns e re ndas, po d em-se incluir n esse te rmo as atividades
relacio na das à p rodução d e be ns p ara ve nda, os salá rios, d oaçõe s e re n-
d as adquiridas d e tod os os m od os possíveis - tais com o pla ntio e colhe i-
ta d e p rodutos n ativos p a ra ve nda ( fa rinha d e m a ndioca, abóbo ra , fe ijão,
uruc um, milho na tivo, abacaxi, p e qui, pinhão, pe ixe e ta rta ruga) ; plantio
e colhe ita de p rodutos não na tivos (soja, milho tra nsgê nico, a rroz, m el
d e a b e lh as e u rop e ias e tc .) ; pro dutos a rtesana is ( arcos e fl ech as, cocares,
colares , ce râ mica e m ge ral , b a n cos a ntropo mó rficos d e ma de ira e tc .) ;
a rre nda me nto de te rras - e, p o r fim , ga nhos d e salá rios , seja p o r empre -
gos públicos , contratos com faze nd e iros locais o u o utras m od alidad es .
No p e ríod o colo nia l e m esm o durante o Impé rio, e m a lgumas p a r-
tes do Bras il , a m ão d e obra indígena foi disputad a por colo nizad o res
e missio n ários , os prime iros p a ra as tare fa s de d e rrubad as d e matas,
fabricação de carvão , ce staria simple s, vasos d e ce râmica p ara conte r
o m e laço e produzir os "p ães de açúcar", pla ntio e colhe ita de tab aco,
colhe ita de p rodutos s ilvestres, se rviço do m éstico e , sobre tudo , p escaria
p a ra a lime ntar a escrava ria e tc . Com os missio n á rios, o se rv iço indíge n a
P OJ.fTJC A S INDIGENJSTAS 119

abrangia todas as tarefas de roça, lida com gado, fabrico de rapadura,


caça, p esca, na colhe ita e defumação da e rva-mate etc. Nesse tempo,
o tra ba lho indígen a era de o rdem servil, executado como obrigação
social - como a corveia feudal - , em troca da paz e da aceitação das
alde ias, o u de algum ganho. É de lembrar que, p o r um século e me io
(entre 1614 e 1759), n o Maranhão e G rão-Pará, o se rviço indíge n a foi
obrigatório, por conscrição o u arregimentação fe ita por inte rmediários
(os modernos "gatos") que ia m às aldeias de administração e mesmo às
alde ias de missionários para contrata r grupos de índios para jornadas de
dois a seis meses de traba lho nas fazendas e com pagamentos de duas
peças de pano e um machado por dois meses de serviço! Muitas a lde ias
indígenas localizavam-se próximas aos e nge nhos e fazendas de tabaco
precisamente para estar à disposição dos serv iços mais pesados , como
derrubadas, por salá rios irrisó rios, sem qualquer garantia de alimentação
(ficava por conta e risco dos trabalhadores e suas famílias), e nquanto os
escravos n egros se dedicavam às ta refas inte nsas que precisavam de um
feito r para vigiá -los, dentro dos e nge nh os. Na minha visão, a desaver-
go nhada tradição brasileira de baixos salários se deve me nos à escravi-
dão do que ao modo como os índios e ram pagos. 37 A a titude brasileira
classista é derivada desse re lacionamento parafeudal implantado com a
população indígena brasileira.
As econ o mias indígenas agrícolas tradic io na is produzem a lgum ex-
cedente, porém não ma is que o suficiente para garantir o plantio do
ano seguinte e uma sobra para eventualidades . Seu m odo de produção
e nvolv ia quase todos os membros de uma família e, frequente m e nte, a
ajuda de parentes ou de grupos cole tivos . Os produtos colhidos eram
divididos e ntre famílias , d e acordo com suas necessidades, n ão se faze n-
do uso de excedentes com o mais-valia . Um a família d e cinco a sete p es-
soas, que con stituía a média de fam ílias indígen as tradicionais, contava
com a mão de obra de ao menos quatro membros. Assim, uma pessoa
e m idade d e trabalho a lime ntava duas o utras, e todos que podiam tra-
balhava m para o b em comum. A caça , a pesca e a cole ta completavam
o tempo gasto no trabalho de sobrevivên cia física. Boa parte do tempo
de sobra era gasto em ati vidades que fo rtaleciam a centralidade cultural.
Com o advento do machado de fe rro e outras fe rra me n tas, o serviço fi-
cou mais fácil e lige iro, m ovime ntos de gue rra e/ ou visitas e ntre a lde ias
a ume nta ram, e os jovens fora m liberados para o utras ati vidades . Po rém,
com o advento da dependência de bens exógenos, veio a n ecessidade
de produzir m ais, de se obter b e ns para serem trocados . Assim, o m odo de
produção indígena foi desafiado a produzir excedentes com a inte nsida-
120 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.

de e e m quantidade nunca da ntes produzidos. Para a ume ntar a produ-


tividade, era preciso a ltera r o modo de produção por via de mudanças
n as re lações de produção, cria ndo desigualdades sociais. Daí a resis -
tência ine rme mais efica z das sociedades indígenas ao trabalho extra.
Os missionários, fazendeiros e vis itantes que observaram os índios
e m suas a lde ias viam as dificuldades dos índios para aumentar s ua pro-
dutividade. N a fo rmulação de políticas indigenistas, do Impé rio em dian-
te , e com os positivistas, a ideia sempre foi de inserir n ovos insumos,
fe rrame ntas e tecnologias a fim de que os índios pudessem produzir
excedentes para venda o u troca e , de certa forma , se tornarem indepen-
dentes economicamente.
O SPJ e a Funai tentaram de muitos modos melhorar a produtividade
das econ omias indíge n as. Equivale ntes políticas continuam até hoje , e
os índios seguem procurando meios para que suas econ omias produ-
zam mais. Não se pode dizer que todas as tentativas te nham sido em
vão , mas os esforços despendidos de parte a parte não correspondem
aos resultados obtidos. Há de se e n contrar m e lho res meios para a ume n-
tar a produção e a produtividade das econ omias indígen as sem que se
esgarcem demasiado as re lações inte rnas de produção e resultem em
desigualdades sociais. Pelo menos é como pensam as pessoas que se
debruçam sobre esse tema, e como os índios procuram ver o seu futuro.
Enqua nto isso , as a lde ias indíge nas ma is bem aquinhoadas econo mi-
came nte d e p e nde m d e investime ntos exte rnos para mante r certo padrão
d e consum o . A varie dade de e tnoeconomias é bastante grande . Há as
e tnoecon omias que produzem ben s silvestres, como ó leo de castanha ,
copaíba , a ndi roba , mel , juncos e c ipós , a judadas por projetos da Funai
ou d e ONG S, que conseguem re sultados me díoc re s , poré m consiste ntes .
Há aque las que ve nde m o u faze m vista grossa para a ve nda d e made ira ,
sempre disfarçadamente , obte ndo dinheiro grosso, porém irregula rme n-
te; h á os a rre ndamentos de terras para agricu ltores vizinhos , com estabi-
lidade e provocando de sigu aldade s soc ia is , já que só as lide ranças m a is
e spe rtas alegam controle familiar sobre de te rminada á re a . Há parcerias
com fazendeiros , n as quais os índios provêm a te rra e seu trabalho , e
os fazendeiros os insumos e maquinário , sendo a safra dividida em pro-
porçõe s previame nte ace itadas ; h á garimpagem d e ouro fe ita por índios
e mais freque ntem e nte por não índios, com muita torração d e dinhe iro
e s urtos de vio lê n cia . H á , e nfim, d ivide ndos e compensações obtidos
de vá rias fo ntes por a lg um tipo de serviço a que as terras indígen as
se p restam: e stradas , rodovias loca is ou fe de ra is , ramais de rodovias e
e stradas d e fe rro c ruzando as te rras, linhõ es ou e stações d e transmissão
p O 1. f TI C A S I N D I G EN IS TAS 121

e létrica , hidre lé tricas p eque nas e grandes que impactam sua s te rras , e
até e mpresas e ONGS estrange iras que fornecem recursos visando a a l-
gum be ne fício e m troca, seja o conhecime nto etno bio lógico o u até a
garantia de que não d e rrube m sua s ma tas!
Recompe nsas p o r serviços ambie ntais, como preserva r a flo resta,
os rios e d em a is recursos n aturais, tê m se to rnado um me io b astante
atrae nte para d ete rmina dos povos indíge n as da Amazô nia, o u certas
lide ra nça s, se inserirem e m um novo m e rcad o econô mico . Contratos
d e carbon swap, o u "troca d e carbo n o", tê m atra ído muitas a lde ias o u
até s imple s famílias indígen as . O s índios prome te m pre se rva r a flo re sta
p o r uma d ete rminad a qua ntia fixa , pa ga a nu alme nte . Em compe n sação
as e mpresas o u ONGs que consegue m tais acordos ve nde m a e mpresas
e urope ia s e ame ricanas uma e spécie de licen ça para e las e mitire m mais
uma d e te rminad a qua ntidad e d e co 2 , a qual, n o ca so, é compe n sada
p ela preservação de equivale nte á rea de flo resta que em tese ab sorve o
e qui vale nte d e ca2 e mitido . Pa rece até uma coisa s imples e le gal: ga nhar
dinhe iro sem faze r na da, ap e n as preserva r suas ma tas! Po ré m , há dúv i-
d as ética s sobre esse tipo d e n egócio e a té agora o Brasil n ão se d e finiu
se o ace ita com o tal o u não . Assim, tod os o s acordos re aliza dos até o
m om e nto carre gam um quê d e ilegal e indefinido .
Em s uma , o d esenvolvime nto etnoecon ômico dos p ovos indígen as
constitui o g rande desafi o de qualqu e r p o lítica indige nista decente n o
Brasil. Descobrir as "vocações", as te ndê n cias inte rnas das e tnoeco-
n omias, exp e rime nta r, con ecta r a Embrapa e o utras instituições econ ô-
micas brasile iras com essas econo mias é funda me nta l p a ra que as so-
c ie d ad es ind íge nas p ossam e n contra r seu s caminhos d e a u tono mia
econô mica, n ão uma ilusória a utossuficiê nc ia, base p a ra su a econ omia
p o líti co-c ultura l.

O reconhecim.ento da capacidade política do índio

O p ate rnalism o é atitude e re lacio na me nto p olíticos pró prios d e uma


visão filosófica e m q ue o índio é cons ide rado uma c ria nça, um se r pri-
mitivo, e o seu estatuto jurídico é o de um me no r de idade . É també m
fruto de um sentime nto d e que os índios estava m conde na dos à extin-
ção, ao desap a recime nto da face d a te rra ( o u , na m e lho r das hipó teses,
ao seu "embranquecime nto ", à su a miscige n ação física e c ultural com a
socied ad e global) . Seria, p o rtanto, um contrasse nso c riticar o SPI e m es-
m o a Funa i po r te re m s ido p a te rna listas com e les . Até agora . Po ré m , os
índios de mo n stram uma cap acida de d e recupe ração d e mográfica n os
122 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.

últimos anos que nos força a reavalia r essa realidade social supostamen-
te inexorável. Não vão se acabar, não tê m de d esaparecer como povos
da terra; portanto, não h á por que tratá-los piedosamente como filhos
bastardos portadores de doenças mo1tíferas.
Igualmente, a s ua propalada limitação de adaptação ao mundo mo-
derno, por se rem vistos como "sociedades primitivas", não pode ser um
fato cultural inato, como bem vêm demonstrando as pesquisas antro-
p ológicas há mais de 100 anos, mas uma inte rpretação política de uma
c ivilização que te m a s i mesma como padrão e destino para todas as
c ulturas e civilizações que já existiram no mundo. A teo ria da evolução
deu-lhe um fundame nto científico que ela ostenta e desfralda arrogante-
mente, passando p o r cima inclusive de o utras grandes civilizações, com o
a indiana e a c hinesa. Po ré m , não se pode deixar de no tar que essa ban-
deira está um tanto quanto desb otada , e que p ara buscar novo brilho
ela tem de se abrir para a contribuição de o utras c ulturas e de o utras
c ivilizações. Dessa forma, é possível que as culturas indígenas venham
a ser e ncaradas como viáveis sob todos os pontos de vista , sem a con-
descendência de serem reduzidas a c ulturas singulares e incompa ráveis,
e m que o relativ ismo c ultural da a ntropo logia lhes con cede atualmente.
Enfim, h á sinais filosóficos e políticos, bem como novas condições
o bjetivas, p ara se imagina r que o pate rnalism o, seja por quais s ubte rfú-
gios se apresente, se acabe tanto de fato como de direito. Aí podere m os
p e n sar seria me nte na c riação de uma nova política ind ige nista que abra
caminho para a sobrevivên cia cultura l e a coexistên cia resp e itosa com
os índios. O que vivem os h o je representa a crise do paternalismo, por
um lado, e a c rise da libe rtação, por o utro, conc retizadas p e lo c resci-
m e nto de mográfico indígena e por sua busca d e participação p o lítica .
Mesm o as fo rças a nti-indígenas sabem que n ão pode m ma is tratar os ín-
dios como c ria nças, embora a inda procurem e n gan á-los . Nós , sociedade
c ivil , indigenistas e a ntropólogos, reconhecem os nosso limitado poder
para direcio na r os rumos d essa possíve l n ova política . Mas devem os
sempre te ntar, m esmo porque o mundo muda por o utras razões .

NOVAS POLÍTICAS PARA NOVOS TEMPOS

O princ ipa l mo tivo para a grande mudança na atitude d e brasile iros


em re lação aos índios e nas p o líticas indigenistas se deve ao crescime nto
demográfico dos povos indígenas . Essa reviravolta na histó ria brasileira -
e, por que não dize r, na história mundial - fo rçou o Brasil e outros Esta-
p O 1. f TI C AS I N D I G EN IS TAS 123

dos-Nações a o lha r os índios de um modo diferente. Por s ua vez, estes


passaram a se compottar com uma a ltive z só experimentada nos primei-
ros séculos da colo nização. Neste capítulo, foi apresentado e discutido o
conjunto de medidas o fi ciais e laboradas e praticadas sobre os índios ao
lo ngo de c inco séculos de controle militar, político, socia l e jurídico. Isto
que se constitui a política indigenista brasileira configura o que muitos
ch amam de sistema colonialista. O Brasil foi colonizado sobre os índios
e à c usta deles, e sob tantos aspectos continua a manter um padrão de
re lac io na me nto de colo nia lism o inte rno. 38 Os índios são vistos com o so-
c iedades dependentes, como se a inda fossem considerados, se não juri-
dicamente, ao menos n a prática política, "re lativamente capa zes", como
c ulturas folclóricas e limitadas e como sociedades p o líticas inviáveis.
Dentro da maneira de viver e pensar do sistema ocide ntal trans-
plantado às Américas, não há por que se imagin a r que pudesse vir a
ser diferente. O estilo de cada um dos novos países american os va riou
de acordo com as c irc unstãncias histó ricas de s uas formações, princi-
palmente em razão do tipo e nível socioeconômico dos povos indíge-
n as que habitavam os te rritó rios desses países. Po rém, nunca ne nhum
desses novos países deixou de tratar os índios como infe rio res, se não
individualme nte, socialmente.
Se for para se fazer alguma coisa realme nte séria n o Brasil a respeito
da integração dos índios, com a preservação de suas culturas e uma
medida profunda de a uto n omia político-cultural, h á de se te r como h o -
rizo nte estratégico o nivelamento por c ima - n ão por baixo - dos índios
e das culturas indíge nas dentro da n ação brasile ira.
No Brasil, onde a grande ma ioria dos povos indíge nas vivia culturas
a licerçadas em um modo de produção caracterizado pela caça, pesca,
coleta e uma agric ultura de roça, movido pela derrubada e queimada de
matas virge ns ou capoeiras, e um sistema social de aldeias autônom os
indife re nciadas , que de te rminavam um alto grau d e ana rquia política
e libe rdades individuas, o peso do colo nia lismo foi de uma v irulê n c ia
tamanha, muito além do n ecessário para se alca n çar os meios objetivos
de controle político e te rritorial. A escravidão atingiu muitas populações
indíge nas de fo rmas explícitas e de modos disfarçados , junto com uma
forma mais flexível e menos virule nta de servidão. Somente em escala
muito m e nor existiu a libe rdade individua l e social - e, nesses casos,
quase sempre de pois do processo d e miscige nação acontecido. Pratica-
mente , para ser livre e autôn omo, um povo indígena tinha de v iver fora,
ou, n a melhor das hipóteses, à margem do s istema colo nia l.
A única variação de ntro desse sistema foi te ntada p elas missões re li-
giosas , princ ipa lme nte a dos jesuítas. Estes prete n d iam que os índios se
124 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.

tra nsformasse m e m c ristãos, ta l com o os b árbaros germâ nicos e eslavos


e o utros que haviam se cristia nizado no p assado e u ro pe u , via c iv ilização
ro ma no -cristã . Com as missões e re duções relig iosas, os jesuítas p rocura -
vam frear um p o uco o ímpe to d estruti vo da colo nização, p rotegendo os
índios do fu ro r po rtugu ês e luso-brasile iro. Em contrap a rtida, os jesuí-
tas te nta ra m , na prática p o lítica, estabelecer uma mo d alida de colo nial
dife re nte através de um m od o de p rodução que se p od e ria chamar d e
semife udal, e m que os índios vivia m e m comunida des o rganizadas e
re gidas p o r miss io ná rios, sob a é gide de uma a uto ridad e com po d e r
real e simbó lico, cuja força de p rodu ção e ra a rregime ntada e m linhas d e
tra ba lho cole tivo e p o r o fíc ios .
Indubitavelme nte, as p e rseguições que sofre ram os jesuítas n os úl-
timos a n os d e sua presença n o Bras il , sua expulsão e m 1759, a trágica
d estruição das Missões d os Sete Povos, n o Sul do p a ís, e a transforma -
ção dos o utros a ldeam e ntos missio ná rios e m vilas luso-b rasile iras são
exemplos d e m o n strativos d a taca nhe z do colo nia lism o p o rtuguês e d e
su a insegura n ça inte rna e exte rna .
O reconhecime nto da soberania dos p ovos ind ígenas e do seu d ire ito
n atural sobre s uas te rras e seus mo dos de vida fo i explic itado dive rsas
vezes e m ca rtas régias e a lvarás, e atestam uma preocupação jurídica e
legalista d a Coroa p o 1tuguesa - desc ulpas filosóficas e mo ra is da con-
q uista - ; p o rém , n ão tiveram um significado p rático e adm inistrativo
de p eso . Não som e nte po rque e m ge ra l esses pro nunc ia me ntos reais
vinha m a pro p ósito de a lguma admoestação esp ecífica a um governad o r
o u capitão-gene ra l sobre um p ovo indígen a desig n ado, como també m
n ão e ram o rde n s p a ra sere m cumpridas com e mpenh o e exatidão . Por
certo, rara m e nte o fora m. De q ua lque r m o do, é a partir do es pírito
desses instrume ntos legais que p odemos h o je a legar o reconhecime nto
histórico dos d ire itos indígenas sobre as te rras q u e ocupavam , p or p a rte
dos p o rtu gueses e, e m decorrê nc ia, por n ecessidade da constituição do
Estado brasile iro .
Não obsta nte o padrão colo nialista e o ra nço indisfarçad o de con-
servado rism o n o se u aspecto o nto lógico, a p o lítica ind ige nista sofre u
muda n ças reconhecíveis a pa1t ir da Indep e ndê nc ia do Brasil. O índ io,
visto com o o o p osto do ser ocidental-brasile iro, e seu infe rio r - com o
n egá-lo - , com eçou le n ta mente a ser a p roximado a um ideal d e huma -
nidade - prime iro como um pote n cial c ristão, depois como um ó rfão,
um tute lad o - , como se fosse uma esp écie de filh o b asta rdo de um p a i
a n gustiado e c ul poso . Cre io se r este o sentime nto histó rico-psicológico
m ais e n ra izado n a n acio na lidade brasile ira e m re lação ao ín d io que so-
b rev ive u ao esbulho p rogra mado de suas te rras .
p O 1. fTI CAS I N D I G E N I S T A S l 2)

No pla n o p o lítico, o índio foi se transformando n o o bje to da ação


mitigad o ra do Estado, que p assava a acio n ar fo rmas d e re p a ração p e las
p e rdas que h aviam sofrido . Essa é a tô nica que reconhecemos d esd e a
Regê n cia , passando pe la segunda m e tade d o Impé rio e to d o o p e ríod o
re publicano, sempre com variações te mpo rá ria s de ma io r o u m e no r es-
forço e sen so de resp o nsabilidad e na administração das p o líticas e fe tivas .

Recepção na aldeia Kassawa. Terra Indígena Mapuera, Pará.

A Le i d as T e rras, d e 1850, m a is d o que qua lque r o utra desde o D ire -


tó rio de Po mba l, exp ôs e p rovocou a usurpação de cente nas de á reas
de aldeame ntos ind íge n as que fa zia m patte do siste m a socioecon ômico
b rasile iro - muitos, certam e nte, com p opulações estáveis o u e m cresci-
m e nto . A ma io ria d esmiling uiu-se e os seus h abitantes passaram a vive r
como cab o clos e lavrado res sem-te rra. Rapidame nte, p e rderam s uas ca-
racte rísticas a nte rio res, só lhes resta ndo uma me m ó ria d ifusa e mito lógi-
ca . Mas alguns desses a ntigos aldeam e ntos con seguira m sobreviver até
os tempos a tua is, o que d e mo nstra que muitos m a is p o de ria m també m ,
n ão fosse a indife re n ça d as a uto rida des e o seu a linha m e nto ideológico
e econô mico com as e lites regio n ais e locais .
Nos últimos 50 anos, alé m d as duas con stituições (d e 1969 e 1988),
que reafirmara m os dire itos indígenas d e se ma nte re m com o socie d ad es
esp ecífi cas e d e de fe nde r seus pa trimô nios, e a lé m d o Estatuto d o Índio
126 0 S IN DIO S E O B R A S 1 1.

e n o rmas de le de rivadas, uma série de decretos, p o rtarias e de te rmina -


ções com caráte r legal fora m e mitidos, o u am eaçados de sere m emitidos,
com consequê nc ias d iversas .
A prime ira d e las fo i a te ntati va d e e ma nc ipar os índios d a tute la esta -
tal , no fim d o governo Geisel, e ntre 1977 e 1979, que naque le m o m e nto
p od e ria te r resultado numa s ituação d e ime nsas pe rdas te rrito riais e c ul-
tu ra is . A inte n ção e ra essa, con fo rme p od e se d e preende r d a asserção d o
preside nte Ernesto Geisel, segundo a qual, se e le, que e ra d escende nte d e
prime ira ge ração d e estra n geiros n o Bras il (ale m ães, p o r s uposto), havia
se to rna do um completo cidadão p olítico e cultural d o Brasil , p o r que os
índios a inda h averiam de m a nte r uma ide ntida de pró pria?! Ema nc ipá-los
numa cane tad a seria a solução p a ra essa te imosia! Ironicame nte, p o ré m ,
p assad os ma is de 30 a n os, o te mpo viro u , e h o je não se r ma is tute lad o
pelo Estado é o que índ ios ma is que re m , ce1tame nte é o que as ONGS e
o Ministé rio Púb lico ma is a lmejam e con side ram ma is impo rtante para a
con solidação da a uto no mia d os p ovos indíge nas n o Bras il. O movime n-
to ind ígen a, coma nda do e m g rande m edida p o r índios que vivem nas
cidades, també m que r o fim da tute la, contanto que seja ma ntida uma
p roteção especial d a p a rte do Estado sobre s uas te rras, suas condições d e
saúde e s ua e ducação . A Con stituição Fe de ral ma nté m di versos a rtigos
que caracte riza m um olhar esp ecífico pa ra com os p ovos indígenas, a
exemplo d a exigênc ia p a ra que seja m con sultados e compartilhe m d os
resultados das lavras e m casos de e mpreendime ntos hídricos o u minerais
que a fete m seus te rritó rios . Po rtanto, n ão seria contra o esp írito da Cons -
tituição, n em da tradição brasile ira , re conhe ce r aos índ ios e spec ificidades
no modo de se rem tratados , a lém d e s e u s d ire itos e de ve re s como cida-
dãos . A questão seria com o a rra nja r um disp ositivo jurídico que ti vesse a
mesma fo rça p e rs uasória d a velha tute la , sobre tudo nas te rríveis disputas
inte ré tnicas e nas d ec isões judic ia is p elos inte riores do Brasil.
O p ositivismo , co mo filosofia e movime nto político , n ão con seg uiu
faze r o Estad o brasile iro reconhecer os p ovos indígen as como n ações
livres e soberanas , p o ré m legou-lh e uma tradição d e resp e ito à p essoa
do ín d io , de reco nhecime nto d e su as soc ie dade s e e tnias com o p arte da
histó ria brasile ira e de de d ica ção e amo r à ca u sa dos índios . Isso fo i, d e
certa fo rma , ma is d o que o p e nsame nto liberal, através da a ntrop o logia ,
q ue que ria tão some nte "co nhecer o ín d io ", le gou de efetivo p ara os ín-
d ios . Mas e ssa tradiç ão s em p re e ste ve suje ita aos ca pric h os p e ssoais d e
p o líticos e milita res e a tre lada e subordinad a a p o líticas tempo rá rias d e
d esen volvime nto econ ô mico e m regiões pre do mina nte me nte ind ígen as .
Daí é que n ão se p ode concluir com muita co nvicção p ela efe tiva ção e
e fe tivida de p e rma n e ntes d a nossa tradição indigenista o fic ia l.
p O 1. fTI CAS I N D I G E N I S T A S 127

O regime militar ditatorial, a despeito das tentativas de desestabilizar


essa tradição, n ão logro u apagar as especificidades dos índios, transfor-
má-los em brasileiros indife renciados no período de vinte a n os, a partir
de 1976, como e ntão propunha o presidente Geisel e um seu ministro
do Inte rio r. Pe lo contrá rio, teve de constatar n ão somente a c urva as-
cende nte da demografia indíge na, como supo rtar e e ngo lir o seu con-
comitante alvorecer político n o cen á rio nacional. Um g rupo de jovens
indígenas criou a União N acio nal dos Índios, em 198 1, a partir de onde
inicio u institucio nalme nte o movime nto indíge na conte mpo râ n eo. Na
s ua esteira , um índio de caráte r excepcio na l, Má rio Juruna , despontou
n o panorama político-cultural brasileiro como uma voz do mais recôndi-
to do ser brasileiro: foi h o n o rificado com sua eleição a deputado federal
e m 1982, pelo estado do Rio de J a ne iro, e por muitas vezes fez ecoa r
pelos rincões do país , a p a rtir do Congresso Nacional, as evidê n cias de
violê ncias cometidas ao seu povo , bem como a n ecessidade premente
de se mudar as atitudes para com os índios.
Em diversas ocas iões, a Funa i militarizada e a serv iço das p o líticas
de desenvolvimento foi ob rigada a acochambrar inte resses econ ômicos,
acata r o rde ns de transferir grupos indígenas de um lado para o utro, di-
minuir delimitações de te rras indígenas e fazer vista grossa às entradas
de invaso res de te rras, madeireiros e garimpeiros, que delas tiraram
muito prove ito. Po r vezes, o governo fez modificar por simples decretos
ou portarias as normas e o rganogramas qu e d isciplinavam a política in-
dige nista, subord inando a Funa i a órgãos fo ra do Ministério do Interio r -
desde 1989 sob a administração do Ministério daJustiça - , re ti ra ndo-lhe
s ua auto n omia administrativa, de fundação de direito público, e castran-
do-a da sua ma io r fo rça política (qu e é a prerrogativa de de finir, por
estudos a ntropológicos, o que é uma á rea indígena e como d em a rcá-la) .
Por fim, colocou a Funa i nas mãos de políticos ou potenciais políticos
que p ouco ou n ada se inte ressavam p e lo destino dos índios e seus di-
re itos e, assim, agiram com ma is desen voltura e m ben efíc io dos inte res-
ses a nti-indígen as . O es pírito rondo nia n o definitiva me nte esteve ausente
em muitos momentos da p o lítica indigenista brasile ira.
Contudo, os debates que ocorreram n a Assembleia Nacio na l Consti-
tuinte, num mo me nto empolga nte de pattic ipação d e simpa tiza ntes da
causa indíge na e dos pró prios índios , ind ividualme nte ou em coletivos,
resultaram na fo rmulação de uma visão re n ovadora do valor dos índios
no panorama político-cultural bras ile iro . O a rtigo 231, como já visto, n ão
che ga a ter a radicalidade da proposta positivista e nviada à Asse mble ia
Constituc ional de 1890, pela qual as te rras indígenas deveriam ser consi-
128 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.

deradas "estados a me ricanos do Bras il", p o ré m explic ito u a valo rização


da continuida de das culturas e sociedades indíge nas, e mbora a inda não
con side radas como "povos". De uma perspectiva a ntropo lógica, o Esta-
tuto do Índio não deixa a desejar e m relação a esse artigo con stituc io nal,
não obstante a insistê nc ia com que vem sendo c riticado pelas ONGS indi-
genistas. Po r sua vez , a grande novidade da Constituição Federal de 1988
está contida no seu a1tigo 232, pelo qual o Ministério Público Federal
ganha a pre rrogativa de defender o índio juridicamente. E , sem dúvida,
desde e ntão o MPF te m exerc ido um papel preponderante e m muitas de-
cisões sobre demarcação de te rras indíge nas, na defesa de índios e m tri-
bunais e em negociações com e mpresas sobre comp e nsações. Às vezes,
o MPF até exorbita de sua prerrogativa de inte rvir n a questão indíge n a ao
e mitir p a receres e admoestações, ao forçar Te rmos de Ajustamento de
Conduta (TAc) ã Funa i, os quais dificilme nte e la é capaz de cumprir. A
Constituição manteve os índios como responsabilidade da União federal,
especialme nte do Executivo, através de um ó rgão de assistê n cia, que
continua a ser a própria Funai. Desde e ntão, muito te m s ido discutido so-
bre qual seria o papel do Executi vo na p o lítica indíge na brasile ira, e que
o utras instituições deveriam comple me ntar os trabalhos da Funa i. Algu-
mas ONGS se notabilizaram pela c rítica à Funai e já suge riram aos últimos
governos a sua extinção, especia lme nte a nulificação dos seus propósitos
de representação dos inte resses indíge nas perante o Estado, a assistência
direta aos índios e a m ediação das relações indíge nas com a socie dade
mais ampla , n os seus aspectos jurídico, econ ômico, p o lítico o u socia l.
Que tal s ubstituir a Funai por uma espécie de agênc ia reguladora, que
cria as no rmas de re lacio na mento do Estado p ara com os índios e depois
aloca recursos p ara as ONG S o u as próprias igrejas aplicá-los com o be m
conv ie r a todos os inte ressados' O Estado , através dos governos ele itos e
seus cons ulto res e políticos, recusa-se a aceitar tal sugestão, sabedor que
é das consequê n cias imine ntes, de conflitos que pipocariam p o r toda a
pa1te, inevitavelm e nte . O Estado , o Executivo esp ecificame nte, sabe que
ele continua imprescindível no e quacio n am e nto da questão indíge na .
A recíp roca também é verdadeira : os índios sabem que se o Estado os
aba ndo nar, eles te rão muito a perder. As ONGS sabem ne m ta nto . A ques-
tão ma ior é : como administrar be m a questão indígen a, pressupondo que
se sabe para onde ela vai no panorama político-cultural brasile ira'
Um impo rtante instrumento jurídico que veio valo riza r os índios so-
bremaneira foi a c h a m ada "Co n venção 169, sobre p ovos indígenas e
tribais em paíse s inde p e nde nte s ", d ecretada p ela OIT e m 1989 . É um
conjunto d e n o rmas que, quando adotadas p e los Estados , d eve vale r
p O 1. fTI CAS I N D I G E N I S T A S 129

com força de le i. O Brasil aprovou essa Conve nção e m 2004, porém até
agora m e nos de trinta países a aprovaram efe ti va me nte - n ão assinaram,
e m especia l, os Estados Unidos, Can adá, Austrália e N ova Zelâ ndia. A
principal inovação dessa lei e m re lação ao Estatuto do Índio brasileiro é
a a firmação, n o seu artigo 6Q, parte 1 , seção a, de que cabe aos governos

Consultar os povos [indígenas] interessados, media nte procedimentos


apropriados e, particularmente, através de suas instituições rep rese ntati-
vas, cada vez que sejam previstas medidas legisla tivas o u a dministrativas
suscetíveis de afetá-los direta me nte.

A parte 2 do mesmo a rtigo dispõe que "As cons ultas realizadas na


aplicação dessa Conve n ção deverão ser efetuadas com boa-fé e de ma-
n e ira apropriada às c irc unstân cias, com o obje ti vo de se chega r a um
acordo e con seguir o con sentime nto acerca das m edidas propostas".
Com e fe ito, estão e m cau sa todas as grandes disputas a tuais a resp e i-
to da impla ntação de projetos hidre létricos, estradas o u fe rrovias, linhas
de tra n smissão e létrica etc., que a fe ta m te rras indígenas, e m fun ção da
má, inadequada o u incompleta aplicação desse artigo. Não digo de todo
p o r m á-fé das a uto ridades e dos inte ressados, mas também p e la falta
de um parâmetro claro sobre o que cons iste uma consulta a um povo
indígena, que instituição o representa ve rdadeirame nte e qual o nível
de persuasão que possa ou deva ser exerc ido para que um determina-
do p ovo se con ven ça dos bons propósitos de um projeto econ ômico,
c h egue a um acordo de repa rações ou compe nsações e, p o rta nto, dê
seu consentime nto para a implantação d este certo proje to. Tudo isso de
boa-fé! O utro a rtigo muito propalado da Convenção 169 diz resp e ito à
questão da ide ntidade indíge n a, logo n o seu a tt. l Q. Após d efinir a que m
se aplica a re fe rida Con ven ção - quais sejam, aos povos indígen as ou tri-
bais que vivem e m países independe ntes, o u o riundas de processos co-
lo nia listas, c ujas c ulturas lhes são diferentes-, o § 2 diz que "a consciê n-
c ia de sua ide ntidade indíge na ou tribal d everá ser con side rada com o
c rité rio fundam e ntal para de te rminar os grupos aos q u e se aplicam as
disposições da presente Con venção" .
Com isso, muitas comunidades caboclas o u ribeirinhas que e ntraram
e m processo de e tnogênese, apresentando p oucas caracte rísticas indí-
ge nas , fo ram aceitas ofic ialme nte como indíge nas , te ndo-se ale gado que
tâo somente a con sciê n c ia de s ua ide ntidade já vale ria com o c rité rio de
sua ide ntidade . Fundame ntal virara exclusivo . Tal conside ração parece
e ntrar e m conflito com o que re za no Estatuto do Índio, a rt. 3Q, segundo
o qual a identidade indíge n a está relacio nada não some nte à autoafir-
130 0 S I N D I O S E O B R A S 1 1.

mação de um indivíduo e da comunidade a qual pertença, mas também


do reconhecime nto d e sua ascendência cultu ral pré-colo mbiana , bem
como do reconhecime nto de te rce iros que vejam aquela comunidade
como diferenciada e especificamente como indígen a. Essa disputa se
d esenrola e m vá rias p artes do Brasil, não em razão d a o pinião de antro-
pólogos o u indige nistas o u advogados simpatiza ntes da cau sa indíge na,
mas devido à visão legalista de juízes de tribuna is que são chamados a
dirimir disputas e ntre tais comunidades e inte resses econô micos incrus-
tados nas te rras que se alegam ser indígenas .
O utro gra nde instrumento que a lavancou o status dos índios com o
indivíduos e com o p ovos esp ecíficos p e ra nte o mundo foi a promu l-
gação pela Assemble ia Geral d a oNU, e m 13 de setembro de 2007, da
Declaração Universal dos D ire itos dos Povos Indígenas. Durante mais
d e 12 a n os, re presentantes diplo máticos de muitos p a íses, re presen-
tantes indíge n as de p ovos que vivem nesses países, bem como seus
conselhe iros e m geral filiados a ONGs, de bateram na ONU e n o Comitê
d e Direitos Humanos o Rascunho dessa Declaração sem que os Estados
c h egassem a um acordo sobre alguns dos seus p o ntos mais controve1ti-
dos. A ONU reconhece atualme nte a existênc ia de cerca de 350 milhões
de indíge n as que vivem e m 70 países - e, com raras exceções, todos
eles em condições sociais as m a is baixas de seu s resp ectivos países .39
Os princ ipa is te mas de disputa dizia m resp e ito, e m prime iríssimo luga r,
ao d ireito à autodete rminação por parte dos povos indígen as que vivem
e m Estados-Nações, seguido do reconhecime nto de seu s te rritó rios e d e
s uas rique zas inte rnas, e ao ressarcime nto o u compensação por perdas
sofridas e m todas as a re nas, esp ecialme nte te rrito rial, política , c ultural,
re ligiosa e tc . O art. 3º daquela D eclaração reza: "Os p ovos indígenas
tê m o dire ito à a utodeterminação . Em virtude desse dire ito e les li vre -
m e nte de te rmina m seu estatuto p o lítico e livre m e nte buscam seu desen-
volvime nto econ ô mico, socia l e c ultural" .
Nas discussões d ip lo m áticas e ntre lideranças indígenas e os diplo -
m atas d e seu s países, o que estav a em jogo e ra o significado e fe tivo do
dire ito de d ete rminar o estatuto político d e um povo indíge n a de ntro
de um Estado . Se aprovado o a rt. 3º, os povos indíge n as poderia m se
d eclarar inde p e nde ntes, contro la r a e ntrada o u u so d e seu s te rritó rios,
re que re r assento na oNU? Se isso acontecesse, por que, reciprocame n-
te, os países h averia m de te r o ô nu s de lhes prover saúde, e ducação,
m e ios d e comunicação, bem-estar social etc .? Além d esse a rgume nto d e
caráter v ingativo e rancoroso por p a rte dos Estados, havia aque le que
evocava o receio dos Esta dos de sere m desafiados e m s uas integridades
te rrito ria is e s uas sobera nias políticas, com d ivisões p o líticas fo rma is
p O 1. f TI C AS I N D I G EN IS TAS 131

e p ossíveis exclusões d o controle po lítico . Po r e ssas e o utras, p a íses


como Estad os Unidos, Austrália, Can ad á e Nova Ze lândia trab alhavam
afina dos p a ra b a rra r a a ceitação desse artigo, e a ssim o fize ram até o
último m o m e nto . Em abril de 2007, d os 46 p a íses me mb ros na ocasião
d o Comitê d e Dire itos Huma n os, lo go e m seguida e levad o ao nível d e
Con selho de Dire itos Huma n os (cott), 37 votaram a favor d o Rascunho
e com isso o Comissário Ge ra l d os Dire itos Huma nos o levou à votação
na Assemble ia Geral da ONU . Ao fin a l de a lgumas n egociações com os
pa íses a fri can os, e sob a lide rança d e pa íses com o México, No rue ga,
D inam a rca , Áu stria , H olanda e o utros, uma m a io ria d e 143 pa íses afir-
m o u essa glo riosa De cla ração praticame nte com o sentido o rig inal do
seu Rascunho, te ndo 11 ab ste n ções e os votos contrá rios do qua rte to
a nti-indígena .40 Os p ovos indígena s do s distintos p a íses d o mundo p as-
saram , e n tão, a p ossuir dire itos reconhecidos pe la ONU sobre sua dis p o -
sição a se a utod e te rmina r, d e te r su as c ulturas e tra dições resp e itadas,
d e usufruir de seus te rritó rios e s uas rique zas a seu gosto, d e po d e r
n egar u so militar d e p a rte de seu s te rritó rios etc ., e d e re que re r ressar-
c ime ntos sobre danos e p e rdas histó ricos . N o seu a rt. 19, a De claração
re afirma e m p alavras quase idê nticas a Con ve n ção 169, n o qu e concerne
o respeito que os Estados devem te r qua ndo desenvolvere m projetos
que afete m te rras indígenas . Eis como discorre o refe rido a1tigo :

Os Estad os d evem consulta r e coope ra r d e b oa-fé com os p ovos in-


dígen as concernidos a través d e su as instituições re prese nta tivas a fim de
obte r seu consentime nto liv re e previa me nte informa do a ntes d e adotar e
imple me nta r medidas leg isla tivas o u admin istrativas que possam afetá-los .

Ma is um ava nço para os p ovos ind íge nas . Entre ta nto, uma declaração
d a ONU não te m fo rça vinc ula nte, dizem os esp ecia listas d o d ire ito inte r-
n acio n al, e com isso concordam quase todos os p aíses o nde h á povos
e p o pulações indíge nas, com o intuito de acatar tão some nte aque les
p o ntos que cons ide ram n ecessários e suficie ntes p a ra p e rman ecere m n a
lista dos fi é is signatá rios d a tão famosa Declaração Unive rsal d os Dire i-
tos d os Povos Indígen as . Fo i dessa fo rma e com tal espírito que, afina l,
o B rasil assino u essa Declaração, n ão sem a ntes apresentar um voto e m
se p arado n o qual a firmava o resgua rdo à su a soberania sobre as te rras
ind ígenas em seu te rritó rio, ne m sem con sultar os nossos milita res a pro-
p ósito d as implicações desse ato e m re lação a p ossíveis de cla rações d e
sobe ra nias indíge nas sobre as te rras que ocupam , sobretudo em regiões
d e faixa d e fro nte ira .
O receio d o Bras il sobre essa Declaração não é g ratuito, fruto a p e n as
de uma p a ra n o ia milita r , p o is é compa ttilhad o p o r vários o utros p a íses .
132 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.

Entretanto, no momento mesmo em que os Estados Unidos, Canadá , Aus-


trália e Nova Zelândia vieram a acatar a Declaração, ficou evidente que
n e nhum Estado tem muito a te me r sobre as disposições ne la contidas.
Os povos indíge nas dos Estados Unidos apresentam um dissenso apenas
como s inal de revolta e pro testo , já que efetivamente e las não constitue m
a m eaças ideológicas o u militares à nação. Po ré m , e m países como China,
Índia, Nova Zelâ ndia, México, Guate mala, Bolívia, Peru, Equador , as p o -
pulações indíge n as somam algo e m to rno de 8% a 50% de suas populações,
continge ntes já expressivos p ara provocar re b e liões mais consiste ntes.
Ao cabo desse processo, a ONU sentiu que precisava se e mpe nhar
m ais para que a Declaração Unive rsal dos Direitos dos Povos Indíge n as
viesse a ser a plicada n os países que detêm p opulações indígen as o u
mino rias é tnicas. Muitos deles ne m p o lítica indige nista de c unho huma -
nista o u ao me nos ass iste n cialista tê m o u tinham a té recente me nte. Para
isso c rio u , dentro do Conselho de Direitos Huma n os, o cargo de Re lato r
para Assuntos Indígenas com o intuito de vigiar a aplicação desses direi-
tos, de nunciar a nível inte rnacio nal as vio lações p o ntua is o u sistemáticas
e suge rir me ios instituc io na is aos p a íses p ara que as populações indí-
genas venham a ser respeitadas conforme a Declaração. É um trabalho
de Sísifo, por estafante e frustrante, pela quantidade de denúncias que
o Re lato r recebe e se sente o briga do a a na lisar e reportar ao coH, e p e lo
descomprometimento crescente dos países s ignatários, na medida e m
que lhes falta a visão humanista e transce nde nte do valo r da continuida -
d e das culturas indíge nas de ntro d e suas socie dades mais amplas.
No Brasil , apesar do respeito conferido à ONU e de seu acata me nto a
pressões exte rnas, a p o lítica indigenista segue os caminhos trilhados n os
últimos anos, com algumas inovações aqui e acolá e o utras reversões
administrativas . Entre as inovações está a realização, em abril d e 2006,
da Confe rê nc ia Nacio n al dos Povos Indígen as, com p a rtic ipação de mais
de 800 lideranças indígen as de 207 das 225 etnias e ntão reconhecidas,
precedida d e uma d ezen a d e confe rê n cias regionais com partic ipação
a inda m ais ampla de índios. A inte n sa m obilização indígen a, a ampli-
tude dos temas debatidos e, ao fina l, a produção de um relató rio p e los
próprios índios p a rec ia m aug urar um novo te mpo de con solidação dos
dire itos indíge n as e d e sua pa1tic ipação sobre questões que lhes dize m
resp e ito . Nesse m esm o ano foi c riada a Comissão Nacional de Política
Indige nista (cNP1), por decreto presidencial , cujos membros indígen as
foram indicados p o r lideran ças indígenas de todo o país durante a re fe-
rida Conferê n c ia . Entretanto, no segundo gove rno do preside nte Lula, a
CNPI se formou com lide ranças indígenas indicadas pelas ONGs indíge n as
134 0 S IN DIO S E O B R A S 1 1.

desarvorados em suas a lde ias à me rcê de impo rtunos de todas as !aias


e invasores potenciais de suas te rras. Alé m dos postos indíge nas, foram
extintas 23 administrações regio na is, localizadas em 6 capitais e tantas
cidades nodais para a administração indige nista - como Recife, Curitiba,
J oão Pessoa, Goiâ nia, Porto Velho, Sào Luís , O iap oque, Pa rintins , São
Félix do Araguaia etc. - , que vinha m func io na ndo com o bases de apoio
assistencia l e político para ajuda r os índios a aguentar as pressões demo-
gráficas e econômicas que estava m surgindo n o seu h o rizonte de relacio -
na me nto inte ré tnico. Uma das mais inesp eradas e esdrúxulas extinções
foi a da Administração Regio na l de Altamira, no estado do Pará, na b e ira
do rio Xingu, que teve também seu s principais quadros indige nistas exo-
ne rados de suas funções, precisamente quando se inic iava a con strução
da descomunal Usina Hidre létrica de Be lo Monte. Crio u-se aí um vazio
indige nista , pela falta de diá logo com os índios locais , o qual foi mal e
porcamente substituído pela chegada de inexperie ntes administradores,
com o rde n s de cima para n egocia r com os índios a aceitação da referida
hidre lé trica. Com e fe ito, ao invés de aproveitar e praticar os ditames da
Conven ção 169 e da Declaração Universal dos Direitos dos Povos Indí-
genas (que h á tão pouco tempo o Brasil se fizera signatário - quanto
à n ecessidade imperiosa de con sultar os índios sobre essa formidável
inte rven ção acerca de suas condições de vida e sobre seus inte resses
de sobrevivência), fez-se n ão mais que um pastiche de cons ulta , contra -
tando-se e mpresas de consultoria, que te rceirizavam ONGS para servir d e
apresentadoras do proje to hidrelé trico e d e inte rme cliado ras. Con sequen-
temente , os conflitos e as insatisfações to rnaram-se permanentes da parte
dos índios , com pro testos cada vez mais intensos - em a lgu n s casos com
o dúbio apoio d e ONGS nac ionais e inte rnacionais, le igas e re ligiosas - ,
e nqua nto a o pinião pública se quedava p e rplexa e com maus pressenti-
mentos sobre a leg itimidade e a racio na lidade daquele empreendime nto .
Reestruturar um ó rgão o fi cia l indige nista para o bem ou para o m al só
precisa de uma d ecisão governam e ntal, um mero d ecre to preside n c ial,
que pode ser reversível. Entretanto, a decisão do sTF teve caráter pre -
mente , e as con sequê n c ias fora m funestas , por ocasião do julgamento
da h o m o logação da Terra Indígen a Raposa Serra do Sol, de muda r dras-
ticame nte os te rmos d e d em a rcação d e uma te rra indíge n a . No Acórdão
profe rido (já me ncionado anterio rme nte), os ministros do sTF de termi-
n aram uma série de ressalvas para acata r a homologação pres ide n c ia l,
ressalvas específicas ao caso e generalizantes para outros casos . As res-
salvas es pecíficas d izem resp e ito: à fo rma do usufruto exclusivo das ri-
quezas naturais, ao compartilhamento dessa te rra com o Ibama - n o que
p O 1. f TI C AS I N D I G E N I S TA S 135

toca ao Parque Nac io na l de Ro raima a li incrustado - , à libe ralização d a


te rra n o caso de con strução d e estradas e linhas de tra n smissão e lé trica,
ao dire ito d as p o lícias c ivis, militares e fe d e ra is e ao p o de r d as fo rças
a rmad as d e p e ne tra r na te rra indíge n a sem con sultar os índios, e ntre
o utros te mas m e no res . A ma io ria d e ssas re ssalvas ate nde u aos re cla m os
das a uto ridades estadua is e da o pinião pública local, que via m os índios
como "privilegiados" e m re lação à exclusividad e d o uso da te rra. J á as
ressalvas ge n e raliza ntes tratam de de te rmina r n ovas regras sobre diver-
sos te mas controve rsos, o u a té já a b a ndo nados n o p assad o . Um d e les
foi a d e finição d o conceito de "ocupação tradicio n a l", prin cipa l alicerce
p a ra se d efinir o que é uma te rra indígena e mo tivo de muitos de bates
e controvérsias e m tribuna is fe de ra is . Para isso, o Acórdão, pela lavra
e inspiração d o ministro Ayres Britto, re la to r d o p rocesso e m qu estão,
d ete rmino u a d ata da p romulgação d a a tua l Con stituição, 5 de o utubro
d e 1988, com o m arco te mpo ral da ocupação indíge na . Se um g rupo o u
uma comunidade indíge n a tiver estado numa d e te rminad a te rra n esse
te mpo , tal te rra p o de ser con side rada ocupa da - p o rtanto, legitima me nte
indígena . Caso fosse e m o utro te mpo (a ntes o u de p o is) , n ão te ria dire ito
m ais sobre ela . Claro e obje tivo . Entreta nto , n essa ressalva coube uma
p eque n a o utra ressalva : se ho uve r â nimo do g rupo indígen a d e vol-
tar à te rra previa m e nte ocupada em o utro te mpo, mas d a qual h avia m
s ido re tirados contra s ua vontade , e ntão, p od e r-se-ia caracte rizar uma
o cupação trad icio n al! Ma is le nha p ara a fogue ira d e de bate s juríd icos .
O utra re ssalva importa nte e partic ula rme nte n ega tiva aos inte resses
d e m a rcató rios, que ressoa a uma dis pos ição jurídica que valera durante
as prime iras três décad as do sr, , reque r a presença d e agentes e re pre -
se ntantes d os municípios e e stados nos grupos d e trabalho da Funa i
e nca rre gados de de finir o que se riam os limite s de uma de te rmina da
te rra indíge n a . Assim, d e m a rcar te rra indígen a sa iu da ó rb ita exclus iva
d o governo fed e ral e p assou a te r a colab oração e a nuê n c ia d os gove r-
n os e stadu a is e municipa is , tal co mo a nte s do Decre to n. 736, de 1936 .
Dada a m á vo ntade histó rica de ssas es fe ras gove rna me ntais n o re lacio -
n ame nto com os povos indígenas , p revê-se com muita p rob a bilidad e
uma ime n sa dific uldad e pa ra se da r p rosseguime nto ao reconhecime nto
d e n ovas te rras indíge n as n o p a ís , e s p ecialme nte n os e stados em fre n é -
tico de se n volvime n to ag rop asto ril. Po r fim, uma re ssalva de te rmino u a
pro ibição de se reve r, com vistas à a mpliação , p o r s uposto, uma te rra
indígena já o fi cia lme nte d e m a rcada , seja p o r que ra zão fo r. Con gelo u-se
a histó ria; o que e stá fe ito , fe ito e stá . Em todos e sse s casos, o s lF ate n-
d e u aos inte re sse s a nti-indíge n as, n ão o bstante as exortaçõe s de bo m-
136 0 S IN D I O S E O B R A S 1 1.

to m e de respeito ao índio da parte de todos os magistrados. Se já era


difícil reconhecer uma determinada te rra como indíge na, por ocupação
permanente o u tradicional, com esse Acórdão ficaram inviabilizados os
processos correntes de demarcação, a não ser uns ou outros que estejam
em áreas remotas e sem demandas de interesses econômicos.
Assim é que, no auge da democracia brasileira, os inte resses indíge -
nas são desafiados por determinações jurídicas provindas da mais alta
corte de justiça do país. O Ministério da Justiça, de s ua parte, encontra-
se a postos para "portariar" essas determinações, mudando o rito pro-
cessual de demarcação estabelecido pelo Decreto 1756, de 1996, já que,
de certo modo, elas atendem aos inte resses mais pre mentes do desen-
volvimento econômico brasileiro. 41
Po de-se até especular que, como se fosse um volta ao passado, es-
sas recentes mudanças na política indigenista brasileira estão e m sin-
to nia com outras mudanças em áreas corre latas - como a proteção do
meio ambiente e a reforma agrária ( quase que escrevia a "localização
de trabalhado res nacio nais"). O mundo muda , mas também dá voltas.
Ninguém pode esperar que a ascensão indíge na n o panorama político-
c ultural brasileiro seja uma curva firmemente ascendente. Só esp eramos
que não seja p o r muito te mpo declinante.

NOTAS

' Ver Georg Friederici, Caráter da descoberta e conquista da América pelos europeus, Rio d e Janeiro ,
Instituto Nacional do Livro, 1967; Antônio Ba ião et ai., História da expansão portuguesa no mundo,
Lisb oa, Editorial Ática, 1939, 3v.
' Ver Charles André J ulie n, Les voyages de découverte et les prem.iers étab/issements xv-xn siécles,
Paris, Presses U niversitaires Fra nça ises, 1948.
3 A B ula Romanus Pontifex e ncontra-se e m Antô nio Baião et ai., op. cit.; a Bula Inter Coetera, e m

Cha rles André J ulien, o p. cit.


4 Apud Mecenas Dou rado, A conversão do gentio, o p . cit., p. 25. Nesse mesmo livro ( p . 26), há a

citação d o trecho de u ma carta do jesuíta Luiz de Grã ao fun dador da Compa nhia de Jesus, Padre
Inácio d e Loyola, em 1553, que diz: "Este gentio, padre, não se converte com lhe dar coisas da
fé, nern corn razões, nen1 con1 palavras de pregação".
s O texto completo dessa carta régia e da maioria das citadas e m seguida pode ser e ncontrado
em Joh n He m ming, Red Cold, o p . cit.; Georg Thomas, A política indigenista dos portugueses no
Brasil, 1500-1640, op. cit.; José Oscar Beozzo, Leis e regimentos das Missões, São Pa ulo, Loyola,
1983; Mathias Kie men , The lndian Polícy of Portugal in Ameríca with specíal reference to the State
of Maranhão, 1500-1 755, Washington, The Catho lic University Press, 1955; Agostinho Perdigão
Ma lhe iro , A escravidão no Brasil, Petró po lis, Vozes, 1976 v. 11; Ca rlos d e Araújo Moreira Neto, '·A
política indigenista brasile ira durante o século XIX", op. cit. A a nálise que se segue, no entanto, é
d e minha intei ra responsabilidade.
6 Ver João Lúcio de Azevedo, Os j esuítas no Grão-Pará , suas missões e colonização, 2. ed. , Coimbra,

Imprensa d a Universidad e , 1930. Sob re o período pombalino ver, e m especia l, Marcos Carneiro
d e Mendonça, A Amazônia na Era Pombalina, Rio d e Ja ne iro, Revista d o Instituto His tó rico e
Geográfico Brasileiro, 1963, 3 v .. Sobre o trabalho dos jesuítas e s uas missões no Brasil, ver Padre
Serafim Le ite, H istória da Companhia de jesus no Brasil, Rio de Ja ne iro, Instituto Nacional d o
Livro, 1938-1950, 12 v.
p O 1. f TI C A S I N D I G E N I S TA S 137

7
Um exemplo bem d ocume ntado des.sas d isputas se e ncontra na p ublicação do Ced eam, com o
título Autos de devassa contra os índios Mura do Rio Madeira e nações do rio Tocantins, 1 738-1 739,
Manaus, U niversidade do Amazonas/iNI., 1986. Versa sobre a proposta dos jesuítas e administradores
o ficiais d e aniquila r os Mura porqu e esta riam ameaçando as fazen das de jesuítas e particulares
na região. Este exemplo se multiplica dura nte todos os séculos XVII e XVIII na Amazônia e, para o
restante cio B rasil, nos séculos XVI e xv11.
8
O papel da mão d e obra indíge na no projeto colonial é freq ue ntemente s ubestimad o pelos his-
toriadores ao alegarem que a escravidão negra foi iniciada logo nos p rimórdios da colonização
d a Bahia e de Pernambuco. Mas a verdade é que, até a chegada d os hola ndeses, es.sa mão de
obra foi imprescindível. Na Amazônia, ela permaneceu importante até o boom da borracha, a
partir de 1870, quando houve maciça imigração d os nord estinos. Como guerreiros, os índios
foram importantes na expulsão dos fra nceses, holandeses, irlandeses e ingleses, estes últimos no
baixo Amazonas. A disputa pe las te rras começou com as doações que o re i, os governadores e
capitães-mores faziam aos portug ueses em territó rios cios índios. A estes eram também "doadas"
terras, sempre em tama nhos menores d o que seus territórios originais.
9 Es.sas disputas constituem u ma parte essencial da história jesuítica e, de certa forma , dão o tom

d a tensão Igreja/ Estado q ue pe rdura em nossos dias.


w Explicitamente, essa carta régia fala q ue os índios são como cria nças órfãs. Tal condição jurídica
é reconfirmada pe la Regência, em 183 1. Na Re pública, através do Código Civil de 19 16, esse
status é ligeiramente modificado para o de menor de idade "relativa me nte capaz", mantendo-se
o princípio da tu tela d o Estado.
11
Ver Carlos de Araújo Moreira Neto , De maioria a minoria, op. cit.; Mércio Pereira Gomes, O índio
na História, op. cit.
12
Sobre as missões jesu íticas, no Paraguai e no Sul cio Brasil, ver Guillermo Furlo ng, S. J, Missiones
J' sus Pueblos Guaranis, Bue nos Aires, Imprenta Balmes, 1962. P. Pablo He rnández, S. J., Mis-
siones dei Paragt.taJ; Organización Social de las Doctrinas Guaranis de la Companhia de Jesus,
Barcelona, G ustavo G ili Editora , 1913.
13 Ver Carlos de Araújo More ira Neto, "Alguns d ados para a histó ria recente cios índios Kaingang",
em Georg Grünb e rg (coorcl.), La Situación dei Indígena en América d ei Sur, op. cit.; e Os índios
e a ordem imperial, op. cit.
14
Por mais q ue te n ha sid o por b oa inte nção, considero u ma interpretação exegética descontextua li-
zada cio p ropósito, cio sentido e d a prática de a história gera I da colonização portuguesa considerar
que a Coroa portuguesa tratava os povos indíge nas como nações sobera nas por ca usa d e uma
o u o utra carta régia que os mencionava da seguinte ma ne ira: "primários senhores de s uas te rras,
sob re as q uais não ten ho ju risdição". Ve r Ma nue la Carne iro da Cunha, Os direitos do índio, São
Paulo, Brasiliense, 1987.
15 Esse cálculo é meu. Há evidê ncia apenas de que havia cerca de 250 mil pessoas no baixo Amazonas
antes da Caba nagem, e a grande maio ria deveria ser índio, isto é, Ta puio. Ver Ca rlos de Araú jo
Moreira Neto, De maioria a minoria, o p . cit. ; Perdigão Malhe iro, A escravidão no Brasil, op. cit. ,
p. 243; este a utor apresenta as seguintes estatísticas sobre populações indíge nas, e m 1817-1818:
estatística dos gove rnadores - população total: 3.817.900; índios aldeados: 250.400. He nry Hill -
população to tal: 3,3 milhões; índios alclead os: 100 mil; índios b ra vios: 500 mil. Conselhe iro A. R
Veloso d e O liveira - população total: 4.396.132; índios bravios: 800 mil. Nos dois últimos casos,
a pe rcentagem d e índios para a população tota l é de 18%.
16
A política indige nista cio Impé rio foi estudada por Carlos de Araújo Moreira Neto e m s ua tese
d e do uto rame nto, já citad a, e no seu livro Os índios e a ordem imperial, ta mbém já citado. Em
me us estudos analisei para a região do Maranhão em s ua tese de doutorado 'The Ethnic Survival
o f the Te nete hara Inclians of Mara n hão, Brazil", op. cit, e no livro O fndio na História, o p. c it.
Ver também Expedito Arna ud , '·Aspectos d a legis lação sobre os índios do Brasil", e m Boletim do
Museu Paraense Emílio Goeldi, N . S. n . 22, 1973, e o livro o rga nizado por Manue la Ca rne iro d a
Cunha , História dos índios no Brasil, op. cit.
17 "Despacho da Presidência da Provínc ia do Maranhão para o secretá rio forn ecer a certidão, 2 1-10-
18 17" - Docume nto avulso do Arquivo Público cio Maranhão, São luís, MA; livro de Registro de
Terras de Santa He le na d e Pinhe iro, registro nº 123, p. 19. Ver, tamb é m, o exemplo dos índios
Xocó, d e Sergipe, em Beatriz Góis Dantas e Dalmo de Abreu Da lia ri, Terra dos fndios Kocó, São
Paulo, Comissão Pró-Índio, São Pa ulo, 1980.
18
Ver Relatório do Vice -Presidente da Província d o Ceará , Pinto Mendo nça, 1861. Só a partir da
d écada de 1960 que grupos de famílias q ue se reconheciam com ascendê ncia indíge na passaram
a se a utoidentificar como índios e a e ntrar no processo de etnogênese. Hoje são pelo menos 14 as
comunidades q ue se ide ntificam como indíge nas, a maioria das quais já reconhecid as pela Funai.
138 0 S IN D I O S E O B R A S 1 1.

