Você está na página 1de 540

Liber Novus

O "Livro Verm elho"


de C G . Jun g1
SO N U SH AMD ASAN I
C G . J U N G é a m p l a m e n t e r e c o n h e c id o c o m o u m a figu r a p r o e m i n e n t e n o
p e n s a m e n t o o c i d e n t a l m o d e r n o , e se u t r a b a lh o c o n t i n u a a p r o d u z i r c o n t r o -
vé r sia s. E l e t e ve u m p a p e l i m p o r t a n t e n a fo r m a ç ã o d a p sico lo gia , d a p s ic o t e -
r a p i a e d a p s i q u i a t r i a m o d e r n a s , e u m a gr a n d e c o m u n i d a d e i n t e r n a c i o n a l d e
p s ic ó lo go s a n a lít ico s t r a b a lh a sob s e u n o m e . En t r e t a n t o , se u t r a b a lh o o b t e ve
o i m p a c t o m a is a m p l o fo r a d o s cír cu lo s p r o fissio n a is: q u a n d o a m a i o r i a d as
p esso as p e n s a e m p sico lo gia , Ju n g e F r e u d sã o os n o m e s q u e a p a r e c e m e m p r i -
m e i r o lu gar , e su as id e ia s fo r a m a m p l a m e n t e d is s e m in a d a s n as a r t e s, n a s h u -
m a n id a d e s , n o c i n e m a e n a c u l t u r a p o p u la r . Ju n g t a m b é m é m u i t o r e c o n h e c id o
c o m o u m d o s p r o vo ca d o r e s d e m o vi m e n t o s N e w Age . Co n t u d o , é e sp a n t o so
p e r c e b e r q u e o l i vr o q u e e st á n o c e n t r o d e s u a o b r a , n o q u a l t r a b a l h o u p o r m a is
d e d e z e sse is a n o s, só a go r a se ja p u b lica d o .

P r o va ve l m e n t e e xi s t e m p o u c o s t r a b a lh o s inéditos q u e e xe r c e r a m e fe it o s t ã o
va st o s so b r e a h i s t ó r i a s o c ia l e i n t e l e c t u a l d o s é c u lo X X q u a n t o o Livro Verm elho
d e Ju n g , o u Liher Novus [ Li v r o N o v o ] . A s s i m c h a m a d o p o r Ju n g p o r c o n t e r o
n ú c l e o d e seu s t r a b a lh o s t a r d io s , já fo i r e c o n h e c i d o c o m o a ch a ve p a r a a c o m -
p r e e n s ã o d a g é n e s e d esses t r a b a lh o s . A i n d a a s s i m , a p e sa r d e já t e r m o s t i d o
d e le a lgu n s p o u co s vi s l u m b r e s a t o r m e n t a d o r e s , p e r m a n e c e u a t é a go r a i n d i s -
p o n í ve l p a r a e st u d o .

I O presente ensaio segue, às vezes diretamente, minha reconstrução da formação da psicologia de Jung em
Jung and theMakíngof Modem Psychology. Th e Dream of a Science. Cambridge: Cambridge University Press,
2003. Jung refere-se ao trabalho tanto como Líber Novus quanto como O Livro Vermelho, como ficou mais
universalmente conhecido. Com o há indicações de que o primeiro é o título verdadeiro, refiro-me a ele
como tal ao longo da Introdução por uma questão de coerência. Esse assunto é tratado de maneira mais
completa em meu livro: C.G.Jung: uma biografia em livros (Petrópolis: Vozes, no prelo).
2 LÍ BE R N O V U S

O m om ento cultural
A s p r i m e i r a s d é c a d a s d o sé c u lo X X t e s t e m u n h a r a m u m a b o a d o se d e e xp e r i -
m e n t a ç ã o n a l i t e r a t u r a , n a p sic o lo gia e n a s a r t e s vis u a is . Es c r i t o r e s t e n t a r a m
a b o lir os l i m i t e s d as c o n ve n ç õ e s d a r e p r e s e n t a ç ã o a f i m d e e xp l o r a r e m o s t r a r
t o d o o e sp e ct r o d a e xp e r i ê n c i a i n t e r i o r - so n h o s, vis õ e s e fa n t a sia s. El e s e x-
p e r i m e n t a r a m c o m n o va s fo r m a s e u t i l i z a r a m fo r m a s ve lh a s d e je it o s n o vo s.
D a e s c r it a a u t o m á t i c a d o s su r r e a list a s às fa n t a sia s gó t ic a s d e Gu s t a v M e yr i n k ,
os e scr it o r e s a p r o xi m a r a m - s e e c o l i d i r a m c o m as p e sq u isa s d e p s ic ó lo g o s q u e
e s t a va m e n vo lvid o s e m e xp lo r a ç õ e s se m e lh a n t e s. Ar t i s t a s e e scr it o r e s c o la b o -
r a r a m e m t e n t a t iva s d e n o va s fo r m a s d e ilu st r a çã o e t ip o gr a fia , n o va s c o n fi g u -
r a ç õ e s d e t e xt o e im a g e m . P s ic ó lo go s b u s c a r a m ve n c e r os l i m i t e s d e u m a p s i c o -
lo gia filo só fica , e c o m e ç a r a m a e xp l o r a r o m e s m o t e r r e n o q u e a r t ist a s e e s c r i -
t o r e s. D e m a r c a ç õ e s cla r a s e n t r e l i t e r a t u r a , a r t e e p sico lo gia a i n d a n ã o h a vi a m
sid o e st a b e le cid a s; e scr it o r e s e a r t ist a s e m p r e s t a va m id e ia s d e p s ic ó lo g o s e vic e
ve r sa . I m p o r t a n t e s p s ic ó lo go s , t a is c o m o Al f r e d Bi n e t e Ch a r l e s Ri c h e t , e s-
c r e ve r a m t r a b a lh o s fic c io n a is e d r a m á t i c o s , fr e q u e n t e m e n t e sob p s e u d ó n i m o s ,
cu jo s t e m a s e s p e lh a va m a q u e le s d e seu s t r a b a lh o s "c ie n t ífic o s " 2 . Gu s t a v F e c h -
n er , u m d o s fu n d a d o r e s d a p sico física e d a p sico lo gia e xp e r i m e n t a l , e s c r e ve u
so b r e a v i d a d a a l m a d as p la n t a s e so b r e a T e r r a c o m o u m a n jo a z u l 3 . A o m e s m o
t e m p o , e scr it o r e s t a is c o m o An d r é Br e t o n e P h i l i p p e So u p a u lt c o n s t a n t e m e n t e
l i a m e u t i l i z a va m os t r a b a lh o s d e p e sq u isa d o r e s p s íq u ic o s e p s ic ó lo g o s d a a n o r -
m a lid a d e , t a is c o m o Fr e d e r i c k M ye r s , T h é o d o r e F l o u r n o y e P i e r r e Ja n e t . W B .
Ye a t s u t i l i z o u a e s c r it a a u t o m á t i c a e s p ir it u a lis t a p a r a c o m p o r u m a p s ic o c o s -
m o lo g ia p o é t ic a e m A Vision 4. E m t o d o s os ca n t o s, i n d i ví d u o s p r o c u r a va m n o va s
fo r m a s c o m as q u a is r e p r e s e n t a r as r e a lid a d e s d a e xp e r i ê n c i a i n t e r i o r , n u m a
b u s c a p o r r e n o va ç ã o c u lt u r a l e e s p ir it u a l. E m Be r l i m , H u g o Ba l l n o t o u :

O m u n d o e a socied ad e e m 1913 p a r e cia m assim : á vi d a est á co m p le t a m e n t e


co n fin a d a e algem ad a. U m t ip o de fat alism o e co n ó m ico p revalece; cad a i n -

2 Cf. CARRO Y, Jacqueline. Lespersonnalités multiples et doubles: entre science et fiction. Paris: P U F, 1993.
3 Cf. F E C H N E R , Gustav Theodor. The RelígionofaScíentíst. Nova York: Pantheon, 1946 [organizado e
traduzido por Walter Lowrie].
4 Cf. ST AR O BI N SKI , Jean. "Freud, Breton, Myers". In : Lbeuíl vívante lT. La relation critique. Paris:
Gallim ard, 1970. • YEAT S, W B. A Vision. Londres: Werner Laurie, 1925. Jung possuía uma cópia do
último.
I N T RO D U ÇÃO 3

d ivíd u o , q u er ele r e sist a o u n ão, é en car r egad o d e u m p ap el esp ecífico e c o m


ele seus in t er esses e seu carát er. A Igr e ja é en car ad a co m o u m a "fáb r ica d e
r e d e n çã o " de p o u ca im p o r t â n cia , a lit e r a t u r a co m o u m a válvu la de escape...
A p e r gu n t a m ais in can d escen t e n o it e e d ia é: h a ve r á e m a lgu m lu gar u m a
for ça p o t en t e o su ficien t e p a r a acab ar co m est e est ad o de coisas? E , se n ão,
co m o escap ar m os? 5

E m m e i o a essa cr ise c u lt u r a l, Ju n g c o n s i d e r o u le va r a d ia n t e u m e xt e n s o p r o -
cesso d e a u t o e xp e r i m e n t a ç ã o , q u e r e s u l t o u n o Líber Novus, u m t r a b a lh o d e p s i -
co lo gia e m fo r m a t o lit e r á r io .
Es t a m o s h o je d o o u t r o la d o d e u m a d ivis ã o e n t r e p sico lo gia e li t e r a t u r a .
Co n s i d e r a r o Líber Novus h o je é e n c a r a r u m t r a b a lh o q u e s o m e n t e p o d e t e r
e m e r gid o a n t e s q u e essa s e p a r a ç ã o h o u ve sse sid o fi r m e m e n t e e st a b e le cid a . Se u
e st u d o a ju d a - n o s a c o m p r e e n d e r c o m o o c o r r e u a d ivisã o . M a s , a n t e s, d e ve m o s
p e r gu n t a r ,

Q u em foi C G . Jung>
Ju n g n a s c e u e m Ke s s w i l , n o lago d e Co n s t a n ç a , e m 1875. Su a fa m ília m u d o u - s e
p a r a La u fe n , ju n t o aos R h i n e Fa lis, q u a n d o ele t i n h a seis m e se s d e vi d a . E l e e r a
o filh o m a is ve lh o e t i n h a u m a ir m ã . Se u p a i e r a u m p a st o r d a I g r e ja Su íç a R e -
fo r m a d a . P e r t o d o f i m d e su a vi d a , Ju n g e sc r e ve u u m a m em oír i n t i t u l a d a "So b r e
as e xp e r iê n c ia s m a is a n t iga s d e m i n h a vi d a ", q u e fo i s u b s e q u e n t e m e n t e in c lu í-
d a e m Mem órias, Sonhos, Reflexões e m fo r m a t o i n t e n s a m e n t e e d it a d o 6 . Ju n g n a r r a va
os e ve n t o s sign ifica t ivo s q u e o l e va r a m à su a vo c a ç ã o p sic o ló gic a . A m em oír, c o m
se u fo co e m so n h o s, vis õ e s e fa n t a sia s sign ifica t ivo s d a in fâ n cia , p o d e se r e n c a -
r a d a c o m o u m a i n t r o d u ç ã o ao Líber Novus.

N o p r i m e i r o so n h o , ele se e n c o n t r a va n u m a c a m p i n a c o m u m b u r a c o d e
p e d r a s a lin h a d a s, n o ch ã o . En c o n t r a n d o u m a escad a, ele d e s c e u p a r a d e n t r o

5 Hugo Ball, FlightoutofTime: A Dada Diary, ed. John Elderfield, Berkeley: University of Califórnia Press,
1996, p. 1 [tradução de A. Raim es].
6 Sobre como o livro erroneamente veio a ser visto como a autobiografia de Jung, cf. meu JungStripped Bare by
bis Biographers, Even. Londres: Karn ac, 2004, cap. I : "'H ow to catch the bird': Jung and his first biographers".
C f tb. ELM S, Alan . "Th e auntification of Jung". In : Uncoveríng Lives: Th e Uneasy Alliance of Biography and
Psychology. Nova York: O xford University Press, 1994.
4 LÍ BER N O V U S

d o b u r a c o e e n c o n t r o u - s e n u m a c â m a r a . A l i h a vi a u m t r o n o d o u r a d o , e o q u e

p a r e c ia u m t r o n c o d e á r vo r e c o m p e le e c a r n e , c o m u m o lh o n o t o p o . E l e e n t ã o

o u vi a a vo z d e su a m ã e d i z e r q u e est e e r a o "c o m e d o r d e h o m e n s ". E l e n ã o t i n h a

c e r t e z a se su a m ã e q u e r i a d i z e r q u e e st a figu r a d e fat o d e vo r a va cr ia n ça s, o u

e r a id ê n t ic a a Cr i s t o . Isso a fe t o u p r o fu n d a m e n t e su a i m a g e m d e Cr i s t o . An o s

m a is t a r d e , ele p e r c e b e u q u e essa figu r a e r a u m p ê n is e, a i n d a m a is t a r d e , q u e

e r a d e fat o u m falo r i t u a l , e q u e o c e n á r io e r a u m t e m p l o s u b t e r r â n e o . E l e ve i o

a e n t e n d e r esse s o n h o c o m o u m a in ic ia ç ã o "n o s m is t é r io s d a t e r r a " 7 .

E m su a in fâ n cia , Ju n g e xp e r i m e n t o u a lgu m a s a lu c in a ç õ e s vis u a is . P a r e ce

q u e t a m b é m t i n h a a ca p a cid a d e d e e vo ca r im a ge n s vo l u n t a r i a m e n t e . N u m se -

m in á r io , e m 1935, ele se l e m b r o u d e u m r e t r a t o d e su a a vó m a t e r n a q u e ele

c o s t u m a va o lh a r q u a n d o m e n i n o a t é q u e "v i u " se u a vô d e sce n d o as e sca d a s 8 .

N u m d i a d e so l, q u a n d o Ju n g t i n h a d o z e a n o s, ele a t r a ve ssa va o M ú n s t e r -

p la t z n a Ba s ile ia , a d m i r a n d o o so l b a t e n d o n o s a z u le jo s r e c é m - r e s t a u r a d o s d o

t e t o d a ca t e d r a l. En t ã o s e n t i u a a p r o xi m a ç ã o d e u m p e n s a m e n t o t e r r íve l e p e -

c a m in o s o , q u e t e n t o u m a n d a r e m b o r a . F i c o u a n gu st ia d o p o r vá r io s d ia s. F i n a l -

m e n t e , a p ó s c o n ve n c e r a s i m e s m o d e q u e e r a D e u s q u e q u e r i a q u e ele p e n sa sse

esse p e n s a m e n t o , a s s im c o m o fo i D e u s q u e q u is q u e Ad ã o e E v a p e ca sse m , p e r -

m i t i u - s e c o n t e m p l á - l o , e v i u D e u s e m se u t r o n o d e sp e ja r u m p o d e r o s o m o n t e

d e e xc r e m e n t o so b r e a ca t e d r a l, a r r a s a n d o s e u n o vo t e lh a d o e e s t r a ç a lh a n d o a

ca t e d r a l. C o m isso, Ju n g s e n t i u u m a fe licid a d e e u m a lívio c o m o n u n c a t i n h a

se n t id o . Se n t i u q u e essa e r a u m a e xp e r i ê n c i a d o "d ir e c t l i vi n g Go d . . . " 9 E l e s e n -

t iu - s e s o z i n h o p e r a n t e D e u s , e s e n t i u q u e s u a r e a l r e sp o n sa b ilid a d e c o m e ç a va

a li. P e r c e b e u q u e fo i p r e c is a m e n t e t a l e xp e r i ê n c i a d i r e t a e i m e d i a t a d o D e u s

vivo , q u e e st á fo r a d a I g r e ja e d a Bíb lia , q u e fa lt a va a se u p a i.

Es s e s e n t id o d e p r e d e s t i n a ç ã o le vo u - o a u m a d e s ilu s ã o fin a l c o m a Igr e ja n a

o c a s iã o d e su a P r i m e i r a C o m u n h ã o . E l e t i n h a sid o le va d o a a c r e d it a r q u e e st a

s e r ia u m a gr a n d e e xp e r iê n c ia . A o c o n t r á r io , n a d a d isso . C o n c l u i u : "P a r a m i m

fo i u m a a u s ê n c ia d e D e u s e d e r e ligiã o . A I g r e ja t o r n o u - s e u m lu ga r a o n d e e u

n ã o p o d e r i a m a is ir . A l i n ã o h a vi a vi d a , m a s m o r t e . " 10

7 Mem órias, p. 28.


8 Th e Tavistock Lectures". O C , 18, § 397.
9 Mem órias, p. 54.
10 Ibid., p. 61.
I N T RO D U ÇÃO 5

A vo r a c id a d e d e l e i t u r a d e Ju n g c o m e ç o u n esse p e r í o d o , e ele fi c o u p a r t i -
c u l a r m e n t e i m p r e s s i o n a d o c o m Fausto d e Go e t h e . I m p r e s s i o n o u - o o fat o d e
q u e , c o m M e fis t ó fe le s , Go e t h e l e vo u a figu r a d o d ia b o a sé r io . N a filo so fia ,
i m p r e s s i o n o u - o Sc h o p e n h a u e r , q u e r e c o n h e c i a a e xis t ê n c ia d o m a l e d e u vo z
aos s o fr im e n t o s e m is é r ia s d o m u n d o .

Ju n g t a m b é m t i n h a a i m p r e s s ã o d e vi ve r e m d o is sé cu lo s, e s e n t ia u m a fo r t e
n o st a lgia p e lo sé cu lo X V I I I . Su a s e n s a ç ã o d e d u a lid a d e t o m o u a fo r m a d e d u a s
p e r so n a lid a d e s a lt e r n a d a s, q u e c u n h o u d e n ú m e r o i e n ú m e r o 2. P e r so n a lid a d e
n ú m e r o I e r a o ga r o t o a lu n o d a Ba s i le i a , q u e l i a r o m a n c e s , e p e r s o n a lid a d e
n ú m e r o 2 e r a a q u e s o l i t a r i a m e n t e p e r se gu ia r e fle xõ e s r e ligio sa s, n u m e st a d o
d e c o m u n h ã o c o m a n a t u r e z a e c o m o co sm o . E l a h a b it a va o "m u n d o d e D e u s ".
Es s a p e r s o n a lid a d e lh e p a r e c ia m u i t o r e a l. A p e r s o n a lid a d e n ú m e r o I q u e r i a
se l i vr a r d a m e l a n c o l i a e d o i s o l a m e n t o d a p e r s o n a lid a d e n ú m e r o 2. Q u a n d o
e n t r a va a p e r s o n a lid a d e n ú m e r o 2, p a r e c ia q u e u m e s p ír it o h á m u i t o t e m p o
m o r t o e a i n d a p e r p e t u a m e n t e p r e se n t e e n t r a va n a sala. A n ú m e r o 2 n ã o t i n h a
u m c a r á t e r d e fin id o ; e r a c o n e c t a d a à h ist ó r ia , e s p e c ia lm e n t e c o m a Id a d e M é -
d ia . P a r a a n ú m e r o 2, a n ú m e r o I , c o m seu s fr acassos e i n a p t i d õ e s , e r a a lg u é m
p a r a se agu en t ar . Es s e jo go p e r m a n e c e u d u r a n t e t o d a a v i d a d e Ju n g. D o m o d o
c o m o ele as e n ca r a va , so m o s t o d o s a s s im - u m a p a r t e d e n ó s vi ve n o p r e se n t e
e o u t r a e s t á c o n e c t a d a c o m os sé cu lo s.

Q u a n d o se a p r o xi m o u o m o m e n t o p a r a ele d e e sco lh e r u m a c a r r e i r a , o c o n -
flito e n t r e as d u a s p e r so n a lid a d e s in t e n s ific o u - s e . A n ú m e r o I q u e r i a as c i ê n -
cias, a n ú m e r o 2, as h u m a n i d a d e s . Ju n g t eve e n t ã o d o is so n h o s i m p o r t a n t e s . N o
p r i m e i r o , ele e st a va a n d a n d o n u m b o sq u e e scu r o p e r t o d o Re n o . D e p a r o u - s e
c o m u m t ú m u l o e c o m e ç o u a c a vá - lo , a t é d e s c o b r ir r e st o s d e a n i m a i s p r é - h i s -
t ó r ico s. Es t e s o n h o d e s p e r t o u n e le a vo n t a d e d e sa b e r m a is so b r e a n a t u r e z a .
N o se gu n d o so n h o , ele e st a va n u m b o sq u e , e h a vi a r ia c h o s. E n c o n t r o u e n t ã o
u m lago ce r ca d o d e d e n s a ve g e t a ç ã o r a st e ir a . N o lago, v i u u m a b e la c r ia t u r a , u m
e n o m e r a d io lá r io . Ap ó s esses so n h o s, o p t o u p ela s ciê n cia s. P a r a r e s o lve r a q u e s-
t ã o d e c o m o ga n h a r a vi d a , d e c i d i u e st u d a r m e d i c i n a . En t ã o t e ve o u t r o so n h o .
Es t a va n u m lu ga r d e sco n h e cid o , c o b e r t o d e n e b l i n a , a va n ç a n d o va g a r o s a m e n -
t e c o n t r a o ve n t o . E l e e st a va p r o t e ge n d o u m a p e q u e n a l u z d e a p a ga r -se . V i u
e n t ã o u m a e n o r m e c r i a t u r a p r e t a a m e d r o n t a d o r a m e n t e p r ó xi m a . Ac o r d o u , e
p e r c e b e u q u e a figu r a e r a a s o m b r a q u e a l u z p r o je t a va . P e n s o u q u e , n o so n h o ,
a n ú m e r o I e st a va e la m e s m a le va n d o a lu z , e q u e a n ú m e r o 2 se gu ia c o m o u m a
6 LÍ BE R N O V U S

s o m b r a . En c a r o u isso c o m o u m s i n a l d e q u e ele d e vi a se gu ir c o m a n ú m e r o I , e
n ã o o l h a r p a r a t r á s p a r a o m u n d o d a n ú m e r o 2.

E m seu s d ia s d e u n ive r s id a d e , o jo go e n t r e essas d u a s p e r so n a lid a d e s c o n -


t i n u o u . E m a c r é s c i m o a seu s e st u d o s m é d i c o s , Ju n g se gu iu u m p r o g r a m a i n -
t e n s ivo d e le it u r a s e xt r a c u r r i c u la r e s , e m e sp e cia l d as o b r a s d e N i e t z s c h e ,
Sch o p e n h a u e r , Sw e d e n b o r g 11, e a u t o r e s e s p ir it u a lis t a s . Assim falava Zaratustra, d e
N i e t z s c h e , c a u s o u - lh e gr a n d e im p r e s s ã o . Se n t i a q u e s u a p r ó p r i a p e r s o n a lid a d e
n ú m e r o 2 c o r r e s p o n d i a a Za r a t u s t r a , e t e m i a q u e e la fosse s e m e l h a n t e m e n t e
m ó r b i d a 12 . El e p a r t i c i p o u d e u m a so cie d a d e e s t u d a n t i l d e d e b a t e s, a So cie d a d e
Zo fi n g i a , e lá a p r e s e n t o u p a le st r a s so b r e esses t e m a s. Es p e c i a l m e n t e o e s p i -
r i t u a l i s m o o in t e r e s s a va m u i t o , já q u e p a r e c ia q u e os e s p ir it u a lis t a s e s t a va m
t e n t a n d o u t i l i z a r m e io s c ie n t ífic o s p a r a e xp l o r a r o s o b r e n a t u r a l, e p a r a p r o va r
a i m o r t a l i d a d e d a a lm a .

A se gu n d a m e t a d e d o sé c u lo X I X t e s t e m u n h o u a e m e r g ê n c i a d o e s p i r i t u -
a lis m o m o d e r n o , q u e se e s p a lh o u p e la Eu r o p a e Am é r i c a . P o r m e i o d o e s p i r i -
t u a lism o , o c u lt ivo d e t r a n se s — c o m os c o n c o m i t a n t e s fe n ó m e n o s d a fa la d e
t r a n se , d a glo sso la lia , d a e s c r it a a u t o m á t i c a e d a vis ã o d e c r is t a l - t orn ou -se
d is s e m in a d o . O s fe n ó m e n o s e s p ir it u a lis t a s a t r a ír a m o in t e r e sse d e c ie n t is t a s
i m p o r t a n t e s t a is c o m o Cr o o k e s , Zo l l n e r e W a l l a c e . T a m b é m a t r a ír a m o i n t e -
r esse d e p s ic ó lo g o s , i n c l u i n d o Fr e u d , Fe r e n c z i , Ble u le r , Ja m e s, M ye r s , Ja n e t ,
Be r gs o n , St a n le y H a l l , Sc h r e n c k - N o t z i n g , M o l l , D e s s o ir , Ri c h e t e Flo u r n o y.
D u r a n t e seu s d ia s d e u n ive r s it á r io n a Ba s i le i a , Ju n g e seu s colegas p a r t i c i -
p a va m d e se ssõ e s. E m 18 9 6 , eles t i ve r a m u m a lo n ga sé r ie d e e n c o n t r o s c o m
su a p r i m a H é l è n e P r e i s w e r k , q u e p a r e c ia t e r h a b ilid a d e s m e d iú n ic a s . Ju n g
d e s c o b r i u q u e d u r a n t e os t r a n se s e la a s s u m i a p e r so n a lid a d e s d ife r e n t e s e q u e
ele p o d i a c h a m a r essas p e r so n a lid a d e s a t r a vé s d e su ge st ã o . P a r e n t e s m o r t o s

11 Emmanuel Swedenborg (1688-1772) foi um cientista sueco e um místico cristão. Em 1743, ele atravessou
uma crise religiosa, que está descrita em seu Diário de sonhos. Em 1745, ele teve uma visão do Cristo. Ele então
devotou sua vida a relacionar o que tinha visto e ouvido nos céus e na terra e aprendido com os anjos, e
a interpretar os significados internos e simbólicos da Bíblia. Swedenborg argumentava que a Bíblia tinha
dois níveis de sentido: um nível físico e literal, e um outro interno, espiritual. Esses níveis se interligavam
por correspondências. Ele proclamava o advento de uma "nova igreja" que representava uma nova era
espiritual. De acordo com Swedenborg, no nascimento adquirimos males de nossos pais que estão alojados
no homem natural, que está diametricamente em oposição ao homem espiritual. O homem está destinado
para o céu, e lá não pode chegar sem regeneração espiritual e um novo nascimento. Os meios para isso
repousam na caridade e na fé. Cf. T AYLO R , Eugen. "Jung on Swedenborg, redivivus". JM«£ History, 2, 2,
2007, p. 27-31.
12 Mem órias, p. 99.
I N T RO D U ÇÃO 7

a p a r e c ia m , e e la se t r a n s fo r m a va c o m p l e t a m e n t e n essas figuras. E l a r e ve la va
h ist ó r ia s d e su as e n c a r n a ç õ e s a n t e r io r e s e a r t i c u la va u m a c o s m o lo gia m íst ic a ,
r e p r e s e n t a d a n u m m a n d a l a 13 . Su a s r e ve la ç õ e s e s p ir it u a lis t a s c o n t i n u a r a m a t é
e la se r p e ga t e n t a n d o s i m u l a r a p a r iç õ e s físicas, e as se ssõ e s foram e n ce r r a d a s.

A o le r o Manual de Psiquiatria d e R i c h a r d v o n Kr a f f t - E b i n g e m 18 9 9 , ele p e r -


c e b e u q u e s u a vo c a ç ã o e st a va n a p s iq u ia t r ia , q u e r e p r e s e n t a va u m a fu sã o d o s
in t e r e sse s d e su as d u a s p e r so n a lid a d e s. Ju n g p a sso u , p o r a s s i m d iz e r , p o r u m a
c o n ve r s ã o a u m e n q u a d r e c ie n t ífic o n a t u r a l. D e p o i s d e c o m p le t a r seu s e st u d o s
m é d i c o s , a s s u m i u u m p o st o c o m o m é d i c o a ssist e n t e n o h o s p i t a l Bu r g h õ lz li n o
fin a l d e 19 0 0 . O Bu r g h õ lz li e r a u m a clín ica d e u n ive r s id a d e c o m u m c l i m a
p r o gr e ssivo , sob a d ir e ç ã o d e Eu g e n Ble u le r . N o fin a l d o sé cu lo X I X , m u i t a s
figu r as t e n t a r a m fu n d a r u m a n o va p sico lo gia cie n t ífica . M a n t i n h a - s e q u e , ao
t o r n a r a p sico lo gia u m a c iê n c ia a t r a vé s d a i n t r o d u ç ã o d e m é t o d o s cie n t ífico s,
t o d a s as fo r m a s a n t e r io r e s d e c o m p r e e n s ã o h u m a n a s e r i a m r e vo lu c io n a d a s . N a
n o va p s ic o lo gia co lo ca va - se a p r o m e s s a d e n a d a m e n o s q u e c o m p le t a r a r e vo -
lu ç ã o cie n t ífica . Gr a ç a s a Bl e u l e r e se u a n t e ce sso r , Au g u s t e Fo r e l , a p e sq u isa
p s ic o ló gic a e a h ip n o s e t i n h a m lu ga r d e d e st a q u e n o Bu r gh õ lz li.
A d is s e r t a ç ã o m é d i c a d e Ju n g fo c a liz a va a p s ic o g ê n e s e d o s fe n ó m e n o s e s-
p ir it u a líst ic o s, n a fo r m a d e u m a a n á lise d e su as se ssõ e s c o m su a p r i m a H é l è -
n e P r e i s w e r k 14 . En q u a n t o q u e se u in t e r e sse i n i c i a l e m s e u caso p a r e c ia se r a
p o s s íve l ve r a c id a d e d e su as m a n ife s t a ç õ e s e sp ir it u a líst ica s, n esse í n t e r i m ele
h a vi a e st u d a d o os t r a b a lh o s d e Fr e d e r i c M ye r s , W i l l i a m Ja m e s e, e m e sp e cia l,
T h é o d o r e Flo u r n o y. N o fin a l d e 18 9 9 , F l o u r n o y p u b l i c o u u m e st u d o so b r e
u m a m é d i u m , q u e ele c h a m o u d e H é l è n e Sm i t h , q u e se t o r n o u u m besPsellerl\
A n o vid a d e n o e st u d o d e F l o u r n o y é q u e ele a b o r d a va o caso i n t e i r a m e n t e a
p a r t i r d o â n gu lo p s ic o ló gic o , c o m o u m m e i o d e i l u m i n a r o e st u d o d a c o n s c i -
ê n c ia s u b lim in a r . U m a vi r a d a i m p o r t a n t e h a vi a sid o d a d a p e lo s t r a b a lh o s d e
Flo u r n o y, Fr e d e r i c k M ye r s e W i l l i a m Ja m e s. El e s a r g u m e n t a va m q u e i n d e -
p e n d e n t e m e n t e d as su p o st a s e xp e r iê n c ia s e sp ir it u a líst ica s s e r e m vá lid a s , t ais
e xp e r iê n c ia s p r o p o r c i o n a r a m insights m u i t o p r o fu n d o s so b r e a c o n s t it u iç ã o d o

13 Cf. O C, i , § 66, fig. 2.


14 Sobre a psicologia e a patologia dos fenómenos chamados ocultos". O C , I .
15 F LO U RN O Y. Théodore. From índia to the PlanetMars: A Case of Multiple Personality wit h Imaginary
Languages. Princeton: Princeton University Press, 1900/ 1994 [organizado por Sonu Shamdasani;
traduzido por D. Verm ilye].
8 LÍ BE R N O V U S

s u b l i m i n a r e, p o r t a n t o , d a p s ic o lo gia h u m a n a c o m o u m t o d o . P o r m e i o d e la s,
m é d i u n s t o r n a r a m - s e su je it o s i m p o r t a n t e s d a n o va p sico lo gia . C o m essa v i r a -
d a , o s m é t o d o s u t i li z a d o s p e lo s m é d i u n s , t a is c o m o e s c r it a a u t o m á t ic a , d is c u r s o
d e t r a n se , vis ã o d e c r is t a l, fo r a m a p r o p r ia d o s p e lo s p s ic ó lo g o s e t o r n a r a m - s e
fe r r a m e n t a s p r o e m i n e n t e s d a p e sq u isa e xp e r i m e n t a l . N a p s ic o t e r a p ia , P i e r r e
Ja n e t e M o r t o n P r i n c e u s a r a m a e s c r it a a u t o m á t i c a e a l e i t u r a d e c r is t a is c o m o
m é t o d o s p a r a a r e ve la ç ã o d e m e m ó r i a s o cu lt a s e id e ia s fixa s su b co n scie n t e s. A
e s c r it a a u t o m á t i c a t r o u xe à l u z su b p e r so n a lid a d e s, e p e r m i t i u o e s t a b e le c im e n -
t o d e d iá lo g o c o m e l a s 16 . P a r a Ja n e t e P r i n c e , o o b je t ivo d e se c o n s id e r a r t a is
p r á t ica s e r a a r e in t e g r a ç ã o d a p e r so n a lid a d e .

Ju n g fic a r a t ã o e st u sia sm a d o c o m o l i vr o d e F l o u r n o y q u e se o fe r e c e u p a r a
t r a d u z i - l o p a r a o a le m ã o , m a s F l o u r n o y já t i n h a u m t r a d u t o r . O i m p a c t o d e s-
ses e st u d o s fic a c la r o n a d is s e r t a ç ã o d e Ju n g, n a q u a l s u a a b o r d a ge m a o caso é
p u r a m e n t e p sic o ló gic a . O t r a b a lh o d e Ju n g t e ve c o m o m o d e lo m a is p r ó xi m o
From índia to the Planet Mars, d e Flo u r n o y, t a n t o e m t e r m o s d o a ssu n t o q u a n t o d e
su a i n t e r p r e t a ç ã o d a p s ic o g ê n e s e d o s r o m a n c e s e sp ir it u a líst ic o s d e H é l è n e . A
d is s e r t a ç ã o d e Ju n g t a m b é m i n d i c a a m a n e i r a n a q u a l e le u t i l i z a va a e s c r it a a u -
t o m á t i c a c o m o u m m é t o d o d e in ve s t iga ç ã o p s ic o ló gic a .

E m 19 0 2, e le n o i vo u E m m a Ra u s c h e n b a c h , c o m q u e m se ca so u e c o m q u e m
t eve c i n c o filh o s. A t é esse m o m e n t o , Ju n g m a n t i n h a u m d iá r io . N u m d o s ú l -
t i m o s r e gist r o s, d a t a d o d e m a i o d e 19 0 2, e scr e ve : " N ã o e s t o u m a is s o z i n h o
c o m igo m e s m o , e s ó a r t i fi c i a l m e n t e p o sso r e c o r d a r - m e o s e n t i m e n t o a ssu st a -
d o r e b e lo d a so lid ã o . Es t e é o la d o s o m b r i o d a so r t e d o a m o r " 17 . P a r a Ju n g, s e u
c a s a m e n t o m a r c o u u m m o vi m e n t o p a r a lo n ge d a s o lid ã o c o m a q u a l h a vi a se
a co st u m a d o .

E m s u a ju ve n t u d e , Ju n g fr e q u e n t e m e n t e vi s i t a va o m u s e u d e a r t e d a Ba s i l e i a
e se n t ia - se e s p e c ia lm e n t e a t r a íd o p elas o b r a s d e H o l b e i n e Bõ c k l i n , a s s im c o m o
p e lo s p in t o r e s h o la n d e s e s 18 . P e r t o d o fi n a l d e seu s e st u d o s, d u r a n t e u m a n o ,
e st e ve b a st a n t e o c u p a d o c o m a p i n t u r a . Su a s p i n t u r a s d esse p e r í o d o e r a m p a i -
sagen s n u m e st ilo r e p r e s e n t a c io n a l e m o s t r a m h a b ilid a d e s t é cn ica s a lt a m e n t e

16 JAN ET , Pierre. Névroses et ídéefixes. Paris: Alcan , 1898. • P R I C E , Morton. Clinicai and Experim ental Studíes
inPersonality. Cambridge, Mass.: Sci-Art , 1929. Cf. meu "Automatic writin g and the discovery of the
unconscious". Spring-.JournalofArchetypeandCulture, 54,1993, p. 100-131.
17 Livro Negro 2, p. 1 [todo o conteúdo dos Livros Negros está em AFj].
18 MP, p. 164.
I N T RO D U ÇÃO 9

d e se n vo lvid a s e gr a n d e d e s e n vo lt u r a t é c n i c a 19 . E m 19 0 2- 19 0 3, Ju n g d e i xo u se u
p o st o n o Bu r g h õ lz li e fo i a P a r is p a r a e st u d a r c o m o e m i n e n t e p s ic ó lo g o fr a n -
cê s P i e r r e Ja n e t , q u e e st a va d a n d o au las n o Co l l è g e d e Fr a n c e . D u r a n t e s u a e s-
t a d a , p a ssa va m u i t o t e m p o p i n t a n d o e vi s i t a n d o m u s e u s , i n d o c o n s t a n t e m e n t e
ao Lo u vr e . P r e s t a va m u i t a a t e n ç ã o e s p e c ia lm e n t e e m a r t e a n t iga , a n t igu id a d e s
e gíp cia s, n a s o b r a s d a Re n a s c e n ç a , F r a An g é l i c o , Le o n a r d o d a Vi n c i , Ru b e n s e
Fr a n s H a l s . C o m p r o u q u a d r o s e gr a vu r a s e e n c o m e n d o u c ó p ia s p a r a a d e c o r a -
ç ã o d e se u n o vo lar . P i n t a va t a n t o ó le o s q u a n t o a q u a r e la s. E m ja n e i r o d e 19 0 3,
fo i a Lo n d r e s e vi s i t o u seu s m u s e u s , p a r t i c u l a r m e n t e in t e r e ssa d o n a s c o le ç õ e s
e gíp cia , a st e ca e i n c a d o M u s e u Br i t â n i c o 2 0 .
N a s u a vo lt a , a s s u m i u u m ca r go q u e h a vi a va ga d o n o Bu r g h õ lz li, e d e d i c o u
su a p e s q u is a à a n á lise d as a sso cia çõ e s lin gu íst ica s e m c o la b o r a ç ã o c o m F r a n z
R i k l i n . C o m a a ju d a d e a ssist e n t e s, eles c o n d u z i r a m u m a sé r ie e xt e n s a d e e xp e -
r i m e n t o s , q u e s u b m e t e r a m a a n á lise s e st a t íst ica s. A b ase c o n c e it u a i d o t r a b a lh o
i n i c i a l d e Ju n g e st a va n a s o b r a s d e F l o u r n o y e Ja n e t , q u e ele t e n t a va ju n t a r
c o m a m e t o d o lo gia d e p e sq u isa d e W i l h e l m W u n d t e E m i l Kr a e p e l i n . Ju n g
e R i k l i n u t i l i z a r a m o e xp e r i m e n t o d e a sso cia çõ e s, c r ia d o p o r Fr a n c i s G a l t o n
e d e s e n vo lvid o n a p sic o lo gia e n a p s i q u i a t r i a p o r W u n d t , Kr a e p e l i n e Gu s t a v
As c h a ffe n b u r g . O o b je t ivo d o p r o je t o d e p e sq u isa , e s t im u la d o p o r Ble u le r , e r a
fo r n e c e r u m m o d o r á p i d o e c o n fiá ve l d e d ia g n ó s t ic o d ife r e n c ia l. A e q u ip e d o
Bu r g h õ lz li fa lh o u n isso , m a s fi c a r a m im p r e s s io n a d o s p e lo sign ifica d o d o s d i s -
t ú r b io s d e r e a ç ã o e t e m p o d e r e s p o s t a p r o lo n ga d o s. Ju n g e R i k l i n a r g u m e n -
t a va m q u e essas r e a ç õ e s p e r t u r b a d a s e r a m d e vid a s à p r e s e n ç a d e c o m p le xo s
e m o c i o n a l m e n t e e st r e ssa n t e s, e u s a r a m seu s e xp e r i m e n t o s p a r a d e s e n vo lve r
u m a p s ic o lo gia ge r a l d o s c o m p l e xo s 2 1.
Es s e t r a b a lh o e st a b e le ce u a r e p u t a ç ã o d e Ju n g c o m o u m a d as e st r e la s a s c e n -
d e n t e s d a p s iq u ia t r ia . E m 19 0 6 , ele a p li c o u s u a n o va t e o r ia d o s c o m p le xo s p a r a
e st u d a r a p s ic o g ê n e s e d a dem entía praecox ( p o s t e r i o r m e n t e c h a m a d a d e e s q u iz o -
fr e n ia ) e p a r a d e m o n s t r a r a in t e lig ib ilid a d e d as fo r m a ç õ e s d e l i r a n t e s 2 2 . P a r a

19 Cf. W E H R , Gerhard. AnlllustratedBiographyofjung. Boston: Shambala, 1989, p. 47 [Trad. de M. Koh n ].


JAF F E, An iela (org.). C.G.Jung: W ord and Image. Princeton: Princeton Un iversity Press/ Bollingen
Series, 1979, p. 42-43.
20 MP, p. 164. • Cartas inéditas, AFJ.
21 Estudos experim entais. O C , 2.
22 A psicologia da dementiapraecox: um ensaio". O C , 3.
IO LÍ BE R N O V U S

Ju n g , ju n t a m e n t e c o m n u m e r o s o s o u t r o s p siq u ia t r a s e p sicó lo go s d a é p o ca , t ais


c o m o Ja n e t e A d o l f Me ye r , a in sa n id a d e n ã o e r a e n ca r a d a c o m o algo c o m p le t a -
m e n t e se p a r a d o d a sa n id a d e, m a s, ao in vé s, c o m o algo p o sicio n a d o n o e xt r e m o
fin a l d e u m esp ect r o. D o i s an o s m a is t a r d e , ele a r g u m e n t o u q u e "se se n t im o s
n o sso c a m i n h o a d e n t r a n d o os segr ed os h u m a n o s d a p e sso a d o e n t e , a lo u c u r a
t a m b é m r e ve la se u sist e m a , e r e co n h e ce m o s n a d o e n ç a m e n t a l ap en as u m a r e a -
ç ã o e xc e p c io n a l a p r o b le m a s e m o cio n a is q u e n ã o sã o e st r a n h o s a n ó s " 2 3 .

Ju n g d e s e n c a n t o u - s e c a d a ve z m a is c o m as lim it a ç õ e s d o s m é t o d o s e xp e r i -
m e n t a i s e e st a t íst ico s n a p sic o lo gia e n a p s iq u ia t r ia . N o a m b u l a t ó r i o d o Bu r -
gh õ lz li, Ju n g fa z ia d e m o n s t r a ç õ e s d e h ip n o s e . Isso o l e vo u a se in t e r e s s a r p e la
t e r a p ê u t ic a e o u so d o e n c o n t r o c lín ic o c o m o m é t o d o d e p e sq u isa . P o r vo l t a
d e 19 0 4 , Bl e u l e r i n t r o d u z i r a a p s ic a n á lis e n o Bu r g h õ lz li, e c o m e ç o u u m a c o r -
r e s p o n d ê n c i a c o m Fr e u d , p e d i n d o s u a a ju d a p a r a a a n á lise d e seu s p r ó p r i o s
s o n h o s 2 4 . E m 19 0 6 , Ju n g c o m e ç o u a c o m u n i c a r - s e c o m Fr e u d . Es s e r e l a c i o -
n a m e n t o fo i m u i t o m it o lo giz a d o . U m a le giã o "fr e u d o c ê n t r i c a " s u r giu , q u e v i a
F r e u d e a p sica n á lise c o m o a fo n t e p r i n c i p a l d o t r a b a lh o d e Ju n g. Isso l e vo u a
u m a c o m p r e e n s ã o c o m p l e t a m e n t e e q u ivo c a d a d e se u t r a b a lh o n a h is t ó r ia i n t e -
le c t u a l d o sé c u lo X X . E m i n ú m e r a s o c a s iõ e s Ju n g p r o t e s t o u . N u m a r t igo i n é -
d i t o e s c r it o n o s a n o s 19 30 , p o r e xe m p lo , Ju n g e scr e ve u : " D e fo r m a a lgu m a e u
d e s c e n d o e xc lu s iva m e n t e d e Fr e u d . E u t i n h a m i n h a a t it u d e c ie n t ífic a e a t e o r i a
d os c o m p le xo s a n t e s d e e n c o n t r á - l o . O s m e st r e s q u e m a is m e i n fl u e n c i a r a m
a c i m a d e t o d o s sã o Ble u le r , P i e r r e Ja n e t e T h é o d o r e F l o u r n o y " 2 5 . F r e u d e Ju n g
c l a r a m e n t e v i e r a m d e t r a d iç õ e s in t e le c t u a is b e m d ife r e n t e s, e se a p r o xi m a r a m
p o r c o n t a d e in t e r e sse s e m c o m u m n a p s ic o g ê n e s e d as d e so r d e n s m e n t a i s e
n a p s ic o t e r a p ia . Su a i n t e n ç ã o e r a fo r m u l a r u m a p s ic o t e r a p ia cie n t ífica b a se a d a
n a n o va p sico lo gia e, p o r s u a ve z , s u s t e n t a r a p sico lo gia n a in ve s t iga ç ã o clín ica
p r o fu n d a d e vid a s i n d i vi d u a i s .

C o m a li d e r a n ç a d e Bl e u l e r e Ju n g, o Bu r g h õ lz li t o r n o u - s e o c e n t r o d o m o -
v i m e n t o p sica n a lít ico . E m 19 0 8 , o Jahrbuchfurpsychoanalyttsche undpsychopathologísche
Forschungen [ An u á r i o d e P e sq u isa P sica n a lít ica e P s ic o p a t o ló gic a ] fo i cr ia d o , c o m
Bl e u l e r e Ju n g c o m o e d it o r e s. C o m su a d efesa, a p s ic a n á lis e p ô d e se fa z e r n o t a r

23 O conteúdo da psicose". O C , 3, § 339.


24 Arquivos Freud, Biblioteca do Congresso. C f F ALZ E D E R , Ernst. "Th e story of an ambivalent
relationship: Sigmund Freud and Eugen Bleuler". JounalofAnalyticalPsychology, 52, 2007, p. 343TÓ8.
25 J Á
I N T RO D U ÇÃO II

n o m u n d o p s iq u iá t r ic o a le m ã o . E m 19 0 9 , Ju n g r e c e b e u u m gr a u h o n o r á r i o d a
U n i ve r s i d a d e C l a r k p o r su as p e sq u isa s c o m a sso cia çã o . N o a n o se gu in t e , u m a
a sso cia çã o p s ic a n a lít ic a i n t e r n a c i o n a l fo i fo r m a d a c o m Ju n g c o m o p r e sid e n t e .
D u r a n t e o p e r í o d o d e s u a c o la b o r a ç ã o c o m Fr e u d , ele e r a u m d o s p r i n c i p a i s
a r q u it e t o s d o m o vi m e n t o p sica n a lít ico . Es s e fo i p a r a ele u m p e r í o d o d e i n t e n s a
a t ivid a d e p o lít ic a e i n s t i t u c i o n a l . O m o vi m e n t o e st a va r a c h a d o p o r d i ve r g ê n -
cias e d e sa co r d o s a m a r go s.

A intoxicação da m itologia
E m 19 0 8 , Ju n g c o m p r o u u m p e d a ç o d e t e r r a à m a r g e m d o La go d e Zu r i q u e ,

e m Kú s n a c h t , e a l i c o n s t r u i u u m a ca sa o n d e vi ve r i a a t é o fin a l d e su a vid a .

E m 19 0 9 , ele se d e sligo u d o Bu r g h õ lz l i p a r a d e d ic a r - s e à su a cr e sce n t e p r á t ic a

clín ica e seu s in t e r e sse s d e p e sq u isa . Su a r e t i r a d a d o Bu r g h õ lz li c o i n c i d i u c o m

u m a vi r a d a e m seu s in t e r e sse s d e p e sq u isa e m d ir e ç ã o ao e st u d o d a m i t o l o -

gia, d o fo lclo r e e d a r e ligiã o , e ele m o n t o u u m a e n o r m e b i b li o t e c a p a r t i c u l a r

d e o b r a s a c a d é m ic a s . Essa s p e sq u isa s c u l m i n a r a m c o m Transform ações e sím bolos da

libido, p u b lic a d o e m d u a s p a r t e s e m 1911 e 1912. Es s e t r a b a lh o p o d e se r vis t o

c o m o a q u e le q u e m a r c a u m r e t o r n o d e Ju n g a su as r a íz e s in t e le c t u a is e a su as

p r e o c u p a ç õ e s c u lt u r a is e r e ligio sa s. E l e a c h a va o t r a b a lh o m i t o l ó g i c o e s t i m u -

la n t e e i n t o xi c a n t e . E m 192$, ele le m b r a : "p a r e c i a - m e q u e e st a va vi ve n d o n u m

m a n i c ô m i o q u e e u m e s m o t i n h a c o n s t r u íd o . E u a n d a va d e lá p a r a cá c o m t o -

d as essas figu r a s fa n t á st ica s: c e n t a u r o s , n in fa s, sá t ir o s, d e u se s e d eu sas c o m o se

fo sse m p a cie n t e s e e u os est ivesse a n a lisa n d o . E u l i a u m m i t o gr ego o u n e gr o

c o m o se u m lu n á t ic o est ivesse m e c o n t a n d o su a a n m n e s e " 2 6 . O f i m d o sé cu lo

X I X t e s t e m u n h o u u m a e xp l o s ã o d e e st u d o s a c a d é m i c o s n a s r e c é m - fu n d a d a s

d is c ip lin a s d e r e ligiã o c o m p a r a d a e d e e t n o p sico lo gia . T e xt o s b á sic o s fo r a m r e -

c o lh id o s e t r a d u z id o s p e la p r i m e i r a ve z e a p r e se n t a d o s aos e st u d o s h is t ó r ic o s

e m c o le ç õ e s d e e n sa io s t a is c o m o Sacred Books of the East, d e M a x M u l l e r 2 7 . P a r a

m u i t o s esses t r a b a lh o s r e p r e s e n t a va m u m a i m p o r t a n t e r e la t iviz a çã o d a vis ã o

d e m u n d o cr ist ã .

26 Introductíon to Jungían Psychology, p. 24.


27 Desses, Jung possuía um conjunto completo.
12 LÍ BE R N O V U S

E m Transform ações e sím bolos da libido, Ju n g d i fe r e n c i a d o is t ip o s d e p e n s a m e n t o .


P e ga n d o a p i s t a d e W i l l i a m Ja m e s , e n t r e o u t r o s , Ju n g c o n s t r a s t a va o p e n s a -
m e n t o d i r e c i o n a d o e o p e n s a m e n t o d e fa n t a sia . O p r i m e i r o e r a ve r b a l e l ó g i -
co, e n q u a n t o q u e o se gu n d o e r a p a ssivo , a sso c ia t ivo e im a gé t ic o . O p r i m e i r o
e r a e xe m p l i fi c a d o p e la c iê n c ia , e o se gu n d o , p e la m i t o l o g i a . Ju n g s u s t e n t a va
q u e os a n t igo s n ã o p o s s u í a m a ca p a cid a d e p a r a o p e n s a m e n t o d ir e c io n a d o ,
u m a a q u is iç ã o m o d e r n a . O p e n s a m e n t o d e fa n t a s ia o c u p a va o lu ga r q u a n d o
ce ssa va o p e n s a m e n t o d ir e c io n a d o . Transform ações e sím bolos da libido e r a u m e x-
t e n so e s t u d o d o p e n s a m e n t o d e fa n t a s ia e d a p r e s e n ç a c o n t i n u a d a d e t e m a s
m i t o l ó g i c o s n o s s o n h o s e fa n t a sia s d e i n d i ví d u o s c o n t e m p o r â n e o s . Ju n g r e i t e -
r a va a e q u a ç ã o a n t r o p o l ó g i c a d o p r é - h i s t ó r i c o , d o p r i m i t i v o e d a c r ia n ç a . E l e
m a n t i n h a q u e a e lu c id a ç ã o d o p e n s a m e n t o d e fa n t a s ia d i u r n o c o r r e n t e e m
a d u lt o s ao m e s m o t e m p o jo g a r i a l u z n o p e n s a m e n t o d e c r ia n ç a s , d e se lva ge n s
e d e p o vo s p r é - h i s t ó r i c o s 2 8 .

N e s s e t r a b a lh o , Ju n g s i n t e t i z o u as t e o r ia s d a m e m ó r i a d o sé c u lo X I X , a h e -
r e d it a r ie d a d e e o i n c o n s c i e n t e e p o s t u l o u u m a c a m a d a filo ge n é t ic a n o i n c o n s -
c ie n t e a i n d a p r e se n t e e m c a d a u m d e n ó s , q u e co n sist e d e im a ge n s m it o ló gic a s .
P a r a Ju n g , os m i t o s e r a m s í m b o l o s d a l i b i d o e a p r e s e n t a va m seu s m o vi m e n t o s
t íp ico s. E l e u s o u o m é t o d o c o m p a r a t i vo d a a n t r o p o lo gia p a r a ju n t a r u m a va s t a
p a n ó p l i a d e m i t o s , e e n t ã o os s u je i t o u à i n t e r p r e t a ç ã o a n a lít ica . M a i s t a r d e , ele
c h a m o u se u u so d o m é t o d o c o m p a r a t i vo d e "a m p lific a ç ã o ". E l e d e fe n d ia q u e
h a ve r i a m i t o s t íp ic o s , q u e c o r r e s p o n d e r i a m ao d e s e n vo lvi m e n t o e t n o p s i c o l ó -
gico d o s c o m p le xo s . D e a co r d o c o m Ja co b Bu r c k h a r d t , Ju n g c h a m o u t a is m i t o s
t íp ic o s d e "im a ge n s p r i m o r d i a i s " (Urbilder). A u m m i t o e m p a r t i c u l a r fo i d a d o
u m p a p e l c e n t r a l: o d o h e r ó i. P a r a Ju n g ele r e p r e s e n t a va a v i d a d e u m in d ivíd u o ,
t en t an d o t o r n a r -se in d ep en d en t e e de lib e r t a r -se d a m ãe. El e in t e r p r e t o u o
m o t i vo d o in c e s t o c o m o u m a t e n t a t i va d e r e t o r n o à m ã e p a r a r e n a sce r . M a i s
t a r d e , ele a n u n c i a r i a fo r m a l m e n t e essa o b r a c o m o a d a d e s c o b e r t a d o i n c o n s -
c ie n t e co le t ivo , e m b o r a o t e r m o p r o p r i a m e n t e d it o t e n h a su r gid o d e p o i s 2 9 .

N u m a sé r ie d e a r t igo s d e 1912, Al p h o n s e Ma e d e r , co le ga e a m igo d e Ju n g,


a r g u m e n t a va q u e os so n h o s t i n h a m u m a fu n ç ã o d ife r e n t e d a q u e la d e sa t isfa çã o

28 W anãungenundSymbole der Libido [Transformações e símbolos da libido]. O C , B, § 36, p. 37. Em sua revisão do
texto em 1952, Jung ampliou isto (Símbolos da transformação. O C , 5, § 29).
29 Address on the occasion of the founding of the C G . Jung Institute, Zurich , 24 Ap ril 1948". O C , 18, §
1.129.
I N T RO D U ÇÃO U

d o d e se jo - u m a fu n ç ã o d e b a la n ç o , o u c o m p e n s a t ó r i a . O s so n h o s e r a m t e n t a -
t iva s d e s o lu c io n a r os c o n flit o s m o r a i s d e u m in d ivíd u o . C o m o t a is, n ã o a p o n -
t a va m m e r a m e n t e p a r a o p assad o, m a s t a m b é m p r e p a r a va m o c a m i n h o p a r a o
fu t u r o . M a e d e r e st a va d e s e n vo lve n d o as p e r sp e ct iva s d e F l o u r n o y a r e s p e it o
d e u m a i m a g i n a ç ã o c r i a t i va s u b c o n s c ie n t e . Ju n g t r a b a lh a va e m lin h a s s e m e -
lh a n t e s , e a d o t o u as p o s iç õ e s d e Ma e d e r . P a r a eles, essa a lt e r a ç ã o n a c o n c e p ç ã o
d o s so n h o s t r o u xe co n sigo u m a a lt e r a ç ã o n a c o n s i d e r a ç ã o d e t o d o s os o u t r o s
fe n ó m e n o s a sso cia d o s ao in c o n s c ie n t e .

E m s e u p r e fá c io à e d i ç ã o r e vi s t a d e Transform ações e sím bolos da libido, d e 19$2,

Ju n g d i z i a q u e o t r a b a lh o h a vi a sid o e sc r it o e m 1911, q u a n d o ele t i n h a 36 a n o s

d e id a d e : "E s t a é u m a é p o c a cr ít ica , p o is r e p r e s e n t a o in íc io d a se gu n d a m e t a d e

d a v i d a d e u m h o m e m , q u a n d o n ã o r a r o o c o r r e u m a m etanoia, u m a t r a n s fo r m a -

ç ã o m e n t a l " 3 0 . Ac r e s c e n t a va q u e e st a va c o n s c ie n t e d a p e r d a d e su a c o la b o r a ç ã o

c o m Fr e u d , e q u e se s e n t i a e m d í vi d a c o m r e la ç ã o ao a p o io r e c e b id o d e s u a

esp osa. D e p o i s d e t e r m i n a d o o t r a b a lh o , ele p e r c e b e u o sign ifica d o d o q u e e r a

vi ve r s e m u m m it o . Aq u e l e s e m u m m i t o "é , n a ve r d a d e , u m e r r a d ic a d o , q u e

n ã o t e m c o n t a t o ve r d a d e i r o n e m c o m o p assad o, a v i d a d o s a n ce st r a is ( q u e

s e m p r e vi ve e m s e u s e i o ) , n e m c o m a so cie d a d e h u m a n a d o p r e s e n t e " 31. C o m o

r e su lt a d o d isso , ele n o t a q u e:

E u m e se n t i co m p e lid o a p e r gu n t a r -m e c o m t o d a a seried ad e: " O qu e é o


m it o q u e vo cê vive ?" N ã o a ch e i a resp ost a e t ive qu e m e con fessar qu e n a
ver d ad e e u n ão vivia n e m co m u m m it o n e m d e n t r o de u m m it o , e s im n u m a
n u ve m in segu ra de p ossib ilid ad es de con ceit os, qu e e u olh ava, aliás, co m d es-
con fian ça crescen t e... Ve io - m e en t ão, n at u r alm en t e, a d ecisão de con h ecer
"m e u m it o ". E co n sid er ei ist o co m o t ar efa p o r excelên cia, p ois — assim e u m e
d iz ia - co m o p o d e r ia p r est ar con t as co r r e t a m e n t e de m e u fat or p essoal, d e
m i n h a e q u a çã o p essoal, d ia n t e de m eu s p acien t es, se n a d a sab ia a r esp eit o, e
sen d o ist o, n o en t an t o , t ão fu n d a m e n t a l p a r a o r e co n h e cim e n t o d o o u t r o ? 32

30 O C , 5 , p - XXVI .
31 I b id .,p .XI X.
32 Ibid.
LÍ BE R N O V U S

O e st u d o d o m i t o r e ve lo u a Ju n g a a u s ê n c ia d e m i t o e m su a vid a . E l e e n t ã o
p r e o c u p o u - s e e m d e s c o b r ir se u m i t o , s u a "e q u a ç ã o p e s s o a l" 33 . A s s i m p e r c e b e -
m o s q u e a a u t o e xp e r i m e n t a ç ã o c o m a q u a l Ju n g se e n vo l ve u fo i e m p a r t e u m a
r e sp o st a d i r e t a a q u e s t õ e s t e ó r ic a s le va n t a d a s p o r s u a p e sq u isa , q u e c u l m i n a -
r a m e m Transform ações e sím bolos da libido.

"Meu experim en to mais difícil"


E m 1912, Ju n g t e ve a lgu n s so n h o s sign ifica t ivo s q u e n ã o e n t e n d e u . D e u e sp e -
c ia l i m p o r t â n c i a a d o is d eles, q u e ele s e n t ia q u e m o s t r a va m as lim it a ç õ e s d as
c o n c e p ç õ e s d e F r e u d so b r e os so n h o s. O p r i m e i r o é o se gu in t e :

Est a va n u m a cid ad e su lin a , n u m a r u a ascen d en t e ch e ia de est r eit as p la t a -


for m as de d esem b ar q u e. Er a m d oze h o r as - sol a p in o . U m ve lh o gu ar d a
d e alfân d ega o u algu ém p ar ecid o co m ist o p assa p o r m i m , p e r d id o e m seus
p en sam en t o s. Al g u é m d iz , "esse é u m qu e n ã o p od e m o r r e r . El e já m o r r e u
h á u n s 30 - 4 0 an os, m as a in d a n ã o t r a t o u de d eco m p o r -se". Fiq u e i m u it o
su r p r eso. En t ã o su r giu u m a figu r a im p r e ssio n a n t e , u m cavaleir o d e gr an d e
p o r t e, vest id o co m u m a a r m a d u r a m e io am ar ela. El e p arece co r p u le n t o e
in e xcr u t á ve l e n a d a o im p r e ssio n a . E m su as cost as, ele car r ega u m a cr u z
ve r m e lh a m alt esa. El e vi n h a e xist in d o d esd e o sécu lo X I I e d ia r ia m e n t e ,
e n t r e 12 e 13 h or as, t o m a va a m e sm a r o t a. N i n g u é m se a d m ir a c o m essas
d u as a p a r içõ es, m as e u fiq u e i m u it o su r p r eso.
Co n t i ve m in h a s h ab ilid ad es in t e r p r e t a t iva s. C o m r elação ao ve lh o au s-
t r íaco, o co r r e u - m e Fr e u d ; c o m r elação ao cavaleir o, e u m esm o.
D e n t r o d e m i m , u m a vo z d iz : "Es t á t u d o va z i o e a ve r s ivo ". D e vo
s u p o r t á - l o 34 .

Ju n g a c h o u esse s o n h o o p r e ssivo e d e s c o n c e r t a n t e , e F r e u d fo i in c a p a z d e i n -
t e r p r e t á - l o 3 5 . M a i s o u m e n o s seis m e se s d e p o is t eve o u t r o so n h o :

33 Cf. Introductíon toJungian Psychology, p. 2$.


34 Livro Negro 2, p. 25-26.
35 Em 1925, ele deu a seguinte interpretação desse sonho: "O significado do sonho está no princípio da
figura ancestral: não o oficial austríaco - obviamente ele representa a teoria freudiana —, mas o outro, o
Cruzado, é uma figura arquetípica, um símbolo cristão vivo desde o século X I I , um símbolo que realmente
não vive hoje em dia, mas que não está de todo morto. Ele vem dos tempos de Meister Eckhart, o tempo
da cultura dos Cavaleiros, quando muitas ideias floresceram, para serem apagadas novamente, mas
que estão voltando à vida agora. Entretanto, quando tive este sonho, não conhecia esta interpretação"
(introduction to Jungian Psychology, p. 42).
I N T RO D U ÇÃO U

So n h e i n aq u ela é p o ca (logo d ep ois d o N a t a l d e 19 12), qu e est ava co m m eu s


filh os e m u m m a r a vilh o so a p a r t a m e n t o d e u m cast elo, r ica m e n t e m o b ilia -
d o - n u m hall ab er t o ch eio d e colu n as - , e st á va m o s sen t ad os n u m a m e sa
r ed o n d a , cu jo t a m p o e r a u m a p e d r a ve r d e -e scu r a m a r a vilh o sa . D e r ep en t e,
u m a gaivot a o u u m a p o m b a a d e n t r o u vo a n d o e esp alh ou -se su avem en t e n a
m esa. Al e r t e i as cr ian ças p a r a fica r e m q u iet as, d e fo r m a a n ã o assu st ar em o
b elo p á ssa r o b r an co. Re p e n t in a m e n t e esse p á ssa r o t r a n sfo r m o u -se n u m a
cr ian ça d e o it o an os d e id ad e, u m a ga r o t in h a lo ir a , q u e co r r e u b r in ca n d o
c o m m eu s filh os p e la co lu n ad a. En t ã o , d e r ep en t e, a cr ian ça t r a n sfo r m o u -se
n a gaivot a o u p o m b a. E l a m e d isse assim : "Apenas na prim eira hora da noite eu posso
tornar-m e hum ana, enquanto a pom ba m acho está ocupada com os doze m ortos'. C o m est as
p alavras o p ássar o vo o u e e u a c o r d e i 36 .

N o Livro Negro 2, Ju n g a n o t o u q u e fo i esse s o n h o q u e o fe z d e c i d i r a e n t r a r


n u m r e l a c i o n a m e n t o c o m u m a m u l h e r q u e e le h a vi a c o n h e c i d o t r ê s a n o s a n -
t es ( T o n i W o l f f ) 3 7 . E m 19 25, e le o b s e r vo u q u e esse s o n h o "fo i o c o m e ç o d e
u m a c o n vi c ç ã o d e q u e o i n c o n s c i e n t e n ã o c o n s i s t i a d e m a t e r i a l i n e r t e a p e n a s,
m a s q u e h a vi a algo v i v o l á e m b a i x o " 3 8 . E l e a c r e s c e n t o u q u e p e n s a r a n a h i s t ó -
r i a d a Tabulasm aragdina ( t á b u a d e e s m e r a l d a ) , o s d o z e a p ó s t o l o s , o s sign o s d o
Zo d í a c o , e p o r a í a d i a n t e , m a s q u e e le "n ã o p o d i a e n t e n d e r n a d a d o so n h o ,
e xc e t o q u e h a vi a u m a t r e m e n d a a n i m a ç ã o d o i n c o n s c i e n t e . N ã o c o n h e c i a n e -
n h u m a t é c n i c a p a r a ch e ga r ao fíin d o d e ssa a t ivid a d e ; t u d o o q u e p o d i a fa z e r
e r a e sp e r a r , c o n t i n u a r v i v e n d o e o b s e r va n d o as fa n t a s i a s " 3 9 . Es s e s s o n h o s o
l e va r a m a a n a li s a r su a s m e m ó r i a s d e in fâ n c ia , m a s is t o n ã o r e s o l ve u n a d a . E l e
p e r c e b e u q u e p r e c i s a va r e c u p e r a r o t o m e m o c i o n a l d a in fâ n c ia . Le m b r o u - s e

36 Livro Negro 2, p. 17-18.


37 Ibid., p. 17.
38 Introduction to Jungian Psychology, p. 42.
39 Ibid., p. 40-41. E.A. Bennet observou os comentários de Jung sobre este sonho: "Prim eiram ente ele
pensou que os 'doze homens mortos' referiam-se aos doze dias antes do Natal, pois este é o tempo
obscuro do ano, quando tradicionalmente as bruxas estão soltas. Dizer 'antes do Nat al' é dizer 'antes que
o sol viva novamente', pois o dia de Natal é o ponto de virada do ano, quando o nascimento do sol era
celebrado na religião mitraica... Somente muito tempo depois que ele relacionou o sonho a Hermes e aos
doze pombos" (Meetings withJung: Conversations recorded by E.A. Bennet during the Years 1946-1961.
Londres: An ch or Press, 1982. Zurique: Daim on Verlag, 1985, p. 93). Em "Aspectos psicológicos da Core",
1951, Jung apresentou algum material do Liber Novus (descrevendo-o como parte de uma série de sonhos)
de forma anónima ("caso Z") , traçando as transformações da anima. Ele observa que este sonho "mostra
a anima com forma de elfo, ou seja, apenas parcialmente humana. Ela igualmente pode ser um pássaro,
o que significa que ela pode pertencer inteiramente à natureza e pode evanescer-se (isto é, tornar-se
inconsciente) da esfera humana (isto é, a consciência). ( O C, 9, I , § 371.) Cf. tb. Memórias, p. 165-166.
i6 LÍ BE R N O V U S

q u e , q u a n d o c r ia n ç a , go st a va d e c o n s t r u i r casas e o u t r a s e s t r u t u r a s , e r e t o m o u
e ssa a t ivid a d e .
En q u a n t o e st e ve e n vo lvi d o c o m s u a a t ivid a d e d e a u t o a n á lis e , c o n t i n u o u a
d e s e n vo lve r se u t r a b a lh o t e ó r ico . E m s e t e m b r o d e 1913, n o Co n g r e s s o d e P s i -
ca n á lise d e M u n i q u e , fa lo u so b r e os t ip o s p s ic o ló gic o s . Ar g u m e n t o u q u e h a vi a
d o is m o vi m e n t o s b á sico s d a li b i d o : a e xt r o ve r s ã o , n a q u a l o in t e r e sse d o su je it o
e st á o r ie n t a d o e m d ir e ç ã o ao m u n d o e xt e r n o , e a in t r o ve r s ã o , n a q u a l o i n t e -
r esse d o s u je it o e s t á d ir e c io n a d o p a r a d e n t r o . Se gu in d o essas id e ia s, p o s t u lo u
d o is t ip o s d e ge n t e , ca d a u m c a r a c t e r iz a d o p e la p r e d o m i n â n c i a d e u m a d essas
t e n d ê n c ia s . A s p sico lo gia s d e F r e u d e d e Ad l e r e r a m e xe m p lo s d o fat o d e q u e
as p sico lo gia s c o m fr e q u ê n c ia a s s u m e m o q u e é a ve r d a d e d e se u t ip o c o m o ge-
r a l m e n t e vá lid o . A s s i m o q u e se fa z ia n e c e s s á r io e r a u m a p sico lo gia q u e fizesse
ju s t iç a a a m b o s esses t i p o s 4 0 .

N o m ê s se gin t e , n u m a vi a g e m d e t r e m p a r a Sch a ffh a u se n , Ju n g t e ve u m a


vis ã o d a Eu r o p a s e n d o d e va st a d a p o r u m a i n u n d a ç ã o ca t a st r ó fica , vis ã o q u e se
r e p e t i r i a d u a s se m a n a s m a is t a r d e , n a m e s m a vi a g e m 4 1. E m 1925, com en t an d o
so b r e essa e xp e r iê n c ia , ele o b e r vo u : " E u p o d e r i a m e t o m a r c o m o a Su íç a c e r -
ca d a p o r m o n t a n h a s e a s u b m e r s ã o d o m u n d o p o d e r i a se r as r u ín a s d e m e u s
r e la c io n a m e n t o s a n t e r io r e s ". Isso o l e vo u ao se gu in t e d ia g n ó s t ic o d e s u a c o n -
d iç ã o : "P e n s e i c o m igo m e s m o , 'se ist o s ign ific a a lgu m a co isa , sign ific a q u e e s t o u
c o m p l e t a m e n t e p e r d i d o ' " 4 2 . D e p o i s d e ssa e xp e r iê n c ia , Ju n g t e m i a e n lo u q u e -
c e r 4 3 . E l e l e m b r a q u e p r i m e i r o p e n s o u q u e as im a ge n s d a vis ã o i n d i c a va m u m a
r e vo lu ç ã o , m a s c o m o n ã o p o d i a i m a g i n a r isso, c o n c l u i u q u e e st a va "a m e a ç a d o
p o r u m a p s ic o s e " 4 4 . D e p o i s d isso , t eve u m a vis ã o se m e lh a n t e :

N o in ve r n o segu in t e, est ava n a ja n e la n u m a n o it e o lh a n d o p a r a o N o r t e .


V i u m b r ilh o ve r m e lh o san gu e, co m o o b r i lh o d o m a r vis t o de lon ge, e s t i-
r a d o d e Le st e a O e s t e n o h o r iz o n t e se t e n t r io n a l. N e st e m o m e n t o , a lgu é m

40 Tipos psicológicos. OC, 6.


41 Cf. adiante, p. 113.
42 Introduction to Jungian Psychology, p. 47-48.
43 Barbara Han n ah lembra que "Jung costumava dizer nos últimos anos que suas tormentosas dúvidas
a respeito de sua própria sanidade deveriam ser aliviadas pelo tanto de sucesso que ele vinha obtendo
ao mesmo tempo no mundo externo, particularmente na Am érica" ( C G . Jung. His Life and W ork - A
Biographical Memoir. Nova York: Perigree, 1976, p. 109).
44 Mem órias, p. 156.
I N T RO D U ÇÃO D

m e p e r gu n t o u o q u e e u ach ava d os p r ó xim o s fu t u r o s a co n t e cim e n t o s d o


m u n d o . D is s e q u e n ã o t i n h a n e n h u m a o p in iã o , m as qu e vi a san gu e, r io s
d e sa n gu e 4 5 .

N o s a n o s i m e d i a t a m e n t e p r e ce d e n t e s ao in íc io d a gu e r r a , u m i m a g i n á r i o

a p o c a líp t ic o e st a va d is s e m in a d o n a s a r t e s e n a l i t e r a t u r a e u r o p e ia s. P o r e x e m -

p lo , e m 1912, W a s s i l y Ka n d i n s k y e sc r e ve u so b r e u m a ca t á st r o fe u n i ve r s a l i m i -

n e n t e . D e 1912 a 1914, Lu d w i g M e i d n e r p i n t o u u m sé r ie c o n h e c i d a c o m o p a i -

sagen s a p o c a líp t ic a s, c o m ce n a s d e cid a d e s d e s t r u íd a s , c a d á ve r e s e t u m u l t o 4 6 .

A p r o fe c ia e st a va n o ar. E m 18 9 9 , Le o n o r a P ip e r , a fa m o sa m é d i u m a m e r i c a n a ,

p r e vi u q u e n o sé cu lo q u e ch e ga va h a ve r i a u m a t e r r íve l g u e r r a e m p a r t e s d ife -

r e n t e s d o m u n d o q u e o l i m p a r i a r e ve la n d o as ve r d a d e s d o e s p ir it u a lis m o . E m

1918, A r t h u r C o n a n D o yl e , o e s p ir it u a lis t a e a u t o r d e "Sh e r l o c k H o l m e s ", e n -

c a r a va isso c o m o p r o fé t i c o 4 7 .

N a n a r r a ç ã o d e Ju n g so b r e a fa n t a sia d o t r e m n o Líber Novus, a vo z i n t e r -

n a d isse q u e o q u e a fa n t a sia m o s t r a va t o r n a r - s e - i a c o m p le t a m e n t e r e a l. I n i -

c i a lm e n t e ele i n t e r p r e t o u isso s u b je t iva e p r o s p e c t iva m e n t e , o u seja , c o m o a

m o s t r a r a i m i n e n t e d e s t r u iç ã o d e se u m u n d o . Su a r e a ç ã o a essa e xp e r i ê n c i a fo i

i n i c i a r u m a in ve s t iga ç ã o p s ic o ló gic a d e si m e s m o . N e s s a é p o c a , a a u t o e xp e r i -

m e n t a ç ã o e r a h a b i t u a l n a m e d i c i n a e n a p sico lo gia . A i n t r o s p e c ç ã o fo i u m a d as

p r i n c i p a i s fe r r a m e n t a s d a p e sq u isa p sico ló gica .

Ju n g ve i o a p e r c e b e r q u e Transform ações e sím bolos da libido "p o d e r i a se r t o m a d o

c o m o e u m e s m o e q u e s u a a n á lis e l e va i n e vi t a ve l m e n t e a u m a a n á lis e d e m e u s

p r ó p r i o s p r o c e sso s i n c o n s c i e n t e s " 4 8 . E l e h a vi a p r o je t a d o s e u m a t e r i a l n a q u e le

d a Sr t a . F r a n k M i l l e r , q u e ele n u n c a c o n h e c e u . At é e st e p o n t o , Ju n g h a vi a sid o

u m p e n s a d o r a t ivo , a ve sso à fa n t a sia : "c o m o u m a fo r m a d e p e n s a m e n t o , t e -

n h o p a r a m i m q u e se ja u m a fo r m a t o t a l m e n t e i m p u r a , u m t i p o d e i n t e r c u r s o

in c e s t u o s o , c o m p l e t a m e n t e i m o r a l d e u m p o n t o d e vi s t a i n t e l e c t u a l " 4 9 . E l e

45 Esboço, p. 8.
46 BR E U E R , Gerda & W AG EM AN , Ines. Ludwig Meidner. Zeichner, Maier, Literat 1884-1966. Vol. 2.
Stuttgart: Verlag Gerd Hatye, 1991, p. 124-149. Cf. W I N T E R , Jay. Sites of Memory, Sites ofMourning: Th e
Great War in European Cultural History. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 147-177.
47 D O YLE , Art h u r Conan. The NewRevelation and the Vital Message. Londres: Psychic Press, 1918, p. 9.
48 Introduction to Jungian Psychology, p. 28.
49 Ibid.
i8 LÍ BE R N O V U S

a go r a vo lt a va - s e p a r a a a n á lis e d e su as fa n t a sia s, a n o t a n d o c u i d a d o s a m e n t e

t u d o , e t i n h a q u e s u p e r a r u m a r e s i s t ê n c i a e n o r m e p a r a fa z ê - lo : "P e r m i t i r a

fa n t a s ia e m m i m m e s m o t e ve o m e s m o e fe it o q u e o p r o d u z i d o e m u m h o m e m

q u e ch e ga sse à s u a o fi c i n a e e n c o n t r a s s e t o d a s as su as fe r r a m e n t a s vo a n d o

p o r t o d a a p a r t e , fa z e n d o co isa s i n d e p e n d e n t e m e n t e d e s u a v o n t a d e " 5 0 . A o

e s t u d a r su as fa n t a sia s, Ju n g p e r c e b e u q u e e s t u d a va a fu n ç ã o c r i a d o r a d e m i t o s

da m en te.

Le m b r o u - s e q u e m a n t i n h a u m d iá r io a t é p o r vo l t a d e 19 0 2, e r e t o m o u

essa a t ivid a d e c o m o u m a fo r m a d e a u t o - o b s e r va ç ã o . E l e p e r c e b ia seu s e st a d o s

i n t e r i o r e s p o r m e i o d e m e t á fo r a s , t a is c o m o e st a r n u m d e se r t o c o m u m s o l

i n s u p o r t a ve l m e n t e q u e n t e ( i s t o é, a c o n s c i ê n c i a ) 5 1. Ju n g r e c u p e r o u o c a d e r n o

m a r r o m q u e h a vi a d e ixa d o d e la d o e m 19 0 2 e c o m e ç o u n o va m e n t e a e scr e ve r

n e l e 5 2 . N o s e m i n á r i o d e 192$, ele se l e m b r o u q u e h a vi a lh e o c o r r i d o q u e p o d e r i a

e scr e ve r su as r e fle xõ e s n u m a s e q u ê n c ia . E l e e st a va "e scr e ve n d o m a t e r i a l a u t o -

b io gr á fic o , m a s n ã o c o m o u m a a u t o b io gr a fia " 5 3 . D e s d e os t e m p o s d o s d iá lo go s

p la t ó n ic o s , a fo r m a d o d iá lo g o t e m sid o u m g é n e r o p r o e m i n e n t e n a filo so fia

o c id e n t a l. E m 387, Sa n t o Ag o s t i n h o e s c r e ve u seu s Solilóquios, q u e a p r e s e n t a va m

u m d iá lo g o e xt e n s o e n t r e ele m e s m o e a "Ra z ã o ", q u e o in st r u ía . C o m e ç a v a

c o m as se gu in t e s fr ases:

En q u a n t o est ive com igo m e sm o a p o n d e r a r m u it a s d ifer en t es coisas p o r


u m lon go t em p o, e p o r m u it o s d ias est ive b u scan d o a m i m m e sm o e a m e u
p r ó p r io b e m , e qu e m a l d e ve r ia ser evit ad o, su b it a m e n t e falou co m igo - o
qu e era? E u m esm o , o u a lgu é m d ifer en t e, d e n t r o o u fo r a de m im ? (isso é
p r e cisa m e n t e aq u ilo qu e a m a r ia saber, m as qu e n ã o s e i ) 5 4 .

En q u a n t o q u e Ju n g e s c r e via n o Livro Negro 2,

50 Ibid.
51 MP, p. 23.
$2 No que se segue, referido como Livro Negro 2. O s cadernos subsequentes são pretos, daí Jung referir-se a
eles como Livros Negros.
53 Introduction to Jungian Psychology., p. 448
54 SAN T O A G O S T I N H O . Solilóquios e a imortalidade da alma. Warminster: Aris e Phillips, 1990, p. 23
[organizado e traduzido por Gerard Watson]. Watson observa que Agostinho "havia passado por um
período de grande exaustão, perto de uma crise nervosa, e os Solilóquios são uma forma de terapia, um
esforço para curar-se falando, ou melhor, escrevendo" (p. v.).
I N T RO D U ÇÃO 19

D isse a m i m m esm o, " O qu e é ist o qu e est ou fazen d o, ce r t a m e n t e n ão é ciê n -


cia, o qu e é?" En t ã o u m a vo z m e d isse, "Isso é ar t e". Isso m e cau sou a im p r e s-
são m ais est r an h a p ossível, p or q u e n ã o er a de fo r m a algu m a m i n h a im p r e s-
são de qu e o qu e e u est ava escr even d o fosse art e. En t ão , p en sei o segu in t e:
"Ta lve z m e u in co n scien t e est eja fo r m a n d o u m a p er son alid ad e qu e n ã o so u
Eu , m as qu e in sist e e m se exp r essar ". N ã o sei exat am en t e p o r qu e, m as t in h a
cer t eza de qu e a vo z qu e d isse qu e m eu s escrit os e r a m ar t e t in h a vin d o de
u m a m u lh er ... Be m , d isse e n t ã o en fat icam en t e a essa vo z qu e o qu e e u est ava
fazen d o n ã o er a ar t e, e sen t i u m a gran d e r esist ên cia crescer e m m i m . N e -
n h u m a vo z se fazia perceber, con t u d o, e co n t in u e i a escrever. D e n ovo e u a
ap an h ei e disse: "N ã o , n ã o é," e se n t i co m o se u m a d iscu ssão fosse se in ic ia r 5 5 .

E l e p e n s o u q u e e ssa vo z e r a "a a l m a n o s e n t i d o p r i m i t i vo , " q u e e le c h a m o u


d e anim a ( a p a la vr a e m La t i m p a r a a l m a ) 5 6 . E l e a fi r m o u q u e "ao r e c o lh e r t o d o
est e m a t e r i a l p a r a a n á lis e , e u e st a va d e fat o e s c r e ve n d o ca r t a s à m i n h a anim a,
q u e é p a r t e d e m i m c o m u m p o n t o d e vi s t a d ife r e n t e d o m e u . E u t i n h a o b -
s e r va ç õ e s d e u m n o vo c a r á t e r - e st a va e m a n á lis e c o m u m fa n t a s m a e u m a
m u l h e r " 5 7 . E m r e t r o s p e c t o , e le l e m b r o u q u e e ssa e r a a vo z d e u m a p a c ie n t e
h o l a n d e s a q u e ele c o n h e c e u d e 1912 a t é 1918, q u e h a vi a p e r s u a d i d o u m co le ga
p s i q u i a t r a q u e ele e r a u m a r t i s t a fr u st r a d o . A m u l h e r p e n s a va q u e o i n c o n s -
c ie n t e fosse a r t e , m a s Ju n g m a n t i n h a q u e e r a n a t u r e z a 5 8 . Já a r g u m e n t e i p r e -
vi a m e n t e q u e a m u l h e r e m q u e s t ã o — a ú n i c a m u l h e r h o l a n d e s a n o c ír c u lo d e
Ju n g à é p o c a - e r a M a r i a M o l t z e r , e q u e o p s i q u i a t r a e m q u e s t ã o e r a o a m igo
e co le ga d e Ju n g , F r a n z R i k l i n , q u e aos p o u co s fo i a b a n d o n a n d o a a n á lis e p e la
p i n t u r a . E m 1913, e le se t o r n o u u m e s t u d a n t e d e Au g u s t o G i a c o m e t t i , e t a m -
b é m u m im p o r t a n t e p in t o r a b s t r a io 59 .

55 Ibid., p. 42. Aqu i no relato de Jung, parece que o diálogo ocorreu no outono de 1913, embora isto não
seja certo, pois o diálogo propriamente não aparece nos Livros Negros, e nenhum outro manuscrito veio a
público. Se seguirmos essa datação, e na ausência de outro material, parece que o material ao qual a voz
está se referindo são os registros de novembro no Livro Negro 2, e não o texto subsequente do Liber Novus ou
as pinturas.
56 Ibid., p. 44.
57 Ibid., p. 46.
58 MP, p. 171.
59 As pinturas de Riklin seguiam em geral o estilo de Augusto Giacometti: obras semiftgurativas e
totalmente abstratas, com cores suaves e instáveis (coleção particular, Peter Riklin ). H á um quadro de
Riklin de 1915/1916, "Verkúndigung" no Kunsthaus de Zurique, uma doação de Maria Moltzer em 1945.
Giacometti lembra: "O conhecimento psicológico de Riklin era extraordinariamente interessante e novo
para m im . Ele era um mágico moderno. Eu tinha a sensação de que ele podia fazer mágica" (Von Stampa bis
Florenz: Blatter der Erinnerung. Zurique: Rascher, 1943, p. 86-87).
20 LÍ BE R N O V U S

A s a n o t a ç õ e s d e n o ve m b r o n o Livro Negro 2 r e g is t r a m a s e n s a ç ã o d e Ju n g e m

s e u r e t o r n o à s u a a lm a . E l e r e c o n t o u os so n h o s q u e o l e va r a m a o p t a r p o r u m a

c a r r e i r a cie n t ífica , e os so n h o s r e ce n t e s q u e o h a vi a m r e t o r n a d o à s u a a lm a .

C o m o l e m b r o u e m 1925, o p r i m e i r o p e r í o d o e scr it o t e r m i n o u e m n o ve m b r o :

"Se m sa b e r o q u e v i r i a d e p o is, p e n s e i q u e t a lve z m a is i n t r o s p e c ç ã o fosse n e ce s-

sá r ia [...] b o le i u m m é t o d o m u i t o ch a t o fa n t a sia n d o q u e e u e st a va ca va n d o u m

b u r a co , e a c e it a n d o essa fa n t a sia c o m o p e r fe it a m e n t e r e a l " 6 0 . O p r i m e i r o d e

t a is e xp e r i m e n t o s a c o n t e c e u e m 12 d e d e z e m b r o d e 19 136 1.

C o m o in d ic a d o , Ju n g h a vi a t id o u m a e xt e n s a e xp e r i ê n c i a n o e st u d o d e

m é d i u n s e m e st a d o s d e t r a n se , d u r a n t e os q u a is e r a m e n co r a ja d o s a p r o d u z i r

fa n t a sia s d e sp e r t a s e a lu c in a ç õ e s vis u a is , e t i n h a c o n d u z i d o e xp e r i m e n t o s c o m

e s c r it a a u t o m á t ic a . P r á t ica s d e vis u a liz a ç ã o t a m b é m t ê m sid o u sad as e m vá r ia s

t r a d iç õ e s r e ligio sa s. P o r e xe m p lo , n o q u i n t o d o s e xe r c íc io s e s p ir it u a is d e Sa n t o

I n á c i o d e Lo yo l a , os i n d i ví d u o s sã o in s t r u íd o s a c o m o "e n xe r ga r c o m os o lh o s

d a i m a g i n a ç ã o o c o m p r i m e n t o , a la r gu r a , a p r o fu n d id a d e d o i n fe r n o ", e a e xp e -

r i m e n t a r isso c o m t o t a l s e n s o r ia lid a d e 6 2 . Sw e d e n b o r g t a m b é m se e n vo l ve u c o m

"e s c r it a e s p i r i t u a l". E m se u d iá r io e s p ir it u a l, le m o s :

26 Ja n , 1748 - O s esp ír it o s, se assim o p e r m it im o s, p o d e m p o ssu ir aqu eles


qu e co m eles fa la m d e fo r m a t ão t o t a l, qu e é co m o se eles est ivessem in t e i-
r a m e n t e n o m u n d o ; e, de fat o, d e u m je it o t ão m an ifest o, qu e p o d e m c o m u -
n ica r suas id eias at r avés de seu m é d iu m , e at é m e sm o p o r cart as; p ois eles,
p o r vezes, de fat o fr eq u en t em en t e, d ir igir a m m i n h a m ã o ao escrever, co m o
se fosse d eles; de fo r m a qu e p en savam qu e n ã o e r a e u , m as eles e scr e ve n d o 6 3 .

