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Dois Oceanos

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Caro leitor,

O livro 2 Oceanos é um relato de viagem, e também um relato pes-


soal. Uma experiência vivida em 2014, que adquiriu outros tons, além das
emoções provocadas pelo momento presente.
Um misto de sensações, intercalando memorias do passado, da infân-
cia da protagonista, com os pensamentos e fatos ocorridos naquele evento.
Fico pensando porque alguém gostaria de ler este livro, com relatos
tão pessoais. A necessidade é totalmente egoísta, precisava desabafar, relatar
esta experiência com tantos significados dentro de outros significados.
Quando tomei coragem de abraçar este projeto e escrever o capítulo
1, algo mais inspirador surgiu. Ponderei que talvez minhas vivências pessoais
pudessem ser universais, iguais a de muitas pessoas, em diversas partes do
planeta.
A história aqui narrada é sobre a experiência de correr uma ultra-
maratona, pela primeira vez, aos 56 anos de vida. Mais do que isso, é sobre
as motivações implícitas nesta escolha. Refleti sobre os temas que são tão
relevantes para a saúde emocional de qualquer ser humano, a Superação e a
Resiliência.
Se você não é corredor, e não se interessa por esportes, talvez não
consiga se conectar com este relato. Pelo menos não no início. Então me dê
mais uma chance, leia um pouco mais, o livro não é longo. Se chegar no ter-
ceiro capítulo e ainda estiver entediado, aceitarei sua rejeição sem mágoas.
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Não gosto de todos os livros que compro, costumo abandoná-los
quando não é o “meu” momento de ler sobre determinado tema. Algumas
vezes me apaixono pelo mesmo livro que rejeitei em outra época. Somos
seres mutantes, ainda bem.
Se você se conectar comigo através deste livro, ficarei muito feliz. Se
ele lhe inspirar a empreender algum projeto pessoal, de qualquer gênero, me
sentirei imensamente recompensada e tudo terá valido a pena.
Somos imprevisíveis, mesmo quando acreditamos que temos o con-
trole dos nossos desejos. Com a corrida, aprendi mais sobre mim do que nas
sessões de terapia. A corrida me ensina sobre solidariedade e resiliência, onde
criamos uma corrente de energia saudável e positiva entre as pessoas.
Espero que eu consiga traduzir em palavras um pouco desta mágica.
Não tenho a pretensão de convencer ninguém a começar a correr.
Muito pelo contrário. Tenho sim a intenção de estimular o leitor a encontrar
suas próprias paixões. O tempo é o bem mais valioso que possuímos, portan-
to, gastá-lo com qualidade é muito importante.
Para terminar, queria indicar o livro do escritor japonês , Haruki Mu-
rakami, “O que falo quando falo sobre corrida”.
Gosto muito dos livros deste autor, mas quando li este relato pessoal sobre
como a corrida influenciou a sua carreira e a sua vida de maneira geral, virei
fã fervorosa. Queria muito cruzar com ele um dia, em uma das maratonas
pelo mundo afora. Acho que conseguiria manter o mesmo ritmo que ele por
alguns quilômetros, para poder fazer umas breves perguntas.

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Prefácio

Um dos meus maiores orgulhos, desde que me entendo por gente é


meu sobrenome de índio, Tibiriçá. Apesar de minha ascendência ser 100%
europeia, minhas tias adoravam contar a historia do primo distante, de família
tradicional portuguesa, que se rebelou contra o pai e mudou o sobrenome
para nome de cacique, em demonstração de seu amor pelo BRASIL.
Ainda adolescente, já sabia que manteria meu sobrenome intacto,
caso viesse a me casar. Mais tarde percebi que a convicção seria até mais pro-
funda; minha assinatura atual é a mesma desde o primeiro registro de estágio
na carteira profissional, aos 18 anos.
Minha mãe sempre foi uma mulher de opinião, de muitas certezas a
respeito do meu destino, dos meus quereres. Eu também fui uma adolescente
de temperamento forte, impulsiva e fascinada por aquilo que não conhecia.
Não era rebelde, mas era intensa, os sentimentos eram imediatos, e os dese-
jos, urgentes. Não aceitava com facilidade a proibição, e queria liberdade,
sem noção da responsabilidade que isso me traria. Quis mudar de cidade,
porém não consegui mudar de país. Vim estudar na capital, contra a vontade
da minha mãe, mas com o respeito que meu pai tinha pelas escolhas alheias.
Quando cheguei em São Paulo, para estudar publicidade, não con-
hecia quase ninguém. Na faculdade fiz alguns amigos que me acolheram na
terra fria e cinzenta, conhecida como terra da garoa. São Paulo pode ser as-
sustadora e cativante, com muitos segredos, que quando revelados, se torna a
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melhor e a pior cidade do mundo para morar. Pelo menos para mim foi assim,
contraditória, ambígua e é até hoje.
Dizem que fui muito precoce. Meu primeiro beijo foi aos 12 anos, aos 15
namorava um garoto de 21. Me casei aos 22 com um homem divorciado 12
anos mais velho, e aos 30 era mãe de 3 filhos e dois enteados. Aos 33 meus
cabelos ficaram brancos como os do meu pai.
Sou Ariana com ascendente em Sagitário. O que me salva é a Lua em
Libra, dizia minha astróloga. Guardo até hoje o primeiro mapa astral, e não
parei mais de seguir a previsão dos astros. Tudo começou com minha mãe,
que costumava consultar o Livro I Ching, ou O Livro das Mutações. Era in-
crível como os textos causavam grande impacto em mim e algumas amigas
que tiveram a sorte de participar das sessões de adivinhações. Ela sabia que
tinha talento em perceber além das aparências, sempre nos provocava dizen-
do que era “bruxa”. Ela também gostava de psicologia, como eu.
Me lembro até hoje do professor de Educação Física da escola pri-
maria. Não perdia suas aulas por nada, era muito divertido e estimulante. Até
que meus pais decidiram me mudar de colégio na sétima serie. Foi ali que
peguei horror a esportes em geral. Minha nova professora de educação física
estimulava exageradamente a competição, a meu ver nada saudável. Somente
os melhores tinham vez na escalação dos times, e eu era péssima com bolas,
de todos os tamanhos, vôlei, basquete ou tênis. Passei a juventude controlan-
do o peso, quando engordava um pouco, apelava para diet shakes por alguns
dias até tudo voltar ao normal. Na primeira gravidez ganhei 18 kgs, e depois
do susto da pré-eclâmpsia, emagreci durante a amamentação para nunca mais
engordar. Finalmente encontrei o equilíbrio entre gasto calórico e comer mui-
to bem.
Descobri o prazer da comida com minha avó e minha mãe, descen-
dentes de espanhol, com o dom de nos deliciar seguindo suas receitas de
família. Uma herança que não me pertence. Na cozinha não sei fazer nem um
bom ovo mexido.
Meu contato com a corrida foi bem depois disso. Diferente de muitos
relatos que ouço de outros corredores, este esporte entrou na minha vida por
acaso, mais pela liberdade de carregar apenas um par de tênis na mala e não

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depender de ninguém para acompanhar. Não estava tentando superar nenhum
trauma ou querendo emagrecer, apenas ser feliz, moderadamente. Sempre
gostei de me relacionar com pessoas, frequentava diariamente a academia de
ginastica, praticando variações de aulas aeróbicas coreografadas. Ainda não
sabia que a corrida seria o esporte com que faria muitos amigos, nas pistas e
fora delas.
Completei minha primeira maratona com quase meio século de vida.
Na fase da vida na qual estava começando a me interessar por percursos mais
longos, sem tanta pressa para terminar.
O que é ser maratonista? Tecnicamente, correr uma prova de corrida de 42
quilômetros, ininterruptamente. Talvez pertencer a um grupo de pessoas que
une as mais diversas histórias em um único tema central, a superação. Ela nos
move e nos transforma. É o processo de autoconhecimento e de aprendizado
que não se dá através da razão, mas nas descobertas espontâneas, que nos
surpreendem, como nos sonhos que às vezes lembramos com nitidez, pare-
cendo reais.
Não me considero propriamente uma ultramaratonista, apesar de ter
completado uma distância maior que 42 km. Escolhi correr a Ultramarato-
na “ 2 Oceans” por ser considerada a prova mais bonita do mundo, com 56
quilômetros banhados pelo Oceano Indico e Atlântico. Dois Oceanos que se
encontram no Cabo da Boa Esperança, como um brinde à imensidão do Plan-
eta Terra. O desejo de correr a 2 Oceans nasce da ideia de celebrar a infinitude
das possibilidades, ao completar 56 anos de vida.

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Quilômetro 0

Na varanda da casa da praia, o Chapéu de Sol reina solitário, com sua


sombra generosa, cobrindo todo o jardim de areia. A cerca baixa de madeira
corta o horizonte, atrapalhando a vista para o mar. Ondas fortes resistem, mas
acabam se entregando aos redemoinhos do seu destino, à doçura das águas do
rio que desce quente, sedento, voraz.

Durante muitos anos passei as férias de verão nessa casa da praia dos
meus avós paternos. Itanhaém era uma pequena cidade litorânea, que recebia
muitos paulistas de famílias tradicionais da capital durante o verão. Adorava
a ideia de conhecer outras pessoas, sem aquela mesmice da minha cidade do
interior. A nossa casa ficava na praia do Centro, a apenas dois quarteirões de
um cinema de rua. Foi lá que assisti ao meu primeiro filme, projetado em
tela grande, numa sala escura. Romeu e Julieta, censura 14 anos. Ainda não
tinha idade suficiente, mas nas férias eles faziam vista grossa para os turistas,
acredito que careciam de público. No final da sessão, ao sair na calçada, meus
olhos vermelhos e tímidos tentavam se esconder dos meninos que andavam
em grupos, rindo e fazendo graça.
Naquela época os garotos me irritavam, acho que gostava e até es-
timulava aquelas brincadeiras idiotas dos meus vizinhos, em que nós meni-
nas gritávamos, soltando risinhos em coro, sempre unidas em nossas insegu-
ranças e enfrentamentos. Um dia faziam as varas de pesca uivarem até abater
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um ou dois morcegos, ameaçando jogar aquelas criaturas horrendas sobre
nós. No outro pulavam o muro do quintal e a janela do quarto para besuntar
nossos pijamas e calcinhas com pasta de dente.
Quando chegamos na idade de frequentar os bailes noturnos do Iate
Clube, os sapos foram se transformando em príncipes, os tubos de pasta de
dente em tubos de lança perfume. O mundo começou a girar em ritmo frenéti-
co, embalado pelos sorrisos inocentes e corações eufóricos.
Naquela época eu tinha um sonho recorrente, que não sei ao certo quando
ele me abandonou. Sonhava com ondas gigantes, a maré subia lentamente,
avançando sobre o pequeno morro de areia, arrebentando a cerca do jardim,
até inundar a casa da praia. Acordava antes de me afogar. Os medos que trago
de lá, das marolas e dos morcegos, são ainda incontroláveis.
Daquelas férias de verão também carrego a lembrança do primeiro
beijo, meio na boca, meio na orelha, ao som da marchinha de carnaval: ai ai ai
está chegando a hora, o dia já vem raiando meu bem e eu tenho que ir embora.
Subia a serra na quarta feira de cinzas, com a esperança de assistir ao mesmo
filme romântico no ano seguinte. O desejo era de voltar no tempo ou saltar
para o futuro.
Mais um ano escolar na cidade de interior, sem a liberdade de fre-
quentar os bailes noturnos, até o sol raiar. É verdade que tinha a matinê do
Tênis Clube aos sábados, a missa de domingo na Igreja de Santa Rita e a
saída do Colégio, onde os meninos mais velhos iam buscar suas primeiras
namoradas, de carro emprestado dos pais. Na minha cidade nós jovens di-
rigíamos antes dos 15 anos. Meu primeiro carro ganhei aos 16 anos, um fusca
branco, presente da minha madrinha.
A ansiedade era tanta para o final do ano chegar que torcia para acabar
logo o Natal, sem me importar com presentes ou com a festa familiar. De-
pois de comer a leitoa pururuca no dia 25 de Dezembro, estava liberada para
partir. Descia a estrada velha da Serra do Mar, percorrendo aqueles longos
quilômetros entediantes, Praia Grande, Suarão, Mongaguá, deitada no colo
da Tonica, minha amada mãe preta, a babá que criou minha mãe e todos nós,
os cinco irmãos. O coce-coce que ela fazia nas minhas costas, ininterrupto,
com suas unhas afiadas e macias, me fazia esquecer do tempo, lento, sempre

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atrás de algum caminhão.
Na casa da praia o tempo era outro. Dava início a temporada de
paqueras, fofocas e entre brigas e confissões, muito Hipoglós e caladril. A
vida parecia se resumir do réveillon ao carnaval. O resto era apenas a espera
e as cartas de amor, escritas na tentativa de deixar o tempo em suspenso até o
próximo verão.
Situações constrangedoras se transformavam nas memórias mais di-
vertidas, como a bochecha queimando de vergonha, no dia em que percebi
que minha perna era mais peluda que a do garoto bonito que me pedia em
namoro, numa tarde de domingo, na Praia do Sonho. Ou a marca feia de
queimadura no peito do pé, na tentativa frustrada de matar o maldi-
to bicho geográfico, que desenhava um mapa diferente a cada ano.