19 No '·Mappa Estatístico dos Aldeamentos de índios de que há notícia na Repartiçáo Geral das Terras
Públicas", publicado pela própria, em 20 de abril de 1856, consta a demarcaçáo das seguintes glebas:
Ald eia Abrantes ( sA) - 2 léguas quadradas. Aldeia S. Antônio (sA) - 10 léguas quadradas. Aldeia
N. Senhora da Saúde (sA) - 1/ 2 légu a qu adrada. Aldeia Soure (sA) - 1/ 2 légua. Aldeia Pombal
( sA) - 1/ 2 légua . Aldeia Mirande la ( sA) - 1/ 2 légua. Aldeia Bom Jesus da Glória (BA) - l légua
quadrada. Aldeia Santarém (BA)- ! légua quadrada. Aldeia Barra d o Salgado (AL) - ! légua quadra-
d a. Almeida Mamara ng uape (Ps) - 12 léguas quad radas. Aldeia lacoca (Ps) - 5 léguas quadradas.
Ald e ia Urucu (AL) - 4 léguas quadradas. O núme ro de aldeias reconhecidas chega a mais de 160
que, supostamente, deveriam ter suas terras demarcadas, poré m náo constam mais registros nos
mapas emitidos posteriormente. De qualquer mod o, as estatísticas oficiais do Império sobre índios
são sempre d e péssima qualidade e falta de clareza , inconfiáveis sob muitos aspectos.
"' Ver José Maria d e Paula, Terra dos índios, boletim n• l do Serviço de Proteçáo aos índios, Rio de
Ja ne iro, Imprensa Nac ional, 1944.
21
Ver Migue l lemos e Raimundo Te ixeira Mendes, "Bases d e uma Constituição política ditatorial
federativa para a República B rasileira, 1890", em Anais da Assembleia Nacional Constituinte, 2 v. ,
1892. Ver também Humberto d e Oliveira, Coletânea d e leis, atos e memórias referel!Te ao indígena
brasileiro, publicação n• 94, Conselho Nacional de Proteçáo aos Índios, Rio de Ja ne iro, Imprensa
Nacional, 1947.
22
Sobre o Rio G rande do Sul, ver Plínio Dutra , "Extrato do Parecer do Dep. Plínio Dutra , Relator d o
Inquérito q ue investiga a situação dos Toldos Indígenas do Estado", Assembleia legislativa Estadual
d o Rio Grande do Sul, 1967. Ver também lígia T. L Simonian (org.), A defesa das terras indíge-
nas: Uma luta de Moysés W'estphalen, Ijuí, Cadernos do Museu Antropológico "Diretor Pesta na ",
outub ro de 1979. Os missionários salesia nos foram para Mato Grosso em 1890; os capuchinhos
vie ram ao Pará e Maranhão logo em seguida , e m 1895; os dominicanos se instalaram em Goiás
e no s ul do Pará nessa mesma década; os francisca nos fun daram uma missão no alto d o Tapajós
no iníc io d o séc ulo. Os positivistas, sobretudo Teixeira Mendes, no Rio d e Ja ne iro, e o Centro de
Ciências letras e Artes, d e Campinas, publicaram diversos artigos sobre os índios e a necessidade
d e protegê-los pe la açáo do Estado. São exemplos: J. Mariano de Oliveira, '·Pe los indige nistas
brazileiros", Publicação d o Apostolad o Positivista Brasileiro , 1894; R. Teixe ira Mendes, "Ainda
os indíge nas do Brazil e a política moderna·', publicação n• 253, loc. cit., 1907; "O sientismo e a
d efesa dos indíge nas brasileiros: a propósito do artigo do Dr. He rmann von Ihe ring ", '·Extermínio
d os indíge nas ou dos sertanejos", p ublicado no Jornal do Commercio, 15-12-1909, loc. cit. , 1909;
"A civilização d os indíge nas brasileiros e a política mode rna", publicaç.'\o n• 294, loc. cit., 1910; "Em
d efesa d os selvagens brasileiros", publicação n• 300, loc. cit. , 1910. Miguel l e mos, "José Bon ifácio:
a propósito do novo Serviço d e Proteçáo aos Índios", p ublicaç.'\o 305, loc. cit. , 19 10.
23 Ver He rmann von Ihe ring, "A Antropologia do Estado de São Paulo"', e m Revista do Museu Pau-

lista, t. vn . 1907, pp. 202-57. Ver também R. Te ixe ira Mendes, "O sie ntismo [sicl e a d efesa dos
indígenas brasileiros", op. cit.
24
Ver Cândido Mariano da Silva Rondo n , Relatórios dos trabalhos realizados de 1900a 1906, Conselho
Nac io nal de Proteç.'\o aos Índios, p ublicaç.'\o n• 69-70, Rio de Ja ne iro, Depa rtame nto de Imprensa
Nacional, 1949. Conferê ncias realizadas nos dias 5, 7 e 9 de setembro de 1915, p ublicação n• 42
d a Comissão de linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, Rio d e Ja ne iro,
Impre nsa Nac io nal, 1946.
,s Ver Darcy Ribeiro, A política indigenista brasileira, Rio de Jnae iro, Ministério da Educação e Cul-
tu ra, 1962 . Ver L B. Horta, Pelo {ndio e pela sua Proteção Oficial, 1923, 2. ed. com aditamento d o
Major Alípio Ba nde ira , "Em defesa d o índio", Rio d e Ja ne iro, Depto. de Imprensa Nacional, 1947;
R. Te ixe ira Mendes, "A proteção republicana aos indíge nas brazileiros e a catequese católica dos
mesmos indíge nas", Publicação n• 349, Revista do Apostolado Positivista Brasileiro, 19 12.
26
Esse p restígio é recon hecido, e ntre o utros, por John Collie r, que foi o diretor d o Bu reau of Indian
Affairs, ó rgão indigenista d os Estados Unidos, no pe río do de 1933 a 1945, e também no Prime iro
Congresso Indigenista Interamericano realizad o e m Patzcuaro, México, e m 1943.
TI Para u ma discussão desses artigos e das constituições seguintes, com u m resu mo dos come ntários do
jurista Pontes de Miranda, ver Manue la Carne iro da Cunha, Os direitos dos índios, op. cit., p p. 82-94.
28 Ver Se rviço de Proteção aos Índios, Boletim Anual, 1955 Darcy Rib e iro, em seu artigo Língu as

e culturas indígenas do Brasil, Rio d e Ja neiro, Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, 1957,
p. 36, come nta que, em 1953, os dad os que obtivera dos postos e ins petorias do SPI apontavam
u m nú mero de 150 mil índios naque le ano. Posterio rme nte, e le achou necessário corrigir alguns
d esses nú meros e, ao fin al, por uma computação tipológica das populaçôes indígenas, chegou a
u m número que varia entre 68. 100 e 99.700. Se 100 mil é um número possível, concluímos que
as populações indígenas começaram le ntame nte o seu processo de crescimento logo após esse
nadir, acelerado na d écada d e 1970.
p O 1. f TI C A S I N D I G E N I S TA S 139

29 Ver Darcy Ribeiro, Os índios e a civilização, op. cit., passim.

"' Ver meu e nsaio "Por que sou rondoniano", em RevistaEstudosAmnçados, 23 (65), 2009, pp. 173-191.
31 O estado de calamidade dos índios e os esc'l ndalos adminis trativos tiveram repe rcussão nacional

e internacional. Ver o artigo de Norman Lewis, '·Genocide", publicado na revista americana The
Sunday Times Magazine, 22-2-1969, e em várias revistas europeias. Em 1970, a convite do governo
brasileiro, uma comissão da Cruz Vermelha visitou diversas áreas indígenas, du ra nte alguns meses,
e publicou alguns artigos e livros, que , se não confirmam as acusações de genocídio e etnocídio,
d eixam a administração da política indige nista com uma péssima image m de desle ixo, irresponsa-
bilidade, ignorância e falta de dete rminação na defesa dos índios. No a no seguinte, uma comissão
d a Aborígines Protection Society também visitou áreas indíge nas do país. Ver Bo Akerren, Sjouke
Bakker e Rolf Habe rsang, Report on the LCRC Medical Mission to the Brazilian Amazon Region,
Gene bra , Comité International de la Croix Rouge, 1970. Ver també m Robin Hanbury-Te nison,
Report of a Visit to the Jndians of Brazil, Lond res, Primitive Peoples Fund, 197 l. A repe rcussão
nacional começa pe las reportage ns nos p rincipais jornais, denunciando esses acontecimentos.
Em junho d e 197 l , um grupo de 80 antropólogos e cientistas brasile iros redigiu um documento
intitulado "Os índios e a ocupaç.10 da Amazônia'', no qual denunciaram os planos avassaladores
d o governo militar em relação à Amazônia e às terras indíge nas. Esse d ocumento est<"Í no livro
La Situacíón Indígena en América dei Sur, op. cit., pp. 449-53.
32 O histórico jorna lístico d esse projeto , bem como as manifestações cont rárias d e diversos seg-

me ntos da sociedade civil brasile ira , pode ser e ncontrado em Comissão Pró-Índio, A questão da
emancipação, caderno nº l , São Paulo, Global, 1979.
33 Muitos desses programas foram elaborados por linguistas-missionários do Summer Institute o f

linguistics, entidade norte-americana que ma nté m missões e ntre índios no Brasil. Outros foram
feitos pela equipe de educação da própria Funai, e outros mais por universidades brasileiras.
Para um balanço dessa problemática, ver Comissão Pró-Índio /São Paulo, A questão da educação
indígena, organizado por Aracy lopes da Silva, São Paulo, Brasiliense, 1981.
34 Ver Noel Nutels, "Plano para uma campan ha de defesa do índio brasileiro contra a tuberculose",
Separata da Revista Brasileira de Tuberculose, v. xx, 1952; "Me dical Problems of Newly Contacted
Indian Groups" em Biomedical Challenges Presented bJ' the American Jndian, nº 165, pp. 68-76,
Washington, Pan American Health Organization, 1968.
3s Os dados demográficos sobre os Urubu-Kaapor vêm de Darcy Ribeiro, Os fndios ea civilização,

op. cit., de relatórios do Sr. Fred Spatti, ex-chefe de posto e ntre esses índios, e do próprio autor.
Ver, também, dois casos analisados por um médico de larga experiência indige nista: João Paulo
Bote lho Vieira Fill10, "Aumento de mográfico das populações indígenas Xikrin e Suruí", e m Revista
Paulista de Medicina, v. 79, n. l-2, 1972.
36 Ver Sílvio Coelho d os Sa ntos, Educação e sociedad es tribais, Porto Alegre, Movimento, 1975, p p.
46-51. Ver também Renate Viertler, ··o pro jeto Tadarimana e s uas consequê ncias sociais e ntre
os índios Bororo", em Comissão Pró-Índio, São Pa ulo , Globo, l98 l ; Betty Mindlin l afer, '·A nova
utopia indígena: os projetos econômicos", em Ca rmen J unqueira e Edgar de Assis Carvalho (org.),
Antropologia e indigenismo na América Latina, São Paulo, Cortez, l98 l.
37
Esta tese está desenvolvida em meu livro O índio na História, op. cit. , ca p . VI .
38 Essa noção de colonialismo inte rno foi elaborada por Miguel Bonfil Batalla, em "EI concepto dei índio
en América: una categoría de la situación colonial", em Anafes de Antropologia, v . 9, p p. 105-24, 1972.
YJ Para exemplifica r com os países mais populosos, na China são llO milhões d e indíge nas per-
te ncendo a 54 gru pos étnicos o u "nacionalidades". As nacionalidades Miao, Mongol e Tibetana
têm populações com mais d e 5 milhões de pessoas, e nquanto os Gaoshan, lho ba , Drung e
Oroqin tê m menos d e 7 mil cada. A Índia reconhece 645 "tribos distritais '', não povos, com uma
população total b e irando os 90 milhões. Nos Estados Unidos, cerca d e seis milhões d e pessoas
se autoidentificam como indíge nas, po ré m só 2 miU1ões de pessoas s.10 insc ritas como me mbros
por u mas das 566 tribos reconhecidas pela Federação.
40
Amenizando esse e píteto há de ser esclarecido q ue e m 2008 a Austrália fez uma grande cerimô nia de
homenagem aos povos Aborígenes, com promessas de restituição d e seus dire itos sobre terras, re-
cursos naturais e inserç.10 na sociedade, e assino u solenemente a Declaraç.10. Em 2010, os outros três
países segui ram o mesmo caminho . E, afinal, nad a de mais aconteceu a s uas integridades te rritoriais.
41
Recentemente , o mundo indígena foi tomado de s urpresa com a publicação do Decreto 303, pela
Advocacia -Geral da U nião, que reconhece to das as ressa lvas d o Acórdão do STF de 19 de março
d e 2009 e as faz diretrizes para a política indigenis ta do governo. A s urpresa se d eve tanto ao fato
d e ser a AGU a fazer política indigenista quanto ao s inal de aceitação do governo com as ressa lvas,
as quais ainda estão sob discussão no STF e m virtude da e ntrada d e e mbargos de declaração sobre
alguns pontos controversos. Pressionado pelo movime nto indígena e indige nis ta , pela indignação
d e todos que se relacio nam com a qu estão indígena , a AGU acho u por bem s uspe nde r a validade
d o seu decreto por 60 dias até q ue os índios sejam consultados. Ora, consultados!
Ü QUE SE PENSA DO ÍNDIO

"O que o índio p e nsa de nós e do nosso mundo?" Essa n ão é uma


questão fácil de ser resp o ndida. A rigo r, é uma ta refa para os próprios
índios. O que sabemos realme nte sobre o que pensam de n osso mundo
constitui um conjunto h ete rogên eo de afirmações, pequenas histó rias,
a n e dotas e inte rpre tações secundárias de depoime ntos indíge nas, co-
letados por indiv íduos com os mais diversos inte resses e propósitos:
a ntropólogos, viaja ntes, indigenistas , missionários, p essoas do campo e
da c idade, c uriosos e m e ntirosos. É notável p e rceber, ho je e m dia, que
esse quadro está se modificando ã medida que su rgem escrito res indí-
ge nas cujos depoimentos p essoais e a rtísticos são de gra nde valo r para
a compreensão d e suas vidas no mundo atual.
Comecemos com o inte ressante re lato do filósofo fra n cês Mic h e l d e
Montaigne. Certa vez (p o r volta de 1565), ele teve a oportunidade de
p e rgu nta r a a lg uns índios Tupinambá que estavam morando n a França -
um deles h avia se casado com uma mulhe r fra n cesa - o que ach avam
d esse mundo e urope u , tão dife re nte do seu . Três te ria m sido as res-
p ostas - porém, uma das quais Monta ign e se esquecera -: (a) h aviam
observado muita difere n ça de condições de vida e ntre os fra n ceses ( uns
muito ricos e poderosos; a ma ioria pobre e care nte) e se surpreendia m
p elo fato de os pobres n ão se rebela rem contra os ricos; (b ) ach ava m
abs urdo que uma mera cria n ça (o infante Ch arles) fosse o re i dos fran-
ceses, quando ta ntos h o me ns fortes e bem-disp ostos pareciam poder
exercer m elho r essa função .1
Conquanto pareça ser um caso d e elaboração lite rá ria , como o é a
m aio ria das a nedotas sobre os índios, essa é uma histó ria p e rfeitamente
Ü QUE SE PENSA D O fN D I O 14 1

verossímil. Antropó logo s e indige nistas que ma ntê m re lações próximas


e amigáveis com indíge nas, e já os acompanha ram e m s uas anda n ças
pelas cidades brasile iras, relatam o bservações semelha ntes . Desigualda -
d e e hie rarquia p a recem ser tem as bastante comuns n essas o bservações
e no s que stio na me ntos s ubseque nte s. 2 A visão socio ló gica indíge na, ta l
qua l de um apre ndiz d e antro p ó lo go, d e m o nstra ser conc reta e e mpírica
a estrutura e os símbolos da socie d a de ob servada, conforme po nto d e
vista d e um o bservad o r estra nge iro que ainda d esconhece a histó ria.
Po ucos são os re latos, d esde o século xv1, e m que a vo z do índio se
faz presente - se não ao pé da letra , p e lo me nos da forma ma is aproxi-
m ada que a lite ratura da é p oca p e rmitia - , e mbo ra, quase sempre, sem
o a colhime nto to le ra nte d e um Mo ntaigne . J ean d e Lé ry, um calvinista
fran cês que esteve com os Tupinambá d o Rio d e Jane iro , po r volta d e
1560, transcreveu um diá logo que teve com um índio, na própria lín-
gu a tupinambá . Em 1614, já n o Mara nhão, o capuc hinho francês Yves
d 'Evre ux fe z o mesm o, inte rcalando frases tupinambás com a tradução
e m fran cês (embo ra, n esse caso, as frases na ti vas te nham s ido recons -
truídas um tanto e rradame nte) . Po r s ua vez , os jesuítas ina uguraram os
estudos de conhecime nto d as línguas indíge n as a p a ttir da g ramática
que J osé d e Anc hieta elaborou sobre a língua tupinambá, a qual, d e tão
ubíqua no Bras il , trans formo u-se numa língua fra nca, me io de comu-
nicação gene ralizado n o país e base da catequese p a ra quase to d os os
p ovos indígen as congregad os em missões religiosas .3
Poré m , p assados os prime iros a n os d e esp a nto e curiosidad e, não
foi pe rma n e nte o inte resse intelectua l e cultura l d os e uro p e us sobre
os índios . Assim, excetua ndo os Tupina mbá, fo ram p o ucos os o utros
p ovos indígen as que recebe ram descrições de talhad as d e s ua c ultura
e língua . Ao que p a rece, esta belecido o do mínio p olítico e c riadas as
b ases econ ô micas d a colo nização, os cronistas p o rtug ueses e os jesuítas
d e ixaram d e lad o a s ua curios idade inic ia l e p assara m a cuida r d os seus
n egócios ma is impo rta ntes . Surpreende ntem e nte, tampo u co os ho lan-
deses dem o n stra ram inte resse cultura l p elos índios, sendo que os relatos
d e ixad os expressam qu ase que exclusivame nte a b usca p o r a lia n ças
p o líticas, com p o ucas info rmações etnográ fi cas de a lgum s ig nificado .4
Os este reótipos con struídos no século XVI passam a do mina r a lite ratura
sobre índ ios, com p o ucas modificações, p e lo m e n os até o século XVIII .
Com o raras exceções, há um re lato sobre os índios d o mé dio rio São
Franc isco fe ito p e lo p adre capuc hinho fra n cês Ma rtinho de Na ntes, e
uma gram ática da língua d os índios Kariri e labo rada p o r o utro fra n cisca-
n o, Luiz Vicen cio Mamia ni, ambos e m fins d o século XVIJ. 5
0 Q UE SE PE N SA D O fN D I O 143

que talvez n ão fo sse m ais do que a d e turpação d a p alavra "p e dro", com o
supõem alg uns histo riadores b rasile iros? Será que a pó lvora , as n a us e
o aço d os po rtugu eses n ão e n can tavam ta nto quanto os dos fra n ceses?9
No e nte nde r d o mundo civiliza do, n ão foi p o r acaso que os índios se
fascinaram tanto com os brancos a p o nto d e n ão compreende re m as n o -
vida des que re presentavam. T ampo u co tinham cla re za sobre a realidad e
conc re ta d o mundo . J á e m 1556, o Padre J osé d e Anchieta conto u que
certa vez uma índia Tupinambá acuso u o utro p a dre jes uíta d e te r tido
re lações sexua is com ela . Sabe d o r e confiante n a castidad e do se u com-
pa nhe iro, Anc hieta inte rrogou essa mulhe r mais de p e rto e lo go re tiro u
a informação mais precisa de que isso se de ra num sonho . D aí, tirou a
conclusão de que o s índios Tupina mbá não sabia m distinguir sonho d e
re alidade . Séculos de p o is , uma va riação dessa histó ria foi recolhida p e lo
a ntrop ólogo fra n cês Lucie n Levy-Bruhl com o te ndo se passad o com um
inglês, e ntre os indígenas da região d o Chaco . Segundo e le, um índ io
acusou um s urpreso Mr. G rubb d e te r-lhe furtad o legume s d e s ua roça .
Po r sua vez, o inglês re to rquiu que n essa ocasião estava a 150 milhas d o
local do furto . Então, descobriu-se que o índio havia sonhado com esse
in cide nte, m as continuava a afirmá-lo com o se fosse um fato real. Es -
ses exemplos são usados ac riticame nte p elo m esmo a ntrop ó logo e p o r
o utros p e nsad o res m od e rnos com o mostras d o pe nsame nto indígena,
supostame nte incapa z d e se situa r n o campo da obje tiv idade .10
Ce rta me nte , tais inte rpre tações não n os ajuda m a sabe r o q ue os
índios pensam de nós; n o fundo , re pres e nta m ma is o q ue muitos civili-
zados p e nsam de le s . Q ue m os conhece d e p eito, n o e nta nto, sabe que
n ão no s co nsid e ra m d e use s e são p e rfe itam e nte ca pazes d e e nte nde r o
processo d e co mb ustão d a p ó lvo ra , a fa b ricação do aço e o utras coisas
m ais , mesmo sem ve r e compreende r a teoria e o seu desen volvime nto .
Afinal, po ucos e ntre n ós co mpreend em a te o ria do átom o e a e ne rg ia
nucle a r, mas e nte n de m o que ela é, d e alguma fo rma - e a lguns até já
a sentiram na pe le .
Diminuir, desm e recer e mistificar o p e nsame nto indígen a fo i, durante
muito tempo , qu ase uma necessidade do mundo oc id e ntal, e ainda h o je
e sse vício n os p e rs eg u e . Ne m sempre por má vo ntad e, quase se m p re
p o r a inda n ão sabe rmos com o nos pos icio na r condigna me nte e m rela -
ção a e sse s povos .
De qua lq u e r fo rma , é p rovável que os índ ios admirem a c ivilização
ocide ntal pelos seus fe itos , sua p rodução ma te rial, sua po tê nc ia e cap a -
c idade d e exp a nsão . É inte irame nte improvável que admire m as d esi-
gu aldade s sociais , a pobre za e a misé ria d e muitos, a vio lê n cia e xplosi-
va , o disciplina me nto o ra excessivo o ra le nie nte d as c ria nças , a fa lta d e
144 0 S I N D I OS E O B R AS 1 1.

generosidade, o egoísm o desenfreado, o desrespeito à na tureza. Sabem,


p e rfe ita m e nte, que são os p a rceiros m e n o res n esse inopinado e nlace
de civilizações, e que vivem perigosamente. Have rão de nos explicar
melhor sobre tudo isso algum dia.

A HUMANIDADE DOS ÍNDI OS

Ao lo ngo da histó ria ocide ntal das Américas, os índios percorreram


uma gama de inte rpretações e estigmas , muitos dos quais ainda perma-
n ecem calados no fundo de nossa me nte hierarquizante e preconcei-
tuosa. Essas visões foram elaboradas n o pensamento ideológico e n as
re lações socia is construídas e m função do p ap e l desempe nhado p e los
índios na formação de cada uma das nações americanas , e através de
suas matrizes políticas - seja com o mão de o bra escrava, libe rta , servil,
e ncome ndada o u assalariada , seja como aliados em guerra , inimigos
fero zes, e mpecilhos à exp a n são, atravancadores do progresso e tc.
O sentime nto do n ovo e do desconhecido que os índios provocaram
de imediato n os e uro p e us (n os p o rtugueses em patticular), conforme
se difundiam os relatos das primeiras viage n s - de Vicente Pinzón pela
costa do Nordeste, de Pe dro Álvares Cabral e de Américo Vespúcio
p e la costa leste brasileira - , levou-os a ab rir s ua imaginação e s ua razão
para te ntar fo rma r uma ide ia clara a respe ito d essa ge nte n ova e dife re n-
te de todos que hav ia m antes conhecido. São os descende ntes d e um
dos filh os de N oé? Foram visitados p o r um dos ap ósto los? Perguntaram-
se se eram realme nte seres huma nos, ao con siderarem os seus costumes
c rué is, com o o caniba lismo, a sua indife re n ça p ara com os símbo los
m ate riais do pode r (eu rope u) - com o o o uro e as p e dras preciosas - ,
leva ndo em conta s ua intemperança e, sobretudo, seu irre freável desejo
de viver em libe rdade, p e los m atos afora . Possuem razão?
Claro, essa última p e rgunta e ra um ta nto retórica, já vinha vic iada,
pois servia diretame nte ao propósito de re duzir o índio à condição d e
a nima lidade com o fito de justificar mais facilmente a escravidão que se
pre tendia praticar sobre eles e de passar p o r cima das c rueldades que
lhes e ram infligidas . Po u cas ve zes n a histó ria da humanidade a lgum po-
d e r constituído c h egou a qu estionar se a lgum povo e ra ou não huma n o,
embora com o atitude p s icológica isso seja bastante comum entre povos
e ngalfinhados e m ri validade. Mas, e ntre portugueses e espanh ó is, e ntre
seus juristas e re ligiosos e, cettame nte, també m no seio do povo, c rio u-
se uma celeuma sobre essa questão, de tal o rde m que foi n ecessária
0 QUE SE PENSA D O fN D I O 145

a manifestação d a Igreja, instâ nc ia m áxima de julgam e nto do mundo


ocide ntal a té e ntão . Afinal , quase m e io século de p o is d a d e scob e rta
d a Amé rica , através da Bula Veritas Ipsa , exp e dida em 9 de junho d e
1537 p e lo p a pa Paulo m, os índios fo ram colocados no pla no da huma -
nidad e, junto aos d e m a is h o me ns, ficando p roibida a sua escravidão
sob p e n a d e e x comunhão . Isso foi preciso p a ra te ntar frear o nível d e
c rueldad e que e ra exerc ido nas colô nias espanholas contra os índios,
fato de nunciado veem e nte me nte pelo frad e do minican o Ba rto lo m é d e
Las Casas . Q ua nto ao Bras il , convé m frisar, essa bula p asso u ao la rgo
e só foi d ada a conhecime nto um século de p o is, qua ndo foi e xpe dida
a Bula Contissunt Nobis, pelo p a p a Urban o vm, em 22 d e abril de 1639,
que vinha reafirma r os te rmos d a ante rio r e am eaçar pela m esma p e n a
o s escravizado re s de índio s.
Po r o utro lad o, nas inte r-re lações con cre tas, indiv idua lme nte, a hu-
m anidad e física d os índios foi reconhecida d esde o princípio . Sabia m-no
h ábil, sagaz , inteligente, mas punha -se e m dúvida a sua espiritualidad e,
esp ecia lme nte po r se mostrare m tão infe nsos a a braçar o cristia nism o
para a s ua salvação, a ad o rar um D e us o niscie nte e o nipo te nte e a ven e -
ra r os santos e a ba ndo n a r su a re ligião, seu s mitos e seus costumes . Mais
ta rde, p o ré m , as teorias rac istas iriam pô r e m dúvida até essa huma nida -
d e fís ica . A busca de s inais d e d esuma nidad e cultural e espiritua l e ra tão
d ete rmina da p o r p a rte d o s p o rtugueses qu e, ao n otare m a ausênc ia d os
sons f, l e rna língua tupi, d e d u ziram p e rve rsam e nte a razão : os índios
n ão p ossuíam ne m .fé, ne m lei, ne m rei. Com o algum povo po d e ria p res -
c indir d esses a tributos e ser huma no ? E re p etiram essa prime ira b rilh ante
d edução linguístico-estruturalista praticame nte a té o século XIX .
Ante s de v ira re m os "bons o u n obre s selvage ns " p e las a n álise s am-
b ígu as e cla u d icante s dos filósofos iluministas, os índ ios p e rma n eceram
p o r um lo n go pe río do d e te mpo n aque le limia r p e rigoso e ntre a n ature -
za e a c ultura , e ntre a a nima lida de e a huma nida de . A d o utrina d e que
a na ture za é boa e a c iv ilização é m á , o p aradigma rou sse aunia n o , p o r
assim dize r, d ese nvolve u-s e a pa1tir do s e u inve rso h obbe sia n o , diga-
m os, d e que a na tureza é rude e c rue l, e a civili zação necessá ria , p o r
controla do ra dos instintos .11 N a prá tica , é ma is p rovável que a versão
h obbe sia n a te nha tido m ais aceita bilidad e e vigê n cia n o m e io inte lectual
e uro p e u do que a visão rousse a uniana . Ce rta me nte o foi n a me ntalidade
m ais moralista , d a qu al, a liás , n ão escap ava m esses filósofos . É ma is fácil
cons ide rar os índios , com o seu mo do de vive r simples e desp o jad o ,
se re s "b rutos, crué is , e de vida c urta ", p ara usar a frase d e Hobbe s , do
que re pre se n ta nte s de uma e ra prístina d e fe licidade p a radisíaca . É m a is
146 0 S I N D I OS E O B R AS 1 1.

fácil, e m todo caso, usa r dessa imagem grosseira para ir justificando os


fatos histó ricos que levaram à destruiçào muitos povos indíge nas do que
arguir a o utra versão para te ntar esbarra r esse processo.
O mito do Bom Selvagem foi resultado mais de uma fra se de efe ito
do que d e uma inte n ção filosófi ca. Os iluministas que trabalhara m a
ide ia do progresso huma n o a p a rtir do desabrochar dos germes da p o -
tencialidade humana, encontrada na nature za , em sua m a io ria, n ão v iam
com bons o lhos o estado de ser dos índios americanos. Em grande par-
te eram considerados estados degenerados de um ideal a nte rio r que não
conseguira progredir e m virtude do clima o u de eventos catastró fi cos.
O n aturalista francês Geo rges Buffon, n a sua História natural dos povos,
inte rpreta a sociedade selvagem como "um a juntame nto tumultuoso de
h o m e ns bárbaros e indep e nde ntes que só o b edecem a suas paixões
particulares". Era n ecessário have r algum regrame nto desse esta do de
existê nc ia para que h o u vesse vida social e a razão flo rescesse junto
com a felic idade. 12 Mesmo segundo Rousseau, para o homem ser feliz ,
é imprescindível a vida regrada junto com a propriedade privada e até
certo nível de desigualdade. Sua visão é a de que o selvage m é o pri-
mitivo estágio da humanidade, é a quase n ature za, em que os h omens
são guiados exclusiva me nte pelos instintos, n ão distinguem a beleza da
fe iura , não tê m c uriosida de n e m reconhecem o próprio filho. Essa visão
n ão é nada lisonje ira. Po ré m , ao contrário dos partidários da degene-
rescência, Rousseau ach a que não h á n e nhum povo v ivo nesse estágio,
e sim num ma is superior, "entre a indo lê ncia do estado primitivo e a
petula nte atividade do nosso a m o r-próprio" . Este seria o estado ideal
do h o mem, n o seu e nte nde r, e é ne le que se situ aria m os atua is povos
selvagen s, os bon s selvage n s .13
É certo que, com esse res paldo filosófico, d e u-se uma guinada n o
pensamento ocidental sobre os povos indígenas, provocando uma forte
influê n cia em filosofi as p o líticas utopistas o u revolu cio n á rias, e sobre -
pujando , n o d esenvolv ime nto cie ntífico, o paradigma hobbesia n o e a
teoria da d ege n e rescênc ia . Porém , a influê nc ia d esta última é ma is fo tte
e determinante n as esferas político-administrativas das metrópoles colo -
nialistas e n as elites das suas colô nias . Com o um dos principa is motivos
da degen e rescên cia indígen a e ra d e o rde m geográ fica, e atingia toda a
Amé rica (sobre tudo os trópicos úmidos), ficava d ifícil fugir à ide ia de que
isso ta mbé m , eventualmente, abrangeria os brancos que vivessem muito
tempo n essas regiões. Po r isso se preferiu fu gir da influê n cia geográ fi ca e
atribuir à biologia a culpa pe la degenerescência . Até meados do século XIX,
historiadores - com o Franc isco Adolpho d e Varnh agen - e políticos -
Ü Q UE SE PE N S A D O fN D I O 147

como o senado r Da ntas de Ba rros Leite - via m nos p obre s re man escen-
te s indíge nas, so brevivendo à s marge ns das vilas e cida de s , se m te rras
e sem p ossibilida des d e v iver a uto n om am e nte, sina is d esse estado na tu-
ra l d egene rativo irreversível, e não resultado d e um fe nô me no socia l. 14
Na verdade, a d escrição e a e la bo ração inte lectua l sobre o índio não
foi a bunda nte n o Brasil colo nia l. Os jesuítas logo p e rde ram o inte re sse
e m d esenvolver qualque r arg ume ntação m a is aprofundad a a esse res-
p e ito, nada m a is alé m d o que a discussão sobre a capacidade o u não d o
índio d e conve rte r-se à fé cristã, ta nto p o rque a s ua base fil osófica e ra a
e scolá stica, d e cois a fe ita e se m mudanças, qua nto p o rque o se u inte res-
se e ra puram e nte utilita rista e relig ioso . Nesse miste r , logo descobriram
que a conve rsão d o índ io n ão v iria simplesme nte pela p alavra , m as só
d ep o is d a subjugação física e c ultural. Som e nte p elo jugo da e spad a e
da va ra d e fe rro , n o dize r de Anc hie ta , é que a cate quese p o de ria ser
e fe tuad a . Com isso, foi ab a ndo na da inclusive a quela c uriosida de p e las
formas c ultura is esp ecíficas d os índios que os jesuítas c ultiva ra m n os
prime iros te mpos d a catequese . Em fins do século xv1, Fe rnão Ca rdim
foi praticame nte o último jesuíta a faze r uma descrição etno grá fi ca o ri-
gina l, e m esmo esta é sobre os Tupinambá , já a mplam e nte conhecidos .
Simão de Vasconcellos, o c ro nista jesuíta que escreve e m mead os d o
século xv11 , já não acrescenta informações etno grá fi cas dignas de no ta , e
Antô nio Vie ira , o grande d e fe nsor dos índios e da obra catequética d a
su a o rde m co ntra a sanha dos colo n os , em ne nhum mo m e nto de mo ns -
tra o me nor inte re sse c ultural e inte lectual pelos povos que d e fe nde, d e
que m sabe a líng ua , a q u e m faz d escer dos rios o u a que m pacifica . 15
Os jesuítas logo d escobri ra m que o me lh o r veículo da catequese se-
riam as cria n ças ind íge n as, a p ós a s ub jugação p o lítica dos se us pais . E in-
vestiram todo s e u e sforço e m alfabetizá-las, e n sina r-lhe s canç õe s sacras ,
p eças teatra is , a rtes e o fícios e m fe rraria , a lve n aria e ma rcen a ria , e apri-
m o rá -las e m a ritmé tica e la tim. Obvia me nte , os índios a pre nderam , não
d e ixan do d ú vidas sobre sua ca p ac idade intelectual. Se n o início e ra á rd u a
a ta refa , ela foi fica ndo cad a vez m ais fá cil à m e d ida que a vida c ultural
indígena , agora du ra me nte combatida , p e rd ia sua razão socio lógica d e
ser com rapide z. A sobrevivênc ia dos índios catequiza dos se d ava com o
re sultado d e sua tra nsfiguração c ultural - v iravam índios de missão - ,
m as n em sobre ele s os je suítas se inte re ssaram em re fletir filosoficame nte .
Po ré m , n e m to dos os índios estavam e m missões, n e m agrilhoados
n as faze ndas e n as vilas portu guesas . Fazia-se n ecessário compreende r
os impasses obse rvados n a vida indíge na a utócton e . De um lado , ta nta
ge ne rosidade, ta nto e spírito cole tivo, ta n ta a leg ria de v ive r ; d e o utro,
14 8 0 S I N D I OS E O B R A S 1 1.

tanta licenc iosidade sexual , tão arraigado sentime nto de libe rdade, oca-
niba lismo. Era preciso alguém que esti vesse numa posição mais instável,
menos sedimentada, entre a posição do poder colonia l e o espírito de
curiosidade, para apreciar esses impasses e tentar resolvê-los pelo pen-
samento. Alguém como Yves d 'Evre ux , padre capuchinho, fra n cês, inte -
grante da missão re ligiosa que fora ajudar a estabelecer a colô nia que os
fra n ceses pretendiam instala r n o Maranh ão, n o início do século xvn. Nos
dois anos em que lá esteve (1614-1 615), d 'Évreux conversou com dezenas
de índios através dos turginwns, os inté rpretes franceses que m oravam
com os próprios índios e conhecia m razoavelmente bem a s ua sociedade
e sua cultura. A partir dessa experiê n cia, e laborou o seguinte a rgume nto:
a n atureza é boa , os Tupina mbá são n atura is, de poucas regras, pottanto
também são b o ns intrinsecame nte. Mas se to rnaram maus , agem com
impe rfe ição p o rque o Satan ás está no me io deles, os inspira e os detur-
pa. É preciso estripá-lo de sua convivên c ia, e is a função da catequese. 16
Essa dedução lógica impecável, especia lme nte quando se acredita n o
Satan ás, produzida no princípio do século XVII, é uma precursora da re -
presentação clássica do mito do Bom Selvage m. É a inda mais ap e lativa
do que a explanação o riginal de Rousseau porque esta é posta num pla-
n o evolutivo, pretensame nte cie ntífico, enquanto d 'Évreux coloca a sua
num pla no atemp oral, portanto mitológico. Q uantos de n ós a inda não
pensamos assim, que o índio é puro, liv re, sem ma ldade natural - mas
que, ao contato com a c iv ilização (o Satan ás), se d eturpa e se degenera?
O mito do Bom Selvagem , nascido das divagações sobre a n ature za,
a cultura , o progresso e a degenerescên cia dos povos indígen as - em-
bora , no nível p o lítico, a s ua arg ume ntação se baseasse n os problemas
e uro p e us do século XVIJI - , insere em si uma visão gen erosa e idealista
sobre os ín d ios, e implica um posic io name nto ma is humanitá rio sobre
a questão indíge na . Po ré m , a s ua p e rmanê n cia n o cen á rio inte lectua l e
emocio n a l dos tempos atua is se de ve a o utros fato res até menos pos i-
tivos . O mito p õe o índio numa p osição da escala evoluc io ná ria e, ao
fazê -lo, apresenta o principal mo tivo da sua propalada m o rte e extermí-
nio, con siderando -o uma fase , um estágio passado do desen volvime nto
huma n o, portado r de uma cultura inviável aos tempos modernos . O
mito explica a bondade e a c rue ldade dos índios, a sua liberdade, a sua
inge nuidade e a sua sagacidade, a pre guiça e a resistência física - e n-
fim, sua vida e s ua morte. Do ponto de vista cie ntífico, o mito toma a
fe ição evolucio nista nos escritos de Darw in e Spen cer, Ma rx e Mo rga n ,
Childe e Stewatt, o u a fe ição aculturativa, aparenteme nte mais piedosa
e e mpírica, ao gosto mo d e rno. Con stitui, junto com o utros p e nsame n-
0 Q UE SE PE N SA D O fN D I O 149

to s e sentime ntos m e n os rigo ro sos, o qu e ch amo de paradigma da


acultu ração. 17 Ne nhuma dessas variações acre dita na sobrevivênc ia d os
índios, n o m áximo a s ua assimilação física e a p e rmanê n cia difusa d e
alg uns de seus traços c ulturais n a dinâ mica socia l (brasile ira) . Há seg-
m e ntos d a Igreja que até do utrina riame nte se pre parou para d a r a s ua
e xtre ma -un ção ao conside rar pe rdida a causa indíge na , comparando o
sofrime nto d o índio à p a ixão do Cristo ( que sendo Deu s, ressu scita, ao
contrário do índio).
T e m s ido uma ve rda de ira s urpre sa p ara to dos descobrir que os p o -
vos ind íge nas recupe raram s uas p opulações, e que, p o rta nto, o índio se
to rna viável histo ricame nte . Ne m to d os se dão conta desse fe nô m e n o,
m as só d as su as re p e rc u ssões, com o as mudança s de compo 1tame nto
p o lítico do índio pe rante a nação . A socied ad e civil o b serva essas mu-
danç as, às vezes ap o ia, n o m a is das vezes se esp a nta e, sem que re r , se
re tra i n a su a solidaried ade . O índio n ão lhe p a rece m ais o b om selvagem ,
e não se sab e m ais como inte rpre tá -lo . O mito se esva zia e m o rre à
m edida que o índio vive . Se não for s ubstituído p o r um novo mito, b a -
seado e m n ovas explicações d essa realida de cambiante, ele te rminará
ressu scita ndo p o r o utra forma.

A INTEGRAÇÃO D O ÍNDI O NA NAÇÃO

Em 1820, a presença ind ígen a no p aís e ra a inda tão m aciça, compreen-


d e ndo e ntre 500 mil e 800 mil índios (cerca de 15 a 20 p o r cento da
p opulação g lo bal) - p e los cálculos d e vá rias a uto ridad es do Impé rio - ,
q ue, a contragosto, os ideólogos d a ins urgente n ação impe ria l n ão
conseguiram evita r d e conside rá-los p a rte d a nação . A am eaça indígen a
ao pro jeto colo nial já se esva zia ra , a p a re nte me nte, p o r quase tod o o te r-
ritó rio, excetua ndo as regiões m ais isola das, como a Amazônia e a lg uns
b o lsões d e resistê nc ia ao sul da Bahia, no vales d os rios Doce e Mu curi ,
e m Minas Gerais e n os estad os s ulinos . Som e nte m ais ta rde essas á reas
iriam preocupa r, m as sem gra ndes pe rigos . O que preocupava realme n-
te e ra a p ossibilidad e de os índios se a lia re m com negros libe rtos e fu-
gidos, como veio a acontecer n a Ba la ia da (1838-1841) e, com m a io r in-
te ns idad e, n a Caban agem (1835-1840). Essas re be liões tivera m mo tivos
e ins pirações genuinam e nte p o pula res que arre gime ntara m esp o ntan ea-
m e nte um e n o rme contingente de negros e índios que vivia m o u com o
escravos e a rtesões o u como re m a n escentes das a ntigas a lde ias jesuíticas
tra nsformadas e m p ovoad os e vilas mestiças, m as essen c ialme nte regi-
150 0 S IN D I O S E O B R A S 1 1.

das por um sistema econô mico coletiv ista. A Cabanage m a lic io u muitas
a lde ias indíge nas a utô n o mas, que ma l falavam português, mas vivia m
sob o jugo ocasio nal de recrutamento de trabalho e apropriação de seus
bens extrativos. Os Mura, os Mawé, os Sateré, junto com os generica-
m e nte chamados Tapuios, formaram boa parte das forças re be ldes que
c h egaram a to ma r Belé m , mas que, tra ídas p e los inte resses classistas
dos líde res, recuaram, foram combatidas e perseguidas incle m e nte me n-
te por todo o b aixo Amazonas. O resultado é que essa região, com o já
vimos, é tão deserta de índios quanto as caatingas do Rio Grande do
No rte, da Paraíba, do Ceará e do Piauí, palco da Gue rra dos Bá rbaros
(1654-1 714).
O susto dessas rebeliões provocou as maio res vociferações a nti-in-
dígenas do iníc io do Impé rio. A Balaiada, por exemplo, levou o futuro
grande histo riado r mara nhe nse, J oão Francisco Lisboa, a re negar os seus
compromissos com o braço político da rebelião, seu próprio partido e,
posteriormente, desenvolver uma inte n sa pesquisa histó rica para pro-
var o ca rá te r inconfiável, traiçoeiro , desonesto, destrutivo, preguiçoso,
covarde, infe rio r inte lectua lme nte, incon ciliável com a c ivilização, e de-
generado, do índio brasileiro. Sua base de a rgume ntação é a histó ria do
Brasil e a realidade que conhece das a ntigas e decadentes comunidades
indíge nas do Maranhão, e a lude à teoria da degene rescên cia. Lisboa vai
aproveitar dessa p esqu isa para iro niza r os a rroubos românticos e p oé-
ticos do seu conte rrâneo Antô nio Gonçalves Dias, rotu lando-os de "fal-
so patriotismo caboclo". Curiosam ente, o poe ta - que, por esse tempo
(década de 1850), fazia sucesso na Corte com o jovem Imperador e n as
praças de Sào Luís - cons idera os a tua is índios formas decadentes de
seus esple ndo res passados, m as culpa a civilização e seus agentes por
esse estado de coisas .18
Se num primeiro insta nte Lisboa é virule ntamente a nti-indígena, vai
muda r depois , ao faze r sua primeira viagem ao Rio de Janeiro e e m se-
guida a Portugal , seja e m função de novos conhecime ntos adquiridos,
seja p e lo alargame nto d e sua v isão c ultural. O ceita é que ele passa a
p o le mizar com Francisco Adolpho de Va rnhagen , o histo riador-mo r do
Impé rio, precisamente sobre o caráte r do índio , sua o rigem e sua pos ição
n o cená rio n acio n al. Em diversos escritos, inclusive n a sua obra -prima
sobre a história do Brasil, e esp ecia lme nte no seu "Mem oria l Orgânico",
Va rnhagen usa de a rg umentos mora is, histó ricos, b io lógicos e fil osófi cos
para descartar o índio como p a rte fundamenta l da n ação, declarando
até que e les são invasores do te rritó rio brasile iro e sugerindo, senão a
extinção por fo rça das a rmas (com o de monstrava ser a política indige-
Ü QUE SE PENS A DO ÍND I O 151

nista n o rte -ame ricana da época), a aplicação de uma educação forçada


e rígida aos índios, por um período de 15 anos. Após isso, esperar-
se-ia que e les se to rnassem c idadãos bem-comportados e produtivos. 19
Lisboa contesta Varnhagen pela histó ria, mostrando o cará te r viole nto
da colo nização p o rtuguesa e atribuindo a reação indígena à n ecessidade
de sobrevivê n cia. J á a proposta do uso da força ofendeu o pensamento
liberal que se formava n o país, e levou Manoel Antônio de Almeida, o
futu ro auto r do primeiro roman ce brasileiro, Memórias de unt sargento
de ntilícias, a publicar um a rtigo intitula do "Civilização dos indíge nas",
conde n a ndo as aná lises e as propostas de Va rnhagen , como desumanas,
n ocivas ao país e ultrapassadas. Se Varnhagen se vale de De Maistre e
Vate l p ara justifica r o uso da força e a infe rio ridade biológica dos índios,
Ma noel Antô nio de Alme ida era le itor de Humbo ldt e põe como epígra -
fe de seu a rtigo um parágrafo de ava nçada con ceituação a ntropológica,
re tirado do livro Cosntos, o qual m e rece ser reproduzido aqui como
m ostra da qualidade da discussão n aque la época:

Ao manter a unidade da espécie humana, rejeitamos, por con sequê n-


cia necessá ria, a distinção desoladora e ntre raças s upe rio res e raças infe -
riores. Sem dúvida há famílias mais s uscetíveis à cultura, ma is civilizadas,
mais esclarecidas; mas e las n ão são ma is nobres qu e as o utras. Todas são
igu a lme nte fe itas para a libe rdade ... 20

Os tempos são d e definição, porque tocam em inte resses econômi-


cos qu e dominam a política da época . Por essa razão, frequ e nte me nte
Va rnhagen se utiliza de a rgu m e ntos veiculados por políticos poderosos,
como os sen ado res Ve rgueiro e Dantas p ara caracte rizar melhor seus
a rgu m e ntos anti-indígenas, mostrando o h o rror que esses povos causa-
vam à e lite dominante b rasile ira, e o d esafio q u e apare ntem e nte fo rçavam
à hegemonia p o lítica e econômica em s uas regiões de influê n cia . O
próprio Va rnhagen re lata que a o rigem de s ua má vontade p ara com os
índios vem d e uma exp e riê n cia pessoal, e m s ua região n ata l, Sorocaba,
n o inte rio r de São Paulo , o n de a inda h avia índios autô n o mos que vez
p o r o utra atacavam viaja ntes que inc urs io navam p o r seus te rritó rios .
Em contrapa rtida, tal radicalismo a nti-indígena já era s ina l da exis -
tê nc ia de posições contrá rias, do surg ime nto de uma consc iê nc ia crítica
mais ampliada sobre a questão indígena . Gon çalves D ias simbolizava
o movime nto lite rário india nista que vai c ulmina r nas obras de J osé de
Ale n car. A diminuta classe m édia lia esses roma nces e os a rtigos que
saíam e m revistas e jornais , como Guanabara e a pró pria Revista do
Instituto H istórico e Geográ_fico Brasileiro, e até incentivava a fundação
152 0 S I N D I OS E O B R A S 1 1.

de sociedades contra o tráfico de escravos a fri canos e a favor da colo ni-


zação e da civilização d os índios. Tal sociedade foi c riada em 1850 p e lo
Dr. Nicola u França Leite, e parece que teve alguma duração, pois foi
citada n o liv ro de Pe rdigão Malheiros, escrito em 1866.
A visão ro mâ ntica indianista foi iniciada pela publicação do p oema
épico A Coufederação dos Tamoios, de Domingos José Gon çalves de
Magalhães, apa re ntemente por e ncome nda do jovem Imperador. Mes-
mo de qualidade lite rá ria menor e com embasamento histó rico um ta nto
fantasioso, esse livro catalisaria um sentimento de interesse pelos índios
e uma polêmica sobre a m elho r forma de civ ilizá-lo, durante as déca-
das de 1840 e 1850, e n contra ndo seus pontos de qualidade lite rá ria n as
poesias de Gon çalves Dias e de maio r relevo ideológico nos romances
de José de Alencar, a partir de O Gu,arani. Neste livro, o índio é idealiza -
do com o um representa nte a me ricano equi vale nte do passado medieval
português , da ho nra, da dignidade e da altivez , e a junção desses dois
elementos é que viria a formar a n ação brasile ira. É um livro que cria um
mito da c riação do Bras il , e, como no mito do Bom Selvagem , o destino
do índio é a sua extinção, no m omento mesmo e m que é criada uma
n ova instân cia huma n a e c ultural.
Sem sombra de dúvidas, a obra máxima do libe ralismo indige nista
é o livro do deputado e jurista mine iro Agostinho Marques Perdigão
Malheiro, A escravidão no Brasil, publicado e m 1866-1 967, e que dedica
a segunda parte à qu estão indígena .21 Alé m do valo r da p esquisa , o livro
apresenta, sem apologias à escravidão, a crue ldade e a d esumanidade
das políticas indigenistas até e ntão praticadas. Mas , com o bom liberal, o
a uto r g ua rda esperan ças de que o n ovo Regimento das Missões, a le i in-
dige nista impe rial, d e 1845, colocaria n os trilhos ceitas uma política de
catequese e civilização dos índios. Pe rdigão Malheiro se dá conta d e que
a Lei de Terras, de 1850, propicia a extinção de aldeamentos indígen as
em vá rios estados, como em São Paulo, Rio de J a ne iro, Ceará, Sergipe
e tc ., durante a década de 1860 . Porém , conside ra que a Lei de 1845 d e -
fe nde os índios dos ataques oficiais e particulares, proíbe a escravização
e o serv iço obrigató rio, reconhece e demarca as te rras e promove a edu -
cação, tudo isso sob a égide da ideia da cristia nização dos índios , passo
siue qu,a non para a sua civilização . Ele se posicio n a contra a visão d e
Varnhagen e, "entre pe rseguir os índios, dar-lhes caça como a animais
ferozes, exte rminá -los ou afugen tá-los - o u deixá-los livres p ara vaga r
pelos sertões na s ua vida e rrante com o n os primitivos te mpos" - , prefere
esta segunda opção . A c iv ilização não deve ser imposta ao índio, eis a sua
conclusão libe ral. Poré m não alime nta ilusões sobre o futuro dos índios:
0 QUE SE PENS A D O fN D I O 153

À proporção que o Estado c rescer e m população, e m facilidade de


comunicações por te rra e por água, à proporção que o te rritó rio se for
cobrindo de mais povoados, e se forem descortinando os sertões, o fac ho
da civilização ab rirá ca minho, espanca ndo as trevas da selvageria, e, ou
eles se hão de n ecessariamente acolhe r n os braços do homem civilizado
e confundir-se assim com a massa geral da população, ou serão forçados
a ceder o ca mpo nessa luta desigual, e m que a v itó ria, e nqu anto incerta
na época, é certa e infalível, por ser o decreto de Deus onipotente n a
ordem providencial d as Nações, manifestada pela história do m undo. 22

Desde a segunda m etade do Impé rio, o índio p assa a ser o fic ia lme n-
te uma pa1te da nação brasileira. A sua condição jurídica de "órfão" o
coloca como dependente e parcialmente incapaz, precisando assim da
proteção especial do Estado. Po r o utro lado, mantê m-se tanto as visões
românticas e libera is que colocam o índio como fator de fundação da
n ação - como n o romance O Guarani, de José de Alencar - , quanto
as atitudes depreciativas de que e le é um selvagem inconciliável com
a c ivilização.
A sua redenção só poderia ser vista pela catequese, já que era reco-
nhecido como ine ficaz , devido à incúria administrativa e a inte rvenção
de inte resses econ ômicos e políticos , o trabalho dos administrado res
das a lde ias indíge nas tanto os atuais quanto aqueles que substituíram os
jes uítas, após 1759. A Le i de 1845, que instituíra as diretorias parciais dos
índios , fo ra precedida pelo Decre to n. 285, d e 21 d e junho de 1843, que
praticame nte colocava nas m ãos dos capuc hinhos italianos to da a adminis -
tração dessas diretorias e das colô nias indíge nas . Isso só n ão foi realizado
efetiva m e nte porque não h avia capuchinhos sufic ie ntes para cobrir a de-
manda existente e porque na m a io ria dos casos esses frades não se adap-
taram às dificuldades da vida missionária nos sertões m ais e rmos do país.
Mas o índio n ão é mais esquec ido . Inte lectuais e c ie ntistas que que-
riam ve r o índio respeitado e ace ito por to dos, com suas pec uliaridades
e com a benevolê n cia dos outros cidadãos do Impé rio, com eçaram a se
m anifestar. Esse sentim e nto está contido, por exem p lo, n o livro O selva-
gem, do Gen eral Couto de Magalhães, escrito em 1870 .23 O a utor hav ia
s ido presidente das provínc ias de Goiás e Pa rá, e n essa fun ção, como
o utros preside ntes da é p oca, havia -se preocupado e m dar con d ições o b-
je tivas para que o índio pudesse "progre dir" da su a realidade social para
transforma r-se em c idadão pleno. Nesse espírito, Couto de Magalhães
fundou um educandá rio para os índios, nas ma rgen s do rio Araguaia , a
Escola San ta Isabel, n os moldes d e outro expe rime nto criado e m 1832
para os índios de Minas Gerais, o nde a educação de le tras e o fíc ios seria
154 0 S IN D I O S E O B R A S 1 1.

dada aos índios a partir dos 5 até os 12 a nos de ida de, e m regime de in-
te rnato, podendo aceitar índios adultos como alunos e mesmo pessoas
c ivilizadas vizinhas ao colégio. O colégio funcionou enqu anto o seu idea-
lizado r foi preside nte da provínc ia, após o que e ntrou e m decadência e
se acabo u , deixando descendentes dos re manescentes daquele tempo.
Note-se que a experiê n cia educacio n al proposta em 1832, bem como
a de Couto de Magalhães e as de Guida Marliere, para os índios do vale
do Rio Doce , e a dos irmãos Otto ni - que incluía índios do vale do Mu curi
(bem como imigrantes a le m ães) - são todas baseadas na antiga pedago-
gia jesuítica, que focaliza o trabalho n a c riança, mas se reveste de uma
atitude social de integração imediata do índio com elementos da socie -
dade e n volvente. 24 Nesses casos, como e m muitas diretorias parciais, a
e ntrada de imigra ntes e lavrado res sem-terra resulto u na descaracteri-
zação indígena e na sua transformação em caboclo ou índio genérico.
O utros intelectuais do Impé rio dedicaram algum esforço aos índios,
vendo -os, já sob a ótica evoluc io nista, como primitivos , resquíc ios de
um passado que certamente não sobreviveria ao desenvolvimento da
n ação. J oão Barbosa Rodrigues, talvez a quem podemos chama r o pri-
m e iro a ntropó logo brasileiro , conheceu e trabalho u pessoalmente com
a lg uns povos indígenas, como os Crisha nás, sobre quem escreve u o seu
livro A pacificação dos Crishanás. 25 Como diretor do Museu N acional,
o rga nizou a primeira (e única) Exposição Brasile ira de Antropologia,
p a ra a q u al escreveu descrições de diversos p ovos indíge nas do Pará e
Amazonas. José Veríssimo, que escreve u n os seus Estudos amaz ônicos
sobre os a ntigos aldeame ntos tapuios do Pará e descobriu o caboclo
como descende nte b iológico e cultural do índio , é outro exemplo d ig-
n o de no ta .26 Mu itos deram s uas contribuições para a re flexão n acio na l
sobre o índio traduzindo obras de estrangeiros e viaja ntes ao Brasil e es-
c revendo a rtigos e cronologias históricas dos seus estados, que reconsti-
tuíam os povos indígenas n esses te rritó rios, algumas das quais ia m sen-
do pub licadas n a Revista do Instituto H istórico e Geográfico Brasileiro. 27
De forma geral, pode-se concluir que os inte lectua is do Impé rio, que
optaram por uma visão liberal ou romântica dos índios , tinham uma
atitude de simpatia e comiseração p e la sua situação, porém , excetuando
as ide ias de Couto de Magalhães e a política indigenista em vigo r, não
tinham ne nhuma proposta a oferecer para solu cionar os proble mas que
viam. Por outro lado, aqueles que con side rava m os índios e mpecilho ao
desenvolvimento nacio n al e símbolo de a lgo que tinha de ser destruído
para a salvação da n ação, já não perdiam tempo em escrever sobre e les .
Ao vira rem assu nto de liberais, exclusivame nte, os índios passaram a ser
conside rados caso p e rdido, d e idealistas .
176 0 S I N D I OS E O B R A S li.