E m Vi e n a , a p a r t i r d e 19 0 9 , o p s ic a n a lis t a H e r b e r t Silb e r e r c o n d u z i u e x-
p e r i m e n t o s e m si m e s m o e m e st a d o s h ip n a g ó g ic o s . Si lb e r e r t e n t a va fa z e r i m a -
gen s a p a r e c e r e m . Essa s im a ge n s, m a n t i n h a ele, a p r e s e n t a va m r e p r e s e n t a ç õ e s

60 Introduction to Jungian Psychology, p. 51.


61 A visão que se seguiu é encontrada adiante em Liber Primus, cap. 5: "Descida ao inferno no futuro", p. 241.
62 SAN T O I N ÁCI O D E LO YO LA. "O s exercícios espirituais". In : Personal W ritings. Londres: Penguin,
1996, p. 298 [Trad. de J. Munitiz e P. En dean ]. Em 1939-1940, Jung apresentou um comentário
psicológico aos exercícios espirituais de Santo Inácio de Loyola no E T H (PhilemonSeries, no prelo).
63 Esta passagem foi reproduzida por W illiam W h it e em seu Swedenborg: H is Life and Writings. Vol. 1.
Londres: Bath, 1867 p. 293-294. Na cópia de Jung desse trabalho, ele marcou a segunda metade desta
passagem com uma linha na margem.
I N T RO D U ÇÃO 21

s im b ó lic a s d e seu s p e n s a m e n t o s . Si lb e r e r se c o r r e s p o n d e u c o m Ju n g e m a n d a va
a ele c ó p ia s d e seu s a r t i g o s 6 4 .
E m 1912, Lu d w i g St a u d e n m a i e r ( 18 6 5- 19 33) , u m p r o fe sso r d e q u í m i c a e x-
p e r i m e n t a l , p u b l i c o u u m l i vr o i n t i t u l a d o A m agia com o ciência experim ental. St a u d e n -
m a i e r c o m e ç o u a u t o e xp e r i m e n t a ç õ e s e m 19 0 1, i n i c i a n d o c o m e s c r it a a u t o m á -
t ica . U m a sé r ie d e p e r so n a ge n s a p a r e ce u , e ele p e r c e b e u q u e n ã o m a is p r e c is a va
d a e s c r it a p a r a se c o m u n i c a r c o m e le s 6 5 . E l e t a m b é m i n d u z i a a lu c in a ç õ e s a c ú s -
t ica s e vis u a is . O o b je t ivo d essas p r á t ica s e r a u sa r su as a u t o e xp e r i m e n t a ç õ e s
p a r a fo r n e c e r u m a e xp lic a ç ã o c ie n t ífic a p a r a a m a gia . E l e a r g u m e n t a va q u e a
ch a ve p a r a se e n t e n d e r a m a gia e st a va n o s c o n c e it o s d e a lu c in a ç õ e s e d o Um
terbewusstsein, e d e u e sp e cia l i m p o r t â n c i a ao p a p e l d as p e r s o n i fi c a ç õ e s 6 6 . A s s i m
p e r c e b e m o s q u e os p r o c e d i m e n t o s d e Ju n g m u i t o se p a r e c e m c o m u m n ú m e r o
d e p r á t ica s h is t ó r ic a s c o n t e m p o r â n e a s c o m as q u a is ele e st a va fa m ilia r iz a d o .

A p a r t i r d e d e z e m b r o d e 1913, se gu iu c o m o m e s m o p r o c e d i m e n t o : e vo ca r
d e lib e r a d a m e n t e u m a fa n t a sia n o e st a d o a le r t a , e e n t ã o e n t r a r n e l a c o m o e m
u m d r a m a . Essa s fa n t a sia s p o d e m se r e n t e n d id a s c o m o u m t ip o d e p e n s a m e n t o
d r a m a t i z a d o e m fo r m a p ic t ó r ic a . A o l e r m o s su as fa n t a sia s, fica c la r o o i m p a c t o
d e seu s e st u d o s m it o ló g ic o s . Al g u m a s d as figu r a s e d o s c o n c e it o s d e r i va m - s e
d i r e t a m e n t e d e su as le it u r a s , e a fo r m a e o e st ilo t e s t e m u n h a m s e u fa scín io p e lo
m u n d o d o m i t o e d o é p ico . N o s Livros Negros, Ju n g e s c r e ve u su as fa n t a sia s e m
r e gist r o s d a t a d o s, ju n t o a r e fle xõ e s so b r e se u e st a d o m e n t a l e su as d ificu ld a d e s
e m c o m p r e e n d e r as fa n t a sia s. O s Livros Negros n ã o sã o u m d iá r io d e e ve n t o s, e
m u i t o p o u co s so n h o s e s t ã o a li a n o t a d o s. A o in vé s, sã o o r e gist r o d e u m e xp e r i -
m e n t o . E m d e z e m b r o d e 1913, r e fe r iu - s e ao p r i m e i r o d o s l i vr o s n e gr o s c o m o o
"l i vr o d e m e u e xp e r i m e n t o m a is d i fí c i l " 6 7 .
E m r e t r o sp e ct o , l e m b r a q u e s u a q u e s t ã o cie n t ífica e r a ve r o q u e a c o n t e c e r ia
q u a n d o ele d esligasse a c o n s c iê n c ia . O e xe m p l o d o s so n h o s i n d i c a va a e xi s t ê n -
c i a d e u m a a t ivid a d e d e fu n d o , e ele q u e r i a d a r a essa a t ivid a d e u m a p o s s i b i l i d a -
d e d e e m e r gir , a s s im c o m o se faz ao t o m a r m e s c a l i n a 6 8 .

64 Cf. SI LBE R E R . "Berich t iiber eine Methode, gewissesymbolische Halluzinations-Erscheinungen


hervorzurufen und zu beobachten". Jahrbuchfurpsychoanalytísche undpsychopathologische Forschungen, 2,1909, p.
513-525.
65 ST AU D E N M AI E R . Die Magíe ah experim entelle Naturwíssenschaji. Leipzig: Akademische Verlagsgesellschaft,
1912, p. 19.
66 Jung tinha uma cópia do livro de Staudenmaier, e marcou algumas passagens.
67 Livro Negro 2, p. 58.
68 MP, p. 381.
22 LÍ BE R N O V U S

E m u m r e gist r o e m s e u l i vr o d e so n h o s d e 17 d e a b r i l d e 1917 Ju n g n o t a :
69
"d esd e e n t ã o , e xe r c íc io s fr e q u e n t e s d e e sva z ia r a c o n s c i ê n c i a " . Se u p r o c e d i -

m e n t o e r a c l a r a m e n t e i n t e n c i o n a l - ao p a sso q u e se u o b je t ivo e r a p e r m i t i r q u e

c o n t e ú d o s p s íq u ic o s a p a r e ce sse m e s p o n t a n e a m e n t e . E l e l e m b r a q u e p o r b a ixo

d o l i m i a r d a c o n s c iê n c ia , t u d o é a n im a d o . A s ve z e s, e r a c o m o se ele o u visse

co isas. E m o u t r o s m o m e n t o s , p e r c e b ia q u e e st a va s u s s u r r a n d o p a r a si m e s m o 7 0 .

D e n o ve m b r o d e 1913 a t é ju l h o se gu in t e , ele p e r m a n e c e u i n c e r t o so b r e o

s e n t id o e o sign ifica d o d e seu s p r o c e d i m e n t o s , e d o s e n t id o d e su as fa n t a sia s,

q u e c o n t i n u a r a m a se d e se n vo lve r . D u r a n t e esse p e r í o d o , Fi l ê m o n , q u e se t o r -

n a r i a u m a figu r a i m p o r t a n t e e m fa n t a sia s su b se q u e n t e s, a p a r e ce u e m u m s o -

n h o . Ju n g r e le m b r a :

H a vi a u m céu a z u l, qu e t a m b é m p a r e cia ser o m ar, co b er t o n ã o p o r n u ven s,


m as p o r t o r r õ e s m a r r o n s d e t e r r a . Pa r e cia qu e os t o r r õ e s est avam se d esa-
gregan d o e qu e a águ a a z u l d o m a r est ava se t o r n a n d o visível p o r e n t r e eles.
Ma s a águ a e r a o céu azu l. Su b it a m e n t e , ap ar eceu u m ser alad o n avegan d o os
céu s, p a ir a n d o à d ir e it a . V i qu e e r a u m h o m e m ve lh o c o m os ch ifr es de u m
t ou r o. El e segu rava u m m o lh o de q u at r o ch aves, u m a das qu ais ele agar r ava
co m o se est ivesse p a r a a b r ir u m a p o r t a . El e t in h a as asas de u m m a r t im - p e s -
cad or co m suas cores car act er íst icas. C o m o n ão com p r een d esse a im a ge m
d o son h o, p in t e i- a p a r a figu r á -la co m m a io r e xa t id ã o 7 1.

En q u a n t o e st a va p i n t a n d o essa i m a g e m , ele e n c o n t r o u u m m a r t i m - p e s c a -

d o r m o r t o ( q u e m u i t o r a r a m e n t e é e n c o n t r a d o n a s viz in h a n ç a s d e Zu r i q u e )

e m se u j a r d i m n a b o r d a d o la g o 7 2 .

A d a t a d esse s o n h o n ã o é c e r t a . A figu r a d e Fi l ê m o n a p a r e ce p r i m e i r o n o s

Livros Negros e m 27 d e ja n e i r o d e 1914, m a s s e m asas d e m a r t i m - p e s c a d o r . P a r a

69 Sonhos". AFJ, p. 9.
70 MP, p. 145. Jung disse a Margaret Ostrowski-Sachs: "A técnica da imaginação ativa pode mostrar-se
muito importante em situações difíceis - quando há uma visitação, digamos. Só faz sentido quando
temos a sensação de nos encontrarmos num beco sem saída. Vivi isto quando me separei de Freud. Não
sabia o que pensar. Apenas sentia. 'Não é isto 5. Então concebi o 'pensamento simbólico' e depois de dois
anos de imaginação ativa tantas ideias me sobressaltaram que quase não pude me defender. O s mesmos
pensamentos voltaram. Apelei para minhas mãos e comecei a entalhar madeira - e então meu caminhou
se aclarou" (From ConversationswithC.G.Jung. Zurique: Júris Druck Verlag, 1971, p. 18).
71 Mem órias, p. 162.
72 Ibid.
I N T RO D U ÇÃO ^3

Ju n g, F i l ê m o n r e p r e s e n t a v a u m ínsíght s u p e r i o r , e e r a c o m o u m g u r u p a r a

e le . Ju n g c o n v e r s a v a c o m e le n o j a r d i m . L e m b r a q u e F i l ê m o n e m e r g i u d a

figu r a d e El i a s , q u e h a vi a p r e vi a m e n t e a p a r e cid o e m su as fa n t a sia s:

Filê m o n e r a u m p a gã o qu e t r o u xe à su p er fície u m a at m o sfer a m e io - e gíp cia ,


m e io -h e le n íst ica , d a t on alid ad e algo gn óst ica... El e e r a sim p le sm e n t e u m
t ip o de in t e ligê n cia su p er ior , e m e e n sin o u o b jet ivid ad e p sico ló gica e a r e a -
lid ad e d a alm a. El e h a via d escr it o essa d issociação, o u seja, e n t r e e u e o o b je -
t o de m e u p en sam en t o... El e fo r m u lo u essa coisa, qu e n ã o e r a eu , e e xp r i m i u
t u d o o qu e e u n u n c a h a via p e n sa d o 73 .

E m 2 0 d e a b r il, Ju n g r e n u n c i o u à p r e s i d ê n c i a d a As s o c i a ç ã o I n t e r n a c i o n a l
d e P sica n á lise . E m 30 d e a b r il, d e m i t i u - s e d a Fa c u ld a d e d e M e d i c i n a d a U n i -
ve r s id a d e d e Zu r i q u e . Le m b r a q u e s e n t ia e st a r n u m a p o s iç ã o m u i t o e xp o s t a n a
u n ive r s id a d e e q u e s e n t ia a n e ce ssid a d e d e e n c o n t r a r u m a n o va o r ie n t a ç ã o , e
q u e s e r ia p o r t a n t o i n ju s t o d a r a u la s 7 4 . E m j u n h o e ju lh o , t e ve u m s o n h o q u e se
r e p e t i u p o r t r ê s ve z e s, e m q u e e st a va n u m a t e r r a e s t r a n ge ir a t e n d o q u e r e t o r n a r
r a p i d a m e n t e p a r a ca sa d e n a vio , se gu id o d a ch e ga d a d e u m fr io ge la d o 7 5 .
E m 10 d e ju lh o , a As s o c i a ç ã o P sic a n a lít ic a d e Zu r i q u e vo t o u p o r 15 a I su a
sa íd a d a As s o c i a ç ã o I n t e r n a c i o n a l d e P sica n á lise . N a s at as, a r a z ã o d a d a p a r a a
s e p a r a ç ã o e r a q u e F r e u d t i n h a e st a b e le cid o u m a o r t o d o xi a q u e i m p e d i a a p e s-
q u is a l i vr e e i n d e p e n d e n t e 7 6 . O gr u p o fo i r e n o m e a d o d e As s o c i a ç ã o d e P s i c o l o -
gia An a l í t i c a . Ju n g e st a va a t iva m e n t e e n vo lvi d o n e ssa a sso cia çã o , q u e se e n c o n -
t r a va q u i n z e n a l m e n t e . E l e t a m b é m m a n t i n h a u m a i n t e n s a p r á t ic a t e r a p ê u t ic a .
En t r e 1913 e 1914, ele t i n h a e n t r e u m a e n o ve co n su lt a s p o r d ia , c in c o d ia s p o r
s e m a n a , n u m a m é d i a d e c in c o a s e t e 7 7 .
A s at as d a As s o c i a ç ã o d e P s ic o lo gia An a l í t i c a n ã o d e m o n s t r a m o p r o ce sso
p e lo q u a l e st a va p a ssa n d o Ju n g. E l e n ã o se r e fe r e a su as fa n t a sia s, e c o n t i n u a
d i s c u t i n d o q u e s t õ e s t e ó r ica s d e p sico lo gia . O m e s m o é ve r d a d e p a r a s u a c o r -

73 Ibid., p. 162-163.
74 Ibid., p. 171.
75 Cf. adiante, p. 113.
76 MSZ.
77 Cadernos de anotações de Jung, AFJ.
24 LÍ BER N O V U S

r e s p o n d ê n c i a d u r a n t e esse p e r í o d o 7 8 . A ca d a an o , m a n t i n h a su as o b r iga ç õ e s d e

s e r viç o m i l i t a r 7 9 . As s i m , m a n t i n h a su as a t ivid a d e s p r o fissio n a is e r e s p o n s a b ili-

d a d e s fa m ilia r e s d u r a n t e o d ia , e d e d ic a va su as n o it e s a su as a u t o e xp e r i m e n t a -

ç õ e s 8 0 . H á in d ic a ç õ e s d e q u e essa d ivis ã o d e a t ivid a d e s c o n t i n u o u d u r a n t e os

a n o s se gu in t e s. Ju n g l e m b r a q u e d u r a n t e est e p e r í o d o su a fa m ília e p r o fissã o

"p e r m a n e c e r a m s e m p r e u m a r e a lid a d e d is p e n s a d o r a d e fe licid a d e e a ga r a n t ia

d e q u e e u e xi s t i a d e u m a fo r m a n o r m a l e ve r d a d e i r a " 8 1.

A q u e s t ã o d as d ife r e n t e s fo r m a s d e i n t e r p r e t a r t a is fa n t a sia s fo i o t e m a d e

u m a p a le s t r a q u e ele a p r e s e n t o u e m 24 d e ju l h o p a r a a So cie d a d e P s i c o m é d i c a

e m Lo n d r e s , "So b r e a c o m p r e e n s ã o p sic o ló gic a ". A l i , ele c o n t r a s t a va o m é t o d o

a n a lí t i c o - r e d u t i vo d e Fr e u d , b a se a d o n a ca u sa lid a d e , c o m o m é t o d o c o n s t r u -

t ivo d a e sco la d e Zu r i q u e . A d e fic iê n c ia d o p r i m e i r o e r a q u e ao c o n e c t a r t u d o

d e vo l t a a e le m e n t o s a n t e ce d e n t e s, o m é t o d o li d a va a p e n a s c o m m e t a d e d o

q u a d r o , e n ã o a lc a n ç a va o s e n t id o vi vo d o s fe n ó m e n o s . Al g u é m q u e q u isesse

c o m p r e e n d e r o Fausto d e Go e t h e d e t a l m a n e i r a s e r ia c o m o a lg u é m q u e t e n -

t asse c o m p r e e n d e r u m a c a t e d r a l gó t ic a p o r m e i o d e se u asp ect o m i n e r a l ó g i -

c o 8 2 . O sign ifica d o vi vo "vive a p e n a s q u a n d o o e xp e r i m e n t a m o s c o m e e m n ó s

m e s m o s " 8 3 . N a m e d i d a e m q u e a vi d a é e s s e n c ia lm e n t e n o va , e la n ã o p o d e ser

c o m p r e e n d i d a a p e n a s r e t r o s p e c t iva m e n t e . As s i m , o p o n t o d e vi s t a c o n s t r u t i -

vo p e r gu n t a va , "co m o , a p a r t i r d e st a p siq u e p r e se n t e , p o d e m o s c o n s t r u i r u m a

p o n t e p a r a se u p r ó p r i o fu t u r o ? " 8 4 Es t e a r t igo a p r e se n t a i m p l i c i t a m e n t e a ju s t i -

fica t iva ló gica d e Ju n g p a r a n ã o e m b a r c a r n u m a a n á lise ca u sa l e r e t r o sp e ct iva d e

su as fan t asias, e ser ve c o m o aviso p a r a aq u eles q u e se s e n t i r e m t e n t a d o s a fazê-lo .

Ap r e s e n t a d o c o m o u m a cr ít ica e u m a r e fo r m u la çã o d a p sica n á lise , o n o vo m o d o

d e i n t e r p r e t a ç ã o d e Ju n g liga -se ao m é t o d o s i m b ó l i c o d a h e r m e n ê u t i c a e s p i r i -

t u a l d e Swe d e n b o r g.

78 Isto se baseia num estudo extenso sobre a correspondência de Jung no E T H até 1930 e em outros
arquivos e coleções.
79 Estes eram, 1913: 16 dias, 1914:14 dias, 1915: 67 dias, 1916: 34 dias, 1917: 117 dias (registro do serviço
m ilitar de Jung, AFJ).
80 Cf. adiante, p. 136.
81 Mem órias, p. 168.
82 JU N G . "A interpretação psicológica dos processos patológicos". O C , 3, § 396.
83 Ibid., §398.
84 Ibid., §39 9 .
I N T RO D U ÇÃO 25

E m 28 d e ju lh o , Ju n g d e u u m a p a le s t r a so b r e "A i m p o r t â n c i a d o i n c o n s c i e n -
t e n a p s ic o p a t o lo gia " n u m e n c o n t r o d a As s o c i a ç ã o M é d i c a Br i t â n i c a e m Ab e r -
d e e n 8 5 . E l e a r g u m e n t a va q u e , e m casos d e n e u r o se e p sico se , o i n c o n s c i e n t e
t e n t a va c o m p e n s a r a a t it u d e u n i l a t e r a l d a c o n s c iê n c ia . O i n d i ví d u o d e s b a la n -
ç a d o d e fe n d e - se d isso , e os o p o st o s t o r n a m - s e m a is p o la r iz a d o s . O s im p u ls o s
c o r r e t ivo s q u e se a p r e s e n t a m n a lin gu a ge m d o i n c o n s c i e n t e d e ve m se r o in íc io
d e u m p r o ce sso d e c u r a , m a s a fo r m a n a q u a l i r r o m p e m os t o r n a in a c e it á ve is
p a r a a c o n s c iê n c ia .
U m m ê s a n t e s, e m 28 d e ju n h o , o Ar q u i d u q u e F r a n z Fe r d i n a n d , o h e r d e i r o
d o I m p é r i o Au s t r o - h ú n g a r o , fo i a ssa ssin a d o p o r G a v r i l o P r i n c i p , u m e st u d a n t e
o
s é r vio d e d e z e n o ve a n o s d e id a d e . E m I d e ago st o a g u e r r a e s t o u r o u . E m 1925,
Ju n g l e m b r a , "t ive a s e n s a ç ã o d e q u e e u e r a u m a p sico se s u p e r c o m p e n s a d a , e
o
n ã o m e l i b e r t e i d esse s e n t i m e n t o a t é I d e ago st o d e 19 14 "8 6 . An o s m a is t a r d e ,
ele d isse a M i r c e a El i a d e :

C o m o u m p siq u ia t r a fiq u e i p r eocu p ad o, p en san d o se e u n ã o est ava a ca -


m i n h o de "fazer u m a e sq u iz o fr e n ia ", co m o falávam os n aq u eles dias... Es t a -
va p r e p a r a n d o u m a p alest r a sob re e sq u iz o fr e n ia a ser d ad a n u m con gr es-
so e m Ab e r d e e n , e d iz ia a m i m m esm o : "Es t a r e i falan d o d e m i m m e sm o !
M u i t o p r o vá ve l qu e e u e n lo u q u e ça d ep ois de le r est e ar t igo ". O con gresso
a co n t e ce r ia e m ju lh o de 1914 - e xa t a m e n t e o m e sm o p e r ío d o q u an d o v i
a m i m m esm o n os t r ês son h os via ja n d o n os m ar es d o Su l. E m 31 de ju lh o ,
im e d ia t a m e n t e ap ó s m i n h a p alest r a, sou be p elos jo r n a is qu e a gu e r r a h a via
est ou rad o. Fin a lm e n t e e n t e n d i. E q u an d o d esem b a r q u ei n a H o l a n d a n o d ia
segu in t e, n in gu é m est ava m a is feliz qu e eu . Ago r a e u est ava cer t o de qu e
n e n h u m a e sq u iz o fr e n ia m e am eaçava. En t e n d i qu e m eu s son h os e m in h a s
visõ e s vie r a m at é m i m d o su b solo d o in co n scie n t e colet ivo. O qu e fico u
p a r a e u fazer agora e r a ap r o fu n d ar e va lid a r est a d escob er t a. E é ist o o qu e
t e n h o t en t ad o fazer h á q u a r e n t a a n o s" 8 7 .

N e s s e m o m e n t o , Ju n g c o n s i d e r o u q u e s u a fa n t a sia t i n h a m o s t r a d o n ã o o q u e

a c o n t e c e r ia a ele, m a s à Eu r o p a . E m o u t r a s p a la vr a s, d e q u e e r a u m a p r e c o g n i ç ã o

85 0 C 3 .
86 Introductíon to Jungian Psychology, p. 48.
87 M c GU I RE, W illiam & H U L L , R.F.C. (orgs.). Entrevista Combat, 1952. C.G.JungSpeaking: Interviews and
Encounters. Princeton: Princeton Un iversity Press/ Bollingen Series, 1977, p. 233-234. Cf. adiante, p. 125.
26 LÍ BE R N O V U S

d e u m e ve n t o co le t ivo , a q u ilo q u e ele d e p o is i r i a c h a m a r d e s o n h o "g r a n d e " 8 8 .

D e p o i s d essa p e r c e p ç ã o , ele t e n t o u ve r se e a t é q u a n t o isso e r a ve r d a d e t a m -

b é m e m r e la çã o às o u t r a s fa n t a sia s q u e ele t i n h a e xp e r im e n t a d o , e c o m p r e n d e r

o s e n t id o d e ssa c o r r e s p o n d ê n c i a e n t r e fa n t a sia s p r iva d a s e e ve n t o s p ú b lic o s .

Es s e e s fo r ç o é m u i t o d o t e m a d o Líber Novus. E m Com entários, e s c r e ve u q u e o

i r r o m p e r d a g u e r r a c a p a c it o u - o a e n t e n d e r m u i t o d o q u e h a vi a p r e vi a m e n t e

e xp e r im e n t a d o , e d e u - lh e a c o r a ge m d e e scr e ve r a p r i m e i r a p a r t e d o Líber No-

vus 89. As s i m , ele e n t e n d e u o in íc io d a g u e r r a m o s t r a n d o a ele q u e se u m edo d e

e n lo u q u e c e r e r a u m en gan o . N ã o é u m e xa ge r o d i z e r q u e se a g u e r r a n ã o t ivesse

sid o d e cla r a d a , m u i t o p r o va ve lm e n t e Líber Novus n ã o t e r i a sid o e la b o r a d o . E m

l 9 $S/ i 9 $6 , ao d i s c u t i r i m a g i n a ç ã o a t iva , Ju n g c o m e n t o u q u e "a r a z ã o p e la q u a l o

e n vo l vi m e n t o p a r e ce m u i t o c o m u m a p sico se é q u e o p a c ie n t e e st á in t e gr a n d o

o m e s m o m a t e r i a l d e fa n t a sia n o q u a l c a i ví t i m a a p e sso a i n s a n a p o r q u e n ã o

co n se gu e i n t e g r á - lo e é e n go lid a p o r e l e " 9 °.

E i m p o r t a n t e n o t a r q u e h á p o r vo l t a d e o n z e fa n t a sia s d is t in t a s q u e Ju n g

p o d e t e r e n c a r a d o c o m o p r e co gn it iva s:

I . I e 2 de O U T U B R O D E 1913: Visã o r e p e t id a de in u n d a çã o e m o r t e de m i -
lh ar es, e a vo z qu e d iz ia qu e ist o ir ia se t o r n a r r eal.
3. O U T O N O D E 1913: Visã o d o m a r de san gu e co b r in d o as t er r as d o N o r t e .
4.12 D E D E Z E M B R O D E 1913: Im a ge m d e u m h e r ó i m o r t o e o assassin at o de
Siegfr ied n u m son h o.
5. 25 D E D E Z E M B R O D E 1913: Im a ge m d o p é de u m gigan t e p isan d o n u m a
cid ad e, e im agen s d e assassin at o e de cr u eld ad e san gr en t a.
6. 2 D E J A N E I R O D E 1914: Im a ge m de u m m a r de san gu e e u m a p r o cissã o de
m u lt id ã o de m o r t o s.
7. 22 D E J A N E I R O D E 1914: Su a a lm a em er ge das p r ofu n d ezas e p e r gu n t a -lh e
se ele ir á aceit ar a gu e r r a e a d est r u ição. E l a lh e m o st r a im agen s de d e s t r u i-
ção, ar m as m ilit a r e s, rest os h u m a n o s, n avios afu n d ad os, est ad os d e st r u íd o s,
etc.
8. 21 D E M A I O D E 1914: U m a vo z d iz qu e os sacrificad os ca e m à d ir e it a e à
esq u erd a.

88 C f adiante, p. 113.
89 Cf. adiante, p. 129.
90 Mysteríum Coníunctíonís. O C , 14, § 410. Sobre o mito da loucura de Jung, promovida pela prim eira vez pelos
freudianos, como meio de desqualificar sua obra, cf. meu JungStríppedBare by Hís Biographers, Even.
I N T RO D U ÇÃO 27

9.11 D E J U N H O - J U L H O 1914: So n h o r ep et id o t rês vezes d e est ar n u m a t e r r a


est r an geir a e t e r qu e r e t o r n a r r á p id o p a r a casa d e n avio, e a d escid a d o fr io
ge la d o 9 1.

Líber Novus
Ju n g c o m e ç o u e n t ã o a e scr e ve r o e s b o ç o d o Líber Novus. E l e t r a n s c r e ve u fi e l -
m e n t e m u i t a s d as fa n t a sia s d o s Livros Negros, e p a r a c a d a u m a d elas a c r e s c e n -
t o u u m a s e ç ã o e xp l i c a n d o o sign ifica d o d e c a d a e p is ó d io , c o m b i n a d o c o m u m a
e la b o r a ç ã o lír ica . U m a c o m p a r a ç ã o p a la vr a a p a la vr a i n d i c a q u e as fa n t a sia s
fo r a m r e p r o d u z id a s fie lm e n t e , a p e n a s c o m u m p o u co d e e d i ç ã o e u m a d ivis ã o
e m c a p ít u lo s . As s i m , a s e q u ê n c ia d as fa n t a sia s e m Líber Novus q u ase s e m p r e c o r -
r e sp o n d e e xa t a m e n t e ao s Livros Negros. Q u a n d o e s t á in d ic a d o q u e u m a fa n t a sia
e m p a r t i c u l a r a c o n t e c e u "n a n o it e se gu in t e ", e t c , é s e m p r e a cu r a d o , e n ã o u m
r e c u r s o e st ilíst ico . A lin gu a ge m e o c o n t e ú d o d o m a t e r i a l n ã o fo r a m a lt e r a d o s.
Ju n g m a n t e ve u m a "fid e lid a d e a o e ve n t o ", e o q u e e st a va e scr e ve n d o n ã o e r a
p a r a se r c o n fu n d i d o c o m ficção . O esboço c o m e ç a c o m u m a c o m u n i c a ç ã o ao s
"M e u s Am i g o s ", e e st a fr ase o c o r r e fr e q u e n t e m e n t e . A p r i n c i p a l d ife r e n ç a e n -
t r e o s Livros Negros e o Líber Novus é q u e o s p r i m e i r o s fo r a m e scr it o s p a r a o u s o
p e sso a l d e Ju n g, e p o d e m se r c o n sid e r a d o s o r e gist r o d e u m e xp e r i m e n t o , e n -
q u a n t o q u e o se gu n d o é e n d e r e ç a d o a o p ú b lic o e a p r e se n t a d o n u m a fo r m a p a r a
ser l i d o p o r o u t r a s p esso as.
E m n o ve m b r o d e 19 14, Ju n g e s t u d o u d e t a lh a d a m e n t e Assim falava Zaratustra,
d e N i e t z s c h e , q u e e le h a vi a l i d o p r i m e i r o e m s u a ju ve n t u d e . Re c o r d o u m a is
t a r d e q u e "e n t ã o , d e r e p e n t e , o e s p ír it o se a p o d e r o u d e m i m e m e c a r r e go u
p a r a u m p a ís d e se r t o n o q u a l l i Za r a t u s t r a " 9 2 . E l e fo r t e m e n t e d e u fo r m a à e s -

91 Cf. p. 16-17,113,132,144,175, 233, 328,413..


92 JARRET , James (org.). Nietzsche's Zaratustra: Notes on the Seminar Given in 1934-1939. Princeton:
Princeton Un iversity Press/ Bollingen Series, 1988, p. 381. Sobre a leitura que faz Jung de Nietzsche,
cf BI SH O P , Paul. The Dionysían Self. C G . Jun gs reception of Nietzsche. Berlim : Walter de Gruyter.
• L I E BS C H E R , Martin . "Die unheimliche Àhnlichkeit 5 Nietzsches Herm eneutik der Macht und
analytische Interpretation bei Car l Gustav Jung". In : G O R N E R , Rúdiger & D U N C A N (orgs.). EcceOpus,
Nietzsche-Revisíonenímio.Jahrhundert. Large/ Londres: Gottingen, 2003, p. 37-50. • "Jungs Abkehr von Freud im
Lichte seiner Nietzsche-Rezeption". In : R E S C H KE , Renate (org.). Zeitenwende-W ertewende. Berlim , 20 0 1,
p. 255-260. • P ARKES, Graham. Nietzsche and Jung: Am bivalent Appreciations. In : G O LO M B, Jacob;
SAN T AN I E LO , Weaver & L E H R , Ronald (orgs.). Nietzsche andDepth Psychology. Albânia: §uny Press, 1999,
p. 205-227.
28 LÍ BE R N O V U S

t r u t u r a e ao e st ilo d o Líber Novus. C o m o o Zaratustra d e N i e t z s c h e , Ju n g d i vi d i u o

m a t e r i a l e m u m a sé r ie d e li vr o s c o m p o s t o s d e c a p ít u lo s cu r t o s. M a s , e n q u a n t o

Za r a t u s t r a p r o c l a m a va a m o r t e d e D e u s , Líber Novus d e s e n h a o r e n a s c i m e n t o d e

D e u s n a a lm a . H á t a m b é m in d íc io s d e q u e ele t e n h a l i d o a Cotnm edía d e D a n t e

n e s t a é p o c a , q u e t a m b é m i n fo r m a a e s t r u t u r a d o t r a b a l h o 9 3 . Líber Novus d e s e n h a

a d e s c id a d e Ju n g ao I n fe r n o . M a s e n q u a n t o D a n t e p ô d e se u t i l i z a r d e u m a

c o s m o lo gia e st a b e le cid a , Líber Novus é u m a t e n t a t i va d e fo r m a r u m a c o s m o lo gia

i n d i vi d u a l . O p a p e l d e Fi l ê m o n n o t r a b a lh o d e Ju n g t e m a n a lo gia s c o m a q u e le

d e Za r a t u s t r a n o d e N i e t z s c h e e d e Vi r g i l i o n o d e D a n t e .

N o Esboço, c e r c a d e c i n q u e n t a p o r c e n t o d o m a t e r i a l é r e t ir a d o d i r e t a m e n t e

d o s Livros Negros. H á c e r c a d e t r i n t a e c i n c o n o va s se çõ e s d e c o m e n t á r i o . N e ssa s

se çõ e s, ele t e n t o u e xt r a i r d as fa n t a sia s p r i n c í p i o s p s ic o ló gic o s ge r a is, e c o m -

p r e e n d e r a t é q u e p o n t o os e ve n t o s d e scr it o s n as fa n t a sia s a p r e s e n t a va m , d e

fo r m a s im b ó lic a , d e s e n vo lvim e n t o s q u e i r i a m a c o n t e c e r n o m u n d o . E m 1914,

Ju n g h a vi a i n t r o d u z i d o u m a d is t in ç ã o e n t r e i n t e r p r e t a ç ã o n o n íve l o b je t ivo ,

n o q u a l o b je t o s d o s o n h o e r a m t r a t a d o s c o m o r e p r e s e n t a ç õ e s d e o b je t o s r e -

ais, e i n t e r p r e t a ç ã o n o n íve l su b je t ivo , n o q u a l c a d a e le m e n t o t e m a ve r c o m o

p r ó p r i o s o n h a d o r 9 4 . A s s i m c o m o i n t e r p r e t a r su as fa n t a sia s n o n íve l su b je t ivo ,

p o d e - se c a r a c t e r iz a r se u p r o c e d i m e n t o a q u i c o m o u m a t e n t a t i va d e i n t e r p r e t a r

su as fa n t a sia s n o n íve l "c o le t ivo ". E l e n ã o t e n t a i n t e r p r e t a r su as fa n t a sia s r e d u -

t i va m e n t e , m a s as vê d e s c r e ve n d o o fu n c i o n a m e n t o d e p r in c íp io s p s ic o ló gic o s

ger a is n e le ( t a is c o m o a r e la ç ã o e n t r e i n t r o ve r s ã o e e xt r o ve r s ã o , p e n s a m e n -

t o e p r a z e r , e t c ) , e d e s c r e ve n d o e ve n t o s lit e r a is o u s im b ó lic o s q u e e s t ã o p a r a

a co n t e ce r . As s i m , a se gu n d a c a m a d a d o Esboço r e p r e s e n t a a p r i m e i r a e xt e n s a

t e n t a t i va d e d e s e n vo lvi m e n t o e a p lic a ç ã o d e s e u n o vo m é t o d o c o n s t r u t ivo . A

"se gu n d a c a m a d a " é e m si m e s m a u m e xp e r i m e n t o h e r m e n ê u t i c o . N u m s e n t i -

d o cr ít ico , Líber Novus n ã o r e q u e r i n t e r p r e t a ç ã o s u p le m e n t a r , p o is c o n t é m s u a

p r ó p r i a in t e r p r e t a ç ã o .

A o e scr e ve r o Esboço, Ju n g n ã o a c r e s c e n t o u r e fe r ê n cia s a c a d é m ic a s , e m b o r a

c it a ç õ e s s e m r e fe r ê n c ia e a lu sõ e s a o b r a s d e filo so fia , r e ligiã o e l i t e r a t u r a se -

93 Em Livro Negro 2, Jung citou certos cantos do "Purgatório" em 26 de dezembro de 1913, p. 104. Cf. adiante,
nota 213, p. 177.
94 Em 1913, Maeder referira-se à "excelente expressão" de Jung, "nível objetivo" e "nível subjetivo" (Úber
das Traumproblem". Jahrhuchfurpsychoanalytischeunâpsychopatologische Forschungen, 5,1913, p. 657-658). Jung
discutiu isso na Sociedade Psicanalítica de Zurique em 30 de janeiro de 1914, MSZ.
I N T RO D U ÇÃO 29

j a m n u m e r o s a s . E l e e s c o lh e u c o n s c i e n t e m e n t e d e i xa r d e la d o a c a d e m ic is m o s .
A i n d a a s s im , as fa n t a sia s e as r e fle xõ e s n o Líber Novus sã o as d e u m scholar e, d e
fat o, m u i t o d e s u a a u t o e xp e r i m e n t a ç ã o e d a c o m p o s i ç ã o d e Líber Novus o c o r r e u
e m s u a b ib lio t e c a . É b e m p o s s íve l q u e ele t ive sse a cr e sce n t a d o r e fe r ê n c ia s se
t ive sse d e c id id o p u b l i c a r o t r a b a lh o .

D e p o i s d e c o m p l e t a r o Esboço m a n u s c r i t o , Ju n g m a n d o u d a t ilo gr a fá - lo , e o
e d it o u . N u m m a n u s c r i t o , fez a lt e r a ç õ e s a m ã o ( r e fi r o - m e a est e m a n u s c r i t o
c o m o Esboço Corrigido). A ju lga r p ela s a n o t a ç õ e s , p a r e ce q u e ele o d e u a a lg u é m
p a r a le r ( a l e t r a n ã o é d e E m m a Ju n g , T o n i W o l f f o u M a r i a M o l t z e r ) , q u e e n t ã o
c o m e n t o u a e d iç ã o d e Ju n g, i n d i c a n d o q u e a lgu m a s se çõ e s q u e ele i n t e n c i o n a va
c o r t a r d e ve r i a m p e r m a n e c e r 9 5 . A p r i m e i r a se ç ã o d o t r a b a lh o - s e m t ít u lo , m a s
e fe t iva m e n t e Líber Prím us — fo i c o m p o s t a e m p e r ga m in h o . Ju n g e n t ã o e n c o m e n -
d o u u m gr a n d e fó lio d e m a is d e 6 0 0 p á gin a s , e n c a d e r n a d o e m c o u r o ve r m e l h o ,
aos e n c a d e r n a d o r e s E m i l St ie r li. A l o m b a d a t r a z o t ít u lo , Líber Novus. E l e e n t ã o
i n s e r i u as p á gin a s e m p e r g a m i n h o n o vo l u m e , q u e c o n t i n u a c o m Líber Secundus.
A o b r a e s t á o r ga n iz a d a c o m o u m a i l u m i n u r a m a n u s c r i t a m e d i e va l, ca ligr a fa d a ,
e n c a b e ç a d a p o r u m a t á b u a d e a b r e via ç õ e s . Ju n g d e u ao p r i m e i r o l i vr o o t ít u lo
d e " O C a m i n h o Q u e A i n d a Vi r á ", e c o lo c o u lo go a b a ixo d isso a lgu m a s c it a ç õ e s
d o l i vr o d e Isa ía s e d o Eva n g e lh o Se gu n d o Jo ã o . As s i m , fo i a p r e se n t a d o c o m o
u m t r a b a lh o p r o fé t ic o .
N o vo l u m e caligr afad o , Ju n g p i n t o u e m tem pura ( c a l e c o l a ) , e e scr e ve u c o m
t in t a . O su ave s o m b r e a m e n t o d a e s c r it a n o vo l u m e caligr afad o d e n o t a q u a n d o a
t i n t a e st a va acab an d o . D e m a n e i r a clássica, ele fez fu r o s d e a lfin e t e e t e r i a u sa d o
b a r b a n t e s p a r a d e se n h a r as lin h a s a lá p is p a r a t o r n a r as p á gin a s u n ifo r m e s .
N o Esboço, Ju n g d i vi d i u o m a t e r i a l e m ca p ít u lo s. N o c u r s o d a t r a n s c r iç ã o
p a r a o vo l u m e d e c o u r o ve r m e l h o , ele a lt e r o u a lgu n s t ít u lo s d e c a p ít u lo s , a cr e s-
c e n t o u o u t r o s, e e d i t o u o m a t e r i a l m a is u m a ve z . O s co r t e s e a lt e r a ç õ e s fo r a m
p r e d o m i n a n t e m e n t e à se gu n d a c a m a d a d e i n t e r p r e t a ç ã o e e la b o r a ç ã o , e n ã o
ao p r ó p r i o m a t e r i a l d e fa n t a sia , e c o n s i s t i r a m p r i n c i p a l m e n t e n u m e n c u r t a -
m e n t o d o t e xt o . E e st a se gu n d a c a m a d a q u e Ju n g c o n t i n u a m e n t e r e e la b o r o u .
N a t r a n s c r iç ã o d o t e xt o p a r a e st a e d içã o , essa se gu n d a c a m a d a fo i i n d i c a d a , d e
fo r m a q u e a c r o n o lo gia e a c o m p o s i ç ã o e s t ã o visíve is. C o m o os c o m e n t á r i o s d e

95 Por exemplo, na p. 39 do Esboço corrigido, "Espantoso! Por que cortar?" está escrito à margem. Jung
evidentemente considerou este conselho e reteve as passagens originais. Cf. adiante p. 136.
3o LÍ BER N O V U S

Ju n g n a se gu n d a c a m a d a às ve z e s r e fe r e m - s e i m p l i c i t a m e n t e a fa n t a sia s q u e s ã o
e n c o n t r a d a s m a is a d ia n t e n o t e xt o , é t a m b é m ú t il l e r as fa n t a sia s d i r e t a m e n -
t e e m s u a s e q u ê n c ia c r o n o ló gic a , se gu id o d e u m a c o n t í n u a l e i t u r a d a se gu n d a
cam ad a.

Ju n g e n t ã o i l u s t r o u o t e xt o c o m a lgu m a s p in t u r a s , in ic ia is h is t o r ia d a s , b o r -

d a d u r a s o r n a m e n t a i s , e m a r ge n s. I n i c i a l m e n t e as p i n t u r a s se r e fe r e m d i r e t a -

m e n t e ao t e xt o . D e p o i s , elas se t o r n a m m a is s im b ó lic a s . Sã o im a g in a ç õ e s a t iva s

e m se u p r ó p r i o se n t id o . A c o m b i n a ç ã o d e t e xt o e i m a g e m l e m b r a as i l u m i n u r a s

d e W i l l i a m Bl a k e , c o m c u ja o b r a Ju n g t i n h a c e r t a fa m i l i a r i d a d e 9 6 .

U m r a s c u n h o p r e p a r a t ó r i o d e u m a d a s im a ge n s d o Líber Novus s o b r e vive u , o

q u e i n d i c a q u e elas fo r a m c u id a d o s a m e n t e co m p o st a s, c o m e ç a n d o c o m r a s c u -

n h o s a lá p is q u e fo r a m d e p o is e la b o r a d o s 9 7 . A c o m p o s i ç ã o d a s o u t r a s im a ge n s

p r o va ve lm e n t e s e gu ir a m p r o c e d i m e n t o s e m e lh a n t e . D a s p i n t u r a s d e Ju n g q u e

s o b r e vive r a m , é s u r p r e e n d e n t e q u e elas d ê e m u m sa lt o t ã o a b r u p t o d a s p a is a -

gen s d e 19 0 2- 19 0 3 ao a b s t r a io e s e m ifigu r a t ivo d e 191$ e m d ia n t e .

Ar t e e a Escola de Zurique
H o j e a b i b l i o t e c a d e Ju n g c o n t é m u n s p o u c o s l i vr o s d e a r t e m o d e r n a , e m b o r a

a lgu n s l i vr o s p o s s a m t e r p r o va ve l m e n t e se d is p e r s a d o ao lo n go d o s a n o s. E l e

t i n h a u m c a t á l o g o d o s t r a b a lh o s gr á fic o s d e O d i l o n Re d o n , a s s i m c o m o u m

e s t u d o s e u 9 8 . E l e p r o va ve l m e n t e c o n h e c e u o t r a b a lh o d e R e d o n q u a n d o e s -

t a va e m P a r is . Fo r t e s e co s d o m o v i m e n t o s i m b o l i s t a a p a r e c e m n a s p i n t u r a s

d o Líber Novus.

E m o u t u b r o d e 19 10 , Ju n g fez u m tour d e b i c i c le t a p e lo n o r t e d a It á lia c o m

se u co le ga H a n s Sc h m i d . Vi s i t a r a m Ra ve n a , e lá os afr escos e m o sa ico s ca u sa -

96 Em 1921, ele citou BLAKE . The Marriage of Heaven and Hell. O C , 6 §, 42211., § 460. • Em Psicologia e alquim ia ele
se refere a duas pinturas de Blake. O C , 12, fig. 14 e 19. • Em 11 de novembro de 1948, ele escreveu a Piloo
Nanavutty: "Acho Blake um estudo estonteante, já que ele conseguiu ajuntar tanto de um conhecimento
não digerido em suas fantasias. Assim como as vejo, elas são uma produção artística em vez de uma
representação autêntica de processos inconscientes" (Cartas, 2, p. 513-514).
97 Cf. adiante, Apêndice A.
98 R E D O N . Oeuvregraphiquecomplet. Paris: Secrétariat, 1913. • M ALLE RI O , André. Odilon Redon: Peintre,
Dessinateur et Graveur. Paris: H en ri Floury, 1923. H á também um livro sobre arte moderna, com uma
posição algo crítica: RAP H AEL, Max. Von Monetzu Picasso: Grundzúge einer Àsthetik und Entwicklung der
Modernen Malerei. Munique: Delphin Verlag, 1913.
I N T RO D U ÇÃO 3i

ram -lh e profun da im pressão. Parece que esses trabalh os t iveram u m im pact o
em suas pin t u ras: o uso de cores fortes, form as de m osaico, e figuras b id im en -
sion ais sem o uso d a p er sp ect iva".
Q u a n d o est ava em N o va Yo r k , e m 19 13, ele p r ovavelm en t e fo i ao A r -
m o r y Sh ow, que foi a p r im e ir a gran d e exib ição in t e r n a cio n a l de art e m o -
d er n a n a Am é r ic a ( a m o st r a foi at é 1$ de m ar ço, e Ju n g p a r t iu p ar a N o va
Yo r k em 4 de m a r ço ) . Ele se r e fe r iu ao qu ad ro Nu descendo um a escadaria, de
Mar eei Du ch a m p s, em seu sem in ár io de 19 2 5, que n a m o st r a cau sou fu -
r o r 10 0 . Nesse sem in ár io, t am b ém r efer iu -se a t er est u d ad o o d esen volvi-
m en t o d a p in t u r a de Picasso. D a d a a falt a de evid ên cia de est u d os ext en sos,
o con h ecim en t o de Ju n g sobre art e m o d er n a p rovavelm en t e d erivava-se
m ais im ed iat am en t e de exp er iên cia d ir et a.
Du r an t e a Pr im eir a Gu e r r a Mu n d ial, houve con tatos en t re os m em bros da
Escola de Zu r iq u e e os art ist as. Am b o s eram part e de m ovim en t os de avant-gar-
de, partes de círculos sociais en t r elaçad os 10 1. Em 19 13, Er ik a Schlegel p rocu rou
Ju n g para an álise. El a e seu m arido, Eu gen Schlegel, eram am igos de To n i W o l -
ff. Er ik a Schlegel era irm ã de Soph ie Taeuber, e t orn ou -se a bibliot ecária do
Clu b e Psicológico. Mem bros do Clu b e Psicológico eram con vidados a alguns
dos even tos do m ovim en t o Dad á. N a celebração da abert u ra da Galer ia Dad á
em 2 9 de m arço de 1917, H u go Ba ll repara em m em bros do Clu b e n a au d iên -
c i a 10 2 . O program a daquela n oit e in cluía dan ças abst raías de Soph ie Taeu ber e
poem as de H u go Ball, H an s Ar p e Tr ist an Tzara. Soph ie Taeuber, que h avia es-
tudado com Lab an , organ izou u m aula de dan ça para m em bros do Clu b e ju n t o
com Ar p . U m baile de m áscaras t am bém acon teceu e ela desen h ou as fan t a-
sia s 10 3 . Em 19 18 , ela apresen t ou u m espet áculo de m arion et es, "Ki n g Deer ",
em Zu riq u e. Passava-se n o bosque ju n t o ao Bu rgh õlzli. Fr eu d An alyt iku s, em
lu t a com Dr . O ed ip u s Com p lex, é t ran sform ado n u m papagaio pela Ur - Lib id o ,
parodicam en t e puxan do temas de Tranformações e símbolos da libido, de Jun g, e seu

9 9 Ju n g vis it o u Ra ve n a n o va m e n t e e m a b r il d e 1914.
10 0 Introductíon to Jungian Psychology, p. 59.
101 Cf. Z U C H , Ra in e r . DíeSurrealisten und C.G.Jung: St u d ie n z u r Re z e p t io n d er a n a lyt isch e n Psych ologie i m
Su r r e a lism u s a m Be isp ie l vo n M a x Er n s t , Vi c t o r Br a u n e r u n d H a n s Ar p . W e im a r : V D G , 2 0 0 4 .
102 Flight out of Tim e, p. 102.
103 S T R O E H , Gr e t a . "Bio gr a p h ie ". I n : Sophie Taeuber: 15 D é c e m b r e 19 8 9 - M a r s 19 9 0 , Mu sé e d a r t m o d e r n e
de la ville d e Par is. Par is: Pa r is-m u sé e s, 19 89 , p. 124. • En t r e vis t a c o m Al i n e Va la n gin , ar q u ivo b io gr á fico de
Ju n g, Co u n t w a y Li b r a r y o f Me d icin e , p. 29 .
32 LI BE R N O VU S

c o n flit o c o m F r e u d 10 4 . En t r e t a n t o , as r e la ç õ e s e n t r e o c ír c u lo de Ju n g e a lgu n s
dos dadaíst as ficaram m ais tensas. E m m aio de 1917, Em m y H en n in gs escreveu
a H u go Ball que o "psicoclu be" t in h a ido e m b o r a 10 5 . E m 19 18 , Ju n g cr it icou o
m ovim en t o Dad á n u m a pu blicação suíça, o que n ão escapou da at en ção dos d a-
d a íst a s 10 6 . O elem en t o crít ico que separou o trabalh o pict órico de Ju n g daquele
dos dadaíst as foi sua ênfase ext rem ad a n o significado, n o sen tido.
As au t oexperim en t ações e os experim en t os criat ivos de Ju n g n ão ocorreram
n u m vácuo. Du r an t e esse períod o, h avia gran de in teresse em art e e n a p in t u r a
em seu círculo. Alp h on se Maeder escreveu u m a m on ografia sobre Fer d in an d
H o d le r 10 7 , e m an t eve u m a correspon d ên cia am igável com e le 10 8 . Por volt a de
19 16 , Maeder teve u m a série de visões ou fantasias acordado, que ele p u blicou
sob pseu d ón im o. Q u an d o com en t ou com Ju n g sobre tais even tos, Ju n g disse:
"O que, você t a m b é m ?" 10 9 H a n s Sch m id t am bém escrevia e p in t ava suas fan -
tasias em algo sem elh an te ao Líber Novus. Molt zer era in t eressada em au m en t ar
as atividades art íst icas da escola de Zu riq u e. Ela sen t ia que n o círculo deles
faltavam art ist as e con siderava Rik lin u m m o d e lo 110 . J.B. Lan g, que t in h a sido
an alisado por Rik lin , com eçou a p in t ar quadros sim bólicos. Molt zer t in h a u m
livro que ela ch am ava de sua Bíblia, n o qual ela desen hava e escrevia. El a reco-
m en dava a sua pacien t e Fan n y Bo wd it ch Ka t z que fizesse o m esm o 111.
Em 19 19 , Rik lin expôs alguns de seus quadros com o parte da "N e w Life"
n o Ku n st h au s em Zu r iq u e, descritos com o u m grupo de expression ist as suíços,

104 O s b on ecos est ão n o M u s e u Be lle r ive , e m Zu r iq u e . Cf. M I K O L , Br u n o . "Su r le t h eat r e de m a r io n n e t t e s


d e So p h ie Ta e u b e r - Ar p ". Sophie Taeuber. 15 D é c e m b r e 19 8 9 - M a r s 19 9 0 , Mu sé e d a r t m o d e r n e d e la ville de
Par is, p. 59 - 6 8 .
105 B A L L , H u g o & H E N N I N G S , Em m y. Dam als in Zurich: Br ie fe aus d e n Ja h r e n 1915-1917. Zu r iq u e : D i e
Ar c h e , 1978, p. 132.
106 J U N G . "So b r e o In co n scie n t e ". O C , 10, § 4 4 . • P H A R M O U S E . DadaReview, 39 1,19 19 . TZARA,
Tr is t a n . Dada, 4-5, 1919. Zu r iq u e .
107 FerdinandHolder. Ei n e Sk iz z e sein er seelisch en En t w i c k l u n g u n d Be d e u t u n g fu r d ie sch we iz e r isch -
n a t io n a le Ku lt u r . Zu r iq u e : Rasch er , 1916.
108 Escr it o s de Maed er.
10 9 En t r e vis t a co m Maed er , a r q u ivo b io gr á fico Ju n g, Co u n t w a y Li b r a r y o f Me d icin e , p. 9.
n o Fr a n z Ri k l i n a So p h ie Ri k l i n , 20 de m a io de 1915, escr it os de Ri k l i n .
in E m 17 de agost o de 1916, Fa n n y Bo w d i t c h Ka t z , qu e est ava e m an álise c o m ela n a ép o ca, a n o t o u e m seu
d iár io : "So b r e seu [o u seja, d e M o lt z e r ] livr o - su a Bíb lia - d esen h os cad a u m co m a n o t a çõ e s - o qu e
t a m b é m d evo fazer". D e acord o co m Ka t z , Mo lt z e r via suas p in t u r as co m o "p u r am en t e su b jet ivas, n ã o com o
t rab alh os de ar t e" (31 de ju lh o , Co u n t wa y Lib r a r y o f Me d icin e ) . E m o u t r a ocasião, Ka t z ob ser va qu e Mo lt z e r
"falava de Ar t e , art e de verd ad e, com o exp r essão d a r eligião" ( 24 de agosto, 1916. Ib id .) . E m 1916, Mo lt z e r
ap r esen t ou in t er p r et ações p sicológicas de algu n s qu ad ros de Ri k l i n n u m a p alest r a n o Clu b e Psicológico ( c f
m e u Cult Fictions: Ju n g a n d t h e Fo u n d in g o f An a lyt ica l Psych ology. Lo n d r es: Rou t led ge, 1998, p. 102. Sob re
La n g, cf. F E I T K N E C H T , T h o m a s (o r g.). "Die dunkle und wildeSeite der Seele": Herm ann Hesse- Br iefwech sel m i t
se in e m Psych o a n a lyt ik e r Jo se f La n g, 19 16-19 44. Fr a n k fu r t : Su h r k a m p f 2 0 0 6 .
I N T RO D U ÇÃO 33

ju n t o com H an s Ar p , Soph ie Taeuber, Fran cis Picabia e Au gu st o Gia co m e t t i 112 .


Co m suas con exões pessoais, Ju n g pod eria facilm en t e t er exposto alguns de
seus trabalh os em lugares com o estes, se assim tivesse querido. Port an t o, sua
recusa em con siderar seus trabalh os com o art e ocorre n u m con t ext o em que
h avia possibilidades reais para ele t er tom ado esse cam in h o.
Em algumas ocasiões, Ju n g d iscu t ia arte com Er ik a Sch legel. Ela regist rou a
seguinte con versa:

Eu usei meu medalhão de pérola (o ornamento de pérolas que Sophie fez


para m im ), na casa de Jung ontem. Ele gostou muito, o que o levou de pronto
a falar animadamente sobre arte, por quase uma hora. Ele falou sobre Riklin ,
um dos alunos de Augusto Giacom etti, e observou que, embora seus trabalhos
menores tinham um certo valor estético, os maiores simplesmente desapare-
ciam. Na verdade, ele mesmo desaparecia totalmente em sua arte, tornando-o
extremamente inatingível. Seu trabalho era como um a parede na qual a água
escorria ondulada. Ele portanto não podia analisá-la, um a vez que isso reque-
riria de nós que estivéssemos focados e bem orientados, como uma faca. De
um certo modo, ele havia tropeçado na arte. Mas a arte e a ciência não eram
mais que os servos do espírito criativo, que é o que deve ser servido.
Com relação a m eu próprio trabalho, a questão também era chegar a
uma conclusão se era realmente arte. O s contos de fadas e as pinturas t i -
nham u m sentido religioso no fundo. Eu também sabia que de alguma for-
ma e em algum momento a arte deve alcançar as pessoas 113.

Para Ju n g, Fr an z Rik lin parecia ser algo com o u m doppelganger, cujo dest in o
ele se preocupava em evitar. Essa afirm ação t am bém in d ica a relat ivização que
fazia Ju n g do status da arte e da ciên cia à qual ele chegou por m eio de sua au t o-
experim en t ação.
Assim , o Líber Novus n ão era de form a algum a u m a atividade pecu liar ou
idiossin crát ica, t am pouco o prod u t o de u m a psicose. E m vez disso, ele in d ica as
in t ersecções tão p róxim as en t re a exp erim en t ação art íst ica e a psicológica com
a qual t an t os in d ivíd u os est iveram engajados n aquela época.

112 DasNeueLeben", Erst Ausstellung. Zu r iq u e : Ku n s t h a u s . J. B. La n g r e co r d a u m a o casiã o e m qu e ele est ava n a


casa d e Ri k l i n q u an d o est avam t a m b é m p r esen t es Ju n g e Au gu st o Gia c o m e t t i (píary, 3 d e d e z e m b r o de
1916, p. 9, La n g p ap ers, Swiss Lit e r a r y Ar c h ive s , Be r n a ) .
113 11 d e m a r ço d e 1921, Ca d e r n o s, escr it os de Sch legel.
34 LI BE R N O VU S

O e xp e r im e n t o co le t ivo
Em 19 15, Ju n g m an t eve u m a lon ga corresp on d ên cia com seu colega H a n s
Sch m id sobre a qu est ão do en t en d im en t o de tipos psicológicos. Essa corre-
spon d ên cia n ão d á sin ais diret os da au t oexperim en t ação de Ju n g, e in d ica que
as teorias que ele desen volveu duran t e esse p eríod o n ão em ergiram som en te
de sua at ividade de im agin ação at iva, mas que t am bém , em part e, con sist iram
do t eorizar psicológico con ven cion al 114 . E m m arço de 19 1$, Ju n g escreveu para
Sm it h Elyje liffe :

Ain d a estou com o exército n um a cidadezinha onde tenho m uito trabalho


prático e cavalgo bastante... At é que tive que me jun t ar ao exército, vivia
quieto e devotava m eu tempo a meus pacientes e a m eu trabalho. Estava
trabalhando particularm ente nos dois tipos de psicologia e sobre a síntese
das tendências in con scien t es 115.

Du r an t e sua au t oexploração, ele exp erim en t ou estados de t u m u lt o. Ele le m -


bra que exp erim en t ou grande m edo, e que algumas vezes agarrava-se à m esa
para m an t er-se sã o 116 . Du r an t e este períod o, ele n ot ou que "sen t ia-m e m u it as
vezes de t al form a agitado que r ecor r i a exercícios de yoga para desligar-m e das
em oções. Mas com o m eu in t u it o era fazer a experiên cia do que se passava em
m im , só m e en tregava a tais exercícios para recobrar a calm a, a fim de ret om ar
o t rabalh o com o in con scien t e 117 ."
Lem b r a que To n i W o lff foi at raída para o processo n o qual ele estava en -
volvid o, e experim en t ava u m sem elh an te fluir de im agens. Ju n g percebeu que
pod ia d iscu t ir suas experiên cias com ela, mas ela estava desorien t ada e n a m es-
m a con fu são 118 . D a m esm a form a, sua esposa era in capaz de ajudá-lo. Con se-
quen t em en t e, ele n ot ou que "ser capaz de perseverar foi em fun ção de força
b r u t a " 119 .

114 B E E B E , Jo h n & F A L Z E D E R , Er n s t ( o r gs.) . Phílem onSeries [n o p r e lo ].


115 B U R N H A M , Jo h n . Jelíffe: Am e r i c a n Psych oan alyst a n d P h ys ic ia n & H i s Co r r e sp o n d e n ce w i t h Sigm u n d
Fr e u d a n d C G . Ju n g. Ch ica go : U n ive r s it y o f Ch ica go Press, 1983, p. 19 6 -19 7 [or gan izad o p o r W i l l i a m
M c Gu i r e ] .
116 M P , p. 174.
117 Mem órias, p. 157-158.
118 MP, p. 174.
119 Ib id .
I N T RO D U ÇÃO 35

O Clu b e Psicológico h avia sido fundado n o com eço de 19 16 , por m eio de


u m a d oação de 36 0 . O O O fran cos suíços de Ed it h Rockefeller McCo r m ick , que
t in h a vin d o a Zu r iq u e para ser an alisada por Ju n g em 19 13. E m seu com eço
con t ava com aproxim adam en t e sessenta m em bros. Para Ju n g, o objet ivo do
Clu b e era estudar as relações dos in d ivíd u os com o grupo, e forn ecer u m a m -
bien t e n at u ralist a para que a observação psicológica ultrapassasse as lim it ações
da an álise feit a de in d ivíd u o para in d ivíd u o, assim com o forn ecer t am bém u m
espaço on de pacien tes pudessem apren der a se adaptar a situações sociais. Ao
m esm o tem po, u m corpo de an alistas profission ais con t in u ou a se en con t rar
com o Associação de Psicologia An a lít ica 120 . Ju n g p art icip ou in t egralm en t e em
ambas essas organ izações.
A au t oexp erim en t ação de Ju n g t am bém in t r od u ziu u m a m u -d an ça em seu
trabalh o an alítico. Ele en corajava seus pacien tes a em barcar em processos se-
m elh an t es de au t oexperim en t ação. O s pacien tes eram in st ru íd os sobre com o
con d u zir a im agin ação at iva, a m an t er diálogos in t ern os, e a p in t ar suas fan t a-
sias. Ele en carou suas próprias experiên cias com o paradigm át icas. N o sem in á-
rio de 19 25, observou: "Re t ir o todo m eu m at erial em pírico de m eus pacien tes,
mas a solução do problem a eu ret iro de den t ro, de m in h as observações dos
processos in con scien t es"121.
T i n a Keller, que estava em an álise com Ju n g desde 19 12, lem b ra que Ju n g
"com frequên cia falava de si m esm o e de suas próprias experiên cias":

Naqueles dias do começo, quando se chegava para a h ora de análise, o as-


sim chamado "livro verm elh o" ficava aberto n u m cavalete. Nele, Dr . Jun g
h avia pintado algo ou t in h a acabado um desenho. Às vezes ele me m ost ra-
va o que t in h a feito e comentava algo a respeito. O trabalho cuidadoso e
preciso que ele colocava nessas pinturas e nos textos tipo ilum in uras que
as acompanhavam, testemunhavam a im portân cia da tarefa. O mestre en -
tão dem onstrava ao estudante que o desenvolvimento psíquico demandava
tempo e esfor ço 122 .

120 So b r e a fo r m a çã o d o Clu b e , cf. m e u Cult Fictions: C G . Ju n g a n d t h e Fo u n d in g o f An a lyt ic a l Psych ology.


121 Introâuctíon to Jungian Psychology, p . 35.
122 C G . Ju n g: So m e m e m o r ie s a n d r eflect io n s". InwardLight, 35,19 72, p . I I . Sob r e T i n a Ke lle r , cf. S W A N ,
W en d y. C. G.Jung and Active Im agination. Sa a r b r ú ck e n : V D M , 20 0 7.
36 LI BE R N O VU S

Em suas an álises com Ju n g e com To n i W o lff Keller fez im agin ação at i-


va e t am bém p in t ou . Lon ge de ser u m a em preit ad a solit ária, o con fron t o de
Ju n g com o in con scien t e era algo coletivo, para o qu al ele con vocava t am bém
seus pacien tes. Aqu elas pessoas ao redor de Ju n g form avam u m grupo avant-garde
engajadas n u m exp erim en t o social que esperavam pudesse t ran sform ar suas
vidas, e as vidas em t orn o delas.

O r et or n o dos m or t os
Em m eio ao m assacre sem preceden tes que a gu erra t rou xe, o t em a do ret or-
n o dos m ort os estava dissem in ado, com o n o film e de Ab e l Gan ce, faccuse123.
A badalada d a m ort e t am bém levou a u m in teresse ren om ado n o espirit ism o.
Ap ó s aproxim ad am en t e u m ano, Ju n g com eçou a escrever n ovam en t e nos Liv-
ros Negros, em 19 1$, com u m a n ova série de fantasias. Ele já h avia com pletado o
esboço m an u scrit o do Líber Prímus e do Líber Secundus124. N o in ício de 19 16 , Ju n g
exp erim en t ou u m a série im pression an t e de eventos parapsicológicos em su a
casa. E m 19 23, ele n ar r ou esses even tos a Ca r y de An gu lo (depois Bayn es). El a
o regist rou da seguinte form a:

Nu m a noite, seu filho com eçou a agitar-se em seu sono e a debater-se d i-


zendo que não conseguia acordar. Fin alm en te, sua m ulher teve que chamar
você para acalm á-lo e isto você só pode fazer colocando panos frios sobre
ele. Fin alm en te ele se acalmou e con tin uou a dorm ir. Na manhã seguinte ele
acordou sem se lem brar de nada, mas parecia extremamente exausto, então
você disse a ele para não ir à escola, ele não perguntou por que, mas pareceu
concordar. Mas m uito inesperadamente ele pediu papel e lápis coloridos e
com eçou a trabalhar no seguinte desenho: u m homem estava pescando com
lin h a e anzol no meio do desenho. A esquerda estava o diabo dizendo algo
ao hom em , e seu filho escreveu o que ele disse. E que ele tin h a vin do até o
pescador porque ele estava pegando seus peixes, mas à direit a estava um
anjo que disse: "Não, não podes levar este hom em , ele só está levando os

123 Cf. W I N T E R . Sites of Mem ory, Sites ofMourning, p. 18, 6 9 ,133-144.


124 H á u m a n o t a a d icio n a d a n o Livro Negro $ n est e p on t o: "N e st e m o m e n t o as p ar t es I e 11 [d o Livro Verm elho]
fo r a m escr it as. Im e d ia t a m e n t e ap ós o in ício d a gu e r r a " (p . 8 6 ) . To d a a a n o t a çã o est á e scr it a c o m a
caligr afia d e Ju n g, e "d o Livro Verm elho" fo i acr escen t ad o p o r o u t r a pessoa.
I N T RO D U ÇÃO 37

peixes ruin s e n en hum dos bons". Então, depois que seu filho fez este dese-
nho, ele ficou bem contente. Na mesma noite, duas de suas filhas pensaram
ter visto assombrações em seus quartos. No dia seguinte, você escreveu os
"Sete sermões aos m ortos", e você sabia que depois disso nada mais pert ur-
baria sua família, e nada mais de fato aconteceu. É claro que eu sabia que
você era o pescador no desenho de seu filho, e você me disse isso, mas o
m enino não sabia I2S.

Em Memórias, Ju n g con t a o seguinte:

Por volt a das cinco da tarde no domingo, a campainha da porta de entrada


com eçou a soar insistentemente... Todos imediatamente olharam para ver
quem estava lá, mas não dava para ver ninguém. Eu estava sentado próxim o
à campainha da porta e não a ouvi, mas a vi mover-se. Nós nos en treolha-
mos, estupefatos! A atmosfera era terrivelm ente opressiva, acredite! Percebi
que algo ia acontecer. A casa parecia repleta de um a multidão, abarrotada
de espíritos. Estavam por toda a parte, até mesmo debaixo da porta, m al se
podia respirar. Q u an t o a m im , eu me debatia com a questão: "Pelo amor de
Deus, o que é isto>" Houve então um a resposta uníssona e vibrante: "Nós
voltamos de Jerusalém , onde não encontramos o que buscávamos". Essas
palavras correspondem às prim eiras linhas dos Septem Serm ones ad Mortuos.
As palavras puseram-se então a fluir espontaneamente, e em três noites a
coisa estava escrita. Mal eu começava a escrever, toda a coorte de espíritos
desvaneceu-se. A fantasmagoria term in ara. A sala tornou-se tranquila, a at-
mosfera pura até a noite do dia segu in t e 126 .

O s m ort os t in h am aparecido n u m a fan t asia em 17 de jan eiro de 19 14 , e t in h am


d it o que estavam prestes a ir a Jeru salém para orar nos t ú m u los m ais sagrad os 127.
Sua viagem eviden t em en t e n ão t in h a sido bem -su cedida. O s Septem Serm ones ad
Mortuos é o pon t o cu lm in an t e das fantasias desse períod o. E u m a cosm ologia
psicológica dispost a n a form a de u m m it o de criação gn óst ico. Nas fantasias de
Jun g, u m n ovo Deu s t in h a n ascido em sua alm a, o Deu s que é o filh o dos sapos,
Abraxas. Ju n g com preen d eu ist o sim bolicam en t e. Ele via est a figu ra rep re-

125 CFB.
126 Mem órias, p. 169.
127 C f ad ian t e, p. 297.
38 LI BE R N O VU S

s e n t a n d o a u n ific a ç ã o d o D e u s c r ist ã o c o m sa t ã , p or t an t o apresen t an d o u m a

t ran sform ação n a im agem d ivin a ocid en t al. Só em 19 52, em Resposta a Jó, Ju n g
elaboraria esse t em a em público.
Ju n g h avia estudado a lit er at u r a do gn ost icism o n o p eríod o de leit u ras p re-
lim in ares para seu Transformações e símbolos da libido. Em jan eiro e ou t u bro de 19 15,
du ran t e o serviço m ilit ar, est udou as obras dos gn óst icos. Dep ois de t er escri-
t o os Septem Serm ones n os Livros Negros, Jung recop iou -os n u m esb oço caligráfi-

co, n u m volu m e separado, rearran jan d o u m pouco a sequên cia. Ad icio n o u a


seguinte in scrição com o subt ít ulo: "O s sete serm ões aos m ort os, escritos p or
Basilid es em Alexan d r ia, a cidade on de o O r ie n t e en con t ra o O cid e n t e "128 .
Ju n g en t ão au t orizou a publicação em carát er part icu lar, sob a form a de folh e-
to, acrescen tan do: "Tr ad u zid o do origin al grego para o alem ão". Essa legen da
in d ica os efeitos est ilíst icos sobre Ju n g dos estudos clássicos do século X I X .
Ele lem b ra que os escreveu por ocasião da fun dação do Clu b e Psicológico, e os
en carava com o u m presen te a Ed it h Rockefeller McCo r m ick por t er fundado
o clu b e 129 . O fereceu cópias a am igos e con fiden t es. Ao en tregar u m a cópia a
Alp h on se Maeder, escreveu:

Não podia atrever-m e a colocar nele o m eu nome, mas escolhi o nome de


uma grande figura espiritual dos prim eiros tempos do cristianism o, figura
essa que o cristian ism o relegou. Caiu -m e do céu, repentinamente, como u m
fruto maduro n a aflição de um tempo difícil; ele acendeu-me um a luz de
esperança e consolo nas horas de d or I3°.

Em 16 de jan eiro de 19 16 , Ju n g desen h ou u m m an d ala nos Livros Negros (ver


Ap ên d ice A ) . Er a o p rim eiro esboço do "Syst em a Mu n d it ot iu s". Passou en t ão
a pin t á-lo. Em seu verso, escreveu em in glês: "Est e é o p r im eir o m an d ala que
con st ru í n o ano de 19 16 , in t eiram en t e in con scien t e do que sign ificava". As fan -
tasias dos Livros Negros con t in u aram . O "Syst em a Mu n d it ot iu s" é u m a cosm olo-
gia pict órica dos Sermones.

128 O Ba silid e s h ist ó r ico fo i u m gn ó st ico q u e e n sin o u e m Al e xa n d r i a n o sécu lo I I . Cf. n o t a 8 1, p. 4 4 8 .


129 MP, p. 26 .
130 19 d e Ja n e ir o d e 1917. Cartas. Vo l. I , p. 4 9 . Ao e n via r u m a có p ia d os Serm ones a Jo la n d e Jaco b i, Ju n g os
d escr eveu co m o "u m a cu r io sid ad e d a o ficin a d o in co n scie n t e " ( 7 d e o u t u b r o d e 1928, J A ) .
I N T RO D U ÇÃO 39

En t r e n de ju n h o e 2 de out ubro de 1917, Ju n g prest ava o serviço m ilit ar


em Ch at eau d 'O ex, com o com an dan t e dos prision eiros de gu erra ingleses. Por
volt a de agosto, escreveu a Sm it h Ely Jeliffe que seu serviço m ilit ar o t in h a r o u -
bado com plet am en t e de seu t rabalh o e que, n a sua volt a, esperava con clu ir u m
longo en saio sobre os t ipos. Con clu ía a cart a dizen do: "Con osco tudo p er m a-
nece in alt erad o e quieto. Tu d o o m ais está en golido pela guerra. A psicose est á
ain d a crescen do, co n t in u an d o "131.
Nesse m om en t o, sen t ia que estava ain d a n u m estado de caos que só com e-
çou a clarear pert o do fin al da gu er r a 132 . D o com eço de agosto até o fin al de se-
tem bro, ele desen h ou u m a série de vin t e e sete m an dalas a lápis em seu cadern o
m ilit ar, que con ser vou 133. A prin cípio n ão en t en d ia esses m an dalas, mas sen t ia
que eram m u it o sign ificat ivos. A p ar t ir de 2 0 de agosto, desen h ava u m m an d ala
quase todos os dias. Ist o lh e dava a sen sação de t er feito u m a fotografia de cada
d ia e observava com o esses m an dalas m u davam . Ele lem b ra t er recebido u m a
cart a dessa m u lh er h olan desa que lh e en ervou t er r ivelm en t e 134 . Nessa cart a,
essa m u lh er, ou seja, Molt zer, defen dia "a op in ião de que as fantasias que n as-
cem do in con scien t e possuem u m valor art íst ico, pert en cen do, port an t o, ao
d om ín io d a a r t e "135 . Ju n g ficou pert u rbado porque a opin ião n ão era est ú pid a
e, além do m ais, os pin t ores m odern os estavam t en t an do fazer arte a p ar t ir do
in con scien t e. Ist o despert ou n ele u m a d ú vid a se suas fantasias eram de fato
espon t ân eas e n at u rais. N o d ia seguin te, desen h ou u m m an d ala, e u m a de suas
partes estava quebrada, fora de sim et ria:

Só pouco a pouco com preendi o que significa propriam ente o mandala:


"Form ação - Transformação, etern a recriação da Et ern a Mente". O m an -
dala exprim e o si-mesmo, a totalidade da personalidade que, se tudo está
bem , é harm oniosa, mas que não perm ite o autoengano.
Meus desenhos de mandalas eram criptogramas que me eram diariam ente
comunicados acerca do estado de m eu "si-m esm o"136 .

131 B U R N H A M , Jo h n C . Jeliffe: Am e r i c a n Psych oan alyst a n d P h ysicia n & H i s Co r r e sp o n d e n ce w i t h


Sigm u n d Fr e u d a n d C G . Ju n g, p. 199 [o r gan izad o p o r W i l l i a m M c Gu i r e , p. 19 9 ].
132 MP, p. 172.
133 Cf. Ap ê n d i c e A .
134 Mem órias, p. 173.
135 Ib id .
136 Ib id .
4o LI BE R N O VU S

O m an d ala em qu est ão parece ser o de 6 de agosto de 19 17 137 . A segunda


lin h a é do Fausto, de Goet h e. Mefist ófeles est á falando a Fausto, d an d o-lh e d i -
reções n o rein o das Mães:

M EF I ST Ó F ELES:
U m trípode brilh an te m ost rar-t e-á
que estás no terreno mais profundo, o mais profundo de todos
Por sua luz verás as Mães:
umas estão sentadas, outras estão de pé e andam,
como pode acontecer. Formação, transformação
a recreação etern a da mente eterna.
En voltos em imagens de todas as criaturas,
eles não te veem , pois veem apenas vultos.
Então, cobra ânimo, pois o perigo é grande,
e vai direto até esse trípode,
toca-o com a ch ave!138

A cart a em qu est ão n ão veio à lu z. Con t u d o, n u m a cart a subsequente in é-


d it a de 2 1 de n ovem bro de 19 18 , ain d a en quan t o estava em Ch at eau d 'O ex,
Ju n g escreveu que " M . Molt zer de n ovo p ert u rb ou -m e com suas car t as"139 . Ele
rep rod u ziu os m an dalas n o Líber Novus. Ele observou que foi d u ran t e este pe-
ríod o que u m a id eia viva do si-m esm o apresen tou-se a ele pela p r im eir a vez:
"Ele m e aparecia com o a m ôn ad a que sou e que é m eu m un do. O m an d ala
represen t a esta m ôn ad a e correspon de à n at u reza m icrocósm ica d a a lm a " 14 0 .
Nesse m om en t o ele n ão sabia on de este processo o estava levan do, m as com e-
çou a perceber que o m an d ala represen t ava a m et a do processo: "Só quan do
com ecei a p in t ar os m an dalas vi que o cam in h o que seria n ecessário p ercorrer
e cada passo que d evia dar, t udo con vergia para u m dado pon to, o do cen t ro.
Com p r een d i sem pre m ais claram en t e que o m an d ala exp rim e o cen t ro e que é

137 Cf. Ap ê n d i c e A .
138 Fausto, 2, At o I , 6287S.
139 C a r t a in éd it a , AFJ. Exis t e t a m b é m u m q u ad r o se m d a t a d e M o lt z e r q u e p ar ece ser u m m a n d a la
q u ad r ad a, q u e ela d escr eve e m b r eve n o t a co m o " U m a a p r e se n t a çã o p ict ó r ica d a In d ivid u a çã o o u d o
p r ocesso d e In d ivid u a çã o " ( Bib lio t e ca , Cl u b e Psico ló gico , Zu r i q u e ) .
140 Mem órias, p. 174. As fon t es m a is im ed ia t a s p a r a a in sp ir a çã o d e Ju n g sob r e o co n ce it o d o si- m e sm o
p a r e ce m ser as co n ce p çõ e s d e At m a n / Br a h m a n n o h in d u ísm o , q u e ele d iscu t iu e m seu Tipos psicológicos d e
1921, e e m cer t as p ar t es d e seu Zaratustra d e N ie t z sch t e . Cf. ad ian t e, n o t a 29, p. 421.
I N T RO D U ÇÃO 4i

a expresão de todos os ca m in h o s"14 1. Du r an t e os anos 19 2 0 , a com preen são de


Ju n g em t orn o do m an d ala aprofun dou-se.
O Esboço con t in h a fantasias de out ubro de 19 13 at é fevereiro de 19 14 . N o
in vern o de 1917, Ju n g escreveu u m m an u scrit o n ovo ch am ado Aprofundamentos,
que in icia on de ele h avia parado. Nele, t ran screveu fantasias de abril de 19 13 até
ju n h o de 19 16 . Co m o nos dois p rim eiros livros de Líber Novus, Ju n g en t rem eou
as fan t asias com com en t ários in t er p r et at ivos 14 2 . Ele in clu iu os Sermones nesse
m at erial, e en t ão ad icion ou os com en t ários de Filêm on a cada serm ão. Nest es,
Filêm on salien t ava a n at u reza com p en sat ória de seus en sin am en t os: ele d eli-
beradam en t e salien t ava m ais precisam en t e aquelas con cepções que falt avam
aos m ort os. Aprofundam entos for m a efet ivam en t e o Líber Tertíus do Líber Novus. A

sequên cia com plet a do t ext o seria en t ão a seguinte:

Líber Prímus: "O cam inho daquele que virá"


Líber Secundus: "As imagens do erran te"
Líber Tertíus: "Aprofun dam en tos"

Du r an t e esse períod o, Ju n g con t in u ou t ran screven do o Esboço n o volum e


caligráfico e acrescen tan do pin t u ras. As fantasias dos Livros Negros t orn aram -se
in t erm it en t es. Ele represen t ou sua percepção do significado do si-m esm o, que
ocorrera n o out un o de 1917, n o Aprofundamentos143. Est e con t ém a visão de Ju n g do
Deu s ren ascido, cu lm in an d o n o ret rat o de Abraxas. Ele percebeu que m u it o do
que lh e foi dado n a part e in icial do livro (ou seja, Líber Prímus e Líber Secundus) na
realidade lh e foi entregue por Filê m o n 14 4 . Ele percebeu que h avia n ele u m p ro-
fético velh o sábio, a qu em ele n ão era idên tico. Isso represen t ou u m a d esid en t i-
ficação crítica. Em 17 de jan eiro de 19 18 , Ju n g escreveu a J.B. Lan g:

O trabalho com o inconsciente tem que acontecer prim eiro e mais in t en -


samente para nós, conosco. Nossos pacientes irão se beneficiar dele in d i-
retamente. O perigo consiste n a ilusão do profeta, que é com frequência o

141 Ib id .
142 N a p. 23 d o m a n u scr it o d e Aprofundam entos, é in d ica d a u m a d at a: "27/ u/ 17", q u e su gere q u e fo r a m escr it os
n o segu n d o sem est r e d e 1917 e, p o r t an t o , ap ó s as e xp e r iê n cia s d o s m an d alas e m Ch a t e a u d ' O e x.
143 Cf. ad ian t e, p. 407S.
144 Cf. ad ian t e, p. 4 26 .
42 LI BE R N O VU S

resu lt ad o d e se lid a r com o inconsciente. É o diabo que diz: desdenhe toda a


razão e a ciência, os altos poderes da humanidade. Isto nunca é apropriado,
ainda que estejamos forçados a reconhecer (a existência do) irracion al 14 5 .

A tarefa crít ica de Ju n g de "exam in ar em det alh es" suas fantasias era a de
d iferen ciar as vozes e as personagens. Por exem plo, nos Livros Negros é Ju n g que
d it a os Sermones aos m ort os. E m Aprofundamentos n ão é Ju n g, mas Filêm on que
os d iz. Nos Livros Negros a p rin cip al figura com qu em Ju n g t em diálogos é sua
alm a. E m algumas seções do Líber Novus é, por sua vez, a serpen te e o pássaro.
N u m a con versa de jan eiro de 19 16 , sua alm a lh e exp lica que, quan do o Alt o e o
Baixo n ão est ão u n idos ela, se d esped aça em três partes — u m a serpen te, a alm a
h u m an a, e o pássaro ou alm a celest ial, que visit a os deuses. Assim , a revisão de
Ju n g aqui pode ser en carada com o u m reflexo de sua com preen são da n at u reza
t rip art it e de sua a lm a 14 6 .
Du r an t e esse períod o, Ju n g con t in u ou a t rabalh ar em seu m at erial, e h á a l-
guns in dícios de que o d iscu t ia com seus colegas. E m m arço de 19 18 , escreveu a
J.B. Lan g, que lh e h avia en viado algumas de suas próprias fantasias:

Não gostaria de dizer nada mais a não ser en corajá-lo a con t in uar com
essa abordagem pois, como você mesmo tão corretam en te observou, é
m uit o im port an t e que experim en tem os os con teúdos do in con scien te an -
tes de form arm os qualquer opin ião a respeito. Con cord o bastante com
você que temos que abraçar o con h ecim en to da gnose e do neoplatonism o,
já que estes são os sistemas que con têm o m at erial adequado para form ar a
base de um a t eoria do espírito in con scien te. Ven h o trabalhando com isto
há bastante tempo, e tive grandes oportunidades de comparar, ao menos
parcialm en te, m in has experiên cias com as de outros. Est a é a razão de ter
ficado tão satisfeito em escutar praticam en te as mesmas coisas de você.
Est ou contente que você t en h a descoberto por si mesmo essa área de t ra-
balho que está pron t a a ser atacada. At é agora, eu não t in h a trabalhadores.
Est ou feliz que queira ju n t ar forças comigo. Con sid ero m uit o im port an t e
que você ext raia seu próprio m at erial do in con scien te sem influências, tão
cuidadosamente quanto possível. Meu m at erial é bastante volumoso, m u i-

145 Co l e ç ã o p ar t icu lar , St e p h e n M a r t i n . A r e fe r ê n cia é p a r a a d e cla r a çã o de Me fist ó fe le s n o Fausto ( i , I.8 $IS. ) .


146 Cf. a d ia n t e, p. 511.
I N T RO D U ÇÃO 43

to com plicado, e em parte bem gráfico, já quase todo clarificado. Mas o


que me falta com pletam ente é m at erial m oderno com parativo. Zarat u st ra
está, de form a m uit o forte, conscientem ente formado. Meyrin k m odifica
esteticam ente; além do m ais, sin t o que lhe falta sinceridade religiosa 147 .

O con t eú d o
O Líber Novus apresen ta assim u m a série de im agin ações ativas ju n t o com a t en -
t at iva de Ju n g de com preen der seu significado. Est e trabalh o de com preen são
abrange m u it os fios en t relaçados: u m a t en t at iva de com preen der-se a si m es-
m o e de in t egrar e desen volver os vários com pon en t es de sua person alidade;
u m a t en t at iva de com preen der a est ru t u ra da person alidade h u m an a em geral;
u m a t en t at iva de com preen der a relação do in d ivíd u o com a sociedade de h oje
e com a com un idade dos m ort os; u m a t en t at iva de com preen der os efeitos p si-
cológicos e h ist óricos do crist ian ism o; e u m a t en t at iva de com preen der a fu t u ra
evolução religiosa do O cid en t e. Ju n g discute m u it os outros tem as n a obra, en -
t re os quais: a n at u reza do aut ocon h ecim en t o, a n at u reza d a alm a, as relações
en t re pen sar e sen t ir e os tipos psicológicos, a relação en t re a m asculin idade e
a fem in ilid ad e in t eriores e ext eriores, a un ião dos opostos, a solidão, o valor do
con h ecim en t o e da in st rução, o status da ciên cia, o sign ificado dos sím bolos e
com o eles devem ser en t en didos, o sen t ido da guerra, a lou cu ra, a lou cu ra d ivi-
n a e a psiqu iat ria, com o a Im it ação de Cr ist o deve ser en t en d id a h oje, a m ort e
de Deu s, a im port ân cia h ist órica de Niet zsch e, e a relação en te m agia e razão.
O t em a geral do livro é com o Ju n g recupera sua alm a e supera o m al-est ar
con t em p orân eo d a alien ação espirit u al. Ist o é fin alm en t e alcan çado p ossib ili-
tan do o ren ascim en t o de u m a n ova im agem de Deu s em sua alm a e d esen vol-
ven do u m a n ova cosm ovisão n a form a de u m a cosm ologia psicológica e t eoló-
gica. O Líber Novus apresen ta o p rot ót ip o da con cepção ju n gu ian a do processo
de in dividuação, que ele con siderava a form a u n iversal do desen volvim en t o
psicológico in d ivid u al. O p róp rio Líber Novus pode ser com preen dido, por u m
lado, com o descreven do o processo de in dividu ação de Ju n g e, por out ro, com o
a elaboração que ele fez deste con ceit o com o u m esquem a psicológico geral.

147 Co le ç ã o p ar t icu lar , St e p h e n M a r t i n .


44 LI BE R N O VU S

N o in ício d o livr o , Ju n g reen con t ra sua alm a e depois em barca n u m a sequên cia
de aven turas fan tásticas, que form am u m a n arrat iva con sequen te. Ele percebeu
que, até en t ão, h avia servido ao espírit o da época, caract erizado pelo uso e pelo
valor. Alé m disso, h avia u m espírit o das profun dezas, que levava às coisas da
alm a. D e acordo com a autobiografia post erior de Ju n g, o espírit o da época
correspon de à person alidade n ú m ero i e o espírit o das profun dezas correspon -
de à person alidade n ú m ero 2. Por isso, esse p eríod o pod eria ser con siderado
u m ret orn o aos valores da person alidade n ú m ero 2. O s capít ulos seguem u m
form at o part icu lar: com eçam com a exposição de fantasias visu ais dram át icas.
Nelas, Ju n g en con t ra u m a série de personagens em vários con t ext os e dialoga
com elas. Con fron t a-se com acon t ecim en t os in esperados e afirm ações ch o-
can tes. Dep ois t en t a com preen der o que acon teceu e form u lar o sign ificado
desses eventos e afirm ações em con cepções e m áxim as psicológicas gerais. Ju n g
acredit ava que o sign ificado dessas fantasias devia-se ao fato de p rovirem da
im agin ação m it op oét ica que faltava n a presen te época racion al. A tarefa da i n -
dividu ação está em estabelecer u m diálogo com as personagens da fan t asia — ou
con t eú d os do in con scien t e colet ivo - e in t egrá-las n a con sciên cia, recu p eran -
do assim o valor da im agin ação m it op oét ica que h avia sido p erd id a n a época
m od ern a, recon cilian d o desse m odo o espírit o da época com o espírit o das p r o-
fundezas. Essa tarefa ir ia con st it u ir u m leítmotíf de sua obra eru d it a posterior.

