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A majestade da natureza, assentada entre rios e florestas sem fim, é a imagem mais
reproduzida pela maioria dos estudiosos que se debruçam sobre temas amazônicos.
Guardiã do “El dorado”, a selva foi erigida no passado por cronistas e viajantes que
ajudaram a compor a genealogia dessa representação.
A obra teve lastro nas experiências da viagem, adensadas pelas copiosas leituras do
autor sobre cientistas e exploradores estrangeiros que também atravessaram terras
amazônicas nos séculos anteriores.
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A caminho do Alto Purús, como chefe da comissão brasileira de limites com a Bolívia, Euclides
enviou a um amigo esta foto, com um soneto autografado (reprodução do original). Foto: Revista
Dom Casmurro, 1946.
“Nesta província onde o portentoso Amazonas, com seus braços dilatados e infinitos,
abrange uma superfície de 80 mil braças quadradas, há, além de rios caudalosos, os
immensos lagos e canaes, cujas margens e praias extensíssimas guarnecem ilhas, terras
baixas e montanhosas, e altas serranias, sobre as quais se achão densas matas e campinas
férteis cheias e produções as mais excellentes.”
João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha, que escreveu o relatório acima, foi o
primeiro presidente da Província do Amazonas. Empreendeu uma atualização
importante dos conceitos de opulência, conectando-os com as diretrizes de uma
exploração racional dos recursos naturais, interligados com políticas de colonização e
sedentarização de agricultores.
Seu relatório mostrou a floresta como uma fronteira aberta para as aventuras
capitalistas. Assim como outras autoridades da região, o governante pretendia
desmantelar os hábitos nômades das sociedades locais e suas paisagens ameríndias, que
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deveriam tomar parte nos novos esforços de conquista.
As matas e os rios deveriam ser retratados como alvos responsáveis por desencantar
lendas e transformar o território em fonte efetiva de riqueza. Era o colonialismo interno
apoiado por setores das elites brasileiras, que desejavam uma interiorização massiva
baseada na navegação a vapor e na abertura de ferrovias.
A expansão no interior da nova Província em direção aos altos rios também buscou
recrutar novos trabalhadores. Além das políticas de atração de migrantes, continuaram
sendo endossados longevos discursos coloniais, baseados em ideias de tutela e
civilização dos “gentios”, visualizados muitas vezes como inaptos ao trabalho.
A renovação do aparato oficial operava como uma frente para assegurar políticas de
controle das populações locais, vistas como úteis ou empecilhos — dependendo do grau
de subjugação aos interesses capitalistas de exploração econômica da floresta.
Uma das tarefas mais importantes nesse sentido foi a introdução de migrantes. A
estratégia central para atrair trabalhadores teve início numa política oficial de
colonização comandada pela Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas,
implementada em 1853.
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A origem social dos migrantes acenava aos dirigentes das províncias amazônicas com
novos hábitos disciplinares, ligados à faina agrícola. Entretanto, muitos dos recém-
chegados colaboraram para uma disseminação ainda maior das atividades extrativistas,
distantes do perfil sedentário desejado no âmbito oficial.
Assim, alguns jornais de Belém, a Gazeta entre eles, acusaram os adventícios de serem
“preguiçosos e não perseverantes”, em reportagem de 20 de maio de 1858.
Entre brasileiros, o caminho foi parecido. Não casualmente, Manoel Urbano era um
prático de embarcações experiente e conhecedor de muitas línguas indígenas. Pouco
tempo após a criação da Província do Amazonas, chegou a ser contratado como membro
da Diretoria de Índios, em 1853, e incumbido, a princípio, a contabilizar e catalogar as
“tribos” do Purus.
Pode-se afirmar que estes são índices da violência discursiva inserida nos relatos, como
disse a pesquisadora Mary Louise Pratt, já que a literatura de viagem e os registros
científicos costumeiramente enquadraram indígenas, africanos e mestiços de modo
depreciativo, legitimando ainda mais o caráter deletério das ações coloniais.
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Porto de Manaus no século XIX/Divulgação
Quando deixou a comunidade, o visitante foi presenteado com muitos abacaxis; tática
utilizada pelos desertores para selar amizade e evitar denúncias às autoridades
provinciais. Outros grupos semelhantes cruzaram os caminhos do viajante,
“encontradiços nos canais e igarapés do Amazonas onde a sentença da corte marcial
não os alcança”, escreveu Marcoy.
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“[Depois] de uma caminhada de vinte
minutos não aguentava mais o movimento
contínuo daquela multidão colorida”,
escreveu o francês. Multidão, nesse contexto,
se aproximava do conceito de turbulência
social, marcada pela rebeldia e demonstrações
de força de personagens desclassificados
socialmente no século XIX, com destaque
para pessoas “de cor”.
