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Sobre alianças complexas: Indígenas, escravos,

desertores militares e a expansão rumo ao oeste


amazônico no século XIX
amazonialatitude.com/2020/11/03/sobre-aliancas-poder-e-a-expansao-rumo-ao-oeste-amazonia/

Antonio Alexandre Isidio Cardoso, Universidade Federal do Maranhão November 3, 2020


(UFMA)

[RESUMO] Com documentos de época e uma detalhada consulta à literatura, autor


explora as alianças complexas entre o poder e a multidão que está fora da História.
Regatões, pessoas escravizadas, indígenas e desertores militares constroem a teia fluvial
apresentada no artigo, assim como a relação de todos esses grupos com o exercício do
controle na Amazônia das vidas e do trabalho pela Monarquia.

“A impressão dominante que tive, e talvez correspondente a uma verdade positiva, é


esta: o homem, ali, é ainda um intruso impertinente. Chegou sem ser esperado nem
querido – quando a natureza ainda estava arrumando o seu mais vasto e luxuoso
salão. (…) E encontrou uma opulenta desordem”

— Euclides da Cunha, Um Paraíso Perdido: ensaios amazônicos

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A majestade da natureza, assentada entre rios e florestas sem fim, é a imagem mais
reproduzida pela maioria dos estudiosos que se debruçam sobre temas amazônicos.
Guardiã do “El dorado”, a selva foi erigida no passado por cronistas e viajantes que
ajudaram a compor a genealogia dessa representação.

Ricas e desafiadoras, as matas deslumbravam e amedrontavam os que singravam seus


caminhos, ora paraíso, ora inferno. Ao passo que alguns ficavam fascinados por sua
opulência, outros passavam a identificar em sua grandeza os germens da desordem, que
também atingia os habitantes do território, sujeitos alheios ao reino da civilização, fora
da História.

Euclides da Cunha contribuiu com a ressonância dessa imagética. O autor participou, e


registrou com detalhes, da expedição brasileira-peruana oficial para demarcação de
limites entre 1904 e 1905, depois da publicação bem-sucedida de Os Sertões. Em 1909
veio “À margem da História”, publicado postumamente com base nas anotações do
autor.

A obra teve lastro nas experiências da viagem, adensadas pelas copiosas leituras do
autor sobre cientistas e exploradores estrangeiros que também atravessaram terras
amazônicas nos séculos anteriores.

Bem antes da passagem do autor brasileiro pela floresta, registros de autoridades,


viajantes e exploradores também exaltaram a largueza natural e condenaram o suposto
embrutecimento e indolência dos habitantes locais, meslando admiração e
desapontamento.

As matas e o clima engoliam a sociedade humana, mais precisamente os agentes do


colonialismo interno, que tiveram de pensar estratégias e alternativas para domar a
natureza “selvagem”. Um período especialmente interessante para entender parte desse
contexto é a segunda metade do século XIX.

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A caminho do Alto Purús, como chefe da comissão brasileira de limites com a Bolívia, Euclides
enviou a um amigo esta foto, com um soneto autografado (reprodução do original). Foto: Revista
Dom Casmurro, 1946.

É possível afirmar que a Província do Amazonas, criada em 1850 e implementada em


1852, fez parte de um novo processo de conquista da região. Antigas imagens foram
recicladas nos primeiros relatórios oficiais dos dirigentes locais, que redimensionaram
as perspectivas coloniais que enxergavam infinitos recursos naturais exploráveis e
possibilidades de riqueza.

“Nesta província onde o portentoso Amazonas, com seus braços dilatados e infinitos,
abrange uma superfície de 80 mil braças quadradas, há, além de rios caudalosos, os
immensos lagos e canaes, cujas margens e praias extensíssimas guarnecem ilhas, terras
baixas e montanhosas, e altas serranias, sobre as quais se achão densas matas e campinas
férteis cheias e produções as mais excellentes.”