" U m a n o va fo n t e d e vi d a "
Em 19 16 , Ju n g escreveu diversos ensaios e u m pequen o livro nos quais com eçou
a t en t ar t rad u zir alguns dos tem as do Líber Novus em lin guagem psicológica con -
t em p orân ea e a reflet ir sobre o sign ificado e os aspectos gerais de sua at ivi-
dade. Sign ificat ivam en t e, nessas obras ele apresen t ou os p rim eiros esboços das
grandes com pon en t es de sua psicologia m adu ra. U m a descrição cabal desses
ensaios est á fora do h orizon t e desta in t rodu ção. A visão geral que dam os a se-
guir destaca elem en tos que se ligam m ais d iret am en t e ao Líber Novus.
Nas obras escritas en t re 19 11 e 19 14 , Ju n g ocupou-se p rin cip alm en t e em
form u lar u m a explicação est ru t u ral do fu n cion am en t o h u m an o geral e da p si-
copatologia. Além de sua prim eira teoria dos complexos, vemos que ele já havia
formulado concepções de u m inconsciente filogeneticamente ad qu irid o povoa-
I N T RO D U ÇÃO 45

do de im agens m ít icas, de u m a en ergia psíqu ica n ão sexual, de tipos gerais de


in t roversão e ext roversão, d a fun ção com pen sat ória e prospect iva dos sonhos
e das abordagens sin t ét ica e con st ru t iva das fantasias. En q u an t o Ju n g co n t i-
n u ou a am p liar e desen volver det alh adam en t e essas con cepções, em erge aqu i
u m n ovo projet o: a t en t at iva de forn ecer u m a explicação t em poral do d esen -
volvim en t o superior, a que d eu o n om e de processo de in dividuação. Est e foi
u m result ado t eórico essen cial de sua au t oexperim en t ação. A elaboração t ot al
do processo de in dividu ação e sua com paração h ist órica e in t ercu lt u ral vir ia m
a ocu p á-lo pelo resto d a vid a.
Em 19 16, Ju n g fez u m a preleção n a Associação de Psicologia An alít ica, i n -
t it u lad a "A est ru t u ra do in con scien t e", pu blicad a p r im eir o em t radu ção fr an -
cesa nos Archíves de Psychologíe de Flo u r n o y 14 8 . Aq u i, ele d ist in gu ia duas cam adas
do in con scien t e. A p r im eir a, o in con scien t e pessoal, con sist ia em elem en t os
ad qu irid os d u ran t e a vid a, ju n t o com elem en t os que p od iam igu alm en t e ser
con scien t es 14 9 . A segunda era o in con scien t e im pessoal ou psique co le t iva 150 .
En q u an t o a con sciên cia e o in con scien t e pessoal eram desen volvidos e ad -
qu irid os d u ran t e a vid a do in d ivíd u o, a psique colet iva era h er d ad a 151. Nesse
en saio, Ju n g an alisava os curiosos fen óm en os que resu lt avam da assim ilação
do in con scien t e. Not ava ele que, quan do an exavam os con t eú d os d a psique
colet iva e os con sid eravam com o at ribu t os pessoais, os in d ivíd u os exp er im en -
t avam estados ext rem os de su periorid ad e e in feriorid ad e. Ele t om ou o t erm o
"sem elh an ça com Deu s" de Goet h e e Alfr e d Ad le r para caract erizar este est a-
do, que su rgia da fusão en t re a psique pessoal e a psique colet iva e era u m dos
perigos d a an álise.
Ju n g escreveu que era tarefa difícil d ist in gu ir en t re psique pessoal e psique
colet iva. U m dos fatores com que o in d ivíd u o se defron t ava era a persona - n os-
sa "m áscara" ou "papel". Est a represen t ava o segm ento d a psique colet iva que
era erron eam en t e con siderada in d ivid u al. Q u an d o se an alisava isto, a perso-
n alidade dissolvia-se n a psique colet iva, o que resu lt ava n a liberação de u m a
t orren t e de fantasias: "Abre-se a t ot al profusão de pen sam en tos e sen t im en t os

148 D e p o is d e sep ar ar -se de Fr e u d , Ju n g d e sco b r iu qu e Flo u r n o y lh e er a u m ap oio p e r m a n e n t e . Cf. Ju n g e m


Flo u r n o y. From índia to the PlanetMars, p. ix.
149 O C , 7, § 4 4 4 - 4 4 6 .
150 Ib id ., § 4 4 9 .
151 Ib id ., § 4 59 -
46 LI BE R N O VU S

m it ológicos"152 . A d iferen ça en t re esse estado e a in san idade estava n o fato de


que ele era in t en cion al.
Su rgiam duas possibilidades: podia-se t en t ar rest aurar regressivam en te a
persona e ret orn ar ao estado an t erior, mas era im possível livrar-se do in con scien -
te. Alt er n at ivam en t e, podia-se aceit ar a con d ição de sem elh an ça com Deu s.
Mas h avia u m t erceiro cam in h o: o t rat am en t o h erm en êu t ico das fantasias cr ia-
tivas. Est e vin h a a ser u m a sín t ese da psique in d ivid u al com a psique colet iva,
que revelava a lin h a in d ivid u al d a vid a. Er a o processo de in dividuação. N u m a
post erior revisão n ão datada desse ensaio, Ju n g in t r od u ziu a n oção de anim a,
com o con t rapart e da n oção de persona. Ele con sid erou ambas com o "im agos do
su jeit o". Aq u i, ele d efin iu a anim a com o "o m odo pelo qual o sujeit o é vist o pelo
in con scien t e colet ivo"153.
A descrição vivaz das vicissit u des do estado de sem elh an ça com Deu s r e-
flete alguns dos estados afetivos de Ju n g du ran t e seu con fron t o com o in con s-
cien t e. A n oção da diferen ciação da persona e sua an álise correspon de à seção de
abert u ra do Líber Novus, on de Ju n g se d iferen cia de seu papel e realizações e t en -
t a religar-se com sua alm a. A liberação de fantasias m it ológicas é precisam en t e
o que se seguiu n o seu caso, e o t rat am en t o h erm en êu t ico das fantasias criat ivas
foi o que ele apresen t ou n a cam ada 2 do Líber Novus. A diferen ciação en t re o
in con scien t e pessoal e o in con scien t e im pessoal forn eceu u m a com preen são
t eórica das fantasias m it ológicas de Jun g: sugere que ele n ão as con sid erou p r o-
ven ien t es de seu in con scien t e pessoal, mas da psique colet iva h erdada. Nest e
caso, suas fantasias provêm de u m a cam ada da psique que era u m a h eran ça
h u m an a colet iva e n ão eram sim plesm en t e idiossin crát icas ou arbit rárias.
Em out ubro do m esm o ano, Ju n g fez duas palestras n o Clu b e Psicológi-
co. A p r im eir a in t it u lava-se "Ad apt ação". Est a t om ou duas form as: adapt ação
a con d ições ext ern as e in t ern as. O "in t er n o " foi en t en d id o com o design an do
o in con scien t e. A adapt ação ao "in t er n o " levou à exigên cia por in dividuação, o
que era con t rário à adapt ação aos outros. A resposta a essa exigên cia e o corres-
pon den t e rom p im en t o com a con form idade levavam a u m a trágica cu lpa, que
precisava de expiação e pedia u m a n ova "fun ção colet iva", porque o in d ivíd u o
d evia p rod u zir valores que pudessem servir com o u m su bst it u t o para a ausên cia

152 Ib id ., § 4 6 8 .
153 Ib id ., § 5 2 1.
I N T RO D U ÇÃO 47

dele da sociedade. Esses novos valores possibilit avam com pen sar o coletivo. A
in d ivid u ação era para poucos. O s in su ficien t em en t e criat ivos d everiam antes
restabelecer a con form idade colet iva com a sociedade. O in d ivíd u o precisava
n ão só criar novos valores, mas t am bém valores socialm en t e recon h ecíveis, já
que a sociedade t in h a "d ireit o a valores utilizáveis'154.
Lid o em t erm os d a situação de Ju n g, isto d á a en t en der que esse r o m p im en -
to com a con form idade social de procu rar sua "in d ivid u ação" levara-o à id eia
de que precisava p rod u zir valores socialm en t e realizáveis com o u m a expiação.
Ist o levou a u m d ilem a: será que a m an eira com o Ju n g en carn ou esses n ovos va -
lores n o Líber Novus seria socialm en t e aceitável e recon h ecível? Esse com p rom is-
so com as exigên cias da sociedade separava Ju n g do an arqu ism o dos dadaíst as.
A segunda palest ra foi sobre "In d ivid u ação e colet ividade". Ju n g afirm a-
va que in d ivid u ação e colet ividade eram u m par de opostos relacion ados pela
culpa. A sociedade exigia im it ação. At ravés do processo de im it ação, o in d i-
víd u o pod ia obter o acesso a valores que são p róp rios dele. N a an álise, "pela
im it ação o pacien te apren de a in dividuação, porque ela reat iva os valores que
são p róp rios d ele"155 . E possível ler ist o com o u m com en t ário sobre o papel da
im it ação nos t rat am en t os an alít icos daqueles pacien tes seus a qu em Ju n g h avia
agora est im ulado a em preen der processos sem elh an tes de desen volvim en t o. A
afirm ação de que esse processo evocava os valores preexist en t es do pacien t e era
u m con tragolpe à acusação de sugestão.
Em n ovem bro, en quan t o prest ava serviço m ilit ar em H er isau , Ju n g escre-
veu u m en saio sobre "A fun ção t ran scen den t e", publicado só em 19 57. Al i Ju n g
descrevia o m ét od o de t razer à t on a e desen volver fantasias que ele m ais tarde
ch am ou de im agin ação at iva, e expu n h a sua fu n d am en t ação t erapêut ica. Esse
en saio pode ser con siderado u m relat o p rovisório dos progressos a respeit o
d a au t oexp erim en t ação de Ju n g e pode ser proveit osam en t e con siderado u m
prefácio ao Líber Novus.

Ju n g observou que a n ova at it ude ad qu irid a com a an álise t orn ava-se ob-
soleta. O s m at eriais in con scien t es eram n ecessários para com plet ar a at it ude
con scien t e e corrigir-lh e a parcialidade. Mas, com o a t en são de en ergia era b ai-
xa n o sonho, os sonhos eram expressões in feriores de con t eú d os in con scien t es.

154 O C , 18, § 1.09 8.


155 Ib id ., § 1.100.
48 LI BE R N O VU S

P o r isso e r a p r e ciso r e c o r r e r a outras fontes, a saber, as fantasias espon t ân eas.


U m livro de sonhos descoberto recen t em en t e con t ém u m a série de sonhos de
19 17 a 19 25 15 6 . U m a cuidadosa com paração desse livro com os Livros Negros m os-
t ra que as im agin ações ativas de Ju n g n ão p rovin h am d iret am en t e de seus so-
n h os, e que essas duas corren t es eram geralm en te in depen den t es.
Ju n g descreveu sua t écn ica para in d u zir tais fantasias espon t ân eas: "Est e
t rein am en t o con siste p rim eiram en t e nos exercícios sist em át icos de elim in a-
ção da at en ção crít ica, crian do, assim , u m vazio n a con sciên cia"157 . A pessoa
com eçava con cen t ran do-se n u m d et erm in ad o estado de espírit o, procu ran do
t orn ar-se o m ais con scien t e possível de todas as fantasias e associações que
surgiam em con exão com esse estado. O objet ivo era p er m it ir à fan tasia agir
livrem en t e, sem afastar-se do afeto in icial, n u m livre processo associativo. Ist o
levava a u m a expressão con cret a ou sim bólica do estado de espírit o, o que t in h a
com o con sequ ên cia t razer o afeto para m ais pert o da con sciên cia, t orn an d o-o
assim m ais com preen sível. Fazer isso pod ia t er u m efeito vivifican t e. O s in d i-
víd u os pod iam desenhar, p in t ar ou esculpir, depen den do de suas propen sões:

O s tipos visualm ente dotados devem concentrar-se n a expectativa de que


se produza um a imagem in terior. De modo geral, aparece um a imagem da
fantasia - talvez de natureza hipnagógica - que deve ser cuidadosamente
observada e fixada por escrito. O s tipos audioverbais em geral ouvem pa-
lavras interiores. De início, talvez sejam apenas fragmentos de sentenças,
aparentemente sem sentido... O u t ros, porém , nestes momentos escutam
sua "out ra" voz... U m pouco menos frequente, mas não menos valiosa, é a
escrita automática, feita diretamente ou em pran ch et a 158 .

U m a vez produzidas e in corporadas essas fantasias, t orn avam -se possíveis


duas abordagens: form u lação criat iva e com preen são. U m a precisava da ou t ra
e ambas eram n ecessárias para p rod u zir a fun ção t ran scen den t e, que surgia da
u n ião en t re con t eú d os con scien tes e con t eú d os in con scien t es.

156 AFJ.
157 O C , 8/ 2, § 155.
158 Ib id ., § 170-171. A p r a n ch e t a é u m a p eq u en a t áb u a d e m a d e ir a n os n avios de cab ot agem u sad a p a r a
facilit ar a e scr it a au t o m át ica .
I N T RO D U ÇÃO 49

Para algumas pessoas, observava Ju n g, era sim ples n ot ar a "ou t ra" voz n a
escrit a e respon der a ela do pon t o de vist a do eu: " E exat am en t e com o se se
travasse u m diálogo en t re duas pessoas com d ireit os igu ais..."159 Esse d iálogo
levou à criação da fun ção t ran scen den t e, o que resu lt ava n u m a am pliação da
con sciên cia. Essa descrição dos diálogos in t eriores e dos m eios usados para
evocar fantasias n u m estado de vigília represen t a a tarefa do p róp rio Ju n g nos
Livros Negros. A in t eração en t re form u lação criat iva e com preen são correspon de
ao trabalh o de Ju n g n o Liber Novus. Ju n g n ão p u blicou esse ensaio. Ele obser-
vou m ais t arde que n u n ca t er m in ou seu trabalh o sobre a fun ção t ran scen den t e,
porque o fizera sem grande e m p e n h o 16 0 .
Em 1917, Ju n g p u blicou u m pequen o livro com u m longo t ít ulo: Psicologia
dos processos inconscientes: um a visão geral da m oderna teoria e m étodo da psicologia analítica. N o
prefácio, datado de dezem bro de 19 16 , Ju n g proclam ava que os processos p si-
cológicos que acom pan h avam a gu erra h aviam t razid o o problem a do in con s-
cien t e caót ico para o p rim eiro plan o da aten ção. N o en t an t o, a psicologia do
in d ivíd u o correspon d ia à psicologia da n ação e apenas a t ran sform ação da a t i-
tude do in d ivíd u o pod ia p rod u zir u m a ren ovação cu lt u r a l 16 1. Ist o art icu lava a
ín t im a in t ercon exão en t re even tos in d ivid u ais e eventos coletivos que ocupava
o cen t ro do Liber Novus. Para Ju n g, a con ju n ção en t re suas visões precogn it ivas e
a eclosão da guerra t orn ara eviden tes as profun das con exões su blim in ais en t re
fantasias in d ivid u ais e acon t ecim en t os m u n d iais — e, port an t o, en t re a psicolo-
gia do in d ivíd u o e a d a nação. O que se fazia n ecessário agora era elaborar essa
con exão m ais detalh adam en te.
Ju n g observou que, depois de t er an alisado e in tegrado os con t eú d os do
in con scien t e pessoal, a pessoa opun h a-se às fantasias m it ológicas que b rot a-
vam da cam ada filogen ét ica do in co n scien t e 16 2 . Psicologia dos processos inconscientes
forn eceu u m a exposição do in con scien t e colet ivo, suprapessoal, absoluto -
sendo estes t erm os usados in t ercam biavelm en t e. Ju n g afirm ava que a pessoa

159 Ib id ., § 18 6 .
160 M P , p. 38 0 .
161 O C, 7, p . XI I I - XI V
162 Ao fazer u m a r evisão d essa o b r a e m 1943, Ju n g acr escen t o u qu e o in co n scie n t e p essoal "cor r esp on d e
à figu r a da som bra, qu e fr eq u en t em en t e ap arece n os so n h o s" ( O C , 7, § 103). E acr escen t ou a segu in t e
d efin ição d est a figu ra: "som bra é p a r a m i m a p ar t e 'n egat iva d a p er son alid ad e, ist o é, a so m a das
p r op r ied ad es ocu lt as e d esfavo r áveis, das fu n çõ es m a l d esen volvid as e d os co n t e ú d o s d o in co n scie n t e
p essoal" ( O C , 7, § I03n .). Po st e r io r m e n t e , essa fase d o p rocesso d e in d ivid u a çã o fo i d escr it a co m o o
e n co n t r o c o m a so m b r a (cf. O C , 9/ 2, § 13-19).
50 LI BE R N O VU S

precisava separar-se do in con scien t e apresen t an do-o visivelm en t e com o algo


separado dela. Er a essen cial d ist in gu ir o eu do n ão eu, ou seja, a psique colet i-
va ou in con scien t e absoluto. Para fazer isso, "o ser h u m an o deve perm an ecer
firm em en t e de pé em sua fun ção de eu; ou seja, deve cu m p r ir plen am en t e seu
dever para com a vid a, para poder ser em todos os aspectos u m m em bro vit al
d a sociedade h u m a n a "16 3 . Ju n g est ivera se esforçan do por cu m p r ir estas tarefas
nesse períod o.
O s con t eú d os desse in con scien t e eram aquilo que Ju n g, em Transformações e
símbolos da libido, ch am ara de m it os t ípicos ou im agens p rim ord iais. Ele descreveu
essas "d om in an t es" com o "as pot ên cias rein an t es, os deuses, ou seja, im agens de
leis e prin cípios d om in an t es, regularidades m édias n o decurso das im agens que
o cérebro recebeu da sequên cia de processos secu lares"16 4 . Er a preciso prest ar
p art icu lar at en ção a essas dom in an t es. Part icu larm en t e im p ort an t e era o "des-
ligar os con t eú d os m it ológicos ou psicológicos coletivos dos objetos da con sci-
ên cia e con solid á-los com o realidade psicológica fora da psique in d ivid u a l"16 5 .
Ist o p er m it ia a u m a pessoa recon ciliar-se com resíduos ativados de nossa h is-
t ória an cest ral. A diferen ciação en t re pessoal e n ão pessoal result ava n u m a l i -
beração de en ergia.
Esses com en t ários reflet em t am bém a at ividade de Jun g: sua t en t at iva de
d ist in gu ir as várias personagens que apareciam e "con solidá-las com o realid a-
des psicológicas". A n oção de que essas personagens t in h am u m a realidade p si-
cológica p róp ria e n ão eram ficções m eram en t e subjetivas foi a p rin cip al lição
que ele at rib u iu à figura fan tástica de Elias: objet ividade p síq u ica 16 6 .
Ju n g afirm ou que a era da razão e do cet icism o in augurada pela Revolu ção
Fran cesa h avia rep rim id o a religião e o irracion alism o. Ist o, por sua vez, teve
sérias con sequên cias, levan do à eclosão de irracion alism o represen t ada pela
guerra m u n d ial. Er a , port an t o, u m a necessidade h ist órica recon h ecer o ir r a -
cion al com o u m fator psicológico. A aceit ação do irracion al é u m dos temas
cen t rais do Liber Novus.

Em Psicologia dos processos inconscientes, Ju n g desen volveu sua con cepção dos tipos
psicológicos. O b ser vou que era u m fen óm en o com u m as caract eríst icas psico-

163 Die Psychologíe der Unbewusstèn Prozesse. 2. ed . Zu r iq u e : Ra sch er , 1918, p. 104.


164 Ib id ., p. 130.
165 Ibid .,' p. 134.
166 Introduction to Jungian Psychology, p. 103.
I N T RO D U ÇÃO Si

lógicas dos t ipos serem levadas a ext rem os. Por aquilo que ele ch am ou de lei
da en an t iod rom ia, ou in versão para o oposto, en t rou a ou t ra função, a saber,
sen t im en t o para o in t rovert id o e pen sam en t o para o ext rovert id o. Essas fu n -
ções secun dárias en con t ravam -se n o in con scien t e. O desen volvim en t o da fu n -
ção con t rária levava à in dividuação. À m ed id a que a fun ção con t rária n ão era
aceit ável ao con scien t e, era n ecessária u m a t écn ica especial para chegar a u m
acordo com ela, a saber, a prod u ção d a fun ção t ran scen den t e. O in con scien t e
era u m perigo quan do n ão se estava em h ar m on ia com ele. Mas, com o est a-
belecim en t o d a fun ção t ran scen den t e, cessava a desarm on ia. Esse reequ ilíbrio
p er m it ia o acesso aos aspectos produ t ivos e ben éficos do in con scien t e. O i n -
con scien t e con t in h a a sabedoria e a experiên cia de in con t áveis eras e, por isso,
con st it u ía u m guia in com parável. O desen volvim en t o da fun ção con t rária apa-
rece n a seção "Myst er iu m " do Líber Novus167. A t en t at iva de alcan çar a sabedoria
arm azen ad a n o in con scien t e é d escrit a ao lon go de todo o livro, n o qual Ju n g
pede à sua alm a que lh e diga o que ela vê e o sen t ido de suas fantasias. O i n -
con scien t e é con siderado aqui u m a fonte de sabedoria superior. Ju n g con clu iu
o en saio in d ican d o a n at u reza pessoal e exp erien cial dessas novas con cepções:
"Nossa época está buscan do u m a n ova fon te de vid a. E u en con t rei u m a e bebi
dela e a água t in h a gosto b o m " 16 8 .

O c a m i n h o p a r a o s i- m e s m o
Em 19 18 , Ju n g escreveu u m en saio in t it u lad o "Sobre o in con scien t e", n o qual
observava que todos n ós estam os en t re dois m un dos: o m u n d o da percepção
ext ern a e o m u n d o da percepção do in con scien t e. Essa dist in ção descreve sua
exp eriên cia nessa época. Ele escreveu que Fr ied r ich Sch iller afirm ara que a
aproxim ação destes dois m un dos se fazia por m eio da arte. E m con t raposição,
argum en t ava Ju n g, "a m eu ver, a u n ião da verdade racion al com a verdade ir r a -
cion al deve ser en con t rad a n ão t an t o n a art e, mas m u it o m ais n o sím bolo, pois
é da essên cia do sím bolo con t er am bos os lados, o racion al e o ir r a cio n a l"16 9 . O s

167 Cf. ad ian t e, p. 157-185.


168 CollectedPapersonAnalytical Psychology, p. 4 4 4 . Es t a se n t e n ça ap ar eceu ap en as n a p r im e ir a e d içã o d o livr o de
Ju n g.
169 O C , 10, § 24.
52 LI BE R N O VU S

sím bolos, afirm ava ele, p rovin h am do in con scien t e, e a criação de sím bolos era
a fun ção m ais im p ort an t e do in con scien t e. En qu an t o a fun ção com pen sat ória
do in con scien t e sem pre esteve presen te, a fun ção de criação de sím bolos só
esteve presen te quan do estivem os dispostos a recon h ecê-la. Aq u i, vem os que
Ju n g con t in u a evit an d o con sid erar suas prod u ções com o arte. N ã o foi a art e,
m as os sím bolos que t iveram aqui im port ân cia p r im or d ial. O recon h ecim en t o
e a recuperação desta força de criação de sím bolos são descritos n o Líber No-
vus. O livro ret rat a a t en t at iva de Ju n g de en t en der a n at u reza psicológica do
sim bolism o e de con siderar suas fantasias de u m pon t o de vist a sim bólico. Ele
con clu iu que o que foi in con scien t e em qualquer época d et erm in ad a foi apenas
relat ivo e m u t an t e. O que se fazia n ecessário agora era a "reform u lação de nossa
visão do m un do, em con son ân cia com os con t eú d os ativos do in co n scien t e"170 .
Assim , a tarefa que o con fron t ava era a de t rad u zir as con cepções adquiridas
através de seu con fron t o com o in con scien t e, e expressas de form a lit erária e
sim bólica n o Líber Novus, n u m a lin guagem que fosse com pat ível com a perspec-
t iva con t em porân ea.
N o ano seguinte, Ju n g apresen t ou u m en saio n a In glat erra peran t e a Socie-
dade de Pesquisa Psíquica, d a qual era m em bro h on orário, sobre "O s fu n d a-
m en t os psicológicos da cren ça nos esp ír it o s"171. Dist in gu iu duas situações em
que o in con scien te coletivo se t orn ava atuante. N a prim eira, era ativado por u m a
crise n a vid a do in divíduo e pelo colapso das esperanças e expectativas. N a segun-
da, era ativado em tempos de grande con vulsão social, política e religiosa. Nesses
m om en tos, os fatores reprim idos pelas atitudes predom in an tes acum ulam -se n o
in con scien te coletivo. In divíduos fortem en te in t u it ivos t orn am -se conscientes
deles e procu ram t rad u zi-los em ideias com u n icáveis. Se eram bem -sucedidos
em t rad u zir o in con scien t e n u m a lin guagem com u n icável, ist o t in h a u m efei-
to reden tor. O s con t eú d os do in con scien t e t in h am u m efeito pert urbador. N a
p r im eir a situação, o in con scien t e colet ivo pod eria su bst it u ir a realidade, o que
é pat ológico. N a segunda situação, o in d ivíd u o pode se sen t ir desorien tado, mas
o estado n ão é pat ológico. Essa diferen ciação d á a en t en der que, n a opin ião de
Ju n g, sua própria experiên cia en quadrava-se n a segunda categoria - ou seja, a
ativação do in con scien t e colet ivo devido à con vulsão cu lt u ral geral. Port an t o,

170 Ib id ., § 4 8 .
171 O C , 8/ 2, § 570 - 6 0 0 .
I N T RO D U ÇÃO 53

se u t e m o r i n i c i a l d e i m i n e n t e in s a n id a d e e m 1913 e st a va e m s u a in c a p a c id a d e
d e p e r c e b e r essa d ist in çã o .
E m 1918, Ju n g a p r e s e n t o u ao C l u b e P s i c o ló g i c o u m a sé r ie d e s e m i n á r i o s
so b r e s e u t r a b a lh o a r e s p e it o d e t ip o lo g ia e, n e ssa é p o c a , e m p e n h o u - s e n u m a
va s t a p e s q u is a e r u d i t a so b r e esse t e m a . D e s e n vo l ve u e a m p l i o u os t e m a s a r -
t ic u la d o s n e st e s e n sa io s e m 19 21, e m Tipos psicológicos. N o t o c a n t e aos t e m a s
t r a b a lh a d o s n o Liber Novus, a s e ç ã o m a is i m p o r t a n t e d o l i vr o e r a o c a p í t u lo 5:
" O p r o b l e m a d o t ip o n a p o e sia ". A q u e s t ã o fu n d a m e n t a l d i s c u t i d a a q u i fo i
c o m o o p r o b l e m a d o s o p o st o s p o d e r i a se r r e s o lvid o a t r a vé s d a p r o d u ç ã o d o
s í m b o l o d e u n i ã o o u r e c o n c ilia ç ã o . I s t o c o n s t i t u i u m d o s t e m a s c e n t r a is d o
Liber Novus. Ju n g a p r e s e n t o u u m a a n á lis e d e t a lh a d a d a q u e s t ã o d a s o lu ç ã o d o
p r o b l e m a d o s o p o st o s n o h i n d u í s m o , n o t a o is m o , e m M e s t r e E c k h a r t e, n o s
d ia s d e h o je , n a o b r a d e C a r l Sp it t e le r . Es t e c a p ít u lo p o d e se r l i d o t a m b é m
c o m o u m a m e d i t a ç ã o so b r e a lgu m a s d as fo n t e s h is t ó r ic a s q u e i n f o r m a r a m d i -
r e t a m e n t e su as c o n c e p ç õ e s n o Liber Novus. A n u n c i o u t a m b é m a i n t r o d u ç ã o d e
u m m é t o d o i m p o r t a n t e . E m ve z d e d i s c u t i r d i r e t a m e n t e a q u e s t ã o d a r e c o n -
c ilia ç ã o d o s o p o st o s n o Liber Novus, Ju n g p r o c u r o u a n a lo gia s h is t ó r ic a s e t e c e u
c o m e n t á r i o s so b r e elas.

E m 19 21, a p a r e c e u o "s i - m e s m o " c o m o c o n c e it o p s ic o ló gic o . Ju n g d e fi n i u - o


d a se gu in t e m a n e i r a :

En q u a n t o o e u for ap en as o ce n t r o d o m e u ca m p o co n scien t e, n ã o é id ê n -
t ico ao t o d o de m i n h a p siq u e, m as apen as u m co m p le xo e n t r e ou t r os c o m -
p lexos. P o r isso d ist in go en t r e e u e si-m e sm o . O e u é o su jeit o apen as d e
m i n h a co n sciên cia, m as o si- m e sm o é o su jeit o d o m e u t od o, t a m b é m d a
p siq u e in co n scie n t e . Ne st e sen t id o o si- m e sm o se r ia u m a gr an d eza ( id e a l)
qu e e n ce r r a r ia d e n t r o d ele o eu . O si- m e sm o gost a de ap ar ecer n a fan t asia
in co n scie n t e co m o p er so n alid ad e su p e r io r o u id e a l com o, p o r exem p lo , o
Fausto, de Go e t h e , e o Zaratustra, de N i e t z s c h e 17 2 .

Ju n g e q u i p a r o u a n o ç ã o h i n d u d e Br a h m a n / At m a n ao s i- m e s m o . A o m e s -
m o t e m p o , p r o vi d e n c i o u u m a d e fin iç ã o d a a lm a . A f i r m o u q u e a a l m a p o s s u ía
q u a lid a d e s q u e e r a m c o m p l e m e n t a r e s à p e r s o n a , c o n t e n d o aq u elas q u a lid a d e s

172 Tipos psicológicos. O C , 6, § 79 6 ( 8 10 ) .


54 LI BE R N O VU S

d e q u e a a t it u d e c o n s c ie n t e ca r e cia . Es t e c a r á t e r c o m p l e m e n t a r d a a l m a a fe t a va
t a m b é m se u c a r á t e r se xu a l, d e m o d o q u e o h o m e m t i n h a u m a a l m a fe m i n i n a ,
o u anim a, e a m u l h e r t i n h a u m a a l m a m a s c u l i n a , o u anim us m . I s t o c o r r e s p o n d i a ao
fat o d e q u e h o m e n s e m u l h e r e s t i n h a m t r a ç o s t a n t o m a s c u lin o s q u a n t o fe m i -
n in o s . O b s e r v o u t a m b é m q u e a a l m a d a va o r i g e m a im a ge n s q u e s u p o s t a m e n t e
n ã o t i n h a m va lo r d o p o n t o d e vi s t a r a c io n a l. H a v i a q u a t r o m a n e i r a s d e u sá - la s:

A p r im e ir a p o ssib ilid ad e de u t ilização é a ar t íst ica, q u an d o a lgu ém d o m in a


est a fo r m a de exp r essã o ; u m a segu n d a p o ssib ilid ad e é a esp ecu lação filo só fi-
ca; u m a t e r ce ir a é a esp ecu lação qu ase r eligio sa qu e le va à h e r e sia e à c o n s t i-
t u ição d e seit as; u m a q u a r t a p ossib ilid ad e é o em p r ego das for ças im a n e n t e s
n as im agen s p a r a co m e t e r excessos de t o d a fo r m a 17 4 .

D e s t e p o n t o d e vis t a , a u t iliz a çã o p sico ló gica d essas im a ge n s r e p r e s e n t a r ia


u m "q u in t o c a m i n h o ". P a r a ser b e m - s u c e d id a , a p sico lo gia p r e cisa va d is t in gu ir - s e
c la r a m e n t e d a a r t e , d a filo so fia e d a r e ligiã o . Es s a n e ce ssid a d e e xp l i c a a r e je iç ã o
d as a lt e r n a t iva s p o r p a r t e d e Ju n g.

N o s Livros Negros se gu in t e s, ele c o n t i n u o u a e la b o r a r s u a "m it o lo g ia ". A s p e r -


so n a ge n s d e s e n vo lvia m - s e e t r a n s fo r m a va m - s e u m a s n a s o u t r a s. A d i fe r e n c i a -
ç ã o d as p e r so n a ge n s e r a a c o m p a n h a d a p o r s u a a glu t in a çã o , ch e ga n d o Ju n g a
c o n s id e r á - la s c o m o a sp ect o s d e c o m p o n e n t e s su b ja ce n t e s d a p e r so n a lid a d e .
E m 5 d e ja n e i r o d e 19 22, ele t e ve u m d iá lo g o c o m s u a a l m a a r e sp e it o t a n t o d e
su a vo c a ç ã o q u a n t o d o Liber Novus:

[ Eu ] : Sin t o qu e d evo falar c o m vo cê . P o r qu e vo cê n ã o m e d e ixa d o r m i r


q u an d o est ou can sad o? E u sei qu e a p e r t u r b a çã o ve m de vo cê .
O qu e le va vo cê a m a n t e r - m e acord ad o?
[ Al m a ] : Ago r a n ã o é t e m p o de d o r m ir , m as de ficar acor d ad o e p r e p a r a r
coisas im p o r t a n t e s n o t r ab alh o n o t u r n o . Co m e ç a a gr an d e ob r a.
[ Eu ] : Q u e gr an d e obra?
[ Al m a ] : A o b r a qu e p r e cisa ser feit a agora. E u m a o b r a im e n sa e d ifícil. N ã o
h á t em p o p a r a d o r m ir , se vo c ê n ã o e n co n t r a t e m p o d u r a n t e o d ia p a r a p e r -
m a n e ce r n a ob r a.

173 ib id ., § 7 5 9 ( 8 8 4 ) .
174 O C , 6, § 4 6 8 .
I N T RO D U ÇÃO 55

[ Eu ] : Ma s e u n ão sab ia qu e algo d est e t ip o est ava acon t ecen d o.


[ Al m a ] : Ma s vo cê d e via t er p er ceb id o qu e e u est ava p e r t u r b a n d o seu son o
h á m u it o t em p o. Vo cê est eve in co n scie n t e p o r u m t e m p o d em asiad o lon go.
Ago r a vo cê d eve p assar a u m n ível su p e r io r d e co n sciên cia.
[ Eu ] : Es t o u p r o n t o . O qu e é? D iga !
[ Al m a ] : Vo c ê p r e cisa o u vir : d e ixa r de ser cr ist ão é fácil. Ma s, e d ep ois? Pois
m u it a co isa a in d a est á p o r vir . Tu d o est á esp er an d o p o r vo cê . E vo cê? Vo cê
p er m a n ece e m silên cio e n ad a t e m a d izer . Ma s vo cê d eve falar. Po r qu e vo cê
r eceb eu a r evelação? Vo cê n ã o d eve e sco n d ê -la . Vo cê se p r eo cu p a c o m a
for m a? E im p o r t a n t e a fo r m a q u an d o se t r a t a de r evelação?
[ Eu ] : Ma s vo cê n ã o est á p en san d o qu e d evo p u b lica r o qu e escrevi? Isso
ser ia u m a d esgr aça. E q u e m i r i a co m p r e e n d ê - lo ?
[ Al m a ] : N ã o , escu t e! Vo cê n ã o p r e cisa r o m p e r u m casam en t o, a saber o ca -
sam en t o com igo, n e n h u m a p essoa d eve ser co lo cad a e m m e u lugar... Q u e r o
r e in a r so z in h a .
[ Eu ] : En t ã o vo cê q u er r e in a r ? D o n d e vo cê t ir a o d ir e it o a essa p r esu n çã o ?
[ Al m a ] : Esse d ir e it o m e ve m p or q u e e u sir vo a vo cê e à su a vo cação . E u p o -
d e r ia igu alm en t e d iz e r qu e vo cê ve m e m p r im e ir o lu gar, m as a cim a de t u d o
su a vo ca çã o ve m e m p r im e ir o lu gar.
[ Eu ] : Ma s q u al é m i n h a vo cação ?
[ Al m a ] : A n o va r eligião e su a p r o cla m a çã o .
[ Eu ] : M e u D e u s! C o m o d evo fazer isso?

[ Al m a ] : N ã o seja t ão p u silâ n im e . N i n g u é m o sabe t ão b e m co m o vo cê . N ã o


h á n in gu é m qu e saib a p r o cla m á - la t ão b e m co m o vo cê .
[ Eu ] : Ma s q u e m sabe se vo cê n ã o est á m e n t in d o ?
[ Al m a ] : Per gu n t e a vo cê m e sm o se e u est o u m e n t in d o . E u falo a ve r d a d e 17 5 .

A q u i s u a a l m a p e d i u - l h e i n s i s t e n t e m e n t e q u e p u b lica sse o se u m a t e r i a l , o

q u e ele r e c u s o u . Tr ê s d ia s d e p o is, s u a a l m a i n fo r m o u - l h e q u e a n o va r e ligiã o "s ó

se e xp r e ssa vi s i ve l m e n t e n a t r a n s fo r m a ç ã o d as r e la ç õ e s h u m a n a s . A s r e la çõ e s

n ã o se d e i xa m s u b s t i t u i r p e lo m a is p r o fu n d o c o n h e c im e n t o . Al é m d isso , u m a

r e ligiã o n ã o co n sist e a p e n a s e m c o n h e c i m e n t o , m a s, s i m , e m se u n íve l visíve l,

n u m a r e o r g a n iz a ç ã o d as c o n d i ç õ e s d e v i d a h u m a n a s . P o r isso n ã o e sp e r e m a is

c o n h e c i m e n t o s d e m i m . Vo c ê sab e t u d o o q u e é p r e c iso sab er a go r a a r e s p e i -

175 Livro Negro 7, p. 9 2c.


56 LI BE R N O VU S

t o d a r e ve la ç ã o q u e vo c ê r e ce b e u , m a s vo c ê a i n d a n ã o vi ve t u d o o q u e d e ve
se r vi vi d o ago r a". O "e u " d e Ju n g r e s p o n d e u : "P o sso e n t e n d e r p e r fe it a m e n t e
e a c e it a r ist o . M a s é o b sc u r o p a r a m i m c o m o o c o n h e c i m e n t o p o ssa se r t r a n s -
fo r m a d o e m vi d a . Vo c ê p r e c is a e n s i n a r - m e is t o ". Su a a l m a lh e d isse: " N ã o h á
m u i t o a d i z e r so b r e ist o . N ã o é t ã o r a c i o n a l c o m o vo c ê e s t á i n c l i n a d o a p en sar .
O c a m i n h o é s i m b ó l i c o " 17 6 .

As s i m , a t a r e fa c o m q u e Ju n g se d e p a r a va e r a c o m o r e a liz a r e e n c a r n a r a q u i -
lo q u e ele a p r e n d e r a a t r a vé s d a in ve s t iga ç ã o d e su a p r ó p r i a vid a . D u r a n t e esse
p e r í o d o , os t e m a s d a p sico lo gia d a r e ligiã o e d a r e la ç ã o e n t r e r e ligiã o e p s ic o lo -
gia fo r a m a d q u i r i n d o d e st a q u e ca d a ve z m a i o r e m s u a o b r a , a c o m e ç a r p o r se u
s e m i n á r i o e m P o lz e a t h , n a C o r n u a l h a , e m 1923. Ju n g t e n t o u d e s e n vo lve r u m a
p s ic o lo gia d o p r o ce sso d e fa z e r r e ligiã o . E m ve z d e p r o c l a m a r u m a n o va r e ve -
la çã o p r o fé t ic a , s e u in t e r e sse e st a va n a p sico lo gia d as e xp e r iê n c ia s r e ligio sa s. A
t a r e fa c o n s is t ia e m d e scr e ve r a t r a d u ç ã o e t r a n s p o s iç ã o d a e xp e r i ê n c i a n u m i n o -
sa d o s i n d i ví d u o s e m s í m b o lo s e fi n a l m e n t e n o s d o gm a s e cr e d o s d as r e ligiõ e s
o r ga n iz a d a s e, p o r fi m , e st u d a r a fu n ç ã o p s ic o ló gic a d esses s ím b o lo s . P a r a essa
p sic o lo gia d o p r o ce sso d e fa z e r r e ligiã o se r b e m - s u c e d i d a , e r a e sse n cia l q u e a
p sic o lo gia a n a lít ica , e n q u a n t o p r o p o r c i o n a va u m a a fir m a ç ã o d a a t it u d e r e lig io -
sa, n ã o s u c u m b is s e à t e n t a ç ã o d e t r a n s fo r m a r - s e n u m c r e d o 17 7 .
E m 19 22, Ju n g e sc r e ve u u m e n sa io so b r e "A r e la çã o d a p sico lo gia a n a lít ica
c o m a o b r a d e a r t e p o é t ic a ". E l e d i s t i n g u i u d o is t ip o s d e o b r as: o p r i m e i r o ,
q u e b r o t a va i n t e i r a m e n t e d a i n t e n ç ã o d o a u t o r , e o segu n d o , q u e se a p o d e r a va
d o a u t o r . Exe m p l o s d essas o b r a s s im b ó lic a s e r a m a se gu n d a p a r t e d o Fausto d e
Go e t h e e o Zaratustra d e N i e t z s c h e . E m s u a o p in iã o , essas o b r a s b r o t a va m d o
i n c o n s c i e n t e co le t ivo . E m casos c o m o esses, o p r o ce sso c r i a t i vo c o n s is t ia n a
a t iva ç ã o i n c o n s c i e n t e d e u m a i m a g e m a r q u e t íp ic a . O s a r q u é t ip o s l i b e r a va m e m
n ó s u m a vo z m a is fo r t e d o q u e a n o ssa p r ó p r ia :

176 Ib id ., p. 95. N u m se m in á r io d o an o segu in t e, Ju n g ocu p ou -se co m o t e m a d a r elação e n t r e as r elações


in d ivid u a is e a r eligião: "N e n h u m in d ivíd u o p od e e xist ir se m r elações in d ivid u a is, e é a ssim qu e é la n ça d o
o fu n d a m e n t o d a vossa Igr eja. As r elações in d ivid u a is est ab elecem a fo r m a d a Igr e ja in visível" (Notes
on the Sem ínar ín Analytícal Psychology conductedby Dr. C.G.Jung. Po lz e a t h , In gla t e r r a , 14-27 de ju lh o d e 1923.
O r ga n iz a d o p elos m e m b r o s d a classe, p. 8 2) .
177 Sob r e a p sicologia d a r eligião d e Ju n g, cf. H E I S I G , Jam es. Im ago Dei: A St u d y o f Ju n g s Psych ology
o f Re ligio n . Le wisb u r g: Bu c k n e ll U n ive r s it y Press, 1979. • L A M M E R S , A n n . In God'sShadow. T h e
Co lla b o r a t io n b e t we e n Vi c t o r W h i t e a n d C G . Ju n g. N o va Yo r k : Pa u list Pr ess, 1994. Cf. t h m e u " I n St a t u
N a sce n d i". Journalof Analytícal Psychology, 4 4 , 19 9 9 , p. 539-545-
I N T RO D U ÇÃO 57

Q u em fala por meio de imagens prim ordiais, fala como se tivesse m il vo-
zes; comove e subjuga..., eleva o destino pessoal ao destino da humanidade
e com isto também solta em nós todas aquelas forças benéficas que desde
sempre possibilitaram à humanidade salvar-se de todos os perigos e t am -
bém sobreviver à mais longa n oit e 178 .

O art ist a que p r od u ziu essas obras educou o espírit o d a época e com p en -
sou a parcialidade do presen te. Ao descrever a gén ese dessas obras sim bólicas,
Ju n g t in h a, ao que parece, suas próprias atividades em m en t e. Assim , en quan t o
Ju n g recusava-se a con sid erar o Líber Novus com o "art e", suas reflexões sobre
sua com posição eram n o en t an t o u m a fon te crít ica de suas subsequentes con -
cepções e teorias da art e. A qu est ão im plícit a que esse en saio levan t ava era se
a psicologia pod ia cu m p r ir agora esta fun ção de educar o espírit o d a época e
com pen sar a parcialidade do presen te. A p ar t ir desse períod o, Ju n g chegou a
con ceber a tarefa de sua psicologia precisam en t e desta m a n e ir a 179 .

D e lib e r a ç õ e s d e p u b lica çã o
A p art ir de 19 22, além dos debates com Em m a Ju n g e To n i W olff, Ju n g teve
longos debates com Ca r y Bayn es e W olfgan g St ockm ayer sobre o que fazer
com o Líber Novus e a respeit o de sua possível publicação. Já que ocorreram en -
quan to ele ain d a estava t rabalh an do neste livro, esses debates t êm im port ân cia
decisiva. Ca r y Fin k n asceu em 18 8 3. Est u d ou n o Vassar College, onde frequ en -
t ou as aulas de Kr ist in e Man n , que se t or n ou u m a das p rim eiras seguidoras
de Ju n g nos Est ados Un id os. E m 19 1 o, ela se casou com Jaim e de An gu lo e
com plet ou sua form ação m éd ica n a Joh n s H o p kin s Un iver sit y em 19 11. E m
19 21, aban don ou-o e foi para Zu r iq u e com Kr ist in e Man n . In icio u a an álise
com Ju n g. Ela n u n ca p rat icou an álise e Ju n g respeit ava-lh e m u it o a in t eligên cia
crítica. E m 19 27, casou-se com Peter Bayn es. Divor ciar am -se m ais t arde, em
19 31. Ju n g ped iu -lh e que fizesse u m a n ova t ran scrição do Líber Novus, porque ele
acrescen t ara m u it o m at erial desde a t ran scrição an t erior. El a em preen d eu essa

178 O C,i5,§ i29 .


179 E m 1930, Ju n g est en d eu -se sob re est e t e m a e d escr eveu o p r im e ir o t ip o de ob ras co m o "p sico ló gica s" e o
segu n d o co m o "visio n ár ias". "Psico lo gia e p oesia". O C , 15.
58 LI BE R N O VU S

tarefa em 19 2 4 e 19 25, quan do Ju n g estava n a África. Sua m áqu in a de escrever


era pesada e por isso ela p r im eir o copiou -o a m ão e depois datilografou-o.
Est as notas relat am seus debates com Ju n g e est ão escritas em form a de
cartas a ele que n ão foram en viadas.

2 DE O U T U BRO DE 19 22

Nu m outro livro do "Dom in ican o bran co" de Meyrin k, você disse que ele
usou exatamente o mesmo simbolismo que ocorrera a você n a prim eira vi-
são que apareceu ao seu inconsciente. Além disso você disse que ele falara de
um "Livr o Verm elh o" que con tin h a certos mistérios e o livro que você está
escrevendo sobre o inconsciente você o chamou de "Livr o Ver m elh o"18 0 .
Depois você falou que estava em dúvida sobre o que fazer com esse livro.
Você disse que Meyrin k podia dar um a nova form a ao seu e estava tudo
bem, mas você só podia contar com o m étodo científico e filosófico, e esse
m aterial você não podia lançar nesse molde. Eu disse que você podia usar
a form a do Zarat ust ra e você disse que era verdade, mas você estava farto
disso. Também eu estou. Depois você disse que pensou em fazer dele um a
autobiografia. Isto me parece de longe o melhor, porque então você tende-
ria a escrever como você falava, que era de form a bem pitoresca. Mas, in de-
pendentemente de qualquer dificuldade com a forma, você disse que tem ia
torn á-lo público, porque era como vender sua própria casa. Mas eu crit iquei
você violentam ente e disse que não era nem u m pouco parecido com aquilo,
porque você e o livro representavam um a constelação do universo e que
considerar o livro como puramente pessoal era você identificar-se com ele,
algo que você não pensaria em perm it ir a seus pacientes... Depois nós rim os
por eu ter, por assim dizer, apanhado você em flagrante. Goethe viu-se apa-
nhado n a mesma dificuldade n a parte 11 do Fausto, na qual ele en trara no i n -
consciente e achara tão difícil conseguir a form a correta que afinal m orreu

180. C f M E Y R I N K . TheW híteDom ínkan, 1921/ 1994, p. 9 1, cap. 7 [t r a d u çã o d e M . M i t c h e ll] : O "p a i


fu n d a d o r " in fo r m a o h e r ó i d o r o m a n ce , Ch r is t o p h e r , d e q u e "q u e m p o ssu ir o livr o ve r m e lh o de
cin á b r io , a p la n t a d a im o r t a lid a d e , o d e sp e r t a r d o sop r o e sp ir it u a l e o segred o d e t r a z e r à vid a a m ã o
d ir e it a d isso lve r - se - á c o m o cad áver... Ch a m a - s e livr o d e cin á b r io p o r q u e, d e aco r d o c o m u m a a n t iga
cr e n ça d a Ch i n a , o ve r m e lh o é a cor das vest es d os qu e a lca n ça r a m o m a is alt o e st á gio d a p e r fe içã o e
h a via m p e r m a n e cid o p a r a t r ás n a t e r r a p a r a salvar a h u m a n id a d e " (p . 9 1) . Ju n g est ava p a r t ic u la r m e n t e
in t er essad o n os r o m a n ce s d e M e yr in k . E m 1921, ao r e fe r ir -se à fu n ção t r a n sce n d e n t e e às fan t asias
in co n scie n t e s, o b se r vo u qu e e r a p o ssível e n co n t r a r n a lit e r a t u r a e xe m p lo s n os q u ais esse m a t e r ia l
fo r a su je it a d o à e la b o r a çã o est ét ica, e qu e "e n t r e est es e xe m p lo s, go st ar ia d e m e n c io n a r as d u as ob r as
de M e yr in k : O Golem e Aface verde". Tipos psicológicos. O C , 6, § 189. Ju n g co n sid e r a va M e yr i n k u m a r t ist a
"visio n á r io " ( "Psico lo gia e p oesia". O C , 1$, § 142) e est ava in t er essad o t a m b é m n o s e xp e r im e n t o s
a lq u im ico s d e M e yr i n k (Psicologia c alquim ia. O C , 12, § 34 i n . ) .
I N T RO D U ÇÃO 59

deixando os manuscritos assim mesmo em sua gaveta. Você disse que gran-
de parte do que você experienciou seria considerada como pura e simples
maluquice que, se fosse publicada, você fracassaria totalmente não só como
cientista, mas também como ser humano; mas eu disse que não, que se você
o abordasse a partir do ângulo de DíchtungundW ahrheít [Poesia e Verdade], as
pessoas poderiam fazer sua própria seleção quanto a distinguir um a coisa da
ou t r a 18 1. Você fez objeções a apresentar qualquer coisa dele como Díchtung
quando era tudo W ahrhett, mas não me parece falsidade fazer uso desse t an -
to de máscara para você mesmo proteger-se do provincianismo - e afinal,
como eu disse, o provincianismo tem seus direitos, em face da escolha de você
como maluco, e eles próprios, enquanto tolos sem experiência, precisam esco-
lher a prim eira alternativa, mas, se puderem colocar você como poeta, salvam
as aparências. Boa parte do seu material, como você disse, chegou-lhe como
runas e a explicação dessas runas soa como o mais arrematado absurdo, mas
isso não im port a se o produto fin al é o sentido. Em seu caso, eu disse, apa-
rentemente você teve consciência de um núm ero m aior de passos da criação
do que qualquer outro antes. Na m aioria dos casos a mente, é claro, aban-
dona automaticamente o m aterial irrelevante e entrega o produto final, ao
passo que você leva consigo todo o negócio, processo m atricial e produto.
Naturalm ente é m uito mais difícil de lidar. Meu tempo term in ou.

JAN E I R O D E I923
O que você me disse algum tempo atrás deixou-m e pensativa e de re-
pente outro dia, enquanto eu lia "Vorspiel auf dem Th eat er" [Prelúdio
no t eat r o ] 18 2 , dei-m e conta de que você também precisava fazer uso desse
princípio que Goethe manejara tão belamente em todo o Fausto, a saber,
contrapor o criativo e eterno ao negativo e transitório. Você pode não ver
imediatamente o que isto tem a ver com o Fívro Vermelho, mas eu vou explicar.
No m eu entender, neste livro você vai desafiar os homens a um a nova form a
de olhar para suas almas, em todo caso vai haver nele m uit a coisa que esta-
rá fora do alcance do homem com um , exatamente como em certo período
de sua vida você dificilm ente deve tê-lo entendido. De certa forma é um a
"joia" que você está dando ao mundo, não é> Min h a opinião é que ele preci-

181 Re fe r ê n cia à au t ob iogr afia de G O E T H E . From m yFife: Po e t r y a n d T r u t h . P r in ce t o n : P r in c e t o n U n ive r s it y


Pr ess, 19 9 4 [Tr a d . de R. H e i t n e r ] .
182 Re fe r ê n cia ao in ício d o Fausto: u m d iá lo go e n t r e o d ir et or , p oet a, e u m a p essoa feliz.
6o LI BE R N O VU S

sa de um a espécie de proteção, para que não seja jogado n a sarjeta e algum


judeu estranhamente vestido acabe roubando-o ou fazendo-o desaparecer.
A melhor proteção que você poderia inventar, parece-me, seria in t ro-
duzir no próprio livro um a exposição das forças que tentarão destruí-lo. U m
dos grandes dons que você tem é a capacidade de ver tanto o lado ru im quan-
to o lado bom de qualquer situação determinada, de modo que você saberá
melhor do que a m aioria das pessoas que atacam o livro o que é que elas que-
rem destruir. Você não poderia frustrar-lhes a expectativa escrevendo suas
críticas para eles? Talvez seja justamente isso que você fez n a introdução.
Talvez você devesse, de preferência, assumir para com o público a atitude de
"Pegue ou largue, e seja feliz ou dane-se, o que você preferir". Isso seria bom,
de qualquer m aneira o que houver de verdade nele irá sobreviver. Mas eu
gostaria de ver você fazer a outra coisa se não exigir m uito esforço de você.

2 6 D E J A N E I R O D E 19 24

Na noite an terior você tivera um sonho no qual eu aparecia disfarçada e


devia trabalhar sobre o Livro Verm elho e você esteve pensando sobre isso o dia
in t eiro e especialmente durante a h ora da Dr a. W h ar t on antes da m in h a
(bom para ela, devo dizer)... Com o você disse, você decidira entregar-me
todo o seu m aterial inconsciente representado pelo Livro Verm elho etc. para
ver o que eu, como observadora estranha e im parcial, d iria a respeito dele.
Você pensava que eu t in h a um a boa crítica e um a crítica im parcial. Com o
você disse, Ton i estava profundamente envolvida nele e, além disso, não t i -
nha nenhum interesse n a coisa em si, nem em pô-la n um a forma utilizável.
Você disse que ela está perdida "esvoaçando como um pássaro". Q u an t o a
você, você disse que sempre soube o que fazer com suas ideias, mas aqui
você ficou desorientado. Q uan do você as abordou, você ficou, por assim
dizer, emaranhado e já não podia ter certeza de nada. Você tin h a certeza de
que algumas delas tin h am grande im portância, mas não pôde encontrar a
form a apropriada - como elas eram agora, você disse, elas poderiam provir
de um manicômio. Você disse então que eu devia copiar os conteúdos do Li-
vro Verm elho - um a vez antes você m andara copiá-lo, mas depois acrescentou
um a porção de m ateriais, de modo que você quis que ele fosse copiado nova-
mente, e você me explicaria as coisas à medida que eu prosseguisse, porque
você entendia quase tudo nele, você disse. Dessa forma, poderíam os chegar
a discutir muitas coisas que nunca afloraram em m in h a análise e eu poderia
entender as ideias de você a part ir do fundamento. Você me disse então algo
I N T RO D U ÇÃO 61

mais sobre sua atitude para com o "Livr o Verm elh o". Você disse que algo
dele feriu terrivelm ente seu senso da conveniência das coisas e que você
evitou registrá-lo por escrito t al qual ele veio a você, mas você dera início
ao prin cípio da "espontaneidade", ou seja, de não fazer nenhum a correção, e
manteve-se fiel a ele. Algun s dos quadros eram absolutamente infantis, mas
tin h am a intenção de o ser. H avia vários personagens falando: Elias, Padre
Filêm on et c, mas todos pareciam ser fases daquilo que você pensava devia
ser ch am ad o "o m est r e". Você t in h a certeza de que este últim o era o mesmo
que in spirou Buda, Man i, Crist o, Maom é - todos aqueles que, podemos d i-
zer, tiveram trato íntim o com Deu s 18 3 . Mas os outros haviam-se identificado
com ele. Você recusou-se term inantem ente. Isso não poderia ser para você,
como você disse, você precisava continuar sendo o psicólogo — a pessoa que
compreendia o processo. Eu disse então que o que se devia fazer era possibi-
lit ar que o mundo também compreendesse o processo, sem que eles tenham
a noção de ter, por assim dizer, seu Mestre preso n um a gaiola à sua in t eira
disposição. Eles deviam im aginá-lo como um a coluna de fogo avançando
continuamente e sempre fora do alcance dos humanos. Sim , você falou que
era algo parecido com isso. Talvez ainda não possa ser feito. À medida que
você falava eu adquiria um a consciência sempre mais nítida da in com en -
surabilidade dos ideais que enchem você. Você dizia que eles tin h am sobre
eles a sombra da eternidade e eu pude sentir a verdade d ist o 18 4 .

Em 3 0 de jan eiro, ela observou que Ju n g falou de u m sonho que ela lh e


con t ara:

Q u e era um a preparação para o Livro Vermelho, porque o Livro Verm elho falava
da batalha entre o mundo da realidade e o mundo do espírito. Você disse
que nessa batalha você estivera bem perto de ser desmantelado, mas con -
seguiu manter os pés no chão e ter influência sobre a realidade. Você disse
que para você isso foi o teste de alguma ideia e que você não tin h a respeito
n en h um por quaisquer ideias, por mais aladas que fossem, que precisavam
exist ir lá fora no espaço e eram incapazes de causar impressão sobre a rea-
lid ad e 18 5.

183 C o m r esp eit o a ist o, cf. a in scr ição d a ilu st r . 154 ad ian t e, n o t a 28 2, p. 364.
184 CFB.
185 Ib id .
62 LI BE R N O VU S

Exist e u m fragm en to n ão datado de u m esboço de cart a a u m a pessoa n ão


id en t ificad a, n a qu al Ca r y Bayn es expressa sua opin ião sobre a im port ân cia do
Líber Novus e a necessidade de sua publicação:

Est ou absolutamente atónita, por exemplo, quando leio o Livro Verm elho e
vejo tudo quanto ali se diz para o Reto Cam inho para nós hoje, de ver como
Ton i deixou isso fora do seu sistema. Ela não t eria um a m ancha in con s-
ciente em sua psique se tivesse digerido tanto do Livro Verm elho quanto eu
li e penso que não foi u m terço nem um quarto. E outra coisa difícil de
entender é por que ela não tem n en h um interesse em fazer com que ele o
publique. H á pessoas em m eu país que o leriam do prin cípio ao fim quase
sem pausa para respirar, pois ele reexam in a e esclarece as coisas de hoje,
fazendo cambalear todos os que estão tentando en con trar a chave para a
vida... Ele pôs nele todo o vigor e o colorido de sua fala, toda a franqueza
e sim plicidade que vêm quando, como n a Corn u alh a, o fogo arde n ele 18 6 .
Eviden tem en te pode ser que, como ele diz, se o publicasse como está,
ele estaria para sempre horsdu com bat no mundo da ciência racional, mas então
deve haver um a m an eira neste caso, um a m an eira de ele proteger-se con tra a
estupidez, a fim de que as pessoas que queiram o livro não fiquem privadas
durante todo o tempo que levar para que a m aioria esteja preparada para
ele. Eu sempre soube que ele devia ser capaz de escrever com a paixão com
que ele é capaz de falar — e aqui está. Seus livros publicados estão adultera-
dos para o mundo em geral, ou antes aqueles saíram da sua cabeça e este do
seu coração 18 7 .

Est as discussões descrevem vivam en t e a profun didade das deliberações de


Ju n g relat ivas à publicação do Líber Novus, sua percepção da sua cen t ralidade
para com preen der a gén ese de sua obra, e seu t em or de que a obra fosse m al
com preen dida. A im pressão que o est ilo da obra causaria n u m pú blico despre-
ven id o preocupava vivam en t e Jun g. Mais t arde, ele relem b rou a An ie la Jaffé
que a obra ain d a precisava de u m a form a con ven ien t e para poder ser dada à luz,
porque soava à profecia, o que n ão era do seu gost o 18 8 .

186 Re fe r ê n cia ao se m in á r io de Po lz ea t h .
187 Su sp eit o qu e ist o fo i escr it o a seu e x- m a r id o , Ja im e d e An gu lo . E m 10 d e ju lh o d e 1924, ele escr eveu
a ela: "Su p o n h o qu e vo cê est eve t ão o cu p ad a q u an t o e u , c o m est e m a t e r ia l de Ju n g... L i su a ca r t a , aq u ela
em qu e vo cê a n u n cio u ist o, e vo cê e xo r t o u - m e a n ã o d iz e r a n in gu é m , e acr escen t o u qu e vo cê n ã o d e ve r ia
co n t a r - m e , m as vo cê sab ia qu e e u se n t ir ia t a n t o o r gu lh o de vo c ê " (CFB).
188 M P , p. 169.
I N T RO D U ÇÃO 63

Parece que h ouve algum debate sobre estas quest ões n o círculo de Ju n g. Em
2 9 de m aio de 19 24 , Ca r y Bayn es an ot ou u m a discussão com Peter Bayn es, n a
qual este argum en t ava que o Líber Novus só pod eria ser en t en d id o por alguém
que tivesse con h ecido Ju n g. E m con t rapart id a, ela pen sava que este livr o

era o registro da passagem do universo pela alm a de u m hom em e, assim


como um a pessoa fica parada jun to ao mar e ouve essa m uito estranha e
terrível música e não é capaz de explicar por que seu coração dói ou por que
um grito de prazer quer pular de sua garganta, assim eu pensava que seria
com o Livro Verm elho e que u m hom em seria forçosamente arrancado para
fora de si pela majestade dele e elevado a alturas a que ele nunca t in h a sido
elevado an t es 18 9 .

H á m ais out ros sin ais de que Ju n g fez circu lar cópias do Líber Novus en t re
am igos m ais ín t im os, e que o m at erial foi d iscu t id o ju n t o com as possibilidades
de sua publicação. U m desses colegas foi W olfgan g Stockm ayer. Ju n g en con -
t rou -se com St ockm ayer em 19 0 7. N o n ecrológio in éd it o dele, Ju n g escreveu
que ele foi o p r im eir o alem ão a in t eressar-se por sua obra. Lem b r o u que St o-
ckm ayer foi u m verd ad eiro amigo. Eles viajaram ju n t os à It ália e à Suíça, e raras
vezes h ouve u m an o em que n ão se en con t raram . Ju n g com en t ou :

Ele distinguiu-se por seu grande interesse e igualmente grande com preen-
são dos processos psíquicos patológicos. En con t rei também nele um a sim -
pática recepção de m eu ponto de vist a mais amplo, que foi im portante para
minhas posteriores obras de psicologia com parad a 19 0 .

St ockm ayer acom pan h ou Ju n g n a "valiosa pen et ração de n ossa psicologia"


n a filosofia ch in esa clássica, nas especulações m íst icas da ín d ia e n o yoga t ân -
t r ico 19 1.
Em 2 2 de dezem bro de 19 24 , St ockm ayer escreveu a Jun g:

Muitas vezes tenho saudades do Livro Verm elho e gostaria de ter um a cópia
daquilo que estiver disponível; deixei de fazê-lo quando eu o tin ha, como

189 CFB.
190 St o ck m a ye r o b it u a r y",JA .
191 I b i d .
64 LI BE R N O VU S

ger alm en t e acon t ece. Re ce n t e m e n t e fan t asiei a r esp eit o de u m a esp écie de
revista de "Docum en t os" sem formato rígido destinada a materiais prove-
nientes da "forja do inconsciente", com palavras e cores 19 2 .

Parece que Ju n g lh e en viou algum m at erial. Em 3 0 de abril de 19 25, St ock-


m ayer escreveu a Jun g:

En trem en tes examinamos cuidadosamente os "Aprofundamentos" e a im -


pressão é a mesma que n a grande od isseia 193. U m ambiente coletivo seleto
para isso do Livro Verm elho certamente vale a pena ser tentado, embora um
com entário por parte de você seria m uito desejável. Já que um certo centro
adjacente de você está aqui, é de grande im portância um amplo acesso às
fontes, consciente ou inconscientemente. E obviamente eu fantasio a res-
peito de fac-símiles, o que você vai entender: você não precisa temer magia
de extroversão de m in h a parte. A pin t ura também exerce grande at rat ivo 19 4 .

O m an u scrit o de Ju n g "Com en t ár ios" (cf. apên dice B) esteve possivelm en -


te ligado a essas discussões.
Assim , as pessoas do círculo de Ju n g t in h am opin iões divergen tes sobre o
sign ificado do Líber Novus e se ele d everia ser publicado, o que pode t er in fluído
nas decisões fin ais de Jun g. Ca r y Bayn es n ão com plet ou a t ran scrição, ch egan -
do até às p rim eiras 2 7 págin as dos Aprofundamentos. Nos poucos anos seguintes,
ela ocu pou seu tem po n a t radução dos ensaios de Ju n g para o in glês, seguida
pela t radução do I Ching.
Em algum períod o, que calculo ser nos m eados da década de 19 2 0 , Ju n g
volt ou ao Esboço e ed it ou -o n ovam en t e, su p rim in d o e acrescentado m at erial em
aproxim adam en t e 2 5 0 págin as. Suas revisões serviram para m od ern izar a lin -
guagem e a t er m in ologia 19 5 . Revisou t am bém u m a part e do m at erial que ele já
h avia t ran scrit o para o volu m e caligráfico do Líber Novus, bem com o algum m a-
t erial que h avia sido deixado de lado. E difícil ver por que ele em preen d eu esta
tarefa, se n ão estivesse pen san do seriam en t e em pu blicá-lo.

192 JA. As car t as de Ju n g a St o ck m a ye r n ã o fo r a m t or n ad as p ú b licas.


193 Re fe r ê n cia ao Líber Secundus d o Líber Novus, cf. ad ian t e n o t a 4, p. 19 0.
194 JA.
195 Po r ex., su b st it u in d o "Ge i s t d er Ze i t " p o r "Ze it ge ist " [esp ír it o d a é p o ca ], "Vo r d e n k e n " [p r evisã o ] p o r
"Id e e " [id e ia ].
I N T RO D U ÇÃO

Em 19 2$, Ju n g apresen t ou seu sem in ário sobre psicologia an alít ica ao Clu b e
Psicológico. Aq u i, ele d iscu t iu algumas das fantasias im port an t es do Líber Novus.
Descreveu com o elas se m an ifest aram e m ost rou com o con st it u íram a base das
ideias con t idas em Tipos Psicológicos e a chave para en t en der a gén ese desta obra.
O sem in ário foi t ran scrit o e editado por Ca r y Bayn es. Nesse m esm o ano, Peter
Bayn es preparou u m a t radução in glesa dos Septem Serm ones ad Mortuos, que foi p u -
blicad a p r ivad am en t e 19 6 . Ju n g d eu exem plares a alguns de seus alunos de lín gua
inglesa. N u m a cart a que se presum e ser u m a resposta a u m a cart a de H e n r y
Mu r r ay que lh e agradecia u m exem plar, Ju n g escreveu:

Est ou profundamente convencido de que aquelas ideias que me vieram são


realmente coisas m uito maravilhosas. Posso dizer isso tranquilam ente (sem
corar), porque sei o quanto fui resistente e tolamente obstinado quando
elas me visit aram pela prim eira vez e que trabalheira me deu até eu poder
in terpretar esta linguagem simbólica, tão superior à m in h a obtusa mente
con scien t e 197.

É possível que Ju n g t en h a considerado a publicação dos Serm ones u m teste para


a publicação do Líber Novus. Barb ara H an n ah afirm a que ele lam en t ou t ê-los p u -
blicado e que "ele t in h a a firm e con vicção de que só d eviam t er sido escritos n o
Livro Verm elho'198.

A cert a alt ura, Ju n g escreveu u m m an u scrit o in t it u lad o "Com en t ár ios", que


forn ecia u m com en t ário sobre os capít ulos 9 , 10 e 11 do Líber Prímus (cf. ap ên -
dice A ) . Ele an alisou algumas dessas fantasias em seu sem in ário de 19 2$ e aqui
en t ra em m ais detalhes. Pelo est ilo e con cepções eu calcu laria que esse t ext o foi
escrit o em m eados d a década de 19 2 0 . Talvez ele t en h a escrit o - ou t en cion ado
escrever - m ais "com en t ários" para out ros capít ulos, mas estes n ão ch egaram
à luz. Esse m an u scrit o m ost ra quan t o t rabalh o ele en vid ou para com preen der
todo e cada detalh e de suas fantasias.

196 Lo n d r e s: St u a r t a n d W a t k in s , 1925.
197 2 de m a io d e 1925, Murraypapers, H o u g h t o n Lib r a r y, H a r va r d Un ive r sit y, o r igin a l e m in glês.
M ic h a e l Fo r d h a m le m b r o u t e r r eceb id o u m e xe m p la r d e Pet er Bayn es q u an d o alcan çar a u m est ágio
co n ve n ie n t e m e n t e "a va n ça d o " e m su a an álise e t er p r est ad o ju r a m e n t o de gu ar d ar segred o a r esp eit o
( co m u n ica çã o p essoal, 19 9 1).
198 C.G.Jung: Hís Life and W ork - A Bio gr a p h ica l Me m o ir , p. 121.
66 LI BE R N O VU S

Ju n g d eu exem plares do Líber Novus a diversas pessoas: Ca r y Bayn es, Pet er


Bayn es, An ie la Jaffé, W olfgan g St ockm ayer e To n i W o lff Talvez t en h am sido
dados exem plares t am b ém a out ros. E m 19 37, u m in cên d io d est ru iu a casa de
Pet er Bayn es e d an ificou seu exem p lar do Líber Novus. Algu n s anos depois, es-
creveu a Ju n g ped in d o se por acaso ele t in h a ou t ro exem p lar e ofereceu-se para
t r a d u z i- lo 1". Ju n g respon deu: "Pr ocu r ar ei ver se posso arran jar ou t ro exem -
plar do Livro Vermelho. Por favor, n ão se preocupe com t rad u ções. Ten h o cert eza
de que já exist em 2 ou 3 t rad u ções. Mas n ão sei do que n em por q u e m " 2 0 0 . Est a
su posição baseava-se p resu m ivelm en t e n o n ú m ero de exem plares d a obra em
circulação.
Ju n g d eixou os seguintes in d ivíd u os ler e/ ou exam in ar o Líber Novus: Rich ar d
H u ll, T i n a Keller, Jam es Kir sch , Xim e n a Ro elli de An gu lo (quan do crian ça) e
Ku r t W o lff An ie la Jaffé leu os Livros Negros e T i n a Keller teve t am bém p er m is-
são de ler seções dos Livros Negros. Ju n g m u it o provavelm en t e m ost rou o livro
a out ros com pan h eiros p róxim os, com o Em il Medt n er, Fr an z Rik lin Sr., Er i -
ka Sch legel, H an s Trú b e Mar ie-Lou ise vo n Fran z. Parece que p er m it iu que
lessem o Líber Novus aquelas pessoas em qu em con fiava plen am en t e e que ele
recon h ecia t erem u m a plen a com preen são de suas ideias. U m bom n ú m ero de
seus alun os n ão se en caixava nessa categoria.

A t r a n s fo r m a ç ã o d a p sico t e r a p ia
O Léer Novus é de im port ân cia capit al para se com preen der o surgim en t o do
n ovo m odelo de psicot erapia de Jun g. Em 19 12, em Transformação e símbolos da libido,
ele con sid erou que a presen ça de fantasias m it ológicas - com o as presen tes
no Líber Novus — era sin al de u m afrouxam en t o das camadas filogen ét icas do
in con scien t e e in d ício de esquizofren ia. At ravés de sua au t oexperim en t ação,
ele r eviu rad icalm en t e esta posição: o que agora con sid erou essen cial n ão foi
a presen ça de algum con t eú d o det erm in ado, mas a at it ude do in d ivíd u o para
com ele e, em part icu lar, se o in d ivíd u o pod ia acom odar esse m at erial em sua
cosm ovisão. Ist o exp lica por que, em seu posfácio ao Líber Novus, ele com en t ou
que, para o observador su perficial, a obra ir ia parecer lou cu ra e pod eria t er-se

199 23 de n o ve m b r o de 1941, JA.


2 0 0 22 d e ja n e ir o de 1942. C.G.Jung Letters, 1, p. 312.
I N T RO D U ÇÃO 67

t orn ado lou cu ra se ele n ão tivesse conseguido con t er e com preen der as ex-
p er iên cia s 20 1. N o Líber Secundus, capít u lo 15, ele apresen t a u m a crít ica da p siqu ia-
t r ia con t em p orân ea, destacando a in capacidade desta de d ist in gu ir en t re ex-
periên cia religiosa ou lou cu ra d ivin a e psicopatologia. Se o con t eú d o de u m a
visão ou fan t asia n ão t in h a n en h u m valor diagn ósico, ele achava que, m esm o
assim , era essen cial con sid erá-lo com cu id a d o 20 2 .
A p ar t ir de suas experiên cias, Ju n g desen volveu novas con cepções dos ob-
jet ivos e m ét od os d a psicot erapia. Desd e seu in ício n o fin al do século X I X ,
a m od ern a psicot erapia preocupara-se p rim ariam en t e com o t rat am en t o de
d ist ú rbios n ervosos fun cion ais, ou n euroses, com o vier am a ser con h ecidos.
A p ar t ir da época d a Pr im eir a Gu e r r a Mu n d ial, Ju n g reform u lou a prát ica da
psicot erapia. N ã o m ais preocupada u n icam en t e com o t rat am en t o da psicopa-
tologia, ela t orn ou -se u m a prát ica para possibilit ar o desen volvim en t o u lt erior
do in d ivíd u o pelo fom en t o do processo de in dividuação. Isso ir ia t er con sequ -
ên cias de grande alcance n ão só para o desen volvim en t o da psicologia an alít ica,
mas t am bém para a psicot erapia com o u m todo.
Para d em on st rar a validade das con cepções que t ir ou n o Líber Novus, Jung
t en t ou m ost rar que os processos descritos n o livro n ão eram ú n icos, e que as
con cepções ali desen volvidas eram aplicáveis a outros. Para estudar as p r od u -
ções de seus pacien tes, ele organ izou u m a ext en sa coleção de seus quadros. Para
que seus pacien tes n ão ficassem separados de suas im agens, Ju n g geralm en te
lh es pedia que fizessem cópias para e le 2 0 3 .
Du r an t e esse períod o, ele con t in u ou a in st r u ir seus pacien tes sobre com o
in d u zir visões em estado de vigília. E m 19 2 6 , Ch r ist ian a Morgan p rocu rou
Ju n g para subm et er-se a an álise. El a h avia sido at raída para as ideias de Ju n g
ao ler Tipos psicológicos e recorreu a ele em busca de assist ên cia para seus proble-
mas de relacion am en t os e depressões. N u m a sessão em 19 26 , Morgan an ot ou o
con selh o que Ju n g lh e d eu sobre com o p rod u zir visões:

Bem , como você vê, estas são vagas demais para eu poder dizer m uit a coisa
sobre elas. Elas são apenas o começo. Basta você usar a ret in a do olho p r i-

20 1 Cf. ad ian t e, p. 4 8 9 .
2 0 2 Cf. os co m e n t á r io s d e Ju n g ap ó s u m a p alest r a sob re Swe d e n b o r g n o Cl u b e Psico ló gico , d o cu m e n t o s d e
Jaffé, E T H .
20 3 Est e s q u ad r os est ão d isp o n íve is p a r a est u d o n o a r q u ivo de q u ad r os n o In s t it u t o C G . Ju n g, Kú sn a ch t .
68 LI BE R N O VU S

meiramente para objetivar. Depois, em vez de con t in u ar t en t an d o obter a

imagem à força, você só precisa olhar para dentro. Agora, quando você vê estas
imagens, você precisa mantê-las e ver para onde elas levam você - como elas
mudam. E você precisa tentar entrar você mesma no quadro - tornar-se um
dos atores. Q uan do comecei pela prim eira vez a fazer isto, eu via paisagens.
Depois aprendi a in serir-m e dentro da paisagem e os personagens falavam
comigo e eu respondia a eles... As pessoas diziam : ele tem um tem peram en-
to artístico. Mas era apenas que m eu inconsciente estava me dominando.
Agora eu aprendo a representar seu dram a como também o dram a da vida
exterior e assim nada pode ferir-m e agora. Escrevi IO O O páginas de m aterial
tirado do inconsciente (Con t ou a visão de um gigante que se transform ou
n um o vo ) 2 0 4 .

Ju n g d escrevia det alh adam en t e seus p róp rios exp erim en t os a seus pacie
tes e os in st ru ía a fazer o m esm o. O papel dele era o de su p ervision á-los
fazer exp erim en t os com sua p róp ria t orren t e de im agen s. Morgan an ot ou que
Ju n g disse:

Agora sinto como se eu devesse dizer alguma coisa a você sobre estas fan-
tasias... As fantasias parecem agora u m tanto diluídas e cheias de repetições
dos mesmos motivos. Não existe nelas suficiente fogo e calor. Elas precisam
ser mais excitantes... Você deve estar mais nelas, ou seja, você deve ser seu
próprio si-mesmo crítico consciente nelas — impondo seus julgamentos e
críticas... Posso explicar o que quero dizer contando-lhe m in ha própria ex-
periência. Eu estava escrevendo em m eu livro e de repente vi um homem
de pé observando por sobre meu ombro. U m dos pontos dourados de m eu
livro saltou fora e atingiu-o no olho. Ele me perguntou se eu iria tirá-lo. Eu
disse que não - não, a menos que ele me dissesse quem ele era. Ele disse que
não diria. Você vê, eu sabia disso. Se eu tivesse feito o que ele pediu, ele teria
mergulhado no inconsciente e eu não teria captado o significado disso, ou
seja: por que ele simplesmente havia aparecido do inconsciente. Finalm ente,
ele me disse que iria dizer-m e o sentido de alguns hieróglifos que eu tivera
alguns dias antes. Ele o fez e eu t irei a coisa do seu olho e ele desapareceu 205.

20 4 8 d e ju lh o de 1926, agen d as de an álise, Bib lio t e ca d e m e d ic in a de Co u n t wa y. A visão a qu e se faz


r efer ên cia n o fim e n co n t r a -se n o Líber Secundus, cap. 11, p. 283.
20 5 Ib id ., 12 d e o u t u b r o de 1926. O e p isó d io a q u i r efer id o é o a p a r e cim e n t o d o m ago "H a ". Cf. ad ian t e, p.
28 9 , n o t a 155.
I N T RO D U ÇÃO 69

Ju n g chegou a sugerir que seus pacien tes elaborassem seus p róp rios Livros
Vermelhos. Morgan lem b r ou t ê-lo ouvido dizer:

Eu deveria aconselhá-la a registrar tudo isso da m an eira mais bela que você
puder - em algum livro belamente encadernado. Vai parecer como se você
estivesse banalizando as visões — mas você precisa fazer isso - então você
fica livre do poder delas. Se você fizer isso com este olhar, por exemplo, elas
deixarão de atrair você. Você n un ca deve tentar fazer estas visões volt a-
rem novamente. Pense nisto em sua imaginação e procure pintá-lo. Depois,
quando estas coisas estiverem em algum livro precioso, você poderá ir ao
livro e virar as páginas e para você será sua igreja - sua catedral - os lugares
silenciosos de seu espírito onde você encontrará renovação. Se alguém lhe
disser que isso é m órbido ou neurótico e você lhe der ouvidos, você perderá
sua alm a - porque nesse livro está sua a lm a 20 6 .

Nu m a cart a a J.A. Gilb er t em 19 29 , Ju n g com en t ou sobre seu procedim en t o:

Descobri às vezes que é m uito útil, ao tratar um caso desses, estimulá-los a


expressar seus conteúdos peculiares seja n a form a de escrita ou n a de de-
senho e pin tura. Exist em tantas intuições incom preensíveis nesses casos,
fragmentos de fantasias que brotam do inconsciente, para os quais quase
não existe linguagem apropriada. Deixo meus pacientes encontrarem suas
próprias expressões simbólicas, sua "m it ologia"20 7 .

O sa n t u á r io d e Fi l ê m o n
Na década de 19 20 , o interesse de Ju n g deslocou-se cada vez m ais da tran scrição
do Líber Novus e da elaboração de sua m it ologia nos Livros Negros para o trabalh o
em sua t orre em Bollin gen . E m 19 2 0 , com p rou u m ped aço de t erra n a m argem
n ort e do Lago de Zu riq u e, em Bollin gen . An t es disso, ele e sua fam ília às vezes
passavam férias acam pados em t orn o do Lago de Zu riqu e. Ju n g sen t ia n eces-
sidade de represen t ar seus pen sam en tos m ais ín t im os em pedra e de con st ru ir

2 0 6 Ib id ., 12 de ju n h o de 1926.
20 7 20 de d e z e m b r o d e 1929, JA ( o r igin a l e m in glê s) .
7o LI BE R N O VU S

um a m orad ia in t eiram en t e p r im it iva: "As palavras e os escritos n ão eram bas-


tan te reais para m im ; era preciso ou t ra co isa "20 8 . Ele precisava fazer u m a "p r o-
fissão de fé em pedra". A t orre era u m a "represen t ação d a in d ivid u ação". Ao
lon go dos anos, Ju n g p in t ou m u rais e fez gravações nas paredes. A t orre pode
ser con sid erad a u m a con t in u ação t r id im en sio n al do Líber Novus: seu "Líber Quar-

tus. No fin al do Líber Secundus, Jung escreveu: "Ten h o de recuperar u m ped aço d a
Idade Méd ia em m im . Ma l t erm in am os a Idade Méd ia - dos outros. Ten h o de
com eçar cedo, naquele tem po em que os erem it as d esap areceram "20 9 . D e form a
sign ificat iva, a t orre foi con st ru íd a proposit alm en t e com o u m a est ru t u ra d a
Idade Méd ia, sem com odidades m odern as. A t orre era u m a obra perm an en t e,
em evolução. Ju n g gravou a seguinte in scrição n a parede da t orre: "Ph ilem on is
sacru m - Fau st i p oen it en t ia" [San t u ário de Filêm on - Ar r ep en d im en t o de
Faust o] ( u m dos m u rais d a t orre é u m ret rat o de Filêm on ). Em 6 de abril de
19 29 , Ju n g escreveu a Rich ar d W ilh e lm : "Por que n ão exist em claustros m u n -
danos para h om en s que d everiam viver fora do t e m p o !"210
Em 9 de jan eiro de 19 23, m or r eu a m ãe de Jun g. E m 2 3/ 2 4 de dezem bro de
19 23, ele teve o seguinte sonho:

Est ou no serviço m ilitar. Marchando com u m batalhão. Nu m a floresta per-


to de O ssin gen encontro escavações n um a en cruzilhada: um a figura em
pedra, de 1 m etro de altura, de um a rã ou u m sapo sem cabeça. Atrás dele
está sentado um m en in o com cabeça de sapo. Depois o busto de u m h o-
mem com um a âncora fincada n a região do coração, estilo romano. U m
segundo busto de 16 4 0 aproxim adam ente, mesmo motivo. Depois cadáve-
res mumificados. Fin alm en t e vem um a caleche em estilo do século X V I I .
Nela está sentada um a m ulh er m ort a, mas que ainda vive. Ela vira a cabeça
quando me d irijo a ela cham ando-a de "Sen h orit a"; sei que "Sen h orit a" é
um título de n ob reza 211.

Algu n s anos m ais t arde, ele en t en d eu o sign ificado deste sonho. An o t o u em


4 de dezem bro de 19 2 6 :

20 8 Mem órias, p. 196.


2 0 9 Cf. ad ian t e, p. 4 0 4 .
210 JA.
211 Livro Negro 7, p. 120.
I N T RO D U ÇÃO 7i

Só agora vejo que o sonho de 23/ 24 X I I 19 2 3 significa a m orte da. anim a ( "Ela
não sabe que está m ort a"). Isto coincide com a morte de m in h a mãe... Desde
a m orte de m in h a mãe a A. [anima] silenciou. Sign ificat ivo!212

Algu n s anos depois, Ju n g teve m ais alguns diálogos com sua alm a, mas a
esta alt u ra seu con fron t o com a anim a chegara efet ivam en t e a u m fim . E m 2 de
jan eiro de 19 27, ele teve u m son h o localizado em Liver p ool:

Est ou com vários jovens suíços em Liverpool jun to ao porto. E um a n oi-


te escura e chuvosa com fumaça e nevoeiro. Subimos para a parte alta da
cidade, que está n u m planalto. Chegamos a u m jard im cen tral jun to a u m
pequeno lago redondo. No meio deste há um a ilha. O s homens falam de u m
suíço que m ora aqui nesta cidade escura, suja e cheia de fuligem. Mas eu vejo
que n a ilh a ergue-se um a magnólia coberta de flores vermelhas, ilum in ada
por u m eterno sol, e penso: "Agora sei por que este suíço m ora aqui. Ele
tam bém sabe evidentemente". Vejo o plano da cidade: [Ilu st ração] 213.

Ju n g p in t ou en t ão u m m an d ala baseado neste m a p a 214 . At r ib u iu u m a gran de


im p ort ân cia a este sonho, com en t an d o post eriorm en t e:

O sonho ilustrava m in h a situação naquele momento. Vejo ain da as capas


de chuva, de cor cin za - amareladas, brilh an tes de umidade. Tudo era ex-
trem am ente desagradável, negro, im com preensível... como eu me sen tia
naquela época. Mas eu t in h a a visão da beleza terrestre e era ela que me
dava a coragem de viver. Vi que a meta nele se expressara. Essa m eta é o
centro, e não é possível ultrapassá-lo. Através deste sonho com preendi que
o si-mesmo é u m princípio, u m arquétipo da orientação e do sen t id o 215.