Uma mino ria de p ovos indíge nas atua is nem sequer pratica agricul-
tura, v ivendo exclus ivam e nte da caça e da cole ta, com o se estivesse
n a "Idade da Pedra". Os Guajá são um desses poucos povos, mas, n o
seu caso, como no dos demais aqui citados, essa falta de agricultura
é produto de uma deculturaçào - isto é, de uma p e rda cultural - , já
que, por volta de dois o u três séculos atrás, eram també m certame nte
agricultores. Prova disso é o conhecime nto que se tem dos métodos
de agricultura praticados por o utros povos indígenas, seus vizinhos, de
s ua língua conte r to dos os no mes dos cultíge n os regio n a is, cogna tos de
o utros vocábulos de línguas aparentadas. A me m ó ria linguística dos n o -
m es e dos con ceitos da agric ultura, porém, não é acompanhada de uma
memória histó rica o u mito lógica. Os Gu ajá mais velh os n ão se lembram
n e m de o uvir os seus avós falarem de fazer roça, e os se us mitos não
inclue m a descoberta o u dádi va da agricultura p o r um h e ró i c ivilizado r.
Os Avá-Canoeiro, os Xetá, os Ach é ( do Paraguai) são casos semelhantes,
e mbo ra estes te nham memória de te re m sido agricultores no passado.
A ausência da ag ricultura não é um impe dime nto à sobrevivên c ia
é tnica, como de m o nstram os Guajá. Mas o fato de ser uma perda de-
monstra ma is cabalme nte a capacidade da c ultura huma n a de se adapta r
ao seu meio ambiente e dele retirar todas as suas necessidades básicas.
Os Guajá viraram um povo excl usi vame nte caçador e cole to r e m virtude
das p e rseguições que sofreram n o início da colo nização p o rtuguesa e m
seu te rritó rio o riginal, provave lme nte o baixo Tocantins , n o Pará. Lá,
junto com outros p ovos, foram pe rseguidos e atacados por escravagistas
vindos de Belém, e e ncontraram o seu meio de sobrevivê n cia adota ndo
um modo de p rodução mais flexível e ágil , que não exigia a perma nê n-
c ia num mesmo local p o r muito tempo . Outros povos da mesm a região
te rmina ram , pelo contrá rio, se extinguindo. Os Guajá migraram no sé-
c ulo p assado para o Maranhão. 5
A agilidade cultura l dos Guajá s ignifica um m odo de viver n ômade .
Poré m , há d e se compreende r esse no madism o n ão como uma fo rma
d esorganizada e ale atória d e movime ntação de ntro de um te rritó rio, e
s im uma determinação racio n a l do uso das riquezas a lime nta res e trans -
formáveis que o seu me io ambiente favorece. A muda n ça de um local
para o utro é fe ita de acordo com o conhecime nto de exaustão te mpo -
rá ria de produtos d e um local e a presen ça desses produtos no o utro .
O conhec ime nto das riquezas existe ntes em determinadas á reas, n os
mínimos detalhes, é imprescindível para a sobrevivên cia desse povo.
Ade m ais, para cada grupo de caçadores e suas famílias há um te rritó rio
esp ecífico que outro grupo qualque r n ão deve vio la r sem o con senti-
Q UEM S ÃO OS POVOS INDÍG E N A S 177

m e nta do seu d o n o, o qua l cha ma m d e hakwá . Da í, c riam-se rivalidad es


que p od e m resulta r e m brigas e m o rtes, o u e m aco rdos de paz e fusão
d e grupos . A migração p a ra n ovos te rritó rios é resultado ta nto d a busca
d e novos locais de usufruto, qua nto d e á rea s de refúg io, no ca so d e
ataque s po r p a rte de o utros p ovos . Po ré m , n e nhum g rupo d eve a fasta r-
se ta nto d os seus vizinhos, po rque o isola me nto total re sulta na s ua
inviabilidade física e c ultural. A n ecessidad e de p a rceiros m atrimo niais e
p essoas que compa rtilhem instituições e ritu ais dete rmina o o utro lado
da te ndê n c ia m a is forte d e centrifugação d os p ovos n ô mades .
A dinâ mica d e dispe rsão e con gregação caracte riza os p ovos indí-
ge nas em geral, com ma is ê nfase n os p ovos sem a gricultura . É um d os
m otivos b ásicos que impe d em o surgime nto de fo rmas p olítica s m a is
rígidas e hie rarquizad as . Essa dinâ mica é e xplicável p o r dive rsos fato -
res inte rliga dos, e um d os principais é o próprio mo do de produção
econ ômica, m esmo d os índios a griculto res de grandes p o pulações . Po r
diversos m otivos, esse m od o d e produ ção n ão d esenvolve excede n-
tes estocáveis que p ossam vir a fome ntar a dife re n c iação e ntre grupos
e a ascensão d e um grupo com status supe rio r, com po d e r e acesso
econ ômico priv ilegiado aos be n s de prestígio d a socied ad e . Essa d e -
te rminação mate rial é inegável, mas ocorre e m conjunção com o utros
fato res ecológicos e histó ricos . A uniformida de o u p o uca varie da de n a
qua lidade d os so los e dos c ultígenos certame nte contribui p a ra que não
h aja d ive rsificação de p rodutos agrícolas e de inte nsidades de colhe itas,
desestimula ndo o s urgime nto de funções econ ômicas d ife re n ciad as, de
pro duto res esp ecia listas e de a lde ias o u p ovos ma is dinâ micos econo mi-
cam e nte, o que levaria a uma m a io r fo rça p o lítica . Ape n as n as m argens
dos gra ndes rios - com o Amazon as, Tapajós, N egro, Xing u , Solimões -
a inte n sidade da pro dução econô mica foi gra n de, ta nto p o r causa d a
p esca e do confina me nto d e ta rtarugas e m c hique iros, quanto p e la ri-
que za e re n ovação a nua l d o solo agricultável d as vá rzeas desses rios . Em
adição, a exte n são d o te rritó rio brasile iro, vasto e praticame nte sem bar-
re iras intra n s p o níveis - assim como o dos Estados Unidos, da Argentina
e do Cana dá - , favo recia as migrações, as fugas e a dispe rsão huma na,
c ria ndo, assim, uma din âmica de inte r-re lacio n ame nto socia l bastante
fro uxa e difusa . A influê nc ia d os p ovos e c ulturas a ndinos some nte
alca nçou as fra njas da Cord ilhe ira, e não foi suficie nte p ara compulsar
muda n ças radicais n as tradições a m a zô nicas .
A de mografia, o u o a ume nto d e mográ fi co, po d e ser o utro fato r d e
muda n ças . D iversos p ovos indígenas alca n çaram níveis p o pulacio -
n ais basta nte e levados, com o os Tupinambá, os Ta p ajós, os c h am ad os
178 0 S f N D I OS E O 8 R A S 1 1.

Nheengaíbas da ilha de Marajó, todos já extintos; 6 e m m e no r escala,


os Bororo, os Munduruku, os Pa reci etc. Os Tapajós, diz o jesuíta J oão
Daniel ,7 tinham uma re ligião que secava e preservava os cadáveres de
mo1tos ilustres, o que talvez represente um estágio incipie nte de forma-
ção de estame ntos socia is com privilégios especia is. Alguns grupos Tu-
pinambá e Guarani também apresentavam sinais equi vale ntes pelo p eso
político que ce1tos líde res adquiriam e tra n smitiam aos seus h e rde iros o u
parentes. 8 Os Kadiwéu, os índios cavale iros do pantanal mato-grossen se
e do Chaco p arag uaio, ma ntinham alguns povos v izinhos como seus sú-
ditos, a quem o fe recia m proteção e de quem recebia m tributos e m forma
de mão de o bra e produtos agrícolas. Inte rname nte, constituíam-se em
protoestamentos divididos e ntre clãs nobres, plebeus e servos, marcados
por privilégios , ho nrarias e subordinações formais , porém n ão assentadas
e m bases econô micas, e sim e m capacitação para a guerra. Isso permitia
e facilitava a passagem de indivíduos de uma posição social para o utra.
Curiosamente, a posição mais e levada dessa pequena pirâmide social
condicio nava as s uas mulhe res a não desejarem te r filhos próprios, e sim
adoti vos, vindos das posições infe rio res. Isso demonstra a nature za c ir-
c unstanc ia l o u ainda limina r da hie ra rquização social e ntre os Kadiwéu .9
É evidente que uma unidade política com 500, 1.000 o u 5 .000 pes-
soas não comporta a possibilidade de te r diferenças socia is formais e
h e reditárias. Mas mesm o as grandes populações étnicas não são por
si só suficie ntes para produzir classes sociais . N a África, p o r exemplo,
povos com populações acima de 200 mil indivíduos m a ntiveram sua
condição socia l igualitá ria . É necessá rio haver uma fo rça m a io r de com-
pressão c ultural e geográ fica para contraba la n çar os fortes mecanismos
de centrifugação . Os fato res m ateria is, econ ô micos e geográ ficos e ram
m ais p esados n o lado da centrifugação . O fato r ideológico da auto n o mia
política da a lde ia, que podemos traduzir como o sentime nto da libe rda -
de e do poder a n á rqu ico, justificava e o rdenava esses fato res m ateria is
com grande fo rça e convicção, impedindo a fo rmação e a estabilização
d e priv ilégios setoria is, dispe rsando sempre as bases do pode r hie rar-
quiza nte . Embora como hipótese, podemos s ugerir que, no caso da
Amé rica do Sul não a ndina, só p e la inte rfe rê nc ia de um poder exógen o
muito fo rte pode ríamos esp e rar um tipo d e d esenvolvime nto p o lítico
hie rá rquico . Não h o uve, fe liz o u infe lizme nte .
Os povos indígenas atua is com as m a io res populações, como os
Guara ni - os Tikuna , os Yan omami , os Makuxi, os Xava nte, os Kaingang,
os Guajajara e os Terena - , todos com ma is de 20 mil p essoas, compor-
ta m esses números num alto índice de dispe rsão, d ivididos em dezen as
Q UEM S ÃO OS POVOS INDÍG E N A S 179

de a lde ias, raramente com mais de mil moradores, 10 e espalh adas umas
das o utras por lo ngas distâncias, em á reas as mais das vezes n ão con-
tíguas. É o caso dos Kaingang, que têm pequenas á reas do Rio G rande
do Sul ao estado de São Paulo, e os Guarani, com pequenas terras que
vêm de Mato Grosso do Sul e estados s ulinos e até o Espírito Santo e,
s urpreen-de nte m e nte, ao Maranhão e Pará. Os Terena são, de todos, os
mais con centrados, vivendo em 13 pequenas te rras indígen as de Mato
Grosso do Sul e São Paulo, algu mas das quais compartilhadas com o u-
tros povos indígenas. Os territórios dos Kayapó, Ya nomami e povos do
a lto rio Negro são vastos e, e ntre um extremo e o utro, h á a lde ias e pes-
soas que nunca se conh eceram , ape n as o uviratn falar uns dos o utros .11
Essa realidade aponta e demonstra a fo rça centrífuga de suas socie -
dades, e o seu potencial huma n o e c ultural uni versa l jaz, exatamente,
n o exemplo de ê nfase que dão à libe rdade e auto n omia de unidades
sociais e do próprio indivíduo. Mas h á a lguns povos indígenas, notada-
mente os que falam línguas da família linguística jê, que conseguiram
ag regar números p opulacio nais mais concentrados e produzir estruturas
c ulturais caracte rizadas por divisões e s ubdivisões de grupos e funções
sociais e rituais, sem perder, de fo rma alguma, o seu sentido de igualita-
rismo, autonomia social e libe rdade individual. Po r exemplo, os Canela-
Ramkokamekra, localizados n os cerrados do centro-s ul maranhense,
constitue m apenas uma a lde ia, atua lme nte com cerca de 1.500 pessoas,
e têm uma cultura que abrange os conceitos de d ivisão, se gme ntação e
hie rarqu ização d e grupos que , no entanto, se equilibram entre si, tanto
como estrutura estática quanto na dinâmica do seu cale ndá rio a nua l de
produção e ritua lização. Essa população Cane la é a maior já conhecida,
d esde pelo menos 1830, mas conhe ce mos conce ntraçõe s até maiores
e ntre outros povos Jê, como os Krahô e os Kayapó , que alcan çaram até
3 mil pessoas, a ntes de se dividirem em duas ou mais a lde ias.12 Os Jê,
em geral, representam uma variação da dinâmica dos povos indígen as
d e ce ntrifugação/ conce ntração, pende ndo mais para o se gundo polo,
se m p e rder a caracte rística m aior d e auton omia e anarquia.
A capacidade de adaptação das culturas indígenas permitiu-lhes co-
nhecer e explorar quase todos os nichos ecológicos existentes no Brasil,
do grande ribeirinho à e scassez de água, dos ce rrados às flore stas , dos
pampas às montanhas , do pantanal à caatinga. Suas m aiores conce ntra-
ções populacionais , já v imos, se deram às margens dos gra ndes rios e n o
litoral, mas as zonas de cerrado misturadas às flo restas de galeria permi-
tiam també m as conce ntraç õe s localizadas dos povos J ê . A caatinga nor-
d estina e ra habitada pelos Kariri , Tarairiu , Janduís e outros povos com
180 ÜS fNDIOS E O B RASIi.

c ulturas ap a re nta das à dos J ê, o que talvez s ignifique que eram adapta-
ções a esses tipos de m e io ambiente. Nas flo restas a mazô nica e a tlâ ntica,
as va riações cultura is e ram maiores, bem como a quantidade de línguas
diferentes. Na Serra Ge ra l, podia-se e n contrar desde os Tupinambá aos
pequenos bandos de Puris e Coroados, do séc ulo xv1 ao século XD<.
O potencial de dispersão, de a uto n o mia e de adaptabilidade das cul-
turas indígenas produziu n a América do Sul uma das m aiores quantida-
des de culturas e línguas específicas do mundo. Estima-se que, por volta
de 1500, metade das línguas existe ntes no mundo se e ncontrava nessa
região, talvez aproximadamente 5 mil línguas e variações dialetais, de
acordo com um cálculo abalizado. Alocar quantas dessas e ra m faladas
por índios e m te rritó rio brasileiro é algo bastante difícil, mas se, grosso
modo, corre lacio narmos uma língua própria para cada unidade política,
te ríamos talvez mil o u 1.200 idio m as falados n o Brasil. Po rém, prova-
velmente deveriam ser 600. Atualme nte, seriam 170 ou pouco mais, se
contarmos dialetos que estão divergindo cada vez mais uns dos o utros. 13
A corre lação língua/ c ultura não é constante porque amb as são e n-
tidades histo ricamente determinadas e os seus respecti vos índices de
mudança são va riáveis e podem ser diferentes e ntre s i. Para ce1to tipo
de influência externa, a inte nsidade de mudanças culturais é maior do
que as mudanças que uma língua venha a sofre r n o mesmo tempo. Por
outro lado , a definição c ie ntífica de o nde está a fro nte ira que divide uma
língua d e um se u diale to ou d e uma língua apa re ntada não é tão absolu-
ta como s e supõ e . D iz-se que um d iale to s e torna uma língua e specífica
quando seus fala ntes n ão são compreendidos o u não compreendem os
falantes de outro dialeto , a ntes compreen síve l mutuamente. Permanece
dialeto ou sotaque quando são mutuam e nte inte ligíve is. Por e sse crité rio ,
o po1tuguês se d istingue do italia no ou do fran cês , mas de ce rtos sota -
ques do caste lh ano não é tão nítida a distinção. Em outro exemplo , e ntre
a lg uns dos dialetos falados do ing lês , com o o dos n egros s ulistas n o rte-
am e rica n os e o cockney lo ndrino , d ificilme nte s e pode espe ra r inte ligib i-
lidade m útua . N esse caso, o crité rio que de fine e sse s dois d iale tos numa
mesm a líng ua é mais histó rico-po lítico do que propriamente linguístico .
Do mesmo modo , fi ca por determinar se os quatro ou cinco g rupos
que constitue m o povo Yanomami fala m língu as d istintas ou dialetos,
ou s e a língua dos Xavante se d ife re ncia da língua dos Xe re nte . Por e ssa
razão, o cálculo de quantas lín guas existem n o Brasil é m a is difícil de
ser feito do que o de quantos são os povos indígenas .
As principa is famílias lingu ísticas que têm re pre se ntantes no Brasil
são tupi , jê , ka rib, a rua k , arawá e pan o . Algumas de ssas famílias fo rma m
Q UEM S ÀO OS POVOS J NO f G EN AS 181

tro n cos ling uísticos ma is a mplos, q ue representam o m a io r núme ro d e


lín guas p ossivelme nte a p are ntad as na m a io r p rofundidad e histó rica cal-
c ulável. Em teoria, to d as e las adviriam de uma única p rotolíngua, a qual,
po r su a vez , sobreviria d e uma mais re mo ta e incalculável n o tempo,
até, suposta m e nte, p o r essa cad eia d e regressão, chega rmos à prime ira
língua-màe fala da por n ossos a n cestra is primevos . Po r concl usão, n e -
nhuma língua é primitiva, todas são resultados dispe rsivos da m esm a
e única língua o rig inal. Essas e o utras famílias linguísticas são re pre -
sentadas p o r d e ze nas d e língu as . Antes e ram ainda ma is numerosas,
p o ré m d esap a receram p e la mo rte de se us fala ntes . Algumas famíli as
são re presenta das po r a p e n as umas p o u cas línguas, como é o caso d as
famílias txa p aku ra, k ariri e o utras . Algumas são classificadas com o isola -
d as, te ndo a p e n as uma representante, com o a trumá i, falad a a p e n as p o r
um p e que no g rupo indígen a que vive no a lto Xingu , o u a líng ua tikuna,
falada po r mais de 45 mil índ ios do alto Solimões .
A família tupi, e ampliad ame nte o tron co m acro -tupi, compreende
um número basta nte expressivo d e líng uas e p ovos indígen as, a m a io ria
d os qua is se e n contra ao sul do rio Am a zo nas . O se u exemplar ma is co-
nhecido n o Brasil é o tupinambá, que foi falad o e m quase to da a costa
b rasile ira e serviu de língu a franca para os missio ná rios que aldeavam
p ovos dife re ntes numa mesma redução missio n e ira. Essa líng ua fra n ca,
ta mbé m conhecida com o nheen gatu , a inda é fal ad a e m diversas locali-
dade s da Amazônia . Foi amplam e nte falada n o Brasil até o sé culo XVIJI
e é dela q u e ve m a gra n de ma io ria da topo nímia b rasile ira de o rige m
indígena . Uma sua va riação diale tal veio resulta r n o g uarani mo de rno
q ue é falad o , a tualme nte , p e la m aio ria do p ovo p arag uaio .
Povos q u e fala m líng u as da fa mília tu p i são caracte rizados com o
p ossuidores de c ulturas flex íve is e m ale áveis socio logicame nte , com
re ligiões m a ntidas p o r um complexo mito lógico centrado n as fig uras
d os h e ró is-gêmeos, n o p ajé, no uso do tabaco etc . Essa corre lação é
verdade ira para muitos q ue fala m línguas de um subg ru po de ssa famí-
lia, o Tupi-G u a ra ni, mas as exceções ind icam q u e essas cultu ras fo ram
fo rmad as h á rela tivame nte p o uco te mpo e se ad ap ta m às circ unstâ n cias
histó ricas . Os Guajá e os Urub u-Kaap o r n ào tê m p ajé, p o r exemplo; já
os T apira pé adota ra m fo rmas socia is de se gme ntação, su postam e nte por
influê n cia ta n ge n cial dos povos J ê . Além do ma is, e ssa ma leabilidade
socio lógica també m é e n contrada e ntre o utros p ovos n ào Tupi , sobre tu-
d o os Arua k e Ka rib da Ama zô nia .
Os povos que falam línguas da família linguística jê (que po r sua ve z
compreende com o utras fam ílias um tron co m acro-jê) são a quele s que
182 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.

vivem e m ambie ntes ecológicos de cerrad os e flo resta de gale ria e que
se d istingue m p o r um p adrão c ultural de divisões e segme ntações inte r-
n as, p o r a lde ias circula res o u semicirculares e p o r uma ê n fase pro nun-
ciada sobre a ritua lização de su a v ida cotid ia na . Alguns a ntrop ólogos
gostam de contrastá-los com os Tupi , com o se fossem o seu o p osto, m as
essa é uma a rg ume ntação de valo r me to do lógico restrito e sem base
histó rica o u filosófica . É provável que a gên ese de su a fo rmação c ultural
seja p roduto de s ua ada p tação origina l à ecologia de cerrados e caatin-
gas, mas , nos dias de h o je, há diversos d esses p ovos que vivem exclu-
s iva m e nte n a fl o resta , com o os Rikbatsa , e m Mato Grosso, e os J abuti ,
de Ro ndô nia _14 T alvez p a ra a í te nham migrado em te mpos relativa me nte
recentes, e te rminaram muda ndo su a estrutu ra social p a ra se ad a ptar às
c irc unstân cias socia is e ambie ntais locais .
O ka rib e o a rua k con stitue m líng uas muito esp a lhad as pe la Amé rica
d o Sul e m esm o p e las Antilhas . Os Aru ak fo ram dos prime iros índ ios
e n contrados p or Colo mbo , e é do k a rib q u e vêm as p alavras corres-
p o ndentes ao m a r Ca ribe e a caniba l. P rovavelme nte um p ovo indígen a
q ue m orava n a p e nín sula da Fló rida, os Cibo n ey, e ram fala ntes de uma
líng u a a ruak. Ao sul e les descera m a té o Ch aco p a ragua io . N o Brasil
são faladas p o r p ovos adaptados ta nto às flo restas qua nto aos cerra -
dos e cam pos n aturais , com o é o caso dos Pa likur (a rua k) e Atroa ri
( ka ri b), na fl o resta , e os Pa reci (a rua k) e Ba ka iri ( ka rib), Wapixa n a
( a rua k) e Ma kux i ( ka rib), nos cerrados e campos . Antropologicam e n te,
os Arua k são con sid e rados portado re s d e culturas m a is co m p lexas e
de te re m s ido , e m te mpos a nte rio res , os inte rme diá rios e ntre os p o -
vos a ndinos e os p ovos tropicais , a exempl o dos Ka m pa . Sua c ultu ra
m ate rial e ra m a is e laborada do q u e a dos Karib e Tupi, compo 1ta n do
p opulaçõ e s m a is d e n sas , sobre tudo n o baixo Amazon as . Poré m , são
os Maku x i, povo Ka rib, um dos três m a io res g rupos populac io n a is
indíge nas n o Bras il.
A fam ília lingu ística pan o é fo rmada por d iversas lín guas muito sem e -
lhantes e ntre si, c ujos p o vos fala nte s viv em numa re gião ma is re strita ge o-
graficam e nte , n as bacias dos rios Purus e Ac re e adjacênc ias . No Brasil ,
isso compreende o estado do Acre e p a rte de Rondô nia e s udoeste do
Amazon as . É uma re gião q u e receb e u um influxo v iole nto d e imig ra ntes
n o te mpo da borrach a , a partir de 1890 . Com isso , os ín d ios p e rd e ram
gran de parte dos seus te rritó rios , muitos povos fora m dizimad os e os
sobreviventes compõem p artes me n o res dos seus a ntigos contingentes
populac ionais . São panos , p o r exe m plo , os Kaxinawá , os Katu kina , os
Matis e os Mam bo .
Q UE M S ÀO OS PO VO S I N OfG EN A S 183

As culturas e socie dad es indíge n as a tuais não são as mesmas de 500


a n os atrás, tanto p o rque as populações que as compõem são muito m e -
n o res, quanto porque a dinâmica inte rcultural que as determinava per-
deu inte nsidade pela extinção de dezenas e centenas de o utros povos.
O isolame nto e m que se e n contram muitos povos indíge n as os deixa à
m e rcê de o utras influê nc ias culturais , no tada m e nte da dinâmica regio-
n al da sociedade brasileira. O que se con vém c hamar aculturação não
passa do resultado do processo de compulsão político-cultural que leva
os povos indíge nas a transformar s uas culturas e s uas vidas como me io
de adaptação e sobrevivên c ia. Não mais a um me io ambiente, é claro,
m as a uma realidade social diferente da que viviam antes. Esse processo
continu a em marcha , diferenciado segundo as regiões e de acordo com
as reações esp ec íficas de cada p ovo indíge na.

DIANTE DA REALIDADE SOCIAL

Uma das m e lho res contribuições da antropologia brasileira é o estu-


do sociopolítico dos p ovos indíge nas perante a histó ria do Brasil. Des-
de Curt Nimue ndajú e H e rbe rt Baldus até os estudos mais recentes,
conhecem os as socie dades indíge nas com o inse ridas num mundo mais
a mplo, que as con strange e te nta dominar os se us destinos. Sabemos
que o desenvolvime nto econ ômico do país se fe z sobre os povos autóc-
tones, desde o início, pelo massacre e pelo esbulho . Sabemos també m
que h o uve variações n esse p rocesso, de acordo com a época histó rica
e o tipo de econo mia dominante. Uma frente de expan são ag rícola ne-
cessitava de te rras e m ão de obra; a pastoril n ecessitava, sobre tudo , d e
te rras; a extrativa só precisava dos bens flo restais e uma m ão d e obra
sazon al. Cada uma desenvol ve u um modus vivendi com os índios, cujos
territórios invadia. No cômputo geral, a extinção de povos, as perdas
populac io na is de uns e o afastame nto de o utros d e pe ndia m do tipo d e
econ omia/ tempo histórico .
O fato de não te rem sobrevivido permanentemente povos indígen as
na expan são pasto ril n o Nordeste a partir de 1654 é explicado tanto por
sua caracte rística econ ômica pastoril quanto p e la inte n sidade da violê n-
c ia utilizada , com e ntradas oficiais e bande iras contratadas , m otivadas
pela reação dos índios e pelo m edo do re to rno dos ho landeses . Aqueles
que sobreviveram , a ldeados p o r jes uítas o u a uto ridades da Coroa , so-
fre ram contínuos constran gime ntos até m eados do século XIX, quando a
m aio ria foi extinta.
184 Os INDIOS E O B RASIi.

Não resta rem índios nas Minas Gerais de 1700 é resultado da p o lítica
explícita de genocídio praticada pelos interesses de mineradores, que
receavam a libe rdade dos índios e precisavam de mão de obra inte nsiva,
fundamentalmente escrava.
No baixo Amazonas, a grande quantidade de índios que sobrev iveram
até a Caban agem , cerca de 120 mil, e mprestavam a sua força de trabalho
para coletar bens flo restais, como cacau , salsaparrilha, cane la, ovos de
tartaruga etc. Con viviam com o p eque no número de luso-bras ileiros nas
poucas vilas existe ntes de um m odo mais o u m e nos estável, até surgi-
rem as mudanças do pós-independência qu e fize ram aflorar as contradi-
ções socioeconômicas desse relacion amento, resultando na Caban agem.
A focalização dessas realidades e as suas pequenas (mas significati-
vas) va riações levou a antropologia a classificar os p ovos indíge nas não
somente pelos seus tipos de c ultura e língua, mas também pela posição
e relacio namento que tinham e tê m com as sociedades regionais que os
e nvolvem. Assim, passaram a ser conhecidos também com o índios o u
povos indíge nas "arredios ao contato" o u e m estado isolado, em conta-
to inte rmitente o u permanente, em vias de integração e integrados. O
Estatuto do Índio usa essa te rmino logia, e este parece ser um dos m oti-
vos que levam o m ovime nto indíge na e as ONGS indige nistas a querem
mudá-lo. A discussão que h avia e ntre os conceitos de aculturação e as-
similação, e se os índios e ram assimilados o u não pela sociedade nacio-
n al, fico u resolvida pela e laboração da a rg ume ntação de que os índios,
n o Brasil , não se assimilam e nqua nto sociedades e c ulturas . Podem ser
assimilados como indivíduos que v iram b rasile iros indife re nc iadas, ou,
n a m elho r das hipóteses, ao p e rde rem s uas características esp ecíficas,
viram índios gené ricos, reconhec idos apen as p o r caracteres físicos o u
h ábitos ru ra is que aos p o ucos se diluem no conjunto geral da p opulação
b rasile ira . Enquanto índios, e nquanto povos, n ão h á assimilação . O con-
ceito de integração som e nte pode ser u sado para se re fe rir à s ua parti-
c ipação social o u econômica n a sociedade regio n a l o u a nível n acio na l.
Po ré m , numa a n álise ma is aprofundada, através de uma perspectiva
que inclua o ponto de v ista do índio, verem os qu e essa tipologia não faz
jus ao gra u de variedade que existe n os relacio na me ntos inte ré tnicos,
nem abra n ge as possibilidades de con sciê nc ia de posicionamento ou
m anifestação política . O ponto c ru c ial é a distinção e ntre ma nte r o u não
contato com a socie dade e nvolvente . Para este último caso , con side ra -
m os a n ature za p o lítica da a usên c ia do contato, sob o p o nto de vista
do índio. Assim , usamos a expressão "a utô no mo" o u "povo indígen a
autônomo" para carac te rizá-lo . Os d e ma is índios, ao e ntra r em contato,
estariam todos, teoricam e nte, e m vias d e integração . Seriam , na ve rdade,
Q UE M S ÀO OS PO VO S I N OfG EN A S 187

declara que h á cerca de 60 indíc ios o u ev idê n cias de grupos indígen as


vivendo a uto n omamente, porém desses provavelmente não mais que
20 a 30 seriam fo rmados por populações com até 30 ou 40 pessoas. A
maioria absoluta desses grupos e n contra-se n os confins das fro nte iras
econ ômicas brasileiras, n a Amazônia Ocide ntal, embora h aja pequenos
grupos em regiões mais acessíveis, como o oeste do Ma ranhão, onde se
encontram os Guajá e, até pouco tempo, as cabeceiras do rio Tocantins,
em Goiás, o nde se re fugiavam um possível grupo Avá-Canoeiro. Em
regiões com o a do rio Javari, n o Amazonas, e a bacia do rio T rombetas,
n o Pará, a quantidade de povos indígenas não reconhecidos é expres-
siva; n ão se sabe, porém, se em certos luga res são cinco ou seis povos
específicos o u ape n as dois o u três, mas com muitas a lde ias separadas e
distantes umas das o utras.
O Censo 2010, ao receber a resposta do entrevistado de que e ra indí-
gena, pergunta em seguida a qual povo ele pe1tence, ou ach a que per-
te nce, e se fala a lguma língua indígen a. O resultado n ão podia ser o utro
senão a confusão e profusão de etnónimos, o que denota a irrealidade
dos resultados. Seriam 305 as e tnias indígenas no Brasil falando 274 lín-
guas. No cômputo de línguas faladas, o IBGE conta os n omes de povos
ressurgidos que evide ntemente só falam português, como os Karapotó,
Tumbalalá, Tabajara e muitos mais. Apenas um aspecto fica claro neste
Censo: há muitos brasileiros que gostariam de ser identificados como
indígenas ao invés de qualquer das o utras opções.
Embora n ão seja imprescindível para a sua conceituação, o reconhe -
c ime nto da ide ntidade indíge na por parte do Estado é de te rminante para
a sobrevivência dos povos indígenas. Som e nte a pa1tir desse ponto os
índios passam a ter direitos específicos que estão cons ig n ados n o Estatu-
to do Índio, criado pela Le i n. 6.001, em 1973, o qual regulamenta as re -
lações inte ré tnicas no país. N ele as te rras indígenas são protegidas com o
te rras da União, cabe ndo aos índios o usufruto exclusivo e ina lie n ável e
da fo rma que lhes conv ie r. Sem isso, raros são os casos em que há reco-
nhecime nto do direito às terras de a ntigas comunidades indígenas, mui-
tas das quais haviam sido "extintas" oficialme nte . Por muito tempo, as
alde ias extintas que haviam preservado comunidades ativas e ram v istas
como a lde ias de "caboclos", tanto por parte da população circ unvizinha
quanto por eles próprios, que não se autoidentificavam com o indíge-
nas ne m e ram reconhecidos pela Funai. H á exemplos desses casos no
Maranhão, n o Piauí, n o Ceará, n a Bahia, em Alagoas e muitos lugares da
Amazônia. D iversas dessas alde ias vieram à tona n os ú ltimos 20 a n os e
e ntraram e m processo de etnogê nese, passando a ser reconhecidas com o
indígenas. São os casos dos índios Tapuias , d e Goiás, Pitaguary, Anacé,
188 ÜS fNDIOS E O B RASIi.

Canindé, no Ceará, Ta b aja ra , n a Pa raíba, Tumbala lá e Tupina mbá, n a


Ba hia, Tupiniquim, n o Es pírito Santo, Bo rari , no Pa rá, e o utros m a is .
Enfim, pa ra n ão ficar n a indecisão e indefinição, há d e se te r uma
ideia d e qua ntos são os índ ios n o Brasil. A minha resposta é d e que são
cerca de 630 mil , contando ap roxima da me nte 100 mil que v ivem n as
c idades p e rma n e nte m e nte, e descons ide rando a queles que se dize m
indígenas p o r m otivos variados, mas que n ão tê m qua lque r ide ntificação
com um povo indígen a atual o u a lguma v ivência cultura l indígen a .
Po r fim, há d e se ob serva r que se r índio no Bras il não é uma questão
bio lógica o u gen é tica. Se o fosse, a s evidê n cias bio lógicas captada s p o r
pesquisas sobre ge né tica de brasile iros de mo n stram que cerca de 30%
d os genes brasile iros, em mé dia, vêm de estoque indíge na . O fato é que,
n os do is prime iros séculos de colo nização, a miscigen ação foi ca racte -
rística b a stante reco rre nte e crio u um genó tipo n acio na l qu e, mesm o
com a presen ça m aciça de africanos, po rtug u eses e o utros e u rope us,
d eixou m a rcas indeléveis n o n osso esto que gen ético . Assim, não é fo ra
da realidad e a lgué m alega r que é indíge na po rque te m uma "bisavó"
(sempre as bisavós) indígena, p o is, e mbo ra não tão recente me nte, um
te rço d e n ossa p o pulação tem anteced e ntes gen éticos indígenas . É ap e -
n as um p o u co rom â ntico .

ONDE ESTÃO OS POVOS INDÍGENAS

A grande ma io ria dos p ovos indígenas se e n contra na Ama zô nia, p a r-


tic ula rme nte nos estados do Am a zo nas e Roraima . Lá estão as m aio res
varie dade s é tnicas e ling u ísticas e as maiore s populaçõ es por unidade
é tnica , como os Tikuna , com 46 .045 , n o alto Solimões , os Makux i, que
são 28 .9 12, e m Roraima , os Yan o m a mi , com 21.982 , e os dive rsos povos
d o rio Negro , que soma m ma is d e 40 mil p essoas . Os Yan o m ami , c ujo
te rritó rio , co m 9 ,8 milhõe s d e h ectare s , a ba rca parte d os e stad os d e
Ro raima e Amazon as, são o ma is nume roso po vo a utô n om o da Amé rica
d o Sul , soma ndo ma is d e 40 mil , ao inc luirmos as aldeias s itua das alé m-
fro nte ira , n a Ven e zuela . De fato , se o Estatuto do Índio tivesse s ido se-
guido ao pé d a le tra , n os a n os 1970 , o e stad o d e Ro raima de ve ria te r sido
alçado a "te rritó rio indíge na ", já que m ais d e 300/4 de sua popula ção e ra
d e indígen as . H o je , devido à imigração de n o rdestinos e sulistas, a p o -
pulação indígen a d e Rora ima ca iu para ap rox imada me nte 15% do to tal.
No Pa rá , ine spe radam e nte, n ão é muito nume rosa a po pula ção in-
d íge n a . Com o vimos, a população do baixo Am a zo nas foi quase tod a
Q UE M S ÀO OS PO VO S I N OfG EN A S 189

perseguida e extinta pelas forças de repressão à Cabanagem. Suas popu-


lações atuais encontram-se nas áreas de recente desenvolvimento eco-
nômico, pois as que se situavam em áreas de exploração de castanhais
e borracha também sofreram igual processo de extermínio nos fins do
século passado. Os Munduruku, que vivem em terras da bacia do Tapa-
jós, somam 13.013 pessoas.
Em Mato Grosso do Sul estão duas das maiores populações indíge-
nas, os Guarani, subgrupo Kaiowá, com 43.400 pessoas, e os Terena,
com 28.845. Porém, são os povos indígenas com as menores extensões
de terras, vivendo todos em s ituação de a lta densidade e com carência
de áreas para agricultura.
Muitas populações indígenas têm seus territórios em ricas províncias
minerais, como é o caso dos Waimiri-Atroari, Yanomami, Xikrin , Kayapó
e Cintas-Largas, com cassiterita , cobre, ferro , ouro e diamantes , ou pe-
tróleo e gás, como nos vales do Purus e Javari , onde estão diversas
terras indígenas , e no rio Madeira entre os Munduruku e Maué. Nas
décadas de 1970 e 1980 , quando se obteve conhecimento dessa realida-
de, houve certo freio no ritmo de demarcação de terras s ituadas em tais
áreas minerais. A Terra Indígena Raposa Serra do Sol, no nordeste de
Roraima, levou anos para ser reconhecida e homologada , entre outras
razões , porque havia a a legação de que tinha muito ouro e outros miné-
rios , e que eram cobiçados por inte resses de estrange iros querendo que
tal te rra fosse reconhecida com o indíge na. No caso dos Waimiri-Atroari,
e m c uja te rra existe uma empresa explorando cassite rita , e mbora atual-
mente pagando royalties aos índios , o governo c h egou ao ponto de
in cúria e favo rec imento deslavados ao desfazer uma primeira demar-
cação daquela terra para acomodar os inte resses minerais da e mpresa
Paranapane ma , c ujos sócios mais impottantes e ram a ltos func io ná rios
do govern o federal. Entretanto, quando se fo i fazer a Hidrelétrica de
Balbina, que inundo u 30 mil hectares dessas terras, a Funa i conseguiu
demarcar um te rritó rio d e mais d e 2,5 milhões de hectares .16
Em algumas áreas da Amazô nia ocorre m situações muito semelhantes
àquelas que caracterizavam os séculos p assados . Nelas os índios vivem
num padrão de povoa mento basta nte disperso, em vastas áreas, junto
a comunidades de lavradores ou extrato res d e produtos silvestres, num
ambie nte d e aceitação, apesar de desconfianças mútuas. Isso se dá com
frequên cia na bacia do baixo e médio rio Madeira, com índios Mura,
Munduruku , Mawé, Parintintin , Pirahã, e no rio Negro , com os Baré, fa-
lantes do nheengatu. O Ac re, que até m ead os da década de 1970 não re -
conhecia suas popu lações indígenas e h oje conta mais de 16 mil , ainda
Q UEM SÃO OS POVOS INDÍGENAS 191

c ultura comum a tod os, transcende ndo a s s uas tradições a nte rio re s pe la
unidade p o lítica e social. Cada p ovo p e rmanece inde p e nde nte po litica-
m e nte, m as abre mão de sua autossuficiê n cia p a ra qu e h aja a n ecessi-
d ade de inte rcâmbio econô mico e a consolidação simbólica p o r rituais
compa rtilha do s po r to do s. D essa forma, um p ovo se esp ecializa e m
fabri car grandes pa ne las d e b a rro (com o os Wa urá), e nquanto o utros
se es p ecializam e m fabricar a rcos (como os Kamay urá), cola res de cara -
mujo (como os Kuikuro), o u machados d e pe dra (como a ntigame nte fa-
zia m os Trumái) . A troca com e rcial é fe ita po r valo res preestabe lecidos,
p o ré m havendo p o ssibilidades de barga nha , d e acordo com a me lho r
o u pio r qualida de d o produto, o u p o r m o tivos fora da esfe ra pura me nte
econ ômica, com o o d esejo de estabe lecer uma alia nça ma trimo nial e n-
tre d e te rminadas famílias . E tudo isso se d á se m o me io de uma língua
fran ca , ape na s p e lo re spe ito a prá ticas e stabe lecidas e com a a juda d e
p essoas bilíngues e p o liglotas, sempre presentes nas diversas alde ias .
Esse complexo cultura l é resultado histó rico d a confluê n cia desses p o -
vos, e de o utros que se e xtinguiram já n e sse século, que conscie nte me nte
e labo raram os princípio s de um p a n-indige nism o a utócto ne igualita rista .

Takumã, grande pajé do povo indígena Kamayurá, em momento reflexivo


por ocasião de cerimônia do Kwarup, Parque Indígena do Xingu .
192 0 S IN DIO S E O B R A S 1 1.

Em o utras regiões, como n o a lto rio Negro, existe m s ituações p a re -


c idas, p o ré m n ão tão elab o radas e h a rmô nicas . Pe lo contrá rio, n o a lto
rio Negro surgiram ind ícios de uma hierarq uização de e tnias - algumas
dom ina ntes e com símbolos de poder; o utras subalte rnas. Em virtude
d isso, uma língua fra nca fo i d isseminada e ntre os diversos povos que
p a rticipam desse s iste m a, e é fala da por q uase todos com o uma segunda
e até terceira língu a . Essa é uma situação qu e talvez tenha sido muito
comum n os tempos p ré -colo mb ian os, qua ndo e ra ma is frequ e nte a n e -
cessida de de fe d erações de p ovos indígenas sob o controle de um p ovo
m ais ague rrido o u m a is b e m posic io na do est ratégica e geograficame nte .
Ain da na Am a zô nia, d iversos p ovos indíge nas detê m e m seus te r-
ritó rios rique zas q ue são mo tivo de inte resses econ ô micos de d ive rsas
o rde n s, desde estata is e multinacio n a is, d e p rodutos extrativos a o uro
e p etró leo . Alg uns desses p ovos adq uiriram um sentido da impo rtâ n c ia
d esses ben s e p rodutos e começam a exigir o cumprime nto de seus
dire itos à explo ração o u p a rticipação n o lucro . Os Sate ré -Mawé , p o r
exemplo, fora m firmes e m exigir e obte r indenizações e re p arações p e -
las destruições q ue a e mpresa fra n cesa Elf-Aquitaine fe z n o seu te rritó rio
n a busca de p etróleo através de contratos d e risco com a Pe trobras . Os
Gaviões do Pa rá, em c ujas te rras p assaram as linhas de tra nsmissão d a
UHE Tucuruí e , e m seguida, a Fe rrovia Carajás , obtiveram inde nizações

p ecuniárias bastante ra zoáveis - n o ú ltimo caso , o equivale nte a cerca


d e US$ 1 milhã o , e m de trime nto a re paraçõe s e q uivale nte s em te rra , q u e
se ria ma is admin istrável e ma is se gu ro para o se u futu ro . Em o utras á re -
as, com o a dos Kayap ó , Munduruku e Cintas-Largas , a presença de ga-
rimpos fo i condic io n ada ao conhecime nto dos pró prios índ ios e a uma
p a tt icipação n os lucros da explo raç ão do o uro e d ia ma n te . Em o utras,
como n as te rras dos Guajaja ra , n o Mara nhão , e e m ta n tas te rras d e Mato
Grosso e Rondô nia , os índ ios são ind uzidos a p e rmitir a exploração de
m ade iras no bres, e m a lg uns p o ucos casos com a coni vênc ia de fun cio-
n ários da p rópria Funai, junto às em p resas made ire iras . Isso co nstitui
uma viola ção dos princípios co nstitu cio n a is q u e rege m a p roteção das
te r ras ind ígen as com o p atrimô nio da União . A p artic ipação dos índios
n esses casos deixa-os numa s ituação a mbíg ua p erante a le i e perante os
inte resse s m aio res da n ação .17
Fora m fo rçadas cond içõe s e xtre m ame nte d esva ntajosas para a sobre -
vivênc ia cultural d e a lguns p ovos , cujo contato inicia l com a sociedade
brasile ira se caracte rizo u pela imposição econ ô mica - com o n os estados
do Sul , a patt ir do início de ste séc ulo , o u e m Mato G rosso , p e la expan-
são agrícola d e gra n de p o rte . Em p rime iro luga r, su as te rras fo ra m red u-
Q UEM S ÀO OS POVOS I NO f G E N A S 193

zidas a ta manhos mínimos para que o resto fosse loteado entre colonos
o u faze nde iros. Sofrem dessas condições os Guarani e Kaingang das
reservas localizadas n o estado de São Paulo (Vanuire, Icatu e Araribá),
os Kaingang do Paraná, Santa Catarina e Rio G rande do Sul, e d os G ua-
ran i Kaiowá e Nandeva, b e m com o os Te re na de Mato Grosso do Su l. 18
Na á rea indígena de Panambi , os Kaiowá viram suas terras loteadas na
d écada de 1930 p o r um projeto econ ô mico do governo federal qu e, n o
final , só lhes conce de u a lguns dos pequenos lotes destinados a agricu l-
to res imigrados de São Paulo e Paraná. De índios passaram a s imples
locatários, numa situação con strangedora que só foi re dimida e m 2005,
quando toda a te rra lo teada foi revertida p ara os índios, após a n os de
luta p o r parte dos índios, d a Funai e do Cimi. 19 Entre tanto, na década d e
1990 e les receb eram o apo io da Funai para re to mar as parcelas d e te rras
redistribuídas e con seguiram reavê-las. Em 2005, como presidente da
Funai, tive a ho nra de comemorar com os G uarani da T. I. Panambi não
somente a demarcação, com o també m a ho m o logação dessa te rra indí-
gena na presença do então ministro da Justiça, Márcio Tho mas Bas tos .
No Nordeste, di versos povos indígenas sobreviveram e m grande pro-
ximidade a cidades e v ilas, em vá rios casos lite ralme nte d e ntro de cida-
d es . Em Pe rnambu co, na cidade de Águas Belas, vive o p ovo Fulniô, o
único povo indígena no No rdeste que manteve s ua língua orig inal. A c i-
dade é parc ia lme nte localizada dentro da te rra indígena e paga foro aos
índios p elas casas que lá existem. Os Fulniô, por sua ve z, praticam um
ritual esp ecial, o O uric uri, e m uma reserva da s u a te rra localizada n o ar-
rabalde da c idade. Lá, todos, o nde quer que estejam vivendo, de Recife
a Brasília , Rio de Janeiro e São Pa ulo, se reúnem uma ve z ao ano para
feste jar sua cerimô nia principa l e reafirmar os laços de sua identidade .
Os Tuxá, descende ntes de povos indíge nas que h abitavam o m édio rio
São Francisco e que foram a ldeados em missão pelos capuchinhos fran-
ceses n o século xvn, m oravam na cida de de Rode las, à beira desse ri o,
constituindo uma comunidade étnica e ntre as o utras duas principais - a
dos negros e a dos brancos - , numa s imb iose social bastante comum n o
século passado (e, claro, sob a égide po lítica da e tnia branca dom in an -
te) . Para sobrevive r , os Tuxá praticavam a agr ic ultura de vá rzea numa
ilha qu e lhes resto u com o te rritó rio próprio, e traba lhavam e m serviços
urba nos, va ria ndo de acordo com o grau de s ua qu alificação e ducativa
e profissio na l. O ser índio, neste caso, permanece pelo sentime nto de
descendência e pela m a nutenção dos laços de solidarie da de socia l tec i-
dos pe las re des d e casam e nto e ndógen o, compadrio e auxílio mútuo d e
traba lho . Os rituais próprios são de tradição indíge na , mas adaptados às
Q UEM S ÀO OS POVOS I NO f G E N A S 195

tavam p a rcialme nte a rre ndadas p ara pla ntado res de cana-de -aç úca r, por
o bra , no início, de funcio ná rios do sP1; depois, por o bra de a lgumas lide -
ra nças indíge nas. A luta pela recuperação das terras perdidas e pela ma -
nute n ção das te rras já demarcadas provocou conflitos, m o rtes, despejos
forçados, fugas , a meaças de invasões de jagunços e a té ações da polícia
estadua l. Muitos Potiguara saíram e se mudaram para J oão Pessoa, Rio
de Janeiro e o utras cidades. Ho je, duas das três grandes glebas de te rras
potiguaras estão demarcadas e h om o logadas - as te rras indíge nas Poti-
guara e São Domingos do J acaré - , restando o conturba do lote c hamado
Monte Mor, cujo processo de demarcação segue o vaivém da perambu-
lação judiciária brasileira. Os Potigua ra que vivem em te rra indíge n a so-
mam h o je m ais de 15 mil pessoas e se e ntrinc h eiram pela su a continui-
dade é tnica, buscando inclus ive reapre nde r s ua língua o riginal , um dos
últimos descendentes diretos da velha nação Tupinambá, e um dos p o u-
quíssimos povos indíge n as a guardar um pedaço do litoral brasileiro. 21
O utro povo indíge n a que sobrevive na costa brasileira são os Pataxó,
reconhecidos em duas situações distintas. Uma é a d os Pataxó-Hãh ãhãe,
que v ivem na Te rra Indíge na Cara muru-Paraguaç u , nas vizinha n ças de
Ilhé us e municípios v izinhos; a segunda é a dos Pataxó, que vivem
em diversas terras, inclusive e m parte do Monte Pascoal, n as circ un-
vizinhanças da cidade d e Po rto Seguro. É precisa r esclarecer desde já
que ambos os Pa taxó são agregados de descendentes de vários povos
distintos. O te rmo "pata,xó" é ape n as um dos vá rios nomes dados para
um rol de povos que falavam línguas seme lhantes, da família botocudo,
tro n co macro-jê, praticantes de uma c ultura de caçadores e cole to res,
com agricultura simples, que viviam n as matas dos vales do Mucuri ,
J e quitinhonha , Prado, Contas e outros, já conhecidos desd e o início do
século XIX, m as que e m gra nde parte haviam pe rma n ecido isolados e
a utô nomos . No rio Mucuri (Me), duas dessas etnias foram contatadas na
década de 1920, e se ag regaram p e lo e tnô nimo Maxakali , hoje vivendo
e m duas pe que nas te rras indíge nas, ma nte ndo su a língu a e preserva ndo
grande parte d e sua c ultura.
J á as e tnias Kamakã , Mongoió , Maluli , G ueré n , Baenan , te ndo sofrido
muitas perdas demográficas após seu contato por uma equ ipe do SPJ, se
agre garam aos Pataxó. O contato com esses povos fo i feito em 1921, n o
auge da expansão do cacau. Aos que viviam na região do rio Prado, que
h aviam s ido contatados em 1923, foi-lhes reservada uma á rea definida
em 1928 como te ndo 50 léguas e m quadra , a qual , em 1938, fora demar-
cada pe lo estado da Bahia, junto com o SPI, e m cerca de 54 mil hectares,
a Reserva Indíge na Caramuru-Paraguaçu . Entre tanto, meses de pois, sob
196 0 S I N D I O S E O B R A S 1 1.

o pre texto de que se esb oçava uma gue rrilha na á rea, já que o c h efe d e
p osto era cons iderado comunista, os índios agregad os e m to rno d e um
posto indígena fo ram atacad os por um d estacame nto da Po lícia Milita r
d a Ba hia, com muitas m o rtes e a fu ga desesp e rada dos dema is . Em
seguida, essas te rras fo ram invadidas, to m ad as e e m p a rte arre ndadas
p o r agentes do SPI, n a justificativa d e que n ão h avia ma is índ ios. Po ré m ,
muitos ficaram escon d idos o u d isfarçad os como não índios, e, m esm o
tra ba lha ndo com o peões n a fa ze ndas a lhe ias, ale nta ram o sentime nto
de continuidade étnica . Em m eados da décad a de 1960, com a ditadura
milita r, o governo da Ba hia, sob a lide rança d o governad o r Antô nio
Carlos Magalhães, passou a conceder títulos de p ropriedade p ara esses
invasores à revelia do ine rme SPI e dep o is da Funai. Eis, e ntre ta nto, que
o espírito indígena não estava a niq uila do; a p a rtir d e 1977, com eçou o
m ovime nto de volta d os exilados Pataxó e seus descende ntes . Extrao r-
d iná rios líderes ind ígenas con voca ram suas famílias e pa trícios de vá rias
pa ttes do país, e, com a ajuda de indigenistas da Funai, p e n etra ram na
te rra o riginá ria e assenta ram aca mpa m e nto n a faze nda q ue h avia se ins -
talado n a sede do ab a ndo na do p osto indígena . De lá não sairia m ma is, e
fo ra m re to ma ndo seu te rritó rio faze nda p o r faze nda, até ch egar a cerca
d e 19 mil hectares . Enqua nto isso, a Funa i e ntrara e m juízo, em 1982,
p a ra a nula r os títulos d e te rras con cedidos p e lo Esta do . Essa dis puta se
alo ngou com muita acride z , muito sofrime nto e muitas m o rtes , inclu-
sive a d e Gald ino J es us d os Santos Pataxó, q ue imado vivo n o Dia do
Índio de 1997, e m Brasília , por uma gan gue de adolesce ntes pe rve rsos .
Fina lme nte , e m m a io de 2012, po r q uase una nimidade, o ST F reconhe -
ceu a p etição d a Funa i e liberou to da a á rea d e ma rcad a e m 1938 para
os Pataxó . Agora estão n o p roce sso d e faze r uso d e ssas faze n das, com
e spe rados conflitos pela fre nte - porém , d e sta ve z, com final fe liz . Em
conjunto esse g rupo das e tnias Mon goió , Kiriri-Supaya , Baen a n e o utras
se reconhecem como Pataxó-Hã h ãh ãe .
O se gundo co ntinge nte Pa taxó e stá exatam e nte n o ponto e m que o
Brasil foi primeiro visto por Pe dro Álva re s Cabra l, na á rea expa nd ida do
atual Pa rque Nacio n al de Monte Pascoal, e e m o utras p e que nas á reas
n as circ un vizinha nças da cidade de Po rto Segu ro . A a lde ia Barra Velha é
su a o rige m histórica m ais recente, n a be ira d o ma r. D ian te da le gislação
d e proteção am b ie ntal, os Pataxó co nseg uira m o d ire ito à caça e cole ta
d e p rodutos na tu ra is , e m um te rço d o Parque . Pe scam a rtesana lme nte
e vende m seu p roduto nas cida des vizinhas . D urante muitos a n os, fo -
ra m incitados por m adeireiros a p e rmitir o coit e d e á rvore s no bre s , às
veze s sob a co nivê n cia das a uto ridade s loca is . Hoje cole tam a pe nas o
Q UEM S ÀO OS POVOS I NO f G E N A S 197

s uficiente para tornear e esculpir artesanatos de madeira e vende r p e lo


Brasil, especialme nte n o Rio de Jane iro e em São Paulo. De Ba rra Velha,
ainda na década de 1950, diversos grupos migraram para outras áreas de
flo resta e p ara um local ao la do de Po rto Seguro, o nde, nos a nos 1990,
conseguiram o bte r o reconhecime nto de oc upação tradicio nal to rna ndo
esse local te rra indígena com o n ome de Coroa Vermelha. A demarcação
das demais te rras assentadas tem passado por muitas dificuldades e m
vista da alegação de direitos de propriedade por p a rte de fazendeiros e
de donos de casas de praia.
Os Pataxó-Hãhãhãe e os Patax:ó de Porto Seguro fizeram para si,
depois de muitas dificuldades e a inda inconclusivamente, um contexto
especia l do viver indíge na e m que o tradicio nal se m escla com o urba -
n o, cujas regras de convivê n cia com a sociedade do minante são incons -
tantes e circunstanciadas. Po rém, vivem à beira-mar. 22
Em todo o Nordeste, a luta pela sobrevivência é tnica é uma constan-
te e e nglo b a diversos e le me ntos da sociedade e da política regio n a is.
Os Kiriri, localizados no município de Mirande la, por exemplo, fize ram
pa tte do grupo de pessoas que formaram o arraial de Canudos, dirigido
p elo mile na rista Antônio Conselhe iro, e m fins do século p assado. O
m ovime nto social foi desbaratado e os Kiriri que lá estava m sofreram
as consequ ê n cias impostas aos mais leais e próximos n a defesa do seu
líde r. Os a tuais Kiriri são sobreviventes dos que pe rman eceram e m suas
terras, doadas pelo Imperador an os a ntes. Ao lo ngo do século xx, essas
te rras foram sendo invadidas p o r pequenos lavrado res e fazende iros os
quais, ao sere m confro ntados pelo processo de d em a rcação moderno,
a rgu m e ntavam que o ta manh o alegado p elos Kiriri seria maior do que
aquele constado n os te rmos da doação. Na verdade, o debate tinh a a l-
guma p e rtinê n cia n a m edida em que n ão se esclarecia o que s ignifica
"légua em quadra", que é a expressão usada e m muitas doações impe -
riais, cujo ta ma nho va riava com o tempo, e d e que ponto é que se d eve
m edir essa légua . Po rém tal disputa p e rdu ro u por bastante te mpo nem
ta nto por essa questão , já que a localização real das terras kiriris era co-
nhecida por tradição . A insistência nessa inte rpretação devia-se simples-
m e nte ao fato de que os mo radores ma is a ntigos e os invasores recentes
n ão queriam sair p o r não h ave r o utras te rras para cultiva r e sobrevive r.
Jogava-se, assim, sobre o índio (que, por su a vez, já é um povo espolia-
do) o ô nus d e um proble ma social que e le n ão e nge ndra ra . Esse proble -
ma se repetiu na demarcação de muitas outras á reas, como a dos Xocó,
dos Pankara ru , dos Truká , e e ntre muitos povos pelo Brasil afora .23
É no Nordeste que se localiza, e nfim, a maior quantidade de povos
indígenas sobreviventes em alto estágio de acultu ração e dependência
198 0 S IN D I O S E O B R A S 1 1.

com a socied ad e e nvolvente . Po u cos, de fato, m a ntê m a inda s ua lín-


gu a o rig inal, exceção fe ita aos Fulniô, m o rado res urba n os de Ág uas
Belas, e m Pe rnambuco .24 A g rande m aio ria desses p ovos caracte riza -se
c ulturalme nte p o r alg uns ritua is e da nças, gene ricame nte cha mados d e
toré o u tu ré, e p o r cre nças sobre espíritos d as m atas, das caatingas, d as
ág uas - e m a lg uns casos, com sinc retismos com c re n ças a frican as . To -
d os vê m faze ndo um e n o rme esforço de resgate de s ua me mó ria, procu-
ra ndo lembrar p alavras e expressões o rig inais de su as líng u as, e m esm o
buscando apre nde r o utra líng ua indíge na p a ra inte n sificar o sentime nto
d e ide ntidad e é tnica .
Pa ra esses p ovos ind ígenas, o que de te rmina o ser índio não são os
símbo los ma is visíveis e costume iros, reconhecidos como pré -colombia -
n os : ritua is, práticas d e caça e s ua instrume n tá ria, re ligião e a pró pria
lín gua. Muitos a ntrop ó logos con s idera m q ue é s implesm e nte o contraste
que o p e ra m em re lação aos o utros, isto é, à sociedade ma is geral, que
os m a nté m distintos e esp ecíficos . O ser indígena n ão seria ma is um
m odo tradic io n al de ser , m as uma esp ecific idad e, um contraste com o
ge ral , mesmo que isso se d ê unicam e nte p e la s ua a uto ide ntida de e p e lo
reconhecime nto dos o utros .
Na verdade, há mo tivos substanc ia is p a ra se definir a esp ecific idad e
d e um m od o de ser, com o o desses índios do No rdeste . O princ ipa l,
a lé m d o reconhecime nto d e uma ascendê n cia t radic io na l - m esmo que
e nvolv ido e m elaboraçõe s mito lógicas - , é que cada um de sse s povos
vive como um tod o na su a re p rodu ção social e b io lógica . Em bora haja
excep c io na lme nte casame ntos mistos o u inte rétnicos , a m a io ria se d á
e ntre p essoas do g rupo étnico e p o r m otivos d e ma nute n ção do gru-
p o . E, n o c aso de casame ntos mistos o u exógen os , seg u e -s e a re gra d e
inco rporação dos estra nhos o u dos se us filhos ao gru po, seja por qual
linha de p a re ntesco - p e lo la do da mãe o u p e lo lad o do p a i. O impo r-
ta nte é haver uma regra de desce ndê nc ia que prese rve a fo rça centrípe ta
e a e strutura do grupo . É ce rto que o q ue dá firme za a e ssa e strutu ra é
o se u e nra iza me n to em um te rritó rio , o se u com p lem e nto n ecessário .
Daí a luta p e lo reconhecime nto de s uas te r ras cons ide radas tradicio n a is ,
d e m a rcadas o u n ão , ser a luta p e la própria sobrevivê nc ia é tnica . Com a
te rra , c om um g rupo soc ia l, p roduz-se fa cilme nte c ultura .
Até a dé cada d e 1970 , sabia-se d e comu n idade s de de sce nd e nte s d e
índios que viv iam p e los sertões do Bras il , quase sempre de um m od o
o primido e e n vergonhad o , sem se a utod e clara re m indígenas . Eram vis -
tos p e los vizinhos como "caboclos", n o se ntido do sé culo XIX - com o
d escen de ntes d e índ ios , p o rém já se m muitas ca racte rísticas indíge n as .
Q UEM S ÀO OS POVOS I NO f G EN AS 199

Entretanto, a lgo aconteceu a p a rtir da década de 1980, qua ndo essas


comunidad es levantaram a cabeça e p a rtiram p a ra a busca d e reco-
nhecime nto p or p a rte do Estad o b ras ile iro d e s u a "india nidad e" . Desd e
e ntão, m a is de vinte e tnias "ressurg iram " n o pano rama ind ígena brasi-
le iro, principa lme nte no N o rde ste, mas també m n o Centro-Oeste e n o
Ama zonas . O caso d os Xocó de Sergipe, d os Tingui-Bo tó d e Alagoas e
d os Ta pe b a d o Ceará são bastante conhecidos . Os estudos antropo ló -
gicos e histó ricos dem o nstram que essas comunidades são quase tod as
d escende ntes d e a ntigos aldeam e ntos e xtintos po r d ecretos d e presi-
d e nte s de província n o século passado, ma s que, p o r mo tivos dive rsos,
conseguiram m a nte r esses laços mínimos de solidaried ade social, s u as
regras de d escen dên cia e incorpo ração, que são o mínimo s ufic ie nte
p a ra se mante re m com o e tnia o u p ovo .
Compa rando com su as s ituações de comunidad es isolad as e discrimi-
n adas po r seus vizinhos, principalme nte faze nde iros, o reconhecime nto
é tnico lhes dá me lho res condições p olítica s d e ma nte r as p o u cas te rras
que a inda ocupam e controla m , e d e fe nde r o seu patrimô nio socia l
e econô mico e stab e lecido contra todas as advers idades p ossíveis . Os
seus líde res sab em disso e estão conscie ntes d e que o ser indíge na é d e
m aio r proveito humano d o que ser um agrupam e nto d e p obres lavrado-
re s à me rcê d os inte resses econô micos e p o líticos que os d o mina m re -
gio n a lme nte . Há, no e ntanto, vá rio s c asos d e comunidad es se me lha ntes
que se re c usam a aceita r esse sta tus, pre fe rindo se r conhecidos com o
caboclos d o que ser tutelados o u p rotegidos p ela Funa i. Pare ce q u e a
ide ia d e se re m e quipa ra dos a índios , o u me lho r, aos este reótipos locais
d essa condição , não os estimula a re ivindicar dire itos esp ecíficos e os
consignados em le i. Assim como os caboclos de Taqu aritiua e os de São
Miguel, n o Maranhão , o u os do Canto , n o Piauí, o que que rem é o
s imples dire ito d e ma nte r as te rras que p ossue m , p o r reconhecime nto
histó rico e conhecime nto local, indivisíveis , com o propried ad e coleti-
va , usada e u sufruída d e acordo com reg ras costume iras, se m pre cisar
re p a tti-las e m p ropriedade s e lote s individu ais privados . Caso isso se ja
p ossível, muitas o utras comunidad es assim con stituídas, tanto d e descen-
d e ntes d e índios qua nto d e negros libe rtos o u d e brancos, p o de rão vir
a se fo rmar ne sse p a ís sem pre c isar reco rre r a o utros co n d ic io na me ntos .
Em suma , o e sp ectro das situações d os p ovos ind íge n as atua is n o
Bras il va ria d o m a is isola do e a utô no mo àque le que não sabe que é
índio o u não que r sê-lo , esp ecia lme nte p elo que o uve dize r. Atua lme n-
te, todos os e stados b rasile iros têm comunida de s que re ssurgiram com
id e ntidade indíge n a . Em dive rsos casos, a Funa i vacila sobre o re conhe -
200 ÜS fNDIOS E O B RASIi.

c ime nto formal desse esta tuto indíge na , seja p o rque os dados são muito
s ubjetivos - apenas a autodeclaração de serem índios e uma história um
tanto mítica de sua o rigem indíge n a - , seja porque os v izinhos n ão reco-
nhecem essa ide ntidade com o tal. Assim, nos estados do Rio Grande do
No rte, Pia uí e Ceará há comunidades a uto rreconhecidas, mas ainda não
legalizadas p e la Funai. O m esm o se dá com duas o u três comunidades
que vivem e m te rras na foz do rio Tapajós, e m Alagoas e n a Paraíba.
Nas c idade de Nite ró i (RJ), Rio de J a n e iro25 e São Pa ulo, há comuni-
dades indíge nas de G uarani imigrados de o utros estados d o Sul , alguns
h á ma is d e um século, o utros ma is recentes, vá rios já com suas te rras
demarcadas, p e que n as glebas, em alguns casos, na própria periferia das
grandes c idades. No município de Cau caia , n a grande Fortaleza , estão
os Tape b a; na periferia de Manaus , vivem alguns milhares de índios vin-
dos dos rios Solimões, Negro e adjacências; e m Campo Grande, Doura-
dos e Aquidauana , estão os Te re na e os Kaiowá. Sem contar um número
inde te rminado de índios que temporariamente saem de suas alde ias e
vão trabalhar nas cida des, o nde às vezes adquirem um o fíc io, a lguns se
formam e m universida des, um o u o utro vira p o lítico, e a maio ria volta
com o conhecime nto ma is aprofundado da sociedade que os pressiona
a vive r consta nte mente em busca de defesas para a s ua sobrevivên cia.
O ser índio e o viver índio, n o Brasil , não são constantes histó ricas de
um passado pré-colombiano. Mesmo os p ovos autônomos das regiões
mais e rmas e indevassadas do país tê m conh ecime nto do mundo que
os cerca e se comportam de aco rdo com essa realidade . Os povos h e te -
rô no mos, os que dependem politicamente do Estado brasileiro e estão
integrados em vários graus com a c ivilização brasileira, con stituem plu-
ralidades culturais va riadas, d e te rminadas por tempos d e lutas e derro-
tas, por extinções e sobrevivênc ias, condic io nadas pelo presente que se
constró i em meio a uma complexidade sociopolítica que deixa pouco
espaço de manobra e opção existe nc ia l para e les . Não se p ode, assim,
exigir uma coerê nc ia cultural d esses povos e uma visão política totali-
zante e disc iplinada dos seus líde res . Os estre itos limites d e suas possi-
bilidades de ação e os parcos recu rsos que podem obter são dificultados
a inda m a is p e los obstáculos de todas as o rde n s que lhes são inte rpostos
pela ação política nacio n al, v indos ta nto da pa1te do Estado, suas razões
d e ser e as idiossinc rasias dos seu s mandantes circunstancia is, quanto da
p a rte da sociedade econô mica e seus prepostos p o líticos .
A histó ria parece conspirar contra os índios. Em a lgu ns casos, quan-
do já têm suas te rras de ma rcadas, eles se dão conta d e que precisam
d e dinhe iro e se d e ixam iludir pe los inte resses econ ômicos extrativos,
Q UEM S ÀO OS POVOS J NO f G EN AS 201

vendendo-lhes suas madeiras, arrendando pastos e terras para plantio e


pondo à disp osição suas riquezas minerais. No final , como já vimos nas
te rras dos índios do Sul do país, n ão sobrarão á rvo res n em estarão be m
de vida. Não nos esqueçamos: foram poucos os índios sobreviventes das
Minas Gerais e de Goiás. Po ré m , ao falarmos de conspiração, recusamos
claramente a frase clássica de que a história os conde na. Conspirar, o u
estruturar-se contra , dá a medida da n ossa a n siedade e da nossa esperan-
ça. O grau da n ossa compreensão da realidade atual dos índios se coa-
duna com a expectativa da consciê nc ia dos povos indíge nas e m re lação
ao momento histó rico em que vivem. Não temos certe za quanto ao seu
futuro. Podemos apenas dize r que a atividade político-cultural dos índios
n os próximos anos jogará luz sobre a realidade atual e apontará os ca-
minhos da sua p e rma nê nc ia histó rica e do seu espaço político no Brasil.

