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GOMES Os Índios e o Brasil Passado Presente e Futuro PDF
GOMES Os Índios e o Brasil Passado Presente e Futuro PDF
GOMES Os Índios e o Brasil Passado Presente e Futuro PDF
081fTD108
EOBAA8IL
PASSADO, PRESENTE E FUTURO
Conselho Editorial
Ataliba Teixeira de Castilho
Carlos Eduardo Lins da Silva
José Luiz Fiorin
Magda Soares
Pedro Paulo Funari
Rosângela Doin de Almeida
Tania Regina de Luca
081fTD108
EOBM8IL
PASSADO, PRESENTE E FUTURO
cg
editora contexto
Copyright© 20 12 do Autor
Foto de capa
Adelino Mendes
Montagem de capa e diagramação
Gustavo S. Vilas Boas
Preparação de textos
Fernand a Guerriero Antu nes
Revisão
Lilian Aqu ino
Bibliografia.
JSBN 9 78-85-7244-742-3
ED IT O RA CONTEXTO
Diretor ed irorial: Jaime Pinsky
INTRODUÇAO. ........ 16
A amplitude da questão indígena .... ......... 21
Uma questão ideológica ......... ......... 23
Atualidade da questão indígena ..... . ......... 26
Nota metodológica e bibliográfica .. . ......... 28
vers a de b otequim, acre ditam que a c ultura brasile ira , e mbo ra com di-
fe re n ças re gio n a is, é tão forte, tão d ete rmina nte, tão h o m o ge n e iza do ra,
tão a ntro p ofágica (n o dize r d e Oswald d e Andrad e), que não d e ixa
esp aço para o flo rescime nto d e c ulturas dife re ntes que aqui apo ttam.
Basta re le mbrar o que foi fe ito com a s c ulturas d o s imigrantes desd e o
século xix! Dos espa nhó is, á rabes e ita lia no s praticame nte só re staram
as comidas prefe ridas, algumas expressões linguísticas e uma coisinha
aqui e o utra acolá . Os alem ães, u cra nianos e p olo neses, exceto p o r su as
bucólicas casas n o Pa ran á, e m Sa nta Cata rina e na se rra ga úcha, p o uco
se dife re nc ia m n o burburinho das c idades . Me smo o s ja po n eses , tão
asiá ticos, exceto pela con solidação de um certo estilo urba n o d e viver
n o b a irro da Libe rdad e, e m São Pa ulo, já misturam fe ijão com sushi
(prato que, aliá s , to do mundo apre nde u a come r e a precia r), e seus d es-
cende nte s estão se casa ndo com n ão nisse is , vivendo com o brasile iros
qua is que r , confo rme as cida des, os b a irros e as classes socia is a que
p e rte ncem. Core anos, chineses e novos imigra ntes da Am é rica do Sul e
da África estão a caminho de sere m triturado s p e la m ó ho m oge ne izad o -
ra d a c ultura bras ile ira. Assim p e nsamos muito s d e n ós, ap e sa r d as loas
que se tecem sobre as vittudes d o multicultura lismo brasile iro!
E, e ntão, será que os índios ague ntarão mante r su as c ulturas com
tanta distinção?
Conve nha m os que se rá difíc il. Mas, até ago ra , muitos as tê m ma ntido,
m esm o a p ós a nos d e conv ivên cia com segme ntos da sociedade b rasi-
le ira . Povos ind íge nas contatados p o r sertanistas do antigo Serviço de
Proteção aos Índios (sP1) o u p e la Fundação Nacio na l d o Índio ( Funa i), a
q ua l s ubstituiu a que le ó rgão e m 1967, h á ma is de 50, 60 e 70 a n os, ainda
m antêm su as c ultu ras com tod o v igo r. Exem plos deles são os Xing u a n os
e m ge ra l (Ka mayurá, Yawala piti, Wa urá e tc .), os Ka rajá, Kaya p ó, Xavan-
te, Urub u-Kaap o r, Can e la, Ta pirapé e tantos o utros que v ivem nas m a is
dife re ntes condições d e vida na flo resta , n o cer rado o u na b e ira d os rios .
Os Gu a rani, seja os subgrupos Mbyá, Ka iowá e Nandeva, que vêm d os
te mpos d as missões jesuíticas (séculos XVII e XVIII), vivem uma c ultura
com tradição rígida e pro fessam uma re ligião exem p la rme nte sing ula r,
m esm o a pós te re m a bsorvido ele me ntos d a re ligião cató lica .
Em contrapa rtida, h á povos indígenas q ue muda ram muito rapida -
m e nte, até em me nos te mpo . Apre n dera m o po rtu guês com ra pidez e
fluide z, ado ta ram e le m e ntos d a socied ad e b rasile ira e, e mbora a m a io ria
h abita ndo e m s uas te rras, muitos d os seus líd e res já vivem e m c idades,
se re lacio n am com segmentos p o líticos e c ultu ra is da sociedade b rasi-
le ira e se p osic io na m como re presenta ntes de seus p ovos para fins d e
P R E FÁ C I O 13
nhão d e com a ndo; c h e fes cerimo nia is, sacerdo tes, xam ãs e p ajés falam
com vo z de sabe do ria. O p o de r é no rmalme nte exe rc ido com base nas
tra dições, ainda que n ovos s ímbolos de p od e r, com o o dinhe iro obtido
p o r salários o u p ela venda d e p rodutos, o u a nova o rató ria de re lacio -
name nto com os d e m a is bras ile iros, inte rfiram e, à s veze s , p rovoque m
distúrbio s e d esaven ças inte rnas te rríveis . J á nas cida des, os in strume n-
tos e os símbo los d o p od e r são o utros . Salá rios fixos, empregos segu ros,
p a tticipação e m instituições d e prestígio valem m a is . Aqui , joven s com
discursos d e prote sto, com práticas d e disputas, com manejo d e lingua -
ge ns d e pre ssão vale m mais . Nas cida de s , os a nc iãos indíge nas, com
ra ras exceções, com o Raoni , o famoso cac iqu e Kayap ó, vêm p e rde ndo
prevalê n cia n a expressão das de mandas de seus p ovos . Po rém , quem é
jovem um dia fi ca velho, e certa m e nte a roda da vida virará .
São os jovens indíge n as, e m sua ma io ria, qu e vive m nas c ida des,
que h o je coma nda m o m ovime nto indígen a com forte teor p o lítico,
aos m o ldes d as o rga nizações p o líticas e não governam e n tais brasile i-
ras , com de m a ndas p o r recurso s , e mpregos e o p o rtunida d es educa-
cio nais, p o r n ovos e spaços n a socie d ad e bras il e ira , p o r ma is resp e ito
p essoal, p e la ga ra ntia de dire itos já re zados n a n ossa Con stituição e
p o r n ovos dire itos .
É um mundo novo, esse mundo indíge na, e e le não está de cabeça
para b a ixo, m esm o porque, na socie da de m a is a mpla , essas mudanças
vêm ocorre n do com igu al inte n sidade . É um mundo muito d ife re nte
daquele d o p assado, mesm o d o p assado recente .
Este livro, p o rta nto, t rata d o presente d os p ovos indígenas brasile iros,
p o ré m com revisão d e seu p assado ( de 1500 até os dias a tu ais) e com
vistas ao seu futuro . T e nta re i de m o n stra r isso no texto que se segue,
bem com o e m m a p as e fo tos ilustrativas .
No Anexo apresento um resumo de dad os gerais e con cre tos d e
qua ntos são os p ovos indígen as, s uas p o pulações e s uas línguas falad as .
NOTA DE ESCLARECIMENTO
fofocando . O site da Funai (www .funa i.gov .br) conté m ma pas d e todas
as te rras indíge nas plotados n o Google Ea rth e alguns sites esp ecia li-
zados, com o o d o Instituto Socioambie ntal (www.socioambie ntal.org),
tra z informações atualizad as sobre a ma io ria dos povos indígenas e as
n otíc ia s mais a tua is . As únic as falh as o u o que faze m falta n essa massa
d e informações são análises d os da dos e sínteses inte rpre tati vas d os
te mas . Eis p o r que livros a inda são n ecessários p a ra se compreende r o
mundo indígen a .
Po r s ua vez , a pe lo para a boa vontade d o le ito r e m duas instâ n cias .
A prime ira é p elo s n o m es do s p ovos indíge na s , que varia m muito n o
te mpo, nas grafias e em função d e a uto d e n ominações dife re ntes d os
n om es ma is conhecidos o u u sad os na lite ratura a ntropo lógica. A se-
gunda é p e los mo m e nto s e m que a lguns te ma s são tra zidos à discussão
re p etida m e nte, e m capítulos dife re nte s , p o ré m sempre e m conte xtos d e
explica ções distintos e com o intuito de escla recime ntos m ais amplos .
INTRODUÇÃO
PARANÁ
-..
SITUAÇÃO FUNDIÁRIA ---;,-J·,.__,___,-
• Declaradas, homologadas, regularizadas ..
e encaminhadas como reservas indígenas
• Em estudo e delimitadas
. ...,.,
.-- ;,,:-:..- , SANTACATARINA
.....
Fonte: IBGE . Dis po níve l em: <www.ib ge .gov.br/ ho me / pres ide ncial no ticias/ no ticia _ vis ualiza .php?id_
notic ia =2 194&id_pagina =l >. Acesso e m : 1° set. 201 2.
I NTRODUÇÀO 19
População indlgena com indicação das 15 etnias com maior número de indlgenas,
por localização do domicilio - Brasil - 2010
Número Total Nas terras indígenas Fora das terras indígenas
de ordem Nome da etnia POP.ulação Nome da etnia POP.Ulação Nome da etnia p ulação
1 Tikuna 46045 Tikuna 39349 Terena 9626
2 Guarani Kaiowá 43401 Guarani Kaiowá 35276 Baré 9016
3 Kaingang 37470 Kaingang 3181 4 Guarani Kaiowá 8125
4 Makuxi 28912 Makuxi 22568 Mura 7769
5 Terena 28845 Yanomami 20604 Guarani 6937
6 Tenetehara 24428 Tenetehara 19955 Tikuna 6696
7 Yanomami 21982 Terena 19219 Pataxó 6381
8 Potiguara 20554 Xavante 15953 Makuxi 6344
9 Xavante 19259 Potiguara 15240 Kokama 5976
10 Pataxó 13588 Sateré·Mawé 11060 Tupinambá 5715
11 Sateré-Mawé 13310 Munduruku 8845 Kaingang 5656
12 Munduruku 13103 Kayapó 8580 Potiguara 5314
13 Mura 12479 Wapixana 8133 Xukuru 4963
14 Xukuru 12471 Xakriabá 7760 Tenetehara 4473
15 Baré 11990 Xukuru 7508 Atikum 4273
Fonte: IBGE, Censo Demográfico 20l0.
mais falar havia muitos anos, com o os G uató, do alto rio Paragua i, os
Purubo rá, de Rondônia, que de rep e nte reapareceram , os mais velhos
ainda falando suas línguas, a exigir um lugar ao sol. H á também comu-
nidades de lavradores no sertão no rdestino e ribe irinhos da Am azônia,
a ntes vivendo com o "caboclos", que, p o r m otivos diversos, "ressurge m ",
ass ume m uma ide ntidade indíge na na base da convivê n cia comum e n a
le mbrança de te rem sido índios n o passado, de partilharem de rituais o u
h ábitos diferenciados dos seus vizinhos. São muitos esses casos e seu
ress urgime nto é explicado por uma teoria conhec ida com o "etnogên e -
se", o ri gina lme nte aplicada a casos de p opulações urbanas em c idades
africanas que recriam sua a ntiga identidade tribal. As adaptações dessa
teoria no Brasil se dão pela especific idade dos casos brasileiros. Nos
últimos 15 a n os s urgiram povos com o os Tupina mbá , no s ul da Bahia,
os Tumbala lá, no médio rio São Franc isco, os Tabajara, n a Paraíba, os
Anacé e ma is dez grupos diferentes n o Ceará, e a té os Apicuns e Borari,
n a fo z do rio T apajós. Por fim , há de se mencionar aque les povos indí-
genas que continua m a vive r como sempre vivera m , antes da c h egada
de p o rtugueses o u brasileiros , nas suas flo restas e rmas, muitas vezes
fug indo do contato com o utros índios e , acima de tudo, de brasile iros. A
e les dei o cognome de índios a utônomos, por v iverem autonomamente;
mas , na lite ra tura indige nista e a ntropo lógica a inda são c h a mados de
iso lados ou até de a rredios , o que cons iste numa a titude brasilo-cêntrica,
com p e rmissão da m á expre ssão .
Na a mplitude d e situações d e inte r-relacio name nto, que vai de sde os
índios ressu rgentes do Nordeste - quase todos fazendo parte de s iste-
mas socioecon ômicos regio n a is - até os índios autônomos, que perma-
n ece m à marge m ou nos inte rstícios da e xpansão econ ômica brasile ira,
os índios b rasile iros , o u os índios que h abitam o Brasil, luta m à su a
maneira por um luga r n a comunidade dos h omen s , sem te r ta n ta clareza
de qual seria esse luga r.
Ne m n ós , que, do outro lado (do m ais se guro), te ntamos compreen-
d e r o se ntido e a m arc h a da história da huma nidade, e specia lme nte do
Brasil , sabemos o que p oderá v ir a acontecer. Somente que o quadro
é tnico brasileiro n ão é te rminal, como s e postulava a ntes ( e muitos as-
sim o que riam). O delinea me nto de uma visão e d e uma e straté gia para
se e stabele ce r a continuidade e a p e rmanê ncia segura dos povos indíge -
n as no Bras il é complexo e a rdiloso - pois a questão indíge na se movi-
m e nta por forças adversas de gra nde poder de destruição-, suste ntado
por forças me nore s d e de fesa , influe n ciado por acontecime ntos ind ec i-
frá veis no te mpo ime d iato de uma decisão a s e r tomada. Por exe mplo , o
JN T RO D U Ç À O 21
com o d esen volvime nto do p a ís, qua se sempre e m relação inve rsa - eis
o se ntido da s ua tragédia. Q ue isso seja cons ide rado um fato n o rmal e
inexorável - eis a su a racio n alização, tão e ntranhada n o pe nsame nto
cie ntífico qu anto n o p o pula r. Para compreendê-la m e lho r, é preciso
recolocá-la na histó ria, seguir os seus p assos e os seus p e rcalços , o bse r-
var a s ua dinâmica e o s se us p o ntos d e e quilíbrio - nunca , p o ré m , d e
h armo nia e ntre as pa ttes - , e d aí re tira r as lições que ap o nte m o utras
possibilidad es n o presente e pa ra o futuro.
A questão indíge na se processa numa dime nsão histó rica mais a mpla
d o que aque la que d efine a histó ria bras ile ira o u me smo a a me ricana e m
geral. Ela é a re presentação conc re ta de um inte rcruzam e nto que infeliz-
m e nte se d á como e mbate e ntre d o is tipos de civilização, d o is grandes
comple x os d e p o ssibilidades d o ser humano .
Po r um lado, a civilização e uro pe ia, s ínte se e fulcro dispe rso r das
expe riê ncias c ulturais de 10 mil a nos d e existê ncia d e cente nas d e po -
vos que, de uma fo rma o u de o utra ( quase sempre pelas g u e rras e pe la
o pressão, ma s també m p elo diá lo go e p e la difu são d o conhecime nto),
pro duziram um comple xo dinâ mico que estava e m e xpansão incontida a
p a ttir d o século xv . Essa civilização n ão se restringe ao contine nte e uro-
pe u p ropriam e nte dito, m as e nglo ba ele me ntos de to do o Velho Mundo,
a Ásia , o O rie nte Mé dio e o Medite rrâ neo africano . Isso fic a muito cla ro
n ão so m e nte p o rque essa civilização é forma da p elo acervo d e tod os es-
ses recantos, m as ta mbém po rque o seu povo, o seu m ate ria l huma no, fe z
evoluir um sistem a imuno lógico com o um to do . Essa unidade b io lógica
foi funda m e ntal qua ndo d o confro nto com a civilização d o Novo Mundo .
Do o utro lad o, a civilização das Amé ricas, també m com um pe ríod o
de desenvolvime nto idê ntico, mas sem uma inte gração completa e ntre
os seus fulcros d e c riativida de e p od e r. Os gra ndes complexos c ulturais
m exican o, guate m alteco e andin o n ão se exp a ndiram alé m d e s uas fro n-
te iras, ne m inte rligaram os complexos inte rmediá rios, com o as c ulturas
do d eserto no rte-am e ricano e os cacicatos da Amé rica Central e d os
Andes sete ntrio na is .
No século xv as civili zações d os Astecas e d os Incas b uscavam exp an-
dir-se e a lca n ça r n ovas fro nte iras, m as sem grandes resultados . A te ntati-
va incaica d e pe ne tra r na Amazônia fo ra fru stra da e só a custo de muita
fo rça milita r é que assegura ram a lgumas p osições no pla na lto bolivia n o
e nas e n costas dos fo rma do res do grande rio . Na verdade, duze ntos o u
tre ze ntos a nos a ntes, essas civilizações h aviam alca n çad o m a io r exp an-
são e esple n dor. Os dema is p ovos v iviam em siste mas po líticos m ais
simples e de fe n d iam a su a liberdad e d e qualque r je ito .
I NTRODUÇÀO 23
faziam ou viam fazer acome tiam muito s segme ntos da civ ilização e uro-
p e ia o u , e specificame nte, da nação p o rtug uesa, ao de stroçar a lde ia s e
re duzir os índios à condição d e seres infe riores . N ão som e nte as fo rças
d a Ig reja Cató lica ( que, sob o p o nto de vista histó rico, fazia pa rte d o
pro je to p o rtuguê s , acatava-o e promovia -o à s ua ma ne ira), ma s a pró -
pria Coroa po rtuguesa - isto é, o re i e a buroc racia e statal e, até e m a l-
gumas ocas iões, os pró prios colo n os (sobre tudo de p o is que sentiram o
p e rigo já controlad o) - de mo n stro u um inte resse esp ecial pelos índios :
o lhavam-no s de uma forma sutil e mais resp e itosa d o que o faziam com
o s ne gro s , p o r exe mplo, reconhecendo naque le s alguma s qualidades
e alguns d ire itos . Certame nte, n ão é p o r o utro m otivo que o prime iro
conjunto de le is p o rtuguesas em re lação aos índ ios, contidas no Re gi-
m e nto d e 1548, d e To mé de Souza, recome nda explicita me nte que os
índio s d evam ser tratados com re spe ito e amistosidade .5 Vere mo s m a is
adia nte que a principal caracte rística d a p olítica indige nista da Coroa
é uma a titude d e m á-fé qua nto à p osição que o índio d everia te r n o
pro je to colo nial - se e scravo, se livre, conqua nto que fosse s údito . Essa
caracte rística atinge a Igre ja, secular e mo n ástica, o ra d e braços dados
com os inimigos dos índios, o ra de fe nde ndo -os sob p e rigo de desaca-
to, punição e expulsão, p ela d esob ediê n cia às o rde ns d a Coroa e pe la
re b e ldia aos p od e re s colo niais . O s colo nizad o res que ria m ga nhar seu
espaço econ ô mico e p o lítico, achava m os índios infe nsos ao trabalho
rotine iro e fo rçad o - p o rta nto, um e mpecilho à sua exp a n são - , m as
reconhecia m a sua existê nc ia livre . Redu ziam-nos à n atureza, à a nima -
lidade p a ra d estroçá-los quando precisavam de seus be ns p atrimo nia is;
d ep o is, criava m le is p a ra integrá -los .
Essa p e rnic iosa atitude adquire conto rnos ma is de lineáveis qua ndo
o Brasil se to rna inde p e nde nte e urge se criar uma ide ntidade pró pria
e da r à nação um proje to . José Bo nifácio d e Andrad e e Silva, o Pa tria r-
ca d a Inde p e ndê n cia, com seus "Apo nta m e ntos p a ra a Civilização d os
Índios Bá rbaros d o Brasil", escrito e m 1819 e a presen tado à Assemble ia
Con stituinte de 1823, ina u gura a preocupação brasile ira e m e ncontra r
o lugar ade qua do p a ra os índios, ta nto n o sentime nto nacio n a l quanto
n o pró prio te rritó rio . Liberais e conservad o res, senho res de te rra e a
p eque n a classe m édia que se fo rmava p assa ra m a trava r uma batalha d e
p alavras e conceitos que te rmino u se conc retiza ndo e m le is, precon cei-
tos e idealizações, a lg umas das qua is a inda ho je tê m re pe rc ussão .6 No
início, as discussões e as p rop ostas são centradas n o Instituto Histó rico e
Geográfico Brasile iro, funda do em 1838, a presentadas p o r literatos b ra -
sile iros e estra nge iros, com o o n aturalista ale mão Carl von Ma rtius, que
JN T RO D U Ç À O 25
aqui estivera e ntre 1817 e 1821, e que sugeriu, p ara a formação é tnica
do Bras il , a imagem de um grande rio, n o qual o índio representaria
um dos três afluentes, junto com o branco e o n egro. 7 Daí por diante,
essa imagem e suas va riações se mantêm n a consciência n acional de
uma forma inde lével, mesmo e ntre aque les que são declaradamente
a nti-indíge nas, como o historiado r Francisco Adolpho de Va rnhagen , o
c ientista H e rmann von Ihe ring e tantos mais que se juntam na c rença da
inviabilidade histórica do índio n o Brasil. Liberais, românticos, positivis-
tas, militares, a Igreja e a chamada sociedade c ivil , bem com o o próprio
Estado, em um momento o u o utro, já foram grandes defensores dos
interesses indígenas. Hoje amigos, aman hã inimigos.
Em comparação com países como a Argentina, a Venezuela, a Colômbia
e os Estados Unidos, o Brasil se apresenta va ntajosame nte com um pa-
drão de ideologia e de políticas indigenistas ambíg uo e instável, o que
demonstra a sua busca por um equacionamento da questão, que reflete
a sua própria busca de identidade. (A comparação com o utros países,
como Paraguai, Bo lívia, Peru, Equador, México etc. é mais difícil devido à
composição e densidade étnicas muito diversas do caso brasileiro.) Des-
de a independência, n ão há n o Brasil uma política de extermínio, assim
como ocorreu na Argentina e nos Estados Unidos. É ve rdade que em
a lg umas províncias brasileiras já se extinguiram grupos indígenas sim-
plesmente por decreto, como o fez o presidente da província do Ceará
na d écada d e 1860. Tam b ém é fato que a Lei d e Te rras d e 1850 fo i ma is
fundamental ne sse processo de se e sbulhar o índio de suas terras, ao não
registrá-las e, assim, inviabilizar o u destruir dezenas de alde ias por todo
o país. Por s ua vez, a própria le i indigenista do Impé rio , que crio u as Di-
retorias dos Índios e manda prote ge r as a ldeias, c ivilizar e catequizar os
índios , a partir de 1845, também falhou em garantir te rras aos índios que
já estavam no processo de integração n a n ação. Nesse sentido, o Brasil
é mais s util que a Argentina , país que , em 1879 , simplesmente e n viou
tropas para d estru ir os índios ao sul do rio Colorado, ou que os e sta-
dunidenses , os quais os expulsam de toda a reg ião le ste do Mississipi. 8
Os efeitos e as con sequê n cias das atitudes políticas brasile iras são
diferentes mesmo assim. A influê n cia do positivismo sobre os militares e
re publicanos os levou à cria ção do Serviço d e Proteção aos Índ ios (sPi),
já na Re pública, em 1910, cuja máxima "Morre r se prec iso fo r, matar
nunca", adotada pelos sertanistas e indigenistas em relação aos índios
a rredios ao con tato, constitui uma das poucas contribuições brasileiras
a uma filosofia humanista ou a uma forma d e cristianismo tupiniquim.
Assim , a dime nsão ide ológica do indige nismo nacional é fundame ntal
26 ÜS fNDJOS E O B RASIi.
para se e nte nde r os proble mas atuais da que stão indígena. O índio e stá
n o cerne d a con sciê nc ia nac io na l - e is a s ua força m aio r d e so brevivên-
c ia, be m com o a su a instabilidad e, p o is essa consciê n cia n em sempre se
coaduna com a realidade .9
A questão indíge na se d esenrola na histó ria bras ile ira com um sa ldo
o b viame nte negativo p a ra o s índios . A n ação brasile ira se constró i so -
bre o p atrimô nio te rrito rial dos cinco milhões d e índios que a qui hav ia,
suga o seu sangue e o tra nsforma em "o uro vermelho" (n a expressão do
Padre Antô nio Vie ira), e receb e de doação e p o r osmose a lgumas d as
s uas principa is caracte rísticas c ultura is . Em troca, não os inte gra com
a uto no mia e libe rdade n em resolve seus principa is e a tua is p roblem as
d e sobrevivên c ia : não some nte falta um ceita número d e te rras a ser d e -
marcad as, como a quelas já ho mo loga das e registrad as com o Pa trimô nio
da União a inda são a m eaçadas d e se re m revogadas p o r muda n ças na
legislação e invadidas o u assediadas p o r inte resses econ ômicos . Embora
su as cond ições de saúde te nham m elho rado substancialme nte, que se
p e rceb e n o se u cre scime nto de m ográ fico, muitas condições b ásicas d e
saúde continua m infinitame nte infe rio res e m re lação ao a te ndime nto
d os dem ais brasile iros, a exemplo do índ ice de m o1talidade infa ntil que
a inda se ma nté m o dobro da m édia b rasile ira (25% p a ra 52%) . No ite m
e ducação escolar e oportunidad es de d esen volvime nto p essoal, a d efa-
sagem e ntre índios e não índios é assustado ra!
Um a estrutura d inâmica d e p o de r infinita me nte des igu al é fo rmada
p o r muitos e va riados elem e ntos que con stitue m a questão ind íge na n o
presente, tais como os p ovos indígen as, o Estado, a Igreja, a situação d e
d esen volvime nto socioecon ô mico e s uas fo rças d e e nfre ntame nto, os
milita res, os intelectua is (antropólogos, jo rnalistas, lite ratos, ad vogad os
e tc .), a classe mé dia urbana, os faz e nde iros, os posseiros . O que m otiva
essa estrutura va ria n o te mpo : a m ão d e o bra , a exp a n são agrícola, o
valo r d a te rra, os mine rais . Está ma is d o que claro p ara to dos que a te rra
e s uas rique zas, co1no 1ne rcado ria e co1no reserva de valo r , a tu alme nte,
são a gra n de pro pulsara da d inâmica da questão indígena . Os povos
indígenas re tê m e m seus dire itos a p osse efe ti va, reconhecida o fic ia l-
m e nte o u e m p o te n c ia l de a p rox imad am e nte 13% d o te rritó rio n ac io na l.
Desafiam , assim, p olíticas desenvolv ime ntistas a uto ritárias, inte resses
mine rado res e m adeire iros, e mpresas ag rop ecuá rias susten tadas p o r be-
JN T RO D U Ç À O 27
vivênc ia com a c iv ilização luso-bras ile ira), dos Urubu-Kaapor (" paci-
ficados" em 1928), e e ntre vá rios subgrupos Guajá (alguns dos quais
a inda permanecem autônomos, isto é, fora do re lac ioname nto com a
Funai, o u m esm o com o utros segme ntos indigenistas , como o Conse -
lh o Indige nista Missionário - Cimi - da Igreja Cató lica), a le itura da
histó ria brasileira, no que con cerne aos índios, ganha uma colo ração
mais íntima, e mesmo as informações e os dados mais recônditos, as
in venc io nices de cronistas e a m á-fé inte rpre tati va de histo riadores o fi-
c iosos p odem ser compreendidos e inte rpretados com ma is segurança
qua nto ao conteúdo e ao sentido da presença indígena nessa histó ria.
É claro que o histo riador sensível é capaz de discernir o significado
da histó ria indíge na , mesm o sem te r tido conhecime nto pessoal direto
de culturas indíge nas - e a lgun s o fizeram, como Capistrano de Abreu
e João Franc isco Lisboa. Mas a visão histó rica se to rna muito m ais rica e
densa se você experime nta a v ivên cia prolongada numa alde ia; acompa -
nha durante semanas a marc ha forçada de um povo pela flo resta, sendo
transfe rido de um te rritó rio para o utro; administra sem recursos médicos
uma epidemia de g ripe que abate e a rrasa um punhado de h omens, mu-
lh e res e crianças; presen c ia o tra b a lho de um velho missio n ário capu-
c hinho no seu miste r d e cate quese de 'desobriga'; compa rtilha do pavor
coletivo de um povo diante do perigo de um ataque de invaso res; dis-
c ute com fazendeiros e com e rciantes de pequenas cidades e povoados
que tê m desave nças com índios , com quem vive m e m re lação de ex-
ploração econômica , repúdio socia l e, ao mesmo temp o, de compadrio
condescende nte; se esforça para conven cer autoridades e burocratas
de uma ação n ecessária para a sobrevivê n cia d e um p ovo, e não logra
resu ltados positivos; vê o relacio n a mento tenso e a mbíg uo e ntre índios
e lavradores sem te rra ; e exerce por quase quatro a n os a presidência
do ó rgão oficial indige nista, sentindo na pele as agruras da ine ficácia
do Estado b rasile iro e as pressões d e todos os lados . Enfim, tudo isso
faz a sua compreensão do que foi um "descimento" se e nquadrar numa
realidade conc reta, ta ngível, n ão só imaginada, ag uçando desse m odo
a sua inte rpretação histórica daque le s mome ntos e do mome nto atual.
Entende-se por descimento a tra n sferê n cia fo rçada de m ais de 1 .500
índios , de uma só vez (amarrados a lg uns, segu indo cabisbaixos a m aio -
ria), d e seus te rritórios para vilas portuguesas - como acontece u tantas
vezes nos três prime iros séculos de colo nização : as missões, os ataques
de bandeirantes p aulistas e de bugreiros, mais recente me nte, as g ue r-
ras de extermínio , as epidemias devastadoras, as quedas populacionais
abruptas e irreversíveis, a fo rmação do mundo rural b rasile iro por cima
dos índios e d e suas te rras, e o utros fatos históricos ma is .
30 ÜS fNDJOS E O B RASIi.
Visita do autor aos Xavante da aldeia São Marcos, Barra do Garças, MT.
À sua brilhante intuição, Galvão logo adic iona uma proposta de temá-
ticas de estudos: assimilação e res istê n cia. Até a década de 1970, a maio-
ria dos estudos de relacionamento interétnico seria sobre assimilação ou
aculturação, embora sob perspectivas mais críticas, com conteúdo histó-
rico e sociológico de maior densidade do que os clássicos estudos sobre
aculturação e mudança social da antropologia anglo-americana. Depois
viriam a ser sobre os processos de resistência e sobrevivência é tnica, em
que os índios são vistos em princípio como vitoriosos, ou, pelo menos,
não como perdedores indefectíveis.
Roberto Cardoso de O liveira, um dos primeiros estudantes do cu rso
de antropologia do Museu do Índio, foi um dos principais responsá-
veis pelo desenvolvimento de estudos, pessoais ou por influência como
professor, tanto dos temas de assimilação e acaboclamento - os quais
denominou "estudos de fricção inte rétn ica" - , como, após 1972, pelo
te ma da resistência, através da introdução, no país, da discussão sobre o
conceito d e ide ntidade é tnica , como fator d e resistência e sobrevivê nc ia
dos povos indíge nas. 2 1 Esse conceito serviu de fundamento básico para
diversos estudos sobre sociedades indígenas e mes mo sobre outras mi-
norias no país , como comunidades rurais, n egras ou caboclas, minorias
c ulturais e sexuais urbanas, movime ntos socia is e políticos e tc .22 Cardoso
de O liveira prosseguiu em sua carreira trazendo temas diversificados
que estavam na moda nos países centrais da antropologia, tais com a
análise de ide ntidade é tnica por ê nfase me todológica nas inte rações so-
ciais ( não mais cultural) e o multiculturalismo, ambos com p e rtinê n c ia
à temática indígena. Um dos seus estudantes , João Pacheco de O liveira,
depois de fazer uma revisão do estudo de seu mestre sobre a integração
dos índios Tikuna à sociedade d e classes, e vendo qu e aqueles índios
continuavam a ser índios, e mbora com mudanças c ulturais, abre uma
nova senda de pesquisas sobre a s ituação étnica e socia l dos índios do
Nordeste , precisamente aqueles que mais tinham sofrido a opressão lu-
so-brasile ira e a inda mantinham te imosamente sua ide ntidade indíge na.
Sua grande contribuição aos estudos sobre populações indíge nas , com
JN T RO D U Ç À O 37
re lação humana tanto con scie nte quanto incon scie nte, regida pe lo so -
c ial e pelo individua l, e se localiza rmos essa d ialé tica numa p e rsp ecti-
va histó rico-estrutural , de e n vergadura hipe rdialé tica , com um sentido
d e continuidade c ultural , transcende re mos a s teo rias qu e re duze m os
p ovos indíge nas, necessa ria me nte, a seres infe rio re s , d o min ado s p o r
formas d e p e nsame nto basead o e m preceitos imutáveis e sem histó ria .
O presente livro n ão trata d e exp o r as bases teóricas da a ntropo logia
hipe rpe rdia lética , já a b o rda da n o m e u livro ho m ô nimo . A e xpos ição e
discussão da te m ática indíge n a, tratada com o uma questão d e inte re sse
m ais a mplo do que n o rmalme nte se con cebe n a a ntro p ologia tradicio nal,
é o rie ntada p e la v isão hipe rdia lética . Po r ela, o índio - o u as socied ades,
c ulturas e p ovos indíge n as - é con cebido um ser único, e m si e p a ra s i,
que se o p õe a o utras e ntidad es seme lh antes, formando re lações de con-
vivênc ia o ra amistosas o ra confro ntantes, e m círculos e contextos cada
vez m ais amplos . É dize r, os índios são seres que estão na histó ria, p o is
mantê m s uas c ulturas p o r d ecisão pró pria, sem e lha nte me nte a o utros
p ovos e culturas . São parcialme nte ta nto con scie ntes qu anto inconscie n-
tes de s uas po te n cialidades, virtudes, carê n cias, d esequilíbrios e destino .
Em re lação dire ta com a socie da de bras ile ira forma-se uma te m ática pró -
pria, d e c unho p o lítico, uma questão . D e finimos essa qu estão como o
conjunto d os povos indígen as e d as forças que os e n volvem , formando
uma estrutura de relações num e ixo tempo ral , e obte ndo o seu sentido
p e la luta inte rn a, p e la re flexão con scie nte e p o r s uas conexões com a
a mplitude dos p ovos e cultu ras de to do o mundo . O índio, assim, é
compreen d ido p o r si e em relação com o todo . A explicação p a ra a su a
sobrevivên cia o u o seu exte rmínio ad vém desse princípio m etodológico .
Na relação com o mundo, o índio to m a autocon sciê n cia de sua existê n-
c ia m a is a mpla e age, ao m od o p oss ível que lhe é dad o, p a ra se e nte n-
der com a n ova realidad e . Perder o u ganha r , não se pode saber ; importa
é que vive n a luta p o r sua continuidade e ascensão p o lítico-c ultural.
O escopo de m e u trab a lho é a histó ria indígen a, suas d e rrotas e
p e rdas, mas ta mbé m su as p e que n as, p o ré m s ig nificativas, vitó rias e ga-
nhos . Abo rdo essa histó ria a p a rtir de d o is po ntos de vista - do índ io
e da c ivilização bras ile ira - , com e n foque p ara a opinião que te mos a
resp e ito d o índio, o qu e este p e n sa sobre o Bras il , seu presente e so-
b re suas p e rsp ectivas futuras . Este liv ro é impregnad o, necessaria me nte,
p elos sentime ntos d a indignação e d o incon fo rmismo . Mas que r ale nta r
ta mbé m um rasgo de esp e ran ça, justificado p e los acontecime ntos m a is
recentes e po r n ovas inte rpre tações histó ricas que m ostram não some nte
a face n egativa, mas també m a p ositiva do te mpo presente, e n os a ux i-
liam a div isar as p ossibilidades do futuro .
42 0 S fN D IO S E O B R AS 1 1.
NOTAS
1
A palavra fndio é às vezes refu tada em discussões acadêmicas, porqu e parece gene ra liza r e,
conseque ntemente, ofusca r a d ivers idade das ide ntidades e c ultu ras indígenas. Essa ca utela me
pa rece exagerad a. É evid e nte que os índios são d iversos, mas, na h istó ria d a fo rmação brasile ira,
essa categoria socia l é fundamenta l para a s ua compreensão. Os índios se veem dife re ntes uns
d os o utros, mas seme lhantes e m confro nto o u contraste com a sociedad e brasile ira e m gera l. Por
o utro lado, não se incomoda m d e sere m cha mad os d e índios, mesmo sab e ndo que esse termo
nasceu de um e ngano d e Cris tóvão Colombo.
2
A de mografia indígena e m 1500 é motivo de diversos estudos, cálculos e especulações. U m re -
s u mo pode ser e ncontrado e m John He mming, Red Cold : The Conquest ofthe Brazi/ian Jndians,
15 00-1 760, Cambridge, Mass., Harva rd Univers ity Press, 1978. O próprio He mming cons idera
especulativo o número qu e p ropõe: 2.400.000. O número arred o ndad o de cinco milhões é p roduto
d e várias s u posições. No ca pítulo '·Do po n to d e vista do índ io" explica mos como chega mos a e le.
