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MAIS UMA BALA PERDIDA PELA CULATRA

O mundo mudou muito nestes últimos séculos. Mas a semente de tudo


já existia há tempos, quando começaram a chegar ao poder, um a um, os
governantes conservadores e intolerantes no final do século 20 e início do
século 21. Foi um processo lento, eles deixaram que os cientistas seguissem
com as pesquisas genéticas que eliminavam os motivos de morte em quaisquer
seres vivos, como se fosse um apoio incondicional ao saber humano, uma
evolução sem interesses. Aos poucos, mais da metade dos países da Terra
ganharam seus governos absolutistas, numa encenação de jogo democrático
que conseguiu iludir a esquerda mais ardilosa e combatente.

E eis que então veio o golpe maior. Quando foi anunciado a descoberta
do antídoto para a oxidação das células vivas e, como consequência, a vida
eterna para quem o introjetasse, os governos autocratas assumiram ser um só
corpo político e mudaram completamente as regras do jogo da existência. Esse
instrumento de vida eterna passou a ser uma exclusividade do 1% mais rico da
população mundial, que, naquela altura da concentração de renda, detinha
85% das riquezas do nosso planetinha Terra.

Eu sempre achei viver um saco. Essa coisa de acorda e dorme


repetidamente, com alguns acontecimentos entre essas duas coisas que podem
nos fazer gozar de alegria ou se desmanchar de tristeza - para ao fim nossos
corpos se desfazerem em vida e enfim morrermos - nunca me convenceu de
que fosse uma coisa boa. Mas como não havia alternativa, eu me virava em
meio aos meus próximos, todos muito contentes com sua caminhada sem rumo
e me achando sempre um pessimista da pior estirpe. É estranho, mas nunca
tive amigos que duvidassem do existir e nem nunca encontrei uma turma de
incrédulos como eu. A solidão parecia ser a sina dos que não se regozijavam
com fatos como bater palmas para o por do sol todos os dias no mesmo lugar e
hora.

E foi isso que os megamultimilionários detentores do elixir da longa vida


começaram a perceber ao terem suas vidas estendidas. Casamentos de 200
anos não resistiam. Conflitos entre pais e filhos se alargavam de maneira
alarmante, ameaçando as riquezas acumuladas por seus antepassados mortais.
O nível de suicídio aumentou de maneira exorbitante na Classe AAA+, e os
pensadores servis ao status quo de então perceberam que o elixir era mais um
castigo do que uma dádiva da ciência.

Eu seguia minha vidinha, envelhecendo normalmente e seguia sendo um


daqueles não fascinados pelo que é óbvio na natureza. Acabei me enredando
nos grupos terroristas secretos emergentes desde o início da ascendência do
fascismo ao poder mundial. Agíamos individualmente, embora fôssemos um
grande e orquestrado grupo, poucos sabiam por quem. Sabíamos que éramos
mais do que vigiados pelas polícias governamentais, mas vez em quando
conseguíamos enganá-las e levar alguma ação a termo.

Foi quando começaram a nos prender. O elixir da longa vida passou a


ser um modo de tortura que introjetaram sob a nossa pele com uma mini
válvula que descarregava diariamente a dose necessária para manter-nos vivos,
eternamente assistindo as pessoas contentes batendo palmas para o sol que se
punha atrás dos mesmos morros. Os combatentes não conseguiam mais por
em prática suas ações, atormentados pelas lembranças que já não sabiam mais
se eram deles ou parte de histórias contadas pelos outros.

Aquilo que se buscava incessantemente desde a época dos alquimistas


fora encontrado e provara ser a vida humana um marasmo sem fim,
independente de classe social, cor, gênero, sexualidade ou o que mais
houvesse para cindir a humanidade nos grupos que atravessaram milênios se
enfrentando e se excluindo. A vida, fosse breve ou longa, passou a ser um
castigo após o uso do elixir por apenas algumas gerações daquelas pessoas que
alcançaram os 500 e tantos anos.

E como tudo o que não presta e foi primeiramente entregue às classes


mais altas quando de sua descoberta, o elixir passou a ser o martírio da mão-
de-obra que não tinha mais a sua hora da morte.

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