NOTAS

' Ver David Maybu ry-l ewis, A sociedade xavante, Rio d e Ja neiro, livraria Francisco Alves, 1984;
Bartolomeu Giacca ria e Adalberto Heide, Xavante, povo autêntico, São Paulo, Dom Bosco, 1972;
Aracy lopes da Silva, Nomes e amigos: da p rática Xavante a u111a reflexão sobre osjê, São Paulo,
Edusp, 1987; Lincoln d e Souza, Os Xavante e a civilização. Rio de Ja ne iro, IBGE, 1953.
2
Sobre os Timbiras, ver, primeiramente, Curt Nimuendaju, The Eastern Timbira, op. cit. Sobre os
vários povos Timbiras, ver J úlio Cesar Melatti, O messianismo Krahô, São Paulo, Herder/ Enu;P,
1972; Ritos de uma tribo Timbira, São Paulo, Ática, 1978; Roberto da Matta, Um mundo d ividido,
Petrópolis, Vozes, 1976; David Mavbury-Lewis (ed.), Dialectical Societies: The Cê and Bororo of
Central Brazil, Ca mbridge, Mass, Harvard University Press, 1979; Manu ela Carneiro da Cunha,
Os mortos e os outros, São Pa ulo, Hucitec,1978; Lux Vida!, Morte e vida de uma sociedade indí-
gena brasileira, São Paulo, Huc itec-Edusp, 1977; G ilberto Aza nha, A forma Timbira: estmtura e
resistência, Tese de Mestrado, Universidade d e São Paulo, 1984; Maria Elisa Ladeira, A troca de
nom.es e a troca de cônjuges: uma contribuição ao estudo do parentesco Timbira, Tese de Mestrado,
Universidade de São Pa ulo, 1982; Iara Ferraz, Os Parkatejê das matas do Tocantins: a epopeia de
um líder Timbira, Tese de Mestrado, Universidade de São Paulo, 1983.
3 Sobre os Xingua nos, ver Eduard o Galvão, "Cultura e s istema de parentesco elas tribos do a lto

Xingu ", p p. 73-119, e "Apontamentos sobre os índios Kamayurá ", p p. 17-38, em Encontros de
sociedades, Rio de Jane iro, Paz e Terra, 1979. O rla ndo e Cláudio Villas Boas, Xingu, os índios,
seus mitos, Rio de Ja ne iro, Jorge Zahar, 1970; Pedro Agostinho, Kwarnp: mito e ritual no alto
Xingu, São Paulo , Edusp, 1974; Anthony Seeger, Os fndios e nós, Rio d e Janeiro, Ca mpus, 1980;
George Zarur, Parentesco, ritual e economia noaltoXingu, Brasília, Fu nai, 1975; Thomas Gregor,
Mehinaku, São Paulo/ Bras ília, Compa nhia Editora Nacional/Instituto Nacional do Livro, 1982;
Berta Ribeiro, Diário do Xingu, Rio de Ja ne iro, Paz e Terra, 1979.
4
Ver Herbert Schubart, "Ecologia e utilização das florestas", e m Eneas Sa lati et ai., Amazônia:
desenvolvimento, integração e ecologia, São Paulo, Brasilie nse/ Brasília, CNPq , 1983, pp. 101-43.
Ver também os a rtigos em Françoise Barbira-Scazzochio (ed .), Land, people and plamzing in
contemporarr Amazon, Cambridge, University Center for Latin America n Studies, 1980, e Emílio
Moran (ed.), The Dilemma of Amazonian Developm.ellt, Boulde r, Co., Westview Press, 1983.
s Esses dad os fa zem parte da pesquisa que venho fazendo com esses índ ios desde 1980. Diversos
re lató rios já foram publicados, bem como o e nsaio "São os G uajá hiperdialéticos'", no me u livro
Antropologia hiperdialética, São Paulo, Contexto, 201 l. Q u ando traba lhei u m ano como a ntro-
pólogo-consultor d a Funai, e m 1985, apresente i u m relatório qu e traça metas e estratégias para
ajudar na sobre vivência d esse povo indígena. Ver "Prog rama Awá ", 1985. Os G uajá sobreviveram
e hoje somam mais de 320 pessoas e m três terras indígenas.
202 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.

6
Exceção feita a um grupo de descendentes indígenas que vivem na região de Ilhéus que, em fins da dé-
cada de 1990, assumiu em processo de etnogênese uma identidade étnica com o e tnô nimo Tupina mbá.
7 Padre João Daniel, "Tesouro descoberto do rio Amazonas", em Anais da Biblioteca Nacional, 2

t. , v. 95, 1975, Rio de Ja neiro, Biblioteca Nacional, 1976.


8
Ver Pierre Clastres, Arqueologia da violência, op. cit. ; Hélêne Clastres, Terra se111 males, São Pau lo,
Brasiliense, 1979.
9 Ver Guido Boggia ni, Os Caduveos, Belo Horizonte /São Pa ulo, ltatiaia/ Ed usp, 1975; Darcy Ribeiro,

Kadiuéu, Petrópolis, Vozes, 1980; Claude Lévi-Strauss, Tristes trópicos, São Paulo, Anhembi, 1955, parte 5.
t0 Os Tikuna tê m uma aldeia próxima à cidade de Tabatinga (AM) com mais de 5 mil pessoas, e os
Guara ni q ue vivem na T. l. Dourados, ao lado da cidade do mesmo nome, somam mais de 10
mil pessoas.
11
Sobre te rritó rios indígenas, seus tama nhos e situação d e d emarcação, ver o site da Funai: mapas.
funai.gov.br.
12
Segu ndo relatos dos sertan istas, q ua ndo os Kayapó-Mekra nhot ire foram contatados, na década de
1950, no alto rio Triri, sua aldeia tinha duas Casas dos Homens e somava mais de mil pessoas. Já para
os Ca ne la, Francisco de Paula Ribeiro, em "Memória sobre as Nações Gentias que presenteme nte ha -
bitam o continente do Mara nhão", op. cit., presenciou a existê ncia de aldeias com até 1.500 pessoas.
13
Ver J. Alden, "The Languages of South America n Indians", op. cit.; Aryon Dall 'Igna Rodrigu es,
Línguas brasileiras, op. cit. Este livro contém a listagem dos 170 povos indígenas q ue falam línguas
especificas, inclusive as línguas isoladas ou não classificadas. Há me nos línguas, atualmente, d o
q ue povos, porque muitos d e les só falam o português. Há ainda d uas dezenas d e povos c ujas
líng uas estão sendo cada dia menos falad as, como os Xipaya, Kuruaya , G uató, Trumái, Apiaká
etc. Entretanto, o Censo 2010 do IBGE rebta que há 270 línguas, dado incompreensível para os
linguistas q ue já se debruçaram sobre o assu nto.
14 Ver Daniel Gross, "Protein Captu re anel Cultu re Development in the Amazon Basin·•, em American

Anthropologist 77(3): 526·549, 1975; Betty Meggers, América pré-histórica, Rio d e Janeiro, Paz e
Terra , 1979.
15
No meu livro sobre esse povo, O índio na Histór ia, publicado em 2002, ob tivera os seguintes
índices: 2,86% para o período entre 1966-1975; 4,7% e ntre 1975 e 1985; 4,53% e ntre 1985-1994;
e 3,33% entre 1994-1998. Diversos estudos feitos na d écada de 2000 mostram crescime ntos até
maiores, como os \Xlaimiri-At roari, que alcançaram o excepcional índice d e 6% d ura nte toda essa
d écada. Considero q ue, na ausência de d ados mais corretos, uma média geral de 3,4% não esta-
ria muito longe da realid ade demográfica indígena até o prese nte. Acredito, outrossim, q ue esse
índ ice deve estar diminuindo , na medida em que aquelas populações q ue cresceram bastante
nos ú ltimos vinte anos estão frea ndo s u a â nsia de crescime nto.
16
O serta nista José Porfírio F. de Carvalho conta essa h istó ria em seu livro \Vaimirí-Atroari, a
história que ainda nàofoi contada, Brasília, Edição do Au tor, 1982. Os Waimiri-At roari sofreram
enorme me nte du rante as décadas de 1970 e 1980, passa ndo a me lhorar s u as cond ições d e vida
após o trabalho de com pensação rea lizad o pelo mesmo sertanista em convên io com a e mpresa
Elet ronorte, d ona da referida hid relétrica.
17
Desde a década d e 1980, casos de interferência de empresas mineradoras, hid relétrica e ve nda
d e madeira com a conivência de índios vêm sendo amplamente divu lgados na imprensa. Para os
índios Gaviões, ver Iara Fe rraz, "Mãe Maria: e m estado de g ue rra, proteção do te rritório e da vid a
tribal", Re latório apresentad o à Companhia Vale do Rio Doce, fev. 1985. Para Rondônia e o caso
específico dos Su ru í, ver Betty Mindlin, Nós Paiter: os Sun~í de Rondônia, Petrópolis, Vozes, 1985.
Sobre os Cintas-Largas, ver Richard Cha pelle, Os índios Cintas-Largas, Belo Horizonte, Itatiaia ,
1982; Carmen J unqueira, Betty Mindlin, Abel Lima, 'Terra e Confli to no Parque do Aripu anã", pp.
l ll- 16, e m Sílvio CoeU10 dos Sa ntos (org.), Os índios perante o direito, Florianópolis, UFSC, 1982.
18
Ver Cecília M. V. Helm, A integração do fndio na estmtura agrária do Paraná: o caso Kaingang,
Tese de Livre- Docência , U niversidade d o Paraná, 1974; Lígia Simon ian, Terra d e posseiros: 11111
estudo sobre a política de terras indígenas, Tese d e Mestrado, Museu Nacional, 1981.
19 Ver Joana A. Fernandes Silva, Os Kaiowá ea ideologia dos projetos econômicos, Tese d e Mestrado,

Universid ade Estadual de Camp inas, Unicamp, 1982.


"' Va le a pena lemb rar aqu i o exemp lo do malfadad o d ecreto legislativo americano, o Daw es Act,
sa ncionado como Le i d e Parcelamento Geral de [Terras] Ind ígenas, de 1887, qu e dete rminou q ue
as terras ind ígenas ame rica nas fossem parceladas pe las famílias e ind ivíduos, como propried ade
privad a, nos taman hos e ntre 65 hectares por chefe d e família e 3,2 hectares por jovem adulto. A
aplicação dessa lei resulto u, ao fi nal d e 47 anos de vigência, na d iminu ição das terras indígenas
americanas de u m total recon hecido de 6 10 mil km' para 190 mil km2 1 Foi por esse tipo de ação,
mais do q ue pelas guerras contra índios, que a política ind igenista americana ficou famosa por
s ua fina lid ade d estrutiva dos povos ind íge nas.
Q U E M S ÀO O S PO VO S I N OfG EN A S 203

21
Ver Paulo Marcos Amorim, ··fndios camponeses: os Potigu ara da Baía da Traição", em Revista do
Museu Paulista, N . S. , v. 19, 1970/7 1, pp. 7·95; Fra ncisco Moone n, "Os Potiguara: índios integrados
o u ele privados?'', em Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, 4(2), 1973, p p. 131-54.
22
Ver Maria Rosário G. de Carvalho, Os Pataxó de Barra Velha: seu subsistema eco11ômico, Tese de
Mestrad o, U niversid ade Federa l da Bahia , 1977; Maria Hilda Baque iro Paraíso, Cam.inhos de ir e
vir e caminhos sem volta: índios, estradas e rios no sul da Bahia, Tese d e Mes trado, Universidade
Federal da Bahia , 1982.
23 Ver Maria d e toureies Bandeira, Os Kiriri de Mira11dela: um gmpo i11dígena integrado. Salvador:
U niversidade da Bahia/ Secretaria de Educação e Cultura, 1972; W. Hohe nthal, " As tribos indíge nas
d o médio e baixo São Francisco", e m Revista do Museu Paulista, N . S., v. XII, 1960, pp. 37-86;
Beatriz Góis Dantas e Dalmo Dallari, Terra dos índios Xocó, op. cit. Sobre os Maxakali do norte
d e Minas, ver Marcos Magalhães Rubinger, Maria Stella de Amorim e Sonia de Almeida Marcato,
Índios Maxakali: resistência ou morte, Belo Horizonte, lnterlivros, 1980.
24 Estevão Pinto, Os índios do Nordeste, Brasiliana 44, São Paulo, Compan hia Editora Nacional,
1935- 1938, 2 v.; Carlos Studart Filho, Os abor ígenes do Ceará, Fortaleza, "Institu to do Cea rá ", 1965;
Anaf/ Ba hia, Os povos indígenas 11a Bahia, Salvad or, 1981.
25 Um gru po composto por índios de d iversas proced ê nc ias étnicas - Gu ajajara , Pataxó, Kariri,
Tu ka no, Kaingang e outros - fez do velho e abandonado casarão, na rua Mata Machado, ao lado
d o Estádio Municipal d o Maracanã, seu abrigo e su a res idê ncia, e tenta de todo modo mantê-lo e
transformá-lo num centro cultural e educacional pa ra os índios que vivem espa lhados na cidade.
Tal ato esb arra nos planos da prefe itura cio Rio d e Ja ne iro de arrasar o prédio e t ransformar o
terreno em estacionamento para automóveis, visando à Copa d e 2014. Escrevi um texto para
justificar esse objetivo indíge na mostrando que lá Marechal Rondon recebia os velhos índios que
iam buscar ajuda na d efesa d e s uas te rras e a assistê ncia do sPr. Foi também nesse p rédio que o
Museu d o Índio foi criado, por Darcy Rib eiro , até ser movid o para o bairro de Botafogo, em 1978.
A SITUAÇÃO ATUAL DOS ÍNDIOS

A questão indíge na não p assa de um episódio n o confro nto de do is


s iste mas civ ilizató rios n a histó ria da huma nidade, c ujo desenlace (visto
d aqui h á 500 anos) talvez não seja muito dessemelhante do resultado
da expansão dos povos indo-e urope us pe la Europa pré-histórica e pela
Ásia Menor; o u da conquista e s ubmissão das tribos b á rbaras de fran cos,
germanos , anglo -saxões e eslavos p e los romanos. Em muitos p o ntos,
resto u te rra arrasada e substituição de um povo po r outro; em o utros,
miscigenação física e c ultural ; em alguns, bolsões d e sobrevivê n cia e
resistênc ia étnica . Para o Brasil , o resultado desse e mba te se dá n o
pla n o de sua formação histó rica e da s ua constituição sociocultural -
clarame nte, ainda e m andam e nto . Há uma duração estabelecida - até
agora, pouco mais d e 500 a n os - , e para o futuro talvez não m ais do
que 100 o u 150 a n os sejam de pertinência para a conclusão do proces-
so . No bala n ço histó rico, p e rcebem os certa te ndê n cia de continuação
das m esmas fo rças sociais e dos m esmos proble mas que constituíram a
questão indíge na, embora com a ampliação e inte ns ificação dadas pelo
desenvolvimento da nação . Pe rmanece inclus ive certa ambig uidade nes -
sas forças , como se o processo esti vesse ainda e m ebulição .
Se fôssemos visu alizar a questão indíge n a como um m odelo geo-
m étrico, e la provavelme nte se apresenta ria n o fo rmato de um triâ ngulo
irregula r cujos lados seriam formados pelo Estado, p e la Igreja e pela
Sociedade, que const ra ngeria m os índios em seu inte rio r. No século xv1,
o Estado e ra toda a política de colo nização, as d ete rminações e ações
dos capitães e governadores, o p ropósito fundame nta l d e instituir uma
colô nia p o rtuguesa sobre as terras indígen as, o u seja, a a uto ridade real
A S I TU AÇ À O A T U A 1. O O S fNO I O S 205

p a irando sobre to d os como algoz o u salvado r. A Socie d ade e ra re pre -


sentada p e las fo rças econ ô micas da colo nização - do no s de e ngenho,
faze nde iros e boiade iros, com e rciantes - , mas també m os escravos, os
quilo mbolas e o p ovo livre o u servil que se con stituía cultura l e socia l-
m e nte . A Igreja, n esse conte xto , não é p ropria m e nte o pode r rom a n o,
e m e nlace com o Esta do , via Pad roado , m as aque la que se a presenta
como uma a lte rna tiva po lítica e social às estruturas e p rop ósitos do Esta -
d o e da Socie d ade . Ora pelo Estado, o ra contra o Estado , e m ambos os
casos te nta ndo influir sobre a Socied ad e . São os missio n ários , esp ecia l-
m e nte jesuítas , re duzindo os índios e m a lde ias ri gida me nte contro lad as,
c ristianiza ndo -os, tran sformando -os e m vassalos d o Re ino , p o rém te n-
tando a rrefecer as cond ições sociais de escravidão e d omínio a bsoluto
d a Socied ad e e do Estado .
Esse rote iro tria n gula r p od e ser seguido ao lo n go d o te mpo , verifi-
cando seu jogo de p o de r e suas con sequê n cias sobre os índ ios, p ara
ch egar ao presente , a mplia ndo o sentido d a Socie d ad e a fim de incluir
agora ta nto a o pinião pública qua nto o m e rcado - e até a opinião pú-
blica inte rnacio n a l. As a tuais ONG S se compo rta m e m geral como Socie -
d ade, mas às vezes na fo rma alte rnativa da Ig reja. No to do , a ume nta a
esp essura d os la dos de mo do que o único seto r que d iminui é o centro
indígena da questão , cad a vez ocupa ndo me nos esp aço . "Enlarg ueceu "
o lad o d a Socie da de , compreende ndo atua lme nte as grandes fo rças eco-
n ômicas, todo o agrone gócio - inclu sive o s e u produ to social oposto ( os
lavradores sem-te rra , as classes m é d ias urban as de gra n de s e p e que n as
c idades, e s uas visões a mbíguas , o ra india nistas , ora a nti-indígen as) - e ,
d e certa fo rma , a o pinião pública inte rnacio na l (que ta mbé m existia n o
século XVJ ; n ão nos e squeçam os d e Mon taigne , por exe mplo) . A indefi-
nição o u ambig uidade d e alguns e le me ntos é muito gra n de . Ond e situa r
os milita res , po r exemplo , com o e le m e nto do Estado o u da Sociedad e? E
os a ntropólogos , são d a Socie d ade o u do seto r salvacio nista da Ig reja ? A
opinião p úb lica é produto das classes m é d ias , com o fo rça a utô n om a , o u
é resson ânc ia das fo rças eco n ômicas m ais mode rnas, inclusive o capital
inte rnacio n a l? Não é s urpreende nte que as atua is O NGS esteja m n o lado
corresp o nde nte à Ig reja , com s uas visões p ararre lig iosas e escato lógicas
do mundo, su as críticas fe rre nhas ao Estado e su as a utoaclamadas mis -
sões d e "salva r os índ ios" o u "resgatar as c ulturas indíge nas", e d e g uia r
a Socie da de pela p e rs uasão rnidiática .
Q ue se te nh a com cla re za d esde já : os segme ntos socia is q ue dão
se ntido à q ue stão indíge n a o p e ram num contexto histó rico b em m a is
am p lo d o qu e a n ação b rasile ira . Porta nto, se u p osicio n am e nto re lativo
206 Os INDIOS E O B RASIi.

depende de um equilíbrio instável e temporá rio, para o qual os índios


e m si raramente têm condições e peso para influir. Por isso , costuma -se
dizer que os índios estão à mercê de forças socia is e econ ômicas que
e les jamais poderão contro la r e das quais poucas vezes se percebe com
clareza a s ua dinâmica e trajetória. Só n os últimos trinta anos, pode-se
a firmar que os índios tenham ress urgido de sua p osição de inati vidade
político-cultural para se apresentar como vislumbre de a lte rnativa para
si mesmos, dentro do contexto geral da sociedade brasileira.
No breve levantame nto histó rico que fize mos e m capítulos anteriores,
vimos que a Igreja, representada pelas o rde ns missionárias (sob re tudo os
jesuítas até 1759), teve um papel excepcional em gravar n o indigenismo
n acion al as n oções de defesa e proteção aos povos indígenas. Nem por
isso podemos deixar de considerar que, e m determinados momentos, os
missionários foram a liados das o utras forças contra os índios, especia l-
mente n os primórdios da colo nização. Ademais, em muitas das disputas
e ntre missionários e colonos, quem te rminava perdendo eram os índios.
Esse foi o caso das Missões dos Sete Povos, estabelecidas por jesuítas
espanhó is na região e ntre os atuais oeste de Santa Catarina e no roeste
do Rio Gra nde do Sul, as quais foram destruídas pelas fo rças militares
portuguesas e espanh olas porque os jesuítas haviam se recusado a trans-
fe rir as missões para o lado da colo nização espanho la. No que se pode-
ria ca racte riza r com o um radicalis mo jesuítico, a defesa da preservação
d e suas missões e sbarrou contra o radicalismo ge opolítico do Marquês
d e Pombal. Ao final, os índios saíram na pior. ( Bem , os je suítas també m
perderam e acabaram sendo expulsos dos reinos de Portugal e Espanha.)
Pelo lado da Sociedade , foram os india nistas - incluindo desde já o
patriarca José Bonifácio d e Andrade e Silva - que, ao buscar cria r a ide n-
tidade da nova n ação , le vantaram a bande ira do p e rte n cime nto do índio
à n ação e promoveram um sentime nto e atitudes de dignidade poé-
tica e valor huma no às culturas indígen as, o que se to rno u a base para
o reconhecime nto d e se u valo r político-c ultural nos a n os seguintes d e
n ossa história . Não fora m d e clamaçõe s e m vão a poesia d e Gon çalves
D ias e o roma nce de J osé de Alencar. Em contrapartida , o Estado, apoia -
do por setores da sociedade, promoveu a criação das bases da moder-
n a política indige nista b rasile ira , à revelia e propositadame nte contra a
Igreja que, nos idos do início do século xx, te imava e m continuar com
os mesmos métodos de catequese de quatro séculos atrás. Sem dúvida,
n aque la ocasião, foram importantes segmentos da corporação militar e
da inte lectualidade positivista que catalisaram os reclamos da Sociedade
e do Estado . Hoje, dos milita re s já não s e pode d ize r o me sm o , pois os
A S I TU AÇ À O A T U A 1. OO S fNO IO S 207

conceito s ideológicos que mo tivaram a corpo ração e m 19 10 não a rre -


gime ntam ma is do que uma mino ria d os se us quadros . O nacio nalis m o
milita r se e nrijeceu e p e rde u seu sentido c ultural e ide ntitário ma is fo1te .
Vis to assim, as atitudes, ações e p o líticas d e caráte r indige nista que
acontecem no Bras il po d e m se r mo d e la das de ntro do parâ me tro Socie -
dade, Estado e Igre ja . Po ré m , ao lo ngo d os anos, as vicissitudes e trans -
formações histó ricas e mbaralham essas cartas, d e mo do qu e nova s cate -
go rias econô micas, socia is, políticas e cultura is se to rnam ma is fáce is d e
discernir. Apresento a seguir um resumo do s princ ipa is e le m e ntos que
d ete rmina m atualme nte o sentido e a na ture za d a qu estão indígen a e
que p osicio n am os índios dia nte d e suas p ossibilidad es d e ação p o lítica .

OS INTERESSES ECONÔMICOS

Não h á dúvida de que, muito m a is d o que precon ceito d e raça, d es-


pre zo re ligioso o u e litis m o c ultura l, os inte resses econ ô micos e seus
age ntes, qu e visam às te rras e s uas rique zas n aturais , são os pio res inimi-
gos dos índios . Esses inte resses ad vêm , majo ritariame nte, da socied ad e
brasile ira , m as també m d o capital estrange iro e até do pró prio Estado
bras ile iro , que, no fina l, os sus te nta a tod os . Não impo rta ma is a m ão d e
o bra indíge na, a n ão ser e m casos e x cep c io n ais e muito localiza dos . Im-
p o rtam as terras ocupadas po r p ovos ind íge n as, s u as riquezas minerais,
seu po te n cial híd rico, s u as ma de iras e sua biodiversidade; e impotta aos
inte resses econ ô micos te r o aval, a ace itação, a indife re n ça o u a inca-
p acidad e d e resistê n cia d os índios p a ra q u e e les o bte nh am tais te rras .
O caso m a is v is ível e conte n cioso é o de faze nde iros q u e, p o r con-
cessões irregula res d os estados, desd e São Pa ulo, Mato Grosso, Mato
Grosso d o Sul , Ro ndô nia, Pa rá, Ba hi a, e ntre o utros, e p o r via d e m a n o -
b ras jurídicas, só n estes ú ltimos cem a n os (e a d esp e ito dos p rotestos
de Ro ndo n , d o SPI e das ações juríd icas da Funa i), açamba rcara m la rgas
exte n sões d e te rras que p e rte nc iam a g rupos ind ígen as . J á ga rimpe iros
e m levas numerosas e a n á rquicas invade m te rras indíge nas e exploram
o u ro, dia m a ntes o u cassite rita, e m a lguns casos e e m certas é p ocas, até
com o aval de dirige ntes corruptos da Funa i e, muitas ve zes, con ta ndo com
a aquiescênc ia d os ín d ios . E h á os grandes pro jetos de de senvolvi-
m e nto econ ô mico - hidre lé tricas, min e ração, estra das, fe rrov ias, hi-
drovias - que se es p a rra m a m p e lo p aís, esp ecia lme nte p e la Ama zô nia,
tra ze n do con sigo d e struição, capital , ge nte, vila re jos, c idades, a tração
e sedução .
208 ÜS fNDIOS E O B RASIi.

Garimpos

São inúmeros os p e que nos garimpas espalhados em te rras amazô-


nicas, alguns p o ucos operados quietame nte po r índios. O p e rigo está
n os m é dios o u gigantescos e caóticos garimpas que destroem os le itos e
margens de rios, po lue m as águas , soltam mercúrio e escavam e no rmes
crateras nos p e que nos riachos e igarapés, criando um clima de coerção,
ven alidade, brutalidade e cinismo e ntre eles e com influê ncia sobre os
índios . Entre os casos mais conhecidos estão os garimpas abertos nas
te rras dos Kayapó, no sul do Pará. Entre 1984 e 1995, dois ou três gran-
des garimpas escarificaram a T. I. Kayapó. O mais famoso deles, Maria
Bonita, atraiu mais d e 2 mil garimpeiros, que rasgaram d o is o u três p e -
quenos riachos que caíam no rio Fresco, um dos bons afluentes do rio
Xingu e o nde se localizam a lgumas das a ldeias kayapós. Os índios, o u
melhor, alguns líde res indígenas, recebiam e m dinheiro uma porcenta-
gem do miné rio extraído e registrado . O montante desse p o rcentual ia
muito a lé m da ansiedade dos índios p o r mercadorias , p o is dava para
comprar muitas coisas na c idade de Redenção (inclusi ve um av ião bi-
motor) e abusar em consumo con spícuo e extravagâncias. Q uando a
re lação e ntre índios e garimpeiros be irou a deflagração de conflito, a
Funai , o Min isté rio Público e a Po lícia Federal se uniram para inte rvir,
fechar os garimpas e evacuar os garimpe iros. Com tanta public idade so-
b re abuso d e consumo, uma m ácula ficaria sobre a imagem dos Kayapó
do Pará , que, a inda h o je, são usados por c ríticos de índios como exem-
plo de oste ntação de rique za. Os Kayapó ficaram "pobres" novame nte,
voltaram a exercer sua c ultura com na turalidade e a cons umir a quilo
que obtêm através da venda de produtos extrativos, inclusive a1tesana -
to. Poré m , d e z a nos de pois, e is que novos ga rimpas se abriram na T. I.
Kayapó , à revelia da maio ria dos índios , para entrar e m mais um círc ulo
de destruição de flo resta , poluição, venalidade, ab uso de cons umo, até
a fase final d e fim d e garimpo.
O utro exemplo d e exp lo ração mine ral se dá n a reserva Waimiri-Atroa ri,
localizada e ntre o Amazo nas e Roraima. Naquela te rra foi descoberta
uma grande ja zida de cassiterita, a qual vem sendo explorada desde
1982 pela e mpresa Paranapane ma (e suas d e rivadas), por con cessão
fed e ral. Na ocasião, essa e mpresa e stava ligada a militares do último p e -
río do da ditadura , daí po rque a con cessão passou por cima da Funai e
de direitos indígen as. Em certo mo me nto, o presidente João Fig ue iredo
até revogou a de m arcação da te rra , gesto inusitado , para fa cilitar a leg iti-
mação da empresa . De pois de muita confusão e conflitos com os índios
210 0 S f N D I OS E O 8 R A S 1 1.

d o rio Roosevelt, d e o nde se e xtraía o uro sufic ie nte p a ra p a ga r p e dá -


gio a índio s e pro pina a fun cio nários d e alto e scalão da Funa i. De p o is,
esgotaram-se os ga rimpas de o uro e surgiram os indícios d e existê n cia
d e diama ntes . A pa ttir d e 2000, diam a ntes estavam circ ula ndo pe las ci-
dades de Ro ndô nia e p o r volta d e 2002 havia mais d e 5 mil ga rimpe iros
revolvendo a s marge ns d o Igarapé das Lajes, d e o nde retiravam um dia -
m ante a zulado de grande qualidad e e valo r , pa gando pe d ágio a diversos
grupos Cintas-Largas e a funcio ná rios d e pe que no escalão da Funai.
Trocavam a concessão p a ra ga rimpa r p o r caminho n e tas, ge lad e iras, m o -
to re s d e luz, espin gardas , f reezers, e ntre o utros ele trodo m ésticos, c asas
n as cidad es de Cacoal, Espigão do Oeste e Pime nta Bue n o, de m od o
que, a pesar d e te rem sido expulsos p o r uma força conjunta d a Funai,
Iba ma e Po líc ia Fed e ral e m ma rço de 2003, novame nte os mais o usados
garimpeiros voltaram a levar s uas b o mbas-d'água e ma quiná rio d e se -
leção do miné rio . Conflitos e ntre índios e ga rimpeiros a vulsos voltaram
a ser constantes . Um dia, em abril de 2004, um grupo d e 30 joven s ín-
dios Cintas-Largas re so lve u to mar pé d a situação n o garimpo . Che ga ram
e spantando os ga rimpe iro s , que, e m s ua ma io ria ( uns 150 na ocasião),
fug ira m m ata a fora e m direção à cidade . Alguns, p o ré m , resistiram e
trocaram tiros com os Cintas-Largas . Ao final, 29 d eles fo ram mo rtos e
abando nados na mata. O s Cinta s-Largas, e m seguida , voltaram p a ra s uas
alde ias, o nde passaram p elo ritua l de luto pe la m o rte de inimigo s. Lo go,
a Funai local to mo u conhecime nto da tragédia e comunicou à presidê n-
cia do ó rgão, e ntão che fiad a pe lo presente a uto r, que a passou pa ra as
a uto rida des m áximas da n ação .
Pa ra mim, não foi fácil explica r e justificar p ara a po pulação bras i-
leira po r que um bando d e Cintas-Largas h avia matado de uma só vez
29 garimpeiros, uma tragédia naciona l, com todo o sofrime nto que isso
acarreto u p a ra suas famílias . Com efe ito, há muitos a n os, talvez desde o
Massacre do Alto Alegre (ocorrido no município de Ba rra do Corda, n o
Maranhão, em 1901, qua ndo cerca de 400 índios Gu ajaja ra fora m mo rtos
pela po lícia e miliciantes locais, e talvez 180 brasileiros te nham sido m o r-
tos p e los ínclios), não tinha h avido uma ma tança d e b rasileiros p o r p a rte
de índios e m condições sem elhantes . Certame nte, e m ocasiões e m que
expe dições do SPI, e mesmo já n o tempo da Funai, te ntava m faze r con-
tato p acífico com grupos ind ígen as, muitos sertanistas e seus a ux ilia res
fo ram m o rtos . O Te ne nte Pime nte l Ba rbosa, p or exemplo, um aux ilia r
clireto d e Ro ndo n , foi m o rto com o ito compa nhe iros p e los Xavante e m
1941. O settanista Gilbe rto Pinto Figueiredo e de z a ux ilia res foram tru-
cida dos pelos Waimiri-Atroari e m 1974 . Po ré m , qua ntos Waimiri-Atroari,
A SI TU A Ç À O AT U A 1. O OS f NO I OS 211

Cintas-Largas, Kayapó, quantos índios de Ro ndô nia , nas décadas de 1960


e 1970, e n o passado recente, quantos Kaingang, Xokleng e G u ara ni não
foram assassinados e e nvene nados pelos novos imigrantes do Paraná e
Santa Catarina? E os Pataxó, Bae na n , Maluli e o utros não foram destroça-
dos por capangas dos cacaue iros? E quantos ma is não estão na histó ria
esquecidos por todos nós, só lembrados pela retó rica da indig n ação?
Enfim, comparar m atanças n ão justifica nem melhora n osso e nte n-
dimento. Os Cintas-Largas mataram os garimpeiros e m grupo como se
estivesse m numa guerra de defesa de s uas te rras e de controle sobre
su as rique zas. Não h á tanto mais que dizer, a não ser compreender o
acontecime nto no contexto geral da v ida dos Cintas-Largas: seu proces-
so de contato, s uas mo rtes e assassinatos, o re lac io na me nto explosivo
com garimpeiros e o utros segmentos nac io na is, a efervescênc ia econ ô -
mica do garimpo de diamantes, as ambições desabridas, o descontrole
geral da n ação, a incapac idade de o p a ís obte r uma p o lítica indigenista
cap a z de e ncontrar uma solução me lh o r para a exploração das rique zas
encontradas e m te rras indíge n as, cujo u sufruto é dos índios. Ho je h á um
inqué rito p olic ia l que te nta e n contra r os meios para processar os índios
que coletivam e nte praticaram esse a to. O u talvez esteja e ntrando n o
esmaecime nto jurídico do país.
Esses qua tro exemplos certam e nte não cobrem o conjunto de p ossi-
bilidades da ga rimpage m e mine ração e m te rras indígen as, m as dão uma
ide ia do se u teor dramático e de suas con sequê nc ias nefastas para com o
destino dos p ovos indígenas . Ao lo n go da histó ria do Brasil, o ga rimpo,
pelo seu estilo d e vida agressivo e ime diatista , resulta sempre em pre juízo
fatal para os índ ios . O exemplo da história da mine ração no e stado de
Minas Gerais é escla recedor desse processo .2 Atua lme nte, além da vio -
lê n cia, ocorre m tanto a tra n smissão de doenças alta m e nte contagiosas e
p e rigosas, como doe n ças venéreas, tube rc ulose, gripes e m alá ria - esta
última , e m cep as extre mam e nte resiste ntes a re médios . Há ta mbé m d es-
truição do me io amb ie nte local e integrado, pela poluição dos igarap és e
rios, p o r me io do uso de me rcú rio e o utros produtos químicos , e ta mbé m
p elos ocasio n a is va zame ntos de barragen s de conte n ção de subprodutos
dos miné rios extraídos. Nos prime iros a n os d e exploração da Mina de Ta -
boca , da Paranapa ne ma, e m te rritó rio Waimiri-Atroa ri , n ove barragens de
decantação da a rgila da cassite rita fora m levadas de e nxurrada e, con se-
que nte me nte, poluíra m d iversos rios que banham aldeias daque les índios .3
A presença de mineradores, sejam e mpresas, sejam garimpe iros, a tra i
os índios de o utra fo rma bastante ins idiosa e, certa m e nte, tão perigosa
quanto as con sequê n cias já me n cio n adas . Atrae m p elo pode r fasc inante
do d inhe iro e do que se pode adquirir com e le . Antes, d iz o mito cor-
212 0 S f N D I OS E O 8 R AS 1 1.

re nte, os índios se deixavam e nganar por qualquer besteira: o fumo, o


sal, uma roupa velh a, uma panela, um chapéu de palha. Subitamente,
a pa1tir dos a n os 1980, c h egaram os videocassetes, as ca1tuc h e iras, re -
vólveres, bicicletas, um sistema de som, o freezer, a te levisão, as ca-
minhonetas e, no extre m o, o av ião. Sim, porque e ntre os Kayapó e os
Gaviões (estes pelas inde nizações da Compa nhia Vale do Rio Doce e da
Eletronorte) , estes produtos são achados em muitas casas. Aliás , a alde ia
dos índios Gaviões-Pa rkatejé, no mo d o tradicio nal de casas e m c írc ulo -
como símbo lo do mundo, com seu centro representando a c ultura e a
vida política - , tem suas casas con struídas de alvenaria , com sistema de
abastecimento de águ a e luz , e modeladas por arquitetos que te ntam
misturar o m oderno com o tradic io na l. Uma nova geração de índios
que vem us ufruindo de recursos re lati va me nte ab undantes não pre te nde
voltar a uma vida despojada , em meio ao consumo que os cerca. Por
suas atitudes e a rgumentos, tê m conven cido muitos a ntropólogos e in-
digenistas a recons idera r suas convicções e, portanto, a cons idera r que
os índios devem pa1ticipar do mesmo tipo de progresso que existe n as
cam adas médias da população brasileira, sem que te nham de abrir m ão
da sua autoidentidade e de s uas visões d e a uto no mia cultural.
Da percentagem do o uro extraído de s uas te rras, os Kayapó ch ega-
ra m a possuir, e ntre 1985 e 1995, dois aviões de pequeno porte próprios
para decolarem das pequenas pistas de pouso construídas n as clareiras
da fl o resta amazônica . Com esses aviões, os Kayapó , especia lme nte os
seus líde res, adqu iriram a lta m obilidade, passando p a rte do seu tempo
se dive rtindo, faze ndo compras n as peque nas c idades e corrutelas d e
garimpe iros do sul do Pará ou v is itando seus primos índios - os Xik rin,
os Metuktire - , ou as cidades gra ndes, como Belém, Brasília e São Paulo.
Argumenta va-se a esse temp o, em seu favor, que essa mobilidade trazia
uma m a io r consciê n c ia e ntre os dive rsos subgrupos Kayapó que estão
muito distantes uns dos o utros, e que até eram inimigos e ntre si a n os
atrás . Nesse caso, o dinheiro do garimpo seria um fato r n ovo de caráte r
positivo para e les . Po r exemplo, pelo uso de gravações de vídeo de
suas festas e re uniões políticas , uma comunicação ele trônica e m lingua-
ge m de alta v isib ilidade, rapidez e sinte tização e ntre grupos o u a lde ias
seria feita , quando antes isso só era possível pelo conta to pessoal em
ocasiões m a is esparsas, através dos ritua is de solida riedade social o u
até pelas sortidas gue rre iras .4 Realme nte, o dinhe iro traz male fíc ios, m as
também benefícios, e a comunicação interna foi uma das suas va nta -
ge ns . A o utra, entretanto, foi simplesmente o conhec ime nto do mundo
por me io d e viagen s . E os Kaya pó, a final, m antiveram sua c ultura e m
p e rfe ita o rdem , no teor e na me dida d e su as von tades .
A S I TU A Ç À O A T U A 1. O OS f N O I OS 213

Hoje em dia, a possibilidade de se obter express ivas quantidades


de recursos fin anceiros, seja em termos de royalties, seja como inde -
nizações ou compensações (em função de projetos econômicos peito
ou em terras indígenas), é motivo de grande preocupação por parte
de a ntropó logos, advogados e indige nistas, bem como dos próprios
índios. As consequên c ias do con sum o descontrolado são e m geral des-
conhecidas no Brasil, pela pouca experiência de a lguns povos indí-
genas. Entretanto, nos Estados Unidos, n o Can adá, na Austrália e em
outros países, diversos grupos indíge nas vêm recebendo inde nizações
bastante vu ltosas. Os Inuit, Esquimó e outras comunidades indíge nas
do Alasca que receberam indenizações e compensações financeiras
pela passagem de gasodutos e pela a lienação de terras explo ráveis, n a
década de 1970, passaram por uma fase de a lto consumo e desorien-
tação c ultural. Para os observado res mais pessimistas, parecia que os
índios iriam se acaba r de vez. Entretanto, o consumo foi controlado
em situações mais recentes - ao serem descobertas jazidas de petróleo,
minérios estratégicos, diamantes e o uro, e instaladas hidre lé tricas - ,
quando os povos indígenas receberam as inde nizações de forma mais
espaçada e, portanto, com resultados mais positivos para suas socie -
dades. Po r sua vez, nos Estados Unidos, a partir da lei "Ind ian Gaming
Regulatory Act", de 1988, foi regula me ntada a operação de cassin os
de jogos de azar e m te rras indíge nas, c ujo resu ltado foi o e nriqueci-
m e nto estrondoso de inúmeras comunidade s indíge nas p o r todo o
país. Entre os novos ricos indígenas estão os Semino les, do estado da
Flórida ( que c hegaram a comprar uma das maiores redes de casas de
e ntre te nime nto ame ricanas, o "H ard Rock Café ", por quase um bilhão
de dólares) e os Moh egan, do estado de Connecticut (qu e possue m
o segu ndo maio r cassino am e ricano e são donos de um time da liga
feminina de basque tebol) . Com os cassinos acabou a pobreza , mas
n ão a lg umas terríveis mazelas que já acometiam os índios ame ricanos,
com o o alcoolis mo e a drogadição, a d esorganização da v ida tribal , a
ind ividualização do consum o, o aumento da d esigualdade social , e, n o
limite, o su rg ime nto da a n omia - isto é, a perda de ide ntidade socia l,
com a n ecessária compl ementação do e nquadrame nto c ultu ra l e socia l
aos segmentos m a is care ntes da sociedade a me rican a ma is a mpla . En-
fim , as conse quê n cias de te r grandes quantidade s de d inhe iro resultam
frequentemente n a passagem de uma soc iedade com traços fortes de
a uto n omia para uma sociedade que se comporta como minoria de-
p e nde nte .5 Q ue não ve nha a ser esse o d estino dos povos indígenas
brasile iros que vie rem a obter grandes quantidades d e re nda.
214 0 S f N D I OS E O 8 R AS 1 1.

Floresta e madeireiros

Os madeire iros se assemelham a uma revoada de gafanhotos que


p o usam numa roça. Em p o uco tempo devastam tudo, não restando á r-
vo re ao la do de á rvo re. No com eço, são seletivos e só derrubam as ár-
vo res de le i - mogno, cedro , p eroba, cabriú va, imbuia , a nge lim, ja tobá,
castanheira-; depois , passam às á rvores infe rio res para lascar m o urões,
u sar e m alve n a ria e carvão; por fim, são derrubadas as árvores qua-
se sem valo r econô mico: os arbustos, bambuzais , p a lme iras e lia nas
que formam as te rras arborizadas do Bras il. Só um riacho esca rificado
p o r garimpeiros é tão feio quanto uma á rea devastada p o r made ire iros.
Apesar de haver já algumas boas companhias madeireiras, com respon-
sab ilida de soc ial e a mbie ntal , com corte pla n ejado e repla ntio de áreas
desbastadas, a grande ma io ria dos mad e ire iros do Bras il , especia lme nte
d a Amazônia, te m práticas de devastação generalizada associadas avio-
lê nc ia , corrupção e desprezo à v ida humana que deixam marcas te rrí-
veis nas vilas, lugare jos e c idades de o nde saem p ara de rrubar ma de ira.
Esse quadro se repete com ma is inte nsida de em certas regiões, por
te mporadas, porém atinge quase toda a gama de me ios ambie ntes o nde
se e ncontram os povos indíge nas no Brasil. A com eçar pelos Kaingang
do Sul do país, de te nto res das últimas e esp a rsas reservas de araucárias,
c ujas te rras foram quase que totalme nte devastadas pelas madeire iras,
a ntes e de pois da presença do SPJ. Com e fe ito, e m te mpos preté ritos,
pouca gente se impo1tav a com a n ecessidade de preservação d e á rvores
ou bosques e m qualquer fazenda , ass im com o em te rras indígen as . Foi o
próprio sr, que , n o espírito do paternalismo empresarial que caracte riza -
va a sua relação com os índios, convido u e favoreceu a e ntrada d e e m-
presas m adeire iras, conced e ndo -lhes dire itos de corte d e á rvores e ser-
ra r m adeiras dentro mesmo das te rras indígenas, quase sempre à revelia
dos se us donos. Na década de 1930, quando o sr, estava reduzido a uma
seção do De partame nto de Fro nte iras do Ministé rio do Exé rcito, sem re -
c ursos e sem o rie ntação indige nista, surgiu a ide ia d e que, com o produ-
to dessa re nda, o posto indígena p oderia se a utossustentar, a mplia r ben-
feito rias, compra r maquiná rio e incentivar a p rodução agrícola indígen a.
E , eventua lme nte, os índios v iria m a apre nde r um ofício, te r uma indús-
tria , que, no futuro , lhes iria re nde r divide ndos p e rma n e ntes, inclusive
a sua emancipação p e la conquista de um patrimônio indu stria l próprio. 6
O res ultado dessa p o lítica foi desastroso e teve con sequê n cias fu-
n estas que até ho je fazem a miséria de muitas te rras indíge nas no Rio
Grande do Sul , e m Santa Catarina e n o Paraná. Muitas te rras indíge nas
A SI TU A Ç À O AT U A 1. O OS f NO I OS 215

ka ingan gs são fo rmad as d e cap oeiras, e n ão d e b osques de ara ucárias,


o q ue, n o mínimo, tê m causado p e rdas ime nsas n a die ta d esses índios
pela falta d os nutritivos pinhões que os a lime ntavam durante boa p a1te
d o ano . Em ta ntos casos, os bosques fo ram a rre ndad os po r muitos e,
assim, as se rraria s se compo rtava m tal qua l d o no s. A empresa Slaviero
e Irmãos levou anos d e litígio e disputa com os índios p ara ser re tirada
d a Te rra Indígen a Ma ngue irinha, com prejuízos quase irrecupe ráveis d e
p atrimô nio e vidas indígen as, num desgaste que, alg uns a n os de p o is,
p e rceb e -se inútil e irrac io na l, fato típico d a falta de visão histó rica e d o
d escaso a dministrativo .7
Pio r a inda: o exemplo do SPI, e dep o is da Funa i, influe nc io u as comu-
nidad es indígen as a m a nte r arre nd ame ntos em su as á rea s a serra rias e a
lavrado res sem-te rra que lá h avia m e ntrado o u m esmo s ido levados p o r
d ecisão de govern o, com o n o caso da reforma agrá ria que o Rio G rande
d o Sul fe z sobre as te rras dos Ka ingan g d e N o n oai, e m 1962 . A prá tica
d e arre ndam e nto d e te rras por p a rte de famílias indíge n as continua e
prevalece e m muitas te rras indígen as do Sul e do Mato Grosso d o Sul. O
dinhe iro aufe rido, mesm o que p o uco e m comparação com as p e rcenta -
ge ns d e ga rimpas, induz os índios a aceitar a presença dos brancos e a
explo ração d e s uas te rras e rique zas . Pa ra reve1te r esse p rocesso, com o
já o foi e m a lg uns casos, só p o r m e io da luta ob stinada contra os fatos e m
s i, contra as pressões p o líticas p o r conc iliações e conte mpo rização e con-
tra as le is e injunçõe s da justiça e m argume ntação de fatos consumados .8
A ex plo ração da m ade ira e stá agora de slocada p a ra a Ama zô nia, te n-
d o s ido já d evastad as as a raucá rias e as flo restas da Mata Atlântica d o
s ul da Bahia e do Es pírito Santo . É quase incompreen sível q ue te nha
sido d ese nvolvida ta n ta capacidade de de vasta ção d e flo re stas com o a
d e que se te m no tíc ia das m ade ire iras do Espírito Santo e Pa ra n á , que,
e m massa , se d eslocaram p ara a Ama zô nia . Calcula-se q ue ma is de 90%
d aque las m atas te nham sido de rruba das e ntre 1960 e 1990 . To do esse
kn ow -howvem se n do aplicado s em re striçõe s na Amazônia e, eve ntual-
m e nte, e m te rras indíge nas .9
No Mara nhão , c uja b a nda ocide ntal compo rta as fra njas m e n os d e n sas
d a Flo resta Ama zô nica , o processo de d evastação corre com cele ridad e ,
asp e re za e apa re nte irreversib ilidade . As te rras dos índios Guajajara ,
Urub u-Kaa p o r e dos Guajá são cobiçadas p elas m ade ire iras instaladas
n as c idad es v izinhas que já devastaram toda a ma de ira dos colo n os,
p osseiros e faze nde iros . J á não h á m ad e iras n obres , ta mpouco ma de ira
p a ra carvão, e m d iversas te rras dos Guajajara , e a d evastação p rosseg u e
a d e spe ito das ex p e d iç õe s punitivas d a Políc ia Fe de ra l, d a Funa i e do
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Iba ma. Os donos de serrarias, com seus caminhões e peões, atrae m os