O utros a uto res já pro puseram núme ros que vão d e 800 mil (ver a análise d e J ulia n Steward, Native
Peoples of South America, New York, McGraw-Hill, 1959, p p . 5 1-60) a um núme ro pro jetado q ue
certa me nte excede ria os dez milhões ( Pie rre Clas tres, "Ele me ntos da demograf ia ame rínd ia'', em A
sociedade contra o Estado, Rio de Jane iro, Francisco Alves, 1978). O meno r nú mero é s ubes ti mado
po r desconhecimento e descre nça quanto às descrições e cifras a p resentadas pelos cronis tas e
missio nários dos séculos XVI e XVII. Hoje e m d ia, essas d escrições são mais acatadas e levadas
em consideração. A d ific uldade ma io r está em saber quantos povos, q ua ntas unid ades po lítico-
c ulturais existiam . No ca pítulo "O que se pe nsa d o índio" d iscutire mos os d iversos crité rios de se
ava lia r essa quest.'\o. Se corre laciona rmos língu a específica com unidad e po lítica, o nú mero po de
va ria r em torno de 2.500 a cerca d e 340. Ver J. Alclen Mason, "The Languages o f Sou th Ame rica n
Indians·•, e m Handbook ofSouth Am erican Jndians, New York, Cooper Square Publis he rs, 1963,
v. vr, p . 163, que ca lc ula u m nú mero d e 5 m il língu as/ povos pa ra toda a Amé rica do Sul. Curt
N im ue ndajú no seu Mapa Etna-Histórico (Rio: IBGE, 1982), soma l.400 povos; Chestimir Louko tka,
"Língu as Indígenas do Brasil", e m Revista do A rquivo Municipal, v. 54, 1939, São Pa ulo, soma
237 línguas pa ra o Brasil. Aryon Da ll 'Igna Rodrig ues, e m Línguas brasileiras, São Pa ulo, Loyola,
1986, ide ntif ica 170 línguas atua is e p rojeta o do b ro como u m nú mero míni mo de línguas ind íge-
nas e m 1500. O nú mero a tual d e 890 mil índios ad vém do Censo 2010, d o IBGE. Desses, 510 mil
esta riam vivendo e m terras indíge nas o u e m zona rural, e nqu a nto 370 mil mora riam nas cidades.
O número e os no mes d as etnias a q ue essas populações se filiariam a inda não fo ra m publica -
d os. O IBGE publicou in tempestiva me n te que seriam ma is de 305 no mes étnicos, m uito acima
d os no mes d e etnias reconhecidos pela Funa i. Na prime ira edição deste livro, dad os d o Cim i, de
1987, somava m 230 mil índios dist ribu ídos e m 220 etnias, com a população crescendo cerca de
4,5% para os anos d e 1986 e 1987. Já o Centro Ecumê nico de Docu mentação e Info rmação (Cedi)
clava, e m p ublicação sobre terras indígenas, um total de 2 13 mil índios . Ver Cimi, Mapa '·Povos
Indíge nas no Brasil e Presença Missio ná ria ·•, 1985; Ced i/Museu Nacional, Terras Indígenas no
Brasil. São Pa ulo: Tempo e Presença , 1987 . Ver, também, Funai, Situação das Terras Ind ígenas
do Brasil: Dados Estim ativas. Brasília, 1984, que apresent.1 um número incompleto d e 166.417.
3 Por convenção estabelecida pelos antro pó logos e linguistas brasile iros, desde 1953, os gentílicos dos
povos indígenas sempre escrevem-se em letras ma iúsculas. São grafados no s ingular, a não ser q ue
sejam pa lavras portuguesas. O único caso em que ficam e m letras minúsculas é qua ndo são usados
como adje tivos. Assim, escreve-se "os Munduru ku", mas "as vest ime nt.1 s munduru kus ·'; "os índios
Cintas-Largas", e ··os a rcos cintas-largas". Ver Revista d e Antropologia, v. 2, n. 2, p p. 150- 152, 1954 .
' Há uma exte nsa bibliografia sobre essas questões, d a pa rte de mexicanos, peru anos, no rte-
ame ricanos e e u ropeus. De fác il acesso a brasile iros e de gra nde influê ncia na Amé rica Latina,
ver o livro de Da rcy Ribeiro, As Amé ricas e a civilização, Petrópolis, Vozes, 1977. Ver tamb ém
Leopo ldo Zea, América en la História, México, Fonclo de Cultu ra Econó mica, 1957 .
5 Esse reg imento con tinha os p lanos e as recome ndações do re i D. João III para a colo nização d o
Brasil. Uma seleção de trechos pertine ntes aos índios pode ser e ncontrada no livro de Georg
T ho mas, A p olítica indigenista dos portugueses no Brasil, 1500-1640, São Paulo, Loyola, 1982. A
nossa discussão desse regime n to e d as o utras le is e regulame nt.1 ções incligenistas e ncontra-se no
capítulo "Po líticas indigenistas·•.
6
As p ro postas contidas nesse texto fo ra m prime iramente apresentadas nas Cortes Gerais de Lisboa .
Em l 82 l , junto com algu mas o utras de re p resentantes b ras ile iros - como Francisco Muniz Tava res,
d e Pernambuco; Fra ncisco Rica rdo Za ne, do Pará; e Domingos Borges de Barros, da Bahia - ,
visavam equacio na r o p roble ma indígena com o Estado luso-b rasile iro . Muniz Tava res e Borges
JN T RO D U Ç À O 43
d e Barros tinham, assim como José Bonifácio, propostas de '·civilizar" os índios. Já Francisco
Ricardo Za ne, que havia sido um a no antes o guia admin istrativo dos cientistas alemães Carl
von Martius e Johann Baptist von Spix, pelo rio Amazonas e seus aflu e ntes, e representava os
interesses mercantis da região, propunha métodos de escravizaç.'io ou de erradicação dos índios.
A Assembleia Constituinte de 1823 rejeitou as propostas de José Bonifácio, as quais, d e qualquer
modo, foram anulad as pela revogaç.'io dessa Assembleia e pela imposiç.'io de uma Constituição
pelo novo imperador. Seja como for, as ide ias de integração dos índios como parte da nação
brasileira perma neceram na consciência liberal nacional e foram posterio rme nte d e grande
import.'incia para a consolidação de uma atitude positiva em relação a eles. Compare esse fato,
por exemplo, com a situação indígena nos Estados Unidos da América nessa mesma época, q ue
d ecretara , em 1828, a exclusão d e todos os povos indígenas que viviam na costa leste para além
d o rio Mississipi. Ver Carlos de Araújo Moreira Neto, "A Política Indigenist,1 Brasileira dura nte o
século XJx··, Tese de Doutorado, Faculdade de Filosofia, Ciências e letras de Rio Claro, São Paulo,
1971. Essa tese é fundament.11 para se compreender a política indigenista d o Império e contém
muitas informações sobre os períodos his tóricos imediatamente anteriores e posteriores.
7 Ver Carl F. von Martius, "Como se deve escrever a História do Brasil", em Revista do Instituto
Histórico e Geográfico Brasileiro, ano VII, n. 24, janeiro de 1845. Ver, do mesmo au tor, em p u-
blicação mais recente, O estado do direito entre os autóctones do Brasil, Coleção Reconquista
d o Brasil, Nova série, v. 58, Belo Horizonte, Itatiaia , São Paulo, Edusp, 1982. Sobre os textos de
Varnhagen e Von Ihering, ver os capítulos '·Políticas indigenist.1s" e "O que se pensa do índio".
8
Sobre a Argentina, ver Guillermo R. Ruben , "les Ma puc hes: l'lllus ion d e l'lndianité", Tese de
Doctorat D'Etat, Universidade de Pa ris, 1980. Os números estimados de índios massacrados nessa
expedição e na seguinte, de 1880, totalizam 23 mil guerreiros. Sobre os Est.1dos U nidos d a América,
ver, por exemplo, Wilbur Jacobs, Dispossessing the American lndian: lndians and lYfhites on the
Colonial Frontier, New York, Charles Scribne r's Sons, 1972; Harold E. Driver, lndians of North
America, Chicago e london, The U niversity of Chicago Press, 1969. Sobre a Colômbia, ver Marino
Baleazar Pardo, Disposiciones sobre Indígenas Baldios y Estados Antisocia/es ( vagos, maleantes y
rateros) , Popayán, Universidad Popayán, 1954. Ver também Alfonso Uribe, Misas, Las Misiones
Cato/icas ante la I.egis/ación Colombiana y e/ Derecho Internacional Público, Bogotá, Lumen
Chris ti, a/ d. Sobre a Venezuela, ver Nelly Arvelo de Jimenez, "Análisis dei Indigenismo oficial
en Venezuela" e Esteb an E. Mosonyi, "la Situación d e i Indíge na e n Venezue la: Perspectivas y
Soluciones", respectiva me nte, p p. 3 1-42 e 43-63, em Georg G rünberg (coord.), La Situación dei
Indígena en América dei Sur, Montevideo, Tierra Nuova, 197 l.
9 Estar no cerne não significa esta r na vontade nem no discurso oficiais. Ne m é necessa riame nte
u m senti mento positivo. Q uer dizer apenas que é motivo constante e atual d e reconhecimento,
mesmo que seja negativo.
10
Sobre a visão hiperdialética e m antropologia, ver me u livro Antropologia biperdia/ética, São Paulo,
Contexto, 20 l l.
11
Para visualizar melhor esse mapa, ver: http ://biblio.wdfiles.corn/local--files/ nimuendaju -l98l -mapa/
nimue ndaju_l98 l _mapa.jpg. Acesso e m : 24 set 2012.
12
A vida e obra d e Curt Nimue ndajú , inclusive a s ua bibliografia p ublicada, estão res u midas no livro
Textos indigenistas, São Paulo, loyola, 1982, editado por Pa u lo Su ess e com prefácio de Ca rlos
d e Araú jo Moreira Neto.
13 O primeiro volume foi editado e m São Paulo pela Comissão do 1v Cente nário da Cidade de São
Paulo, 1954. O segundo, que e ngloba o primeiro, foi editado na Alema nha peL1 Kommissionsverlag
Münstermann Druck GMBH, Hannover, 1968. O terceiro volume foi compilado peL1 antropóloga
Thekla Hartmann e publicad o e m Berlim por Dietrich Reimer Verlag, 1984.
14 Florestan Ferna ndes, A organização social dos índios Tupinambá, São Pa ulo , Instituto Editorial
Progresso, 1949 (2. ed. Difusão Eu ropeia do livro, 1963); Ajimção social da guerra na sociedade
tupinambá, São Pau lo, Editora Revist,1 do Museu Paulista , 1952 (2. ed., São Paulo, livraria Pioneira,
1970); lnwstigação etnológica no Brasil e outros ensaios, Petró polis, Vozes, 1975.
,s A Conve nç.'io 107 se chama Convenção sobre Populações Indígenas e Tribais, e nquanto a Con ven-
ção 169, refle tindo o novo caráte r d e reconhecimento dos povos indígenas, c hama -se Convenção
sobre os Povos Indígenas e Tribais. Uma compilaç.'io d e gra nde parte da legis lação sobre os índios
brasileiros o u sobre temas que lhes dizem respe ito, dos últimos 70 anos, pode ser e ncontrada
no livro o rganizado por Ed va r Magalhães, Legislação indigenista brasileira e normas correlatas,
2. ed., Brasília, Funa i/cGDOC, 2003.
16
Po r indige nato com preende-se a visão jurídica segundo a q ual a legis lação colonial portug uesa
reconhece o caráter originário da presença indíge na no território b rasileiro, c ujos direitos sobre
as te rras que ocupa m a ntecedem quaisquer outros direitos posteriores.
44 ÜS fNDJOS E O BRASIi.
17
Vale aqui comentar brevemente q ue uma parte expressiva dos antropólogos b rasileiros foi influe n-
ciada pela visão pós-moderna do filósofo Michel Fou cault em re lação ao poder como e ntidade
onipresente e onisciente nas rebções huma nas. Na aplicação dessa teoria do poder, a política
indigenista de Rondon é interpretada como te ndo por propósito fundamental ga nhar pode r sobre
os índios, controlá-los e diminuir seus te rritórios, circundá-los nu m ··cerco d a paz", mudar suas
culturas - tudo para a brir camin ho à expansão econômica do Brasil. A his tó ria brasileira, vista
sob essa ó tica, congela o sentid o d as relações humanas na atualidade e assim é interpretada no
contexto do p resente. Aqu e les q ue não fizeram no passad o o q ue é exigido que seja fei to no
presente viraram motivos de opróbrio e conde nação. Assim, toda a história do Brasil se torna u m
d esenrolar de acontecime ntos vis, realizad os por pessoas vis e indignas do presente. Desafo rtu-
nada1nente essa visão da história do Brasil, e particularn1ente da extraordinária saga rondoniana,
inclusive d e seus seguidores -como os irmãos Villas-Boas, Francisco Meire lles, Cícero Cavalcanti e
tantos o utros serta nistas e indige nistas heroicos que fi zeram diferença e hoje se torna ram anônimos
d a nossa his tória - , p reva leceu pelas últimas d uas décadas, influe nciando toda uma geraç.10 de
jovens antropólogos, jornalistas, membros d o Ministério Público e outros pabdinos da morali-
d ade nacional, embora já se veja m sinais d e seu descrédito. O livro O cerco da paz, d e Antônio
Carlos d e Souza Lima, é o mais citado por aderentes dessa visão descontextualizada da história.
18 Darcy Ribeiro, Os índios e a civilização, 2. ed ., Petrópolis, Vozes, 1977 ( 1. ed., Rio d e Ja ne iro:
1979; Santos e visagens, São Paulo, Cia. Editora Nacional, 1955; com Charles Wagley, Os índios
Tenetehara: uma cultura em transição, Rio de Janeiro, Ministé rio da Edu caç.10 e Cultura, 1961;
ver a versão inicial inglesa The Tenetehara lndians: a culture in transition, New York, Columbia
University Press, 1949. Sobre Galvão, pessoalmente, ver o prefácio no seu livro de artigos feito
por Darcy Ribeiro. Ver também a a nálise d a obra de Galvão por Orla ndo Sampaio Silva, Eduardo
Galvão: índios e caboclos, São Paulo, Annablu me, 2007.
"' Eduardo Galvão e Charles \Vagley, Os índios Tenetehara: uma cultura em transição, Rio de
Ja ne iro, Minis té rio da Educação e Cultura, 1961, p. 10.
21
Robe rto Cardoso de Oliveira, O processo de assimilação dos Terena, Rio de Janeiro, Publicação
d o Museu Nacional, 1960; "Estudo d e áreas de fricção interétnica no Brasil", em America L1tina
v. v, n. 3, pp. 85-90; '·Aculturação e Fricç.10 l nterétnica", em América Latina, v. VI, n. 3, pp. 33-45;
O índio e o mundo dos brancos: a situação dos Ti/zuna do alto Solimões, São Pa ulo, Difel, 1967;
Urbanização e tribalismo: a integração dos índios Terena numa sociedade de classes, Rio de
Ja ne iro, Za har, 1968; Identidade, Etnia e Estrn.tura Social, São Paulo, Pioneira, 1976.
22
Ver Carlos Rodrigu es Brandão, Etnia e Identidade, São Paulo, Brasiliense, 1985, para um bala nço
d esse conceito.
23 Carlos de Araújo Moreira Neto, Índios da Amazônia: d e maioria a minoria, Petrópolis, Vozes,
O PARAÍSO Q UE ERA
tem a forma de meia-lua, abrigando uma baía, tendo ao fundo uma ca-
d eia de m o nta nhas . Algu é m p od e p e nsa r que um marinhe iro irla ndês
ad e ntrou a baía de Gua na ba ra muito m ais cedo do que se imagina! O
mundo mudou e mudaria muito mais com a Utopia. No decorre r d os
a n os, muitos o utros p e nsado re s iria m re fle tir com a dmiração, às vezes
com e spanto, o je riza e inc redulidade, pe lo que viram o u p elo que lhes
disseram daqu ele mundo ao sul d o Equa do r, e compara riam essa visão
com su as v idas, pro je tando-as afinal com o seu passad o rem oto o u com o
seu futuro d esejado . O e ncantado r e ns aio d e Mich el d e Mo nta igne inti-
tulado Os canibais, 3 produzido e m 1574 , é talvez a mais influe nte a ná li-
se filosófica sobre os índios Tupina mbá ja ma is escrita. Nele, Montaig n e
conta qu e conhecera e m Pa ris alguns índ ios Tupinambá trazidos d o Rio
d e J a n e iro, o nde h avia p o uco te mpo h o uve ra uma colô nia fra n cesa, e
d ele s e xtraíra três re fle x ões impo rtante s , da s qua is esquecera uma! O h ,
h om em esquecido! Uma delas qu estio n ava po r que os fra n ceses e ra m
governados por um simples me nino, o e ntão delfim que m ais tarde seria
o re i Luís X111, e n ão p o r um líde r gue rre iro, com o e ra o costume d e les;
o segundo com e ntá rio indígena é sobre o fato de na França e xistire m
h om e ns riquíssimos e h o me ns p a upé rrimos, muita d esig u aldad e, e os
pobres não se re b ela rem contra os ricos . Com esses d ados, e o utros
mais , certame nte, Mo ntaig n e traça um p e rfil fascinante sobre os Tu-
pina mbá e s ua socie dad e, c uidando na d escrição d e se us hábitos e
costumes, compa ran do a sua a ntro p ofagia com os m assacres e to rturas
das gue rras religiosas n a Europ a e c h ega ndo a conclusões singelas e
to le rantes ao costume tupina mbá, tão o die nto qua nto repugna nte aos
o lhos e u rop e us, que le ntame nte começavam a fo caliza r o resto d o mun-
do à sua image m e semelha nça . O e nsaio d e Montaign e fez escola e
pe rma neceu , tendo influe nciad o uma corre nte mais o u m e n os contínua
d e p e nsado res - d e ntre os qua is os iluministas fra n ceses - , m a nte ndo os
ideais de libe rtação, o espírito de to le râ n cia e a c uriosida de inte lectual,
acréscimos temporais às tradições mile na ristas do Velho Mundo .4
Mas, pa ra os índios, até e ntão, o p a ra íso n ão estava perdido .
Era uma realidad e fís ica e c ultural , c ria da p o r cente n as de prá ticas
di versas, m as asse m elhad as e ntre alg uns milhões d e p essoas . Uma ebu-
lição social e política que levara vários milha res de a nos para se fo rma r,
que já fo ra m ais complexa a nte rio rme nte e vivia em consta nte inte rcâm-
bio mútuo, com uma de te rminação pró pria e um fulc ro dinâmico que até
h o je nos escapa m. Nas costas brasile iras, d a foz d o Ama zo n as à Lagoa
dos Patos, com exceções aqui e acolá, h abitavam cerca de um milhão de
índ ios T upinambá, 5 localizad os em aldeias que continha m d e 300 a 1000
D O PONTO D E VISTA D O fN D I O 47
Três est ilos de casa dif erentes. Aldeia Waiwai, Terra Indígena Mapuera, Pará.
pies gesto do captor de tocar-lhes o ombro com a mão. Com esse ritua l,
o guerreiro virava prisioneiro e era levado para a aldeia do seu captor,
o qual virava seu senhor - e, tempos depois (até anos), seu algoz, num
ritual de duelo estilizado em que a vítima era ama rrada e segurada por
uma corda, mas tinha o direito a insultar os presentes prometendo-lhes
vingança de seus parentes e atirando pedras e areia sobre o seu atacan-
te. Quando enfraquecia, uma bordunada era desferida em sua cabeça,
bem como os golpes finais de misericórdia. Em segu ida , o prisioneiro
era lavado, esqua rtejado, despedaçado, desentranhado , tal qual uma
peça de caça, e posto para assar em moquém. Sua carne era comida
com muito gosto e glutonia, sobretudo pelas anciãs. Mas enquanto vi-
vesse na aldeia , antes de chega r o seu dia de suplício (o u melhor, de
h onra suprema, como viam a ocasião), o prisioneiro era tratado como
um cunhado, um parente afim: recebia uma mulher que compattilhava
de seus afazeres e do seu leito, podendo até se apaixona r e gerar nela
um filho. À vo ntade, e le não fugia para a sua a lde ia de origem - e,
caso o fizesse , seria mal recebido por seus parentes, como um poltrão
e indigno da fibra tupinambá. Ora, tal costume só poderia funcionar
se o prisioneiro con cordasse com essas regras. Assim, fica claro que
o canibalismo tupinambá se destinava quase que exclusivamente aos
próprios Tupinambá. Qualquer outro povo indígena que não compar-
tilhasse das mesmas ideias e sentimentos não teria o menor problema
em ab rir mão dessa boa vida temporária e voltar para casa como h e ró i.
Com os portugueses e o utros europeus, o ritual de caniba lismo virava
praticam e nte uma farsa , taman h o e ra o despre zo com que os Tupinam-
bá dava m cabo d esses h omens choramingas, ajoelhados e suplicantes .
O paraíso dos Tupinambá dava-lhes com desprendimento o s ustento
para o seu crescimento e s ua a legria de viver ; para se rir dos franceses
que vinham de tão longe só para buscar made ira e faz e r tinta vermelha.
Subitamente, podiam abandonar a lde ia, roças, locais d e caça e pesca e
tomar os caminhos do Ocidente, em busca da Terra sem males. O pa-
raíso socia l, constituído por um s istema de ig ualdades econômicas, de
liberdades p essoais amplas e de um controle do pode r que pe rmitia a
todos , por idade ou por mérito , alcançar os seus graus mais e levados,
continh a, no entanto, a s ua própria negação: a falta de um mecanismo
de conte nção que fosse capaz de aglutinar forças dispe rsas, dar um
sentido mais fo1te de nacionalidade e criar um sistema social e político
mais coeso, menos fragmentado. Os Tupinambá não conseguiram fazer
o que o utros povos com menos população c h egaram a obter. A inte ns i-
ficação de suas guerras intestinas e do canibalismo , com a che gada dos
portugueses, só e ra contrabalançada pela presen ça dos famosos caraí-
D O PONTO D E VISTA D O fN D I O 49
AS EXPERIÊNCIAS DE CONVIVÊNCIA
apris io nados nas gue rras p e rpe tradas na conquista d aque las te rras, a l-
guns a nos a ntes .15 Só no sertão p e rman ecia m os Tapuias, e os h o lan-
d eses os trata ra m com cautela e certo resp e ito . Qu ase no final d e s ua
administração com o gove rnad o r h o landês de Pe rnambuco e p a1tes d o
No rde ste, o prínc ipe Maurício d e Nassau convoco u uma esp écie d e
assemble ia indíge na , n a vila d e Itapecerica, p e rto d e Rec ife, pa ra conso -
lidar p elo mé to do pa rlam e n ta r o a p o io d os Ta puias aos ho la ndeses .16 A
expe riê nc ia pa rlam e ntar indíge n a num nível n acio na l só seria re p etida
n o Bras il 350 a nos de p o is, e m 1982, com a e le ição do de putado indíge -
na Mário Juruna ao Congresso Nacio na l. Em a mbos os casos, a e xpe ri-
ê nc ia foi , infelizme nte, de curta duração .
Ao contrário dos ingleses n a Am é rica do No rte, os p o rtu gueses nun-
ca trata ram o s índios como nações (embo ra o te rmo fosse corre nte n a
é poca), e se us h abitantes com o c idad ãos, mas com o vassalos, ha bitantes
submetidos a uma a uto ridade ma io r, com dire itos tão som e nte o uto r-
gad os caso a caso . Assim, a p e nas e m duas ocasiões se te m no tíc ias d e
acordos formais e ntre a Coroa p o rtuguesa e os índios . A prime ira foi
qua ndo uma d as a lde ias d os índios J a nduís, que ha bitava m os sertões
d o Rio Gra nde d o Norte, Pa raíba e Ceará, d ecidiu e n viar uma d e legação
à c idad e de São Salvador da Ba hia, capital do Brasil , para firma r um
acordo d e p a z que d esse fim ao que m a is tarde foi c h a m ad a de Gue rra
d os Bá rbaros. Essa foi a ma is p rolo ngada e consta nte p e rseguição fe ita a
p ovos indíge n as , d ura n do do fim da ex pulsão dos h ola nd e ses e m 1654,
até 1714, q u an do as últimas re sistê nc ias fo ram batidas e os índios re -
s iste ntes fora m m o rtos, escraviza dos o u re duzidos a missões o u a lde ias
controla das p e las a uto rida des loca is . A de legação fo i a Salvado r, e m
1691 e firmo u aco rdo, com ga ra ntias à ma nute nção do que lhes sobrara
d e su as te rras , que n ão foi cump rido .17
A segunda ocasião d e aco rdo se de u um século de p o is , e m 1791.
Dessa vez foi com os c h a m ad os "índios Ca va le iros" (os G uaicuru o u
Kadiwéu d o p res e nte) e o gove rnador-ge ral do Brasil, no Rio de J a ne iro .18
O inte re sse dos portugu ese s e ra ma nte r o te rritó rio gua icuru de ntro das
fro nte iras b ras ile iras , n o a tua l estado de Mato Grosso do Sul , dia nte das
inde fini ções provenie nte s do T ratado de Madri , d e 1750, que serviu d e
fro nte ira e ntre os re inos d e Esp a nha e Po 1t u gal. Os ín d ios Cava le iros , à
m ane ira dos Pele s-Ve rme lhas das pla nícies da Amé rica d o No rte, tinham
adotad o o cavalo como me io de tra nsp o rte e de gue rra , e com isso ha -
viam se to rna do senho res absolutos e imbat íveis d a região do Panta na l.
Os d e ma is índ ios da reg iã o lhe s prestavam obe d iê nc ia e p agava m-lhes
trib u to . O acordo firmado n o Rio d e Jane iro foi bom p ara Po1t ugal, e
56 O s INDJOS E O B R A S Ii.
eventua lme nte para o Bras il , mas não conso lido u a sob e rania d esses ín-
dios sobre as te rras confirma das; p a ulatiname nte, foram pe rde ndo te rre -
n o p a ra a e ntra da d e n ovos colo nos . Os Kadiwe u n ão p e rde ram d e tod o .
Ho je m a ntê m uma p a rte d o seu te rritó rio garantido uma vez m ais p e lo
seu p apel d esempe nha do na G ue rra do Para gua i, a fa vo r d o Bras il , com o
recompe n sa e prê mio . O Ma recha l Ro ndo n , com o s upe rvisor d o SPI, con-
firmo u m a is uma vez os dire itos dos Kad iweu a um te rritó rio que soma
530 mil hectares, o m aio r te rritó rio indíge n a fo ra d a região am azô nica.
Po ré m , uma pa rte substantiva d essas te rras , cerca de 120 mil hecta res,
foi ocupa da p o r faze nde iro s a legando p ossuíre m títulos d o ados p e lo
governo do Estad o, a inda n a década de 1960. Este é um d os ca sos d e
disputa jurídica que está h á uns b o n s 40 a nos n o Supre m o Tribunal
Fe de ral , m e io e ngaveta do . Neste a no de 2012, ma is d e 100 gue rre iros
Kadi we u e ntra ram e m uma das faze nda s invasoras e xigindo a re tirada
d os d e ma is faze nde iros e n o a gua rdo d e uma to m ada d e decisão p o r
p a 1te d o STF .
Q ua nto aos J anduís, não e xiste m ma is .
AS GUERRAS DE EXTERMÍNI O
ao se u com ando . A cada submissão de índios re que ria d a Coro a uma ses-
ma ria pa ra conso lidar seu p o de r. 19 O devassame nto do Pia uí foi inic iad o
p o r J o rge Velho, mas a respo nsabilidade p e lo vazio indígen a naquele
estad o não p o de ser imputada exclusiva me nte ao velho ba nde irante .
Durante to do o século seguinte foram muitas as g ue rras de exte rmínio
p e rpe trad as naque le te rritó rio, e ntão p e rte ncente ao govern o do Mara -
nhão, a mando d e governado res e sob o com ando p essoal de capitães-
mo res . Gu egu ê, Acroá, Pime nte ira , Ga mela - e até Xava nte - p assaram
p o r essas gue rras. Os sobreviventes e ram distribuídos e ntre as faze ndas
de gado , inclus ive as dos pró prios je suítas que h aviam he rdado tod o o
p atrimô nio da famosa Casa de To rre, o que constituía e ntão g rande p a rte
do te rritó rio pia uie n se .20 Até p o ucos a nos n ão havia índ ios reconhecidos
ne m a uto ide ntificados no Pia uí, e o s p o ucos descende ntes que h aviam
sobrevivido se recusavam a admitir a s ua ascendê nc ia . Entre ta nto , uma
comunida de de descende ntes dos Gu egu ê, que havia sido tra nsfe rida da
vila de Oeiras pa ra a be ira do rio Pa rnaíb a , te m d ad o sinais de que re r e n-
tra r no p rocesso d e etnogênese e se apresentar ao mundo com o índios .
Na con solidação do do mínio po rtug uês n o Bras il , a cada novo te r-
ritó rio conhecido e a ser colo nizad o v inham as g u e rras d e exte rmínio .
A incompa tibilidad e e ntre colo nizadores e índios p a recia inevitável. A
começa r p e la Ba hia, em 1558, qua ndo Mem d e Sá arrasou a resistê n c ia
e re b e ldia tupina mbá , m atando e ntre 15 mil e 30 mil índios , com a com-
placênc ia e e n co rajam e nto d e todos .21 Após a expulsão dos fra n ceses ,
se gue -se uma g u e rra de exte rmínio aos Tu p inam bá d e Cabo Frio e do
Vale do Paraíba .22 A conquista da Paraíba ( do Norte), a p artir de 1585,
n ecessito u d o acirra m e nto das rivalidad es tupina mbás ( potig ua res), e , ao
final, da p e rse guição e morta ndade da fa cção ad versá ria , a nte rio rme nte
aliada a ave nture iros fra n ces es .23 A co nq uista do Mara nhão, a pattir d e
1614 , resulto u , a lg uns a nos depois , n a destruição de cerca de 30 mil ín-
dios Tupina mbá q ue v ivia m e ntre a ilha de São Lu ís e a região atua l d e
Belé m. No d ize r de um c ro nista oficial, com e ssa mo rta ndade, o ca pitão
Be nto Macie l Pa re nte h avia "ex tinguido as últimas relíquias de sse povo ".24
Para a conquista do ba ixo Amazo nas , q ue começa ap ós a re to mad a
d o Maranhão aos fra nceses , em 1614, e a fun dação de Be lé m , e m 1616,
n ecessito u-se d e todo o conhecime nto já adquirido durante o s éculo an-
te rio r n o que d iz re s p e ito às téc nicas de g u e rra , a prisio n am e ntos e ins -
tigação de rivalidades indígenas . Com e fe ito , a lição fo i b e m a pre ndida ,
e o mo rticínio ultrapassou os limites da necess idade de conquista . T anto
q ue, por ve rdade iro o u por exage ro , o je su íta Pad re Antô nio Vie ira , ao
o uvir a confissão de um velh o colo nizador no se u le ito d e m o1t e, a cusou
58 Ü S fNDJOS E O B R A SIi.
Mesmo sem guerras, as e pide mias esp ocavam com frequê n cia e du-
ravam basta nte tempo ( uma delas, de 1743 a 1750, e m todo o Amazo -
n as).35 O poder das epidemias é ainda maior quando elas surgem e m
ocasiões de escasse z e m que aumentam as dificuldades para se obte r
a lime ntos, apressando a morte dos doentes p o r ina nição aguda. Darcy
Ribe iro n os dá um teste munho desse processo, ao presenciar uma epi-
demia de sarampo e ntre os índios Urubu-Kaapor, em 1949. 36
Q ua ndo foi descoberta a etiologia das epidemias e su a contamina -
ção, portugueses e brasileiros n ão sentiram ne nhum escrúpulo e m uti-
lizar-se desse conh ecime nto para promover o exte rmínio de aldeias e
povos indígenas que estavam n o seu caminh o. Esta mistura mais c ruel
de guerra e epidemia é o que se chama h o je de guerra bacteriológica.
Sua primeira utilização conhecida n o Brasil se deu e m 1815, em Caxias,
n o estado do Maranhão, te rra de Gon çalves Dias. Lá grassava uma epi-
demia de va río la quando um bando de índios Can e las Finas apa receu
de visita. As auto ridades os receberam com tal h ospitalidade que lhes
distribuíram brindes e roupas previamente conta minadas por doentes.
Os índios pegaram a doença e, dando-se conta do ca rá te r do contágio,
fug iram desesperadamente de volta para suas te rras, muitos morrendo
pelo caminho. Os sobreviventes contaminaram outros mais, e meses
depois essa epidemia alca nçava os índios já e m Goiás.37
No fim do século passado , os bugreiros de Santa Cata rina e Paraná,
sob soldo das companhias de imigração, d e ixavam nos pontos d e trocas
de presentes já estabe lecidos com os índios de á rea a inda sem contato
coberto res infectados de sarampo e va río la .38
Epidemias programadas, realme nte, representam o fin o de um espíri-
to p e rverso de exte rmínio e gen ocídio . Poucas vezes na história foi uti-
lizada dessa fo rma . Qu e o te nha sido no Brasil contra os seus habitantes
o ri gina is é exemplo ve rgonhoso da con stituição moral de segmentos de
s ua população.
ESCRAVIDÃO E SERVILISMO
Aos sob reviventes apris io n ados das gue rras n ão restava destino ho n-
roso . A escravidão p essoal ou uma servidão compulsória e ram mais a
regra do que a exceção, sobretudo n os te mpos inic ia is da colonização e
a ntes da utilização em massa da escrav ização dos negros a frican os . Con-
tra isso protestaram os missionários em vá rias épocas e, às vezes, por
sua pressão, conseguiram modificar le is de escravatura , revogando-as
D o PONTO D E V I ST A DO ÍND I O 61
p o r a lgum te mpo o u re duzindo -as parc ia lme nte . Em última instâ nc ia,
até me ados d o século xv111, havia sempre a justificativa das cha mad as
"gue rras justas " que p odiam ser p e rpe trad as contra p ovos indígen as
que a meaça va m a expansão colo nialista e m d ete rminadas áreas . Dessas
gu e rras, os colo n os, e m esm o a Co roa e o s missio ná rios, obtinha m mão
d e obra p ara s uas tare fas d o mé sticas e para o trabalho n o s canav ia is, ta -
b acais e faz e ndas d e gado . Pa dre Antô nio Vie ira , qu e luto u brava me nte
contra as forças que se de te rminavam a escraviza r os índios, re lata su a
e xpe riê nc ia d e p a rticipação e m uma e xpedição de d escime nto d e índios
livres p a ra o s centros colo niza do re s , como Be lé m , e m 1653, d e o nde
e ram distribuídos p a ra as a lde ias d e missões, a lde ias d o re ino e faze ndas
p a tticula res . As "juntas d e missões", es pécie de tribuna l que dirimia as
que stões indígen as, formad as p o r re presenta nte s d o cle ro, da Coroa e
d os colo no s , d e te rminavam a lega lida de d o processo e a distribuição d a
m ão de o bra e quase sempre aceitavam a condição d e escravidão d os
índios proposta p or seus capto res .39
As le is que compõem o cha ma do Dire tó rio d e Po mba l, p romulgad o
e m 1757, exting uiram a e scrav idão indíge na, d ecretando a libe rdade
incondic io na l aos índios . Mas e m 1808 foi o pró prio regente D. J oão VI
que, e m sua c h e ga da ao Brasil , pro mulgo u uma série d e alvarás incenti-
vando p artic ula res a forma re m "b a ndos " o u "bande iras" p a ra p romover
ataques aos índio s Bo tocudos , Coroad os , Can oeiros e Timbiras, de vá-
rias p a rtes d o p a ís, com o ince ntivo e xtra d e u surpar as te rras e e scra -
vizar os índios aprisio na dos por p e ríodos de 10 a 20 a n os (varia n do d e
acordo com a idad e e o sexo dos cativos) .40
A serv idão , instalad a n as a lde ias d o re ino, o nde g rupos indígen as
e ram a locados p ara se rvir às câma ras munic ipa is o u aos oficia is do re i
e m se rviços d e construção de e stra das , p o nte s , ed ifíc ios públicos e igre -
jas , p rodução d e a lime ntos p ara sere m transfo rmad os e m re nda, o u
como g ue rre iros, foi uma fo rma muito corre nte e m to do o Bras il Co-
lô nia . Pode -se até a rgume nta r que a fo rma de re lação social ex iste nte
n as missõe s estav a ma is p a ra a se rvidão do que p a ra a e scravidão, o u
muito m e n os p a ra a libe rdade . Os índios sob esse regime e ram vistos
como servos de um fe udo . Po dia m t ra ba lha r s uas pró prias roças, con-
ta nto que pre stasse m se rviços p ara se u s s e nho re s qua ndo convocad os .41
Po r essa fo rma d e trabalho muitas ald e ias indíge n as fo ram e sta be lec idas
próximas a v ilas e povoados de po rtug ueses, e sobrevivera m p o r muito
te mpo , chegando a lg umas até o século xx, quando fo ram e n golidas pe la
ex pa nsão d e mográfica do p aís . São Migue l Pa ulista e Pinhe iros - h o je
bairros da c idade d e São Paulo - , São Lo ure n ço, em Nite ró i, Vinha es ,
62 ÜS fNDJOS E O B RASIi.
e m São Luís , Aldeota, e m Fo rta le za e tc., foram antigas aldeias que man-
tinha m esse tipo de re lação com os luso-brasile iros dominantes.
Do ponto de vista do índio, a servidão e ra uma re lação imposta pe-
los po1tugueses como uma espécie de domínio sobre si, como povo. A
escravidão não reconhecia esse caráte r e reduzia-o à condição de m e r-
cadoria. Pe lo lado dos colo nizado res, a servidão lhes parecia uma van-
tagem aos índios, uma fo rma de "se c iviliza rem". Também aliv iava ao
patrão-colonizador sua respon sabilidade de alime ntar e cuida r da saúde
do índio quando estava a trab a lho e, muito m e n os, quando voltava à s ua
a lde ia. No e nte nde r do colo nizado r, a obrigação ao trabalho impunha
aos índios a lguma disciplina , probidade e respeito pela o rde m vigente.
Com o ve remos mais adia nte, essa é a raiz ideológica do paternalismo
que s urge n o Impé rio e vai continuar pelos anos adiante , até o presente. 42
A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA
vos indígen as n o Brasil , era socio lógica e tecn o logicamente comple to.
Tinham cre nças e ritua is como em o utras re lig iões, buscavam explica-
ções especia is para os fe n ômen os incontroláveis da na ture za, temiam
e lem e ntos sobre n atura is e u savam de meca nism os mágicos para inte rce-
der p e la ajuda às suas dúvidas e sofrime ntos. Tinha m um s iste m a mito -
lógico complexo e a ntrop o mó rfico q ue p rete ndia explicar o mundo e a
su a c ultu ra de uma fo rma simbólica , a legórica e pedagógica. Tal s iste ma
re ligioso percolo u n o processo d e miscigenação cultura l para as muitas
c re nças regio n ais e n os s inc re tism os re lig iosos constitu ídos e ntre o c ris -
tia nism o e as re lig iões afri can as impo rtadas. A sua influê n cia se percebe,
acima de tudo, na fig ura do p ajé e n a su a liturgia caracte rística de fuma r
c h arutões, defuma r os p acie ntes , incorporar espíritos de a nimais, tran ses
e uso de re médios farmacop a icos re ti rados de e rvas e p la ntas do conhe -
c ime nto p opula r e tradicio n a l .44
As pesquisas antrop o lógicas cond uzidas no espírito c ie ntífico com-
p rova m as desc rições dos cronistas q uinhe ntistas q ua nto às re ligiões indí-
ge nas e a dic io na m uma ab o rdagem integra dora d essas c re n ças e ritua is.