João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha, que escreveu o relatório acima, foi o
primeiro presidente da Província do Amazonas. Empreendeu uma atualização
importante dos conceitos de opulência, conectando-os com as diretrizes de uma
exploração racional dos recursos naturais, interligados com políticas de colonização e
sedentarização de agricultores.

Seu relatório mostrou a floresta como uma fronteira aberta para as aventuras
capitalistas. Assim como outras autoridades da região, o governante pretendia
desmantelar os hábitos nômades das sociedades locais e suas paisagens ameríndias, que
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deveriam tomar parte nos novos esforços de conquista.

Outra intenção explícita nesses escritos apontava para a tentativa de atenuação da


representação pitoresca da natureza amazônica. O conceito de natureza selvagem, cheia
de perigos, curiosidades e encantos, não tinha nenhuma conexão com a nova narrativa
oficial.

As matas e os rios deveriam ser retratados como alvos responsáveis por desencantar
lendas e transformar o território em fonte efetiva de riqueza. Era o colonialismo interno
apoiado por setores das elites brasileiras, que desejavam uma interiorização massiva
baseada na navegação a vapor e na abertura de ferrovias.

A expansão no interior da nova Província em direção aos altos rios também buscou
recrutar novos trabalhadores. Além das políticas de atração de migrantes, continuaram
sendo endossados longevos discursos coloniais, baseados em ideias de tutela e
civilização dos “gentios”, visualizados muitas vezes como inaptos ao trabalho.

Em “Os historiadores e os rios: natureza e ruína na Amazônia brasileira”, o pesquisador


Victor Leonardi diz que sucessivos governos “tentaram derrotar os autóctones inclusive
no plano da memória, construindo sobre o tema do ócio dos mestiços e caboclos uma
abundante documentação desprestigiadora”.

A renovação do aparato oficial operava como uma frente para assegurar políticas de
controle das populações locais, vistas como úteis ou empecilhos — dependendo do grau
de subjugação aos interesses capitalistas de exploração econômica da floresta.

Uma das tarefas mais importantes nesse sentido foi a introdução de migrantes. A
estratégia central para atrair trabalhadores teve início numa política oficial de
colonização comandada pela Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas,
implementada em 1853.

A empresa obteve o privilégio de monopolizar a navegação a vapor na região, mas foi


obrigada pelo governo brasileiro a estabelecer colônias de migrantes. Segundo o
dirigente da companhia, Irineu Evangelista de Souza, a tarefa também poderia trazer
um desenvolvimento inédito e eficiente para o interior amazônico.

Irineu, o Barão de Mauá, acreditava que as províncias do Amazonas e do Pará tinham


de atrair um fluxo migratório,que poderia mudar o perfil local da força de trabalho, de
acordo com uma reportagem da Gazeta Oficial, de 27 de maio de 1858.

Muitos desses novos trabalhadores vinham de outras províncias brasileiras,


especialmente Maranhão, Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco, áreas de
economia baseada na pecuária extensiva e nas culturas de cana-de-açúcar, algodão e
arroz, entre outros gêneros, produzidas em na maior parte por mulheres e homens
negros escravizados.

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A origem social dos migrantes acenava aos dirigentes das províncias amazônicas com
novos hábitos disciplinares, ligados à faina agrícola. Entretanto, muitos dos recém-
chegados colaboraram para uma disseminação ainda maior das atividades extrativistas,
distantes do perfil sedentário desejado no âmbito oficial.

Assim, alguns jornais de Belém, a Gazeta entre eles, acusaram os adventícios de serem
“preguiçosos e não perseverantes”, em reportagem de 20 de maio de 1858.

O fracasso de vários projetos agrícolas teve conexões com o boom do extrativismo


vegetal, que aprofundou a exploração de borracha no Vale amazônico. Particularmente
depois de 1880, tal tendência levou a região a viver um forte crescimento econômico,
devido ao aumento das exportações da goma elástica demandada pela indústria
internacional.