***

A cada maratona, crio um mapa que depois desaparece, sem


deixar sinal. Desta vez percorrerei o mapa das memórias produzidas
pelo coração, rastros das minhas escolhas feitas ao longo de 55 anos.
Estou em frente ao principal ponto turístico da cidade, a Table
Mountain, prestes a fazer, pela primeira vez, uma ultramaratona. O céu
ainda escuro acelera ainda mais o batimento do coração, a minha boca
não consegue produzir saliva suficiente, procuro por um líquido mila-
groso capaz de acalmar o tremor que percorre todo o meu corpo. Respiro
fundo, entre tantas pernas e braços apertados, procurando cumplicidade.
Cruzamos muitos olhares na esperança de encontrar algo que nos con-
forte, e alguém finalmente pergunta: é sua primeira vez na 2 Oceans?

***

A ideia de 2 oceanos se encontrando, sem misturar seus destinos,


me trouxe a urgência de celebrar a minha vida. Quis correr 56 quilômetros
com 56 anos, na prova mais bonita do mundo, como um ato de fé naqui-
lo que o destino nos reserva e agradecer a força contida na transposição.

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Quanto mais significados atribuímos aos nossos objetivos, maior
nossa capacidade de realização, isso aprendi com a corrida.
Foram seis meses de preparação. Seis meses em que me priorizei, me
coloquei no mundo sem ressalvas nem concessões, que fui egoísta, atendendo
aos meus próprios desejos. Não sei se foi fácil ou prazeroso conviver comi-
go durante esse período. Para mim foi necessário, intenso e fundamental.
Dizem que a maior dificuldade não é a prova, mas superar o treino,
duro e exaustivo, até chegar, ileso, ao Grande Dia. Não para quem tem ami-
gos que compartilham seus sonhos. Tenho saudades de todos os momentos
que construíram o meu percurso até cruzar a linha de chegada. São as sur-
presas que produzem adrenalina e muitos outros hormônios conhecidos como
drogas do prazer.
O primeiro “ longão” rumo à 2 Oceans foi na véspera do Natal. Naque-
le dia acordei antes de o sol nascer, muito antes de o despertador tocar. Na
hora marcada encontrei meus amigos Cris Noba, Alfredo, Suzana, Clarinha,
Fê, Alê Hadade e nosso grande treinador Caco.
Todos precisamos de mestres para seguir ou nos inspirar, alguém que
nós identificamos como aquele que nos conduzirá por caminhos de aprendiza-
do e superação. Primeiro fui apresentada a uma assessoria esportiva, a Run&-
Fun. Praticamente um Clube de Corrida, e como o nome já diz, tinha aula de
corrida, mas também muita diversão. Muitos amigos de pistas foram con-
quistados, além de quilômetros entre diversas provas pelo mundo. Mas como
em qualquer grupo, desenvolvemos relações que extrapolam as fronteiras ge-
ográficas. Foi assim com meu primeiro coach, o Marcinho, que virou monge
e partiu para longe. Um amigo verdadeiro, que me deixou um substituto, seu
parceiro e amigo de todas as horas, o Caco. Como conhecia sua generosidade
e cumplicidade, sabia que não iria me decepcionar.
Aos poucos outras pessoas foram ficando mais próximas. Na primei-
ra Maratona, em Chicago, o Alfredo já estava presente, um cara reservado
porém parceiro fiel, sempre alerta, aparecendo naqueles momentos cruciais
para oferecer um gel ou copo de água. É físico nuclear, sabe falar japonês mas
nunca foi ao Japão. Quero ainda fazer a maratona de Tóquio com ele e com
Cris Noba. Descendente de japonês, ela não fala nenhuma palavra da

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língua paterna, mas segue a religião budista. No canto do seu quarto tem um
oratório, discreto, mas definitivo. Quando começamos a correr juntas, ela
ainda era dentista, especialista em tratamento de canal. Eu mesma cheguei
a fazer várias consultas. Um tanto solitária essa profissão. Com o tempo ela
mudou, radicalmente, e virou “boleira” (abriu uma loja de bolos), para es-
panto de todos os amigos. Eu diria que ela virou uma empreendedora de mão
cheia, depois de sua primeira maratona.
Eu conheci Suzana alguns anos mais tarde, quando ela foi fazer a sua
primeira maratona em Boston. Era a minha quinta prova de longa distância
e dividi o quarto com minha amiga Magu, que naquela época ainda corria.
Na 2 Oceans ela foi um apoio fundamental, junto com nosso treinador e meu
marido. Suzana começou a correr nas montanhas, depois de conhecer o Caco
(eu desisti desta modalidade já na primeira aventura que escolhi, na Serra da
Mantiqueira). Animada e intensa, ela alimenta sua curiosidade correndo com
várias pessoas, variando os perfis para maior diversidade de assunto. Tem um
fôlego que impressiona, força nas pernas e na cabeça, estabelecendo muitas
metas e fazendo cálculos.
Clarinha é a mais nova da turma, começou a correr e logo desenvolveu
um apetite por longas distâncias, coisa rara para garotas com menos de trinta
anos. Difícil administrar as baladas, amigos e pistas nas madrugadas. Treina
no ritmo da Fê, que trabalha como personal trainer, estuda veterinária e ama
cachorros, o que a torna a mulher perfeita para o Caco. Fiel companheira e
muito compenetrada, Fernanda sempre nos ajuda com muitos detalhes, como
as orientações de postura para enfrentar as subidas e dicas valiosas para lidar
com o nosso treinador.
Caco fez exército e tem muito orgulho dos aprendizados adquiridos
nessa época. Por certo aprimoraram seus talentos como profissional. Os es-
tímulos que nos contagiam vêm de sua seriedade, cálculos e estratégias mi-
nuciosamente estudadas e paixão pelo que faz. Está sempre ao nosso lado
quando estabelecemos grandes desafios.
Ele nos apresentou Hadade, companheiro das corridas de aventura,
um estilo de prova bem cascuda, que dura muitas vezes cinco ou seis dias,
sem dormir, navegando por regiões de natureza inóspita. Apesar da sua pai-

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xão do momento ser o tênis de quadra, resolveu entrar nesta aventura da 2
Oceans com a gente. Sorte nossa, porque ele é uma pessoa acostumada às
adversidades enfrentadas em treinos longos como aqueles. Chegamos a fazer
duas maratonas em uma única semana.
Em nosso primeiro treino em grupo, nos reunimos na frente da minha
casa, excitados, tagarelando em voz alta e tirando o sossego do pacato bairro
da Vila Beatriz. Ainda escuro, saímos correndo pelas ruas esburacadas e ín-
gremes em direção à imponente Avenida Paulista. Estava tão feliz que nem
me importava com a falta de calçadas e a feiúra da minha cidade. Nessa época
do ano os enfeites de Natal iluminam os vários estabelecimentos comerci-
ais, lembrando que nós paulistanos também temos coração. Ver os primeiros
raios de sol iluminar o viaduto do Minhocão, vazio, me motivou a correr mais
forte, na tentativa de dominar a elevação de concreto; a trilha sonora era um
remix do som da balada do Baixo Augusta, dando seus últimos suspiros, com
o ranger das portas da Igreja Universal se abrindo para os fiéis de domingo.
Nas ruas do centro da minha cidade tive a consciência da nossa diversidade
humana e me iludi com a possibilidade do convívio pacífico entre tribos tão
distintas.
Ao terminar os vinte e quatro quilômetros , eu só conseguia sentir uma
dor no dedão do pé direito, intermitente. Deve ter sido a novidade da descida,
longa e íngreme, da Rua Brigadeiro Luiz Antonio até chegar ao Monumento
às Bandeiras, no Parque Ibirapuera. Pressenti o problema mas pensei aliviada
que ainda restavam cento e vinte e cinco dias para recuperar a unha perdida.

***

Foram cinco meses de treinos de tiro, intervalados, subidas e muitos


longões*, e hoje acordei novamente antes do despertador tocar, com o ba-
rulho das ondas do oceano desconhecido. Com algumas marcas e revelações
sobre meu caráter, sinto uma alegria genuína.
Começo a me preparar para o grande evento. Deixei tudo preparado
de véspera. O numero de peito com chip e meu nome impresso já está preso
na camiseta azul turquesa, desenhada especialmente para esse evento. Em em

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cima da poltrona, as roupas estão separadas, na ordem de vesti-las. A bermu-
da com bolsos laterais para carregar sete sachês de gel e o celular. As meias,
já testadas, com reforço para não causar bolhas inconvenientes. Para finalizar,
a calcinha e o top, peças fundamentais em uma prova como esta, de tecido
firme e macio, sem costuras. Depois de algumas horas correndo, qualquer
detalhe incomoda. Preciso me besuntar de vaselina, principalmente na curva
dos seios, virilhas e pés. Calço o par de tênis com as palmilhas sob medida.
Pego minha garrafa de 500 ml com um preparado de maltodextrina e saio
em silêncio do quarto para não acordar meu marido. Apresso meus amigos a
partir na van reservada para nos levar ao local da largada da prova. Prefiro
esperar horas, sempre fico vulnerável em compromissos com hora marcada,
imprevistos podem ocorrer. Se furar o pneu, tenho tempo de pegar um taxi.
Se tiver dor de barriga, tenho tempo de ir ao banheiro. O caminho está escuro
e não consigo me concentrar na paisagem. Aumento o volume do rádio e ten-
to me distrair conversando sobre a previsão do tempo, checo quantos sachês
de gel tem nos bolsos da bermuda, coloco mais um por precaução.
Surpreendo-me com uma larga avenida salpicada de milhares pon-
tinhos prateados. A visão criava um misto de deslumbramento e choque de
realidade, com tantos corredores vestindo as capas metálicas oficiais da pro-
va, que brilhavam na luz artificial, tentando enganar o frio daquela hora da
madrugada. Por baixo a maioria vestia camiseta regata, pois o clima pode ser
bem traiçoeiro nessa época do ano, esquentando além da conta.
Misturamo-nos à multidão com aparente naturalidade. Tento dis-
farçar o tremor dos lábios, me entregando sem nenhuma resistência. Vamos
avançando pelos vãos criados por acidente, ansiosos, à procura de um lugar
confortável e seguro para o momento da largada. Já estava me acostumando
ao som de muitas línguas faladas ao meu redor quando ouço os primeiros
acordes daquela música africana sair das caixas de som, instaladas ao longo
da avenida. As conversas foram diminuindo até que todos começaram a can-
tar uma canção, repetindo a uma mesma palavra estranha, que eu desconhecia
a definição, Shosholoza.
Shosholoza, “seguindo adiante”, muitos sabiam a letra de cor, impreg-
nada de significados potentes. Soube mais tarde que ela se tornou o hino da

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África do Sul, celebrada nas mais diversas ocasiões, por negros e brancos,
como símbolo da união e identidade do povo africano.
Por segundos o silêncio foi absoluto. Ouço o tiro de largada; perten-
cia agora àquele cardume de peixes, em movimento contínuo, formando um
redemoinho em direção à luz do sol.
O céu começa a clarear, aumento o volume da trilha sonora, fiel com-
panheira de tantos treinos, sem ignorar os barulhos, que me conectam com
aquele lugar. Distraída e empolgada, aumento as passadas para acompanhar
meus amigos Alfredo e Cris.
O primeiro erro foi cometido, logo na primeira parte da prova.

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Quilômetro 8

Os primeiros raios de sol iluminam a estrada, tocando suavemente


meu corpo, ainda rígido pela tensão e pelo orvalho gelado da madrugada. No
horizonte percebo as primeiras casinhas de madeira colorindo a areia escura
de Muizemberg beach. Sinto o cheiro da espuma branca das ondas preguiço-
sas daquela parte do Oceano Índico. Sigo empolgada com os amigos ao meu
lado, prometendo muita diversão e fortes emoções também. Ao passar pelo
primeiro posto de hidratação noto um enorme recipiente transbordando de
pedras de gelo, com pequenos saquinhos de cor azul turquesa. O azul sempre
me provoca sensações prazerosas e nesse momento me divirto com a lem-
brança de um drink da minha época de adolescente, chamado Curaçau Blue.
Num ato impensado, bebo aquele liquido estupidamente gelado e o efeito
é imediato. Minha barriga se contorce de dor, numa espécie de câimbra no
abdômen, me obrigando a reduzir o ritmo. Cris e o Alfredo se distanciam
até que os perco de vista. Busco na memória alguma situação semelhante,
uma pista qualquer do que pudesse estar acontecendo com meu corpo e, sem
referências, entro em colisão comigo mesma.
Quando o problema é externo, culpamos alguém ou lamentamos a
falta de sorte. Mas o que fazer frente à pior batalha de todas, na qual o inimi-
go habita o seu ser interior? Criamos os monstros com uma facilidade muito
maior que as soluções. Procuro focar nas minhas motivações mais profundas,
dividir o problema em desafios menores para enfrentar um por vez. Essa téc
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nica aprendi com a corrida. Respirar com calma, inspirar moderadamente,
expirar profundamente. Excesso de ar também faz mal.