Todos os povos indígen as conceb e m a m o rte com o o corte abrup to da
vida e o início de uma o utra vida , desta fe ita sem padecime ntos carna is
e re pleta de alegria tra nquilizadora - e nfim , de um p araíso. Alg uns d i-
vide m a a lma e m d uas fo rças , uma d as q ua is perma n ece n a T e rra e m
s ituação de p e rigo p ara os seres viventes, a o utra se transp o ndo p a ra o
paraíso . Ente n de m que é possível a inte rcessã o so b re o s v ivos através
dos sacerdote s , das a lmas dos q u e já m o rre ram ou dos e s píritos d e o utros
seres da n atu re za , como os a nima is e as pla ntas . O seu m u n do mítico
da criação tra nsco rre num limia r e m que ho me ns e a nima is se integram
co m c aracte rísticas típicas e imutáveis, prototípicas o u paradigmáticas . É
n esse mundo q ue habita m os se us h e ró is civ ilizadore s e de miurgos q u e
dão sentido ao uni ve rso e às s uas c ulturas e m p a rticula r. Mas n ão são
h e ró is capazes de inte rceder pelos vivos, p o is , ao concl uíre m s uas obras
e ge stos sobre -huma n os , aba ndon am a vida te rrestre e p e rman ecem
ape nas no p e n sam e nto e na me mó ria dos v ivos . Não são de uses n e m n o
sentido da mito logia grega dos temp os de Ho mero - p o is n ão h á m a is
interação e ntre v ivos e demiurgos - n e m no sentido cristão dos santos - ,
pois a inte rcessão n ão é possível. O ú nico e lo q ue h á é e ntre h om e ns
e os e spíritos dos animais , o u , e m a lguns casos , co m as a lmas dos se us
m o rtos . É n esse a mbie nte q ue a fe itiça ria e a paje la n ça e ncontra m s ua
justificativa e seu m e io con d uto r .45
O catolicismo q uinhe ntista , m o n ote ísta na te o ria e polite ísta n a su a
a plicação social, e ncon tro u d ificuldades e n o rme s p a ra converte r índ ios
64 ÜS fNDJOS E O B RASIi.
Após a Cab an age m ,53 digamo s a p a rtir de 1841, a que stão indíge n a
n o Brasil de ixa e fe tivam e nte d e ser um p roblem a d e controle p o lítico-
milita r, d e gue rra de clarada p a ra extermínio o u de ataques incentivad os,
e p assa a ser de a dministração d e conflitos localizad os e que re las . Não
existe ma is e fe tiva m e nte um po d e r milita r indígena q ue d esafie o Esta -
do nacio n al. Aliás, fo ra da Ama zô nia a situação já estava definida quase
que completam e nte desd e o fim d a Gu e rra dos Bárbaros, n o No rdeste,
sendo que no Sul te rminara com a de rrocad a fin a l dos Sete Povos d as
Missões, e m 1759 .
O índio sobrevivente, m o ra do r d e a ldeias próximas a v ilas, nos a r-
ra baldes das c idades, e ntão, vira caboclo; é con siderado e c ham ad o
d e caboclo p e las a uto ridad es e p e la p opulação local. Un s m a is bravos
o u rudes, o utros ma is ma nsos o u s ubmissos . T od os estão sob o o lha r
vigila nte das a uto ridades e sob o inte resse e contro le dos fa ze nde iros
regio n a is, sempre de o lho em s uas te rras, as qua is vão sendo p rogres-
s iva m e nte invadidas e us urpad as p e la fo rça d e jagunços e ta mbém pela
coop tação de lideran ças e mbasb acadas, p o r m e rcado rias o u be ne fícios
m e n o res . Mesm o p e rto de c idad es a inda havia te rras p a ra o nde as a l-
deias indígen as resistentes p odia m se refugia r, como é exemplo d isso
ta ntas histó rias d e comunidades, especialme nte no No rdeste e e m Minas
Gerais, mas ta mbé m e m Ma to Grosso do Sul , que ho je estão re que re ndo
o dire ito de reaver te rras perdidas p o r u surpação de faze nde iros .
68 ÜS fNDJOS E O B RASIi.
NOTAS
' Ver Sílvio Castro (org.), A carta d e Per o Voz de Ca minha, Po rto Aleg re , 1.&PM, 1985; ver também
Américo Vespúc io, Novo M undo: cartas de viagens e d esco bertas, Porto Aleg re , r.&PM, 1984 ;
Cris tóvão Colombo, D iár io d a descoberta da A mé r ica, Po rto Alegre, 1.& PM, 1984.
T ho mas Mo rus , Utop ia, Lisboa , Publicações Europa-Amé rica, 1973.
3 Miche l d e Mo ntaigne, "Os ca nibais", e m E nsa ios, ca p . xxxr, Coleção "Os Pe nsadores", São Pa ulo,
d e índios, conforme os primeiros cronis tas. Ver Cristóbal de Acuõa , Gaspar de Carvajal e Alonso
Rojas, Descobrimentos do Rio das Amazonas, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1941. Padre
Antônio Vieira, em 1656, achava qu e os portugueses já haviam destruído cerca d e 2 milhões de
índios só no baixo Amazonas, um evid e nte exagero. De qualque r modo, concentrações de 20 mil
a 30 mil pessoas em aldeias ribeirinhas de até 9 quilômetros d e exte nsão não e ra m incomuns.
Três miU1ões de indivíduos nos parecem u ma estimativa razoável.
7
Esses pontos estão resumidos na obra de Betty Meggers, Amazônia: a ilusão de um paraíso, Rio
d e Janeiro, Civilização Brasileira, 1977.
8
Ver de Pierre Clastres, A sociedade contra o Estado, Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1978. Arqueologia
da violência. São Paulo, Brasiliense, 1982.
9 Ver, por exemplo, o estudo sobre a introdução do machado de ferro e facões na ilha Nova
G uiné, do antropólogo australiano R. F. Salísbu ry, From Stone to Steal, Melbourne, Universit y o f
Melbourne Press, 1962; Marshall Sahlins, Stone Age Economics, Chicago, Aldine, 1972. No Brasil,
ver as observações d e Robert Carneiro, "Slash-and-Burn Cu ltivatio n among the Kuikuru and its
lmplications for Cultural Development in the Amazon Basin ", e m Y. Cohe n (ed.), Man in Adapta-
tion: The Cultural Present, Chicago, Aldine, 1968.
10
"O Diário do Navio Bretoa" est,1 p ublicado em F. A. de Varnhagen, História geral do Brasil, revisão
e notas de Rodolpho Garcia, Rio de Janeiro, MeU1oramentos, 1962, 5 v. As expedições dos fra nceses
estão rebtadas em Pa ul Gaffarel, HistoireduBrésil Français au SeiziêmeSiêc/e, Paris, Maison ne uve
et Cie, Libraires-Editeurs, 1878. A colôn ia francesa instalada no Rio de Ja ne iro manteve escravos
índios obtid os de grupos riva is aos seus aliados. Ver Jean d e Lery, Viagem à Terra do Brasil,
op. cit.
11
Ver F. A. Va rnhagen , op. cit., v. l , seção 12, pp. 192-2 11.
12
Alexande r Marchant, Do escambo à escravidão, Brasiliana, v. 225. Rio d e Janeiro, Compa nhia
Editora Nacional, 1943.
13 Essas tensões est.1 0 docume ntadas em Jean d e Lery, Viagem à Terra do Brasil, op. cit. e Yves
d 'Evreux, Viage111 ao Norte do Brasil, feita nos anos de 1613 e 1614, São Luiz do Maranhão, Ty-
pographia do Frias, 1874. Há uma nova traduç.10 revista e a ume ntada deste último livro, ainda
inédita.
14 Ver José Antô nio Gonç.1lves de Mello (org.), Fontes para a história do Brasil holandês: A economia
açucareira, Recife, Parq ue Histórico Nacional dos G uara rapes, 1981, pp. 182-6; Gedeon Morris de
Jonge, "Relatórios e cartas", em Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, t. 58, 1896,
p p. 237-3 19.
,s Ver José Antô nio Gonça lves de Me llo, Tempo dos flamengos, Coleção Docume ntos Brasileiros 54,
Rio d e Janeiro, José Olympio, 1947.
16 Ver Ped ro Souto Maior, "Fastos pernamb ucanos", em Revista do Instituto Histórico e Geográfico
v . 8, p p. 290-95. Ernesto Ennes, As Guerras dos Palmares, Brasiliana , 127, São Paulo, Companhia
Editora Nacional, 1938.
"' Sobre o extermínio dos índios do Pia uí e o pa pel dos b andeirantes, a Casa d e Torre e a Casa de
Ávila, e o domínio dos jesu ítas com s uas faze ndas de gado, ver Francisco Aug us to Pereira da Costa,
Cronologia histórica do estado do Piauí, Recife, 1909; Barbosa Lima Sobrinho, O devassamento
do Piauí, Rio de Janeiro, Companhia Editora Nacional, 1946; Ennes, As Guerras dos Palmares,
op. c it. Ta unay, História geral das bandeiras paulistas, op. c it. , v. 8.
21
Mem de Sá é considerado, "aba ixo de Deus, o homem da catequ ese" pe lo Padre Rui Pereira, em
1560. Apud Mecenas Dourado, A conversão do gentio, op. cit., p. 85.
22
Sobre o extermínio dos Tu pinamb á após a expu lsão dos franceses, ver Simão d e Vasconcelos,
Crônica da Companhia d e Jesus, op. cit. e as Cartas dos primeirosJesuítas no Brasil, edit.1 d as por
Serafim Leite, 3 v., São Pa ulo, Comissão de Publicação do 4° Centenário, 1954.
23 Sobre a conq uista da Paraíba, ver J. F. de Almeida Prado, A conquista da Paraíba (séculos x17 e
Xl'll) , Brasiliana 321, São Pa ulo, Compan hia Editora Nacional, 1964.
24
Sobre a destruição dos Tupinambá no Maranhão, ver Bernardo Pere ira de Berredo, Annaes históricos
do estado do Maranhão, 2. ed ., São Luiz, Typographia B. de Mattos, 1849. Há uma nova e dição
fac -similar da primeira edição sendo p ublicada na Coleção Monu ment,1 Amazônica, pelo Centro
d e Estudios Amazônicos, e m lquitos, com notas e prefácio de Carlos de Araújo Moreira Neto.
D O PO NTO D E V IST A DO fN DIO 73
25 O Padre An tônio Vie ira u tiliza esse número e m diversas ocasiões e diz que o ou viu de uma
teste munha ocula r da conquis ta d o Ma ra nhão, o Cônego Ma nue l Teixe ira, que o juro u e m seu
le ito de mo rte. Ver '·Direcções a respeito d a fo rma que se d eve te r no julga me nto e liberdad e no
cativeiro dos índios d o Ma ranhão", e m Obras escolhidas, v. v, Lis boa, Livra ria Sá de Cortes, 1851.
Ver ta mbé m João Lúcio de Azevedo, História d e Antônio Vieira, 2. ecl., Lisb oa, Livraria CL~ssica ,
1931, 2 v., especia L,,ente os capítulos "O Missio ná rio'' e "O Revoltado'' . Ver també m d o mesmo
autor, Cartas do Pa d re Antôn io Vieira, 3 t., Coimbra, Impre nsa da Univers idade , 1925-1926.
26 Essas colô nias fo ra m destruídas e ntre 1616 e 1630, quando os po rtugu eses se estabelecera m de
vez no b aixo An1azonas. Con tudo, navios irlandeses continuara ,n a comerciar co,n índ ios da
região até b e m mais ta rde. Ver John He mming, Red Gold, o p . cit. , p p . 223-28.
v Ver Ca rlos d e Araújo More ira Neto , De maioria a minoria, o p. c it.
28 E até os T imbiras cio Mara nhão. Ver Francisco de Pa ula Ribeiro, "Me mó ria sobre as nações gentias
que presente me nte hab itam o contine nte do Mara nhão", em Revista d o Instituto Histórico e Geográf ico
Brasileiro, v. m, 1841, p p. 184-197; 297-322; 442-456. Ver, também, Ca rlos de Araújo More ira Neto,
"A Po lítica Incligenis ta Brasile ira durante o século XIX" , op. cit. ; "Alguns dados pa ra a his tó ria
recente cios índios Ka inga ng", e m La Situación dei indígena en A mérica de i Sur, coorde nado po r
Georg G rünbe rg , Mo n tevidé u , Tie rra Nueva, 197 1, p p. 381-419.
29 Ver Ca rlos de Araújo Mo re ira Ne to, "Alguns dad os .. .'', o p ., cit., p p . 395, 399; Sílvio CoeU,o cios
San tos, Ín dios e brancos no Sul do Brasil, Flo rianó po lis, Ecleme, 1973.
Yl Ver Darcy Ribe iro, Os ín dios e a civiliz a ção, o p. cit ., p p . 42-7; Franz G aspar, Tupari, Lo nd res, G.
Bell a nel Sons Ltcla., 1956.
3' Ver Fra ncisco de Paula Ribe iro , o p . c it. Ver tamb é m J úlio Césa r Me latti, Í ndios e criadores, Rio de
Ja ne iro, Instituto d e Ciê ncias Socia is, 1967; Cure Nimue ndaju , The Eastern Timbira, Berke ley anel
Los Angeles, T he University of California Publica tio n in Ame rica n A rchaeology a nel Ethno logy,
V, 41 , 1946.
32 Este caso foi filmad o fi cciona lmente por Zelito Viana, e m 1984, com o título A vaeté.
33 Ver Gordo n R. W'illey, A n lntrodu ction toAme rican Archaeo/ogy, v. u, South A merica, Eng lewoocl
1967, pp. 471-90, c ita uma fo nte da é p oca q ue esti mo u e m 40 mil o n ú mero d e mo rtes só e m
Belé m . João Lú cio d e Azeve d o, Os j esuítas no Grão-Pará , o p . cit., p . 199, diz q u e a população
indígena nas a ld e ias jesuítas b a ixou , nesse período, d e 50 mil para 30 mil.
y, Da rcy Ribe iro, Virá vai à p rocu ra de Deus, Rio de Jan e iro , Paz e T e 1rn, 1974; Diários índios,
São Paulo , Compa nhia d as Let ras, 1995.
37 Ver Fra ncisco de Pa ula Ribeiro, "Me mó rias sobre as nações ge ntias ... ", o p . cit .; ver, ta mbém, cio
mesmo a uto r, "Descri pção d o Territó rio de Pastos Bons, nos sertões d o Maranhão", e m Revista
do Instituto Histórico Geográfico B rasileiro, t. x11 , 1849, p p . 4 1-86 .
.lB Ver L. B. H o rta Ba rbosa, A pacificação: dos Gaingangs Paulistas: hábitos, costumes e instituições
desses índios, Rio d e Ja ne iro, 1913.
39 Ver o capítulo "O q ue se pen sa d o índio " para uma a ná lise e d efinições d esses te mas e insti-
tuições co lo niais. Sobre o Padre Antô nio Vie ira, ve r João Lúcio d e Azeved o, História de Antônio
Vieira, o p. c it.; e Os Jesuítas no Grão-Pará , op. cit. Ver també m as Obras escolhid as, ele Vie ira,
p ublicadas pela Livraria Sá d a Cos ta Lis b oa, especia lme nte o vo lume v, q u e co nté m diversos
d ocume ntos sobre os índ ios d a Amazônia , Maranhão e Cea rá escritos pelo au tor, inclus ive s u as
opiniõ es sobre escravizaç.10, co lo nos e as juntas de missões .
40
Ver Agostinho Perdigão Ma lhe iro , A escra v idão no Brasil, Petrópo lis, Vozes, 1976, t. 11.
41 Há uma contrové rs ia a respeito d o ca ráte r do trab a lho indíge na e m a lde ia s d e administração
e nas missões jesuítas. Enquan to Ne lson \Verneck Sodré cons idera esse trab alho pa rte de um
s is te ma "semife uda l", Jacob Gore nder acha que faz ia pa rte cio esc rav is mo v igente , e mbora de
uma fo rma "incom p le ta ". Jacob Gore nde r, O escravislllO colonial, São Pa ulo , Ática, 1978, pp.
124-133; 468 e 485.
42
Sobre a serv idão praticad a com os índ ios e s uas consequê ncias na formação socia l b rasile ira, ve r
a aná lise rea lizad a e m me u livro O índio na História, o p . cit. , ca p . xx.
43
Padre Ma nue l da Nóbrega, ''D iá logo sobre a conve rsão d o gentio (1557)", apud Mecenas
Dou rad o, A conversão do gentio, Rio d e Jane iro , Liv raria São José, 1958. Ve r ta m bém Alfre d
Mé trau x , A religião dos Tupinambá, o p. c it.
44 Ver Edu ardo Galvão, Santos e visagens, op. cit.
45
Ver, como exemp los consagrados, Alfred Métra ux, A religião dos Tupinambá, op. cit. ; Cha rles
Wag ley, "Xama nismo Ta pira pé", e m B oletim d o Museu Nacional, nº 3, 1943.
74 0 S fN D IO S E O BRAS 1 1.
46
Ver Mecenas Dourado, A conversão do gentio, op. cit. São muito frequ e ntes essas observações nas
cartas dos primeiros jesuítas, inclusive Nóbrega, Anchieta e Aspicue lta. Ver Cartas dos primeiros
Jesuítas no Brasil, editadas por Serafi m Le ite, op. cit.
47 Ver análise de Claude Lévi-Stra uss em Tristes trópicos, São Pa ulo, Anhembi, 1955, parte VI.
48
Ver o capítulo 1x do meu livro O índio na História, op. cit.
49 Ver Fátima Roberto, "Salvemos nossos índios''. Tese de Mestrado, 1983, Depa rtame nto de Ciências
Terra, 1977.
53 A Cabanagem (1 835-1841) foi uma revolt.1 popula r na Amazônia que teve a participação efetiva
d e muitas alde ias indíge nas e muit.1 s vilas ex-aldeias jesuíticas. Em relação à repressão q ue as
forças oficiais p romoveram contra os índios, ver Ca rlos d e Ara újo Moreira Neto, De maioria a
minoria, op. cit.
54 Ver Ca rlos d e Araújo More ira Neto, "A política indige nista brasileira du rante o século x1x·', op. cit.
encontrados nos docu mentos p ublicados pe lo Centro Ecumê nico de Docu me ntação e Informação
(Cedi), Povos indígenas no Brasil, anos 1981, 1982, 1983, 1984, 1985/ 1986, São Paulo, Tempo e
Presença. A partir daí, essas compilações jo rnalísticas e report.1gens especiais passaram a se r p u-
blicadas com o mesmo nome, q uinque nalmente, pe lo Instituto Socioambiental, que também tem
u m va lioso site de informações sobre povos indígenas na atua lidade (www.socioambiental.org).
58 É até vergonhoso para o Brasil que assim o seja, já que este é um dever próprio e d e rivado de
lei constitucional. Pior ainda é quando o Banco Mundia l ameaça o governo brasileiro de rompe r
acordo e s uspende r convênios d e fin anciamentos porque não há cumprime nto nas cláus ulas de
d emarcação das te rras indíge nas o u assistê ncia devida.
59 Ver Márcio Souza (org.), Os índios vão à luta, Rio de Janeiro, Marco Zero, 1981, q ue trata d o
alvorecer da consciência política indíge na ainda durante o período dit.1torial. Nos últimos dez
anos, o movimento indígena ficou ma is o rganizado e estruturado para voca lizar seus protestos
e propor novas políticas públicas, as quais nem se mpre são acatadas pelos governantes. Ver o
capítulo "O futuro dos índios" para uma a nálise det.1 lhada do movime nto indíge na e da nova
autoconsciência indíge na sobre s u a posição his tórica.
POLÍTICAS INDIGENISTAS
A COLONIZAÇÃO DO BRASIL
Levou pouco tempo para que Po rtugal delineasse suas bases de e nte n-
dimento com os povos indíge nas do Brasil e, assim, pudesse formular e
aplicar s ua política indige nista. Sua exp e riê nc ia conte mpo râ nea na África
do No rte e na Ásia, agressiva e incle me nte, foi passada p ara o Bras il sem
relevantes modificações - e, muitas vezes, p o r inte rmédio dos mesmos
gestores . D e fato , muitos dos prime iros capitães e governado res que vie -
ram ao Bras il tinha m sido antes capitães e conquistado res na Ásia , e os
interesses econ ô micos da a tiva burguesia m e rcantil p o rtuguesa, que im-
pulsionavam o comé rc io e a colo nização, não haveriam de ser d ife re ntes .1
O projeto colo nial ja mais p e rmitiu va riações além do que aquelas
que fixava m , por princípio, a p osição dos povos indígenas como s údi-
tos do rei , vassalos e m sua própria terra e seres socialmente infe rio res
aos p o rtu gueses . Por resolução do Tratado de Tordesilhas, firmado e n-
tre Po1tugal e Espanha a 7 de junho de 1494, o Novo Mundo, recém-
descoberto, fora dividido pelo meio e ntre esses dois países a partir de
uma linha imaginá ria que se localiza ria a 370 léguas a oeste das ilhas
d e Cabo Verde, e m cujo lado o rie nta l, p e rte ncente a Po1tugal, estava
situada boa pa1te do Brasil. Embora Pottugal n ão tivesse dúvidas quanto
à legitimidade de suas pre te nsões, vale no ta r que esse tratado foi fe ito
sem a interme diação do p apa , caracte rizando -o como um ato de auto-
n omia vis-à -vis o pode r p o ntifíc io . De u també m ocasião p ara que o utros
países, poste riorme nte - com o a França - , se sentissem n o dire ito d e
também conquistar e colo niza r terras e p ovos nas Amé ricas .2
76 ÜS fNDJOS E O B RASIi.
o rdem re ligiosa pelo próprio papa, num prazo de menos de vinte anos.
O que vale dizer que o se u problema não era específi co ao Estado por-
tuguês, nem exclusivamente sobre a questão indígena .6
No plano local, as re lações e ntre Ig reja e Estado, isto é, entre as o r-
dens re ligiosas e os governadores o u capitães-gen era is, eram mais ten-
sas e, muitas vezes, c h egaram às vias de fato. Aqui os inte resses eram
mais imediatos e a disputa , portanto , mais real e sem n e nhuma aura de
onisciência ou o nipotên cia. Basicamente, a d isputa e ra para ver quem
tinha direitos sobre os índios e qual a m e lho r mane ira de civilizá -los. Os
o fic ia is da Coroa achavam que os índios deveriam ser c ivilizados p e lo
trabalho individual que prestassem ao projeto colo nial; os relig iosos,
pela doutrinação e pela o rganização do trabalho coletivo. Os ofic ia is
queriam as aldeias de administração, das quais convocavam os índios
para trabalhar nos se rviços públicos, b e m como n as fazendas e em e n-
ge nhos particulares; os religiosos te nc io nava m as a lde ias de missões e
a exclusividade do trabalho indíge n a. Outro motivo de disputas estava
na própria repartição o u distribuição de índios descidos o u resgatados,
para o que e ra n ecessário definir a condição de índio livre o u legitima -
mente escravizado. Em todas essas disputas , n em sempre a Ig reja estava
unida. Pelo contrário, muitas vezes o clérigo secula r se aliava aos oficia is
da Câmara e da Coroa contra os jesuítas ; em o utras , havia e n o rmes dis-
putas e ntre jesuítas, fra nc iscanos e ca rmelitas. Em muitos casos, as le is
portuguesas refle tem essas disputas e a tomada de posição ora em favo r
dos jesuítas, o ra e m favor dos franciscanos o u carmelitas, o ra em favor dos
seus o fic iais. Naturalme nte, essa falta de consen so demonstra que o
projeto colo nia l n ão era e nte ndido da mesma fo rma por todas as partes
que integrava m a socie dade portuguesa, m esmo e m relação aos índios.
Se isso tornou a questão indígena um osso d e d isputa, n ão foi, no e n-
ta nto, motivo sufi cie nte para to rna r a sorte dos índios mais favo recida
n o resu ltado fina l. 7
Em te rceiro luga r, há d e se ver que os índios e ram motivo de gran-
d e inte resse por patte dos colo nos, inic ia lme nte, como m ão d e obra
n ecessária à con strução de e n genhos e à defesa do te rritó rio contra a
in vasão de aventure iros estran geiros; posteriormente , como adversários
n a disputa p e las te rras .8 Fazia parte dos d everes da Coroa promove r a
paz e a tranquilidade e ntre colo nos e índios para que a economia local
flo rescesse, e isso e la fez sem maiores escrúpulos . Po rém, quanto ao
desejo dos colo nos pelo braço indígen a, a Coroa se dividia e ntre a rgu -
m e ntos contrários e a fa vo r da escravidão, ou a fo rmas inte rme diárias.
Por isso, h ouve tantos desenten d ime ntos e ntre os colo n os e as o rde ns
84 ÜS fNDJOS E O B RASIi.
O IMPÉRIO
A inde p e ndê n c ia d o Brasil teve iníc io, ge n erosame nte, com a p rop os-
ta de J osé Bo nifácio sobre a catequese e civili zação dos índios e n viad a
à Constituinte de 1823. Ao ser dissolvida p o r D. Pedro 1, caiu a p rop osta
e a Con stituição o utorgad a no a n o seguinte n ão m e nc io no u a existê n-
c ia d e índios, re m ete ndo a qu estão p a ra o â mbito d as províncias . Até a
saíd a d o prime iro imperado r, a questão indíge na foi legislad a p o r avi-
sos e recom e ndações aos con selhos p rovinciais, p e rma n ecen do ainda a
legislação ante rio r de gue rras o fe n sivas e escravização . Po ré m , as ide ias
d e Bo nifácio tinha m raízes num segm e nto d a e lite po lítica bras ile ira
que d esejava cria r o sentime nto de uma n ova n ação e achava que os
índ ios d everiam faze r p a rte dessa comunhão a través de me ios p acíficos,
esp ecia lme nte p ela cate quese . Re n ovou-se a ide ia d e que som e nte pela
P O l. fT J C A S I ND I G E N J ST AS 87
1. Le i de 27 de o utubro de 1831:
Revoga as cartas régias de 1808. Reinstitui o estatuto de ó rfãos
para os índios e os juízes de paz são nomeados seus tuto res. To-
dos os índios até e ntão e m servidão são desonerados.
2. Le i de 12 de agosto de 1834 (Ato Adicio nal).
Determina que as Assembleias Legislativas provinciais e os seus
governos c uidarão da civilização e catequese dos índios.
3. Decreto n. 426 de 24 de julho de 1845, o u Regime nto das Missões.
Cria as Diretorias Gera is d os índios em cada província, que, por
sua vez , ficam e ncarregadas de cria r as diretorias parciais para
cada alde ia o u conjunto de alde ias. A n omeação do diretor-geral
fi ca a cargo do imperad o r.
Dispõe sobre o regulamento, favorece a catequese, proíbe a se rvidão
dos índios e os maus-tratos. O briga os índios ao serv iço público, sob
o rientação dos poderes locais, m edia nte salá rio, e ao serviço mili-
tar, mas sem coação , e determina prisão correcio na l de até seis dias.
Esse d ecreto constitui a le i básica do Impé rio para a que stão indíge na e
é conhe cido , també m , com o Re gime nto das Missõe s . Dura nte e sse p e río-
do, pequenos aditivos vão sendo fe itos, e m fo rma de avisos e ofícios , para
os diretores gerais , a le rta ndo sobre determinados aspectos de s ua á rea ou
sobre questõe s novas . Por e xe mplo, e m 1865, foi este ndido o dire ito d e
habeas corpus aos índios. O b inômio "cate quese e c ivilização" va lo riza a
religião; nesse sentido, é expendido um e n orme esforço para trazer frades
capuchinh os e colocá-los ã fre nte das diretorias p a rc ia is o u de colô nias
indíge nas que ia m se ndo c riadas para apressar o processo d e inte graç ão .
Poré m , h á d e se frisar que o ma is d e te rmina nte na política indige nista
impe ria l foi a promulgação da c h a m ada Lei das Terras , de 1850 . Essa le i
o fic ia lizo u o latifúndio , não p e rmitindo o direito de posse. Para registrar
se u dire ito sobre as te rras que usufru ía , e ra necessária a aprese n tação d e
doaç õe s d e se smarias ou a compra às províncias. Isso te rmino u excluin-
do pequenos lavradores indep e nde ntes e muitas a lde ias indíge nas . Em-
bora e m a lg umas províncias houvesse p essoas de boa-fé que reconhe -
c iam aos índios o dire ito às te rras que habitavam, e trabalhavam com
88 ÜS fNDJOS E O B RASIi.
afinco para demarcá-las, a regra geral foi o desleixo e a incúria por parte
dos e n carregados desse se rviço de demarcação, como também por
patte dos diretores-gerais dos índios, em cada província. Po r consequê n-
cia dessa lei, após a criação do Ministério da Agricultura, em 1860,
e a passagem da política indige nista para o seu âmbito de jurisdição,
dezenas de a lde ias indíge nas a inda e m existê ncia foram extintas for-
malmente, e os seus habitantes conde n ados a virar posseiros sem-te rra
e a perder suas características culturais específicas. Um exemplo lo -
calizado desse processo deu-se e m Pinhe iro, pequena vila do inte rio r
do Maranhão. Em 1816, foi doada aos índios da região, que nunca são
n ominados, uma gleba de te rras de "três léguas de comprido por uma
de la rgo", isto é, aproximadame nte, 10.800 hectares. Em 1854, essa gle-
ba foi confirmada e registrada n o Livro de Registro de Te rras de Santa
He le na de Pinheiro. Vinte anos depois , foi anulado esse reconhecime n-
to, alegando -se que já não h avia mais índios vivendo n essa á rea. A gleba
passou a constituir terra da Câmara da vila, e ho je é de patticulares , não
havendo mais índios n o distrito da cidade ne m no município.17
No Ceará, de um só a to, e m 1860, o seu presidente extinguiu todas
as aldeias existentes. 18
O Impé rio já foi caracte rizado como um período de paz e lento pro-
gresso. Na verdade, foi o período que estabeleceu o poder dos grandes
senho res p e la manute nção da escravatu ra e do latifúndio, e o nde se cer-
ra ram as pottas para um possível surgime nto da p eque na propriedad e
e, portanto, de uma atitude de mocrática e ntre seu povo . Em relação aos
índios, foi consolidada a s ua posição no quadro nacio na l como de um
ser incapaz tanto p o lítica quanto mental e juridicamente. Grande parte
de suas te rras foi usurpada , até mesmo as já doadas a nte riorm e nte com o
sesma rias que, não sendo registradas após 1850, pe rde ra m a sua validade
aos o lhos do governo impe rial e das províncias. O estabelecime nto do
ca rá te r de o rfandade fundamentou o paternalismo o ficia l, como demons-
tra o decreto de 1845. Até os libe rais e os amigos dos índios , como o ge -
ne ral Couto de Magalhães, ach avam que essa e ra a m aneira correta d e se
tratar os índios: com o crianças, gu ia ndo -os na sua vontade, admoestan-
do-os e punindo-os n os seus e rros, e p rocura ndo o melhor para eles pelo
trabalho, a obediê ncia e a re ligião . Isso não eximia o Estado d e aplicar
form as m e nos brandas de e nsiname nto, como o uso das polícias prov in-
ciais e milícias particulares para atacar aldeias e dar lições punitivas aos
índios sob o pretexto de defender povoados e fazendas de seus ataques .
Foi no século passado, e nfim, que se firmou o pe nsame nto de que os
índios estavam fadados ao exte rmínio, não n ecessariame nte por culpa
P Ol.fTJCAS INDIGENJSTAS 89
A REPÚBLI CA
A cele uma que se crio u nos jo rnais, institutos e centros inte lectuais
e lite rá rios e o utros m eios de comunicação, que parecia fe rir os brios
huma nitários da p á tria , levou o governo federal a criar uma a utarquia
federal para c uidar da questão indíge na brasileira. O utra questão e m
discussão era a au sên c ia de políticas de apoio à massa ime n sa de po-
bres rura is brasileiros, tanto os descendentes de escravos e ex-escravos
quanto os cab o clos, ca ipiras, tabaré us , to dos aque les apelida dos p e lo
escrito r Monteiro Lobato iro nicam e nte de "jecas-tatus". Um segmento
da classe média brasileira reclamava que o governo só se inte ressava
e m prove r a juda para imigrantes e urope u s, re legando o povo miúdo,
uma multidão de lavradores sem-terra perambulando p e los campos e
c idades, ao deus-dará. Assim, a n ova agência fo i instituída com o títu-
lo de Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores
Nac io nais, e m 1910, e com a ob rigação de c uida r ta nto dos índios
quanto dos trabalhadores rura is. Para dirigi-la, o governo Nilo Peçanha
conv ido u o e n tão Corone l Cândido Maria no da Silva Ro ndo n , um mi-
litar positivista que se n otab ilizara p e los lo ngos e á rduos trabalhos de
insta lação de red es te legrá fi cas p e lo inte rio r m a is re moto do país, e m
c ujas opo1tunidades havia ma ntido contato com diversas tribos indí-
genas, sempre num clima de paz e diálogo. 24 A grandeza das tarefas e
a dificuldade e m reconc iliar esses dois segm e ntos nac io nais foi de tal
m o nta que, em 1918, a n ova agênc ia passou a cuida r exclusivam e nte
dos índios e restring iu seu nome para s implesmente Serv iço de Prote-
ção aos Índios ( sP1) .
O SPJ foi produto orgânico do positivismo e parcial do liberalism o,
m as também m otivado pela e moção nacio na l. Em n e nhum mo m e nto
c h egou a re n ovar as propostas con stituc io n a is do Apostolado Posi-
tivista para os índios n e m os tratou com o n ações soberanas . Via o
índio com o um ser digno de conv iver na comunh ão n acio n a l, em bora
infe rio r numa escala cultural e evolutiva . Como pensava quase todo
mundo à época, a exemplo do próprio Sigmu nd Freud, os índios - o
primitivo - tinham uma me nta lidade infantil, que n ecessitava da tu-
tela do Estado. Era dever de o Estado dar-lhes condi ções de evoluir
le ntame nte a um estágio c ultu ra l e econ ômico s upe rio r, p ara daí se
inte grar à nação . Para tanto , d everia d em a rcar suas te rras , protegê-las
d e invaso res e usurpadores e m pote ncial, defendê-los da esp e rteza
dos brasil e iros, especia lme nte dos comerc ia ntes e m ascates que os
exploravam , e nsinar-lhes n ovas técnicas de c ultivo e de administra -
ção de seus bens, e socorrê-los e m suas doe n ças . Os índios autôno-
p O 1. fT IC A S I N D I G E N IS T A S 93
mos, chamados "arredios", seriam "p acificad os", caso fossem brav ios,
à c usta , se necessário, do pró prio sacrifício dos servidores do ó rgão,
que nunca d everiam u sar da força o u de a rmas. Os povos em contato
p e rmane nte o u e m vias d e integração já p o d e riam apre nde r o fíc ios
mecânicos e ser edu cados formalmente. Não seria n ecessário o e n sino
re ligioso para tanto. 25
A d ete rminação e a liderança de Ro ndo n , reconhecidas e m muitas
esferas nac io na is, atraía muita gente de dicada ao SPI. Em 1912, quando
o ministro da G u e rra re quisito u a volta dos militares que estava m no SPI
aos quadros do Exé rcito, muitos abandonaram s uas carre iras para fi ca r
n o ó rgão indige nista. Grande parte desses quadros era formada p o r ge-
n e rais e coron é is, engenh e iros militares, a ntigos ajudantes de Ro ndo n
n o serv iço te legráfico. A e les foram se agregando cientistas, antropó lo -
gos, c ineastas, mé dicos e e n genhe iros, nacio n a listas, con servado res e
até comunistas. Com a Revolução d e 1930, o SPI foi re tirado do Minis-
té rio da Agric ultura, caiu de prestígio e passou um bo m período irre -
gular e obscuro, c h egando a ser um simples de partame nto da seção de
fro nte iras do Ministério da Gue rra. Aparentemente, isso se dera porque
Ro ndo n e ra um positivista 01todoxo que não admitia, ne m n a teoria
n e m n a prá tica, movime ntos revolu cio n á rios, e sim e tapas evoluc io ná -
rias. Getúlio Va rgas era um p ositivista pragmá tico, cercado de revolu-
c io ná rios pragmáticos , que fize ram uma revolução para to ma r o pode r,
e não gostara da falta de ap o io explícito de Rondon. ( Aliás, Rondon
h avia com a ndado um destacamento militar que tentara p ara r n o Paraná
a m a rc h a d e Getúlio rumo ao Rio d e Jane iro .)
Q u estão p essoal o u n ão, é impo rta nte n otar que d ura nte quase
toda a década de 1930, com esse vazio de prestígio político , muita
te rra indíge na foi p e rdida para faze nde iros locais e m São Paulo , Mato
Grosso, Mara nhão, Goiás e o utras regiões brasile iras e m e xpansão
agrícola . Entretanto , ao fin a l da década , depois que Rondon passara
três a n os como mediado r brasileiro do conflito e ntre Pe ru e Colô mbia,
n o alto rio Solimões, n a c idade de Taba tinga , Getú lio reconheceu o
valo r m oral e político do se u corre li gio n á rio e to m o u medidas para
recupera r o prestígio do SPI . Fo i cri ado, e m 1939, o Con selho Nacional
d e Proteção ao Índio, sob o com ando d e Rondon , para o rie nta r e s u-
p e rv is ionar as ações ind ige nistas do SPI. As ins p e torias regio n a is, loca -
lizadas e m 12 estados brasileiros , passaram a ter melh o res condições
d e trabalho , com novos quadros e p e rspectivas rea is d e d em a rcação
d e te rra s indíge n as .
94 Ü S fNDJOS E O B R A SIi.
//
Esse Decre to se ca racte riza pela dureza com que p ropõe com o ob-
je tivo do sr1 a nacionalização e incorporação dos índios. É e m função
dos te rmos desse Decre to que os críticos do srr e n contram mo tivos para
ach a r que a incorporação do índios à "comunhão nacion al" seria o pro-
pósito principal do ó rgão indige nista . Poré m h á que se le mbra r que,
n esse pe ríodo de 1930 a 1938, o sr1 havia sido re tirado do Ministé rio
da Agricultura e passara a integra r o Ministério do Exército com o uma
simples seção do De partame nto de Fronte iras, num claro sinal d e d es-
prestígio do espírito rondo nia n o .