A historiadora Bárbara Weinstein, da Universidade de Nova Iorque, enfatiza que a


complexidade e a vastidão do meio ambiente amazônico contribuíram para frustrar os
esforços técnicos e de racionalização do trabalho. Mais do que isso: além da imensidão
de florestas e rios, os mundos do trabalho historicamente arraigados nas sociedades
ameríndias iam na contramão das tentativas de submissão da floresta ao gosto dos
dirigentes locais.

Presidente do Amazonas em 1864, Adolfo de Barros Cavalcante de Albuquerque


Lacerda afirmou que a “tendência irresistível” do extrativismo estava “corrompendo” a
sociedade e causando “consequências desastrosas”.

“A irresistível tendência da população a empregar-se de preferência na colheita de


productos que a natureza esponeamente offerece, é um mal, cujas funestas consequências
muitos começam felizmente a reconhecer: como sejam a falta dos gêneros alimentícios, o
abandono dos povoados, a disseminação dos habitantes, o estrago das florestas, as
moléstias, a miséria geral”

No entanto, o pioneirismo interno na Amazônia não alcançou rapidamente uma


transformação efetiva das formas de trabalho consideradas bárbaras, tampouco
transformou mecanicamente os moradores da floresta em trabalhadores disciplinados e
sedentários.

O paraíso renovado no discurso capitalista acabou ganhando outras camadas de


sentido. Ironicamente, a odiada sociedade nômade tornou-se, mesmo ante o rechaço
oficial, participante do novo pioneirismo. Alianças complexas se formavam.

Assim, habitantes locais foram destacados em documentos oficiais e jornais como


partidários locais do progresso e da civilização. Foi o caso de Manoel Urbano da
Encarnação, um mulato livre que agia como regatão, espécie de comerciante fluvial de
pequeno porte. Urbano teve uma participação importante no avanço das feitorias e
assentamentos extrativistas comerciais no rio Purus.
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Em 1845, o Coronel João Henrique de Matos, comandante militar da região do Alto
Amazonas, redigiu um relatório alarmante sobre o estado de degradação dos altos rios.
Matos apontou como solução a ideia de uma nova conquista, para a qual, homens como
Manoel Urbano da Encarnação seriam essenciais.

Serviriam como intermediários entre os interesses oficiais e habitantes indígenas das


florestas. O Coronel também declarou que tais intermediários poderiam traduzir os
segredos de áreas desconhecidas, facilitando estratégias de controle.

Desde o início do colonialismo no continente americano, europeus foram obrigados a


arquitetar alianças com as comunidades nativas. Os invasores sempre precisaram de
intérpretes para aproximação e controle das culturas e sociedades contatadas.

Entre brasileiros, o caminho foi parecido. Não casualmente, Manoel Urbano era um
prático de embarcações experiente e conhecedor de muitas línguas indígenas. Pouco
tempo após a criação da Província do Amazonas, chegou a ser contratado como membro
da Diretoria de Índios, em 1853, e incumbido, a princípio, a contabilizar e catalogar as
“tribos” do Purus.

Urbano protagonizou “expedições de reconhecimento” que forneceram informações


para muitos estudiosos e cientistas no século XIX. O engenheiro militar brasileiro João
Martins da Silva Coutinho, em 1862, e o geógrafo inglês William Chandless, em 1864,
foram guiados e orientados pelo regatão.

Nos seus relatórios, Coutinho e Chandless retratavam o intermediário como um mulato


“esperto” ou um homem de cor de inteligência “natural”. Entretanto, o regatão jamais
fora reconhecido como autor de qualquer resultado científico, permanecendo como um
homem de cor pacificado — alguém pretensamente confiável em meio à escória da
floresta.