Guajajara e Urubu-Kaapo r com promessas e adiantamentos, e procuram
fazer arranjos pessoais pelos quais os índios lhes ficam devendo favo-
res e são ressarc idos ou compensados pela madeira retirada. Algumas
famílias indíge nas te rminam ga nha ndo o s ufic ie nte para comprar casas
e m Amarante, Grajaú e Barra do Corda , e usam de s ua influ ê n cia para
aquiescer aque les que não estão na jogada da ve nda de madeira. Com os
Guajá, que n ão participam de relações econ ômicas com a sociedade bra-
s ile ira , os caminhões de madeire iros s implesme nte invadem suas á reas,
a m edrontam os índios e re tiram o que querem. 10
Na serra do Tiracambu, um dos pontos tradicionais dos Guajá, são
inúme ras as malhas de ra ma is de acesso aos pontos de madeira nobre.
De avião, é possível ve r p o r toda a parte as clareiras avermelhadas e as
esplanadas de toras de madeira (sinais dessa destruição insensata). Como
quase toda serra, a do Tiracambu constitui fonte de inúmeros iga rapés e
serve de divisor de águas dos s istemas dos rios Pindaré, Gurupi e Turiaçu.
A devastação de suas e n costas colocará e m p e rigo toda essa área e m a is
a jusante o nde há povoados e cidades, pelas inundações, o u pela falta
de águ a, n o futuro. Agrava-se a isso a existência de uma jazida de bau-
xita n essa serra, e os planos da empresa Vale para explo rá -la no futuro.
Po r todo o oeste do Maranhão n ão há ma is madeira de le i, porém
a demanda por made ira para carvão é grande p e la presença de sete
side rúrgicas de fe rro-gusa estabe lecidas ao longo da Ferrovia Carajás -
algumas a quilôme tros das te rras indíge nas Arariboia e Caru. Nas suas
in stalações e por lo n gos a n os, essas usinas contara m com o uso de ca r-
vão vegetal para o seu funcionamento , a despeito das recomendações
e m contrário.11 Som e nte a pattir de 1989, foram inic iados os prime iros
plantios d e e u caliptos para abastecê-las d e carvão, a lgo que a inda está
lo nge de se conc re tiza r. Por tudo que aconteceu de derrubadas n esses
últimos 30 a n os, o p o te n c ia l de uma definitiva e irremediável destruição
das últimas áre as d e flo resta am azônica n o Maranh ão aume nto u e n o r-
m em e nte, bem com o a devastação das te rras hab itadas pelos índios
Guajá . Impressio n a que a implantação de us inas de ferro-gusa foi viabi-
lizada com ajuda fina nceira do gove rno federal.
Em áreas mais de n sas da Amazônia , as e mpresas m adeire iras e ram a
princípio mais seletivas n a escolha das á rvores . Não m a is do que duas
dezenas de tipos vêm sendo utilizados para exploração e ntre mais de
uma cente n a possíveis de industrialização . A riqueza parece a todos
tão exuberante e abundante que a escolha n ão passa p elos c rité rios de
racionalidade ou produtividade . Ade mais, a madeira é majorita ria me n-
A S I TU A Ç À O A TU A 1. O OS f NO I OS 217

te e xpo rtada e m tábuas , sem n e nhum b e n e fi cia m e nto, d e ixa ndo po u-


quíssimo reto rno fin anceiro para as c idades e regiões circ unvizinhas . O
p rocesso de re tirada d e made ira e m áreas am azô nicas é extre ma me nte
c u stoso tanto fina n ceira qua nto huma name nte . As á rvores são esp a rsas,
m esm o as grande s "ma nc has" o u b osques d e m ogn o d o s ul do Pará
constituía m-se de não mais que um indiv íduo po r h ectare .12 Abrir e stra -
d as e rama is, con struir p o ntes e pingue las improvisad as sobre inúmeros
riac hos e igarapés, c ruza r brejos e lam açais, sub ir ladeiras e a travessa r
a reais n ão são tare fas fáceis, poré m ab solutame nte custosas. A m o rte
p o r acide nte ronda m ad e ire iro s e p eões a tod o o mo me nto . A vio lê n c ia
está ine re nte n as n egociações com os do nos o u locatá rias d as te rras e se
agrava com a afobação e as disputas p o r salá rios e p a rticipações . Mesm o
assim, os ma de ire iros p e rsiste m , o que significa que o n egócio te m d e
ser luc rati vo no nível ma is a lto d o investime nto d o capital. Daí p o r que,
n o começo de uma empre itada, a presen ça d e mad e ira de le i é essenc ial
p a ra o d esla nc h e d o á rduo trabalho .
E a ssim prossegu e m as d evastações a d esp e ito dos avisos d e a larme
que c ie ntistas bras ile iros e estrangeiros d ão so bre a fragilidad e ecoló -
gica d a Ama zô nia dia nte d essas prática s de exploração . Po u cas são as
e mpresas que faze m reflo restam e nto, prefe rindo s implesme nte transfe rir
s uas á re as d e o pe ração d e região pa ra região e aproveita r as brechas
le gais e as firulas ile gais capa zes d e mante r os n egócios e m p é . Licen ça
d e c01te se le tivo e m de te rminad as áre as to rna-se um s ub te rfú gio para
d e rrubada ge ne ralizada o u p a ra a "lavage m " de á rvo res de rru badas ile -
galme nte , não sendo nunca c umpridas as su as me tas .13
Nos estad os do Pa rá e de Ro ndô nia , o d esflo restame nto corre céle re
h á ma is d e 50 anos . Em Mato Grosso, a ex p ansão agrícola ex ige a "lim-
p e za" da te rra e, porta nto , é antecedida pe la a ção dos made ire iros . Nas
d écadas de 1980 e 1990 , os ma de ire iros tinha m m ais liberdad e de ação
e ma is descarame nto , devido à falta de vig ilâ nc ia p o r p a rte do Iba ma e
da Po lícia Fed e ral, a q u al, nos d ias d e ho je, co ntinua inadeq uada . Nas
te rras d os Xikrin, T embé e Pa raka n ã , no Pa rá , uma made ire ira te nto u
conven cer os índios a a rre n dar lo tes d e s uas te rras para a exploração d e
m ade iras a troco d e um pre ço que não ch egava , n os anos 1980 , a 3% d o
valo r d e m e rcado d e ssas made iras , m as que, m esm o assim, pare cia bas-
ta nte a lto p ara e les . Pe la retirada d e 8 mil m 3 d e mogno , uma e mpre sa
p agou aos Xikrin , em fevere iro de 1984 , cerca d e 2 bilhões de c ruze iros,
isto é , cerca de 140 mil dó la res d a ép oca , qua ndo o valo r de exp o rta -
ção , em fo rma d e táb uas , c h egava ao re dor de 6 milhões d e dóla res.14
Co m tal dinhe iro, os Xikrin pode ria m m om e nta ne am e nte se equipa ra r
218 0 S f N D I OS E O 8 R A S 1 1.

aos se us primos Kayapó, a a lgumas cente n as de q uilô me tros ao sul , que


vendia m m ad e ira e a ufe ria m re ndime ntos do garimpo .
Prover recursos - isto é, d inheiro vivo - p a ra os índ ios é, sem dúvida,
um dos a rgume ntos que n a ocasião levou a Funa i a p rom over aque le
tipo de o p eração, adicio n a ndo -se o a rgume nto d e q ue aos índios é ga-
rantido o dire ito sobre as rique zas n aturais d e s uas te rras, inclus ive d e
ven dê-las, p a ra exp e rime ntar, p e lo d inhe iro, os b e n efíc ios pró prios d a
c ivilização . Ap roveitan do-se d e n oções antrop o lógicas a inda e m d e bate
in cipie nte sobre os fato res necessá rios à a uto de te rminação dos índios,
a Fun ai muitas ve zes extrapo lava essas a rgume ntações p a ra a esfe ra d e
d ecisões econô mica s, retirando -as do seu contexto sociocultural, pro-
p o n do q u e a explo ração da m adeira e m te rras ind íge nas p oderia to rna r-
se rac io na l se os pró prios índios d e la p a rticipassem. O a ntrop ó lo go
a m e rican o Darre l Posey, conhecido à é p oca p o r se us estudos sobre o
m ane jo flo restal d os Kayap ó, favo rável à ven da de ma de ira selecio nad a,
p ropunha a ide ia d e que a utilização d o conhecime nto ecológico que
os índios p ossu e m das flo restas induziria as e mpresas a só derruba r as
á rvores que os índios a po ntassem como explo ráveis, pressupo ndo uma
inusitada boa-fé capita lista, p or um lado, e uma de dicação ind ígena p e r-
m ane nte, po r o utro . Evide nte me nte, ne m uma ne m o utra pressuposição
fun cio n o u. Mais tarde, n o governo Fe rn a ndo He nrique Ca rdoso, q ua ndo
a Funai e ra dirig ida p o r m e mb ros d a ONG Instituto Socioambie ntal (1sA),
com re cursos da e mpre sa Vale e do Ban co Mund ia l, e em parce ria com
m ade ire iras locais, a plicou um p lan o d e ma ne jo flo re stal e m 10% da T.
I. Xikrin com o intuito de q ue os índios a ufe rissem ma is divide n dos , as
e mpresas pagassem b e m e co rretame nte aos seus trabalh ado res e as
á reas ex ploradas fossem re flo re stadas . O expe rime nto d uro u me nos d e
um a n o , d e ixa ndo dív idas p o r todos os lados . Fico u comprovada q u e a
boa vo ntade e as b oas inte n ções n ão são s uficie ntes p ara racio n a liza r o
uso e ma nejo de recursos fl o restais e m te rras indígen as .
Ro n dônia , te rritó rio q uase d esabitado até 1960, h o je aprese n ta uma
d evastação assu stadora, q ue se deve ta nto aos p roje tos governam e ntais
d e ab e rtura de estradas e facilitações p ara comp ra o u aquis ição p o r
d oação de te rras pe lo gove rno , q ua nto pela imp lan tação de exte n sas
faze ndas d e gado , ao Incra , co m se u s atrib ulad os projetos d e asse n-
ta me nto, e às made ire iras . As te rras indíge n as, que fo ram de ma rcadas
e ntre as décadas de 1990 e 2000 , ta mbém sofreram e continua m a so fre r
o assédio de madeire iros . Nos prime iros a n os , e les invadia m te rras in-
díge n as fingindo q ue não sabiam os limite s e stabe lecidos . Os po líticos
pre ssio n avam p e la d ivisão das te rras proje tadas p a ra se re m de ma rcadas;
A SI TU A Ç À O A TU A 1. O OS f NO I OS 219

os made ire iros fazia m o trabalho d e corrompe r fun cio n á rios e índios.
Durante muitos a n os, os índios Cintas-La rgas , Suruí, Zo ró, do leste de
Ro ndô nia, defenderam os seus direitos às te rras pelos ataques aos inva-
sores e pela mediação da Funai. Mas a tática de ofe recer pagamento em
dinheiro e bens func io na para a rre fecer-lhes o espírito de auto n o mia e
intra n s igê nc ia. 15 Apesar da atitude de a lguns impo rtantes lide res, com o
Almir N arayamoga Suruí, que con seguiu apoio e repercussão interna-
cionais para coibir a venda de madeira de sua te rra, os sina is de conti-
nuadas vendas de madeira ainda são vistos naqu e la te rra e o utras te rras
indíge nas de Rondônia.
Mais do que pelos madeireiros, e m Rondônia o problema indígena se
exacerba pelos projetos de colonização de te rras. Nos anos 1970 e 1980,
milhares de capixab as, mineiros, goianos, paraenses e gaúchos se des-
locaram para esta n ova á rea de fro nte ira e foram alocados e m á reas in-
definidas que se estendem cada vez mais próximas das te rras indígen as.
Os latifundiários vie ram em seguida e compram a terra beneficiada -
isto é, já derrubada - p ara fazer pasto e botar gado, formando grandes
propriedades e, desta forma, exig indo a aceitação do fato consumado
sobre as terras indígenas. Assim, perderam muito do seu te rritó rio os
índios Nambiquara, h o je vivendo em á reas espaçadas umas das outras,
com fazendas e estradas pelo meio. 16

Fazendeiros, posseiros, lavradores sem-terra


e a nova devastação da Amazônia

Se r fazende iro na Am azônia, atualme nte , não significa simple sme nte
te r uma gle ba de te rra com soja , milho , a lgodão , café o u cacau plan-
tado , a lgumas cente n as o u milhares de cabeças de gado e duas ou
três dezenas de trabalhadores braçais com s uas fam ilias . Significa, em
prime iro luga r , faze r parte de um s istema político-eco n ô mico que p e r-
mite se r inve stido um p eque no capital exce de nte, o qual se multiplica
imediatamente vá rias vezes pelos incenti vos fiscais do gove rno e pelas
facilidades de crédito barato obtidas a t ravés de patronagem política.
Não prec isa m o ra r n a faze nda , muito m e nos te r fa mília re side nte, aliás,
quase se mpre e x iste mais d e uma grande casa para a me sma família e
está sempre vazia . Basta ter um capataz, um serviço de rádio a m ado r e
um meio rápido de locomoção - um avião , de preferência. Sem raízes,
se m inte resses que não econômicos , ligado a um sistem a político d e
autofavorecime nto , acossado por d e mandas socia is e vilipe ndiado na-
220 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.

c ionalmente, o fazendeiro não va i ter s impatias nem responsabilidades


para com os índios e seus direitos originários e constituciona is. O seu
modo de ser é a ofensiva contra inimigos visíveis e invisíveis, para que
não recue à defensiva e perca os espaços garantidos de poder político e
econômico. Mesmo nos anos em que esse modo de produção demons-
tra s inais de fraqueza por sua dificuldades em gerar lucros sem o auxílio
do governo, o fazendeiro não desiste. Pelo contrário, vocifera com a
fúria dos injustiçados, com a arrogância de uma elite centenária, e assim
a rrebata de roldão o apoio dos que acham que compartilham do mesmo
estado e dos que vivem à sua sombra.
Tradicionalmente, foram os fazendeiros - incluindo os donos de lavou -
ras de produtos de exportação (como soja, milho, arroz e, antigamente,
café, cacau e cana-de -açúcar) - e os c riadores de gado os mais vio le ntos
inimigos dos índios. Eles dizimaram os índios do Nordeste a partir da ex-
pulsão dos holandeses, os índios do sul da Bahia e vale do Rio Doce, e
reduziram os índios do sul do país e de Mato Grosso do Sul à condição de
minorias enqu istadas com tão pouca terra que, para obter o mínimo ne-
cessá rio ã sobrevivência , têm de trabalhar fora como boias-frias ou peões
de fazenda. A maneira e o processo que permitem a sua expansão atual
na Amazônia nos autorizam a concluir que, se deixados à sua disposi-
ção, farão o mesmo que fizeram com os outros índios em outros tempos.
O fazendeiro, como o senho r ao escravo, diria Hegel, só existe com o
categoria socioeconômica e m função do posse iro. Não do p eão, do seu
trabalhador braçal, do seu capataz - que, parcialme nte, o negam e o a fir-
mam enquanto ser socia l-, mas é das levas de famílias pobres e despos-
s uídas que vivem como seres destituídos e, ao mesmo tempo , dependen-
tes do governo, que o faze nde iro se constitui categoria socioeconômica
total. Pelo m e nos na Amazônia. O possuidor d e te rras o é porque h á os
despossuídos. Os incentivos que recebe do governo aparecem justifica-
dos duplamente em função dos despossuídos: primeiro , para a limentá-
los como povo e como nação; segundo, porque os d espossuídos també m
são amparados pe lo gove rno e assim se igualam sob o manto do Estado
protetor. Essa inversão ideológica é que permite aos fazendeiros manter
a sua postura de s e conside rar ao mesmo tempo elite e vítima, e assim
manipular a sua imagem p e rante a opinião pública ao seu bel-prazer.
A consequência mais n e fasta disso, em re lação aos índios , é que os
posseiros, os despossuídos de terras, surgem no panorama como a lgo-
zes equ ivale ntes aos fazendeiros , como se quisessem expulsar os índios
d e suas te rras e fizessem parte, no mesmo grau dos faze nde iros, do pro-
cesso de esbulho histórico. Na mais simples ou complexa análise que
A S I TU A Ç À O A T U A 1. O OS f N O I OS 221

se fizer sobre a questão agrana no país, po d e-se n otar imediatame nte


que a classe faze nde ira p e rde ria a sua razão de se r se os de spossuídos
o btivesse m as te rras a que tê m dire ito, e certame nte ainda sobrariam as
te rras indíge n as e muito m a is para o futuro.
O s p osseiro s são ta mbé m uma e spécie d e p o nta de lança d os fa-
ze nde iros d o capitalismo agrá rio . Eles vêm na fre nte, d esp o ss uídos e
expulsos das te rras o nde trabalhava m havia muitas gerações, de rrubam
a mata p a ra plantar e, e m seguida, são forçados a ma rcha r m a is pa ra
fre nte, de ixando a te rra ao faze nde iro para pla nta r capim para b o i. Esse
m od o d e ser pro duz um ho me m de ste mido e se m raízes, disposto a
lutar p o r alg um sonho con cre to - como o o uro nos garimpas, p ara
o nde vai muitas vezes - , m as à m e rcê tanto do d esconhecido quanto
d o p od e roso conhecido, o faze nde iro, o p o lítico o u o governo . O seu
contato com o índio é m a rcado p o r e ssa condição qu e o leva a atitudes
tanto de exp ectativa qua nto d e a gressividad e e d es pre zo . D e qualque r
forma, é injusto imputar ao posseiro uma a nimosidade intrínseca o u
uma o p osição e strutural ao índio . A sua gê n ese é, e m b oa p a rte, indí-
ge na, tanto ge né tica quanto c ulturalme nte, ma s ho je e m dia não é mais
a su a n egação, como o e ra n os três prime iros séculos d e colo nização .
Posseiros e ind íge n as, cada um n o seu canto, convivem muito b e m e m
di versas p a rtes d o Bras il e só e ntram e m conflito quando são acio nados
o s mecanismo s de supe ropre ssão e m cima d os posseiro s.
Veja mos, como exemplos, alguns casos n o Mara nhão e Pa rá . No in-
te rio r ma is isolado d esses estados, o nde estavam os índ ios e os antigos
p osseiros, as disputas p o r te rra , que se deram a p a rtir da décad a d e
1960 fo ra m ocasio n ad as p e la e ntrada de m édios e gra ndes faze nde iros
go ia nos, mine iros e pa ulistas, muitos munidos d e docume ntos grilad os
e o utros que passara m a comprar as posses e as velhas faze ndas d e
b aixa p rodutiv idad e da e lite local, expulsando, assim, os mo rado res,
p osseiros e meeiros tradic io n ais .17 Estes, p o r seu turno, se via m sem te r-
ra p a ra trabalha r e assim e ram insuflad os a invadir as te rras indígen as,
esp ecia lme nte as qu e a inda não estavam oficialme nte de ma rcad as . No
Ma ranhão, isso aconteceu , p o r exemplo, com as te r ras indíge nas Cana -
brava e Araribo ia, dos índios G uajaja ra. Em a mbos os casos, p a ra retirar
os invasores, esses índios tive ra m de mobilizar to da a sua fo rça e ndó -
ge na, junto com o aux ílio de alguns de dicados funcio n á rios da Funa i,
a ntrop ó logos, jo rna listas e a o pinião p ública e m geral. A T. I. Can abrava,
c uja de m arcação foi inic iad a e m 1923, ficou até 1990 com uma gra nde
invasão, o p ovoado São Pedro d os Cacetes, que, nas décad as de 1970 e
1980, recebia ostensivo a p o io p olítico e econ ômico p a ra sua p e rma nê n-
A S I TU AÇ À O A T U A 1. O O S fNO I O S 223

faze nde iros e conste rnação da po pulação local. Após se r h o mo logad a


e m 2005, os p osseiros e invaso res começaram a ser ressa rc idos p o r s uas
b e nfe itorias avaliad as p e la Funa i, num processo d e duras n egociações
e extre m os d esga stes que e nvolvem os índ ios, os qua is, de certa forma,
haviam se acostumad os com a presen ça d esses m o rado res . Com efe ito,
e m muitos casos de relacio n a m e nto lo ngo e ntre índios e lavrado res
invasores de su as te rras, cria-se um ambie nte de compa drio, troca d e
favores, cordia lidades que são subitame nte d esenlaçados pelo processo
d e d e m arcação . Um n ovo mundo de atitudes va i se constituindo e tudo
d ep e nde rá da s condições socioeconô micas p ara o s índios se e levare m
n esse n ovo p a n o ram a social.
No Pará, pe los últimos 50 a nos, os casos indígenas e ntre p osseiros
e faze nde iros cor robo ram os e x e mplos m aranh e nses . Compa rando as
d e marcações das te rras dos índios Apinayé, o nde ho uve inte resses con-
c re tos d e faze nde iros e p o líticos, com a d os Pa rakanã, e m que h avia
p osseiros, vê-se que a violê nc ia, e não resolução de finitiva da prime ira
contrasta com os acertos e preste za da segunda .20
Na te rra indíge n a d os Gaviões , proble matiza da p e la passage m d as
linhas de tra nsmissão d a Eletrono 1te e da Fe rrovia Carajás, as dific ulda -
d es aume ntaram a p ós a alocação d e p osseiros numa p a rte d ela, fruto d e
e nte ndime ntos e ntre o Getat - h o je e xtinto e perte ncente ao Incra - e fa-
ze nde iros locais o nde mo rava m aque les p osseiros . É cla ro que os índios
p rote stara m e e x igiram a saída d essas pe ssoas, p o rém não conseguiram
fo rçar a sua retirada . Assim, su a te rra foi de m arcad a d e ixa ndo de lad o
essa á rea que m argeia o rio Tocantins .
As in ú m e ras e continuad as invasões n a T. I. Gua m á, dos índios Te m-
b é, localizad a no no rde ste do Pará , de v e ra m-se q u ase e xclu siva me nte à
expulsão dos posse iros d as te rras o nde viviam e que fo ra m se ndo grila -
d as po r grandes e mpresas de capita l n acio na l e multinacio n a l, com o a
Cod ep a r, a Swift e a Volkswagen. Esse quad ro d e lutas regio n a is gerou
p o r alguns me se s uma e sp éc ie d e p ala dino d os p o bres , d efe nsor-ban-
dido dos posse iros , conhecido como Q uintino, o "Lam p ião do Norte",
que , com um b a ndo de ex-posseiros , combatia os cap a n gas das e mpre -
sas e as p o lícias munic ipa l e estadua l, até ser m o rto e m ja n e iro de 1985 .21

Os grandes projetos econômicos

Desde a con strução da rodovia Transam a zô nica , inic iad a n o com e -


ço dos anos 1970 , e as constru çõe s d as prime iras usinas hidre létricas e
224 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.

a impla ntação do Projeto Ca rajás, quando a Vale era e mpresa estata l,


fala-se sobre a Amazônia como o lugar de expansão do capitalism o
brasileiro. Os projetos se diferenciam da influê nc ia de fazendeiros e
posseiros, mineradores e madeireiros, pelo caráte r o fic ial que possuem,
m esm o que n ão sejam mais excl usiva me nte estatais. São quase todos fi-
nanc iados pelo governo federal, com vultosos e mpréstimos con cedidos
pelo BNDES, fazendo parte de programas nac ionais de desenvolvimento.
Os primeiros e ma is abrange ntes realizados a partir dos anos 1970 , que
tivera m impacto sobre os índios, foram a Transamazô nica, o Pro jeto
Carajás e o Projeto Po lo noroeste. Nos últimos a n os da ditadura militar,
h avia dois outros projetos, Calha N o ite e Tabatinga, que v isavam esta-
belecer a presença militar n essa vasta região fro nte iriça a vários países
s ul-ame ricanos e "ade nsar" a região com uma população n ão indíge n a.
Igua lme nte iniciados na mesma época, porém só amadurecendo n esses
últimos anos , são os projetos de con strução de dezenas de barragens
hidre létricas em diversos rios amazô nicos. Há a inda inúme ros projetos
de assentamentos de posseiros , de abertura de estradas e de exploração
localizada de miné rios, todos esses misturando capital estatal e privado,
e quase sempre financiados por bancos estrange iros , especialme nte o
Banco Mu ndial, mais recentem e nte pelo BNDES. Po r serem programas de
govern o, os projetos são ela borados com a resp o n sabilidade de c umprir
as le is e no rmas do Estado brasileiro. Assim, o fi cialme nte , e les deveriam
e star imbuídos da obrigação de d e fe nde r os inte resse s indíge nas , isto é,
d e prote ge r as suas te rras e prestar a assistê ncia d evida para que suas
populações n ão sofra m os impactos diretos e indiretos que esses proje-
tos tendem a causar.

Transamazônica, BR-163, Projeto Carajás, Polonoroeste, BR-364

A Transamazônica foi a gra nde obra inconclusa do p e ríodo mais au -


toritário do Brasil. Foi aprese ntada co mo a inte gradora da nação, de se -
nhada para juntar os pontos m a is remotos do país ao se u centro pro-
pulsor, espinha dorsal de um n ovo desen vo lvime nto p ara a Amazônia,
espaço para absorver quem q uisesse ter um pedaço de terras e fazer a
vida . Sem te r c umprido essas me tas, e la , no e n tanto , provo cou dive rsos
d esastre s no que conce rne às populaçõe s indíge nas. Em prime iro luga r,
p elo simples fato de ser aberta e m á reas o nde h avia populações indíge-
n as vivendo auton o mame nte , su rg iu a n ecessidade imediata de con tata r
e sses povos, de ntre ele s os Parakanã , Arawe té e Asurini e, em alguns
A S I TU AÇ À O A T U A 1. OO S fNO IO S 22)

casos, faze r tra nsfe rê n cias d e grupos e aldeias para o utras á reas. Nesse
processo, muitos índios mo rreram e m pouco te mpo ap ós o contato e
p oste rio rme nte n as su as novas á reas. O cho que que sentiram os Asurini,
contatados n a beira do rio Xingu, n ão muito lo nge da cidade de Altamira,
c h egou a tal ponto que esse p ovo indíge na passo u ma is de dez anos
sem te r filh os, freque nte m e nte provoca ndo p o r m e io m ecânico o aborto
de fe tos. 22 O mais dramático dos casos de índios autôn om os n a região é
o de dois jovens índios adultos que foram contatados em 1987, únicos
e isolados, sem mais parentes, certame nte descendentes de um povo
que sumiu, extingui-se, durante esse período de expansão na região do
sudeste do Pa rá. Esses dois homens, cuja língua é exclusiva, da família
tupi-gua rani, foram levados a vá rios povos vizinhos, sem se adapta r o u
inse rir-se e m ne nhum deles. Encontraram alguma paz ao v ive r h o je sob
a assistência da Funai , numa aldeia dos índios Guajá, na beira do rio
Pindaré , na T. I. Caru.
A construção da rodovia conhecida como BR-1 63, ligando Cuia bá
a Santaré m , provoco u a urgên cia de contata r os índios Krenhakore,
conhecidos dos Kayapó. Os irmãos Villas-Boas foram con vocados para
fazer o contato; porém , logo após foram re tirados do re lacio namento
pós-contato e os índios ficaram abandon ados. O resultado foi terrível.
Entre fevereiro de 1973 e o utubro de 1975, os Krenhakore perderam
70% de s ua população e, com o último recurso pensado à ép oca, foram
transfe ridos para o inte rio r do Parque Indíge na do Xingu, te rra o nde
vivia m outros povos indígenas . De cerca de 230 índios inicia lme nte con-
tatados, ap e nas 70 chegaram ao n ovo local. No tempo do contato, esses
índios foram chamados "índios g igantes" , porque um deles , que hav ia
sido seque strado e nquanto me nino pe los Kayapó, me dia pouco m ais de
2 m etros de a ltura . O sensacio na lismo d esse caso foi a la rdeado pe los
militares que contro lavam a Funai , à época, e p e las revistas do país . Até
um filme de produ ção ing lesa foi feito para m ostrar como se processa-
va o miste rioso con tato com um povo "primitivo", "q u e se escondia do
h om em (b ra n co)" . Os resultados subseque ntes, o d esespero pe las m or-
tes p o r sarampo e diarreia , a desagregação da a lde ia, a humilhação em
m e ndigar aos ô nibus que p assava m pela la m acenta BR-163 p o dem te r
sido abafados em sua tragédia , m as d eixaram marcas indeléveis naque-
le s que participaram do contato, na história da Funai, p elo de scaso dos
seus dirigentes e do modo de administrar o ó rgão indigenista - e ta nto
m ais sobre os índios sobrevive ntes .23 Po r tudo que sofreram , e ntreta nto,
os Kre nhako re, autode no minados Panará , após passare m alguns anos
n o Parque do Xingu ao lado dos Kayapó Me tuktire (que falam uma lín-
226 0 S IN D I O S E O B R A S 1 1.

gua quase mutuame nte inte ligível), ajudados p o r diversas ONGS ambien-
talistas e indige nistas e com o aval da Funa i, conseguiram reaver parte
de seu te rritó rio original, p o is um p edaço dele já estava tom ado por ga-
rimpe iros, m adeire iros e fazendeiros que, eventualme nte, estabe leceram
as cidades de Pe ixo to do Azevedo e Matupá. Em 1994 e 1995, mudaram-
se de volta p a ra reconstituir s ua vida e s ua sociedade e m te rras tradicio -
n ais, o u ao me nos e m terras vizinhas às que moravam anteriormente.
Essas terras se limitam com as terras dos Kayapó, de m odo que formam
n o total um te rritó rio vasto e intacto de pura flo resta a ma zônica, com
segme ntos de cerrado. Os Pa na rá também ganharam n os tribunais brasi-
le iros uma ação de reparação pelos graves danos sofridos, caso inédito
e de grande reperc u ssão positiva na histó ria do indige nis mo brasileiro.
As rodovias na Amazônia cortam fl o restas e cerra dos e delas se abre m
ramais que p e n etram o â mago das matas o nde se estabelecem os pro-
je tos de asse ntame nto de migrantes no rdestinos e sulistas, os garimpas
e os projetos agropecuários de grande po1te. Os conflitos fundiá rios
continuam a fazer parte dessas regiões a té h o je, emb ora e m muitas re -
giões que foram te rra de ningué m h o je prevalecem c idades e centros
come rc ia is viabilizados pela explo ração de made ira, por dinheiro de
antigos garimpas e pelo sucesso m ais recente do agronegócio. O m odo
de ser brasile iro n essas regiões se apresenta como a p o nta de lan ça de
uma recorre nte forma de colo nização. Parece que só assim é p oss ível
assenta r uma cultura que tem com o sua base socia l a d esigualdade d e
classes, a inju stiça, o privilé gio para os pode res e a dure za d e v ida para
os pequenos. Para os índios de recente contato, o u até de ma is tempo,
como os Kayapó, o mundo dos b ra ncos lhes parece um redemoinho
d e n ovidades, burburinho e violê n cia em que o preço do progresso é a
conivên c ia o u aceitação passiva dos m odos agressivos, venalidades, e n-
ga n ações, deboche e falta de sentido . O que dá s ignificado a isso tudo?
O Projeto Carajás é de gra nde peso econ ô mico n os estados do
Maranhão e Pará. Cidades m édias, como Marabá e Açailâ ndia, e d e ze nas
d e p e que n as c idades vivem e prospe ra m e m função d e s ua produção e
expo rtação de miné rios . Po rém, para os índios dessa região, o que m a is
se evide n cia, alé m do volume de dinheiro c irc ula nte e da inte ns ificação
da pobre za regional , é a grande fe rrovia de 890 km que liga a Mina d e
Carajás - cuja produtividade tem duração estimada e m quase 400 anos
de exportação contínua de miné rios de ferro , cobre, ouro, m a n ga n ês e
outros - ao Porto de Itaqui , e m São Luís do Maranhão. Os índios m a is
diretame nte atingidos são os Xikrin, cujas te rras, també m ricas e m miné -
rios, fa ze m divisa com a Serra de Carajás; os Gaviões-Parkatejê, e m c uja
A S I TU AÇ À O A T U A 1. O O S fNO I O S 229

a ltos, o s Gaviões a ufe riram uma re nda razoável sem m exe r n o princ ipa l,
mas aos p o ucos foram retirando o que sobrara. Nos a n os seguinte s , o u-
tro linhão da Usina Tuc uruí atravessa ria a T. I. Mãe Ma ria , e os Gaviões
iriam n e gociar os te rmos dessa p assage m. Po r sua vez, a inte ns ificação
d e tre n s p assando pe la te rra indígena foi re negociada uma vez e o utra,
sob pressão, a contrago sto da Vale, que continua a insistir qu e só o faz
p o r be ne m e rê n cia, e não p o r obrigação con signada pe lo decre to legisla -
tivo que le galizo u seu controle sobre as te rras da Serra do Carajás .
Ho je os Gaviões-Pa rkate jê e seus p a re ntes conte rrân eos, os Kyikatejê
e os Akrãtikate jê, vivem uma vida dife re nte, p o r ser ma is confortável,
e m relação à m aio ria d os índios brasile iros, o que cau sa uma animo -
sidad e e inveja e n o rmes p o r p a rte d a p o pulação p obre local. Se n os
prime iros anos d e b o n a n ça o s Gaviões se expuseram a uma vida d e
cons umo d esregrado, com seus jovens se p avon e ando p e las c idad es
vizinhas, gastando e m a tividades d esagre gadoras, o senso volto u-lhes
pela condução de seu líde r principa l, e seus joven s agora que re m fre -
que ntar escolas, universida des e p artic ipa r d e uma vida mista d e índio
com c iv ilizad o, ba la n ceando o que po d e haver d e bo m e me lho r nas
duas forma s de vive r. Os Gaviões re presentam um exp e rime nto social
inesp e rado no p a n o ra ma p olítico-cultura l brasile iro, e certame nte estão
dando o e x emplo p a ra o utros p ovos indígenas .
Os Gaviões sab e m que h á ma is recursos po r vir. A Vale está dupli-
can do a Fe rrovia Carajás, inclusive na travessia da te rra indíge n a , o que
vai reque re r uma ne gocia ção m ais p a rtic ipativa . Ele s sabem o q u anto
a Vale lu cra com esse tra n sp o rte . Po r sua ve z, está n os pla nos do go-
ve rno a construção d e ma is uma hidre lé trica n o rio Tocantin s , a UHE
Ma rabá , que impacta rá a pró pria te rra ind íge n a p or inunda ção de alguns
h ectare s . Os Gaviõ es pod e m que re r dize r um n ão a e ssa hid relé trica,
m as ta mbé m p o de m qu e re r n egocia r s ua p a rtic ipação n esse capital não
como simples inde ni zação , mas com o sócio me n o r, e n a reconstituição
d as te rras que p e rde ra m a nte rio rme nte .
No cômputo ge ra l, que inclui os índios Gu ajaja ra d e o utras te rras
indígenas não atingidas diretame nte , o impacto d o P roje to Carajás se ca-
racte riza p e la s ua p e rma n ê nc ia e vigor, o que o dife re nc ia d a T ra nsama-
zô nica . A fe rrovia atraiu ge nte e ca pitais , projetos agro p ecuá rios, sid e -
rúrgicas, utiliza ção de ca rvão v ege tal, conflitos fund iá rios , ex p ectativas e
in satisfações econ ô micas, valo rização da te rra , urba nização descontrola -
d a de distritos ru ra is - e nfim, o q ue ma is n ão sabem os a inda . Os índios
são ch acoalhados p o r um mundo d e muda n ças contínuas e impre vis í-
veis , em que o dinhe iro com pra tudo , de quinq uilha rias a prostituição .
230 Os IND I OS E O B R A S Ii.

Parece-lhes injusto que te nham de trabalha r tanto p a ra a dquirir tão po u-


co com a ve nda d e seus produtos a grícolas. Da í p a rte m p a ra de ma ndar
recursos d a Funai - em fo rma d e dinhe iro e m esp écie o u e mpregos
estáveis com re mune ração ad equa da . Não os o bte ndo, passam a ach a r
que tê m dire ito s d e compe n sação e m re lação à s muda n ças que ocorre m
ao seu re do r . Assim, são e nvolv idos num siste ma ideológico d e m od o
a rrevesado, re tirando de su as tra dições e mitos os fundam e ntos dessas
n ovas de ma ndas . Po r exemplo , p assam a acha r que o ofício inte rno d e
c h e fia d everia se r re mune rado pe la Funa i, seja com o c h e fe de p osto
(q uando e ra p o ssível) , seja a té com o cac ique . Justificam os p e didos
e de m andas p ecuniá rias pelo a rg ume nto de que, se a ntes viv iam sem
b e n s industria is , p o r que e ra m a utô n om os, agora , são fo rçados a p e r-
te ncer a esse mundo e nvolvente . O Estad o, a Funa i, te ria o brigação d e
lh es p rove r as novas necessida des . É um a rgume nto de compe n sação
que faz alg um sentido a ntrop o lógico , m as difíc il de ser aceito no p e n-
sam e nto administra tivo b rasile iro . Ad e ma is , a Funa i, p o r sua ine fic iê n-
c ia própria , a p are nte m e nte p rogra m ad a p e lo Esta do , to rna-se cada vez
mais incap a z d e preen ch e r as mínimas necessidad es reais . Dessa forma,
o utro resultad o d os p roje tos econ ômicos, este e o utros d a a tua lida de , é
a exacerbação dos d esente nd ime ntos e ntre os índios e o ó rgão ind ige-
nista , sina l do s d esente ndime nto s mais gene ralizados e d os n ovos p ro-
cessos sociais que p a recem estar na pró xima curva da histó ria b ras ile ira .
A Fe rrovia Carajás foi p a rc ia lme nte fina n ciad a p elo Ban co Mund ial
o q u al, por fo rça do contrato d e e mpré stimo à a ntiga cVRD, ex igia que
p a rte do fina nc ia m e nto fosse usado p a ra a te n de r às necessida des dos
índios . Para isso fora m contra tados diversos a ntropó logos d as princ ipa is
universidade s do p a ís p a ra id e ntifica r os problem as ind íge nas e fa ze r as
d evidas suge stões . Essas suge stões se conce ntra ram n os p roblem as d e
te rras e saúd e . Po ré m , n ão fora m acatadas de to d o . O fato é que o nde
e ra urgente d e m a rcar, com o as te rras dos Guajá e d os Krikati , o proces-
so se e ste n de u ao p o nto d e to rna r d iminuta a te rra dos Gu ajá , poré m
boa para os Krikati. Durante muito te m po , a urgê n cia d e de m arcação
e ra desviada p ara ate nde r a re iv indicações pessoais de índ ios , proble -
m as de invasões e m o utras áreas, sugestões esp ú rias de aume nta r te rras
já de ma rcadas e program açõ e s m e n o res . Após cinco a n os d e trabalhos,
o saldo, e mbora n ão ne gativo , ficou a d es ejar. Isso v em ale rta r que o
trab a lho do a ntrop ó logo nesses e mpreendime ntos não de ixa de esta r
vinc ulado aos inte resses g lo ba is dos p rojetos e a uma gama de fato -
re s p o líticos incontroláve is . Sob a cap a d e boas inte n çõe s , as e mpre sas
p rocura m apre ssar o trabalho dos a ntrop ó logos p a ra re aliza r o m ínimo
A S I TU A Ç À O A TU A 1. O OS f NO I OS 23 1

p ossível d e comp ro m etime nto pe rma n e nte . A luta que o a ntrop ó logo
trava no bo jo d o p roje to pa ra a nga ria r a simpatia dos técnicos e políticos
e nvolv idos, e contra os inimigos d ecla rados dos índios, serve p a ra p aci-
fi car a s ua consc iê nc ia, ganha r exp e riê n cia de a plicação d e se u miste r.
Po ré m , a e ficácia de seu traba lho fica restringida pe los inte resses m a is
p od erosos, pelas circunstânc ias p o líticas, pe la ino p e râ nc ia básica da Fu-
n ai e p e lo p o uco caso das auto ridad es nacio n ais .25
Po de -se concluir que as p rovidê nc ias, compe ns ações o u retribuições
to ma da s p ela Vale, d esd e 1980, quando e ra e mpresa estatal - até de p o is
d e 1997, ao v irar e mpresa privada , do n a d a Grande Provínc ia de Miné -
rios Carajás e d a Fe rrovia Carajás - , sempre estiveram aqué m de su as
p ossibilidad es, de sua s re spo nsabilidades com o e mpre sa que receb e u
um a lto quinhão d e rique za s mine rais da nação, inclusive de te rras que
h avia be m p o u co tempo eram indígen as p o r ocupação tradic io n al. Do
p o nto de v ista dos estados do Maranhão e Pa rá, as recla mações são am-
plas . D a p a rte dos índios novos proble mas foram criad os, e, n ão o b stan-
te os recursos m e n sais que re p assam a os índios; os p roble mas segue m
p o r caminhos d ife re ntes . Até a d écada d e 2000, as insatisfações e ram
ime nsas .26 Ho je e m dia, com as pre ssões d os índios e da opinião públi-
ca, mas també m em fun ção d a ime nsa qua ntida de de recursos mine rais
re tira dos de su a mina e expo ttados, a Vale te m se p osicio n ad o com m a is
cautela e resp e ito aos d ire itos dos p ovos indígenas . Certam e nte, as lide-
ranças indígenas Xikrin , Gav ião e Suruí, n o Pa rá , e n contraram me ios d e
pressão e p e rs uasão ma is contunde ntes para a ufe rir uma m ínima p a rte
dos luc ros da Vale . J á os índios q ue vivem n o Maranhão , os Guajá e
Gu ajaja ra , são p o r e la d escon side rados .
O utro grande p roje to econ ô mico que impacto u a vasta região do n o -
roeste de Ma to Grosso e o estad o de Ro ndô nia , fina nc iad o p e lo Ba n co
Mundial, e que atingiu muitas áre as ind íge n as, foi o Projeto Polo n o ro e ste,
c uja e spinha dorsal e ra a rodovia BR-364 , que liga Cuiabá a Po tto Velh o ,
e m Ro ndô nia , e com prolo ngame nto até Rio Bran co , capital d o Ac re .
Uma vez ma is , ao fin anc iar a construção e asfalta m e nto d a rod ovia e
a gama d e atividade s d e ste p roje to , o Banco Mund ia l ex igiu investi-
m e ntos visando à pro teção e assistê nc ia das p o pulaçõ e s indíge n as a í
localizad as; d e n ovo, as s ugestões d os a ntrop ó logos se concentra ra m
n a de ma rcação das á re as indíge n as em que stão . T eo ricam e nte , com o
e sta é uma vastíssima reg ião d e e scassa população , não d everia h ave r
m aio res p roble mas nessa tarefa . Entre tanto , o p roje to c h egou com um
atraso cons ide rável e m re lação ao p rocesso de migração d esenfreada e
irre sp o nsáve l, e, em muitas ocasiões , já e ncontrou áre as indíge n as inva -
didas e e m conflito .
232 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.

O vale do Guaporé, território tradicional de diversos grupos Nambi-


quara, foi rapidamente tomado por fazendeiros na década de 1970, e os
Nambiquara, que até então dominavam um vasto território de cerrados
e matas, acabaram ficando com sua área retalhada de acordo com a pre-
sença de a lde ias, forçando dessa forma o velho e ins idioso argumento
de que terras indíge nas são aquelas o nde há a ldeias e utilização perma-
nente e atual dos índios.
No caso dos índios Uru-eu-wau-wau, povo de língua tupi-guarani,
subdivididos e ntre Jupau e Amondawa, a inda vive ndo autonomamente
e com agressividade em re lação a invaso res, conseguiu-se demarcar
uma área de 1 ,7 milhão de h ectares, pa1te da qual h avia sido consigna-
da como parque nacional, sob a jurisdição do IBDF, atual Ibama, e que
depois foi retirada para ser exclusivamente indíge na.
O já estabelecido Parque Indígena do Aripuanã e as terras indígenas
dos Zoró e Suruí, vizinhos dos nossos conh ecidos Cintas-Largas, foram
palco de invasões por parte de lavradores em terra, madeireiros e fazen-
deiros. No caso mais extremo, foi estabelecida, num curtíssimo espaço de
tempo, uma colô nia com cerca de 4 mil pessoas, no interio r do Aripuanã,
com o apoio dos governos federal e estadual, através de diversos ór-
gãos de colonização. Os índios protestaram e vez por outra matavam
caçadores mais distraídos que perambulavam um pouco mais longe de
seus pontos de estada. Em uma ou duas ocasiões , os índios chegaram a
atacar famílias d e posseiros, provocando alvoroço ge n e ralizado. 27 De sse
modo, conseguiram que o governo federal retirasse esse povoado.
Os problemas mais urgentes na avaliação dos a ntropó logos-consul-
tores derivavam da insegurança da falta de demarcação das te rras in-
díge nas, identificadas preliminarmente como se ndo 22. Havia à época
aproximadame nte 22 ind icações d e existên cia de povos indígenas au -
tônomos c ujas terras não eram sequer reconhec idas. Embora isolado
social e economicamente de outros centros econômicos, o a ntigo Ter-
ritório de Rondônia , tornado estado em 1981 , já fora are na de muita
d estruição de povos indíge nas , primeiro pela construção da Estrada d e
Ferro Madeira -Mamoré, como parte da negociação com a Bolívia para
a obtenção do estado do Acre; segundo, perpetrada por sering ue iros e
castanhe iros que lá se instalaram pe lo te mpo da Segu nda Gue rra Mun-
d ial. Assim, muitos povos indíge nas já tinh am se ntido o pode r d e fogo
e a vio lê n cia do h omem branco , não obstante tenha sido Rondônia
conectado ao resto do Brasil pelas linhas telegráficas estendidas pelo
Marec h al Rondon, e ntre 1910 e 1927, e sua influê ncia sobre o gove rno
fed e ral te nha permanecido por muitos anos.
A S I TU AÇ À O A T U A 1. OO S fNOIOS 233

Po r volta d e 1987, di ve rsos grupo s indíge nas d o sul e oeste d e Ro ndô -


nia e ra m re manescentes d e grande s p o pulações d e o utrora. Uma de las
e ram os c h amados Kawah yb , um dis pe rso conjunto d e g rupos é tnicos
fala ntes da mesm a líng u a d a família tupi-gua rani , que sofre ram ataques
d e seringue iros e castanhe iros . Acome tidos p o r epidemias, o s sobrevi-
ventes se disp e rsa ram a inda ma is, d o mé dio rio Made ira a té o centro
d o atua l te rritó rio de Ro ndô nia . Os Jia hui somava m e ntão a p e n as 13
pessoas, os Juma 9, os Ka ripuna 14, mas os Uru-e u-wau-wa u passava m
d os 100 . Havia també m índios recém-contatados cujas p opulações e ram
diminutas , com o os Canoé e Akuntsu , e nqua nto uma d e ze na dos povos
indígenas de Ro ndô nia p ossuía po pulações com me nos de 100 pessoas .
Sem te r suas te rras de ma rcadas e ga ra ntidas e sem h ave r a afirmação d e
uma po lítica indige nista que de sse condições de sobrevivên cia, e sses ín-
dios estava m e m p e rigo d e e xtinção . Com efe ito, 25 an os de p o is, os Juma
diminuíram pa ra seis p essoas, e ho je vivem com os Uru-e u-wa u-wa u ,
e m fim d e linha é tnica. Os Canoé recente me nte se reduzira m a 5 p es-
soas, se m p ossibilida de de auto rre pro dução, como os Juma . Na d écada
d e 1990 o se rta nista Ma rcelo d os Sa ntos d e u-se d e cara com o caso
m ais dram ático da realidade indígen a brasile ira - m ais d o que o ca so d os
d o is índios que v ivem com os Gu ajá - , o ch am ado "índio do buraco" .
Um h o m e m , possivelme nte Can oé, vive sozinho em uma cab a na fe ita
d e p alha d e ntro d a qual c avo u um buraco provavelme nte p ara se sentir
m ais pro te gido . Os ind ige nistas res p o nsáve is d a Funa i v êm se de sd o -
b rando pa ra p rote gê-lo e ajudá -lo a e nc o ntra r-se co m os de m ais . Até
consegui ra m d o ó rgão indigenista uma p o rta ria d e de limitação de uma
á rea p a ra restring ir a presença d e estra nhos . J á ho u ve te ntativas d e
o bte r co nta to com ele - le vara m a lgumas pe ssoas do p e que no grupo
Can oé p a ra lá , a fim d e q u e travasse m um diá logo - , mas o "h o me m
d o b uraco" se recusa a re lacio n a r-se, a ate nde r p e didos , a resp o nde r;
ao contrá rio , certa vez d esfecho u uma flech a que rasp o u o co rpo d o
cine asta Vincen t Care lli , que filmava a situa ção . São esses índios e o u-
tros m ais que compa ttilha m idê nticas c o n d içõe s d e v ida os principais
m oti vos que nos dão a certeza d e que qua lque r po lítica indigenista que
n ão te nh a um ó rgão estatal com legitimidad e e competê n cia p a ra agir
e stará fad ad a à inutilida de .
O re sultado da co nsulto ria d e a ntropó logos n o Projeto N o ro e ste foi
p ositivo , na mesma me dida d o tra ba lho dos a ntro p ó logos n o Proje to
Carajás . Sua presen ça e m Bras ília junto à Funa i, o prest ígio do Ba n co
Mundial no go verno fe de ral, a d e pe n dê ncia d o governo e stadu al d e
Ro ndô nia e , sobretudo , a coope ração d a Funa i loc al, d irigida e ntão pelo
234 Os INDIOS E O B RASIi.

serta nista Apoena Meirelles, fizeram que s uas propostas fossem levadas
a sério e desencadeassem ações e fetivas, tais como reconhecime nto dos
limites de terras indíge nas e suas demarcações. Ho je aproximadamente
24 terras indígenas estão demarcadas em Rondônia, compreendendo
aproximada me nte 6,25 milhões de h ectares o u 27% do te rritó rio estadua l.

ffidrelétricas

De lo nge, as hidrelétricas que estão sendo construídas n a Amazô -


nia são os projetos mais visíveis e m re lação aos povos indíge nas n a
atualidade. São e serão grandes barragens a ser con struídas em majes-
tosos rios, destinadas a abastecer o país de e n e rgia e lé trica. Passada a
primeira fase de construir hidre létricas sem se preocupar com o me io
ambie nte, h o je em dia os projetos hidre lé tricos buscam incorporar n os
seus o rgan ogramas e nos seus custos os aspectos socia is e ambientais
que são de algum modo impactados por essas g randes construções. O
governo brasileiro e as grandes firmas construtoras justificam a profusão
de hidre létricas a sere m con struídas na Amazônia como uma alternativa
mais barata e potencialmente menos perigosa em relação à produção de
usinas de e n e rgia nuclear. Recentemente, o plano estatal de produção
de e n e rgia e létrica incluiu investime ntos e m o utras formas de e ne rg ia
menos degradantes, como a eólica e a solar. Po rém, n ão se pode nega r
que as hidre létricas inte rfe re m no me io a mb ie nte dos rios e na vida tra-
dicional das comu nidades humanas que deles sobrevivem , pre judican-
do-as e ameaça ndo seriame nte o exte rmínio de muitas espécies vegeta is
e animais, muitas dantes desconhecidas.
Até a década d e 1990, as hid relétricas mais visíveis e conh ecidas na-
c ionalme nte, que tiveram impactos sobre populações indígenas, e ram a
de Ita ipu , n o Paraná , de Tucuruí, no Pará , de Balbina , n o Amazonas , de
Itapa rica e Sobradinho, n a Bahia , e de Itaja í do No rte, em Santa Catarina.
Ita ipu provocou a transfe rê n cia d e uma comunidade de índios Avá- Gua -
rani e sua localização e m um lote mínimo ao lado d e uma fazenda de
soja, o nde o vento soprava para a a lde ia os borrifos dos agrotóxicos . Le -
vo u a n os para a empresa Ita ipu Binacional se apiedar da s ituação desses
índios e obter me lho res te rras ao m e n os para a lgumas famílias . Tuc uruí,
cuja construção está associada à construção da Transamazônica, te m um
histórico con vulsivo de transferê n cia dos índios Parakanã , com perda de
território , de vidas e, sobretudo, de mudanças drásticas em suas m a n e i-
ras de viver. Onde h aviam sido contatados, suas te rras fo ram tom adas
A S I TU A Ç À O A T U A 1. O OS f N O I OS 235

e loteadas por posseiros, madeireiros, a Capemi e as empreite iras que


construíram a barragem. Os Parakanã foram infectados por vá rias doen-
ças, inclusive venéreas e transferidos para outra área; depois, para outro
local diferente, onde afinal os dois grupos se assentaram e tiveram as
terras demarcadas. À margem do lago foram assentados posseiros, quan-
do poderiam tê-las mantido como suas. Por tudo, ao seu tempo, uma
vergonha nacional eivada de corrupção; para os índios, uma experiên-
cia sofrida e desgastante, com perda de 50% de sua população em uma
década e meia de contato, até 1987, quando, assistidos pelo Programa
Parakanã, idealizado e gerido pelo indigenistaJosé Porfírio de Ca rvalho,
e patrocinado pelo prazo de 25 a n os, passaram a c rescer e consolidar
sua vida na terra que lhes havia sido concedida. 28
As barragens do rio Itajaí do Norte, em Santa Cata rina, e de Itaparica,
n o rio São Francisco, afetaram, respectivamente, os Xokle n g e os Tuxá,
com prejuízos que vão a lém da inundação parcial ou total das suas
terras, causando problemas de reconstrução cu ltural e de adaptação às
n ovas exigências socioeconômicas. 29 A barragem de Balbina é um dos
mais tristes exemplos da incompetênc ia gerada pelo autorita rismo pas-
sado. Projetada para abastecer Manaus com energia elétrica , sua capaci-
dade de produção no final nunca alcançou um quarto das necessidades
atua is, a lém de ter sofrido tal nível de assoreamento que ho je está pres-
tes a se r desfeita. Ainda ass im, inundo u uma ime n sa á rea comparável à
inundada p e la Usina Tucuruí, incluindo uma área de 30 mil hectares da
te rra indígena Waimiri-Atroa ri , afetando duas alde ias nos rios Abona ri e
Taquari , que ti veram de ser transferidas para o utros loca is. A redenção
de tudo isso fo i a criação de um programa de compensação feito pela
Eletronorte, o Programa Waimiri , dirigido pelo ind igenista José Porfírio
de Carvalho, que propiciou vertiginoso crescime nto populac ional (de
cerca de 380, em 1987, para 1.600 indivíduos a tualmente), estabilidade
econômica, cultu ra l e política e ampliação de s ua visão de mundo por
m e io de um programa d ife re n ciado d e edu cação .30
Nos anos 1990, a construção d e hidrelétricas estagnou , e m pa1te por
causa da falta de recursos e da depressão econômica pela qual passava
o país. Havia o ambic ioso Plano Nacional de Energia Elétrica 1987/ 2010,
elaborado pela Ele trobrás para atende r às necessidades e ne rgéticas do
país p o r m e io do uso de seu pote n cial hidrelétrico . N esse plano estavam
previstas as construções de quase uma centena de barragens, muitas nos
rios da bacia amazônica, o nde aproximadamente 17 delas irão ating ir
cerca de 60 povos indíge nas e m ma is de 80 áreas, muitas sem provi-
dências regulame ntáveis a inda tomadas. 31 Nos anos seguintes e até o
236 Os IND I OS E O B R A S Ii.

presente, esse pla n o foi amplia do po r n ovos estudos p a ra incluir n ovas


barragens, re fina r as a nte rio rme nte avaliadas e este nder o uso do po -
te ncia l híd rico també m p a ra cente n as de pe que nas centrais hidre létricas
(PCH) q ue a tin girão m édios e p eque nos rios . Essas ba rragens o u us inas
hidre lé tricas (uHE) irão inunda r e n o rmes exte nsões d e te rra , a inda que
n os últimos anos te nha havido uma te ndê ncia para diminuir as á reas
inundáveis e m função d e uma muda nça tecno lógica n o fo rmato d as
turbinas, p e rmitindo as c h a m ad as hidrelé tricas a fi o d 'água . Entretanto,
já n este an o de 2012, s urgiram p rop ostas d e se re to ma r pla n os d e hidre -
lé tricas com grandes lagos para prevenir os a nos de seca, assombrando
m ais uma vez os índ ios, ribeirinhos e futu ros vizinhos das hid re létricas
que estão p a ra ser construídas p o r tod a a Ama zô nia . É p ossível que se-
ja m pla n os tecnicam e nte be m elab o rados, m as, m esm o assim, te rão con-
sequê ncias a inda imprevisíveis para o m e io ambie nte e previsíveis pa ra
as p o pulações que h abitam as m a rgen s d os rios a ting idos . A compara r
com as UHE Tucuruí e UHE Balbina, p o de -se esp e rar di versos tipos d e
d esm a ndo já conhecidos . Po rém , já que o Brasil to rno u-se um p aís m ais
d em ocrático, respo nsável e ambicioso - pelo me nos o q ue se ala rde ia
p ela n ação - , p od e ría m os te r uma visão me nos p essimista e esp e rar que
o s me smos e rro s n ão venha m a ser come tidos, e que assim essas cons -
truções sejam precedidas por estudos exaustivos e ações d ecisivas p ara
n ão som e nte ame niza r os impactos, como criar , das n ovas situações a
ser estabelec idas, con d ições de sobrevivênc ia dig n a aos índios .
Gra ndes b a rragens vê m sendo construídas n os principa is rios a m azô -
nicos, com o o Tocantins , o Made ira , o Ta pajós , o Xin gu , e logo have rá
ta mb ém no Purus , no rio Negro , no Jari, e e m de ze nas d e o utros m e n o -
res , com o o T eles Pires, o rio das Mo rtes, o J amaxim e ma is .
Be lo Monte, no ba ixo rio Xing u , é o exemplo ma is contestado até
agora d e hid relé tricas n a Ama zô nia q u e impactam te rras indíge nas . O ri-
gina lme nte cha mada Kara raô , para ho me nagea r um subgrupo indíge n a
Kayap ó q ue lá fora contatado d esastradame nte n a décad a d e 1950, a
hidre lé trica p roduziria 11 mil Mw/ ho ra , to rnando-se a segunda ma io r
do p aís , abaixo a p e n as d e Itaipu , com 14 mil Mw/ h ora , e inunda ria uma
á rea co nsid e ra da ra zoável, para s ua fa ixa d e pro dução d e e n e rgia , d e
120 mil h ectares . A Us ina Hidrelé trica ( uHE) Kararaô era a ú ltima das
cinco hid relé tricas pla n ejadas pa ra o rio Xing u , se ndo q u e a se guinte a
m o nta nte, cogn ominada Babaqu ara , inte ncio nada pa ra re te r águ a para
ab astecer Ka ra raô nos q ua tro meses d e estio , inundaria uma á rea d e 600
mil h ecta res! O u o dobro do lago de Tucuru í!
A UHE Kararaô foi levada a d iscussão p o r convocação dos índios
Kayap ó , liderados por Pa ulo Pa iaka n e Raoni Metuktire, com o s upo rte
A S I TU A Ç À O A T U A 1. O OS f N O I OS 237

d e diversas ONGS nacio n ais e inte rn acio n a is, na c idade d e Altamira , a um


Encontro em fevere iro de 1989. Aí, com a presença d e ma is mil ambie n-
talistas, índios d e 18 e tnias dife re ntes, jo rnalistas d e to do o mundo, be m
como de re presentantes da Ele tro no rte, Kara raô foi exp osta , d eb atida
e execrada p e la a udiê n cia. Anos de p o is, a Eletron o rte traria uma n ova
pro posta ao público . A n ova hidrelé trica c h a m a r-se-ia Be lo Monte, te ria
a m esma capacida de de p rodução, mas, p o r utiliza r as n ovas turbinas a
fio d 'água, po te n cializad as p o r uma alavan cam e nto d a força d a corre n-
te za através d e uma b a rragem d e d esvio, na e ntrada da Volta Grande d o
Xingu , e a constru ção d e d o is cana is q ue jo ga ria m a água p a ra o lago e
as turbinas, inunda ria uma á rea be m me n o r, de 50 mil a 60 mil hectares .
Realme nte, uma muda nça e ta nto!
E e is que, a p artir d e 2004, a Eletrono rte de u p a rtida aos estudos
d e avaliação d os impactos socioambie ntais d essa n ova hidre lé trica sem
uma estratégia de escla recime nto cabal ao movime nto ambie ntalista
brasile iro e, p o r tabela, inte rnacio na l, tampo u co aos p ovos indígen as
concerne nte s. O Bras il já tinha assina do e transformad o e m le i o Con-
vênio 169, da O rga nização Inte rnac io na l d o Traba lho (01T), p e lo qua l
to da a tividad e que diga resp e ito aos povos indígen as precisa ser previa -
m e nte esclarecida, discutida p a ra recebe r alg um tipo de consentime nto .
A pró pria Funai já praticava alg uma forma de escla recime nto, m esm o
que info rma l, qua ndo havia a lguma a ti vidade que compro me tia as con-
d içõe s dadas de uma de te rminada te rra indíge n a . A intempestividade
da Ele tro no 1te le va nto u uma cele uma a nte s me sm o de os inte re ssad os
tra nsforma re m o novo p rojeto e m um programa de govern o e p assa re m
a pressio n a r o Cong resso - esp ecificame nte, o Sena do - , p ara e mitir um
d ec re to le gislativo co nce de n do uma licen ça e auto riza ndo a e m p resa a
iniciar as con sultas aos p ovos ind íge n as, na visão d e que e staria seg uin-
d o o es pírito d a le i, d o p a rágrafo 5 d o art. 231 d a Con stituição Fe deral,
que d ete rmina que o uso de recursos minerais e hídricos p rove nie ntes
d e te rras ind íge n as p recisa obte r o a va l do Co n gre sso Nac io na l, s e ndo os
ín d ios con sultad os e com d ire itos aos re sultados . D e e ntão até agosto d e
2012 , a UHE Be lo Mo nte esteve con stante m e nte sob o foco d a c rítica e d e
ações judicia is de to das as n ature zas e p rocedê nc ias . Até sob o p rotesto
do ato r am e rican o Arno ld Schwarze n e gge r, que baixou e m Altamira
p a ra co nve rsar com os índ ios, e m 2011 , d ificilme n te a p essoa m a is c re d i-
tada com o amb ie ntalista o u conheced o ra d a questão indígen a b ras ile ira .
A UHE Belo Monte te m s ido tão de b atida e tão v ilipe ndiad a p o r am-
b ie ntalistas , a ntrop ó logos , p ro motores p úb licos e p e los índ ios qu e d ifi-
c ilme nte se e n contra a lgué m fo ra da indústria de ba rrage ns q ue a p ossa
238 Os IND I OS E O B R A S Ii.