Por sua ve z, a d efinição do que é te rra indígena vai se tornar d e ex-
tre m a impo rtânc ia para a histó ria do processo de demarcação de terras
indígenas . O se u fraseado é a inda um ta nto desengonçado , mas já con-
tém caracte r ísticas antropo lógicas n o m odo em que demonstra as vá rias
formas de ocup ação de uma te rra. Vale assina lar que e le veio regula -
mentar o a rtigo 5, item x1x, alínea m , da Constituição Federal , que to r-
n ara exclusivo da União a política indigenista ( visada com o objetivo de
in corpora r o índio à "comunhão n acio na l"), acaba ndo por fim a dubie-
p O 1. fT IC A S I N D I G E N IST A S 97
Art. 198 - As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos te rmos
que a le i federal dete rminar, a eles cabendo a sua posse pe rmanente e
ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclus ivo das riquezas
naturais e de todas as utilidades nelas existentes .
§ lQ - Ficam declarados a nulidade e a extinção dos efeitos jurídicos de
qualquer natureza que tenham por objetivo o domínio, a posse ou a
ocupação de te rras habitadas pelos silvícolas.
§ 2Q - A nulidade e extinção de que trata o pa rágrafo anterio r não dão
aos ocupantes direito a qualquer ação ou inde nização contra a União e
a Fundação Nacional do Índio .
se sensibiliza ndo pela causa indíge na e te rminaram a juda ndo aque les
que estavam na luta direta, n o o lho do furacão da expansão ag rícola
brasileira, te nta ndo gara ntir te rras para os índios que conheciam e com
quem trabalhavam. O impulso para essas atividades, no meu entende r,
vinha de um sentime nto inefável de amo r e devoção pela causa indíge -
na , c uja raiz mais profunda pode ser atribuída aos poetas e escrito res
indianistas do século XIX e ao sentimento de nacionalidade. Uma n ova
geração de indigenistas foi se formando pelos caminhos trilhados por
Rondon e seus seguido res que a inda continuava m na luta , apesa r da
ojeriza dos militares, como os irmãos Villas-Boas, Francisco Meirelles,
Noel Nutels, Cícero Cavalcanti , Carlos Moreira Neto, Gilbe rto Pinto e
tantos outros mais. Vinh am de todas as regiões do Brasil, de categorias
profissionais va riadas - desde e ngenhe iros, agrô nomos e topógrafos,
a a ntropólogos, advogados, contado res e jornalistas, técnicos va riados,
vendedores de lojas, ex-militares, motoristas, ex-comissárias de bordo
e tc. Gosta r do índio nunca foi atributo exclusivo de antropó logos e
afins. Assim, a n ova turma de indigenistas foi se formando n a prática,
vivendo nas a lde ias indígenas, comp ara ndo -se com os sertanistas do
passado , n o diálogo com os antropó logos e no relacio n amento te n so
com o resto da sociedade. Aos poucos, iriam se confrontar com os diri-
ge ntes militares e seus auxiliares , tanto na burocracia quanto no campo.
Em 1980, esses novos indige nistas criaram uma associação parassin-
dical que visava e n contrar m e ios e fo rça políticos para re alizar suas ati-
vidades com convicção, e não ficare m de p e nde ntes de suas funções o fi-
ciais e dos inte resses dos militares. Em resposta, em maio , a diretoria da
Sociedade Brasileira de Indigenistas e mais cerca de 40 membros foram
demitidos sumariamente da Funai. Por certo , desafiavam a presidê n c ia
do ó rgão, n aquela ocasião n as mãos de coron é is com estre ita ligação
com o Conselho de Segurança Nacional (csN) . Acossado a inda mais pela
opinião pública e pelos políticos da oposição, o governo militar la nçou
o Decreto n. 88 .11 8, de 23 de fevere iro de 1983, que re tirou da Funai
a p re rrogativa legal d e definir á reas indíge nas e d emarcá-las através de
um processo administrativo . Este passou a ser feito por um Grupo de
Trabalho que inclui diversos ministérios, como o da Reforma Agrária
(então Assuntos Fundiários) , Inte rio r , Planejamento e o p róprio Conse -
lho de Segurança Nacional, pode ndo esse GT convoca r quaisque r outros
órgãos federais o u governos estadua is para opinar sobre a legitimidade
ou n ão dos direitos indígen as sobre as te r ras postuladas. Consegu iu a
colabo ração de alguns antropólogos para avalia r a legitimidade das de-
m andas indígenas por n ovas te rras . Os processos de de marcação passa-
104 Os INDIOS E O B RASIi.
der p ara con stra nge r os índios ao sistema paternalista de re lac io namen-
to. Entre os mais de vinte grupos contatados, todos sofreram s ubstan-
ciais decréscimos populacionais e muitas perdas te rrito riais. Os índios
Kubenkrãkem - hoje conh ecidos por Pana rá - , Avá-Canoeiro, Waimiri-
Atroari, Paraka nã, Araweté, As urini , G uajá, Arara, Uru-eu-wau-wau,
Cintas-Largas, Suruí, Zoró, Salumã -atualme ntech amados Enawenê -Nawê,
Mynk y - e outros mais ficaram bastante conhecidos pelas reportagens
e matérias de televisão, a lgumas até excessivamente sensacionalistas.
Os Kubenkrãkem, contatados por conta da passagem da BR-163, que
e m três ou quatro a nos sofreram perdas demográficas de 70% de s ua
população, foram transferidos de seus te rritó rios para o norte do Parque
Indígena do Xingu. As te rras de vários outros foram invadidas pelas
e mpresas mineradoras, agropecuá rias e madeireiras, como nos Waimiri-
Atroari, Parakanã, Guajá, Cintas-Largas, Arara e tc. Entretanto, muitas de-
las viriam a ser recuperadas n o decorre r das décadas de 1990 e 2000.
Há ainda no Brasil cerca de 20 ou 30 povos autô n omos, ou me-
lh o r, grupos autô n omos, já que podem pertencer a povos já contatados,
muitos em á reas cobiçadas por inte resses econômicos ou projetos go-
vernamentais de mineração, estradas e hidrelétricas. Segundo a Funai,
esse número pode ser maior ou menor, já que os vestígios de presença
indígena são em número mais elevado, ressalvando-se que sinais de
vestígio de presença indígena e m determinado local se confunde m com
sinais em o utros locais, pode ndo ter s ido d eixados pe lo m esmo grupo
indígena. N esse sentido, a Funai, embora não estando aparelhada para
proteger esses povos , tem exercido uma sábia política de deixá-los vive r
à vontade, evita ndo apen as que venham a ser contatados por te rceiros
invasores de seus te rritórios. Essa política surgiu das m alfadadas exp e -
riê nc ias do indigenismo b rasile iro e m relação aos povos a utô nomos,
que, qua ndo contatados, sofriam te rríveis c h oques cultu ra is, eram aco-
metidos por gravíss imas epidemias e te rminavam perdendo express ivos
continge ntes populacionais. Os povos autôn om os agradecem por essa
sabedoria, poré m ninguém pode se ilud ir que a iminê n c ia de conta-
to com diversos desses grupos autôn omos n ão esteja se aproxima ndo,
como é o caso dos Guajá, que vivem n a T. I. Arariboia , n o Maranhão,
e os que vivem na projetada T. I. Fradinho , no oeste mato-grosse nse .
A maioria dos povos indígenas sobreviventes te m contato estabeleci-
do h á muitos a n os com a sociedade nacio n al mais ampla, a lgu ns deles
de forma muito inte nsa, seja pela proximidade aos centros urbanos , seja
p ela identificação com certos aspectos da socie dade rural e nvolvente.
Na velha te rminologia do Estatuto do Índ io, estão "em vias de integra -
106 Os INDIOS E O B RASIi.
va-se a isso a p o lítica inte rna d e to rna r-se a utossufic ie nte finan ceirame n-
te através da cha m ad a "re nda indígen a". As á reas que p o dia m p roduzir
m ade ira , com o as dos Ka ingan g e Gua rani , no Paran á , Santa Catarina e
Rio G rand e do Sul, rece b e ra m investime ntos e m fo rma d e impla ntação
d e se rra rias, o u fo ram arre ndadas p a ra e mpre sas mad e ire iras , n a ide ia
d e que iria m resulta r e m altos di vide ndos p ara os índios e pa ra o ó rgão .
Esses p roje tos n ão de ram certo , p rovocara m o d esm ata me nto d as reser-
vas flo re stais a inda ex iste nte s , e xtinguiram a fa una e até favo recera m as
invasõe s e ale gações d e p ropried ad e adquirida p o r p a rte d essas empre -
108 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.
A democ rac ia fez bem à Funai , como não podia deixar de ser, mas
a custo d e muita confusão e muitas frustra çõe s po r parte de to d os, es-
pecialme nte dos povos indíge nas. Os anos do governo Sarney foram
p O 1. f TI C AS I N D I G E N I S TA S 109
A Asse mble ia Constituinte con vocada para e lab o rar a n ova Constitui-
ção abriu-se p a ra a contribuição e p a tticipação de índios, do m ovime nto
indígena, d e a ntropó lo gos individu alme nte (inclu sive e u m esm o), d as
ONG S la icas e re ligio sas e da Associação Brasile ira d e Antropo logia . Po r
e ssa p a rticipação e p elo clima fa vo rável aos dire itos de mino rias e m
ge ral, o resultad o foi extrem am e nte p ositivo p a ra os p ovos indíge n as,
ga rantindo-lhes seu s dire itos com m a is cla re za . A Con stituição Fe de ral
d e 1988 , além de vário s artigo s concern e nte s aos índios como cida dãos
e como uma das mino rias da nação, produziu um artigo fundame nta l
que trata de seu s d ire itos específicos e um seguinte sobre a obrigação
do Ministé rio Púb lico Fede ral de lhes assistir juridicame nte e m es pecial.
Art. 231. São reco nh e cidos aos índios su a o rga nização social, costumes,
líng uas, cre n ças e tra dições, e os dire itos o riginá rios sobre as te rras que
tra dicion alme nte ocupa m , compe tindo à União d e ma rcá-las, proteger e
faz e r resp e ita r to dos os seus be ns .
§ 1 Q São te rras tradicion a lme nte ocupad as p e los índios as por e les ha bita -
d as e m cará te r pe rma n e nte, as utiliza das p o r s uas a tividad es pro dutivas,
as imprescindíveis à preservação d os recursos a mbie nta is n ecessá rios a
seu bem-esta r e as n ecessárias a s ua re produção física e c ultura l, segun-
d o seus usos, costumes e tradições .
§ 2Q As te rras tradicio na lme nte ocupa d as p e los índios destina m-se a su a
posse pe rma n e nte, cabendo -lhes o usufruto exclusivo das riquezas d o
solo, d os rios e d os lagos n e las existentes.
§ 3Q O a proveita me nto d os recursos hídricos , incluídos os po te nci a is
e n e rgéticos, a pesquisa e a lavra das riqu ezas mine rais em te rras indíge-
n as só p od e m ser e fe tiva dos com a uto rização d o Con g resso Naciona l,
o uvidas as comunida d es afe ta d as, ficando -lhes assegura d a pa rticipação
n os resultados da lavra, n a fo rma d a le i.
P OJ.fTJC AS INDIGENJSTAS 111
e m ocupação de uma certa á rea n aque la da ta. É de se esp e rar que mui-
tos p rocessos de d e m a rcação e m a nda m e nto p e los tribuna is regio n a is
d e ju stiça eventualme nte faça m o seu caminho até o sTF p a ra decisão
final, o u p ara ma is indecisões jud ic ia is .
O utro p o nto que viro u osso d e disputa diz resp e ito à inte rpre tação
d o § 3º, esp ecia lme nte e m re lação ao licen cia m e nto d e hidre létricas . O
caso da Usina Belo Monte dem o n strou o quão difícil é o bte r a legiti-
midad e p a ra se construir uma hidrelétrica pela con sulta às p o pulações
indíge nas, como ve re mos m a is adia nte, n a seção "Os inte resses econ ô -
micos" d o capítulo "A s ituação a tua l dos índios ".
Um te rceiro p o nto de valo rização da Con stituição Fed e ral é precisa-
m e nte a prime ira con ceituação sobre índ ios, e ncontrada no caput do
a rtigo 231, qua l seja, o reconhecime nto da o rga nização socia l, costumes,
lín guas, c re n ças e tradições d os povos indígenas . Segundo uma inte rpre -
tação corriq ue ira e ntre ad vogad os e a ntro p ólogos , some nte através des-
sa sente n ça é que os índios p assaram a ser efe tiva me nte conside rados
p ovos n o se u próprio dire ito, e não socie dad es o u g rupos que deveria m
ser integradas à socie da de bras ile ira. Pa ra muitos, o Estatuto do Índio,
e mbora resp o n sável pe la d e marcação d e tantas te rras ind ígen as , estaria
cadu co p o r con star com o seu p rop ósito funda me ntal: embo ra preser-
vando s uas c ulturas, os índios d everia m se r integrados, "p rog ressiva
e ha rmo niosam e nte , à comunhão nacio n a l". Po r conta d esse frasead o ,
da contra rie dade à n oção d e integração , muita m ovime n tação p o lítica
vem se n do c riada p elas O NG S e pe lo m ovime nto ind íge na p ara q u e o
Con gresso N acio n a l vote uma pro p osta de um n ovo estatuto p a ra os
índios , reti rando a questão da integração, com o se esta n ão fosse uma
re alidade a uto e vid e n te , e com o se fosse o me sm o q ue assimilação o u
n ecessária de struição de autoid e ntidade, e adic io na ndo a rtigos que re -
gula me nte m te mas com o mine ração e m te rras indígen as, construção d e
hidre lé tricas que a fe te m te rras indígenas , valo rização dos recursos na tu-
ra is e o utros m ais . O risco d e que o Con gre sso te rmine m odifica ndo o
velh o e se g u ro Estatuto do Índ io, retira n do pre rrogativas d e de m arcação
d a Funai e mo difican do obrigações d o governo federal, p o de faze r essa
m ovime ntação p o lítica to ma r juízo p o lítico e re fluir.
Efe tivame nte, o título u1, e os a rtigos 17 a 25, que tratam d as te rras
indígena s , constitue m , com muita cla re za, o s ele m e nto s jurídicos pa ra a
d em a rca ção dessas te rras . Eles consideram a ocupação indíge na da te rra
d e acordo com os u sos, costumes e tra dições triba is; reconhecem os di-
re itos d os índios às sua s te rras "inde pende nte d e s ua de marcação"; e
d ão com o um d os crité rios pa ra o reconh ecime nto do dire ito sobre d e -
te rminada te rra "a situação a tu al de ocupação e o con senso histó rico so-
bre a a ntiguidade da ocupação" . Esses artigos d e ram uma pro fundidad e
jurídica , numa m od e rna conceituação d o antigo conceito d e indige na to,
que favo rece u n ão som e nte a d e m a rc ação d as te rras a té e ntão reconhe -
c idas, como fo rtaleceu as condições indígen as p a ra sua continuidad e
histó rica e su a p e rmanê n cia n a n ação brasile ira. Se e les suste ntaram os
principa is a rgume nto s p a ra a d e m a rcação da s te rras indíge nas até agora,
p od e rão auxilia r a concluir esse processo n os pró ximos anos .
Muitas ONGs têm criticado o Estado brasile iro p o r não te r até agora
concluído a de m arcação d as te rras indígen as, cujo pra zo, aliás, hav ia
s ido d ad o com o de c inco anos p e las Disposições Transitó rias da Cons -
tituição - portanto, a té o utubro d e 1993 . O ra , de ma rcar te rras indígenas
nunca foi fác il e as dific uldad es só tê m piorad o; poré m , diversas n ovas
te rras fo ra m reconhecidas a p ós o ve n cime nto d esse prazo . O u dilata, o u
igno ra esse prazo, p o is não have rá razão para se fix ar n o te mpo algo
que conté m a impre scindível ma leabilidade d o processo histó rico .
Desde a Constituição Federa l, o p rocedime nto de d em a rcação das
te rras ind íge nas te m sido m odificado ao lo ngo d os anos, p o ré m , sempre
sob a inic ia ti va e pre rrogativa d a Funa i. Em linhas gerais, cabe ao ó r-
gão : reconhecer as d e m a ndas indígen as; a n a lisar seu m é rito; d e limitar,
junto com os índ ios inte ressad os (através de um Grupo de Trabalho),
o p e rímetro d a te rra; publicar o relató rio a ntro p ológico p a ra ser revis -
to o u contestado p o r te rceiros; a na lisar as objeções, reconhecê-las e m
to do, e m pa rte, o u d e negá-las; e, ap ós o aval d o Ministé rio da Justiça,
contrata r e mpresas d e d em a rcação p a ra realizar a ta re fa in situ . Po r fim,
colhe r as cade rnetas d e de ma rcação, faze r os m a p as com limites e le -
var o pro duto fin a l p a ra o Ministé rio da Justiça d ete rminar s uas ú ltimas
ave ri guações e d ecisões p a ra chega r à presidê n cia da Re púb lica pa ra
h om ologação fina l. Com o última ta re fa administrativa, cabe uma vez
m ais à Funa i registra r a terra ind íge na nos livros do Serv iço d e Patrimô -
nio Federal com o te rras da União . Mesmo n o p e ríod o difícil dos a n os
Sarney, a Funa i n ão de ixo u d e cria r g rupos de trabalh o p a ra ide ntifica r
te rras ind ígen as . Q ua ndo o presid e nte Collo r tom o u p osse, e m 1990,
n os dois a n os seguintes, uma qua ntidad e su perio r a 120 terras indígen as
114 0 S f N D I OS E O 8 R AS 1 1.
pada de um grupo indíge na e p ossa ser rec uperada p ara seus legítimos
donos. A súmula de 19 de março de 2009, com uma dureza de decisões
contrárias à Funai e aos índios, vem sendo contestada por ambos os
lados de inte resses e já foi julgada por diferentes ministros do sTF com
resultados diferentes.
Saúde indígena
Até 1999, a assistê n cia à saúde dos índios era atribuição da Funai,
e m conso n â n cia com o Estatuto do Índio. Os índios estavam em le nto,
mas con sistente crescimento populacional há pelo menos 30 anos, mes-
mo aqueles que tinham sido contatados na década de 1970 e sofrido
inte n sas perdas populacionais n os primeiros a n os de con vivê nc ia com
segmentos da sociedade nacio nal. Porém, era evide nte que a Funai não
tinha o rçamento nem quadros para expandir seu serviço de saúde a
conte nto. Calhava ou de aumentar seu efetivo ou mudar. Naquele a n o,
depois de muitas re uniões com lideranças indíge nas e ONGS, a respon-
sab ilidade sobre a saúde indíge na foi passada p o r decreto presidencial
para a Funasa, ó rgão do Ministério da Saúde, sob a justificativa tecnocrá -
tica de que saúde indígen a, embora devesse ser cuidada com a devida
especificidade, era para ser tratada pelo ministério próprio. Desde 1986,
a liás, o gove rno, sob a consulto ria de a lg uns raros a ntropó logos, vinha
plane jando re tirar da Funai algumas ações que lhe pareciam inadequa-
das , como a saúde, a e ducação e o fom e nto às atividades produtivas.
Naquele tempo , a maioria dos a ntropólogos a inda ac h ava que a Funai
deveria continuar a ser o único ó rgão a c uida r da questão indíge na,
m esmo porque tinha uma tradição ind ige nista já bastante res p e itável,
própria e he rdada do m e lho r do velho SPI . O fra cionam e nto da Funai e ra
visto como seu e nfraquecimento e, portanto , como uma política de des-
valo rização do Estado para com os índios. Entretanto , fo ram as ONGS que
influe n ciaram o governo Fttc a faz e r essa transfe rê n cia, justificando-a
inclusive com a ide ia d e e ficácia e aumentos orçamentários.
Nos 12 a n os de ativ idades sanitá rias, a Funasa c umpriu o excele nte
papel de obter, para a gra nde maioria das a lde ias indíge nas do país,
cerca de 5.500 de las, água potável, seja através de poços semia 1tesia n os
ou p ela canalização d e água d e fontes potáve is. Embora com muitas
exceções, as a lde ias h oje desfrutam de s istemas de captação e san ea-
mento de água e de distribuição em pontos gerais, como os chafarizes
d e outrora . Poré m , não tanto valorizados esteticame nte . Com isso, a
116 0 S I N D I OS E O B R AS 1 1.
Desenvolvinlento etnoeconôm.ico
Sob esse título incluo tod as as ativ idad es que traze m alg um tipo d e
re nda para o s p ovos indígenas . Etn oeconontia é um te rmo que p od e
implicar tão some nte a econ o mia pró pria d e cada povo indígena , no seu
m od o de a uto n o mia p o lítica, talvez num sentido de a ume nto de produ-
tivida de . Entretanto, con side rando que a grande m aio ria d os p ovos indí-
ge nas vive e m contato com a socie dade brasile ira, p o lítica e econo mica-
m e nte , te ndo ad otado h ábitos exógen os às suas cultu ras que n ecessita m
d e ingresso de be ns e re ndas, po d em-se incluir n esse te rmo as atividades
relacio na das à p rodução d e be ns p ara ve nda, os salá rios, d oaçõe s e re n-
d as adquiridas d e tod os os m od os possíveis - tais com o pla ntio e colhe i-
ta d e p rodutos n ativos p a ra ve nda ( fa rinha d e m a ndioca, abóbo ra , fe ijão,
uruc um, milho na tivo, abacaxi, p e qui, pinhão, pe ixe e ta rta ruga) ; plantio
e colhe ita de p rodutos não na tivos (soja, milho tra nsgê nico, a rroz, m el
d e a b e lh as e u rop e ias e tc .) ; pro dutos a rtesana is ( arcos e fl ech as, cocares,
colares , ce râ mica e m ge ral , b a n cos a ntropo mó rficos d e ma de ira e tc .) ;
a rre nda me nto de te rras - e, p o r fim , ga nhos d e salá rios , seja p o r empre -
gos públicos , contratos com faze nd e iros locais o u o utras m od alidad es .
No p e ríod o colo nia l e m esm o durante o Impé rio, e m a lgumas p a r-
tes do Bras il , a m ão d e obra indígena foi disputad a por colo nizad o res
e missio n ários , os prime iros p a ra as tare fa s de d e rrubad as d e matas,
fabricação de carvão , ce staria simple s, vasos d e ce râmica p ara conte r
o m e laço e produzir os "p ães de açúcar", pla ntio e colhe ita de tab aco,
colhe ita de p rodutos s ilvestres, se rviço do m éstico e , sobre tudo , p escaria
p a ra a lime ntar a escrava ria e tc . Com os missio n á rios, o se rv iço indíge n a
P OJ.fTJC A S INDIGENJSTAS 119
e létrica , hidre lé tricas p eque nas e grandes que impactam sua s te rras , e
até e mpresas e ONGS estrange iras que fornecem recursos visando a a l-
gum be ne fício e m troca, seja o conhecime nto etno bio lógico o u até a
garantia de que não d e rrube m sua s ma tas!
Recompe nsas p o r serviços ambie ntais, como preserva r a flo resta,
os rios e d em a is recursos n aturais, tê m se to rnado um me io b astante
atrae nte para d ete rmina dos povos indíge n as da Amazô nia, o u certas
lide ra nça s, se inserirem e m um novo m e rcad o econô mico . Contratos
d e carbon swap, o u "troca d e carbo n o", tê m atra ído muitas a lde ias o u
até s imple s famílias indígen as . O s índios prome te m pre se rva r a flo re sta
p o r uma d ete rminad a qua ntia fixa , pa ga a nu alme nte . Em compe n sação
as e mpresas o u ONGs que consegue m tais acordos ve nde m a e mpresas
e urope ia s e ame ricanas uma e spécie de licen ça para e las e mitire m mais
uma d e te rminad a qua ntidad e d e co 2 , a qual, n o ca so, é compe n sada
p ela preservação de equivale nte á rea de flo resta que em tese ab sorve o
e qui vale nte d e ca2 e mitido . Pa rece até uma coisa s imples e le gal: ga nhar
dinhe iro sem faze r na da, ap e n as preserva r suas ma tas! Po ré m , há dúv i-
d as ética s sobre esse tipo d e n egócio e a té agora o Brasil n ão se d e finiu
se o ace ita com o tal o u não . Assim, tod os o s acordos re aliza dos até o
m om e nto carre gam um quê d e ilegal e indefinido .
Em s uma , o d esenvolvime nto etnoecon ômico dos p ovos indígen as
constitui o g rande desafi o de qualqu e r p o lítica indige nista decente n o
Brasil. Descobrir as "vocações", as te ndê n cias inte rnas das e tnoeco-
n omias, exp e rime nta r, con ecta r a Embrapa e o utras instituições econ ô-
micas brasile iras com essas econo mias é funda me nta l p a ra que as so-
c ie d ad es ind íge nas p ossam e n contra r seu s caminhos d e a u tono mia
econô mica, n ão uma ilusória a utossuficiê nc ia, base p a ra su a econ omia
p o líti co-c ultura l.
últimos anos que nos força a reavalia r essa realidade social supostamen-
te inexorável. Não vão se acabar, não tê m de d esaparecer como povos
da terra; portanto, não h á por que tratá-los piedosamente como filhos
bastardos portadores de doenças mo1tíferas.
Igualmente, a s ua propalada limitação de adaptação ao mundo mo-
derno, por se rem vistos como "sociedades primitivas", não pode ser um
fato cultural inato, como bem vêm demonstrando as pesquisas antro-
p ológicas há mais de 100 anos, mas uma inte rpretação política de uma
c ivilização que te m a s i mesma como padrão e destino para todas as
c ulturas e civilizações que já existiram no mundo. A teo ria da evolução
deu-lhe um fundame nto científico que ela ostenta e desfralda arrogante-
mente, passando p o r cima inclusive de o utras grandes civilizações, com o
a indiana e a c hinesa. Po ré m , não se pode deixar de no tar que essa ban-
deira está um tanto quanto desb otada , e que p ara buscar novo brilho
ela tem de se abrir para a contribuição de o utras c ulturas e de o utras
c ivilizações. Dessa forma, é possível que as culturas indígenas venham
a ser e ncaradas como viáveis sob todos os pontos de vista , sem a con-
descendência de serem reduzidas a c ulturas singulares e incompa ráveis,
e m que o relativ ismo c ultural da a ntropo logia lhes con cede atualmente.
Enfim, h á sinais filosóficos e políticos, bem como novas condições
o bjetivas, p ara se imagina r que o pate rnalism o, seja por quais s ubte rfú-
gios se apresente, se acabe tanto de fato como de direito. Aí podere m os
p e n sar seria me nte na c riação de uma nova política ind ige nista que abra
caminho para a sobrevivên cia cultura l e a coexistên cia resp e itosa com
os índios. O que vivem os h o je representa a crise do paternalismo, por
um lado, e a c rise da libe rtação, por o utro, conc retizadas p e lo c resci-
m e nto de mográfico indígena e por sua busca d e participação p o lítica .
Mesm o as fo rças a nti-indígenas sabem que n ão pode m ma is tratar os ín-
dios como c ria nças, embora a inda procurem e n gan á-los . Nós , sociedade
c ivil , indigenistas e a ntropólogos, reconhecem os nosso limitado poder
para direcio na r os rumos d essa possíve l n ova política . Mas devem os
sempre te ntar, m esmo porque o mundo muda por o utras razões .
com força de le i. O Brasil aprovou essa Conve nção e m 2004, porém até
agora m e nos de trinta países a aprovaram efe ti va me nte - n ão assinaram,
e m especia l, os Estados Unidos, Can adá, Austrália e N ova Zelâ ndia. A
principal inovação dessa lei e m re lação ao Estatuto do Índio brasileiro é
a a firmação, n o seu artigo 6Q, parte 1 , seção a, de que cabe aos governos
Ma is um ava nço para os p ovos ind íge nas . Entre ta nto, uma declaração
d a ONU não te m fo rça vinc ula nte, dizem os esp ecia listas d o d ire ito inte r-
n acio n al, e com isso concordam quase todos os p aíses o nde h á povos
e p o pulações indíge nas, com o intuito de acatar tão some nte aque les
p o ntos que cons ide ram n ecessários e suficie ntes p a ra p e rman ecere m n a
lista dos fi é is signatá rios d a tão famosa Declaração Unive rsal d os Dire i-
tos d os Povos Indígen as . Fo i dessa fo rma e com tal espírito que, afina l,
o B rasil assino u essa Declaração, n ão sem a ntes apresentar um voto e m
se p arado n o qual a firmava o resgua rdo à su a soberania sobre as te rras
ind ígenas em seu te rritó rio, ne m sem con sultar os nossos milita res a pro-
p ósito d as implicações desse ato e m re lação a p ossíveis de cla rações d e
sobe ra nias indíge nas sobre as te rras que ocupam , sobretudo em regiões
d e faixa d e fro nte ira .
O receio d o Bras il sobre essa Declaração não é g ratuito, fruto a p e n as
de uma p a ra n o ia milita r , p o is é compa ttilhad o p o r vários o utros p a íses .
132 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.
NOTAS
' Ver Georg Friederici, Caráter da descoberta e conquista da América pelos europeus, Rio d e Janeiro ,
Instituto Nacional do Livro, 1967; Antônio Ba ião et ai., História da expansão portuguesa no mundo,
Lisb oa, Editorial Ática, 1939, 3v.
' Ver Charles André J ulie n, Les voyages de découverte et les prem.iers étab/issements xv-xn siécles,
Paris, Presses U niversitaires Fra nça ises, 1948.
3 A B ula Romanus Pontifex e ncontra-se e m Antô nio Baião et ai., op. cit.; a Bula Inter Coetera, e m
citação d o trecho de u ma carta do jesuíta Luiz de Grã ao fun dador da Compa nhia de Jesus, Padre
Inácio d e Loyola, em 1553, que diz: "Este gentio, padre, não se converte com lhe dar coisas da
fé, nern corn razões, nen1 con1 palavras de pregação".
s O texto completo dessa carta régia e da maioria das citadas e m seguida pode ser e ncontrado
em Joh n He m ming, Red Cold, o p . cit.; Georg Thomas, A política indigenista dos portugueses no
Brasil, 1500-1640, op. cit.; José Oscar Beozzo, Leis e regimentos das Missões, São Pa ulo, Loyola,
1983; Mathias Kie men , The lndian Polícy of Portugal in Ameríca with specíal reference to the State
of Maranhão, 1500-1 755, Washington, The Catho lic University Press, 1955; Agostinho Perdigão
Ma lhe iro , A escravidão no Brasil, Petró po lis, Vozes, 1976 v. 11; Ca rlos d e Araújo Moreira Neto, '·A
política indigenista brasile ira durante o século XIX", op. cit. A a nálise que se segue, no entanto, é
d e minha intei ra responsabilidade.
6 Ver João Lúcio de Azevedo, Os j esuítas no Grão-Pará , suas missões e colonização, 2. ed. , Coimbra,
Imprensa d a Universidad e , 1930. Sob re o período pombalino ver, e m especia l, Marcos Carneiro
d e Mendonça, A Amazônia na Era Pombalina, Rio d e Ja ne iro, Revista d o Instituto His tó rico e
Geográfico Brasileiro, 1963, 3 v .. Sobre o trabalho dos jesuítas e s uas missões no Brasil, ver Padre
Serafim Le ite, H istória da Companhia de jesus no Brasil, Rio de Ja ne iro, Instituto Nacional d o
Livro, 1938-1950, 12 v.
p O 1. f TI C A S I N D I G E N I S TA S 137
7
Um exemplo bem d ocume ntado des.sas d isputas se e ncontra na p ublicação do Ced eam, com o
título Autos de devassa contra os índios Mura do Rio Madeira e nações do rio Tocantins, 1 738-1 739,
Manaus, U niversidade do Amazonas/iNI., 1986. Versa sobre a proposta dos jesuítas e administradores
o ficiais d e aniquila r os Mura porqu e esta riam ameaçando as fazen das de jesuítas e particulares
na região. Este exemplo se multiplica dura nte todos os séculos XVII e XVIII na Amazônia e, para o
restante cio B rasil, nos séculos XVI e xv11.
8
O papel da mão d e obra indíge na no projeto colonial é freq ue ntemente s ubestimad o pelos his-
toriadores ao alegarem que a escravidão negra foi iniciada logo nos p rimórdios da colonização
d a Bahia e de Pernambuco. Mas a verdade é que, até a chegada d os hola ndeses, es.sa mão de
obra foi imprescindível. Na Amazônia, ela permaneceu importante até o boom da borracha, a
partir de 1870, quando houve maciça imigração d os nord estinos. Como guerreiros, os índios
foram importantes na expulsão dos fra nceses, holandeses, irlandeses e ingleses, estes últimos no
baixo Amazonas. A disputa pe las te rras começou com as doações que o re i, os governadores e
capitães-mores faziam aos portug ueses em territó rios cios índios. A estes eram também "doadas"
terras, sempre em tama nhos menores d o que seus territórios originais.
9 Es.sas disputas constituem u ma parte essencial da história jesuítica e, de certa forma , dão o tom
19 No '·Mappa Estatístico dos Aldeamentos de índios de que há notícia na Repartiçáo Geral das Terras
Públicas", publicado pela própria, em 20 de abril de 1856, consta a demarcaçáo das seguintes glebas:
Ald eia Abrantes ( sA) - 2 léguas quadradas. Aldeia S. Antônio (sA) - 10 léguas quadradas. Aldeia
N. Senhora da Saúde (sA) - 1/ 2 légu a qu adrada. Aldeia Soure (sA) - 1/ 2 légua. Aldeia Pombal
( sA) - 1/ 2 légua . Aldeia Mirande la ( sA) - 1/ 2 légua. Aldeia Bom Jesus da Glória (BA) - l légua
quadrada. Aldeia Santarém (BA)- ! légua quadrada. Aldeia Barra d o Salgado (AL) - ! légua quadra-
d a. Almeida Mamara ng uape (Ps) - 12 léguas quad radas. Aldeia lacoca (Ps) - 5 léguas quadradas.
Ald e ia Urucu (AL) - 4 léguas quadradas. O núme ro de aldeias reconhecidas chega a mais de 160
que, supostamente, deveriam ter suas terras demarcadas, poré m náo constam mais registros nos
mapas emitidos posteriormente. De qualquer mod o, as estatísticas oficiais do Império sobre índios
são sempre d e péssima qualidade e falta de clareza , inconfiáveis sob muitos aspectos.
"' Ver José Maria d e Paula, Terra dos índios, boletim n• l do Serviço de Proteçáo aos índios, Rio de
Ja ne iro, Imprensa Nac ional, 1944.
21
Ver Migue l lemos e Raimundo Te ixeira Mendes, "Bases d e uma Constituição política ditatorial
federativa para a República B rasileira, 1890", em Anais da Assembleia Nacional Constituinte, 2 v. ,
1892. Ver também Humberto d e Oliveira, Coletânea d e leis, atos e memórias referel!Te ao indígena
brasileiro, publicação n• 94, Conselho Nacional de Proteçáo aos Índios, Rio de Ja ne iro, Imprensa
Nacional, 1947.
22
Sobre o Rio G rande do Sul, ver Plínio Dutra , "Extrato do Parecer do Dep. Plínio Dutra , Relator d o
Inquérito q ue investiga a situação dos Toldos Indígenas do Estado", Assembleia legislativa Estadual
d o Rio Grande do Sul, 1967. Ver também lígia T. L Simonian (org.), A defesa das terras indíge-
nas: Uma luta de Moysés W'estphalen, Ijuí, Cadernos do Museu Antropológico "Diretor Pesta na ",
outub ro de 1979. Os missionários salesia nos foram para Mato Grosso em 1890; os capuchinhos
vie ram ao Pará e Maranhão logo em seguida , e m 1895; os dominicanos se instalaram em Goiás
e no s ul do Pará nessa mesma década; os francisca nos fun daram uma missão no alto d o Tapajós
no iníc io d o séc ulo. Os positivistas, sobretudo Teixeira Mendes, no Rio d e Ja ne iro, e o Centro de
Ciências letras e Artes, d e Campinas, publicaram diversos artigos sobre os índios e a necessidade
d e protegê-los pe la açáo do Estado. São exemplos: J. Mariano de Oliveira, '·Pe los indige nistas
brazileiros", Publicação d o Apostolad o Positivista Brasileiro , 1894; R. Teixe ira Mendes, "Ainda
os indíge nas do Brazil e a política moderna·', publicação n• 253, loc. cit., 1907; "O sientismo e a
d efesa dos indíge nas brasileiros: a propósito do artigo do Dr. He rmann von Ihe ring ", '·Extermínio
d os indíge nas ou dos sertanejos", p ublicado no Jornal do Commercio, 15-12-1909, loc. cit. , 1909;
"A civilização d os indíge nas brasileiros e a política mode rna", publicaç.'\o n• 294, loc. cit., 1910; "Em
d efesa d os selvagens brasileiros", publicação n• 300, loc. cit. , 1910. Miguel l e mos, "José Bon ifácio:
a propósito do novo Serviço d e Proteçáo aos Índios", p ublicaç.'\o 305, loc. cit. , 19 10.
23 Ver He rmann von Ihe ring, "A Antropologia do Estado de São Paulo"', e m Revista do Museu Pau-
lista, t. vn . 1907, pp. 202-57. Ver também R. Te ixe ira Mendes, "O sie ntismo [sicl e a d efesa dos
indígenas brasileiros", op. cit.
24
Ver Cândido Mariano da Silva Rondo n , Relatórios dos trabalhos realizados de 1900a 1906, Conselho
Nac io nal de Proteç.'\o aos Índios, p ublicaç.'\o n• 69-70, Rio de Ja ne iro, Depa rtame nto de Imprensa
Nacional, 1949. Conferê ncias realizadas nos dias 5, 7 e 9 de setembro de 1915, p ublicação n• 42
d a Comissão de linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, Rio d e Ja ne iro,
Impre nsa Nac io nal, 1946.