***

A égua era castanha claro, não era bela como a égua Marilia, do meu
irmão, era mais robusta, porém muito mansa. O nome dela era Baia. O medo
que sentia dos bichos era nítido, desconfiava de todos eles, cachorro, inseto,
vaca. Não me cansava de observar o comportamento dos cavalos, livres, cor-
rendo pelos pastos da fazenda. Subir nele era o meu problema. Tinha pena de
usar as esporas que os meninos calcavam sem dó. Quando conseguia dominar
o pânico, flutuava feliz, com os cabelos longos dando nós ao vento, no galope
macio e sensual. Mas assim que o cavalo pegava embalo e a velocidade au-
mentava, o frio congelante na barriga estragava tudo. O medo era maior, frea-
va o máximo que podia aquelas rédeas, até quase cortar a palma das mãos.
Eu era sempre a última a chegar na cocheira, trotando devagar, em ritmo
constante e controlável, sem perder a pose e a altivez da menina que tinha o
mundo sob controle.

***

Com as passadas mais lentas, a dor começa a melhorar, no tempo de


que meu corpo precisa para absorver o veneno azul. O tempo que tudo aco-
moda.
A dor física parece superada, mas continuo me atormentando, tentan-
do justificar o injustificável, uma atitude estúpida e banal, um simples impul-
so, curioso e juvenil. Desta vez eu sou meu próprio conselheiro. Eu, com meu
repertório adquirido ao longo da vida. O que não é pequeno, na minha idade.
Concentro-me no caminho que tenho pela frente. Desvio a atenção
para os corredores mais próximos, enxergo uma mulher de cabelo curto, todo
branco, com certeza tinha mais de 70 anos, carregando um numero azul no
peito, diferente do meu, e salto para o meu futuro. Resolvo segui-la, pegar
embalo na sua cadência, como um mantra, acompanho cada movimento de

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braços e pernas, cada curva inclinada para a esquerda, depois à direita, como
se fosse sua sombra. Por um período funciona como uma recarga de energia,
como casa de vó, casa feita de doce de brigadeiro.

***

Quando era criança preferia dividir a cama de casal com minha vó.
No quarto dela tinha também uma cama de ferro, alta, com uma manivela
esquisita, onde dormia meu avô. Eu coçava sua cabeça coberta de gesso com
a ponta do pente da minha avó. Nas noites de sono profundo ouvia minha avó
chorar. Não ficava triste, era tão gostoso dormir ali, sonhava colorido. Um
dia acordei e meu avô não estava mais do nosso lado e nem aquela cama en-
graçada. Os adultos não falaram nenhuma palavra sobre aquele mistério. Pas-
saram-se alguns anos até eu entender que as pessoas morriam. Não era muito
curiosa, ou pelo menos não gostava de fazer perguntas. Procurava sempre
descobrir tudo a meu modo, fazendo minhas próprias conexões e deduções.

Concluo que esses cabelos brancos à minha frente têm anos de práti-
ca, realizando a sua décima 2 Oceans; por isso conquistou uma cor especial
em seu número de peito. Seus filhos e netos, talvez estejam esperando por ela
na linha de chegada, com bandeiras e faixas escritas grandma we love you .

***

Meus pais viajavam para a fazenda todos os finais de semana, com


chuva ou sol, inverno ou verão, e meus irmãos sempre os acompanhavam.
Por preferir o clube e os amigos da cidade, conquistei um quarto só para mim
na casa ensolarada e espaçosa da minha avó. Podia dormir lá quando qui-
sesse, desde que cumprisse com os deveres da escola. Na mesma casa, mora-
vam também minha tia solteira e a sua filha adotiva, oito anos mais velha que
eu. Gostava de viver entre calcinhas e secadores de cabelo. Com o tempo fui
ficando, todos os dias. Com quase quinze anos fui ao meu primeiro baile de

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gala, o baile anual de debutantes do Tênis Clube de Campinas. Ainda chupa-
va o dedo, escondido dos adultos, é claro. Era difícil me conter quando tocava
em algum tecido macio e dormia com o polegar esquerdo na boca, segurando
a barra do lençol entre os dedos da mão direita. Naquela noite cheguei às
quatro hs da madrugada, de vestido longo e salto alto, com a maquiagem um
pouco derretida e os cabelos soltos até a cintura, todo marcado de grampos.
Não consegui dormir, minha cama de espaldar dourado girava num ritmo
frenético, de repente só tive tempo de abrir a janela e colocar para fora um
liquido nojento, sujando o telhado do terraço da minha avó. Tentei não fazer
barulho para não preocupá-la. Na manhã seguinte despertei com a luz do sol
batendo no meu rosto. Estava sem coragem para abrir os olhos. Devagari-
nho, me aproximei da janela aberta, para confirmar o estrago e me surpreendi
com o telhado limpo, sem nenhum vestígio da noite anterior. Minha avó era
cúmplice dos meus segredos, ela ficava feliz e eu me sentia segura por isso.
Aos quinze anos viajei mais uma vez para a casa da praia, e subi a
serra na quarta feira de cinzas. Mas naquele ano foi diferente. Quando voltei
minha avó estava ausente, deitada numa cama de hospital, cheia de aparelhos
que não sabia para que serviam. O nó preso na garganta, o medo de chorar
e não parar, a ideia de não mais abraçar a pessoa mais amada, para sempre.
Desta vez a tristeza foi mais profunda, os amigos se tornaram mais impor-
tantes, e a vida seguiu de outra maneira. Aprendi a viver sem ela, sem as
saudades dela, mas nunca me esqueci da data do seu falecimento, 9 de março.

***

Perco-me dos cabelos brancos que não eram da minha avó, pertenci-
am a outra mulher admirável, que provavelmente sabia onde queria chegar.
Retorno à minha trilha, embalada pelo meu próprio destino. Posso parar, pos-
so seguir, posso chegar até a encruzilhada e simplesmente desistir. Sempre
temos uma rota de fuga, ainda que possa parecer trágica, ela é apenas uma
alternativa, para outros caminhos.

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28
Quilômetro 15

Costumo dividir a maratona em três partes. Os primeiros dez quilômet-


ros servem para aquecer o corpo, encontrar um ritmo mais constante e por
fim, o equilíbrio entre respirar e se movimentar. Os músculos ainda estão ten-
sos e os hormônios alterados pela ansiedade que antecede a largada da prova.
Mais ou menos como na adolescência, com vantagens e desvantagens, nessa
etapa cambaleamos, bêbados de tantas emoções e isso é muito bom.
Estabelecido o autocontrole, muitas vezes a sensação de tédio é inevitável.
Este é o desafio da segunda parte da prova.

***

Aos doze anos me rebelei: - “ Não irei mais para a fazenda nos finais
de semana”. Declarei aos meus pais, com toda a petulância de uma típica
pré-adolescente, e do signo de Áries. Vivia sempre numa idade futura.
A fazenda me entediava, nada de novo acontecia. Dominava todos os
meus medos, e as aventuras da infância perderam seu colorido. Ainda não
tinha pêlos debaixo dos braços quando briguei com minha tia para comprar
meu primeiro sutiã. Depois de triunfar nessa batalha, fui aceita no grupo das
primas mais velhas e finalmente pude frequentar as matinês aos sábados no
Clube. A menina que queria tanto crescer, se perdeu em muitas trilhas, por fal-
ta de experiência. Dei sorte, fui salva por diversas ajudas externas e também

29
por não reter rancor ou tristeza por muito tempo.

***

Na corrida, assim como na meditação, estamos tão presentes que


percebemos a realidade com novas sensações. Cada quilômetro é parte im-
portante dessa trajetória, não recordar cada um deles significa não merecer a
medalha ao cruzar o pórtico da chegada.
A dor é inevitável, o sofrimento é opcional. Esse é o mantra que o
Murakami cita no Prefácio de seu livro, “O que eu falo quando falo sobre cor
rida”. A monotonia faz parte da lista de ameaças contra uma bem-sucedida
maratona. Conheço pessoas que quando a vida está como um barco nave-
gando em mar calmo provocam marolas gigantes e perigosas, só para criar
movimento. Eu não costumo procurar problemas, mas prefiro as curvas do
que as retas longas e planas.

***

Na casa da minha avó tinha um único banheiro para quatro quartos,


onde quatro mulheres, de diferentes idades, frequentavam. Ele era tão es-
paçoso que mais parecia uma sala de estar. Costumava passar muitas horas
ali. Tinha que subir em cima da banheira para me ver por inteiro no espelho.
Nele treinava meus olhares e bocas, discutia longamente com amigos im-
aginários, discursava e impunha meus pensamentos ao mundo. Percebi que
minhas coxas eram grossas e bem torneadas, e que isso poderia ser uma van-
tagem. Aprendi a fumar com as bitucas de cigarro, generosas, que minha
mãe deixava dentro daqueles belos maços dourados, com o nome Charme,
escrito em letras brilhantes. Adorava observar minha sombra projetada na
parede lateral, soprando a fumaça para fora do vitrô, sem deixar rastros da
coisa proibida. Um dia fui traída pela silhueta da garota galante e sedutora.
Minha tia me surpreendeu ao gritar meu nome, por inteiro, enquanto limpava
o chafariz do jardim.

30
31
***

Tudo que desejo agora é ouvir meu nome, Go Denise Go , pronuncia-


do pela torcida vibrante, que costuma marcar presença nas grandes maratonas
ao redor do mundo. Na 2 Oceans corremos grande parte do percurso em
silêncio, onde o acesso é permitido somente aos competidores, em respeito à
natureza selvagem. Penso na natureza humana. Nascemos para correr, dizem
algumas teorias. Pois eu tenho certeza que não foi o meu caso. Desde muito
pequena até completar 20 anos, sofri de bronquite asmática. O famoso “Teste
de Cooper”, obrigatório nas aulas maçantes de Educação Física, era sinôn-

imo de castigo. Essas aulas me provocavam dores de barriga e ataques de


ansiedade. Se algum vidente ou tarólogo me falasse que um dia correria 56
quilômetros, eu diria que a pessoa era um grande charlatão.
“Tudo é impossível até alguém fazer um dia”. Quando ouvi essa frase, re-
fleti sobre a minha experiência pessoal de corredora. Não conhecemos nossos
limites. Entendi isso ao completar minha primeira maratona aos quarenta e
sete anos de idade. Estava mais uma vez descobrindo algo novo em mim.
Envelhecer é sim inevitável, mas as nossas possibilidades são incontáveis.
Como a vida pode ser surpreendente. Na tragédia, podemos viver o mais sub-
lime e grandioso momento da nossa experiência humana. Na dor podemos
encontrar nossa força mais potente.

Brinco com minhas alternativas possíveis. O retorno não é viável pela


distância já percorrida; parar de me movimentar e sentar na sarjeta poderia ser
uma opção. Imagino a cena, ninguém iria notar, ficaria ali por intermináveis
minutos até compreender que não vale à pena. Fingir uma tendinite no pé
esquerdo e pedir ajuda aos voluntários que estão no ponto de hidratação;
tropeçar de verdade e simular uma queda. Todas as alternativas anteriores são
incompatíveis com o meu perfil de corredor.

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Quilômetro 20

A primeira vez em que resolvi testar um trote leve foi longe de casa.
Viajava sozinha pela primeira vez. Não sabia como entrar em um restaurante
e pedir mesa para um, ler um livro inteiro sem comentar sobre o personagem.
Tudo era novo para mim e resolvi tornar isso uma vantagem.
Cheguei na pequena Cannes, no sul da França, ávida por explorar a ci-
dade. Nesse pequeno balneário, os turistas costumam acordar tarde e desfilar
até altas horas pela famosa Croisette, num ir e vir como nos antigos footings,
que minha mãe descrevia tão bem.
Acordei no dia seguinte com os primeiros raios de sol refletidos na
janela, ouvindo os sons das gaivotas que rodeavam os barcos do velho porto.
Peguei meu tênis seminovo, prendi um rabo de cavalo, e saí caminhando pela
orla, ao som do meu ipod, com playlist desconhecido. As calçadas estavam
sendo lavadas pelo caminhão-pipa da prefeitura e os hotéis começavam a
preparar as luxuosas espreguiçadeiras, estendidas sobre o deck de madeira,
na praia. Aos poucos fui me empolgando com cada “Bonjour” dos falsos
marinheiros, já suados de carregar equipamentos de som, colchonetes e toal-
has listradas de azul e branco. Os inúmeros iates, de todos os tamanhos, at-
racados na marina, aguardavam as garrafas de champagne para partir em um
breve passeio pelas águas verde esmeralda do mar Mediterrâneo.
Naquele dia, permaneci na repetição do movimento. Meus olhos pas-
seavam em diversas alturas e direções, olhava para o chão, fincando minhas

35
raízes ao mesmo tempo em que mirava os pássaros e flutuava, desafiando as
leis da física. Nessa primeira tentativa como corredora não podia estar mais
presente no meu paraíso.
Senti prazer até mesmo com o vento mistral, típico da região, que
soprava violento, provocando desequilíbrio nas suaves passadas ao longo da
elegante avenida à beira-mar.