Ju n g acrescen t ou que o suíço era ele m esm o. O "eu " n ão era o si-m esm o,
mas d ali se pod ia ver o m ilagre d ivin o. A pequen a lu z assem elhava-se à gran de
luz. Daí em dian t e ele parou de p in t ar m an dalas. O son h o expressara o p r o-
cesso in con scien t e de desen volvim en t o, que n ão era lin ear, e ele o con sid erou

212 Ib id ., p. 121.
213 Ib id ., p. 124. Pa r a a ilu st r ., cf. o a p ê n d ice A , p. 4 9 5.
214 Ilu st r . 159 d a e d içã o ilu st r a d a d est a ob r a.
215 Mem órias, p. 176.
72 LI BE R N O VU S

in t eiram en t e satisfatório. Sen t ia-se com plet am en t e só nesse tem po, preocu pa-
do com algo grande que outros n ão en t en d iam . N o sonho, só ele viu a árvore.
En qu an t o eles estavam de pé, n a escuridão, a árvore apareceu radian t e. Se ele
n ão tivesse t ido essa visão, sua vid a t eria perdido o se n t id o 216 .
A percepção foi que o si-m esm o é a m et a da in dividuação e que o processo de
in dividuação n ão era linear, mas con sist ia n u m a circum am bulação do si-m esm o.
Est a percepção d eu -lh e força, pois de ou t ra form a a experiên cia t er ia en lou -
quecido a ele ou aos que o cer cavam 217 . Ele sen t iu que os desenhos de m an dalas
m ost ravam -lh e o si-m esm o "em sua fun ção salvadora" e que ist o era sua salva-
ção. A tarefa agora era u m a tarefa de con solidar essas in t uições em sua vid a e
ciên cia.
E m su a revisão de Psicologia dos processos inconscientes, feita em 19 2 6 , Ju n g r eal-
çou a im port ân cia da t ran sição da m eia-idade. Afir m o u que a p r im eir a m etade
da vid a pod ia ser caract erizada com o a fase n at u ral, n a qual o objet ivo p r in ci-
pal er a estabelecer-se n o m un do, gan han do seu salário ou ten do u m a ren d a e
crian d o u m a fam ília. A segunda m etade da vid a pod ia ser caract erizad a com o a
fase cu lt u ral, que en volvia u m a reavaliação de valores an t eriores. Nest e p eríod o
a m et a era a de con servar valores preceden tes ju n t o com o recon h ecim en t o
de seus opostos. Ist o sign ificava que os in d ivíd u os precisavam desen volver os
aspectos n ão desen volvidos e negligenciados de su a p erson alid ad e 218 . O p r o-
cesso de in dividu ação era agora con cebido com o o pad rão geral do d esen volvi-
m en t o h um an o. Ele afirm ou que n a sociedade con t em p orân ea h avia u m a falta
de orien t ação para essa t ran sição e achava que su a psicologia preen ch ia esta
lacun a. For a d a psicologia an alít ica, as form u lações de Ju n g causaram im pact o
n o cam po d a psicologia do d esen volvim en t o dos adultos. Evid en t em en t e, su a
exp eriên cia d a crise con st it u iu o gabarito para essa con cepção dos requisit os
das duas m etades da vid a. O Liber Novus descreve a reavaliação feit a por Ju n g de
seus valores an t eriores e sua t en t at iva de desen volver os aspectos n egligen cia-
dos de sua person alidade. Assim , o livr o con st it u iu a base de sua com preen são
de com o a t ran sição da m eia-id ad e pod ia ser feit a com êxit o.
Em 19 2 8 , Ju n g p u blicou u m pequen o livro, As relações entre o eueo inconsciente,
que era u m a am pliação de seu en saio de 19 16 in t it u lad o "A est ru t u ra do in con s-

216 MP, p. 159-160.


217 Ib id ., p. 173.
218 O C , 7> § I I 4 - I I 7
I N T RO D U ÇÃO 73

cien t e". Aq u i, ele se est en deu sobre o "dram a in t er io r " do processo de t ran sfor-
m ação, acrescen tan do u m a seção que t rat ava det alh adam en t e do processo de
in dividuação. Ele observava que, depois de alguém t er lid ad o com as fantasias
proven ien t es da esfera pessoal, deparava-se com as fantasias proven ien t es da
esfera im pessoal. Est as n ão eram sim plesm en t e arbit rárias, mas con vergiam
para u m a m et a. Por isso, essas fantasias post eriores pod iam ser descritas com o
processos de in iciação, que forn eciam sua an alogia m ais próxim a. Para ocor-
rer este processo, era n ecessária a part icipação ativa: "Q u an d o a con sciên cia
desem pen h a u m a part e at iva e exp erim en t a cada fase do processo... a im agem
seguinte sem pre ascen d erá a u m est ádio superior, con st it u in d o-se assim fin a-
lidade da m e t a " 2 19 .
Ap ó s a assim ilação do in con scien t e pessoal, a diferen ciação da person a e a
superação do estado de sem elh an ça com Deu s, a fase seguinte era a in t egração
da anim a para os h om en s e do anim us para as m u lh eres. Ju n g afirm ou que, assim
com o era essen cial para u m h om em d ist in gu ir en t re o que ele era e com o apa-
recia aos out ros, era igualm en t e essen cial ad qu irir con sciên cia de "seu in visí-
vel sist em a de relações com o in con scien t e" e por isso d ist in gu ir-se da anim a.
Ele observou que, quan do a anim a era in con scien t e, ela era projet ada. Para u m a
crian ça, a p r im eir a port ad ora da im agem da alm a era a m ãe e, depois, as m u lh e-
res que est im u lavam os sen t im en t os do h om em . Er a preciso objet ivar a anim a
e colocar-lh e qu est ões, através do m ét od o do d iálogo in t er ior ou im agin ação
ativa. Tod os, afirm ava Ju n g, t in h am essa capacidade de dialogar consigo m es-
m os. A im agin ação at iva seria assim u m a das form as de d iálogo in t erior, u m a
espécie de pen sar dram at izado. Er a cru cial desiden t ificar-se dos pen sam en tos
que su rgiam e superar a presu n ção de que a p róp ria pessoa os h avia p r od u zi-
d o 2 2 0 . O m ais essen cial n ão era in t erp ret ar ou com preen der as fan tasias, mas
viven ciá-las. Ist o represen t ou u m a m u d an ça n a ênfase que Ju n g d era à for m u -
lação criat iva e à com p reen são em seu en saio sobre a fun ção t ran scen den t e.
Ju n g afirm ou que o in d ivíd u o d evia t rat ar as fantasias in t eiram en t e de form a
lit eral en quan t o estava em pen h ado n elas, mas de form a sim bólica quan do as
in t er p r et ava 221. Ist o era u m a descrição d iret a do proced im en t o de Ju n g nos Li-

219 Ib id ., § 38 6 .
220 Ib id ., § 323.
221 Ib id ., § 353
74 LI BE R N O VU S

vros Negros. A tarefa de tais discussões era objet ivar os efeitos da anim a e t orn ar-se
con scien t e dos con t eú d os em que est ão baseados, assim in t egran do-os à con s-
ciên cia. Dep ois que alguém se h avia fam iliarizad o com os processos in con s-
cien t es refletidos n a anim a, ela se t orn ava en t ão u m a fun ção de relação en t re a
con sciên cia e o in con scien t e, n ão m ais u m com plexo au t ón om o. Novam en t e,
esse processo de in t egração d a anim a foi o t em a do Liber Novus e dos Livros Negros.
(Ist o realça t am bém o fato de que as fantasias con t idas n o Liber Novus d everiam
ser lidas sim bolicam en t e e n ão lit eralm en t e. Tir a r afirm ações delas do con t ex-
to e cit á-las lit eralm en t e represen t aria u m grave m al-en t en d id o). Ju n g n ot ou
que esse processo t in h a três efeitos:

Em prim eiro lugar, há um a ampliação da consciência, pois inúm eros con -


teúdos inconscientes são trazidos à consciência. Em segundo lugar, h á um a
dim inuição gradual da influência dominante do inconsciente; em terceiro
lugar, verifica-se um a transformação da person alidade 222.

Ap ó s alcan çar a in tegração d a anim a, o in divídu o con fron tava-se com o u -


t ra figura, a saber, a "person alidade-m an a". Ju n g afirm ava que, quando a anim a
perd ia seu "m an a" ou poder, o h om em que a assim ilou d evia t ê-lo adquirido
e assim se torn ado u m a "person alidade-m an a", u m ser de vontade e sabedoria
superiores. Con t u d o, essa figura era "u m a dom in an t e do in con scien te coletivo:
o con h ecido arquét ipo do h om em poderoso, sob a form a do h erói, do cacique,
do mago, do curan deiro e do santo, sen hor dos h om en s e dos espíritos, amigo de
D e u s"223 . Assim , ao in tegrar a anim a e alcançar seu poder, a pessoa iden tificava-se
in evit avelm en t e com a figura do m ágico e en fren tava a tarefa de diferen ciar-se
deste. Ju n g acrescen tou que, para as m ulh eres, a figura correspon den te era a
da Gran d e Mãe. Se alguém abandonava a pret en são de vit ória sobre a anim a,
acabava a possessão pela figura do m ágico e ele percebia que o m an a pert en cia
realm en t e ao "pon t o cen t ral da person alidade", a saber, o si-m esm o. A assim ila-
ção dos con t eú dos d a person alidade-m an a levava ao si-m esm o. A descrição de
Ju n g do en con t ro com a person alidade-m an a, t an t o a iden t ificação com o a su b-
sequente desiden t ificação com ela, correspon de a seu en con t ro com Filêm on

222 I b i d , § 358.
223 I b i d , § 377.
I N T RO D U ÇÃO 75

n o Líber Novus. Sobre o si-m esm o, Ju n g escreveu: "O si-m esm o t am bém pode
ser cham ado c o Deu s em n ós'. O s prim órd ios de toda nossa vid a psíquica pa-
recem surgir in ext ricavelm en t e desse ponto, e as metas m ais altas e derradeiras
parecem d irigir-se para e le "224 . A descrição que Ju n g faz do si-m esm o exp rim e a
im port ân cia de sua percepção após seu sonho de Liverp ool:

O si-mesmo pode ser caracterizado como um a espécie de compensação do


conflito entre o in t erior e o exterior... Assim , pois, representa a meta da
vida, sendo a expressão plena dessa combinação do destino a que damos o
nome de indivíduo... Sentindo o si-mesmo como algo de irracion al e in de-
finível, em relação ao qual o eu não se opõe nem se submete, mas sim ples-
mente se liga, girando por assim dizer em torno dele como a t erra em torno
do sol - chegamos à meta da in d ivid u ação 225.

O co n fr o n t o c o m o m u n d o
Por que Ju n g parou de t rabalh ar n o Líber Novus? E m seu posfácio, escrit o em
19 59 , escreveu:

O conhecimento da alquim ia, em 19 30 , afastou-me dele. O começo do fim


veio em 19 28 , quando [Rich ard ] W ilh elm me enviou o texto da "flor de
ouro", u m tratado alquímico. Então, o conteúdo deste livro encontrou o ca-
m in h o da realidade e eu não consegui mais con tin uar o t rabalh o 226 .

Exist e m ais u m quadro t erm in ad o n o Líber Novus. Lm 19 28 , Ju n g p in t ou u m


m an d ala de u m castelo dourado (pág. 16 3 d a ed ição ilu st rad a). Dep ois de p in -
t á-lo, im pression ou-o o fato de o m an dala t er em si algo de chinês. Pouco depois,
Rich ar d W ilh e lm en viou-lh e o texto de O segredo da Llor de Ouro, pedin do-lh e que
escrevesse u m com en t ário sobre ele. Ju n g ficou im pression ado com o t ext o e
com a coin cid ên cia cron ológica:

224 Ib id ., § 3 9 9 .
225 Ib id ., § 4 0 4 - 4 0 5.
226 Cf. ad ian t e, p. 4 8 9 .
76 LI BE R N O VU S

O t e xt o m e fo r n e cia u m a co n fir m a çã o in esp er ad a n o t ocan t e às m in h a s


reflexões sobre o mandala e à deambulação em torno do centro. Este foi
o prim eiro acontecimento que rom peu a m in h a solidão. Al i percebi um a
afinidade e pude estabelecer laços com alguém e com algo 227.

O sign ificado dessa con firm ação é m ost rado nas lin h as que ele escreveu
em baixo da p in t u r a do Cast elo Am a r e lo 2 2 8 . Ju n g ficou im pression ado com as
correspon d ên cias en t re as im agens e con cepções desse t ext o e seus p róp rios
quadros e fantasias. E m 2$ de m aio de 19 29 , ele escreveu a W ilh e lm : "O dest in o
parece t er-n os at ribu íd o o papel de duas pilast ras que su st en t am a pon t e en t re
O r ien t e e O cid e n t e " 2 2 9 . Só m ais tarde deu-se con t a de que a n at u reza alqu ím i-
ca do t ext o era im p o r t a n t e 230 . Ju n g t rabalh ou em seu com en t ário du ran t e o ano
de 19 2 9 . E m 10 de setem bro de 19 2 9 , escreveu a W ilh e lm : "Vib r e i com este
texto, que está tão p róxim o de nosso in con scien t e"231.
O com en t ário de Ju n g sobre O segredo da Flor de Ouro represen t ou u m a m u -
d an ça decisiva. Fo i sua p r im eir a discussão pú blica sobre o sign ificado do m a n -
dala. Pela p r im eir a vez, Ju n g apresen t ou an on im am en t e t rês de suas p in t u ras
t iradas do Líber Novus com o exem plos de m an dalas europeus e t eceu com en t á-
rios sobre ela s 232 . A W ilh e lm , escreveu em 2 8 de ou t u bro de 19 2 9 a respeit o
dos m an dalas do volu m e: "As im agen s com plet am -se um as às out ras e, ju st a-
m en t e por causa de sua d iversid ad e, d ão u m a excelen t e im agem dos esforços
do esp írit o in con scien t e eu ropeu para com preen d er a escatologia o r ie n t a l"233 .
Essa ligação en t re o "espírit o in con scien t e eu rop eu " e a escatologia or ien t al
t orn ou -se u m dos gran des tem as n a obra de Ju n g n a d écad a de 19 30 , que ele
in vest igou por m eio de outras colaborações com os in d ólogos W ilh e lm H a u e r
e H e in r ich Zim m e r 2 34 . Ao m esm o tem po, a form a d a obra era cru cial: em vez

227 Mem órias, p. 175.


228 Cf. ad ian t e, p. 4 22, n o t a 373.
229 JA.
230 Pr efácio à segu n d a e d içã o alem ã. "Co m e n t á r i o a O segredo da Fiorde Ouro". O C , 13, p. 16.
231 W i l h e l m gost ou d o co m e n t á r io de Ju n g. E m 24 de o u t u b r o d e 1929, escr eveu -lh e: "fiq u e i d e n o vo
p r o fu n d a m e n t e im p r e ssio n a d o co m seu s co m e n t á r io s" QÀ).
232 Cf. ilu st r . 10 5,159 e 163 (est es q u ad r os, ju n t o co m m ais d ois, fo r a m d e n o vo r e p r o d u z id o s
a n o n im a m e n t e e m 1950 e m Ed . Ju n g. Gestaltungen des Unbewussten: Psych o lo gisch en Ab h a n d lu n ge n . Vo l . 7.
Zu r iq u e : Rasch er , 1950.
233 JP.
234 So b r e est a q u est ão, cf. S H A M D A S A N I , So n u ( o r g.) . The Psychology ofKundalíní Toga: No t e s o f t h e Se m in a r
G i v e n i n 1932 b y C G . Ju n g. P r in ce t o n : P r in c e t o n U n ive r s it y P r e ss/ Bo llin ge n Ser ies, 1996.
I N T RO D U ÇÃO 77

de revelar os detalh es com plet os de seu exp erim en t o, ou do de seus p acien -


tes, Ju n g u sou os paralelos com o t ext o ch in ês com o m an eir a in d ir et a de falar
sobre ele, de m an eir a b em sem elh an t e com o com eçara a fazer n o capít u lo 5
de Tipos psicológicos. Est e m ét od o alegórico t orn ou -se agora sua form a preferid a.
Em vez de escrever d iret am en t e sobre suas exp eriên cias, ele t ecia com en t ários
sobre m an ifest ações an álogas em prát icas esot éricas e sobretudo n a alq u im ia
m ed ieval.
Pouco depois, Ju n g d eixou rep en t in am en t e de t rabalh ar n o Líber Novus. A
ú lt im a im agem de págin a in t eir a foi d eixad a in acabada e ele p arou de t r an s-
crever o t ext o. Mais t arde, Ju n g lem b r ou que, quan do chegou a este pon t o
cen t ral ou Tao, com eçou seu con fron t o com o m u n d o e ele com eçou a dar
m u it as con fer ên cias 235 . Dessa form a, chegou ao fim o "con fron t o com o i n -
con scien t e" e com eçou o "con fron t o com o m u n d o". Ju n g acrescen t ou que viu
essas at ividades com o u m a form a de com p en sação pelos anos de preocu pação
in t e r io r 2 36 .

O e st u d o c o m p a r a t ivo d o p r o ce sso d e
in d ivid u a ç ã o
Ju n g fam iliarizara-se com t ext os alqu ím icos desde 19 10 aproxim adam en t e.
Em 19 12, Th éo d o r e Flou r n oy apresen t ara u m a in t erpret ação psicológica da
alqu im ia em suas preleções n a Un iversid ad e de Gen eb r a e, em 19 14 , H er b er t
Silberer p u blicou u m a ext en sa obra sobre o t e m a 237 . A abordagem de Ju n g
à alqu im ia seguia a obra de Flo u r n o y e Silberer, ao con siderar a alqu im ia a
p art ir de u m a perspect iva psicológica. Su a com p reen são baseava-se em duas
grandes teses: p rim eiram en t e que, ao m ed it ar sobre os t ext os e m at eriais em
seus laborat órios, os alquim ist as estavam realm en t e prat ican d o u m a form a de
im agin ação at iva; e, em segundo lugar, que o sim bolism o nos textos alqu ím icos

235 M P , p. 15.
236 E m 8 d e fever eir o d e 1923, C a r y Bayn es a n o t o u u m a d iscu ssão c o m Ju n g o co r r id a n a p r im a ve r a an t er io r ,
qu e t eve in flu ên cia sob re ist o: "Vo cê [Ju n g] d isse qu e, p o r m ais qu e u m in d ivíd u o p ossa d ist in gu ir -se d a
m u lt id ã o p o r d on s esp eciais, ele n ã o t e r á c u m p r id o co m seu s d ever es, p sico lo gicam en t e falan d o, a n ã o ser
qu e p ossa fu n cio n a r c o m ê xit o n a co let ivid ad e. Po r fu n cio n a r n a co let ivid ad e n ó s am b os e n t e n d ía m o s
aq u ilo qu e co m u m e n t e se ch a m a "m is t u r a r - s e " c o m as pessoas d e fo r m a so cial, n ã o r elações p r o fissio n ais
o u de n e gó cio s. Vo cê in sist ia e m qu e, se u m in d ivíd u o se m a n t i n h a afast ad o d est as r elações colet ivas, ele
p e r d ia algo qu e n ã o p o d ia d a r -se ao lu xo d e p e r d e r " (CFB).
237 Problem ederMystíkunâíhreSym boltk. Vie n a : H e lle r , 1914.
78 LI BE R N O VU S

correspon d ia ao do processo de in d ivid u ação n o qual Ju n g e seus pacien tes se


h aviam em penhado.
N a década de 19 30 , a at ividade de Ju n g deslocou-se do t rabalh o sobre suas
fantasias nos Livros Negros para seus cadern os de alqu im ia. Nest es, ele apresen t a-
va u m a coleção en ciclopéd ica de excert os de lit erat u ra alqu ím ica e obras rela-
cion adas, que classificou de acordo com palavras e tem as-ch ave. Esses cadern os
con st it u íram a base de seus escritos sobre a psicologia da alqu im ia.
Dep ois de 19 30 , Ju n g pôs de lado o Líber Novus. Em b o r a tivesse parado de
t rabalh ar d iret am en t e n ele, o livr o ain d a con t in u ava n o cen t ro de sua at ivid a-
de. E m seu t rabalh o t erapêu t ico, Ju n g con t in u ou t en t an d o fom en t ar m an ifes-
t ações sem elh an t es em seus pacien t es e d et erm in ar quais aspectos de sua p r ó -
p r ia exp eriên cia eram sin gulares e quais t in h am algum a gen eralidade e ap lica-
bilid ad e para os out ros. E m suas pesquisas sim bólicas, Ju n g estava in t eressado
em paralelos com as im agen s e con cepções do Líber Novus. A qu est ão com que
ele se ocupava era a seguinte: será que era possível en con t rar algo parecido
com o processo de in d ivid u ação em todas as cult uras? E m caso posit ivo, quais
eram os elem en t os com u n s e os elem en t os d iferen ciais? Nest a perspect iva, o
t rabalh o de Ju n g após 19 3 0 p od eria ser con siderado u m a ext en sa am pliação
dos con t eú d os do Líber Novus e u m a t en t at iva de t r ad u zir seus con t eú d os n u m a
form a aceit ável às con cepções con t em p orân eas. Algu m as das afirm ações fei-
tas n o Líber Novus correspon d em de pert o a posições que Ju n g ir ia art icu lar
p ost eriorm en t e em suas obras publicadas e represen t am suas p rim eiras for-
m u la çõ e s 238 . Por ou t ro lado, m u it a coisa n ão chegou a en t rar d iret am en t e nas
O b r as Com p let as, ou foi apresen t ada de form a esqu em át ica, ou p or m eio de
alegorias e alusões in d iret as. As s im o Líber Novus p ossib ilit a u m esclarecim en -
to at é aqu i in su speit ad o dos aspectos m ais difíceis das O b r as Com p let as de
Ju n g. Sim p lesm en t e n ão estam os em con d ição de com preen d er a gén ese da
obra post erior de Ju n g, n em de com preen d er plen am en t e o que ele estava
procu ran d o realizar, sem est udar o Líber Novus. Ao m esm o tem po, as O b r as
Com p let as pod em ser em part e con sideradas u m com en t ário in d ir et o sobre o
Líber Novus. Am b o s exp licam -se m u t u am en t e.

238 Est a s são in d icad as n as n ot as de r o d a p é ao t ext o.


I N T RO D U ÇÃO 79

Ju n g con sid erou seu "con fron t o com o in con scien t e" a fon te de sua obra
posterior. Ele lem b rou que t oda a sua obra e tudo quan t o realizou post erior-
m en t e proveio dessas im agin ações. Ele h avia expressado as coisas da m elh or
form a que podia, em lin guagem tosca, deficien t e. Mu it as vezes sen t ia com o se
"gigantescos blocos estivessem cain do sobre m im . U m a tem pestade desen ca-
deava ou t ra". Ele estava adm irado de que isso n ão o d est ru iu com o d est ru íra a
out ros, com o por exem plo Sch r eb er 239 .
Q u an d o indagado por Ku r t W o lff em 19 57 sobre a relação en t re suas obras
erudit as e suas notas aut obiográficas de sonhos e fantasias, Ju n g respon deu:

Mas en con trei esta corrente de lava e a paixão nascida de seu fogo t ran s-
form ou e coordenou m in h a vida. Tal corrente de lava foi a m atéria-prim a
que se impôs e m in h a obra é u m esforço, mais ou menos bem-sucedido,
de in clu ir essa m atéria ardente n a concepção do mundo de m eu tempo. As
prim eira fantasias e os prim eiros sonhos foram como que u m fluxo de lava
líquida e incandescente; sua cristalização engendrou a pedra em que pude
t rab alh ar 240 .

Ju n g acrescen t ou que "foram n ecessários qu aren t a e cin co anos para elaborar


e in screver n o quadro de m in h a obra cien t ífica os elem en tos que vivi e an ot ei
nessa época de m in h a vid a " 2 4 1.
Segun do as p róp rias palavras de Ju n g, p od er-se-ia con sid erar que o Líber
Novus con t ém , en t re out ras coisas, u m relat o das fases de seu processo de in d i-
vidu ação. E m obras subsequen tes, ele p rocu rou m ost rar os elem en t os com u n s
esqu em át icos gerais p ara os quais p od ia en con t rar paralelos em seus pacien t es
e em pesquisas com parat ivas. As obras post eriores apresen t am , port an t o, u m
esboço esqu elét ico, u m esboço básico, m as d eixar am fora o p r in cip al corpo
de det alh es. Ret rosp ect ivam en t e, Ju n g descreveu o Livro Verm elho com o u m a
t en t at iva de form u lar as coisas em t erm os de revelação. Tin h a esperan ça de
que ist o ir ia lib ert á-lo, m as d escobriu que n ão o lib er t ou . Percebeu en t ão que
precisava ret orn ar ao lado h u m an o e à ciên cia. Precisava t ir ar con clu sões das

239 Mem órias, p. 176. • MP, p. 144.


24 0 Mem órias, p. 176.
241 I b i d .
8o LI BE R N O VU S

in t u iç õ e s . A e l a b o r a ç ã o do m a t e r i a l do Livro Verm elho era vital, m a s ele p r e c is a va

t am b ém com preen d er as obrigações ét icas. Ao fazê-lo, t in h a pago com sua


vid a e sua ciê n cia 24 2 .
Em 19 30 , Ju n g com eçou u m a série de sem in ários sobre as visões fan tásticas
de Ch r ist ia n a Morgan n o Clu b e Psicológico de Zu r iq u e, que podem , em part e,
ser con sideradas u m com en t ário in d iret o sobre o Líber Novus. Para d em on st rar a
validade em pírica das con cepções que obteve neste últ im o, ele precisava m os-
t rar que os processos nele descrit os n ão eram ún icos.
Co m seus sem in ários sobre a Yoga Ku n d a lin i em 19 32, Ju n g com eçou u m
estudo com parat ivo de prát icas esot éricas, pon do o foco nos exercícios esp ir i-
tuais de In ácio de Loyola, n o Yoga-su t ra de Pat an jali, nas prát icas m edit at ivas
budistas e n a alqu im ia m ed ieval, que ele apresen t ou n u m a lon ga série de p re-
leções n o In st it u t o Fed eral Su íço de Tecn ologia ( E T H ) 2 4 3 . O crit ério essen cial
que p ossibilit ou essas ligações e com parações foi a percepção de Ju n g de que
essas prát icas baseavam -se todas em diferen t es form as de im agin ação at iva - e
que todas elas t in h am com o m et a a t ran sform ação da person alidade - que Ju n g
en t en d eu com o o processo de in dividuação. Assim , as preleções de Ju n g n o
E T H p rop orcion am u m a h ist ória com parat iva da im agin ação at iva, a prát ica
que con st it u iu a base do Líber Novus.
Em 19 34 , Ju n g p u blicou sua p r im eir a descrição am p la de caso do processo
de in dividuação, que foi o de Kr ist in e Man n , que p in t ar a u m a ext en sa série de
m an dalas. Ele se referiu a seu p róp rio em preen d im en t o:

Ut ilizei evidentemente t al m étodo comigo mesmo e posso constatar que de


fato podemos pin t ar quadros complexos, cujo verdadeiro conteúdo nos é
totalmente desconhecido. En quan to pintam os, o quadro se desenvolve por
si mesmo e muitas vezes até contrariando a intenção con scien t e 244 .

Ju n g observou que o presen te trabalh o preen ch ia u m a lacu n a em seus m ét od os


t erapêu t icos, pois escrevera pouco sobre a im agin ação at iva. Ele u sara esse m é-

242 MP, p. 148.


243 Est a s p r e leçõ e s est ã o sen d o p r ep ar ad as a t u a lm e n t e p a r a p u b licação. Pa r a m ais d et alh es, cf.
www.p h ile m o n fo u n d a t io n .o r g
24 4 Est u d o e m p ír ico d o p rocesso de in d ivid u a çã o ". O C , 9/ 1, § 6 22.
I N T RO D U ÇÃO 81

t od o desde 19 16 , m as só o d elin eou em As relações entre oeueo inconsciente, em 19 2 8 ,

e m en cion ou o m an d ala pela p r im eir a vez em 19 2 9 , em seu com en t ário sobre


O segredo da Flor de Ouro:

Silen ciei os resultados desse m étodo por treze anos, a fim de não provocar
qualquer sugestão, pois queria certificar-m e de que essas coisas - sobretudo
os mandalas - surgem espontaneamente e não sugeridas por m in h a própria
fan t asia 245.

Em todos seus estudos h ist óricos, con ven ceu-se de que os m an dalas foram
produzidos em todos os tem pos e lugares. O b ser vou t am bém que eles eram
produ zidos p or pacien tes de psicoterapeutas que n ão eram seus alun os. Ist o
m ost ra t am bém u m a das razões que podem t ê-lo levado a n ão pu blicar o Líber
Novus: con ven cer-se a si m esm o, e a seus crít icos, de que as m an ifest ações de
seus pacien tes e, especialm en te, suas im agens de m an dalas n ão se d eviam sim -
plesm en t e à sugestão. Ele julgava que o m an d ala represen t ava u m dos m elh ores
exem plos d a u n iversalidade de u m arquét ipo. E m 19 36 , Ju n g an ot ou t am bém
que ele p róp rio h avia usado o m ét od o da im agin ação at iva por u m longo p er ío-
do de t em po e observado m u it os sím bolos que con seguiu verificar só anos m ais
tarde em t ext os que lh e eram d escon h ecid os 246 . Con t u d o, de u m pon t o de vist a
com probat ivo, dada a am plit u d e de sua eru dição, o m at erial do p róp rio Ju n g
n ão t eria sido u m exem plo p art icu larm en t e con vin cen t e de sua tese de que as
im agens provin das do in con scien t e colet ivo em ergiam espon tan eam en te sem
con h ecim en t o prévio.
N o Líber Novus, Ju n g art icu lou sua com preen são das t ran sform ações h ist ó-
ricas do crist ian ism o e da h ist oricid ad e das form ações sim bólicas. O cu p ou -se
com esse t em a em seus escritos sobre a psicologia d a alqu im ia e sobre a p si-
cologia dos dogmas crist ãos e, sobretudo, em Resposta a Jó. Co m o vim os, Ju n g
estava con ven cido de que suas visões an t eriores à gu erra eram visões profét icas
que levaram à com posição do Líber Novus. E m 19 52, através de sua colaboração
com o físico W olfgan g Pau li, gan h ador do p rém io Nob el, Ju n g su st en t ou que

24$ Ib id ., § 6 23.
24 6 Asp e ct o s p sico ló gico s d a Co r e ". O C , 9/ 1, § 334.
82 LI BE R N O VU S

exist ia u m prin cípio de ord en am en t o acausal subjacen te a tais "coin cidên cias
sign ificat ivas", p rin cíp io que ele ch am ou de sin cr on icid ad e 24 7 . Afir m o u que, em
certas circun st ân cias, a con st elação de u m arqu ét ipo levava a u m a relat ivização
do t em po e do espaço, o que explicava com o esses even tos pod iam acontecer.
Er a u m a t en t at iva de am pliar a com preen são cien t ífica para acom odar even tos
com o suas visões de 19 13 e 19 14 .
E im p ort an t e observar que a relação do Líber Novus com os escritos er u d i-
tos de Ju n g n ão seguiu u m a t radução e elaboração d iret a pon t o por ponto. Já
em 19 16 , Ju n g p rocu rou t r an sm it ir alguns dos resultados de seus experim en t os
n u m a lin guagem eru d it a, en quan t o con t in u ava com a elaboração de suas fan t a-
sias. Seria m elh or con siderar o Líber Novus e os Livros Negros com o represen t an do
u m opus privado que corria paralelo e ao lado de seu opus eru d it o pú blico; em bo-
r a o ú lt im o se alim en tasse e derivasse do p rim eiro, eles p erm an eciam d ist in t os.
Dep ois de d eixar de t rabalh ar n o Líber Novus, Ju n g con t in u ou a elaborar seu opus
privado — sua p róp ria m it ologia — em seu trabalh o n a t orre, em seus en talh es
em pedra e nos quadros que pin tava. Aq u i, o Líber Novus fun cion ava com o u m
cen t ro gerador e u m bom n ú m ero de seus quadros e gravuras relacion am -se com
ele. N a psicot erapia, Ju n g procu rava t orn ar seus pacien tes capazes de recu perar
u m a con sciên cia do sen t ido n a vid a facilit an d o-lh es e su pervision an d o-lh es a
au t oexperim en t ação e a criação de sím bolos. Ao m esm o tem po, p rocu rou ela-
borar u m a psicologia cien t ífica geral.

A p u b lica çã o d o Líber Novus


Em b ora Ju n g tivesse parado de trabalh ar diretam en t e n o Líber Novus, perm an ecia
a questão do que fazer com ele e con tin uava aberta a questão de sua eventual pub-
licação. Em 10 de abril de 19 4 2, Jun g respondeu a Mary Mellon sobre u m a edição
dos Serm ones: "Q u an t o à edição dos 'Sete Sermones', desejaria que você esperasse
u m pouco. Eu t in h a em m en te acrescentar certo m at erial, mas ten ho hesitado

247 Cf. M E I E R , C A . ( o r g.) . AtotnandArchetype: T h e Pa u li/ Ju n g Le t t e r s. P r in ce t o n : P r in c e t o n U n i ve r s i t y


Pr ess, 2 0 0 1 [co m p r efácio d e Be ve r le y Za b r is k ie - Tr a d . de D . Ro sco e ].
I N T RO D U ÇÃO 83

fazê-lo duran te anos. Mas n u m a ocasião com o essa poder-se-ia ar r iscar "24 8 . E m
19 4 4 , Ju n g teve u m grave ataque cardíaco e n ão levou a cabo esse plano.
Em 19 52, Lu cy H eyer apresen tou u m projet o para u m a biografia de Jun g. Por
sugestão de O lga Froebe e in sist ên cia de Jun g, Ca r y Bayn es com eçou colaboran -
do com Lu cy H eyer nesse projeto. Ca r y Bayn es pensava escrever u m a biografia
de Ju n g baseando-se n o Líber Novus249. Para decepção de Jun g, ela d esist iu do
p r o je t o . Ap ó s d ive r so s a n o s d e e n t r e vist a s c o m Lu c y H e ye r , Ju n g pôs u m t e r m o

ao projeto biográfico dela em 19 55, porque estava in sat isfeit o com seu progresso.
Em 19 56 , Ku r t W o lff propôs u m out ro projet o biográfico, que se t ran sform ou
em Memórias, Sonhos, Reflexões. E m algum m om en t o, Ju n g d eu a An ie la Jaffé u m a
cópia do esboço do Líber Novus, feita por To n i W olff. Ju n g au t orizou Jaffé a fazer
cit ações do Líber Novus e dos Livros Negros em Mem órias, Sonhos, Reflexões 250. E m suas

en trevistas com An ie la Jaffé, Ju n g d iscu t iu o Líber Novus e sua au t oexperim en t a-


ção. In felizm en t e, ela n ão rep rod u ziu todos os com en t ários dele.
E m 31de ou t u bro de 19 57, ela escreveu a Jack Ba r r e t t d a Fu n d ação Bo llin -
gen a respeit o do Líber Novus e in for m ou -o de que Ju n g h avia sugerido que este
e os Livros Negros fossem doados à b ib liot eca d a Un iver sid ad e de Basileia com
u m a rest rição de 5 0 an os, 8 0 an os o u m ais, já que "ele od eia a id eia de que
algu ém leia este m at er ial sem con h ecer as relações co m a vid a dele et c." El a
acrescen t ou que d ecid ir a n ão u sar m u it a coisa deste m at er ial em Memórias251.
N u m dos p r im eir os m an u scrit os de Memórias, Jaffé in clu íra u m a t ran scrição
do esb oço dat ilografado d a m aior part e do Líber Prímus252. Mas foi o m it id a do
m an u scr it o final e ela n ão fez cit ações do Líber Novus n e m dos Livros Negros. N a

ed ição alem ã das Memórias, Jaffé in clu iu o ep ílogo de Ju n g ao Líber Novus com o

248 JA. É p r o vá ve l qu e Ju n g t ivesse e m m e n t e os co m e n t á r io s d e Filê m o n . Cf. ad ian t e, p. 453-475


24 9 O l g a Fr o e b e - Ka p t e yn a Ja ck Ba r r e t t , 6 d e ja n e ir o d e 1953, a r q u ivo de Bo llin ge n , Bib lio t e ca d o
Co n gr esso .
250 Ju n g a Jaffé, 27 d e o u t u b r o d e 1957, a r q u ivo d e Bo llin ge n , Bib lio t e ca d o Co n gr esso .
251 Ar q u ivo s d e Bo llin ge n , Bib lio t e ca d o Co n gr esso . Jaffé d e u u m a e xp lica çã o sem elh an t e a Ku r t W o l f f
m e n cio n a n d o 30 , 50 o u 8 0 an os co m o p o ssível r est r ição ( s e m d at a, r eceb id a a 30 d e o u t u b r o d e 19 57),
Ku r t W o l f f p ap ers, Bib lio t e c a Be in e ck e , U n ive r sid a d e d e Ya le . Ao le r os p r im e ir o s p ar ágr afo s d os
p r o t o co lo s d as en t r evist as d e An i e l a Jaffé c o m Ju n g, C a r y Ba yn e s escr eveu a Ju n g e m 8 d e ja n e ir o d e 1958
qu e "é a co r r e t a in t r o d u çã o ao Livro Verm elho, e q u an t o a isso p osso m o r r e r e m p az!" (CFB).
252 Ku r t W o l f f p ap ers, Bib lio t e c a Be in e ck e , U n ive r sid a d e d e Yale. O p r ó lo go fo i o m it id o e r eceb eu o t ít u lo
d o p r im e ir o cap ít u lo, "D e r W i d e r fi n d u n g d e r Seele" [a r ed esco b er t a d a a lm a ]. Exis t e t a m b é m o u t r a có p ia
d est a seção fo r t e m e n t e e d it a d a p o r u m a m ã o n ã o id e n t ifica d a , q u e p od e t e r feit o p ar t e d o t r ab alh o d e
p r e p a r á - lo p a r a p u b lica çã o p o r esse t e m p o (JFÁ).
84 LI BE R N O VU S

ap ên d ice. As est ipu lações flexíveis de datas propost as p or Ju n g a respeit o do


acesso ao Líber Novus foram sem elh an t es às que ele d eu p or essa m esm a ép oca
a respeit o da p u blicação de sua cor r esp on d ên cia com Fr e u d 2 5 3 .
Em 12 de ou t u bro de 1957, Ju n g disse a Jaffé que ele n u n ca t er m in ar a o Livro
Vermelho254. D e acordo com Jaffé, n a p rim avera de 19 59 , Ju n g, após u m lon go
tem po de saúde d ebilit ad a, ret om ou o Líber Novus para com plet ar a ú lt im a im a -
gem que perm an ecera in acabada. Mais u m a vez ele se ocupou em t ran screver
o m an u scrit o para o volu m e caligráfico. Jaffé an ota: "Mas t am bém agora ele
n ão p ôd e ou n ão quis con clu í-lo. Isso t in h a a ver, disse ele, com a m o r t e "255 . A
t ran scrição caligráfica t er m in a abrupt am en t e n o m eio d a frase, e Ju n g acres-
cen t ou u m posfácio, que t am bém t er m in ou abrupt am en t e n o m eio da frase.
O p ós-escrit o e as discussões de Ju n g sobre sua doação a u m arquivo sugerem
que Ju n g t in h a con sciên cia de que a obra acabaria sen do estudada em algum
m om en t o. Ap ó s a m ort e de Ju n g, o Líber Novus, de acordo com a von t ade dele,
perm an eceu com sua fam ília.
Em sua con ferên cia de Er an os em 19 71, in t it u lad a "As fases criat ivas n a
vid a de Ju n g", Jaffé cit ou duas passagens do esboço do Líber Novus, observan do
que "Ju n g pôs u m a cóp ia do m an u scrit o à m in h a d isposição com p erm issão de
cit á-lo caso surgisse algum a op or t u n id ad e"256 . Est a foi a ú n ica vez que ela o fez.
Q u ad r os do Líber Novus foram m ost rados t am b ém n u m d ocu m en t ário da B B C
sobre Ju n g, n arrad o por Lau ren s va n d er Post , em 19 72. Esses quadros des-
p ert aram u m am plo in t eresse pelo livro. E m 19 75, após a m u it o b em recebid a
pu blicação das Cartas Lreud/ jung, W illia m McGu ir e , represen t an d o a Pr in ce-
t on Un ive r sit y Press, escreveu ao advogado do esp ólio de Ju n g, H a n s Kar r er ,
apresen t an do u m a propost a de pu blicação do Líber Novus e de u m a coleção de
fotografias das gravuras em ped ra e dos quadros de Ju n g e da Tor r e. Prop ôs
u m a ed ição fac-sim ilar, possivelm en t e sem o t ext o. Escr eveu que "falt am -n os

253 Po d e-se ob ser var qu e a p u b lica çã o das car t as Fr e u d - Ju n g, d e cisiva e m si m e sm a , e n q u a n t o o Líber Novus
e o grosso das ou t r as co r r e sp o n d ê n cia s de Ju n g p e r m a n e ce r a m in é d it o s, la m e n t a ve lm e n t e agr avou a
eq u ivo cad a visã o fr e u d o cê n t r ica de Ju n g: co m o vem o s, n o Líber Novus, Ju n g est á se m o ve n d o n u m u n ive r so
t ão afast ad o d a p sican álise q u an t o se p ossa im agin ar .
254 MP, p. 169.
255 J U N G & J A F F É . Lrinnerungen, Trãum e, GedankenvonC.G.Jung. O l t e n : W a lt e r Ve r la g, 1988, p. 387. O s ou t r os
co m e n t á r io s d e Jaffé n est e p o n t o são in exat o s.
256 J A F F É . " T h e cr eat ive p h ases i n Ju n g s life". Spring: A n An n u a l o f Ar c h e t yp a l Psych ology a n d Ju n gia n
Th o u g h t , 1972, p. 174.
I N T RO D U ÇÃO 85

in form ações sobre o seu n ú m ero de págin as, a quan t idade relat iva de t ext o e
quadros e o con t eú d o e in t eresse do t e xt o "257 . Nin gu ém d a ed it ora t in h a r eal-
m en t e vist o ou lid o a obra n em sabia m u it o sobre ela. Est e pedido foi negado.
Em 19 75, algumas reprod u ções do volu m e caligráfico do Líber Novus foram
m ostradas n u m a exposição para com em orar o cen t en ário de Ju n g em Zu riq u e.
Em 19 77, n ove quadros do Líber Novus foram publicados por Jaffé em C.G.Jung:
W ord and Im age e, em 19 8 9 , alguns out ros quadros afins foram publicados por
Ge r h a r d W e h r em sua biografia ilu st rad a de Ju n g 258 .
Em 19 8 4 , o Líber Novus foi fotografado profission alm en t e e foram prepara-
das cin co edições fac-sim ilares. Est as foram dadas às cin co fam ílias diret am en t e
descendentes de Jun g. E m 19 9 2 , a fam ília de Ju n g, que h avia apoiado a p u b li-
cação das O b ras Com plet as de Ju n g em alem ão (con cluída em 19 9 5) , in iciou
u m exam e dos m at eriais in édit os de Jun g. Co m o resultado de m in h as pesqui-
sas, descobri u m a tran scrição in t egral e u m a tran scrição parcial do Líber Novus e
apresen tei-as aos h erdeiros de Ju n g em 19 9 7. N a m esm a época, ou t ra t ran scri-
ção foi apresen tada aos h erdeiros por Mar ie-Lou ise von Fran z. Fu i con vidado
a apresen tar in form es sobre o assunto e a con ven iên cia de sua publicação, e fiz
u m a apresen t ação sobre o assunto. Co m base nestes in form es e discussões, os
h erdeiros d ecid iram em m aio de 2 0 0 0 liberar a obra para publicação.

257 M c Gu i r e p ap er s, Bib lio t e ca d o Con gr esso. E m 1961, An i e l a Jaffé m o st r a r a o Líber Novus a Ri c h a r d H u l l ,


t r a d u t o r de Ju n g, e ele escr ever a suas im p r e ssõ e s a M c Gu i r e : " E l a [ AJ] n os m o s t r o u o fam oso ' Li vr o
Ve r m e lh o ' , ch e io de ve r d a d e ir o s d esen h os lou cos co m co m e n t á r io s e m e scr it a m o n a ca l; n ã o m e cau sa
su r p r esa qu e Ju n g o m a n t e n h a gu ar d ad o a set e ch aves! Q u a n d o ele e n t r o u e o v i u - fe liz m e n t e fech ad o -
sob re a m esa, d isse r isp id a m e n t e a ela: ' D a s so ll n ich t h ie r sein . N e h m e n Sie's we g!' [Ist o n ã o d e ve r ia est ar
aq u i. Le ve - o e m b o r a !], e m b o r a e la m e t ivesse escr it o a n t e r io r m e n t e qu e ele t in h a d ad o p e r m issã o p a r a e u
vê -lo . Re c o n h e c i d iver sos d os m an d alas q u e est ã o in clu íd o s e m " O sim b o lism o d o m a n d a la ". D a r i a u m a
m a r a vilh o sa e d içã o fa c-sim ila r , m as e u n ã o co n sid e r e i p r u d e n t e le va n t a r a q u e st ã o o u su ger ir a in clu são
de d esen h os n a au t ob iogr afia ( o qu e a Sr a. Jaffé in sist iu qu e e u fizesse). D e ve r i a r e a lm e n t e fazer p ar t e,
e m a lgu m m o m e n t o , d o seu opus: assim co m o a au t ob iogr afia é u m su p le m e n t o essen cial p a r a seu s o u t r o s
escr it os, a ssim o Livro Verm elho o é p a r a a au t ob iogr afia. O Livro Verm elho ca u so u -m e p r o fu n d a im p r e ssã o ;
n ã o h á d ú vid a qu e Ju n g p assou p o r t u d o q u an t o u m a p essoa in sa n a e xp e r im e n t a , e at é m ais. N a s p alavras
d a au t o an álise d e Fr e u d : Ju n g é e m si m e sm o u m h o sp ício a m b u la n t e ! A ú n ica d ife r e n ça e n t r e ele e u m
in t e r n a d o r egu lar é su a esp an t osa cap acid ad e d e m a n t e r - se d ist a n cia d o d a t er r ível r ealid ad e d e suas
visõ es, d e ob ser var e co m p r e e n d e r o qu e est ava acon t ecen d o e fo r ja r de su a e xp e r iê n cia u m sist e m a d e
t e r a p ia qu e fu n cio n a . N ã o fosse essa p r o e z a sin gu lar , ele se r ia u m d o id o va r r id o lou co. O m a t e r ia l b r u t o
de su a e xp e r iê n cia é m a is u m a ve z o m u n d o d e Sch r eb er ; só p o r cau sa de su a cap acid ad e d e o b se r va çã o
e d ist a n cia m e n t o e esfo r ço de co m p r een d er , p od e-se d iz e r d ele o q u e Co le r id ge , e m seus Ca d e r n o s ,
d isse de u m gr an d e m et a físico (e qu e m otto n ã o d a r ia p a r a a au t o b io gr afia!): ' El e o lh a va p a r a su a p r ó p r ia
Al m a at r avés d e u m Te le scó p io / O qu e p a r e cia t o t a lm e n t e ir r egu lar , ele vi a e m o st r a va qu e e r a m belas
Co n st e la çõ e s e acr escen t ava à Co n sciê n cia m u n d o s ocu lt os d e n t r o d e o u t r o s m u n d o s'" (17 d e m a r ço de
1961, a r q u ivo d e Bo llin ge n , Bib lio t e ca d o Co n gr e sso ) . A cit ação d e Co le r id ge fo i d e fat o u sad a co m o m otto
p a r a Mem órias, Sonhos, Reflexões.
258 J A F F É , An i e l a ( o r g.) . C.G.Jung: W o r d a n d Im age. Ilu st r . 52-57, 77- 79 , ju n t o c o m u m a im a ge m
r elacio n ad a, a ilu st r. 59. • W E H R , Ge r h a r d . AnlllustratedBiographyofjung, p. 4 0 , p. 140-141.
86 LI BE R N O VU S

O trabalho n o Líber Novus esteve n o cen t ro da au t oexperim en t ação de Jun g.


Ele é n ada m en os que o liyro cen t ral de sua obra. Co m sua publicação, estam os
agora em con dição de estudar o que acon teceu ali com base em d ocu m en t ação
prim ária em con traste com as fantasias, fofocas e especulações que con st it u em
boa parte do que se escreveu sobre Jun g, e de com preen der a gén ese e con st it u i-
ção de sua obra posterior. Por quase u m século, essa leit u ra sim plesm en t e n ão foi
possível e a vast a lit erat u ra que su rgiu sobre á vid a e obra de Ju n g n ão teve acesso
à m ais im port an t e fonte d ocu m en t ária in d ivid u al. A presen te publicação m arca
u m a cesura e abre a possibilidade de u m a n ova era n a com preen são da obra de
Jun g. Forn ece u m a abert ura ún ica para ver com o ele recuperou sua alm a e, ao
fazê-lo, elaborou u m a psicologia. Por isso, esta in t rodu ção n ão t er m in a com u m a
con clusão, mas com a prom essa de u m n ovo com eço.
N o t a d os t r a d u t o r e s d a e d içã o in glesa*
M A R K K YB U R Z , J O H N P E C K E S O N U SH AM D ASAN I

No início do Lêer Novus, Jun g experim en ta u m a crise de linguagem. O espírito das


profundezas, que im ediatam ente desafia o uso da linguagem feito por Jun g jun t o
com o espírito da época, in form a a Jun g que no terren o de sua alm a a linguagem
por ele conseguida não servirá mais. Sua própria capacidade de saber e falar já não
pode mais explicar por que ele profere o que diz ou m ovido por qual com pulsão ele
fala. Todas essas tentativas tornam -se arbitrárias n o dom ín io das profundezas, e até
mesmo m ortíferas. Jun g é levado a entender que aquilo que ele poderia dizer nessas
ocasiões é ao mesmo tempo "loucura" e, de m odo instrutivo, aquilo que é\ De fato,
n u m a perspectiva mais am pla, a linguagem que ele irá encontrar para sua experiên -
cia in t erior form aria u m a vasta Commedía: "Acreditas t u , h om em dessa época, que
a zom baria é menos que a adoração? O n d e estão tuas medidas, falso medidor? A
soma da vid a n a zom baria e n a adoração é que decide, não t eu julgam en to"2.
Ao t rad u zir este regist ro acum ulado de en con t ros im agin ais de Ju n g com
seus personagens in t eriores, proven ien t e de u m p eríod o de dezesseis anos a
com eçar pouco antes d a Pr im eir a Gu e r r a Mu n d ial, deixam os Ju n g perm an ecer
u m h om em que se despren deu das suas am arras, mas t am bém ficou preso n o
t u rbilh ão que ficou con h ecido pelo n om e de m od ern ism o lit erário. Procu ra-
m os n ão m od ern izar m ais n em t orn ar m ais arcaica a lin guagem e as form as em
que ele expressou seu t est em un h o pessoal.
A lin guagem do Líber Novus segue três grandes registros est ilíst icos e cada
u m deles apresen t a ao t rad u t or diferen t es dificuldades. U m p r im eir o registro
relat a fielm en t e as fantasias e diálogos in t eriores dos en con t ros im agin ais de
Ju n g, en quan t o u m segundo perm an ece firm e e crit eriosam en t e con ceit u ai.
U m t erceiro registro escreve n u m est ilo m ân t ico e profét ico, ou rom ân t ico e
dit irâm bico. A relação en t re esses aspectos - in form at ivo, reflexivo e rom ân -
t ico - da lin guagem de Ju n g perm an ece com ed ial de u m a form a que Dan t e ou
Goet h e t er iam recon h ecido. O u seja, em cada capít ulo os registros descrit ivo,
con ceit u ai e m ân t ico roçam con t in u am en t e u m com o out ro, en quan t o ao m es-

* Em b o r a est as r efer ên cias t r a t e m d a t r ad u ção in glesa, h á o b se r va çõ e s in t er essan t es e ú t eis sob re o est ilo d e
Ju n g n est a o b r a , r azão p o r q u e a m a n t ive m o s ( N o t a d a e d içã o b r a sile ir a )
1 Cf. ad ian t e, p. I I I .
2 Cf. ad ian t e, p. 112.

87
88 LI BE R N O VU S

m o t em po n en h u m regist ro sozin h o é afetado por seus parceiros. Todos os três


registros est ilíst icos servem a est ím u los psíqu icos e cada capít ulo com p art ilh a
u m m odo polifôn ico com os outros. N a seção dos Aprofundam entos desde 19 17
esta p olifon ia am adurece, suas vozes m ist u ran d o-se em várias proporções.
O leit or d ed u zirá rapid am en t e que este plan o n ão foi prem edit ado, m as
an tes n asceu do exp erim en t o ao qu al Ju n g se su bm et eu ard u am en t e. A "N o t a
Ed it o r ia l" esqu em at iza a evolu ção t ext u al dest a com posição. Aq u i bast a ape-
nas observar que Ju n g, cada vez, regist ra u m a cam ada prot ocolar in icial de
en con t ro n arrat ivo, geralm en t e com u m diálogo, e depois, n a "segun da cam a-
d a", u m a elaboração lírica e com en t ário desse en con t ro. A p r im eir a cam ada
evit a u m t om elevado, ao passo que a segunda acolhe a elevação e m od u la-se
em reflexões serm on át icas e m ân t ico-p rofét icas sobre o sen t ido do episód io,
que, por sua vez, esm iú çam os acon t ecim en t os d iscu rsivam en t e. Esse m odo
de com p osição — que é ú n ico nas obras de Ju n g — n ão foi u m arran jo t em pe-
ram en t al. Ao in vés, à m ed id a que os ep isód ios se acu m u lavam e seu in t eresse
au m en t ava, t ran sform ou -se n u m exp erim en t o que era t an t o lit erário quan t o
p sicológico e esp irit u al. N o vast o corpus publicado e in éd it o de Ju n g, n ão exist e
ou t ro t ext o que t en h a sido su bm et id o a t ão cuidadosa e con t ín u a revisão l i n -
gu íst ica com o o Líber Novus.

Esses três registros lin gu íst icos já se apresen t am com o pot en ciais m od e-
los para u m a possível tradução. Nossa prát ica con sist iu em d eixá-los coabit ar
d en t ro das est rut uras explorat órias vigen tes n o tem po do p róp rio Ju n g. A t a -
refa com que ele se deparou foi descobrir u m a lin guagem em vez de usar u m a
lin guagem já d ispon ível. O s p róp rios registros m ân t ico e con ceit u ai podem ser
con siderados t raduções do regist ro descrit ivo. O u seja, estes registros passam
de u m n ível lit eral a n íveis sim bólicos que o am plificam , n u m a an alogia m od er-
n a com os "m od i d iversi" de Dan t e em sua cart a a Ca n Gr an d e d elia Scala 3. E m
sen t ido bem real, o Líber Novus foi com posto através de t radução in t ert ext u al. A
ret órica do livro, sua m an eira de abordar, surge dessa est ru t u ra in t eragen t e de
t radução in t er n a ou tran svaloração. U m a tarefa crít ica para qualquer t radução
da obra, port an t o, é t r an sm it ir in t act a essa t ext u ra com posicion al.

3 Cf. a t r a d u çã o e d iscu ssão d est a ca r t a e m B O L D R I N I , Lú cia. Joyce, Dante, andthePoetícsofLíteraryRelatíons.


N o va Yo r k : Ca m b r id ge U n ive r s it y Pr ess, 2 0 0 1, p. 30-35.
N O T A D O S T R A D U T O R E S D A E D I Ç ÃO I N G L E S A 89

O fato de que quadros pin t ados de t ipo acabado e h íbrid o ilu m in am o for-
m ato m ed ieval de u m fólio em escrit a caligráfica d ificu lt am ain d a m ais qu ais-
quer reflexões sobre a tarefa lin guíst ica. A n ova lin guagem exigia u m a escrit a
an t iga ren ovada. U m est ilo polifôn ico expressa-se à m an eira de m u lt im íd ia
d en t ro de u m m ovin jen t o sim bólico de recu o-avan ço, m ed ieval e an t ecipa-
t ório, para recuperar a realidade psíquica. Im agen s verbais e visu ais in vest em
sobre Ju n g a p art ir do passado e do presen te, en quan t o visam o além : surge
u m in st ru m en t o com post o de cam adas, cujo est ilo polifôn ico reflete em sua
lin guagem aquela m esm a disposição em camadas com postas.
Dia n t e d a t arefa de t rad u zir u m t ext o com post o h á quase cem an os, os
t radut ores t êm geralm en t e a van t agem de d ispor de m odelos an t eriores para
con su lt ar, com o t am b ém de décadas de com en t ários e crít icas de carát er e r u -
dit o. Sem esses m odelos à d isposição, rest ou -n os im agin ar com o a obra pode-
r ia t er sido t rad u zid a em décadas passadas. Nossa t radução, por con seguin t e,
evit a diversos m odelos in éd it os ou h ip ot ét icos para t r ad u zir o Líber Novus para
o in glês. Exist e m os su rpreen d en t em en t e arcaizan t es Septem Serm ones de Pet er
Bayn es de 19 2$, que se in sp ir am fort em en t e n u m a lin guagem vit or ian a. O u a
con ceit u alm en t e racion alizan t e versão que R. F. C. H u l l p od eria t er t en t ado,
se lh e tivesse sido dado t r ad u zi-lo ao lado de seus ou t ros volu m es d a Série
Bollin gen das O b r as Com p let as de Ju n g 4 ; ou a elegante t radu ção lit erária da
m ão de u m R J . H ollin gd ale. Nossa versão ocupa, port an t o, u m a posição real
n u m a sequ ên cia de m u it as possibilidades. A con sid eração sobre esses m odelos
possíveis realçou qu est ões de com o vazar a lin guagem d en t ro de m u d an ças
h ist óricas n a prosa in glesa, com o veicu lar as in u m eráveis con vergên cias e d i -
vergên cias en t re a lin guagem do Líber Novus e as O b r as Com p let as de Ju n g,
e com o t rad u zir p ara o in glês u m a obra que ao m esm o t em po repercu t e o
alem ão de Lu t er o e a p aród ia que Niet zsch e faz do m esm o em Assim falava Zara-
tustra. Já que n ossa versão t om a est a posição, ao cit arm os as O b r as Com p let as
de Ju n g n ós con sequen t em en t e t rad u zim os de m an eir a n ova ou m od ificam os
d iscret am en t e as t rad u ções publicadas.

4 Sob r e a q u e st ã o das t r a d u çõ e s d e Ju n g feit as p o r H u l l , cf. S H A M D A S A N I . JungStripped Bare by His


Biographers, Even, p. 47-51.
9o LI BE R N O VU S

O Líber Novus foi con t em p orân eo do ferm en t o lit erário que Mikh ail Bakh t in
ch am ou de im agin ação em prosa d ialógica 5. O escrit or e art ist a an glo-galês D a -
vid Jon es, autor de In Parenthesís e The Anathemata, referiu -se à r u p t u r a da Pr im eir a
Gu e r r a Mu n d ial e seus efeitos sobre o senso h ist órico dos escrit ores, art ist as e
pensadores, ch am an d o-a sim plesm en t e "T h e Break" ( A fr at u r a) 6 . Ju n t o com
outros escritos experim en t ais destas décadas, o Líber Novus escava camadas ar-
queológicas da aven t u ra lit erária, servin do-se d a con sciên cia con quist ada a d u -
ras penas com o pá e, ao m esm o tem po, precioso caco. Em b o r a d u ran t e m u it os
anos t en h a pensado efetivam en te em pu blicar o Líber Novus, Ju n g p referiu n ão
t orn ar-se famoso através dessa form a lit erária - t an t o pelo est ilo quan t o pelo
con t eú d o — p erm it in d o sua publicação. Por volt a de 19 21, com Tipos psicológicos,
Jung já. descobrira que seu san t u ário pod ia forn ecer-lh e seus grandes tem as,
através da t radução para u m a lin guagem eru d it a.
Ju n g en u n cia a t en são en t re seus três registros lin gu íst icos, d irigin d o-se já
a u m fut uro pú blico leit or - que, en t re diferen t es camadas do texto, vai de u m
círculo rest rit o de amigos até u m pú blico m ais am plo. Ist o aparece n it id am en t e
nas frequentes m u dan ças p ron om in ais en t re as versões, que m ost ram a m an ei-
ra com o ele estava con st an t em en t e reim agin an do os possíveis leit ores do texto.
Ju n g adot ou coeren t em en t e essa post u ra dialógica — polifôn ica segundo a t er-
m in ologia post erior de Bakh t in - m ais u m a vez aten to a u m h ip ot ét ico fut uro
pú blico e, n o en t an t o, t am bém t ot alm en t e alh eio à quest ão do público, n ão por
orgulh o mas sim plesm en t e em vist a dos objet ivos em jogo. Q u ad ros e fantasias
deste tesouro privado en t raram an on im am en t e com o in t ert ext os cript ografa-
dos n a obra post erior de Jun g, an in h an d o-se com o chaves h erm en êu t icas para
o con ju n t o escon dido de sua obra.
Co m efeito, podem os im agin ar Ju n g r in d o quan do escreveu sobre o "3. Caso
Z" n a ú lt im a seção de seu ensaio sobre "Aspectos psicológicos da Co r e " ( 19 4 1) 7 .
Al i ele resum e com o an ón im os doze episód ios t irados de seus en con t ros com
a p róp ria alm a n o Líber Novus, ch am an do-os "u m a série de son h os". O s com en -
tários que ele lhes acrescen ta im p elem o aven t u reiro que ele fora, e o sujeit o

5 Cf. H O L Q U I S T , M ic h a e l ( o r g.) . The Dialogic Im agination: Fo u r Essays. Au s t i n : U n ive r s it y o f Te xa s Pr ess,


1981 [t r ad u ção d e C a r yl Em e r s o n e M ic h a e l H o l q u i s t ] .
6 J O N E S , D a vid . Dai Greatcoat: A Se lf- P o r t r a it o f D a vi d Jo n es i n h is Le t t e r s. Lo n d r e s: Fáb er a n d Fáb er , 19 8 0 ,
p. 4 is s . [or gan izad o p o r Re n e H a gu e ] .
7 O C , 9/ 1.
N O T A D O S T R A D U T O R E S D A E D I Ç ÃO I N G L E S A 9i

que ele se t or n ou nessa aven t ura, para o discurso de u m a pret en sa ciên cia. A
com éd ia é ao m esm o t em po am pla e requin t ada: esse respeitoso h ospedeiro da
an im a m an eja t am bém o in d icad or d iagn óst ico com toda a seriedade. Su a li n -
guagem m ovia-se flexivelmente em am bos os con t ext os, mas ao fazê-lo m a n -
t in h a t am bém certos véus. Essa est rat égia lin gu íst ica reflet ia os objetivos m ais
am plos de Ju n g de perm an ecer fecun dam en t e d u al e con t ext u al. Declaran d o
que seus m ist érios eram part icu lares, a n ão serem macaqueados de m an eira
algum a, Ju n g ofereceu-lh es, n ão obstan te, t am bém u m m odelo de p r o cesso
espirit u al form at ivo e, ao fazê-lo, p rocu rou desen volver u m a lin guagem que
pudesse ser ret om ada por outros para art icu lar suas respectivas experiên cias.
Est a é u m a m an eira de parafrasear a con siderável an om alia da lin guagem
que Ju n g teve que en con t rar através de n oites sem d or m ir a p ar t ir de 1913. Essa
lin guagem m udava seus con t orn os, alt erava sua escala e levava em con sideração
caprich os e m odism os. Por isso n ão causa surpresa que, em suas passagens m ais
elevadas, Ju n g se t en h a apoiado n a resson ân cia da Bíblia de Lu t ero, ela m esm a
u m a t radução que alcan çara, n a cu lt u ra alem ã, a estabilidade de u m a roch a. Eín
festerBurg, "u m a cidadela sólida": d aí nos apoiarm os aqui n a Kin g Jam es Ver sion
( KJV ) da Bíblia para ton alidades com paráveis em in glês. No en t an t o, surge
im ed iat am en t e u m paradoxo: aquilo com que Ju n g con t ou nessa resson ân -
cia h avia t ran splan t ado para o Hetmat ou lar germ ân ico u m espírit o diferen t e,
com o se pode igualm en t e d izer d a profun da pen et ração do m esm o im p lan -
te n a cu lt u ra an glo-saxón ica. Fr an z Rosen zweig, ao t rad u zir partes do An t igo
Test am en t o com Ma r t in Bu ber em m eados da década de 19 2 0 , id en t ificou a
Bíblia de Lu t er o com o o grande criad or de espaço n o espírit o germ ân ico, p re-
cisam en t e através dos m ovim en t os de aproxim ação de Lu t er o à sua fonte: "Par a
con solo de nossas alm as, devem os m an t er tais palavras, devem os t olerá-las, e
assim dar ao h ebraico algum espaço n o qual ele se sai m elh or do que o alem ão"8 .
Daí nosso m ét od o de n ão am aciar os diversos estilos de Ju n g ou t orn á-los m ais
fluen tes do que é n ecessário ou m esm o regu larizar sua pon t uação. Pensem os n o
est ilo "desgrenhado" de Dan t e ou em ou t ra m áxim a de Lu t er o cit ad a nas notas
de Rosen zweig: "A lam a gru d ará n a r od a"9 .

8 B U B E R , M a r t i n & R O S E N Z W E I G , Fr a n z . ScríptureandTranslatíon. Blo o m in gt o n / In d ia n a p o lis: I n d ia n a


U n ive r s it y Pr ess, 1994, p. 4 9 [cit a n d o o Pr efácio de Lu t e r o a seu Saltério alem ão - t r ad u ção d e La wr e n c e
Ro s e n wa ld e Eve r e t t F o x ] .
9 Ib id ., p. 6 9 .
92 LI BE R N O VU S

No en t an t o, m esm o essas profun das con cessões ao lin gu ajar arcaico e or igi-
n al por sobre abism os de sen t ido n ão consegue ap roxim ar a experiên cia deses-
t abilizad ora, feit a n a e através d a lin guagem , de que Ju n g é t est em un h a. Seus
com en t ários post eriores n a autobiografia publicada, sobre suas reservas quan t o
ao est ilo em p olad o 10 , n a verdade en cobrem suas pegadas n o Líber Novus. A expe-
riên cia origin al lan çou a fala n u m t u rbilh ão que an im a a d im en são in iciát ica do
livro. Tam bém a lin guagem em preen de u m a descida ao in fern o e ao d om ín io
dos m ort os, que p riva o in d ivíd u o da fala precisam en t e com o ren ova a capaci-
dade de expressão.
'O s exem plos seguintes d ão algum a id eia do alcance desse fator, m apean do
as dificuldades de qualquer ven t riloqu ism o sin cero com o aquele a que Ju n g,
com a pen a n a m ão, se aven t u rou ao em preen der u m a sessão con t rolad a con si-
go m esm o e seu chão. As ín fim as dist orções espaciais de H õld er lin e o carvão
arden t e nos lábios de Isaías en t r am am bos n est a liga, ju n t o com Plat ão sobre
a "fúria corre t a ' ou lou cu ra d ivin a: ( i ) "Min h a alm a su ssu rrou -m e in sist en t e e
m edrosam en te: 'Palavras, palavras, n ão faças palavras dem ais. Cala-t e e escuta:
Tu recon heceste t u a lou cu ra e a adm ites? Vist e que todas as tuas profun dezas
est ão cheias de lou cu r a?"11 ( 2 ) Al m a de Jun g: "Exist e m t ram as in fern ais de p a-
lavras, som en te palavras... Sê cauteloso com palavras, escolhe-as bem ... pois t u
és o p rim eiro que n ela se en reda. Pois palavras t êm sign ificados. Nas palavras
puxas para cim a o subm un do. A palavra é o m ais n u lo e m ais forte. N a palavra
correm ju n t os o vazio e o cheio. Por isso, a palavra é u m a im agem de D e u s"12 . (3)
"Mas se a palavra for u m sím bolo, sign ifica tudo. Q u an d o o cam in h o en t ra n a
m ort e, e n ós estam os en voltos em put refação e n ojo, sobe en t ão n a escuridão
o cam in h o e sai da boca, com o o sím bolo salvador, a p alavra"13. ( 4 ) A m u lh er
m ort a: "Con ced e-m e a palavra - pen a que n ão possas ou vir! Co m o é difícil -
d á-m e a p alavr a!"14 El a en t ão se m at erializa n a m ão de Ju n g com o H AP , o falo.
(5) Al m a de Jun g: "Ten s a palavra que n ão pode ficar ocu lt a"15 . ( 6 ) Jun g: "O
que sign ifica m in h a palavra? É o balbucio d a crian ça..." Alm a : "Elas n ão veem

10 Cf. ad ian t e, p. 6 4.
11 Cf. ad ian t e, p. 30 8 .
12 Cf. ad ian t e, p. 312
13 Cf. ad ian t e, p. 344
14 Cf. ad ian t e, p. 4 26 .
15 Cf. ad ian t e, p. 4 4 6 .
N O T A D O S T R A D U T O R E S D A E D I Ç ÃO I N G L E S A 93

o fogo, n ão acred it am em tuas palavras, mas veem t u a m arca e pressen t em em


t i, sem saber, o m en sageiro do t orm en t o que arde... T u gaguejas, b alb u cias"16 .
Nos protocolos para sua autobiografia, Ju n g lem b ra t er t razid o às exp eriên -
cias origin ais con t idas n o Líber Novus apenas u m a "fala alt am en t e can h est ra"17 .
No en t an t o, u m exem plo ( 7) desm en te en ergicam en t e esta ênfase post erior:
"Sei que Filêm on m e em briagou e m e in sp irou u m a lin guagem est ran h a a m im
m esm o e u m out ro sen t ir. Tu d o ist o desapareceu quan do o Deu s se elevou e só
Filêm on possu ía aquela lin gu agem "18 .
O ú lt im o exem plo m ost ra que m ais t arde Ju n g at rib u iu a Filêm on a fala
m ân t ica e d it irâm bica da cam ada 2 em tudo aquilo que vem antes d a seção
dos Aprofundamentos. A in t oxicação lit eral d escrit a aqui é lin guíst ica, u m a versão
d ram at izad a e ven t ríloqu a da lou cu ra d ivin a de Platão. En fat iza por isso n ossa
t en t at iva de t rad u zir fielm en t e os registros est ilíst icos do Líber Novus, de m odo
a apresen t ar u m aspecto vit al do experim en t o lit erário de Jun g, quan do e m -
preen de a t en t at iva de en con t rar o lin gu ajar m ais apropriado para expressar
as t ran sform ações da experiên cia in t erior. A busca da alm a, em preen d id a por
Jun g, est á port an t o em h ar m on ia com a busca de u m a lin guagem adequada-
m en t e dialógica e diferen ciada.
Est es exem plos, com todas as sua oscilações, afetam u m a leit u ra das O b ras
Com p let as de Ju n g e acon selh am cautela ao aplicar seus in st ru m en t os con -
ceit uais à tarefa de ler e en t en der o Líber Novus. Para dar apenas u m exem plo,
com eça-se por ver que é u m a sim plificação excessiva equiparar as profun dezas
opostas e, n o en t an t o, relacion adas de Logos e Er os com os registros con cei-
tuais e lírico-m ân t icos en con t rados no Líber Novus. O "Co m en t ár io " de Ju n g
aqui in clu íd o sobre a relação Elias-Salom é m ost ra que essa relação faz parte
do desen volvim en t o, é u m a en cen ação do m ist ério do "processo form at ivo"
que acende o am or pelo que h á de m ais baixo em n ó s 19 . O espaço m od al de
lin guagem do Líber Novus an im a assim esse m ist ério, mas n ão correspon de d ir e-
t am en t e a fun ções psicológicas opostas.
Est e com plexo respeito pela lin guagem in st r u i os t radut ores do Líber No-
vus ao navegar as t en sões subm un do/ reden t oras abarcadas por sua ret órica. A

16 Cf. ad ian t e, p. 447.


17 Cf. M P , p. 148.
18 Cf. ad ian t e, p. 4 0 2.
19 Cf. Ap ê n d i c e B.
94 LI BE R N O VU S

gran de força que est á por trás d a t en são m ân t ica ocupou Ju n g n o breve Epilogo
que ele in seriu n o volu m e caligráfico em 19 59 , dois anos antes de sua m ort e.
Percorren d o m ais u m a vez os m ares dessas págin as ilu m in ad as, parece que ele
ju lgou desn ecessário qualquer recapit ulação u lt erior. In t errom p en d o n o m eio
da frase, Ju n g d eixou o livro su bsist ir por con t a própria, com o u m dos filões
de discurso d en t ro de t oda sua obra. Est e con t rapon t o n ão exigiu n en h u m co-
m en t ário, com o tam pouco o exigiram os três registros de lin guagem n o p róp rio
livro. O O r d álio era afin al Comtnedía, que n ão precisa de n en h u m a just ificação
t eórica ret rospect iva. O Líber Novus sobreviveria aos tateam en tos e bom bardeios
da recepção. E m 1957, Ju n g observara a An ie la Jaffé que tan tas asn eiras h aviam
sido dit as a respeit o dele, que algumas a m ais n ão o p e r t u r b a r ia m 20 . Aqu ele ato
de levan t ar a pen a, port an t o, en t regou con fian t em en t e o livro à sua t rajet ória
para as profun dezas, pen et ran do profun dam en t e n a p ed reira em que se h avia
t ran sform ado, t en do suas O b ras Com p let as e a t orre ju n t o ao lago em Bo llin -
gen com o suas lin h agen s fin ais.
Nest a n ot a procuram os t r an sm it ir apenas os prin cípios gerais que or ien t a-
ram n ossa tradução. U m a discussão com plet a das escolhas com que nos con -
fron t am os e u m a just ificação das decisões tom adas en ch eriam u m volu m e tão
ext en so com o este.

20 MP, p. 183.
N o t a e d it o r ia l
S O N U SH AM D ASAN I

O Líber Novus é u m corpus m an u scrit o in acabado e n ão est á in t eiram en t e claro


com o Ju n g p ret en d ia com p let á-lo, o u com o o t eria publicado, caso tivesse d e-
cid id o fazê-lo. Tem os u m a série de m an u scrit os, dos quais n en h u m a versão
sozin h a pode ser con sid erad a d efin it iva. Con sequ en t em en t e exist em várias
m an eiras com o o t ext o p od eria ser apresentado. Est a n ot a apresen t a as razões
ed it oriais que est ão p or trás d a presen t e edição.
A sequ ên cia dos m an u scrit os exist en t es para o Líber Prím us e o Líber Secundus
é a seguinte:

Livros Negros 2- 5 (n ovem bro de 1913-ab r il de 19 14 ) .


Esboço m anuscrito (verão de 19 14 - 19 1$) .
Esboço datílografado (por volt a de 19 1$) .
Esboço corrigido (com um a camada de mudanças por volt a de 191$; um a camada
de mudanças apr. meados da década de 19 2 0 ) .
Volum ecalígráfíco ( 19 15- 19 30 , retom ado em 19 59 , deixado in com plet o).
Transcrição de Cary Baynes ( 19 2 4 - 19 2 $) .
Manuscrito de Yale. Líber Prím us, menos o prólogo (idên t ico ao Esboço datílografado).
Esboço editorado do Líber Prím us, menos o prólogo, com correções feitas por m ão
desconhecida (aprox. fin al da década de 19 50 ; versão editada do Esboço datí-
lografado) .

Para os Aprofundam entos, tem os:

Livros Negros $- 6 (ab ril de 19 14-ju n h o de 19 16 ) .


Septem Serm ones calígráficos ( 19 16 ) .
Septem Serm ones im pressos ( 19 16 ) .
Esboço m anuscrito (por volt a de 19 17) .
Esboço datílografado (por volt a de 19 18 ) .
Transcrição de Cary Baynes ( 19 2 $) ( 2 7 págin as, in com plet a).

O arran jo aqui apresen tado com eça com u m a revisão d a t ran scrição de
Ca r y Bayn es e u m a n ova t ran scrição do m at erial rest an t e con t id o n o volu m e
caligráfico ju n t o com o Esboço datílografado dos Aprofundam entos, com com parações

95
96 LI BE R N O VU S

l i n h a p o r l i n h a c o m t o d a s as ve r s õ e s e xist e n t e s. A s ú lt im a s t r i n t a p á gin a s sã o
com pletadas do Esboço. As variações p rin cip ais en t re os diferen t es m an u scrit os
d izem respeit o à "segunda cam ada' do texto. Est as m udan ças represen t am o
t rabalh o con t ín u o de Ju n g de com preen der o sign ificado psicológico das fan t a-
sias. Co m o Ju n g con siderava o Líber Novus u m a "t en t at iva de u m a elaboração em
t erm os da revelação", estas m udan ças en t re as diferen t es versões apresen t am
esta "t en t at iva de u m a elaboração" e, por isso, são u m a part e im p ort an t e da
p róp ria obra. Por isso as n otas m ost ram m udan ças sign ificativas en t re as d ife-
ren t es versões e apresen t am m at erial que esclarece o sen t ido ou o con t ext o de
u m a seção d et erm in ad a. Ca d a cam ada m an u scrit a é im p ort an t e e in t eressan t e
e u m a publicação de todas elas — que ch egaria a vários m ilh ares de págin as —
seria u m a tarefa para o fu t u ro 1.
O crit ério para in clu ir passagens dos m an u scrit os an t eriores foi sim ples-
m en t e a pergun ta: será que esta in clusão aju da o leit or a com preen der o que
está acontecendo? Além da im p ort ân cia in t rín seca dessas m udan ças, a an o-
tação delas nas n otas de rod apé serve a u m segundo p rop ósit o - m ost ra com
quan t o cuidado Ju n g t rabalh ou em revisar con t in u am en t e o texto.
O Esboço corrigido t em duas camadas de correções feitas por Jun g. O p rim eiro
con ju n t o de correções parece t er sido feito depois que o Esboço foi datilografado
e antes da tran scrição n o volu m e caligráfico, pois parece que foi esse m an u scrit o
que Ju n g t ran screveu 2. O u t r o con ju n t o de correções sobre aproxim adam en t e
2 0 0 págin as do t ext o datilografado parece t er sido feito depois do volu m e cali-
gráfico, e eu calcularia que estas foram feitas em algum m om en t o dos meados da
década de 19 2 0 . Essas correções m od ern izam a lin guagem e relacion am a t er m i-
n ologia com a t erm in ologia de Ju n g do p eríod o dos Tipos Psicológicos. São t am bém
acrescentados esclarecim en tos suplem en tares. Ju n g chegou a corrigir m at erial
do Esboço que foi cancelado n o volu m e caligráfico. Ap resen t ei algumas das m u -
danças im port an t es nas notas de rodapé. A p art ir delas o leit or pode ver com o
Ju n g t eria revisado todo o t ext o se tivesse com pletado essa cam ada de correções.
For am acrescentadas subdivisões n o Líber Secundus, capít u lo 21, "O m ago", e
nos Aprofundam entos para fácil referên cia. Est as são in dicadas por n ú m eros en t re

1 Le it o r e s in t er essad os p o d e m co m p a r a r est a e d içã o c o m as seções d o Esboço dos Ku r t W o l ff p ap er s n a


U n ive r sid a d e de Ya le e co m a t r an scr ição d e C a r y Bayn es n os Co n t e m p o r a r y Me d ica i Ar c h ive s n a
W e llc o m e Co lle c t io n , e m Lo n d r e s. E b e m p ossível qu e p ossam a in d a vi r à lu z algu n s o u t r o s m a n u scr it o s.
2 Exi s t e m t a m b é m algu m as m ar cas p in t ad as n esse m a n u scr it o .
NO TA ED I TO RI AL 97

chaves: { }. O n d e foi possível, a dat a de cada fan t asia foi dada de acordo com
os Livros Negros. A "segun da cam ada" acrescen tada n o esboço é in d icad a por [ 2 ]
e o m an u scrit o ret orn a à sequên cia das fantasias nos Livros Negros n o in ício do
capít ulo seguinte. Nas passagens em que foram acrescentadas su bdivisões, o
ret orn o à sequên cia dos Livros Negros é in dicado por [ 1] .
O s vários m an u scrit os t êm diferen t es sistem as de d ivid ir em parágrafos. No
Lsboço, os parágrafos con sist em m u it as vezes de u m a ou duas frases e o t ext o é
apresen tado com o u m poem a em prosa. N o ou t ro ext rem o, n o volu m e caligrá-
fico, exist em longas passagens de t ext o sem n en h u m a divisão em parágrafos. A
m an eira m ais lógica de divisão em parágrafos é a da t ran scrição de Ca r y Bayn es.
Ela aproveit ou frequen t em en t e a presen ça de in iciais coloridas para d ivid ir em
parágrafos. Co m o é pouco provável que ela t en h a reparagrafado o t ext o sem a
aprovação de Ju n g, seu esquem a foi tom ado com o pon t o de p art id a para esta
edição. E m alguns casos, a divisão em parágrafos foi t orn ad a m ais con form e
ao Lsboço e ao volu m e caligráfico. N a segunda m etade de sua t ran scrição, Ca r y
Bayn es t ran screveu o Esboço, já que o volu m e caligráfico n ão fora com pletado.
Aq u i paragrafei o t ext o d a m esm a form a com o foi estabelecido antes. Acr ed it o
que ist o apresen t a o t ext o n a form a m ais clara e fácil de seguir.
N o volu m e caligráfico, Ju n g ilu st rou certas in iciais e escreveu algumas em
verm elh o e azul, e às vezes au m en t ou o t am an h o do texto. O plan o aqui procu ra
seguir essas con ven ções. Já que as in iciais em quest ão n em sem pre são as m es-
mas em port uguês e em alem ão, a escolha de qual in icial colocar em verm elh o
n a edição portuguesa orien t ou-se por sua correspon den te localização n o texto.
O restan te do texto, além do que Ju n g t ran screveu n o volu m e caligráfico, foi es-
tabelecido seguindo as mesmas con ven ções, para m an t er coerên cia. N o caso dos
Septem Serm ones, a coloração da fonte seguiu a versão im pressa de Ju n g de 19 16 .
A decisão de in clu ir os Aprofundam entos n o fin al e com o parte do Líber Novus
baseia-se nas seguintes razões edit oriais: o m at erial dos Livros Negros com eça em
n ovem bro de 19 13. O Líber Secundus en cerra-se com m at erial de 19 de ab ril de
19 14 e os Aprofundam entos com eçam com m at erial do m esm o dia. O s Livros Ne-
gros prosseguem con secut ivam en t e até 2 1 de ju lh o de 19 14 e recom eçam a 3 de
ju n h o de 191$. Nesse in t ervalo, Ju n g escreveu o Esboço manuscrito. Q u an d o Ca r y
Baynes transcreveu o Líber Novus entre 19 24 e 19 2$, a prim eira metade de sua t ran s-
crição seguiu o próprio Líber Novus até ao ponto a que Jun g chegou em sua p róp ria
98 LI BE R N O VU S

t ran scrição para o volu m e caligráfico. Ele con t in u a seguindo o esboço e depois
avan ça 2 7 págin as nos Aprofundamentos, t erm in an d o n o m eio da frase.
N o fin al do Líber Secundus, a alm a de Ju n g ascen dera ao céu seguindo o Deu s
ren ascido. Ju n g pen sa agora que Filêm on é u m ch arlat ão e aproxim a-se do seu
"eu", com o qu al deve con viver e que ele deve educar. O s Aprofundamentos con -
t in u am d iret am en t e a p ar t ir desse pon t o com u m con fron t o com seu "eu ". A
ascen são do Deu s ren ascido é m en cion ada, e su a alm a ret orn a e exp lica p or
que ela desaparecera. Filêm on reaparece e in st r u i Ju n g sobre com o estabelecer
a relação corret a com sua alm a, com os m ort os, com Deu s e com os d aím on es.
Nos Aprofundamentos, Filêm on aparece in t eiram en t e e assume o sign ificado que
Ju n g lh e at ribu i t an t o n o sem in ário de 19 2$ quan t o nas Memórias. Só nos Apro-
fundam entos cert os ep isód ios do Líber Prím us e do Líber Secundus t or n am -se claros.
D a m esm a form a, a n arrat iva dos Aprofundam entos n ão faz sen t ido se n ão se leu o
Líber Prím us e o Líber Secundus.
Lm dois lugares dos Aprofundam entos, o Líber Prím us e o Líber Secundus são m e n -
cionados de u m a form a que sugere n it id am en t e fazerem parte da m esm a obra:

E então estourou a guerra. Abriram -se então meus olhos sobre m u it a coisa
que eu havia vivido antes, e isso me deu também a coragem de dizer tudo o
que escrevi nas partes anteriores deste livro 3.

Desde que o Deus se elevou para os espaços superiores, também O I -


AH MÍ2N ficou diferente. In icialm en t e foi para m im u m mago que vivia
num país distante, mas depois sen ti sua proxim idade e, desde que o Deus
se elevou, sei que O I AH M Q N me embriagou e me in spirou um a linguagem
estranha a m im mesmo e um outro sentir. Tudo isso desapareceu quando o
Deus se elevou e só O IAH MÍ2N possuía aquela linguagem. Mas eu sen ti que
ele trilhava outros caminhos e não o meu. A grande m aioria do que escrevi
nas prim eiras partes deste livro foi O IAH MÍ2N que me in spirou 4 .

Est as referên cias às "partes an t eriores deste livr o " sugerem que tudo ist o
con st it u i n a verdade u m só livro e que os Aprofundamentos foram con siderados
por Ju n g com o part e do Líber Novus.

3 Cf. ad ian t e, p. 418.


4 Cf. ad ian t e, p. 4 26 .
NO TA ED I TO RI AL 99

Est a opin ião é apoiada pelo n ú m ero de con exões in t ern as en t re os textos.
U m exem plo é o fato de que os m an dalas do Líber Novus est ão est reit am en t e
ligados à experiên cia do si-m esm o, e a percepção de sua cen t ralidade é d escrit a
só nos Aprofundamentos. O u t r o exem plo ocorre n o Líber Secundus, capít ulo i$: q u an -
do Ezeq u iel e seus com pan h eiros anabatistas chegam , eles d izem a Ju n g que
estão in d o aos lugares santos de Jeru salém , porque n ão est ão em paz já que n ão
com plet aram plen am en t e a vid a. Nos Aprofundamentos, os m ort os reaparecem ,
dizen do a Ju n g que est iveram em Jeru salém , mas n ão en con t raram o que ali
procu ravam . Nesse m om en t o aparece Filêm on e com eçam os Septem Sermones.
Talvez Ju n g t en h a pret en dido t ran screver os Aprofundamentos n o volu m e caligrá-
fico e ilu st rá-los, já que exist em m u it as págin as em bran co.
A 8 de jan eiro de I9$8, Ca r y Bayn es pergu n t ou a Jun g: "Você se lem b ra que
m e m an d ou copiar u m bom ped aço do p róp rio Livro Vermelho en quan to você
esteve n a Africa? Ch egu ei até ao in ício dos Aprofundamentos. Ist o vai além do
que Fr au Jaffé colocou à disposição de K . W [Ku r t W olff) e ele gost aria de
lê-lo. Est á O K? " 5 Ju n g respon deu a 2 4 de jan eiro: "N ã o t en h o objeções a que
você em preste suas notas do 'Livr o Ver m elh o' a Mr. W o lff"6 . Aq u i parece que
t am bém Ca r y Bayn es con siderava os Aprofundamentos com o part e do Líber Novus.
Nas cit ações feitas nas n otas, as elipses foram in dicadas por três pon tos.
N ã o foram acrescentadas novas ênfases.

5 JA.
6 JA.
N o t a à e d içã o s e m ilu st r a çõ e s

Desd e a publicação da edição origin al desta obra, que in clu iu u m a reprodução


fac-sim ilar das páginas caligráficas n u m a escala de u m por u m , houve u m clam or
por u m a ed ição m ais port át il sem as ilust rações, com o u m com plem en t o para
facilit ar u m estudo aprofun dado da obra. A julgar pela edição im pressa p r iv-
adam en te por Ju n g dos Septem Serm ones ad mortuos, u m a ed ição só com o t ext o
talvez t en h a sido u m a das form as de publicação que ele con sid erou em algum
m om en t o. Est a ed ição reprodu z a t radução com plet a, a in t rod u ção e as notas
da edição origin al da obra, agora dispost a n u m a só colu n a, sem elh an t e ao for-
m ato do m an u scrit o e do t ext o datilografado de Jun g. As rem issões recíprocas
n o t ext o para as ilust rações fac-sim ilares foram m an t id as, a fim de possibilit ar
aos leit ores en con t rar rapidam en te a localização e as imagens correspondentes,
quando lidas ao lado da edição origin al. A parte umas poucas correções, o texto
não t em alterações. As referências ao sem in ário de Jun g de 19 2$ foram at ualiza-
das de acordo com a ed ição revist a de 2 0 12 .

101
Ab r e vi a ç õ e s e n o t a so b r e a p a gin a çã o
[ I H ] - In icial h ist oriad a - u m a let ra in icial preen ch id a com u m a
represen t ação em m in iat u r a de u m a figura in d ivid u al ou de u m a cen a
com plet a.
I L U S T R A Ç Ã O o o o - In d ica o n ú m ero da págin a em que a ilust ração
aparece nos fac-símíles.