Pode-se afirmar que estes são índices da violência discursiva inserida nos relatos, como
disse a pesquisadora Mary Louise Pratt, já que a literatura de viagem e os registros
científicos costumeiramente enquadraram indígenas, africanos e mestiços de modo
depreciativo, legitimando ainda mais o caráter deletério das ações coloniais.

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Porto de Manaus no século XIX/Divulgação

A multidão colorida e os códigos disciplinares do trabalho


Na década de 1840, o francês Paul Marcoy iniciou uma incursão pelos territórios
peruano e brasileiro, atravessando os Andes e todo o curso principal dos rios Solimões e
Amazonas. O viajante esteve em muitas cidades e vilas, e registrou o contato com
desertores militares escondidos em um pequeno povoado.

Marcoy passou vários dias na localidade, anotando detalhes da presença de mulheres


indígenas de etnia Tikuna envolvidas com os fugitivos e de outros “bandidos”. Registrou
o cultivo de mandioca e frutas para alimentar o grupo, cujos excedentes eram
negociados com regatões que transitavam pelo rio.

Quando deixou a comunidade, o visitante foi presenteado com muitos abacaxis; tática
utilizada pelos desertores para selar amizade e evitar denúncias às autoridades
provinciais. Outros grupos semelhantes cruzaram os caminhos do viajante,
“encontradiços nos canais e igarapés do Amazonas onde a sentença da corte marcial
não os alcança”, escreveu Marcoy.

O relato de viagem permite observar que a composição dessas comunidades de fugitivos


na floresta congregava diversas experiências de subalternização, com destaque para as
de indígenas, negros e mestiços.

As paisagens sociais das matas, marcadas pela diversidade, estavam representadas


também nas áreas urbanas, como no caso da florescente cidade de Belém,

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“[Depois] de uma caminhada de vinte
minutos não aguentava mais o movimento
contínuo daquela multidão colorida”,
escreveu o francês. Multidão, nesse contexto,
se aproximava do conceito de turbulência
social, marcada pela rebeldia e demonstrações
de força de personagens desclassificados
socialmente no século XIX, com destaque
para pessoas “de cor”.

Para além do espanto do viajante estrangeiro,


o medo da insubmissão da “multidão
colorida” levou à organização, em nível local,
de medidas para neutralizar e controlar
agências populares. O Código Penal do Brasil
Império, publicado em 1830, poderia punir
prisioneiros com vários anos de trabalho
forçado. Autoridades poderiam ainda, por
meios legais, sujeitar pessoas livres à condição
de servos compulsórios.

O instrumento permitiu que a Monarquia


brasileira reforçasse os violentos regimentos O viajante francês Paul Marcoy/Divulgação
militares, que em terras amazônicas foram
marcados por investidas contra populações indígenas, negras e mestiças livres,
submetidas ao jugo dos quartéis e batalhões.
Também é possível atestar que, mais que códigos criminais ou militares, tais
regulamentações eram formas de sujeitar a dita multidão “colorida” aos longevos
interesses econômicos lastreados pela labuta forçada e escravização ilegal.

No caso específico das sociedades indígenas havia o Regulamento acerca das missões
de catequese e civilização dos índios, aprovado em 1845. Nos sertões amazônicos, em
grande medida, os responsáveis pelo contato e “civilização” eram homens leigos, ligados
aos interesses da exploração econômica do interior, ansiosos para mobilizar força de
trabalho ameríndia para seus negócios.

Em 1864, Adolfo de Barros Cavalcanti de Albuquerque Lacerda, então dirigente da


Província do Amazonas, publicou informações das 39 Diretorias de Índios em
funcionamento. Os dados disponibilizados tratavam das comunidades espalhadas pelos
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rios Solimões, Negro, Amazonas, Branco, Purus e Madeira, cujas aldeias somavam
aproximadamente 17.780 habitantes.

Estes eram deslocados para diversos trabalhos, dado que a maioria dos dirigentes tinha
interesses econômicos nos altos rios e explorava feitorias extrativistas.