No caso específico das sociedades indígenas havia o Regulamento acerca das missões
de catequese e civilização dos índios, aprovado em 1845. Nos sertões amazônicos, em
grande medida, os responsáveis pelo contato e “civilização” eram homens leigos, ligados
aos interesses da exploração econômica do interior, ansiosos para mobilizar força de
trabalho ameríndia para seus negócios.
Estes eram deslocados para diversos trabalhos, dado que a maioria dos dirigentes tinha
interesses econômicos nos altos rios e explorava feitorias extrativistas.
O exame das agências desses personagens é um grande desafio para pesquisadores, pois
são raros os testemunhos escritos em primeira pessoa. Sua presença, em grande
medida, somente pode ser mapeada por meio de páginas de documentos policiais e do
judiciário, vistos como acusados, inquiridos ou presos. Na trilha de fontes oficiais é
possível localizar indícios de suas trajetórias de contestação e resistências.
Dois anos depois, a mesma localidade foi tomada por soldados rasos e desertores, que
subjugaram os chefes militares locais. Segundo o historiador Luís Balkar Sá Peixoto
Pinheiro, os amotinados assassinaram as principais autoridades em retaliação a salários
atrasados, violência constante e arregimentação compulsória.
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Os praças também libertaram todos os prisioneiros, que então se uniram à rebelião. Tal
ação, segundo Pinheiro, teve uma “forte carga simbólica que revela de forma inequívoca
o desejo dos populares de romper com a continuidade das práticas repressivas e
despóticas, destruindo seus símbolos mais eloquentes”, diz Pinheiro na tese “Nos
subterrâneos da revolta: trajetórias, lutas e tensões na Cabanagem”, de 1998.
“Aos vinte hum dias do mês de Maio de mil oitocentos e trinta neste Lugar da Barra do
Rio Negro em a casa de Residencia do Ouvidor Geral desta Comarca Manuel Bernardino
de Sousa e Figueiredo onde eu escrivão vim de seu chamado e sendo presente o tenente
Justino Antonio Freire por este foi ditto na presença de testemunhas o Coronel Francisco
Ricardo Zany e João da Silva Cunha que presentes se achavão que tendo-se espalhado
neste lugar a notícia de que indivíduos mal intencionados innimigos do público pretendem
perturbar a paz de que se tem gosado neste Lugar;
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Elle vinha participar que o seu Escravo Simão lhe dissera domingo dezesseis do corrente
que ele encontrara esse dia de manhã na estrada que vai dar à Rocinha do falecido
Bonifácio João de Azevedo, um molato dois pretos e um mameluco ou índio claro, todos
armados com armas de fogo; que o dito preto só conhecera o molato, que se chama
Vicente que foi escravo de Antonio da Silva Craveiro, com o qual falou e lhe perguntou o
que fasia por aqui, ao que respondeu o molato que andava viajando, e que o seu ditto
escravo se fora andando sem se afirmar muito dos outros indivíduos por estar com medo
deles.
O que elle declarante não veio logo participar ao ditto Ministro por não haver suspeita
alguma de desordem neste Lugar, e mesmo porque não fes muito caso do que o preto lhe
disia. E logo mandou o ditto ministro mandar a sua presença o mencionado preto Simão; o
qual confirmou debaixo de juramento dos Santos Evangelhos na presença das ditas
testemunhas ser verdade tudo que o seu Senhor tinha referido com diferença somente que
o Molato Vicente não trasia arma de fogo, e só trasia na mão hum terçado. E de tudo para
constar mandou o ditto Ministro lavrar este termo que todos assignarão. Eu, Ignácio
Porfírio da Costa o escrevi”
O lugar em que Simão achou os fugitivos, que estavam no caminho de uma “rocinha”,
também tem destaque. É provável que o escravizado e os “bandidos” compartilhassem
do mesmo propósito, qual seja, colher, cultivar e conseguir alimento nas mata.
As negociações com desertores, vale ressaltar, eram ilegais. Por isso havia preocupação
em fiscalizar as possibilidades de intercâmbios que pudessem auxiliar na sustentação de
comunidades de fugitivos na floresta.
Durante a segunda metade do século XIX, as atividades dos comerciantes dos rios
foram muitas vezes vedadas ou, quando permitidas, repletas de impostos onerosos.
Algumas autoridades chegaram a acusá-los de se combinação com malfeitores, ou de
explorarem povos indígenas de maneira predatória.
Nos distantes rincões havia uma complexa rede de trocas com participação de regatões,
que transportavam bens manufaturados, como tecidos, espelhos, sapatos, roupas,
bebidas, enlatados e miudezas, negociados em troca dos produtos extrativistas e
alimentos produzidos no interior.