Q u an d o passagens são citadas nas notas a p art ir do esboço corrigido, palavras


deletadas aparecem tachadas e palavras adicion adas estão en t re colchetes.
[ 2 ] - "Cam ad a dois", acrescen tada n o esboço.
{ 0 0 } - Su bd ivisões adicion adas em cit ações longas para facilidade de
referên cia.
BO - Bo r d a orn am en t al.
BP - Bas de page.
A F J - Ar q u ivos da Fam ília de Ju n g.
Introductíon to Jungian Psychology: C G . Ju n g, Introductíon to Jungian Psychology: Notes

on the Sem ínar Gíven ByJung on Analytícal Psychology tn 1925, ed it ad o p or W i l l i a m

McGu ir e , revisado por Son u Sh am dasan i (Pr in cet on : Bollin gen / Ph ilem on
Series, Pr in cet on Un iver sit y Press) 2 0 12 .
CFB - Ca r y Bayn es Papers, Con t em p or ar y Med icai Ar ch ives, W ellcom e
Library, Lon d res.
Cartas - Cartas de C.G.Jung, sei. e ed. por An ie la Jaffé em colaboração com
Ge r h a r d Ad ler, t rad . Edgar O r t h (Pet rópolis: Vozes. 19 9 9 , 2 0 0 2 , 2 0 0 3 ) ,
3 vols.
JA - Coleção de Jun g. Coleções de H ist ória das Ciên cias, Ar q u ivos do
In st it u t o Fed eral de Tecn ologia da Suiça, Zu riq u e.
Memórias, Sonhos e Reflexões, C G . Ju n g/ An iela Jaffé, t rad . D o r a Fer r eir a d a Silva.
Ap resen t ação de Sérgio Br it o. Rio de Jan eiro: Nova Fr on t eir a, 6. ed. 2 0 0 6 .
M P - Prot ocolos das en t revist as de An ie la Jaffé a C G . Ju n g sobre Memórias,
Sonhos, Reflexões, Bib liot eca do Con gresso, W ash in gt on D .C. (origin al em
alem ão).
MPA - Min u t as d a Associação de Psicologia An alít ica, Clu b e Psicológico,
Zu r iq u e (origin al em alem ão).
MSZ - Min u t as d a Sociedade Psican alít ica de Zu riq u e, Clu b e Psicológico,
Zu r iq u e (origin al em alem ão).

103
IO 4 LI BERN O VU S

O C - O b ras Com p let as de C G . Jun g. Pet rópolis: Vozes. 19 7 8 - 2 0 0 3 . 18 vols.


Para facilit ar m over-se en t re o fac-sím ile e a tradução, foram usados os se-
guin tes expedien tes:

N a t radução do Líber Prímus, os n ú m eros n o fin al da cabeça esquerda referem -


se aos fólios do fac-sím ile. Por exem plo, foi. ii( v) / foi. iii( r ) in d ica que o
m at erial da t radução é do fólio i i verso e fólio i i i reto do fac-sím ile. A quebra
de u m a págin a a ou t ra n o fac-sím ile é in d icad a por u m a b arra verm elh a / n o
t ext o da t radução e os n ú m eros do fólio são d ivid id os por u m a b arra verm elh a
nas m argen s da págin a.

No Líber Secundus, são usados n ú m eros de págin a: 3 / 5 n a cabeça refere-se às


págin as 3 até $ do fac-sím ile. U m a b arra verm elh a n o t ext o e 3 / 4 n a m argem
in d icam u m a quebra en t re as págin as 3 e 4 do fac-sím ile.
I
i

Liber Primus
[ fo l.i( r ) ]

O c a m i n h o d aq u ele q u e vir á
Isaías díxít: quis credídít audítuí nostro et brachíum Dotníní cuí revelatutn est? Et ascendei sícut vír-
gultum coram eo et sícut radíx de terra sítíentí non est specíes eí neque decor et vídím us eum et non erat
aspectus et desíderavím us eum : despectum et novíssím um vírorum vírum dolorum e scíentem ínfírm í-
tatem et quasi abscondítus vultus eíus et despectus unde nec reputavím us eum . vere languores nostros
ípse tulít et dolores nostros ípseportavít et nosputavím us eum quasi leprosum etpercussum a Deo et
hum ílíatum . cap.lííí/ í-ív.

parvulus ením natus est nobísfílíus datus est nobís etfactus est príncípatus super um erum eíus et vo-
cabítur nom en eíus Adm írabílís consílíaríus Deusfortís Paterfuturísaeculípríncepspacís. caput íx/ ví.

[Isaías disse: Q u e m creu n aqu ilo que ouvim os, e a qu em se revelou o braço de
Javé? Ele cresceu d ian t e dele com o u m reben to, com o raiz que b rot a de u m a
t erra seca; n ão t in h a beleza n em esplen dor que pudesse at rair o nosso olhar,
n em form osu ra capaz de nos deleitar. Er a desprezado e abandonado pelos h o-
m en s, u m h om em su jeit o à dor, fam iliarizad o com a en ferm idade, com o u m a
pessoa de qu em todos escon dem o rost o; desprezado, n ão fazíam os caso n e-
n h u m dele. E, n o en t an t o, eram as nossas en ferm idades que ele levava sobre si,
as nossas dores que ele carregava. Mas n ós o t ín h am os com o vít im a do castigo,
ferido por Deu s e h u m ilh ad o ] 2 .

1 O s m a n u scr it o s m ed ievais e r a m n u m e r a d o s p o r fólios e m ve z de p o r p ágin as. O lad o d a fr en t e d o fó lio é o


rectum ( a p á gin a d a d ir e it a d e u m livr o a b e r t o ) , e o lad o d e t rás é o versum ( a p á gin a à esq u er d a d e u m livr o
a b e r t o ) . N o Liber Pritnus, Ju n g segu iu est a p r át ica. Vo lt o u à p a gin a çã o c o n t e m p o r â n e a n o Li b e r Secu n d u s.
2 Essas passagen s são t ir ad as d a Bíb lia d e Lu t e r o . E m 1921, Ju n g c it o u os t rês p r im e ir o s ver sos d essa
p assagem ( d a Bíb lia de Lu t e r o ) , ob ser van d o: " O n a scim e n t o d o Salvad or, ist o é, o a p a r e cim e n t o d o
sím b o lo , acon t ece ju st a m e n t e on d e n ã o é esp er ad o e e xa t a m e n t e on d e a so lu ção é a m ais im p r o vá ve l"
(Tipospsicológicos. O C , 6, § 484S.).

IO 7
io8 LI BERP RI M U S foi.i(r)/ i(v)

["Porque u m m en in o nos n asceu, u m filh o nos foi dado, ele recebeu o poder
sobre seus om bros, e lh e foi dado este n om e: Con selh eiro-m aravilh oso, Deu s-
fort e, Pai-et ern o, Prín cip e-d a-p az" ( Is 9 ,6 ) 3 .]

Ioannes díxít: et Verbum carofactum est et habítavít in nohís et vídím us gloriam eíus quasi unígenítí a
Patreplenum gratíae etveritatís. Ioann.cap.í/ xíííí

[João disse: E o Verb o se fez carn e e h abit ou en t re n ós, e n ós vim os sua glória,
glória que Ele t em ju n t o ao Pai com o filh o ún ico, ch eio de graça e de verdade
O U4).]

Isaías díxít: laetabítur deserta et ínvia et exultabít solítudo etflorebít quasi lílíum . germ ínans germ ína-
bit et exultabít laetabunda et laudans. tunc aperíentur oculí caecorum et aures sordorum patehunt. tunc
salíet sícut cervus claudus aperta erít língua m utorum : quía scíssae sunt ín deserto aquae et torrentes ín
solítudíne et quae erat árida ín stagnum et sítíens ín fontes aquarum . ín cuhílíbus ín quíbusprius dra-
cones habítabant oríetur víror calam í et íuncí. et erít tíbí sem ita et via sancta vocabítur. non transíbít
per eam pollutus et haec erít vohís directa via íta utstultí non errentper eam . cap. xxxv.

[Isaías disse: Alegrem -se o deserto e a t erra seca, reju bile-se a estepe e floresça;
com o o n arciso, cubra-se de flores, sim , reju bile-se com grande jú bilo e exulte...
En t ão se abrirão os olhos dos cegos, e os ouvidos dos surdos se desobst ruirão.
En t ão o coxo saltará com o o cervo, e a lín gu a do m udo can t ará can ções alegres,
porque a água jorrará do deserto, e rios, da estepe. A t erra seca se t ran sfor-
m ará em brejo, e a t erra árida em m an an ciais de água. O n d e repousavam os
chacais surgirá u m cam po de ju n cos e de papiros. Al i h averá u m a estrada - u m
cam in h o que será ch am ado cam in h o sagrado. O im p u ro n ão passará por ele, ele
m esm o an dará por esse cam in h o, de m odo que até os estultos n ão se desgar-
rarão ( Is 3$,i-8) 4 .]

3 E m 1921, Ju n g cit a essa p assagem , ob ser van d o: "A n a t u r e z a d o sím b o lo r e d e n t o r é a d e u m a cr ian ça, ist o é, a
at it u d e d e cr ian ça o u at it u d e n ã o p r eco n ceb id a faz p ar t e d o sím b o lo e d e su a fu n ção. A at it u d e 'de cr ian ça'
faz c o m qu e a u t o m a t ica m e n t e su r ja n o lu gar d o vo lu n t a r ism o p r ó p r io e d a in t e n cio n a lid a d e r a cio n a l
u m o u t r o p r in cíp io o r ie n t a d o r t ão o n ip o t e n t e q u an t o d ivin o . O p r in cíp io o r ie n t a d o r é d e n a t u r e z a
ir r a cio n a l, r azão p or qu e se m a n ife st a sob a cap a d o m ar avilh o so . Ist o fo i m u it o b e m exp r esso p o r Is 9,5.
Esses a t r ib u t o s in d ic a m as q u alid ad es essen ciais d o sím b o lo red en t or... O cr it é r io d a ação 'd ivin a ' é a for ça
ir r esist ível d o im p u lso in co n scie n t e " ( O C , 6, § 4 9 1- 4 9 2) .
4 E m 1955/ 1956, Ju n g o b se r vo u qu e a u n iã o d os op ost os d os p od er es d est r u t ivo s e co n st r u t ivo s d o
in co n scie n t e fo r m a m u m p ar alelo co m a r ealização d o est ad o m e ssiâ n ico d escr it o p o r Isaías n e st a
p assagem ( O C , 14, § 258 ) .
O C A M I N H O D A Q U E L E Q U E VI RÁ 109

m anu prop[ria] scrípt[utn] a CG.Jung an[n]o Do[tníní] m cm xv ín dom [u] s[ua] Kúsnacht

Turíc[ense>].

[Escrit o de p róp rio pu n h o por C G . Ju n g n o ano do Sen h or de 19 1$ em sua casa


de Kú sn ach t / Zu riqu e.]

/ [ I H i ( v) ] [ 2 ] Q u an d o falo em espírit o dessa ép oca 5, preciso dizer: n in gu ém foi.i ( r )


V
e n ada pode ju st ificar o que vos devo an un ciar. Ju st ificação para m im é algo ^
supérfluo, pois n ão t en h o escolha, mas eu devo. Eu apren d i que, além do es-
pírit o dessa época, ain d a está em ação out ro espírit o, ist o é, aquele que govern a
a profun deza de todo o presen t e 6 . O espírit o dessa época gost aria de ou vir
sobre lu cros e valor. Tam bém eu pen sava assim e m eu h u m an o ain d a pen sa
assim . Mas aquele ou t ro espírit o m e força a falar apesar disso para além da ju s-
tificação, de lucros e de sen tido. Ch e io de vaidade h u m an a e cego pelo ousado
espírit o dessa época, p rocu rei por m u it o t em po m an t er afastado de m im aquele
out ro espírit o. Mas n ão m e d ei con t a de que o espírit o d a profun deza possui,
desde sem pre e pelo fut uro afora, m aior poder do que o espírit o dessa época
que m u d a com as gerações. O espírit o da profun deza subm et eu t oda vaidade e
todo orgulh o à força do juízo. Ele t ir ou de m im a fé n a ciên cia, ele m e rou bou a
alegria da explicação e do orden am en t o, e fez com que se ext in guisse em m im
a dedicação aos ideais dessa época. Forçou -m e a descer às coisas m ais sim ples e
que est ão em ú lt im o lugar.
O espírit o da profun deza t om ou m in h a razão e todos os m eus con h eci-
m en t os e os colocou a serviço do in explicável e do absurdo. Ele m e rou bou fala
e escrit a sobre tudo que n ão estivesse a serviço disto, ist o é, d a in t erfusão de
sen t ido e absurdo, que produz o sen t ido suprem o.
Mas o sentido suprem o é o trilho, o cam inho e a ponte para o porvir. É o Deus que vem - não é o
próprio Deus, m as sua im agem que se m anifesta no sentido suprem o7. Deus é um a im agem , e aqueles
que o adoram devem adorá-lo na im agem do sentido suprem o.

5 N o Fausto de Go e t h e , Fau st o d iz: " O qu e sign ifica p a r a vó s o e sp ír it o dos t em p o s, / ist o é n o fondo o e sp ír it o


d o p r ó p r io Sen h or , / n o q u a l os t em p os se e sp e lh a m " (Faust 1, lin h a s 577-579 ) .
6 O esboço co n t in u a : "ist o m e d isse algu ém qu e n ã o m e co n h e cia , m as a q u e m ca b ia e vid e n t e m e n t e sa b ê -lo :
' Q u e t ar efa n o t ável t u t en s! Pr ecisas r evelar às pessoas t od o t e u m a is ín t im o e m a is in fe r io r '. Ma s a ist o m e
r ecu sei, p o is n ã o d et est ava o u t r a co isa m a is d o q u e isso q u e m e p ar eceu lascívia e falt a de r e sp e it o " (p . 1).
7 E m Transform ações e sím bolos da libido ( 19 12) , Ju n g in t e r p r e t o u D e u s co m o u m sím b o lo d a lib id o ( O C , B, §
111). N a ve r sã o r e fo r m u la d a , Ju n g d e u gr an d e ên fase à d ist in çã o en t r e a im a ge m d e D e u s e a e xist ê n cia
m et afísica de D e u s (cf. passagen s acrescen t ad as à e d içã o r e vist a e c o m n o vo t ít u lo ( 19 52) d e Sím bolos da
transform ação ( O C , 5, § 9 5) .
no L I B E R P R I M U S foi. i( r ) / i( v)

O sentido suprem o não é um sentido e não é um absurdo, é im agem eforça ao m esm o tem po, glória
eforçajuntas.
O sentido suprem o é com eço e m eta. É ponte de passagem para o outro lado e realização8.
Os outros deuses m orreram em sua tem poralidade, m as o sentido suprem o não m orre, ele se trans-
form a em sentido e então em absurdo, e do fogo e do sangue da colisão de am bos reergue-se o sentido
suprem o rejuvenescido.
A im agem de Deus tem um a som bra. O sentido suprem o existe realm ente e lança um a som bra. Pois
o que poderia existir real e corporalm ente e não ter nenhum a som bra?
A som bra é a tolice. É desprovida de força e não tem existência em si. Mas a tolice é a irm ã insepa-
rável e im ortal do sentido suprem o.
Com o as plantas, assim tam bém crescem as pessoas, algum as na luz, outras na som bra. São m uitas
as que precisam da som bra e não da luz.
A im agem de Deus lança um a som bra que é tão grande quanto ele próprio.
O sentido suprem o égrande e pequeno, é am plo com o o espaço do céu estrelado e estreito com o a
célula do corpo vivo.

O esp írit o dessa ép oca em m im q u eria m u it o con h ecer a gran d eza e a m -


p lid ão do sen t id o su prem o, m as n ão sua pequen ez. Mas o esp írit o d a p r ofu n -
deza ven ceu este orgulh o, e eu t ive de en golir o pequ en o com o u m r em éd io
da im ort alid ad e. Ele q u eim ou n at u ralm en t e m in h as en t ran h as, pois era i n -
glório, n ão h eróico, e era at é m esm o rid ícu lo e repu gn an t e. Mas a t en az do
esp írit o d a p rofu n d eza m e segurou, e eu t ive de t om ar a m ais am arga de todas
as bebid as 9 .
O espírit o dessa época t en t ou -m e com as ideias de que tudo isso p ert en cia
ao lado som brio da im agem de Deu s. Ist o seria engano pern icioso, pois a som -
bra é a t olice. Mas o pequeno, o est reit o e o cot id ian o n ão é n en h u m a t olice, e
sim u m a das duas essên cias da divin dade. Eu m e recusava a recon h ecer que o
cot id ian o perten cesse à im agem da divin dade. E u afugentava esses pen sam en -

8 O s t e r m o s hínúbergehen ( i r p a r a o a lé m ) , Obergang ( t r a n siçã o ) , Untergang ( d e clín io ) e Brúcke ( p o n t e ) sob ressaem


n o Zaratustra, de N ie t z sch e , e m r elação à p assagem d o h o m e m p a r a o Uberm ensch ( a lé m - h o m e m ) . Exe m p lo :
"A gr a n d ez a d o h o m e m con sist e e m ser u m a p o n t e e n ã o u m a m et a: o qu e se p od e a m a r n o h o m e m é
ser ele ascen são e u m d eclín io . Am o aos qu e n ã o sab em vive r se n ã o c o m a co n d içã o d e p erecer, p o r q u e,
p er ecen d o, eles p assam a lé m " ( Pe t r ó p o lis: Vo z e s, 20 0 7, "P r ó lo go ", 4, p. 22 [ Tr a d . d e M á r io Fe r r e ir a dos
San t o s - Palavras su b lin h ad as co m o n o e xe m p la r de Ju n g].
9 Ju n g p ar ece est ar se r e fe r in d o a e p isó d io s qu e o co r r e m m a is t ar d e n o t ext o : a cu r a d e Iz d u b a r (Líber
Secundus, cap. 9 ) , e o b eb er d a b eb id a am ar ga, p r ep ar ad a p elo so lit ár io (Líber Secundus, cap. 2 0 ) .
O C A M I N H O D A Q U E L E Q U E VI RÁ in

tos, eu m e escon dia deles atrás das estrelas m ais altas e m ais geladas. Mas o es-
pírit o da profun deza m e apan h ou e forçou a bebid a am arga en t re m eus láb io s 10 .
O espírit o dessa época disse-m e em voz baixa: "Est e sen t ido suprem o, esta
im agem de Deu s, esta in t erfusão do quen te e do frio, ist o és t u e som en te t u ".
Mas o espírit o da profun deza falou -m e 11: "T u és u m a im agem do m u n d o in fi-
n it o, todos os últ im os m ist érios do vir a ser e do cessar de ser m oram em t i. Se
n ão possuísses tudo isso, com o poderias con h ecer?"
Em con sideração à m in h a fraqueza h um an a, o espírito da profun deza deu-m e
esta palavra. Tam bém esta palavra é supérflua, pois n ão falo por causa dela, mas
porque eu preciso. Pelo fato de o espírit o m e rou bar a alegria e a vid a se eu n ão
falar, por isso eu falo 12 . Sou o servo que o t raz, e que n ão sabe o que sua m ão
carrega. Q u e im a r ia sua m ão se n ão o colocasse lá on de o sen h or m an d a que o
coloque.
O espírit o de n ossa época falou-m e e disse: "Q u e necessidade pod eria ser
essa que te obriga a falar tudo isso?" Est a t en t ação foi difícil. Q u e r ia reflet ir
qual necessidade in t er n a ou ext ern a pod eria forçar-m e a isso, e porque n ão
en con t rei n en h u m a necessidade com preen sível, estive prestes a im agin ar u m a.
Co m isso, o espírit o dessa época quase con sen t iu que, em vez de falar, eu con -
tin uasse a pen sar em fun dam en t os e explicações. Mas o espírit o da profun deza
m e falou e disse: "En t en d er u m a coisa é pon t e e possibilidade de volt ar ao t r i-
lho. Mas explicar u m a coisa é arbit raried ad e e às vezes até assassinato. Con t ast e
os assassinos en t re os eru d it os?"
Mas o espírit o dessa época aproxim ou -se de m im e colocou à m in h a fren t e
grossos livros que con t in h am todo o m eu saber; suas págin as eram de m et al, e
u m est ilet e de ferro gravara nelas palavras im placáveis; ele apon t ou para aque-
las palavras im placáveis, falou para m im e disse: "Aqu ilo que t u falas, ist o é a
lou cu ra".
E verdade, é verdade, é a d im en são, a em briaguez e a feiu ra da lou cu ra o
que eu falo.

10 O esboço co n t in u a : "Q u e m b eb e est a b e b id a ja m a is t er á sed e n e m n o a q u é m e n e m n o além , p ois b eb eu a


p assagem p a r a o além e a r ealização. El e b eb eu o m e t a l d e r r e t id o qu e se so lid ifica e m d u r o m e t a l e m su a
a lm a e esp er a p o r n o va fu são e m is t u r a " (p . 4 ) .
11 O vo lu m e caligr áfico t e m : "est e sen t id o su p r e m o ".
12 O esboço co n t in u a : "Q u e m sabe, est e m e co m p r e e n d e e vê qu e n ã o m in t o . Ca d a q u a l p er gu n t e à su a
p r o fu n d e z a se ele p r ecisa d aq u ilo qu e e u falo" (p . 4 ) .
112 LI BERP RI M U S foi.i(r)/ i(v)

Mas o espírito da profundeza apro xim o u-se de m im e falou: "O que tu falas
é. O tamanho é, a embriaguez é, a trivialidade desprezível, doente, ignorante
é, perco rre todos os cam inho s, m o ra e m todas as casas e rege o dia de toda a
humanidade. Também os astros eternos são banais. El a é a grande senho ra e a
única essência da divindade. Zo m ba-se dela, também a zo m baria é. Acre ditas
tu, ho m e m dessa época, que a zo m baria é menos que a adoração? O n d e estão
tuas medidas, falso m e dido r?13 A soma da vida n a zo m baria e n a adoração é que
decide, não te u julgam ento".
Preciso falar também do ridículo. Vó s , pessoas vindouras! Co n he ce re is o
sentido supremo no fato de ele ser a zo m baria e a adoração, um a zo m baria san -
grenta e um a adoração sangrenta: o sangue sacrificial une os poios. Q u e m sabe
disso zo m ba e adora no mesmo respirar.
Mas depois disso apresentou-se diante de m im m in h a condição de ser h u -
mano e falou: "Q u e solidão, que frieza do abandono colocas sobre m im quando
falas assim! Le m bra-te da destruição do sendo e dos rio s de sangue do sacrifício
m onstruoso que a profundeza e xige "14 .
Mas o espírito da profundeza disse: "Ningué m pode n e m deve im pe dir o
sacrifício. Sacrifício não é destruição. Sacrifício é pedra angular do que virá.
Não tivestes mosteiros? Não foram para o deserto inúmeros m ilhares? De ve is
trazer mosteiros dentro de vós mesmos. O deserto está e m vós. O deserto vos
cham a e vos puxa de volta, e se estivésseis chumbados co m ferro ao m undo de s-
sa época, o chamado do deserto quebra todas as correntes. Verdadeiram ente,
e u vos preparo para a solidão".
De po is disso, calo u-se m e u ser humano. Mas ao m e u ser espiritual aco nte -
ce u algo que preciso cham ar de graça.
Min ha linguagem é im perfeita. Não que e u queira brilhar co m palavras, mas
po r incapacidade de enco ntrar aquelas palavras é que falo e m imagem. Pois não
posso pro nunciar de outro m odo as palavras da profundeza.
A graça que me aconteceu de u-m e fé, esperança, ousadia suficiente para
não co ntinuar resistindo ao espírito da profundeza, mas falar suas palavras.
Mas antes que pudesse cobrar ânimo para assim proceder, precisei de u m sinal

13 Li t . Verm essener. Is s o traz tam bé m a co n o tação d o adje tivo verm essen, ò u se ja, u m a falta o u p e rd a d e m e d id a, e
po r isso i m p l i ca co n fian ça e xce ssiva, pre sunção .
14 U m a re fe rê ncia à visão que se segue.
O C A M I N H O D A Q U E L E Q U E VI RÁ 113

visível que me mostrasse que o espírito da profundeza e m m im é também ao


mesmo tempo o senhor da profundeza do que acontece no mundo.
I5
Aco n te ce u e m outubro de 1913, quando estava so zinho num a viagem, que
fui de repente surpreendido e m pleno dia po r um a visão: vi um dilúvio gigan-
tesco que e nco briu todos os países nórdicos e baixos entre o Mar do No rte e os
Alpe s. Este ndia-se da Inglaterra até a Rússia, das costas do Mar do No rte até
quase os Alpe s. Eu via as ondas amarelas, os destroços flutuando e a m o rte de
incontáveis m ilhares.
Es ta visão duro u duas horas, ela me desco ncerto u e me fez m al. Não fui
capaz de interpretá-la. Passaram-se duas semanas e então a visão vo lto u mais
im petuosa do que antes, e um a vo z inte rio r falou: "Obse rva be m , é totalmente
real e assim será. Não podes desesperar por isso ". Eu lute i novamente po r duas
horas co m esta visão, mas ela me manteve preso. Isto me deixo u esgotado e
perturbado. E pensei que m e u espírito havia ficado do e n te 16 .
Daí e m diante vo lto u o medo do pavoroso acontecim ento que deveria ficar
diretam ente diante de nós. U m a vez também vi um m ar de sangue sobre os
países nórdicos.
Em 1914, no começo e no final de junho e no início de julho tive por três ve -
zes o mesmo sonho: e u estava n um país estranho e, de repente, durante a noite, e
be m no m eio do verão sobreveio do universo um frio inexplicável e terrível; to -
dos os mares e rios ficaram congelados, todo o verde m o rre u queimado pelo frio.
O segundo sonho foi be m semelhante a este. O terceiro, no início do mês
de julho, foi assim:
Eu estava n um distante país de língua in gle sa 17. Era preciso que e u voltasse
ao m e u país o mais rápido possível n um navio be m ve lo z 18 . Ch e gue i rapida-
m ente a cas a 19 . Em casa de pare i-m e co m o fato de que e m pleno verão havia

15 O esboço co rrigid o te m : "N o co m e ço " (p. 7)


16 Ju n g d i s cu t i u e s ta visão e m várias o po rtu n idade s , ace n tu an do dife re n te s de talh e s: n o se m in ário d e 1925
Int roduct íon t oJungian Psychology (p. 44s .) , para Mi rc e a El i ad e (ve r acim a, p. 28) e e m Mem órias (p. 210 ) . Ju n g
e stava a cam i n h o de Sch affh ause n , o n d e vi vi a s u a so gra e cu jo quin quagé sim o sé tim o anive rsário e ra n o
d i a 17 de o utubro . A viage m de t re m le va apro xim adam e n te tu n a h o ra.
17 O esboço co n tin u a: "co m u m am igo (cu ja falta de pe rspicácia e im prudê n cia já m e h aviam ch am ado a
ate n ção m ais ve z e s " (p. 8 ) .
18 O esboço co n tin u a: "m e u am igo qu e ria vo ltar n u m ve le iro pe qu e n o e vagaro so , o qu e e u ach e i bo bage m e
im pru dê n cia" (p. 8 ) .
19 O esboço co n t in u a: "e e n co n t re i lá cu rio s am e n te tam bé m m e u am igo que o bviam e n te h avia apro ve itado o
m e s m o n avio rápido , s e m qu e e u o pe rce be sse " (p. 8 - 9 ) .
H4 L I B E R P R I M U S foi. i( v) / ii( r )

ir r om p id o u m frio t rem en d o a p ar t ir do m u n d o am bien t e, que con gelou t odo


ser vivo. H a via ali u m a árvore carregada de folh as, m as sem frut os; as folhas
se h aviam t ran sform ado, pela ação do gelo, em doces bagos de u va, ch eios de
suco m e d icin a l 20 . Co lh i as uvas e as d ei de presen t e a u m a gran de m u lt id ão
que agu ard ava 21.
N a realidade acon teceu o seguinte: N a época em que est ourou a grande
gu erra en t re as n ações da Eu r op a eu m e en con t rava n a Escócia 22 ; obrigado pela
guerra, d ecid i volt ar para casa n o n avio m ais rápid o pelo cam in h o m ais curt o.
En con t r ei o frio m on st ruoso que tudo con gelou, en con t rei o dilúvio, o m ar de
sangue, e en con t rei m in h a árvore sem frut os, cujas folhas o gelo h avia t ran sfor-
m ado em rem éd io. E eu colh i as frutas m aduras e as d ei a vós e n ão sei o que d ei
de presen te a vós, que doce-am arga bebida da em briaguez que d eixou u m gosto
de sangue em vossa lín gua.
Acr e d it a i-m e 23 : não é nenhum a doutrina nem algum a instrução que vos dou. Donde haveria de
buscar para querer instruir-vos? Eu vos inform o o cam inho dessa pessoa, seu cam inho, m as não o vosso
foi. i( v) cam inho. Meu cam inho não é o vosso cam inho, portanto / não vo-lo posso ensinar14. O cam inho está
^® em nós, m as não em deuses, nem em doutrinas, nem em leis. Em nós está o cam inho, a verdade e a vida.
Ai daqueles que vivem segundo exem plos! A vida não está com eles. Se viveis segundo um exem plo,
viveis então a vida do exem plo, m as quem deve viver vossa vida a não ser vós m esm os? Portanto, vivei a
vós m esm os 25.
Os indicadores do cam inho caíram , trilhas indeterm inadas estão diante de nós 26. Não sejais gulosos
em engolir os frutos de cam pos estranhos. Não sabeis que vós m esm os sois o cam po fértil que produz tudo
o que vos aproveita?

Mas quem sabe disso hoje em dia? Quem conhece o cam inho para o eterno e fértil cam po da alm a?
Procurais o cam inho através de coisas exteriores, ledes livros e ouvis opiniões: de que serve?

20 Vi n h o con gelad o é feit o d e ixa n d o -se as u vas n a vi n h a at é qu e fiq u e m con gelad as. D e p o is são esp r em id as,
e o gelo r et ir ad o, r esu lt a n d o e m u m vin h o d oce, m u it o sab oroso e a lt a m en t e co n cen t r ad o .
21 O esboço co n t in u a : "Es t e fo i m e u son h o. To d o esfo r ço de in t e r p r e t á - lo fo i e m vão. Esfo r ce i- m e d u r a n t e
vá r io s d ias. Mas a im p r e ssã o qu e d e ixo u fo i p o d er o sa" (p . 9 ) . Ju n g t a m b é m co n t a esse so n h o e m Mem órias
(p . 211).
22 Ve r in t r o d u çã o , p. 25.
23 N o e sb o ço ist o é d ir igid o a "m eu s am igo s" (p . 9 ) .
24 Cf. o con t r ast e c o m Jo 14,6: "Jesu s lh e r esp on d eu : E u so u o ca m in h o , a ver d ad e e a vid a . N i n g u é m ve m ao
Pai se n ã o p o r m i m ".
25 O Esboço co n t in u a : "I s t o n ã o é u m a le i, m as u m a n ú n cio d o fat o de qu e h a via p assad o o t e m p o d o e xe m p lo
e d a le i e d a lin h a r e t a p r e via m e n t e t r a ça d a " (p . 10 ) .
26 O esboço co n t in u a : "M i n h a lín gu a sequ e se e u vos ap r esen t ar leis, se vos en gam b elar c o m d o u t r in a s. Q u e m
p r o cu r a isso sairá c o m fom e de m i n h a m e sa " (p io).
O R E E N C O N T R O D A ALM A "5

Só existe um cam inho, e este é o vosso cam inho27.


Procurais o cam inho? Eu vos previno contra o m eu cam inho. Pode ser um descam inho para vós.
Cada qual anda o seu cam inho.
Não quero ser para vós nenhum salvador, nenhum legislador, nenhum educador. Já não sois
crianças 28.
O legislar, o querer m elhorar, o tornar m ais fácil transform ou-se em um erro e um m al. Cada qual
procure seu cam inho. O cam inho conduz ao am or m útuo em com unidade. As pessoas vão ver e sentir a
sem elhança e com unhão de seus cam inhos.
Leis e doutrinas com uns precisa a pessoa para o estar só, afim de escapar da pressão da com unidade
não desejada, m as o estar só torna a pessoa hostil e venenosa.
Dai, portanto, a dignidade à pessoa e perm iti quefique só, afim de que encontre sua com unidade
e a am e.
A violência está contra a violência, desprezo contra desprezo, am or contra am or. Dai à hum anidade
a dignidade e confiai que a vida encontrará o m elhor cam inho.
O único olho da divindade é cego, o único ouvido da divindade é surdo, sua ordem é cruzada pelo
caos. Portanto, sede pacientes com o aleijado do m undo e não superestim ai sua beleza perfeita29.

O r e e n c o n t r o d a a lm a
[ I H ii( r ) ] 3 °
Cap. i }1

[ 2 ] Q u an d o t ive, em ou t u bro de 19 13, a visão do dilú vio, ist o acon t eceu


n u m a época que foi m u it o im p ort an t e para m im com o pessoa. Naquele tem po,

27 O Esboço co n t in u a : "exist e u m a só le i, e essa é a vo ssa le i. Exis t e u m a só ver d ad e, e essa é a vossa ve r d a d e "


(p . I O ) .
28 O esboço co n t in u a : "N ã o se d eve fazer d a p essoa u m a o velh a , m a s d a o ve lh a u m a pessoa. Ist o exige o
esp ír it o d a p r o fu n d e z a q u e est á a lém d o t e m p o p r esen t e e passado. Fa la i e escr evei p a r a aqu eles q u e
q u e r e m o u vir e ler. Ma s n ã o co r r a is at r ás d as pessoas, p a r a n ã o m a n ch a r a d ign id ad e d a h u m a n id a d e - ela
é u m b e m t ã o raro. E p r e fe r íve l u m d e clín io t r ist e co m d ign id ad e d o q u e u m ser sad io se m d ign id ad e.
Q u e m q u e r ser u m m é d ico d e alm as t r a t a a p essoa co m o d oen t e. El e ofen d e a d ign id ad e h u m a n a . E u m a
im p e r t in ê n cia d iz e r q u e a p essoa est á d oen t e. Q u e m q u e r ser u m p ast or d e alm as t r a t a as pessoas co m o
ovelh as. Fe r e a d ign id ad e h u m a n a . E u m d esr esp eit o d iz e r q u e a p essoa é co m o u m a ovelh a. Q u e m vo s d á
o d ir e it o d e d iz e r q u e a p essoa est á d o e n t e o u é u m a ovelh a? D a i - l h e a d ign id ad e p a r a qu e p ossa e n co n t r a r
su a a sce n sã o o u d e ca d ê n cia , se u c a m in h o " (p . l i ) .
29 O esboço co n t in u a : "Is t o é t u d o, m eu s p r ezad os am igos, q u e p osso d iz e r - vo s sob r e os fu n d a m e n t o s e
in t e n çõ e s d e m i n h a m e n sa ge m q u e m e é im p o st a , co m o ao b u r r o p acien t e, o p eso op ressor. El e se alegra
ao d e sca r r e gá - lo " (p . 12).
30 N o t ext o, Ju n g id e n t ifica o p á ssa r o b r a n co co m o sen d o su a alm a. Pa r a a e xp la n a çã o d e Ju n g d a p o m b a n a
a lq u im ia , ve r Mysteríum coníunctíonís (1955/ 1956. O C , 14, § 8 1) .
31 O esboço corrigido t em : "P r i m e i r a n o it e " ( p . 13).
n6 LI BERP RI M U S foi.i(v)/ ii(r)

por vo lta dos meus quarenta anos de vida, havia alcançado tudo o que eu dese-
jara. Havia conseguido fama, poder, riqueza, saber e toda a felicidade humana.
Ce sso u m inha ambição de aumentar esses bens, a ambição retrocedeu e m m im ,
e o pavor se apoderou de m i m 32 . A visão do dilúvio to m o u co nta de m im , e e u
senti o espírito da profundeza, mas eu não o e n te n dia 33. Mas ele me forçou com
um desejo inte rio r insuportável e e u disse 34 :

[i] "Min h a alma, onde estás? Tu me escutas? Eu falo e clamo a ti - estás


aqui? Eu vo ltei, estou novamente aqui — e u sacudi de meus pés o pó de todos os
países e vim a ti, estou contigo; após muitos anos de longa peregrinação vo ltei
novamente a ti. De vo co ntar-te tudo o que vi, vive ncie i, absorvi e m m im ? O u
não queres ouvir nada de todo aquele turbilhão da vida e do mundo? Mas um a
coisa precisas saber: um a coisa eu aprendi: que a gente deve viver esta vida.
Esta vida é o caminho, o cam inho de há m uito procurado para o inconcebí-
vel, que nós chamamos divin o 35. Não existe outro caminho, todos os outros ca-
m inho s são trilhas enganosas. Eu enco ntrei o cam inho certo, ele me co nduziu
a ti, à m in ha alma. Eu volto retemperado e purificado. Tu ainda me conheces?
Quan to tempo duro u a separação! Tudo ficou tão diferente! E como te e n co n -
trei? Maravilho sa foi m inha viagem. Co m que palavras devo descrever-te? Por
que trilhas emaranhadas um a boa estrela me co nduziu a ti? Dá-m e tua mão,
m inha quase esquecida alma. Q u e calor de alegria rever-te, m inha alma m uito
tempo renegada! A vida re co nduziu-m e a ti. Vamos agradecer à vida o fato de
eu ter vivido, todas as horas felizes e tristes, toda alegria e todo sofrimento.

32 O esboço do m anuscrit o te m : "Pre z ad o s am igo s !" (p. 1). O esboço te m : "Pre z ad o s am igo s !" (p. 1). Em su a pre le ção
n a E T H a 14 de ju n h o de 1935, Jun g o bse rvo u: "Po r vo lta do trigé sim o qu in to ano , e xiste u m po n to e m
que as co isas co m e çam a m udar, é o p ri m e i ro m o m e n t o do lado s o m brio d a vid a, do de sce r para a m o rte .
E e vide n te que D an t e e n co n t ro u e ste po n to e o s que le ram Zarat ust ra sabe rão que Ni e t z s ch e tam bé m o
de s co briu . Q u a n d o ch e ga e ste m o m e n t o crítico , as pe sso as o e n fre n tam de dive rsas m an e iras: algum as
n ão o ace itam ; o utras m e rgu lh am n e le ; e para o utras ain d a algo im po rtan te aco n te ce a p art ir de fo ra. Se
n ão ve m o s algo, o D e s t i n o n o -l o faz ve r" ( H A N N A H , B. (o rg.). Modem Psychology - Vo l . 1 an d 2: No t e s o n
Le ctu re s give n at th e Eidge n õ ssisch e Te ch n is ch e Ho ch s ch u le , Zi i ri c h , by Pro f. D r. C G . Jun g, O c t o b e r
1933-July 1935, 2. e d. Zu ri qu e : Ed . Privada, 1959, p. 223).
33 A 27 de o u tu bro de 1913, Ju n g e scre ve u a Fre u d ro m pe n d o re laçõ e s co m e le e d e m i t i n d o -s e do cargo de
e d ito r d o JahrbuchjúrPsychoanalyt ischeundPsychopat hologíscheForschungen ( M c G U I R E , W & S A U E R L A N D E R ,
W. (o rgs.). Sigm und Freud C G . JungBriefwechsel. Fran kfu rt am Mai n : Fi s ch e r Ve rlag, 1974, p. 612).
34 Em n o ve m bro de 1913 (n as n o tas a seguir, as datas das fantasias e spe cíficas fo ram tiradas do s Livros Negros).
Ap ó s "de se jo ", o esboço te m : "n o co m e ço do m ê s se guin te to m ar m i n h a can e ta e e scre ve r i s t o " (p. 13).
35 Es t a afirm ação o co rre dive rsas ve ze s n o s e scrito s tardio s de Ju n g - c f, po r e xe m plo , P R A T T , J. "No t e s o n
a talk give n by C G . Jun g: 'Is an alytical psycho lo gy a religion?"'SpringJournal oj Archet ypal Psychology andJungian
Thought , 1972, p. 148.
O RE E N C O N T RO D A ALM A 117

Min h a alma, contigo deve co ntinuar m inha viagem. Co n tigo quero cam inhar e
subir para m inha so lidão "36 .

[ 2 ] Fo i isto que o espírito da profundeza me obrigou a falar e ao mesmo


tempo viver co ntra m im mesmo, pois não o esperava. Naquele tempo estava
ainda totalmente preso ao espírito dessa época e pensava de outro modo sobre
a alm a hum ana. Eu pensava e falava m uita co isa da alma, sabia muitas palavras
eruditas sobre ela, eu a analisei e fiz dela um objeto da ciê ncia 37. Não to m ei e m
consideração que m in ha alm a não pode ser objeto de m e u juízo e saber; antes,
m e u juízo e saber são objetos de m in ha alm a 38 . Por isso obrigou-m e o espírito
da profundeza a falar para a alma, a invocá-la como um ser vivo e subsistente
e m si mesmo. Eu tinha de entender que havia perdido m in ha alma.
Disso aprendemos o que o espírito da profundeza pensa da alma: ele a vê
como um ser vivo subsistente e m si mesmo, e assim co ntradiz o espírito dessa
época, para o qual a alm a é um objeto dependente da pessoa, que se deixa julgar
e o rdenar e cuja extensão nós podemos compreender. Tive de reconhecer que
aquilo que anterio rm ente eu designei como m in ha alm a não foi na verdade
m inha alma, mas um sistema doutrinário m o rto 39 . Por isso tive de falar à m inha
alma como a algo distante e desconhecido, que não te m existência através de
m im , mas através do qual eu tenho existência.
Aque le cuja cobiça se aparta das coisas externas, este chega ao lugar da
alm a 40 . Se não enco ntrar a alma, será acometido pelo ho rro r do vazio, e o medo
vai expulsá-lo co m um chicote de várias tiras para um a aspiração desesperada e
para um a cobiça cega das coisas ocas deste mundo. To rnar-se -á um bobo de sua
cobiça ilim itada e se perderá de sua alm a para nunca mais encontrá-la. Co rre rá

36 Mais tarde Ju n g de scre ve u s u a tran sfo rm ação pe sso al o co rri d a n e ste te m po co m o u m e xe m plo do in ício
d a se gun da m e tade d a vid a, que frequentem ente assin alo u u m re to rn o à alm a, de po is de alcançadas
as m e tas e as am biçõ e s d a p ri m e i ra m e tade d a vi d a (Sínéobsdat rat isforinação, 1952. O C , 5, p. xxvi ) . Ve ja
tam bé m : "A m udan ça de vi d a", 1930. O C , 8 ) .
37 Ju n g se re fe re aqui à s u a o bra m ais an tiga. El e e scre ve u p o r e xe m plo e m 1905: "O e xpe rim e n to de
asso ciaçõ e s ao m e n o s n o s fo rn e ce os m e io s de traçar o cam i n h o d a pe squisa e xpe rim e n tal para ch e gar aos
se gre do s d a psique d o e n t i a" ( O C , 2, § 8 9 7) .
38 Em Tipos psicológicos ( 19 20 ) , Ju n g o bs e rvo u que n a psico lo gia, as co n ce pçõ e s são "u m pro d u to d a co n ste lação
psico ló gica s u bje tiva d o pe s qu is ad o r" ( O C , 6, § 8 ) . Es t a re fle xão co n s t it u iu t e m a im po rtan te e m s u a o bra
po s te rio r (cf. SHAbADASANI.Jungandt heMakingofModernPsychobgy. Th e D re a m o f a Scie n ce . Cam bri d ge :
Cam b ri d ge Un i ve rs i t y Pre ss, 20 0 3, § 1).
39 O esboço co n tin u a: "u m s is te m a m o rto de e n s in o , po r m i m e xco gitado e m o n tad o co m as ch am adas
e xpe riê n cias e ju lgam e n to s " (p. 16).
4 0 Em 1913, Ju n g ch am a e ste pro ce sso de in tro ve rsão d a libid o ("A que stão do s Ti p o s Psico ló gico s". O C , 6 ) .
n8 L I B E R P R I M U S foi. i ( v) / i i ( r )

atrás de todas as coisas, vai pu xá-las todas para si, mas n ão en con t rará nelas sua
alm a, pois só a en con t rará d en t ro de si m esm o. E óbvio que sua alm a está nas
coisas e nas pessoas, mas o cego agarra as coisas e as pessoas, mas n ão sua alm a
nas coisas e nas pessoas. N ã o sabe n ada a respeit o de sua alm a. Co m o pod eria
d ist in gu i-la das pessoas e das coisas? Ele en con t raria, sim , sua alm a n a própria
cobiça, mas n ão nos objetos da cobiça. Se ele possuísse sua cobiça, e n ão sua
cobiça o possuísse, t eria colocado u m a m ão sobre a alm a, pois sua cobiça é im a -
gem e expressão de sua a lm a 4 1.
Possuin do a im agem de u m a coisa, possu ím os a m etade da coisa.
A im agem do m u n d o é a m etade do m un do. Q u e m possui o m un do, mas
n ão sua im agem , possui só a m etade do m un do, pois sua alm a é pobre e sem
bens. A riqu eza da alm a con siste de im agen s 42 . Q u e m possui a im agem do
m u n d o possui a m etade do m u n d o, m esm o quan do seu h u m an o é pobre e sem
b en s 4 3. Mas a fome t ran sform a a alm a em fera que engole o p reju d icial e com
isso se en ven en a. Meus am igos, é sábio alim en t ar a alm a, sen ão criareis dragões
e d em ón ios em vossos cor ações 4 4 .

41 E m 1912, Ju n g h a via escr it o: "É u m e r r o c o m u m julgar o desejo segundo a qualidade do objeto... A n a t u r e z a só é b ela
d evid o ao d esejo e ao am or , qu e lh e con ced e a pessoa. O s a t r ib u t o s est ét ico s qu e d a q u i e m a n a m a p lica m -
se p r im e ir a m e n t e à lib id o qu e so z in h a co n st it u i a b eleza d a n a t u r e z a " (Transform ações e sím bolos da libido. O C ,
B, § i 4 7 ) .
4 2 E m Tipos psicológicos, Ju n g a r t icu lo u est a p r im a z ia d a im a ge m at r avés de su a n o çã o d e esse in anim a ( O C , 6,
§ 63S., 73s.). E m suas a n o t a çõ e s d iár ias, C a r y Bayn es c o m e n t o u a r esp eit o d est a passagem : " O qu e m e
im p r e ssio n o u esp ecialm en t e fo i o qu e o Sr. falou sobre o fat o de a "Bi l d " ser m et ad e d o m u n d o . Essa é a
co isa qu e t o r n a a h u m a n id a d e t ão est ú p id a. N ã o e n t e n d e r a m essa coisa. O m u n d o , essa é a co isa qu e os
m a n t é m ext asiad os. Ele s n u n c a co n sid e r a r a m "das Bi l d " se r ia m e n t e a n ã o ser qu e t e n h a m sid o p oet as" ( 8
d e fever eir o de 1924, escr it os d e Ba yn e s) .
43 O esboço co n t in u a : "Q u e m a m b icio n a coisas, est e em p o b r ece co m o a u m e n t o d e r iq u ezas e xt e r io r e s, e su a
a lm a su cu m b e a u m a d o e n ça cr ó n ica " (p . 17).
4 4 O esboço co n t in u a : "Es t a alegor ia d o r e e n co n t r o d a a lm a , m eu s am igos, d eve m o st r a r -vo s qu e só m e
vist es co m o m e ia pessoa, p ois e u m e h a via p e r d id o d e m i n h a alm a. C o m cer t eza , n ã o o p erceb est es; p ois
q u an t o s est ão h o je c o m su a alm a? Ma s se m a lm a n ã o h á ca m in h o p a r a a lé m d est e t e m p o " (p . 17). E m suas
a n o t a çõ e s d iár ias, C a r y Bayn es co m e n t o u est a passagem : "8 d e fever eir o [19 24 ]. Ch e gu e i à co n ve r sa çã o d o
Sr. c o m su a alm a. Tu d o qu e o Sr. d iz é d it o d e m a n e ir a co r r e t a e é sin cer o. N ã o é o gr it o d o h o m e m jo ve m
d esp er t an d o p a r a a vid a , m as o d o h o m e m m a d u r o qu e vive u p le n a e r ica m e n t e à m a n e ir a d o m u n d o e n o
en t an t o , qu ase qu e a b r u p t a m e n t e , ce r t a n o it e , ou ve a lgu é m d iz e r qu e ele n ã o a t in giu a essên cia. A visão
ve io n o auge de su a for ça, q u an d o o Sr. p o d e r ia segu ir e m fr en t e e xa t a m e n t e co m o o Sr. er a, c o m p er feit o
su cesso m a t e r ia l. E u n ã o sei co m o o Sr. t eve for ça su ficien t e p a r a p r e st a r -lh e at en ção. Co n c o r d o r e a lm e n t e
c o m t u d o o qu e o Sr. d iz e o en t en d o. To d o s os qu e p e r d e r a m a co n e xã o c o m su a p r ó p r ia a lm a o u qu e
so u b e r a m co m o d a r - lh e vid a p r e cisa m t e r u m a o p o r t u n id a d e de ve r est e livr o . At é agora cad a p a lavr a
p a r a m i m est á viva e fo r t alece-m e ju st a m e n t e on d e m e sin t o fraca. Ma s, co m o o Sr. d iz , h o je o m u n d o
est á m u it o lon ge d e t e r est a d isp o sição . Ist o n ã o t e m m u i t a im p o r t â n cia , u m livr o p od e sacu d ir o m u n d o
in t e ir o se for escr it o c o m fogo e san gu e" ( escr it o s de Ba yn e s ) .
ALM A E D EU S 119

Al m a e Deu s
[ I H ii ( r ) 2 ] 4 5

Cap. ii.

N a segunda n oit e ch am ei m in h a a lm a 4 6 :
"Est o u cansado, m in h a alm a, já d u ra dem ais o m eu cam in h ar, m in h a bu s-
ca por m im fora de m im . Passei através das coisas e fu i en con t rar-t e atrás da
m iscelân ea. Mas em m in h a viagem equivocada através das coisas descobri a
h u m an idad e e o m un do. En co n t r ei pessoas. E reen con t rei a t i, m in h a alm a, p r i-
m eiram en t e em im agem n a pessoa e, depois, a t i m esm a. En con t r ei-t e lá onde
m en os esperava. D e lá subiste para m im de u m poço escuro. T u te an un ciast e
previam en t e em son h os 4 7 ; eles qu eim avam em m eu coração. Eles me im p elir am
para tudo o que era m ais dest em ido e ousado e forçaram -m e a elevar-m e acim a
de m im m esm o. T u m e fizeste ver verdades das quais n ada suspeitava an t i-
gam ente. Fizest e-m e percorrer cam in h os cujo com p rim en t o in t erm in ável m e
t eria assustado se o con h ecim en t o deles n ão estivesse escon dido em t i.
An d e i du ran t e m u it os anos, t an t o que esqueci que possu ía u m a a lm a 4 8 .
O n d e estavas t u neste tem po todo? Q u e além te abrigava e te dava guarida?
O h , que t u ten has de falar através de m im , que m in h a lin guagem e eu sejam os
para t i sím bolo e expressão! Co m o devo decifrar-t e?
Q u e m és t u , crian ça? Co m o crian ça, com o m en in a, m eus sonhos te repre-
sen t ar am 4 9 ; n ada sei de t eu m ist ér io 50 . Perdoa, se falo com o em sonho, com o
u m bêbad o — t u és Deu s? Deu s é u m a crian ça, u m a m oça? 51 Perdoa, se falo
coisas confusas. Nin gu ém me escuta. Eu falo n o silên cio con tigo, e t u sabes que

4$ E m 1945, Ju n g co m e n t o u o sim b o lism o d o p á ssa r o e d a co b r a e m co n e xã o c o m a ár vo r e e m "A á r vo r e


filosófica" ( O C , 13).
4 6 14 de n o ve m b r o de 1913.
4 7 O esboço co n t in u a : "qu e m e e r a m ob scu r os e q u e e u p r o cu r a va cap t ar co m m i n h a cap acid ad e in su ficie n t e "
( p . 18).

4 8 O esboço co n t in u a : " E u p e r t e n c ia às p essoas e às coisas. N ã o p e r t e n cia a m i m ". N o Livro Negro 2, Ju n g


a fir m a qu e vagu eou p o r o n z e an os (p . 19 ) . P a r o u d e escr ever n est e livr o e m 19 0 2, r e t o m a n d o - o n o
o u t o n o d e 1913.
4 9 Livro Negro 2: "So m e n t e at r avés d a a lm a d a m u lh e r e n co n t r e i- t e n o va m e n t e " (p . 8 ) .
50 Livro Negro 2: "Vê , e u t rago u m a fe r id a co m igo qu e a in d a n ã o sar ou : m i n h a a m b içã o d e cau sar im p r e ssã o "
(p 8 )
$1 Livro Negro 2: "Pr e ciso d iz e r - m e fr an cam en t e: Ser ve-se ele d a im a ge m de u m a cr ian ça, qu e m o r a d e n t r o
de cad a pessoa? N ã o fo r a m H ó r u s , Tages e Cr i s t o cr ian ças? Ta m b é m D i o n i s o e H é r cu le s e r a m cr ian ças
d ivin as. N ã o se d e n o m in o u o D e u s h u m a n a d o , Cr is t o , a si m e sm o Filho do Hom em ? Q u a l t e r ia sid o n isso su a
id e ia m ais p r ofu n d a? Se r á qu e o n o m e d e D e u s é a de Filha do Hom em ? (p . 9 ) .
120 LI BERP RI M U S foi.ii(r)/ ii(v)

não sou um bêbado, um alienado m ental e que m e u coração se revolve sob a


ferida da qual a treva faz escárnio: "Tu mentes para ti. Falas assim para iludir os
outros e fazer co m que acreditem em ti. Que re s ser profeta, mas corres atrás
de tua ambição". A ferida ainda sangra, e e u estou longe de poder não escutar
a própria fala do deboche.
Co m o soa estranho para m im cham ar-te criança, tu que seguras e m tua mão
coisas in fin itas 52. Eu andei pelos cam inhos do dia e tu foste, invisível comigo,
unindo significativamente pedaço a pedaço e fizeste-m e ve r e m cada pedaço
um todo.
Tu retiraste aquilo em que eu pensava me segurar e me deste aquilo de onde
e u nada esperava, e sempre de novo aduziste destinos de lados diferentes e
inesperados. On d e e u semeava, tu me roubavas a co lhe ita e onde e u não se -
meava, tu me davas frutos e m cêntuplo. E sempre de novo perdia o fio, para
encontrá-lo outra vez onde jam ais te ria esperado. Tu seguraste m in ha fé quan -
do estava só e à be ira do desespero. Tu fizeste co m que em todos os momentos
decisivos e u acreditasse em m im mesmo.

[ 2 ] Co m o um viandante cansado, que não pro curo u nada no m undo a não


ser po r ela, devo apro xim ar-m e de m inha alma. De vo aprender que por trás de
tudo está, em última análise, m in ha alma, e se e u perco rrer o mundo, aco ntece-
rá no fim que e nco ntrare i m in h a alma. Mesm o as pessoas mais queridas não são
m eta e fim do am or que pro curam , são símbolos da própria alma.
Meus amigos, adivinhais vós para qual solidão vamos subir?
De vo aprender que a espuma de m e u pensar são meus sonhos, a linguagem
de m in ha alma. Preciso carregá-los em m e u coração e movimentá-los de cá
para lá e m meus sentidos, como as palavras da pessoa mais cara. O s sonhos são
as palavras-guia da alma. Co m o então não deveria amar m in ha alm a e fazer de
suas imagens enigmáticas o objeto de m inhas considerações diárias? Tu achas
que o sonho é tolo e deselegante. O que é belo? O que é deselegante? O que é
inteligente? O que é tolo? O espírito dessa época é tua medida. Mas o espírito

52 O esboço co n tin u a: "Q u ã o e spe ssa e ra a e scuridão antiga! Q u ão forte e in te re s s e ira e ra m i n h a paixão ,
subjugada po r to do s o s de m ó n io s d a am bição , d a bu s ca de fam a, co biça, e stagnação , avide z de to do tipo ,
e quão ign o ran te e u e ra e n tão ! A vi d a m e arran co u para fo ra e e u co rri co n s cie n te m e n te para lo n ge de ti
e o fiz assim to do s esses an o s. Re co n h e ço que tudo e ra bo m . E e u pe n sava que t u estavas pe rd id a, o u ao
m e n o s m e pare cia que e u e stava pe rdido . Mas n ão estavas pe rdida. Eu an d e i pe lo s cam in h o s do dia.
Tu ias invisíve l co m igo e m e co n du zis te de de grau e m de grau, ju n tan d o pe daço a pe daço " (p. 20 - 21) .
ALM A E D EU S 121

da profundeza o sobrepuja nas duas pontas. Só o espírito dessa época conhece a


diferença entre grande e pequeno; mas esta diferença é ilusória como o espírito
que a conhece. / fo i
/ ii(

O espírito da profundeza e nsino u-m e inclusive a co nsiderar como de pe n -


dentes dos sonhos m e u agir e m e u decidir. O s sonhos preparam a vida e eles
te de te rm inam sem que entendas sua linguage m 53. Nó s gostaríamos de apre n -
der esta linguagem, mas quem é capaz de ensiná-la e aprendê-la? Pois só a
erudição não basta; existe um saber do coração, que dá esclarecimentos mais
pro fundo s 54 . O saber do coração não é possível encontrá-lo em ne nhum livro
e em ne nhum a boca de professor, mas ele nasce de ti como o grão verde, da
terra preta. A erudição pertence ao espírito dessa época, mas este espírito não
abrange de form a ne nhum a o sonho, pois a alm a está e m toda a parte onde o
saber ensinado não está.
Mas com o posso conseguir o saber do coração? Só poderás conseguir este
saber vivendo plenam ente tua vida. Tu vives tua vida plenam ente quando tu
vives também aquilo que nunca viveste, mas sempre deixaste para que os outros
o vivessem e pe nsasse m 55. Tu dirás: "Eu não posso viver o u pensar tudo o que os
outros vive m e pensam ". Mas deves dizer: "A vida que e u ainda po deria viver,
eu deveria viver e o pensar que e u ainda po deria pensar, e u deveria pe nsar". Tu
queres fugir de ti, para não teres de viver aquilo que não foi vivido até ago ra 56 .

53 Em 1912 Ju n g e n do s s o u a id e ia de Mae d e r d a função pre m o n itó ria do so n h o ("Te n tativa de u m a


apre se n tação d a te o ria psicanalítica". O C , 4, § 452). N u m de bate n a So cie dade Psicanalítica de Zu ri q u e a
31 de jan e iro d e 1913, Ju n g disse : "O s o n h o não é só satisfação de de se jo s in fan tis, m as é tam bé m sim bó lico
para o futuro ... O so n h o dá a re spo sta atravé s d o sím bo lo , que a ge n te de ve e n t e n d e r" (MSZ, p. 5) . So bre
o de s e n vo lvim e n to d a te o ria do so n h o de Jun g, cf. m e u e n saio Jung and t he Makíngof Modem Psychology: Th e
D re a m o f a Scie n ce , se ção 2.
54 Is to é u m e co d a fam o sa afirm ação d e Blais e Pascal: "O co ração t e m razõ e s que a razão d e s co n h e ce "
(Pensées, 423 [e d. ingle sa: Lo n d re s , Pe n gu in , 1660 / 1995, p. 127]). O e xe m plar que Ju n g t in h a d a o bra d e
Pascal co n té m n um e ro sas n o tas m argin ais.
55 Em 1912, Ju n g afirm o u que a e sco laridade e ra in su ficie n te se algué m quise sse t o rn ar-s e u m "co n h e ce d o r
d a alm a h u m an a". Para co n se guir isso, a pe sso a tin h a de "p e n d u rar n o cabide as ciê ncias e xatas, tirar a
be ca pro fe sso ral, d e s pe d ir-s e do gabine te de e studo s e cam in h ar pe lo m u n d o co m u m co ração h u m an o :
n o h o rro r das prisõ e s, n o s asilo s de alie n ado s, nas tabe rn as do s subúrbio s, no s bo rdé is e casas de jo go ,
n o s salões e le gante s, n a bo ls a de valo re s, n o s 'm e e tin gs ' so cialistas, nas igre jas, nas se itas pre dican te s e
e xtáticas, n o am o r e n o ó dio , e m to das as fo rm as de paixão vividas n o pró prio co rp o " ("No vo s cam in h o s
d a psico lo gia". O C , 7, § 4 0 9 ) .
56 Em 1931, Ju n g fez u m co m e n tário so bre as co n se quê n cias pato gê nicas d a vi d a n ão vivid a do s pais so bre
seus filho s: "Vi a de re gra, o fato r que atua ps iqu icam e n te de u m m o d o m ais in te n s o so bre a crian ça é a
vid a que os pais não vive ram . Es t a afirm ação po de ria pare ce r algo sum ária e supe rficial, s e m a se guinte
re strição : e sta parte d a vi d a a que n o s re fe rim o s se ria aque la que o s pais po d e riam te r vivid o se não a
tive sse m o cultado m e dian te subte rfúgio s m ais o u m e n o s gasto s" ("In tro du ção à o bra de Fran ce s G.
Wi ck e s , An ál i s e d a alm a in fan til'". O C , 17, § 8 7) .
12 2 L I B E R P R I M U S foi. i i ( r ) / i i ( v)

Mas n ão podes fugir de t i m esm o. Ist o está todo o t em po con tigo e exige rea-
lização. Se te colocares cega e surdam en t e esta exigên cia, t u te colocarás cega e
surdam en t e con t ra t i m esm o. En t ão jam ais alcan çarás o saber do coração.
O saber do coração é com o t eu coração é.
De u m coração m au , conheces coisa m á.
De u m coração bom , conheces coisa boa.
Para que vosso con h ecim en t o seja com plet o, con sid erai que vosso coração
é ambos: bom e m au . T u perguntas: "Mas com o? Devo t am bém viver o m al?"
O espírit o da profun deza exige: "A vid a que ain d a poderias viver, deverias
viver. O b em decide, n ão t eu bem , n ão o b em dos out ros, mas o b em ".
O bem está entre mim e os outros, na comunidade. Também eu vivia o que antes não
fazia, e o que ainda podia fazer, eu vivia n a profundeza, e a profundeza começou a falar.
A profundeza me ensinou a outra verdade. Portanto juntou em mim sentido e absurdo.
Tive de reconhecer que sou apenas símbolo e expressão da alma. No sentido do
espírito da profundeza, sou, enquanto estou neste mundo visível, u m símbolo de m i-
nha alma, e sou totalmente servo, submissão, totalmente obediência. O espírito da
profundeza ensinou-me a dizer: "Sou o servo de um a criança". Eu aprendo através
dessa palavra sobretudo a extrem a humildade, como aquilo que me faz mais falta.
O próprio espírito dessa época fez com que eu acreditasse em m in h a razão;
deixou-m e ver u m a imagem de m eu si-mesmo* como u m chefe de ideias maduras.
Mas o espírito da profundeza ensinou-m e que sou u m servidor e servidor de um a
criança. Est a palavra repugnou-me e eu a odiei. Mas tive de reconhecer e adm itir que
m in h a alm a é um a criança e que m eu Deus é u m a criança em m in h a alm a 57.

Se sois rapazes, então vosso Deus é uma m ulher.


Se sois m ulheres, então vosso Deus éum rapaz.

* N ã o se t r a t a aq u i d o a r q u é t ip o d o si-m e sm o qu e só ser ia d efin id o p o st e r io r m e n t e p o r Ju n g. De sd e cr ian ça,


Ju n g est eve in t r igad o co m m an ifest açõ es de u m "o u t r o e u " in t e r io r qu e n ã o o ego con scien t e. Co n f. seus
d iálo go s co m a p ed r a, e m Memórias, p. 4 9 . En t r e t a n t o , o co n ceit o t eó r ico d o a r q u é t ip o d o si-m e sm o é
p o st er io r ao Livro Vermelho ( N o t a d o P r o f - D r . W a lt e r Bo e ch a t ) .
57 N o se m in á r io de 1925, Ju n g a n o t o u a r esp eit o de seus p en sam en t os n essa ép oca: "Est a s id eias sobre anim a
e anim us le va r a m -m e a ad en t r ar a in d a m ais n os p r ob lem as sen t id os su p r em os, e m ais coisas aflo r ar am p a r a
r eexam e. Ne ssa ép oca, e u con cor d ava co m o p r in cíp io k a n t ia n o de qu e e xist ia m coisas qu e n u n ca p o d e r ia m
ser r esolvid as e qu e, p or t an t o, n ã o se d e ve r ia esp ecu lar sobre elas, m as m e p ar ecia qu e, se e u p u d esse
e n co n t r a r essas id eias p recisas sobre a anim a, va lia b e m a p en a t e n t a r fo r m u la r u m a co n ce p çã o de D e u s. Mas
n ão con segu i ch egar a n a d a de sat isfat ór io e p en sei, p o r algu m t em p o, qu e t alvez a figu r a d a anim a fosse a
d ivin d ad e. E u d isse a m i m m esm o qu e t alvez os h o m en s t ivessem o r igin a r ia m e n t e u m D e u s fe m in in o ; m as,
can san d o-se de ser govern ad os pelas m u lh er es, d e r r u b a r a m est e De u s. Pu s p r a t ica m e n t e t od o o p r o b le m a
sen t id o su p r em o n a anim a e co n ce b i-a co m o o esp ír it o d o m in a n t e d a p siqu e. D e st a fo r m a , t r a ve i u m a
d iscu ssão p sicológica com igo m esm o acer ca d o p r o b le m a de D e u s " (introductíon to Jungian Psychology, p. 50 ) .
ALM A E D EU S 123

Se sois hom ens, então vosso Deus é um a m oça.


Deus está onde vós não estais.
Portanto: é sábio que se tenha um Deus. Isto serve para vossa perfeição.
Um a m oça éfuturo parturiente.
Um rapaz éfuturo gerativo.
Um a m ulher é: ter parido.
Um hom em é: ter gerado.
Portanto: se sois crianças enquanto seres atuais, então vosso Deus descerá da altura da m aturidade
para a velhice e a m orte.
Mas se sois seres adultos que geraram ou pariram , seja no corpo ou no espírito, então vosso Deus
subirá de um berço radioso para a altura incom ensurável do futuro, para a m aturidade e plenitude do
tem po que há de vir.
Quem ainda tem sua vida diante de si é um a criança.
Quem vive sua vida no presente é adulto.
Se vós, portanto, viveis tudo o que podeis viver, sois adultos.
Quem é criança nesta época, para este Deus m orre. Quem nesta época é adulto, para este Deus
continua vivendo.
Este m istério quem o ensinou foi o espírito da profundeza.
Feliz e infeliz daquele cujo Deus é adulto!
Feliz e infeliz daquele cujo Deus é um a criança!
O que é m elhor: que a pessoa tenha vida diante de si, ou que Deus tenha vida diante de si>
Não sei responder. Vivei; o inevitável decide.
O espírito da profundeza m e ensinou que m inha vida está abrangida pela criança divina58. De sua
m ão m e veio todo o inesperado, todo o vivo.

Esta criança éoque sinto em m im com o a juventude eternam ente borbulhante59.

Na pessoa infantil tu sentes a transitoriedade sem esperança. Eudo o que vês passando, para ela é

ainda porvir. Seu futuro é cheio de transitoriedade.

58 E m 19 4 0 , Ju n g ap r esen t o u u m est u d o d o m o t ivo d a cr ia n ça d ivin a , n u m vo lu m e e m co la b o r a çã o c o m o


classicist a h ú n ga r o Ka r l Ke r é n yi, A criança divina (cf. "A p sico lo gia d o a r q u é t ip o d a cr ian ça". O C , 9/ 1). Ju n g
escr eveu qu e o m o t ivo d a cr ia n ça o co r r e fr e q u e n t e m e n t e n o p r ocesso d e in d ivid u ação . El e n ã o r ep r esen t a
a in fân cia lit e r a l d o in d ivíd u o , co m o se e n fa t iz a p o r su a n a t u r e z a m it o ló gica . Co m p e n s a a u n ila t e r a lid a d e
d a co n sciê n cia e p r e p a r a o t e r r e n o p a r a o fu t u r o d e se n vo lvim e n t o d a p er son alid ad e. E m d e t e r m in a d a s
co n d içõ e s d e con flit o, a p siq u e in co n scie n t e p r o d u z u m sím b o lo qu e u n e os op ost os. A cr ia n ça é esse
sím b o lo . E l a a n t ecip a o si-m e sm o , qu e é p r o d u z id o m e d ia n t e a sín t ese d os elem en t o s con scien t es
e in co n scie n t e s d a p er so n alid ad e. As fat alid ad es t íp icas qu e so b r e vê m à cr ia n ça in d ica m o t ip o d e
a co n t e cim e n t o s p síq u ico s qu e a co m p a n h a m a gén ese d o si-m e sm o . O n a scim e n t o m a r a vilh o so d a cr ian ça
in d ica qu e ist o acon t ece p siq u ica m e n t e , e m co n t r a p o siçã o a fisicam en t e.
59 E m 19 4 0 , Ju n g escreveu : " U m asp ect o fu n d a m e n t a l d o m o t ivo d a cr ian ça é o seu car át er d e fu t u ro. A
cr ian ça é o fu t u r o e m p o t e n cia l" ( "A p sico lo gia d o a r q u é t ip o d a cr ian ça". O C , 9/ 1, § 278 ) .
124 LI BERP RI M U S foi.ii(r)/ íi(v)

Mas a transitoriedade de tuas coisas que estão chegando nunca experim entou ainda um sentido

hum ano.

Tua continuidade de vida é viver para o além . Tu geras e dás à luz o porvir, tu és fecundo, tu vives

para o além .

O infantil é estéril, seu porvir eo já gerado e novam ente m urchado. Não vive para o além 60.

Me u De us é um a criança; não vos adm ireis, pois, que o espírito dessa época
se revolte e m deboche e zom baria. Ninguém vai rir de m im assim com o e u rio
de m im .
Vosso De us não deve ser um ho m e m do deboche, mas vós mesmos sereis
homens do deboche. Vó s deveis caçoar de vós mesmos e vos revoltar co ntra
isso. Se ainda não o aprendestes dos velhos livros sagrados, ide, bebei o sangue
e co m e i o corpo do e scarn e cido 61 e torturado por causa de nossos pecados, para
que vos torneis totalmente sua natureza, negando seu estar-fo ra de vós, deveis
ser ele mesmo, não chrístíaní, mas Christí, caso contrário não servireis para o De us
que virá.
Haverá algum entre vós que acredita poder poupar-se o cam inho? Poder
e xim ir-se astuciosamente do sofrimento de Cristo ? Eu digo: este se ilude para
seu próprio prejuízo. Ele se de ita sobre pregos e fogo. D o cam inho de Cris to
ninguém pode ser poupado, pois este cam inho conduz ao que virá. Vó s todos
deveis to rnar-vo s Cri s t o s 6 2 .
Vó s não superareis a velha do utrina fazendo menos, mas fazendo mais.
Cada passo para mais perto de m in ha alma estim ula o riso de deboche de meus
demónios, aqueles bisbilhoteiros e envenenadores covardes. Para eles e ra fácil
zombar, pois e u tinha coisas estranhas a fazer.

6 0 O esboço co ntínua: "Me u s am igo s, ve de s que a graça e stá c o m o s adulto s, n ão c o m o in fan til. Agrad e ço
a m e u D e u s e sta m e n sage m . N ã o vo s de ixe is ilu d ir pe la d o u t ri n a d o cris tian is m o ! Su a d o u t ri n a é bo a
para o s e spírito s m adu ro s d o te m po antigo . H o je to rn o u -s e bo a para o s e spírito s im aturo s. Para n ó s, o
cris tian is m o já não é u m a m e n sage m po rtad o ra de graça, e as s im m e s m o pre cisam o s d a graça. Is to que vo s
digo é u m cam i n h o d o po rvir, m e u cam i n h o para a graça" (p. 27) .
61 Is to é, Cri s t o . Cf . Jun g, "O sím bo lo d a tran sfo rm ação n a m i s s a" (1942. O C , 11/ 3).
62 Em "Re s p o s t a a Jó ", Jun g o bse rvo u: "Co m a inabitação d a te rce ira pe sso a d ivin a, isto é, d o Espírito San to
n o h o m e m , o pe ra-s e u m a cristifícação d e m u i t o s " (1952. O C , n , § 758) .
S O BR E O SE RVI Ç O D A A L M A 125

So b r e o se r viço d a a lm a
[IH i i ( v) ]
Cap. iii.

63
N a no ite seguinte, tive de escrever, fiel a seu teor original, todos os sonhos
de que me le m brava 64 . O sentido desse procedim ento e ra obscuro para m im .
Por que tudo isso? Perdoa o barulho que se levanta em m im . Tu queres que eu
faça isto. Q u e coisas estranhas me dize m respeito? Sei demais para não ve r que
ando sobre um a ponte oscilante. Para onde levas? Perdoa m e u medo repleto
de saber. Meus pés vacilam e m seguir-te. Para que névoa e escuridão co nduz
tua vereda? Te nho de aprender também a perder o sentido? Se tu o exiges, que
assim seja. Es ta ho ra te pertence. O que existe, onde não há sentido algum? Só
tolice e lo ucura, assim me parece. Será que existe também um sentido supre -
mo? Isto é teu sentido, m inha alma? Eu coxeio atrás de ti, apoiado e m muletas da
razão. Eu sou um ho m e m e tu andas como um De us. Q u e tortura! Preciso voltar
a m im , para minhas coisas mínimas. Eu via como pequenas as coisas de m inha
alma, lamentavelmente pequenas. Tu me obrigas a vê-las grandes, fazê-las gran-
des. É esta tua intenção? Eu vo u atrás, mas tenho pavor. Escuta m in h a dúvida,
caso contrário não posso ir atrás, pois teu sentido é um sentido supremo e teus
passos são passos de u m De us.

Eu entendo, também não devo pensar; também o pensar não deve existir
mais? De vo entregar-m e totalmente em tuas mãos — mas quem és tu? Não
confio e m ti — n e m sequer confiança tenho — é isto m e u amor po r ti, m in ha
alegria e m ti? Co n fio e m qualquer pessoa honrada, mas e m ti não, m in h a alma?
Tua mão pesa sobre m im , mas e u quero, e u quero. Não te nte i amar pessoas e
confiar nelas e não devo fazê-lo contigo? Esquece m in h a dúvida, e u se i, é de -
selegante duvidar de ti. Tu sabes que posso deixar pesadamente o orgulho de
mendigo sobre o próprio pensar. Eu esquecia que também tu pertences a meus
amigos e que tens o prim e iro dire ito à m inha confiança. O que do u àqueles não
deve pertencer a ti? Eu reconheço m in ha injustiça. Eu te desprezava, ao que me
parece. Min h a alegria e m reencontrá-la e ra falsa. Reconheço que também a
zo m baria tin ha razão e m m im .

63 15 d e n o ve m bro d e 1913.
6 4 N o Livro Negro 2, Ju n g e s cre ve u aqu i d o is so n h o s-pivô , qu an d o e le t i n h a 19 an o s de idade , qu e o le varam a
vo lt ar-s e para as ciê n cias n aturais (p. 13S.) e qu e são de scrito s e m Mem órias (p. n $s s . )
126 L I B E R P R I M U S foi. ii( r ) / iii( v)

Preciso apren der a am ar -t e 6 5 . Devo aban don ar t am bém a auto avaliação? E u


t en h o medo. En t ão a alm a falou-m e e disse: "Est e m edo d epõe con t ra t i". E
verdade, ele d epõe con t ra ti. Ele m at a a sagrada con fian ça en t re t i e m im .

[ 2] Que dureza de destino! Quando vos dirigis à vossa alm a, ireis sentirfalta logo de im ediato de

sentido. Acreditais que estais aprendendo no sem sentido, no eterno desordenado. Tendes razão! Nada

vos redim e do desordenado e insensato, pois esta éa outra m etade do m undo.

Vosso Deus é uma criança, na m edida em que nãofordes infantis. A criança é ordem , sentido? Ou

desordem , capricho? Desordem e insensatez são as m ães da ordem e do sentido. Ordem e sentido são

feitos e não a se fazer.

Vós abris aporta da alm apara deixar entrar em vossa ordem e em vosso sentido as torrentes escuras

do caos. Misturai ao ordenado o caos, e gerareis a criança divina, o sentido suprem o além do sentido e

do absurdo.

Vós tem eis abrir aporta? Tam bém eu tenho m edo, pois esquecem os que o Deus é terrível. Cristo

ensinou: Deus é am or66. Mas deveis saber que tam bém o am or é terrível.

Eu falava a uma alm a am orosa e, quando cheguei m ais perto, fui acom etido de pavor e ajuntei um

m onte de dúvidas e não im aginava que quisesse com isso proteger-m e de m inha terrível alm a.

Tendes pavor da profundeza; deve causar-vos pavor, por sobre isso passa o cam inho daquele que

vem . Tu deves resistir à tentação do m edo e da dúvida e nisso reconhecer até o sangue que teu m edo éjus-

foi. ii( r ) tificado e tua dúvida, razoável. Senão, / com o seria uma verdadeira tentação e uma verdadeira vitória?

Cristo venceu a tentação do dem ónio, mas não a tentação de Deus para o bem e o razoável67. Cristo

está pois subm etido à tentação68.

65 N o Livro Negro 2, Ju n g o b se r vo u aq u i: "Aq u i est á algu ém ao m e u lad o e m e co ch ich a algo d e r u i m n o


o u vid o : ' T u escreves p a r a ser im p r esso e ser d ivu lgad o às pessoas. Q u e r e s p r o vo car sen sação at r avés d o
in c o m u m . N ie t z sch e , p o r é m , o fez m e lh o r d o q u e t u . T u im it a s San t o Ago s t in h o ' " (p . 2 0 ) . A r efer ên cia é
às Confissões, d e San t o Ago st in h o ( 4 0 0 d . C ) , u m a o b r a d e vo cio n a l q u e escr eveu q u an d o t in h a 45 an os d e
id ad e, n a q u al n a r r a su a co n ve r sã o ao cr ist ia n ism o n u m a fo r m a au t o b io gr áfica (Confissões. O xfo r d : O xfo r d
U n ive r s it y Press, 19 9 1 [Tr a d . d e H . Ch a d w i c k ] ) . As Confissões são d ir igid as a D e u s, e r e co r d a m os an os d e
seu d esgar r am en t o d e D e u s e a m a n e ir a d e se u r et o r n o . Fa z e n d o eco a isso, n as seções d e a b e r t u r a d o Liber
Novus, Ju n g d ir ige-se à su a a lm a e r e co r d a os an os d e se u d esgar r am en t o d ela, e a m a n e ir a d e se u r et o r n o .
E m suas ob ras p u b licad as, Ju n g cit a vár ias vezes Ago st in h o e se refere fr e q u e n t e m e n t e às Confissões, e m
Transform ações e sím bolos da libido.
66 A P r i m e i r a Ep íst o la d e Jo ã o : "D e u s é am or , e q u e m p er m a n ece n o a m o r p er m a n ece e m D e u s , e D e u s
n e le " ( 1J0 4 J6 ) .
6 7 Cr i s t o fo i t en t ad o p elo d e m ó n io d u r a n t e q u a r e n t a d ias n o d eser t o ( Lc 4,1-13).
68 M t 21,18-20: "Ao vo lt a r à cid ad e d e m a n h ã ced o, se n t iu fom e. V i u u m a figu eir a p er t o d o ca m in h o ,
foi at é ela, m as n ã o a ch o u n a d a a n ã o ser folh as. En t ã o lh e d isse: 'Jam ais n asça fr u t o d e t i'. E a figu eir a
secou im e d ia t a m e n t e . Ve n d o isso, os d iscíp u lo s se a d m ir a r a m e d isser am : ' Co m o a figu eir a secou d e
r ep en t e!'" ( 21,18 - 20 ) . O evan gelh o segu n d o Ma r co s co n t a: "N o d i a segu in t e, ao saír em d e Be t â n ia , Jesu s
se n t iu fom e. V i u d e lon ge u m a figu eir a co b e r t a d e folh as e fo i ve r se e n co n t r a va algu m a coisa. Ma s n a d a
e n co n t r o u a n ã o ser folh as, p ois n ã o e r a t e m p o d e figos. D isse , en t ã o , à figu eir a: 'Jam ais algu ém co m a fr u t o
SO BR E O SERVI Ç O D A A L M A 127

Isto ainda tendes de aprender: não ficar subm etido a nenhum a tentação, m as fazer tudo voluntaria-

m ente; então estareis livres e além do cristianism o.

Tive de reconhecer que era obrigado a m e subm eter àquilo que eu tem ia, e m ais, que devo inclusive

am ar aquilo de que tinha pavor. Isto tem os de aprender daquele santo que, ao sentir nojo dos doentes da

peste, tom ava o pus de suas feridas e notava que tinha um odor com o o das rosas. As ações dos santos não

eram em vão69.

Tu és dependente de tua alm a em todas as coisas que se referem à tua salvação e à obtenção da graça.

Por isso nenhum sacrifício pode ser pesado dem ais para ti. Se tuas virtudes te estorvam na salvação,

livra-te delas, pois se tornaram um m al para ti. Tanto o escravo da virtude quanto o escravo do vício não

encontram o cam inho70.

Se achas que és o senhor de tua alm a, torna-te seu servo; se fores seu servo, assum e o poder sobre ela,

pois então ela precisa de dom ínio. Que estes sejam teus prim eiros passos.

Dor avan t e, d u ran t e seis n oit es, o esp írit o d a p rofu n d eza se calou e m m im ,

pois eu oscilava en t re m edo, t eim osia e n ojo e er a t ot alm en t e refém de m in h a

paixão. N ã o p od ia n e m q u eria escu t ar a profu n d eza. Mas n a sét im a n oit e, o

esp írit o d a p rofu n d eza m e falou: "O l h a p ara t u a profu n d eza, r eza p ara t u a p r o -

fu n d eza, d espert a os m o r t o s"71.

Mas fiq u ei desam parado e n ão sabia o que fazer. E u olh ei p ara d en t ro de

m im e a ú n ica coisa que lá en con t r ei foi a lem b ran ça de an t igos son h os, que

an ot ei fielm en t e, n ão saben do p ara que ist o ser vir ia. E u q u er ia jogar t u d o fora

e volt ar p ara a lu z d o d ia. Mas o esp írit o m e segurou e m e obrigou a volt ar p ara

d en t ro de m im .

de t i'. E seus d iscíp u lo s o u vir a m ist o " (11,12-14). E m !944> Ju n g escr eveu : " O Cr i s t o - m e u Cr i s t o - n ã o
con h ece n e n h u m a fó r m u la d e m ald ição . Ta m b é m n ã o a p r o va a m a ld içã o d a in o ce n t e figu eir a p elo r a b i
Jesu s". "P o r q u e n ã o ad ot o a Ve r d a d e cat ó lica'?" ( O C , 18, § 1.4 6 8 ) .
6 9 O esboço co n t in u a : "Ele s p o d e m se r vir p a r a vossa r e d e n çã o " (p . 34 ) .
70 Em Assim falava Zaratustra, N ie t z sch e escr eveu : " E m e sm o q u e se t ivessem t od as as vir t u d e s, u m a , p elo
m en o s, d e ve r - se - ia d e t er: m a n d a r d o r m ir a t e m p o as p r ó p r ia s vir t u d e s". "D a s cát ed r as d a vir t u d e "
(Pet r ó p o lis: Vo z e s, 20 0 7, p. 4 4 ) . E m 1939, Ju n g co m e n t o u o co n ce it o o r ie n t a l d e lib e r t a çã o d as vir t u d e s e
vício s e m "Co m e n t á r i o ao livr o t ib et an o d a gr an d e lib e r t a çã o " ( O C , I I , § 8 2 6 ) .
71 E m 22 d e n o ve m b r o d e 1913. N o Livro Negro 2 est á escr it o: "d iz u m a vo z " (p . 22) . E m 21 d e n o ve m b r o , Ju n g
h a via feit o u m a a p r e se n t a çã o à Socied ad e Psican alít ica d e Zu r iq u e d e "Fo r m u lie r u n ge n z u r Psych ologie
des U n b e w u s s t e n " ( Fo r m u la çõ e s à p sico lo gia d o in co n scie n t e ) .
128 LI BERP RI M U S foi.ii(r)/ iii(v)

O d e se r t o
[ I H i i i ( r) ] .
Cap . iv.

72
Se xt a noite. Min h a alm a leva-m e ao deserto, ao deserto de m e u próprio
si-m esm o . Não pensava que m e u si-m e sm o fosse um deserto, um deserto seco
e quente, poeirento e sem bebida. A viagem co nduz através da are ia quente,
vadeando lentam ente, sem objetivo visível de esperança. Co m o é horrível este
deserto! Parece-m e que o cam inho leva bem longe das pessoas. An d o m e u ca-
m inho passo a passo e não sei quanto tempo vai durar m inha viagem.
Por que é um deserto m e u si-m e sm o ? Será que vivi po r demais fora de m im ,
nas pessoas e nas coisas? Por que evitei m e u si-m esm o ? Eu não me e ra caro?
Mas e u evitei o lugar de m in h a alma. Eu e ra meus pensamentos, depois que
não e ra mais as coisas e as outras pessoas. Mas e u era o m e u si-m esm o , co lo ca-
do diante de meus pensamentos. Eu devo também elevar-m e acim a de meus
pensamentos ao enco ntro de m e u próprio si-m esm o . Para lá vai m in h a viagem
e, po r isso, ela co nduz para longe das pessoas e das coisas, à solidão. Isto é so li-
dão, estar consigo mesmo? Solidão só quando o si-m e sm o é um de se rto 73. De vo
fazer do deserto um jardim ? De vo povoar um país deserto? De vo abrir o jardim
encantado do deserto? O que me leva para o deserto, e o que devo fazer lá?
Existe um a ilusão de que não posso mais confiar ao m e u pensamento? Ve rdade i-
ra é apenas a vida, e tão só a vida me leva ao deserto, realmente não m e u pensar
que gostaria de voltar para as pessoas, para as coisas, pois lhe é sinistro estar no
deserto. Min ha alma, o que devo fazer aqui? Mas a m inha alma falou-me e disse:
"Espe ra". Eu escuto a terrível palavra. Ao deserto pertence a d o r 74 .
Pelo fato de e u dar à m in ha alm a tudo o que po dia dar, cheguei ao lugar da
alm a e descobri que este lugar era um deserto quente, seco e estéril. Ne n h um a
cultura do espírito é suficiente para fazer de tua alma um jardim . Eu cuide i de

72 28 de n o ve m bro de 1913.
73 Livro Negro 2: "Eu e scuto as palavras: 'U m an aco re ta e m s e u pró prio d e s e rto 5. Vê m - m e à m e n te o s m o n ge s
d o de se rto sírio " (p. 33).
74 Livro Negro 2: "Pe n s o n o cris tian is m o n o de se rto . Aqu e le s an tigo s i am e xte rio rm e n te para o d e s e rt a Ia m
tam bé m para o de se rto de s e u pró prio s i -m e s m o ? O u s e u s i -m e s m o n ão e ra tão se co e árido qu an to o
m e u ? Lá lu tavam co m o de m ó n io . Eu lu to co m o e spe rar. Ac h o qu e n ão é m e n o r m i n h a lu ta, po is e la é n a
ve rdade u m in fe rn o qu e n t e " (p. 35).
O D ESERT O 129

m e u espírito, do espírito dessa época e m m im , mas não daquele espírito da pro -


fundeza, que se vo lta para as coisas da alma, do m undo da alma. A alm a tem seu
m undo que lhe é próprio. Ne le só e ntra o si-m esm o , o u a pessoa que se to rno u
totalmente seu si-m esm o , que, portanto, não está nas coisas, ne m nas pessoas
e ne m e m seus pensamentos. Afastando m e u desejo das coisas e das pessoas,
afastei m e u si-m e sm o das coisas e das pessoas, mas foi precisamente assim que
me to rne i presa fácil de meus pensamentos, sim e u me transform ei totalmente
em meus pensamentos.