Outra política disciplinar e de arregimentação de mão de obra foi consubstanciada nos


Corpos de Trabalhadores, formados após a revolta da Cabanagem em 1838, que afetava
basicamente populações “de cor”, sem propriedades ou senhores.

As lembranças sangrentas da época em que os insurgentes ameaçaram matar todos os


portugueses (ou brancos em geral) do Grão-Pará eram utilizadas como parte da
justificativa para a aplicação do código. Os Corpos de Trabalhadores firmaram-se como
instituição ligada ao pensamento oficial que aproximava ainda mais pobres livres de
condições sociais análogas à escravidão.

A proibição do comércio de escravos no Atlântico também fez parte da conformação do


cenário acima esboçado. Em vez de consolidar as relações de trabalho livres, fortaleceu
um último impulso da escravização no país, paralelamente às políticas de trabalho
compulsório e ao tráfico interprovincial de escravos.

O fim definitivo das travessias de tumbeiros na década de 1850 estancou a entrada de


africanos escravizados, mas não as práticas e costumes escravistas. Estas, como já
contou Sidney Chalhoub, seguiram funcionando na economia e na cultura do Brasil
Império.

Pareados a africanos e indígenas escravizados havia outros atores sociais, classificados


como mamelucos, cafuzos, atapuiados e mulatos, também atingidos pela conjunção de
fatores históricos no curso do século XIX.

O exame das agências desses personagens é um grande desafio para pesquisadores, pois
são raros os testemunhos escritos em primeira pessoa. Sua presença, em grande
medida, somente pode ser mapeada por meio de páginas de documentos policiais e do
judiciário, vistos como acusados, inquiridos ou presos. Na trilha de fontes oficiais é
possível localizar indícios de suas trajetórias de contestação e resistências.

As autoridades do Lugar da Barra do Rio Negro abriram inquérito para investigar a


presença de grupos de “suspeitos”, formados por negros, indígenas e mestiços,
circulando na região da foz do Rio Negro em 1830.

Dois anos depois, a mesma localidade foi tomada por soldados rasos e desertores, que
subjugaram os chefes militares locais. Segundo o historiador Luís Balkar Sá Peixoto
Pinheiro, os amotinados assassinaram as principais autoridades em retaliação a salários
atrasados, violência constante e arregimentação compulsória.

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Os praças também libertaram todos os prisioneiros, que então se uniram à rebelião. Tal
ação, segundo Pinheiro, teve uma “forte carga simbólica que revela de forma inequívoca
o desejo dos populares de romper com a continuidade das práticas repressivas e
despóticas, destruindo seus símbolos mais eloquentes”, diz Pinheiro na tese “Nos
subterrâneos da revolta: trajetórias, lutas e tensões na Cabanagem”, de 1998.

Embarcação na Amazônia, em meio à infinidade de pequenas rotas nos rios da floresta/Divulgação

Em maio de 1830, o Provedor de Justiça Distrital (Ouvidor Geral da Comarca) Manuel


Bernardino de Souza Figueiredo iniciou a investigação sobre a presença “assustadora”
de pessoas “más” nas imediações do Lugar da Barra do Rio Negro. Muitos indivíduos
foram convocados para depor a respeito das movimentações suspeitas. Eis um trecho,
que está no Arquivo reservado da Biblioteca Pública Artur Reis, em Manaus, na caixa de
manuscritos (avulsos) 1813-1899:

“Aos vinte hum dias do mês de Maio de mil oitocentos e trinta neste Lugar da Barra do
Rio Negro em a casa de Residencia do Ouvidor Geral desta Comarca Manuel Bernardino
de Sousa e Figueiredo onde eu escrivão vim de seu chamado e sendo presente o tenente
Justino Antonio Freire por este foi ditto na presença de testemunhas o Coronel Francisco
Ricardo Zany e João da Silva Cunha que presentes se achavão que tendo-se espalhado
neste lugar a notícia de que indivíduos mal intencionados innimigos do público pretendem
perturbar a paz de que se tem gosado neste Lugar;