Esta era a razão principal por trás da ambiguidade das autoridades no que tange ao
tratamento do comércio fluvial de pequeno porte, ora combatido, ora tolerado.
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Os fugitivos ofereciam sua força de trabalho aos mascates, buscando refúgio e proteção
contra a polícia e/ou senhores. Uma vez sob a tutela dos comerciantes dos rios,
vivenciavam relações de trabalho coercitivas, vivendo sob condições precárias nas
equipagens clandestinas das pequenas embarcações.
Não por acaso, suspeitas das ligações comerciais com comunidades clandestinas eram
frequentes entre autoridades policiais. No mesmo dia do interrogatório de Simão e de
seu Senhor, outra testemunha foi inquirida sobre as movimentações ameaçadoras nos
arredores da futura capital do Amazonas.
Dessa vez, tratava-se do Cadete Feliciano José D’oliveira, cujo depoimento sublinhou
um encontro suspeito durante viagem de retorno oriunda do Rio Iça, descrito na fonte
como Issa, afluente do Alto Solimões.
Na ocasião, Feliciano teria sido abordado por um grupo de mulheres e homens “cafusos,
mulatos e índios” embarcados em três grandes canoas, com os quais conversou
brevemente, em frente ao Pesqueiro Real, na Vila de Manacapuru. Mais um registro que
está no acervo da Biblioteca Pública Artur Reis. Novamente, a grafia original foi
preservada:
”Anno do nascimento do Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos de trinta aos vinte
um dias do mes de Maio do ditto anno neste Lugar da Barra do Rio Negro em as casas de
Residencia do Doutor Ouvidor Manuel Bernardino de Souza e Figueiredo onde eu
escrivão vim de seu chamado (…) presente o Cadete do Batalhão vinte e quatro Feliciano
José d´Oliveira proximamente chegado do Rio Issá lhe encarregou o ditto ministro
debaixo do juramento dos Santos Evangelhos declarar o que lhe acontecera antes de
chegar a este Lugar, que encontro tivera na altura do Pesqueiro de Manacapurú.
E tendo recebido o ditto juramento declarou que no dia oito do corrente pelas sinco horas
da tarde pouco mais ou menos fora abordo da igarithe em que vinha, (aparecendo-lhe)
huma montaria possante com oito homens, cafusos, mulatos, e índios para quem lhe
vendeu Aguardente e Farinha, e logo chegarão mais duas Montarias com sinco indivíduos
da mesma qualidade todos armados com frechas e algumas facas, trazendo consigo
algumas mulheres. E que vendo ele tanta gente lhe dera três frascos de Aguardente e
depois de a beberem lhe pediram mais, e dizendo-lhe que não tinha se forão embora e lhe
derão duas tartarugas e que os ditos indivíduos lhe diserão que residião em hum lago
defronte da paragem que se bem se lembra he Mamori;
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Disse mais que desconfiava que tais indivíduos eram desertores e de como assim declarou
na presença das testemunhas. Jorge Maria de Lemos e Sá e Justino de Sousa Loureiro;
Mandou o Ministro fazer esse termo que todos assignarão. Eu, Ignácio Porfírio da Costa o
escrevi.”
A região do Alto Solimões estava distante do controle oficial, áreas onde os regatões
eram bastante influentes. A troca de aguardente e farinha por tartarugas, citada no
depoimento, aponta indícios das atividades do Cadete, que não relatou uma abordagem
ameaçadora por parte do grupo de “cafusos, mulatos e índios” — que não deixaram de
pagar pela cachaça consumida.
Mesmo que D’oliveira fosse militar, seu depoimento guarda pistas de atividades
assemelhadas às exercidas pelos pequenos comerciantes fluviais. Índices do cotidiano
da floresta, esse tipo de negociação era ameaçadora para quem buscava desarticular
comunidades de fugitivos.
Tal status social fazia parte da lei dos Corpos de Trabalhadores, o que pode explicar a
concepção geral acerca da liberdade para certos grupos sociais. A instituição
escravocrata servia como parâmetro para o entendimento do trabalho de indígenas,
negros e mestiços livres na Amazônia. Para além da diversidade étnica, dos dilemas
culturais e dos conflitos, foi preciso forjar espaços de negociação e barganha, dividindo
experiências de fuga e vivenciando desafios tensos nos mundos do trabalho.
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Seguindo trilha aberta pelo historiador Eurípedes Antonio Funes em 1995, é preciso
salientar que, entre a escravização e a liberdade, populações da floresta sem senhor
teceram suas alianças complexas para resistir.
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