[ 2 ] Também de meus pensamentos tive de me separar, desviando deles m e u


desejo veemente. E imediatamente percebi que m e u si-m e sm o se transformava
e m deserto, onde somente brilhava o so l dos desejos não satisfeitos. Eu fora
vencido pela esterilidade infinita desse deserto. E como po deria lá florescer
alguma coisa, se faltava a força criado ra do desejo? On d e existe a força criado ra
do desejo, ali bro ta do chão a semente que lhe é própria. Mas não te esqueças de
esperar. Nã o viste com o tua força criado ra se vo lto u para o mundo, como de -
baixo dela e através dela se m o vim entaram as coisas mortas, como cresceram e
floresceram e como teus pensamentos fluíram em ricas torrentes? Se tua força
criado ra se voltar agora para o lugar da alma, verás como tua alma vai reverde-
cer e com o seu campo produzirá frutos maravilhosos.
Ningué m pode furtar-se ao esperar, e a m aio ria não conseguirá supo rtar
esse torm ento, mas se lançarão o utra vez co m gula sobre as coisas, pessoas e
pensam entos, cujos escravos se tornarão a partir desse momento. Pois então
ficou claro que esta pessoa é incapaz de perseverar além das coisas, pessoas e
pensamentos e, po r isso, to rnam -se seus senhores, e e la se tornará seu bufão,
pois não pode ficar se m eles, n e m mesmo o tempo necessário para que sua
alm a se te nha tornado um cam po produtivo. Também aquele cuja alm a é um
jardim pre cisa das coisas, pessoas e pensam entos, mas ele é seu amigo e não
seu escravo e bufão.
Todo o futuro já existia na imagem: para enco ntrar sua alma, os antigos iam
para o de se rto 75. Isto é um a imagem. O s antigos viviam seus símbolos, pois para

75 Po r vo lta d e 28$ d . C , San to An t ã o fo i vive r co m o e re m i t a n o de se rto d o Egito , e o u tro s e re m itas o


s e gu iram , o s quais e le e Pacô m io o rgan iz aram e m co m u n id ad e . Is to co n s t i t u i a base d o m o n acato cristão ,
que se e s palh o u pe lo s de se rto s d a Pale s tin a e d a Síria. N o sé culo I V h avia m ilh are s de m o n ge s n o de se rto
d o Egito .
130 L I B E R P R I M U S foi. i i ( r ) / i i i ( v)

eles o m u n d o ain d a n ão se t orn ara real. Por isso iam para a solidão do deserto,
para en sin ar-n os que o lugar da alm a é deserto solit ário. Lá en con t ravam a
plen it u d e das visões, os frutos do deserto, as flores m aravilh osas e sin gulares da
alm a. Pen sa diligen t em en t e nas im agens que os antigos nos legaram . Elas m os-
t ram o cam in h o daquele que vem . O lh a para trás para a ru ín a dos ricos, para o
crescim en t o e a m ort e, para o deserto e os m ost eiros, são as im agens daquele
que vem . Tu d o está predito. Mas qu em sabe in t erpret á-lo?
Se dizes que o lugar da alm a n ão exist e, en t ão ele n ão existe. Mas se dizes
que ele exist e, en t ão ele existe. O b serva o que d iziam os antigos n a im agem : a
palavra é ato criador. O s antigos d iziam : n o prin cípio era a p alavr a 76 . Con sid er a
ist o e m ed it a n ele.
As palavras que oscilam en t re a t olice e o sen t ido suprem o são as m ais a n -
tigas e as m ais verdadeiras.

Exp e r iê n c ia s n o d e se r t o
[ I H iii( r ) 2 ]

77
Ap ó s duro com bate cheguei a u m ped aço de cam in h o m ais pert o de t i.
Co m o foi d u ra esta batalh a! En t r e i n u m m atagal de dúvida, con fusão e riso
irón ico. Recon h eço que devo ficar sozin h o com m in h a alm a. Eu ven h o de m ãos
vazias a t i, m in h a alm a. O que t u queres ou vir? Mas a alm a m e falou e disse:
"Q u an d o você vem a u m amigo, você vem para t irar?" Eu sei, n ão d evia ser as-
sim, mas parece-m e que sou pobre e vazio. Eu gostaria de sen t ar-m e pert o de
t i e sen t ir ao m en os o h álit o de t u a presen ça vivificad ora. Me u cam in h o é areia
quen te. Du r an t e todos os dias, estradas areen tas, poeiren t as. Min h a paciên cia
é às vezes pouca e u m a vez fiqu ei desesperado comigo, com o t u sabes.
Resp on d eu en t ão a alm a e falou: "T u falas com igo com o se fosses u m a
crian ça que se qu eixa à sua m ãe. N ã o sou t u a m ãe". N ã o quero qu eixar-m e,
mas p erm it e d izer-t e que m in h a est rada é lon ga e ch eia de poeira. T u és para
m im com o u m a árvore que dá som bra n o deserto. Go st ar ia de u su fru ir de t u a

76 Jo 1,1: "N o p r in cíp io e r a a Palavr a, e a Palavr a est ava c o m D e u s , e a Palavr a e r a D e u s".


77 11 de d e z e m b r o de 1913.
E XP E R I Ê N C I AS N O D E S E R T O 131

som bra. Mas a alm a respon deu: "T u és u m am an t e do prazer. O n d e est á t u a


paciên cia? Te u t em po ain d a n ão acabou. Esquecest e por que foste ao desert o?"
Min h a fé é fraca, m in h a face est á cega por causa do b r ilh o ofuscante do sol
do deserto. O calor pesa sobre m im com o ch um bo. A sede m e at orm en t a, e eu
n ão ouso im agin ar a duração in fin d a de m eu cam in h o e, sobretudo, n ão vejo
perspect iva dian t e de m im . Mas a alm a respon deu: "Falas com o se ain d a n ão
tivesses apren dido n ada. N ã o podes esperar? Tu d o deve cair m aduro e acabado
em t eu colo? T u estás ch eio, sim , regurgitas de in t en ções e desejos! N ã o sabes
ain d a que o cam in h o para a verdade só está aberto para os sem in t en ção?"
Eu sei, m in h a alm a, que tudo o que dizes é t am bém m eu pen sam en to. Mas
pouco vivo de acordo com isso. A alm a disse: "Com o, d iz-m e, pensas t u que
teus pen sam en tos d everiam aju dá-lo? Eu gost aria de referir-m e sem pre ao fato
de ser u m h om em , só u m ser h u m an o, que é fraco e que às vezes n ão faz o seu
m elh or. Mas a alm a falou: "Pen sas assim do ser pessoa h u m an a?" T u és d u ra,
m in h a alm a, mas ten s razão. Q u ão pouco jeit osos somos com a vid a! Dever ía-
m os crescer com o u m a árvore, que t am bém desconhece sua lei. N ó s nos am ar-
ram os com in t en ções, n ão lem brados de que a in t en ção é lim it ação e m esm o
exclusão da vid a. Acred it am os que com u m a in t en ção podem os ilu m in ar u m a
escuridão, e assim apon tam os para longe da lu z 7 8 . Co m o podem os ilu d ir -n os e
querer saber de an t em ão don de virá para n ós a luz?
Perm it e que te apresente apenas u m a queixa: eu sofro de riso irón ico, de
m eu p róp rio riso irón ico. Mas a alm a m e falou: "T u te m en osprezas?" Ach o que
não. A alm a respon deu: "En t ão escuta, t u m e m en osprezas? Ain d a n ão sabes
que n ão escreves u m livro para alim en t ar t u a vaidade, mas para que fales co-
migo? Co m o podes sofrer de riso irón ico, se falas com igo com as palavras que
eu lh e dou? Sabes ao m en os qu em eu sou? T u m e cercaste, lim it ast e e reduzist e
a u m a fórm u la m ort a? Medist e a profun didade de m eu abism o e pesquisas-
te todos os cam in h os para os quais ain d a te levarei? Ne n h u m sorriso irón ico
pode afetar-te a n ão ser que sejas presu n çoso até a m ed u la de teus ossos". Tu a
verdade é d u ra. Gost ar ia de en t regar-t e m in h a vaidade, pois ela m e ofusca. Vê ,

78 N o Co m e n t á r io de " O segred o d a flor d e o u r o " ( 19 29 ) , Ju n g cr it ico u a t e n d ê n cia o cid e n t a l de t r a n sfo r m a r


t u d o e m m é t o d o s e in t en çõ es. A lição m ais im p o r t a n t e , co n fo r m e os t ext os ch in eses e co n fo r m e o Me st r e
Eck h a r t , e r a d e ixa r qu e os aco n t ecim en t o s p síq u ico s acon t ecessem esp on t an eam en t e: " O d eixar -acon t ecer ,
o Sich-lassen, n a exp r essão de Me st r e Eck h a r t , a ação d a n ão ação fo i, p ar a m i m , u m a ch ave qu e a b r iu a p o r t a
p ar a e n t r a r n o ca m in h o : d evem os d e ixa r as coisas aco n t ecer em p siq u ica m e n t e " ( O C , 13, § 2 0 ) .
132 LI BE R P RI M U S fo i. i i i ( r) / i i i ( v)

fo i po r isso também que pe nse i que m inhas mãos estavam vazias quan do ho je
cheguei a ti. Não pe nse i que és tu que enches as mãos vazias, se elas apenas q u i -
se re m se estender, mas elas não o que re m . Não sabia que e u e ra te u re cipie nte ,
vazio se m ti, mas transbo rdante contigo.

[ 2 ] Isto e ra a m in h a 2 5 A no ite do deserto. Fo i todo este tem po que m in h a


alm a pre ciso u até te r despertado da vida de so m bra para a própria vida e te r
po dido vir ao m e u e nco ntro co m o ser separado. E e u re ce bi duras palavras dela,
mas salutares. Eu precisava ser educado, po is não conseguia ve n ce r o so rriso
iró nico de ntro de m im .
O espírito dessa época julga-se, com o todos os espíritos da época em todos os tem pos, sobrem anei-
ra esperto. Mas a sabedoria é sim ples, não só m odesta. Por isso, o esperto zom ba da sabedoria, pois a
zom baria ésua arm a. Ele usa a arm a afiada e envenenada, porque foi ferido pela sabedoria sim ples. Se
não tivesse sido ferido, não precisaria da arm a. Som ente no deserto com preendem os nossa assom brosa
fo i. iií(r) sim plicidade, m as tem os m edo de reconhecê-la. Por isso rim os dela. Mas a zom baria / não atinge a sim -
plicidade. A zom baria cai sobre o zom bador, e no deserto, onde ninguém escuta e responde,fica asfixiado
em seu próprio riso irónico.

Quanto m ais esperto fores, m ais tola é tua sim plicidade. Os totalm ente espertos são totalm ente tolos
em sua sim plicidade. Não podem os Ubertar-nos da esperteza do espírito dessa época aum entando nós
m esm os nossa esperteza, m as aceitar aquilo que m ais repugna à nossa esperteza, isto é, a sim plicidade.
Mas tam bém não querem os tornar-nos tolos artificiais sucum bindo à sim plicidade, m as ser tolos esper-
tos. Isto leva ao sentido suprem o. A esperteza em parelha com a intenção. A esperteza fascina o m undo,
a sim plicidade, porém , a alm a. Portanto fazei o voto de pobreza do espírito, para terdes parte na alm a79.

Contra isso levantou-se o riso irónico de m inha esperteza80. Muitos vão rir de m inha tolice. Mas
ninguém vai rir m ais do que eu m esm o já ri. Assim venci o riso irónico. Mas quando o tinha vencido,
estava m ais perto de m inha alm a, e ela podiafalar-m e, e logo pude ver que o deserto reverdeceu.

79 Cri s t o pregava: "Be m -ave n t u rad o s o s po bre s e m e spírito , po rqu e de le s é o re in o do s cé u s " ( Mt 5,3). N u m
ce rto n ú m e ro de co m u n id ad e s cristãs, o s m e m bro s faziam o vo to d a po bre za. Em 1934, Ju n g e scre ve u:
"D a m e s m a fo rm a que o vo to de po bre z a m ate rial, n o cristian ism o , afastava a m e n te do s be n s do m un do ,
a po bre z a e spiritu al re n u n cia às falsas rique zas d o e spírito , a fim de fugir não só do s m íse ro s re squício s de
u m gran de passado , que h o je se ch am a "Ig re ja" pro te stan te , m as tam bé m de to das as se duçõ e s d o pe rfum e
e xó tico , a fim de vo ltar a s i m e sm a, e m que à fria lu z d a co n sciê n cia, a de so lação d o m u n d o se e xpan de
até as e stre las". El e acre sce n ta que a ace itação do e stado de po bre z a e s piritu al e ra a ve rd ad e ira he ran ça do
pro te s tan tis m o ("So bre o s arqué tipo s d o in co n s cie n te co le tivo ". O C , 9/ 1, § 2 9 ) .
8 0 O esboço co n tin u a: "Tam b é m isto é u m a im ge m do s an tigo s de que eles viviam s im bo licam e n te nas co isas:
e le s re n u n ciavam à riqu e z a para, n a po bre z a vo lun tária, t o rn ar-s e participan te s de sua alm a. Po r isso tive
de co n fe ssar à m i n h a alm a m i n h a e xtre m a po bre za e n e ce ssidade . E co n t ra isso le van to u -s e o so rriso
iró n ico de m i n h a e s pe rte z a" (p. 4 7 ) .
D ESC I D A AO I N F E R N O N O F U T U R O 133

D e s c i d a ao in fe r n o n o fu t u r o
[IHiii(v)3
Cap . v.

81
Na no ite seguinte, o ar estava cheio de muitas vozes. U m a vo z forte gritou:
"Eu caio ". Outras gritavam confusas e excitadas: "Para onde? O que tu que -
res?" Eu devo co nfiar-m e a esta confusão? Eu estremeço. Isto é um a profundeza
horrível. Tu queres que eu me entregue ao arbítrio de m e u si-m esm o , à ilusão
da própria escuridão? Para onde? Para onde? Tu cais, quero cair contigo, quem
quer que sejas.
Então o espírito da profundeza abriu meus olhos, e e u observei as coisas
interio res, o m undo de m in ha alma, m ultiform e e mutável. [Im agem iii (v) I ]

Ve jo paredes de pedra sombrias, ao longo das quais desço a um a grande


pro fundidade 82 Esto u enterrado até os tornozelos num a sujeira preta diante de
um a gruta escura. Sombras pairam e m torno de m im . Assalta-m e o medo, mas
sei que devo entrar. Eu rastejo através de fendas rochosas e chego a um a gru-
ta interio r, cujo chão está coberto de água preta. Mas lá adiante enxergo um a
pedra co m brilho vermelho, que devo alcançar. Eu passo pela água lamacenta.
A caverna está che ia de um barulho ho rrendo de vozes aos grito s 83. Eu pego a
pedra; ela cobre um a abertura escura na rocha. Seguro a pedra na mão, olhando

81 12 de d e z e m bro de 1913. O esboço corrigido te m : I V O jo go do m isté rio . Pri m e i ra n o ite (p. 34) . Livro Negro 2
co n tin u a: "A lu t a do últim o te m po fo i a lu t a co n t ra o ris o iró nico . U m so n h o , que m e fo i pro po rcio n ad o
po r u m a n o ite de in só n ia e po r trê s dias de so frim e n to , co m p aro u -m e (do co m e ço ao fim ) ao farm acê utico
de Ch am o u n i x, de G. Ke lle r. Eu co n h e ço e re co n h e ço e ste e stilo . Ap re n d i que se de ve dar se u co ração
à pe sso a, o in te le cto , po ré m , ao e spírito d a h u m an id ad e , a D e u s . En tão s u a o bra po de e star alé m d a
vaidade , po is n ão e xiste pro s titu ta m ais h ipó crita do que o in te le cto , qu an do e le su bstitu i o co ração "
(p. 41). Go t t fri e d Ke l l e r ( 1819-1890 ) fo i u m e s crito r suíço . "D e r Ap o t h e k e r vo n Ch am o u n i x: Ei n Bu c h
Ro m a n z e n ". In : K E L L E R , G. Gesam m elt e Gedicht e: Erzãh lun ge n aus d e m Nach las s . Zu ri qu e , Árt e m i s Ve rlag,
1984, p- 351-417
82 O esboço co n tin u a: "D i a n t e de la e stava u m an ão to do de co uro , que guardava a e n t rad a" (p. 4 8 ) .
83 O esboço corrigido co n tin u a: "A pe dra pre cis a se r le van tada, é a pe d ra do to rm e n to , d a l u z ve rm e l h a" (p.
35). O esboço corrigido te m : "E u m cristal h e xago n al, que e m i t i a u m a lu z fria, ave rm e lh ad a" (p. 3$). Al b re ch t
D i e t e ri c h s itu a a apre se n tação d o s u bm u n d o e m As rãs, de Aris tó fan e s (que , n o e n t e n d im e n t o de le , é de
o rige m ó rfica), co m o te n do u m lago gran de e u m lugar co m co bras (Nekpa: Be itráge z u r Erklãrun g d e r
n e u e n td e ckte n Pe trusapo kalypse . Le ip z ig: Te u bn e r, 1983, p. 71). Ju n g s u b li n h o u esses m o tivo s e m s e u
e xe m plar. D i e t e ri c h faz re fe rê ncia à su a de scrição n o vam e n te n a p. 83, que Ju n g assin alo u à m arge m e
s u blin h o u "Fi n s t e rn i s u n d Sch l am m ". D i e t e ri c h tam bé m se re fe re a u m a re pre se n tação ó rfica de u m a
to rre n te de lo do n o s u bm u n d o (p. 81). N a lis ta de re fe rê ncias n o ve rso de se u e xe m plar, Ju n g an o to u "81
Sch l am m ".
134 L I B E R P R I M U S foi. iii(r)/ iii(v)

in t errogat ivam en t e ao m eu redor. N ã o quero prest ar at en ção nas vozes, elas


m e rep u gn am 8 4 . Mas eu quero saber. Aq u i algum a coisa deve t om ar a palavra.
Coloco m eu ouvido n a abert ura. O u ço o ru íd o forte de t orren t es su bt errân eas.
Vejo a cabeça san gren t a de u m a pessoa n a t orren t e escura. Est á boian do ali u m
ferido, u m assassinado. Con t em p lo lon gam en te esta im agem com h orror. Vejo
u m escaravelho grande e n egro an dan do n a t orren t e escura.
No m ais profun do da t orren t e b r ilh a u m sol averm elh ado, ilu m in an d o a
água escura. Vi en t ão — e o h or r or t om ou con t a de m im — u m em aran h ado de
cobras descendo pelas paredes escuras das pedras para a profun deza onde o sol
brilh ava com m aior intensidade. Milh ares de cobras rodearam e en cobriram o sol.
Fez-se noite completa. U m raio verm elho de sangue, sangue verm elho-escuro veio
à tona, jorrou longamente e depois secou. Eu estava paralisado de pavor. O que eu
via ? 8 5 [Im agem i i i ( v) 2 ]
Cu r a as feridas que a d ú vid a m e causa, m in h a alm a. Tam bém ist o deve ser
ven cido, para que eu con h eça t eu sen t ido suprem o. Co m o tudo est á longe, e
quão afastado estou! Meu espírit o é u m espírit o t ort u ran t e, ele d esped aça m i -
n h a visão in t erior, gost aria de desin tegrar e rasgar tudo. Ain d a sou vít im a de
m eu pensar. Q u an d o posso oferecer descanso ao m eu pensar, quan do m eus
pen sam en tos, aqueles cães danados, vão rast ejar a m eus pés? Co m o posso es-
perar algum a vez escutar em t om m ais alto t u a voz, ver m ais claram en t e tuas
m an ifest ações, se todos os m eus pen sam en tos u ivam em volt a de m im ?
Est ou perplexo, mas quero estar perplexo, pois ju r ei, m in h a alm a, con fiar
em t i, m esm o que m e con duzas através de ilusões. Co m o t orn ar-m e p ar t ici-

84 Livro Negro 2: "Es t e b u r aco escu r o - p a r a on d e leva, ist o e u q u er o saber, o qu e ele d iz ? U m o r ácu lo ? É est e
o lu gar d a Pít ia ?" (p . 4 3) .
85 Ju n g n a r r o u est e e p isó d io e m seu se m in á r io d e 1925, r e a lça n d o d iver sos d et alh es. Co m e n t o u qu e:
"Q u a n d o saí d a fan t asia, d e i- m e co n t a de qu e m e u m e ca n ism o h a via fu n cio n ad o às m i l m a r a vilh a s, m as e u
est ava m u it o con fu so q u an t o ao sen t id o d e t od as essas coisas qu e e u vir a . A lu z n a ca ve r n a de cr ist a l er a, a
m e u ver, co m o a p e d r a d a sab ed or ia. O assassin at o secr et o d o h e r ó i e u n ã o p u d e e n t e n d e r ab so lu t am en t e.
O escar avelh o e vid e n t e m e n t e e u r e co n h e ci q u e er a u m an t igo sím b o lo solar, e o sol p oen t e, o d isco
ve r m e lh o lu m in o so , e r a ar q u et íp ico . As ser p en t es p en sei qu e p o d ia m est ar ligad as a m a t e r ia l egíp cio.
N ã o p u d e d a r - m e co n t a e n t ã o de qu e t u d o e r a t ão a r q u e t íp ico qu e e u n ã o p r ecisava p r o cu r a r ligações.
Co n se gu i est ab elecer ligação e n t r e o q u ad r o e o m a r d e san gu e sob re o q u a l e u fan t asiar a a n t e r io r m e n t e . /
Em b o r a e u n ã o p u d esse n a o casião e n t e n d e r o sign ificad o d o h e r ó i assassin ad o, logo d ep ois t ive u m son h o
n o q u a l Siegfr ied e r a assassin ad o p o r m i m . E r a u m caso de d e st r u ir o id e a l d o h e r ó i de m i n h a eficiên cia.
Est e p r e cisa ser sacr ificad o a fim de se p o d er fazer u m a n o va a d a p t a çã o ; n u m a p alavr a, ist o est á ligad o
ao sacr ifício d a fu n ção su p e r io r a fim d e con segu ir a lib id o n ecessár ia p a r a a t iva r as fu n ções in fe r io r e s"
(introductíon to Jungian Psychology, p. 52s.). ( O assassin at o d e Siegfr ied o co r r e m a is ad ian t e, cap. 7) . Ju n g cit o u
t a m b é m a n o n im a m e n t e e d iscu t iu est a fan t asia e m su a p r e le çã o n a ETH a 14 de ju n h o de 1935 (Modem
Psychology. Vo l . 1 e 2, p. 223) .
D ESCI D A AO I N F ERN O N O F U T U R O 135

pan te de t eu sol, se n ão beber a am arga poção son ífera e n ão b eb ê-la até o fim ?
Aju d a-m e a n ão m e afogar n o p róp rio saber. A totalidade de m eu saber am eaça
cair sobre m im . Me u saber t em u m a m u lt id ão de falantes com voz de leão; o ar
t rem e quan do eles falam , e eu sou sua vít im a indefesa. Afast a de m im o esclare-
cim en t o in t eligen t e, a ciên cia 8 6 , aquele carcereiro m au que am arra as alm as e as
t ran ca em celas sem lu z. Mas prot ege-m e sobretudo da serpen te do ju lgam en -
to, que é u m a serpen te t erapêu t ica só d a superfície, mas em t u a profun deza é
ven en o in fer n al e m ort e cru el. Eu gost aria de descer para t u a profun deza com o
puro, com veste bran ca, e n ão chegar apressado com o u m ladrão, rou bar e fu -
gir sem fôlego. Deixa-m e perseverar n o assom bro d ivin o 8 7 , para estar p ron t o a
con t em plar tuas m aravilh as. Deixa-m e d eit ar m in h a cabeça sobre u m a pedra
dian t e de t u a port a, a fim de estar pron t o para receber t u a lu z.

[ 2 ] Q u an d o o deserto com eça a dar frut os, vai p rod u zir u m a veget ação es-
t ran h a. T u te julgarás louco e, em cert o sen tido, serás lo u co 8 8 . N a m ed id a em
que o crist ian ism o deste século sente falta da lou cu ra, sente falt a da vid a d ivin a.
O b servai p or que os antigos n os en sin aram em im agens: a lou cu ra é d ivin a 8 9 .

8 6 "A ciê n cia " est á apagad a n o esboço corrigido (p . 37) .


87 "Be m - a ve n t u r a d o " é su b st it u íd o n o esboço corrigido (p . 38 ) .
88 Es t a frase fo i su b st it u íd a n o esboço corrigido p or: "Cr e sce lo u c u r a " (p . 38 ) .
8 9 O t e m a d a lo u cu r a d ivin a t e m u m a lo n ga h ist ó r ia. Seu locus classícus fo i a d iscu ssão d e Só cr a t e s sob re
ela n o Fedro: a lo u cu r a , "d esd e qu e ve n h a co m o u m d o m d o céu , é o ca n a l at r avés d o q u a l r eceb em os as
m aio r es b ê n ç ã o s" ( P L A T Ã O . Phaedrus andLetters VII and VIII. Lo n d r e s: Pe n gu in , 19 8 6 , p. 4 6 , 24 4 [Tr a d . d e
W H a m i l t o n ] ) . Só cr at es d ist in gu iu q u at r o t ip os d e lo u cu r a d ivin a : 1) a d ivin h a çã o in sp ir a d a , co m o n a
p r o fe t iz a d e De lfo s; 2) casos e m qu e in d ivíd u o s, q u an d o an t igos p ecad os d e r a m o r ige m a p e r t u r b a çõ e s,
p r o r r o m p e r a m e m p r o fecia e in c it a r a m à o r a çã o e ao cu lt o ; 3) p o ssessão pelas Mu sas - o h o m e m d e
t écn ica n u n c a t ocad o p e la lo u cu r a das Mu sa s n u n c a ser á u m b o m p oet a; 4 ) o am an t e. N a Re n a sc e n ç a o
t e m a d a lo u cu r a d ivin a fo i r et o m ad o p elos n e o p la t ô n ico s, co m o Ficin o , e p o r h u m a n ist a s co m o Er a sm o .
A d iscu ssão d e Er a s m o é p a r t icu la r m e n t e im p o r t a n t e , p o r q u e fu n d e a co n ce p çã o p la t ó n ica clássica c o m o
cr ist ia n ism o . Pa r a Er a sm o , o cr ist ia n ism o e r a o t ip o m ais elevad o d e lo u cu r a in sp ir a d a . As s i m co m o Plat ão,
Er a s m o d ist in gu iu d o is t ip os d e lo u cu r a : "As s im , en q u an t o a a lm a u sa co r r e t a m e n t e seus ó r gã o s co r p o r ais,
u m h o m e m é ch am ad o sen sat o; m as n a ver d ad e, q u an d o ela r o m p e suas cad eias e p r o cu r a ser livr e , fu gin d o
de su a p r isão, e n t ã o ch am a-se a isso in san id ad e. Se ist o acon t ece at r avés d e d o e n ça o u d e u m a d eficiên cia
d os ó r gã o s, e n t ã o d e c o m u m acor d o é, sim p le sm e n t e , in san id ad e. E n o e n t a n t o e n co n t r a m o s t a m b é m
h o m e n s d est e t ip o p r e d iz e n d o coisas fu t u r as, co n h ecen d o lín gu as e escr it os q u e n u n c a h a via m est u d ad o
an t es - a n u n cia n d o d e m o d o ger al algo d i vi n o " (in PraíseofFolly. Lo n d r e s: Pe n gu in , 1988, p. 128-129 [Tr a d .
de M A . Scr e e ch ]) . Er a s m o acr escen t a q u e, se a in san id ad e "acon t ece at r avés d e fer vo r d ivin o , p od e n ã o
ser o m e sm o t ip o d e in sa n id a d e , m as é t ão p a r e cid a c o m ela qu e a m a io r ia das pessoas n ã o faz d ist in çã o ".
Pa r a pessoas leigas, as d u as fo r m as d e in sa n id a d e p a r e cia m ser a m e sm a coisa. A felicid ad e qu e os cr ist ãos
p r o cu r a va m "n a d a m ais e r a qu e u m ce r t o t ip o d e lo u cu r a ". O s q u e e xp e r im e n t a m ist o "e xp e r im e n t a m
algo q u e se assem elh a m u it o à lo u cu r a . Fa la m d e fo r m a in co e r e n t e e a n o r m a l, p r o fe r e m son s se m sen t id o
e seu r ost o m u d a b r u sca m e n t e d e exp r essão... d e fat o, eles est ã o ve r d a d e ir a m e n t e fo r a d e s i " ( I b i d . , p.
129-133). E m 1815, o filósofo F . W J. Sch e llin g d iscu t iu a lo u cu r a d ivin a d e u m a fo r m a qu e ap r esen t a ce r t a
p r o xim id a d e co m a an álise d e Ju n g, o b ser van d o qu e "os an t igos n ã o falar am e m vã o d e u m a lo u cu r a d ivin a
e sagrad a". Sch e llin g r e la cio n o u ist o c o m a "a u t o d ila ce r a çã o in t e r io r d a n a t u r e z a ". Su st e n t o u qu e "n a d a
136 L I B E R P R I M U S foi. iii(r)/ iii(v)

Mas porque os antigos viveram esta imagem nas coisas, tornou-se u m a ilusão
para nós, pois nós nos tornamos artífices da realidade do mundo. E indubitável:
quando penetras no mundo da alma, ficas como doido, e um médico vai julgar-te
doente. Isto que e u digo aqui pode parecer doentio. Mas ninguém m elho r do
que e u para dize r que é doentio.
As s im ve nci a loucura. Se não sabeis o que é lo ucura divina, re nunciai ao
julgamento e esperai pelos fru to s 90 . Mas se sabeis que existe um a lo ucura divi-
na, que nada mais é do que a vitória sobre o espírito dessa época pelo espírito
da profundeza, falai então de lo ucura doentia, quando o espírito da profundeza
não pode mais retroceder e obriga a pessoa a falar e m línguas e m ve z de falar
num a linguagem hum ana, e a faz cre r que ela m esm a é o espírito da profundeza.
Falai também de lo ucura do e ntia quando o espírito dessa época não abandona
um a pessoa e a obriga a ve r sempre apenas a superfície, a negar o espírito da
profundeza e co nsiderar a s i m esm a o espírito dessa época. O espírito dessa
época é não divino, o espírito da profundeza é não divino, a balança é divina.
Pelo fato de estar preso ao espírito dessa época, teve de me acontecer o que
me aconteceu nesta no ite, isto é, que o espírito da profundeza irro m pe u co m
poder e rem o veu qual o nda vio le n ta o espírito dessa época. Mas o espírito da
profundeza havia conseguido este poder pelo fato de eu, durante 2 5 noites no
deserto, te r falado à m in h a alm a e lhe te r declarado todo o m e u am o r e sub-
missão. Mas durante os 2 $ dias de dique i todo m e u am or e m in h a submissão às
coisas, às pessoas e aos pensam entos dessa época. So m ente à no ite e u ia para
o deserto.
Nisso podeis distinguir a lo ucura do entia da lo ucura divina. Q u e m faz um a
coisa e deixa de fazer a o utra pode ser chamado de doente, pois sua balança está
fora do prumo.
Qu e m , no entanto, po deria resistir ao mundo, quando é acometido pela
embriaguez e lo ucura divinas? Am o r, alma e De us são belos e assustadores. O s

de gran de po de se r re alizado s e m u m a co n s tan te te n tação d e lo u cu ra, que s e m pre de ve se r su pe rada, m as


n u n ca de ve faltar to talm e n te ". Po r u m lado , h avia e spírito s só brio s n o s quais n ão h avia n e n h u m ve stígio d e
lo u cu ra, ju n t o co m h o m e n s d e inte ligê ncia que p ro d u z i am o bras in te le ctu ais frias. Po r o u tro lado , "e xiste
u m tipo de pe sso a que d o m i n a a lo u cu ra e pre cis am e n te n e ste do m ín io co m ple to so bre e la m o s tra a m ais
alta fo rça d o in te le cto . O o u tro tipo d e pe sso a é d o m in ad o pe la lo u cu ra e é algué m que é re alm e n te lo u co "
(The Ages of t he World. Albân ia: Su n y Pre ss, 2 0 0 0 , p. 10 2-10 4 [trad. d e J. Wi rt h ] ) .
9 0 U m a aplicação d a n o ção d e re gra pragm ática d e Wi l l i a m Jam e s. Ju n g l e u o Pragm at ísm de Jam e s e m 1912,
e a o bra cau s o u u m fo rte im pacto so bre s e u pe n sam e n to . N o pre fácio às suas pre le çõ e s n a Fo rd h am
Un ive rs ity, Ju n g afirm o u que to m ara a re gra pragm ática de Jam e s co m o s e u prin cípio d i re t o r ( O C , 4, p.
9 8 ) . Cf . m e u Jung and t he MakingofModem Psychology: Th e D re a m o f a Scie n ce , p. 57-61).
D ESCI D A AO I N F E RN O N O F U T U R O 137

antigos traziam para este lado do m undo algo da beleza de De us e, po r isso, este
m undo ficou tão belo que pareceu perfeito aos olhos do espírito dessa época e
m elho r do que o seio da divindade. O assombroso e o terrível do m undo estava
sob a abertura e na profundeza de nosso coração. Quan do o espírito da pro fun-
deza se apossa de vós, havereis de se ntir a crueldade e gritar de dor. O espírito
da profundeza está grávido de ferro, fogo e homicídio. Co m razão temeis o
espírito da profundeza, pois ele está cheio de horror.
Vó s vistes nesses dias o que o espírito da profundeza abrigou. Vó s não o
acreditáveis, mas o teríeis sabido se o tivésseis perguntado ao vosso m e d o 9 1.
Sangue brilho u para m im da luz ve rm e lha do cristal e, quando o levantei
para descobrir seu segredo, ali estava diante de m im o ho rro r: n a profundeza
daquele que ve m estava o homicídio. O herói louro jazia assassinado. O escara-
velho é a m orte, que é necessária para a renovação; por isso brilhava com o brasa
atrás dele u m novo sol, o sol da profundeza, o sol enigmático, um sol da noite.
E assim co m o o sol nascente da prim avera faz reviver a te rra m o rta, também o
sol da profundeza dá vida ao morto, e surge o terrível combate entre luz e treva.
Aí ve m à to na a fonte poderosa de sangue e de há m uito não esgotada. Es ta era
o que ve m , o que agora experim entais em vosso corpo, e é ainda mais do que
isto (tive esta visão na noite de 12 de dezembro de 1913).
Profundeza e superfície devem m isturar-se para que surja nova vida, mas
a nova vida não nasce fora de nós, e sim dentro de nós. O que acontece fora
de nós nesses dias é a imagem que os povos vive m nas coisas, para deixar estas
imagens a épocas inesquecivelmente distantes, a fim de que delas aprendam
para seu próprio cam inho, assim com o aprendemos para nós das imagens que
os antigos viveram nas coisas.
A vida não ve m das coisas, mas de nós. Tudo o que acontece fora já passou.

9 1 O esboço co n tin u a: "Tã o e s tran h o m e e ra o e spírito d a pro fu n d e z a que pre cis e i de 25 n o ite s para co n se guir
e n te n dê -lo . E m e s m o e n tão m e e ra tão e s tran h o que e u n ão po d ia ve r n e m pe rgun tar. U n h a d e vi r a
m i m co m o e stran h o de lo n ge de u m lado in au dito . Ti n h a de ch am ar-m e . Eu n ão po d ia in te rro gá-lo a
se u re spe ito e de su a n atu re za. El e se an u n ciava e m vo z alta, co m o n o tu m u lto d a gu e rra c o m a gritaria
m últipla das vo ze s de ssa é po ca. O e spírito de ssa é po ca le van to u -s e d e n tro de m i m co n tra o e stran ge iro e
pro vo co u u m a gritaria de batalh a co m se us m u ito s se rvo s. Eu o u via o frago r de ssa batalh a n o s are s. Su rgiu
e n tão o e spírito d a pro fu n de za e m e co n d u z i u ao lugar d o m ais in te rio r. Mas o e spírito de ssa é po ca m e
m o s t ro u s e u ro sto de co uro , isto é: cu rtido , re sse cado e s e m vida. El e n ão po d ia i m p e d i r-m e de pe n e trar
n o s u bm u n d o e scuro do e spírito d a pro fu n de za. Co m s u rpre s a pe rce bi que m e u s pé s afun davam n a água
de l am a pre ta d o rio d a m o rt e " [ O esboço corrigido acre sce n ta: "po is lá h á m o rt e ", p. 41]. O m isté rio d o cris tal
co m b ri lh o ve rm e lh o e ra m e u pró xim o o bje tivo " ( p 54'55)-
138 LI BE R P RI M U S fol.iii(r)/ ív(v)

Por isso, quem observa de fora aquilo que acontece só vê o quejá passou e que sem pre éa m esm a coi-
sa. Mas quem olha de dentro sabe que tudo é novo. As coisas que acontecem são sem pre as m esm as. Mas
a profundeza criadora da pessoa não é sem pre a m esm a. As coisas não significam nada, só significam em
nós. Nós criam os o significado das coisas. O significado é e sem pre foi artificial; nós o criam os.
Por isso procuram os em nós m esm os o significado das coisas, afim de que o cam inho daquele / que

foi. i i i ( r ) vem possa ficar revelado e nossa vida possa continuar fluindo.

Aquilo de que precisais procede de vós m esm os, isto é, o significado das coisas. O significado das coisas

não é o sentido que lhes épróprio. Este sentido encontra-se nos livros eruditos. As coisas não têm sentido.
O significado das coisas é o cam inho da salvação por nós criado. O significado das coisas é a possibi-
lidade da vida neste m undo, criada por vós. Ele é dom ínio sobre este m undo e a afirm ação de vossa alm a
neste m undo.
Este sentido das coisas é o sentido suprem o, que não está nas coisas nem na alm a, m as o Deus que está
entre as coisas e a alm a, o m edianeiro da vida, o cam inho, aponte e a ultrapassagem 91.

Eu n ão t er ia pod id o en xergar aqu ilo que vem , se n ão o tivesse pod id o ver


em m im m esm o.
Port an t o, eu est ou en volvid o em cada assassin ato, em m im t am b ém b r ilh a
o sol d a profu n d eza con form e o qu al o assassin ato é con su m ad o; em m i m t a m -
b ém est ão as m ilh ares de serpen t es, que q u er iam en golir o sol. E u m esm o sou
assassin o e assassinado, sacrifican t e e vít im a 9 3 . D e m i m flu i a fon t e do sangue.
Vó s todos ten des p art icip ação n o assassin at o 94 . E m vós est ará o ren ascido, e
n ascerá o sol d a profu n deza, e m ilh ares de serpen tes vão desen volver-se a p ar t ir
de vossa m at éria m o r t a e cair sobre o sol p ara su focá-lo. Vosso sangue fluirá para
lá. Ist o os povos d em on st ram n os dias atuais at ravés de ações in esqu ecíveis, que
serão in scrit as com sangue em livros in esqu ecíveis p ara m em ór ia et er n a 9 5 .

9 2 O esboço co n t in u a : "M i n h a a lm a é m e u sen t id o su p r em o, m i n h a im a ge m d e D e u s , n ã o o p r ó p r io D e u s n e m


o p r ó p r io sen t id o su p r em o . O D e u s se r evela n o sen t id o su p r e m o d a co m u n id a d e d as p essoas" (p . 58 ) .
93 E m " O sím b o lo d a t r a n sfo r m a çã o n a m issa " ( 19 4 2) , Ju n g co m e n t a o m o t ivo d a id e n t id a d e d o sacr ificad or
e d o sacrificad o, c o m esp ecial r e fe r ên cia às visõ e s d e Zó z i m o d e Pa n ó p o lis, u m filósofo d a n a t u r e z a e
a lq u im ist a d o sécu lo I I I d . C. Ju n g ob ser vou : " O q u e e u o fe r e ço é m i n h a p r e t e n sã o egoica, n a q u a l e u
m e sm o m e en t rego. Ca d a sacr ifício é p o r isso m ais o u m e n o s u m a u t o ssa cr ifício " ( vo l. X I I I ) , Cf. t a m b é m
o Ka t h a U p a n ixa d e , ca p ít u lo 2, ver so 19. Ju n g cit o u os d ois ver sos segu in t es d o Ka t h a U p a n ixa d e sob re
a n a t u r e z a d o si-m e sm o e m 1921 ( O C , 6, § 329 ) . À m a r ge m d o e xe m p la r d e Ju n g h á u m a lin h a t r açad a
ju n t o a esses versos e m Livros sagrados do Oriente, vo l. X V , p t . 2, p. I I . E m "So n h o s", Ju n g o b se r vo u e m co n e xã o
c o m u m son h o: "M i n h a in t e n sa r elação in co n scie n t e c o m a í n d i a n o Li vr o Ve r m e lh o " (p . 9 ) .
9 4 Ju n g e la b o r o u o t e m a d a cu lp a co le t iva e m "D e p o is d a ca t á st r o fe " ( 19 45) ( O C , 10 ) .
95 Re fe r ê n cia aos a co n t e cim e n t o s d a P r i m e i r a Gu e r r a M u n d ia l. N o o u t o n o d e 1914 ( q u a n d o Ju n g escr eveu
est a seção d a "cam ad a d o is") h ou ve a b a t a lh a d o M a r n e e a p r im e ir a b a t a lh a d e Yp r e s.
D ESCI D A AO I N F ERN O N O F U T U R O 139

Mas quando, eu vos pergun to, as pessoas vão atacar seus irm ãos com a força
das arm as e ações sangrentas? Fazem isso quan do n ão sabem que seus irm ãos
são elas m esm as. Elas m esm as são ofertan tes, mas se prest am m u t u am en t e o
serviço da oferta. Elas todas t êm de ofert ar-se, pois ain d a n ão chegou o t em po
em que a pessoa volt a con t ra si m esm a a faca do sangue para sacrificar aquele
que ele m at a em seu irm ão. Mas qu em as pessoas m atam ? Elas m at am os n o-
bres, os bravos, os h eróis. São a estes que visam , mas n ão sabem que com estes
sign ificam a si próprias. Elas d everiam sacrificar o h erói d en t ro de si m esm as,
m as, com o n ão o sabem , m at am seu bravo irm ão.
O t em po ain d a n ão está m aduro. Mas através desse sacrifício de sangue
deve am adurecer. En q u an t o for possível m at ar o irm ão em vez de a si m esm a, o
tem po n ão est á m aduro. Precisam acon tecer coisas t erríveis até que as pessoas
am ad u reçam . De ou t ro m odo, a pessoa n ão ficará m adu ra. Eis a razão por que
tudo isso, que acontece em nossos dias, deve ser assim , para que a ren ovação
possa vir. Pois a fon te de sangue que segue ao en cobrim en t o do sol é t am bém
a fonte da n ova vid a 9 6 .
Assim com o se apresen t am para vós os destin os dos povos nas coisas, da
m esm a form a acon t ecerá em vossos corações. Se o h erói est iver assassinado
em vós, en t ão nasce para vós o sol da profun deza, brilh an d o de longe e de lugar
in audit o. Mas im ed iat am en t e vai reviver em vós tudo o que parecia m ort o até
agora e se t ran sform ará em serpen tes ven en osas que qu erem en cobrir o sol,
e vós caireis n a n oit e e n a con fusão. Vosso sangue jorrará das m u it as feridas
desse com bate h orrível. Vosso pavor e vosso desespero serão grandes, mas des-
se sofrim en t o n ascerá a n ova vid a. Nascim en t o é sangue e sofrim en t o. Vossa
escuridão que vós n ão pressen tistes, porque estava m ort a, vai reviver e sen t ireis
a pressão do t ot alm en t e m au e con t rário à vid a, que ain d a agora jaz sepulto
n a m at éria de vosso corpo. Mas as serpen tes são pen sam en tos e sen t im en t os
in crivelm en t e m aus.
Pen sáveis que con h ecíeis aquele abism o? Ó vós, in t eligen t es! É ou t ra coisa
vivê-lo experim en t alm en t e. Tu d o virá a vós. Pen sai em todos os h orrores e d ia-

9 6 E m su a p r e le çã o n a ETH a 14 d e ju n h o d e 1935, Ju n g c o m e n t o u ( p a r cia lm e n t e e m r efe r ê n cia a est a


fan t asia, a q u e ele se r e fe r iu a n o n im a m e n t e ) : " O m o t ivo d o sol ap arece e m m u it o s lu gares e ép o ca s e o
sen t id o é sem p r e o m e sm o - qu e n asceu u m a n o va co n sciên cia. E a lu z d a ilu m in a çã o qu e é p r o je t a d a n o
esp aço. E u m a co n t e cim e n t o p sico ló gico ; o t e r m o m é d ico 'a lu cin a çã o ' n ã o faz se n t id o e m p sicologia. / A
cat áb ase d e se m p e n h a u m p ap el m u it o im p o r t a n t e n a Id ad e M é d i a e os an t igos m est r es co n ce b ia m o sol
n ascen t e n e st a cat áb ase co m o u m a n o va lu z , a ' lu x m o d e r n a ', a jo ia , o lá p is" (Modem Psychology, p. 231).
140 LI BERP RI M U S foi.iii(r)/ iv(v)

bólicas atrocidades que as pessoas causaram a seus irmãos. Isto deve chegar a
vós e m vossos corações. So fre i-o e m vós mesmos através de vossa própria mão
e sabei que é vossa mão infame e demoníaca que vos causa o sofrimento, mas
não vosso irmão, que luta co m seus próprios de m ó n io s 97.
Eu gostaria que vísseis o que significa o herói assassinado. Aquelas pessoas
anónimas, que m atam príncipes e m nossos dias, são profetas cegos, que re pre -
sentam nas coisas o que só vale para a al m a 9 8 . Através do assassinato de prín-
cipes ficais sabendo que o príncipe, o herói e m nós, está am e açado 99 . Se deve
parecer um bo m o u m au sinal, não nos vamos preocupar co m isso. O que hoje
é ruim , e m cem anos será bo m e e m duzentos, novamente ruim . Mas temos
de reconhecer o que acontece: existem anónimos e m vó s que ameaçam vossos
príncipes, o legítimo soberano.
Mas nosso soberano é o espírito dessa época, que e m nós tudo co m anda e
dirige, é o espírito universal no qual hoje pensamos e agimos. Ele detém u m po -
der extraordinário, pois trouxe a este m undo bens incomensuráveis e cativou as
pessoas co m delícias inacreditáveis. Está adornado co m as mais belas e heróicas
virtudes e gostaria de fazer subir a hum anidade a um a altura brilhante do so l,
num a subida i n au d i t a 10 0 .
O herói quer desdobrar tudo o que pode. Mas o espírito anónimo da pro -
fundeza co nduz para cim a tudo o que a pessoa não pode. O não poder pre judi-
ca a ulte rio r subida. Mais altura exige m aio r virtude. Não a possuímos. Tem os
de prim e iro criá-la, aprendendo a viver co m nosso não poder. A ele temos de
dar vida, pois como po deria evo luir para o po der senão assim?

97 O esboço co n tin u a: "Se i , m e u s am igo s, que e s to u falan do aqu i e m e n igm as. Mas o e spírito d a pro fu n de za
m e fe z ve r m u itas co isas p ara aju dar o m e u e n te n d im e n to . D e s e jo co n t ar-vo s ain d a m ais co isas d e m in h as
visõ e s, a fim de e n te n d e rd e s m e l h o r as co isas que o e spírito d a pro fu n de za go staria que vó s vísse is. Fe l i z d e
qu e m po de ve r essas co isas! Q u e m n ão as vê de ve vivê -las co m o d e s tin o cego, e m i m age m " (p. 61).
9 8 Em "O e u e o i n co n s ci e n t e " ( 1927) , Ju n g se re fe re ao s e le m e n to s in dividu ais que cae m n o in co n s cie n te ,
o n d e ge ralm e n te se tran s fo rm am e m algo de e s s e n cialm e n te pe rn icio s o , de s tru tivo e anárquico . N o
aspe cto so cial, e ste prin cípio n e gativo se m an ife s ta atravé s de crim e s e spe taculare s co m o re gicídio s,
pe rpe trado s p o r in divíduo s de pre dispo sição pro fé tica" ( O C , 7, § 24 0 ) .
9 9 As s as s in ato s po lítico s e ram fre que n te s n o in ício do sé culo X X . O fato e spe cífico a que se alu de aqu i é o
se guin te : a 28 de ju n h o de 1914, o arqu id u qu e Fran z Fe rd i n an d , h e rd e iro d o im pé rio austro -h ún garo , fo i
assassin ado po r Gavri l o Prin cip, u m e studan te sé rvio de 19 an o s. Ma rt i n Gi l b e rt de scre ve e ste fato, que
d e s e m pe n h o u u m pape l de cis ivo n o s aco n te cim e n to s que le varam à e clo são d a Pri m e i ra Gu e rra Mu n d i al ,
co m o "u m m o m e n t o crítico n a histó ria d o sé culo X X ". A Hist oryoft he Twent iet h Cent ury - Vo l u m e O n e :
190 0 -1933. Lo n d re s : Wi l l i a m Mo rro w, p. 30 8.
10 0 O esboço co n tin u a: "Q u a n d o e u aspirava ao m e u m ai o r po d e r n o m u n d o , e n vi o u -m e o e spírito d a
pro fu n d e z a pe n s am e n to s an ó n im o s e visõ e s que apagaram o que t e n d ia para cim a, o que , n o s e n t i r de ssa
é po ca, e ra o h e ró ico e m m i m " (p. 6 2) .
D I VI SÃO D O E SP Í RI T O 141

Não podemos m atar nosso não poder e elevar-no s acim a disto. Mas era
exatamente o que queríamos. O não poder virá sobre nós e vai exigir sua parte
n a vida. Nó s nos perderemos e m nosso poder e haveremos de acreditar no se n -
tido do espírito dessa época de que é um a perda. Mas não é um a perda, e sim
u m ganho, não e m bens exteriores, mas e m capacidade interior.
Q u e m aprende a viver co m seu não poder aprendeu muito. Isto nos levará
a valorizar as menores coisas e a um a sábia limitação, que é exigida pela altura
maior. Quan do todo o heróico estiver apagado, caímos de vo lta n a indigência do
humano e e m coisa ainda pior. Nossos fundamentos mais profundos entram e m
agitação, pois nossa m aio r tensão, que corresponde ao fora de nós, vai excitá-las.
Caire m o s no lodaçal e nosso submundo, no lixo de todos os séculos e m n ó s 10 1.
O heróico e m ti é que és comandado pelo pensamento de que isto o u aquilo
seja o be m , que esta o u aquela o bra seja indispensável, que esta o u aquela co isa
seja rejeitável, que este o u aquele objetivo deva ser alcançado pelo trabalho am -
bicio nado lá adiante, que este o u aquele prazer deva ser re prim ido po r todos os
meios e inexoravelmente. Co m isso pecas co ntra o não poder. Mas o não poder
existe. Ningué m deve negá-lo, criticá-lo o u levantar a vo z co ntra e l e 10 2 .

D ivis ã o d o e sp ír it o
[IH i v( r) ]
Cap. vi.

Mas n a quarta no ite e u gritei: "D e s ce r ao infe rno é o mesmo que to rnar-se
i n fe rn o "10 3. Tudo está terrivelm ente confuso e emaranhado. Ne ste cam inho do

101 O esboço co n tin u a: "Tu d o o que e sque ce m o s se to rn ará n o vam e n te vivo e m n ó s, to d a paixão h u m an a e
d ivin a, as ne gras se rpe n te s e o s o l ave rm e lh ado d a pro fu n d e z a" (p. 6 4 ) .
10 2 A 9 d e ju n h o de 1917 h o u ve u m de bate so bre a psico lo gia d a gu e rra m u n d i al n a As s o ciação de Psico lo gia
An alítica, apó s u m a apre se n tação fe ita p o r Vo d o z so bre "D a s Ro l an d l i e d ". Ju n g argu m e n to u que "p o d e -
se h ipo te ticam e n te co lo car a gu e rra m u n d i al n o níve l d o suje ito . Tam bé m n o s de talh e s o prin cípio
auto ritário ( o agir m o vid o po r prin cípio s) e o prin cípio in s tin tivo e stão e m co ntradição . O in co n s cie n te
co le tivo alia-s e ao in s t in t ivo ". A re spe ito d o h e ró i, e le disse : "O h e ró i — a figura am ada d o po vo , de ve
cair. To d o s o s he ró is s u cu m b e m po r s i, qu an d o d ifu n d e m e m ce rt a m e d i d a a atitu de de h e ró i e c o m isso
fracassam" (MPA, vo l. 2, p. 10 ). A in te rpre tação psico ló gica d a Pri m e i ra Gu e rra Mu n d i al n o níve l subje tivo
de scre ve o qu e é de se n vo lvido n e ste capítulo . A co n e xão e n tre psico lo gia in d ivid u al e co le tiva que e le
articu la aqu i co n s titu i u m do s leit m ot ívs d e s u a o bra po s te rio r (cf. Present eejút uro, 1957. O C , 10 / 1).
103 Em Além do berne do m al, Ni e t z s ch e e scre ve u: "Q u e m lu t a c o m m o n s tro s de ve te r cu idado para n ão se to rn ar
u m m o n stro . E se o lh as d e m o rad am e n te u m abism o , o abism o o lh a para d e n t ro de t i " (Pe tró po lis: Vo z e s ,
20 0 9 , § 146).
142 L I B E R P R I M U S foi. iii(r)/ iv(v)

d e s e r t o n ão h á a p e n a s a r e i a e sca ld a n t e , m a s e xi s t e m t a m b é m co isa s in vis íve is ,

assust adoram en t e en volven t es, que h ab it am o deserto. Ist o eu n ão sabia. O


cam in h o só é aparen t em en t e livr e, o desert o é só aparen t em en t e vazio. Parece
estar h abit ado por seres en feit içad os que m e at acam com in t en ções assassinas
e t ran sform am em aspecto d aim on íaco m in h a face. Eu assu m i provavelm en t e
u m a form a h orren d a, n a qu al já n ão m e posso recon h ecer. Parece que sou u m a
figura m on st ru osa de an im al, pela qu al t roqu ei m eu ser h u m an o. Est e ca m i-
n h o est á cercado de m agia in fer n al; laços in visíveis foram at irados sobre m im
e m e am arram .
Mas o espírit o da profun deza aproxim ou -se de m im e falou: "Desce para
tua profun deza, afun da-te". Eu , p orém , m e revolt ei con t ra ele e falei: "Co m o
posso afun dar-m e? Sou in capaz de fazer isso com igo".
En t ão o espírit o m e d ir igiu palavras que m e pareceram ridículas, e ele disse:
"Sen t a-t e e descansa".
Mas eu grit ei revoltado: "Assustador, ist o soa com o t olice, exiges t am bém
isto de m im ? T u derrubas deuses que são poderosos e que sign ificam o m áxim o
para n ós. Min h a alm a, onde estás? Con fiei-m e a u m an im al im b ecil, cam baleio
qual b êb ad o ao en con t ro da sarjet a, falo coisas sem n exo com o u m doido? É
este o t eu cam in h o, m in h a alm a? O sangue m e ferve, e eu gost aria de est ran gu -
lar-t e se te pudesse agarrar. T u teces as trevas m ais densas, e eu fico preso com o
u m louco em t u a rede. Mas eu quero, en sin a-m e".
Mas a alm a falou-m e e disse: "Me u cam in h o é lu z".
Eu , p orém , respon d i irrit ad o: "T u cham as lu z aquilo que n ós seres h um an os
ch am am os as piores trevas? T u cham as o d ia de n oit e?"
A ist o m in h a alm a falou palavras que m e ir r it ar am : "Min h a lu z n ão é deste
m u n d o".
Eu exclam ei: "N ã o sei n ada daquele ou t ro m u n d o".
A alm a respon deu: "N ã o deve ele exist ir, só porque n ada sabes dele?" Eu : " E
nosso saber? Tam bém nosso saber n ada vale para ti? O que deve exist ir, se n ão
h á saber? O n d e h á certeza? O n d e t erren o firm e? O n d e luz? Tuas trevas n ão são
apenas m ais negras que a n oit e, mas t am bém sem fundo. Se o saber n ão deve
exist ir, en t ão, qu em sabe, t am bém n ão lin guagem e palavras?"
A alm a: "Tam b ém n en h u m a palavra".
D I VI SÃO D O E SP Í RI T O 143

Eu : "Perd ão, talvez eu ouça m al, t alvez te in t erpret e m al, t alvez eu m e deixe
seduzir por m in h as próprias m en t iras e m acaquices, talvez fazendo u m a caret a
para m im em m eu espelho, talvez u m louco em m eu p róp rio m an icôm io. Talvez
tropeces em m in h a d em ên cia?"
A alm a: "T u te enganas, a m im n ão m en tes. Tuas palavras são m en t iras para
t i, n ão para m im ".
Eu : "Mas pod eria eu revolver-m e n u m a fu riosa t olice, t ram ar o absurdo, a
estupidez perversa?"
A alm a: "Q u e m te d á pen sam en tos e palavra? T u os crias? N ã o és m eu servo,
u m recebedor, que está deitado d ian t e da m in h a p ort a e recolh e m in h a esmola?
E t u ousas pen sar que aquilo que im agin as e falas pod eria ser tolice? N ã o sabes
que ist o p rovém de m im e m e pert en ce?"
Mas eu exclam ei ch eio de raiva: "En t ão t am bém m in h a revolt a deve vir de
t i, en t ão t u te revoltas em m im con t ra t i m esm a". A isso, a alm a falou as palavras
am bíguas: "Ist o é gu erra c i vi l " 10 4 .
Fu i acom etido de dor e raiva, e respon di: "Q u e com éd ia e len ga-len ga! -
mas eu quero. Eu t am bém posso rast ejar pela lam a, o ban al m ais odiado. Posso
t am bém com er p ó, ist o pert en ce ao in fern o. N ã o vou retroceder, eu resisto.
Q u er eis con t in u ar im agin an do t orm en t os, m on st ros com pern as de aran h a,
m on st ros teatrais h orríveis - ridícu los. Para fren t e, est ou preparado. Prep ara-
do, m in h a alm a, que és u m d em ón io, a lu t ar t am b ém contigo. T u colocas u m a
m áscara de Deu s, e eu te ven ero. Dep ois colocas u m a m áscara de d em ón io, ai,
u m a m áscara h orrível, a do ban al, do et ern o m ed íocre. Só u m a van tagem ! Per-
m it e que volt e u m pouco para trás e reflit a! Vale a pen a a lu t a com esta m áscara?
Vale a pen a a ven eração da m áscara de Deu s? Eu n ão posso, arde-m e nas ju n t as
a von t ade de lutar. Nã o , n ão ven cid o posso sair do cam po de batalh a. Q u er o
pegar-te, esm agar-te, palh aço, macaco. Ai , a lu t a é desigual, m in h as m ãos agar-
ram o ar. Mas teus golpes t am bém são ar e eu percebo, são farsas".

Est o u n ovam en t e n o cam in h o do deserto. Fo i u m a visão do deserto, u m a


visão dos solit ários que p ercorrem a lon ga estrada. Nela est ão à espreit a assal-
tan tes in visíveis e assassinos t raiçoeiros que at iram projét eis en ven en ados. A
seta m ort ífera está cravada em m eu coração?

10 4 Livro Negro 2: "És n e u r ó t ico ? N ó s som os n e u r ó t ico s?" (p . 53).


144 L I B E R P R I M U S foi. i v( r ) / i v( v)

[ 2 ] Co m o a p r im eir a visão m e h avia dit o, o assassino t raiçoeiro saiu da p r o-


fun deza e veio para cim a de m im , assim , com o n o dest in o dos povos dessa ép o -
ca, avan çou u m an ón im o e levan t ou a ar m a assassina con t ra o p r ín cip e 10 5 .
Eu m e sen t i t ran sform ado n u m a fera im pet uosa. Meu coração fervia de r a i-
va con t ra o elevado e amado, con t ra m eu prín cipe e h erói, assim com o o an ó-
n im o do povo, im p elid o por seu in st in t o assassino, lan çou -se sobre seu querido
prín cipe.
Pelo fato de eu t razer o assassinato d en t ro de m im , eu o p r e vi 10 6 . Pelo fato
de eu t razer a gu erra em m im , eu a previ. Sen t i-m e enganado e alvo de m en t ir a
por part e de m eu rei. Por que m e sen t i assim ? Ele n ão era aquilo que eu qu eria
que ele fosse. Ele dava ou t ra coisa do que eu esperava. Ele d evia ser r ei n o m eu
sen t ido e n ão n o seu sen tido. Ele d evia ser o que eu ch am ava de id eal. Min h a
alm a m e parecia oca, in sossa e in sign ifican t e. Mas o que eu pensava, referia-se
n a verdade a m eu id eal,
foi. iv(r ) Er a u m a / visão do deserto, eu lu t ava con t ra m in h as próprias im agens r e-
Av( v)

fletidas em espelho. H a via gu erra civil d en t ro de m im . Eu era m eu p róp rio


assassino e o p róp rio assassinado. A seta m or t al estava gravada em m eu coração,
e eu n ão sabia o que ela d everia sign ificar. Meus pen sam en tos eram h om icíd io
e pavor m or t al que se espalhava com o ven en o em t oda a part e de m eu corpo. E
assim era o dest in o dos povos: o assassinato de u m era a seta en ven en ada que
voava ao coração da pessoa e atiçava a gu erra m ais violen t a. Est e assassinato é
a revolt a do n ão poder con t ra o querer, u m a t raição de Judas que gost aríam os
tivesse sido com et id a por o u t r o 10 7 . N ó s procuram os sem pre ain d a o bode que
deve carregar os nossos p ecad os 10 8 .

105 Ve r n o t a 9 9 , p. 140.
10 6 O esboço co n t in u a : "Me u s am igos, se so u b ésseis a p r o fu n d e z a qu e o fu t u r o car r ega e m vó s! Q u e m d esce
p a r a su a p r ó p r ia p r o fu n d e z a co n t e m p la aq u ilo qu e ve m " (p . 7 0 ) .
107 O esboço co n t in u a : "Ass im co m o Ju d as fo i u m elo n ecessá r io n a co r r e n t e d a o b r a d a salvação, t a m b é m
n ossa t r aição de Ju d as c o m r elação ao h e r ó i é u m a p assagem n ecessár ia p a r a a salvação " ( p . 71). E m
Transform ações esím bolos da libido ( 19 12) , Ju n g d iscu t e o p o n t o d e vist a d o abad e O egger n a h ist ó r ia de An a t o le
Fr a n ce , e m O jardim de Epicuro, qu e su st en t ava qu e D e u s t in h a esco lh id o Ju d as co m o u m in s t r u m e n t o p a r a
co m p le t a r a o b r a r e d e n t o r a de Cr i s t o ( O C , B, § 52) .
108 C f L v 16,7-10: "To m a n d o d ep ois os d ois b od es, ele os a p r e se n t a r á d ia n t e d o Se n h o r à e n t r a d a d a t en d a
d e r eu n ião. D e p o is Aa r ã o la n ça r á as sort es sob re os d ois b od es, u m a p a r a o Se n h o r e o u t r a p a r a Az a z e l.
Aa r ã o o fe r e ce r á o b od e qu e cou be p o r sor t e ao Sen h or , fazen d o u m sacr ifício p elo pecado. Q u a n t o ao
b od e qu e t o co u p o r sor t e a Az a z e l, ser á ap r esen t ad o vivo d ia n t e d o Sen h or , p a r a fazer a e xp ia çã o e m a n d á -
lo ao d esert o, p a r a Az a z e l".
ASSASSI N AT O D O H E R Ó I 145

Tudo o que fica velho dem ais torna-se um m al portanto tam bém o vosso m ais elevado. Aprendei isso
dos sofrim entos de Deus crucificado que épossível tam bém trair e crucificar um Deus, isto é, o Deus do
ano velho. Quando um Deus deixa de ser o cam inho da vida, então precisa dim inuir discretam ente109.
O Deus fica doente quando ultrapassa a altura do zénite. Por isso arrebatou-m e o espírito da pro-
fundeza quando o espírito dessa época m e havia conduzido para a altura110.

Assa ssin a t o d o h e r ó i
[IH iv(v)]m
Cap . vii.

N a n oit e seguinte, con tudo, t ive u m a visã o 112 : eu estava n u m a m on t an h a


alt a com u m adolescente. Er a antes d a aurora, o céu n o lado leste já estava
claro. Soou en t ão sobre as m on t an h as a t rom p a de Siegfried em t om fest ivo 113.
Sabíam os que nosso in im igo m or t al estava chegando. Est ávam os arm ados e
em boscados n u m est reit o cam in h o de pedras, com a fin alidade de m at á-lo. D e
repen t e, apareceu ao longe, vin d o do cum e d a m on t an h a n u m carro feito de
ossos de pessoas falecidas. Desceu com m u it a dest reza e glorioso pelo flanco
rochoso e chegou ao cam in h o est reit o onde o esperávam os escon didos. Ao su r-
gir n u m a cu rva do cam in h o, at iram os con t ra ele, e ele caiu m ort alm en t e ferido.
Em seguida preparei-m e para fugir, e u m a ch u va violen t a desabou. D e p o is 114
passei p or u m t orm en t o m or t al e eu sen t i com o cert o que eu m esm o d everia
m e m atar, se n ão conseguisse resolver o en igm a do assassinato do h e r ó i 115 .

109 O «foço co n t in u a : "ist o n os e n sin a r a m os an t igos" (p . 72).


n o O esboço co n t in u a : "Q u e m va i p a r a o d eser t o va i e xp e r im e n t a r t u d o o qu e p er t en ce ao d esert o. Ist o t u d o
n os d e scr e ve r a m os an t igos. D e le s p o d em o s ap r en d er . Ab r i os livr o s an t igos e a p r e n d e i o qu e vir á a vó s n a
solid ão. Tu d o vos ser á d oad o e n a d a eco n o m izad o , a gr aça e o so fr im e n t o " (p . 72).
111 Re fe r ê n cia à la m e n t a çã o p e la m o r t e d o h e r ó i.
112 18 d e d e z e m b r o d e 1913. N o livr o Negro 2, Ju n g ob ser vou : "A n o it e segu in t e fo i p avor osa. E u aco r d ei logo
d e u m so n h o t e r r íve l" (p . 56). O esboço d iz: "s u b iu d a p r o fu n d e z a u m a visã o im p r e ssio n a n t e " (p . 73).
113 Siegfr ied fo i u m p r ín cip e h e r ó ico qu e ap arece n as an t igas ep op eias ge r m â n ica s e n ó r d icas. N a Canção dos
ntbelungos, d o sécu lo X I I , é d escr it o d a segu in t e m a n e ir a : " E c o m q u an t o gar b o Siegfr ied cavalgava! Tr a z i a
u m a gr an d e lan ça, d e h ast e grossa e p o n t a larga; su a b ela esp ad a ch egava at é aos calcan h ar es; e a vist o sa
co r n e t a q u e est e sen h o r car r egava er a fe it a d o o u r o m ais b r ilh a n t e " ( Lo n d r e s: Pe n gu in , 2004, p. 129 [Tr a d .
de A . H a t t o ] ) . N a Canção dos nibelungos, su a esp osa Br u n i l d a é le va d a p o r a r t im a n h a s a r evelar o ú n ico lu gar
on d e ele p o d e r ia ser fer id o e m o r t o . W a gn e r r eelab o r o u est a ep o p eia e m O aneldonibelungo. E m 1912, e m
Transform ações e sím bolos da libido, Ju n g ap r esen t o u u m a in t e r p r e t a çã o p sico ló gica d e Siegfr ied co m o sím b o lo d a
lib id o , cit a n d o p r in cip a lm e n t e o lib r e t o d o Siegfried d e W a gn e r ( O C , B, § 568S.).
114 O esboço co n t in u a : "D e p o is d est a visã o " (p . 73).
115 N o Livro Negro 2, Ju n g a n o t o u : "Su b i c o m facilid ad e u m ca m in h o in a cr e d it a ve lm e n t e ín gr e m e e d ep ois
a ju d e i m i n h a esposa, q u e segu ia d evagar, a su b ir t a m b é m . Algu m a s pessoas ca ço a va m d e n ó s, m as a ch e i
146 L I B E R P R I M U S foi. i v( r ) / i v( v)

Ve i o e n t ã o ao m e u e n c o n t r o o e s p ír it o d a p r o fu n d e z a e d isse a fr ase:
"A verdade m aior é u m a e a m esm a que o absurdo". Est a frase m e aliviou ,
e com o u m a ch u va após longo t em po de calor veio abaixo com força em m im
tudo o que estava ten so dem ais.
Tive en t ão u m a segunda visã o 116 : V i u m jard im m aravilhoso, nele cam in h avam
figuras vestidas de seda bran ca, todas envoltas em capas brilh an t es e coloridas,
algumas eram avermelhadas, outras azuladas e esverdeadas 117. [Im agem iv( v) ]

Eu sei que passei por cim a e além da profundeza. At ravés da culpa, t orn ei-m e
u m r en ascid o 118 .

[ 2 ] N ó s t am bém vivem os em nossos son hos, n ão vivem os só de dia. Às ve-


zes executam os nossos m aiores feitos n o so n h o 119 .
Naquela n oit e, m in h a vid a estava am eaçada, pois eu t in h a de m at ar m eu
sen h or e Deu s, n ão n u m duelo aberto; pois qu em dos m ort ais pod eria m at ar

b o m , p ois in d ica va qu e n ã o sab iam qu e e u h a via m at ad o o h e r ó i" (p . 57) . Ju n g co n t o u n o va m e n t e est e


son h o n o se m in á r io de 1925, acen t u an d o d iver sos d et alh es. An t e p ô s - lh e as segu in t es o b se r va çõ e s:
"Siegfr ied n ã o m e er a u m a figu r a esp ecialm en t e sim p á t ica e n ã o sei p o r qu e m e u in co n scie n t e fico u
ab so r vid o p o r ele. O Siegfr ied de W agn er , d e m o d o esp ecial, é exager ad am en t e e xt r o ve r t id o e às vezes
efet ivam en t e r id ícu lo. N u n c a gost ei d ele. N o en t an t o , o so n h o m o st r o u qu e ele e r a m e u h e r ó i. N ã o p u d e
e n t e n d e r a for t e e m o ç ã o qu e t ive c o m o so n h o ". Ap ó s n a r r a r o son h o, Ju n g co n clu iu : "Se n t i u m a im e n sa
co m p a ixã o p o r ele [Sie gfr ie d ], co m o se e u p r ó p r io t ivesse sid o at in gid o. D e vo , p o r t an t o , t er t id o u m h e r ó i
qu e e u n ã o ap r eciava, e fo i m e u id e a l d e for ça e eficiên cia qu e e u m a t e i. E u h a via m at ad o m e u in t elect o,
aju d ad o a fazê-lo p o r u m a p e r so n ifica çã o d o in co n scie n t e colet ivo, o h o m e n z in h o t r igu eir o com igo. E m
ou t r as p alavras, d e st it u í m i n h a fu n ção su p erior... A ch u va qu e ca iu é u m sím b o lo d a lib e r a çã o d a t en são ;
ou seja, as forças d o in co n scie n t e est ão lib er ad as. Q u a n d o ist o acon t ece, p r o d u z -se o se n t im e n t o de alívio.
O cr im e é exp iad o, p or q u e, logo qu e a fu n ção p r in cip a l é d est it u íd a, exist e u m a ch an ce de ou t r as facet as
d a p er son alid ad e a flo r a r e m " (introductíon to Jungian Psychology, p. 6 1- 6 2) . N o Livro Negro 2, e e m su as a n o t a çõ e s
p o st er io r es sobre est e so n h o e m Mem órias (p . 215), Ju n g d isse t er sen t id o qu e p r e cisa r ia m a t a r -se a si
m esm o , caso n ã o con segu isse r esolver est e en igm a.

116 O esboço co n t in u a : "caí d e n o vo n o son o. T i v e u m a gr an d e visã o " (p . 73- 74 ) .


117 O esboço co n t in u a : "Essa s lu zes p e n e t r a r a m e m m i m e sp ir it u a l e sen sivelm en t e. E n o va m e n t e caí n o son o
co m o u m con valescen t e" (p . 74 ) . Ju n g r e co n t o u est e son h o a An i e l a Jaffé e co m e n t o u qu e d ep ois de t er sid o
con fr on t ad o co m a som b r a, com o n o son h o de Siegfried , est e son h o exp r essou a id e ia de qu e ele er a u m a
coisa e o u t r a coisa ao m esm o t em po. O in con scien t e alcan ça p ar a além d a pessoa, à sem elh an ça de u m a a u r a
de san t o. A so m b r a e r a sem elh an t e à esfera co lo r id a d e lu z qu e r o d eava as pessoas. El e p e n so u qu e se
t r at ava de u m a visã o d o a lé m , on d e as pessoas são co m p let as ( M P , p. 170 ) .
118 O esboço co n t in u a : " O m u n d o in t e r m é d io é u m m u n d o das coisas m a is sim p les. N ã o é u m m u n d o d a
in t e n çã o e d o d ever -ser , m as u m m u n d o d o t alvez, c o m p ossib ilid ad es in d e t e r m in a d a s. Aq u i só e xist e m
p eq u en as est rad as vicin a is, n e n h u m a est r ad a lar ga p a r a m o vim e n t o das t r op as m ilit a r e s, e m c i m a n e n h u m
céu, e m b a ixo n e n h u m in fe r n o " (p . 74 ) . E m o u t u b r o d e 1916, Ju n g d e u algu m as p alest ras n o Cl u b e de
Psico lo gia sobre "Ad ap t ação , in d ivid u a çã o e co le t ivid a d e " n as qu ais co m e n t o u sob re a im p o r t â n cia d a
cu lp a: "a ssim o p r im e ir o passo d a in d ivid u a çã o é u m a culpa t rágica. A a cu m u la çã o d e cu lp a exige expiação
( O C , 18/ 2, § 1.0 9 4)-
119 O esboço acr escen t a: "Vó s ach ais gr a ça d isso? O e sp ír it o d essa é p o ca go st ar ia d e fazer qu e acr ed it ásseis qu e
a p r o fu n d e z a n ão é n e n h u m m u n d o e n e n h u m a r ealid ad e" (p . 74 ) .
ASSASSI N AT O D O H E R Ó I 147

u m Deu s n u m duelo? T u só podes at in gir t eu Deu s n u m assassinato a t r a içã o 120 ,


se t u quiseres ven cê-lo.
Mas ist o é o m ais amargo para a pessoa m ort al: nossos deuses qu erem ser
ven cidos, pois n ecessit am de ren ovação. Q u an d o as pessoas m at am seus p rín ci-
pes, eles o fazem porque n ão con seguem m at ar seus deuses e porque n ão sabem
que d everiam m at ar seus deuses d en t ro de si.
Quando o Deus fica velho, ele se torna som bra, tolice, vai para baixo. A m aior verdade torna-se a
m aior m entira; o dia m ais claro torna-se a noite m ais escura.
Assim com o o dia pressupõe a noite e a noite, o dia, assim o sentido pressupõe o absurdo e o absurdo,
o sentido.
O dia não existe por si, a noite não existe por si.
O verdadeiro, que existe por si m esm o, é dia e noite.
Portanto, o verdadeiro é sentido e absurdo.

O m eio-dia éum instante, a m eia-noite éum instante, a m anhã vem da noite, o anoitecer cam inha
para a noite, m as tam bém o anoitecer vem do dia e a m anhã cam inha para o dia.

Port an t o, o sen t ido é u m in st an t e e passagem de absurdo em absurdo, e o


absurdo é só u m in st an t e e passagem de sen t ido em se n t id o 121
Last im ável que Siegfried, o lou ro de olhos azuis, o h erói alem ão, tivesse que
t om bar por m in h as m ãos, o m ais fiel e m ais valen t e! Ele t in h a tudo em si que
eu con siderava o m aior, o m ais belo, ele era m in h a força, m in h a valen t ia, m eu
orgulho. N u m a lu t a de iguais, eu t eria perecido, só m e restava, pois, o assassin a-
to à traição. Se eu quisesse con t in u ar viven do, só pod eria ser através de astúcia
e m aldade.
N ã o julgueis! Pen sai n o selvagem lou ro das m atas alem ãs que teve de de-
n u n ciar ao deus bran co asiático o t rovão que em p u n h a o m art elo, que foi p re-
gado n a cru z com o u m ladrão de galin has. O desprezo em baçou o p róp rio ser
dos valen t es. Mas sua força vit al ord en ou -lh es que con t in u assem a viver, e eles
t raíram seus deuses belos e selvagens, suas árvores sagradas e a ven eração às
m atas a le m ã s 122 .

120 O esboço co n t in u a : "p a r a o Ju d a s" (p . 75) .


121 O esboço co n t in u a : "M i n h a visã o m o st r o u - m e q u e n ã o est ava so z in h o n o m e u at o. T i ve co m o aju d an t e u m
ad olescen t e, p o r t a n t o a lgu é m m a is jo ve m d o qu e eu ; e u m e sm o co m o u m r e m o ç a d o " (p . 7 6 ) .
122 O esboço co n t in u a : "Assim co m o W o t a n , Siegfr ied t a m b é m t in h a d e m o r r e r " (p . 7 6 ) . E m 1918, Ju n g
escr eveu sob re os efeit os d a in t r o d u çã o d o cr ist ia n ism o n a Ale m a n h a : " O cr ist ia n ism o d ivid iu o
b a r b a r ism o ge r m â n ico e m su a m et ad e in fe r io r e su p e r io r e co n segu iu assim - p ela r ep r essã o d o lad o m ais
148 L I B E R P R I M U S foi.iv(r)/ív(v)

Ist o sign ifica Siegfried para os alem ães! O que quer d izer que Siegfried m orre
para o alem ão! Por isso quase preferi m at ar a m im m esm o para pou pá-lo. Mas eu
qu eria con t in u ar viven d o com u m n ovo D e u s 12 3 .
Depois da m orte n a cruz, Cr ist o foi para o rein o dos m ortos, tornou-se inferno.
Assu m iu assim a figura do an ticristo, do dragão. A imagem do anticristo, que os
antigos nos t ran sm it iram , dá n otícia do novo Deu s, cuja vin d a os antigos previram .
Deu ses são in evit áveis. Q u an t o m ais t u foges de Deu s, m ais cert am en t e
cairás em suas m ãos.
A ch u va e a gran de t orren t e de lágrim as que virão sobre os povos, a t orren t e
de lágrim as d a dist en são, depois que a lim it ação d a m ort e sobrecarregou os
povos com u m peso t errível. É o ch oro do m ort o em m im que precede o sep u l-
t am en t o e o ren ascim en t o. A ch u va é a fecun dação d a t erra, ela prod u z o n ovo
trigo, o Deu s que b rot a jo ve m 12 4 .

Co n c e p ç ã o d o D e u s
[IH iv(v)2]
Cap . viii.

N a segunda n oit e depois disso, falei à m in h a alm a e disse: "Fraco e art ificial
parece-m e este m u n d o novo. Ar t ificia l é u m a palavra com plicad a, m as a se-
m en t e de m ost ard a que se desen volveu em árvore, a palavra que foi con cebida
n o seio de u m a virgem , t orn ou -se u m Deu s ao qu al estava subm issa a t e r r a " 12 5 .

escu r o - d o m e st ica r o lad o m a is cla r o e t o r n á - lo a p r o p r ia d o à cu lt u r a . En q u a n t o isso, p o r é m , a m et ad e


in fe r io r est á esp er an d o a lib e r t a çã o e u m a segu n d a d o m e st ica çã o . Ma s, at é lá, co n t in u a associad a aos
vest ígio s d a e r a p r é -h ist ó r ica , ao in co n scie n t e colet ivo, o qu e sign ifica u m a p e cu lia r e cr escen t e at ivação
d o in co n scie n t e co le t ivo " ("Sob r e o in co n scie n t e ". O C , I O , § 17). D e se n vo lve u est a sit u ação e m "W o t a n "
( O C , 10 ,19 36 ) .
123 N o esboço, est a frase é assim : "M a s n ó s q u e r e m o s co n t in u a r vive n d o c o m u m n o vo D e u s, u m h e r ó i a lém
d e Cr i s t o " (p . 76 ) . N a s Mem órias, Ju n g r e la t o u a An i e l a Jaffé q u e ele h a via p en sad o d e si m e sm o co m o
u m h e r ó i ven ced or , m as o so n h o in d ica va q u e o h e r ó i t in h a d e ser m o r t o . Est e exagero d a vo n t a d e fo i
d e m o n st r a d o n aq u ela é p o ca p r e cisa m e n t e p elos a lem ã es, co m o n a Li n h a Siegfr ied . " U m a vo z d e n t r o d ele
d iz ia : 'Se n ã o en t en d es o son h o, d eves m a t a r - t e ' " ( M P , p. 9 8 . Mem órias, 216 ). A Li n h a Siegfr ied o r igin a l
foi u m a li n h a d efen siva est ab elecid a p elos a le m ã e s n o n o r t e d a Fr a n ça e m 1917 ( e r a n a ve r d a d e u m a
su b d ivisã o d a Li n h a H i n d e n b u r g ) .
124 O t e m a d o d eu s q u e m o r r e e r essu scit a d e se m p e n h a p ap el im p o r t a n t e n a o b r a d e F R A Z E R , J. The
Golden Bough: A St u d y i n Ma gic a n d Re ligio n . Lo n d r e s: M a c m illa n , 1911-1915. E l a fo i u sad a p o r Ju n g e m
Transform ações e sím bolos da libido.
125 U m a r efer ên cia à p a r á b o la d e Cr i s t o d o gr ã o d e m o st a r d a . M t 13,31-2: " O Re i n o d os Cé u s é se m e lh a n t e a
u m gr ã o d e m o st a r d a , q u e u m h o m e m t o m a e se m e ia e m seu cam p o. E a m e n o r d as sem en t es, m as d ep ois
d e cr e scid a é a m a io r d as h o r t a liça s, ch egan d o a t o r n a r - se á r vo r e " (cf. Lc 13,18-20; M c 4 ,30 - 32) .
C O N C EP Ç ÃO D O D EU S 149

Q u an d o assim falei, apareceu de repente o espírito da profundeza, encheu-m e


de t on t u ra e n évoa e falou com voz fort e estas palavras: [ BO iv( v) ] "Concebi teu
em brião tu que vens!

Eu o concebi na m ais profunda necessidade e hum ildade.


Eu o envolvi em panos ridículos e deitei no berço de pobres palavras.
E escárnio o adorou, teu filho, teu filho m aravilhoso, ofilhode alguém que está para vir, que deve
anunciar o Pai, um fruto que é m ais velho do que a árvore da qual nasceu.
Conceberás com dores, e alegria é teu nascim ento.
Medo é teu arauto, dúvida está à tua direita; decepção, à tua esquerda.
Perecem os em nosso ridículo e insensatez quando te enxergam os.
Nossos olhos ficaram cegos e nosso saber em udeceu quando captam os teu brilho.
Tu, novafagulha do fogo eterno em cuja noite nasceste.
Tu vais extorquir de teus fiéis verdadeiras orações, e em tua hom enagem precisam falar em línguas,
que para eles são um horror.
Tu virás sobre eles na hora de sua ignom ínia, tu te revelarás naquilo que eles odeiam , tem em e
abom inam 126.
Tua voz, a harm onia m ais rara, nós vam os perceber na gagueira do desordenado, do jogado fora e
do am aldiçoado com o sem valor.
Teu reino tocarão com as m ãos aqueles que adoraram tam bém antes da m ais profunda hum ildade e
cujo desejo os im peliu através da torrente de lodo do m al.
Tu darás teus dons àqueles que rezam com horror e dúvida, e tua luz vai brilhar para aqueles cujos
joelhos devem dobrar-se contra sua vontade e cheios de revolta.
Tua vida está com aquele que venceu a si m esm o / [ B O v ( r ) ] e negou sua vitória contra sifoi.i v ( r )
/ v( v)

m esm o127.
Tam bém eu sei que a liberalidade da graça só é dada àquele que acredita no m ais elevado e trai a si
m esm o deslealm ente por trinta m oedas de prata128.

126 E m M c 16,17, Cr i s t o a fir m o u q u e aqu eles q u e a cr e d it a m falar ão n ovas lín gu as. A q u e st ã o d e falar e m
lín gu as é d iscu t id a e m i C o r 14 e é t e m a ce n t r a l d o m o vim e n t o p en t eco st al.
127 O t e m a d a a u t o ssu p e r a çã o é im p o r t a n t e n a o b r a d e N ie t z sch e . E m Assim falava Zaratustra, N ie t z sch e
escreve: " E u vos e n sin o o a lé m - h o m e m . O h o m e m é algo q u e p r ecisa ser su p erad o. Q u e fizest es p a r a
su p e r á -lo ? At é agora t od os os seres c r ia r a m a lgu m a coisa qu e os u lt r ap assou : e q u er eis ser r eflu xo d essa
gran d e m a r é e r e t o r n a r ao a n im a l e m ve z d e su p er ar o h o m e m ?" ( "Pr ó lo go d e Za r a t u s t r a 3"; su b lin h a d o
co n fo r m e o e xe m p la r d e Ju n g) . Pa r a a d iscu ssão d e Ju n g sob re est e t e m a e m N ie t z sch e , ve r J A R R E T , J.
( o r g.) . Nietzsche s Zaratustra: N o t e s o f t h e se m in a r give n i n 1934-1939. Vo l . 2. P r in ce t o n : P r in c e t o n U n ive r s it y
Pr ess, 19 8 8 , p. 1.502-1.508.
128 Ju d as t r a iu Jesu s p o r t r in t a m oed as d e p r a t a ( M t 26 ,14-16 ) .
L I B E R P R I M U S foi. iv(r)/ v(v)

Os que sujarem suas m ãos lim pas e que trocarem seu m elhor saber pelo erro e tirarem suas virtudes
de um covil de assassinos são convidados para teu grande banquete.
O astro de teu nascim ento é um a estrela falsa e um planeta.
Estes, ófilhodo que virá, são os m ilagres que se tornarão testem unhas de que és um verdadeiro Deus".

[ 2 ] Q u an d o m eu prín cipe h avia caído, o espírit o da profun deza ab riu m in h a


visão e p er m it iu que eu observasse o n ascim en t o do n ovo Deu s.
A crian ça d ivin a opôs-se a m im a p art ir do trem en dam en te am bíguo, do feio-
-bon ito, do m au -bom , do ridículo-sério, do doente-sadio, do in u m an o-h u m an o
e do n ão d ivin o -d ivin o 129 .
Com p r een d i que o De u s I 3 °, que procuram os n o absoluto, n ão h á de ser e n -
con t rado n o belo, bom , sério, elevado, h u m an o, n em m esm o n o d ivin o absolu -
tos. Lá esteve u m a vez Deu s.
En t e n d i que o n ovo Deu s est á n o relat ivo. Se Deu s é o belo e bom absolutos,
com o deve abranger a plen it u d e da vid a, que é bela e feia, boa e m á, ridícula e
séria, h u m an a e in u m an a? Co m o pode o ser h u m an o viver n o seio da d ivin d a-
de, se a d ivin d ade só se aceit a em sua m et ad e? 131
Se t iverm os subido perto da alt u ra do bem e do belo, nosso r u im e feio jazem
em t orm en t o extrem o. Seu t orm en t o é tão grande e o ar da alt u ra tão rarefeito,
que a pessoa m al ain da pode viver. Por isso o bom e o belo se solidificam em ferro
da id eia ab solu t a 132 , e o r u im e feio t orn am -se poça de lam a, ch eia de vid a infam e.
Por isso, o Cr ist o teve de descer ao in fern o após sua m ort e, caso con t rário
sua su bida ao céu se t eria t orn ado im possível. O Cr ist o teve de se t orn ar antes
seu an t icrist o, seu irm ão su bt errân eo.
Nin gu ém sabe o que acon t eceu nos três dias em que Cr ist o esteve n o i n -
fern o. Mas eu ch eguei a sa b ê -lo 133 . As pessoas de an t igam en t e d iziam que lá
ele pregou aos ad or m ecid os 134 . É verdade o que eles d izem , mas sabeis com o
ist o acon teceu?