***

Sempre detestei a sensação de vento na cara. Principalmente aque-


le provocado pela ação de um objeto se movimentando em alta velocidade.
Tinha pavor de andar na garupa de motos com motores potentes e escapa-
mentos furados, mesmo que fosse do menino mais bonito da praia. Desde
pequena entendi que sentir medo não me faz covarde. A coragem se manifes-
ta de diversas formas. O medo nos torna conscientes do perigo e nos ajuda a
fazer boas escolhas.
O Murakami tinha pânico de nadar no mar. No dia em que decidiu
fazer uma prova de Triatlo ( nadar, pedalar e correr), sua primeira atitude
foi contratar um professor de natação. Precisou de inúmeras tentativas com
dezenas de profissionais até finalmente encontrar uma professora capaz de
ensiná-lo a nadar ou pelo menos, de encorajá-lo.
Quando faço uma maratona, o pace ( ritmo ) é o que menos me im-
porta. Se uso o relógio com gps, é para não errar a estratégia do meu treina-
dor e garantir a conclusão da prova, dentro dos meus limites. Sinto prazer na
constância de ritmo, me tornando mais presente no espaço que ocupo. Não
sou competitiva, a não ser comigo mesma. Eu costumo estabelecer diferentes
metas, e faço delas a minha maior motivação. Escolhi a maratona de Berlim,
porque queria correr em uma cidade que não conhecia. Corri em Chicago
pela segunda vez, para compartilhar com meus amigos a estreia deles na dis-
tância. Fiz a maratona de Boston, por ser a mais tradicional e ter sido palco do
feito histórico, quando a primeira mulher correu a distância numa competição
oficial. E batalhei muito por uma inscrição em Londres, para completar o
circuito Big Five, as cinco maiores maratonas do mundo ( Nova Iorque, Chi-

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cago, Boston, Berlim e Londres).
Em cada uma delas, tive muitos medos. Desde os primeiros treinos
até os momentos que antecederam a largada da prova. Medo de me machucar,
de me frustrar, de passar mal da barriga no dia do evento, de não conseguir
cumprir todas as planilhas de treino, de me sentir só.
Alfredo sofre de artrite reumatoide e corre maratonas. O tratamento
para controlar a doença autoimune é tomar doses de corticoides e baixar a
imunidade. O que contraria a orientação adequada à fase de treinos de uma
prova de longa distância. Tomamos muitos suplementos para aumentar a re-
sistência: Glutamina, aminoácidos, Omega 3, Arginina, e tantos outros dis-
poníveis. Para mim ele é um guerreiro, ao lidar com essa incompatibilidade.
Seu maior desafio não é bater seu recorde pessoal. Tem medo de sua batalha
interior.
Suzana tem muito medo de falhar. Questiona o tempo todo se aquilo
que está fazendo vale mesmo à pena. Para ela, cada treino precisa ter sua val-
ia. Não admite fraquejar. Escolheu provas de montanha, de longas distâncias.
Não basta correr, tem que ter muita estratégia. Seu maior desafio não é com-
pletar uma prova, mas dar o seu máximo, ser melhor do que esperam dela.
A Cristina tem medo de se apaixonar demais. Flerta o tempo todo com
outras atividades. Cross training; bares e cigarros com amigos; viagem com
as filhas. Seu maior desafio é comprometer-se com uma prova que a empol-
gue de verdade.
Nunca descobri os medos do meu treinador, Caco. Muito habilidoso
com os mapas e também em camuflagem. Seus sentimentos são preservados
no íntimo do seu ser. Nessa viagem à Cidade do Cabo ele se revelou extrema-
mente generoso. Sofreu e torceu por cada um de nós, ajudou muitos corre-
dores anônimos e fez o melhor purê de batatas da vida.

***

Corro entre os dois oceanos, em um vale cortado pela larga estrada de


asfalto que nos conduz à subida da Chapman’s Peak drive. Um pensamento
faz estremecer todo o meu corpo. Recordo o relato de um amigo que correu

37
a prova no ano anterior, onde um forte vento, vindo do Oceano Atlântico, de-
struiu o sonho de muitos corredores, que não conseguiram cumprir o trecho
no tempo limite. Correr contra o vento pode ser fatal, física e mentalmente.
A minha respiração sinaliza um descompasso. À frente só vejo o chão, duro
e impiedoso. Cometo mais um erro, desnecessário. Sofrer por antecipação ou
por algo que só existe como possibilidade.
Nossa mente é capaz de produzir muitas sombras, que causam angús-
tia e impotência. Romper com o fluxo dos pensamentos é a mágica da corrida.
Por alguns minutos me deixo trair, para, em seguida, assumir o controle das
minhas passadas, coordenando braços e pernas, distribuindo o peso do corpo
igualmente sobre meus pés. Sinto cada ponto nevrálgico dos pés, a dor como
possibilidade concreta de ser superada.

***

Na esquina onde ficava a casa da minha avó, ergueu-se um prédio sem


charme, de vidro e concreto. A casa antiga, que testemunhou minha infância
e adolescência, foi demolida e também a casa com decoração pós-moderni-
sta dos anos 70, onde morei com meus pais até completar vinte e dois anos.
Mais chocante ainda foi saber que a casa, de arquitetura contemporânea,
onde fiquei viúva, também foi demolida. Como na estória dos 3 porquinhos,
a solução estava em construir memórias de tijolos firmes.
Ainda sinto o cheiro da florada da jabuticabeira do jardim da minha
avó; me encanto com o chão coberto de camélias brancas, no terraço da minha
mãe; me delicio com o sabor da alface crocante e do chá natural de hortelã,
colhidos da horta que eu mesma plantei. As imagens, gostos, cheiros e sons
daqueles lugares me pertencem e tornam boa parte da minha história uma
ficção.
As diversas texturas e raridades do pomar plantado pelo meu pai
talvez tenham perpetuado no tempo, dando frutos aos novos proprietários da
fazenda. Guardei comigo o vício da lichia, tão doce, e do tamarindo, tão aze-
do. A plantação de morangos atrás da mina de água foi obra da minha mãe.
Era ali que eu e ela nos entendíamos, degustando aquela frutinha vermelha

38
que aparecia por entre as folhas rasteiras, como uma brincadeira de es-
conde-esconde. Aguçar os sentidos na infância é um caminho sem volta, nos
tornando mais curiosos e complexos.

***

O sol sobre a cabeça sinaliza que nada será fácil. O calor aumenta
com o passar das horas. Nada é preto e branco. Percebo as cores fortes dessa
terra, presentes não só no artesanato, roupas e acessórios, mas no espírito do
povo africano. Estou no meio de uma manada de humanos e me deixo con-ta-
giar pela energia coletiva. Encontramo-nos no estado mais primitivo, pois
correr é natural do homem, seja para sobrevivência ou por vontade própria.
Sinto o cheiro de mata virgem, dos animais selvagens e das flores
silvestres. Finalmente o cheiro de maresia invade todo o meu ser. Prenuncio
a chegada do momento mais importante da prova. Aquele que se tornará uma
memória, produzida pelo coração. Não esquecerei suas cores; não menos-
prezarei cada detalhe dessa cena triunfal, que em breve fará parte das lem-
branças que compõem o amálgama da minha vida.
O que nos move a correr 56 quilômetros senão a alegria genuína?
Como pode sentir prazer o monge que jejua por dias seguidos? O que torna
essas experiências positivas? São questões muito pessoais. Nunca jejuei, mas
como na corrida, acredito que as motivações pertencem exclusivamente a
quem as vivencia e a tentativa de externá-las em palavras sempre irá diluir o
seu significado.

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40
Quilômetro 25

Tem épocas em que a vida cria movimentos inesperados, proporcion-


ando encontros, breves ou duradouros, que causam grande impacto no nosso
destino. Foi o caso do meu encontro casual com um famoso médico, escritor
e maratonista. Em um papo informal sobre as experiências que valem à pena,
ele enfatizou que todo corredor deveria, ao menos uma vez, fazer a maratona
de Nova Iorque. Por ter um percurso desafiador, com muitas inclinações, me
aconselhou a estrear em uma maratona plana para adquirir experiência na dis-
tância. Sem a ansiedade da “primeira vez”, eu estaria em melhores condições
para completar a maior de todas, a mais famosa, a soberana maratona de NY.
Assim me tornei maratonista aos quarenta e sete anos e a primeira
descoberta foi como somos capazes de produzir nossas próprias drogas. O
vício seria uma consequência natural. Minha ideia inicial era chegar a Nova
York, correr com 50 mil pessoas, cruzar com os monges tibetanos, que mar-
cam presença todos os anos na maratona mais democrática do mundo, e nos
últimos quilômetros, ouvir milhares de torcedores no Central Park , gritando
meu nome escrito no número de peito. Mas ao cruzar a linha de chegada já
não havia caminho de volta, sigo viajando, por diversos países, escolhendo as
maiores, mais antigas ou mais belas provas do mundo.
A primeira vez em que me deparei com o desejo de correr a 2 Oceans
foi em uma manhã chuvosa, fazendo o meu treino na esteira. Observava
minhas passadas refletidas na janela de vidro da academia de ginástica,

41
no prédio onde morava. Uma paisagem sem horizonte, sem encantamento.
Ativei minha técnica da meditação, projetando botões de flores de lótus sob
meus pés. A cada pisada uma flor se abria, formando um rio de pétalas rosas
e brancas, seguindo o seu curso natural ao encontro do mar. Nadei até as
profundezas do oceano, grávida de trigêmeos. Saltei de um oceano a outro,
carregando comigo o essencial.
Nessa época, às vésperas de completar cinquenta e um anos, essa im-
agem nasceu potente. A ideia de correr 56 quilômetros com 56 anos; percor-
rer 56 quilômetros divididos em dois oceanos, cada um com sua imensidão
peculiar; superar cada quilômetro como um ato de fé, no que sou e naquilo
que não posso dominar e está em constante transformação.
Ao longo de cinco anos fui compartilhando meu sonho com outras
pessoas. Não imaginava que seria possível convencer mais do que um ou
dois amigos a encarar o desafio. Ao completar cinquenta e cinco anos, re-
cebi de braços abertos o melhor presente de todos. Formamos um grupo de
sete corredores que se tornariam em breve ultramaratonistas, com a ajuda do
melhor treinador do mundo. Os primeiros a aderir foram Alfredo, Cris e Su-
zana. Caco, empolgado com a possibilidade de surfar nas ondas da África do
Sul, convenceu Fernanda, sua mulher, que convenceu Clarinha e por último,
conhecemos Alê Hadade. Magu, nossa fiel companheira em diversas provas
anteriores, queria participar da viagem, e escolheu o possível para aquele
ano, beber bons vinhos e correr a distância da meia-maratona. Quem acha
que a corrida é solitária, se engana. Ela socializa, aproxima e aprofunda os
relacionamentos.

***

Estou próxima ao quilômetro 25, me lembro bem dessa encruzilhada,


no mapa do percurso. O primeiro ponto com um retorno possível. Willy, Caco
e Magu, estão estrategicamente posicionados, com os saquinhos de purê de
batatas, para repor nossas carências, físicas e afetivas.
Em uma situação de superação máxima, estabelecemos uma conexão
poderosa com nossa fiel torcida. Estamos à flor da pele e nossa percepção da

42
realidade pode ser alterada pelo mais ínfimo detalhe, como uma costura da
bermuda que nunca se fez presente. A sensibilidade aumenta em proporções
inimagináveis e algumas vezes se torna um fator de pressão que não con-
seguimos suportar. Passo por eles mirando o horizonte à minha frente, minha
mão esquerda acena discretamente, disfarçando o cansaço e os batimentos
acelerados. O inevitável e temível confronto de olhares me conforta, aumento
o ritmo espontaneamente, a escolha é natural.
Ainda me encontro em algum lugar entre os dois oceanos. Olho para
o horizonte e vejo as copas das árvores se movimentando num balé ensaiado.
Na ausência do azul, surge à minha frente uma abundância de tons de verde,
com pinceladas de rosa choque, amarelo, vermelho. O vento toca suave,
suave, resfriando o topo da cabeça. Checo o relógio. Deixo-me impregnar de
otimismo com a ajuda da endorfina, leptina, serotonina, adrenalina... todas
elas resolveram aparecer em bando, para animar a festa.