,s Ver Darcy Ribeiro, A política indigenista brasileira, Rio de Jnae iro, Ministério da Educação e Cul-
tu ra, 1962 . Ver L B. Horta, Pelo {ndio e pela sua Proteção Oficial, 1923, 2. ed. com aditamento d o
Major Alípio Ba nde ira , "Em defesa d o índio", Rio d e Ja ne iro, Depto. de Imprensa Nacional, 1947;
R. Te ixe ira Mendes, "A proteção republicana aos indíge nas brazileiros e a catequese católica dos
mesmos indíge nas", Publicação n• 349, Revista do Apostolado Positivista Brasileiro, 19 12.
26
Esse p restígio é recon hecido, e ntre o utros, por John Collie r, que foi o diretor d o Bu reau of Indian
Affairs, ó rgão indigenista d os Estados Unidos, no pe río do de 1933 a 1945, e também no Prime iro
Congresso Indigenista Interamericano realizad o e m Patzcuaro, México, e m 1943.
TI Para u ma discussão desses artigos e das constituições seguintes, com u m resu mo dos come ntários do
jurista Pontes de Miranda, ver Manue la Carne iro da Cunha, Os direitos dos índios, op. cit., p p. 82-94.
28 Ver Se rviço de Proteção aos Índios, Boletim Anual, 1955 Darcy Rib e iro, em seu artigo Língu as
e culturas indígenas do Brasil, Rio d e Ja neiro, Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais, 1957,
p. 36, come nta que, em 1953, os dad os que obtivera dos postos e ins petorias do SPI apontavam
u m nú mero de 150 mil índios naque le ano. Posterio rme nte, e le achou necessário corrigir alguns
d esses nú meros e, ao fin al, por uma computação tipológica das populaçôes indígenas, chegou a
u m número que varia entre 68. 100 e 99.700. Se 100 mil é um número possível, concluímos que
as populações indígenas começaram le ntame nte o seu processo de crescimento logo após esse
nadir, acelerado na d écada d e 1970.
p O 1. f TI C A S I N D I G E N I S TA S 139
"' Ver meu e nsaio "Por que sou rondoniano", em RevistaEstudosAmnçados, 23 (65), 2009, pp. 173-191.
31 O estado de calamidade dos índios e os esc'l ndalos adminis trativos tiveram repe rcussão nacional
e internacional. Ver o artigo de Norman Lewis, '·Genocide", publicado na revista americana The
Sunday Times Magazine, 22-2-1969, e em várias revistas europeias. Em 1970, a convite do governo
brasileiro, uma comissão da Cruz Vermelha visitou diversas áreas indígenas, du ra nte alguns meses,
e publicou alguns artigos e livros, que , se não confirmam as acusações de genocídio e etnocídio,
d eixam a administração da política indige nista com uma péssima image m de desle ixo, irresponsa-
bilidade, ignorância e falta de dete rminação na defesa dos índios. No a no seguinte, uma comissão
d a Aborígines Protection Society também visitou áreas indíge nas do país. Ver Bo Akerren, Sjouke
Bakker e Rolf Habe rsang, Report on the LCRC Medical Mission to the Brazilian Amazon Region,
Gene bra , Comité International de la Croix Rouge, 1970. Ver també m Robin Hanbury-Te nison,
Report of a Visit to the Jndians of Brazil, Lond res, Primitive Peoples Fund, 197 l. A repe rcussão
nacional começa pe las reportage ns nos p rincipais jornais, denunciando esses acontecimentos.
Em junho d e 197 l , um grupo de 80 antropólogos e cientistas brasile iros redigiu um documento
intitulado "Os índios e a ocupaç.10 da Amazônia'', no qual denunciaram os planos avassaladores
d o governo militar em relação à Amazônia e às terras indíge nas. Esse d ocumento est<"Í no livro
La Situacíón Indígena en América dei Sur, op. cit., pp. 449-53.
32 O histórico jorna lístico d esse projeto , bem como as manifestações cont rárias d e diversos seg-
me ntos da sociedade civil brasile ira , pode ser e ncontrado em Comissão Pró-Índio, A questão da
emancipação, caderno nº l , São Paulo, Global, 1979.
33 Muitos desses programas foram elaborados por linguistas-missionários do Summer Institute o f
linguistics, entidade norte-americana que ma nté m missões e ntre índios no Brasil. Outros foram
feitos pela equipe de educação da própria Funai, e outros mais por universidades brasileiras.
Para um balanço dessa problemática, ver Comissão Pró-Índio /São Paulo, A questão da educação
indígena, organizado por Aracy lopes da Silva, São Paulo, Brasiliense, 1981.
34 Ver Noel Nutels, "Plano para uma campan ha de defesa do índio brasileiro contra a tuberculose",
Separata da Revista Brasileira de Tuberculose, v. xx, 1952; "Me dical Problems of Newly Contacted
Indian Groups" em Biomedical Challenges Presented bJ' the American Jndian, nº 165, pp. 68-76,
Washington, Pan American Health Organization, 1968.
3s Os dados demográficos sobre os Urubu-Kaapor vêm de Darcy Ribeiro, Os fndios ea civilização,
op. cit., de relatórios do Sr. Fred Spatti, ex-chefe de posto e ntre esses índios, e do próprio autor.
Ver, também, dois casos analisados por um médico de larga experiência indige nista: João Paulo
Bote lho Vieira Fill10, "Aumento de mográfico das populações indígenas Xikrin e Suruí", e m Revista
Paulista de Medicina, v. 79, n. l-2, 1972.
36 Ver Sílvio Coelho d os Sa ntos, Educação e sociedad es tribais, Porto Alegre, Movimento, 1975, p p.
46-51. Ver também Renate Viertler, ··o pro jeto Tadarimana e s uas consequê ncias sociais e ntre
os índios Bororo", em Comissão Pró-Índio, São Pa ulo , Globo, l98 l ; Betty Mindlin l afer, '·A nova
utopia indígena: os projetos econômicos", em Ca rmen J unqueira e Edgar de Assis Carvalho (org.),
Antropologia e indigenismo na América Latina, São Paulo, Cortez, l98 l.
37
Esta tese está desenvolvida em meu livro O índio na História, op. cit. , ca p . VI .
38 Essa noção de colonialismo inte rno foi elaborada por Miguel Bonfil Batalla, em "EI concepto dei índio
en América: una categoría de la situación colonial", em Anafes de Antropologia, v . 9, p p. 105-24, 1972.
YJ Para exemplifica r com os países mais populosos, na China são llO milhões d e indíge nas per-
te ncendo a 54 gru pos étnicos o u "nacionalidades". As nacionalidades Miao, Mongol e Tibetana
têm populações com mais d e 5 milhões de pessoas, e nquanto os Gaoshan, lho ba , Drung e
Oroqin tê m menos d e 7 mil cada. A Índia reconhece 645 "tribos distritais '', não povos, com uma
população total b e irando os 90 milhões. Nos Estados Unidos, cerca d e seis milhões d e pessoas
se autoidentificam como indíge nas, po ré m só 2 miU1ões de pessoas s.10 insc ritas como me mbros
por u mas das 566 tribos reconhecidas pela Federação.
40
Amenizando esse e píteto há de ser esclarecido q ue e m 2008 a Austrália fez uma grande cerimô nia de
homenagem aos povos Aborígenes, com promessas de restituição d e seus dire itos sobre terras, re-
cursos naturais e inserç.10 na sociedade, e assino u solenemente a Declaraç.10. Em 2010, os outros três
países segui ram o mesmo caminho . E, afinal, nad a de mais aconteceu a s uas integridades te rritoriais.
41
Recentemente , o mundo indígena foi tomado de s urpresa com a publicação do Decreto 303, pela
Advocacia -Geral da U nião, que reconhece to das as ressa lvas d o Acórdão do STF de 19 de março
d e 2009 e as faz diretrizes para a política indigenis ta do governo. A s urpresa se d eve tanto ao fato
d e ser a AGU a fazer política indigenista quanto ao s inal de aceitação do governo com as ressa lvas,
as quais ainda estão sob discussão no STF e m virtude da e ntrada d e e mbargos de declaração sobre
alguns pontos controversos. Pressionado pelo movime nto indígena e indige nis ta , pela indignação
d e todos que se relacio nam com a qu estão indígena , a AGU acho u por bem s uspe nde r a validade
d o seu decreto por 60 dias até q ue os índios sejam consultados. Ora, consultados!
Ü QUE SE PENSA DO ÍNDIO
que talvez n ão fo sse m ais do que a d e turpação d a p alavra "p e dro", com o
supõem alg uns histo riadores b rasile iros? Será que a pó lvora , as n a us e
o aço d os po rtugu eses n ão e n can tavam ta nto quanto os dos fra n ceses?9
No e nte nde r d o mundo civiliza do, n ão foi p o r acaso que os índios se
fascinaram tanto com os brancos a p o nto d e n ão compreende re m as n o -
vida des que re presentavam. T ampo u co tinham cla re za sobre a realidad e
conc re ta d o mundo . J á e m 1556, o Padre J osé d e Anchieta conto u que
certa vez uma índia Tupinambá acuso u o utro p a dre jes uíta d e te r tido
re lações sexua is com ela . Sabe d o r e confiante n a castidad e do se u com-
pa nhe iro, Anc hieta inte rrogou essa mulhe r mais de p e rto e lo go re tiro u
a informação mais precisa de que isso se de ra num sonho . D aí, tirou a
conclusão de que o s índios Tupina mbá não sabia m distinguir sonho d e
re alidade . Séculos de p o is , uma va riação dessa histó ria foi recolhida p e lo
a ntrop ólogo fra n cês Lucie n Levy-Bruhl com o te ndo se passad o com um
inglês, e ntre os indígenas da região d o Chaco . Segundo e le, um índ io
acusou um s urpreso Mr. G rubb d e te r-lhe furtad o legume s d e s ua roça .
Po r sua vez, o inglês re to rquiu que n essa ocasião estava a 150 milhas d o
local do furto . Então, descobriu-se que o índio havia sonhado com esse
in cide nte, m as continuava a afirmá-lo com o se fosse um fato real. Es -
ses exemplos são usados ac riticame nte p elo m esmo a ntrop ó logo e p o r
o utros p e nsad o res m od e rnos com o mostras d o pe nsame nto indígena,
supostame nte incapa z d e se situa r n o campo da obje tiv idade .10
Ce rta me nte , tais inte rpre tações não n os ajuda m a sabe r o q ue os
índios pensam de nós; n o fundo , re pres e nta m ma is o q ue muitos civili-
zados p e nsam de le s . Q ue m os conhece d e p eito, n o e nta nto, sabe que
n ão no s co nsid e ra m d e use s e são p e rfe itam e nte ca pazes d e e nte nde r o
processo d e co mb ustão d a p ó lvo ra , a fa b ricação do aço e o utras coisas
m ais , mesmo sem ve r e compreende r a teoria e o seu desen volvime nto .
Afinal, po ucos e ntre n ós co mpreend em a te o ria do átom o e a e ne rg ia
nucle a r, mas e nte n de m o que ela é, d e alguma fo rma - e a lguns até já
a sentiram na pe le .
Diminuir, desm e recer e mistificar o p e nsame nto indígen a fo i, durante
muito tempo , qu ase uma necessidade do mundo oc id e ntal, e ainda h o je
e sse vício n os p e rs eg u e . Ne m sempre por má vo ntad e, quase se m p re
p o r a inda n ão sabe rmos com o nos pos icio na r condigna me nte e m rela -
ção a e sse s povos .
De qua lq u e r fo rma , é p rovável que os índ ios admirem a c ivilização
ocide ntal pelos seus fe itos , sua p rodução ma te rial, sua po tê nc ia e cap a -
c idade d e exp a nsão . É inte irame nte improvável que admire m as d esi-
gu aldade s sociais , a pobre za e a misé ria d e muitos, a vio lê n cia e xplosi-
va , o disciplina me nto o ra excessivo o ra le nie nte d as c ria nças , a fa lta d e
144 0 S I N D I OS E O B R AS 1 1.
como o senado r Da ntas de Ba rros Leite - via m nos p obre s re man escen-
te s indíge nas, so brevivendo à s marge ns das vilas e cida de s , se m te rras
e sem p ossibilida des d e v iver a uto n om am e nte, sina is d esse estado na tu-
ra l d egene rativo irreversível, e não resultado d e um fe nô me no socia l. 14
Na verdade, a d escrição e a e la bo ração inte lectua l sobre o índio não
foi a bunda nte n o Brasil colo nia l. Os jesuítas logo p e rde ram o inte re sse
e m d esenvolver qualque r arg ume ntação m a is aprofundad a a esse res-
p e ito, nada m a is alé m d o que a discussão sobre a capacidade o u não d o
índio d e conve rte r-se à fé cristã, ta nto p o rque a s ua base fil osófica e ra a
e scolá stica, d e cois a fe ita e se m mudanças, qua nto p o rque o se u inte res-
se e ra puram e nte utilita rista e relig ioso . Nesse miste r , logo descobriram
que a conve rsão d o índ io n ão v iria simplesme nte pela p alavra , m as só
d ep o is d a subjugação física e c ultural. Som e nte p elo jugo da e spad a e
da va ra d e fe rro , n o dize r de Anc hie ta , é que a cate quese p o de ria ser
e fe tuad a . Com isso, foi ab a ndo na da inclusive a quela c uriosida de p e las
formas c ultura is esp ecíficas d os índios que os jesuítas c ultiva ra m n os
prime iros te mpos d a catequese . Em fins do século xv1, Fe rnão Ca rdim
foi praticame nte o último jesuíta a faze r uma descrição etno grá fi ca o ri-
gina l, e m esmo esta é sobre os Tupinambá , já a mplam e nte conhecidos .
Simão de Vasconcellos, o c ro nista jesuíta que escreve e m mead os d o
século xv11 , já não acrescenta informações etno grá fi cas dignas de no ta , e
Antô nio Vie ira , o grande d e fe nsor dos índios e da obra catequética d a
su a o rde m co ntra a sanha dos colo n os , em ne nhum mo m e nto de mo ns -
tra o me nor inte re sse c ultural e inte lectual pelos povos que d e fe nde, d e
que m sabe a líng ua , a q u e m faz d escer dos rios o u a que m pacifica . 15
Os jesuítas logo d escobri ra m que o me lh o r veículo da catequese se-
riam as cria n ças ind íge n as, a p ós a s ub jugação p o lítica dos se us pais . E in-
vestiram todo s e u e sforço e m alfabetizá-las, e n sina r-lhe s canç õe s sacras ,
p eças teatra is , a rtes e o fícios e m fe rraria , a lve n aria e ma rcen a ria , e apri-
m o rá -las e m a ritmé tica e la tim. Obvia me nte , os índios a pre nderam , não
d e ixan do d ú vidas sobre sua ca p ac idade intelectual. Se n o início e ra á rd u a
a ta refa , ela foi fica ndo cad a vez m ais fá cil à m e d ida que a vida c ultural
indígena , agora du ra me nte combatida , p e rd ia sua razão socio lógica d e
ser com rapide z. A sobrevivênc ia dos índios catequiza dos se d ava com o
re sultado d e sua tra nsfiguração c ultural - v iravam índios de missão - ,
m as n em sobre ele s os je suítas se inte re ssaram em re fletir filosoficame nte .
Po ré m , n e m to dos os índios estavam e m missões, n e m agrilhoados
n as faze ndas e n as vilas portu guesas . Fazia-se n ecessário compreende r
os impasses obse rvados n a vida indíge na a utócton e . De um lado , ta nta
ge ne rosidade, ta nto e spírito cole tivo, ta n ta a leg ria de v ive r ; d e o utro,
14 8 0 S I N D I OS E O B R A S 1 1.
tanta licenc iosidade sexual , tão arraigado sentime nto de libe rdade, oca-
niba lismo. Era preciso alguém que esti vesse numa posição mais instável,
menos sedimentada, entre a posição do poder colonia l e o espírito de
curiosidade, para apreciar esses impasses e tentar resolvê-los pelo pen-
samento. Alguém como Yves d 'Evre ux , padre capuchinho, fra n cês, inte -
grante da missão re ligiosa que fora ajudar a estabelecer a colô nia que os
fra n ceses pretendiam instala r n o Maranh ão, n o início do século xvn. Nos
dois anos em que lá esteve (1614-1 615), d 'Évreux conversou com dezenas
de índios através dos turginwns, os inté rpretes franceses que m oravam
com os próprios índios e conhecia m razoavelmente bem a s ua sociedade
e sua cultura. A partir dessa experiê n cia, e laborou o seguinte a rgume nto:
a n atureza é boa , os Tupina mbá são n atura is, de poucas regras, pottanto
também são b o ns intrinsecame nte. Mas se to rnaram maus , agem com
impe rfe ição p o rque o Satan ás está no me io deles, os inspira e os detur-
pa. É preciso estripá-lo de sua convivên c ia, e is a função da catequese. 16
Essa dedução lógica impecável, especia lme nte quando se acredita n o
Satan ás, produzida no princípio do século XVII, é uma precursora da re -
presentação clássica do mito do Bom Selvage m. É a inda mais ap e lativa
do que a explanação o riginal de Rousseau porque esta é posta num pla-
n o evolutivo, pretensame nte cie ntífico, enquanto d 'Évreux coloca a sua
num pla no atemp oral, portanto mitológico. Q uantos de n ós a inda não
pensamos assim, que o índio é puro, liv re, sem ma ldade natural - mas
que, ao contato com a c iv ilização (o Satan ás), se d eturpa e se degenera?
O mito do Bom Selvagem , nascido das divagações sobre a n ature za,
a cultura , o progresso e a degenerescên cia dos povos indígen as - em-
bora , no nível p o lítico, a s ua arg ume ntação se baseasse n os problemas
e uro p e us do século XVIJI - , insere em si uma visão gen erosa e idealista
sobre os ín d ios, e implica um posic io name nto ma is humanitá rio sobre
a questão indíge na . Po ré m , a s ua p e rmanê n cia n o cen á rio inte lectua l e
emocio n a l dos tempos atua is se de ve a o utros fato res até menos pos i-
tivos . O mito p õe o índio numa p osição da escala evoluc io ná ria e, ao
fazê -lo, apresenta o principal mo tivo da sua propalada m o rte e extermí-
nio, con siderando -o uma fase , um estágio passado do desen volvime nto
huma n o, portado r de uma cultura inviável aos tempos modernos . O
mito explica a bondade e a c rue ldade dos índios, a sua liberdade, a sua
inge nuidade e a sua sagacidade, a pre guiça e a resistência física - e n-
fim, sua vida e s ua morte. Do ponto de vista cie ntífico, o mito toma a
fe ição evolucio nista nos escritos de Darw in e Spen cer, Ma rx e Mo rga n ,
Childe e Stewatt, o u a fe ição aculturativa, aparenteme nte mais piedosa
e e mpírica, ao gosto mo d e rno. Con stitui, junto com o utros p e nsame n-
0 Q UE SE PE N SA D O fN D I O 149
das por um sistema econô mico coletiv ista. A Cabanage m a lic io u muitas
a lde ias indíge nas a utô n o mas, que ma l falavam português, mas vivia m
sob o jugo ocasio nal de recrutamento de trabalho e apropriação de seus
bens extrativos. Os Mura, os Mawé, os Sateré, junto com os generica-
m e nte chamados Tapuios, formaram boa parte das forças re be ldes que
c h egaram a to ma r Belé m , mas que, tra ídas p e los inte resses classistas
dos líde res, recuaram, foram combatidas e perseguidas incle m e nte me n-
te por todo o b aixo Amazonas. O resultado é que essa região, com o já
vimos, é tão deserta de índios quanto as caatingas do Rio Grande do
No rte, da Paraíba, do Ceará e do Piauí, palco da Gue rra dos Bá rbaros
(1654-1 714).
O susto dessas rebeliões provocou as maio res vociferações a nti-in-
dígenas do iníc io do Impé rio. A Balaiada, por exemplo, levou o futuro
grande histo riado r mara nhe nse, J oão Francisco Lisboa, a re negar os seus
compromissos com o braço político da rebelião, seu próprio partido e,
posteriormente, desenvolver uma inte n sa pesquisa histó rica para pro-
var o ca rá te r inconfiável, traiçoeiro , desonesto, destrutivo, preguiçoso,
covarde, infe rio r inte lectua lme nte, incon ciliável com a c ivilização, e de-
generado, do índio brasileiro. Sua base de a rgume ntação é a histó ria do
Brasil e a realidade que conhece das a ntigas e decadentes comunidades
indíge nas do Maranhão, e a lude à teoria da degene rescên cia. Lisboa vai
aproveitar dessa p esqu isa para iro niza r os a rroubos românticos e p oé-
ticos do seu conte rrâneo Antô nio Gonçalves Dias, rotu lando-os de "fal-
so patriotismo caboclo". Curiosam ente, o poe ta - que, por esse tempo
(década de 1850), fazia sucesso na Corte com o jovem Imperador e n as
praças de Sào Luís - cons idera os a tua is índios formas decadentes de
seus esple ndo res passados, m as culpa a civilização e seus agentes por
esse estado de coisas .18
Se num primeiro insta nte Lisboa é virule ntamente a nti-indígena, vai
muda r depois , ao faze r sua primeira viagem ao Rio de Janeiro e e m se-
guida a Portugal , seja e m função de novos conhecime ntos adquiridos,
seja p e lo alargame nto d e sua v isão c ultural. O ceita é que ele passa a
p o le mizar com Francisco Adolpho de Va rnhagen , o histo riador-mo r do
Impé rio, precisamente sobre o caráte r do índio , sua o rigem e sua pos ição
n o cená rio n acio n al. Em diversos escritos, inclusive n a sua obra -prima
sobre a história do Brasil, e esp ecia lme nte no seu "Mem oria l Orgânico",
Va rnhagen usa de a rg umentos mora is, histó ricos, b io lógicos e fil osófi cos
para descartar o índio como p a rte fundamenta l da n ação, declarando
até que e les são invasores do te rritó rio brasile iro e sugerindo, senão a
extinção por fo rça das a rmas (com o de monstrava ser a política indige-
Ü QUE SE PENS A DO ÍND I O 151
Desde a segunda m etade do Impé rio, o índio p assa a ser o fic ia lme n-
te uma pa1te da nação brasileira. A sua condição jurídica de "órfão" o
coloca como dependente e parcialmente incapaz, precisando assim da
proteção especial do Estado. Po r o utro lado, mantê m-se tanto as visões
românticas e libera is que colocam o índio como fator de fundação da
n ação - como n o romance O Guarani, de José de Alencar - , quanto
as atitudes depreciativas de que e le é um selvagem inconciliável com
a c ivilização.
A sua redenção só poderia ser vista pela catequese, já que era reco-
nhecido como ine ficaz , devido à incúria administrativa e a inte rvenção
de inte resses econ ômicos e políticos , o trabalho dos administrado res
das a lde ias indíge nas tanto os atuais quanto aqueles que substituíram os
jes uítas, após 1759. A Le i de 1845, que instituíra as diretorias parciais dos
índios , fo ra precedida pelo Decre to n. 285, d e 21 d e junho de 1843, que
praticame nte colocava nas m ãos dos capuc hinhos italianos to da a adminis -
tração dessas diretorias e das colô nias indíge nas . Isso só n ão foi realizado
efetiva m e nte porque não h avia capuchinhos sufic ie ntes para cobrir a de-
manda existente e porque na m a io ria dos casos esses frades não se adap-
taram às dificuldades da vida missionária nos sertões m ais e rmos do país.
Mas o índio n ão é mais esquec ido . Inte lectuais e c ie ntistas que que-
riam ve r o índio respeitado e ace ito por to dos, com suas pec uliaridades
e com a benevolê n cia dos outros cidadãos do Impé rio, com eçaram a se
m anifestar. Esse sentim e nto está contido, por exem p lo, n o livro O selva-
gem, do Gen eral Couto de Magalhães, escrito em 1870 .23 O a utor hav ia
s ido presidente das provínc ias de Goiás e Pa rá, e n essa fun ção, como
o utros preside ntes da é p oca, havia -se preocupado e m dar con d ições o b-
je tivas para que o índio pudesse "progre dir" da su a realidade social para
transforma r-se em c idadão pleno. Nesse espírito, Couto de Magalhães
fundou um educandá rio para os índios, nas ma rgen s do rio Araguaia , a
Escola San ta Isabel, n os moldes d e outro expe rime nto criado e m 1832
para os índios de Minas Gerais, o nde a educação de le tras e o fíc ios seria
154 0 S IN D I O S E O B R A S 1 1.
dada aos índios a partir dos 5 até os 12 a nos de ida de, e m regime de in-
te rnato, podendo aceitar índios adultos como alunos e mesmo pessoas
c ivilizadas vizinhas ao colégio. O colégio funcionou enqu anto o seu idea-
lizado r foi preside nte da provínc ia, após o que e ntrou e m decadência e
se acabo u , deixando descendentes dos re manescentes daquele tempo.
Note-se que a experiê n cia educacio n al proposta em 1832, bem como
a de Couto de Magalhães e as de Guida Marliere, para os índios do vale
do Rio Doce , e a dos irmãos Otto ni - que incluía índios do vale do Mu curi
(bem como imigrantes a le m ães) - são todas baseadas na antiga pedago-
gia jesuítica, que focaliza o trabalho n a c riança, mas se reveste de uma
atitude social de integração imediata do índio com elementos da socie -
dade e n volvente. 24 Nesses casos, como e m muitas diretorias parciais, a
e ntrada de imigra ntes e lavrado res sem-terra resulto u na descaracteri-
zação indígena e na sua transformação em caboclo ou índio genérico.
O utros intelectuais do Impé rio dedicaram algum esforço aos índios,
vendo -os, já sob a ótica evoluc io nista, como primitivos , resquíc ios de
um passado que certamente não sobreviveria ao desenvolvimento da
n ação. J oão Barbosa Rodrigues, talvez a quem podemos chama r o pri-
m e iro a ntropó logo brasileiro , conheceu e trabalho u pessoalmente com
a lg uns povos indígenas, como os Crisha nás, sobre quem escreve u o seu
livro A pacificação dos Crishanás. 25 Como diretor do Museu N acional,
o rga nizou a primeira (e única) Exposição Brasile ira de Antropologia,
p a ra a q u al escreveu descrições de diversos p ovos indíge nas do Pará e
Amazonas. José Veríssimo, que escreve u n os seus Estudos amaz ônicos
sobre os a ntigos aldeame ntos tapuios do Pará e descobriu o caboclo
como descende nte b iológico e cultural do índio , é outro exemplo d ig-
n o de no ta .26 Mu itos deram s uas contribuições para a re flexão n acio na l
sobre o índio traduzindo obras de estrangeiros e viaja ntes ao Brasil e es-
c revendo a rtigos e cronologias históricas dos seus estados, que reconsti-
tuíam os povos indígenas n esses te rritó rios, algumas das quais ia m sen-
do pub licadas n a Revista do Instituto H istórico e Geográfico Brasileiro. 27
De forma geral, pode-se concluir que os inte lectua is do Impé rio, que
optaram por uma visão liberal ou romântica dos índios , tinham uma
atitude de simpatia e comiseração p e la sua situação, porém , excetuando
as ide ias de Couto de Magalhães e a política indigenista em vigo r, não
tinham ne nhuma proposta a oferecer para solu cionar os proble mas que
viam. Por outro lado, aqueles que con side rava m os índios e mpecilho ao
desenvolvimento nacio n al e símbolo de a lgo que tinha de ser destruído
para a salvação da n ação, já não perdiam tempo em escrever sobre e les .
Ao vira rem assu nto de liberais, exclusivame nte, os índios passaram a ser
conside rados caso p e rdido, d e idealistas .
176 0 S I N D I OS E O B R A S li.
Uma mino ria de p ovos indíge nas atua is nem sequer pratica agricul-
tura, v ivendo exclus ivam e nte da caça e da cole ta, com o se estivesse
n a "Idade da Pedra". Os Guajá são um desses poucos povos, mas, n o
seu caso, como no dos demais aqui citados, essa falta de agricultura
é produto de uma deculturaçào - isto é, de uma p e rda cultural - , já
que, por volta de dois o u três séculos atrás, eram també m certame nte
agricultores. Prova disso é o conhecime nto que se tem dos métodos
de agricultura praticados por o utros povos indígenas, seus vizinhos, de
s ua língua conte r to dos os no mes dos cultíge n os regio n a is, cogna tos de
o utros vocábulos de línguas aparentadas. A me m ó ria linguística dos n o -
m es e dos con ceitos da agric ultura, porém, não é acompanhada de uma
memória histó rica o u mito lógica. Os Gu ajá mais velh os n ão se lembram
n e m de o uvir os seus avós falarem de fazer roça, e os se us mitos não
inclue m a descoberta o u dádi va da agricultura p o r um h e ró i c ivilizado r.
Os Avá-Canoeiro, os Xetá, os Ach é ( do Paraguai) são casos semelhantes,
e mbo ra estes te nham memória de te re m sido agricultores no passado.
A ausência da ag ricultura não é um impe dime nto à sobrevivên c ia
é tnica, como de m o nstram os Guajá. Mas o fato de ser uma perda de-
monstra ma is cabalme nte a capacidade da c ultura huma n a de se adapta r
ao seu meio ambiente e dele retirar todas as suas necessidades básicas.
Os Guajá viraram um povo excl usi vame nte caçador e cole to r e m virtude
das p e rseguições que sofreram n o início da colo nização p o rtuguesa e m
seu te rritó rio o riginal, provave lme nte o baixo Tocantins , n o Pará. Lá,
junto com outros p ovos, foram pe rseguidos e atacados por escravagistas
vindos de Belém, e e ncontraram o seu meio de sobrevivê n cia adota ndo
um modo de p rodução mais flexível e ágil , que não exigia a perma nê n-
c ia num mesmo local p o r muito tempo . Outros povos da mesm a região
te rmina ram , pelo contrá rio, se extinguindo. Os Guajá migraram no sé-
c ulo p assado para o Maranhão. 5
A agilidade cultura l dos Guajá s ignifica um m odo de viver n ômade .
Poré m , há d e se compreende r esse no madism o n ão como uma fo rma
d esorganizada e ale atória d e movime ntação de ntro de um te rritó rio, e
s im uma determinação racio n a l do uso das riquezas a lime nta res e trans -
formáveis que o seu me io ambiente favorece. A muda n ça de um local
para o utro é fe ita de acordo com o conhecime nto de exaustão te mpo -
rá ria de produtos d e um local e a presen ça desses produtos no o utro .
O conhec ime nto das riquezas existe ntes em determinadas á reas, n os
mínimos detalhes, é imprescindível para a sobrevivên cia desse povo.
Ade m ais, para cada grupo de caçadores e suas famílias há um te rritó rio
esp ecífico que outro grupo qualque r n ão deve vio la r sem o con senti-
Q UEM S ÃO OS POVOS INDÍG E N A S 177
de a lde ias, raramente com mais de mil moradores, 10 e espalh adas umas
das o utras por lo ngas distâncias, em á reas as mais das vezes n ão con-
tíguas. É o caso dos Kaingang, que têm pequenas á reas do Rio G rande
do Sul ao estado de São Paulo, e os Guarani, com pequenas terras que
vêm de Mato Grosso do Sul e estados s ulinos e até o Espírito Santo e,
s urpreen-de nte m e nte, ao Maranhão e Pará. Os Terena são, de todos, os
mais con centrados, vivendo em 13 pequenas te rras indígen as de Mato
Grosso do Sul e São Paulo, algu mas das quais compartilhadas com o u-
tros povos indígenas. Os territórios dos Kayapó, Ya nomami e povos do
a lto rio Negro são vastos e, e ntre um extremo e o utro, h á a lde ias e pes-
soas que nunca se conh eceram , ape n as o uviratn falar uns dos o utros .11
Essa realidade aponta e demonstra a fo rça centrífuga de suas socie -
dades, e o seu potencial huma n o e c ultural uni versa l jaz, exatamente,
n o exemplo de ê nfase que dão à libe rdade e auto n omia de unidades
sociais e do próprio indivíduo. Mas h á a lguns povos indígenas, notada-
mente os que falam línguas da família linguística jê, que conseguiram
ag regar números p opulacio nais mais concentrados e produzir estruturas
c ulturais caracte rizadas por divisões e s ubdivisões de grupos e funções
sociais e rituais, sem perder, de fo rma alguma, o seu sentido de igualita-
rismo, autonomia social e libe rdade individual. Po r exemplo, os Canela-
Ramkokamekra, localizados n os cerrados do centro-s ul maranhense,
constitue m apenas uma a lde ia, atua lme nte com cerca de 1.500 pessoas,
e têm uma cultura que abrange os conceitos de d ivisão, se gme ntação e
hie rarqu ização d e grupos que , no entanto, se equilibram entre si, tanto
como estrutura estática quanto na dinâmica do seu cale ndá rio a nua l de
produção e ritua lização. Essa população Cane la é a maior já conhecida,
d esde pelo menos 1830, mas conhe ce mos conce ntraçõe s até maiores
e ntre outros povos Jê, como os Krahô e os Kayapó , que alcan çaram até
3 mil pessoas, a ntes de se dividirem em duas ou mais a lde ias.12 Os Jê,
em geral, representam uma variação da dinâmica dos povos indígen as
d e ce ntrifugação/ conce ntração, pende ndo mais para o se gundo polo,
se m p e rder a caracte rística m aior d e auton omia e anarquia.
A capacidade de adaptação das culturas indígenas permitiu-lhes co-
nhecer e explorar quase todos os nichos ecológicos existentes no Brasil,
do grande ribeirinho à e scassez de água, dos ce rrados às flore stas , dos
pampas às montanhas , do pantanal à caatinga. Suas m aiores conce ntra-
ções populacionais , já v imos, se deram às margens dos gra ndes rios e n o
litoral, mas as zonas de cerrado misturadas às flo restas de galeria permi-
tiam també m as conce ntraç õe s localizadas dos povos J ê . A caatinga nor-
d estina e ra habitada pelos Kariri , Tarairiu , Janduís e outros povos com
180 ÜS fNDIOS E O B RASIi.
c ulturas ap a re nta das à dos J ê, o que talvez s ignifique que eram adapta-
ções a esses tipos de m e io ambiente. Nas flo restas a mazô nica e a tlâ ntica,
as va riações cultura is e ram maiores, bem como a quantidade de línguas
diferentes. Na Serra Ge ra l, podia-se e n contrar desde os Tupinambá aos
pequenos bandos de Puris e Coroados, do séc ulo xv1 ao século XD<.
O potencial de dispersão, de a uto n o mia e de adaptabilidade das cul-
turas indígenas produziu n a América do Sul uma das m aiores quantida-
des de culturas e línguas específicas do mundo. Estima-se que, por volta
de 1500, metade das línguas existe ntes no mundo se e ncontrava nessa
região, talvez aproximadamente 5 mil línguas e variações dialetais, de
acordo com um cálculo abalizado. Alocar quantas dessas e ra m faladas
por índios e m te rritó rio brasileiro é algo bastante difícil, mas se, grosso
modo, corre lacio narmos uma língua própria para cada unidade política,
te ríamos talvez mil o u 1.200 idio m as falados n o Brasil. Po rém, prova-
velmente deveriam ser 600. Atualme nte, seriam 170 ou pouco mais, se
contarmos dialetos que estão divergindo cada vez mais uns dos o utros. 13
A corre lação língua/ c ultura não é constante porque amb as são e n-
tidades histo ricamente determinadas e os seus respecti vos índices de
mudança são va riáveis e podem ser diferentes e ntre s i. Para ce1to tipo
de influência externa, a inte nsidade de mudanças culturais é maior do
que as mudanças que uma língua venha a sofre r n o mesmo tempo. Por
outro lado , a definição c ie ntífica de o nde está a fro nte ira que divide uma
língua d e um se u diale to ou d e uma língua apa re ntada não é tão absolu-
ta como s e supõ e . D iz-se que um d iale to s e torna uma língua e specífica
quando seus fala ntes n ão são compreendidos o u não compreendem os
falantes de outro dialeto , a ntes compreen síve l mutuamente. Permanece
dialeto ou sotaque quando são mutuam e nte inte ligíve is. Por e sse crité rio ,
o po1tuguês se d istingue do italia no ou do fran cês , mas de ce rtos sota -
ques do caste lh ano não é tão nítida a distinção. Em outro exemplo , e ntre
a lg uns dos dialetos falados do ing lês , com o o dos n egros s ulistas n o rte-
am e rica n os e o cockney lo ndrino , d ificilme nte s e pode espe ra r inte ligib i-
lidade m útua . N esse caso, o crité rio que de fine e sse s dois d iale tos numa
mesm a líng ua é mais histó rico-po lítico do que propriamente linguístico .
Do mesmo modo , fi ca por determinar se os quatro ou cinco g rupos
que constitue m o povo Yanomami fala m língu as d istintas ou dialetos,
ou s e a língua dos Xavante se d ife re ncia da língua dos Xe re nte . Por e ssa
razão, o cálculo de quantas lín guas existem n o Brasil é m a is difícil de
ser feito do que o de quantos são os povos indígenas .
As principa is famílias lingu ísticas que têm re pre se ntantes no Brasil
são tupi , jê , ka rib, a rua k , arawá e pan o . Algumas de ssas famílias fo rma m
Q UEM S ÀO OS POVOS J NO f G EN AS 181
vivem e m ambie ntes ecológicos de cerrad os e flo resta de gale ria e que
se d istingue m p o r um p adrão c ultural de divisões e segme ntações inte r-
n as, p o r a lde ias circula res o u semicirculares e p o r uma ê n fase pro nun-
ciada sobre a ritua lização de su a v ida cotid ia na . Alguns a ntrop ólogos
gostam de contrastá-los com os Tupi , com o se fossem o seu o p osto, m as
essa é uma a rg ume ntação de valo r me to do lógico restrito e sem base
histó rica o u filosófica . É provável que a gên ese de su a fo rmação c ultural
seja p roduto de s ua ada p tação origina l à ecologia de cerrados e caatin-
gas, mas , nos dias de h o je, há diversos d esses p ovos que vivem exclu-
s iva m e nte n a fl o resta , com o os Rikbatsa , e m Mato Grosso, e os J abuti ,
de Ro ndô nia _14 T alvez p a ra a í te nham migrado em te mpos relativa me nte
recentes, e te rminaram muda ndo su a estrutu ra social p a ra se ad a ptar às
c irc unstân cias socia is e ambie ntais locais .