defender. Prime iro, porque sua construção significa desmatame nto ( não
se sabe exatame nte quanto); vai desviar um largo trech o do rio Xingu,
tira ndo águ a que descia para banhar a Volta Grande do Xingu , que
ficará com o mínimo de água durante todo o ano, mudando substan-
cialme nte a ecologia de um trech o de mais de 50 km do rio e a fetando
diretamente as alde ias dos índios Juruna e Arara, que perderão e n o rme -
mente com o recesso das águas do grande rio em suas te rras; inundará
permanentemente uma á rea de te rra que vai da barragem de desvio até
a cidade de Altamira, inclusive o bojo do rio (que n ão terá mais praias);
o trecho com pouca ág ua a fe ta rá a foz do rio Bacajá, que, n ão tendo
a volumosa barreira da água do Xingu para conte r s ua corre nte za, de-
sembocará com uma velocidade tal que inviabiliza rá a navegação de
barcos, que era o principal meio de transpo rte dos índios Xikrin, que
vivem nas margens do rio Bacajá, até a cidade de Altamira. Segundo,
porque, digam o que disserem, ninguém acredita que uma hidrelé trica
com potencial de 11 mil MW - porém, só produzidos nos quatro meses
de c huvas, baixando para menos de 2 mil MW n os quatro meses de estio,
para uma média de e n e rgia firme de 4 mil MW - n ão ve nha a receber,
em alg um tempo futu ro, um suporte de água para produzir o seu po-
tencial durante todo o ano. Esse supotte viria da UHE Babaquara, a ser
construída a montante de Altamira para servir de depósito de água em
um grande lago. Babaquara inunda ria uma á rea próxima de 300 mil
h ectare s e impactaria d iretamente as te rras dos índios Arara, Kararaô e
Asurini. Terceiro, os proce dim e ntos usados pelo consórcio construto r,
Norte Energia , para obte r o consentime nto dos índios concerne ntes foi
tão mal realizados que deixaram uma ferida aberta n o relacionamento
e ntre índios e socie dade nacional, ou empreendime ntos hidrelétricos,
com re spingos ide o lógicos por todos os lados .
Segundo a Norte Energia, a UHE Belo Monte vai c usta r R$ 19 b ilhões,
soma que muitos acreditam que chegará a R$ 30 bilhões. Não é assim
que os e mpreendime ntos se d e se nvolvem no Brasil? Se já é fato consu-
mado , inde pe nde nte me nte das açõ e s judicia is que se lhe p espe gare m
os tribunais , será o empreendime nto mais caro já realizado no país,
porém seu c usto ideológico já deixou uma conta e no rme para o Brasil
e para a visão que os brasileiros tê m d e se us investime ntos. Daqui por
d iante, não importa tanto o que o mundo p e nse de Be lo Monte, e sim o
quanto se poderá reverte r a apreensão n egativa que desespera a muitos
e confunde a todos.
A p éssim a re pe rcussão d e Belo Monte ofuscou d e longe as críticas que
h aviam surgido inicialme nte em relação às usinas Jirau , com 3 .700 M W ,
A S I TU AÇ À O A T U A 1. OO S fNO IO S 239

e Santo Antô nio, com 3 .400 MW, ambas n o rio Made ira , a 50 km uma da
o utra , que estão se ndo finaliza da s n este a n o de 2012. Embo ra o la go
d a UHE Santo Antô nio venha a impactar diretam e nte os limites d a T.I.
Karipuna, os e nte ndime ntos fe itos e ntre a empresa construto ra e os ín-
dios, junto com a Funa i, equacio n a ram um protocolo de consentime nto,
o u d e aceitação da re alidade desses impactos . É certo que no caso da
UHE Jirau os impactos e ra m indiretos, difusos, a sere m provocad os p e lo

ade nsame nto p o pulacio n al na região e pe la provável c h egada d e novos


e mpreendime ntos, não p o r e fe itos d o lago que compõe a us ina. Seja
como for , as questões discutidas n e sses do is casos d e hidre lé tricas e
seus relacio name ntos com p o pulações indígenas foram realiza dos com
certa cla re za e tra n sp a rê n cia, de m od o que se chegou a um p o nto d e
e nte ndime nto de aceitação para amba s as p a rtes, com compe nsações d e
m édio prazo a se re m c umpridas p e las resp ecti vas us inas .
Hidrelé trica s serão construídas e m de ze nas de rios da b acia d o Ama -
zo nas, no São Francisco, n os rios do Sul d o p a ís e até n o Pa nta n al.
Calcula -se qu e, se esses proje tos fore m realiza dos, cerca d e 80 o u m a is
p ovos indígen as se rão impactos p e las inundações d e s uas te rras o u p o r
impactos indire tos e consequê nc ias socia is e econô micas p e rmane ntes .
Ta ntos pro je tos, tantas decisões que afe tarão não som e nte os p ovos
indígena s , m as os ha bitantes tradicio nais d esses rios e o Brasil com o
um tod o . Paga r-se um preço a lto e m te rmos d e estragos a mbie ntais,
muda n ças n o p a n o ra ma ecológico, influê nc ia glo ba l sobre o clima, con-
firmação de desigua lda des sociais e econô micas e qu eda n a a utoestima
n acio n a l é a lgo q ue precisa ao m e nos ser discutido num p la no p o lítico
e cultural m a is a mplo . A escolha d e um p roje to hidre létrico n ão p od e
ficar c irc unscrita a decisões de e ngenhe iros e econ omistas, no pla n o
técnico-administra tivo, e de p olíticos executivos, no p lan o n acio na l, m as
compo rta r a p a rticipação d e to dos, inclu sive d os p ovos indígen as, que
p od e m contribuir p a ra a solução de muitas questões atua is .
Sem poder a nalisar cad a um dos p rojetos hid relétricos e dos povos a
sere m impactados, p od e mos m e n cio n a r alguns casos que estão na alça
d e mira das n ovas hidre létricas . No rio Tocantins, que já compo rta seis hi-
dre lé tricas e m func io na me nto, fora m impactad os os índios Avá- Canoeiro,
Xere nte, Krahô, Apinajé e provavelme nte os Gaviões d o Pa rá . N o rio
Ta p ajós e seu s aflue ntes J urue na e Te les Pires, e stão sen do afetad os
os Rikbatsa, Kayabi, Enawen ê -Nawê, Kayap ó-Metuktire, Munduruku e
Apiaká . No rio d as Mo rtes e no Arag ua ia, os Xava nte das te rras ind íge-
n as de São Ma rcos, San gradou ro e Pime ntel Barbosa, e os Karajá . Em
Ro raima h á planos de se con struir uma hid relétrica precisam e nte dentro
240 0 S IN D I OS E O B R AS 1 1.

da T. I. Raposa Serra do Sol, o nde os Makuxi, Wapixana e Ingarikó te n-


tam to m ar fô lego depois de ta ntas e te rríve is pressões que sofreram para
garantir seu direito exclusivo àquelas te rras. N o rio São Franc isco, com
a con strução da UHE Itapa rica, toda uma c idade foi inundada e toda a
ilha o nde viviam os Tuxá , que p e rderam seu senso étnico de vivê n cia e
tivera m de se adaptar a vive r e m uma cidade a rtific ia l. Novas hidre lé tri-
cas estão a caminho e afetarão os Truká e os Tumbalalá. E entre muitos
o utros estão mais de duas dezenas de povos a utô n omos, de quem se
conhece apenas os no mes o u apelidos que o utros p ovos indíge n as lhes
dão, e uma vaga ide ia de com o vivem e com o reagirão às muda n ças
abruptas em su as vidas.
Para concluir o tema de grandes projetos, vale ria a pena fazer aqui
uma rápida comparação geral dos impactos socioambientais ca usados
p o r uma us ina hidre létrica, uma rodovia o u estrada de fe rro , um avanço
da fro nte ira agrícola e o utros projetos econ ômicos. De todos e les parece
que a u sina, teoricamente, é a que tem caracte rísticas menos destrutivas
a m é dio e lo n go prazos. Sua construção e n volve de ime diato a des-
truição de uma determinada área para a instalação da obra, o desvio
te mporá rio do rio etc. Em seguida v iria a maior consequência que seria
a formação do lago artificial pela inundação das margens do rio e seus
aflue ntes próximos, e a diminuição na velocida de de vazão de água. A
devastação flo resta l e o lago a rtific ia l são con sequê n cias de impacto di-
re to e ime d iato , avassaladoras e irre ve rsíve is , que criam um novo nicho
ecológico, de sconh e cido tanto do ponto d e vista amb ie ntal quanto so-
cial e econômico. Os seus c ustos , a inda n ão de todo determinados, p o -
dem ser vistos n os casos já conhecidos . Em Tucuruí, h o uve ineficiê n c ia
e corrupção no de sm ata me nto prev isto, usando-se d e sfolhantes quími-
cos , proibidos e m o utras parte s do mundo , e ne m che ga ndo a se r con-
cluído. A sulforização das águas semiparadas é um risco que a inda pode
vir a a feta r as turbin as , oxida ndo -as . Em Balbina , dada a distância das
c idade s e a falta de e stradas , ne m s e c h egou a d esm ata r a á re a inunda -
da , ficando o fato de sulfo rização muito m a io r, e a p e rda total e inútil
de á rvo res .
A UHE Tucuruí, que fec h o u s uas comportas em 1985 e e levou s ua
barragem e m dois me tros em 2002 , inundou uma á re a de quase 300 mil
h ectare s , provocou a retirada de ribe irinhos, a d estruição d e vilarejos tra-
dicionais e o apodrecime nto de mais de dois milhões de me tros cúbicos
de madeira , pelos cálculos da época. A ba rragem diminuiu a variedade
e população de p e ixes a jusante e a m ontante, m as o lago compe nsou
pelo a ume nto da d e nsidade das e spéc ie s de p e ixes nobres - com o o tu-
A S I TU A Ç À O A T U A 1. O O S fNO I O S 24 1

c unaré - , e aque las a da ptadas a água s paradas, iga p ós e impue iras, e m


d etrime nto ao s p e ixes d e água velo z. Po r sua vez , as margens do la go
formad o fo ra m desma tadas ilegal e impune me nte, provocando a erosão
p rogressiva d esse solo, com consequê ncias també m d e acumula r sedi-
m e ntos no lago, causando o aume nto d a su a á re a e diminuindo a pres-
são d a água sobre as turbinas . Alé m d os índios Pa rakanã, que p e rde ram
su as te rras e foram tra nsfe ridos, muitos h abitantes tra dicio nais do rio
Tocantins sofre ram p e rdas irre p a ráveis d as suas te rras e dos seus m od os
d e vida . Os programa s de re alocame nto n ão compe nsa ram essas p e rdas .
Esses foram o s princ ipa is impactos a c urto prazo . A m édio e lo n go pra-
zos, po ré m , aconteceu uma estabilização socioambie ntal d o complexo
hidre lé trico, sem poste rio res m o dificações o u danos . É inte ressante o b-
servar que a presen ça de um p ovo indígena a mo ntante d a us ina, com o
d o mínio e a pre se rvação d e uma larga e xte nsão de te rras , s ignificou um
expressivo ga nho, p a ra me lho r segura n ça d a pró pria usina hidrelé trica.
As mudanças que ocorre ram na socie da de e c ultura pa raka nã se d e ra m
n o b o jo d e um prog rama d e compe nsações e ressarcime ntos finan ciad o
p ela Eletrono rte, o Prog rama Para k an ã, que, aos mo ldes d o já m e n cio -
n ado Program a Waimiri-Atroa ri , favo receu um expressivo crescime nto
d e su a po pulação, de 247, em 1987, pa ra 960 , e m a gosto d e 2012, uma
econ o mia inte rna estável, um nível d e e ducação escola r aceitável e uma
progressiva ampliação d e sua visão d e mundo . As UHES Balbina e Tu-
c uruí, po r seus p rogra mas d e compe nsação de lo n go pra zo (25 a nos),
re novad os recente me nte por mais 15 anos, d e mo nstram q ue n e m tudo
está p e rdido no indigenism o b ras ile iro, m esmo qua ndo um e mpreendi-
m e nto hidre létrico começa tão mal, e que a a uto no mia cultu ral e p o lítica
de p ovos ind íge n as impactados pode ser possível de ser a lmejada n os
m oldes d e um ind ige nismo responsável, d e c unho rondo nia no .
Po r sua vez , os exemplos d e rodovias o u fe rrov ias d e m o nstram im-
p actos m ais in cisivos e p rog ress ivos p o r estare m associad os à colo niza -
ção de te rras n ovas . Os impactos c h egam d e imediato com a d e rruba da
de árvores e com trato res e caminhões rasgando a te rra . Em seguida,
s urgiram os m ad eire iros a faze r ra ma is p ara d e ntro d a m ata, p ossei-
ros, fa ze ndeiros com capital e os p rogram as d e assentame nto, tod os na
inte n ção d e desenvolver d ete rminad a região . A Tra nsama zô nica é um
exem p lo clássico n a lite ratura a ntrop ológica d e uma rod ovia qu e causou
d anos d ra máticos aos p ovos indígen as qu e fo ram contata dos e m função
d a p assagem p o r seus te rritó rios . Os Para ka n ã, d o Tocantins e d o Xi n gu ,
os Araweté, Asurini e Ara ra são índ ios que fo ram contatados, sofre ram
graves perdas populacio nais, perderam te rras, tom ad as po r posseiros o u
24 2 0 S f N D I OS E O 8 R A S 1 1.

p o r p roje tos de assenta m e nto do Incra, e p od e riam te r p e recido, com o


e m é p ocas a nte rio res d e e ntra da d e mig rantes e m te rras indígena s , não
fosse a inte rvenção d a Funa i, com o ó rgão indigenista, m ovida p e la o pi-
nião pública e p o r dever legal. Passados os a n os de turb ulê n cia, h o je e m
dia , esses povos indíge nas estão recupe rados, e m crescime nto, com te r-
ras garantidas, p ro ntos pa ra sofre r novos d e sa fi os, como, ironicame nte,
p a rece ser a impla ntação da Usina Be lo Monte . A BR-1 63, Cuiabá -Santa-
ré m , d estroçou a vida tradicio n al d os índios Pa na rá, re duzindo -os a um
te rço d e s ua p opulação à ép oca d o contato, e m 1974, e atraiu ga rim-
p e iros, faze nde iros e m ad e ire iros, tra nsforma ndo a re gião, que h o je te m
um d os m aio res índices de d esmatam e nto d os últimos a n os . A BR-364,
Cuiabá-Po1to Velho, abriu Ro ndô nia p ara a e ntrada d e milhares de imi-
grante s que ra sgaram flo re stas e cerra do s , invadiram te rras indígen as .
Some nte a muito custo a Funai conseguiu estabiliza r as s ituações d os
p ovos indígenas Cintas-La rgas, Suruí, Zo ró, Uru-e u-wa u-wau , Nambi-
qua ra, d e ixando alg uns de les e m situação de desesp ero p e rma ne nte .
Uma fre nte agrícola te m se po rtado no Brasil com o um e x é rcito d e
saúvas que d evora tudo que está n o seu caminho . O s projetos de as-
sentame nto agrícola e incentivos às e mpresas agro pasto ris criam n o seu
b o jo um complexo socioeconô mico que ainda está lo nge d e ser cons i-
d e rado estável o u p rodutivo, p a recendo ma is um d o s tantos ciclos eco-
n ô micos p e los quais já p asso u o p aís . Em to dos os casos , os índios são
se mpre vistos como p a rce iros inde sejáve is e dis p e nsáve is . Su as te rras
são a me açadas, tom adas, u surpadas - e , q u a n do n ão, a rre n dadas . Assim
fo i no velho re lacio na me nto e ntre a e lite ru ra l brasile ira e os índios , e
continu aria a ser, não fosse m as exigên cias d os te mpos recentes, com
uma consciê n cia c re sce nte sobre os problem as ambie ntais, a pre ocupa -
ção p elo d estino dos p ovos ind ígen as e a autoconsciê n cia d os índ ios e m
re lação ao que está ao seu re do r. Antes faze nde iros tradicio n a is; h o je,
o agro n egócio se estabeleceu na Amazô nia a pa rtir da d écada d e 1990
qua ndo novas te c n ologias agrícola e p asto ril , concebidas e trabalhadas
p ela Embrapa , e mpresas se me nte iras e o utras agên c ias, compe n saram as
grandes dific ulda des ecológicas d e s uste ntabilidad e tanto e m a mbie ntes
d e flo restas qua nto de cerrados . Atua lme nte , os fa ze nde iros re ina m n a
Amazônia , po1tadore s d e te c n ologias modernas, com uma re d e decida -
d es con ectadas p o r e stradas, com cap acidade de p rodu ção e m a lta e sca-
la e , e mbora com escoame n to sofrível, ganhad o res de a ltíssimos lucros .
Essa nova classe rural se a rvora dire itos políticos pró prios , e m n o m e d e
uma racio na lidade eco n ômica e de su a p a rtic ipação n o PIB nacio n al. São
os faze nde iros e os s e u s re pre se nta nte s p o líticos n o Congre sso N acio nal
A S I TU A Ç À O A T U A 1. O OS f N O I OS 243

que ameaçam reverte r o s dire ito s indíge nas, e smaecer a simpa tia nacio -
nal p e lo d e stino d os p ovos indígenas e d esestabilizar as instituições d e
proteção e assistê nc ia o riundas d a tradição d o indigenism o rondo nia n o .
Em suma, o p o de r dos faze nde iros con stitui o m aio r d esafio atual
para a prese rvação das condições socioculturais e p o líticas da vida in-
díge na , sua continuidade étnica e ascensão n o p a n o rama n acio na l. Os
d em a is e mpreendime ntos econ ômicos p rovocam impactos sociais e am-
bie ntais d e gra nde e nvergadura e consequê nc ias p e rnic iosas ao m odo
tradic io na l d os povos indíge nas, p o ré m n ão o s ufic ie nte pa ra impe dir
s ua recupe ração . O caso d as hidre létricas , s upo ndo qu e os se us plane -
ja me ntos cons ide ram a presen ça d os índios em seu s te rritó rios indevas-
sad os com o ga rantia do b om desempe nho d o e mpreendime nto (recu-
sando os pla n os e as mo tivações que implicam a esp eculação d a te rra
ao re d o r d a b a rrage m e a aplicação de p roje tos de nature za p o lue nte
e d evastadora d as condições socia is preexiste ntes), p oderia tra ze r uma
variação n ova no quad ro este reotipad o d e que os p ovos ind ígen as cons -
titue m um e ntrave ao progresso d a Ama zô nia . A questão é pressupo r
que um dia o planeja m e nto estratégico bras ile iro con ceb a a p ositividade
d o fator indígena!

OS MILITARES

Ao con sidera rmos Ma rech al Cân d ido Ron don o instituidor da p o lítica
indigenista re publicana, a pa rtir d e 1910, p o de m os cons idera r os milita -
res um dos e le me ntos ma is impo rta ntes da questão indígena brasile ira .
O trabalho d e Ma recha l Rondon , em cooperação com muitos militares
da é p oca - especia lme nte os s impatizantes d a visão p ositiv ista do mun-
d o - , a lçou os índios a uma p osição d e re levo n acio na l e os inseriu n o
â mbito da resp o n sabilida de d o Estado p a ra fins de s ua p roteção, b e m-
esta r e integração ao Brasil, visão p o lítica esta que continua a prevale -
cer, ao me nos em espírito, n os d itam es políticos atua is . T ais militares
fo rma m uma das corporações m a is con siste ntes, junto com o co rpo di-
plo m ático, e n carregados de preservar as condições gerais da soberania
da n ação . Pa ra e les, pottanto , a questão indígen a é p a tte d e s ua esfe ra
de influê nc ia e sobre ela p e nsam e re p e nsam suas resp o nsabilidad es e
atitudes, com fre quê nc ia e mitindo p ronuncia m e ntos e e labora ndo tex-
tos do utriná rios . Os milita res foca liza m a q uestão ind ígen a sob do is
asp ectos estra té gicos fundam e ntais . O prime iro d iz respe ito à pre sen ça
de muitas te rras indígen as existentes nas fro nteiras com diversos p a íses
244 0 S IN D I OS E O B R AS 1 1.

s ul-ame ricanos - cerca de 30% das fro nte iras te rrestres são fo rmad as
p o r te r ras indígenas . O segundo se re lacio na com a hipó tese d e que,
m otivad os p o r con vênios e docume ntos inte rnacio nais, os ín d ios, o u
alg uns povos ind íge n as (sobretudo aque les que tê m p atrícios em te r-
ritó rios d e o utros p a íses), p ossam vir a se de cla rare m nações indep e n-
d e ntes, sob os a uspíc ios d a ONU, o u de ONGS inte rnacio n a is acob e rtad as
p o r p aíses inte ressados na Ama zô nia, desafia ndo, desse m odo, a inte -
gridad e e sobe ra nia da n ação . Esses são dois p o ntos que m e recem a
cons ide ração d o Estad o brasile iro, p o ré m estão a a nos-luz de se to rna r
factíveis . Em função do prime iro p o nto, os militares vocaliza ram d e ta l
m od o suas preocupações que, na o p o ttunidade do julgame nto sobre a
h om ologação da T. I. Ra p osa Serra do Sol, localiza da e m Ro raima, n a
fro nte ira com a Vene zue la e a Guia n a (ing lesa), o Supre m o Tribuna l
Fe de ral exarou uma súmula cujos artigos ... A e ntrada d e fo rças milita -
res e m te rras indíge nas é p e rmitida, sem ao me nos comunicar o u p e dir
p e rmissão aos índios e ao ó rgão indigenista , numa clara a firmação d e
s uas preocupações com a a uto no mia d e p ovos indígenas e m fro nte ira .
O segundo p o nto a dvé m d e uma v isão hipe rbó lica d a fo rma militar d o
n acio n alism o, algo que n ão preocupa ria Ro ndo n em relação aos índios .
Ao contrário, seguindo os preceitos dos positivistas do fim do século
XIX, Ro ndo n e ra favorável a que as te rras indígenas fos se m conside radas

fo rmas de estados , gove rnad as p e los índios, mas como p a rte d a nação
b rasile ira . Os p ositiv istas q u e a pre se ntaram suge stões p a ra a Constitui-
ção de 1891 c h am ara m e ssa fo rma d e "estados a utócto n es a me rica n os",
e m contraste com os estados já reconhec idos, c h a m ados "esta dos oci-
d e nta is" . Po r essa e p o r o utras, vê-se claram e nte que, e ntre Ro ndo n e os
atua is milita re s, es p e cialme nte os q u e com a n daram o Brasil por 20 a n os,
ex iste um gra nd e fosso id eo lógico , n ão d e todo intra n sponível, m as que
afe ta a v isão e as a titudes da corporação e m re lação à p e rma nê nc ia e
asce n são dos povos indígen as n a nação .
Os e fe itos m ais recente s das atitude s militare s ad vém do p e ríodo e m
que e le s , os qua is co ntrola ram o p a ís e ntre 1964 e 1985, també m co n-
tro laram a p o lítica ind ige nista e os se us ó rgãos d e administração , o SPI
e dep o is a Funa i. Só a p a rtir de 1984 , retira ra m-se da Funa i, p o r ca usa
p a rc ia lme nte do m ov ime nto ind íge na , da pre ssão d a o pinião p ública e
do in íc io e spe ran çoso da tra nsição política . Entretanto , por alguns a n os,
e ncaste laram-se nos seto res de segurança e info rmação do Ministé rio d o
Inte rio r e no Con selho d e Segu ran ça Nacio na l, de o nde contin ua ram a
ex e rce r o coma ndo e stratég ico da Funa i, até o governo Itam ar Fran co ,
e m 1992 . Daí p o r d ia nte, os milita re s re fluíram e se fize ra m pre se ntes e m
A SI TU A Ç À O AT U A 1. O OS f NO I OS 245

re lação aos índios tão som e nte p o r m e io d e sua atuação n a Amazô nia, es-
p ecialme nte no s p o sto s d e fro nte ira , e n o Conselho de De fesa N acio na l.
De tod o m od o, su a p assagem provocou algumas farpas na questão
indígena brasile ira e coinc idiu com uma série de fato res n e gativos e p o -
s itivos - a reve rsão d a que da d e mo grá fi ca do s p ovos indíge nas e o surgi-
m e nto d a con sciê nc ia indíge n a no pla no nacio nal foram e xe mplo s d e les .
Po de -se dize r que há quatro fases do controle milita r sobre a questão
indígena . A prime ira, a inda com o SPJ, de 1964 a n ovembro de 1967,
foi a fase de e xpurgo do s qua dros mais p o líticos e antropo lógicos d o
ó rgão, como p a rte d a p o lítica militar. Nessa é p oca , foram d e mitidos
Noel Nutels, o último d ire to r civil d o SPJ, Carlos Mo re ira Ne to, J osé da
Ga ma Malche r e vá rios indigenistas que tinham alg uma con exão com o
govern o Go ulart. O u que e ram comunista s , com o Fran cisco Me ire lles -
que, e ntre tanto, foi chamado de volta m a is ta rde . Muitos a ntrop ó logos
e linguistas fo ra m conside rados p essoas indesejáveis p ara faze r p es-
quisas o u p artic ipa r d o Conselho Nacio n al de Proteção aos Índios . O
SPI e ntrou e m rá pida decadê n cia, c ulmina ndo com o e n volvime nto d e

p essoal d o se u quadro n o c h amado Massacre d o Para le lo 11, so bre os


índios Cintas-La rgas, e e m dive rsos atos d e corrupção, venda de ma de ira
e a rre nda me nto e venda de te rras . Nos meses finais que antecedera m
a s ua e xtinção, o a rquivo d o SPI p egou fogo, d estruindo d ocume ntos
administrativos e grande p a rte dos filmes e tnográficos e re la tó rios an-
tro p ológicos acumulados e m m a is d e 50 anos d e ex istê nc ia . Em função
d isso, torno u-se m ais d ifícil fa ze r uma boa re construção da histó ria d es -
se pe río do , esp ecia lme nte e m re lação a d ecisões sob re reconhecime nto
d e te rras indígenas e conflitos inte ré tnicos . Anos m a is tarde, e ntre 1975
e 1979 , o a ntrop ó logo e e tno-histo riad o r Carlos Mo re ira foi comissio na -
do p ela Funai p a ra reco lhe r todo o m ate ria l do s PJ que se e ncontrava
n as a ntigas insp e to rias regio n a is , n as cond ições m a is precá rias : muitas
p astas e rolos d e filmagem já rotos, o utros jogad os fora como p ap e l
velh o . Me smo assim, o trabalho resulto u na c riação d o Centro d e Docu-
m e ntação Indige nista n o Muse u d o Índ io , que p e rmitiu p or muitos a n os
a recon strução d e atos que d e m o n straram a legitimidad e d e de ma ndas
indígenas po r te r ras que lhes hav ia m sido us urpa das .
A se gunda fa se teve início com a criação d a Funa i, e m 5 de d e ze m-
bro d e 1967 . Embora se u prime iro p res ide nte te n h a sido um c iv il, que
p e rma neceu p o r do is a n os, a te ndê nc ia fo i o controle ime dia to dos
milita res , esp ecificame nte d e gen era is . Atravesso u os governos Médic i e
Geise l. Na s ua ocasião m a is p rodutiva , co n se guiu d em a rc ar diversas te r-
ras ind íge n as, o bteve d o Cong re sso o Estatuto do Índ io, pela Le i n. 6 .001
246 0 S IN D I OS E O B R AS 1 1.

de 19 de dezembro de 1973, e promoveu a pro fissio n alização de n ovos


agentes indigenistas através de cursos ministrados por professores e an-
tropólogos da Universidade de Brasília , muito embora a inda sob a som-
bra militar. O Estatuto do Índio previa a demarcação de todas as á reas
indígenas num prazo de cinco a nos. No fina l do governo Geisel, assu-
mindo uma o rie ntação de integra r os índios à população brasileira, sem
respeita r a integridade de su as terras, criou-se um projeto para "eman-
c ipa r" os índios da tutela do Estado, cujo principal defensor era o então
ministro do Inte rio r, Ma uríc io Rangel Reis. Sua promessa era de que , até
o a no 2000, todos os índios estariam eman cipados e integrados ao Brasil.
Antropólogos, jo rnalistas, advogados, cie ntistas e muita gente se opu-
seram a essa pretensão, por volta de 1978, e o projeto foi a rquivado. 32
A terceira fase coinc ide com os cinco primeiros a nos do governo
Figueiredo, de 1979 a 1984, a época dos coron é is. Com pouco tempo de
duração para cada um dos q u atro coronéis e dois civis que presidiram
a Funai, essa foi uma época de grandes conflitos entre índios e fazen-
deiros, e ntre os novos indigenistas e as a uto ridades militares da Funai.
Por conta da mobilização nacio n a l contra o projeto de eman cipação dos
índios, as vá rias frentes de simpatia aos povos indígen as - a ntropólogos
e estudantes de a ntropologia, jornalistas, advogados, missionários e in-
digenistas da Funai , a opinião pública de classe média e seus contatos
inte rnacio n a is - se aglutinara m e m prol dos problemas indígenas mais
pre me ntes para e nfre ntar as fo rças re trógradas que dirigiam a Funai e
as fo rças políticas que comandavam a nação . Nesse te mpo, e m 1981,
jovens indígen as que moravam n as c idades - como Brasília , Manaus,
Campo Gra nde, Cuiabá e outras - , te ndo sido escolarizados no nível
m édio ou superio r, se lançara m para cria r a prime ira associação indí-
ge na d e cunho nac io n al e com inte nções pan-indíge nas, a União das
Nações Indígen as (uN1). A Funai foi perdendo sua fo rça moral perante os
índios e os indigenistas, perante antropó logos e jornalistas , res ulta ndo
numa grave c rise de desmoralização administrativa, com desvios d e re -
c ursos , peculato e locupletação p essoal d e muitos dirige ntes . N esse te m-
po, prosseguiram os estudos para reconhecimento de terras, mas pou-
cas terras foram efeti vamente demarcadas. Os c ursos de indigenismo (o
último ocorrido e m 1985) e a contratação d e pessoal qualificado fora m
diminuindo. O pior d e tudo é qu e a Funai p e rde u sua autonomia no
processo de reconhecimento das terras indígenas e de demarcação ad-
ministrativa . O Decreto-Le i n. 88.118, de 22 de fevereiro de 1983, c riou
um grupo interministerial - o ch amado "Grupão" - , constituído p e los
ministé rios da Reforma Agrária , Inte rior, Agricultura e pelo Conselho d e
A S I TU A Ç À O A T U A 1. O OS f N O I OS 247

Segurança Nacio n al, q ue passou a julgar a valida de o u n ão de de ma rca r


te r ras indígen as. Daí em d ia nte, a Funa i p asso u a ser um b io mbo para
a ação camuflada dos milita res, p reven do já as m uda n ças que viria m .
A qua rta fase com eçou e m junho de 1984, a ntes até da resolução p o -
lítica sobre com o se da ria a p assagem dos milita res p ara o regime civil.
Nesse m o m e nto, os índios Kayap ó Metuktire, e ntão conhecidos com o
Txucarram ãe, conseguiram evita r o desm e mbram e nto do Parque Ind íge-
n a do Xingu pela tática gue rreira de pre n der e m a nte r confinados vá rios
fun cio n á rios d a Funa i, res ulta ndo na aceitação, da pa rte do ministro do
Inte rio r, Mário And reazza - um dos p ré-cand idatos à p residê n cia da Re-
p ública - , dos d ire itos daqueles índ ios. N a firmação do acordo, o ch efe
Raoni Metuktire matre iramente p uxou as o relh as de Andreazza n a fre nte
das câmaras de te levisão. Pa recia q ue os índios com eçavam a to ma r as
ré d eas do seu destin o. Dep o is , e m jane iro de 1985 , os a ntropólogos
e ind igenistas (muitos de mitidos desde 1980) , q u e se re integraram à
Funa i, após as m u dan ças cau sadas p or Rao ni e pela ação dos Xavante,
a rmaram uma fo rte resistê nc ia ao decre to do Presidente Figue ire do que
regula me ntava a mineração e m te rras indígen as. Em con sequê n cia , o
decre to foi revogado , e os ind igenistas to maram conta da Funa i, como
se estivesse m partic ipa ndo de um acontecime nto à la Nove mbro de
1917! Assim acabo u o controle dire to dos militares sob re a Funa i.
Esses dois gestos de deste m o r e convicção n ão lograram e fe ito per-
mane nte na Nova Re pública . Ao contrá rio, parece te r hav ido re trocesso
n a atua ção do ó rgão em te m po s va riado s . Nos p rime iros do is ano s , a
Fu na i teve seis presidentes , u m dos quais não ch egou seque r a to m a r
p osse . Ap oen a Meire lles e ra u m co n sagrado ind ige nista que tinha fe ito
contato com vários povos da Amazônia , como os Cintas-La rgas, Suru í e
Uru-e u-wa u-wau , e o s Avá- Can oe iro, p e rto da Ilha do Bana na l. Te ntan-
do tra ze r a lguma racio na lidade administrativa ao ó rgão, Apoena contra -
riou muitos inte resses p o líticos regio n ais e acabou pedindo demissão .
Efe tivam e nte, q ue m funcio n o u com o p re side nte da Funa i por dois a n os
e me io foi Rome ro J ucá , um jovem p e rna mb uca no q ue nunca hav ia
visto ín d io a ntes , recom e ndado por p o líticos regio n ais . Ele veio para
p ô r o rdem na cas a , d ivid ir o m ov ime nto ind ige nista , desvia r a luta dos
ín d ios por patt ic ipação política para inte re sse s pecu n iá rios m e n o res ,
para lisar os p roje tos de d em a rca ção de te rras in ic iadas e m 1984/ 1985,
facilita r a e ntrada de ga rimpeiros em te rras ind ígen as - especia lmente
as dos Ya n o m ami, e m Roraima e Am a zo nas , e a dos Cintas-La rgas, e
d e made ire iros o n de que r que e stivessem. So b a coord e nação de u m
ingê nuo m inistro do Inte rior, J ucá fe z mu dan ças inte rnas, de mitiu an-
248 0 S IN D I OS E O B R AS 1 1.

trop ó logos e indigenistas, a fasto u os ma is po litiza dos da administração,


e, ao fin a l, só n ão ficou ma is evide nte que me lho r se ria acab a r a Funa i
p o rque não h avia como substituí-la p o r algo mais útil aos inte resses
d ominantes . Por o utro lad o, m ovido po r ambições p olítica s m aio res,
que eventualme nte o levaria m a se r n o m e ado governad o r d o novo es-
tado d e Ro raima, e m 1988, Ju cá conseguiu a contratação de ma is d e mil
n ovos func io ná rios, numa corrida contra o te mpo diante d a Assemble ia
Con stituinte e das n ovas regras que e ram antecipa das sobre contratação .
Parecia que estava apa re lha ndo, a se rv iço d e p o líticos, o ó rgão indi-
ge nista d e pessoas indife re ntes à causa ind íge n a, e a té a nti-indígen as .
Entretanto, as con cessões que teve de faz e r se subme te ram às pressões
inte rnas . Entre esses novos contra tados, estava m duas cente n as de ín-
dios, muito s já formad o s n o e nsino m é dio, a lguns uni ve rs itário s , que
iria m conso lida r a p o lítica de a brir o ó rgão à p a rtic ipação indíge na .
Ap esar de alg uns desses contra tados m ostra rem suas más inte n ções, a
gra nde m aio ria se inseriu n o espírito indigenista prevale nte, de mo ns -
trando que a cau sa indígen a é capa z d e seduzir e e n volve r qua lq u e r
bras ile iro que te nha o sentime nto d e nacio nalidade . Pa ssados 25 a n os,
h o je são esses func io n ários que formam a geração vete ra na da Funa i e
m ostram aos n ovos indigenistas as cicatrizes de su as lutas e m p rol d os
índios . E são os índios fun cio n á rio s d e h o je qu e re presentam p a ra se us
p ovos o p o te nc ia l de pa rtic ipação e administração d o ó rgão que um dia
se ria d irigido p o r e le s .
À guisa de uma avalia ção final, e m relação aos índ ios, as Forças Ar-
m adas Bras ile iras, sobretudo o Exé rcito e a FAB , prestaram incompa ráveis
serv iços e ajuda . O fato de o SPI te r sido c ria do e to m ado à fre nte p e lo
e ntão Coronel Ro ndo n foi o fato r funda me ntal p a ra o estabele c ime nto d e
uma p olítica e ação indige nista que puse ra m e m re levo inte rnac io na l a
n ação b rasile ira. O índio p asso u a ser t ratad o com o uma qu estão d a n os-
sa nacio n a lidad e , sendo a su a sobrevivên cia v ista como essenc ia l p ara o
b em-estar ge ral do povo . Muitos milita re s d edicados pe rma n eceram n o
SPI qu ando , e m 1912 , o ministro d a Gu e rra os fe z o ptar p o r volta r aos

qua rté is o u p e rma n ecer no serv iço indige nista . Muitos de les tinha m uma
visão gene rosa e integrati va d o p ovo e , no s seus e n sina me ntos, expuse-
ra m a c ausa indíge na não po r se ntime ntos p e ssoais e bisonhos , mas com o
p ossibilidade re al da fo rma ção pluralista da nac io n alidade b rasile ira . E
ach ava m que o Exé rc ito fosse uma instituição n acio n a l e de m ocrá tica,
ta nto n a s ua composição socia l qua nto nos seus p rop ósitos inte rio res .33
Nã o é d ifíc il que e ssa visão venha a ga nha r n ovos fo ros n acio n a is .
Nesse se ntido , não se p od e de scartar o pap e l que o Exé rc ito a inda te m
A S I TU A Ç À O A T U A 1. O OS f N O I OS 249

a completar. A s ua ido ne idade n os traba lhos de de ma rcação e d e fesa


d os te rritó rios indígenas continua irretocável e a í h á um esprit de corps
inaba lável. Afina l, as file iras d o Exército brasile iro estão ab e rtas para
a incorporação d e índ ios, como soldados e o ficiais, conhecedores d a
flo resta, con fo rme aco ntece com tanta fre quê nc ia e m cidades com o São
Ga brie l d a Cachoeira , Boa Vista, Ta b a tinga, Ma na us e o utras . Em a lg uns
setores e m que a imagem d e Ro ndo n perma nece indelével h á uma con-
tínua re flexão sobre a n ecessidade d e readapta r os e nsinam e ntos da que -
le he ró i aos te mpos a tua is. Como recomeça r o d iá logo com os índ ios
sem usar ma is do p ate rna lism o? De qu e fo rma con cilia r as n ecessidades
ind ígenas? Com o aju dar na solução definitiva d a dem arcação das te rras in-
d ígen as, ga rantindo-lhes a segurança e inv io labilidade? Como con cilia r
fro nte ira com te rras indígen as? Com o aceita r a a uto n o mia dos índ ios so-
bre s uas te r ras? Com o e nte nde r que o ser ind ígen a p od e ser e le mesm o
e tam bém ser brasile iro? Essas q uestões tê m ra zão de ser e se coaduna m
com a busca de um p ap el m a is p rofundo e d urado uro para as Forças
Armadas e m relação aos índ ios , os quais estão inseridos no contexto
m ais a mplo d a de m ocratização b ras ile ira.

A IGREJA

A Igreja é uma institu1çao uni versal, com va ria ções nacio n ais ta nto
n o se u con te údo q u a nto na su a fo rma . A sua composição o rgâ nica é
bastante h ete rogê ne a e os se us e stilos se ada pta m ao te m po e ao espaço
e m q ue atua . A s ua gên ese é dogm ática e inflexível, o q ue lhe dá uma
base sólida de constituição, com uma histó ria de do is mil a nos q uase
in inte rru p tos , co m pou cas d efecções , e com u m prop ósito h e ge m ô nico ,
co m va riações mínimas e aceitáve is , d ige ríve is p elo se u o rde na me nto
centra lizado e s ua disciplina . Unindo solide z e fl exib ilidade , to rna -se
p ossíve l e acatável por todos q ue a compõem.
Em relação aos ín d ios , a rea lidade atual n ão d isc re p a substa nc ial-
m e nte da sua história a nte rio r , ta nto no se u relacio n am e nto co m as
o utras fo rças socia is e nvo lve ntes, q ua nto n o sentido e nos p ropós itos
de s ua ação . Pode-se até dize r q ue a atua lidad e é re lati va m e nte com-
p a rável co m e sse p assado . Ante s , hav ia je su ítas, em alguns mo me ntos,
radicais d e fe nsore s dos ín d ios ; carme litas co ntem porizadore s de inte -
resses contrá rios; ben e ditinos e fra n ciscan os que b uscavam seguir uma
linha de n ão comp ro m etime nto; e b ispos e p a dres , q ue va ria va m desd e
o ingló rio b ispo Sard inha - d e fe nso r d o s inte resse s agrá rios d o s co lonos
2)0 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.

portugueses - até os padres que participaram da Cabanagem junto com


os índios revoltados. Hoje, te mos os padres e missio ná rios le igos com-
prometidos com a teologia da libe rtação, os ideais da encarnação, os
defensores irredutíveis da causa indíge na, até as missões estabe lecidas
n os m o ldes de cem a n os atrás (o que que r dize r, praticamente, o m esm o
que quatro séculos), o u as teologias conse rvadoras que veem os povos
indígenas com o pagãos, cabendo à Igreja com o missão convertê -los ao
c ristianis mo. Nesta va riação inte rna reside a força social e institucio nal
da Igreja , e n ão h á razão de s ubestimar a sua cap acidade de adaptação
aos te mpos mode rnos.
No início do século xx, a Ig reja sofre u a prime ira forte reje ição de su a
secula r missão de catequiza r os índios. Os positivistas, os maçons e até
m esm o os protestantes contestaram-na nas c idades e p ovoados mais re -
cônditos do país, considerando seus mé to dos atrasados e re trógrados. O
sPr a re je ito u e a h ostilizo u durante boa parte do tempo em que su a ação
ideológica e ra con sentãnea com a ação indige nista. Os militares positi-
vistas achavam que a conversão dos índios ao cristia nism o era forçada
e hipócrita ( se é que fosse n ecessária para to rná -los c idadãos brasile i-
ros). O p aradigma n ovecentista de "catequese e c iv ilização" havia sido
quebrado de vez. Até a década de 1950, permanecia certa tensão n as
discussões e ntre o sr, e a Igre ja, e foi o a ntropó logo Darcy Ribe iro , e ntão
diretor do Museu do Índio, que , e m 1954, to m o u a inic iativa de dialo-
gar com Dom Hé lde r Cama ra, e ntão b ispo a ux ilia r do Rio de Jane iro,
conclama ndo a Igreja m oderna a trabalhar em prol dos índios, usando
m étodos que os levassem à sobrevivênc ia fís ica e c ultural. 34
A Igreja, até e ntão, n ão estava muito atua nte em re lação aos índios -
pelo m e n os não diretame nte . A O rde m Salesiana havia se instalado e n-
tre os Bororo , no com eço do século, e fize ra um trabalho de catequ ese
que envolvia o apre ndizado da líng ua e c ultura desses índios. O sr, a
acusava de h aver se apropriado de te rras que por direito p e rte nc iam
aos próprios Bororo. Ela se instalara ta mbém n o Alto Rio N egro, c ria ndo
um complexo institucio n al de inte rna tos para m oças e rapazes Tuka n o
e de o utras e tnias da região que muitos cons ideram próximo a um feu-
dalismo re ligioso . Também lá eram acu sados de registrare m terras indí-
ge nas com o suas . Os dominican os h aviam te ntado cria r uma missão n os
sertões do Araguaia e Tocantins, num exp e rime nto socia l que resultou
n a funda ção da atua l c idade de Con ceição do Araguaia e n o exte rrní-
nio completo dos Kayapó do Pau d 'Arco (talvez a mais desastrada das
missões já te n tadas n o Brasil). 35 Havia a inda os fra n ciscan os, que m an-
tinha m uma pe que na missão e ntre os índ ios Munduruku , e os jesuítas,
A SITUA Ç À O A TU A 1. O OS f NO I OS 2)1

que, de volta ao Brasil , haviam aberto um colégio em Diamantino, Mato


Grosso, o nde abrigavam jovens Nambiquara e Pa reci, e atraíam os re -
cém-contatados Ira ntxe.
De o utra patte, havia também as missões protestantes, cerca de 20 de-
las, sobretudo inglesas e no rte -a m e ricanas , com o a Eva nge lized Fie lds,
a World Evange lical Church e a New Tribes Missions. Ao contrário das
missões cató licas, estas n ão recebiam subsídios do governo federal, e
frequ e nte me nte sofriam vexam es constrangedores por parte dos agentes
indige nistas, sendo-lhes ocasio nalme nte imputada a p echa de espiões do
governo no rte -ame ricano, sobretudo durante a Segunda Gue rra Mundial.
O SPI to le rava apenas as missões n ão estabelecidas propriamente e n-
tre os índios, mas que existiam em d ecorrê n cia da exte nsão do trabalho
p astoral das dioceses e pre la zias e m cujos distritos havia índios aldea-
dos. As desobrigas de p ad res e fra des são conhec idas nessas regiões e
costumavam incluir os índios. Batizavam, casavam , e n sinavam-lhes a
re za r e, muitas vezes, serv iam com o médicos e e nfe rme iros. Para os ín-
dios que já p a rticipava m e fe tiva m e nte do s iste ma sociocultura l regio na l,
essas vis itas constituía m um conso lo e uma afirmação d e s ua posição n o
mundo. Nessas regiões, ser cristão e ra o mesmo que ser humano, e para
isso era necessário a presença do padre, o u do frade, n a maio ria dos ca-
sos. Daí, a reação anticlerical dos agentes indige nistas só fazia confundir
os índios, dividindo-os, literalme nte, e ntre a c ruz e a calde irinha.
A aproximação do SPI com a Igreja s ignificou o reconhecime nto da
amplitude do problem a indíge na diante da capacidade re lativa do ó rgão
o fic ia l para enfrentá-lo sozinho . Nesse sentido, a to lerâ nc ia foi este n-
dida às missões protestantes, sobretudo àquelas que , como o Summer
Institute of Linguistics , pudessem ajuda r na formação do conhecime nto
das línguas e culturas indígen as, para me lho r o rie nta r a ação do ó rgão .
Seria difícil a n a lisar essa aproximação como uma a lia nça política o u
m esm o como uma confluê n cia de ideo logias a resp e ito dos índios e de
su a posição no conjunto político nacio n al o u n a civ ilização ocide ntal
c ristã . Ce1tam e nte, nada parecido com o binômio "catequese e civiliza -
ção", que regera a política indigen ista e demonstrava um consenso geral
sobre o que se devia fazer sobre o índio, e de que modo. Pe lo contrá rio,
o fosso ideológico indigenista existente e ntre o sP1 e a Igreja , d esde o
início do século, h avia se a largado p e la influê n cia dos e nsiname ntos da
a ntropologia , p o r um lado, e pela imobilidade con ceitua i da Ig re ja, por
outro - p e lo me n os até que as primeiras lufadas de liberalização su rg is -
sem a partir do Concílio Vaticano II (1962-1965). A rivalidade e ntre Igreja
e Estado , n o que diz resp e ito aos índios, re flete -se até ind iretame nte n o
2)2 0 S f N D I OS E O 8 R AS 1 1.

exemplo e m que, em 1954, um deputado federal apresenta um projeto


de le i propondo a extinção do SPI e passando as s uas funções precípuas
para a Igreja.
Coincide essa n ova libe ralização da Igreja com a implantação n o
Brasil de um regime político de caráter ditatorial e o surgimento de um
processo de re flexão e c rítica sobre o resultado global da atuação o fic ia l
do Estado brasileiro em relação aos índios. Esse processo tem uma di-
mensão universal, tendo em vista que se dirige a todas as situações de
colo nialismo inte rno, em que os índios são cons iderados um exemplo
mais duradouro. A Igreja e s uas o rde ns missionárias também participam
desse processo e se posicionam para construir uma n ova visão do seu
papel e m re lação aos índios. A partir daí, su a n ova fase de defensora da
causa indíge na teve iníc io.
O n ovo papel da Igreja com eçou a ser construído tanto inte lectua l-
mente quanto na prática. Os jesuítas em Diamantino apresentam os pri-
meiros resultados da sua missão escrevendo sobre os povos indíge n as
com quem vinham trabalhando e iniciando um tempo de re fl exão crítica
sobre o destino desses povos , colocando o peso maior de respon sabili-
dade sobre o Estado, mas n ão deixando também de reconh ecer seus e r-
ros históricos. Por o utro lado, n ovos missionários e jovens católicos sur-
giram dispostos a e nvolver-se na luta pela defesa dos povos indígenas
contra os planos estatais de desenvolvimento a qualquer c usto, em que
os índios surgem como as ma iores vítimas. Os exemplos capitais d esse
duplo movime nto são o c h amado "Diretório Indíge na" - docu me nto
e laborado pelo Padre Adalberto Ho la nda Pereira , S. ]. , n o qual noções
de a ntropologia são misturadas com recomendações sobre o caráter
dos índios e os objetivos da ação missionária - e a criação do Conselh o
Indige nista Missionário (Cimi), em 1972 , por um grupo de missionários
que já h avia e ntrado n a luta pelos índios e precisava de um ó rgão para
coordenar n acio na lme nte as s uas ações e promover a ca usa indígen a
n o seio da Igre ja. Ao tornar-se um órgão da Conferê n cia Nac ional dos
Bispos do Brasil (cNBB), três anos d e pois , o Cimi ganhou caráte r e legi-
timidade o fi cia l para dialogar com a Funa i, a lém de representa r a Igreja
n a ca usa indígena perante o resto da nação. 36
Nestes últimos 40 a n os, o trabalho do Cimi vem se desenvolve ndo
na busca de conceituar o cristianismo pós-Vaticano II com a luta pe la
sobrevivên cia dos povos indígenas n o Brasil. A catequese deixou de ser
a doutrinação religiosa e fo i s ubstituída pelo que veio a ser c h amado
de "en carnação" do missionário na vida e no sofrime nto dos índios. 37
Desenvolveu-se uma teologia em que a imitação de Cristo d everia ser
A S I TU A Ç À O A T U A 1. O OS f N O I OS 2)3

buscada pela vivênc ia direta e cotidiana com os índios, experime ntan-


do, dessa forma, na carne, a v ida c ultural e espiritua l desses povos, e
aproximando-os ao c ristia nismo mais puro e primitivo. A Igreja passou a
reconh ecer valo res intrínsecos n as culturas indíge n as, os quais deveriam
ser imitados, emulados e adaptados à vida moderna, como o espírito
cooperativ ista, a n ào acumulação de riquezas, a educação pueril, o de-
mocratismo nas decisões políticas, e, enfim, a ha rmonia e o respeito
pela natureza. No seu seminal documento, produzido em fins de 1973,
"Y-Juca-Pirama: o índio, aquele que deve morrer", a Igreja apresenta a
s ua n ova concepção do índio, integrando os conhecime ntos da a ntropo -
logia com a sua teologia da libertação e politizando sua ação pastoral pela
sua inserção no contexto social e político do Brasil da década de 1970.
Aos poucos, o discurso passou a produzir ações de efeito imediato,
como as assembleias de lideranças indígenas que foram promovidas a
pattir de 1975, e a ação de missionários e agentes pastorais le igos. O
Cimi passou a ser um dos mais importantes e efetivos órgãos de com-
bate às políticas retrógradas da Funai, advogando a participação dos
índios n esses ó rgãos e nos assuntos que lhes pudessem dizer respeito,
como a demarcação de te rras, os projetos de desenvolvimento regional,
a explo ração mineral etc. 38
Junto com o movimento pró-indígena, desencadeado n o se io da so-
c iedade c ivil na década de 1970, o Cimi procurou coloca r a luta pela so-
brevivên cia d os povos indíge nas como parte da a mpliação dos dire itos
democráticos do povo b rasile iro e do reconhecime nto da diversidade
c ultural e étnica do Brasil. Os conceitos de autodeterminação e de na-
ção foram as principais contribuições que surgiram desse movimento. O
prime iro veio d iretamente da Carta da Organização das N ações Unidas e
é a base po lítica para a inde p e ndê nc ia e autonomia de um p ovo, e sua
constituição em n ação-Estado.
O aprofu ndamento desses con ceitos diante da realidade política b ra -
sile ira, levado e m conta o fato r demográfico da grande maio ria dos
povos indígenas sobreviventes no Brasil, tornou mais d ifícil a realização
prática dessas bandeiras de luta. O Estado brasileiro , e o seu setor militar
em partic ular, não vê com bons o lh os a ide ia de se con stituir em Estado
multinac ional, talvez n em tanto por receio dos índios quanto das etnias
imigrantes mais demograficam e nte expre ssivas . O te rmo "nação" é mais
apropriado aos índios do que a coletivos imigrantes porque n ele se in-
clui a noção de territorialidade, con fo rme a definição que herdamos do
Iluminismo, e m qu e nação é um conjunto integrado de um povo com
tradições e c ulturas próprias e um te rritório. Durante todo o p e ríodo
2) 4 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.

colo nial , os índios foram c hamados de "nações". Somente n o século x1x,


com o a dvento das teorias evolucio nistas, esse te rmo deixou de ser apli-
cado e foi substituído por o utros menos distintos, como "h o rda", "gru-
po", "bando", "clãs", até "sociedade", "comunidade", "e tnia " e "povo".
Certame nte, o te rmo "n ação" distingue m e lho r um povo indígena e seria
de todo apropria do, se não incluíssem os ne le a denotação p o lítica de
"estado" que, m odernamente, o termo parece compreende r. Q u a nto à
autodeterminação, a su a aceitação o u concessão por p a1te do Estado
brasileiro está condicio nada tanto à ampliação da democracia e das fran-
quias populares, quanto à própria capacidade dos p ovos indíge nas e m
enfrentar as con stantes dificuldades e cerceamentos econ ômicos que os
demais seto res da sociedade brasileira lhes impõem. Para isso aco ntecer,
é preciso te mpo e determinação, não só querer. 39
A Igreja contribuiu decisivamente n a e laboração da Constituição Fe -
deral de 1988 a través de sua fo1te ação de lohhy e pela su a capacida -
de de a rregime ntação das demais forças socia is pró-indígenas. O e ntão
presidente do Cimi , Dom Erw in Kreutler, bispo de Altamira desde essa
época, fo i um dos conv idados a depor na s ubcomissão que incluiu as
populações indíge n as. O documento que o Cimi subscreveu junto com
as outras e ntidades serviu de base para a fo rmulação dos principais a r-
tigos constituc io na is sobre povos indígenas.
Po ré m , a Igreja n ão é exclusiva m e nte o Cimi , m a nte ndo no seu seio
n ão somente as o rde ns re ligiosas que p e rseve ram e m se us m étodos
antiquados , mas também o p e nsamento d e que sua missão no mundo
é preparar todos os h omens para o reino de Deus. O que tem de uni-
ve rsalista essa doutrina , tem de homogene izado ra . Esse d ilema atinge
ta mb ém outras doutrinas sociais . Porém , no caso da Igreja, a perspectiva
fundame ntal parte da ide ia de um ser supre mo , de que m o h o me m é o
dependente. Se Deus e o Cristo estão n o h omem, há de disciplin ar as
formas mais esdrúxulas dessa manifestação. Quando o Estado brasile iro,
através do SPI , c rio u uma política indige nista e m que o índio foi con-
ce ituado em te rmos da humanidade e sua e volu ção, e n ão e m re lação
a uma espiritua lidade tra ns uma na , a Ig reja manifestou inquietação e
repulsa . Por m a is que tenha ava n çado em direção a uma visão coperni-
can a do mundo n os ú ltimos te mpos , não se pode espe ra r que ela abra
mão d e sua história e de sua de te rminação .
Ademais , o caráte r político da Igreja a condicio n a a procurar formas
m ais acomodadas de re lacio n ame nto com o Estado e com a sociedade .
A sua posiç ão doutrinária e m re lação aos índios d e p e nde, fundam e ntal-
m e nte, do equilíb rio que procure te r, em d e te rminados mo m e ntos , com
A S I TU A Ç À O A T U A 1. O OS f N O I OS 255

e ssas d uas e ntida des q ue, dia leticam e nte, a constitue m e a n egam. Se
o Estado bras ile iro c h egar a desen volver fo rmas ma is de mocrá ticas d e
funcion am e nto, e a sociedad e civil continu ar a su a te ndê nc ia histó rica
d e dessacra lização, é p ossível que a v isão ind igenista da Igreja venha
a ser dife re nte d a atua l. De q ua lque r fo rma, o p ap e l que cab e à Igreja
n a luta p e la preservação dos p ovos indígen as n o Bras il está lo n ge de se
esgotar. A ide ntificação socia l e espiritual das primitivas comunidades
c ristãs com as comunidades ind ígen as é pe rma n e nte incentivo p ara o
fortalecime nto inte rno d esse p ap e l. Resta ver com o m ante r esse laço d e
ide ntificação com a visão huma nista da socie d ad e m o de rn a e os a n seios
d e a uto no mia dos p ovos indígen as .