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Elle vinha participar que o seu Escravo Simão lhe dissera domingo dezesseis do corrente
que ele encontrara esse dia de manhã na estrada que vai dar à Rocinha do falecido
Bonifácio João de Azevedo, um molato dois pretos e um mameluco ou índio claro, todos
armados com armas de fogo; que o dito preto só conhecera o molato, que se chama
Vicente que foi escravo de Antonio da Silva Craveiro, com o qual falou e lhe perguntou o
que fasia por aqui, ao que respondeu o molato que andava viajando, e que o seu ditto
escravo se fora andando sem se afirmar muito dos outros indivíduos por estar com medo
deles.

O que elle declarante não veio logo participar ao ditto Ministro por não haver suspeita
alguma de desordem neste Lugar, e mesmo porque não fes muito caso do que o preto lhe
disia. E logo mandou o ditto ministro mandar a sua presença o mencionado preto Simão; o
qual confirmou debaixo de juramento dos Santos Evangelhos na presença das ditas
testemunhas ser verdade tudo que o seu Senhor tinha referido com diferença somente que
o Molato Vicente não trasia arma de fogo, e só trasia na mão hum terçado. E de tudo para
constar mandou o ditto Ministro lavrar este termo que todos assignarão. Eu, Ignácio
Porfírio da Costa o escrevi”

Essa situação mostra as investigações em andamento e os indícios sobre as atividades


dos “inimigos do público”. As cheias dos Rios Negro e Solimões acontecem nessa época
do ano, maio e junho. Igarapés e canais transbordam e transformam-se em labirintos,
potenciais rotas de fuga e esconderijo.

Um primeiro detalhe interessante no documento refere-se às classificações de “cor”


como indicadores sociais, precedendo todas as outras características físicas individuais
descritas. Esses procedimentos endossavam a elaboração de imagens negativas e
perigosas sobre os habitantes da floresta.

Embora as ideias científicas de raça ainda não estivessem plenamente articuladas à


época, havia outras concepções sociais negativas apoiadas no colonialismo, como a
preguiça e a ideia da multidão perigosa e tumultuada, evidentemente ligadas às
populações locais.

O lugar em que Simão achou os fugitivos, que estavam no caminho de uma “rocinha”,
também tem destaque. É provável que o escravizado e os “bandidos” compartilhassem
do mesmo propósito, qual seja, colher, cultivar e conseguir alimento nas mata.

Essa prática era relativamente comum na rotina escravista brasileira. Pessoas


escravizadas podiam dispor de um dia por semana (e feriados anuais) para cultivar
pequenos sítios e roçados com autorização senhorial. Por esse olhar, o historiador
Eurípedes Antônio Funes afirma que havia muitas conexões entre roçados mantidos por
escravos e indígenas, fugidos ou não, e interesses de comerciantes de vilas, regatões e
povoados amazônicos.
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Embora fossem muitas vezes perseguidos pela polícia e pelos senhores, estes
personagens também poderiam ser vistos como “fonte” de bens de consumo e
alimentos.

O terceiro ponto significativo no documento de Figueiredo refere-se à suspeita que


pesou sobre os ombros de Freire, senhor de Simão, que comunicou seu depoimento
com a necessidade de confirmação de seu escravo — algo curioso.

No Brasil, depoimentos de escravizados raramente eram admitidos como confirmação


da fala de senhores. Talvez o provedor de justiça se perguntasse porque o tenente ainda
não tinha ciência das “ameaças” dos fugitivos de cor, ou, talvez, até se questionasse o
que o Simão realmente fazia no percurso do roçado.

As negociações com desertores, vale ressaltar, eram ilegais. Por isso havia preocupação
em fiscalizar as possibilidades de intercâmbios que pudessem auxiliar na sustentação de
comunidades de fugitivos na floresta.