***

Apesar de ter nascido sob o signo de fogo, tenho a lua em libra, suavi-
zando as cores do meu mapa astrológico. Talvez por isso permito alguns tons
pastéis no meu armário, além do preto predominante. Às sextas-feiras só vis-
to branco, hábito que adquiri quando passei o primeiro final de semana ao
lado de Mãe Cleusa, a doce ialorixá (mãe-de-santo) filha de Mãe Menininha
do Gantois, da Bahia. Não sigo a religião do Candomblé, mas tenho muito
respeito e admiração por ela. Frequentei por alguns meses o ninho acolhedor
da sua casa; participei da festa de Oxum, Orixá das águas, na intimidade do
terreiro do Gantois. Nunca entendi porque ela não jogou os búzios para mim.
Também não saberia explicar porque nunca perguntei a ela de qual orixá sou
filha.
Um dia ela me telefonou, pedindo para comprar uma muda de planta
que ela tanto adorava e não conseguia encontrar em Salvador. Não sabia o
nome do arbusto, apenas me descreveu que tinha pequenas bolinhas vermel-
has nas pontas de seus galhos. Por alguma razão eu sabia qual era. Estabele-
ceu-se a troca, com a mágica da vida.

43
***

Sinto dificuldade em manter a velocidade e percebo que finalmente


estou prestes a iniciar o percurso em aclive. Respiro a maresia com esper-
ança. A ansiedade sempre nos leva à tentativa de abreviar o tempo. Não tenho
motivo algum para isso. Pelo contrário, permanecer naquele trecho do camin-
ho é tudo que desejo.

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Quilômetro 30

Quando alguém pergunta: qual foi a sua melhor idade? Fico sem re-
sposta. Mas se alguém me questiona: se pudesse voltar ao passado, qual a
idade gostaria de ter? A resposta é imediata, não gostaria de voltar ao meu
passado. O presente é enigmático, por mais complexo e problemático ele
possa ser.
Corro essa prova antes de completar 56 anos. No meu mapa da 2
Oceans, o último quilômetro representa a força contida na ideia de futuro, e
cruzar o pórtico de chegada, uma passagem para o início da próxima jornada,
como uma permissão divina para continuar criando a minha realidade.
Estou na segunda metade da prova, venci muitos obstáculos inesper-
ados, e apesar das visíveis fragilidades, não pareço duvidar do meu destino.

***

Somos treinados a resistir, encarar, minimizar, superar a dor. Ao ob-


servar o atleta e sua evolução no período, Caco percebe a força e a fraqueza
de cada um. Com a ajuda de alguns testes e da tecnologia disponível, ele
monta uma estratégia de navegação, aprimorando o nosso mapa, até atingir
uma precisão rigorosa. Aos alunos, cabe tentar cumprir a meta, sendo a mel-
hor de todas as nossas versões.
O que vivenciamos na 2 Oceans foi um privilégio para poucos, para

45
os atletas de elite e alguns amadores apenas. Nosso polimento foi até a
véspera do dia da prova, quando percorremos a Chapman’s Peak de carro,
para reconhecer nosso maior desafio. Como um técnico, que estuda detal-
hadamente os jogos anteriores do time adversário, parecíamos mais íntimos
agora e isso me deixava ligeiramente confortável. O Caco me alertava, pela
última vez, que nesse trecho devo caminhar em passos rápidos, mantendo
o corpo ligeiramente inclinado para frente, abdômen contraído e o olhar na
altura do horizonte do mar.

A boa surpresa é que o ponto de vista do pedestre é outro. A mesma via


es-estava disponível exclusivamente para nós corredores e o mesmo lugar
traz outra percepção, outras emoções. Observo os detalhes da rachadura na
rocha, formando um túnel de aspecto rústico, que me remete ao passado dis-
tante. A beleza dessa montanha depende da potencia do oceano e da reação de
suas encostas. Um duelo que se dá por séculos, onde quem ganha somos nós,
meros observadores desse espetáculo da natureza selvagem. Se não houvesse
inclinação, a paisagem não teria os mesmos contornos. Sinto-me privilegi-
ada em diminuir o ritmo. Pela primeira vez, desde a largada da prova, estou
relaxada, sem pensar no tempo como um inimigo.

***

Quando me mudei para São Paulo, não tinha ideia da dimensão da


cidade desconhecida. Como era longe ir de casa para a Faculdade e para o
trabalho e para a casa de um colega. Como as noites eram perigosas e o dia
barulhento. Tive que mapear meu mundo novo, com fronteiras imaginárias,
para dominá-lo. Nunca mais quis morar em outro lugar. Nesse mapa desenhei
as figuras essenciais da minha vida. Tomei as mais importantes decisões.
Fui mãe aos vinte e quatro anos, e parar de trabalhar foi natural. Tem-
po de aprendizado e aprimoramento. Queria amamentar por nove meses, in-
ventar brincadeiras divertidas nas manhãs de chuva, viajar nas sextas feiras
de sol. Em um dia típico de uma jovem livre das amarras profissionais, dança-
va ao ritmo dos gritos estimulantes do professor de ginástica, quando notei

46
uma placa na parede, com a frase: idade máxima 25 anos. O anúncio era
do Club Med, oferecendo vagas para G.O. (gentil organizador). Paralisada
diante de algo imponderável, tive a sensação estranha de não pertencimento.
Não desejava aquele emprego, porém a advertência, idade máxima, me choc-
ou. Foi a primeira e talvez a única situação em que a idade pesou. Não era
mais a menina precoce, que queria tanto crescer.

***

O tempo, dominar o tempo, respeitar o tempo, aceitar o tempo, ex-


pandir o tempo. Quando fico presente na corrida, mesmo que ofegante por
algum esforço extra exigido, sinto a mente em outra sintonia, como se eu
pudesse transpor para outra dimensão.
No início da Chapman’s Peak, o vento não está soprando contra,
não chove, e a temperatura é amena. O destino dá sinais de paz, sem falsas
promessas de eternidade. Reconheço o som provocado pela onda do mar, ao
encontrar seu destino final. O pensamento escapa do meu controle e mais
uma vez me distraio. Ouço o barulho da água, abundante, sobre a cabeça. Sin-
to cada gota massagear e depois escorrer pelo couro cabeludo, transformando
o cotidiano banho de chuveiro em um evento divino. Escuto um barulho oco
reverberar por todo o ambiente. O tempo fica suspenso até que eu consiga dar
o próximo passo. Aterrisso na subida íngreme, e me espanto com tamanha
beleza.
O hino de Mandela, expõe a determinação de um povo. Bradar sua
letra no início dessa jornada, define o caráter da prova e de seus participantes.
Conto com a ajuda das pessoas ao meu redor. Conhecidas ou não, se tornam
personagens da minha ficção. Com elas troco carinho, apoio, força e moti-
vação. No dia do evento, nossa performance é superior a qualquer treino.

Shosholoza, seguindo adiante


Através destas montanhas
Trem da África do Sul

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Como lidar com a imprevisibilidade da vida, e com a nossa reação
diante de fatores externos inesperados? Aprendi com a corrida a aceitar aqui-
lo que não podemos dominar. Dar o próximo passo sou eu quem decide, e é
justamente nesta escolha que me concentro, colocando toda a minha energia
para agir da forma mais positiva.4545

48
Quilômetro 33

Abro a janela do quarto com fé. Sinto o cheiro da grama molhada, os


braços arrepiados agradecem o ar fresco da manhã, leve e sensato. O sol nas-
cente aquece levemente as pálpebras, cansadas de tanto resistirem ao pranto.
Entorpecida, consigo me conectar com a mãe Terra. Olho no espelho, acendo
a vela de 7 dias, vejo além de mim. Percebo o contorno do meu corpo perder
a nitidez. Sinto a potência da vida na finitude.
Nesse ano ouvi a morte sussurrar aos meus ouvidos. Tentei deses-
peradamente convencê-la a desistir, mas a situação saiu do meu controle. O
barulho oco vinha do quarto escuro. Desligo o chuveiro e também o estado
de graça, que se esvai pelos poros em segundos. Impotente diante de tamanho
absurdo, me vi sozinha diante dele. Sua face pálida aparentava uma tranquil-
idade, negada pela marca roxa da queda, na têmpora direita. Parecia dormir e
roncar um sono profundo.
A boca que agora não servia para beijar, se tornou incapaz de salvar
uma vida. A solidão que a cama pesada, de madeira maciça, escancarava, era
insuportável. O silencio da noite se tornou meu maior inimigo. Escolhi, por-
tanto, o dia. Preferi olhar os pássaros e não morcegos.
Adotei rituais diários, como formas de oração, na tentativa de preench-
er o tempo vazio, agora à procura de outro sentido. Frequentei centros espíri-
tas, igrejas católicas e terreiros do Candomblé.
Aos 33 anos tinha muitas certezas e planos a longo prazo. Muita coisa

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estava estabelecida como inquestionável até aquele fim de tarde de 11 de
Setembro. Tudo aconteceu como um tsunami, com seu poder diabólico de
destruição. O dia seguinte foi muito mais difícil. A estúpida ideia de não mais
pegar em sua mão. Ao abrir a porta do quarto, encarei minha mãe e seu abraço
sofrido, perturbador. Chorei pela primeira vez aquela dor que não conhecia.
Aguardava o encontro com minhas filhas, Joana e Carol, com a ansiedade,
pelo tempo que não chegava e a angústia, pelo tempo que não ia embora.
O desejo de transpor o presente, saltar para o futuro na esperança de
não mais sentir a imensidão desse mar de tristeza. Elas tinham nove e seis
anos, viajavam com as amigas inseparáveis, que moravam na casa ao lado,
e não presenciaram nada. Alguém decidiu, talvez eu mesma, não avisá-las
a tempo do enterro. O peso insuportável da espera, do silencio forçado, da
ausência de palavras adequadas. Não me lembro onde encontrei o pequeno
“ Livro dos Anjos”. Intuitivamente, caminhamos até o jardim e sentamos no
gira-gira do parquinho. Pedi que cada uma olhasse para o céu e abrisse o livro
em uma página aleatória, pensando no pai. Li as mensagens para elas. A partir
desse dia, fizemos um combinado, daríamos as mãos sempre que sentíssemos
medo ou tristeza, e conversaríamos com ele através dos anjos. O meu peque-
no Chico, de três anos, permanecia sentado no sofá. Assistia imóvel ao filme
“Robin Hood: o Príncipe dos Ladrões”, com duração de 143 minutos, e como
se estivesse em looping, o VHS rodou pela segunda vez.
Com o tempo meu colo se expandiu, conseguindo carregá-los pelo
mundo, nas mais adoráveis aventuras. Na nossa casa tinha banho de espuma,
roupas de balé e toucas de natação, fantasia de palhaço. Adoravam brincar de
pirata com o avô; e como o caçula não sabia decorar texto, sempre interpre-
tava o cachorro, nas peças de teatro produzidas por suas irmãs.
Sempre confiei no destino, ainda adolescente já consultava o livro de
adivinhações “I Ching” e tirava a sorte no tarô. Mais tarde conheci uma as-
tróloga genial e adquiri o habito de fazer a revolução solar. Naquele ano não
me lembro de nenhum trânsito de Saturno, ou qualquer outra configuração
astrológica, alertando para tamanha mudança brusca. Ou será que esqueci de
consultar minha astróloga em 1992?
Tudo ficou diferente, nada ficou no mesmo lugar. Exploramos outros

50
jeitos de viver, outros encantamentos. O tempo preservou o afeto daquela
relação em uma redoma de cristal. Na compreensão da própria existência
veio a consciência do que é felicidade, na dor ela se torna ainda mais potente.