A SOCIEDADE CIVIL

Po de -se definir um conjunto socia l, que cha ma rem os de socied ad e


c ivil , distinto das o utras fo rças p olíticas e econ ômicas, que te m ainda
um d e te rminad o peso n a qu estão indígen a nacio n a l. É claro que não se
p od e a tribuir a e sse conjunto uma a uto no mia a bsoluta em re lação aos
o utros conjuntos sociais, já que há evide ntes sobre p osições d e inte resses
e inte rde p e ndê n cia econô mica e ntre os seus me mbros . Mas há de se re -
conhece r uma m od a lidad e pró pria de p e n sam e nto e inte nções p o líticas
n esse conjunto socia l, que justifica a ide ia de uma ide ntidad e pró pria.
Majorita ria mente, essa socied ad e c ivil é urban a o u urbano -cêntrica, com-
p a tt ilha n do dos conhecime ntos gerais da mo d e rnidade e das maneiras
d e ide ntificação socia l e pessoal próprias . Dep e nde n do da v isão socio -
lógica q ue se te nha, e la se confunde com as n oções d e opinião p úb lica,
classes médias, m odernidade, patt icipantes das c u lturas de massa e tc .
Normalme nte se reconhece com o seus m embros oste n sivos os estudan-
tes, professores, p rofi ssio na is liberais, func io ná rios públicos, artistas e
inte lectua is . Mas, s urpreende nte me nte, p o de m-se conta r também massas
a n ô nimas de eleitores q ue, p o r seu voto, exprime m an seios e vontades
coletivos q ue estão desvinc ulados dos inte resses econô micos imediatos .
Esses e le ito res e legeram, p o r exemplo, o índio Mário Juruna d eputado
federal p elo estado do Rio de J a ne iro para a legisla tura de 1983-1 987 .
A sociedade civil b rasile ira produz o seu p e nsame nto baseado n o
seu inte r-relacio n am e nto socioecon ômico m ais o u menos ho mogêneo,
e, às ve zes, ch ega a ser g uiada p o r fo rças socia is m ais coesas, fruto d e
e lites inte lectua is o u mesm o de ide ias do mina ntes e m p a rtidos políti-
cos, e m certas é pocas . Um a d e ssas épocas e m que a que stão ind ígen a
foi realçada a fenôm e n o n acio n al deu-se d ura nte a abett ura p o lítica
2)6 0 S fN D I O S E O 8 R A S 1 1.

iniciada no gove rno Geisel (1975-1 979). Não some nte os índios , m as
também o utras mino rias socia is foram obje to e mo ti vos de conhecime n-
to e re flexão e provocaram a fo rmação de grupos de defesa e divulga-
ção dos seu s problemas mais contundentes. D u as o utras é p ocas, que
s uscita ram eventos seme lha ntes, foram os a nos 1908-1 910 e a década
de 1850. No primeiro caso, a participação de cie ntistas, jo rna listas, fil ó -
sofos e a uto ridades p olíticas brasileiras e m favor dos índios foi provo-
cada pelos escândalos de gen ocídios indígenas n oticiados a partir do
Con gresso de Am e ricanistas que ocorre u e m Vie n a, e m 1907. Massa-
c res e assassinatos de índios te ria m acontecido e m Santa Catarina e n o
Paraná, e até fo ra m justificados pelo c ie ntista teuto-brasileiro H e rma nn
von Ihe ring. O resultado fo i a c riação do SPI, em 1910. O segundo caso,
mais re mo to e ainda restrito, deu-se n o seio da e lite p o lítica e inte lec-
tual brasile ira , e dizia resp e ito ao reconhecime nto do índio no con-
junto da n ação. Foram p rotagonistas p oetas e escrito res india nistas,
como Gonçalves Dias, Gon çalves de Magalhães, José de Alencar , Ma-
n oel Antô nio de Alme ida, e histo ria do res com o o conservado r Adolpho
de Va rnhagen e o liberal J oão Franc isco Lisb oa. As s uas rep e rc ussões
conc re tas são m e n os ta n gíveis, p o ré m c re io que fo ra m fundam e nta is
p a ra a formação de uma m e ntalidade pró-indigenista n o país, sem o que
a sorte das populações sobreviventes te ria sido muito pio r.
Sem vaida de corporati vista, p odemos reconhecer os a ntropólogos
brasile iros, desde a década de 1950, p elo me nos - talvez desde 1930 - ,
com Cutt Nimue n dajú, He rbe tt Baldus , Arthur Ram os, Roque tte -Pinto e
o utros, como os idealizado res funda m e ntais do pensamento indigenista
n acio n a l atua l. Produzidas juntam e nte com o utras p esquisas cie ntíficas,
as principais d efesas do índio n o Brasil vêm de n oções elaboradas n o
seio da a ntropologia, sejam com o decorrê n c ia o u ada ptação de noções
a ntropológicas vindas dos centros inte lectua is estrangeiros, sejam com o
n oções exclus ivas . Po r exemplo, a n oção do re lati vism o cultural con-
testa os a rgume ntos da infe rio ridade c ultural imputada aos índios . A ge-
n ética moderna, com a valorização da va riabilidade huma n a como fato r
de sobrev ivên cia da esp écie huma n a, coloca o índio lado a lado com
as o utras p opulações n a m anute nção do potencial b io lógico do Hom o
sapieus. Cai por te rra o darwinismo social que valoriza o ma is fo1te
como sobrevive nte e ún ico agente da re produção humana . A ecologia e
os seus conceitos que incluem o h o m e m valo riza m o p ap e l dos povos
indígenas na ma nute nção de nic h os ecológicos rela ti va me nte frágeis,
como as flo restas tropicais, e estimulam suas práticas c u lturais para a
preservação e a o timização do me io a mb ie nte .
A S I TU A Ç À O A T U A 1. O OS f N O I OS 2)7

A a ntropologia brasileira demonstrou que o desaparecimento d e tan-


tos povos indíge nas n ão se deu p e la assimilação o u aculturação, mas, n a
grande m a io ria dos casos, por exte rmínio direto cau sado pela v iolê n cia
e esbulho de suas fontes de sobrevivênc ia, sobretudo a te rra. O proces-
so de miscigenação, antes visto com o a principal razão do desapareci-
m e nto dos índios da costa brasileira, h oje conta como ca usa m e n o r -
apesa r de fundamental para a con stituição física do povo brasileiro
(pelo menos até o século xvrn). Os índios têm sido a nalisados como
um dos fulcros da formação histó rica do nosso p ovo - junto ao n egro
e ao branco - desde Carl von Martius, o eclético c ie ntista a lemão da
primeira metade do século XIX. Algu ns a ntropó logos ho je e m dia acham
que o índio é essencial para o sentime nto da n acio n alidade brasileira,
base da n ossa diferenciação e m re lação às o utras n ações a me ricanas.
Esse é o sentido mais profundo das s ugestões que apresentei e m a u-
diência pública de 29 de abril de 1987, da subcomissão de Negros,
Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Mino rias, da Assembleia
Nacio nal Constituinte.40
Os a ntropó logos são, junto com os indige nistas, aque les que mais
contato têm com os índios em sua v ida cotidia n a. Experimentam, v i-
vem, assim, práticas culturais totalme nte diversas da vida que levam
nas cidades. Aprendem, em muitos casos, a falar na língua própria do
povo indíge n a que os h ospeda; sente m as suas a legrias, compreende m
os seus projetos e, muitas vezes, disso obtêm uma grande e p e rmane nte
satisfação pessoal e intelectual. O antropólogo vivencia com os índios
s uas fo rmas de viver que exprime m uma gen eros idade socia l que o dei-
xa para sempre care nte e desejoso que s ua sociedade ti vesse o mesmo.
Esse inte resse p essoal, n a minha opinião, não é exatame nte exclusivo
ao indivíduo a ntropólogo ou à sua profissão , mas, sim, re presenta uma
c uriosidade cole ti va e atávica da nossa sociedade em conhecer uma forma
de vida, que c h ama ria de m ais comunitá ria e mais inte rpessoal, um
m odo d e ser pressentido como algo positivo, e que a lgum a vez já foi
seu ta mbém ou poderá vir a ser. Reconhece-se isso na c ivilização oci-
dental n os movime ntos milenaristas , nos projetos utópicos e até ocasio -
n alme nte e m fo rças políticas, socia is e re lig iosas .
Os indige nistas são os agentes imediatos da política indigenista . Por-
tanto, a rigo r, compreende m de sde o m a is humilde trabalhador b ra -
çal de um posto indígena até os le ndá rios serta nistas, como O rla ndo e
Cláudio Villas-Boas, Francisco Meirelles e o m édico Noel Nutels ; de um
auxilia r de e nfe rmage m ao telegrafista de uma a ntiga d elegacia re gio n al
da Funa i. Entretanto, de d ire ito , ind ige nistas são as p essoas que traba-
2)8 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.

lham diretamente com os índios e com os problemas indíge n as e que


procuram conduzir a s ua ação em função de um e nte ndime nto próximo
do que são os inte resses dos índios. São pessoas que procuram mediar
esses interesses, até os mais corrique iros, com a política indigenista do
país ou com o que se espera que seja essa política. Os indigen istas são
os herdeiros dos cha mados sertanistas, que eram os o rga nizado res de
expedições de "pacificação" de índios dos tempos do sP1. Na verdade,
são h e rde iros de toda a tradição brasileira de relacionamento oficial com
as populações indígenas, desde os "pais dos índios", os "protetores dos
índios" , os "diretores dos índios" e, inclus ive, os missionários.
A diferença fundamental entre indigenistas e antropó logos é de for-
mação acadêmica e ação administrativa, mas as concepções não somen-
te te ndem a se r semelha ntes, como os seus conh ecime ntos teóricos e
práticos são complementares. Se um a ntropólogo de formação se de-
dicar ao trabalho dire to com os índios e seus interesses cotidianos, ele
passa a agir como um indigenista. E se este se decidir a analisar a sua
ação em te rmos de uma concepção mais ampla do que são os índios ou
o seu trabalho prático n o uni verso social , e le vira antropólogo.
Portanto, não há como distinguir essas duas categorias como se ti-
vessem inte resses antagônicos, embora isso tenha ocorrido nos a n os da
ditadura militar de duas maneiras: como parte da visão militarista de
exclu ir das ações da Funai o papel do conhecime nto dos a ntropó logos
sobre os índios; e como manipulação política por parte dos dirige ntes
da Funai, para diminuir o impacto das c ríticas dos antropólogos durante
os a nos Médic i e Ge isel, colocando os indigenistas como uma categoria
oposta - esta, sim, que verdadeiramente se empenhava pelos inte resses
dos índios. Muitos jove ns ind ige nistas recém-saídos das unive rsidades,
d e suas práticas d e e nfe rmage m , o u dos c ursos de ind igenismo, foram
influe n ciados a comportar-se como se detivessem em si toda a vivê nc ia
e a ve rdade do ser indígena e do que se deve fazer por e le diante das
políticas de desenvolv ime nto que estavam sendo implantadas e m seus
te rritórios. Por sua ve z, muitos antropólogos se colocaram como se ti-
vesse m toda a história e conhecime nto da questão indíge n a e puseram
toda a sua desconfiança n os age ntes e n os métodos de trabalho dos
ind ige nistas. Esse mal-e nte ndido te m arrefecido desde os anos 1990, e
te nde a de saparecer.
Nos momentos mais descontrolados da política indigenista ofic ia l, em
que o trabalho digno era impossível de se realizar, h o uve demissões em
massa de indigenistas - como em maio d e 1980, quando 43 ind ige nistas
foram de mitidos do serviço público , e e m setembro de 1985, quando
A S I TU A Ç À O A T U A 1. OO S fNO IO S 2) 9

quase to da a direto ria d a Funa i e vários quadros e xpe rime ntados foram
d e mitidos d e seu p rocesso d e re to ma da p e lo p o de r militar, apó s o in-
te rregno de um a n o e alguns meses de administração c ivil. Em muitas
o utras ocasiões, diversos indige nistas fo ram de mitidos, quase sempre
p o r disco rda r e e ntrar e m conflito com d ete rmina da s ações a nti-indíge -
nas que e m a nava m d a própria Funa i. Ma s essas p e ssoas continuaram
a trabalhar com índios, seja no e n caminham e nto dos seu s p roblem as
à Fundação (m esmo que p o r v ias indiretas), seja pela a te nção aos pro-
ble mas ge rais e a d e núnc ia pública aos me ios d e comunicação, o u pe la
ação prática p a rale la e m certas áreas indígena s - às vezes, fina n c iad as
p o r ó rgãos assiste nc ia is d e de fesa d os inte resses ind ígen as . Ch e go u-se
a fala r, assim, num "indigenism o alte rnativo", isto é, não o fic ial, m as
també m n ão re ligioso, como se pudesse te r força p o lítica p ara so lucio -
nar os proble mas indíge nas, o u fosse um pre parativo p a ra uma po ss ível
muda n ça de rumo na po lítica o ficial. De qualque r m od o, reconhecia -se
que o Esta do não d everia te r o mo no p ólio da ação indige nista , e que a
p o lítica indigenista e m vigo r não deveria ser acatada com o ine xo rável.
Os prog ramas a lte rnati vos , sempre b e m-inte n cio nados, alg umas vezes
alca nçaram ce1to su cesso, mas em gera l n ão tinham continuidad e, m es-
m o p o rque sofriam d a contra-ação e de bo icotes oficia is .
O que ge rava o indige nismo a lte rnati vo e ra o bviame nte a desesp e -
rança da p o lític a o fi cia l, mas o que o mo tivava p essoalme nte e ra , com o
continu a a se r , o ime nso de sejo de se vive r p e rto dos índ ios , p artilha r
ao me n os p a rcialme nte dos praze res ofe rec idos pe las s uas c ulturas e se u
m e io ambie nte . Qu e m já fe z um trab a lho indigenista sabe o qua nto lhe
faz falta n ão p o de r continuá-lo , m esm o d ebita ndo tod os os dissab o res e
frustraçõe s que o acompa nham. Nisso també m o ind igenista e o antro-
p ólogo se ide ntificam e ntre si.
A re de mocratização brasile ira coin cidiu com a con cre tização, e m fo r-
m a de associações e o rgani zações , dos movime ntos socia is, a mb ie nta -
listas , indige nistas , é tnicos e o utros de dife re ntes na ture zas que, a se us
m od os, h aviam contrib uído para o fim da d itadura militar. De m odo
ap a re nte me nte parale lo, po ré m , n a verdade, inte rligad o p o r inte resses
e visões ideológicas , as o rganizações não governa m e ntais b ras ile iras se
co necta ram às su as coirmãs surgidas n os Esta dos Unidos e n os p aíses
e uro p e u s , constituindo , assim, uma clara simb iose e ntre as oNGs b rasi-
le iras e as estra n geiras .
As ONGS indige nistas que se firmaram n o cen á rio p o lítico-c ultura l bra-
sile iro a p a ttir da Constituiç ão d e 1988 p assa ra m a te r um impo rta nte p a -
p el n a muda n ça d e con ce itua ção , d a atitude e da v isão que a socied ad e
260 Os IND I OS E O B R A S Ii.

brasileira e o Estado tê m e m re lação aos povos indíge nas. Em primeiro


luga r, se fiz eram não tanto p o rta-vozes, mas articuladoras e propulsoras
das re ivindicações dos povos indíge n as que carecem do mínimo de as-
sistê n cia social e econ ômica - especia lmente de te rras, como os Guarani
de Mato Grosso do Sul e dos estados sulistas, as muitas comunidades
do Nordeste que passaram a se ide ntificar com o indíge nas, e de povos
indígenas de diversas procedências que aceitaram sua a juda generosa e
compromissada. As ONGs indige nistas se a rticularam e se financ ia ram por
m e io de grandes ONGS inte rnac io na is te ndo e m vista o trabalho coope-
ra ti vo, uma indecl inável visão ambie ntalista , a c rítica contunde nte ao
Estado de per se, e o firme propósito de fortalecimento das organizações
indígenas que surgiam para representar seus povos. Algumas delas se
associaram a povos específicos numa atitude de s upe rvisores de seus
destinos e procuraram o bte r me ios para alcançar as re iv indicações de
seus clientes. Quase sempre procuravam estabelecer laços por meio de
associações que elas ajudavam a c ria r n as alde ias indígen as ou n ascida -
des o nde estudantes indíge nas viviam.
Nos anos 1990, e sobretudo a partir da Confe rê n cia do Clima, n o
Rio de J a ne iro , em 1992, em que su rg iram as condições fina n ceiras e
políticas para a demarcação de muitas terras indígen as - especia lmente
na Amazônia, com fin a n ciame nto de instituições inte rnacio nais , como o
Banco Mundial e a Agência de Cooperação Técnica Alemã (GTZ) - , mui-
tos antropólogos participantes e dirige nte s d e ONGS ind ige n istas fora m
convocados pe la Funai para faze r estudos d e re conhecime nto, d elimita-
ção e demarcação de te rras indíge nas , sobre reconhecime nto de ide nti-
dade étnica e eventua lme nte para a avaliação de impactos socioambie n-
tais d essas te rras . A partir de tais opottunidade s , as ONGs ind ige nistas,
como o Instituto Soc ioambie ntal (tsA) e o Ce ntro de Trabalho Indige nista
(CT1), foram adquirindo meios fin a n ceiros e estratégicos para influe n-
ciar diretamente n a política indigenista da Funai e , eventua lmente , n as
atitude s dos governante s sobre os povos indíge nas e se us posic iona-
m e ntos p e ra nte os de mais se gme ntos da socie dade brasile ira. Nos dois
mandatos do presidente Fe rna ndo He nriqu e Ca rdoso (1995-2002), as
ONGS indige nistas se con solidaram por inte rmédio de con vênios que lhes
p e rmitiram atua r e inte rfe rir d ire tam e nte e m te rras indíge nas - como o
alto rio N egro , a parte norte do Parqu e Indíge na do Xingu , as te rras d e
diversos povos Timbiras e outras, com maior ou menor determinação.
Nessas te rras coube-lhes a ux ilia r os índios a funda r suas associações , a
d ese nvolver proje tos econômicos e culturais , criar e straté gias d e re lacio -
name nto com a Funai e c om a mídia nacional e inte rnacional e a obte r
A SI TU A Ç À O A TU A 1. O OS f NO I OS 26 1

fina n c ia m e ntos exte rnos, ao m esm o te mpo que elab o rava m avaliações
d e suas s ituações po líticas, discursos d e re ivindicações e protesto e,
p o r fim , visões p olíticas e ideológicas sobre o mundo que os cerca . No
la n ce mais o u sado, o cn firmo u convênio com a a gê n cia a m e ricana p ara
o desen volvime nto inte rnacio n a l ( Usaid) e com a Funai para coorde nar
as ações indige nistas de Es tado e m re lação aos p ovos autô n o m os que
vivem n os cantos m ais rem o tos d a Am a zô nia e, sobretudo, em regiões
d e fro nte ira . Difícil p e nsar qual o inte resse da Usaid em o bte r informa -
ções dos índios a utô n o m os bras ile iros, e m á reas d e fro nte ira , na flo resta
a m a zô nica, mas també m estão inte re ssad os n esse a ssunto o utras ONGS
com o a Conservatio n Inte rna tio nal, o G reenpea ce e a Fundação Moore .
Ig ualme nte impo rtante p a ra as ONGs indige nistas foi a conexão ideo-
lógica, m ovida p o r n ovos con ceitos a ntrop o ló gicos - com o a c ríti ca ao
indige nis m o ro ndo nia n o - que as ONGS fize ram junto à Procurado ria
Geral da Re pública, c ujo p a pe l ap ós a Constituição e seu artigo 232 se
amplio u pa ra e nglo ba r a de fesa dos dire itos indígen as, a resolução d e
conflitos inte rétnicos e a formul ação d e acordos com e ntidad es priva-
das , estata is e a pró pria Funai. O conceito d e indige nis m o ro ndo niano
é visto com o "integrac io nista" do índio à n ação, ao contrá rio d a n ova
visão indigenista, que a p osta n a "inserção social" d o índio à nação . O
Ministé ri o Público Fe d eral (MrF), a p a rtir d e s ua 6ª Câm a ra de Coorde -
nação e Rev isão , e m Bras ília , te m se d estacado nos últimos 15 a n os
com o a instânc ia gove rnam e nta l m a is abe rtam e nte favo ráve l aos ple itos
ind íge nas, sobre pondo-se à Funa i e impo ndo à Funai as posiçõ e s qu e
cons ide ra ad e quad as ao seu re lacio n am e nto e s uas a tribuições lega is
p ara com os índios . Uma d essas imposições é d e faze r com que a Funa i
n ão exe rça m a is atividade s que p ossam ind ica r a continuidade d a ação
tutelar e m re lação aos p ovos ind íge nas . P a ra o MPF, os índ ios se to rna ram
a utô no m os a p a rtir da Con stituição de 1988 , e mbora tod os continue m
recorre n do à Funa i p ara resolve r p roble m as, e muitos depe nda m ex-
clu siva m e nte do ó rgão indige nista p a ra de fe nde r se u s te rritó rios , obte r
m e ios de d ese nvo lvime nto eco n ô mico e se posic io n ar e m relação aos
segm e ntos brasile iros que os c irc unda m.
Po r q ue a socie dad e civil , ONGS, a ntro p ó logos , ad vogados e ta ntos o u-
tros se d edica m tanto à cau sa indíge na? O certo é qu e a vida indíge na
contém alegrias e b em-e star, mas també m sofrime ntos e d ure za . Viver
tão pe rto , tão dentro da nature za é uma aspiração d e muitos d e nós que
vivem os e m c idades convulsio na das . Resgua rdar a nature za p a rece ser
uma das tare fas m ais nobres d a huma nidade, n esse m o m e nto d e pressá-
gios cie ntificistas de fim d e mund o , e as sociedade s indíge n as parece m
262 0 S IN D I O S E O B R A S 1 1.

ser dos mais certos protagonistas da salvação da huma nidade. Assim,


ajudá-los a te r condições melho res de vida, a diminuir seu sofrime nto (até
recente me nte, os altos índices de m o1talidade infantil e ram calculados
em to rno de 120 p o r 1000; h o je já baixaram à casa de 50/ 1000), a manter
suas culturas, suas identidades, e a patticipar da vida política e c ultural do
Brasil é uma aspiração que atrai muitos de n ós. Por sua vez , ao saber das
a m eaças a nti-indíge nas que partem de setores da s ua própria sociedade,
o antropólogo e o advogado vivem conflitos internos terríveis ao se saber
tão relativam e nte incapa z de virar essa situação de injustiça e desengano.
Buscando luz a partir do p assado, ve m os que na histó ria da a ntropo -
logia (a qual ganhou foros acadê micos a partir da criação de museus, na
primeira metade do século XIX) já surgiram diversas atitudes e opiniões
que te ntaram transcende r esses dilemas m orais. A ma is impo rtante foi
a teoria da evolução, que justificava, nos seus desdobramentos sociais
e é ticos, o desaparecimento de milhares de povos e milhões de indiv í-
duos, e m no me da "luta pela sobrevivên cia ". Na década de 1930, surgi-
ra m teorias de mudança social e aculturação que igualme nte tentavam
apaziguar a con sciência pesada da a ntropologia e da nossa c iv ilização
e m re lação à diminuição contínua dos p ovos aborígines das Américas e
Oceania. O que surgiu de impo ttante na antropologia brasileira da déca-
da de 1950 foi a argumentação clara da n ature za política do exte rmínio
dos povos indíge nas, sem m e ias p a lavras, e, e m consequê n cia , o ideal
d e compromisso d essa c iê n cia e dos seus praticantes com o d estino dos
povos que nos serviam de objeto de estudo . Esse ide al, até certo ponto,
tinha a lgo de irreal, já que partia da con statação da s ua inutilidade, pois
o destino dos índios e ra visto como o m ais te n ebroso possível. Falava-
se n a "ma rcha inexorável da c ivilização" por todos os rincões da te rra,
e de s ua força destruidora e ho m ogene izadora sobre todos os demais
povos e c ulturas. Com o luta r contra isso, e, no Brasil , contra a expansão
do capitalismo agrário, as mine radoras, os seringalistas e castanh e iros,
as estradas e as hidre létricas?
O m ovime nto ma is recente a favor dos povos indígenas no Brasil
começou ainda na d écada d e 1970 com um espírito me io voluntarioso
e irreal, ao qual se agregou a op osição aos anos Médici. Com a a b e rtura
d e Geisel e a contraditó ria te ntativa de apagar do mapa b rasile iro os po-
vos indíge nas p e la sua em a n cipação da tute la do Estado , de ixa ndo -os à
m e rcê da sociedade econ ô mica, a luta p e la defesa dos p ovos indígen as
ganhou um espaço bastante amplo, extravasa ndo-se das universidades
e dos m ovime ntos sociais, e alcançando um vasto público qu e acompa -
nha a v ida pública brasileira , que lê jo rna is e assiste à te levisão . Até em
c irco e que rmesse d e festa d e padroe iro de c idadezinha do inte rio r d e
A SI T U A Ç À O A T U A 1. O O S fN O I O S 263

São Pa ulo chegue i a fala r p e la div ulgação d os inte resses indígen as . O


p ovo e m geral compreende u , d e alguma fo rma, que a p e rmanê n cia d o
índio n o Brasil e ra um fato r p ositivo p ara a n ação, n ão m a is um mo tivo
d e vergonha o u atraso n acio nais . Compreende u també m que a inc i-
pie nte e frá gil de m ocracia brasile ira só existirá se for e xte ns iva a tod as
as mino ria s , esp ecia lme nte uma que te m e m s i atributos irre futáveis d e
dire itos o riginá rios .
A p a rtir d e 1978, começaram a ser criad as associações e comissões
d e apo io à causa ind íge na e m quase todas as capitais bras ile iras , d e São
Paulo a Rio Branco . Ao s a ntrop ó logos junta ram-se jo rna listas, ad voga -
d os, a1tistas, ambie ntalistas em ge ral e, po r fim, p olíticos . A bande ira
d a de fesa dos dire itos indígen as, que surgiu inicialme nte pe la o p osição
à te nta ti va de e ma nc ipação d o índio, con centrou-se n a luta p e la d e -
marcação d os te rritó rios indíge nas, a q ua l d everia, p o r força d e le i, te r
sido concluída e m novembro de 1978 . Não o foi , ob v iame nte, e a luta
continu o u. Embo ra sem muita convicção, també m se falava e m a uto -
d ete rminação, n os m o ldes re gidos p e la Carta d as Nações Unidas, e n o
conceito d e n ação p a ra os p ovos indígen as . Essas ide ias, n o e ntanto,
nunca p assara m d o discurso jo rnalístico e, assim, não receb e ra m ne nhu-
m a e labo ração antropo lógica ma is con siste nte . O que te rmino u sendo
b e m desenvolvida fo i a aná lise histó rica d os m o ti vos e causas do desa-
parecime nto o u da sobrev ivên cia étnica d e di versos p ovos indígenas ,
e nfa tiza ndo-se os fato re s e conô micos e os a linhame ntos p o líticos acima
d e q u a isque r o utros (como o religioso, o p sicológico e o p ró prio fato r
c ultural - a nte rio rme nte , ma is focalizad os n as a ná lises aculturati vas) .
Dois o utros segm e ntos da socie dad e c iv il ta mbé m se destacam n a
luta p elos dire itos indíge n as : jo rnalistas e advogados . Muitos d os e ve n-
tos m a is releva nte s da histó ria recente, se n ão aco ntecera m , pe lo me n os
ga nhara m s ig nificação p o lítica p o r causa d a ação pessoal de dive rsos
jo rna listas e suas coberturas n os me ios de comunicação . Da imagem
exótica d o ín d io nu co m a rco e flech a , pintado de p re to e c om olha r
c ruel, o Brasil passou a o uvir fala r do ín d io bata lhad o r p elos se u s d i-
re itos , resp e itado r d a natureza , d o n o de um vasto conhecime nto d o
seu me io a mbie nte , p o rtad o r d e uma intricada e rica c ultu ra espiritua l,
ca rinhoso com os filhos e tc . Muitas das atua is lide ra nças ind íge n as que
tra nscen de m a su a c ultura são re sultados não some nte d e sua fé rre a
vo ntad e individua l, mas ta mbém d o b o m n o m e que os jo rna listas con-
segui ra m p a ra e les e m s uas re p o rtagens .
A d em a rca ção d e te rras ind íge n as, sobre tu do aque las ma is conflituo-
sas , d eve muito ao ap o io da imp re n sa, su a p ub licidade e su as ex igê n-
264 Os INDIOS E O B RASIi.

cias. Q ua ndo, n os primeiros a nos da re d e m ocratização, a direção da Fu-


nai mo nto u uma estratégia p ara tirar o ímpeto das demandas indíge nas,
a primeira á rea v isada foi a jo rnalística, dificultando de vá rias formas a
publicidade de eventos desairosos ao ó rgão, implantando n otícias falsas,
o u desviando a a te n ção pública para assuntos c uriosos e sem re levân c ia.
Como os jo rna listas, que tê m uma tradição histó rica de inte resse n a
problemática indíge na ( desde pelo m enos João Francisco Lisboa, e m
1850), os advogados brasileiros també m a têm desde esse te mpo, com
Agostinho Pe rdigão Malheiro, por exemplo, e igualme nte marcaram a
s ua presença n o m ovime nto indige nista atua l. Foram e les argumentado-
res da inconstitucion alidade do projeto de decreto governamental que
pre te ndia declarar a eman cipação dos índios da tutela do Estado, de-
fe nso res dos direitos o riginários dos índios às s uas te rras e, sobretudo,
os que acompanhara m pari passu to dos os mo me ntos das dezenas de
ações impetradas n os últimos a n os contra a Funa i, por n egligê n cia, má -
fé o u incúria n a sua obrigação de defender os índios. Muitos advogados
ilustres c h egaram a compromete r-se publicame nte com causas indíge -
nas difíceis e me lindrosas, certos de que estavam contribuindo p ara a
ampliação dos direitos das minorias e da c idada nia. Dezenas de jovens
advogados e ngajaram-se n as lutas indíge nas através do trabalho das as-
sociações d e apoio de e ntidades civis e religiosas. Vários p e rmanecem
n esse traba lho, e pode-se dizer que constitue m ho je um ramo mais for-
mal e jurid icam e nte impo rtantíssimo do indige nismo n acional. Ao lado
d e antropólogos e indige nistas, os advogados se apresentam com s ua
vo z jurídica e legalista do mundo que dão uma resson â n cia de busca
p o r justeza e justiça, pela certificação de direitos o riginá rios, pretéritos,
presentes e futuros .
Ho je e m dia , n ão h á dúvidas d e que sem a garantia do seu te rritó rio,
n ão h á sobrevivên cia para o índio. Mas ninguém tem certeza de que só
basta essa garantia . Os problemas de sa úde, embora te ndo diminuído
substan cialme nte nos últimos vinte anos, continuam de certo m odo
ala rma ntes, sobre tudo para os povos a utô n om os que sub ita me nte são
contatados espontaneamente pelas fre ntes de expansão econ ô mica ou
de modo planejado pela Funa i. A forma de re lacio namento interé tnico
o fic ial, o nwdus operandi da administração da Funai que, ao fugir do
pate rnalismo p e rve rso, va ria e ntre um populismo infiel até um burocra-
tismo impositivo, condic io n a os índios a sentime ntos de insatisfação e
in adaptabilidade . O diagnóstico que a a ntropologia chegou a fazer com
certa clare za da situação dos índios p e ra nte as suas possibilidade s d e
sobrevivência começou a pe rde r a nitide z, à me dida que novas variá -
A S I TU AÇ À O A T U A 1. OO S fNO IO S 265

veis ganharam peso maior no confronto interétnic o. A mineração em


áreas indígenas, c aso um dia venha a ser regulamentada, acena com a
possibilidade de uma e ntrada de dinheiro inimaginável há alguns anos.
Como se rá quando essas populaçõe s estiverem usufruindo de riquezas
acumuláveis e adquirirem o gosto consumista insaciável de outras gen-
tes? Poderão manter suas riquezas territoriais fora do mercado de troca?
Essas perguntas e desafios novos, tanto para a ciência antropológica
quanto para os índios e suas lideranças que brotam dessas novas con-
dições socioeconômicas. O movimento indígena propriamente dito, que
também surgiu no bojo dos acontecimentos que geraram o movimento
indigenista, é o herdeiro legítimo da consciência atual.Já produziu alguns
efeitos importantes , dos quais o mais v isível foi , sem dúvida , a e leição
do deputado federal Mário Juruna. A criação da União das Nações Indí-
genas (uNI) é também um marco desse movimento. No capítulo final da
presente obra, discutiremos a sua relevância política para o mundo atual.

NOTAS
1
Sobre os Kayapó e a presença de ga rimpo em s uas te rras, ver re po rtagens no Jornal d o Brasil
e m 3 1 ma io 1987 e 1° jul. 1987. Sobre a Para napan ema e s ua inte rvenção na T. l. Wa imiri-
Atroari, ver José Porfírio de Ca rvalho, Wa imiri-Atroa ri, o p . cit., e Revista Veja, 5 set. 1984. Sobre
os G u ajá e a Com pa nhia Vale d o Rio Doce, ver Mércio Pere ira Gomes, '·Programa AWA" e
"Sétimo re la tó rio sobre a proble mática indígena no Ma ra nhão, sobretudo e m re lação ao Pro je to
Fe rro Carajás", ambos a presentados à Com panhia Vale d o Rio Doce e à F una i, e m 1985 e
1986, resp ecti vam e nte.
' Ver O i lia m José, In d íge nas de Minas Gerais, Be lo H o rizo nte , Edições Movime nto / Perspectiva,
1965, q ue docu me nta a destrnição dos índ ios ating idos pelas fre ntes d e mine raç.10 his tó ricas.
3 Ver reportag e ns n o Jornal do Brasil, 12 jun . 1987.
4
Nos a nos 1980, os Kayap ó saía m fre que ntem e nte na impre nsa escrita e te levis io na d a devido
à sua a lta v is ibilida d e jorna lística. Ver, por exemplo, as reportagens n o Jo rna l do B rasil dos
d ias 5 jun. 1985 e 12 mar. 1987. Já os Gaviões ga nharam fama naciona l pela disposição com q ue
p rotesta ram pela passagem da Ferrovia Carajás po r s uas terras e pe lo montante das inde nizações
até agora recebidas. Ver Expedito Arnaud, "O compo rta me nto dos índios Gaviões do Oeste fa ce
à sociedad e nacio na l", e m Boletim do M useu Paraense Emílio Coeld i, Série Antropologia, l(l) ,
p p . 5-66, jul. 1984.
s Ver Dou glas Esmo nd Sa ndess, Native Peoples in Areas of Inter nai Natíonal Expansion: l n d ian and
Jnuit in Canada, Copenhagen , IWGIA, 1973, qu e a nalisa as dificuldades desses povos dia nte d os
p rojetos hidre lé tricos e inundação d e suas terras. Sob re os Esquimó do Alaska, as inde nizações
pela passagem d o gasoduto por s uas terras e seus p ro ble mas posterio res, ver Andrew L. Yan·ow,
'·Alaska' s Natives Try A Taste o f Capitalis m", e m The New York Times Magazi ne, 17 mar. 1985 .
6
Sobre a ideologia economicista do SPI, ver Da rcy Ribeiro, A política indigenista brasileira, o p . c it.
No processo d e extinção do SPI e criação d a Funai, s urgiram d iversas p ro postas para uma nova
po lítica indigenis ta que exacerba va m aind a ma is o espírito econo micista a nte rior. O próprio
conceito de '·Re nda Indíge na" p resente no Estatuto do Índio, de 1973, implica a ide ia d e e mpresa
pa ra o posto indígena .
7
Ver Cecília M. V. He lm, "A terra, a us ina e os índios d e Mangu e irinha", e m Sílvio Coelho dos Santos
(org.), O índio perante o direito, Florianópolis, Editora da UFSC, 1982, p p . 129-42, que discute essa
questão , a p resenta ma pas e traz à to na os primeiros proble mas d a cons trução d e uma us ina
hidre lé trica q u e afetará pa rte dessa á rea.
266 Os INDI O S E O B R A SIi.

8
Ver Moysés W'estphalen, "Reforma agrária nas terras d os índios", em Correio do Povo, 3 jul. 1963.
A partir d e 1975, os índios Kaingang de Nonoai começam s ua luta para expu lsa r os posseiros de
s uas terras, conseguindo-o, afinal, em agosto de 1978.
9 Esses dados foram veiculados nu m programa d e televisão dedicado especialmente ao poder de

d estruição dos mad eireiros do Espírito Sa nto, em 1984. Ver, tamb ém, os dados apresentados em
reportagem do Jornal do Brasil, d e 5 jun. 1987. Para uma visão global da q uestão, ver Orla ndo
Valverde, O problemajlorestal da Amazônia brasileira, Petrópolis, Vozes, 1980.
tO Em setembro d e 1987, os G uajajara da T. l. Ara riboia chegaram a faze r vários funcionários d a

Funai refé ns e só os libertaram depois que fizeram um acord o com a Funai, o qu al permitiu a
continuação da exploração d as madeiras d a te rra indígena por parte d as empresas já instaladas.
Ver Jornal do Brasil, 23 set. 1987.
" Ver Lúcio Flávio Pinto, Carajás, o ataque ao coração da Amazônia, 2. ed., Rio de Janeiro, Marco
Zero, 1982. É interessante notar q ue até o s u perintende nte do Me io Ambiente da Companhia Va le
d o Rio Doce, Francisco d e Assis Fonseca, chegou a escrever um parecer contrá rio a esse plano
d e utilização de carvão vegetal, mas ne nhum resultado positivo s urgiu desse posicionamento.
Ver Jornal do Brasil, 19 jul. 1987.
12
Ver James G rogan, Paulo Barreto e Adalberto Veríssimo, Mogno na Amazônia brasileira: ecologia e
perspectivas de manejo, Imazon, disponível em <pt.scribd.com/ doc/23580036/ mogno-na-amazonia-
brasileira>, acesso e m: l º set. 2012.
13 Ver a reportagem sobre o relatório do funcionário do Ba nco Mundial, Hans Binswange r, no Jornal

do Brasil, 6 set. 1987.


14 A venda d esses 8 mil m 3 d e madeira estava sendo feita pela Funai à firma Sevat, sem inde nização

aos índios, até que estes descobriram. Ver Lux Vida!, "Xikrin do Cateté: 2• viage m a ca m po", jul.
1983, p. 17, re latório apresentado à Compan hia Va le do Rio Doce e à Fu nai.
' 5 Entre 30 o ut. e 20 nov. de 1987, saíram diversas reportage ns no Jornal do Brasil analisando esse
problema e mostrando que u ma das razões que leva m os índios a vender madeira é a p ressão da
própria Funai, a qual alega que só assim po derá ate nder às necessidades básicas d o posto e dos
índios. Por o utro lado, a natureza dos contratos feitos e ntre a Funai e as empresas mad e ireiras é
d e tal forma ilega l que um ministro do Su premo Tribunal de Contas da U nião, ao analisar esses
contratos, pediu a interve nç.10 do Executivo na Funai. Desde então, continuaram os mesmos
problemas e conflitos.
16 Ver Carlos Mine, A reconquista da terra, Rio de Janeiro, Jorge Za har, 1985; Vincent Carelli e Milton

Severia no, Mão branca contra o povo cinza, São Paulo, Brasil Debates, 1980; Octavio lann i,
Colonização e contrarreforma agrária na Amazônia, Petró polis, Vozes, 1979.
17
Ver Otávio G uilherme Velho, Capitalismo autoritário e campesinato, São Pa ulo , Difel, 1976.
Ver també m Octavio Ia nni, A luta pela terra, Petrópolis, Vozes, 1979; Victor Asselin, Grilagem,
com1pção e violência em terras d e Carajás, Petrópolis, Vozes, 1982; Murilo Sa ntos, Bandeiras
verdes, São Luís, cJYr/ MA, 1981; e Regina Coelli Miranda Luna, A terra era liberta, São Luís, Editora
d a UFMA, 1985.
18 Ver Mé rcio Pe re ira Gomes, "Por que o índio briga com o posseiro'', em Comiss.10 Pró-índio, A

questão da terra, São Paulo, Global, 198 1, p p. 5 1-6. Na década de 1980, o Banco Mundial fina nciou
o Progra ma de Assistência ao Pequeno Produtor (PAPP) em c uja área estava incluída essa terra
indígena e o povoado São Pedro dos Cacetes, o que veio a fac ilitar a extinção desse po voad o e
a re tirada de seus moradores.
19
A exceção é a T. l. Awá-G uajá, localizada e ntre as te rras Alto Turiaçu e Caru, que foi reconhe-
cid a e m 1987, porém sofre u uma ime nsa demora para s ua d e marcação e homo logaç.10 final.
Nela estão incrustados alguns povoados de lavrad ores sem terra e assentados do Incra , além de
u ma faze nda.
"' Ver Maria Elisa Lad eira, "Algumas observações sobre a s itu ação atua l d os índios Apinayé",
jun . 1983, p. 66, e A ntônio Carlos Magalhães, "Alde amentos indíge nas / Parakanã: Apuiterewa,
Marud jewara e Para nati ", mar. 1985, p . 41, a mbos relatórios apresentados à Companhia Vale
cio Rio Doce e à Funai.
21
Ver sobre a luta pe la te rra no nordeste do Pará , Lourdes Gonçalves Furtado, '·Alguns aspectos d o
processo d e muda nça na região do Nordeste Paraense·', e m Boletim do Museu Paraense Emílio
Goeldi, Série Antropologia , v . 1(1), p p . 67-123, jun . 1984. Sobre os índios Temb é e s u as terras,
ver Expedito Arna ud, "O direito indíge na e a ocu pação te rritorial: o caso d os índios Te mb é", em
Revista do Museu Paulista, N. S. , v. xxvm, 1980/ 1982.
22
Existe u ma lite ratura jo rnalística basta nte exte nsa sobre a Transa mazônica nos primeiros anos de
s ua implantação. Para u ma contextualização geopolítica d a su a implantação, ver Berth a K. Becker,
Geopolítica da Amazônia, Rio de Jane iro, Jorge Zahar, 1982. Em re laç.10 aos índios, ver Shelton
A S I TU AÇ À O A T U A 1. OO S fNO IO S 267

Davis, Vítimas do milagre, Rio d e Jane iro, Jorge Zahar, 1978. Sobre os Assurini, s ua his tó ria de
pacificação, s ua c ultura 111ateria l e seus p roble 111as de111ográficos, ver Berta Ribeiro, "A o le ira e a
tecelã: o pa pel socia l da mulhe r na sociedad e Assurini", e111 Revista de Antropolog ia, v. 25, p p.
25-62, 1982. Ver ta111bé111 reportage111 no Jornal d o Brasil, 27 abr. 1986.
23 Ver Edilson Martins, Nossos fndios, nossos mortos, Rio de Ja ne iro , Codecri; 1978, p p. 83-8. Esse
estudo, no e ntanto, não inclui as consequ ê ncias poste rio res da transferência. U111 re lato mais
co111pleto pode ser e ncontrado e111 Luiz Beltrão, O índio, um mito brasileiro, Petrópolis, Vozes,
1977, pp . 97-126. Informações 111ais recentes pode111 ser e ncontradas e 111 d ive rsos s ites e letrônicos,
e111 especial no site do ISA.
" U111a visão d as condições d e v ida dos G uajá até 111ead os da d écada d e 1980 e ncon tra-se e111 Mér-
cio Pe re ira Go111es, "Progra111a Awá ", Re latório apresentado à Co111panhia Vale do Rio Doce e à
Fundação Nacio nal do Índio , 1985. Nele co nsta111 uma a nálise d a s ituação dos d iversos g ru pos
G uajá e u 111a p ro posta de dema rcação de seu território e d e defesa da integridade físico-c ultural
d esse povo . O utro texto cio a uto r é "Os índ ios Awá -Gu ajá e 111 2002", e ncontrado no Blog cio
Mércio (111e rciogomes.blogspot.co111.br).
,s Os a ntro pó logos con tra tados e que p rodu zira 111 re la tó rios a esse respeito fora111 Lux Viciai, Iara
Fe rraz, An tônio Ca rlos Maga lhães, José Lu ís dos Santos, Mara Manzoni Luz , Lúcia M. A. Andrade,
Ma ria Elisa Ladeira e o p resente a uto r. Escre vera111 re lató rios especiais os 111éclicos João Paulo
Bo te lho Magalhães e Ferna ndo Alves de Souza. Alguns desses re latórios, a presen tados à C VRD e
à Funa i, estão citados aqui.
26
Ver Raymunclo Garcia Cota , Cara)ás: a invasão d esarmada, Petró po lis, Vozes, 1974; Lux Vicia i,
"A q uestão indígena'', e111 José Ma ria Gonça lves de Almeida J r., Carajás, desafio político, ecologia
e d esenvolvimento, São Pa ulo , Brasilie nse/ Brasília, CNPq , 1986, p p. 222-64. Lúcio Flávio Pinto,
Carajás: o ataque ao coração da Amazônia, Rio de Ja ne iro, Marco Zero , 1982.
v Os antropólogos que traba lha ram no estudo dos povos indígenas dessas á reas e nas s uas necessi-
d ades fora111 Car111e n J unque ira, Betty Mind lin, Mauro Leone l, Rinaldo Arruda e Ezequias Heringer
Filho. Os p rinc ipa is re lató rios d e leva nta 111e n to foram p rod uzidos no Instituto de Pla neja111ento
Econô 111ico e Socia l, cio Minis té rio do Pla neja 111e nto , por 111e io do "P ro je to de Pro teç.'io cio Meio
Ambie nte e d as Comunidad es Indígenas", os PMAO I e PMAO 11.
28 Sobre os Avá -Cuara ni, ve r Edgarcl de Assis Carva lho , Avá-Guarani d o Oroi:Jacutinga , Curitiba ,
CTMT e Co111issão de J us tiça e Paz/PR, 1981. Sobre o escã nclalo Cape111i e as razões fraudule ntas d a
tra nsfe rê ncia dos Parakanã, ver J. Ca rlos de Assis, "O escã nda lo Ca pe 111i'', e 111 Os mandarins da
República, Rio de Ja ne iro, Paz e Te rra, 1984.
29 Ver Sílvio CoeU10 dos Santos e Paul Aspelin, Jndian Amas Th re.atened by Hyd roelectric Plants in
Braz il, Co pe nhage n, IWGIA, 1981; Maria do Rosá rio Ca rvalho , "Um estudo d e caso: os índios Tuxá
e a construção da b arrage111 e 111 Itaparica", e 111 Sílvio Coelho cios Sa ntos (ed.), O fndio pera nte o
direito, op. cit. , p p. 117-28.
Yl Ver Marewa, Resistência \.Yla im iri-Atroari, op. cit. Esses d ados são ta111bém conhecidos através
d e re po rtagens de jo rnais e de re latórios inte rnos d a Funai. Q uan to à hid re létrica Ba lb ina, o
escâ nda lo é d e tal quilate que até o direto r da Sec reta ria Especia l d e Meio A111bie nte, Rob e rto
Messias Franco, ó rgão vinc ulado à Presidê nc ia da Repúb lica, considero u-a ··a ma io r estupidez d o
progra111a e nergético bras ile iro ". Ver Jornal do Brasil, 5 o ut. 1987.
3' Ver para o início d esse p rogra111a , Eletro brás, Plano Nacional d e Energia Elétrica, 1987/ 2010,
Brasília, 1986, e Plano Diretor para Proteção e Melhoria do Meio Am biente nas Obras e Serviços
do Setor Elétrico . Brasília, 1986.
32 Pa ra u111 histó rico desse 111o vi111e nto, ind uindo as principais manifestações públicas e a cober-
tu ra jo rna lística, ve r Comissão Pró-f ndio, A questão da emancipação, São Paulo , G lo b a l, 1979.
33 Ver Darcy Ribe iro, A política indigenista brasileira, o p. cit. É in te ressante qu e neste liv ro, escrito
e111 196 1, o a uto r já fa z uma a ná lise d o p roble111a cios índios e m re lação às fro nte iras, a qua l, de
certa forma, p re vê o s urgi111e n to de projetos co1110 Ca lha Norte.
34 Ver Alípio Ba nde ira, Antiguidade e atualidade indígenas, Rio de Ja ne iro , Tp. cio Jornal do
Commercio, 1919, e o utros livros seus já citados; SPI, "Re lató rio Anua l", 1954, q ue con té 111 a 111iss iva
d e Darcy Ribe iro a D. He lcle r Ca ma ra e os docu111e ntos acusató rios do SPI aos sa lesia nos insta lados
e111 Mato G rosso e no alto Rio Negro, e dá informações sobre as 111issões re lig iosas, ind us ive as
p rotesta ntes, até e ntão insta b d as e n tre os índ ios.
3s Ver Fátima Robe rto , "Sa lvemos nossos índ ios", o p . cit.
Yl Ver Paulo Suess, Em defesa dos povos indígenas, documentos e legislação, São Paulo , Loyola , 1980,
que co nté m estes e o utros docu 111e ntos d e gra nde i111portância para co 111pree nde r111os o no vo
sentido de c ristianização .
268 Os INDIOS E O B R A SIi.

37 O conceito de encarnaçáo foi abandonado nos últimos vinte anos, em parte porque a crítica de
que e ncarnar significa tomar um lugar do índio, e m parte porque o exemplo d e encarnaçáo de
um missionário, que chegou a casar e te r filhos com uma índia da etnia Myn ky, assustou a Igreja
e recebeu o repúdio dos demais setores do indigenismo brasileiro .
.lB As prime iras 7 assembleias indíge nas foram promovidas e ntre 1975 e 1981, e desde e ntáo o Cimi
já realizou 19 assembleias nac ionais e muitas mais em s uas comissões regionais. O jornal bimensal,
O Porantím, d edicado exclus iva me nte aos assu ntos indígenas, é publicado desd e 1978. O site d o
Cimi (cimi.org.br) é dos mais ricos em notícias atualizadas sobre assuntos indíge nas.
39 Analisando a qu estão de etnia e nação para os povos indígenas d as Américas, te ndo como re -
fe re ncial as grandes populações étnicas mexicanas, o a ntropólogo Migu e l Ba rtolomé considera
que u ma etnia passa a ser uma naçáo qua ndo cria um projeto político que possa impor-se em
re laç.'io ao mundo que o cerca. Ver seu artigo "Afirmación Estatal y Negación Nacional: EI caso
d e las minorias nacionales e n América fati na ", Instituto Nacional de Antropologia/ História , 1983.
A literatura sobre a questão d e etnia é ampla e se d á ares gongóricos, não cabendo sua p roble-
matizaçáo neste livro.
40
Ver Mércio Pereira Gomes, "Por um Pacto Indigenis ta Nacional·', Discu rso apresentado à Assem-
bleia Nacional Constituinte, em 29 abr. 1987.
Ü FUTURO DOS ÍNDIOS

Se a s ituação atual dos índios , para muitos, não é digna n em aceitá-


vel, o que se dirá d o seu futuro? Se atentarmos p ara a Histó ria do Bras il
e quisermos projetá-la n o futuro , em uma média ponderada pelo pen-
sam ento e pelas atitudes do seu povo e das e lites políticas , certamente
n ão poderemos n os da r ao luxo de sermos o timistas sobre o destino dos
índios. Se quisermos ser o timistas e m re lação a uma tendência de que a
huma nidade está progredindo e o povo brasileiro está se to rna ndo mais
abe rto e tole rante, só pode re mos con siderar-nos ingê nuos d e que isso
seja uma tendência permanente que venha a traze r n ovos benefícios
p ara as minorias é tnicas . Não é p or esses motivos que a histó ria marcha,
m as, a inda assim, é por outros reais m otivos que pode m os te r esp e ran-
ças p e los índios.

A REVERSÃO D O PROCESSO HISTÓRICO

Com espanto, vimos e te nta m os demonstrar que os povos indígen as


estão vive ndo um n ovo te mpo em que suas populações se recuperaram
do de clínio "inexorável" e vêm c rescendo con sistente me nte após deze-
nas e cente nas de anos . Em a lguns casos, pode-se disce rnir a mão do
ho me m bran co como fator de recuperação demográfica , por intermédio
da aplicação da medic ina moderna, sobre tudo de prevenção, contra as
virule ntas e escabrosas e pide mias que ceifavam tantas vidas, com ta n-
ta rapidez, antigam e nte . Ninguém ma is m o rre de varíola, re lativam e nte
poucos de sarampo, a tuberculose e a sífilis são cu ráveis, e n ão se apli-
270 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.

cam mais sanguessuga e sangrias como forma de estancar febres e do res


musculares. É verdade que campeia mais acintosamente a ma lá ria, pro-
vocando em todo o país - especialme nte n a Amazônia - um número ele-
vadíssimo de v ítimas parciais e fatais, inclusive e ntre os índios. 1 Também
e m muitas te rras indíge nas cercadas de fazendas e devastadas de s uas
flo restas naturais , aumentaram os índices de desnutrição e m o rtalidade
infantil , sobretudo entre as populações que dependem do aluguel de sua
força de trabalho para obte r dinheiro e comprar alimentos, visto que as
te rras que lhes sobraram não são s ufic ie ntes para prover o seu suste nto.
Nos te mpos de contato com índios a utô no mos, as epide mias de gripe
grassavam com grande virulê nc ia, e nfraquecendo-os e muitas vezes pro-
vocando mo rtes, conforme comprovam os muitos relatos d e sertanistas
e as teses de a ntropó logos que te ntam reconstituir a etno -histó ria desses
p ovos. Contudo, h o je e m dia n ão há mais misté rios sobre mo rtes de ín-
dios em contato e muito m e n os nas situações de relac io name nto perma-
ne nte. Q u ase todos os problemas de saúde são diagnosticáveis e soluc io -
náveis , bastam um mínimo de a te n ção indige nista e assistência mé dica.
Acabaram o temor e o te rror que acome tiam antropólogos e indige nistas,
quando visitavam índios de contato recente o u mesmo de alguns anos,
de que viessem a ser veto res de epide mias devastadoras, como acostu-
mava acontecer. Ho je sabe mos que quando isso ocorre, não é por culpa
de um indivíduo, e s im de uma p o lítica o u do desleixo e m atender a
essas populações com me dicações simples, a lgum e n sinam e nto profi-
lático e alguma ajuda dietética . Enfim, sabem os o que faze r quando o
índio adoece, e se ne m sempre atua m os a te mpo é por o utros m otivos .
Esse progresso médico, n o e ntanto, n ão explica to ta lme nte a reve rsão
do processo histórico d e d esaparecime nto dos povos indíge nas. Mesm o
porque h o uve vá rios casos de sobrevivênc ia étnica que se passaram à
margem do ate ndimento médico atua l ou a nte rio r, digamos , dos últimos
100 a n os . Os G uató do a lto rio Paraguai , os Ofayé-Xava nte do pla na lto
Parana pane ma, diversos povos indíge nas do Ac re e de Rondônia so-
b revivera m após te r caído o número d e sua população, sem a juda d e
ning ué m. E não se pode qualificar de a te nc ioso, qua ndo existe nte, esse
atendimento para a gra nde ma io ria dos povos indígen as conhec idos .
O algo mais explicativo pode estar relacio nado a três fe nô m e n os dis-
tintos m as inte rligados n esse resultado . O prime iro p ode ser a aquisição
biológica de a ntígen os contra doenças tra zidas do Velho Mu ndo, nesse
p e ríodo de cinco séculos de con vivê nc ia . Mesmo e ntre p ovos indígen as
que atua lme nte não têm contato com p essoas integradas à c iv ilização
brasile ira, esses antígen os p oderão estar presentes, já que esses índios
Ü FU T U RO O O S fN O I O S 27 1

n ão são po pulações bio ló gicas isolad as, m as tê m o u tive ram conta to


com transmisso res e m p ote n cial (em geral , o utros p ovos indígena s) .
O segundo, també m d e caráte r biológico, diz resp e ito ao fato d e que
muitas e pidemias estão mais o u me nos controla das e, p o rta nto, surgem
com me n os fre quê n cia n a po pulação brasile ira , diminuindo o risco d e
contaminação . O u , qua ndo há, é de forma a te nuada. Deve-se esse fato r
ta nto à exp a n são da vacinação e m m assa qua nto à m elho ria das condi-
ções d e hig ie ne e p rofilax:ia. O te rceiro fe n ôm e n o é m e n os conc reto e
um tanto esp eculativo . Acontece que essa s ituação de reversão histó rica
e stá se da ndo n o â mbito inte rnacio n a l, ocorre ndo ta nto e m p opulações
a utócto nes e aborígines das Am é ricas e Oceania, qua nto na África, Ásia
e Europa . O fe n ôm e n o é, p o1tanto, trans bio lógico e diz resp e ito a um
re arranjo d e valo re s culturais da huma nida de com o um tod o . A do mi-
nação que te ndia à ho m oge ne ização d e valo res culturais d e povos o u
n ações militarme nte m ais p o de rosos p a rece estar sofre ndo um re fluxo,
p o r ra zões a inda inexplicadas . Em p a íses como China, Vietnã, União
Soviética, Itá lia, Espanha, Suécia, Cana dá, Estados Unido s e tc . - que
abrange m uma diversida de s ig nificati va d e re gimes po líticos e abrigam
muitas tra dições cultura is dife re ntes (e, ao m esmo te mpo, se compõem
d e uma cultura d ominante e mino rias dominadas) - , estas mino rias vêm
se mante ndo firmes e d ete rminadas na preservação dos seus valo re s e
na luta p o r o bte r ma is dire ito s le ga is e franquias socia is e p o líticas p e -
ra nte a to ta lidade d o se u unive rso . Posto que p e que ninos, n o Brasil , os
p ovos indíge n as també m faze m p a tte d esse fe n ôm e n o . Esse p e ríodo d e
h eterogen e ização que , a mo lde d e compa ração, se p arece com o p a r-
celam e nto d o Impé rio Ro m a n o e m comunida des e fe udos ( ap ós o seu
d esm o ro n am e nto, o u um dos ta ntos pe río dos de a n a rquia q u e a co ntece-
ra m n os c iclos de ce ntra lização e d esce ntra lização d a histó ria da China),
p od e até estar re lacio na do com um pressentime nto unive rsal d as difi-
c uldad es p e las quais p assa a esp écie huma na diante dos p roble m as que
ela me sm a e n ge n drou. Ne sse caso , a d iversificação d as fo rmas c ultura is
d a humanidade é e nte ndida n ão só como valo r é tico , mas com o fa to r
d e sobrevivênc ia . Seja com o for, disso p od e rão usufruir os índios e os
p ovos ab o rígines p e lo mundo a fora.