Além das possíveis negociações, também preocupava o envolvimento desses


personagens com rotas do pequeno comércio fluvial, dirigido pela miríade de regatões
da bacia amazônica. As Províncias do Amazonas e do Pará desenvolveram vários
mecanismos de policiamento para este enfrentamento, e os regatões figuravam como o
alvo principal da vigilância.

Durante a segunda metade do século XIX, as atividades dos comerciantes dos rios
foram muitas vezes vedadas ou, quando permitidas, repletas de impostos onerosos.
Algumas autoridades chegaram a acusá-los de se combinação com malfeitores, ou de
explorarem povos indígenas de maneira predatória.

Contudo, havia quem enxergasse os regatões como um “mal necessário”, já que


conheciam bem os “desertos enormes” dos territórios amazônicos, áreas ainda
parcamente devassadas.

Nos distantes rincões havia uma complexa rede de trocas com participação de regatões,
que transportavam bens manufaturados, como tecidos, espelhos, sapatos, roupas,
bebidas, enlatados e miudezas, negociados em troca dos produtos extrativistas e
alimentos produzidos no interior.

Esta era a razão principal por trás da ambiguidade das autoridades no que tange ao
tratamento do comércio fluvial de pequeno porte, ora combatido, ora tolerado.

Os regatões, além da atividade econômica propriamente dita, também eram conhecidos


por transportar “indesejáveis”, como escravos e indígenas fugidos, camuflados em suas
tripulações.

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Os fugitivos ofereciam sua força de trabalho aos mascates, buscando refúgio e proteção
contra a polícia e/ou senhores. Uma vez sob a tutela dos comerciantes dos rios,
vivenciavam relações de trabalho coercitivas, vivendo sob condições precárias nas
equipagens clandestinas das pequenas embarcações.

Complexa e cheia de violência e assimetrias de poder, tal aliança reforçava


possibilidades de fuga e a sustentação de vínculos de trabalho associados às
comunidades ilegais da floresta. Embora os legisladores oficiais enfrentassem essa
cumplicidade, as negociações subversivas continuaram fortes, ocultas e protegidas pelo
labirinto fluvial amazônico no século XIX.

Não por acaso, suspeitas das ligações comerciais com comunidades clandestinas eram
frequentes entre autoridades policiais. No mesmo dia do interrogatório de Simão e de
seu Senhor, outra testemunha foi inquirida sobre as movimentações ameaçadoras nos
arredores da futura capital do Amazonas.

Dessa vez, tratava-se do Cadete Feliciano José D’oliveira, cujo depoimento sublinhou
um encontro suspeito durante viagem de retorno oriunda do Rio Iça, descrito na fonte
como Issa, afluente do Alto Solimões.

Na ocasião, Feliciano teria sido abordado por um grupo de mulheres e homens “cafusos,
mulatos e índios” embarcados em três grandes canoas, com os quais conversou
brevemente, em frente ao Pesqueiro Real, na Vila de Manacapuru. Mais um registro que
está no acervo da Biblioteca Pública Artur Reis. Novamente, a grafia original foi
preservada:

”Anno do nascimento do Nosso Senhor Jesus Christo de mil oitocentos de trinta aos vinte
um dias do mes de Maio do ditto anno neste Lugar da Barra do Rio Negro em as casas de
Residencia do Doutor Ouvidor Manuel Bernardino de Souza e Figueiredo onde eu
escrivão vim de seu chamado (…) presente o Cadete do Batalhão vinte e quatro Feliciano
José d´Oliveira proximamente chegado do Rio Issá lhe encarregou o ditto ministro
debaixo do juramento dos Santos Evangelhos declarar o que lhe acontecera antes de
chegar a este Lugar, que encontro tivera na altura do Pesqueiro de Manacapurú.

