De novo o zunido supersônico das turbinas o fez parar. As formas de
viagem podiam mesmo ser as mais diversas. Queria seguir na sua. Levantou para pegar um copo de água, atravessou o escritório apinhado dos mais diversos objetos e livros, nas mais inesperadas posições. Pensava no futuro da personagem principal, que já havia mudado três vezes, uma por capricho, duas por necessidade. E agora? Execução ou redenção? Se a vida fosse ter o mesmo gosto daquela água que saía do seu filtro de barro recém- comprado, ela merecia um reinício. Pensou em olhar um pouco a cidade e, do alto do edifício sinuoso, tomar decisões que pareciam tão definitivas. O vento quente e úmido que entrou assim que abriu a porta da varanda o fez pensar em sua terra natal. Detestava aquilo com todas as suas forças, foi um dos motivos que o fizeram mudar de paragens, ainda em uma outra encarnação. Encostou-se na balaustrada verde militar, o que o levou a uma digressão sobre política. Não se sabia sequer se haveria livrarias onde aquele seu novo trabalho fosse parar. E de lá partisse para outras mãos. 14o andar. Tudo parecia ter um gosto de descrença ultimamente. Ah, não. A sirene. Agora era só esperar e os gritos histéricos da adolescência transbordando hormônios na escola em frente inundariam seus ouvidos por 30 minutos. Era tão bonito e tão incomodativo ter aquelas vidas verdes no outro lado da rua, que às vezes ele se pegava tendo pensamentos que não se permitiria jamais ter, não fosse acordado às 7 da manhã de segunda a sexta por aquele mesmo escarcéu. –Vou dar uma banda.- Chamou o elevador e viu como o frio hall podia ser aconchegante. Meia-luz, solidão, temperatura de concreto, silêncio. O cheiro do café da vizinha fez com que ele notasse que ainda sentia sono, os olhos ardendo. Café, isso! Amargo que desperta e concentra. Cinco quadras caminhando pelo bairro razoavelmente tranquilo pela manhã poderiam inclusive ajudar a decidir as rusgas ainda presentes no destino final da personagem. Porteiro - Bom dia, senhor - . Ganhou a rua e preferiu fazer o caminho mais longo até a padaria, olhar a vida em suas pequenezas com calma. Talvez o inesperado fizesse uma surpresa, dizia uma canção da sua infância. Passou por onde existiu a banca de jornais e revistas, hoje uma floricultura. Passou por onde existiu o internet-café, hoje uma tabacaria. Passou por onde existiu uma livraria, hoje apenas uma porta cerrada. Passou. Dentro de sua cabeça transitava toda a história que cria sua, e ele recordava alguns trechos, sorrindo levemente com o que considerava belos achados, franzindo a testa em momentos de dúvida. Estava já atravessando a rua quando avistou, atravessando em sentido oposto, um seu espelho. Buscou contato, se armou em posição de sedutor, cabeça inclinada, fixo o olhar. Bem-sucedido. O outro entrou no jogo. Meio que sorriem, desaceleram o passo, cruzam-se, cheiro bom, olham para trás. Um ônibus surge da esquina, acelera e espalha água passada de chuva entre eles. Quebra-se o encanto. Seguem seus rumos. O que era mesmo? Ah, a padaria, o café, a personagem. Tinha prometido entregar a versão final para o editor ainda naquela tarde... Os habitantes do bairro pareciam já estar todos de pé. Nas mesas: a mocinha toda de preto, publicitária. Ruidosos velhos aposentados. Psicanalistas por trás de seus óculos design. Advogados discutindo o futuro do país com o novo governo. Secretárias polilíngues em seus tailleurs comentando o andamento da novela das nove. Um desalento. Para quem iriam as histórias tácteis que tanto urgiam nascer? Chegariam a alguém? Anos atrás ele havia deixado aquele mundo comezinho para buscar algo além. E agora, prestes a parir um novo filho, se perguntava além do quê. O café esfriava e o croissant ainda quente jazia imóvel depois de apenas uma mordida. Puxou o celular do bolso para ver a hora. Tinha de voltar. Duvidava um pouco de para onde e para o quê voltava, mas tinha de voltar. O compromisso da profissão incerta o impelia. Ele tinha poucas horas pela frente e o texto teimava em se desdobrar em novas ideias, novas sintaxes, velhos segredos. Pagou e saiu pelo bairro, ladeira acima, ladeira abaixo, o prédio, o porteiro, - Já voltou? - o elevador, o apartamento, sentou- se à frente do computador. E de novo lá vinha o zunido. Teria que esperar passar o avião.