O MOVIMENTO INDÍGENA

Em conse quê nc ia do se u cres cime nto d e mográfico, das novas fo rmas


d e inse rção n a n ação b rasile ira e d o conjunto d e circunstânc ias que pro-
272 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.

m overam o movime nto indigenista dos últimos c inque nta anos, s urgiu
também o movime nto indíge na. A presença política de índios na Histó ria
do Brasil não é exatamente uma n ovidade. Ela já ocorre ra em momentos
passados, tanto em conjunto com outras fo rças nacionais - como n a expul-
são dos ho landeses do No rdeste, nas lutas e ntre franceses e portugueses
pela conquista do Rio de Janeiro e do Maranhão, na Gue rra do Paragua i
e tc. - , quanto separadamente, e contra as forças brasileiras que os opri-
miam, como na Caban age m , na Gue rra dos Bá rba ros, n a Guerra dos
Cab a nas, na re be lião de Antônio Conselhe iro e e m dezenas de ocas iões
mais restritas. Os h e ró is indígenas vão de Arariboia e Fe lipe Camarão a
Ajuricaba,Janduí e Crespim Leão. No tempo dos h ola ndeses, h ouve par-
ticipação de índios no parlamento que Ma urício de N assau instituiu para
administrar me lho r Pe rnambuco e as demais províncias conquistadas.
Po rém, a partir do Impé rio e durante a República, foi estabelecido
um modo de re lacionamento e ntre auto ridades e índios que reduziu
estes últimos à condição de menoridade , quase de c riança. Com essa
forma farsante de paternalismo, os índios só eram o uvidos com condes-
cendê n c ia e arrogância; seu p e nsamento passou a ser e nte ndido com
pouco caso e a compreensão de sua realidade passou a ser tra n sferida
para o utrem, as autoridades, os indigenistas e os antropólogos. Assim, o
s urgime nto atual de índios no cen á rio público nac io na l s ig nificou uma
grande vitó ria para os índios e m geral , vitó rias pessoais e avanços con-
ceitua is e políticos n as re lações inte ré tnicas no país. Ficou claro que e les
n ão precisavam de porta-vo zes n e m inte rme diários para comunicar-se
com as auto ridades e o público. Sua presença física passou a serv ir de
garantia nos aco rdos que a Funa i fazia com outros ó rgãos do gove rno
ou particulares . As figuras folclóricas, e m que a dificuldade com a língua
portuguesa e a singe le za das atitudes serviam de marcos caracte rísticos,
passaram a ser o uvidas como legítimos representa ntes dos direitos dos
seus povos, como seres políticos. Essa representativ idade era real e os
proble mas veiculados bastante conc re tos, com o a necessidade d e d e -
marcar as suas te rras e os programas de saúde . O re lacio n am e nto con-
tínuo e ntre o líde r indígena exposto ao público e o seu povo confe ria-
lh e uma legitimidade total e uma clareza ímpar quanto à urgê nc ia dos
proble mas tratados. O público, o povo b rasile iro, sentiu esse drama e
e sse avanço político e, n a prime ira oportunidade que teve, depositou
formalmente essa confia n ça através do voto ao Cacique Mário Juruna,
n a e le ição federal do Rio de Janeiro, em 1982.
O movime nto indíge na tomou for ma pe las me smas bande iras do m o -
vime nto ind ige nista, isto é, a de fesa dos territórios indíge n as, a atenção
Ü FU T U RO O O S fN O I O S 273

assiste nc ia l à saúde e à e ducação e a auto de te rminação d os p ovos in-


díge nas . Sua te nta ti va ma is ambic iosa d e avanço foi a criação da União
d as Nações Indígen as (uNI), a p a 1tir de 1979 . Um g rupo d e índios d e
p roced ê nc ias é tnicas diversas, mas m ajo ritariam e nte Te re na , Tuka n o,
Ba ka iri e os Xingua n os, re uniram-se e m Aquida uana , Ms, p a ra criar uma
o rga nização p a n-ind íge na d e de fesa de seus inte re sses . A UNI s urgiu e
logo teve o a p o io de todas as e ntidades civis de de fesa dos dire itos
indígenas e de e ntidad es congêne res de o utros pa íses . Seu prog ra ma
te ntava juntar tod os os p ovos indíge na s e criar uma fre nte comum d e
a uto de fesa e a firmação p e rante o Estad o e a nação bras ile iros . Nos a n os
seguintes, esb arro u e m muitos pro ble mas inte rnos na busca d e ma nte r
uma ve rda de ira união, p o is o diá logo e ntre povos indígenas não ex-
pre ssa a inda as b ases d e uma atuação conjunta. A dive rsida de c ultural é
um fato q ue p rovoca dificuldad es e m som ar inte resses específi cos e que
re que r resoluções imediatas .2
O mo do como a Funa i reagiu , em re lação à UNJ, sob o coma ndo dos co-
roné is, d e ixou cla ro o qua nto e la e ra contrá ria à ide ia de que os índios tê m
dire ito de se o rganizar. Em di versas ocasiões, p roibiu que os índios promo-
vessem re uniões d e líde res e em n e nhum m o me nto chegou a dialogar
p ositivame nte com a UNI e su a d ireção . Es p e rava que, ao não prestig iá -
la, a UNI eventua lme nte n ão se firma ria com o veículo legítimo d os in-
te re sses indígenas . O isola me nto da uNJ só é re al na m edida e m que
n ão te m me ios con cre tos d e fa ze r o se u p a pe l d e p ro motora d e uma
id eo logia p a n-indíge na n o Brasil. Vá rios dos s e u s líd e re s e fundadores
te rminara m volta ndo aos seus afa ze res p essoais , cuida ndo de ma nte r
as suas lideran ças e ntre seus p ovos e certa me nte esp erando m e lho res
te mpos pa ra colocar-se no ce n á rio ma is am p lo . Essa o p ção prese rva o
se ntime nto de que uma lide ran ça indíge n a só fa z se ntido se se m a ntiv e r
e m contato direto e constante com o se u p ovo, num e lo ma is íntimo ,
certa m e nte , d o que te m um d eputad o com os seus corre ligio n á rios .
Se a u NJ n ão prosp e rou , d e u frutos . N o m e smo a no surgiu a Co -
missão Pró-Índ io n o e stad o do Ac re . Impo1ta nte n otar, e ssa assoc iação
indígena é talvez a m a is con siste nte de tod as que já existi ra m , o que
d e m o n stra a natureza p eculia r do relacio n a m e nto e ntre os p ovos indí-
ge nas daque le estado . Com efe ito , os índios d o Ac re nunca h aviam sido
assistido s , muito m e n os p atron e ados, p o r um ó rgão ind ige n ista , n e m sP1
n e m Funa i, a té 1976. Por lo ngos an os, es ses índios fo ram a bafad os n o
processo socia l que , e m prime iro luga r, d estruiu muitas d e s uas a lde ias
e redu ziu os sobrevive nte s ao tra ba lho semisse rvil d e s e ringue iro e, e m
se guida , c rio u o re lacio n am e nto ma is flexíve l e ntre índ ios e n ão índios,
274 0 S f N D I OS E O 8 R AS 1 1.

n o qual os índios estavam inse ridos n o mundo exte rio r sem ma nifesta r
s uas ide ntidades. Isso lhes d e u uma autonomia e iniciativa p o lítica que
os demais povos indíge nas sempre tiveram dificuldades de adquirir.
Por sua ve z, a aliança que fize ram com os indige nistas da Funai e com
a ntropó logos, ambientalistas e jo rnalistas locais estabeleceu um m odo
de re lac io na me nto p o lítico invejável para os demais estados brasile iros.
Não é à toa que desde cedo estiveram unidos com Chico Mendes e o
m ovime nto ambie ntalista, e p o rtanto são correspon sáveis pela ascensão
desse m ovime nto n o plano nac io na l. Desde e ntão, e ntre altos e ba i-
xos , essa associação indíge na te m s ido essen cial p ara o reconhecime nto
e demarcação de terras indígenas naquele estado e n o sudoeste do
Amazonas, para o re lacio n amento político com os governadores estadu a is
e a ampliação da a tuação indíge na n o Bras il e n o exte rio r.
No decorrer da década de 1980, associações indígenas foram sur-
gindo para representar os inte resses de seus povos - o u , mais propria-
mente , para representar alde ias o u segm e ntos e até facções o u peque-
n os grupos , d e p ovos indíge nas - , de mo do que foram se ampliando
os instrume ntos p ara uma n ova forma de autoafirmação indíge na. As
demandas econ ômicas e políticas foram se expandindo expon e nc ial-
mente, e a Funai, incapacitada de dar conta dessas transformações, foi
p e rde ndo sua h egemo nia n o re lacio name nto e na assistência aos índios.
Po r sua ve z, o te ma indíge na e ntrara e m ascensão n o cen ário mundia l,
com a ONU buscando estabe lecer uma Declaração Universal dos D ire itos
Indíge nas , desd e 1993, e os países e u ropeus abrindo seus cofres para
cooperação inte rnacio na l. Assim, e com a a juda das ONGS indigenistas
brasileiras, os índios foram aprende ndo a c ria r associações cada vez
mais amplas e m a is m otivadas, esp ecia lme nte após a Constituição Fe -
d e ra l. Parte de suas receitas v inha d e auxílio exte rno, m as outra parte
provinha dos con vênios que estabeleciam com ó rgãos do governo fede-
ral, especialmente a Funasa , p ara contratar pessoal m édico aos p rogra -
m as de saúde d esenvolv idos para os povos indígenas . No a no de 2006,
calculava-se qu e estavam e m func io n ame nto mais d e 300 associações
indígenas, espalhados p o r todo o Brasil , representa ndo a lde ias e con-
juntos de a lde ias, muito poucas representa ndo os p ovos ou etnias a que
as alde ias p e 1te ncem. Essa ime nsa quantidade d e associações parece te r
d ecaído nos últimos a n os, talvez em função das dificuldades de obter
recu rsos para s uas administ rações .
A Coordenação das O rganizações Indígen as da Amazônia Brasileira
(Coiab) foi criada e m 1989 para agregar as d e ze nas de associações indí-
ge nas que estavam se organiza ndo n as a lde ias e nas te rras indígenas dos
0 FU T U RO O O S fN O I O S 275

seis estados da Amazônia. Sua atuação te m s ido das mais impo rtantes n o
movimento indíge na desde o governo Fernando He nrique Cardoso. Fre -
quentemente ela é convocada para opinar sobre política indige nista, indi-
ca n om es para cargos em ministérios que tê m programas de fomento aos
p ovos indíge nas e te m uma ligação funda m e ntal com as ONGS indige nistas,
tanto e m razão de o bjetivos comuns quanto e m função da necessidade
da obtenção de recursos administrativos. Já indicou um indíge n a pa ra ser
presidente da Funai e tem representação n a Comissão Nacio nal de Política
Indige nistas (cNP1) - c riada pelo governo federal e m 2006. Po r seu peso de
representação, já que os índios da Amazônia alcan çam 60% da totalidade
brasileira e 97% da á rea das te rras indíge n as, a Coiab tem ressonância po-
lítica nacio nal e com su as congêne res em outros países sul-am e rican os.
A Articulação dos Povos e Orga nizações Indíge nas do No rdeste,
Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) é o equivale nte da Coiab para
os índios do N o rdeste e Sudeste, bem como a Articulação dos Povos In-
dígenas da Região Sul (Arpins ul) para os índios do Sul do país e a Articu-
lação dos Povos Indíge nas do Panta nal (Arpinpan) p ara os índios da re -
gião pantaneira. T odas essas associações se uniram em 2005 p ara formar
a Attic ulação dos Povos Indíge nas do Brasil (Apib), que representa fede-
ra tivamente a maio r entidade indígena, uma espécie de UNJ da a tua lida -
de. Assim, fechou-se o ciclo do movime nto indígena iniciado e m 1980.
A Apib te m se destacado ultimamente pelas fortes c ríticas que vem
faze ndo ao governo fed e ral e sua guinada de d esconside ração explícita
das dem a ndas indíge nas pelo refo1talecime nto da Funai (algo que até
2005 cons ideravam desnecessário , seguindo o discurso das ONGS de que
a a uto nomia indígen a prescindia da fo rça do papel do ó rgão indigenista)
e pela preservação dos direitos indíge n as conquistados na Constituição
Federal, por m e io da Conven ção 169/ oiT e pe la tradição ind ige nista ro n-
doniana. O Decreto 303, lavrado pela Advogacia-Geral da União , p e lo
qual reconhece e a firma a validade das 19 ressalvas exaradas p e lo sTF
e m súmula de 19 d e ma rço de 2009 - e ntre e las aquelas que p e rmite m
aos gove rnos e aos milita res pe n etrare m te rras indígen as sem consulta r
os índios ou a Funai , e aquelas que limitam as possibilidades e modi-
fi cam as no rmas de demarcação de te rras indígenas - , pareceu a todas
as associações indígenas, aos indigenistas da Funai e aos a ntropólogos
que mantiveram o senso histórico do ind ige nismo rondoniano com o um
imenso retrocesso político, algo impossível de ser coadunado com um
govern o de cunh o esquerdista e com clamores favoráveis aos índios. Eis
por que, n este livro, e nte nde -se que a história corre por linhas tortas
e que o preço da luta pe la sobrevivê n cia dos povos indíge nas e por
276 0 S IN D I O S E O B R A S 1 1.

s ua ascensão p a ra a a uto no mia p o lítico-c ultural é a luc ide z inte lectua l,


a recusa ao ilus io nis m o salvacio nista e ao volunta rism o a ntiesta tal e a
vigilâ nc ia sobre os inte resses econô micos .

O FENÔ MENO JURUNA E OUTRAS LIDERANÇAS INDÍGENAS

A autoafirmação d e uma n ova a utocon sciê n c ia ind ígen a - d a qua l o


m ovime nto indígen a e m to das as s uas ramificações é a re presentação
coletiva - te m no índio Xava nte Má rio Juruna (1942-2002) se u s ímbo lo
individual m ais expressivo e m a is altivo, qu e com o te mpo vai se to r-
n ando uma ve rdad e ira le nda, com o num p oem a de Gonçalves Dias .
Má rio Juruna é um índio Xavante, n ascido numa a lde ia d o cerrado
d e Mato G ros so, zo n a ecoló gica pró pria d a cultura x ava nte, que h o je
faz p a rte da T. I. Campináp o lis . Po r ocasião d o contato com os bran-
cos, o u waruzu, Juruna e ra um m e nino de 7 o u 8 a n os, mas só aos 13
a n os d e idad e ( uns fala m até os 20 a n os) conheceu o ho m e m branco .
O se u p ovo, d este mido e a utô no m o, autod e no minad o A 'uwe uptabi, se
m antivera irredutível à a p roximação d a socied ad e bras ile ira a té o final
d a década d e 1940, qu a ndo uma fre nte d e a tração d o sP1 fe z o prime iro
contato pacífico com um d os g rupos Xava nte . Antes, e les recusavam
qua lque r te ntati va d e a prox imação e a tacavam qua lqu e r e xpedi ção que
e ntrasse em seu te rritó rio . Inclus ive h aviam m assacrado uma fre nte de
atração d o SPI, sob o com a ndo d o ten e nte Pime nte l Barbosa, na qual,
e ntre to dos os p a rti cipa ntes, a p e n as um não fo ra m o rto . O espírito d o
SPI d e "m o rre r se preciso fo r , m ata r nunca" func io n ava . A "p acificação"
dos Xavante se deu num espírito de resp e itabilidade, pelo m e nos n os
prime iros an os, vis to que seu vasto territó rio n a região do Aragu a ia
com os rio das Mo rtes e até o rio Batovi era um p o nto e m b ran co para
o govern o b rasile iro . Só a p a rtir d os prime iros anos do contato, com a
conseque nte con centração d e g rupos e facções Xava nte e m alde ias p ró -
ximas à missão salesia na o u aos p ostos d o SPI, é qu e inicio u-se a corrida
p e las te rras antes controla das p e los Xava nte . Dife re nte m e nte de o utras
s ituações d e conta to, a p o pulação xava nte não caiu e m g rande n ú m ero,
te ndo baixad o d e seu p ata m a r origina l de 2 mil p essoas em 1946 para
1.750 em 1958 . A patt ir d aí, com eçara m a c re scer , até aque les qu e se
mudara m a muito c usto, p o r conflitos inte rnos, d o se u te rritó rio p ara
te r ras m a is a fastadas, com o o g rupo q u e te rmin o u chegando junto aos
índ ios Baka iri. Fica claro qu e o pro p ósito glo b al dessa pacificação foi
abrir tod a uma região p ara a e ntrada d e n ovos faze n deiros e esp ecula -
Ü FU T U RO O O S fN O I O S 277

dores de terra vindos principalmente de Goiás, do Paraná e Rio Gra nde


do Sul. Em poucos a nos, formavam-se vilare jos e c idades e m luga res
que os Xavante tinham como pa1te de seu s te rritó rios.
Entre parênteses, vale a pena re latar o caso mais dramático da per-
da te rrito rial e da retomada de uma te rra indíge na xavante. Em 1966,
n os últimos m eses do sr,, uma e mpresa paulista se fize ra adquirente de
uma área de te rras de m ais de 1 milhão de h ectares n a região ao n o rte
do rio das Mo1tes, lá o nde o cerrado vira flo resta, por isso c h amada de
"ntarãiwatsede', o u "m ata densa", e o nde havia uma aldeia xavante.
Esse grupo, composto de 130 pessoas, foi forçado a abandonar s ua
alde ia e ser evacuado de avião para outra terra xava nte, numa prova
muito explícita , com a conivência do ó rgão indigenista, da usurpação
de te rras indígenas. Os Xavante de Marãiwatsede, com o fi caram conhe -
c idos, sofreram de ime diato uma epidemia de sarampo que ceifou e m
p o u cas semanas 60 de seus membros. Depois, passaram a v iver mudan-
do de te mpos e m tempos pelas diversas terras xavantes que iam se con-
solida ndo e sendo demarcadas, sempre n o desejo de voltare m um dia à
te rra n atal. Como de fato o fizeram , em 2005, com a ajuda da Funai (n a
época, por mim dirigida). A T. I. Marãiwatsede, demarcada em 2001 com
cerca de 165 mil h ecta res, foi tom ada por invasores logo após ter sido
re integrada à Funai p e la e mpresa ita lia na Agip, que a havia comprado
do especulador inicial. Os Xavante e ntraram e m sua te rra demarcada e
h omologada sob uma d ecisão do sTF e ficaram confinados a uma p e -
que na área de uns 25 mil h ectares, esp e rando pela saída dos invasores .
Afinal , depois de muito vaivém e g incan a judicial , fi cou efetiva mente
garantida a s ua posse e m 2010 . Porém, a inda hoje continua a g incan a de
que m vai e fe tivam e nte faze r a retirada dos invasores! Fech a parê nteses .
À me dida que os Xava nte fora m se recupe rando do choque cultura l e
biológico que se dá num confro nto de c ulturas dessa na tureza, começaram
a sentir-se cercados p e las fazendas inc ipie ntes, as estradas e a formação de
povoados e c idades . Sem se sentir derrotados, pelo contrá rio, já que os te r-
m os subente ndidos do aco rdo d e pacificação estipulavam ajuda mate rial
em fo rma de doações de bens manufaturados, os Xavante ava nçaram n as
demandas pela garantia de suas terras, exigindo s ua demarcação o fic ia l.
Mário Juruna surge, e ntão, com sua bagagem cultural e essa exp e -
riê nc ia étnica de confrontação de seu povo, alé m d e sua exp e riê n c ia
p essoal de ter saído da alde ia p ara t rabalhar e m fazendas com o peão,
a perambular pelo país p a ra conhecê-lo, com uma garra e disposição
pró prias que logo o d istinguiram no me io indígena . Descobriu o grava-
dor e com ele desafiou as a uto ridades, para a satisfação de todos que
278 ÜS fNDIOS E O B RASIi.

s impa tizavam com a causa indíge na .3 Virou uma celebridade nacio nal,
"o índio d o gravado r", o ho m e m que diz as coisas na lata e n ão te m e as
a utoridades constituídas! O seu p asso m aio r se de u qua ndo o PDT , sob o
acon selham e nto do antropó logo Da rcy Ribeiro, acolhe u seu d esejo d e
candidatar-se a de putado fed e ral. Ele, e n tão, foi e leito com 31 mil vo-
to s p e lo ele ito rado flumin e nse, sobretudo da Ba ixada e da Zo na Oeste
d o Rio de J ane iro - não só d a Zo n a Sul , como se supõe às vezes . Su a
presen ça n o Con gresso Nacio na l teve uma re p e rc ussão e no rme n o país
e no mundo . Ele foi resp o nsável p e la c riação da Comissão Pe rma ne nte
d o Índio, uma das p o ucas comissões d a Câm ara Fed e ral , o que s ignifi-
cou a elevação do p roble ma ind ígen a ao reconhecime nto formal pelo
Pod e r Legislativo brasileiro . Po ré m , com eçou a pe rder prestígio qua ndo
se compromete u desastrosame nte num imbróglio d e dinhe iro durante a
campa nha d o candidato do PDS ã presidê ncia da Re pública. Seu reto rno
ao Congresso não teve o m esm o acolhime nto, po is, nas ele ições d e
1986, conseguiu po uco mais de 10 mil votos .
Durante o p e río do e m que esteve e m alta, Má rio Juruna foi visto
como um legítimo representante d o se u p ovo e, p o r exte nsão, d e to d os
os índios do Brasil. Era qu e rido e respe itad o por muita gente, como p ro-
vam a s recepções que teve d urante a campanha pe las e leições D iretas-Já
para pre sidê n cia da Re pública , e o nde que r que fosse fala r. Pa recia a
muitos uma voz q ue vinha do íntimo s incero e gen eroso d e s i mesm os,
uma voz n ecessária ao país . Para o utros, no e nta nto, Juruna configu-
rava uma o usadia ao poderes conservadores da nação e à su a e lite
a nti-indígena, um indesejado, um ou tsider, até um p e rigo, e eles n ão o
p e rdoavam po r te r alca nçado tal p osição .
De qua lq u e r fo rma, não foi exclus iva mente por e rro p essoal que ] uruna
pe rde u a posição que adquirira por conta própria . Ao passa r de líder de
um p ovo, o u d e ca usas conc retas, p a ra líde r gené rico d e um conjunto
h eterogên eo de p ovos (como pre te ndia), e d e causas m e n os ta ng íveis,
a ind ividualidad e de Juruna se sobressaiu a lém do que se pe rmite a um
líder ind ígena, como a um líder de uma causa, o u um líde r de um parti-
d o d e esque rda, por exemplo . Con comita nte m e nte, a causa indígen a co-
m eçou a sofre r um certo desgaste no con ceito da o pinião pública, tanto
pela fru stração por s ua n ão resolução (como ocorre n o caso da reforma
agrá ria) e, p o rta nto, pe lo cansaço, qua nto pe la pró pria campanha de
d esm oralização d e o utras lideranças indígenas e fe tuadas p e las ú ltimas
administrações d a Funa i, visando diminuir o impacto p o lítico d as re ivin-
d icações le gítimas dos índ ios, tra nsforma n do-as e m de m andas e pedi-
dos de favo recime nto pessoal. Nesse contexto a rd iloso, Juruna pe rde .
0 FU T U RO O O S fN O I O S 279

Em diversas capita is do país tê m s urgido n ovas lide ra n ças indígen as


públicas n o bo jo dos acontecime ntos dos fins da década d e 1970 até ago-
ra. Muitas são localizadas e se restringem às causas conc retas dos seus
povos. Diversas apa receram com tanta força pessoal que, n as lutas que
tra vara m contra as forças contrá rias, os la tifundiá rios, inte resses madei-
re iros e garimpeiros, acabara m sacrificando s uas próprias vidas. Ângelo
Cretã, caciqu e Kaingang de Ma ngue irinha, PR, Marçal Tupã-i, líde r Kaiowá
de Mato Grosso do Sul , Simão Bororo, do Meruri, MT, Mate u s e Alcides
Lopes, ambos Guajajara, do Maranhão, e o utros ma is , especia lme nte
e m Mato Grosso do Sul e n o No rdeste, foram assassinados por mo tivos
políticos e agora fazem patte do rol de he róis da causa indígen a. Ne-
nhum desses c rimes foi apurado até as últimas con sequê n cias, mas isso
n ão causa s urpresa h o je e m dia. Um caso extre mame nte dramá tico de
vio lê nc ia a índios, que teve la rga e continuada reperc ussão nacio nal e
inte rnacion al, foi a do índio Pataxó Galdino Jesus dos Santos, queimado
maldosamente em praça pública por jovens brasilienses de classe média.
Vá rios líde res indígenas participam ativamente da vida urbana que
escolheram para exercer suas atividades p essoais. Desde as e le ições de
1986, surgiram diversos candida turas indíge n as o riundas das c idades
de Manaus, Boa Vista, Rio Bra n co, Campo Gra nde, Cuiabá, Goiâ nia e
até Brasília, mas n e nhum conseguiu re p e tir o fe ito deJuruna. Os índios
Te re na , de Mato Grosso do Sul , que tê m grande experiê n cia de vida ur-
bana, pois vá rias das s uas alde ias se e ncontram nas p e rife rias das cida-
d es de Dourados, Aquidauana e outras me nore s, já ele ge ram ve re adores
e m diversas de s uas cidades , bem como os Po tig uara , da Paraíba, os
Sate ré-Mawé, Tikuna , Munduruku e Tukano , no Amazonas, os Xak riabá,
d e Minas Ge rais , e muitos o utros . Em 2008, seis pre fe itos e quase ce m
ve re adores indíge n as h avia m sido ele itos .
Muitos índios que vivem em c idades fazem-no tempora riamente
como parte do se u tempo de estudo escola r s upe rio r que se inic ia n os
programas d e e d u cação ministrados nas alde ias . Ma nife stam-se com o
porta-voze s dos se us re spectivos povos , m as a sua le gitimidade só pode
ser aufe rida por cada um dos seus povos, não p e lo nível de repercussão
que conquiste te mporaria mente nos m e ios de comunicação . Ao con-
trário , índios se m ne nhuma educ ação fo rmal ganham n otorie dade pe la
sua posição firme e m d e fe sa d e inte re sses concretos, m as lastre ados n o
apoio que o seu p ovo lh es confe re . Essa com b inação ocorre na pessoa
do c hefe Kayapó Raoni Metuktire , cujo p oder de influê nc ia h á muitos
a n os transce nde os limite s do s e u pov o e ganha com ando tanto sobre
os povos indíge nas vizinhos, como os Juruna e Panará, quanto agu e -
280 Ü S f NDI O S E O B R A SIi.

le s que aco rre m a Bras ília para part1c1pa r d e manife stações e o utros
eventos p o líticos . Sabe do r da a uto n o mia que cada p ovo indígena te m -
inclusive no seio d e seu p ovo, os Meb ê n gôkre, os Kaya p ó - , Raoni te nta
a proximar-se dos seus p a re ntes Kaya pó m ais ao leste e a o n o rte, com o
o s Me krã nho tire e os Xikrin , na p e rsp ectiva futura d e cria r uma n ação
Kayap ó, unindo tod as as suas á re as e m um único te rritó rio . Este també m
seria o sonho de o utros p ovos, como os Xava nte, os Nambiquara , os
Munduruku , os Timbira , os Tikuna e tc ., conqua nto as dificuldad es sejam
ime nsas e o utros passos se inte rpõem com o prio ritá rios .
Raoni Metuktire é o líde r indíge n a m a is resp e itado na atua lida de e o
te m sido h á muitos anos . Embora já passa ndo dos 80 a n os, sua fo rça p es-
soal é impo n e nte, esteja o nde estiver. Ele é convidado po r p e rson alida -
des e urope ia s , incluindo preside ntes e prínc ipes, p ara se apresentar e m
fó runs d e dire itos huma n os e d e fesa da Amazô nia, fala ndo sempre e m
su a pró pria língu a, a qua l é tra duzida p o r um a ux ilia r b ilíngue . Seu ma io r
su cesso p olítico foi a d em a rcação d as te rras do minad as pelos diversos
s ubgrupos Kayapó, n a décad a d e 1990, que con stitue m ho je o m a io r blo -
co contínuo d e te rras indígen as d o pa ís , ultrapa ssando os 130 mil km 2 d e
exten são, no coração do Brasil , banhadas pelo curso d o rio Xing u. Nessa
e mpre itada, que teve a colaboração real d e seu s pa trícios e da Funai,
Rao ni conto u com a a juda d o canto r ing lês Sting, que o levou pa ra um
p é riplo e urop e u e no rte -a me ricano com a fina lidade d e a nga ria r simpatia
e o bte r recursos p a ra ativar a dema rcação dessas terras . Em te mpos de
con strução de hidrelétricas p elos rios a ma zô nicos, Raoni tem se destaca-
do, p o r excelê nc ia e virtudes de líde r ind ígen a, como a vo z contrá ria à
UHE Be lo Monte, q ue lhe p a rece o esp ectro e m con cre to d o Armagedo n.
As sagas pessoais d e d iversos líde res ind ígen as que tê m se apresenta -
do no cen á rio nacio n al, para m e n c io na r apen as alguns (e corre r o sério
risco de o missão, vá lá!), com o Megaro n Tx uca rra m ãe, Danie l Cabixi ,
Ma rcos Te re na, Álvaro Tuka no, Ailto n Kre n a k , Aze le n e Kring, Almir
Naraya moga, J e remias Ts ibodowapre, Jurand ir Sirid iwê, Vilma r Gu a rani,
Sônia Bane, Escrawe n Som p ré, me recem uma a te nção esp ecial. Mas
te mos de inseri-las no movime nto indígen a e p rocura r compreendê -
las no que e las p o de m acrescentar p ara a con solidação de uma visão
p a n-indígen a que crie uma verdad e ira integração de inte resses e união
de po líticas é tnicas . É nece ssário n ão se p e rde r de vista a conc retude
d os inte resses, como a de m arcação das te rras, a assistê n cia mé dica, a
e ducação e os seu s funda m e ntos bic ulturais, a fim de que não ocorra m
as d is pe rsões ind ivid u a is e os re clam os po r favorecime ntos pessoais . É
certo que a exp e riê n c ia p o lítica dos índ ios n os ú ltimos a nos já gerou fru-
Ü FUTU R O DOS ÍNO J OS 281

to s p o sitivos, a p esar d o po uco te mpo . Mas não se p o de s upo r que esses


ganho s ve nham a ser p e rma ne ntes . A diversida de da s s ituações indíge -
n as e das suas necessidades pode m ser u sad as p e lo Estado, caso assim o
que ira , para estilhaçar o m ovime nto indíge n a, diluindo os re clamos e m
d esejos p essoais, fa vo recendo grupos e specíficos e me smo jo gando -os
uns contra os o utro s. Isso d e fato já vem acontecendo .
Se ria ingênuo ach a r que o m ovime nto indígena, n o contexto p o lítico
que é o Brasil, p od e ria deslanc h ar e existir p o r conta pró pria . Ele está
inse rido n o movime nto mais amplo da sociedade brasile ira , na luta pe la
a mpliação da de m ocracia p o lítica e social , até como um p a rceiro me n o r.
Os o utros seto res d a nossa socie d ad e que se ide ntificam com esses pro-
p ósitos têm o dever d e la deá-lo, compreende ndo-o melho r, dialogando
com e le d e to da s a s mane ira s p o ssíveis, no s níveis individual e cole tivo,
para aproximá -lo da complexidade e m que se d á a vida p o lítica brasile i-
ra . O m ovime nto indígena c rescerá à me dida que for a ume ntando a su a
a utocon sciê nc ia d a realidad e exterior e a í e n contra r seu s alia dos .

DESAFIO O U ACOMO DAÇÃO À EXPANSÃO CAPITALISTA

Os índio s , seus mo do s d e se r, sua s econ o mias e princ ipalme nte seu


controle sobre 13% d o te rritó rio nacio n a l, e es pecificame nte 23% d a
Amazônia , são um de safio à ex p a nsão do capital, e m fo rma de agro-
n egócio, hidre létricas, estradas, c idad es m ode rnas e, e m geral , ao d e -
senvolv ime nto ap a re nte m e nte ins uste ntável n a Ama zô nia . Até a década
d e 1990 , a Amazô nia e suas intricadas zo n as ecológicas, suas te rras
com p o u ca p rofundida de de nutrie ntes e su as c huvas to rre n ciais que
lavam as camadas fé rte is e ex p õem o solo de ba ixa fe1tilida de ao sol,
e ram um d esafi o à ag ricultura m od e rna , p e la incap acidad e d e fixação e
re p rodução d o se u capital. Abrir te rras p a ra plantar soja o u c riar gad o
n ão p are cia s uste ntável a mé dio pra zo; e m p o u cos a n os, o solo p e rdia a
fe1tilida de e e ndurecia . Entreta nto , com os e studos p rodu zidos p e los e n-
ge nhe iros agrô no mos da Embrapa , com o uso d esabrido d e agrotóxicos
e fe rtiliza ntes, com a concentração d e sem e ntes tra nsgênicas , o agrone -
gócio flo resceu , fo rma ndo uma classe d e p roprie tá rios abastad os , da ndo
a res até d e p ós-mode rnidade a luga re s que h avia po u cos anos p a rec ia m
irrec upe ráveis p ela devastação sofrida p o r ma de ire iros e garimpe iros .
Ainda não há estudos ap rofunda dos e conclus ivos a res pe ito d os limites
d e p rodutividade d as te rras a ma zô nicas , mas ex iste m fo ttes indícios n as
a n álise s socioló gicas e e conô micas, p a rc ia is que sejam , d e que a quilo
282 0 S fN D IO S E O 8 R A S 1 1.

que vem sendo aplicado na Amazônia em matéria de desenvolvimento


socia l, com base n o agronegócio não obtém uma sustentabilidade a
longo prazo que reproduza o capital aplicado e as condições sociais de
uma vida minimamente civilizada .4
O modelo econômico brasileiro aumentou seu nível de concentração
de capital em todos os setores, especialme nte na produção agrícola,
nos últimos cinquenta anos. As fazendas são ainda mais extensas na
Amazônia, quiçá como uma forma de compensação pela pouca quali-
dade do solo, quiçá como rese rva para especulação. Nos anos 1980, o
c h amado império Ludwig, que detinha mais de três milhões de hectares,
e ra o exemplo paradigmático do esforço de con centração do capita l na
Amazônia e, ao mesmo tempo, do seu fracasso .5 Dos tantos projetos que
incluíam o plantio de arroz, fábrica de celulose, exportação de madeira,
apenas a mineração de ca ulim produziu lucro. Isto é, a extração pura
e simples de minerais, aqui, como em toda a Amazônia, parece produ-
zir lucro. Enquanto isso, as fazendas de gado, as usinas de açúcar, os
plantios gigantescos de arroz, de café, de cacau, de mandioca e milho,
na maioria dos casos não empatavam o capital investido após dois ou
três anos. Po1tanto, só a custo de investimentos públicos a fundo per-
dido, através dos incentivos fiscais, o capitalismo conseguia instalar-se
na Amazônia. O que a fin a l prevalece, no e ntanto, parece ser uma forma
híbrida e perversa de capitalismo "satrapeador", se me é permitida a
expressão, onde os se us age ntes se suste ntam p e la contínua inge stão
d e re cursos públicos, para dominar, com sua força polític a, a massa dos
destituídos que constituem o povo, como se fossem os servos da gleba.
O capita lismo e a aplicação da ciência e da tecnologia modernas con-
qu istaram e dominam quase todo o m e io ambie nte do plane ta Te rra: das
planícies fé rte is da Europa aos de se rtos ame ricanos , a tundra canade nse,
as montanhas e os mares, e está chegando aos polos gelados. Na Amazô-
nia , nas florestas tropicais , seu modo de produção tem se esbarrado na
fragilidade e imbricação do siste ma eco lógico , que reje ita as técnicas d e
produção costume iras. Só a um custo soc ia l e e cológico muito alto , c uja
fatura a inda está por vir, é que e le se sustenta pela agric ultu ra e pela pe-
c uária. Na mineração, abundante e dispersa , o modo de produção que
lá se imp lantou , com técnicas variadas e ntre mode rnas e antiquadas, e
com a força de produção dive rsificada e ntre e mpre sas e trabalhadores
a utô nomos , consegue amplos retornos - sobretudo , porque está calçado
num baixíssimo custo de reprodução da mão de obra , em lugares ermos
e insalubre s , em condições irre gulare s e instáveis , e toda e la suje itada
como se fosse num pacto d e vida ou morte, que vem da so1te ou do azar.
0 FU T U RO O O S fN O I O S 283

Se lá existissem cidades, vida urbana o rga nizada, poderia haver garimpo


da forma que funciona atualmente? Por certo que não, pois aí os custos
aumentariam, a taxa de lucros diminuiria substancialmente, e só com
muita pressão é que se manteria o sistema. Exceção a empresas como a
Vale , que já nasceu com um patrimônio dado por Deus e pela bonança
privatista n acio nal. Portanto , m esmo a mineração, que ta ntos lucros traz
aos seus investidores , se fosse para desenvolver a região, teria os seus
problemas para sustentar uma formação social capitalista n a Amazônia.
Postas essas constatações e a veiculação de uma hipótese a inda não
comprovada, n ão devemos esperar que a mineração e mesmo a ag ri-
cultura e a pecuária deixem a Amazônia , e que os capitais que as mo-
vimentam re flu am. O fato é que, ao contrário, nos últimos 15 anos o
desenvolvimento da Amazônia passa por um surto seme lha nte ao que
ocorre u n o fin a l da década de 1960, quando os militares investiram na
construção da Transamazônica (e da Perimetral Norte, quem se lem-
bra?), rasgaram-na para a entrada de lav radores sem-te rra, garimpeiros e
fazendeiros de gado, e deixaram-na exposta como uma fe rida n acio na l.
Hoje, e ntretanto, temos fazendas de gado ime n sas, campos de soja e
algodão a perder de vista, estradas de terra ligando as fazendas às pés-
simas rodovias federa is, e as c idades se replicando ao serviço dos novos
senho res, que se a rvoram próceres de uma n ova classe de mandatários.
O custo de tudo fi ca evide nte ao visita nte na s ua aproximação a qual-
que r cidade a mazônica, de Mato Grosso ao Pará e Rondônia : exte nsas
á reas devastadas sustentando uma ínfima d e nsidade de gado, com umas
tristes e isoladas castanh e iras secando por despolinização, e os vazios e
a solidão que as s ubstituem.
O ganho dos fazendeiros, os a ltos preços de produtos do campo que
viram conmwdities n o m e rcado inte rnacional, o p o de r consolidado dos
fazendeiros , as c idades pequenas influe n cia ndo as cidades g randes , tudo
faz crer que a Ama zônia fo i conquistada, dominada pelo capitalismo . Da
urbanidade con fo rtável é que vêm as c ríticas, e m fo rma de acusações
por devastação e pelo p e rigo de alta contribuição ao aqu ecime nto glo -
bal. O governo, a cada ano, no se u seto r ambie nta lista , luta pela dimi-
nuição do índice de desmatamento e queimada. Mas e las continuam e
se inte nsificam d e acordo com o p reço das conmwdities, do afã dos chi-
n eses po r prote ína vegetal e animal. Do o utro lado estão os índios, cujo
modo de produção, caracte rizado pelo uso coletivo da te rra e s uas ri-
quezas, aplicado tecnicamente por um sistema de rodíz io e espaçamen-
to de lavouras, e m otivado p o r princípios de autossustentação, e não
pelo lucro, serve m d e um contraponto conceituai. Não mais do que isso .
284 Os INDIOS E O B RASIi.

Suas te rras são cobiçadas. Para isso, os faze nde iros vão m o ntando n ovas
estratégias de a prox imação, pela cooptação dos seu s líde res à vida na
c idade, pela inte rven ção n as políticas públicas e pela ativ idade política
n o Congresso Nacio nal. Q uanto m e n o r a força do ó rgão indige nista
m e lho r para os fazendeiros, tal com o ocorre u no século XIX e na p o lítica
indigenista disposta pelo governo central aos senho res das provín cias.

O PENSAMENTO AMBIENTALISTA

O que h á de mais ambicioso nesse pensamento é a hipó tese de que


a evolu ção biológica e, p o r exte nsão, a humana se dá pela rique za e
variab ilidade das formas existe ntes e seu p o te nc ia l de adaptação aos
nichos ecológicos em vigo r e aos que estivere m em muda n ça. O que
inte ressaria aqui não seria o índice de especialização, mas o potencial
de generalização. Em re lação às p opulações humanas e s uas c ulturas,
o que vale ria seria a sua capac idade de diversificação. O paradigma da
evolução deixaria de ser o tradicio n al m amífero, com o o cavalo, tão
usado n as escolas, o u a barata - esta una nimidade de sucesso evolu-
tivo - , para serem as plantas, suas miríades de espécies preenc h e ndo
nichos específicos o u mesmo indife re nc iadas, num aparente excesso de
formas, um barroquismo da nature za , sempre no aleita quanto às modi-
fi cações n os se us ecossiste m as .6
É sobre esse p e nsamento que se assenta m as bases cie ntíficas do m o -
vime nto ecologista o u ambie ntalista . É claro que o nde ele te m ma is fo rça
política , na Alem a nha, Ho landa e países vizinhos, é precisam e nte onde
h á uma concentração da especia lização huma na - e e le su rge e cresce
pela dialética do p rocesso socia l. A s ua s impatia p e los inte resses de mi-
n o rias e m países e m desenvolvime nto, os índios por exemplo, é m otiva-
da tanto por esse d esejo de dive rsificação human a da qual sentem falta
em seus p aíses, quanto por razões éticas o u de p o líticas de foro inte rno .
No Brasil , o movime nto a mbie nta lista te m s uas razões de política
inte rna , isto é, seu inte resse e m c ria r uma ideologia para a classe m é dia.
Su a existênc ia política surge, parcialme nte, com o reflexo da insegura n ça
do potencial inte lectua l n ativo . Para estabelecer raízes o rgâ nicas n o p aís,
ele te rá de e nfre ntar os problem as sociais e cultura is qu e configu ram os
te mpos atuais . O seu teste princ ipa l será o e quac io n ame nto do d esen-
volvime nto integrado da Amazônia e das regiões brasileiras de p obreza
e ndêmica, o nde diversos modelos aplicados não têm dado certo . Não é
ta refa p ara um só partido, m as para uma geração, assim é que d eve ser
e nte ndido esse movimento.
0 FU T U RO O O S fN O I O S 285

O s índio s não participa m conscie nte m e nte d o m ovime nto a mbie n-


talista , mas n ão são ap e nas um d os seus a lvos o u o bjeti vos. Na verda -
d e, con stituem um d os seus a licerces fundam e ntais, exemplos vivos d e
compa ração do po te ncial gen e ralista huma n o, exp e riê n cias comprova-
das d e c ulturas que se formam e m equilíbrio com o m eio ambie nte .
Sua p a rceria com o desenvolvime nto inte grado da Amazô nia se base ia
e m d o is m otivos : o prime iro é como estabilizad o r human o d o comple -
xo ecológico tro pical, seja n a função d e re n ovad o r de flo ra e fauna,
seja como gua rdião p atrimo nial , com o guarda fl o restal , po r assim di-
ze r. Nesse sentido, sab e m os q ue muitas á reas da Ama zô nia n ão foram
d estruídas nesses últimos a nos po rque lá esb arraram com os índios . O
segundo é como po te ncializa do r do surgime nto de n ovas formas sociais
d e v ivên cia na Ama zô nia . Há p elo m e n o s 500 a n o s , a a da ptação d a ci-
vilização e u rop eia nos tró picos se p a uto u po r formas socia is indígen as,
através das técnica s d e pro dução, de socia lização d a p rodução, da capa -
cidade de e quilibra r a p rodução com a satisfa ção social e tc . As cente n as
d e p e que n as comunidad es amazô nicas a utossufic ie ntes po r tanto te m-
p o, compo stas e m sua ma io ria p o r d e scende ntes de índios, Ta puio s e
n egros libe rtos, são resultad o desse po te ncial indígen a, e o seu n ível d e
satisfa ção social seria mais completo se essas comunidad es fosse m com-
preendidas como um mo d elo viável e n ão resquícios d e e ras pa ssadas .
No m ovime nto ambie ntalista existe um pe nsa m e nto e m construção
e tam bé m uma m e ntalidade , isto é , um se ntime nto d e q u e são ce rtos e
corretos os princípios ecologistas, re stando sabe r com o de senvolvê -los
e a plicá-los na realidad e conc reta . A me ntalida de p o de te r fo rmas d e
m odismo , mas e la n ão é ne m p o de ser te mpo rária . Os índios ta mbé m
e stão inse ridos n essa me ntalidade, mas é n ece ssário ide ntificar me lho r
qual é o u se ria a su a p osição m ais ad eq ua da . Essa é uma ta refa para
os próximos a nos . De qualq ue r m od o , inte ressa-nos sabe r q ue e les são
p e rma ne ntes ta mbém n esse movime nto .

O PENSAMENTO NA CIO NALISTA

Na d efesa dos índ ios , somam-se brasile iros e estra n geiros, ind iscrimi-
n ada me n te, re c rutados po r inte re sse s e id ea is e m comum. Não é, p o r-
ta nto , e m op osição a estra ngeiros que se d eve ide ntificar um p e nsame n-
to nacio n alista pró -ind ígen a . Esse p e nsam e nto se refe re à constituição
do se ntime nto da nacio n alidade, isto é, ao conjunto d e ide ias, ide ais ,
preco n ce itos sube nte ndidos e a nse ios q u e são compa tt ilhados po r uma
286 Os INDIOS E O B RASIi.

grande ma io ria da população, que se ide ntifica e ntre si por esse senti-
mento. Esse conjunto não é n ecessariame nte ho mogêneo, tampo u co coe-
rente, m as congrega atitudes e ideais opostos e ntre si. Po r isso mesmo,
o sentimento da nacionalidade não é uma realidade estática, mas um
campo de lutas , n ão uma consensua lidade. O que se e nte ndia de uma
mane ira n o passado , h o je se e nte nde de o utra. Não h á propriamente
uma evolu ção progressiva dos fatores positivos desse sentime nto, e sim
uma construção e adaptação por fases e momentos históricos.
A integração sentime nta l e conce ituai do índio na nac io na lidade bra-
s ile ira , como vimos n os capítulos a nte rio res, é um caso exempla r. Pri-
meiro, apa receu como pa1te da nação através dos trabalhos intelectuais
e políticos de José Bonifácio e da época da Regência. Fo i contestado e
defendido romanticamente em meados do século XIX e incorporado mo-
dernamente pelos positivistas. Continua uma questão de disputa a s ua
perenidade ou extinção, possibilidades que são traduzidas em te rmos de
viabilidade ou inviabilidade , autodete rminação o u assimilação, ava n ço
o u a traso sociais e tc. Mas, n o cômputo geral, p odemos dizer que a ide ia
de o índio ser brasileiro , fazer parte e te r direitos sobre as fra nquias de-
mocráticas que devem fo rmar a n ação-Estado é um aspecto indiscutível
do sentimento atual de brasilidade. Há exceções, mas podemos afirma r
que o Brasil como um todo n ão mais se e nvergo nha de ter índios na s ua
a utocon ceituação, de ser parte índio , e nfim. Esse é um avanço real e o
verdade iro sentido da integração do índio na nação maior. No e ntanto,
a sobrevivên cia do índio não é ainda uma questão totalme nte d efinida.
Há o preconceito e a atitude contrá rios, motivados fundamentalmente
por interesses econômicos imediato, mas também por sentime ntos equ i-
vocados e e litistas sobre o que é o povo b rasile iro. Esses são os inimi-
gos dos índios, contra quem se peleja e m todas essas fre ntes de luta .

OS PERCALÇOS DA SOBREVIVÊNCIA

A nova Constituição brasileira definiu o índio como parte essen c ia l


da n ação brasileira , c idadão com direitos plenos , povos específicos com
dire itos legitimados pe la sua historic idade, coletividades com fo rmas
próprias d e conduta socia l e cultural. O Estado lhes ga rante sua proteção
contra os seus inimigos, os usu rpadores de te r ras, os esbulhadores de
s uas riquezas , as doenças e o preconceito a inda existe nte . Garantir-lhes-á,
e ntão, formalme nte, as suas condições básicas de sobrevivência, abrindo
o h o rizonte para a sua p e rmanência pe re ne na nação e n a humanidade .
0 FU T U RO O O S fN O I O S 293

e econ ô micas deverão dar lu ga r à urgê nc ia de se p e nsar o futuro com


mais resp o nsabilidade e sere nidade - e n e le os índios deverão esta r
incluídos. N ão mais com o símbo los do retrógrado, mas da fo rça do
resistente, do e quilíbrio c ultural e ecológico, imprescindível a um país
estável e de bases mo ra is s upe rio res.
Podem os pensar na p ossibilidade de da qui a 100 a nos te rmos e ntre
n ós, mante rmos e ntre n ós, uma verdadeira Torre de Babel, com m a is
de 180 língu as específicas sendo faladas, um conjunto va riável de 200 e
tantas e tnias v ivendo formas c ulturais diferentes , n ão necessa ria me nte
igua is às de hoje, mas n e las baseadas. Podem os imagina r que a inda ha -
verá flo restas e rios indevassados pela ação huma n a, o nde a inda se pos-
sa a ndar nu como se quiser, o nde "se possa caçar pela manhã , pescar
ao me io-dia , cuida r do gado ao e ntardecer e filosofa r depois do jantar",
e compartilha r de uma vida solidá ria e generosa. To dos nós.

NOTAS
1
Como exemplo ela d écada de 1980, basta ver que entre os 170 Xikrin cio Bacajá , no s ul cio Pará,
ho uve mais ele 310 casos ele malária no espaço ele oito meses, em 1984, com uma dezena de mortos
em decorrê ncia. Ver relatório de João Pa ulo Bote Uw ele Magalhães, "A sa úde cios índios Xikrin
cio Bacajá", apresentad o à Compan hia Va le cio Rio Doce e à Funai, em janeiro de 1985. Sobre o
aumento ela incidência ela malária e o s urgimento ele novas cepas, ver reportagem no Jornal do
Brasil, 5 jul. 1987. A malária continua a ceifar muitas vidas indígenas na Amazônia , em zonas ele
garimpas e até nas cidades amazônicas. Já no vale cio Javari, onde há d iversos povos indígenas
ele contato relativa mente recente, as doenças principais são a he patite crôn ica, cio tipo B e Delta,
alé m ele malária e tuberculose. Os Xavante ainda sofrem ele um altíssimo nível ele mortalidade
infa ntil e os G uara ni tê m um dos mais altos índices ele assassinatos, cerca ele 100 por 100 mil.
No docu mento "A UNI e sua orga nização", ele 1985, a coordenação geral ela entidade t raça os
fu ndamentos ela s ua ação política e relata um histórico da s ua formação.
3 Sobre a vicia pública deJuruna até 1982, ver Assis Hoffman n, Ogravadordojunma, Porto Alegre,
Global, 1982.
4 Sob o aspecto global cio desenvolvimento ela Amazônia e os custos ambientais, ver os diversos
estudos contidos em Eneas Salati et ai., Amazônia, desenvolvimento, integração e ecologia, op.
cit.; Emílio Mora n (ecl .), The Dilemma of Amazon Development, Boulcler, Co., Westview Press,
1983; e V. H. Sutlive et alli Ceeis.), Where have ai/ thejlowers gone? Deforestation in the Third
World, Williamsburg, VA, College o f William anel Mary Press, 1981.
5 Lúcio Flávio Pinto, Jari: toda a verdade sobre o Projeto de Ludwig, Rio de Janeiro , Marco Zero, 1986.
6 A ide ia ele pensar o modelo elas plantas para comparar com a d iversificaç.'\o elas cultu ras h umanas
foi motivada pela leitura do livro de A. Cronquist, The Evolution and Classification of Flowering
Plants, Lonclon, Thomas Nelson anel Sons, 1968.
ANEXO

Povos Indígenas, suas localizações, língua/fa mília linguística e população


Povo lndí ena Fam íl 1a lin íst1ca &!i!fil&
Alkanã Alkaná 320
2 Aikewara (Suruí) Tupi-guarani 350
3 Akuntsu Tupari 5
4 Amanayé Tupi-guarani 142
5 Amondawa Uru-eu-wau-wau RO Tupi-guarani 115
6 Anacé CE Português 1.230
7 Anambé PA Tupi-guarani 139
8 Apalaí AP, PA Karib 420
9 Ap1aká MT,PA TuJ)1-guaran1 1.200
10 Apinayé TO Jê 1.940
11 Apurinã AM, RO, MT Aruak 8.050
12 Aranã MG Português 370
13 Arapaso AM Tukano 576
14 Arapiuns PA Português 2.200
15 Arara PA Karib 470
16 Arara da Volta Grande PA Português 115
17 Arara do Rio Amônia AC Português 284
18 Arara do Rio Branco MT Português 220
19 Arara Shawãdawa AC Pano 342
20 Araweté PA Tupi-guarani 412
21 Arikapu RO Jabuti 35
22 Aruá RO Tupi-mondé 111
23 Ashaninka AC Aruak 1.027
24 Asurini do Tocantins PA Tupi-guarani 482
25 Asurini do X1ngu PA Tupi-guarani 160
26 Atikum BA, PE Português 5.210
27 Avá-Canoe1ro GO,TO Tupi-guarani 19
28 Aweti MT Tupi-aweti 198
29 Baka1r1 MT Karib 927
30 Banawá AM Arawá 163
31 Ban1wa AM Aruak 6.000
32 Bará AM Tukano 22
33 Barasana AM Tukano 42
34 Baré AM Tupi-guarani 11.380
35 Borari PA Português 350
36 Bororo MT lê-bororo 1.600
37 Canela-81)anyekra MA Jê-t1mb1ra 686
38 Canela-Ramkokamekra MA Jê-timbira 2.132
39 Chamacoco MS Samuko 50
40 Charrua RS Português 41
41 Ch1qu1tano MT Ch1qu1to 753
296 Os f N D I OS E o 8 R AS 1 1.

42 Cintas-Largas MT,RO Tupi-mondé 1.620


43 Coripaco AM Aruak 1.378
44 Deni (Jamamadi) AM Arawá 1.280
45 Desana AM Tukano 2306
46 Djeoromitxi RO Jabuti 200
47 Dow AM Maku 120
48 Enawenê-Nawê MT Aruka 582
49 Fuln1ô PE Ya-tê 4.587
50 Galibi do Oiapoque AP Karib 70
51 Gahb1-Marworno AP Creoulo 2380
52 Gavião-Parkatejê-Kyikateje, Akr ãtikate jê PA Jê-timbira 810
53 Gav1ão-Pykob jê MA Jê-t1mb1ra 660
54 Guajá MA Tupi-guarani 380
55 GuaJaJara (Tenetehara MA Tupi-guarani 24.600
56 Guarani (Kaiowá, Mbyá, Nandeva) MS, PA,TO, Tupi-guarani 53.000
ES, RJ, SP, PA,
se, RS
57 Guató MT Guató 382
58 Hixkaryana PA,AM Karik 980
59 Hupdá AM Maku 250
60 lkolen (Gavião de Rondônia) RO Tupi-mondé 550
61 lk11eng MT Karib 489
62 lngarikó RR Karib 1.310
63 lrantxe (Manok1) MT lrantxe 420
64 Jamamadi AM Arawá 934
65 Jarawara AM Arawá 238
66 Javaé TO, GO Jê-karajá 1.480
67 Jempapo-Kan1ndé CE Portugiês 310
68 Jeripancó AL Portugiês 2.010
69 J1ahu1 RO Tupi-guarani 110
70 Juma RO Tupi-guarani 5
71 (Urubu-)Kaapor MA,PA Tupi-guarani 990
72 Kadiwéu MT Guaicuru 1.520
73 Ka1mbé BA Portugiês 824
74 Kaingang SP, RS, PR, se Jê-kaingang 37.900
75 Ka1xana AM Karib 600
76 Kalabaça CE Portugiês 200
77 Kalankó AL Portugiês 370
78 Kalapalo MT Karib 395
79 Kamayurá MT Tupi-guarani 490
80 Kambeba AM Tupi-guarani 800
81 Kamb1wá PE Portugiês 3.000
82 Kanamari AM Katukina 3300
83 Kanmdé CE Portugiês 720
84 Kanoê RO Kanoé 168
85 Kantaruré BA Portugiês 350
86 Kapinawá PE Portugiês 3.800
87 Karajá GO...MIJ'AJQ... Jê-karajá 3.250
88 Karapanã AM Tukano 66
89 Karapotó AL Portugiês 2.100
90 Karipuna (Rondônia) RO Tupi-guarani 36
ANEX O 297

91 Karipuna (Amapá) AP Creoulo 2.500


92 Kariri CE PortuÇJ.JêS 110
93 Kam1-Xokó AL PortuÇJ.JêS 2.400
94 Karitiana RO Arikén 370
95 Karo (Arara, Ramarama) RO Tup1-ramarama 230
96 Karuazu AL PortUÇJ.JêS 1010
97 Katuenayana Karib 14
98 Katukina (rio Biá) Katukina 480
99 Katukina (Pano) AC Pano 610
100 Kaxarari RO,AM Pano 480
101 Kax1nawá AC Pano 7.900
102 Kaxixó MG PortuÇJ.JêS 300
103 Kaxu ana PA Karib 380
104 Kayabi MT,PA Tupi-guarani 1.920
105 Kayapó (Mebêngôkre) PA, MT Jê-kayapó 8.800
106 Kinikinao MS Aruak 260
107 K1m1 BA PortuÇJ.JêS 2300
108 Kisêdjê (Suyá) MT Jê-kayapó 350
109 Ko1upanká AL PortuÇJ.JêS 1.300
110 Kokama AM Tupi-guarani 10.000
111 Korubo AM Pano 32
112 Kotiria (Wanana) AM Tukano 780
113 Krahô TO Jê-t1mb1ra 2.600
114 Krahô·Kanela TO PortUÇJ.JêS 110
115 Krenak GJAf. SP PortuÇJ.JêS 380
116 Kren jê MA Jê-timbira 120
117 Krepumkatt"fê MA Jê-t1mb1ra 40
118 Krikati MA Jê-timbira 980
119 Kubeo AM Tukano 420
120 Kuikuro MT Karib 580
121 KuJub1m RO Txapakura 64
122 Kulina AM Arawá 5.800
123 Kulina (Pano) AM Pano 140
124 Kuntanawa AC Pano 412
125 Kuruaya PA Tupi-munduruku 180
126 Kwazá RO Kwazá 40
127 Makuna AM Tukano 40
128 Makurap RO Tupari 500
129 Makux1 RR Karib 30.000
130 Manchineri AC Aruak 1000
131 Marubo AM Pano 1.840
132 Matipu MT Karib 154
133 Mans AM Pano 410
134 Matsés (Mayoruna) AM Pano 1.700
135 Maxakali MG Jê-maxakal1 1.700
136 Mehinaku MT Aruak 280
137 M1ÇJ.Jelelio RO M1guelelio 250
138 Miranha AM Bora 910
139 M1rit1-Tapuya AM Tukano 80
140 Munduruku AM, MT,PA Tupi-munduruku, português 13.100
141 Mura AM Tupi-mura, portuÇJ.JêS 16.000
A NEX O 299

193 Truká PE Português 3.100


194 Trumái MT Trumái 103
195 Tsohom-Dyapá AM Katuk1na 245
196 Tukano AM Tukano 6.650
197 Tumbalalá BA Português 1.160
198 Tunayana PA Karib 120
199 Tupari RO Tupari 538
200 Tupinambá BA Português 4.800
201 Tup1ni<1J1m ES Português 2.700
202 Turiwara PA Português 102
203 Tuxá BA, PE Português 2.200
204 Tuyuka AM Tukano 910
205 Umutma MT lê-bororo 465
206 Uru-eu-wau-wau RO Tupi-guarani 132
207 Wa1mir1-Atroar1 AM,RR Karib 1.600
208 Waiwai AP, PA, RR Karib 3.010
209 Wa1uru RO Tupari 230
210 Wapixana RR Aruak 8.240
211 Warekena AM Aruak 938
212 Wari RO Txapakura 2.890
213 Wassu AL Português 1.910
214 Waurá (Waujá) MT Aruak 440
215 Wayana AP,PA Karib 330
216 Wayãpi AP,PA Tupi-guarani 986
217 W1toto AM W1toto 40
218 Xakriabá MG Português 9.300
219 Xamb1oá TO lêbrajá 280
220 Xavante MT lê-central 16.200
221 Xerente TO lê-central 3.102
222 Xetá PR Português, tupi-guarani 60
223 Xokleng se lê-ka1ngang 1.920
224 Xokó SE Português 412
225 Xukuru PE Português 12.471
226 Xukuru-Kariri AL Português 3.010
227 Yammawá AC,AM Pano 1329
228 Yanomami RR,AM Yanomami 21.982
229 Yawanawá AC Pano 555
230 Yekuana RR Karib 493
231 YudJa (Juruna MT 361
232 Yuhupde AM 150
233 Zoé PA Tupi-guarani 276
234 Zoró RO Tupi-mondé 649
235 Zuruahã AM Arawá 140
SUGESTÕ ES BIBLIOGRÁFICAS

A literatu ra a resp e ito de p ovos indíge n as é b asta nte vasta, te ndo e m


vista os re la tos de curiosos, v ia ja ntes e missio n á rios, b e m como os re la -
tó rios oficiais . Ao lo n go deste livro, p arte dessa lite ratura fo i apresentad a
e seu conte údo, d iscutido e m n otas de fim de capítulo .
Nesta seção, d e ixo à disp osição tão some nte a lgumas s ugestões d e
le itura que e nfatiza m as grandes questões aqui ab o rdad as .

0 .ASTRES, Hé lê ne . Terra sem males. São Pa u lo: Brasiliense, 1979.


0 .ASTRES, Pie rre . A sociedade contra o Estado. Rio de Ja ne iro: Fra ncisco Alves, 1978.
CuNttA, Ma nuela Carne iro da (org.). História dos índios no Brasil. São Pau lo : Compa n hia das Letras/
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FERNANDES, Floresta n. A organ ização social dos índios Tupinambá. São Pau lo: Instituto Editorial
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GORDON, Cesar. Economia selvagem: ritua l e me rcadoria e ntre os índios Xikrin-Me b ê ngôkre . São
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RoDRJGUES, Aryon Da ll'lgna. Línguas brasileiras. São Pau lo: Loyola, 1986.
Ü AUTOR

Mércio Pereira Gomes é antropólogo, professor do programa de


pós-graduação em História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia
(HcTE) da UFRJ, ex-p residente da Funai e autor, pela Contexto , dos livros
Antropologia hiperdialética e Antropologia. Escreve nos blogs Cultura,
Antropologia, Índios ( merciogomes.com) e Blog do Mércio: Índios,
Antropologia , Cultura (www.merciogomes.blogspot.com) .

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