E tendo recebido o ditto juramento declarou que no dia oito do corrente pelas sinco horas
da tarde pouco mais ou menos fora abordo da igarithe em que vinha, (aparecendo-lhe)
huma montaria possante com oito homens, cafusos, mulatos, e índios para quem lhe
vendeu Aguardente e Farinha, e logo chegarão mais duas Montarias com sinco indivíduos
da mesma qualidade todos armados com frechas e algumas facas, trazendo consigo
algumas mulheres. E que vendo ele tanta gente lhe dera três frascos de Aguardente e
depois de a beberem lhe pediram mais, e dizendo-lhe que não tinha se forão embora e lhe
derão duas tartarugas e que os ditos indivíduos lhe diserão que residião em hum lago
defronte da paragem que se bem se lembra he Mamori;

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Disse mais que desconfiava que tais indivíduos eram desertores e de como assim declarou
na presença das testemunhas. Jorge Maria de Lemos e Sá e Justino de Sousa Loureiro;
Mandou o Ministro fazer esse termo que todos assignarão. Eu, Ignácio Porfírio da Costa o
escrevi.”

A região do Alto Solimões estava distante do controle oficial, áreas onde os regatões
eram bastante influentes. A troca de aguardente e farinha por tartarugas, citada no
depoimento, aponta indícios das atividades do Cadete, que não relatou uma abordagem
ameaçadora por parte do grupo de “cafusos, mulatos e índios” — que não deixaram de
pagar pela cachaça consumida.

Mesmo que D’oliveira fosse militar, seu depoimento guarda pistas de atividades
assemelhadas às exercidas pelos pequenos comerciantes fluviais. Índices do cotidiano
da floresta, esse tipo de negociação era ameaçadora para quem buscava desarticular
comunidades de fugitivos.

Ao que parece, momentaneamente, o militar tomou parte em alianças complexas


indesejadas pelos poderes oficiais, atuando de maneira semelhante aos regatões e
engrossando o rol dos potencialmente suspeitos.

Sobre ser livre sem senhor


As pistas deixadas pelos registros policiais permitem vislumbrar a atmosfera de
suspeição e a perseguição dos habitantes da floresta e de seus costumes. O Código
Penal, as Diretorias de Índios, em conjunto com as arregimentações militares
compulsórias, aumentavam o alcance das tentativas de controle e disciplinarização.

Os Corpos de Trabalhadores completaram esse cenário de normas oficiais agressivas


vigentes em meados do século XIX. Na visão oficial era preciso arrefecer e/ou reprimir a
multidão “colorida” por meio do controle dos escravos, libertos e livres, especialmente
aqueles sem senhor.

Tal status social fazia parte da lei dos Corpos de Trabalhadores, o que pode explicar a
concepção geral acerca da liberdade para certos grupos sociais. A instituição
escravocrata servia como parâmetro para o entendimento do trabalho de indígenas,
negros e mestiços livres na Amazônia. Para além da diversidade étnica, dos dilemas
culturais e dos conflitos, foi preciso forjar espaços de negociação e barganha, dividindo
experiências de fuga e vivenciando desafios tensos nos mundos do trabalho.

A condição de livre/liberto não era necessariamente um sinônimo de vida livre na


Amazônia oitocentista. Distante de qualquer ideia de cidadania ou mesmo de direitos, a
“multidão colorida” enfrentou o colonialismo.

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Seguindo trilha aberta pelo historiador Eurípedes Antonio Funes em 1995, é preciso
salientar que, entre a escravização e a liberdade, populações da floresta sem senhor
teceram suas alianças complexas para resistir.

Referências

Antonio Alexandre é professor adjunto da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), no colegiado


de Ciências Humanas/História, Campus Codó. É doutor em História Social pela Universidade de São
Paulo (USP), com estágio de pesquisa na Universidade de Nova Iorque (NYU).
Imagem em destaque: desembarque de mercadorias na Amazônia peruana/ Arquivo pessoal /
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