O ka rib e o a rua k con stitue m líng uas muito esp a lhad as pe la Amé rica
d o Sul e m esm o p e las Antilhas . Os Aru ak fo ram dos prime iros índ ios
e n contrados p or Colo mbo , e é do k a rib q u e vêm as p alavras corres-
p o ndentes ao m a r Ca ribe e a caniba l. P rovavelme nte um p ovo indígen a
q ue m orava n a p e nín sula da Fló rida, os Cibo n ey, e ram fala ntes de uma
líng u a a ruak. Ao sul e les descera m a té o Ch aco p a ragua io . N o Brasil
são faladas p o r p ovos adaptados ta nto às flo restas qua nto aos cerra -
dos e cam pos n aturais , com o é o caso dos Pa likur (a rua k) e Atroa ri
( ka ri b), na fl o resta , e os Pa reci (a rua k) e Ba ka iri ( ka rib), Wapixa n a
( a rua k) e Ma kux i ( ka rib), nos cerrados e campos . Antropologicam e n te,
os Arua k são con sid e rados portado re s d e culturas m a is co m p lexas e
de te re m s ido , e m te mpos a nte rio res , os inte rme diá rios e ntre os p o -
vos a ndinos e os p ovos tropicais , a exempl o dos Ka m pa . Sua c ultu ra
m ate rial e ra m a is e laborada do q u e a dos Karib e Tupi, compo 1ta n do
p opulaçõ e s m a is d e n sas , sobre tudo n o baixo Amazon as . Poré m , são
os Maku x i, povo Ka rib, um dos três m a io res g rupos populac io n a is
indíge nas n o Bras il.
A fam ília lingu ística pan o é fo rmada por d iversas lín guas muito sem e -
lhantes e ntre si, c ujos p o vos fala nte s viv em numa re gião ma is re strita ge o-
graficam e nte , n as bacias dos rios Purus e Ac re e adjacênc ias . No Brasil ,
isso compreende o estado do Acre e p a rte de Rondô nia e s udoeste do
Amazon as . É uma re gião q u e receb e u um influxo v iole nto d e imig ra ntes
n o te mpo da borrach a , a partir de 1890 . Com isso , os ín d ios p e rd e ram
gran de parte dos seus te rritó rios , muitos povos fora m dizimad os e os
sobreviventes compõem p artes me n o res dos seus a ntigos contingentes
populac ionais . São panos , p o r exe m plo , os Kaxinawá , os Katu kina , os
Matis e os Mam bo .
Q UE M S ÀO OS PO VO S I N OfG EN A S 183
Não resta rem índios nas Minas Gerais de 1700 é resultado da p o lítica
explícita de genocídio praticada pelos interesses de mineradores, que
receavam a libe rdade dos índios e precisavam de mão de obra inte nsiva,
fundamentalmente escrava.
No baixo Amazonas, a grande quantidade de índios que sobrev iveram
até a Caban agem , cerca de 120 mil, e mprestavam a sua força de trabalho
para coletar bens flo restais, como cacau , salsaparrilha, cane la, ovos de
tartaruga etc. Con viviam com o p eque no número de luso-bras ileiros nas
poucas vilas existe ntes de um m odo mais o u m e nos estável, até surgi-
rem as mudanças do pós-independência qu e fize ram aflorar as contradi-
ções socioeconômicas desse relacion amento, resultando na Caban agem.
A focalização dessas realidades e as suas pequenas (mas significati-
vas) va riações levou a antropologia a classificar os p ovos indíge nas não
somente pelos seus tipos de c ultura e língua, mas também pela posição
e relacio namento que tinham e tê m com as sociedades regionais que os
e nvolvem. Assim, passaram a ser conhecidos também com o índios o u
povos indíge nas "arredios ao contato" o u e m estado isolado, em conta-
to inte rmitente o u permanente, em vias de integração e integrados. O
Estatuto do Índio usa essa te rmino logia, e este parece ser um dos m oti-
vos que levam o m ovime nto indíge na e as ONGS indige nistas a querem
mudá-lo. A discussão que h avia e ntre os conceitos de aculturação e as-
similação, e se os índios e ram assimilados o u não pela sociedade nacio-
n al, fico u resolvida pela e laboração da a rg ume ntação de que os índios,
n o Brasil , não se assimilam e nqua nto sociedades e c ulturas . Podem ser
assimilados como indivíduos que v iram b rasile iros indife re nc iadas, ou,
n a m elho r das hipóteses, ao p e rde rem s uas características esp ecíficas,
viram índios gené ricos, reconhec idos apen as p o r caracteres físicos o u
h ábitos ru ra is que aos p o ucos se diluem no conjunto geral da p opulação
b rasile ira . Enquanto índios, e nquanto povos, n ão h á assimilação . O con-
ceito de integração som e nte pode ser u sado para se re fe rir à s ua parti-
c ipação social o u econômica n a sociedade regio n a l o u a nível n acio na l.
Po ré m , numa a n álise ma is aprofundada, através de uma perspectiva
que inclua o ponto de v ista do índio, verem os qu e essa tipologia não faz
jus ao gra u de variedade que existe n os relacio na me ntos inte ré tnicos,
nem abra n ge as possibilidades de con sciê nc ia de posicionamento ou
m anifestação política . O ponto c ru c ial é a distinção e ntre ma nte r o u não
contato com a socie dade e nvolvente . Para este último caso , con side ra -
m os a n ature za p o lítica da a usên c ia do contato, sob o p o nto de vista
do índio. Assim , usamos a expressão "a utô no mo" o u "povo indígen a
autônomo" para carac te rizá-lo . Os d e ma is índios, ao e ntra r em contato,
estariam todos, teoricam e nte, e m vias d e integração . Seriam , na ve rdade,
Q UE M S ÀO OS PO VO S I N OfG EN A S 187
c ultura comum a tod os, transcende ndo a s s uas tradições a nte rio re s pe la
unidade p o lítica e social. Cada p ovo p e rmanece inde p e nde nte po litica-
m e nte, m as abre mão de sua autossuficiê n cia p a ra qu e h aja a n ecessi-
d ade de inte rcâmbio econô mico e a consolidação simbólica p o r rituais
compa rtilha do s po r to do s. D essa forma, um p ovo se esp ecializa e m
fabri car grandes pa ne las d e b a rro (com o os Wa urá), e nquanto o utros
se es p ecializam e m fabricar a rcos (como os Kamay urá), cola res de cara -
mujo (como os Kuikuro), o u machados d e pe dra (como a ntigame nte fa-
zia m os Trumái) . A troca com e rcial é fe ita po r valo res preestabe lecidos,
p o ré m havendo p o ssibilidades de barga nha , d e acordo com a me lho r
o u pio r qualida de d o produto, o u p o r m o tivos fora da esfe ra pura me nte
econ ômica, com o o d esejo de estabe lecer uma alia nça ma trimo nial e n-
tre d e te rminadas famílias . E tudo isso se d á se m o me io de uma língua
fran ca , ape na s p e lo re spe ito a prá ticas e stabe lecidas e com a a juda d e
p essoas bilíngues e p o liglotas, sempre presentes nas diversas alde ias .
Esse complexo cultura l é resultado histó rico d a confluê n cia desses p o -
vos, e de o utros que se e xtinguiram já n e sse século, que conscie nte me nte
e labo raram os princípio s de um p a n-indige nism o a utócto ne igualita rista .
zidas a ta manhos mínimos para que o resto fosse loteado entre colonos
o u faze nde iros. Sofrem dessas condições os Guarani e Kaingang das
reservas localizadas n o estado de São Paulo (Vanuire, Icatu e Araribá),
os Kaingang do Paraná, Santa Catarina e Rio G rande do Sul, e d os G ua-
ran i Kaiowá e Nandeva, b e m com o os Te re na de Mato Grosso do Su l. 18
Na á rea indígena de Panambi , os Kaiowá viram suas terras loteadas na
d écada de 1930 p o r um projeto econ ô mico do governo federal qu e, n o
final , só lhes conce de u a lguns dos pequenos lotes destinados a agricu l-
to res imigrados de São Paulo e Paraná. De índios passaram a s imples
locatários, numa situação con strangedora que só foi re dimida e m 2005,
quando toda a te rra lo teada foi revertida p ara os índios, após a n os de
luta p o r parte dos índios, d a Funai e do Cimi. 19 Entre tanto, na década d e
1990 e les receb eram o apo io da Funai para re to mar as parcelas d e te rras
redistribuídas e con seguiram reavê-las. Em 2005, como presidente da
Funai, tive a ho nra de comemorar com os G uarani da T. I. Panambi não
somente a demarcação, com o també m a ho m o logação dessa te rra indí-
gena na presença do então ministro da Justiça, Márcio Tho mas Bas tos .
No Nordeste, di versos povos indígenas sobreviveram e m grande pro-
ximidade a cidades e v ilas, em vá rios casos lite ralme nte d e ntro de cida-
d es . Em Pe rnambu co, na cidade de Águas Belas, vive o p ovo Fulniô, o
único povo indígena no No rdeste que manteve s ua língua orig inal. A c i-
dade é parc ia lme nte localizada dentro da te rra indígena e paga foro aos
índios p elas casas que lá existem. Os Fulniô, por sua ve z, praticam um
ritual esp ecial, o O uric uri, e m uma reserva da s u a te rra localizada n o ar-
rabalde da c idade. Lá, todos, o nde quer que estejam vivendo, de Recife
a Brasília , Rio de Janeiro e São Pa ulo, se reúnem uma ve z ao ano para
feste jar sua cerimô nia principa l e reafirmar os laços de sua identidade .
Os Tuxá, descende ntes de povos indíge nas que h abitavam o m édio rio
São Francisco e que foram a ldeados em missão pelos capuchinhos fran-
ceses n o século xvn, m oravam na cida de de Rode las, à beira desse ri o,
constituindo uma comunidade étnica e ntre as o utras duas principais - a
dos negros e a dos brancos - , numa s imb iose social bastante comum n o
século passado (e, claro, sob a égide po lítica da e tnia branca dom in an -
te) . Para sobrevive r , os Tuxá praticavam a agr ic ultura de vá rzea numa
ilha qu e lhes resto u com o te rritó rio próprio, e traba lhavam e m serviços
urba nos, va ria ndo de acordo com o grau de s ua qu alificação e ducativa
e profissio na l. O ser índio, neste caso, permanece pelo sentime nto de
descendência e pela m a nutenção dos laços de solidarie da de socia l tec i-
dos pe las re des d e casam e nto e ndógen o, compadrio e auxílio mútuo d e
traba lho . Os rituais próprios são de tradição indíge na , mas adaptados às
Q UEM S ÀO OS POVOS I NO f G E N A S 195
tavam p a rcialme nte a rre ndadas p ara pla ntado res de cana-de -aç úca r, por
o bra , no início, de funcio ná rios do sP1; depois, por o bra de a lgumas lide -
ra nças indíge nas. A luta pela recuperação das terras perdidas e pela ma -
nute n ção das te rras já demarcadas provocou conflitos, m o rtes, despejos
forçados, fugas , a meaças de invasões de jagunços e a té ações da polícia
estadua l. Muitos Potiguara saíram e se mudaram para J oão Pessoa, Rio
de Janeiro e o utras cidades. Ho je, duas das três grandes glebas de te rras
potiguaras estão demarcadas e h om o logadas - as te rras indíge nas Poti-
guara e São Domingos do J acaré - , restando o conturba do lote c hamado
Monte Mor, cujo processo de demarcação segue o vaivém da perambu-
lação judiciária brasileira. Os Potigua ra que vivem em te rra indíge n a so-
mam h o je m ais de 15 mil pessoas e se e ntrinc h eiram pela su a continui-
dade é tnica, buscando inclus ive reapre nde r s ua língua o riginal , um dos
últimos descendentes diretos da velha nação Tupinambá, e um dos p o u-
quíssimos povos indíge n as a guardar um pedaço do litoral brasileiro. 21
O utro povo indíge n a que sobrevive na costa brasileira são os Pataxó,
reconhecidos em duas situações distintas. Uma é a d os Pataxó-Hãh ãhãe,
que v ivem na Te rra Indíge na Cara muru-Paraguaç u , nas vizinha n ças de
Ilhé us e municípios v izinhos; a segunda é a dos Pataxó, que vivem
em diversas terras, inclusive e m parte do Monte Pascoal, n as circ un-
vizinhanças da cidade d e Po rto Seguro. É precisa r esclarecer desde já
que ambos os Pa taxó são agregados de descendentes de vários povos
distintos. O te rmo "pata,xó" é ape n as um dos vá rios nomes dados para
um rol de povos que falavam línguas seme lhantes, da família botocudo,
tro n co macro-jê, praticantes de uma c ultura de caçadores e cole to res,
com agricultura simples, que viviam n as matas dos vales do Mucuri ,
J e quitinhonha , Prado, Contas e outros, já conhecidos desd e o início do
século XIX, m as que e m gra nde parte haviam pe rma n ecido isolados e
a utô nomos . No rio Mucuri (Me), duas dessas etnias foram contatadas na
década de 1920, e se ag regaram p e lo e tnô nimo Maxakali , hoje vivendo
e m duas pe que nas te rras indíge nas, ma nte ndo su a língu a e preserva ndo
grande parte d e sua c ultura.
J á as e tnias Kamakã , Mongoió , Maluli , G ueré n , Baenan , te ndo sofrido
muitas perdas demográficas após seu contato por uma equ ipe do SPJ, se
agre garam aos Pataxó. O contato com esses povos fo i feito em 1921, n o
auge da expansão do cacau. Aos que viviam na região do rio Prado, que
h aviam s ido contatados em 1923, foi-lhes reservada uma á rea definida
em 1928 como te ndo 50 léguas e m quadra , a qual , em 1938, fora demar-
cada pe lo estado da Bahia, junto com o SPI, e m cerca de 54 mil hectares,
a Reserva Indíge na Caramuru-Paraguaçu . Entre tanto, meses de pois, sob
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o pre texto de que se esb oçava uma gue rrilha na á rea, já que o c h efe d e
p osto era cons iderado comunista, os índios agregad os e m to rno d e um
posto indígena fo ram atacad os por um d estacame nto da Po lícia Milita r
d a Ba hia, com muitas m o rtes e a fu ga desesp e rada dos dema is . Em
seguida, essas te rras fo ram invadidas, to m ad as e e m p a rte arre ndadas
p o r agentes do SPI, n a justificativa d e que n ão h avia ma is índ ios. Po ré m ,
muitos ficaram escon d idos o u d isfarçad os como não índios, e, m esm o
tra ba lha ndo com o peões n a fa ze ndas a lhe ias, ale nta ram o sentime nto
de continuidade étnica . Em m eados da décad a de 1960, com a ditadura
milita r, o governo da Ba hia, sob a lide rança d o governad o r Antô nio
Carlos Magalhães, passou a conceder títulos de p ropriedade p ara esses
invasores à revelia do ine rme SPI e dep o is da Funai. Eis, e ntre ta nto, que
o espírito indígena não estava a niq uila do; a p a rtir d e 1977, com eçou o
m ovime nto de volta d os exilados Pataxó e seus descende ntes . Extrao r-
d iná rios líderes ind ígenas con voca ram suas famílias e pa trícios de vá rias
pa ttes do país, e, com a ajuda de indigenistas da Funai, p e n etra ram na
te rra o riginá ria e assenta ram aca mpa m e nto n a faze nda q ue h avia se ins -
talado n a sede do ab a ndo na do p osto indígena . De lá não sairia m ma is, e
fo ra m re to ma ndo seu te rritó rio faze nda p o r faze nda, até ch egar a cerca
d e 19 mil hectares . Enqua nto isso, a Funa i e ntrara e m juízo, em 1982,
p a ra a nula r os títulos d e te rras con cedidos p e lo Esta do . Essa dis puta se
alo ngou com muita acride z , muito sofrime nto e muitas m o rtes , inclu-
sive a d e Gald ino J es us d os Santos Pataxó, q ue imado vivo n o Dia do
Índio de 1997, e m Brasília , por uma gan gue de adolesce ntes pe rve rsos .
Fina lme nte , e m m a io de 2012, po r q uase una nimidade, o ST F reconhe -
ceu a p etição d a Funa i e liberou to da a á rea d e ma rcad a e m 1938 para
os Pataxó . Agora estão n o p roce sso d e faze r uso d e ssas faze n das, com
e spe rados conflitos pela fre nte - porém , d e sta ve z, com final fe liz . Em
conjunto esse g rupo das e tnias Mon goió , Kiriri-Supaya , Baen a n e o utras
se reconhecem como Pataxó-Hã h ãh ãe .
O se gundo co ntinge nte Pa taxó e stá exatam e nte n o ponto e m que o
Brasil foi primeiro visto por Pe dro Álva re s Cabra l, na á rea expa nd ida do
atual Pa rque Nacio n al de Monte Pascoal, e e m o utras p e que nas á reas
n as circ un vizinha nças da cidade de Po rto Segu ro . A a lde ia Barra Velha é
su a o rige m histórica m ais recente, n a be ira d o ma r. D ian te da le gislação
d e proteção am b ie ntal, os Pataxó co nseg uira m o d ire ito à caça e cole ta
d e p rodutos na tu ra is , e m um te rço d o Parque . Pe scam a rtesana lme nte
e vende m seu p roduto nas cida des vizinhas . D urante muitos a n os, fo -
ra m incitados por m adeireiros a p e rmitir o coit e d e á rvore s no bre s , às
veze s sob a co nivê n cia das a uto ridade s loca is . Hoje cole tam a pe nas o
Q UEM S ÀO OS POVOS I NO f G E N A S 197
c ime nto formal desse esta tuto indíge na , seja p o rque os dados são muito
s ubjetivos - apenas a autodeclaração de serem índios e uma história um
tanto mítica de sua o rigem indíge n a - , seja porque os v izinhos n ão reco-
nhecem essa ide ntidade com o tal. Assim, nos estados do Rio Grande do
No rte, Pia uí e Ceará há comunidades a uto rreconhecidas, mas ainda não
legalizadas p e la Funai. O m esm o se dá com duas o u três comunidades
que vivem e m te rras na foz do rio Tapajós, e m Alagoas e n a Paraíba.
Nas c idade de Nite ró i (RJ), Rio de J a n e iro25 e São Pa ulo, há comuni-
dades indíge nas de G uarani imigrados de o utros estados d o Sul , alguns
h á ma is d e um século, o utros ma is recentes, vá rios já com suas te rras
demarcadas, p e que n as glebas, em alguns casos, na própria periferia das
grandes c idades. No município de Cau caia , n a grande Fortaleza , estão
os Tape b a; na periferia de Manaus , vivem alguns milhares de índios vin-
dos dos rios Solimões, Negro e adjacências; e m Campo Grande, Doura-
dos e Aquidauana , estão os Te re na e os Kaiowá. Sem contar um número
inde te rminado de índios que temporariamente saem de suas alde ias e
vão trabalhar nas cida des, o nde às vezes adquirem um o fíc io, a lguns se
formam e m universida des, um o u o utro vira p o lítico, e a maio ria volta
com o conhecime nto ma is aprofundado da sociedade que os pressiona
a vive r consta nte mente em busca de defesas para a s ua sobrevivên cia.
O ser índio e o viver índio, n o Brasil , não são constantes histó ricas de
um passado pré-colombiano. Mesmo os p ovos autônomos das regiões
mais e rmas e indevassadas do país tê m conh ecime nto do mundo que
os cerca e se comportam de aco rdo com essa realidade . Os povos h e te -
rô no mos, os que dependem politicamente do Estado brasileiro e estão
integrados em vários graus com a c ivilização brasileira, con stituem plu-
ralidades culturais va riadas, d e te rminadas por tempos d e lutas e derro-
tas, por extinções e sobrevivênc ias, condic io nadas pelo presente que se
constró i em meio a uma complexidade sociopolítica que deixa pouco
espaço de manobra e opção existe nc ia l para e les . Não se p ode, assim,
exigir uma coerê nc ia cultural d esses povos e uma visão política totali-
zante e disc iplinada dos seus líde res . Os estre itos limites d e suas possi-
bilidades de ação e os parcos recu rsos que podem obter são dificultados
a inda m a is p e los obstáculos de todas as o rde n s que lhes são inte rpostos
pela ação política nacio n al, v indos ta nto da pa1te do Estado, suas razões
d e ser e as idiossinc rasias dos seu s mandantes circunstancia is, quanto da
p a rte da sociedade econô mica e seus prepostos p o líticos .
A histó ria parece conspirar contra os índios. Em a lgu ns casos, quan-
do já têm suas te rras de ma rcadas, eles se dão conta d e que precisam
d e dinhe iro e se d e ixam iludir pe los inte resses econ ômicos extrativos,
Q UEM S ÀO OS POVOS J NO f G EN AS 201
NOTAS
' Ver David Maybu ry-l ewis, A sociedade xavante, Rio d e Ja neiro, livraria Francisco Alves, 1984;
Bartolomeu Giacca ria e Adalberto Heide, Xavante, povo autêntico, São Paulo, Dom Bosco, 1972;
Aracy lopes da Silva, Nomes e amigos: da p rática Xavante a u111a reflexão sobre osjê, São Paulo,
Edusp, 1987; Lincoln d e Souza, Os Xavante e a civilização. Rio de Ja ne iro, IBGE, 1953.
2
Sobre os Timbiras, ver, primeiramente, Curt Nimuendaju, The Eastern Timbira, op. cit. Sobre os
vários povos Timbiras, ver J úlio Cesar Melatti, O messianismo Krahô, São Paulo, Herder/ Enu;P,
1972; Ritos de uma tribo Timbira, São Paulo, Ática, 1978; Roberto da Matta, Um mundo d ividido,
Petrópolis, Vozes, 1976; David Mavbury-Lewis (ed.), Dialectical Societies: The Cê and Bororo of
Central Brazil, Ca mbridge, Mass, Harvard University Press, 1979; Manu ela Carneiro da Cunha,
Os mortos e os outros, São Pa ulo, Hucitec,1978; Lux Vida!, Morte e vida de uma sociedade indí-
gena brasileira, São Paulo, Huc itec-Edusp, 1977; G ilberto Aza nha, A forma Timbira: estmtura e
resistência, Tese de Mestrado, Universidade d e São Paulo, 1984; Maria Elisa Ladeira, A troca de
nom.es e a troca de cônjuges: uma contribuição ao estudo do parentesco Timbira, Tese de Mestrado,
Universidade de São Pa ulo, 1982; Iara Ferraz, Os Parkatejê das matas do Tocantins: a epopeia de
um líder Timbira, Tese de Mestrado, Universidade de São Paulo, 1983.
3 Sobre os Xingua nos, ver Eduard o Galvão, "Cultura e s istema de parentesco elas tribos do a lto
Xingu ", p p. 73-119, e "Apontamentos sobre os índios Kamayurá ", p p. 17-38, em Encontros de
sociedades, Rio de Jane iro, Paz e Terra, 1979. O rla ndo e Cláudio Villas Boas, Xingu, os índios,
seus mitos, Rio de Ja ne iro, Jorge Zahar, 1970; Pedro Agostinho, Kwarnp: mito e ritual no alto
Xingu, São Paulo , Edusp, 1974; Anthony Seeger, Os fndios e nós, Rio d e Janeiro, Ca mpus, 1980;
George Zarur, Parentesco, ritual e economia noaltoXingu, Brasília, Fu nai, 1975; Thomas Gregor,
Mehinaku, São Paulo/ Bras ília, Compa nhia Editora Nacional/Instituto Nacional do Livro, 1982;
Berta Ribeiro, Diário do Xingu, Rio de Ja ne iro, Paz e Terra, 1979.
4
Ver Herbert Schubart, "Ecologia e utilização das florestas", e m Eneas Sa lati et ai., Amazônia:
desenvolvimento, integração e ecologia, São Paulo, Brasilie nse/ Brasília, CNPq , 1983, pp. 101-43.
Ver também os a rtigos em Françoise Barbira-Scazzochio (ed .), Land, people and plamzing in
contemporarr Amazon, Cambridge, University Center for Latin America n Studies, 1980, e Emílio
Moran (ed.), The Dilemma of Amazonian Developm.ellt, Boulde r, Co., Westview Press, 1983.
s Esses dad os fa zem parte da pesquisa que venho fazendo com esses índ ios desde 1980. Diversos
re lató rios já foram publicados, bem como o e nsaio "São os G uajá hiperdialéticos'", no me u livro
Antropologia hiperdialética, São Paulo, Contexto, 201 l. Q u ando traba lhei u m ano como a ntro-
pólogo-consultor d a Funai, e m 1985, apresente i u m relatório qu e traça metas e estratégias para
ajudar na sobre vivência d esse povo indígena. Ver "Prog rama Awá ", 1985. Os G uajá sobreviveram
e hoje somam mais de 320 pessoas e m três terras indígenas.
202 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.
6
Exceção feita a um grupo de descendentes indígenas que vivem na região de Ilhéus que, em fins da dé-
cada de 1990, assumiu em processo de etnogênese uma identidade étnica com o e tnô nimo Tupina mbá.
7 Padre João Daniel, "Tesouro descoberto do rio Amazonas", em Anais da Biblioteca Nacional, 2
Kadiuéu, Petrópolis, Vozes, 1980; Claude Lévi-Strauss, Tristes trópicos, São Paulo, Anhembi, 1955, parte 5.
t0 Os Tikuna tê m uma aldeia próxima à cidade de Tabatinga (AM) com mais de 5 mil pessoas, e os
Guara ni q ue vivem na T. l. Dourados, ao lado da cidade do mesmo nome, somam mais de 10
mil pessoas.
11
Sobre te rritó rios indígenas, seus tama nhos e situação d e d emarcação, ver o site da Funai: mapas.
funai.gov.br.
12
Segu ndo relatos dos sertan istas, q ua ndo os Kayapó-Mekra nhot ire foram contatados, na década de
1950, no alto rio Triri, sua aldeia tinha duas Casas dos Homens e somava mais de mil pessoas. Já para
os Ca ne la, Francisco de Paula Ribeiro, em "Memória sobre as Nações Gentias que presenteme nte ha -
bitam o continente do Mara nhão", op. cit., presenciou a existê ncia de aldeias com até 1.500 pessoas.
13
Ver J. Alden, "The Languages of South America n Indians", op. cit.; Aryon Dall 'Igna Rodrigu es,
Línguas brasileiras, op. cit. Este livro contém a listagem dos 170 povos indígenas q ue falam línguas
especificas, inclusive as línguas isoladas ou não classificadas. Há me nos línguas, atualmente, d o
q ue povos, porque muitos d e les só falam o português. Há ainda d uas dezenas d e povos c ujas
líng uas estão sendo cada dia menos falad as, como os Xipaya, Kuruaya , G uató, Trumái, Apiaká
etc. Entretanto, o Censo 2010 do IBGE rebta que há 270 línguas, dado incompreensível para os
linguistas q ue já se debruçaram sobre o assu nto.
14 Ver Daniel Gross, "Protein Captu re anel Cultu re Development in the Amazon Basin·•, em American
Anthropologist 77(3): 526·549, 1975; Betty Meggers, América pré-histórica, Rio d e Janeiro, Paz e
Terra , 1979.
15
No meu livro sobre esse povo, O índio na Histór ia, publicado em 2002, ob tivera os seguintes
índices: 2,86% para o período entre 1966-1975; 4,7% e ntre 1975 e 1985; 4,53% e ntre 1985-1994;
e 3,33% entre 1994-1998. Diversos estudos feitos na d écada de 2000 mostram crescime ntos até
maiores, como os \Xlaimiri-At roari, que alcançaram o excepcional índice d e 6% d ura nte toda essa
d écada. Considero q ue, na ausência de d ados mais corretos, uma média geral de 3,4% não esta-
ria muito longe da realid ade demográfica indígena até o prese nte. Acredito, outrossim, q ue esse
índ ice deve estar diminuindo , na medida em que aquelas populações q ue cresceram bastante
nos ú ltimos vinte anos estão frea ndo s u a â nsia de crescime nto.
16
O serta nista José Porfírio F. de Carvalho conta essa h istó ria em seu livro \Vaimirí-Atroari, a
história que ainda nàofoi contada, Brasília, Edição do Au tor, 1982. Os Waimiri-At roari sofreram
enorme me nte du rante as décadas de 1970 e 1980, passa ndo a me lhorar s u as cond ições d e vida
após o trabalho de com pensação rea lizad o pelo mesmo sertanista em convên io com a e mpresa
Elet ronorte, d ona da referida hid relétrica.
17
Desde a década d e 1980, casos de interferência de empresas mineradoras, hid relétrica e ve nda
d e madeira com a conivência de índios vêm sendo amplamente divu lgados na imprensa. Para os
índios Gaviões, ver Iara Fe rraz, "Mãe Maria: e m estado de g ue rra, proteção do te rritório e da vid a
tribal", Re latório apresentad o à Companhia Vale do Rio Doce, fev. 1985. Para Rondônia e o caso
específico dos Su ru í, ver Betty Mindlin, Nós Paiter: os Sun~í de Rondônia, Petrópolis, Vozes, 1985.
Sobre os Cintas-Largas, ver Richard Cha pelle, Os índios Cintas-Largas, Belo Horizonte, Itatiaia ,
1982; Carmen J unqueira, Betty Mindlin, Abel Lima, 'Terra e Confli to no Parque do Aripu anã", pp.
l ll- 16, e m Sílvio CoeU10 dos Sa ntos (org.), Os índios perante o direito, Florianópolis, UFSC, 1982.
18
Ver Cecília M. V. Helm, A integração do fndio na estmtura agrária do Paraná: o caso Kaingang,
Tese de Livre- Docência , U niversidade d o Paraná, 1974; Lígia Simon ian, Terra d e posseiros: 11111
estudo sobre a política de terras indígenas, Tese d e Mestrado, Museu Nacional, 1981.
19 Ver Joana A. Fernandes Silva, Os Kaiowá ea ideologia dos projetos econômicos, Tese d e Mestrado,
21
Ver Paulo Marcos Amorim, ··fndios camponeses: os Potigu ara da Baía da Traição", em Revista do
Museu Paulista, N . S. , v. 19, 1970/7 1, pp. 7·95; Fra ncisco Moone n, "Os Potiguara: índios integrados
o u ele privados?'', em Revista de Ciências Sociais, Fortaleza, 4(2), 1973, p p. 131-54.
22
Ver Maria Rosário G. de Carvalho, Os Pataxó de Barra Velha: seu subsistema eco11ômico, Tese de
Mestrad o, U niversid ade Federa l da Bahia , 1977; Maria Hilda Baque iro Paraíso, Cam.inhos de ir e
vir e caminhos sem volta: índios, estradas e rios no sul da Bahia, Tese d e Mes trado, Universidade
Federal da Bahia , 1982.
23 Ver Maria d e toureies Bandeira, Os Kiriri de Mira11dela: um gmpo i11dígena integrado. Salvador:
U niversidade da Bahia/ Secretaria de Educação e Cultura, 1972; W. Hohe nthal, " As tribos indíge nas
d o médio e baixo São Francisco", e m Revista do Museu Paulista, N . S., v. XII, 1960, pp. 37-86;
Beatriz Góis Dantas e Dalmo Dallari, Terra dos índios Xocó, op. cit. Sobre os Maxakali do norte
d e Minas, ver Marcos Magalhães Rubinger, Maria Stella de Amorim e Sonia de Almeida Marcato,
Índios Maxakali: resistência ou morte, Belo Horizonte, lnterlivros, 1980.
24 Estevão Pinto, Os índios do Nordeste, Brasiliana 44, São Paulo, Compan hia Editora Nacional,
1935- 1938, 2 v.; Carlos Studart Filho, Os abor ígenes do Ceará, Fortaleza, "Institu to do Cea rá ", 1965;
Anaf/ Ba hia, Os povos indígenas 11a Bahia, Salvad or, 1981.
25 Um gru po composto por índios de d iversas proced ê nc ias étnicas - Gu ajajara , Pataxó, Kariri,
Tu ka no, Kaingang e outros - fez do velho e abandonado casarão, na rua Mata Machado, ao lado
d o Estádio Municipal d o Maracanã, seu abrigo e su a res idê ncia, e tenta de todo modo mantê-lo e
transformá-lo num centro cultural e educacional pa ra os índios que vivem espa lhados na cidade.
Tal ato esb arra nos planos da prefe itura cio Rio d e Ja ne iro de arrasar o prédio e t ransformar o
terreno em estacionamento para automóveis, visando à Copa d e 2014. Escrevi um texto para
justificar esse objetivo indíge na mostrando que lá Marechal Rondon recebia os velhos índios que
iam buscar ajuda na d efesa d e s uas te rras e a assistê ncia do sPr. Foi também nesse p rédio que o
Museu d o Índio foi criado, por Darcy Rib eiro , até ser movid o para o bairro de Botafogo, em 1978.
A SITUAÇÃO ATUAL DOS ÍNDIOS
OS INTERESSES ECONÔMICOS
Garimpos
Floresta e madeireiros
os made ire iros fazia m o trabalho d e corrompe r fun cio n á rios e índios.
Durante muitos a n os, os índios Cintas-La rgas , Suruí, Zo ró, do leste de
Ro ndô nia, defenderam os seus direitos às te rras pelos ataques aos inva-
sores e pela mediação da Funai. Mas a tática de ofe recer pagamento em
dinheiro e bens func io na para a rre fecer-lhes o espírito de auto n o mia e
intra n s igê nc ia. 15 Apesar da atitude de a lguns impo rtantes lide res, com o
Almir N arayamoga Suruí, que con seguiu apoio e repercussão interna-
cionais para coibir a venda de madeira de sua te rra, os sina is de conti-
nuadas vendas de madeira ainda são vistos naqu e la te rra e o utras te rras
indíge nas de Rondônia.
Mais do que pelos madeireiros, e m Rondônia o problema indígena se
exacerba pelos projetos de colonização de te rras. Nos anos 1970 e 1980,
milhares de capixab as, mineiros, goianos, paraenses e gaúchos se des-
locaram para esta n ova á rea de fro nte ira e foram alocados e m á reas in-
definidas que se estendem cada vez mais próximas das te rras indígen as.
Os latifundiários vie ram em seguida e compram a terra beneficiada -
isto é, já derrubada - p ara fazer pasto e botar gado, formando grandes
propriedades e, desta forma, exig indo a aceitação do fato consumado
sobre as terras indígenas. Assim, perderam muito do seu te rritó rio os
índios Nambiquara, h o je vivendo em á reas espaçadas umas das outras,
com fazendas e estradas pelo meio. 16
Se r fazende iro na Am azônia, atualme nte , não significa simple sme nte
te r uma gle ba de te rra com soja , milho , a lgodão , café o u cacau plan-
tado , a lgumas cente n as o u milhares de cabeças de gado e duas ou
três dezenas de trabalhadores braçais com s uas fam ilias . Significa, em
prime iro luga r , faze r parte de um s istema político-eco n ô mico que p e r-
mite se r inve stido um p eque no capital exce de nte, o qual se multiplica
imediatamente vá rias vezes pelos incenti vos fiscais do gove rno e pelas
facilidades de crédito barato obtidas a t ravés de patronagem política.
Não prec isa m o ra r n a faze nda , muito m e nos te r fa mília re side nte, aliás,
quase se mpre e x iste mais d e uma grande casa para a me sma família e
está sempre vazia . Basta ter um capataz, um serviço de rádio a m ado r e
um meio rápido de locomoção - um avião , de preferência. Sem raízes,
se m inte resses que não econômicos , ligado a um sistem a político d e
autofavorecime nto , acossado por d e mandas socia is e vilipe ndiado na-
220 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.
casos, faze r tra nsfe rê n cias d e grupos e aldeias para o utras á reas. Nesse
processo, muitos índios mo rreram e m pouco te mpo ap ós o contato e
p oste rio rme nte n as su as novas á reas. O cho que que sentiram os Asurini,
contatados n a beira do rio Xingu, n ão muito lo nge da cidade de Altamira,
c h egou a tal ponto que esse p ovo indíge na passo u ma is de dez anos
sem te r filh os, freque nte m e nte provoca ndo p o r m e io m ecânico o aborto
de fe tos. 22 O mais dramático dos casos de índios autôn om os n a região é
o de dois jovens índios adultos que foram contatados em 1987, únicos
e isolados, sem mais parentes, certame nte descendentes de um povo
que sumiu, extingui-se, durante esse período de expansão na região do
sudeste do Pa rá. Esses dois homens, cuja língua é exclusiva, da família
tupi-gua rani, foram levados a vá rios povos vizinhos, sem se adapta r o u
inse rir-se e m ne nhum deles. Encontraram alguma paz ao v ive r h o je sob
a assistência da Funai , numa aldeia dos índios Guajá, na beira do rio
Pindaré , na T. I. Caru.
A construção da rodovia conhecida como BR-1 63, ligando Cuia bá
a Santaré m , provoco u a urgên cia de contata r os índios Krenhakore,
conhecidos dos Kayapó. Os irmãos Villas-Boas foram con vocados para
fazer o contato; porém , logo após foram re tirados do re lacio namento
pós-contato e os índios ficaram abandon ados. O resultado foi terrível.
Entre fevereiro de 1973 e o utubro de 1975, os Krenhakore perderam
70% de s ua população e, com o último recurso pensado à ép oca, foram
transfe ridos para o inte rio r do Parque Indíge na do Xingu, te rra o nde
vivia m outros povos indígenas . De cerca de 230 índios inicia lme nte con-
tatados, ap e nas 70 chegaram ao n ovo local. No tempo do contato, esses
índios foram chamados "índios g igantes" , porque um deles , que hav ia
sido seque strado e nquanto me nino pe los Kayapó, me dia pouco m ais de
2 m etros de a ltura . O sensacio na lismo d esse caso foi a la rdeado pe los
militares que contro lavam a Funai , à época, e p e las revistas do país . Até
um filme de produ ção ing lesa foi feito para m ostrar como se processa-
va o miste rioso con tato com um povo "primitivo", "q u e se escondia do
h om em (b ra n co)" . Os resultados subseque ntes, o d esespero pe las m or-
tes p o r sarampo e diarreia , a desagregação da a lde ia, a humilhação em
m e ndigar aos ô nibus que p assava m pela la m acenta BR-163 p o dem te r
sido abafados em sua tragédia , m as d eixaram marcas indeléveis naque-
le s que participaram do contato, na história da Funai, p elo de scaso dos
seus dirigentes e do modo de administrar o ó rgão indigenista - e ta nto
m ais sobre os índios sobrevive ntes .23 Po r tudo que sofreram , e ntreta nto,
os Kre nhako re, autode no minados Panará , após passare m alguns anos
n o Parque do Xingu ao lado dos Kayapó Me tuktire (que falam uma lín-
226 0 S IN D I O S E O B R A S 1 1.
gua quase mutuame nte inte ligível), ajudados p o r diversas ONGS ambien-
talistas e indige nistas e com o aval da Funa i, conseguiram reaver parte
de seu te rritó rio original, p o is um p edaço dele já estava tom ado por ga-
rimpe iros, m adeire iros e fazendeiros que, eventualme nte, estabe leceram
as cidades de Pe ixo to do Azevedo e Matupá. Em 1994 e 1995, mudaram-
se de volta p a ra reconstituir s ua vida e s ua sociedade e m te rras tradicio -
n ais, o u ao me nos e m terras vizinhas às que moravam anteriormente.