129 Ve r n o t a 58, p. 123.


130 Es t a co n ce p çã o d a n a t u r e z a ab r an gen t e d o n o vo D e u s é d e se n vo lvid a de forma co m p le t a m a is ad ian t e
e m "Ap r o fu n d a m e n t o s" ( Se r m ã o , 2, p. 45$s.).
131 O t e m a d a in t egr ação d o m a l n a d ivin d a d e d e se m p e n h o u u m p ap el im p o r t a n t e n as ob ras d e Ju n g - cf.
Aion, 1951. O C , 9/ 2, cap. $, e Resposta ajó, 1952. O C , 11/4.
132 A co n ce p çã o d a id e ia ab so lu t a fo i d e se n vo lvid a p o r H e ge l. Est e e n t e n d e u - a co m o a cu lm in a çã o e a
u n id a d e a u t o d ife r e n cia d o r a d a se q u ê n cia d ialét ica qu e o r igin o u o cosm os. Cf. Hegets Logic ( Lo n d r e s ,
T h a m e s a n d H u d s o n , 1975 [Tr a d . d e W W a lla c e ] ) . Ju n g r efer e-se a ist o e m 1921 e m Tipos psicológicos ( O C ,
6, § 735)-
133 Es t a frase fo i co r t a d a n o esboço corrigido e su b st it u íd a p or: "m a s é p o ssível a d ivin h á -lo ".
134 i P d 4,6 afir m a: "P o is, p a r a isso fo i a n u n cia d a a b o a -n o va aos m o r t o s, a fim d e q u e, ju lgad os co m o
h o m e n s n a car n e, viva m segu n d o D e u s n o e sp ír it o ".
C O N C EP Ç ÃO D O D EU S foi

Er a lou cu ra e m om ice, u m a t errível m ascarada in fern al dos m ais sagrados


m ist érios. D e que ou t ra form a pod eria Cr ist o t er salvo seu an t icrist o? Led e os
livros descon h ecidos dos antigos e apren dereis ali m u it as coisas. At en d ei bem ,
Cr ist o n ão ficou n o in fern o, mas su biu para a alt u ra do a lé m 135 .
Nossa con vicção do valor do b om e do belo t orn ou -se fort e e im perd ível,
por isso pode a vid a est en der-se para m ais além e preen ch er ain d a tudo que
estava am arrado e desejoso. Mas o am arrado e desejoso são precisam en t e o feio
e o m au . T u te revoltas con t ra o feio e o mau?
Nisso podes perceber quão grandes são sua força e seu valor da vid a. T u
pensas que ist o está m ort o em t i? Mas este m ort o pode t ran sform ar-se t am bém
em ser p en t es 136 . As serpen tes vão apagar o prín cipe de t eu d ia.
Vist e que beleza e alegria sobrevieram às pessoas quan do a profun deza de-
sen cadeou est a grande guerra? E assim m esm o foi u m pavoroso co m e ço 137 .

135 O t e m a d a d escid a d e Cr i s t o aos in fe r n o s d e se m p e n h a u m im p o r t a n t e p ap el e m d iver sos evan gelh os


ap ó cr ifo s. N o "Cr e d o d os Ap ó s t o lo s " a fir m a -se qu e "ele d esceu aos in fe r n o s. Ao t e r ce ir o d ia r e ssu scit o u
n o va m e n t e d os m o r t o s". Ju n g co m e n t o u o a p a r e cim e n t o d est e m o t ivo n a a lq u im ia m e d ie va l (Psicologia e
Alquim ia, 1944. O C , 12, § 6 i n . , 4 4 0 , 451. • Mystcríum coníunctíonís 1955/ 1956. O C , 14, § 173). U m a das fon t es a
qu e Ju n g se r e fe r ia ( O C , 12, § 6 i n . ) er a Nckyia: BcítrãgczurErklárungdcrncucntdccktcnPctrusapokalypsc de Alb r e c h t
D ie t e r ic h , qu e co m e n t a va u m fr agm en t o a p o ca líp t ico d o Eva n ge lh o de Ped ro, e m qu e Cr i s t o for n ece u m a
d escr ição d et alh ad a d o in fe r n o . O e xe m p la r qu e Ju n g t in h a d est a o b r a co n t é m n u m er o sas m a r ca çõ e s n as
m ar gen s e n o fin a l est ão m a is d ois p e d a ço s d e p ap el co m u m a list a d e r efer ên cias d e p ágin as e o b ser va çõ es.
E m 1951, ele d e u a segu in t e in t e r p r e t a çã o p sico ló gica d o m o t ivo d a d escid a de Cr i s t o aos in fe r n o s: " O
â m b it o d a in t egr ação é in d ica d o p elo 'd escen su s a d in fer o s', d escid a d e Cr i s t o aos in fe r n o s, d escid a
cu jos efeit os r ed en t o r es ab r an gem in clu sive os m o r t o s. O seu eq u ivalen t e p sico ló gico é a in t egr a çã o d o
in co n scie n t e colet ivo, p ar t e co n st it u t iva e in d isp e n sá ve l d a in d ivid u a çã o " (Aíon. O C , 9/ 2, § 72) . E m 1938
ele an o t o u : "A d escid a aos in fe r n o s, d u r a n t e os t rês d ias e m qu e p er m a n ece m o r t o , sim b o liz a o m e r gu lh o
d o va lo r d esap ar ecid o n o in co n scie n t e , o n d e, vit o r io so sob re o p o d er das t r evas, est abelece u m a n o va
o r d e m d e coisas e de on d e vo lt a , p a r a elevar -se at é o m ais alt o d os céu s, o u seja, at é a clar id ad e su p r e m a d a
co n sciê n cia " (Psicologia e religião. O C , 11, § 14 9 ) . A e xp r e ssã o "livr o s d escon h ecid os d os an t igos" r efer e-se aos
evan gelh os ap ó cr ifo s.
136 O esboço co n t in u a : "M a s a ser p en t e t a m b é m é vid a . O s an t igos d isse r a m e m im a ge m qu e fo i a ser p en t e
qu e p r e p a r o u u m fim p a r a a m a gn ificên cia ju ve n il d o p ar aíso, d iz ia m at é m e sm o qu e fo i o p r ó p r io Cr i s t o
aq u ela se r p e n t e " (p . 8 3) . Ju n g co m e n t a est e m o t ivo e m Aíon ( 19 50 . O C , 9/ 2, § 29 1) .
137 O esboço corrigido t em : "u m c o m e ç o d o in fe r n o " (p . 7 0 ) . E m 1933 Ju n g r eco r d o u : "N o in ício d a gu e r r a e u
est ava e m In ve r n e ss, e r e t o r n e i p assan d o p e la H o l a n d a e p ela Ale m a n h a . C r u z e i c o m os e xé r cit o s qu e ia m
e m d ir e çã o oest e e t ive a sen sação de qu e se t r a t a va d aq u ilo qu e e m a le m ã o ch a m a m o s de Hochzeítsstím m ung,
u m a fest a de a m o r e m t od o o p aís. Tu d o est ava d ecor ad o c o m flores, er a u m a e xp lo sã o de am or , t od os eles
se a m a va m u n s aos o u t r o s e t u d o er a b o n it o . Si m , a gu e r r a e r a im p o r t a n t e , u m gr an d e e m p r e e n d im e n t o ,
m as a co isa p r in cip a l e r a o a m o r fr a t er n o p o r t od o o p aís, t od o m u n d o e r a ir m ã o de t od o m u n d o , p o d ia -
se t e r t u d o o qu e algu ém p o ssu ísse, seja o qu e for. O s cam p on eses a b r ia m suas adegas e d ist r ib u ía m o
qu e t in h a m . Ist o aco n t eceu at é n o r est au r an t e e n o b ar d a est ação fer r o viár ia. E u est ava co m m u i t a fom e,
n ã o t ive r a n a d a p a r a co m e r p o r cer ca de 24 h o r as, e eles t in h a m algu n s sa n d u ích es qu e h a via m sob rad o,
e, q u an d o p e r gu n t e i q u an t o cu st a va m , d isser a m : ' O h ! n ad a, p od e p egar!' E q u an d o cr u z e i a fr o n t e ir a
d a Al e m a n h a , fom os levad os p a r a u m a e n o r m e b a r r a ca ch e ia de ce r ve ja e lin gu iça e p ã o e q u eijo, e n ã o
p agam os n ad a, e r a u m a gr an d e fest a d e am or. Fiq u e i ab so lu t am en t e d esn o r t ead o " ( D O U G L A S , C . Vísíons
Sem ínars. 2. ed. ( P r in ce t o n : P r in c e t o n U n i ve r s i t y Press, 1997, p. 9 74 - 9 75) .
152 L I B E R P R I M U S foi. iv( r ) / v( v)

Se n ão t iverm os a profun deza, com o terem os a altura? Mas vós t em eis a


profun deza e n ão quereis ad m it ir que a t em eis. Mas é bom que t en h ais medo,
d izei-o em voz alt a que tendes medo. E sabedoria t er medo. Só os h eróis d izem
que est ão isen tos de medo. Mas vós sabeis o que acontece ao h erói.
Co m m edo e t rem or, olh an do desconfiados ao redor de vós, ide assim para
a profun deza, mas n ão u m sozin h o; em dois ou m ais, a seguran ça é m aior, pois
a profun deza est á ch eia de assassinato. Assegu rai-vos t am bém sobre o cam in h o
da volt a. Ide com cuidado, com o se fôsseis covardes, a fim de vos an tecipardes
ao assassino de alm as 138 . A profun deza gost aria de vos en golir por com plet o e
afogar n a lam a.
Q u e m desce ao in fern o t am bém se t orn a in fern o, por isso n ão esqueçais de
onde viestes. A profun deza é m ais forte do que n ós; port an t o, sede espertos e
n ão h eróis, pois n ada é m ais perigoso do que ser u m h erói por con t a própria. A
profun deza gost aria de m an t er-vos; a m u it os ela n ão m ais devolveu, por isso as
pessoas fugiram da profun deza e lh e fizeram violên cia.
O que t eria acon tecido se a profun deza, devido à violên cia, se tivesse t ran s-
form ado n a m ort e? Mas a profun deza se t ran sform ou n a m ort e; por isso em it iu
a m ort e m ilh ares de vezes quan do aco r d o u 139 . N ã o podem os m at ar a m ort e,
pois já lh e tom am os toda a vid a. Se ain d a quiserm os ven cer a m ort e, en t ão
tem os de avivá-la.
Por isso, levai em vossa viagem também taças de ouro, cheias de bebida doce da
vida, vin h o tinto e dai-o à matéria m orta para que readquira vida. A matéria m orta
vai transformar-se n a serpente negra. Não vos assusteis, a serpente apagará im edia-
tamente o sol de vosso dia, e um a noite de maravilhosas luzes falsas virá sobre vós I4 °.
Fazei força para despert ar a m ort e. Cavai profun das covas e jogai nelas ofe-
ren das, a fim de que cheguem ao m ort o. Pen sai com coração bon doso n o m al,
este é o cam in h o da subida. Mas antes da su bid a tudo é n oit e e in fern o.

138 A e xp r e ssã o "Assassin o d e alm as" fo r a u sad a p o r Lu t e r o e Zw in glio e, m a is r e ce n t e m e n t e , p o r D a n i e l


Pa u l Sch r e b e r e m su a o b r a DenkwúrâígkeíteneinesNervenkranken. Le p z ig: O s w a l d M u t z e , 1903. Ju n g d iscu t iu
est a o b r a e m 19 0 7 e m "A p sicologia d a d e m e n t ia p r aeco x" ( O C , 3) . E m d iscu ssõ es a r esp eit o de Sch r eb er
n a Asso cia çã o de Psico lo gia An a lít ica a 9 e 16 d e ju lh o de 1915, ap ós a p r e se n t a çõ e s de Sch n e it e r , Ju n g
ch a m o u a a t e n çã o p a r a p ar alelos gn ó st ico s das im agen s de Sch r eb er (Minutes of the Assocíatíonfor Analytícal
Psychology, vo l. 1, p. 8 8 s.) .
139 A r efer ên cia é à ca r n ificin a d a P r im e ir a Gu e r r a M u n d ia l.
140 Ist o se refere à visã o d o cap ít u lo V, "D e s c i d a ao in fe r n o n o fu t u r o ". E m 19 4 0 , Ju n g escr eveu : "A a m e a ça
d a p r ó p r ia sin gu lar id ad e p o r d r a gõ es e cob ras in d ica d e m o d o p a r t icu la r o p er igo d e a co n sciê n cia
r e ce n t e m e n t e a d q u ir id a ser t ragad a n o va m e n t e p ela a lm a in st in t iva , o in co n scie n t e " ( "A p sicologia d o
a r q u é t ip o d a cr ian ça", 9/ 1, § 28 2) .
C O N C EP Ç ÃO D O D EU S 153

O que pensais d a n at u reza do in fern o? O in fern o é quan do a profu n de-


za chega a vós com tudo o que n ão m ais ou ain d a n ão d om in ais. O in fern o
é quan do n ão podeis alcan çar o que pod eríeis alcançar. O in fern o é quan do
deveis pensar, sen t ir e fazer tudo aquilo que sabeis que n ão quereis. O in fern o
é quan do sabeis que ele é vosso dever e vosso querer e que vós m esm os sois res-
pon sáveis por isso. O in fern o é quan do sabeis que todo o sério que tendes em
vist a com relação a vós t am bém é ridículo, que todo delicado t am bém é brut o,
todo o b om t am bém é m au , todo o alto t am bém é baixo, que todas as obras boas
t am bém são obras m ás.
Mas o in fern o m ais profun do é quan do percebeis que o in fern o t am bém
n ão é n en h u m in fern o, mas u m céu alegre, n ão u m céu em si, mas u m t an t o céu
e u m t an t o in fern o.
Est a é a am biguidade de Deu s, ele nasce de u m a am biguidade escura e sobe
para u m a am biguidade lu m in osa. In equ ivocid ad e é u n ilat eralid ad e e con duz à
m o r t e 14 1. Mas a am biguidade é o cam in h o da vid a 14 2 . Se o pé esquerdo n ão vai,
en t ão vai o d ireit o, e t u cam in h as; é ist o que Deu s q u er 14 3 .
Vó s d izeis: o Cr ist o - D e u s é in equ ívoco, ele é o a m o r 14 4 . Mas o que é m ais
am bígu o do que o am or? O am or é o cam in h o d a vid a, m as vosso am or só
en t ão é u m cam in h o d a vid a quan do ele t em u m esquerdo e u m d ireit o. Nad a
é m ais fácil do que b r in car de am biguidade, e n ada m ais difícil do que viver a
am biguidade. Q u e m b r in ca é crian ça, seu Deu s é velh o e m orre. Q u e m vive
é adulto, seu Deu s é jovem e passa para o ou t ro lado. Q u e m b r in ca esconde a
m ort e in t erior. Q u e m vive sente o passar para o out ro lado e o im ort al. Por-
t an t o d eixai aos brin calh ões a brin cad eira. De ixa i cair o que quer cair; se o se-
gurardes, ele vos arrast a jun t o. Exist e u m verd ad eiro am or que n ão se preocupa
com o p r ó xim o 14 5 .

141 O esboço corrigido t e m : "a u m fi m " (p . 73) .


142 E m 1952, Ju n g escr eveu a Z w i W e r b lo w s k y a r esp eit o d a am b igu id ad e in t e n c io n a l de seus escr it os: "A
lin gu agem qu e falo p r e cisa ser a m b ígu a , d eve t e r duplo sentido, p a r a fazer ju st iça à n a t u r e z a p síq u ica c o m seu
d u p lo aspect o. E u p r o cu r o co n scien t e e in t e n cio n a lm e n t e a e xp r e ssã o d e d u p lo sen t id o, p or q u e é su p e r io r
à u n ivo cid a d e e co r r esp o n d e à n a t u r e z a d o se r " (Cartas II, p. 24 5) .
143 O esboço co n t in u a : "O l h a i p a r a as im agen s d os d eu ses qu e os an t igos e os a n t iq u íssim o s n os legar am : su a
n a t u r e z a é a m b ígu a e d e m u it o s sen t id os (p . 8 7) .
144 1J0 4,16: "D e u s é a m o r ; q u e m p er m a n ece n o a m o r p e r m a n e ce e m D e u s, e D e u s n ele".
145 O esboço co n t in u a : "Q u e m d ist o r ce est a e ou t r as p alavras é u m b r in calh ão , p ois n ã o r esp eit a a p ala vr a
falad a. Pr e st a at en ção, t u gan h as a t i m e sm o a p a r t ir d a q u ilo qu e lês n u m livr o . T u lês n u m livr o t a n t o p a r a
d e n t r o co m o p a r a fo r a " ( p . 8 8 ) .
L I B E R P R I M U S foi. iv(r)/ v(v)

Q u an d o o h erói h avia sido assassinado, o sen t ido recon h ecido com o absur-
do, quan do todo o ten so descia ru id osam en t e de n uven s pren h es, quan do tudo
se h avia t orn ado covarde e pen sava n a p róp ria salvação, t om ei con sciên cia e n -
tão do n ascim en t o de D e u s 14 6 . O Deu s in clin ou -se para m im em m eu coração,
quan do eu estava pert u rbado por escárn io e adm iração, por pesar e sorriso, por
sim e não.
D a fun dição dos dois n asceu o ún ico. Ele n asceu com o crian ça de m in h a
p róp ria alm a h u m an a, que com o u m a virgem a con cebeu com m u it o tem or.
Corresp on d e assim à im agem que os antigos nos legaram d ist o 14 7 . Mas quan do
a m ãe, m in h a alm a, estava grávida de Deu s, eu n ão o sabia. Pareceu-m e in clu -
sive com o se m in h a alm a fosse o p róp rio Deu s, ain d a que ele só m orasse em
seu co r p o 14 8 .
E assim cu m p riu -se a im agem dos antigos: eu perseguia m in h a alm a para
m at ar a crian ça d en t ro dela. Pois eu sou t am bém o p ior in im igo de m eu D e u s 14 9 .
Mas recon h ecia que t am bém m in h a h ost ilidade está decret ada em Deu s. Ele é
zom baria, ód io e raiva, pois t am bém ist o é u m cam in h o da vid a.
Devo d izer que o Deu s n ão pod ia vir a ser antes que o h erói tivesse sido as-
sassinado. O h erói, com o n ós o en t en dem os, t orn ou -se in im igo de Deu s, pois o
h erói é perfeição. O s deuses in vejam a perfeição do ser h um an o, pois o perfeit o
n ão precisa dos deuses. Mas com o n in gu ém é perfeito, precisam os dos deuses.
O s deuses am am o perfeito, pois é o cam in h o t ot al da vid a. Mas os deuses n ão
estão com aquele que gost aria de ser perfeito, pois é u m im it ad or do p er feit o 150 .
A im it ação foi u m cam in h o da vid a, quan do o ser h u m an o ain d a precisava do
exem plo h e r ó ico 151. A m an eira de ser do m acaco é u m cam in h o da vid a para o
macaco, e para o ser h um an o, en quan t o é amacac^çto. O amacacado do ser h u -

146 O esboço corrigido t e m "n a scim e n t o d o n o vo " ( co n ce p çã o de u m ) D e u s (p . 74 ) .


147 Re fe r ê n cia à Vi r g e m Ma r ia .
148 Cf. n o t a 57, p. 122.
149 Parece u m a r efer ên cia ao fe r im e n t o de Iz d u b a r n o Líber Secundus, cap. 8, P r im e ir o D i a . Cf. ad ian t e, p. 247.
150 A im p o r t â n cia d a t ot alid ad e sob re a p e r fe içã o é t e m a im p o r t a n t e n a o b r a p o st e r io r de Ju n g. Cf. Aion
(1951). O C , 9/ 2, § 123. • Mysteríum coníunctíonís (19 55). O C , 14, § 616.
151 E m 1916, Ju n g escreveu : " O h o m e m p o ssu i u m a facu ld ad e m u it o va lio sa p a r a os p r o p ó sit o s colet ivos,
m as e xt r e m a m e n t e n o civa p a r a a in d ivid u a çã o : su a t e n d ê n cia à im itação. A p sicologia co le t iva n ã o p od e
p r e scin d ir d a im it a çã o " ( "A e st r u t u r a d o in co n scie n t e ". O C , 7, § 4 6 3) . E m "A p sicologia d o a r q u é t ip o
d a cr ia n ça " ( 19 4 0 ) , Ju n g escr eveu sob re o p er igo d a id en t ificação co m o h er ó i: "T a l id en t ificação é
fr e q u e n t e m e n t e o b st in ad a e p r eocu p an t e p a r a o e q u ilíb r io a n ím ico . Se essa id en t ificação p u d e r ser
d isso lvid a at r avés d a r e d u çã o d a co n sciê n cia à su a m e d id a h u m a n a , a figu r a d o h e r ó i va i d ife r e n cia r -se
gr ad at ivam en t e at é o sím b o lo d o si- m e sm o " ( O C , 9/ 1, § 30 3) .
C O N C EP Ç ÃO D O D EU S 155

m an o d u ra por u m espaço de t em po colossal, mas ch egará o tem po em que vai


cair u m ped aço do amacacado do ser h um an o.
Será u m tem po de salvação e de descida d a pom ba e d o fogo e salvação
etern os.
En t ão n ão h averá m ais n en h u m h erói e n in gu ém que o possa im it ar. Pois, a
p art ir desse tem po, t oda im it ação é am aldiçoada. O n ovo Deu s r i da im it ação
e do seguim ento. Ele n ão precisa de repet id or e de n en h u m discipulado. Ele
força a pessoa através dele mesmo. O Deu s é seu p róp rio part id ário n a pessoa.
Ele im it a a si m esm o.
Pen sam os que em n ós h á o in d ivid u al e que fora de n ós h á o geral. For a de
n ós é geral em relação a fora de n ós, mas é ser in d ivid u al em relação a n ós. Em
n ós é ser in dividual em relação a nós, mas geral em relação a fora de nós. Somos in -
dividuais quando estamos em nós, mas gerais em relação a fora de nós. Mas quando
estamos fora de nós, somos in dividuais e egoístas no geral. Nosso si-m esm o sofre
necessidade quan do estam os fora de n ós e assim preen ch e com suas n ecessida-
des o geral; desta m an eira o geral é falsificado em relação ao in d ivid u al. Q u an d o
estam os em n ós, preen ch em os a necessidade do si-m esm o, n ós prosperam os,
t orn am o-n os con scien tes das necessidades do geral e podem os sat isfazê-las 152 .

Q u an d o colocam os u m Deu s fora de n ós, ele nos arran ca do si-m esm o,


pois o Deu s é m ais fort e do que n ós. Nosso si-m esm o sucum be à m iséria. Mas
quan do o Deu s en t ra n o si-m esm o, en t ão ele nos arran ca do fora de n ó s 153 .
Ch egam os ao ser in d ivid u al em n ós. Assim o Deu s t orn a-se geral em relação ao
fora de n ós; in d ivid u al, p orém , em relação a n ós. Nin gu ém possui m eu Deu s,
mas m eu Deu s possui a todos, in clu sive a m im . O s deuses de todas as pessoas
in d ivid u ais possuem sem pre todas as outras pessoas, in clu sive a m im m esm o.
E assim é sem pre apenas o ú n ico Deu s apesar de sua m u lt iplicid ad e. A ele per-
tences em t i m esm o, mas só pelo fato de t eu si-m esm o te pren der. Ele te pren de
n o prosseguim en to de t u a vid a.

152 Jung abordou a questão do conflito entre individuação e coletividade em 1916, em "Individuação e
coletividade". O C , 18, § 1.103.
153 Cf. comentários de Jung em "Individuação e coletividade" de que "o indivíduo precisa agora consolidar-se,
separando-se totalmente da divindade e tornando-se ele mesmo. Com isso e ao mesmo tempo separa-se da
sociedade. Exteriormente mergulha na solidão e, internamente, no inferno, no afastamento de Deus". O C ,
18, § 1.103.
L I B E R P R I M U S fol.v(r)/ v(v)

O h er ói t em de s u c u m b i r p o r ca u sa de n o ssa r e d e n ç ã o , p o is ele é e xe m p l o e
exige im itação. Mas a m ed id a d a im it ação est á ch e ia 154 . N ó s devem os ser salvos
para a solidão em n ós e para Deu s n o fora de n ós. Ao en t rarm os n est a solidão,
com eça a vid a de Deu s. Q u an d o estam os em n ós, o espaço fora de n ós est á
livre, mas replet o de Deu s.
Nosso relacion am en t o com as pessoas passa por este espaço vazio, p or t an -
to através de Deu s. Mas an tigam en te passava pelo egoíst ico, pois est ávam os
fora de n ós. Por isso m e disse previam en t e o espírit o, que a friagem do espaço
cósm ico se d eposit aria sobre a t e r r a 155 . Co m isso, m ost rou -m e em im agem que
Deu s vai colocar-se en t re os seres h um an os com o ch icot e da friagem glacial
e t ocar cada in d ivíd u o para o calor de seu p róp rio reban h o claust ral. Pois as
pessoas vagueavam com o doidas fora de si.
A am bição egoíst a procu ra ao fin al a si m esm a. T u te en con t rarás a t i m esm o
em t u a am bição, port an t o n ão digas que a am bição é fútil. Se t u am bicion as a t i
m esm o, geras n o abraço a t i m esm o o Filh o de Deu s. Tu a am bição é o Deu s-Pai,
t eu si-m esm o a d eu sa-m ãe, mas o Filh o é o n ovo Deu s, t eu senhor.
Q u an d o abraças t eu si-m esm o, parece-te que o m u n d o ficou frio e vazio. E
neste vazio que en t ra o Deu s que virá.
Q u an d o estás em t u a solidão e todo espaço ao t eu redor se t orn ou frio e
in fin it o, en t ão te afastaste das pessoas, mas ao m esm o tem po chegaste pert o
delas com o n u n ca antes. A am bição egoíst a con d u ziu -t e apenas aparen t em en t e
às pessoas, mas n a verdade con d u ziu -t e para longe delas e n o fin al a t i m esm o
n aqu ilo que estava m ais longe para t i e para as outras pessoas. Mas se estiveres
n a solidão, t eu Deu s vai con d u zir-t e ao Deu s das outras pessoas e com isso à
verd ad eira proxim id ad e, à proxim id ad e do si-m esm o n a ou t ra pessoa.
Q u an d o estás em t i m esm o, tom as con sciên cia de t eu n ão poder. H á s de
perceber quão pouco és capaz de im it ar h eróis e t u m esm o seres u m h erói.
Port an t o, n ão m ais obrigarás os outros a serem h eróis. Eles sofrem do n ão p o-
der com o t u . O n ão poder t am bém quer exist ir, mas ele vai pert u rbar vossos
fol.v(r) deuses. [ BP v( r ) ] /
Mv )

154 Um a interpretação do assassinato de Siegfried no Liber Prímus, cap. vii, "Assassinato do herói".
155 Refere-se ao sonho mencionado no prólogo, p. 107.
M YS T E R I U M . E N C O N T R O 157

Myst erium .
En con t ro
[IH v( v) ]
Cap. ix.

N a n oit e em que m ed it ei sobre a n at u reza de Deu s, veio-m e à m en t e u m a


im agem : eu estava deitado n u m a profun deza escura. U m h om em velh o estava
d ian t e de m im . Tin h a a aparên cia de u m daqueles antigos p rofet as 156 . A seus
pés h avia u m a cobra pret a. A cert a dist ân cia vi u m a casa ch eia de colun as. U m a
lin d a m oça saiu da port a. Cam in h ava in seguram en t e, e percebi que era cega. O
velh o m e acen ou e eu o sigo para a casa ao pé de u m roch edo m u it o alto. At rás
de n ós vem rast ejan do a cobra. N o in t er ior da casa r ein a a escuridão. Est am os
n u m salão alto com paredes cin t ilan t es. N o plan o de fun do h á u m a pedra de
aquarela clara. Q u an d o olh ei n o seu reflexo, apareceu-m e a im agem de Eva, da
árvore e da serpen te. Dep ois avist ei Ulisses e seus com pan h eiros n o vasto mar.
De repen t e abriu-se à d ir eit a u m a p ort a para u m jar d im ilu m in ad o pelo sol.
Saím os, e o velh o m e falou: "Sabes on de est ás?"
Eu : "Sou aqui u m est ran h o e tudo é m aravilh oso, assustador com o u m so-
nho. Q u e m és t u ?"
E: "E u sou Elia s 15 7 e esta é m in h a filh a Sa lo m é "158 .
Eu : "A filh a de H erod íad es, a m u lh er san guin ária?"
E: "Por que julgas assim? T u vês, ela é cega. El a é m in h a filh a, a filh a do
profet a".

156 No Livro Negro 2, Jung observa: "com barba grisalha e veste oriental" (p. 231).
157 Elias foi um dos profetas do Antigo Testamento. Aparece pela primeira vez em iRs 17, trazendo uma
mensagem de Deus a Acab, rei de Israel. Em 1953, o carmelita Père Bruno escreveu a Jung perguntando
como se estabelecia a existência de um arquétipo. Jung respondeu tomando Elias como exemplo,
descrevendo-o como um personagem altamente mítico, o que não o impedia de ter sido provavelmente
uma figura histórica. Aproximando descrições de Elias feitas ao longo da história, Jung descreveu-o
como um "arquétipo vivo", que representava o inconsciente coletivo e o si-mesmo. E observou que esse
arquétipo constelado deu origem a novas formas de assimilação e representava uma compensação por
parte do inconsciente ( O C, 18, § 1.518-1.531).
158 Salomé era filha de Herodíades e enteada do rei Herodes. Em Mt 14 e Mc 6, João Batista havia dito ao
rei Herodes que não lhe era lícito estar casado com a mulher de seu irmão, e Herodes colocou-o na prisão.
Salomé (que não é nomeada, mas simplesmente chamada filha de Herodíades) dançou diante de Herodes
no aniversário deste, e ele prometeu dar-lhe tudo que ela desejasse. Ela pediu a cabeça de João Batista,
que então foi decapitado. No final do século X I X , a figura de Salomé fascinou pintores e escritores, entre
os quais Guillaume Apollinaire, Gustave Flaubert, Stéphane Mallarmé, Gustave Moreau, Oscar W ilde e
Franz von Stuck, recebendo destaque em muitas obras. Cf. D I JKST RA, B. idoísofPerversíty. Fantasies of
Feminine Evil in Fin-de-Siècle Culture. Nova York, O xford Un iversity Press, 1986, p. 379-398.
L I B E R P R I M U S foi. v(r)/ v(v)

Eu : "Q u e m ilagre vos u n iu ?"


E: "Ne n h u m m ilagre. Fo i assim desde o com eço. Min h a sabedoria e m in h a
filh a são u m a coisa só".
Fiq u ei estupefato, n ão con segui en ten der.
E: "Pen sa bem : sua cegueira e m in h a visão fizeram de n ós com pan h eiros
desde a et ern idade".
Eu : "Perd oa m in h a perplexidade, estou m esm o n o su bm u n do?"
S: "T u m e am as?"
Eu : "Co m o posso am ar-t e? Co m o chegas a esta pergunta? Só vejo u m a coi-
sa: t u és Salom é, u m tigre, o sangue do san to est á grudado em tuas m ãos. Co m o
pod eria am ar-t e?"
S: "T u vais m e am ar".
Eu : "Eu ? Am ar -t e? Q u e m te dá o d ireit o de tais pen sam en t os?"
S: "Eu te am o".
Eu : "Afasta-te de m im , t en h o h or r or de t i, fera".
S: "Est ás sendo in ju st o comigo. Elias é m eu pai e conhece os segredos a
fundo. As paredes de sua casa são de pedras preciosas. Seus poços con t êm águas
com força cu rat iva e seu olh o vê as coisas futuras. E o que n ão darias t u por u m
só olh ar nas coisas in fin it as daquele que vem ? N ã o valeriam para t i até m esm o
u m pecado?"
Eu : "Tu a t en t ação é satânica. Eu an seio pelo m u n d o do alto. Aq u i é h orrível.
Co m o o ar está carregado e pesado!"
E: "O que queres? Podes escolh er".
Eu : "Mas eu n ão p ert en ço aos m ort os. Eu vivo à lu z do dia. Por que devo
at orm en t ar-m e aqui por causa de Salom é, se já t en h o o bastan te em su port ar
m in h a própria vid a?"
E: "Escu t ast e o que Salom é disse".
Eu : "N ã o consigo acredit ar que t u , o profeta, podes recon h ecê-la com o filh a
e com pan h eira. El a n ão foi gerada de sem en te in fam e? El a n ão foi p u ra cobiça
e lu xú ria crim in osa?"
E: "Mas ela am ava u m san to".
Eu : " E d erram ou ign om in iosam en t e seu precioso sangue".
E: "El a am ava o profet a que an u n ciava o m u n d o do n ovo Deu s. Am ava-o,
entendes? Pois ela é m in h a filh a".
Eu : "Pensas t u que, pelo fato de ser t u a filh a, ela am ava em João o profeta,
o pai?"
M TSTERI U M . EN CO N T RO 159

E: "E m seu am or podes recon h ecê-la".


Eu : "Mas com o ela o amava? Ch am as ist o de am or?"
E: "O que era en t ão?"
Eu : "Fico h orrorizad o. A qu em n ão causaria h or r or se Salom é o am asse?"
E: "Tu és medroso? Pensa bem , eu e m in h a filha somos u m desde eternidades".
Eu : "T u m e p rop ões enigm as t erríveis. Co m o é possível que esta m u lh er
depravada e t u , profet a de t eu Deu s, sejais u m ?"
E: "Por que te adm iras? T u vês que estam os ju n t os".
Eu : "O que vejo com m eus próprios olh os, ist o é precisam en t e o in con ce-
bível para m im . Tu , Elias, que és u m profeta, a boca de Deu s, e ela u m m on st ro
seden to de sangue. Vó s sois o sím bolo dos m ais ext rem os opostos".
E: "N ó s somos reais, e n ão u m sím bolo".
Vi com o a cobra pret a su biu n a árvore e se escon deu nos galhos. Tu d o ficou
escuro e in cert o. Elias ergueu-se, eu o segui e volt am os em silên cio pelo sa lã o 159 .
A d ú vid a m e dilacerava. Tu d o é t ão ir r eal e, assim m esm o, rest a u m ped aço de
m eu desejo. Será que volt arei? Salom é m e am a, eu a amo? O u ço m ú sica selva-
gem , o tam bor, u m a n oit e abafada de luar, a rígid a-en san gu en t ad a cabeça do
sa n t o 16 0 - sou tom ado pelo medo. Precip it o-m e para fora. É n oit e escura em
t orn o de m im . Q u e m m at ou o h erói? Salom é m e am a por causa disso? Eu a
am o e por isso m at ei o h erói? El a é u m a com o profeta, u m a com João e t am -
b ém u m a com igo? Ai , era ela a m ão de Deu s? Eu n ão a amo, eu a tem o. En t ão o
espírit o d a profun deza falou para m im e disse: "Nisso reconheces sua força de
Deu s". Ten h o de am ar Sa lo m é ? 10 1

159 No Livro Negro 2, Jung observa: "O cristal luzia fracamente. Penso novamente na imagem de Ulisses,
como circunavegou a ilha rochosa das sereias na longa viagem sem rumo. Devo eu, não devo eu?" (p. 74).
160 Isto é, a cabeça de João Batista.
161 No Seminário de 1925, Jung contou novamente: "Usei a mesma técnica da descida, mas desta vez fui
muito mais fundo. A prim eira vez devo dizer que cheguei a uma profundidade de aproximadamente m il
pés, mas desta vez foi uma profundidade cósmica. Foi como ir até à lua, ou como a sensação de pular no
espaço vazio. Primeiro a imagem mental foi de uma cratera, ou de uma cadeia de montanhas, e minha
associação sensível foi a de um morto, como se eu fosse uma vítima. Era o estado de espírito da terra do
além. Pude ver duas pessoas, um velho de barba branca e uma jovem muito bonita. Presumi que eram
reais e prestei atenção ao que estavam dizendo. O velho disse que era Elias e eu fiquei muito chocado,
mas ela era ainda mais perturbadora porque era Salomé. Eu disse para m im mesmo que havia uma
estranha mistura: Salomé e Elias, mas Elias assegurou-me que ele e Salomé estavam juntos desde toda
a eternidade. Também isto perturbou-me. Com eles estava uma serpente negra que tinha simpatia por
mim. Ative-m e a Elias como o mais razoável do grupo, pois parecia ter juízo. Eu estava excessivamente
hesitante quanto a Salomé. Tivemos uma longa conversa, mas eu não entendi. Evidentemente, pensei que
o fato de meu pai ser clérigo era a explicação para o fato de eu ter figuras como esta. O que pensar deste
velho? Salomé não devia ser tocada. Só muito mais tarde é que achei perfeitamente natural a associação
dela com Elias. Sempre que alguém empreende viagens como esta encontra uma jovem e um velho"
i6o LI BERP RI M U S foi.v(r)/ v(v)

l62
[2] Estejogo, que eu vi, é m eu jogo, não o vosso jogo. É m eu segredo, não o vosso. Não podeis

im itar-m e. Meu segredo perm anece virginal e m eus m istérios são invioláveis, pertencem a m im e não

podem jam ais pertencer-vos. Vós tendes os vossos l6 \

Quem entra no que éseuprecisa tatear pelo próxim o, precisa apalpar seu cam inho pedra por pedra.

Precisa abraçar o inútil e o valioso com o m esm o am or. Um a m ontanha é um nada, e um grão de areia

oculta reinos ou tam bém não. O julgam ento precisa abandonar-te, inclusive o saber, m as sobretudo o

orgulho, ainda que repouse sobre m éritos. Bem pobre, m iserável, hum ilde, ignorante, passa pela porta.

Vira tua raiva contra ti m esm o, pois só tu estorvas a ti m esm o tanto no contem plar com o no viver. O

jogo dos m istérios é delicado com o o ar e fum aça ténue, e tu és m atéria bruta, de peso incóm odo. Mas

tua esperança, que é teu m aior bem e m aior poder, deixa ir em frente e servir-te de guia no m undo da

escuridão, pois ela éda m esm a substância que as conform ações daquele m undo164 [Im a gem v ( v ) ] l 6 5 .

O cen ário do jogo dos m ist érios é u m lugar fundo com o a crat era de u m
vulcão. Meu in t er ior profun do é u m vu lcão que lan ça para fora a lava in can -
descente do que n u n ca se form ou , do in discern ível. Assim m eu ín t im o d á à lu z

(introductíon to Jungian Psychology, p. 68-69). A seguir, Jung refere-se a exemplos deste tipo presentes na obra
de Melville, Meyrink, Rider Haggard e na lenda gnóstica de Simão Mago (cf. adiante, n. 154, p. 487),
Kun dry e Klingsor do Parsifal de Wagner (cf. adiante, n. 221, p. 322S.) e na Hypnerotomachía de Francesco
Colonna. Em Memórias, ele disse a respeito da serpente: "Nos mitos a serpente está frequentemente
associada ao herói. Existem numerosos relatos de sua afinidade... Por isso a presença da serpente era um
indício de um mito do herói" (p. 20 6 ) . A respeito de Salomé, Jung disse: "Salomé é uma figura da anima.
Ela é cega porque não vê o sentido das coisas. Elias é a figura do velho profeta sábio e representa o fator
de inteligência e conhecimento; Salomé representa o elemento erótico. Poder-se-ia dizer que as duas
figuras são personificações de Logos e Eros. Mas esta definição seria excessivamente intelectual. Faz mais
sentido deixar as figuras serem o que elas foram para m im naquele tempo - a saber, acontecimentos
e experiências" (introductíon to Jungian Psychology, p. 96-97). Em 1955/1956, Jung escreveu: "Partindo de
considerações puramente psicológicas, procurei em outro lugar caracterizar a consciência masculina com o
conceito de Logos e a feminina com o de Lros. Assim , por 'Logos' entendi o distinguir, julgar e reconhecer e
por 'Eros' entendi o pôr em relação" (Mysteríum coníunctionís. O C , 14, § 224). Sobre a interpretação que Jung
dá de Elias e Salomé em termos de Logos e Eros respectivamente, cf. apêndice B, "Comentários".
162 O esboço corrigido tem: Reflexão doutrinal (p. 8 6 ) . O esboço e o esboço corrigido têm: "Ist o, meus amigos, é um
jogo de mistérios para o qual o espírito da profundeza me trasladou. Eu havia conhecido o nascimento
do novo Deus [a concepção], e por isso o espírito da profundeza me deixou participar das cerimónias
subterrâneas,que deveriam instruir-me sobre as intenções e obras de Deus. Através desses jogos deveria eu
ser iniciado nos mistérios da salvação" (esboço corrigido p. 86).
163 O esboço continua: "No mundo renovado não podeis possuir nada exteriormente, a não ser que vós
mesmos o crieis a partir de vós. Tu só podes entrar em teus próprios mistérios. O espírito da profundeza
tem outra coisa a te ensinar do que a m im . Eu só devo informar-vos sobre o novo Deus e sobre as
cerimónias e mistérios de seu serviço. Mas este é o caminho. E a porta das trevas" (p. 100).
164 O esboço continua: "O jogo dos mistérios realizou-se no mais profundo de meu ser íntimo, que é
precisamente aquele outro mundo. Tu precisas prestar atenção, é também um mundo e sua realidade
é grande e assustadora. Tu choras e ris, tremes e às vezes poreja de t i o suor do medo da morte. O jogo
dos mistérios representa a m im mesmo e, através de m im , é representado de novo aquele mundo ao qual
pertenço. Portanto, meus amigos, aprendeis daquilo que vos digo aqui muita coisa sobre o mundo e,
através dele, sobre vós. Mas com isso não percebestes nada de vossos mistérios, sim, vosso caminho está
mais escuro do que antes, pois meu exemplo vai ser um estorvo para vós em vosso caminho. Vós podeis
seguir-me, mas não em meu caminho, e sim no vosso" (p. 102).
165 Isto retrata a cena na fantasia.
M YS T E R Í U M . E N C O N T R O

filh os do caos, d a m ãe prim eva. Q u e m en t ra n a crat era vir a m at éria caót ica,
derret e-se. O form ado n ele se dissolve e se un e de form a n ova com os filh os do
caos, os poderes das trevas, os dom in adores e sedutores, os coercit ivos e alicia-
dores, os d em on íacos e d ivin os. Essas forças ult rapassam de todos os lados m eu
d et erm in ad o e lim it ad o e m e u n em com todas as form as e com todos os seres e
coisas dist an t es, pelas quais sou in form ad o sobre seu ser e sua n at ureza.
Pelo fato de eu t er caído n a fon te do caos, n o p rim ord ial, t orn o-m e eu m es-
m o refu n dido n a u n ião com o p r im or d ial que é ao m esm o tem po o que já foi
e o que será. E m p r im eir o lugar, chego ao p r im or d ial em m im . Mas assim , p or
ser part e d a m at éria do m u n d o e da con st it u ição do m un do, chego t am bém ao
p r im or d ial do m u n d o em geral. Co m o ser form ado e d et erm in ad o p art icip ei
da vid a, m as só através de m in h a con sciên cia form ada e d et erm in ad a e p or
m eio disso n o ped aço form ado e d et erm in ad o do todo cósm ico, mas n ão n o
n ão form ado e in d et erm in ad o do m un do, que t am bém m e é dado. Mas só é
dada m in h a profun deza, n ão m in h a superfície, que é con sciên cia form ad a e
d et erm in ad a.
O s poderes de m in h a profun deza são o p red et erm in ar e o p r a z e r 16 6 . O p re-
d et erm in ar e o pen sar p r é vio 16 7 são o Pr o m e t e u 16 8 , que, m esm o sem ideias d e-
t erm in ad as, d á form a e d et erm in ação ao ca ó t ico 16 9 , que cava os can ais e apre-
sen t a o objet o ao prazer. O pen sar prévio t am bém est á antes do pen sar p ro-
priam en t e dito. Mas o prazer é a força que, sem form a e d et erm in ação, deseja
e d est rói form as. Ele am a a form a que ela assume em si, mas d est rói a form a
que ela n ão assume. O que pen sa previam en t e é u m vid en t e, mas o prazer é
cego. Ele n ão prevê, mas deseja aquilo que toca. O pen sar prévio n ão t em força
e p or isso n ão é m oven t e. O pen sar prévio precisa do prazer para alcan çar a
con figuração. O prazer precisa do pen sar prévio para chegar à form a de que
n ecessit a 170 . Q u an d o o prazer n ão t em o form an t e vai d ilu ir -se n o m u lt iform e
e, através de in t erm in ável part ição, ficará d esped açad o e im pot en t e, perdido n o

166 Um a interpretação subjetiva das figuras de Elias e Salomé.


167 No esboço corrigido "Predeterminar ou pensar previamente" é substituído por "a ideia". Esta substituição
ocorre durante o resto desta seção (p. 89 ).
168 Na mitologia grega, Prometeu criou a humanidade a partir do barro. Ele podia predizer o futuro e seu
nome significa "previsão". Em 1921 Jung escreveu uma extensa análise do poema épico de Carl Spitteler
Prom etheusundEpim etheus (1881) junto com o Prom etheus Fragm ent (1773) de Goethe (Tipos Psicológicos. O C , 6, cap. 5).
169 O esboço corrigido tem: "lim itação" (p. 8 9 ) .
170 O esboço continua: "Por isso veio a m im o pensador prévio como Elias, o profeta, e o prazer como Salomé"
(p. 103).
162 L I B E R P R I M U S foi. v(r)/ v(v)

in fin it o. Se u m a form a n ão t om a para si o prazer e o con den sa n ão pode chegar


ao m ais elevado, pois ele corre com o água, sem pre de cim a para baixo. Todo
prazer en tregue a si m esm o corre para o m ar profun do e t er m in a n a m ort e
im óvel da irradiação n o espaço in fin it o. O prazer n ão é m ais velh o do que o
pen sar prévio, e o pen sar prévio n ão é m ais velh o do que o prazer. Am b os t êm a
m esm a idade e são in t im am en t e un os por n at ureza. Só n o ser h u m an o t orn a-se
m an ifest a a separação dos dois prin cípios.
Alé m de Elias e Salom é, en con t ro com o t erceiro p rin cíp io a ser p en t e 171. El a
é u m a est ran h a en t re os dois prin cípios, ain d a que ligada a ambos. A serpen te
m e en sin a a diversidade in con d icion al de n at u reza dos dois prin cípios em m im .
Q u an d o olh o a p art ir do pen sar prévio para além do prazer, vejo em p rim eiro
lugar a repugn an te e ven en osa serpen te. Q u an d o sin t o a p art ir do prazer para
além do pen sar prévio, sin t o p rim eiram en t e a fria e h orrível ser p en t e 172 . A ser-
pen te é a n at u reza t erren a do ser h u m an o da qual n ão t em con sciên cia. Sua
m an eira m u d a de acordo com o país e o povo, pois é o secreto que lh e aflui da
m ãe-t erra n u t r iz 17 3 .
A con d ição t erren a (numen locí) separa o pen sar p révio e o prazer n o ser
h u m an o, m as n ão em si. A serpen t e t em sobre si o peso d a t erra, m as t am bém
seu m u t ável e germ in an t e, do qu al tudo p rovém . Sem pre é a serpen t e que faz
com que o ser h u m an o su cu m ba ora a u m ora a ou t ro p rin cíp io de t al form a
que se t orn e erro. N ã o se pode viver só com pen sar p révio ou só com o prazer.
Tu precisas dos dois. N ã o podes ficar ao m esm o t em po n o pen sar p révio e n o
prazer, m as deves ficar alt ern ad am en t e n o pen sar p révio e n o prazer, obede-
cen do às leis respect ivas, ou seja, in fiel ao out ro. Mas as pessoas d ão p referên -
cia a u m ou outro. Un s preferem o pen sar e baseiam sobre ele a art e da vid a.
Exe r cit a m seu pen sar e sua caut ela, e p erd em assim seu prazer. Por isso são
velh os e t êm u m rost o severo. O u t r o s am am o prazer, exercit am seu sen t ir e

171 O esboço continua: "O animal de horror mortífero que estava deitado entre Adão e Eva" (p. 105).
172 O esboço corrigido tem: "A serpente não é só um princípio separador, mas também unificador" (p. 91).
173 Ao comentar isto no seminário de 1925, Jung observou que havia na mitologia muitos relatos da relação
entre um herói e uma serpente, de modo que a presença da serpente indicava que "será novamente um
mito do herói" (p. 89). Mostrou um diagrama de uma cruz com Racional/ Pensamento (Elias) no alto,
Sentimento (Salomé) ao pé, Irracional/ Intuição (Superior) à esquerda e Sensação/ Inferior (Serpente) à
direita (p. 9 0 ) . Jung interpretou a serpente negra como a libido introvertida: "A serpente desencaminha
aparentemente o movimento psicológico para o reino de sombras, mortos e imagens falsas, mas também
para a terra, para a concretização... Na medida em que a serpente leva para as sombras, ela desempenha a
função da anima; ela leva você para as profundezas, conecta o superior e o inferior... a serpente é também o
símbolo da sabedoria" (introductíon to Jungian Psychology, p. 102-103).
M YS T E R I U M . E N C O N T R O 163

viven ciar. Perd em assim o pensar. Por isso são joven s e cegos. O s que pen sam
baseiam o m u n d o sobre o pensado, os sen sit ivos, sobre o sen t ido. T u en con t ras
verdade e erro em am bos.
A exem plo da serpen t e, o cam in h o da vid a ziguezagueia da d ir eit a para a
esquerda e d a esquerda para a d ireit a, do pen sar para o prazer e do prazer para
o pensar. Port an t o, a serpen te é u m adversário e sím bolo da in im izad e, con t udo
u m a pon t e sábia que liga d ir eit a e esquerda através do desejo, segundo a n eces-
sidade de n o ssa vid a.
I74
0 lugar onde Elias e Salom é m oram ju n t os é u m espaço escuro e claro. O
espaço escuro é o espaço do pen sar prévio. Ele é escuro, por isso aquele que o
h abit a precisa de visã o 175 . Est e espaço é lim it ad o, por isso o pen sar prévio n ão
con duz a u m a vast a am plidão, mas à profun deza do passado e do futuro. O
crist al é a id eia form ada, que b r ilh a n o passado vin d ou ro.
Eva / e a serpen te m e m ost ram que m eu p róxim o cam in h o m e leva para o foi.v( r )
prazer e d aí ou t ra vez para u m longo cam in h o errado, com o Ulisses. Ele n ave- ^ ^
gou n o erro quan do astuciosam en te sen t iu prazer em Tr ó ia 176 . O jar d im lu m i-
noso é o espaço do prazer. Q u e m o h abit a n ão precisa da visã o 177 ; ele sente o
in fin it o 178 . U m a pessoa que pen sa e que desce para seu pen sar prévio en con t ra
u m p r óxim o cam in h o n o jar d im de Salom é. Por isso a pessoa que pen sa tem e
seu pen sar prévio, apesar de viver com base n ele. A superfície visível é m ais
segura do que os subfun dam en tos. O pen sar protege con t ra o cam in h o errado,
por isso con duz à petrificação.
U m a pessoa que pen sa tem e Salom é, pois ela quer sua cabeça, sobretudo
quan do ele é u m santo. U m a pessoa que pen sa n ão deve ser u m santo, sen ão cai
sua cabeça. N ã o ajuda n ada escon der-se n o pensar. Lá te alcan ça o en t orp eci-
m en t o. Deves volt ar ao t eu pen sar prévio m at ern al para t om ar ren ovação. Mas
o pen sar prévio con duz à Salom é.

174 O esboço continua: "Seguindo Elias e Salomé, sigo os dois princípios em m im e, através de m im , no mundo
do qual sou parte" (p. 106).
175 O esboço corrigido tem: "i . e, do pensar. E sem pensar não se capta nenhuma ideia" (p. 92).
176 O esboço continua: "O que seria de Ulisses sem a viagem errada?" (p. 107). O esboço corrigido acrescenta:
"Não teria havido Odisseia" (p. 92).
177 O esboço corrigido tem: "Bem mais do prazer, a fim de usufruir do jardim " (p. 92).
178 O esboço corrigido tem: "é impressionante que o jardim de Salomé fique tão perto do salão respeitável e
misterioso das ideias. Esvoaça por isso um respeito pensante ou talvez mesmo um temor diante da ideia,
devido à sua proximidade do paraíso?" (p. 92).
164 L I B E R P R I M U S foi. v(r)/ vi(v)

179
Po r q u e fu i u m pen sador e porque avist ei o p rin cíp io h ost il do prazer a
p ar t ir do pen sar prévio, pareceu-m e ele ser Salom é. Se tivesse sido u m sen t i-
m en t al e tivesse tateado para além , para o pen sar prévio, t eria m e parecido a
u m d áim on serpen t iform e, caso o tivesse enxergado. Mas eu t eria sido cego. Só
t eria sen t ido coisas escorregadias, m ort as, perigosas, cren ças ultrapassadas, co i-
sas desin teressan tes, coisas adocicadas e t eria m e afastado com o m esm o h or r or
com o qu al me afastei de Salom é.
O s prazeres d a pessoa que pen sa são m aus, por isso ela n ão t em prazer.
O s pen sam en tos do se n t im e n t a l 18 0 são m aus, por isso n ão t em pen sam en tos.
Q u e m prefere pen sar a se n t ir 18 1 d eixa apodrecer seu se n t ir 18 2 n o escuro. N ã o
am adurece, mas faz brot ar n o m ofo t repadeiras doen t ias que n ão alcan çam a
lu z. Q u e m prefere sen t ir a pensar, este d eixa seu pen sar n o escuro, onde tece
sua t eia em can tos sujos, tram as desoladoras em que ficam presas moscas e
m ariposas. O pen sador sente o repugn an te dos sen t im en t os, pois o sen t im en t o
n ele é sobretudo repugn an te. O sen sit ivo pen sa o repugn an te dos pen sam en -
tos, pois o pen sar n ele é sobretudo repugn an te. Port an t o, a serpen te est á en t re
aquele que pen sa e aquele que sente. São m u t u am en t e ven en o e t erapia.
No jar d im teve que se revelar para m im que eu am o Salom é. Est e con h eci-
m en t o m e at orm en t ou , pois n ão o h avia im agin ado. O que u m pen sador n ão
pen sa, ele acha que n ão exist e e o que u m sen sit ivo n ão sen te, ele ach a que n ão
exist e. T u com eças a vislu m b rar o todo quan do dom in as t eu con t raprin cípio,
pois o todo repousa sobre dois prin cípios que n ascem de u m a só r a iz 18 3 .
Elias d izia: "E m seu am or deves recon h ecê-la". N ã o só t u san tificas o objeto,
m as o objeto san t ifica t am bém a t i. Salom é am ava o profet a, e ist o a san t ificava.
O profet a am ava a Deu s, e ist o o san t ificava. Mas Salom é n ão am ava a Deu s, e
ist o a dessan tificava. O profet a n ão am ava Salom é, e ist o o dessan tificava. Por-
t an t o eram ven en o e m ort e u m para o outro. Q u e o pen sador receba seu prazer
e o sen t im en t al, seu p róp rio pensar. Ist o con d u z ao ca m in h o 18 4 .

179 O esboço continua: "Eu era um pensador. O que poderia causar-me maior admiração do que a união
interna dos princípios hostis do pensar prévio e do prazer?" (p. 108).
180 Em vez disso, o esboço corrigido tem: "que sente prazer" (p. 94).
181 No esboço corrigido está: "prazer" (p. 94).
182 No esboço corrigido está: "prazer" (p. 94).
183 O esboço continua: "como disse um de vossos poetas: 'O poço suporta dois ferros'" (p. l i o ) .
184 Em 1913 Jung apresentou seu ensaio "A questão dos tipos psicológicos", no qual notava que a libido
ou energia psíquica num indivíduo estava dirigida caracteristicamente para o objeto (extroversão) ou
para o sujeito (introversão) ( O C, 6 ). A partir do verão de 1915, ele manteve sobre essa questão uma
I N ST RU ÇÃO 165

In strução
[IH vi( r ) ]
Cap. x.

N a n oit e segu in t e 18 5 fu i con d u zid o a u m a segunda im agem : estou de pé n a


profun deza roch osa que m e parece u m a crat era. Dian t e de m im vejo a casa
c h e i a d e co lu n a t a s. Ve j o Sa l o m é a n d a n d o p a r a a e s q u e r d a ao lo n go d a p a r e d e
da casa, apalpan do o cam in h o com o cega. E seguida pela serpen te. N a p ort a
est á o velh o, que m e acena. H esit an t e, eu m e aproxim o. Ch a m a Salom é de vo l-
ta. Parece u m a pessoa doen te. N ã o consigo descobrir n ada de sua m aldade em
sua n at u reza. Suas m ãos são bran cas e seu rosto, de expressão m eiga. Dian t e
dos dois est á a serpen te. Est ou d ian t e deles, sem jeit o, com o u m garoto bobo,
dom in ado pela in decisão e am biguidade. O velh o me olh a p erqu irid or e d iz:
"O que queres aqui?"
Eu : "Perd oa, n ão é im p ert in ên cia n em presu n ção que m e t razem aqui. Est ou
aqui com o por acaso; n ão sei o que quero. U m desejo, que ficou on t em em m im
em t u a casa, foi que m e t rou xe aqui. Vê , profet a, est ou cansado, m in h a cabeça
está pesada com o ch um bo. Est o u perdido em m in h a ign orân cia. Já b r in q u ei
dem ais com igo. Fo r am jogos h ipócrit as que eu fazia com igo, e todos m e t e-
r iam causado repu gn ân cia se eu n ão tivesse sido esperto de jogar n o m u n d o das
pessoas o que os out ros de n ós esperam . A m im m e parece que seria m ais real.
Con t u d o n ão gosto de estar aqu i".
Calad os, Elias e Salom é en t raram n a casa. Fu i atrás com relut ân cia. At o r -
m en t ava-m e u m sen t im en t o de culpa. Seria m á con sciên cia? Gost ar ia de volt ar,
mas n ão posso. Est o u dian t e do jogo in cen d iário do crist al fulguran te. Vejo

extensa correspondência com Hans Schmid, em que ele agora caracterizava os introvertidos como
sendo dominados pela função do pensar e os extrovertidos como sendo dominados pela função do
sentir. Caracterizou também os extrovertidos como sendo dominados pelo mecanismo de prazer-dor,
procurando encontrar o amor do objeto, e inconscientemente buscando o poder tirânico. O s introvertidos
buscavam inconscientemente o prazer inferior e precisavam ver que o objeto era também um símbolo de
seu prazer. A 7 de agosto de 1915, Jung escreveu a Schmid: "Os opostos precisam ser equilibrados no próprio indivíduo"
( I SE LI N , H . K. (org.). ZurEntstehungvonC.G.Jungs"PsychologischenTypen", p. 6 6 ). Esta ligação entre pensar
e introversão e entre sentir e extroversão foi mantida em sua análise deste tema em 1917 em "Psicologia
dos processos inconscientes'. Em Tipos Psicológicos, em 1921, este modelo havia-se expandido para englobar dois
grandes tipos de atitude de introvertidos e extrovertidos, ulteriormente subdivididos pela predominância
de uma das quatro funções psicológicas de pensar, sentir, sensação e intuição.
185 22 de dezembro de 1913. Em 19 de dezembro de 1913, Jung deu uma palestra na Associação Psicanalítica
de Zurique sobre "A psicologia do inconsciente".
i66 L I B E R P R I M U S foi. v(r)/ vi(v)

n o b r i l h o a m ã e d e D e u s c o m a cr ia n ça . D i a n t e d e la e s t á P e d r o e m a d o r a ç ã o

- Pedro sozin h o com a chave - o Papa com a t iara t ríplice - u m Bu d a sen t a-


do im óvel no círculo de fogo - u m a deusa en san guen tada de quat ro b r a ço s 18 6
- Salom é é aquilo com as m ãos t orcidas em d esesp er o 18 7 - ist o m e en volve, é
m in h a própria alm a e agora vejo Elias n a im agem da pedra.
Elias e Salom é est ão d ian t e de m im sorrin d o.
Eu : "Est e olh ar é an gustian te, e o sen t ido dessas im agens é obscuro para
m im , Elias; gost aria de p ed ir-lh e, dá lu z".
Elias se afasta em silên cio e vai em fren t e para a esquerda. Salom é vai p ara
a d ir eit a e en t ra n u m a arcada. Elias m e con d u z a u m a sala ain d a m ais escura.
N o teto est á pen d u rad a u m a lâm pad a de lu z averm elh ada. Sen t o-m e n u m a
cad eira, esgotado. Elias está d ian t e de m im , en cost ado n u m leão de m árm ore,
n o m eio da sala.
E: "Est ás com m edo? Tu a ign orân cia acusa de cu lpa t u a m á con sciên cia. N ã o
saber é culpa, mas t u presum es que a necessidade de saber proibid o seja a causa
de t eu sen t im en t o de culpa. Por que achas que estás aqui?"
Eu : "E u n ão sei. Eu m ergu lh ei neste lugar quan do eu , ign oran t e, desejei o
n ão ignorado. E assim estou aqui, adm irado e confuso, u m p ort ão ign oran t e.
Eu percebo coisas m aravilh osas em t u a casa, coisas que m e assustam e cujo
sign ificado d escon h eço".
E: "N ã o seria t u a lei estar aqu i, sen ão com o estarias aqui?"
Eu : "Acom et e-m e o sen t im en t o de fraqueza m ort al, m eu pai".
E: "T u foges. N ã o podes livr ar -t e de t u a lei".
Eu : "Co m o posso livr ar -m e daquilo que m e é descon hecido, que n ão posso
at in gir n em com sen t im en t o e n em com pressen t im en t o?"
E: "T u m en tes. N ã o sabes que t u m esm o conheceste o que sign ifica quan do
Salom é te am a?"

186 O esboço continua: "Kali" (p. 113).


187 Livro Negro 2: "ora aquela figura branca de menina com o cabelo preto - minha própria alma —, ora aquela
figura branca de homem, que naquela época também me apareceu - ela é como o Moisés sentado de
Michelangelo - é Elias" (p. 84). O Moisés de Michelangelo está na Igreja de São Pedro Acorrentado, em
Roma. Foi objeto de um estudo de Freud, publicado em 1914 (The Standard Edition of the Complete Psychological
W orks ofSigmund Freud. 24 vols. Vol. 13, Londres: Th e Hogarth Press and Th e Institute of Psycho-analysis,
1953-1974 [org. por J. Strachey]). O pronome da terceira pessoa "aquilo" identifica aparentemente Salomé
como Kali, cujas diversas mãos se retorcem mutuamente. Cf. nota 196, p. 250.
I N ST RU ÇÃO 167

Eu : "Ten s razão. Su rgiu -m e u m a id eia du vidosa e in cert a. Mas eu a esqueci


de n ovo".
E: "T u n ão a esqueceste. El a qu eim ou fun do em t eu in t erior. T u és covarde?
O u n ão consegues d ist in gu ir su ficien t em en t e esta id eia de t i m esm o, de form a
que dela quisesses t om ar posse?"
Eu : "A id eia foi m u it o longe, e eu tem o ideias que voam longe. São perigo-
sas, pois sou u m ser h u m an o, e t u sabes que as pessoas est ão m u it o acostumadas
a con siderar ideias com o coisas próprias suas, de m odo que acabam se con fu n -
d in d o afin al com elas".
E: "Vais con fu n d ir-t e com u m a árvore ou u m an im al, só porque os vês e
porque eles vivem con tigo n u m m esm o m un do? Precisas ser tuas ideias, por-
que vives n o m u n d o de tuas ideias? Tuas ideias est ão t ão fora de t eu si-m esm o
quan to as árvores e os an im ais est ão fora de t eu co r p o "18 8 .
Eu : "En t en d o. Me u m u n d o das ideias foi para m im m ais palavra do que
m un do. E u pen sei de m eu m u n d o das ideias: elas são eu ".
E: "D iz e s a t eu m u n d o h u m an o e a cada ser fora de t i: t u és eu?"
Eu : "Eu en t rei em t u a casa, m eu pai, com o m edo de u m alun o de escola. Mas
t u m e en sin aste sabedoria salu t ar 18 9 . Tam bém posso con t em plar m in h as ideias
com o estan do fora de m im . Ist o m e ajuda a volt ar àquela con clusão assustadora
que m in h a lín gu a tem e em pron u n ciar. Eu pen sei que Salom é m e am a porque
sou parecido com João ou contigo. Est a id eia m e pareceu in acredit ável. Por isso
a descart ei e pen sei que ela m e am a porque sou m u it o con t rário a t i, ela am a sua
m aldade n a m in h a m aldade. Est a id eia foi an iqu ilad ora".
Elias ficou quieto. Desceu u m peso sobre m im . En t ão en t r ou Salom é, apro-
xim ou -se de m im e colocou seu braço em m eu om bro. Cer t am en t e m e t om ou
por seu pai, em cu ja cad eira eu estava sentado. N ã o ousei m exer-m e n em falar.
S: "Sei que n ão és o pai. T u és seu filh o, e eu sou t u a irm ã".
Eu : "T u , Salom é, m in h a irm ã? Fo i esta a t errível sen sação que em it ist e,
aquele in om in ável h or r or de t i, de t eu con tato? Q u e m foi n ossa m ãe?"

188 Jung mencionou esta conversa no seminário de 1925 e comentou: "Só então aprendi a objetividade
psicológica. Só então pude dizer a um paciente: Tiqu e calmo, algo está acontecendo'. Existem coisas
como ratos numa casa. Não se pode dizer que alguém está errado quando tem um pensamento. Para
compreender o inconsciente devemos ver nossos pensamentos como acontecimentos, como fenómenos"
(introductíon to Jungian Psychology, p. 103).
189 Em vez disso, o esboço corrigido tem: "verdade" (p. 100).
i68 LI BERP RI M U S foi.v(r)/ vi(v)

S: "Mar ia".
Eu : "Ist o é u m sonho in fern al? Maria, n ossa m ãe? Q u e lou cu ra se escon -
de n est a t u a palavra? A m ãe do Salvador, n ossa m ãe? Q u an d o ult rapassei h oje
vosso lim iar, pressen t i desgraça. Ai ! Acon t eceu . Perdeste o juízo, Salom é? Elias,
guarda do d ireit o d ivin o, dize: Ist o é u m sort ilégio d em on íaco dos réprobos?
Co m o pode ela d izer sem elh an te coisa? O u ambos estais fora do juízo? Vó s
sois sím bolos, e Ma r ia é u m sím bolo. Eu est ou apenas confuso dem ais para vos
com preen der agora".
E: "T u podes ch am ar-n os de sím bolos com o m esm o d ireit o que podes ch a-
m ar de sím bolos t am bém as outras pessoas iguais a t i. Nad a enfraqueces e n ada
resolves ao nos ch am ar de sím bolos".
Eu : "T u m e lan ças n u m a con fusão t errível. Vó s quereis ser reais?"
E: "Co m cert eza somos aquilo que cham as de real. Aq u i estam os n ós, e t u
tens de nos aceitar. T u tens a escolh a".
Eu m e calei. Salom é afastou-se de m im . O lh e i desconfiado ao redor de m im .
At rás de m im ard ia u m a ch am a am arelo-averm elh ad a n u m alt ar redon do. Em
t orn o da ch am a se d eit ara a serpen te em form a de círculo. Seus olhos faiscavam
o reflexo am arelado. En cam in h ei-m e vacilan t e para a saída. Ao passar pelo sa-
lão, vi an dan do à m in h a fren te u m en orm e leão. For a era n oit e fria e estrelada.

I9
[2] °N ã o é pouca coisa ad m it ir seu desejo. Mu it as pessoas precisam para
isso de u m esforço especial de sua lealdade. Mu it os n ão qu erem saber onde
está seu desejo, pois lh es pareceria im possível ou por dem ais doloroso. E, ape-

190 O esboço corrigido tem: reflexão (p. 103). No esboço e no esboço corrigido ocorre uma passagem longa. O que segue
aqui é uma paráfrase: Eu me pergunto se isto é real, um mundo inferior, ou a outra realidade, e se foi a outra
realidade que me impeliu para cá. Vejo aqui que Salomé, meu prazer, move-se para a esquerda, o lado do
impuro e mau. Este movimento segue a serpente, que representa a resistência e a hostilidade contra este
movimento. O prazer se afasta da porta. O pensar prévio [esboço corrigido: "a ideia", ao longo de toda esta
passagem] está à porta, conhecendo a entrada para os mistérios. Por isso o desejo funde-se nos muitos, se o
pensar prévio não o orienta e não o impele para a sua meta. Se encontramos um homem que apenas deseja,
encontraremos, por trás do desejo, resistência contra o desejo dele. O desejo sem pensar prévio ganha
muito, mas não conserva nada, por isso seu desejo é a fonte de constante decepção. Por isso Elias chama
de volta Salomé. Se o prazer está unido com o pensar prévio, a serpente permanece diante deles. Para ter
sucesso em alguma coisa, é preciso primeiro lidar com a resistência e a dificuldade, caso contrário a alegria
deixa para trás dor e decepção. Por isso aproximei-me mais. Eu precisava primeiro superar a dificuldade e a
resistência para conseguir o que eu desejava. Quando o desejo supera a dificuldade, torna-se visão e segue o
pensar prévio. Por isso vejo que as mãos de Salomé estão puras, sem nenhum vestígio de crime. Meu desejo
é puro se eu primeiro superar a dificuldade e a resistência. Se eu examino cuidadosamente o prazer e o
pensar prévio, sou como um louco, que segue cegamente seus anseios. Se eu sigo meu pensamento, renuncio
ao meu prazer. O s antigos diziam em imagens que o louco encontra o caminho certo. O pensar prévio tem
a primeira palavra, por isso Elias perguntou-me o que eu queria. Sempre se deve perguntar a si mesmo o
que se deseja, já que existem pessoas demais que não sabem o que querem. Eu não sabia o que eu queria.
Você deve confessar a você mesmo seus anseios e aquilo por que você anseia. Assim você satisfaz seu prazer
e alimenta seu pensar prévio ao mesmo tempo (esboço corrigido, p. 103-104).
I N ST RU ÇÃO 169

sar disso, o desejo é o cam in h o da vid a. Se n ão adm ites t eu desejo, n ão segues


a t i m esm o, m as t rilh as cam in h os estran h os, prescrit os por outras pessoas. E
assim n ão vives a t u a vid a, mas u m a vid a est ran h a. Mas qu em deve viver t u a
vid a, se t u n ão a vives? N ã o é apenas im becilidade t rocar sua p róp ria vid a por
u m a est ran h a, mas t am bém u m a b rin cad eira est úpida, pois n u n ca con seguirás
viver realm en t e a vid a de ou t ra pessoa, t u apenas a finges, enganas o ou t ro e a t i
m esm o, pois só podes viver t u a p róp ria vid a.
Se d e sist e s d e t e u s i- m e s m o , va is vi vê - l o e m o u t r a p esso a; t u te t o r n a r á s
egoíst a em relação a ela e, assim , en gan arás a ou t ra pessoa. Todos acred it am que
t al vid a é possível. Mas é apenas im it ação sim iesca. A fim de ceder a teus ap et i-
tes sim iescos, con t am in as a ou t ra pessoa, porque o m acaco est im u la o sim iesco.
Assim , fazes de t i e da ou t ra pessoa u m macaco. At ravés de im it ação m ú t u a vi -
veis segundo a expect at iva m edian a, para a qual foi estabelecida em t oda a ép o-
ca, através dos desejos de im it ação de todos, u m a im agem , u m h erói. Por isso o
h erói foi assassinado, pois t orn am o-n os todos para ele macacos. Sabes por que
n ão consegues abrir m ão do sim iesco? Por m edo da solidão e d a sujeição.
Vive r a si m esm o sign ifica: ser tarefa para si mesmo. N ã o digas n u n ca que é
u m prazer viver a si mesmo. N ã o será n en h u m a alegria, mas u m longo sofrim en -
to, pois precisas t orn ar-t e t eu próprio criador. Se quiseres criar a t i m esm o, n ão
comeces pelo m elh or e m ais elevado, mas pelo pior e m ais baixo. Por isso dize
que te repugn a viver a t i mesmo. A con fluên cia dos rios da vid a n ão é alegria,
mas dor, pois é violên cia con t ra violên cia, culpa, e rom pe com coisas sagradas.
A im agem da m ãe de Deu s com a criança, que ten h o dian te dos olhos, d á-m e
o en t en dim en t o do m ist ério da t ran sform ação 19 1. Q u an d o pensam ento prévio e
prazer se u n em em m im , surge u m terceiro, o Filh o divin o, que é o sen tido supre-
mo, o sím bolo, a passagem para u m a n ova criat ura. Eu m esm o n ão me t orn o sen -
tido su p r em o 19 2 ou sím bolo, mas o sím bolo torn a-se em m im , de t al form a que
ele t em sua substância, e eu a m in h a. Assim estou eu, com o Pedro, em adoração
dian te do m ilagre da tran sform ação e do t orn ar-se realidade de Deu s em m im .
Ain d a que eu m esm o n ão seja o filh o de Deu s, represen t o-o con t udo com o
alguém que foi m ãe para Deu s e a qu em por isso foi dado, em n om e de Deu s,
a liberdade do atar e desatar. O atar e desatar acontece em m i m 19 3 . En qu an t o
acontece em m im , e eu sou part e do m un do, acontece t am bém através de m im

191 O esboço corrigido tem: "em sua manifestação exterior, na miséria da realidade terrena" (p. 107).
192 Em vez disso, o esboço corrigido tem: "Filh o de Deus" (p. 107).
193 Cf. Mt 18,18: "Tudo que ligardes na terra será ligado nos céus, e tudo que desligardes na terra será
desligado nos céus".
170 L I B E R P R I M U S foi. v(r)/ vi(v)

n o m u n d o, e n i n g u é m p o d e i m p e d i - l o . Mas n ã o a co n t e ce p o r v i a d e m i n h a v o n -
tade, e sim por via de efeito in evit ável. N ã o sou eu que sou sen h or sobre vós,
mas o ser de Deu s em m im . Co m u m a chave t ran co o passado, com a ou t ra abro
o futuro. Ist o acontece en quan t o m e t ran sform o. O m ilagre da t ran sform ação é
que com an da. Eu sou seu servo, igual ao Papa.
Vê s que é m u it o desvairam en t o acredit ar ist o de si m e sm o 19 4 . N ã o se aplica
a m im , mas ao sím bolo. O sím bolo t orn a-se m eu sen h or e soberan o in falível,
vai fir m ar seu d om ín io e se t ran sform ar n u m a im agem rígida e en igm át ica,
cujo sen t ido se volt a t ot alm en t e para d en t ro e cujo prazer relu z para fora com o
fogo ch am ejan t e 19 5 , u m Bu d a n a ch a m a 19 6 . En qu an t o assim m e con cen t rava em
m eu sím bolo, o sím bolo de m eu u m m e t ran sform a em m eu out ro, e aquela
deusa cru el de m eu in t erior, m eu prazer fem in in o, m eu au t ên t ico out ro, o at or-
m en t ad or at orm en t ado, n aqu ilo a ser atorm en tado. In t er p r et ei esta im agem o
m elh or que pude com palavras pobres.

19 7
Segue n o m om en t o de t u a con fusão t eu pen sar prévio, n ão t eu apetite
cego, pois o pen sar prévio te con duz ao difícil, que sem pre deve chegar em

194 O esboço e o esboço corrigido continuam: "O papa em Rom a tornou-se para nós uma imagem c símbolo
de como se realiza a encarnação de Deus e de como ele (Deu s) se torna o senhor visível dos homens.
Portanto, o Deus vindouro torna-se o senhor do mundo. Isto acontece primeiramente (aqui) em mim. O
sentido supremo torna-se meu senhor e soberano infalível, mas não só em m im , talvez também em muitos
outros que eu não conheço" (esboçocorrigido p. 108-109).
195 O esboço corrigido tem: "torno-me então como o Buda sentado no fogo" (p. 109).
196 O esboço corrigido continua: "Onde está a ideia, também está sempre o prazer. Se a ideia está dentro, o
prazer está fora. Por isso me envolve então exteriormente um brilho de prazer pior. Um a divindade lasciva
e ávida de sangue me dá o brilho falso. Isto provém do fato de eu ter de suportar totalmente o vir a ser de
Deus e que por isso não posso separá-lo de m im inicialmente. Mas enquanto não estiver separado de m im ,
sou tomado pela ideia de que eu sou ela, e por isso sou também a mulher, que está ligada desde o começo
à ideia. Ao receber a ideia e a apresentar à maneira de Buda, meu prazer é formado como a Kali indiana,
pois ela é o outro lado de Buda. Mas Kali é Salomé, e Salomé é minha alma" (p. 109).
197 No esboço, ocorre aqui um longa passagem, da qual segue uma paráfrase: O torpor é como uma morte.
Eu preciso de total transformação. Através disto, minha intenção, como a do Buda, dirigiu-se totalmente
para dentro. Então aconteceu a transformação. Mudei então para o prazer, já que eu era um pensador.
Enquanto pensador, rejeitei meu sentimento, mas eu havia rejeitado parte da vida. Então meu sentimento
tornou-se uma planta venenosa e, quando acordei, ele era sensualidade em vez de prazer, a forma mais
inferior e mais comum de prazer. Esta é representada por Kali. Salomé é a imagem do meu prazer, que
sente dor porque foi excluído por muito tempo. Ficou evidente então que Salomé, isto é, meu prazer,
era minha alma. Quando reconheci isto, meu pensamento mudou e subiu à ideia, e então apareceu a
imagem de Elias. Isto me preparou para o jogo do mistério, e mostrou-me antecipadamente o caminho
da transformação pelo qual eu tinha que passar no Mysterium. A convergência do pensar prévio com
o prazer produz o Deus. Reconheci que o Deus em m im queria tornar-se homem, e considerei isto e
respeitei isto, e tornei-me o servo do Deus, mas para nenhum outro senão eu mesmo [esboço corrigido:
seria loucura e presunção supor que fiz isto também para outros, p. 110]. Mergulhei na contemplação da
maravilha da transformação, e primeiro transformei-me no nível inferior do meu prazer, e depois, através
disto, reconheci minha alma. O s sorrisos de Elias e Salomé indicam que estavam contentes com meu
aparecimento, mas eu estrava em profundas trevas. Quando o caminho é escuro, é a ideia que fornece luz.
Quando a ideia, no momento de confusão, possibilita as palavras e não o anseio cego, então as palavras
levam você à dificuldade. Ao passo que a ideia leva você para a direita. E por isso que Elias volta-se para a
esquerda, para o lado do pecaminoso e mau, e Salomé volta-se para o lado do correto e bom. Ela não vai ao
jardim , o lugar do prazer, mas permanece na casa do pai (p. 125-127).
I N ST RU ÇÃO 171

p rim eiro lugar. E ele chega. Q u an d o procuras u m a lu z, cais in icialm en t e n u m a


escuridão ain d a m ais profun da. Nest a escuridão en con t rarás u m a lu z fraca, de
ch am a averm elh ada, que d á u m a claridade m u it o pequen a, mas suficien t e para
ver a coisa seguinte. É ext en u an t e chegar a esta m et a, que n ão parece m et a a l-
gum a. E é b om assim : est ou paralisado e por isso disposto a aceitar. Me u pen sar
prévio lan ça-m e sobre o leão, m in h a fo r ça 19 8 .
Eu p ersist i n a form a san t ificada e n ão au t orizei o caos a rom per seus diques.
E u a c r e d it a va n a o r d e m d o m u n d o e o d ia va t o d o d e s o r d e n a d o e s e m fo r m a .
Por isso t in h a de ad m it ir antes de tudo que m in h a p róp ria lei m e h avia t razid o
a este lugar. En qu an t o Deu s estivesse em m im , pen sava eu , ele seria u m a part e
de m eu si-m esm o. Eu pen sava que m eu eu o en volvia e por isso o con sid era-
va com o m eus pen sam en tos. Mas de m eus pen sam en tos eu pen sava que eram
part e de m eu eu. Assim eu colocava a m im m esm o em m eus pen sam en tos e
assim t am bém a m im m esm o nos pen sam en tos de Deu s, con sid eran d o-o / u m a foi.vi( r )
part e de m eu si-m esm o.
Por causa de m eus pen sam en t os, aban d on ei a m im m esm o; por isso m eu
si-m esm o ficou fam in t o e fez de Deu s u m a id eia egoíst a. Se eu aban d on ar
m eu si-m esm o, a fome vai im p elir-m e a en con t rar m eu si-m esm o em m eu con -
teúdo, port an t o em m eu pensam ento. Por isso gostas de pen sam en tos razoáveis
e ordenados, pois n ão suportarias que t eu si-m esm o estivesse em pen sam en tos
desordenados, isto é, im próprios. At ravés de t eu desejo egoíst a expulsas de t eu
pen sam en to tudo o que n ão te parece ordenado, isto é, n ão apropriado. A ord em
t u a crias de acordo com o que sabes; mas os pen sam en tos do caos t u n ão os co-
nheces, e assim m esm o eles exist em . Meus pen sam en tos n ão são m eu si-m esm o,
e m eu eu n ão abrange o pensam ento. Teu pen sam en to t em este sign ificado e
ain da outro, n ão som en te u m , mas m uit os significados. Nin gu ém sabe quantos.
Meus pen sam en tos n ão são m eu si-m esm o, mas são exat am en t e com o as
coisas do m un do, vivas e m o r t a s 19 9 . Assim com o n ão sou prejudicado por viver

198 No esboço ocorre uma passagem da qual segue uma paráfrase: Se sou forte, também o são minhas
intenções e pressuposições. Meu pensamento enfraquece e muda para a ideia. A ideia se torna forte; ela
é sustentada por sua própria força. Reconheço isto no fato de Elias ser sustentado pelos leões. O leão é
de pedra. Meu prazer está morto e transformado em pedra, porque não amei Salomé. Isto deu ao meu
pensamento a frieza da pedra, e disto a ideia tomou sua solidez, que é necessária para subjugar meu
pensamento. Ele precisava ser subjugado, já que lutava contra Salomé, porque ela lhe pareceu má (p. 128).
199 Em 1921, Jung escreveu: "Devido à realidade específica dos conteúdos inconscientes, podemos chamá-la
de objeto com os mesmos direitos com que chamamos as coisas exteriores de objetos" (Tipospsicológicos. O C ,
6, § 28 0 ) .
172 LI BERP RI M U S foi.vi(r)/ vi(v)

n u m m u n d o p a r c i a l m e n t e d e s o r d e n a d o , t a m b é m n ã o s o u p r e ju d ic a d o se vi ve r

em m eu m u n d o de ideias parcialm en t e desordenado. Pen sam en tos são fen ó-


m en os da n at u reza dos quais n ão tens a posse e cujo sign ificado só conheces
bem im p er feit am en t e 20 0 . O s pen sam en tos crescem em m im com o u m a flores-
ta, diversos an im ais a h abit am . Mas o ser h u m an o é au t orit ário em seu pen sar
e com isso m at a o prazer da florest a e dos an im ais selvagens. O ser h u m an o é
violen t o em sua cobiça, e ele m esm o se t orn a floresta e an im al selvagem. Assim
com o t en h o a liberdade n o m un do, t am bém t en h o a liberdade em m eus pen sa-
m en t os. A liberdade é lim it ad a.
A certas coisas do m u n d o devo dizer: vós n ão deveis ser assim , p orém d ife-
ren tes. Mas antes disso observo cuidadosam en t e sua n at u reza, caso con t rário
n ão posso m u d á-las; de m odo sem elh an t e procedo com certos pen sam en tos.
Tu m udas aquelas coisas do m u n d o que, m esm o n ão sendo proveitoso, p õem
em risco t eu bem -estar. Procede igualm en t e assim com os pen sam en tos. Nad a
é perfeito, m u it a coisa é con flit uosa. O cam in h o da vid a é t ran sform ação, n ão
exclusão. O bem -est ar é m elh or ju iz do que o d ireit o.
Mas quan do t om ei con sciên cia da liberdade em m eu m u n d o de ideias, Sa-
lom é m e abraçou, e eu m e t or n ei profeta, pois t in h a en con t rado prazer n ão
p rim ord ial n a floresta e nos an im ais selvagens. Tin h a m u it o m ais von t ade de
equ iparar-m e ao observado, do que t er a felicidade de con t em plar. Co r r o o
risco de acredit ar que eu m esm o t en h o sen tido, porque con t em plo o sign ifica-
tivo. Nisso ficam os sem pre de n ovo m alucos, e t ran sform am os o observado em
lou cu ra e m acaquice, porque n ão conseguim os aban don ar a im it a çã o 20 1.
Assim com o m eu pen sar é o filh o do pen sar prévio, m eu prazer é a filh a do
am or, da m ãe in ocen t e e con cebedora de Deu s. Alé m de Cr ist o, Ma r ia d eu à lu z
Salom é. Por isso d iz Cr ist o n o evangelho aos egípcios a Salom é: "Co m e q u al-
quer verd u ra, mas n ão com as a verd u ra am arga". E com o Salom é quisesse saber

200 O esboço e o esboço corrigido têm: "Deveria considerar me louco ; [esboço corrigido: seria mais que absurdo] se
eu pensasse que tinha gerado os pensamentos do mistério" (esboço corrigido, p. 115).
201 O esboço continua: "...reconheci o Pai, mas porque eu era um pensador, no entanto, não conheci a mãe,
porém vi o amor na forma do prazer, e o chamei de prazer, e por isso ficou sendo Salomé para mim. Agora
percebo que Maria é a mãe, a inocente, e receptora de amor e não de prazer, que em sua natureza fogosa
e sedutora traz o germe do mal. / Se Salomé, o prazer maldoso, é minha irmã, então eu sou um santo
pensador, e meu intelecto está arruinado. Eu preciso sacrificar meu intelecto e devo confessar que aquilo
que vos disse sobre o prazer, de que ele é o princípio diante do pensar prévio, imperfeito e preconcebido.
Eu olhava como um pensador a partir do ponto de vista de meu pensar, senão teria podido reconhecer que
Salomé, como a filha de Elias, é um derivado do pensar e não o próprio princípio. Maria, a mãe virginal e
inocente, aparece como sendo esse princípio" (p. 133).
SO LU Ç ÃO 173

o p orqu ê, Cr ist o lh e disse: "Se t irard es o m an t o da vergon h a e se os dois se t or-


n arem u m , e o m ascu lin o com o fem in in o, n em m ascu lin o e n em fe m in in o " 2 0 2 .
O pen sam en t o prévio é gerador, o am or é receb ed or 20 3. Am b os est ão além
deste m un do. Aq u i est ão razão e prazer, o resto n ós apenas pressen t im os. Seria
t ola ilusão afirm ar que est ão neste m un do. E m t orn o desta lu z h á t an t a coisa
en igm át ica e serpen t iform e. Eu recu perei da profun deza o poder, e com o u m
leão ele an da dian t e de m i m 2 0 4 .

Solução
[ I H vi ( v) ] 2 ° 5
Cap. xi.

