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Dali do Alto

Hugo Casarini

De novo o zunido supersônico das turbinas o fez parar. As formas de


viagem podiam mesmo ser as mais diversas. Queria seguir na sua. Levantou
para pegar um copo de água, atravessou o escritório apinhado dos mais
diversos objetos e livros, nas mais inesperadas posições. Pensava no futuro
da personagem principal, que já havia mudado três vezes, uma por capricho,
duas por necessidade. E agora? Execução ou redenção? Se a vida fosse ter
o mesmo gosto daquela água que saía do seu filtro de barro recém-
comprado, ela merecia um reinício.
Pensou em olhar um pouco a cidade e, do alto do edifício sinuoso,
tomar decisões que pareciam tão definitivas. O vento quente e úmido que
entrou assim que abriu a porta da varanda o fez pensar em sua terra natal.
Detestava aquilo com todas as suas forças, foi um dos motivos que o fizeram
mudar de paragens, ainda em uma outra encarnação. Encostou-se na
balaustrada verde militar, o que o levou a uma digressão sobre política. Não
se sabia sequer se haveria livrarias onde aquele seu novo trabalho fosse
parar. E de lá partisse para outras mãos. 14o andar. Tudo parecia ter um
gosto de descrença ultimamente.
Ah, não. A sirene. Agora era só esperar e os gritos histéricos da
adolescência transbordando hormônios na escola em frente inundariam seus
ouvidos por 30 minutos. Era tão bonito e tão incomodativo ter aquelas vidas
verdes no outro lado da rua, que às vezes ele se pegava tendo pensamentos
que não se permitiria jamais ter, não fosse acordado às 7 da manhã de
segunda a sexta por aquele mesmo escarcéu. –Vou dar uma banda.-
Chamou o elevador e viu como o frio hall podia ser aconchegante.
Meia-luz, solidão, temperatura de concreto, silêncio. O cheiro do café da
vizinha fez com que ele notasse que ainda sentia sono, os olhos ardendo.
Café, isso! Amargo que desperta e concentra. Cinco quadras caminhando
pelo bairro razoavelmente tranquilo pela manhã poderiam inclusive ajudar a
decidir as rusgas ainda presentes no destino final da personagem. Porteiro -
Bom dia, senhor - .
Ganhou a rua e preferiu fazer o caminho mais longo até a padaria,
olhar a vida em suas pequenezas com calma. Talvez o inesperado fizesse
uma surpresa, dizia uma canção da sua infância. Passou por onde existiu a
banca de jornais e revistas, hoje uma floricultura. Passou por onde existiu o
internet-café, hoje uma tabacaria. Passou por onde existiu uma livraria, hoje
apenas uma porta cerrada. Passou.
Dentro de sua cabeça transitava toda a história que cria sua, e ele
recordava alguns trechos, sorrindo levemente com o que considerava belos
achados, franzindo a testa em momentos de dúvida. Estava já atravessando
a rua quando avistou, atravessando em sentido oposto, um seu espelho.
Buscou contato, se armou em posição de sedutor, cabeça inclinada, fixo o
olhar. Bem-sucedido. O outro entrou no jogo. Meio que sorriem, desaceleram
o passo, cruzam-se, cheiro bom, olham para trás. Um ônibus surge da
esquina, acelera e espalha água passada de chuva entre eles. Quebra-se o
encanto. Seguem seus rumos.
O que era mesmo? Ah, a padaria, o café, a personagem. Tinha
prometido entregar a versão final para o editor ainda naquela tarde... Os
habitantes do bairro pareciam já estar todos de pé. Nas mesas: a mocinha
toda de preto, publicitária. Ruidosos velhos aposentados. Psicanalistas por
trás de seus óculos design. Advogados discutindo o futuro do país com o
novo governo. Secretárias polilíngues em seus tailleurs comentando o
andamento da novela das nove. Um desalento. Para quem iriam as histórias
tácteis que tanto urgiam nascer? Chegariam a alguém? Anos atrás ele havia
deixado aquele mundo comezinho para buscar algo além. E agora, prestes a
parir um novo filho, se perguntava além do quê.
O café esfriava e o croissant ainda quente jazia imóvel depois de
apenas uma mordida. Puxou o celular do bolso para ver a hora. Tinha de
voltar. Duvidava um pouco de para onde e para o quê voltava, mas tinha de
voltar. O compromisso da profissão incerta o impelia. Ele tinha poucas horas
pela frente e o texto teimava em se desdobrar em novas ideias, novas
sintaxes, velhos segredos. Pagou e saiu pelo bairro, ladeira acima, ladeira
abaixo, o prédio, o porteiro, - Já voltou? - o elevador, o apartamento, sentou-
se à frente do computador. E de novo lá vinha o zunido. Teria que esperar
passar o avião.

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