***

Chegou o momento de encontrar o Oceano Atlântico, sei que ele me receberá


com uma inclinação longa e íngreme. Estou preparada mental e fisicamente
para esse momento. Analisei previamente cada metro deste percurso. Agora
é só contar com as forças ocultas. Mergulhar profundamente sem resistir e
manter a calma, até a corrente passar.
Olho ao redor e percebo que alguns caminham, quase sem pressa,
como se já soubessem que a dor é passageira. A natureza quase intocada
aguça ainda mais o barulho das ondas, como um golpe certeiro de nocaute.
Tudo vale à pena para atingir o mirante sobre as águas da baia Hout.
No final da subida, tentando manter o corpo ereto, me surpreendo
com uma placa marcando o quilometro 33. Estava diante da melhor vista, do
mais deslumbrante cartão postal. Arranco o fone de ouvido. Inicio um diálo-
go antigo reconhecendo aquela voz. Meu corpo está tão leve que me lanço
sobre o oceano, flutuando sem medo. As lágrimas escorrem delicadamente e
se diluem no azul profundo. Vislumbro um outro mundo possível, desconhe-
cido, virgem. Trago comigo uma ninhada que possui a força de um exército
de dragões. Nado freneticamente, fujo dos predadores iludindo suas visões.
Com minhas asas de peixe-voador, salto para outros mares. Os filhotes rep-
licam o mesmo ato, na certeza que somos nós os sobreviventes. No topo da
montanha me despeço do homem que fez o meu passado ser tão especial. Ele
parte em direção ao horizonte, sem remorso, dono do seu destino.
Meus pés tocam o chão, com duras passadas. O corpo treme, sentindo
os golpes. Tenho muita sede. Preparo-me para iniciar a descida rumo à praia,
com a agilidade de quem sabe que tudo tem um fim. E um novo começo.
Apesar de exausta, saboreio a recompensa de sentir meu peito explo-
dir com a intensidade das emoções. Procuro pelo ponto de hidratação, mas só
resta Coca-Cola para beber. Estranho a escassez de água no paraíso.

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Não estou sozinha. Divido minha história com os demais corredores,
padeço da mesma dor e compartilho com eles os mesmos obstáculos.
Sinto a presença do Alfredo, amigo fiel, que divide o pão na chapa depois dos
treinos, todas as manhãs de sábado. Não precisamos falar nada, cada um sabe
o que o outro está passando e a torcida é verdadeira. Ele resolve tirar uma
foto, registrando o que é impossível revelar.

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53
54
Quilômetro 36

O cupim gigante, na beira da estrada da fazenda do meu avô, estava


sempre lá, imóvel, maior que as montanhas do Himalaia. Ele ficava numa
curva bem acentuada, próximo à sede da fazenda centenária, por onde costu-
mava caminhar todos os dias. Imaginava que dentro dele habitavam seres de
outros mundos, e a qualquer momento poderiam me levar. Nesse trecho do
caminho costumava acelerar os passos, na esperança de alcançar os primos
mais velhos, que disparavam, velozes, em direção ao Matão. Nas férias de
Julho, éramos muitos, uns vinte meninos e meninas, e a brincadeira mais
concorrida era uma espécie de “mocinho e bandido”, na mata nativa, onde
habitavam cobras e aranhas enormes, e talvez macacos.
Eu preferia brincar de casinha com minhas primas, debaixo da
mangueira gigante, cozinhando batata com arroz, no fogão improvisado com
alguns tijolos achados perto do galinheiro. As bonecas adoravam e sempre
repetiam o prato. O único medo que sentia no pomar da sede era dos marim-
bondos.

***

Os medos vão mudando com a idade. Quando adultos, eles são mais
concretos. O sofrimento é o maior de todos, os fantasmas não são mais de
outros mundos. Sigo em frente, desta vez a descida é impiedosa e íngreme,

55
me forçando a apressar o passo, na esperança de encontrar uma nascente
de água refrescante na beira do caminho. Checo mais uma vez o relógio. O
cansaço é temporário, ele ataca em ciclos, sempre tentando dar o golpe de-
finitivo de nocaute. Os monstros começam a se alimentar do medo, minando
a minha autoconfiança. Cada um de nós tem uma reserva de energia, muito
bem guardada pela natureza, que se torna disponível quando estamos em sit-
uações limite.
O maior erro de principiante é pensar que a subida é o grande desafio,
pois o problema mesmo está na descida. As articulações sofrem mais com o
impacto; os quadris começam a travar e o desgaste físico é muitas vezes fatal.

Finalmente mato minha sede, já fora do parque nacional. Meus dese-


jos se renovam e outras tonalidades tingem a paisagem. As cores estão pastéis,
a beleza é mais suave e acolhedora. Descubro novas sensações, potentes, que
vêm amolecer a rigidez dos tecidos musculares.
Meu amigo Alfredo continua fotografando com seu celular, não tem
pressa. O tempo para ele não é uma questão relevante. Para mim é o cerne
da questão. O tempo é soberano, pode ser problema ou solução, motivo da
tensão ou da cura.

***

Campos de Jordão foi o local que Caco escolheu para realizar o último
grande desafio do longo período de cinco meses de treino para a 2 Oceans.
Estávamos ansiosos e apreensivos, excitados e confiantes. O maratonista é
muito incoerente e contraditório. Do mesmo jeito que é corajoso o suficiente
para correr mais de quatro horas ininterruptas, se fragiliza por pequenas boba-
gens.
Nesse dia o percurso não foi revelado. Começamos a correr dentro
do perímetro urbano, pela avenida de asfalto, margeando o trilho do trem.
Percorremos quase vinte quilômetros em terreno plano, com ar fresco e ritmo
mais acelerado. Para quem não conhece Caco, esses fatores poderiam signifi-

56
car a recompensa, como um presente que ele reservou para todos nós, uma es-
pécie de prêmio por ter chegado até ali, com a missão quase completa. Quem
sabe do seu passado, de seus orgulhosos relatos em tempos de exército, cujo
grito de guerra é Selva, não se deixa enganar. Surpresas virão. Quase é uma
palavra apagada no seu dicionário.
Aos vinte e dois quilômetros, o terreno começou a inclinar. A cada
curva, a beleza daquele vale se expandia para além das minhas expectati-
vas. Aumentei o som do meu ipod e subi, em passos cadenciados, sem olhar
para o chão. Os horizontes sempre me encantaram, com suas linhas distantes,
intocáveis. Depois de muitos minutos, ao atingir o topo da montanha, fui
tomada por um ânimo incontrolável, como se tivesse ingerido uma droga alu-
cinógena. Dançava, corria, cantava, dançava, até perder o fôlego. O refrão da
canção que tocava naquele momento fazia todo o sentido – When everything
is wrong we make it right . Foi tão genuíno que não fui recriminada pelo nos-
so treinador e ninguém ousou me tirar daquele torpor.
Voltei para a dura realidade que veio a seguir, uma descida íngreme,
que logo depois percebi que também era longa . A cada curva, a esperança
do fim do martírio. A paisagem se fechou por entre arvores imensas, porém
nada conseguia amenizar as dores que começavam a surgir. Diminuí o ritmo
para não me machucar, ainda anestesiada e empolgada com a ideia de missão
cumprida. Desprevenida, percebi que outros golpes estavam programados,
certeiros e necessários.
Esse treino foi desenhado para preparar nossas mentes, especialmente
no tre cho da estrada de terra do Caminho da Fé. Havia mais um aprendiza-
do fundamental para assimilar. Naquele dia amaldiçoei meu treinador, que,
estrategicamente, não apareceu nos quilômetros finais. Sem saída, tive que
seguir caminhando até o último metro dos quarenta e seis quilômetros, sob o
sol quente do meio dia, comendo poeira e sem vontade alguma de rezar.
Nesse dia, concluí minha trilha sonora da 2 Oceans. Salvei o playlist,
consciente da minha transgressão. Fones de ouvido são proibidos em todas
as grandes provas de corrida, por medidas de segurança. No meu filme da 2
Oceans, a trilha sonora é parte da narrativa, correrei o risco e serei discreta
ao esconder os fios debaixo do boné.

57
***

Resolvo caminhar para recuperar o fôlego, mudo a pisada para al-


iviar alguns músculos, e observo as pessoas que começam a surgir na beira
da estrada. Voluntários oferecem pedaços de banana, balas e doces típicos.
Fico pensando na delicadeza de pessoas que se dispõem a acordar cedo para
compartilhar conosco essa jornada, oferecendo mais do que tudo, afeto e ad-
miração.

***

Doces sabores de infância, da paçoquinha de embalagem laranja


com um coração, escrito AMOR, e da geleia de mocotó, cor de chiclete de
tuti-fruti. Na fazenda, o programa mais legal era subir na boleia do caminhão,
e pegar carona até a pequena vila que ficava a doze quilômetros de distância,
por estrada de terra. Economizava minha mesada só para aquele dia, quando
parávamos na venda antiga, para comprar os mantimentos que iriam abas-
tecer a sede por uma semana. Na frente da loja tinha um balcão de vidro,
saboroso, com uma variedade de delicias maior do que podíamos consum-
ir. Chupetinha de morango com cobertura de açúcar cristal, cigarrinhos de
chocolate, cocada branca e queimada, que duvida cruel. Os diversos tipos de
maria-mole também me deixavam indecisa, mesmo sabendo que dali a sete
dias voltaríamos novamente. No quarto de beliches das meninas, cada uma
das primas guardava seu pacotinho secreto debaixo do travesseiro e nas mad-
rugadas, entre confidências e lutas de travesseiro, trocávamos nossas prendas.
No terceiro dia da semana, as mais comilonas tinham que pedir emprestado
uma guloseima, ou trocá-la com alguma bijouteria barata.

***

Sigo em frente sem me render aos novos sabores, não por falta de
vontade mas por puro bom senso. Não é fácil restabelecer o ritmo da corrida
quando o corpo se acomoda e a mente está prestes a te trair.
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A mágica se dá nas novas descobertas, onde a paixão surge mais potente. O
desejo de seguir é latente. Vou ao encontro do meu destino, que se revela aos
poucos, moldando meus sentimentos. O amor sublime.

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60
Quilômetro 42

Entrego-me ao desconhecido. Deixo-me levar pelo fluxo de energia e


consigo parar o tempo. Deve ser a mesma tática que os monges utilizam para
passar dias sem comer e beber. Estar tão presente e por fim, acessar outras
dimensões de tempo e espaço. Sou outro oceano. De repente me percebo mui-
tos quilômetros a frente, já na subida mais íngreme da prova. Estou prestes a
ultrapassar a marca de quarenta e seis quilômetros, e isso é inédito para mim.
O Constantia Nek pode ser assustador. Um dos desfiladeiros sobre a
cordilheira, entre o centro de Capetown e o vale Fish Hoek, é o ponto mais
alto da ultramaratona, com 215 metros. O maior problema é que ele se inicia
no quilômetro 42, quando os músculos já estão bem contraídos pela repetição
dos movimentos, diminuindo sensivelmente a flexibilidade dos quadris. Não
preciso temer um morro de quatro quilômetros, se me lembrar de quais senti-
mentos me trouxeram até aqui.
Essa é minha primeira ultramaratona, e provavelmente a única. Atribuí
muitos significados a ela e por isso se torna forte candidata a meu maior
sucesso como corredora. A inclinação me faz refletir sobre qual o momento
certo de desacelerar, tombar o corpo ligeiramente para frente contraindo o ab-
dômen, e dividir a carga sobre os músculos das coxas e panturrilhas. Para ter
equilíbrio é muito importante não perder a vista da linha do horizonte, mesmo
que isso traga a consciência de quão atemorizante aquela subida possa ser.

***

61
Acordei naquele dia em paz com meus irmãos. Não me recordo da
motivação que me fez acompanhá-los pelo pasto, naquele fim de tarde na
fazenda. Os trovões estavam cada vez mais ensurdecedores, e não demorou
para uma chuva forte começar a cair, com pingos grossos seguidos de pe-
quenas pedras de gelo. Os quatro meninos começaram a correr, resolvendo
encurtar o caminho e pular a cerca do vizinho. Não tive outra alternativa, o
arame farpado era apavorante para mim, mas eles não prestavam a mínima
atenção aos temores femininos. Me enchi de coragem e ao saltar para o out-
rolado, fiquei cara a cara com um touro. Acho que foi ali que aprendi a correr
de verdade. Nem a asma teve tempo de atacar. Cheguei até a próxima cerca,
sem folego, sem coragem, sem acreditar. Estava a salvo, ensopada e com a
roupa rasgada. Todos riam enquanto se sujavam ainda mais nas corredeiras
de lama que se formavam na beira da estrada. Eu me juntei a eles, feliz por
transgredir as regras, sem me importar com a bronca que iria levar dos meus
pais, ao chegar em casa.

***

Começo a ouvir a minha voz, cantarolando a música dos soldados,


que Caco ensinou: subidinha mixuruca que não dá nem pra cansar , eu aqui
nesse passinho, vou até o Ceará. Percebo meus lábios se estenderem discret-
amente, num meio sorriso para não intimidar ou debochar dos companheiros
musculosos, que seguem com seus rostos contraídos de dor.
Ultrapasso um, depois outro, e outros mais, de cabeça erguida, com a
segurança e a cadência daqueles que sabem onde vão chegar. No final da sub-
ida, surge uma imagem turva, a silhueta de um homem de olhos azuis, da cor
do mar. Ele estende seus braços na minha direção, me ofertando uma garrafa
de elixir.