Essas terras se limitam com as terras dos Kayapó, de m odo que formam
n o total um te rritó rio vasto e intacto de pura flo resta a ma zônica, com
segme ntos de cerrado. Os Pa na rá também ganharam n os tribunais brasi-
le iros uma ação de reparação pelos graves danos sofridos, caso inédito
e de grande reperc u ssão positiva na histó ria do indige nis mo brasileiro.
As rodovias na Amazônia cortam fl o restas e cerra dos e delas se abre m
ramais que p e n etram o â mago das matas o nde se estabelecem os pro-
je tos de asse ntame nto de migrantes no rdestinos e sulistas, os garimpas
e os projetos agropecuários de grande po1te. Os conflitos fundiá rios
continuam a fazer parte dessas regiões a té h o je, emb ora e m muitas re -
giões que foram te rra de ningué m h o je prevalecem c idades e centros
come rc ia is viabilizados pela explo ração de made ira, por dinheiro de
antigos garimpas e pelo sucesso m ais recente do agronegócio. O m odo
de ser brasile iro n essas regiões se apresenta como a p o nta de lan ça de
uma recorre nte forma de colo nização. Parece que só assim é p oss ível
assenta r uma cultura que tem com o sua base socia l a d esigualdade d e
classes, a inju stiça, o privilé gio para os pode res e a dure za d e v ida para
os pequenos. Para os índios de recente contato, o u até de ma is tempo,
como os Kayapó, o mundo dos b ra ncos lhes parece um redemoinho
d e n ovidades, burburinho e violê n cia em que o preço do progresso é a
conivên c ia o u aceitação passiva dos m odos agressivos, venalidades, e n-
ga n ações, deboche e falta de sentido . O que dá s ignificado a isso tudo?
O Projeto Carajás é de gra nde peso econ ô mico n os estados do
Maranhão e Pará. Cidades m édias, como Marabá e Açailâ ndia, e d e ze nas
d e p e que n as c idades vivem e prospe ra m e m função d e s ua produção e
expo rtação de miné rios . Po rém, para os índios dessa região, o que m a is
se evide n cia, alé m do volume de dinheiro c irc ula nte e da inte ns ificação
da pobre za regional , é a grande fe rrovia de 890 km que liga a Mina d e
Carajás - cuja produtividade tem duração estimada e m quase 400 anos
de exportação contínua de miné rios de ferro , cobre, ouro, m a n ga n ês e
outros - ao Porto de Itaqui , e m São Luís do Maranhão. Os índios m a is
diretame nte atingidos são os Xikrin, cujas te rras, també m ricas e m miné -
rios, fa ze m divisa com a Serra de Carajás; os Gaviões-Parkatejê, e m c uja
A S I TU AÇ À O A T U A 1. O O S fNO I O S 229
a ltos, o s Gaviões a ufe riram uma re nda razoável sem m exe r n o princ ipa l,
mas aos p o ucos foram retirando o que sobrara. Nos a n os seguinte s , o u-
tro linhão da Usina Tuc uruí atravessa ria a T. I. Mãe Ma ria , e os Gaviões
iriam n e gociar os te rmos dessa p assage m. Po r sua vez, a inte ns ificação
d e tre n s p assando pe la te rra indígena foi re negociada uma vez e o utra,
sob pressão, a contrago sto da Vale, que continua a insistir qu e só o faz
p o r be ne m e rê n cia, e não p o r obrigação con signada pe lo decre to legisla -
tivo que le galizo u seu controle sobre as te rras da Serra do Carajás .
Ho je os Gaviões-Pa rkate jê e seus p a re ntes conte rrân eos, os Kyikatejê
e os Akrãtikate jê, vivem uma vida dife re nte, p o r ser ma is confortável,
e m relação à m aio ria d os índios brasile iros, o que cau sa uma animo -
sidad e e inveja e n o rmes p o r p a rte d a p o pulação p obre local. Se n os
prime iros anos d e b o n a n ça o s Gaviões se expuseram a uma vida d e
cons umo d esregrado, com seus jovens se p avon e ando p e las c idad es
vizinhas, gastando e m a tividades d esagre gadoras, o senso volto u-lhes
pela condução de seu líde r principa l, e seus joven s agora que re m fre -
que ntar escolas, universida des e p artic ipa r d e uma vida mista d e índio
com c iv ilizad o, ba la n ceando o que po d e haver d e bo m e me lho r nas
duas forma s de vive r. Os Gaviões re presentam um exp e rime nto social
inesp e rado no p a n o ra ma p olítico-cultura l brasile iro, e certame nte estão
dando o e x emplo p a ra o utros p ovos indígenas .
Os Gaviões sab e m que h á ma is recursos po r vir. A Vale está dupli-
can do a Fe rrovia Carajás, inclusive na travessia da te rra indíge n a , o que
vai reque re r uma ne gocia ção m ais p a rtic ipativa . Ele s sabem o q u anto
a Vale lu cra com esse tra n sp o rte . Po r sua ve z, está n os pla nos do go-
ve rno a construção d e ma is uma hidre lé trica n o rio Tocantin s , a UHE
Ma rabá , que impacta rá a pró pria te rra ind íge n a p or inunda ção de alguns
h ectare s . Os Gaviõ es pod e m que re r dize r um n ão a e ssa hid relé trica,
m as ta mbé m p o de m qu e re r n egocia r s ua p a rtic ipação n esse capital não
como simples inde ni zação , mas com o sócio me n o r, e n a reconstituição
d as te rras que p e rde ra m a nte rio rme nte .
No cômputo ge ra l, que inclui os índios Gu ajaja ra d e o utras te rras
indígenas não atingidas diretame nte , o impacto d o P roje to Carajás se ca-
racte riza p e la s ua p e rma n ê nc ia e vigor, o que o dife re nc ia d a T ra nsama-
zô nica . A fe rrovia atraiu ge nte e ca pitais , projetos agro p ecuá rios, sid e -
rúrgicas, utiliza ção de ca rvão v ege tal, conflitos fund iá rios , ex p ectativas e
in satisfações econ ô micas, valo rização da te rra , urba nização descontrola -
d a de distritos ru ra is - e nfim, o q ue ma is n ão sabem os a inda . Os índios
são ch acoalhados p o r um mundo d e muda n ças contínuas e impre vis í-
veis , em que o dinhe iro com pra tudo , de quinq uilha rias a prostituição .
230 Os IND I OS E O B R A S Ii.
p ossível d e comp ro m etime nto pe rma n e nte . A luta que o a ntrop ó logo
trava no bo jo d o p roje to pa ra a nga ria r a simpatia dos técnicos e políticos
e nvolv idos, e contra os inimigos d ecla rados dos índios, serve p a ra p aci-
fi car a s ua consc iê nc ia, ganha r exp e riê n cia de a plicação d e se u miste r.
Po ré m , a e ficácia de seu traba lho fica restringida pe los inte resses m a is
p od erosos, pelas circunstânc ias p o líticas, pe la ino p e râ nc ia básica da Fu-
n ai e p e lo p o uco caso das auto ridad es nacio n ais .25
Po de -se concluir que as p rovidê nc ias, compe ns ações o u retribuições
to ma da s p ela Vale, d esd e 1980, quando e ra e mpresa estatal - até de p o is
d e 1997, ao v irar e mpresa privada , do n a d a Grande Provínc ia de Miné -
rios Carajás e d a Fe rrovia Carajás - , sempre estiveram aqué m de su as
p ossibilidad es, de sua s re spo nsabilidades com o e mpre sa que receb e u
um a lto quinhão d e rique za s mine rais da nação, inclusive de te rras que
h avia be m p o u co tempo eram indígen as p o r ocupação tradic io n al. Do
p o nto de v ista dos estados do Maranhão e Pa rá, as recla mações são am-
plas . D a p a rte dos índios novos proble mas foram criad os, e, n ão o b stan-
te os recursos m e n sais que re p assam a os índios; os p roble mas segue m
p o r caminhos d ife re ntes . Até a d écada d e 2000, as insatisfações e ram
ime nsas .26 Ho je e m dia, com as pre ssões d os índios e da opinião públi-
ca, mas també m em fun ção d a ime nsa qua ntida de de recursos mine rais
re tira dos de su a mina e expo ttados, a Vale te m se p osicio n ad o com m a is
cautela e resp e ito aos d ire itos dos p ovos indígenas . Certam e nte, as lide-
ranças indígenas Xikrin , Gav ião e Suruí, n o Pa rá , e n contraram me ios d e
pressão e p e rs uasão ma is contunde ntes para a ufe rir uma m ínima p a rte
dos luc ros da Vale . J á os índios q ue vivem n o Maranhão , os Guajá e
Gu ajaja ra , são p o r e la d escon side rados .
O utro grande p roje to econ ô mico que impacto u a vasta região do n o -
roeste de Ma to Grosso e o estad o de Ro ndô nia , fina nc iad o p e lo Ba n co
Mundial, e que atingiu muitas áre as ind íge n as, foi o Projeto Polo n o ro e ste,
c uja e spinha dorsal e ra a rodovia BR-364 , que liga Cuiabá a Po tto Velh o ,
e m Ro ndô nia , e com prolo ngame nto até Rio Bran co , capital d o Ac re .
Uma vez ma is , ao fin anc iar a construção e asfalta m e nto d a rod ovia e
a gama d e atividade s d e ste p roje to , o Banco Mund ia l ex igiu investi-
m e ntos visando à pro teção e assistê nc ia das p o pulaçõ e s indíge n as a í
localizad as; d e n ovo, as s ugestões d os a ntrop ó logos se concentra ra m
n a de ma rcação das á re as indíge n as em que stão . T eo ricam e nte , com o
e sta é uma vastíssima reg ião d e e scassa população , não d everia h ave r
m aio res p roble mas nessa tarefa . Entre tanto , o p roje to c h egou com um
atraso cons ide rável e m re lação ao p rocesso de migração d esenfreada e
irre sp o nsáve l, e, em muitas ocasiões , já e ncontrou áre as indíge n as inva -
didas e e m conflito .
232 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.
serta nista Apoena Meirelles, fizeram que s uas propostas fossem levadas
a sério e desencadeassem ações e fetivas, tais como reconhecime nto dos
limites de terras indíge nas e suas demarcações. Ho je aproximadamente
24 terras indígenas estão demarcadas em Rondônia, compreendendo
aproximada me nte 6,25 milhões de h ectares o u 27% do te rritó rio estadua l.
ffidrelétricas
defender. Prime iro, porque sua construção significa desmatame nto ( não
se sabe exatame nte quanto); vai desviar um largo trech o do rio Xingu,
tira ndo águ a que descia para banhar a Volta Grande do Xingu , que
ficará com o mínimo de água durante todo o ano, mudando substan-
cialme nte a ecologia de um trech o de mais de 50 km do rio e a fetando
diretamente as alde ias dos índios Juruna e Arara, que perderão e n o rme -
mente com o recesso das águas do grande rio em suas te rras; inundará
permanentemente uma á rea de te rra que vai da barragem de desvio até
a cidade de Altamira, inclusive o bojo do rio (que n ão terá mais praias);
o trecho com pouca ág ua a fe ta rá a foz do rio Bacajá, que, n ão tendo
a volumosa barreira da água do Xingu para conte r s ua corre nte za, de-
sembocará com uma velocidade tal que inviabiliza rá a navegação de
barcos, que era o principal meio de transpo rte dos índios Xikrin, que
vivem nas margens do rio Bacajá, até a cidade de Altamira. Segundo,
porque, digam o que disserem, ninguém acredita que uma hidrelé trica
com potencial de 11 mil MW - porém, só produzidos nos quatro meses
de c huvas, baixando para menos de 2 mil MW n os quatro meses de estio,
para uma média de e n e rgia firme de 4 mil MW - n ão ve nha a receber,
em alg um tempo futu ro, um suporte de água para produzir o seu po-
tencial durante todo o ano. Esse supotte viria da UHE Babaquara, a ser
construída a montante de Altamira para servir de depósito de água em
um grande lago. Babaquara inunda ria uma á rea próxima de 300 mil
h ectare s e impactaria d iretamente as te rras dos índios Arara, Kararaô e
Asurini. Terceiro, os proce dim e ntos usados pelo consórcio construto r,
Norte Energia , para obte r o consentime nto dos índios concerne ntes foi
tão mal realizados que deixaram uma ferida aberta n o relacionamento
e ntre índios e socie dade nacional, ou empreendime ntos hidrelétricos,
com re spingos ide o lógicos por todos os lados .
Segundo a Norte Energia, a UHE Belo Monte vai c usta r R$ 19 b ilhões,
soma que muitos acreditam que chegará a R$ 30 bilhões. Não é assim
que os e mpreendime ntos se d e se nvolvem no Brasil? Se já é fato consu-
mado , inde pe nde nte me nte das açõ e s judicia is que se lhe p espe gare m
os tribunais , será o empreendime nto mais caro já realizado no país,
porém seu c usto ideológico já deixou uma conta e no rme para o Brasil
e para a visão que os brasileiros tê m d e se us investime ntos. Daqui por
d iante, não importa tanto o que o mundo p e nse de Be lo Monte, e sim o
quanto se poderá reverte r a apreensão n egativa que desespera a muitos
e confunde a todos.
A p éssim a re pe rcussão d e Belo Monte ofuscou d e longe as críticas que
h aviam surgido inicialme nte em relação às usinas Jirau , com 3 .700 M W ,
A S I TU AÇ À O A T U A 1. OO S fNO IO S 239
e Santo Antô nio, com 3 .400 MW, ambas n o rio Made ira , a 50 km uma da
o utra , que estão se ndo finaliza da s n este a n o de 2012. Embo ra o la go
d a UHE Santo Antô nio venha a impactar diretam e nte os limites d a T.I.
Karipuna, os e nte ndime ntos fe itos e ntre a empresa construto ra e os ín-
dios, junto com a Funa i, equacio n a ram um protocolo de consentime nto,
o u d e aceitação da re alidade desses impactos . É certo que no caso da
UHE Jirau os impactos e ra m indiretos, difusos, a sere m provocad os p e lo
que ameaçam reverte r o s dire ito s indíge nas, e smaecer a simpa tia nacio -
nal p e lo d e stino d os p ovos indígenas e d esestabilizar as instituições d e
proteção e assistê nc ia o riundas d a tradição d o indigenism o rondo nia n o .
Em suma, o p o de r dos faze nde iros con stitui o m aio r d esafio atual
para a prese rvação das condições socioculturais e p o líticas da vida in-
díge na , sua continuidade étnica e ascensão n o p a n o rama n acio na l. Os
d em a is e mpreendime ntos econ ômicos p rovocam impactos sociais e am-
bie ntais d e gra nde e nvergadura e consequê nc ias p e rnic iosas ao m odo
tradic io na l d os povos indíge nas, p o ré m n ão o s ufic ie nte pa ra impe dir
s ua recupe ração . O caso d as hidre létricas , s upo ndo qu e os se us plane -
ja me ntos cons ide ram a presen ça d os índios em seu s te rritó rios indevas-
sad os com o ga rantia do b om desempe nho d o e mpreendime nto (recu-
sando os pla n os e as mo tivações que implicam a esp eculação d a te rra
ao re d o r d a b a rrage m e a aplicação de p roje tos de nature za p o lue nte
e d evastadora d as condições socia is preexiste ntes), p oderia tra ze r uma
variação n ova no quad ro este reotipad o d e que os p ovos ind ígen as cons -
titue m um e ntrave ao progresso d a Ama zô nia . A questão é pressupo r
que um dia o planeja m e nto estratégico bras ile iro con ceb a a p ositividade
d o fator indígena!
OS MILITARES
Ao con sidera rmos Ma rech al Cân d ido Ron don o instituidor da p o lítica
indigenista re publicana, a pa rtir d e 1910, p o de m os cons idera r os milita -
res um dos e le me ntos ma is impo rta ntes da questão indígena brasile ira .
O trabalho d e Ma recha l Rondon , em cooperação com muitos militares
da é p oca - especia lme nte os s impatizantes d a visão p ositiv ista do mun-
d o - , a lçou os índios a uma p osição d e re levo n acio na l e os inseriu n o
â mbito da resp o n sabilida de d o Estado p a ra fins de s ua p roteção, b e m-
esta r e integração ao Brasil, visão p o lítica esta que continua a prevale -
cer, ao me nos em espírito, n os d itam es políticos atua is . T ais militares
fo rma m uma das corporações m a is con siste ntes, junto com o co rpo di-
plo m ático, e n carregados de preservar as condições gerais da soberania
da n ação . Pa ra e les, pottanto , a questão indígen a é p a tte d e s ua esfe ra
de influê nc ia e sobre ela p e nsam e re p e nsam suas resp o nsabilidad es e
atitudes, com fre quê nc ia e mitindo p ronuncia m e ntos e e labora ndo tex-
tos do utriná rios . Os milita res foca liza m a q uestão ind ígen a sob do is
asp ectos estra té gicos fundam e ntais . O prime iro d iz respe ito à pre sen ça
de muitas te rras indígen as existentes nas fro nteiras com diversos p a íses
244 0 S IN D I OS E O B R AS 1 1.
s ul-ame ricanos - cerca de 30% das fro nte iras te rrestres são fo rmad as
p o r te r ras indígenas . O segundo se re lacio na com a hipó tese d e que,
m otivad os p o r con vênios e docume ntos inte rnacio nais, os ín d ios, o u
alg uns povos ind íge n as (sobretudo aque les que tê m p atrícios em te r-
ritó rios d e o utros p a íses), p ossam vir a se de cla rare m nações indep e n-
d e ntes, sob os a uspíc ios d a ONU, o u de ONGS inte rnacio n a is acob e rtad as
p o r p aíses inte ressados na Ama zô nia, desafia ndo, desse m odo, a inte -
gridad e e sobe ra nia da n ação . Esses são dois p o ntos que m e recem a
cons ide ração d o Estad o brasile iro, p o ré m estão a a nos-luz de se to rna r
factíveis . Em função do prime iro p o nto, os militares vocaliza ram d e ta l
m od o suas preocupações que, na o p o ttunidade do julgame nto sobre a
h om ologação da T. I. Ra p osa Serra do Sol, localiza da e m Ro raima, n a
fro nte ira com a Vene zue la e a Guia n a (ing lesa), o Supre m o Tribuna l
Fe de ral exarou uma súmula cujos artigos ... A e ntrada d e fo rças milita -
res e m te rras indíge nas é p e rmitida, sem ao me nos comunicar o u p e dir
p e rmissão aos índios e ao ó rgão indigenista , numa clara a firmação d e
s uas preocupações com a a uto no mia d e p ovos indígenas e m fro nte ira .
O segundo p o nto a dvé m d e uma v isão hipe rbó lica d a fo rma militar d o
n acio n alism o, algo que n ão preocupa ria Ro ndo n em relação aos índios .
Ao contrário, seguindo os preceitos dos positivistas do fim do século
XIX, Ro ndo n e ra favorável a que as te rras indígenas fos se m conside radas
fo rmas de estados , gove rnad as p e los índios, mas como p a rte d a nação
b rasile ira . Os p ositiv istas q u e a pre se ntaram suge stões p a ra a Constitui-
ção de 1891 c h am ara m e ssa fo rma d e "estados a utócto n es a me rica n os",
e m contraste com os estados já reconhec idos, c h a m ados "esta dos oci-
d e nta is" . Po r essa e p o r o utras, vê-se claram e nte que, e ntre Ro ndo n e os
atua is milita re s, es p e cialme nte os q u e com a n daram o Brasil por 20 a n os,
ex iste um gra nd e fosso id eo lógico , n ão d e todo intra n sponível, m as que
afe ta a v isão e as a titudes da corporação e m re lação à p e rma nê nc ia e
asce n são dos povos indígen as n a nação .
Os e fe itos m ais recente s das atitude s militare s ad vém do p e ríodo e m
que e le s , os qua is co ntrola ram o p a ís e ntre 1964 e 1985, també m co n-
tro laram a p o lítica ind ige nista e os se us ó rgãos d e administração , o SPI
e dep o is a Funa i. Só a p a rtir de 1984 , retira ra m-se da Funa i, p o r ca usa
p a rc ia lme nte do m ov ime nto ind íge na , da pre ssão d a o pinião p ública e
do in íc io e spe ran çoso da tra nsição política . Entretanto , por alguns a n os,
e ncaste laram-se nos seto res de segurança e info rmação do Ministé rio d o
Inte rio r e no Con selho d e Segu ran ça Nacio na l, de o nde contin ua ram a
ex e rce r o coma ndo e stratég ico da Funa i, até o governo Itam ar Fran co ,
e m 1992 . Daí p o r d ia nte, os milita re s re fluíram e se fize ra m pre se ntes e m
A SI TU A Ç À O AT U A 1. O OS f NO I OS 245
re lação aos índios tão som e nte p o r m e io d e sua atuação n a Amazô nia, es-
p ecialme nte no s p o sto s d e fro nte ira , e n o Conselho de De fesa N acio na l.
De tod o m od o, su a p assagem provocou algumas farpas na questão
indígena brasile ira e coinc idiu com uma série de fato res n e gativos e p o -
s itivos - a reve rsão d a que da d e mo grá fi ca do s p ovos indíge nas e o surgi-
m e nto d a con sciê nc ia indíge n a no pla no nacio nal foram e xe mplo s d e les .
Po de -se dize r que há quatro fases do controle milita r sobre a questão
indígena . A prime ira, a inda com o SPJ, de 1964 a n ovembro de 1967,
foi a fase de e xpurgo do s qua dros mais p o líticos e antropo lógicos d o
ó rgão, como p a rte d a p o lítica militar. Nessa é p oca , foram d e mitidos
Noel Nutels, o último d ire to r civil d o SPJ, Carlos Mo re ira Ne to, J osé da
Ga ma Malche r e vá rios indigenistas que tinham alg uma con exão com o
govern o Go ulart. O u que e ram comunista s , com o Fran cisco Me ire lles -
que, e ntre tanto, foi chamado de volta m a is ta rde . Muitos a ntrop ó logos
e linguistas fo ra m conside rados p essoas indesejáveis p ara faze r p es-
quisas o u p artic ipa r d o Conselho Nacio n al de Proteção aos Índios . O
SPI e ntrou e m rá pida decadê n cia, c ulmina ndo com o e n volvime nto d e
qua rté is o u p e rma n ecer no serv iço indige nista . Muitos de les tinha m uma
visão gene rosa e integrati va d o p ovo e , no s seus e n sina me ntos, expuse-
ra m a c ausa indíge na não po r se ntime ntos p e ssoais e bisonhos , mas com o
p ossibilidade re al da fo rma ção pluralista da nac io n alidade b rasile ira . E
ach ava m que o Exé rc ito fosse uma instituição n acio n a l e de m ocrá tica,
ta nto n a s ua composição socia l qua nto nos seus p rop ósitos inte rio res .33
Nã o é d ifíc il que e ssa visão venha a ga nha r n ovos fo ros n acio n a is .
Nesse se ntido , não se p od e de scartar o pap e l que o Exé rc ito a inda te m
A S I TU A Ç À O A T U A 1. O OS f N O I OS 249
A IGREJA
A Igreja é uma institu1çao uni versal, com va ria ções nacio n ais ta nto
n o se u con te údo q u a nto na su a fo rma . A sua composição o rgâ nica é
bastante h ete rogê ne a e os se us e stilos se ada pta m ao te m po e ao espaço
e m q ue atua . A s ua gên ese é dogm ática e inflexível, o q ue lhe dá uma
base sólida de constituição, com uma histó ria de do is mil a nos q uase
in inte rru p tos , co m pou cas d efecções , e com u m prop ósito h e ge m ô nico ,
co m va riações mínimas e aceitáve is , d ige ríve is p elo se u o rde na me nto
centra lizado e s ua disciplina . Unindo solide z e fl exib ilidade , to rna -se
p ossíve l e acatável por todos q ue a compõem.
Em relação aos ín d ios , a rea lidade atual n ão d isc re p a substa nc ial-
m e nte da sua história a nte rio r , ta nto no se u relacio n am e nto co m as
o utras fo rças socia is e nvo lve ntes, q ua nto n o sentido e nos p ropós itos
de s ua ação . Pode-se até dize r q ue a atua lidad e é re lati va m e nte com-
p a rável co m e sse p assado . Ante s , hav ia je su ítas, em alguns mo me ntos,
radicais d e fe nsore s dos ín d ios ; carme litas co ntem porizadore s de inte -
resses contrá rios; ben e ditinos e fra n ciscan os que b uscavam seguir uma
linha de n ão comp ro m etime nto; e b ispos e p a dres , q ue va ria va m desd e
o ingló rio b ispo Sard inha - d e fe nso r d o s inte resse s agrá rios d o s co lonos
2)0 0 S fN DIO S E O 8 R A S 1 1.
e ssas d uas e ntida des q ue, dia leticam e nte, a constitue m e a n egam. Se
o Estado bras ile iro c h egar a desen volver fo rmas ma is de mocrá ticas d e
funcion am e nto, e a sociedad e civil continu ar a su a te ndê nc ia histó rica
d e dessacra lização, é p ossível que a v isão ind igenista da Igreja venha
a ser dife re nte d a atua l. De q ua lque r fo rma, o p ap e l que cab e à Igreja
n a luta p e la preservação dos p ovos indígen as n o Bras il está lo n ge de se
esgotar. A ide ntificação socia l e espiritual das primitivas comunidades
c ristãs com as comunidades ind ígen as é pe rma n e nte incentivo p ara o
fortalecime nto inte rno d esse p ap e l. Resta ver com o m ante r esse laço d e
ide ntificação com a visão huma nista da socie d ad e m o de rn a e os a n seios
d e a uto no mia dos p ovos indígen as .
A SOCIEDADE CIVIL
iniciada no gove rno Geisel (1975-1 979). Não some nte os índios , m as
também o utras mino rias socia is foram obje to e mo ti vos de conhecime n-
to e re flexão e provocaram a fo rmação de grupos de defesa e divulga-
ção dos seu s problemas mais contundentes. D u as o utras é p ocas, que
s uscita ram eventos seme lha ntes, foram os a nos 1908-1 910 e a década
de 1850. No primeiro caso, a participação de cie ntistas, jo rna listas, fil ó -
sofos e a uto ridades p olíticas brasileiras e m favor dos índios foi provo-
cada pelos escândalos de gen ocídios indígenas n oticiados a partir do
Con gresso de Am e ricanistas que ocorre u e m Vie n a, e m 1907. Massa-
c res e assassinatos de índios te ria m acontecido e m Santa Catarina e n o
Paraná, e até fo ra m justificados pelo c ie ntista teuto-brasileiro H e rma nn
von Ihe ring. O resultado fo i a c riação do SPI, em 1910. O segundo caso,
mais re mo to e ainda restrito, deu-se n o seio da e lite p o lítica e inte lec-
tual brasile ira , e dizia resp e ito ao reconhecime nto do índio no con-
junto da n ação. Foram p rotagonistas p oetas e escrito res india nistas,
como Gonçalves Dias, Gon çalves de Magalhães, José de Alencar , Ma-
n oel Antô nio de Alme ida, e histo ria do res com o o conservado r Adolpho
de Va rnhagen e o liberal J oão Franc isco Lisb oa. As s uas rep e rc ussões
conc re tas são m e n os ta n gíveis, p o ré m c re io que fo ra m fundam e nta is
p a ra a formação de uma m e ntalidade pró-indigenista n o país, sem o que
a sorte das populações sobreviventes te ria sido muito pio r.
Sem vaida de corporati vista, p odemos reconhecer os a ntropólogos
brasile iros, desde a década de 1950, p elo me nos - talvez desde 1930 - ,
com Cutt Nimue n dajú, He rbe tt Baldus , Arthur Ram os, Roque tte -Pinto e
o utros, como os idealizado res funda m e ntais do pensamento indigenista
n acio n a l atua l. Produzidas juntam e nte com o utras p esquisas cie ntíficas,
as principais d efesas do índio n o Brasil vêm de n oções elaboradas n o
seio da a ntropologia, sejam com o decorrê n c ia o u ada ptação de noções
a ntropológicas vindas dos centros inte lectua is estrangeiros, sejam com o
n oções exclus ivas . Po r exemplo, a n oção do re lati vism o cultural con-
testa os a rgume ntos da infe rio ridade c ultural imputada aos índios . A ge-
n ética moderna, com a valorização da va riabilidade huma n a como fato r
de sobrev ivên cia da esp écie huma n a, coloca o índio lado a lado com
as o utras p opulações n a m anute nção do potencial b io lógico do Hom o
sapieus. Cai por te rra o darwinismo social que valoriza o ma is fo1te
como sobrevive nte e ún ico agente da re produção humana . A ecologia e
os seus conceitos que incluem o h o m e m valo riza m o p ap e l dos povos
indígenas na ma nute nção de nic h os ecológicos rela ti va me nte frágeis,
como as flo restas tropicais, e estimulam suas práticas c u lturais para a
preservação e a o timização do me io a mb ie nte .
A S I TU A Ç À O A T U A 1. O OS f N O I OS 2)7
quase to da a direto ria d a Funa i e vários quadros e xpe rime ntados foram
d e mitidos d e seu p rocesso d e re to ma da p e lo p o de r militar, apó s o in-
te rregno de um a n o e alguns meses de administração c ivil. Em muitas
o utras ocasiões, diversos indige nistas fo ram de mitidos, quase sempre
p o r disco rda r e e ntrar e m conflito com d ete rmina da s ações a nti-indíge -
nas que e m a nava m d a própria Funa i. Ma s essas p e ssoas continuaram
a trabalhar com índios, seja no e n caminham e nto dos seu s p roblem as
à Fundação (m esmo que p o r v ias indiretas), seja pela a te nção aos pro-
ble mas ge rais e a d e núnc ia pública aos me ios d e comunicação, o u pe la
ação prática p a rale la e m certas áreas indígena s - às vezes, fina n c iad as
p o r ó rgãos assiste nc ia is d e de fesa d os inte resses ind ígen as . Ch e go u-se
a fala r, assim, num "indigenism o alte rnativo", isto é, não o fic ial, m as
també m n ão re ligioso, como se pudesse te r força p o lítica p ara so lucio -
nar os proble mas indíge nas, o u fosse um pre parativo p a ra uma po ss ível
muda n ça de rumo na po lítica o ficial. De qualque r m od o, reconhecia -se
que o Esta do não d everia te r o mo no p ólio da ação indige nista , e que a
p o lítica indigenista e m vigo r não deveria ser acatada com o ine xo rável.
Os prog ramas a lte rnati vos , sempre b e m-inte n cio nados, alg umas vezes
alca nçaram ce1to su cesso, mas em gera l n ão tinham continuidad e, m es-
m o p o rque sofriam d a contra-ação e de bo icotes oficia is .
O que ge rava o indige nismo a lte rnati vo e ra o bviame nte a desesp e -
rança da p o lític a o fi cia l, mas o que o mo tivava p essoalme nte e ra , com o
continu a a se r , o ime nso de sejo de se vive r p e rto dos índ ios , p artilha r
ao me n os p a rcialme nte dos praze res ofe rec idos pe las s uas c ulturas e se u
m e io ambie nte . Qu e m já fe z um trab a lho indigenista sabe o qua nto lhe
faz falta n ão p o de r continuá-lo , m esm o d ebita ndo tod os os dissab o res e
frustraçõe s que o acompa nham. Nisso també m o ind igenista e o antro-
p ólogo se ide ntificam e ntre si.
A re de mocratização brasile ira coin cidiu com a con cre tização, e m fo r-
m a de associações e o rgani zações , dos movime ntos socia is, a mb ie nta -
listas , indige nistas , é tnicos e o utros de dife re ntes na ture zas que, a se us
m od os, h aviam contrib uído para o fim da d itadura militar. De m odo
ap a re nte me nte parale lo, po ré m , n a verdade, inte rligad o p o r inte resses
e visões ideológicas , as o rganizações não governa m e ntais b ras ile iras se
co necta ram às su as coirmãs surgidas n os Esta dos Unidos e n os p aíses
e uro p e u s , constituindo , assim, uma clara simb iose e ntre as oNGs b rasi-
le iras e as estra n geiras .
As ONGS indige nistas que se firmaram n o cen á rio p o lítico-c ultura l bra-
sile iro a p a ttir da Constituiç ão d e 1988 p assa ra m a te r um impo rta nte p a -
p el n a muda n ça d e con ce itua ção , d a atitude e da v isão que a socied ad e
260 Os IND I OS E O B R A S Ii.
fina n c ia m e ntos exte rnos, ao m esm o te mpo que elab o rava m avaliações
d e suas s ituações po líticas, discursos d e re ivindicações e protesto e,
p o r fim , visões p olíticas e ideológicas sobre o mundo que os cerca . No
la n ce mais o u sado, o cn firmo u convênio com a a gê n cia a m e ricana p ara
o desen volvime nto inte rnacio n a l ( Usaid) e com a Funai para coorde nar
as ações indige nistas de Es tado e m re lação aos p ovos autô n o m os que
vivem n os cantos m ais rem o tos d a Am a zô nia e, sobretudo, em regiões
d e fro nte ira . Difícil p e nsar qual o inte resse da Usaid em o bte r informa -
ções dos índios a utô n o m os bras ile iros, e m á reas d e fro nte ira , na flo resta
a m a zô nica, mas també m estão inte re ssad os n esse a ssunto o utras ONGS
com o a Conservatio n Inte rna tio nal, o G reenpea ce e a Fundação Moore .
Ig ualme nte impo rtante p a ra as ONGs indige nistas foi a conexão ideo-
lógica, m ovida p o r n ovos con ceitos a ntrop o ló gicos - com o a c ríti ca ao
indige nis m o ro ndo nia n o - que as ONGS fize ram junto à Procurado ria
Geral da Re pública, c ujo p a pe l ap ós a Constituição e seu artigo 232 se
amplio u pa ra e nglo ba r a de fesa dos dire itos indígen as, a resolução d e
conflitos inte rétnicos e a formul ação d e acordos com e ntidad es priva-
das , estata is e a pró pria Funai. O conceito d e indige nis m o ro ndo niano
é visto com o "integrac io nista" do índio à n ação, ao contrá rio d a n ova
visão indigenista, que a p osta n a "inserção social" d o índio à nação . O
Ministé ri o Público Fe d eral (MrF), a p a rtir d e s ua 6ª Câm a ra de Coorde -
nação e Rev isão , e m Bras ília , te m se d estacado nos últimos 15 a n os
com o a instânc ia gove rnam e nta l m a is abe rtam e nte favo ráve l aos ple itos
ind íge nas, sobre pondo-se à Funa i e impo ndo à Funai as posiçõ e s qu e
cons ide ra ad e quad as ao seu re lacio n am e nto e s uas a tribuições lega is
p ara com os índios . Uma d essas imposições é d e faze r com que a Funa i
n ão exe rça m a is atividade s que p ossam ind ica r a continuidade d a ação
tutelar e m re lação aos p ovos ind íge nas . P a ra o MPF, os índ ios se to rna ram
a utô no m os a p a rtir da Con stituição de 1988 , e mbora tod os continue m
recorre n do à Funa i p ara resolve r p roble m as, e muitos depe nda m ex-
clu siva m e nte do ó rgão indige nista p a ra de fe nde r se u s te rritó rios , obte r
m e ios de d ese nvo lvime nto eco n ô mico e se posic io n ar e m relação aos
segm e ntos brasile iros que os c irc unda m.
Po r q ue a socie dad e civil , ONGS, a ntro p ó logos , ad vogados e ta ntos o u-
tros se d edica m tanto à cau sa indíge na? O certo é qu e a vida indíge na
contém alegrias e b em-e star, mas també m sofrime ntos e d ure za . Viver
tão pe rto , tão dentro da nature za é uma aspiração d e muitos d e nós que
vivem os e m c idades convulsio na das . Resgua rdar a nature za p a rece ser
uma das tare fas m ais nobres d a huma nidade, n esse m o m e nto d e pressá-
gios cie ntificistas de fim d e mund o , e as sociedade s indíge n as parece m
262 0 S IN D I O S E O B R A S 1 1.
NOTAS
1
Sobre os Kayapó e a presença de ga rimpo em s uas te rras, ver re po rtagens no Jornal d o Brasil
e m 3 1 ma io 1987 e 1° jul. 1987. Sobre a Para napan ema e s ua inte rvenção na T. l. Wa imiri-
Atroari, ver José Porfírio de Ca rvalho, Wa imiri-Atroa ri, o p . cit., e Revista Veja, 5 set. 1984. Sobre
os G u ajá e a Com pa nhia Vale d o Rio Doce, ver Mércio Pere ira Gomes, '·Programa AWA" e
"Sétimo re la tó rio sobre a proble mática indígena no Ma ra nhão, sobretudo e m re lação ao Pro je to
Fe rro Carajás", ambos a presentados à Com panhia Vale d o Rio Doce e à F una i, e m 1985 e
1986, resp ecti vam e nte.
' Ver O i lia m José, In d íge nas de Minas Gerais, Be lo H o rizo nte , Edições Movime nto / Perspectiva,
1965, q ue docu me nta a destrnição dos índ ios ating idos pelas fre ntes d e mine raç.10 his tó ricas.
3 Ver reportag e ns n o Jornal do Brasil, 12 jun . 1987.
4
Nos a nos 1980, os Kayap ó saía m fre que ntem e nte na impre nsa escrita e te levis io na d a devido
à sua a lta v is ibilida d e jorna lística. Ver, por exemplo, as reportagens n o Jo rna l do B rasil dos
d ias 5 jun. 1985 e 12 mar. 1987. Já os Gaviões ga nharam fama naciona l pela disposição com q ue
p rotesta ram pela passagem da Ferrovia Carajás po r s uas terras e pe lo montante das inde nizações
até agora recebidas. Ver Expedito Arnaud, "O compo rta me nto dos índios Gaviões do Oeste fa ce
à sociedad e nacio na l", e m Boletim do M useu Paraense Emílio Coeld i, Série Antropologia, l(l) ,
p p . 5-66, jul. 1984.
s Ver Dou glas Esmo nd Sa ndess, Native Peoples in Areas of Inter nai Natíonal Expansion: l n d ian and
Jnuit in Canada, Copenhagen , IWGIA, 1973, qu e a nalisa as dificuldades desses povos dia nte d os
p rojetos hidre lé tricos e inundação d e suas terras. Sob re os Esquimó do Alaska, as inde nizações
pela passagem d o gasoduto por s uas terras e seus p ro ble mas posterio res, ver Andrew L. Yan·ow,
'·Alaska' s Natives Try A Taste o f Capitalis m", e m The New York Times Magazi ne, 17 mar. 1985 .