***

Seus cabelos encaracolados, presos em um rabo de cavalo, me faziam

62
sorrir sem pudor, num pequeno barco de alumínio, navegando nas Ilhas re-
motas do Pacifico, no atol de Bikini. O azul intenso do seu olhar era capaz
de hipnotizar até os tubarões, donos daquelas águas, abundantes. Eu e ele,
destemidos, entorpecidos, num mar distante de outras vidas, de nossas vidas.
Nesse oceano fizemos nosso autorretrato, que permanece pendurado na pare-
de do quarto, até hoje, em preto e branco.

Em busca de novas aventuras, pueris, me deparei com a intensidade de um


amor maduro. Ele foi chegando devagar, como uma caminhada à beira-mar, e
se transformou em um imenso oceano, banhando diversos continentes. Assim
a vida me preparou uma reviravolta, dilatando meu horizonte.

***

De repente senti um spray gelado nas minhas pernas, e vários corre-


dores ao redor, imploravam por uma gota daquele bálsamo que Caco se dis-
pôs a espalhar. Minha amiga Magu estava ansiosa por um olhar reconfortante,
que garantisse que tudo estava bem. Passei por Willy querendo chorar aquele
choro de dor e felicidade, felicidade tanta que dói. Abracei-o com medo de
me entregar, e coincidentemente, o refrão conhecido, o mesmo que ouvi em
Campos de Jordão, começou a tocar. O efeito foi imediato, não tirei o fone de
ouvido, cantei mais alto do que nunca, When everything is wrong, WE make
it right. Algumas pessoas me olhavam e riam, talvez pela voz desafinada,
talvez pela intensidade da minha expressão, sem nenhuma discrição. No topo
do Constantia Nek tomei a mesma droga, alucinógena: Gratidão.
Eu era uma das pessoas com passe livre para seguir. Muitos foram
cortados da prova naquele cruzamento. Não devia ser fácil ser obrigado a
parar, ao chegar tão perto do final. Teriam eles coragem para tentar outra vez?
A persistência é o alimento da base da pirâmide do maratonista. A su-
peração é o topo. Inicio a última etapa da prova, com a certeza de completar a
jornada. Faltam dez quilômetros, o que pode parecer pouco quando compara-
do ao volume total. Mas a vida é cheia de truques e tudo é relativo. Poderia
ser um trecho em terreno plano, para facilitar. Mas não é.

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64
Quilômetro 48

Traumas são inevitáveis, permanecer com eles é opcional. Pode ser


um mantra para adotar na próxima corrida.
A primeira a ficar viúva foi Mali, minha melhor amiga de infância.
Com ela aprendi que algumas histórias chegam ao fim para outras começarem.
A inventividade humana é capaz de criar novas cenas, sempre que colocada
à prova. Mais tarde ela foi minha testemunha. Permanecemos preenchendo
lacunas, como lanternas na trilha escura, como protetor solar sob o sol es-
caldante do deserto.
Talvez não tivéssemos capacidade para reconhecer a dimensão do
universo, mas sempre respeitamos seus mistérios e quando jovem brincáva-
mos muito com eles, a sério.
A mesa da sala de jantar ficava cheia de pedaços de papel, cortados
em pedaços iguais, compondo um círculo com todas as letras do alfabeto e
números de 0 a 9. Numa ponta da mesa minha melhor amiga, na outra eu.
Esticávamos os braços até posicioná-los em cima do copo de vidro, no centro.
Sem tocá-lo, fechávamos os olhos, nos concentrando nas perguntas a fazer.
Em um misto de medo e fé, pedíamos para algum espírito descer até aquele
recinto, e responder sobre nossas angústias. Amores não correspondidos, da-
tas de casamento e de morte. O copo quase voava, formando sílabas, palavras
e frases curtas, com promessas de um futuro feliz.

65
***

Cruzo com o meu amigo novamente, tentando iniciar a longa descida


dos próximos oito quilômetros. Suas pernas começam a travar e eu diminuo
o ritmo, na tentativa de reanimá-lo. Não quero que ele desista, por ele e por
mim. Olho para ele sem deixar alternativa, o coloco dentro da pista e saio cor-
rendo, como um coelho, criando um vácuo para ele pegar embalo. Funciona
por algum tempo e depois a câimbra retorna mais potente. Dá para perceber
a dimensão da dor em seu rosto.
Muitas testas franzidas e suadas, demonstram que não estamos
so-zinhos. Alguns não conseguem dar mais um passo e sentam na sarjeta sem
nenhum poder de decisão.
Desvio o olhar para o parque que nos envolve. Estamos nos aproximando
do Jardim Botânico Kirstenbosh, famoso pela riqueza da flora nativa, e me
encanto com o colorido das estrelícias (ou ave do paraíso).

***

Na rua estreita do bairro do Cambuí, bem próxima da casa da minha


avó em Campinas, moravam minhas cinco tias solteiras, irmãs do meu avô
materno. Todas professoras, a mais velha, Meme ( Noemia) foi a mais bem
sucedida, assumindo o cargo de diretora da escola estadual, com um salário
mais robusto. Chia (Maria), Dai ( Dalva), Zi ( Izilda) e Iza ( Ilza), lecionavam
no ensino primário. Fui alfabetizada aos cinco anos pela Chia, a minha pre-
dileta, que parecia a Nossa Senhora, com sua pele clara de porcelana, cabelos
lisos e grisalhos, sempre muito bem penteados. A suavidade da sua voz era
como um canto de sereia, e surtia em mim uma profunda ternura. No singelo
jardim, o canteiro de rosas afirmava a idade dos habitantes da casa. Colados
no muro lateral do vizinho, os arbustos tinham o nome engraçado de cama-
rão. Na primavera, surgiam cachinhos, na cor laranja, com uma flor branca e
pequenina na ponta, atraindo os beija-flores a disputarem comigo tanta doçu-
ra. Chupava a pequena quantidade de água com açúcar como se fosse um

66
néctar dos deuses. Na sacada da janela lateral da sala, pendia uma planta de
aparência delicada, chamada flor-de-coral. Não resistia ao ímpeto de explodir
todos os seus botões, com aparência de pequenas cápsulas vermelhas, que
nasciam em profusão nos meses de outono.

***

Seguimos assim, alternando o ritmo para aliviar a musculatura. O


mais importante é aceitar a dor, não criar resistência. Vemos muitas pessoas
cometendo o erro de alongar a panturrilha quando a câimbra ataca. O certo
é massagear, gentilmente, até relaxar. O meu amigo se distrai quando chamo
sua atenção para duas garotas de rabo de cavalo, acompanhadas de um cara
do tipo guar-
da-costas. Treinadas para correr no mesmo ritmo, uma delas resolve parar no
acostamento. Brincamos de apostar com quem ele ficaria, mas não esperamos
para ver o resultado. Embalamos rumo à chegada, esperançosos e a essa altu-
ra, já anestesiados.

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68
Quilômetro 55

Ao fazer a curva acentuada para a direita, vi a placa sinalizando os


últimos mil metros da prova. Ao meu lado, uma mulher, aparentando mais
idade do que eu, pergunta se vou correr a Conrades no próximo ano. Olho
para ela assustada e digo que não, definitivamente correr 86 quilômetros não
estavam nos meus planos. Ela parece surpresa e diz, “pois você devia”.
Corro como nunca havia corrido. Meus sentidos estão todos na potên-
cia máxima. Piso na Lua pela primeira vez. Mas diferente do astronauta,
meus passos não são pequenos. Nem lentos.
Percorro os metros finais querendo recomeçar, desde o momento do
contagiante hino Shosholoza, atravessar as belas montanhas observando os
horizontes e seus pássaros exóticos sobrevoarem os oceanos. Talvez tenha
perdido muitos detalhes, ou até mesmo momentos sublimes, mas daquilo que
percebi, aproveitei cada segundo, na intensidade da experiência.

Por três vezes ouvi o choro mais desejado da vida. Por três vezes a
emoção foi única, e o desejo de voltar ao início da gestação, verdadeiro.

69
70
Quilômetro 56

Cruzo o pórtico da chegada marcando 6h35m e alguns segundos.


Vinte e cinco minutos para atingir o tempo limite da prova, de sete horas. O
riso explode em soluços, e não posso parar. Preciso dançar e danço. Os gritos
do público se transformam em percussão, e a voz do locutor em canto.
Yessssss, I did it.

Caminho em direção à medalha tão desejada. Um mapa da África do


Sul, azul e dourado, com as palavras 2 Oceans gravadas, cortando o hori-
zonte. Meu peito infla como nunca, para receber tamanho presente. O peso
do orgulho que mal podia suportar. Vou ao encontro dos amigos, ansiosa por
abraçá-los. De alguma maneira sabia que todos haviam concluído a prova.
Ao chegar ao local combinado, gravo um vídeo com os cartazes que
preparei para os meus filhos, Joana, Carol e Chico. Eles, que sempre foram
cúmplices das minhas escolhas, não estavam lá naquele dia, mas a energia
contida em nossa conexão é a mais poderosa do universo.

Procuro pelos olhos azuis, e me aninho em seus braços, como se pu-


desse parar o tempo. Ele prepara um banho de espuma e recebo a melhor
massagem do mundo, com óleo de arnica. Tenho fome, desejo comer talvez
um boi inteiro ou duas pernas de cordeiro. Quero beber o melhor vinho, es-
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tourar a champagne mais borbulhante, e festejar. O corpo pedia uma cama,
mas nossa turma era mais intensa do que isso, e brindamos noite adentro,
dançando ao som da música Shosholoza, agradecendo por mais uma con-
quista compartilhada. Inesquecível para todos, não só para nós corredores,
mas também para os que acompanharam essa história na intimidade. Filhos,
parceiros ou amigos, ninguém saiu ileso desta experiência.
Passamos meses convivendo diariamente, participando das angustias
e incertezas de cada um, celebrando em grupo cada vitória individual. No dia
seguinte, o vazio é inevitável, e a ressaca pós-prova deve ser administrada
com sabedoria.

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O Dia Seguinte

Seguimos destinos diferentes, com a promessa de nos encontrarmos


em breve no Brasil, para a sessão de fotos. De alguma maneira, cada um de
nós quer registrar esta experiência, construindo uma narrativa que irá perpet-
uar no tempo. Seja para recordá-la em um futuro distante, ou para contá-la em
detalhes a pessoas queridas, revelando um pouco de nossa essência.

Demorei meses editando todo o material que reunimos em um HD.


Momentos capturados pelo olhar particular de cada um, construíram a nar-
rativa de 2 Oceanos. Em sua trilha sonora não podiam faltar as músicas Sho-
sholoza e Hakuna Matata. Finalizei o vídeo com a magia da cena final do
desenho animado da Disney, “Rei Leão”. África, nação dos Grandes Ani-
mais do planeta, o seu mapa está gravado na camiseta azul turquesa de sete
pessoas, como lembrança de uma bela jornada. Ela servirá de uniforme em
muitas corridas ao redor do mundo, e jamais será doada.
A minha foto enquadrada foi tirada na última curva, antes da linha de
chegada. A garrafinha de isotônico ainda está presa na mão direita, e a viseira,
um pouco torta, segura os fios de cabelo, rebeldes e suados, para não cair nos
olhos. O rosto estampa um sorriso de quem sabe que chegou lá, que tudo saiu
melhor do que o planejado, e que a realidade superou todas as expectativas
sonhadas.
75
***

Minha mãe, de tempos em tempos, abre a caixa de fotografias, e se-


leciona algumas fotos antigas, de nossa infância, para comentar. A minha
preferida foi tirada pelo meu avô, que segundo ela, tinha adoração por mim.
Não me lembro de sua voz, mas a intensidade do meu sorriso demonstra a
reciprocidade deste sentimento. Descabelada, com um lindo laço de fitas no
alto da cabeça, nado de calcinha, em uma piscina de plástico improvisada no
jardim, ao lado do meu irmão. Alegria genuína.

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Epílogo

Acabei de completar 60 anos, e me preparo para a Maratona da Vovó


Dedê, em homenagem ao meu primeiro neto, Tom. O destino será Vancouver,
nas margens do Pacífico. Sigo a vida descobrindo novas paisagens, mantendo
o corpo ereto e a visão na linha do horizonte. Meu neto me mostra um mundo
novo, repleto de novas aventuras.

Na próxima Sexta-feira Santa, a 2 Oceans vai celebrar sua 50 edição.


Um evento muito especial está sendo preparado para coroar meio século da
mais importante corrida da África do Sul.
Surpreendi-me ao saber, pelo site da prova, que este ano o percurso sofreu
uma alteração e não passará pela Chapman’s Peack Drive. Fiquei pensan-
do em como eu sou uma pessoa de sorte. Se isso tivesse acontecido no ano
de 2014, a história que narrei aqui seria diferente, ou talvez este livro nem
tivesse se concretizado. Teria conseguido completar os 56 quilômetros sem a
beleza dos momentos vividos no quilômetro 33?
Essa é a graça da vida, não temos controle sobre tudo. Não somos
super-heróis e contamos sempre com o fator determinante da sorte. Próximo
ou distante, o futuro nos pertence, se soubermos viver bem o presente.

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A sala de jantar da minha avó ficava fechada a semana inteira, à es
pera do almoço familiar de domingo. Ficava hipnotizada pelas pinturas de
natureza morta, com suas maçãs e pêssegos suculentos, emolduradas em ma-
deira dourada, impondo a hierarquia familiar. Aquelas frutas me provocavam
sensações indefinidas, um doce prazer aos olhos e o desejo de devorá-las. A
atração por este gênero de pintura permanece até hoje, uma memoria afetiva,
como o colo da minha avó, aconchegante e incondicionalmente disponível.
Quando jovem gostava de imaginar outros mundos de onde vieram
meus bisavós e tataravós. Desejava extrapolar as fronteiras, expandir meus
horizontes, habitar outros territórios, distantes.
Na parede lateral havia uma cristaleira de madeira escura, repleta de
belas taças de cristal que só eram usadas no dia de Natal. As mesmas que her-
dei e por anos guardei em armários de compensado, a espera de uma ocasião
especial.
Agora a avó sou eu. Resolvi colocá-las em uso e brindar a vida diaria-
mente, com uma pequena taça de vinho. Talvez a próxima geração não herde
o jogo completo, mas certamente farão bom uso do que restar.
Meu médico do esporte, homeopata e ultramaratonista, me disse uma
vez que a qualidade de vida longeva depende de bons hábitos como exercício
físico, alimentação saudável e um bom vinho para acompanhar.
Sou uma eterna aprendiz.

2017 foi o ano em que corri a mais bela de todas as maratonas, a Big
Sur Marathon. O percurso segue pela cênica Highway One, estrada costeira
da California, começando na esotérica cidade de Big Sur e finalizando na
encantadora Carmel. A partir da experiência da 2 Oceans, minhas escolhas
têm sido pautadas pela beleza da natureza, coincidentemente sempre contem-
plando os oceanos. Admiro as montanhas, e sei que chegará o tempo delas na
minha vida. Por enquanto resisto aos seus desafios.
Prefiro a sensação de pisar no chão, dominando o ritmo das passadas, fluidas
e constantes. Não pensar, não refletir, não racionalizar. Soltar os pensamentos
ao vento, e respirar livremente.

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2 Oceans por outros olhares e corações

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Ale Hadade

A primeira vez que ouvi falar da Denise foi em 2003 por meio do
Marcio Campos, hoje o monge Ishwarananda. Eu fazia corridas de aventura
pela equipe Selva, junto com o Marcio e o Caco. O Marcio falava muito da
Denise e de suas filhas, sempre elogiando-as. Dez anos depois, em 2013, o
Caco me chamou para conversar e falou que a Denise iria fazer 56 anos e que
para comemorar, ele iria treiná-la para fazer uma Ultramaratona na Africa
de Sul de 56km. Me convidou para fazer e eu topei na hora. Um convite do
meu mestre e amigo é uma missão dada. E missão dada tem que ser missão
cumprida.
Com a equipe Selva eu já tinha feito várias provas de montanha muito longas,
de mais de 500km, mas nunca tinha feito uma Maratona de rua. Realizei uma
das experiências mais incríveis da minha vida. Não só os 56km percorridos
em abril de 2014 em Cape Town, a maravilhosa sensação de completar, de
cruzar a linha de chegada, mas a jornada de seis meses de treinos e viagens
com a Denise, o Caco, a Fê, que foi minha personal neste período, a Susana,
a Cris e o Alfredo. Viramos uma família e vivemos estes meses intensamente
para nos prepararmos para esta aventura. Tenho lembranças que estão cra-
vadas na minha alma e que guardo com muito amor e carinho. Momentos in-
esquecíveis celebrando os 56 anos da Denise, celebrando a vida, celebrando
o esporte, a amizade e a natureza. Gratidão enorme a Denise e a toda turma
por ter feito parte desta linda celebração.

Alfredo

Emoções da TWO OCEANS


Tento resgatar da memória a emoção da experiência de correr os 56
KM da “maratona” de Two Oceans, porém percebo que a minha lembrança
espontânea será praticamente uma narrativa construída ou reelaboração a
partir da percepção presente.
Dizem que em parte a nossa memória é adquirida ou formada no con-

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texto de um determinado estado emocional, assim como por meio de uma
determinada experiência vivida. Deixando de lado a parte técnica da neuro-
ciência ou neurofisiologia do processo de formação da memória, assim como
no romance de Marcel Proust, gostaria que um biscoito chamado madeleine
pudesse me transportar em uma dimensão da memória para poder trazer a
emoção original, verdadeira e natural. No entanto, sem os tais biscoitos ma-
deleine, tentei reavivar e buscar a emoção original observando as várias fotos
que foram tiradas nas diversas situações da época. As fotos dos treinos em
diversos locais, os locais que visitamos na véspera, algumas durante e depois
da prova. Talvez com um pouco de sucesso nesse resgate da memória, lembro
hoje da mistura de emoções, como a ansiedade, insegurança, as lembranças
dos treinos para a preparação da prova. A maior e a mais marcante emoção
desta prova foi o sentimento da minha capacidade de realização, a auto-su-
ficiência, a felicidade indescritível e a imensa gratidão de compartilhar este
momento único com um grupo de pessoas muito especial.

Clara

Viver essa experiência com um grupo de amigos me trouxe a real


lição do que somos e nos tornamos quando trabalhamos juntos.

Se eu tivesse vivido essa prova sem eles, ela não teria tido a mesma
graça e não seria o que é para mim hoje! Correr a Two Oceans me fez sim
uma mulher mais forte e me deu os melhores sentimentos que tenho guardado
no peito. Respeito, amor, amizade, cumplicidade, leveza e muita saúde para
seguir correndo milhares de quilômetros ao lado de todos eles!!

Estou só à espera da próxima Two Oceans 2.0,3.0,4.0,5.0,6.0...

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Cris

Até hoje me pergunto..... Por que correr tanto assim?


Two Oceans foi um marco na história de um grupo de amigos ...
Não sei se contaminados pela endorfina pós-treino ou pela média desnata-
da com pão na chapa durante café da manhã na padoca, o grupo delirante
abraçou a causa. De uma coisa sei, foi ideia da autora!
Treinar para Two Oceans pode ser comparado com o primeiro amor,
a primeira paixão, a conquista de um sonho. Lembro-me dos treinos ex-
austivos e intensos, porem sempre divertidos. Literalmente atravessamos a
cidade correndo, o que me fez sentir mais forte. Durante o período de treino,
calada refleti sobre minhas expectativas profissionais e resolvi mudar de
profissão, me senti determinada.
Medalhas nos 2,1 km e 8 km, também foram conquistadas pelas Nobinhas
( minhas filhas). Histórias e passeios durante essa viagem são lembrados ate
hoje com muito carinho por elas, o que me deixa feliz.
Refletindo sobre Two Oceans, concluo: me sinto mais forte, determi-
nada e feliz, mas nada sentiria se não fosse os AMIGOS que ela me deu.

Fernanda

2 Oceans foi, com certeza, uma das experiências mais incríveis da


minha vida!
Foram seis meses ininterruptos de muita disciplina, determinação,
foco, muita preparação, alguns momentos de insegurança e tensão... 2
Oceans foi meu desafio pessoal de expor, pela primeira vez , meu corpo a
56km em uma corrida de asfalto, quando eu nunca havia, oficialmente, cor-
rido uma única maratona . Me fez ganhar uma turma de AMIGOS incríveis
que, sem os quais, tudo seria mais difícil. Nos apoiamos uns aos outros para
poder conquistar o nosso objetivo.
Já se passaram cinco anos e eu ainda consigo sentir a energia da largada, as
vibrações da musica tocando e o coração acelerado em cumprir aquele feito.

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Suzana

Foi em 2011, dois dias antes de correr a minha primeira maratona,


que eu ouvi sobre a prova pela primeira vez.
Minha amiga querida falava do seu sonho de fazer essa corrida de
56km...que vai do oceano Índico ao Atlântico... na África do Sul...
‘ Ah é? Puxa... 56Km? Hum... Nossa... Que legal...!’
E foi só. Entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Eu estava mesmo
pensando nos meus primeiros 42km dali a poucos dias.
Surpreendentemente, três anos depois, estávamos nós duas, com as
estrelas ainda no céu, um friozinho na barriga e grande sorriso no rosto, na
largada da ultramaratona Two Oceans.
Cada um de nós tem uma história, e fatos e surpresas da vida nos afe-
tam de formas diferentes.
Para mim, Two Oceans foi uma grata surpresa que a vida me apresen-
tou.
Nunca pensei que eu seria capaz de treinar tanto, correr tanto, subir
tanto e ao mesmo tempo, ficar tão feliz...
Mas que coisa... A minha amiga já sabia...

Professor Caco

Correr a Two Oceans é um desafio, treinar um grupo de alunos para


Two Oceans é um grande desafio, porque a preocupação de alguém machu-
car durante o treinamento é grande. Essa prova tinha um desafio singular, os
“CORTES” (tempo máximo de passagem em alguns pontos). Se alguém não
conseguisse cumprir o tempo limite, a frustação seria evidente, principal-
mente depois de quase 6 meses de preparação. Com isso, analisei os detalhes
da prova, a inclinação e distância de cada subida, temperatura da prova, cada
horário de corte para estabelecer o ritmo de cada um.

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O grupo era divertido e com diferentes ritmos. Logo percebi que al-
guns não estavam prontos para completar a prova dentro do corte. Mas para
que serve o treinamento? Vamos treinar!!
Além de precisar aumentar a velocidade no ritmo de todos, tive que
usar uma estratégia de treinos psicológicos. Programei treinos longos, com
muito desnível, para dar a confiança necessária para encarar a prova. O ponto
culminante foi um treino em Campos do Jordão, com uma altimetria quatro
vezes maior do que na prova. Ali fiquei mais tranquilo, e constatei que todos
teriam a chance de realmente completar a prova dentro do tempo permitido.
Depois de três semanas, chegou a data da grande viagem, sem-
pre chega !!!! A prova é realmente grandiosa e em um lugar maravilhoso.
Logo percebi que Two Oceans é uma religião, muitos corredores com várias
edições realizadas. Dois dias antes da largada, fizemos um reconhecimento
providencial do percurso para tranquilizar o grupo sobre as assustadoras e
comentadas subidas. Finalmente a largada, e minha função, junto com Willy
e Magu, era apoiar durante todo o desafio de 56 km. Fomos para o km 10 e
todos passaram bem. O próximo encontro foi no km 25, todos bem, e fomos
para o último encontro do percurso, no final da última subida, no km 45, onde
tinha um “corte de tempo”. Ale foi o primeiro a passar, joguei spray ice nas
suas pernas que estavam com dor e corri um pouco com ele. Falei um frase
que falo nas provas de aventura: “quando o corpo não aguenta, só a moral que
sustenta, selva!!! Logo na sequência, passaram Fê e Clara, tranquilas para
terminar a prova. Depois vieram Cris e Suzana, e mais spray nas pernas.
Muitos participantes corriam desesperados em minha direção, pedindo para
eu jogar spray em suas pernas. Logo depois passaram Alfredo e Denise, já
com o tempo mais apertado, mas estavam bem. A pior parte da prova tinha
acabado e todos seguiam para finalizar a prova.
100% de aproveitamento, todos felizes de completar o desafio e o
mais importante, todos bem e com saúde, missão cumprida!!!!
Prof. Caco Fonseca

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“Gosto de sonhos e muito...
Falam que sonhar com vários peixes a nadar, é presságio de
algo sagrado, fortuna e saúde.
E olha que meu sonho foi tão, tão real que eu diria que
precisou de 33 segundos para me hipnotizar.
Aliás, esse foi o tempo que a vida lhe marcou para que ela
dividisse, com tamanha sabedoria, o seu olhar sobre esse
Todo que a envolve.
Naquele dia tive a certeza que ela ía muito além, bastava
que a olhasse “através de”, pelos olhos da alma.
Tão fortaleza na dor e no amor. Bagagem que transcendia
qualquer tempo, qualquer ensinamento.
Por dentro, confesso, corri uma maratona inteira só pra não
perder nenhum detalhe da história dela que, entre canções,
murakamis e seu próprio mantra, transcendeu as palavras e
transbordou às entrelinhas escondidas num oceano imenso,
onde certamente ela se reencontra... Imersa no infinito e
envolta por um lindo cardume, afinal, ela certamente tem o
sagrado dentro de si”.

Tati Cavalcante

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Brilha brilha estrelinha,
Quero ver você brilhar
Baila linda
Bailarina
Ilumina este céu...

Ao meu neto Tom,

Que me ensinou a olhar as estrelas


no céu, com uma nova emoção.

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