6
Sobre a ideologia economicista do SPI, ver Da rcy Ribeiro, A política indigenista brasileira, o p . c it.
No processo d e extinção do SPI e criação d a Funai, s urgiram d iversas p ro postas para uma nova
po lítica indigenis ta que exacerba va m aind a ma is o espírito econo micista a nte rior. O próprio
conceito de '·Re nda Indíge na" p resente no Estatuto do Índio, de 1973, implica a ide ia d e e mpresa
pa ra o posto indígena .
7
Ver Cecília M. V. He lm, "A terra, a us ina e os índios d e Mangu e irinha", e m Sílvio Coelho dos Santos
(org.), O índio perante o direito, Florianópolis, Editora da UFSC, 1982, p p . 129-42, que discute essa
questão , a p resenta ma pas e traz à to na os primeiros proble mas d a cons trução d e uma us ina
hidre lé trica q u e afetará pa rte dessa á rea.
266 Os INDI O S E O B R A SIi.
8
Ver Moysés W'estphalen, "Reforma agrária nas terras d os índios", em Correio do Povo, 3 jul. 1963.
A partir d e 1975, os índios Kaingang de Nonoai começam s ua luta para expu lsa r os posseiros de
s uas terras, conseguindo-o, afinal, em agosto de 1978.
9 Esses dados foram veiculados nu m programa d e televisão dedicado especialmente ao poder de
d estruição dos mad eireiros do Espírito Sa nto, em 1984. Ver, tamb ém, os dados apresentados em
reportagem do Jornal do Brasil, d e 5 jun. 1987. Para uma visão global da q uestão, ver Orla ndo
Valverde, O problemajlorestal da Amazônia brasileira, Petrópolis, Vozes, 1980.
tO Em setembro d e 1987, os G uajajara da T. l. Ara riboia chegaram a faze r vários funcionários d a
Funai refé ns e só os libertaram depois que fizeram um acord o com a Funai, o qu al permitiu a
continuação da exploração d as madeiras d a te rra indígena por parte d as empresas já instaladas.
Ver Jornal do Brasil, 23 set. 1987.
" Ver Lúcio Flávio Pinto, Carajás, o ataque ao coração da Amazônia, 2. ed., Rio de Janeiro, Marco
Zero, 1982. É interessante notar q ue até o s u perintende nte do Me io Ambiente da Companhia Va le
d o Rio Doce, Francisco d e Assis Fonseca, chegou a escrever um parecer contrá rio a esse plano
d e utilização de carvão vegetal, mas ne nhum resultado positivo s urgiu desse posicionamento.
Ver Jornal do Brasil, 19 jul. 1987.
12
Ver James G rogan, Paulo Barreto e Adalberto Veríssimo, Mogno na Amazônia brasileira: ecologia e
perspectivas de manejo, Imazon, disponível em <pt.scribd.com/ doc/23580036/ mogno-na-amazonia-
brasileira>, acesso e m: l º set. 2012.
13 Ver a reportagem sobre o relatório do funcionário do Ba nco Mundial, Hans Binswange r, no Jornal
aos índios, até que estes descobriram. Ver Lux Vida!, "Xikrin do Cateté: 2• viage m a ca m po", jul.
1983, p. 17, re latório apresentado à Compan hia Va le do Rio Doce e à Fu nai.
' 5 Entre 30 o ut. e 20 nov. de 1987, saíram diversas reportage ns no Jornal do Brasil analisando esse
problema e mostrando que u ma das razões que leva m os índios a vender madeira é a p ressão da
própria Funai, a qual alega que só assim po derá ate nder às necessidades básicas d o posto e dos
índios. Por o utro lado, a natureza dos contratos feitos e ntre a Funai e as empresas mad e ireiras é
d e tal forma ilega l que um ministro do Su premo Tribunal de Contas da U nião, ao analisar esses
contratos, pediu a interve nç.10 do Executivo na Funai. Desde então, continuaram os mesmos
problemas e conflitos.
16 Ver Carlos Mine, A reconquista da terra, Rio de Janeiro, Jorge Za har, 1985; Vincent Carelli e Milton
Severia no, Mão branca contra o povo cinza, São Paulo, Brasil Debates, 1980; Octavio lann i,
Colonização e contrarreforma agrária na Amazônia, Petró polis, Vozes, 1979.
17
Ver Otávio G uilherme Velho, Capitalismo autoritário e campesinato, São Pa ulo , Difel, 1976.
Ver també m Octavio Ia nni, A luta pela terra, Petrópolis, Vozes, 1979; Victor Asselin, Grilagem,
com1pção e violência em terras d e Carajás, Petrópolis, Vozes, 1982; Murilo Sa ntos, Bandeiras
verdes, São Luís, cJYr/ MA, 1981; e Regina Coelli Miranda Luna, A terra era liberta, São Luís, Editora
d a UFMA, 1985.
18 Ver Mé rcio Pe re ira Gomes, "Por que o índio briga com o posseiro'', em Comiss.10 Pró-índio, A
questão da terra, São Paulo, Global, 198 1, p p. 5 1-6. Na década de 1980, o Banco Mundial fina nciou
o Progra ma de Assistência ao Pequeno Produtor (PAPP) em c uja área estava incluída essa terra
indígena e o povoado São Pedro dos Cacetes, o que veio a fac ilitar a extinção desse po voad o e
a re tirada de seus moradores.
19
A exceção é a T. l. Awá-G uajá, localizada e ntre as te rras Alto Turiaçu e Caru, que foi reconhe-
cid a e m 1987, porém sofre u uma ime nsa demora para s ua d e marcação e homo logaç.10 final.
Nela estão incrustados alguns povoados de lavrad ores sem terra e assentados do Incra , além de
u ma faze nda.
"' Ver Maria Elisa Lad eira, "Algumas observações sobre a s itu ação atua l d os índios Apinayé",
jun . 1983, p. 66, e A ntônio Carlos Magalhães, "Alde amentos indíge nas / Parakanã: Apuiterewa,
Marud jewara e Para nati ", mar. 1985, p . 41, a mbos relatórios apresentados à Companhia Vale
cio Rio Doce e à Funai.
21
Ver sobre a luta pe la te rra no nordeste do Pará , Lourdes Gonçalves Furtado, '·Alguns aspectos d o
processo d e muda nça na região do Nordeste Paraense·', e m Boletim do Museu Paraense Emílio
Goeldi, Série Antropologia , v . 1(1), p p . 67-123, jun . 1984. Sobre os índios Temb é e s u as terras,
ver Expedito Arna ud, "O direito indíge na e a ocu pação te rritorial: o caso d os índios Te mb é", em
Revista do Museu Paulista, N. S. , v. xxvm, 1980/ 1982.
22
Existe u ma lite ratura jo rnalística basta nte exte nsa sobre a Transa mazônica nos primeiros anos de
s ua implantação. Para u ma contextualização geopolítica d a su a implantação, ver Berth a K. Becker,
Geopolítica da Amazônia, Rio de Jane iro, Jorge Zahar, 1982. Em re laç.10 aos índios, ver Shelton
A S I TU AÇ À O A T U A 1. OO S fNO IO S 267
Davis, Vítimas do milagre, Rio d e Jane iro, Jorge Zahar, 1978. Sobre os Assurini, s ua his tó ria de
pacificação, s ua c ultura 111ateria l e seus p roble 111as de111ográficos, ver Berta Ribeiro, "A o le ira e a
tecelã: o pa pel socia l da mulhe r na sociedad e Assurini", e111 Revista de Antropolog ia, v. 25, p p.
25-62, 1982. Ver ta111bé111 reportage111 no Jornal d o Brasil, 27 abr. 1986.
23 Ver Edilson Martins, Nossos fndios, nossos mortos, Rio de Ja ne iro , Codecri; 1978, p p. 83-8. Esse
estudo, no e ntanto, não inclui as consequ ê ncias poste rio res da transferência. U111 re lato mais
co111pleto pode ser e ncontrado e111 Luiz Beltrão, O índio, um mito brasileiro, Petrópolis, Vozes,
1977, pp . 97-126. Informações 111ais recentes pode111 ser e ncontradas e 111 d ive rsos s ites e letrônicos,
e111 especial no site do ISA.
" U111a visão d as condições d e v ida dos G uajá até 111ead os da d écada d e 1980 e ncon tra-se e111 Mér-
cio Pe re ira Go111es, "Progra111a Awá ", Re latório apresentado à Co111panhia Vale do Rio Doce e à
Fundação Nacio nal do Índio , 1985. Nele co nsta111 uma a nálise d a s ituação dos d iversos g ru pos
G uajá e u 111a p ro posta de dema rcação de seu território e d e defesa da integridade físico-c ultural
d esse povo . O utro texto cio a uto r é "Os índ ios Awá -Gu ajá e 111 2002", e ncontrado no Blog cio
Mércio (111e rciogomes.blogspot.co111.br).
,s Os a ntro pó logos con tra tados e que p rodu zira 111 re la tó rios a esse respeito fora111 Lux Viciai, Iara
Fe rraz, An tônio Ca rlos Maga lhães, José Lu ís dos Santos, Mara Manzoni Luz , Lúcia M. A. Andrade,
Ma ria Elisa Ladeira e o p resente a uto r. Escre vera111 re lató rios especiais os 111éclicos João Paulo
Bo te lho Magalhães e Ferna ndo Alves de Souza. Alguns desses re latórios, a presen tados à C VRD e
à Funa i, estão citados aqui.
26
Ver Raymunclo Garcia Cota , Cara)ás: a invasão d esarmada, Petró po lis, Vozes, 1974; Lux Vicia i,
"A q uestão indígena'', e111 José Ma ria Gonça lves de Almeida J r., Carajás, desafio político, ecologia
e d esenvolvimento, São Pa ulo , Brasilie nse/ Brasília, CNPq , 1986, p p. 222-64. Lúcio Flávio Pinto,
Carajás: o ataque ao coração da Amazônia, Rio de Ja ne iro, Marco Zero , 1982.
v Os antropólogos que traba lha ram no estudo dos povos indígenas dessas á reas e nas s uas necessi-
d ades fora111 Car111e n J unque ira, Betty Mind lin, Mauro Leone l, Rinaldo Arruda e Ezequias Heringer
Filho. Os p rinc ipa is re lató rios d e leva nta 111e n to foram p rod uzidos no Instituto de Pla neja111ento
Econô 111ico e Socia l, cio Minis té rio do Pla neja 111e nto , por 111e io do "P ro je to de Pro teç.'io cio Meio
Ambie nte e d as Comunidad es Indígenas", os PMAO I e PMAO 11.
28 Sobre os Avá -Cuara ni, ve r Edgarcl de Assis Carva lho , Avá-Guarani d o Oroi:Jacutinga , Curitiba ,
CTMT e Co111issão de J us tiça e Paz/PR, 1981. Sobre o escã nclalo Cape111i e as razões fraudule ntas d a
tra nsfe rê ncia dos Parakanã, ver J. Ca rlos de Assis, "O escã nda lo Ca pe 111i'', e 111 Os mandarins da
República, Rio de Ja ne iro, Paz e Te rra, 1984.
29 Ver Sílvio CoeU10 dos Santos e Paul Aspelin, Jndian Amas Th re.atened by Hyd roelectric Plants in
Braz il, Co pe nhage n, IWGIA, 1981; Maria do Rosá rio Ca rvalho , "Um estudo d e caso: os índios Tuxá
e a construção da b arrage111 e 111 Itaparica", e 111 Sílvio Coelho cios Sa ntos (ed.), O fndio pera nte o
direito, op. cit. , p p. 117-28.
Yl Ver Marewa, Resistência \.Yla im iri-Atroari, op. cit. Esses d ados são ta111bém conhecidos através
d e re po rtagens de jo rnais e de re latórios inte rnos d a Funai. Q uan to à hid re létrica Ba lb ina, o
escâ nda lo é d e tal quilate que até o direto r da Sec reta ria Especia l d e Meio A111bie nte, Rob e rto
Messias Franco, ó rgão vinc ulado à Presidê nc ia da Repúb lica, considero u-a ··a ma io r estupidez d o
progra111a e nergético bras ile iro ". Ver Jornal do Brasil, 5 o ut. 1987.
3' Ver para o início d esse p rogra111a , Eletro brás, Plano Nacional d e Energia Elétrica, 1987/ 2010,
Brasília, 1986, e Plano Diretor para Proteção e Melhoria do Meio Am biente nas Obras e Serviços
do Setor Elétrico . Brasília, 1986.
32 Pa ra u111 histó rico desse 111o vi111e nto, ind uindo as principais manifestações públicas e a cober-
tu ra jo rna lística, ve r Comissão Pró-f ndio, A questão da emancipação, São Paulo , G lo b a l, 1979.
33 Ver Darcy Ribe iro, A política indigenista brasileira, o p. cit. É in te ressante qu e neste liv ro, escrito
e111 196 1, o a uto r já fa z uma a ná lise d o p roble111a cios índios e m re lação às fro nte iras, a qua l, de
certa forma, p re vê o s urgi111e n to de projetos co1110 Ca lha Norte.
34 Ver Alípio Ba nde ira, Antiguidade e atualidade indígenas, Rio de Ja ne iro , Tp. cio Jornal do
Commercio, 1919, e o utros livros seus já citados; SPI, "Re lató rio Anua l", 1954, q ue con té 111 a 111iss iva
d e Darcy Ribe iro a D. He lcle r Ca ma ra e os docu111e ntos acusató rios do SPI aos sa lesia nos insta lados
e111 Mato G rosso e no alto Rio Negro, e dá informações sobre as 111issões re lig iosas, ind us ive as
p rotesta ntes, até e ntão insta b d as e n tre os índ ios.
3s Ver Fátima Robe rto , "Sa lvemos nossos índ ios", o p . cit.
Yl Ver Paulo Suess, Em defesa dos povos indígenas, documentos e legislação, São Paulo , Loyola , 1980,
que co nté m estes e o utros docu 111e ntos d e gra nde i111portância para co 111pree nde r111os o no vo
sentido de c ristianização .
268 Os INDIOS E O B R A SIi.
37 O conceito de encarnaçáo foi abandonado nos últimos vinte anos, em parte porque a crítica de
que e ncarnar significa tomar um lugar do índio, e m parte porque o exemplo d e encarnaçáo de
um missionário, que chegou a casar e te r filhos com uma índia da etnia Myn ky, assustou a Igreja
e recebeu o repúdio dos demais setores do indigenismo brasileiro .
.lB As prime iras 7 assembleias indíge nas foram promovidas e ntre 1975 e 1981, e desde e ntáo o Cimi
já realizou 19 assembleias nac ionais e muitas mais em s uas comissões regionais. O jornal bimensal,
O Porantím, d edicado exclus iva me nte aos assu ntos indígenas, é publicado desd e 1978. O site d o
Cimi (cimi.org.br) é dos mais ricos em notícias atualizadas sobre assuntos indíge nas.
39 Analisando a qu estão de etnia e nação para os povos indígenas d as Américas, te ndo como re -
fe re ncial as grandes populações étnicas mexicanas, o a ntropólogo Migu e l Ba rtolomé considera
que u ma etnia passa a ser uma naçáo qua ndo cria um projeto político que possa impor-se em
re laç.'io ao mundo que o cerca. Ver seu artigo "Afirmación Estatal y Negación Nacional: EI caso
d e las minorias nacionales e n América fati na ", Instituto Nacional de Antropologia/ História , 1983.
A literatura sobre a questão d e etnia é ampla e se d á ares gongóricos, não cabendo sua p roble-
matizaçáo neste livro.
40
Ver Mércio Pereira Gomes, "Por um Pacto Indigenis ta Nacional·', Discu rso apresentado à Assem-
bleia Nacional Constituinte, em 29 abr. 1987.
Ü FUTURO DOS ÍNDIOS
O MOVIMENTO INDÍGENA
m overam o movime nto indigenista dos últimos c inque nta anos, s urgiu
também o movime nto indíge na. A presença política de índios na Histó ria
do Brasil não é exatamente uma n ovidade. Ela já ocorre ra em momentos
passados, tanto em conjunto com outras fo rças nacionais - como n a expul-
são dos ho landeses do No rdeste, nas lutas e ntre franceses e portugueses
pela conquista do Rio de Janeiro e do Maranhão, na Gue rra do Paragua i
e tc. - , quanto separadamente, e contra as forças brasileiras que os opri-
miam, como na Caban age m , na Gue rra dos Bá rba ros, n a Guerra dos
Cab a nas, na re be lião de Antônio Conselhe iro e e m dezenas de ocas iões
mais restritas. Os h e ró is indígenas vão de Arariboia e Fe lipe Camarão a
Ajuricaba,Janduí e Crespim Leão. No tempo dos h ola ndeses, h ouve par-
ticipação de índios no parlamento que Ma urício de N assau instituiu para
administrar me lho r Pe rnambuco e as demais províncias conquistadas.
Po rém, a partir do Impé rio e durante a República, foi estabelecido
um modo de re lacionamento e ntre auto ridades e índios que reduziu
estes últimos à condição de menoridade , quase de c riança. Com essa
forma farsante de paternalismo, os índios só eram o uvidos com condes-
cendê n c ia e arrogância; seu p e nsamento passou a ser e nte ndido com
pouco caso e a compreensão de sua realidade passou a ser tra n sferida
para o utrem, as autoridades, os indigenistas e os antropólogos. Assim, o
s urgime nto atual de índios no cen á rio público nac io na l s ig nificou uma
grande vitó ria para os índios e m geral , vitó rias pessoais e avanços con-
ceitua is e políticos n as re lações inte ré tnicas no país. Ficou claro que e les
n ão precisavam de porta-vo zes n e m inte rme diários para comunicar-se
com as auto ridades e o público. Sua presença física passou a serv ir de
garantia nos aco rdos que a Funa i fazia com outros ó rgãos do gove rno
ou particulares . As figuras folclóricas, e m que a dificuldade com a língua
portuguesa e a singe le za das atitudes serviam de marcos caracte rísticos,
passaram a ser o uvidas como legítimos representa ntes dos direitos dos
seus povos, como seres políticos. Essa representativ idade era real e os
proble mas veiculados bastante conc re tos, com o a necessidade d e d e -
marcar as suas te rras e os programas de saúde . O re lacio n am e nto con-
tínuo e ntre o líde r indígena exposto ao público e o seu povo confe ria-
lh e uma legitimidade total e uma clareza ímpar quanto à urgê nc ia dos
proble mas tratados. O público, o povo b rasile iro, sentiu esse drama e
e sse avanço político e, n a prime ira oportunidade que teve, depositou
formalmente essa confia n ça através do voto ao Cacique Mário Juruna,
n a e le ição federal do Rio de Janeiro, em 1982.
O movime nto indíge na tomou for ma pe las me smas bande iras do m o -
vime nto ind ige nista, isto é, a de fesa dos territórios indíge n as, a atenção
Ü FU T U RO O O S fN O I O S 273
n o qual os índios estavam inse ridos n o mundo exte rio r sem ma nifesta r
s uas ide ntidades. Isso lhes d e u uma autonomia e iniciativa p o lítica que
os demais povos indíge nas sempre tiveram dificuldades de adquirir.
Por sua ve z, a aliança que fize ram com os indige nistas da Funai e com
a ntropó logos, ambientalistas e jo rnalistas locais estabeleceu um m odo
de re lac io na me nto p o lítico invejável para os demais estados brasile iros.
Não é à toa que desde cedo estiveram unidos com Chico Mendes e o
m ovime nto ambie ntalista, e p o rtanto são correspon sáveis pela ascensão
desse m ovime nto n o plano nac io na l. Desde e ntão, e ntre altos e ba i-
xos , essa associação indíge na te m s ido essen cial p ara o reconhecime nto
e demarcação de terras indígenas naquele estado e n o sudoeste do
Amazonas, para o re lacio n amento político com os governadores estadu a is
e a ampliação da a tuação indíge na n o Bras il e n o exte rio r.
No decorrer da década de 1980, associações indígenas foram sur-
gindo para representar os inte resses de seus povos - o u , mais propria-
mente , para representar alde ias o u segm e ntos e até facções o u peque-
n os grupos , d e p ovos indíge nas - , de mo do que foram se ampliando
os instrume ntos p ara uma n ova forma de autoafirmação indíge na. As
demandas econ ômicas e políticas foram se expandindo expon e nc ial-
mente, e a Funai, incapacitada de dar conta dessas transformações, foi
p e rde ndo sua h egemo nia n o re lacio name nto e na assistência aos índios.
Po r sua ve z, o te ma indíge na e ntrara e m ascensão n o cen ário mundia l,
com a ONU buscando estabe lecer uma Declaração Universal dos D ire itos
Indíge nas , desd e 1993, e os países e u ropeus abrindo seus cofres para
cooperação inte rnacio na l. Assim, e com a a juda das ONGS indigenistas
brasileiras, os índios foram aprende ndo a c ria r associações cada vez
mais amplas e m a is m otivadas, esp ecia lme nte após a Constituição Fe -
d e ra l. Parte de suas receitas v inha d e auxílio exte rno, m as outra parte
provinha dos con vênios que estabeleciam com ó rgãos do governo fede-
ral, especialmente a Funasa , p ara contratar pessoal m édico aos p rogra -
m as de saúde d esenvolv idos para os povos indígenas . No a no de 2006,
calculava-se qu e estavam e m func io n ame nto mais d e 300 associações
indígenas, espalhados p o r todo o Brasil , representa ndo a lde ias e con-
juntos de a lde ias, muito poucas representa ndo os p ovos ou etnias a que
as alde ias p e 1te ncem. Essa ime nsa quantidade d e associações parece te r
d ecaído nos últimos a n os, talvez em função das dificuldades de obter
recu rsos para s uas administ rações .
A Coordenação das O rganizações Indígen as da Amazônia Brasileira
(Coiab) foi criada e m 1989 para agregar as d e ze nas de associações indí-
ge nas que estavam se organiza ndo n as a lde ias e nas te rras indígenas dos
0 FU T U RO O O S fN O I O S 275
seis estados da Amazônia. Sua atuação te m s ido das mais impo rtantes n o
movimento indíge na desde o governo Fernando He nrique Cardoso. Fre -
quentemente ela é convocada para opinar sobre política indige nista, indi-
ca n om es para cargos em ministérios que tê m programas de fomento aos
p ovos indíge nas e te m uma ligação funda m e ntal com as ONGS indige nistas,
tanto e m razão de o bjetivos comuns quanto e m função da necessidade
da obtenção de recursos administrativos. Já indicou um indíge n a pa ra ser
presidente da Funai e tem representação n a Comissão Nacio nal de Política
Indige nistas (cNP1) - c riada pelo governo federal e m 2006. Po r seu peso de
representação, já que os índios da Amazônia alcan çam 60% da totalidade
brasileira e 97% da á rea das te rras indíge n as, a Coiab tem ressonância po-
lítica nacio nal e com su as congêne res em outros países sul-am e rican os.
A Articulação dos Povos e Orga nizações Indíge nas do No rdeste,
Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme) é o equivale nte da Coiab para
os índios do N o rdeste e Sudeste, bem como a Articulação dos Povos In-
dígenas da Região Sul (Arpins ul) para os índios do Sul do país e a Articu-
lação dos Povos Indíge nas do Panta nal (Arpinpan) p ara os índios da re -
gião pantaneira. T odas essas associações se uniram em 2005 p ara formar
a Attic ulação dos Povos Indíge nas do Brasil (Apib), que representa fede-
ra tivamente a maio r entidade indígena, uma espécie de UNJ da a tua lida -
de. Assim, fechou-se o ciclo do movime nto indígena iniciado e m 1980.
A Apib te m se destacado ultimamente pelas fortes c ríticas que vem
faze ndo ao governo fed e ral e sua guinada de d esconside ração explícita
das dem a ndas indíge nas pelo refo1talecime nto da Funai (algo que até
2005 cons ideravam desnecessário , seguindo o discurso das ONGS de que
a a uto nomia indígen a prescindia da fo rça do papel do ó rgão indigenista)
e pela preservação dos direitos indíge n as conquistados na Constituição
Federal, por m e io da Conven ção 169/ oiT e pe la tradição ind ige nista ro n-
doniana. O Decreto 303, lavrado pela Advogacia-Geral da União , p e lo
qual reconhece e a firma a validade das 19 ressalvas exaradas p e lo sTF
e m súmula de 19 d e ma rço de 2009 - e ntre e las aquelas que p e rmite m
aos gove rnos e aos milita res pe n etrare m te rras indígen as sem consulta r
os índios ou a Funai , e aquelas que limitam as possibilidades e modi-
fi cam as no rmas de demarcação de te rras indígenas - , pareceu a todas
as associações indígenas, aos indigenistas da Funai e aos a ntropólogos
que mantiveram o senso histórico do ind ige nismo rondoniano com o um
imenso retrocesso político, algo impossível de ser coadunado com um
govern o de cunh o esquerdista e com clamores favoráveis aos índios. Eis
por que, n este livro, e nte nde -se que a história corre por linhas tortas
e que o preço da luta pe la sobrevivê n cia dos povos indíge nas e por
276 0 S IN D I O S E O B R A S 1 1.
s impa tizavam com a causa indíge na .3 Virou uma celebridade nacio nal,
"o índio d o gravado r", o ho m e m que diz as coisas na lata e n ão te m e as
a utoridades constituídas! O seu p asso m aio r se de u qua ndo o PDT , sob o
acon selham e nto do antropó logo Da rcy Ribeiro, acolhe u seu d esejo d e
candidatar-se a de putado fed e ral. Ele, e n tão, foi e leito com 31 mil vo-
to s p e lo ele ito rado flumin e nse, sobretudo da Ba ixada e da Zo na Oeste
d o Rio de J ane iro - não só d a Zo n a Sul , como se supõe às vezes . Su a
presen ça n o Con gresso Nacio na l teve uma re p e rc ussão e no rme n o país
e no mundo . Ele foi resp o nsável p e la c riação da Comissão Pe rma ne nte
d o Índio, uma das p o ucas comissões d a Câm ara Fed e ral , o que s ignifi-
cou a elevação do p roble ma ind ígen a ao reconhecime nto formal pelo
Pod e r Legislativo brasileiro . Po ré m , com eçou a pe rder prestígio qua ndo
se compromete u desastrosame nte num imbróglio d e dinhe iro durante a
campa nha d o candidato do PDS ã presidê ncia da Re pública. Seu reto rno
ao Congresso não teve o m esm o acolhime nto, po is, nas ele ições d e
1986, conseguiu po uco mais de 10 mil votos .
Durante o p e río do e m que esteve e m alta, Má rio Juruna foi visto
como um legítimo representante d o se u p ovo e, p o r exte nsão, d e to d os
os índios do Brasil. Era qu e rido e respe itad o por muita gente, como p ro-
vam a s recepções que teve d urante a campanha pe las e leições D iretas-Já
para pre sidê n cia da Re pública , e o nde que r que fosse fala r. Pa recia a
muitos uma voz q ue vinha do íntimo s incero e gen eroso d e s i mesm os,
uma voz n ecessária ao país . Para o utros, no e nta nto, Juruna configu-
rava uma o usadia ao poderes conservadores da nação e à su a e lite
a nti-indígena, um indesejado, um ou tsider, até um p e rigo, e eles n ão o
p e rdoavam po r te r alca nçado tal p osição .
De qua lq u e r fo rma, não foi exclus iva mente por e rro p essoal que ] uruna
pe rde u a posição que adquirira por conta própria . Ao passa r de líder de
um p ovo, o u d e ca usas conc retas, p a ra líde r gené rico d e um conjunto
h eterogên eo de p ovos (como pre te ndia), e d e causas m e n os ta ng íveis,
a ind ividualidad e de Juruna se sobressaiu a lém do que se pe rmite a um
líder ind ígena, como a um líder de uma causa, o u um líde r de um parti-
d o d e esque rda, por exemplo . Con comita nte m e nte, a causa indígen a co-
m eçou a sofre r um certo desgaste no con ceito da o pinião pública, tanto
pela fru stração por s ua n ão resolução (como ocorre n o caso da reforma
agrá ria) e, p o rta nto, pe lo cansaço, qua nto pe la pró pria campanha de
d esm oralização d e o utras lideranças indígenas e fe tuadas p e las ú ltimas
administrações d a Funa i, visando diminuir o impacto p o lítico d as re ivin-
d icações le gítimas dos índ ios, tra nsforma n do-as e m de m andas e pedi-
dos de favo recime nto pessoal. Nesse contexto a rd iloso, Juruna pe rde .
0 FU T U RO O O S fN O I O S 279
le s que aco rre m a Bras ília para part1c1pa r d e manife stações e o utros
eventos p o líticos . Sabe do r da a uto n o mia que cada p ovo indígena te m -
inclusive no seio d e seu p ovo, os Meb ê n gôkre, os Kaya p ó - , Raoni te nta
a proximar-se dos seus p a re ntes Kaya pó m ais ao leste e a o n o rte, com o
o s Me krã nho tire e os Xikrin , na p e rsp ectiva futura d e cria r uma n ação
Kayap ó, unindo tod as as suas á re as e m um único te rritó rio . Este també m
seria o sonho de o utros p ovos, como os Xava nte, os Nambiquara , os
Munduruku , os Timbira , os Tikuna e tc ., conqua nto as dificuldad es sejam
ime nsas e o utros passos se inte rpõem com o prio ritá rios .
Raoni Metuktire é o líde r indíge n a m a is resp e itado na atua lida de e o
te m sido h á muitos anos . Embora já passa ndo dos 80 a n os, sua fo rça p es-
soal é impo n e nte, esteja o nde estiver. Ele é convidado po r p e rson alida -
des e urope ia s , incluindo preside ntes e prínc ipes, p ara se apresentar e m
fó runs d e dire itos huma n os e d e fesa da Amazô nia, fala ndo sempre e m
su a pró pria língu a, a qua l é tra duzida p o r um a ux ilia r b ilíngue . Seu ma io r
su cesso p olítico foi a d em a rcação d as te rras do minad as pelos diversos
s ubgrupos Kayapó, n a décad a d e 1990, que con stitue m ho je o m a io r blo -
co contínuo d e te rras indígen as d o pa ís , ultrapa ssando os 130 mil km 2 d e
exten são, no coração do Brasil , banhadas pelo curso d o rio Xing u. Nessa
e mpre itada, que teve a colaboração real d e seu s pa trícios e da Funai,
Rao ni conto u com a a juda d o canto r ing lês Sting, que o levou pa ra um
p é riplo e urop e u e no rte -a me ricano com a fina lidade d e a nga ria r simpatia
e o bte r recursos p a ra ativar a dema rcação dessas terras . Em te mpos de
con strução de hidrelétricas p elos rios a ma zô nicos, Raoni tem se destaca-
do, p o r excelê nc ia e virtudes de líde r ind ígen a, como a vo z contrá ria à
UHE Be lo Monte, q ue lhe p a rece o esp ectro e m con cre to d o Armagedo n.
As sagas pessoais d e d iversos líde res ind ígen as que tê m se apresenta -
do no cen á rio nacio n al, para m e n c io na r apen as alguns (e corre r o sério
risco de o missão, vá lá!), com o Megaro n Tx uca rra m ãe, Danie l Cabixi ,
Ma rcos Te re na, Álvaro Tuka no, Ailto n Kre n a k , Aze le n e Kring, Almir
Naraya moga, J e remias Ts ibodowapre, Jurand ir Sirid iwê, Vilma r Gu a rani,
Sônia Bane, Escrawe n Som p ré, me recem uma a te nção esp ecial. Mas
te mos de inseri-las no movime nto indígen a e p rocura r compreendê -
las no que e las p o de m acrescentar p ara a con solidação de uma visão
p a n-indígen a que crie uma verdad e ira integração de inte resses e união
de po líticas é tnicas . É nece ssário n ão se p e rde r de vista a conc retude
d os inte resses, como a de m arcação das te rras, a assistê n cia mé dica, a
e ducação e os seu s funda m e ntos bic ulturais, a fim de que não ocorra m
as d is pe rsões ind ivid u a is e os re clam os po r favorecime ntos pessoais . É
certo que a exp e riê n c ia p o lítica dos índ ios n os ú ltimos a nos já gerou fru-
Ü FUTU R O DOS ÍNO J OS 281
Suas te rras são cobiçadas. Para isso, os faze nde iros vão m o ntando n ovas
estratégias de a prox imação, pela cooptação dos seu s líde res à vida na
c idade, pela inte rven ção n as políticas públicas e pela ativ idade política
n o Congresso Nacio nal. Q uanto m e n o r a força do ó rgão indige nista
m e lho r para os fazendeiros, tal com o ocorre u no século XIX e na p o lítica
indigenista disposta pelo governo central aos senho res das provín cias.
O PENSAMENTO AMBIENTALISTA
Na d efesa dos índ ios , somam-se brasile iros e estra n geiros, ind iscrimi-
n ada me n te, re c rutados po r inte re sse s e id ea is e m comum. Não é, p o r-
ta nto , e m op osição a estra ngeiros que se d eve ide ntificar um p e nsame n-
to nacio n alista pró -ind ígen a . Esse p e nsam e nto se refe re à constituição
do se ntime nto da nacio n alidade, isto é, ao conjunto d e ide ias, ide ais ,
preco n ce itos sube nte ndidos e a nse ios q u e são compa tt ilhados po r uma
286 Os INDIOS E O B RASIi.
grande ma io ria da população, que se ide ntifica e ntre si por esse senti-
mento. Esse conjunto não é n ecessariame nte ho mogêneo, tampo u co coe-
rente, m as congrega atitudes e ideais opostos e ntre si. Po r isso mesmo,
o sentimento da nacionalidade não é uma realidade estática, mas um
campo de lutas , n ão uma consensua lidade. O que se e nte ndia de uma
mane ira n o passado , h o je se e nte nde de o utra. Não h á propriamente
uma evolu ção progressiva dos fatores positivos desse sentime nto, e sim
uma construção e adaptação por fases e momentos históricos.
A integração sentime nta l e conce ituai do índio na nac io na lidade bra-
s ile ira , como vimos n os capítulos a nte rio res, é um caso exempla r. Pri-
meiro, apa receu como pa1te da nação através dos trabalhos intelectuais
e políticos de José Bonifácio e da época da Regência. Fo i contestado e
defendido romanticamente em meados do século XIX e incorporado mo-
dernamente pelos positivistas. Continua uma questão de disputa a s ua
perenidade ou extinção, possibilidades que são traduzidas em te rmos de
viabilidade ou inviabilidade , autodete rminação o u assimilação, ava n ço
o u a traso sociais e tc. Mas, n o cômputo geral, p odemos dizer que a ide ia
de o índio ser brasileiro , fazer parte e te r direitos sobre as fra nquias de-
mocráticas que devem fo rmar a n ação-Estado é um aspecto indiscutível
do sentimento atual de brasilidade. Há exceções, mas podemos afirma r
que o Brasil como um todo n ão mais se e nvergo nha de ter índios na s ua
a utocon ceituação, de ser parte índio , e nfim. Esse é um avanço real e o
verdade iro sentido da integração do índio na nação maior. No e ntanto,
a sobrevivên cia do índio não é ainda uma questão totalme nte d efinida.
Há o preconceito e a atitude contrá rios, motivados fundamentalmente
por interesses econômicos imediato, mas também por sentime ntos equ i-
vocados e e litistas sobre o que é o povo b rasile iro. Esses são os inimi-
gos dos índios, contra quem se peleja e m todas essas fre ntes de luta .
OS PERCALÇOS DA SOBREVIVÊNCIA
NOTAS
1
Como exemplo ela d écada de 1980, basta ver que entre os 170 Xikrin cio Bacajá , no s ul cio Pará,
ho uve mais ele 310 casos ele malária no espaço ele oito meses, em 1984, com uma dezena de mortos
em decorrê ncia. Ver relatório de João Pa ulo Bote Uw ele Magalhães, "A sa úde cios índios Xikrin
cio Bacajá", apresentad o à Compan hia Va le cio Rio Doce e à Funai, em janeiro de 1985. Sobre o
aumento ela incidência ela malária e o s urgimento ele novas cepas, ver reportagem no Jornal do
Brasil, 5 jul. 1987. A malária continua a ceifar muitas vidas indígenas na Amazônia , em zonas ele
garimpas e até nas cidades amazônicas. Já no vale cio Javari, onde há d iversos povos indígenas
ele contato relativa mente recente, as doenças principais são a he patite crôn ica, cio tipo B e Delta,
alé m ele malária e tuberculose. Os Xavante ainda sofrem ele um altíssimo nível ele mortalidade
infa ntil e os G uara ni tê m um dos mais altos índices ele assassinatos, cerca ele 100 por 100 mil.
No docu mento "A UNI e sua orga nização", ele 1985, a coordenação geral ela entidade t raça os
fu ndamentos ela s ua ação política e relata um histórico da s ua formação.
3 Sobre a vicia pública deJuruna até 1982, ver Assis Hoffman n, Ogravadordojunma, Porto Alegre,
Global, 1982.
4 Sob o aspecto global cio desenvolvimento ela Amazônia e os custos ambientais, ver os diversos
estudos contidos em Eneas Salati et ai., Amazônia, desenvolvimento, integração e ecologia, op.
cit.; Emílio Mora n (ecl .), The Dilemma of Amazon Development, Boulcler, Co., Westview Press,
1983; e V. H. Sutlive et alli Ceeis.), Where have ai/ thejlowers gone? Deforestation in the Third
World, Williamsburg, VA, College o f William anel Mary Press, 1981.
5 Lúcio Flávio Pinto, Jari: toda a verdade sobre o Projeto de Ludwig, Rio de Janeiro , Marco Zero, 1986.
6 A ide ia ele pensar o modelo elas plantas para comparar com a d iversificaç.'\o elas cultu ras h umanas
foi motivada pela leitura do livro de A. Cronquist, The Evolution and Classification of Flowering
Plants, Lonclon, Thomas Nelson anel Sons, 1968.
ANEXO