206
N a t erceira n oit e seguinte, fu i tom ado por u m desejo profun do de con -
t in u ar viven cian d o o m ist ério. Gr an d e era o con flit o en t re d ú vid a e desejo em
m im . Mas de repen te vi que estava n u m a alcan t ilad a crist a roch osa em região
desért ica. E d ia de claridade ofuscante. Avist ei acim a de m im , n u m plan o m ais
elevado, o profeta. Su a m ão fez u m gesto de afastam ento, e eu d esist i de m in h a
in t en ção de subir. Esp er ei em baixo, olh an do para cim a. O lh o: à d ir eit a para a
n oit e escura, à esquerda para o d ia claro. O roch edo d ivid e d ia e n oit e. N o lado

202 O Evangelho dos Egípcios é um dos evangelhos apócrifos, que expõe um diálogo entre Crist o e
Salomé. Crist o afirma que veio destruir a obra do feminino, a saber, a concupiscência, o nascimento e a
deterioração. A pergunta de Salomé sobre quanto tempo a morte prevalecerá, Crist o respondeu: enquanto
as mulheres gerarem filhos. Aqu i Jung está se referindo à seguinte passagem: "Ela disse: 'Então eu fiz bem
em não parir', imaginando que não é permitido gerar filhos. O Senhor respondeu: 'Com e de todas as
ervas, mas não comas das amargas'". O diálogo continua: "Quando Salomé perguntou quando isto será
tornado público, o Senhor disse: 'Quando você calcar aos pés o manto da vergonha e quando de dois for
feito um, e o masculino com o feminino, nem masculino nem feminino'" (TheApocryphalNewTestament.
Oxford: O xford University Press, 1999, p. 18 [org. por J.K. Elliot ]). Jung cita este lógíon, ao qual teve acesso
através dos Stromateís de Clemente, como exemplo da união dos opostos em Visions, vol. 1, p. 524 (1932), e
como exemplo da coníunctío de masculino e feminino em "A psicologia do arquétipo da criança" (1940).
O C , 9/ 1, § 295) e Mysterium corúunctíonís (1955/ 1956). O C , 14, § 528.
203 O esboço e o esboço corrigido têm: "mas quando o jogo dos mistérios me mostrou isto, não o entendi, mas
pensei que tinha gerado um pensamento desvairado. Sou alienado, se acreditar nisso. E cu acreditei.
Por isso o medo tomou conta de mim, e eu queria esclarecer Elias e Salomé como meus pensamentos
arbitrários e, assim, enfraquecê-los" (esboço corrigido, p. 118).
204 O esboço continua: "A imagem da noite fresca e estrelada, com o vasto céu, abriu-me os olhos para
a infinitude do mundo interior que eu, como pessoa mais ávida, ainda achei muito fria. Não posso
apoderar-me das estrelas, apenas contemplá-las. Por isso m inha impetuosa avidez sente aquele mundo
como escuro e frio" (p. 135).
205 Isto descreve uma cena na fantasia a seguir.
206 25 de dezembro de 1913.
174 LI BE R P RI M U S foi.vi(r)/ vi(v)

escuro est á d eit ad a u m a grande serpen te negra, n o lado claro, u m a serpen te


bran ca. Levan t am suas cabeças u m a con t ra a ou t ra, em at it ude de lu t a. Elias
está acim a delas lá n o alto. D e repen t e, as serpen tes precipit am -se u m a con t ra
a ou t ra, e se t rava u m a lu t a feroz. A serpen te n egra parece ser m ais forte. A
bran ca recua. Gran d es n uven s de p ó levan t am -se do lugar da batalh a. Mas vejo:
a serpen te n egra ret ira-se de novo. A part e d ian t eira de seu corpo t orn ou -se
bran ca. Am b as as serpen tes con t orcem -se e desaparecem , u m a n a lu z, a ou t ra
n a e scu r id ã o 20 7 .
Elias: "O que vist e?"
Eu : "Eu vi a lu t a de duas serpen tes m u it o fortes. Pareceu-m e que a serpen te
n egra ven ceria a bran ca, mas repara, a n egra ret irou -se, e sua cabeça e a part e
d ian t eira de seu corpo ficaram bran cas".
E: "En t en d es ist o?"
Eu : "E u reflet i, m as n ão con sigo en t en d er n ada. Q u e r d izer que o poder
da boa lu z é t ão gran de que m esm o a escu rid ão, que lh e resist e, é ilu m in ad a
p or ela?"
Elias sobe à m in h a fren te a u m a alt u ra m u it o grande; eu sigo atrás. N o
cum e, chegamos a u m m u ro, arm ado em blocos m aciços. Er a u m a fort aleza ao
redor de todo o c u m e 2 0 8 . No in t er ior h avia u m grande pát io, e n o m eio dele, u m
im en so bloco de pedra, com o u m altar. Sobre esta pedra est á o profet a e fala:
"Est e é o t em plo do sol. Est e pát io é u m recipien t e que recolh e a lu z do sol".
Elias desce da pedra, sua figura vai d im in u in d o ao descer, prat icam en t e u m
anão, bem diferen t e dele m esm o.
Eu pergun t ei: "Q u e m és t u ?"
"Eu sou M i m e 2 0 9 , e eu quero m ost rar-lh e as fontes. A lu z recolh id a t or n a-
-se água e flu i em diversas fontes do cum e para os vales da t erra". Dep ois disso,

207 No seminário de 1925, Jung disse: "Algumas noites mais tarde senti que as coisas deviam continuar,
de modo que novamente procurei seguir o mesmo procedimento, mas a coisa não descia. Permaneci na
superfície. Dei-m e conta então de que eu tinha um conflito dentro de m im a respeito de descer, mas não
pude entender o que era, apenas senti que dois princípios escuros estavam lutando um contra o outro,
duas serpentes" (introductíon to Jungian Psychology, p. 104).
208 No seminário de 1925, Jung acrescentou: "Eu pensei: isto é um lugar sagrado dos druidas" (introductíon to
Jungian Psychology, p. 104).
209 Em O anel do níhelungo, de Wagner, o anão nibelungo Mime é irmão de Alberich e mestre artesão. Alberich
roubou o ouro do Reno das donzelas do Reno; renunciando ao amor, ele conseguiu forjar com ele um anel
que conferia poder ilimitado. No Siegfried, Mime, que mora numa caverna, traz Siegfried para fora, para que
mate o gigante Fafner, que foi transformado num dragão e agora possui o anel. Siegfried mata Fafner com
a espada invencível forjada por Mime, e mata Mime, que queria matá-lo depois de recuperar o ouro.
SO LU Ç ÃO 175

desaparece n u m a fen da d a roch a. Eu o sigo descendo para u m a cavern a escura.


O u ço o ru m orejar de u m a fonte. O u ço, vin d a lá de baixo, a voz do an ão: "Aq u i
est ão m eus poços, sábio ficará qu em deles beber".
Mas n ão consigo chegar até em baixo. Falt a-m e coragem . Saio da cavern a e
fico an dan do de cá para lá sobre as pedras do pát io. Tu d o m e parece est ran h o
e in com preen sível. Aq u i é tudo solit ário e de silên cio sepulcral. O ar é claro e
fresco com o n a m aior alt u ra, em t oda part e t ran sbordan do m aravilh osam en t e
a lu z do sol, em volt a de m im o grande m uro. U m a serpen te vem rast ejan do
sobre as pedras. E a serpen te do profeta. Co m o vem ela do subm un do para
o m u n d o da superfície? Sigo-a e vejo que rast eja n a d ireção do m uro. Recebo
u m a coragem est ran h a: lá está u m a casa pequen a, com u m pórt ico, m u it o pe-
quen a, en cravada n a roch a. A serpen te t orn a-se in fin it am en t e pequena. Sin t o
com o eu t am bém vo u en colh en do. O s m u ros erguem -se em im pon en t es m o n -
tan h as, e eu vejo: eu est ou em baixo, n o ch ão da crat era, n o subm un do, e estou
dian t e da casa do p r o fe t a 210 . Ele sai pela p ort a de sua casa.
Eu : "Percebo, Elias, que m e deixast e ver e viver todo t ipo de coisas est ra-
n h as, antes que eu pudesse chegar a t i. Mas confesso que tudo é obscuro para
m im . Te u m u n d o m e aparece h oje n u m a n ova lu z. H á pouco ain d a m e sen t ia
com o se estivesse separado de t eu lugar por dist ân cias ast ron óm icas, lá onde
pret en do chegar h oje e vejo: parece ser o m esm o lugar".
E: "Est ivest e m u it o ansioso para vir aqui. N ã o fu i eu que en gan ei, t u te
enganaste a t i mesmo. Mas vê bem , qu em quer ver, perde m u it a coisa; t u te
enganaste".
Eu : " E verdade, eu desejava m u it o chegar a t i para perceber o u lt erior. Sa-
lom é m e assustou e m e t orn ou confuso. Tive vert igen s, pois o que ela d izia
parecia-m e m on st ru oso e com o lou cu ra. O n d e está Salom é?"

210 No seminário de 192$, Jung interpretou este episódio da seguinte maneira: "A luta das duas serpentes: a
branca significa um movimento para o dia, a negra para o reino das trevas, com aspectos morais também.
Havia dentro de m im um conflito real, uma resistência a descer. Min h a tendência mais forte era subir.
Porque eu ficara tão impressionado no dia anterior com a crueldade do lugar que havia visto, minha
tendência era realmente encontrar um caminho para o consciente subindo, como fiz na montanha... Elias
disse que embaixo ou em cima era exatamente a mesma coisa. Con fira o Inferno de Dante. O s gnósticos
expressam esta mesma ideia com o símbolo dos cones invertidos. Assim , a montanha e a cratera são
semelhantes. Não havia nada de estrutura consciente nestas fantasias, eram apenas fatos ocorridos. Por
isso suponho que Dante tirou suas ideias dos mesmos arquétipos" (introductíon to Jungian Psychology, p. 104-
105). McGuire sugere que Jung está se referindo à concepção de Dante "da forma cónica da cavidade do
Inferno, com seus círculos, espelhando inversamente a forma do Céu, com suas esferas" (Ib id .). Em Aíon,
Jung observou também que as serpentes eram um típico par de opostos e que o conflito entre serpentes
era um motivo encontrado na alquimia medieval (1951. O C , 9/ 2, § 181).
176 LI BERP RI M U S foi.vi(r)/ vi(v)

E: "Co m o est ás agit ado! O que ist o te im p or t a? Va i at é o cr ist a l e p r ep a-


r a-t e e m su a lu z ".

U m a coroa de fogo en volveu de raios a pedra. O m edo m e atacou, o que


vejo: o sapato grosseiro do cam pon ês? O pé de u m poderoso que esmaga u m a
cidade in t eira? Vejo a cru z, o descim en t o da cru z, a lam en t ação - qu ão d o-
lorosa é esta visão! N ã o quero m ais - vejo a crian ça d ivin a, n a m ão d ir eit a a
serpen te bran ca e n a m ão esquerda a serpen te negra - vejo o m on t e verde, n o
alto dele a cru z de Cr ist o, e t orren t es de sangue descem do cum e do m on t e -
n ão aguento m ais, é in su port ável - vejo a cru z e n ela Cr ist o em sua ú lt im a h ora
e t orm en t o - em t orn o do pé d a cru z m ovim en t a-se a serpen te n egra - em
redor dos m eus pés ela se en roscou - eu est ou en feit içad o e abro m eus braços.
Salom é se aproxim a. A serpen te en rolou -se ao redor de todo o m eu corpo, e
m in h a aparên cia é a de u m leão.
Salom é diz: "Ma r ia foi a m ãe de Cr ist o, en ten des?"
Eu : "E u vejo que u m a força t errível e in com preen sível m e obriga a im it ar o
Sen h or em seu ú lt im o padecim en to. Mas com o pod eria at rever-m e a ch am ar
Mar ia de m in h a m ãe?"
S: "T u és Cr ist o ".
Est ou parado em pé, com os braços abertos com o u m crucificado, m eu cor-
po apertado e h orrivelm en t e en rolado pela serpen te: "T u , Salom é, dizes que
sou Cr is t o ?" 2 11

211 No seminário de 1925, Jung contou isto novamente, após a declaração de Salomé de que ele era
Cristo: "Apesar de minhas objeções, ela manteve isto. Eu disse: 'isso é loucura', e me enchi de resistência
cética" (introductíon to Jungian Psychology, p. 104). Ele interpretou este acontecimento da seguinte maneira:
"A abordagem de Salomé e sua veneração por mim é obviamente esse lado da função inferior que está
cercado por uma aura de mal. O indivíduo é assaltado pelo medo de que talvez isto seja loucura. E assim
que a loucura começa, isto é a loucura... Você não pode tornar-se consciente destes fatos inconscientes
sem entregar-se a eles. Se você puder superar seu medo do inconsciente e deixar-se descer, estes fatos
adquirem uma vida própria. Você pode ser agarrado por estas ideias a tal ponto que você fica realmente
louco, ou quase louco. Estas imagens têm tanta realidade, que se recomendam a si mesmas, e sentido tão
extraordinário que se fica preso. Fazem parte dos antigos mistérios; na verdade, tais fantasias é que fizeram
os mistérios. Comparem-se os mistérios de Isis, narrados em Apuleio, com a iniciação e divinização do
iniciado... Tem-se uma sensação especial ao passar por semelhante iniciação. A parte importante que
levou à divinização foi o ato de a serpente enrolar-se em mim. A performance de Salomé foi a divinização.
O rosto do animal no qual senti que o meu foi transformado era o famoso [Deus] Leontocéfalo dos
mistérios de Mitra, a figura representada com uma serpente enrolada num homem, a cabeça da serpente
encostada na cabeça do homem, e o rosto do homem no de um leão... Neste mistério de divinização você
se transforma no veículo e é o veículo da criação no qual os opostos se conciliam". E acrescentou que
"tudo isto é simbolismo mitraico do início ao fim " (Ibid ., p. 9 8-9 9 ). Em O asno de ouro, Lúcio passa por uma
iniciação aos mistérios de Isis. A importância deste episódio é que ele é a única descrição direta de uma
tal iniciação que chegou até nós. Sobre o acontecimento em si, Lúcio afirma: "Aproxímeí-me dos próprios portões
SO LU Ç ÃO 177

Sin t o-m e com o se estivesse sozin h o em pé, n u m alto m on t e, com os braços


rígidos e abertos. A serpen te apert a m eu corpo com seus an éis aterradores, e o
sangue jo r r a de m eu corpo em fontes nos lados do m on t e para baixo. Salom é
curva-se sobre m eus pés e os en volve com seus cabelos negros. Fica m u it o t em -
po assim deit ada. D e repen te ela grit a: "E u vejo lu z!" Realm en t e ela en xerga,
seus olh os est ão abertos. A serpen te cai de m eu corpo e jaz com o m or t a n o
chão. Passo por cim a dela e m e ajoelh o aos pés do profeta, cujo sem blan te b r i-
lh a com o ch am a.
E: "Tu a obra est á acabada aqui. O u t r as coisas virão. Procu ra in can savelm en -
te e sobretudo escreve fielm en t e o que vês".
Salom é olh ava extasiada para a lu z que se irrad iava do profeta. Elias t ran sfor-
m ou-se n u m a poderosa ch am a de b rilh o bran co, a serpente deitou-se em volt a
de seu pé, com o paralisada. Salom é estava ajoelhada dian t e da lu z em adm irável
arrebatam en to. Brot aram -m e lágrim as dos olhos, e eu saí apressadamente para
a n oit e com o alguém que n ão t em parte n a glória do m ist ério. Meus pés n ão
t ocaram o ch ão desta t erra, e m in h a sen sação é a de desfazer-m e n o a r 2 12 .

[ 2] 2 I 3 M e u d esejo 214 levou -m e para cim a, para o d ia superclaro, cu ja lu z é o


con t rário do espaço escuro do pen sar p r é vio 215 . O con t raprin cípio é, com o eu
acreditava en ten der, o am or celest ial, a m ãe. A escuridão que en volve o pen sar

da m orte e pus o pé no lim iar de Perséfone, e no entanto foi-m e perm itido voltar, arrebatado através de todos os elem entos. À m eía-noite vi
o sol brilhando com o se fosse m eío-día-, entrei na presença dos deuses do m undo inferior e dos deuses do m undo superior,fiqueiperto deles
eadorei-os". Em seguida, ele foi apresentado num púlpito no templo diante de uma multidão. Vestia trajes
que tinham desenhos de serpentes e leões alados, segurava uma tocha e trazia uma grinalda de folhas de
palmeira com as pontas voltadas para fora como raios de luz" (The GoldenAss. Harm ondsworth, 1984, p.
241 [Trad. de R. Graves]). O exemplar de Jung de uma tradução desta obra tem uma linha na margem na
altura desta passagem.
212 Em "Aspectos psicológicos da Co r e"(i9 5i), Jung descreveu estas cenas como segue: "Em uma casa
subterrânea, ou melhor, no mundo subterrâneo vive um mago e profeta velhíssimo, com uma 'filha', que
não é sua filha verdadeira. Ela é dançarina, uma criatura muito flexível, mas está em busca de cura, pois
ficou cega" ( O C, 9/ 1, § 360). Esta descrição de Elias levou-o posteriormente à descrição de Filêmon. Jung
observou que isto "esboça a desconhecida como uma figura mítica no além (isto é, no inconsciente). Ela é
soror ou filia mystíca de um hierofante ou 'filósofo', portanto é evidentemente um paralelo em relação àquelas
sizígias místicas tais como as encontramos nas figuras de Simão Mago e Helena, Zósim o sob a Teosebeia,
Comário e Cleópatra, etc. Nossa figura onírica está mais próxima à de Helena" ( O C, 9/ 1, § 372).
213 O esboço corrigido tem: "reflexão" (p. 127). No Livro Negro 2, Jung copiou as seguintes citações da Divina
Comédia, de Dante na tradução alemã (p. 104): "Pensativo, escuto o sopro do amor; aceito como verdade o
que sempre me prediz, e copio tudo, nada inventando eu mesmo" (Dante. Purgatório. 24. Canto 52-54).
"E logo a chama, que ainda se movimenta, para onde quer que a trilha do fogo vá, assim segue a forma
aonde o espírito a carrega" ( D AN T E . Purgatório. 25. Can to 97-99).
214 O esboço tem: "A notícia do desejo reanimado da mãe" (p. 143).
215 O esboço corrigido tem: "Imagem prim ordial" (p. 127).
178 LI BERP RI M U S foi.vi(r)/ vi(v)

p r é v i o 2 16 p a r e ce p r o vi r do fat o de que e le se p r o ce ssa i n vi s i ve lm e n t e n o i n t e r i o r


e n a p rofu n d eza 217 . Mas a claridade do am or parece p rovir do fato de o am or ser
vid a e agir visíveis. Me u prazer estava n o pen sar prévio e t in h a lá seu jar d im de
delícias, cercado de p u ra escuridão e n oit e. Para m eu prazer eu desci, mas para
m eu am or eu subi. Vejo Elias n o alto, acim a de m im : ist o m ost ra que o pen sar
prévio está m ais pert o do am or do que eu , a pessoa. An t es que suba para o amor,
u m a con dição precisa ser satisfeita, que se apresen ta com o a lu t a das duas ser-
pentes. À esquerda é dia, à d ireit a é n oit e. Cla r o é o rein o do amor, escuro é o
rein o do pensar prévio. O s dois prin cípios se separaram rigorosam en te, são at é
m esm o in im igos e assum iram a form a de serpentes. A figura da serpen te sign i-
fica a n at u reza d em on íaca dos dois prin cípios. Recon h eço n esta lu t a u m a repe-
tição daquela visão em que presen ciei a bat alh a en t re o sol e a serpente n egr a 218 .
Naqu ela vez a adorável lu z foi apagada, e o sangue com eçou a escorrer. Fo i
a Gr an d e Gu er r a. Mas o espírit o d a p r ofu n d eza 219 quer que esta gu erra seja
en t en d id a com o u m a divisão n a p róp ria n at u reza de cada p essoa 220 . Pois, após a
m ort e do h erói, nosso im pu lso de vid a n ão p ôd e im it ar m ais n ada e por isso foi
para a profun deza de cada pessoa e causou a assustadora divisão en t re as forças
da p r ofu n d eza 221. O pen sar prévio é ser só, o am or é ser ju n t o. O s dois precisam
u m do outro, mas m esm o assim se m at am m u t u am en t e. Pelo fato de as pessoas

216 O esboço corrigido tem: "A ideia ou a imagem prim ordial" (p. 127).
217 O esboço corrigido tem: "vive" (p. 127).
218 Isto é, no capítulo 5, "Descida ao inferno no futuro".
219 O esboço corrigido tem: "o espírito" (p. 127).
220 O esboço continua: "Por isso dizem todos que ele pode lutar pelo bem e pela paz, lá onde não é possível
um duelar mútuo pelo bem. Mas como as pessoas não sabem que a divisão está em seu próprio interior,
acham os alemães que os ingleses e russos não têm razão; os ingleses e russos porém dizem que os alemães
não têm razão. Mas ninguém consegue julgar os rostos segundo ter razão e não ter razão. Quando a
metade da humanidade está sem razão, cada pessoa está pela metade sem razão. Por isso é uma divisão em
sua própria alma. Mas o ser humano é obcecado e sempre só conhece uma de suas metades. O alemão tem
em si o inglês e o russo, que ele combate fora de si mesmo. De igual modo, o inglês e o russo têm em si o
alemão que eles combatem. As pessoas veem a discórdia externa, mas não a interna, que é a única fonte da
grande guerra. Mas antes que o ser humano possa ascender para a luz e o amor, há necessidade da grande
batalha" (p. 145).
221 Em dezembro de 1916, em seu prefácio a A psicologia dos processos inconscientes, Jung escreveu: "Nada
mais apropriado do que os processos psicológicos que acompanham a guerra atual - notadamente a
anarquização inacreditável dos critérios em geral, as difamações recíprocas, os surtos imprevisíveis de
vandalismo e destruição, a maré indizível de mentiras e a incapacidade do homem de deter o demónio
sanguinário para obrigar o homem que pensa a encarar o problema do inconsciente caótico e agitado,
debaixo do mundo ordenado da consciência. Esta Guerra Mundial mostra implacavelmente que o
homem civilizado ainda é um bárbaro. Ao mesmo tempo, prova que um açoite de ferro está à espera, caso
ainda se tenha a veleidade de responsabilizar o vizinho pelos seus próprios defeitos. A psicologia do indivíduo
corresponde à psicologia das nações. As nações fazem exatamente o que cada um faz individualmente; e do m odo com o
o indivíduo age, a nação também agirá. Somente com a transformação da atitude do indivíduo é que começará a
transformar-se a psicologia da nação" (vol. 7, p. xix).
SO LU Ç ÃO 179

n ão saberem que a divisão está d en t ro delas m esm as, t orn am -se desvairadas / e foi.vi( r )
em p u rram a cu lpa u m a para a ou t ra. Se u m a m etade d a h u m an id ade est á sem ^ ^
razão, en t ão cada pessoa está pela m etade sem razão. Mas n ão vê a divisão em
sua alm a, que é a fon te d a desgraça ext ern a. Se estás irr it ad o con t ra t eu irm ão,
pen sa que estás irr it ad o con t ra o irm ão d en t ro de t i, ist o é, con t ra aquilo em t i
que é sem elh an t e a t eu irm ão.
En q u an t o pessoa és parte d a h u m an id ad e e por isso ten s part e n o todo da
h u m an idad e de t al form a com o se fosses a h u m an id ade toda. Se t u ven ces e
m atas o t eu con cid ad ão que se op õe a t i, en t ão m atas aquela pessoa t am bém em
t i e terás m atado u m a part e de t u a vid a. O espírit o desse m ort o vai seguir-te e
n ão p erm it irá que te alegres com t u a vid a. T u precisas de t eu todo para passar
pela vid a.
Se eu m e aban don o ao puro prin cípio, coloco-m e n u m dos lados e m e t orn o
u n ilat eral. Por isso m eu pen sar p révio t orn a-se, n o p r in cíp io 222 da m ãe celeste,
u m an ão repu lsivo que m or a n a cavern a escura com o u m n ão n ascido n o út ero.
Tu n ão o seguirás, m esm o que te diga que poderias beber sabedoria em sua
fonte. O pen sam en t o p r é vio 2 2 3 vai aparecer-t e lá com o esperteza de an ão, falsa
e obscura, assim com o m e apareceu lá em baixo a m ãe do céu com o Salom é. O
que falt a oport u n am en t e n o p rin cíp io pu ro aparece com o serpen te. O h erói
am bicion a ao m áxim o o prin cípio puro e por isso é fin alm en t e ven cid o pela
serpen te. Q u an d o te diriges ao p en sar 224 , leva ju n t o t eu coração. Q u an d o te
diriges ao am or, leva ju n t o t u a cabeça. Vazio é o am or sem pensar, ou o pen sar
sem amor. A serpen te espreit a atrás do prin cípio puro. Por isso fiqu ei sem ân i-
m o até en con t rar a serpen te que m e levou im ed iat am en t e para o ou t ro p rin cí-
pio. N a descida, eu en colh i.
Gran d e é qu em est á n o am or, pois o am or é a obra at u al do grande criador,
do m om en t o at ual do vir a ser e do desaparecer do m un do. Poderoso é qu em
am a. Mas qu em se afasta do am or sen te-se poderoso.
Em t eu pen sar p révio conheces a n u lidade de t eu ser m om en t ân eo com o
u m dos m en ores pon tos en t re o in fin it o do passado e o in fin it o do porvir. Pe-
quen o é o pensador, gran de ele se ju lga quan do se afasta do pensar. Mas quan do

222 O esboço corrigido tem: "o profeta, a personificação da ideia" (p. 131).
223 O esboço corrigido tem: "ideia" (p. 131).
224 O esboço corrigido tem: "ideia" (substituída durante todo o parágrafo) (p. 131).
i8o LI BERP RI M U S fol.vi(r)/ vii(v)

falamos d a aparên cia, a coisa é ou t ra. Para qu em está n o am or, a form a é u m


em pecilh o pequeno. Mas seu h orizon t e t er m in a com a form a que lh e é dada.
Para qu em está n o pensar, a form a é in t ran spon ível e alt a com o o céu. Mas ele
vê n a n oit e a variedade dos in con t áveis m un dos e de suas in t erm in áveis rot a-
ções. Q u e m está n o am or é u m recipien t e ch eio e t ran sbordan t e que aguarda
o m om en t o de doar. Q u e m está n o pen sam en t o prévio é profun do e vazio e
espera o en ch im en t o.
Am o r e pen sam en t o prévio est ão n u m m esm o lugar. O am or n ão pode exis-
t ir sem pen sam en t o prévio, e pen sam en t o prévio, sem am or. A pessoa h u m an a
está sem pre por dem ais em u m ou outro. Ist o est á relacion ado com a n at u reza
h u m an a. O s an im ais e as plan tas parecem t er o suficien t e em todos os lados, só
o ser h u m an o oscila en t re o dem ais e o de m en os. O scila qu em está in seguro
do quan to deve dar aqui e do quan t o deve dar lá, alguém cujo saber e poder são
suficien t es, mas que ele m esm o deve fazer. O ser h u m an o n ão cresce apenas
por si m esm o, mas é t a m b é m 2 2 5 criad or por si m esm o. Deu s se m an ifest a n e le 226 .
O ser h u m an o é m en os h abilidoso para a divin dade, e p or isso oscila en t re o
dem ais e o de m e n o s 227 .
O espírit o dessa época con den ou -n os à precipit ação. N ã o tens m ais fut uro
n em passado, se servires ao espírit o dessa época. Precisam os da vid a d a et er n i-
dade. N a profun deza guardam os fut uro e passado. O fut uro é velh o e o passado
é jovem . T u serves ao espírit o dessa época e pensas que podes fugir do espírit o
da profun deza. Mas a profun deza n ão d em ora m u it o e vai forçá-lo para d en t ro
do m ist ério de Cr i s t o 2 2 8 . Faz part e desse m ist ério que o ser h u m an o n ão será

225 O esboço corrigido acrescenta: "consciente". De dentro de si m esm o é suprim ido (p. 133).
226 Em vez disso, o esboço e o esboço corrigido têm: "A força criadora de Deus torna-se (nele), uma, pessoa [uma
consciência pessoal] a partir do (inconsciente) coletivo (p. 133-134).
227 O esboço e o esboço corrigido têm: "mas por que, perguntas tu, aparece-te o pensar prévio [a ideia] na figura
de um velho profeta judeu e teu [o] prazer na figura da pagã Salomé? Mas amigo, não te esqueças de que
eu também sou um pensador volente no espírito dessa época e que estou totalmente sob o feitiço da
serpente. Através da iniciação nos mistérios do espírito da profundeza, estou disposto a não relegar ainda
totalmente todo o arcaico, que falta ao pensador no espírito dessa época, conforme o espírito dessa época
sempre exige, mas reassumi-lo em meu ser pessoa, para tornar plena minha vida. Eu fiquei realmente
pobre e bem afastado de Deus. Preciso assumir ainda em m im o divino e o mundano, pois o espírito dessa
época nada mais tem para me dar e ainda me tirou o pouco que eu possuía da verdadeira vida. Tornou-me
sobretudo imprudente e ganancioso, pois ele é só presente e me obrigou a caçar tudo o que é presente para
satisfazer o momento atual" (p. 134-135).
228 O esboço e o esboço corrigido têm: "Como os antigos profetas [antigos] viveram antes do mistério de Cristo,
assim estou também eu ainda antes do [desse] mistério de Crist o [enquanto reassumo o passado] apesar
de eu viver dois m il anos após ele [mais tarde] e ter acreditado ser um cristão. Mas jamais fui um Crist o"
(P. 136).
SO LU Ç ÃO 181

salvo pelo h erói, mas que ele m esm o se t orn a u m Cr ist o. Ist o nos en sin a sim bo-
licam en t e o exem plo da vid a dos santos.
Vê m al qu em deseja ver. Fo i m in h a von t ade que m e enganou. Fo i m in h a
von t ade que provocou a grande divisão dos d em ón ios. Port an t o, n ão devo m ais
querer? Eu satisfiz m in h a von t ade t ão bem quan t o pude. E assim saciei tudo
o que t in h a am bições d en t ro de m im . Ao fin al con clu í que em tudo isso eu
qu eria a m im m esm o, mas sem procu rar a m im m esm o. Por isso n ão quis m ais
p rocu rar-m e fora de m im , mas d en t ro de m im . Q u is en t ão segurar a m im m es-
m o, e quis de n ovo ir adian t e, sem saber o que qu eria, e assim caí n o m ist ério.
Port an t o, n ão devo m ais querer? Vó s quisestes esta guerra. Ist o é bom . Se
n ão a quisésseis de fato, o m al desta gu erra seria p eq u en o 229 . Mas com vossa
von t ade t orn ais o m al grande. Mas n ão conseguis fazer dessa guerra o m aior
m al, n u n ca apren dereis a ven cer a violên cia e o com bate fora de vó s 23 °. Por
isso é b om que qu eirais de todo o coração este m aior m a l 2 31. Vó s sois crist ãos e
seguidores de h eróis e esperais por salvadores, que devem t om ar sobre si vossos
sofrim en t os e poupar-vos o Gólgot a. Co m isso erigis para vó s 2 3 2 u m m on t e
Calvário, que cobre t od a a Eu rop a. Se vos sucede fazer dessa guerra u m m al
t errível e lan çar n est a fauce escan carada in con t áveis vít im as, isto é b om , pois
t orn a cada u m de vós pron t o para sacrificar a si m esm o. Pois com o eu , assim vós
vos aproxim ais d a realização do m ist ério de Cr ist o.
Logo sen t ireis o pu n h o de ferro n a n uca. Est e é o in ício do cam in h o. Q u a n -
do sangue, fogo, gritos de aflição en ch erem este m un do, en t ão vos recon h ece-
reis em vossos atos: em bebedai-vos n o h or r or san gren to d a guerra, saciai-vos
de m at ar e dest ruir, en t ão vossos olh os se abrirão de que sois vós m esm os que
prod u zis tais fr u t o s 233 . Vó s estais a cam in h o se quereis t udo isso. O querer cria
cegueira, e cegueira con duz ao cam in h o. Devem os querer o erro? N ã o deves,

229 Em Assim falava Zaratustra, escreveu Nietzsche: "Redim ir os homens passados e em vez de dizer "é o
passado", dizer-se então "é o que eu quis" - só isto é redenção para m im " ("Da Redenção", p. 191).
230 Em 11 de fevereiro de 1916, num debate na Associação de Psicologia Analítica, Jung disse: "Abusamos
da vontade quando dizemos que o crescimento natural está submetido à vontade... A guerra nos ensina:
querer não adianta nada - devemos ver como ficará. Nós estamos totalmente sujeitos ao poder absoluto
do vir a ser" (MPA, vol. 1, p. 106).
231 O esboço e o esboço corrigido têm: "Pois vós sois [nós somos] interiormente ainda velhos judeus e pagãos com
deuses abomináveis" (p. 137).
232 O esboço corrigido tem: "para nós" (p. 138).
233 O esboço corrigido tem: "e nós nos chamávamos cristãos, seguidores de Cristo. Sermos nós mesmos Cristo,
este é o verdadeiro seguimento de Crist o" (p. 139).
182 LI BERP RI M U S foi.vi(r)/ vii(v)

mas irás querer aquele erro que t u con sideras a m elh or verdade, assim com o
procederam as pessoas desde sem pre.
O sím bolo do crist al sign ifica a lei im ut ável do acon t ecim en t o que vem por
si m esm o. Nest e n ú cleo vês o que virá. Eu vi algo am edron t ador e in con cebível
(ist o foi n a n oit e de Nat al de 1913). Eu vi o sapato grosseiro, o sin al do h orror
da gu erra dos cam p on eses 234 , dos in cên d ios crim in osos e da atrocidade san gui-
n ária. N ã o sabia in t erp ret ar de ou t ro m odo para m im este sin al a n ão ser de que
estava dian t e de n ós algo san gren to e t errível. V i o pé de u m poderoso que es-
magava u m a cidade in t eira. D e que out ro m odo pod eria in t erp ret ar este sin al?
Vi que aqu i com eçava o cam in h o do autossacrifício. Serão todos arrebatados
pelo t error dos grandes acon t ecim en t os e vão querer en t en d ê-los n a cegueira
com o acon t ecim en t os ext ern os. É u m acon t ecim en t o in t erior, é o cam in h o da
realização do m ist ério de Cr is t o 2 35 , pois os povos apren dem o autossacrifício.
O h or r or pode ser tão grande, que o olh ar das pessoas pode volt ar-se para
den t ro, que seu querer n ão m ais procure o si-m esm o nos out ros, mas em si
m esm as 236 . Eu o vi, eu sei que este é o cam in h o. Eu vi a m ort e de Cr ist o e vi seu
lam en t o, eu sen t i o t orm en t o de sua m ort e, da grande m ort e. Eu vi u m n ovo
Deu s, u m m en in o que d om in a os d em ón ios com sua m ã o 2 37 . Deu s m an t ém em
seu poder os prin cípios separados e os un e. Deu s vem a ser em m im através da
un ião dos prin cípios. Ele é sua un ião.
Se queres u m prin cípio, en t ão estás n o t eu ser u m , mas longe de t eu ser
outro. Se queres os dois prin cípios, u m e outro, en t ão suscitas a d esu n ião dos
prin cípios, pois n ão podes querer os dois ao m esm o tem po. Disso surge a n e-
cessidade em que aparece Deu s, ele t om a n a m ão t eu querer d ivid id o, n a m ão
de u m a crian ça, cu ja von t ade é sim ples e está além da desun ião. N ã o podes

234 Isto se refere possivelmente à revolta dos camponeses alemães de 1525.


235 Em 1918, em seu prefácio à 2. ed. de A psicologia do inconsciente, Jung escreveu: "O espetáculo dessa catástrofe
faz com que o homem, sentindo-se totalmente impotente, se volte para si mesmo, olhe para dentro e,
como tudo vacila, busque algo que lhe dê segurança. Muitos ainda procuram fora de si mesmos... Mas
são poucos os que buscam dentro de si, poucos os que se perguntam se não seriam mais úteis à sociedade
humana se cada qual começasse por si, se não seria melhor, em vez de exigir dos outros, pôr à prova
primeiro em sua própria pessoa, em seu foro interior, a suspensão da ordem vigente, as leis e vitórias que
apregoam em praça pública" ( O C, 7, p. xv).
236 O esboço tem: "Se isto não acontecer, o Crist o não será vencido e o mal precisa ficar ainda maior. Por
isso eu te digo isso, meu amigo, para que o repitas aos teus amigos, e para que chegue aos ouvidos do
povo" (p. 157).
237 O esboço continua: "eu vi que a partir do Cristo-Deus formou-se um novo Deus, um Héracles mais
jovem " (p. 157).
SO LU Ç ÃO 183

apren d ê-lo, ele só pode vir a ser em t i. N ã o podes qu erê-lo, ele t ir a de t u a m ão


o querer e quer a si m esm o. Deseja a t i m esm o, ist o leva ao ca m in h o 238 .
Mas n o fundo ten s h or r or de t i m esm o, por isso preferes correr a todos os
out ros do que a t i m esm o. Eu vi a m on t an h a do sacrifício, e o sangue escorria
em t orren t es de seus lados. Q u an d o vi com o orgulh o e força en ch iam os h o-
m en s, com o b rilh ava a beleza nos olh os das m ulh eres quan do a Gr an d e Gu e r r a
reben t ou , soube en t ão que a h u m an id ade estava a cam in h o do autossacrifício.
O espírit o da p r ofu n d eza 239 t om ou con t a da h u m an id ade e a obrigou ao
autossacrifício. N ã o procu reis a cu lpa aqui ou ali. O espírit o da profun deza
apoderou-se do dest in o dos h om en s, assim com o se apoderou de m eu destin o.
Ele con duz a h u m an id ade através d a t orren t e de sangue para o m ist ério. No
m ist ério, a p róp ria pessoa t orn a-se os dois prin cípios, leão e serpen te.

238 No esboço e no esboço corrigido, ocorre aqui uma longa passagem, da qual segue uma paráfrase: O Deus
segura o amor na mão direita, o pensar prévio ["a ideia", substituída do princípio ao fim] na esquerda.
O amor está no nosso lado favorável, o pensar prévio no desfavorável. Isto deveria recomendar a você o
amor, na medida em que você faz parte deste mundo, e especialmente se você é um pensador. O Deus
possui ambos. A unidade deles é Deus. O Deus se desenvolve através da união de ambos os princípios em
você [m im ]. Você [eu] não se torna Deus através disto, ou se torna divino, mas Deus se torna humano.
Ele se torna manifesto em você e através de você, como uma criança. O divino virá a você como infantil
ou imaturo, na medida cm que você c um homem desenvolvido. O homem infantil tem um Deus velho,
o velho Deus que nós conhecemos c cuja morte nós vimos. Sc você c adulto, você só pode tornar se mais
infantil. Você tem a juventude diante de você c todos os mistérios do que está por vir. O infantil tem a
morte diante dele, já que precisa primeiro tornar se adulto. Você se tornará adulto na medida cm que
superar o Deus dos antigos c da sua infância. Você o supera não pondo-o de lado, obedecendo ao espírito
do tempo [: Zeitgeist]. O espírito deste tempo oscila entre o sim e o não como um bêbado ["já que ele é
a incerteza da consciência geral presente"]. Você ["Alguém", do princípio ao fim] só pode superar o velho
Deus transformando-se você mesmo nele e experimentando você mesmo o sofrimento e morte dele. Você
o supera e se torna você mesmo, como alguém que se procura a si mesmo e já não im ita heróis. Você se
liberta a si mesmo quando você se liberta do velho Deus e seu modelo. Quando você se tornou o modelo,
você já não precisa mais do dele. No fato de o Deus segurar em suas mãos o amor c a prudência na forma
da serpente, foi me mostrado que ele se apoderara da vontade humana. ["Deus unifica a oposição entre
o amor e a ideia, e a segura em suas mãos".] O amor e o pensar prévio existiram desde toda a eternidade,
mas não foram queridos. Todos querem sempre o espírito deste tempo, que pensa e deseja. Aquele que
quer o espírito das profundezas, quer o amor e o pensar prévio. Se você quer os dois, você se torna Deus.
Se você faz isto, o Deus nasce e toma posse da vontade dos homens e segura a vontade dele na mão de seu
filho. O espírito das profundezas aparece em você como totalmente infantil. Sc você não quer o espírito
das profundezas, ele é para você um tormento. O querer leva ao caminho. O amor e o pensar prévio
estão no mundo do além, enquanto você não os quer e a vontade de você está entre eles como a serpente
["os mantém separados"]. Se você quer os dois, eclode em você a luta entre querer o amor e querer o
pensar prévio ["o reconhecimento"]. Você verá que você não pode querer os dois ao mesmo tempo. Nesta
necessidade o Deus nascerá, como você experimentou no mystcrium, e ele tomará a vontade dividida
em suas mãos, nas mãos de uma criança, cuja vontade é simples e para além do ser dividida. O que é esta
vontade divino-infantil? Você não consegue aprendê-la através de uma descrição, ela só pode vir a ser em
você. Você tampouco pode querê-la. Você não pode aprendê-la ou ter empatia com ela a partir daquilo
que eu digo. E incrível como os homens são capazes de enganar se a si mesmos c m entir para si mesmos.
Que isto seja uma advertência. O que cu digo é o meu mistério e não o de você, o meu caminho c não o
de você, já que o meu self pertence a m im c não a você. Você não deve aprender o meu caminho, mas o seu
próprio. Meu caminho leva a m im e não a você (p. 142-145).
239 O esboço corrigido tem: "o grande espírito" (p. 146).
184 LI BERP RI M U S foi.vi(r)/ vii(v)

P e lo fat o d e e u q u e r e r t a m b é m m e u se r o u t r o , d e vo t o r n a r - m e u m Cr i s t o .

Eu serei t ran sform ado em Cr ist o, devo su port á-lo. Assim jo r r a o sangue red en -
tor. At ravés do autossacrifício, m eu prazer será t ran sform ado e passa para u m
prin cípio m ais alto. O am or en xerga, mas o prazer é cego. O s dois prin cípios
são u m só n o sím bolo d a ch am a. O s prin cípios despem -se da form a h u m a n a 2 4 0 .

240 A esta altura o esboço corrigido tem uma longa passagem, da qual segue uma paráfrase: Enquanto você via
como o orgulho e a força encheram os homens e a beleza jorrou dos olhos das mulheres quando a guerra
fascinou as pessoas, você sabia que a humanidade estava a caminho. Você sabia que esta guerra não era
apenas aventura, atos criminosos e assassinatos, mas o mistério do autossacrifício. O ["grande", mudado
do início ao fim] espírito das profundezas apoderou-se da humanidade e for^ou-a, através da guerra, ao
autossacrifício. Não procure a culpa aqui ou ali. ["A culpa não está fora"]. - E o espírito das profundezas
que leva as pessoas ao Mystcrium, assim como me levou a mim. Ele leva o povo ao rio de sangue, como me
levou a mim. Experim entei no Mysterium aquilo que as pessoas foram forçadas a fazer na atualidadc ["que
aconteceu fora em grande escala"]. Eu não o sabia, mas o Mystcrium ensinou me como minha vontade
lançou se aos pés do Deus crucificado. Eu experimentei [quis] o autossacrifício de Cristo. O Mysterium
de Crist o completou-se diante dos meus olhos. Meu pensar prévio ["A ideia que estava acima de m im "]
forçava-me a isto, mas eu resisti. Meu desejo mais alto, meus leões, minha paixão mais ardente c mais forte,
eu queria levantar contra a misteriosa vontade de autossacrifício. Assim eu era como um leão envolvido
pela serpente, ["uma imagem do destino renovando-se eternamente"]. Salomé achegou-se a m im vindo
da direita, do lado favorável. O prazer despertou cm mim. Experim entei que meu prazer me vem quando
realizo o autossacrifício. Ouço que Maria, o símbolo do amor, é também a [minha] mãe de Cristo, já que
o amor também gerou a Cristo. O amor traz o autossacrificador e o autossacrifício. O amor é também
a mãe do meu autossacrifício. No fato de ouvir e aceitar isto, experimento que me torno Cristo, já que
reconheço que o amor me transforma em Cristo. Mas ainda duvido, já que é quase impossível o pensador
diferenciar-se de seu pensamento e aceitar que aquilo que acontece em seu pensamento é também algo
fora dele mesmo. Está fora dele no mundo interior. Eu me torno Crist o no Mystcrium; ou melhor, cu vejo
como fui transformado cm Cristo c no entanto ainda sou inteiramente cu mesmo, de modo que cu podia
ainda duvidar quando meu prazer me disse que cu era Cristo. [Salomé,] Meu prazer, disse-me ["que eu sou
Crist o"] porque o amor, que é mais elevado que o prazer, mas que ainda está em m im escondido no prazer,
levara-me ao autossacrifício e transformara-me em Cristo. O prazer aproximou-se de m im , envolveu-
me com anéis e forçou-me a experimentar o tormento de Crist o e a derramar meu sangue pelo mundo.
Minha vontade, que antes servia ao espírito deste tempo ["Zeitgeist", substituído do início ao fim ], desceu
ao espírito das profundezas e, assim como estava anteriormente determinada pelo espírito do tempo, está
agora determinada pelo espírito das profundezas, pelo pensar prévio ["ideia", substituída do início ao fim ]
e o prazer. Determinou-me através da vontade de autossacrifício, e ao derramamento do sangue, a essência
de minha vida. Note-se que é meu prazer mau que me leva ao autossacrifício. Sua parte mais recôndita é
o amor, que será libertado do prazer através do sacrifício. Aqu i aconteceu a maravilha de que meu prazer
anteriormente cego começou a ver. Meu prazer era cego, e era amor. Já que minha vontade mais forte
quis o autossacrifício, meu prazer mudou, entrou num princípio superior, que em Deus é um princípio
com pensar prévio. O amor tem visão, mas o prazer é cego. O prazer quer sempre aquilo que está mais
próximo, e explora a multiplicidade, indo de uma coisa a outra, sem uma meta, apenas buscando e nunca
satisfeito. O amor quer aquilo que está mais afastado, o melhor e o que satisfaz. E vi algo mais, a saber,
que o pensar prévio em m im tinha a forma de um antigo profeta, o que mostrava que era pré-cristão, e
transformou-se num princípio que já não aparecia mais em forma humana, mas na forma absoluta de pura
luz branca. Assim o relativo humano transformou se no absoluto divino através do Mystcrium de Cristo.
O pensar prévio e o prazer uniram-se em m im de uma forma nova e a vontade em mim, que parecia
estranha e perigosa, a vontade do espírito das profundezas, ficou paralisada aos pés da chama cintilante.
Tornei-me uma só coisa com minha vontade. Isto aconteceu em mim, eu apenas o vi no jogo do mistério.
Através disto, tornaram se conhecidas muitas coisas que antes eu não sabia, ["como num jogo"]. Mas
achei tudo duvidoso. Senti como se eu estivesse derretendo no ar, já que a terra do Mysterium [daquele
espírito] ainda me era estranha. O Mystcrium mostrou me as coisas que estavam diante de m im c
precisavam ser levadas a cabo. Mas cu não sabia como nem quando. Mas aquela imagem de Salomé dotada
de visão, ajoelhada em êxtase diante da chama branca, era um forte sentimento que veio para o lado de
minha vontade e guiou-me através de todas as coisas que vieram depois. O que aconteceu foi minha
viagem comigo mesmo, através de cujo sofrimento eu precisava alcançar o que servia para a conclusão do
Mystcrium que cu havia visto ["eu havia visto antes"] (p. 146-150).
SO LU Ç ÃO 185

O m ist ério m ost rou -m e em im agem o que eu d evia viver depois. Eu n ão


possu ía n ada daquelas am abilidades que o m ist ério m e m ost rou , mas t eria que
ad qu iri-las todas a in d a 24 1.

fínís part. prím . ( fim d a p r im e ir a p art e)

241 Gilles Q uispel informa que Jung contou ao poeta holandês Roland Horst que ele havia escrito Tipos
psicológicos com base em trin ta páginas do Livro Vermelho. Apu d H O E L L E R , S. The Gnostíc Jung and the Seven
Sermons to the Dead (Wh eaton , 111., Quest, 1985, p. 6 ) . E provável que ele tivesse em mente estes três
capítulos precedentes do "Mysterium ". O que é apresentado aqui desenvolve as noções do conflito entre
funções opostas, da identificação com a função principal e do desenvolvimento do símbolo reconciliador
como uma solução do conflito dos opostos, que são as questões centrais no cap. 5 de Tipos psicológicos ( O C ,
6 ) , o "Problema dos tipos na poesia". No seminário de 1925, Jung disse: "Descobri que o inconsciente está
elaborando enormes fantasias coletivas. Assim como, antes, eu estava apaixonadamente interessado em
elaborar mitos, agora adquiri interesse exatamente igual pelo material do inconsciente. Esta é, na verdade,
a única maneira de chegar à formação de um mito. E por isso o primeiro capítulo de Psicologia do inconsciente
tornou-se exatissimamente verdadeiro. Observei a criação de mitos que acontecem, e adquiri um
conhecimento do inconsciente, formando assim o conceito que desempenha esse papel nos Tipos. Tomei
todo o meu material empírico de meus pacientes, mas a solução do problema tirei-a de dentro, de minhas
observações dos processos inconscientes. Procurei fundir estas duas correntes de experiência exterior e
experiência interior no livro dos Tipos e dei ao processo de fusão das duas correntes o nome de função
transcendente" (introductíon to Jungian Psychology, p. 35).
Lib er Secundus
As imagens do erran t e 1
[IH I JV nolíte audíre verba prophetarum , quí prophetant vobís et decípíunt vos: visionem cordís suí
loquuntur, non de ore Dom íní. audíví quae díxerunt [prophetae] prophetantes ín nom íne m eo m en-
dacíum , atque dícentes: som níaví, som níaví. usquequo ístud est ín corde prophetarum vatícínantíum
m endacíum et prophetantíum seductíonem cordís suí? quí voluntjacere ut oblívíscatur populus m eus
nom ínís m eípropter som nía eorum , quae narra[n]t unusquísque adproxím um suum : sícut oblítí sunt
patres eorum nom ínís m eípropter Baal. propheta, quí hahet som níum , narret som níum et quí hahet
serm onem m eum , loquatur serm onem m eum vere: quídpaleís ad trítícum ? dícít dom ínus.

["Não ou çais as palavras dos profet as que vos p rofet izam ! Eles vos en gan am ,

an u n cian d o visões que provêm de seu coração e n ão d a boca do Sen h or " ( Jr 23,16)].

["O u vi o que d isseram os profet as que p rofet izam m en t iras em m eu n om e.


Tiveum sonhol Tive u m son h o! At é quan do h averá en t re os profetas os que p r o -
fet izam m en t iras e os que p rofet izam en gan os de seu coração? Eles que t en t am
fazer o m eu povo esquecer o m eu n om e, p or m eio de son h os que con t am un s
aos ou t ros: com o seus pais esqu eceram o m eu n om e por causa de Baal! O p r o -
fet a que t em u m son h o, que o con t e! E o que t em u m a p alavra m in h a, que a fale
com verd ad e! O que t em a p alh a em com u m com o grão? — orácu lo do Sen h or "
( Jr 23,25-28 ) ]./

1 O esboço manuscrito tem A aventura do percurso errado (p. 353).


2 Em seu ensaio sobre Picasso, em 1932, Jung descreveu as pinturas (quadros) de esquizofrênicos, levando
em conta somente aqueles em que uma perturbação psíquica produziria provavelmente sintomas
esquizoides, em vez de pessoas que sofriam dessa condição, como a seguir: "Do ponto de vista puramente
formal predomina a característica dafragmentação, expressa nas assim chamadas linhas de ruptura, uma
espécie de fendas de rejeição psíquica, traçadas através do quadro" ( O C, 15, § 208).
3 Essas passagens em latim da Bíblia, também transcritas da Bíblia de Lutero, são todas citadas por Jung
em Tipos psicológicos (1921), que ele introduziu com os seguintes comentários: "A forma pela qual Crist o
apresentou ao mundo o conteúdo de seu inconsciente foi aceita e declarada obrigatória em geral. Todas as
fantasias individuais perderam seu efeito e valor; foram perseguidas como heréticas, como no-lo atestam
o movimento gnóstico e todas as heresias posteriores. O profeta Jeremias já se expressara neste sentido"
( O C, 6, § 8 1) .

189
190 L I B E R S E C U N D U S 2/3

O Ve r m e l h o 4
Ca p . i .

[ I H 2 ] 5 A p ort a do m ist ério est á t ran cad a atrás de m im . Sin t o que m in h a vo n -


tade est á paralisada, e que o espírit o da profun deza m e possui. Nad a sei sobre
u m cam in h o. Por isso n ão posso querer ist o ou aquilo, pois n ada m e in d ica se é
ist o ou aquilo que quero. Eu espero, sem saber o que eu espero. Mas já n a n oit e
seguinte sen t i que h avia alcan çado u m pon t o seguro 6 .

7
Ju lgu ei en con t rar-m e n a t orre m ais alt a de u m castelo. Eu o percebo pelo
ar: est ou bem afastado n o tem po. Lon gam en t e vagueia m eu olh ar por sobre
t orres solitárias e on duladas, u m a variação de cam pos e m atas. E u usava u m a
capa verde. Pen d ia de m eu om bro u m a t rom pa. Eu era o guarda da t orre. O lh e i
para fora para o espaço lon gín qu o. V i lá fora u m pon t o verm elh o, vem se apro-
xim an d o por u m a est rada prodigiosa, desaparece às vezes n a m at a e surge de
novo: é u m cavaleiro com rou pa verm elh a, o Cavaleiro Verm elh o. Ve m ao m eu
castelo: já cavalga através do port ão. O u ço passos n a escada, os degraus ran gem ,
bat em à port a: u m m edo est ran h o se apodera de m im . Al i est á o Verm elh o, sua
esbelta figura t oda de verm elh o, até m esm o seu cabelo é verm elh o. Eu penso:
deve ser o d em ón io.

O Verm elh o: "Min h as saudações, h om em d a t orre alta! Eu o vi de longe,


observan do e esperando. Tu a espera m e ch am ou ".
Eu : "Q u e m és t u ?"
O V : "Q u e m eu sou? T u pensas que sou o d em ón io. N ã o faças julgam en t os
apressados. Talvez possas con versar com igo sem saber qu em eu sou. Q u e co m -
pan h eiro superst icioso t u és, para logo pen sar n o d em ón io?"
Eu : "Se n ão ten s u m poder sobren at u ral, com o pudeste perceber que eu
estava em m in h a t orre em at it ude de espera, olh an do para o descon h ecido e
novo? Min h a vid a n o castelo é pobre, u m a vez que fico sem pre sentado aqui e
n in gu ém sobe até m im ".

4 O esboço corrigido tem: VA grande Odisseia I . O Verm elho (p.157).


5 Isto retrata Jung na cena de abertura dessa fantasia.
6 Este parágrafo foi acrescentado ao esboço (p. 167).
7 26 de dezembro de 1913.
O VERM ELH O 191

O V : "O que esperas en t ão?"


Eu : "Esp er o m u it as coisas, mas espero sobretudo que possa vir a m im algo
da riqu eza do m u n d o que n ão vem os".
O V : "En t ão est ou n o lugar cert o ju n t o de t i. Via jo h á m u it o por todas as
t erras e procu ro aqueles que, com o t u , est ão sentados n u m a t orre alt a e buscam
coisas n u n ca vist as".
Eu : "T u m e torn as curioso. Pareces ser de u m t ipo raro. Tu a aparên cia n ão é
c o m u m , e — d e s c u lp e - m e — t a m b é m m e p a r e ce q u e t r a z e s co n t igo u m a r e s t r a -
nho, algo m un dan o, at revido ou folgazão, ou — d it o fran cam en t e - algo pagão".
O V : "T u n ão m e ofendes; ao con t rário, acertas bem n o alvo. Mas n ão sou
u m velh o pagão, com o pareces crer".
Eu : "Ist o t am bém n ão quero afirm ar; para isso n ão és su ficien t em en t e vis-
toso e lat in o. N ã o ten s n ada de clássico em t i. Pareces ser u m filh o de nosso
tem po, m as, devo observar, u m pouco fora do com u m . T u n ão és u m au t ên t ico
pagão, mas u m pagão que corre ao lado de n ossa religião crist ã".
O V : "És de fato u m b om decifrador de en igm as. T u desem penhas t eu papel
b em m elh or do que m u it os out ros que sim plesm en t e m e ign oraram ".
Eu : "Te u t om é reservado e irón ico. Nu n ca tiveste t eu coração at in gido pe-
los sacrossantos m ist érios de n ossa religião crist ã?"
O V : "T u és u m a pessoa in acred it avelm en t e lerd a e séria. És sem pre assim
tão in sist en t e?"
Eu : "E u gost aria - dian t e de Deu s - ser sem pre tão sério e fiel a m im m es-
m o, com o procu ro sê-lo. Para m im est á se t orn an d o difícil estar em t u a presen -
ça. T u trazes con tigo u m a espécie de ar de con den ação, cert am en t e és u m in t e-
gran te da escola n egra de Salern o 8 , onde se en sin am artes m aléficas de pagãos
e descendentes de pagãos".
O V : "T u és su perst icioso e alem ão d em ais. T u tom as ao pé d a let r a o que
d izem as Sagradas Escr it u r as, caso con t rário n ão poderias ju lgar t ão d u r a-
m en t e".
/ Eu : "Lon ge de m im u m ju lgam en t o duro. Mas o m eu faro n ão m e engana.
T u estás te esquivan do e n ão queres te trair. O que escondes?"

8 Salerno é uma cidade ao sudoeste da Itália, fundada pelos romanos. Jung refere-se provavelmente à
Accademía Segreta, criada nos anos 1540 e que promovia a alquimia.
192 L I B E R S E C U N D U S 3/4

( O Verm elh o parece ficar m ais verm elh o, sua capa resplan dece com o ferro
em brasa).

O V : "N ã o escondo n ada, seu in gén u o cord ial. D ivir t o -m e apenas com t u a
pon derosa seriedade e t u a cóm ica sin ceridade. O que é raro em n ossa época,
sobretudo nas pessoas que d isp õem da razão".
Eu : "E u creio que n ão podes en t en d er-m e de todo. T u m e avalias segundo
aqueles que conheces de pessoas vivas. Mas devo d izer-t e, por am or à verdade,
que eu de fato n ão p ert en ço a esta época e a este lugar. U m feit iceiro m e b an iu
para este lugar e para esta época desde tem pos m u it o antigos. N a realidade n ão
sou aquele que vês dian t e de t i".
O V : "Falas coisas espantosas. Q u e m és en t ão?"
Eu : "Ist o n ão vem ao caso: est ou dian t e de t i com o aquele que sou at u alm en -
te. Por que estou aqui e sou assim , n ão sei. Mas sei que devo estar aqui para te
dar satisfação da m elh or form a possível. Sei t ão pouco qu em t u és, quão pouco
t u sabes qu em eu sou".
O V : "Ist o soa bem estran h o. Es por acaso u m santo? U m filósofo n ão és,
pois a lin guagem eru d it a n ão est á contigo. Mas u m santo? É m ais provável. Tu a
seriedade ch eira a fan atism o. T u ten s u m a at m osfera ét ica e u m a sim plicid ad e
que lem b ram pão e água".
Eu : "N ã o posso d izer sim n em n ão: falas com o u m aprision ado n o espírit o
dessa época. Falt am -t e, ao que m e parece, as m et áforas".
O V : "Por acaso frequen taste t am bém a escola dos pagãos? Respon des
com o u m sofist a 9 . Co m o chegaste en t ão ao pon t o de m e m ed ir com a m ed id a
da religião cristã, se n ão és n en h u m san to?"
Eu : "Parece-m e que isto seria u m a m ed id a a ser u t ilizad a m esm o por quem
n ão é santo. Cr e io t er percebido que n in gu ém pode esquivar-se im pu n em en t e
dos m ist érios da religião cristã. Rep it o que aquele que n u n ca d esped açou seu
coração com o sen h or Jesus Cr ist o arrast a consigo u m pagão, que o im pede de
chegar ao m elh or".

9 O s sofístas eram filósofos gregos do século I V e V a .C, sediados em Atenas, incluindo pessoas como
Protágoras, Górgias e Hípias. Davam aulas e aceitavam alunos, cobrando honorários; dedicavam especial
atenção à retórica. O ataque de Platão a eles em alguns Diálogos, deu uma conotação negativa ao termo,
como alguém que brinca com palavras.
O VERM ELH O 193

O V : "D e n ovo este velh o refrão? Para que isto, se n ão és n en h u m santo


cristão? N ã o serás de fato u m m ald it o sofista?"
Eu : "T u estás preso em t eu m un do. Mas podes pen sar que seria possível
est im ar corret am en t e o valor do crist ian ism o sem que seja n ecessariam en te
u m san t o".
O V : "És u m d ou t or em teologia, que exam in a o crist ian ism o a p ar t ir de
fora e o avalia h ist oricam en t e, port an t o u m sofista?"
Eu : "T u és teim oso. O que penso é que n ão foi por acaso que o m u n d o todo
se t orn ou cristão. Cr e io t am bém que foi t arefa da h u m an id ad e ocid en t al t razer
Cr ist o n o coração e crescer com seu sofrim en t o, m ort e e ressu rreição".
O V : "Exist e m t am bém judeus que são pessoas de bem e que n ão precisa-
r am de t eu elogiado evan gelho".
Eu : "Ao que m e parece, n ão és u m bom con h ecedor de pessoas: n u n ca per-
cebeste que falta algo ao ju d eu , a u m n a cabeça, a out ro n o coração, e que ele
m esm o sente que lh e falt a algum a coisa?"
O V : "N ã o sou ju d eu , mas t en h o que defen der os judeus: t u pareces u m
odiador de judeus".
Eu : "Co m isso repetes todos aqueles judeus que sem pre acusam u m ju lga-
m en t o n ão m u it o favorável a eles de ód io aos judeus, ao passo que eles m esm os
fazem as piadas m ais pican t es sobre sua p róp ria raça. Pelo fato de os judeus
sen t irem b em n it id am en t e aquela d et erm in ad a falta, mas n ão a qu ererem ad -
m it ir, são t ão suscet íveis a qualquer julgam en to. Acred it as que o crist ian ism o
passou pela alm a da pessoa sem d eixar vest ígio? E acreditas que alguém que n ão
o com p art ilh ou in t eriorm en t e t erá part e em seus fr u t o s?"10
O V: "Tu tens argumentos. Mas tua seriedade? Poderias estar mais à vontade. Se
não és n en h um santo, não vejo realmente por que precisas ser tão sério. Tu estragas
totalmente teu prazer. Q u e, diabos, há em tua cabeça? Só o cristianism o com sua
fuga lam urien ta do m un do pode torn ar as pessoas / tão tardas e fastidiosas".
Eu : "Ach o que exist em ain d a outras coisas que pregam a seriedade".

10 O esboço continua: "Ninguém pode importar-se com um desenvolvimento psíquico de muitos séculos e
colher o que não semeou" (p. 172).
194 L I B E R S E C U N D U S 3/4

O V : "Ah , já sei, t u queres d izer a vid a. Con h eço este palavrório. Eu t am bém
vivo e ela n ão m e preocupa n em u m pouco. A vid a n ão exige n en h u m a serieda-
de; ao con t rário, é m elh or d an çar pela vid a " 11.
Eu : "Co n h eço a dan ça. Seria b om se t udo se resolvesse com a dan ça! A d an -
ça faz part e do t em po do ardor. Sei que h á pessoas para as quais é sem pre t em -
po de ardor e pessoas que t am bém qu erem d an çar a seu Deu s. O s p rim eiros são
ridículos, os outros b r in cam de tem pos an tigos, em vez de ad m it ir em h on est a-
m en t e sua deficiên cia em possibilidades de expressão".
O V : "Aqu i, m eu caro, t iro m in h a m áscara. Agora t ran sform o-m e em algo
sério, pois ist o se refere a m eu ram o. Seria im agin ável ain d a u m a t erceira coisa
de que a dan ça fosse sím bolo".

O verm elh o do cavaleiro t ran sform ou -se n u m verm elh o delicado, cor de
carn e. E olh ai - ó m aravilh a - de m in h a capa verde b rot am folhas em t oda
parte.

Eu : "Exist e provavelm en t e t am bém u m a alegria dian t e de Deu s, que pode-


ríam os ch am ar de dan ça. Mas esta alegria eu ain d a n ão a en con t rei. Meu olh ar
perscru t a as coisas que vêm . Vie r a m coisas, mas en t re elas n ão estava a alegria".
O V : "N ã o m e recon heces, m eu irm ão, eu sou a alegria!"
Eu : "Deverias t u ser a alegria? Eu te vejo com o através de u m a n évoa. Tu a
im agem desaparece dian t e de m im . Deixa-m e pegar t u a m ão, amado, on de es-
tás? O n d e estás?"
A alegria? Er a ele a alegria?

[2] Cer t am en t e era o d em ón io, este Verm elh o, mas o m eu d em ón io. Er a


m in h a alegria, a alegria da pessoa séria que vigia sozin h a n u m a alt a t orre, sua
alegria rósea, com odor de rosas, de u m verm elh o claro e q u en t e 12 . N ã o a ale-
gria secreta em seus pen sam en tos e em seu olhar, mas aquela est ran h a alegria

11 Em Assim falava Zaratustra, de Nietzsche, Zaratustra alerta para a superioridade de espírito da seriedade e
adverte: "Homens superiores, o pior que tendes é não haverdes aprendido a dançar como é preciso dançar:
a dançar por cima de vós mesmos" ("Do homem superior", xx, p. 368).
12 Num seminário de 1939, Jung discutiu a transformação histórica da figura do demónio. Disse: "Quando
aparece vermelho, tem fogo, isto é, natureza de paixão: causa luxúria, ódio e amor indomável" ( JU N G , L.
& M EYER- GRASS, M. Kindertràume. Dússeldorf: Walter Verlag, 1987, p. 194. Edição brasileira: Seminários
sobre sonhos de crianças. Petrópolis: Vozes 2011, p. 188).
O VERM ELH O 195

do m u n d o que chega in esperadam en t e com o u m ven t o su l quen te com ondas


de perfum es de flores e de facilidade da vid a. Sabeis de vossos poetas que pes-
soas sérias, quan do olh am para fora esperan do as coisas da profun deza, são
p rim eiram en t e procuradas pelo d em ón io em sua alegria p r im aver il 13 . Co m o
u m a on da, ela levan t a a pessoa e a leva para fora. Q u e m prova dessa alegria
esquece a si m esm o 14 . E n ão h á n ada m ais doce do que esquecer a si m esm o.
N ã o são poucos os que se esquecem do que foram . Porém m ais n um erosos são
aqueles que est ão tão firm em en t e en raizados, que n em m esm o a on d a rósea
consegue errad icá-los. Est ão pet rificados e são pesados dem ais, os out ros são
leves dem ais.

Eu d iscu t i seriam en t e com o d em ón io e m e p ort ei com ele com o se fosse


u m a pessoa real. Ap r e n d i n o m ist ério t rat ar com o pessoas e seriam en t e aqueles
livres-erran t es descon h ecidos, que h abit am o m u n d o in t erior, pois eles são r e-
ais porque at u am 15 . N ã o ad ian t a d izer n o espírit o dessa época: n ão h á d em ón io.
Com igo h ouve u m . Ta l coisa ocorreu em m im . Fiz com ele o que pude. Pude fa-
lar com ele. Co m o d em ón io é in evit ável u m a con versa sobre religião, pois ele a
provoca, se a gente n ão se quiser subm et er in con d icion alm en t e a ele. A religião
é exat am en t e o assun to n o qual n ão m e en t en do com o d em ón io. Ten h o que
d iscu t ir com ele, pois n ão posso esperar sem m ais que ele, com o person alidade
au t ón om a, aceite m eu pon t o de vist a.
Seria fuga se n ão procurasse m e en t en der com ele. Se t iveres a rara opor-
t un idade de falar com o d em ón io, n ão te esqueças de dialogar seriam en t e com
ele. Ele é, em ú lt im a an álise, o t eu d em ón io. O d em ón io é, com o adversário de
t eu ou t ro pon t o de vist a, aquele que te t en t a e coloca pedras em t eu cam in h o,
lá onde você m en os delas precisa.
Aceit ar o d em ón io n ão sign ifica passar para o lado dele, caso con t rário a
gente se t or n a d em ón io. Sign ifica en t en der-se. Co m isso assumes t eu out ro
pon t o de vist a. Co m isso o d em ón io perde algum t erren o e t u t am bém . E ist o
pod eria ser m u it o bom .

13 O esboço continua: "Já percebestes, através de Fausto, de que espécie incondicional é esta alegria" (p. 175). A
referência é ao Fausto, de Goethe.
14 O esboço tem: "Com o sabeis através de Fausto, não são poucos os que esquecem o que foram, porque
deixam levar tudo pela água" (p. 175).
15 Jung elaborou este ponto em 1928 ao apresentar o método da imaginação ativa: "Con t ra isso, o credo
científico de nossa época desenvolveu uma fobia supersticiosa em relação à fantasia. É verdadeiro aquilo que
atua. Ora, as fantasias do inconsciente atuam sem dúvida alguma" ( O C, 7, § 353).
196 LI BE R SECU N D U S 4/ 5

Ap esar de a religião repugn ar ao d em ón io, devido à sua especial seriedade


e cordialidade, fica paten te que é exat am en t e a religião pela qual o d em ón io
pode ser levado a u m en t en d im en t o. O que eu disse sobre a dan ça faz sen tido,
pois falei sobre algo que pert en ce a seu d om ín io. Ele só n ão leva a sério o que
d iz respeit o a ou t ra pessoa, pois é u m a peculiaridade de todo d em ón io. Assim
4/5 chego à sua seriedade e alcan çam os t erren o com u m / , onde o en t en d im en t o é
possível. O d em ón io está con ven cido de que a d an ça n ão é ardor n em lou cu ra,
mas expressão de algo que n ão pert en ce n em a u m , n em à ou t ra, e sim à ale-
gria. Nisso con cordo com o d em ón io. Por isso ele se h u m an iza d ian t e de m eus
olh os. Mas eu fico verde com o árvore n a prim avera.
Mas que a alegria seja o d em ón io, ou o d em ón io seja a alegria, ist o deve
d ar-t e o que pensar. Eu pen sei sobre isso u m a sem an a in t eira, mas tem o que
n ão foi o suficien t e. T u negas que t u a alegria seja o d em ón io. Mas parece que
n a alegria h á sem pre algo de d em on íaco. Se t u a alegria n ão é n en h u m d em ón io
para t i, tam pouco o é para t eu p róxim o, pois a alegria é o m aior desabroch ar e
reverd ejar da vid a. Ist o te arrast a para a descida, e t u precisas tatear n ova pist a,
pois a lu z se apagou t ot alm en t e para t i n o fogo da alegria. O u t u a alegria arrast a
t eu p róxim o e o at ira para fora dos t rilh os, pois a vid a é com o u m gran de fogo
que in cen d eia tudo o que é com bu st ível. Mas o fogo é o elem en t o do d em ón io.
Q u an d o vi que o d em ón io era a alegria, t eria preferido fazer u m pacto com
ele. Mas com a alegria n ão podes fazer pacto n en h u m , pois ela some rap id a-
m en t e de novo. E por isso t am bém que n ão podes capt u rar t eu d em ón io. Faz
part e de sua n at u reza n ão ser capt urável. Se ele se d eixar pren der, é bobo, e t u
n ão terás n en h u m ganho em possu ir m ais u m d em ón io bobo. O d em ón io p r o-
cu ra sem pre serrar o galho em que estás sentado. Ist o é út il e previn e con t ra o
adorm ecer e os vícios a ele ligados.
O d em ón io é u m m au elem en to. E a alegria? Q u e a alegria t am bém t raz
em si o m al, t u o vês quan do andas atrás dela, pois en t ão chegas ao prazer, e do
prazer d iret am en t e ao in fern o, ao t eu in fern o, especificam en te t eu , u m in fern o
que é diferen t e para cada u m 16 .
Med ian t e o en t en d im en t o com o d em ón io, ele assu m iu algo de m in h a se-
riedade, e eu, algo de sua alegria. Ist o m e d eu coragem . Mas se o d em ón io t iver

16 O esboço continua: "Toda pessoa atenta conhece seu inferno, mas não seu demónio. Não existem só
demónios alegres, mas também tristes" (p. 178).
O C AST ELO N A FLO REST A 197

ganho em seriedade, en t ão é n ecessário preparar-se para algum a coisa 17 . É sem -


pre arriscado aceit ar a alegria, mas ela nos con duz à vid a e à sua desilusão, da
qual depen de t oda n ossa vid a 18 .

O castelo n a florest a 19
Cap. ii.

20
[ I H 5] N a segunda noite imediatamente a seguir, en trei sozinho n a floresta
escura e n otei que me havia perdido 21. Est ou n um a estrada de terra m uito ru im e vou
tropeçando n a escuridão. Cheguei finalmente a u m a água escura e parada de charne-
ca, no meio da qual havia u m pequeno e velho castelo. Eu pensei que seria bom pedir
aqui pousada para a noite. Bato no portão, espero m uito tempo, começa a chover.
Preciso bater de novo. Agora ouço alguém vindo: a pessoa abre a porta. U m senhor
com vestes antiquadas, u m servo, pergunta o que desejo. Peço hospedagem para a
noite, e ele me faz entrar n u m antessala escura. Depois me leva a subir u m a escada
de madeira, gasta e escura. Em cim a, chego a u m espaço mais amplo e mais alto, em
form a de salão, com paredes brancas, ao longo das quais há arcas e armários pretos.
Sou levado a u m a espécie de sala de recepções. É u m a sala sim ples com ve-
lh os m óveis estofados. A lu z m ort iça de u m lam pião an t iquado ilu m in a a sala
apenas o n ecessário. O servo bate n u m a p ort a lat eral e depois a abre devagar.
O lh o rapidam en t e para lá: é o qu art o de t rabalh o de u m sábio, estantes de l i -
vros nas quat ro paredes, u m a grande m esa de trabalh o à qual está sentado u m
velh o em veste t alar pret a. Acen a-m e para que m e aproxim e. O ar n o quart o
é pesado, e o velh o d á u m a im pressão preocupan te. Ele n ão é sem dign idade,
ist o é, parece pert en cer àqueles que t êm t an t a dign idade quan to a gente lhes
dá. Te m aquela expressão m odest a-t em erosa da pessoa cu lt a que h á m u it o foi

17 O esboço continua: "Com o o demónio conseguiu a seriedade, isto eu experimentei numa aventura
posterior. Através da seriedade, ele se torna certamente mais perigoso para t i, mas, acredita-me, isto lhe
fará m al" (p. 178-179).
18 O esboço continua: "Com a alegria recém-adquirida, saí para a aventura, sem saber para onde o caminho me
levava. Evidentemente eu poderia ter sabido que o demónio sempre nos alicia em primeiro lugar através
das mulheres. Como pensador, eu era sabido em pensamentos, não em matéria de vida. Ali eu era até
mesmo tolo e confuso. Portanto, pronto para cair numa armadilha de pegar raposa" (p. 179).
19 O esboço m anuscrito tem: Segunda aventura (p. 383).
20 28 de dezembro de 1913.
21 O inferno, de Dante, começa com o poeta perdido numa floresta escura. H á uma tira de papel nesta página
do exemplar de Jung.
198 L I B E R S E C U N D U S 5/7

5/6 red u zid a a n ada pela quan t idade de saber. Penso que ele é u m verd ad eiro / sábio
que apren deu a gran de m od ést ia dian t e da in com en su rabilid ad e do saber e que
se d ed icou com plet am en t e ao objeto da ciên cia, pon deran do t ím id a e im p ar -
cialm en t e com o se ele em pessoa tivesse que apresen tar com respon sabilidade
o processo da veracidade cien t ífica.
Cu m p r im en t o u -m e t im id am en t e, com o que ausente e afastan do-m e. N ã o
m e ad m irei, pois eu t in h a a aparên cia de u m h om em com u m . Só com esforço
con seguia desviar os olhos de seu trabalho. Eu repet i m eu pedido de h ospeda-
gem por u m a n oit e. Ap ó s lon ga pausa, o velh o disse: "Be m , t u queres d orm ir,
dorm e em paz". V i que estava absorto e por isso lh e ped i que recom endasse ao
servo para m e m ost rar u m qu art o de d orm ir. Disse: "T u pedes m u it o, espera,
n ão posso m e d ist rair agora". Mergu lh ou de n ovo em seu livro. Esp er ei p acien -
t em en t e. Ap ó s cert o tem po, olh ou -m e adm irado: "O que desejas aqui? — O h ,
desculpa - eu h avia esquecido t ot alm en t e que estavas esperan do aqui. Ch a -
m arei im ed iat am en t e o servo". O servo veio e levou -m e ao m esm o an dar de
antes, para u m pequen o quart o com paredes bran cas nuas e u m a grande cam a.
Desejou -m e boa-n oit e e se ret irou .
Co m o eu estivesse cansado, t ir ei a rou pa e m e d eit ei n a cam a, após t er apa-
gado a lu z de u m a vela de sebo. O s len çóis eram ext rem am en t e ásperos e o t r a-
vesseiro, duro. Meu cam in h o errado levou -m e a u m lugar est ran h o: u m velh o
e pequen o castelo, cujo sábio propriet ário passava eviden t em en t e sozin h o suas
n oit es com seus livros. Parece que n ão h avia m ais n in gu ém n a casa, a n ão ser o
servo, que m orava acolá n a t orre. U m m odo de vid a id eal, mas solit ário o desse
velh o com seus livros, pen sei eu. E n isso se d em oraram por longo t em po m eus
pen sam en tos, até que percebi que u m ou t ro pen sam en t o n ão m e aban don ava,
ist o é, que o velh o m an t in h a escon dida aqui sua bela filh a - id eia rom ân t ica
absurda - u m t em a sem graça e já explorado - mas o rom ân t ico est á em todas
as ju n t as de cada pessoa - u m a id eia gen uin am en t e rom ân t ica - u m castelo
n a floresta - solit ário-crepu scu lar - u m velh o m u m ificad o em seus livros, que
guarda u m tesouro valioso e o esconde ciosam en t e de todo m u n d o — que ideias
ridículas m e sobrevêm ! É in fern o ou pu rgat ório que preciso con ceber em m i -
n h a viagem errad a à sem elh an ça dos sonhos in fan t is? Mas sin t o-m e in capaz
de elevar meus pen sam en tos a algo m ais forte ou m ais bon it o. Devo con sen t ir
nesses pen sam en tos. O que ad ian t aria repeli-los - eles volt am - m elh or en -
golir este gole in sípid o do que m an t ê-lo n a boca. Co m o será que ela se parece,
O C AST ELO N A FLO REST A 199

esta h eroín a aborrecida? Cer t am en t e lou ra, pálida - olh os azuis - an siosa-
m en t e esperan do de cada cam in h an t e ext raviado o salvador de sua prisão p a-
t ern a - ah , eu con h eço este absurdo t rivial - prefiro d or m ir - por que, diabos,
devo at orm en t ar-m e com essas fantasias ocas?
O sono n ão quer n ada. Vir o - m e de u m lado a ou t ro — o sono n ão vem —
devo eu t er em m im m esm o afin al esta alm a n ão resgatada? Será que é ela que
n ão m e d eixa d orm ir? Ter ei eu u m a alm a t ão rom ân t ica? Só faltava ist o — seria
dolorosam en t e ridículo. Será que a m ais in sípid a das bebidas n ão t erá m ais fim ?
Já deve ser m eia-n oit e - e n ada de sono ain da. O que será que n ão m e d eixa
d orm ir? Será algum a coisa neste quarto? A cam a est ará en feit içada? E sim ples-
m en t e m acabro para on de a in són ia pode levar u m a pessoa - in clu sive para as
teorias m ais disparatadas e m ais supersticiosas. Parece fazer frio, eu est ou com
frio - t alvez, e n ão d u r m a por causa disso - aqui é realm en t e sin ist ro - Deu s
sabe o que acontece aqui — n ão escut ei passos h á pouco? Nã o , deve t er sido lá
fora — vir o para o ou t ro lado, fecho os olhos com força, preciso d orm ir. A por-
t a está se abrin do? Me u Deu s, alguém está aí? Est ou ven d o bem ? U m a m oça
esguia, pálid a com o a m ort e, est á à porta? Céu s, o que é isto? El a se aproxim a!
"Ch egast e fin alm en t e?", pergu n t ou b aixin h o. Im p ossível - é u m engano
pavoroso - o rom an ce quer t orn ar-se real - quer t ran sform ar-se em h ist ória
est ú p id a de fantasm as? A que disparat e est ou con den ado? E m in h a alm a que
alberga t ais glórias rom ân t icas? Ist o t am b ém deve acon t ecer com igo? Est o u
realm en t e n o in fern o - o p ior despert ar após a m ort e quan do se ressu scit a
n u m a b ib liot eca pú blica. Desp r ezei as pessoas de m in h a época e seu gosto,
t an t o assim que devo viver e escrever n o in fern o os rom an ces sobre os quais
já cu spi h á m u it o t em po? Será que a m etade in fer ior do gosto m éd io d a h u -
m an id ad e t am bém t em d ireit o à san t idade e in violab ilid ad e, de m odo que n ão
possam os d izer n en h u m a palavra desairosa / sobre isso, sem t erm os de pagar 6/7
o pecado n o in fern o?
El a fala: "Ah , t u t am b ém pensas o t r ivial de m im ? Tam b ém t u te deixas se-
d u zir pela m alfadada ilusão de que eu p ert en ço a u m rom an ce? Tam b ém t u ,
de qu em esperava que tivesse abandonado as aparên cias e se esforçasse para
at in gir a essên cia das coisas?"
Eu : "Perd ão, mas existes realm en t e? E u m a sem elh an ça por dem ais in feliz
com aquelas cenas de rom an ces, desgastadas até a parvoíce, que eu pudesse
aceit ar que n ão fosses apenas u m produ t o de m eu cérebro in son e. Min h a d ú -
200 L I B E R S E C U N D U S 7/8

vid a n ão está realm en t e ju st ificad a, quan do u m a sit uação coincide de t al form a


com o t ipo do rom an ce sen t im en t al?"
Ela: "In feliz, com o podes d u vid ar de m in h a realidade?"
Ca iu de joelh os, soluçan do, aos pés de m in h a cam a e escon deu o rosto nas
m ãos. Me u Deu s, ela é de fato real, e eu lh e faço in just iça? Min h a com paixão
despert ou.
Eu : "Mas, d ize-m e, por am or de Deu s: t u és real? Devo levar-t e a sério com o
realidade?"
Ela ch orou e n ada respon deu.
Eu : "Q u e m és en t ão?"
Ela: "Eu sou a filh a do velh o. Ele m e m an t ém aqui n u m a prisão in su port ável,
n ão por ciú m e ou ód io, mas por am or, pois sou sua ú n ica filh a e o ret rat o vivo
de m in h a m ãe, falecida m u it o jovem ".
Reco r r i à m in h a razão: ist o n ão é u m a estupidez in fern al? Palavra por p a-
lavra, o rom an ce de u m a bibliot eca pública! O deuses, para onde m e levastes?
É para rir, é para ch orar — é d u ro ser u m belo sofredor, u m d est roçad o t ragica-
m en t e, mas t orn ar-se u m macaco, vós belos e grandes? O ban al e et ern am en t e
ridículo, o in d izivelm en t e gasto e usado n u n ca vos foi depositado nas m ãos,
erguidas em oração, com o d ád iva do céu.
Ela con t in u a deit ada ali e ch ora - e se fosse real? Seria en t ão dign a de pen a
e t oda pessoa t er ia com p aixão dela. Se for u m a m oça decen te, o que n ão lh e
deve t er custado en t rar n o qu art o de d or m ir de u m h om em descon h ecido! E
ven cer de t al m odo sua t im id ez?
Eu : "Min h a qu erid a crian ça, apesar de tudo e de todos, quero acredit ar que
és real. O que posso fazer por t i?"
Ela: "Afin al, fin alm en t e u m a palavra de boca h u m an a!"
Ela se levan t a, seu rosto b rilh a, ela é bon it a. U m a pu reza profun da está em
seu olhar. El a possui u m a alm a bela e afastada do m un do, u m a alm a que gos-
t aria de chegar à vid a d a realidade, a t oda a realidade d eplorável, ao ban h o de
lam a e p oço de saúde. O h , sobre esta beleza da alm a! Vê -la descer para o su b-
m u n d o d a realidade - que espet áculo!
Ela: "O que podes fazer por m im ? Já fizeste m u it o. T u falaste a palavra lib er -
t adora quan do n ão colocaste m ais en t re m im e t i o ban al. Pois fica sabendo: eu
estava en feit içad a pelo ban al".
Eu : "Ai de m im , agora de t orn as bem fan tástica".
O C AST E LO N A F LO REST A 20I

Ela: "Sê razoável, prezado amigo, e n ão tropeces sobre o fan tástico, pois o
con t o de fadas é só a avó do rom an ce e m ais u n iversalm en t e válid o do que o r o -
m an ce m ais lid o de t u a época. E t u sabes que aquilo que, desde m ilén ios, passa
pela boca de todo o povo é com efeito o m ais m astigado e que m ais se ap roxim a
da verdade h u m an a m ais elevada. Port an t o, n ão deixes que o fan t ást ico se i n -
t erpon h a en t re n ó s"22 .
Eu : "Tu és inteligente e não pareces ter herdado a sabedoria de teu pai. Dize-m e,
o que pensas das verdades divinas, das chamadas verdades últimas? Seria m uito es-
t ran h o para m im procurá-las n a banalidade. D e acordo com sua n at ureza devem
ser bem excepcion ais. Pen sa apenas em nossos grandes filósofos".
Ela: "Q u an t o m ais excepcion ais essas verdades últ im as, t an t o m ais in u m a-
nas t am bém devem ser e t an t o m en os vão d izer-lh e algo de valor e sign ificat ivo
sobre a n at u reza e o ser h um an os. Só o que é h u m an o e que t u in sult as com o
ban al e vulgar, ist o / con t ém a sabedoria que t u procuras. O fan t ást ico n ão fala
con t ra, mas a favor de m im e prova que sou h u m an am en t e u n iversal e que n ão
só preciso da libert ação, mas t am bém a m ereço. Pois consigo viver n o m u n d o
da realidade tão b em ou talvez m elh or do que m u it os de m in h a espécie".
Eu : "Not ável sen h orit a, t u és descon certan te. Q u an d o vi t eu pai, pen sei que
fosse con vid ar-m e para u m a con versa in t elect u al. N ã o o fez, e eu fiqu ei abor-
recido, pois sen t i-m e u lt rajado em m in h a dign idade por seu pouco caso. Mas
ju n t o a t i en con t rei coisa bem m elh or. T u m e dás assunto para pensar. T u és
in com u m ".
Ela: "T u te enganas, sou bem com u m ".
Eu : "N ã o posso acredit ar nisso. Co m o é bela e adorável a expressão de t u a
alm a em teus olhos! Feliz e in vejável o h om em que te lib ert ar!"
Ela: "T u m e am as?"
Eu : "Por Deu s, eu te am o — m as in felizm en t e já sou casado".
Ela: "Port an t o — vês t u : a realidade ban al é in clu sive u m libert ador. Agrad e-
ço-t e, prezado amigo, e m an do por t i u m a saudação a Salom é".

22 Em seu "Satisfação do desejo e simbolismo nos contos de fada" (1908), o colega de Jung, Franz Riklin ,
argumenta que os contos de fadas foram as invenções espontâneas da alma humana prim itiva e a tendência
geral da satisfação do desejo (ThePsychoanalytícReview, 1913, p. 95 [trad. de W A. W h it e]). Em Transformações
e símbolos da libido, Jung considerou tanto os contos de fada quanto os mitos como representando imagens
primordiais. Em sua obra posterior, considerou-os como expressão dos arquétipos, como em "Sobre
os arquétipos do inconsciente coletivo" ( O C, 9/ 1, § 6 ). A discípula de Jung Marie-Louise von Franz
desenvolveu a interpretação psicológica dos contos de fada numa série de obras. Cf. Psychologísche
Mãrchenínterpretatíon - Ein e Einfíihrung. Munique: Kõsel Verlag, 1986.
202 L I B E R S E C U N D U S 8/ 9

A estas palavras, desfez-se sua figura n a escuridão. Lu z m ort iça d a lu a e n -


t r ou n o quarto. N o lugar on de esteve, h á algo escuro — é u m buque de rosas
ver m elh as 23.

24
[2] Q u an d o n ão te acontece n en h u m a aven t u ra ext ern a, t am bém n ão
acontece n en h u m a in t ern a. O ped aço que assumes do d em ón io, ou seja, a ale-
gria, p rovid en cia aven t u ra para t i. Faz falt a para t i con h ecer teus lim it es. Se
n ão os conheces, corres d en t ro das barreiras art ificiais de t u a im agin ação e
da expect at iva de teus sem elh an tes. Mas t u a vid a su port a m al ser con t id a por
barreiras art ificiais. A vid a quer saltar por sobre essas barreiras e t u te torn as
desun ido con tigo m esm o. Essas barreiras n ão são teus verdadeiros lim it es, mas
são lim it ação arbit rária que te im p õe u m a violên cia in út il. Procu ra en t ão e n -
con t rar teus verdadeiros lim it es. N ó s n ão os con hecem os de an t em ão, mas só
os vem os e com preen dem os quan do n ós os alcan çam os. Mas ist o t am bém só te
acontece quan do t u ten s equilíbrio. Sem equilíbrio, cais por cim a e para fora de
teus lim it es, sem perceber o que te acon teceu. Mas só consegues equ ilíbrio se
alim en t ares t eu oposto. Mas ist o te repugn a in t eriorm en t e, pois n ão é h eróico.
Meu espírit o pen sou em tudo o que é raro e in com u m , espreit a possibilid a-
des n ão descobertas, pistas que vão para o oculto, luzes que b r ilh am n a n oit e. E
quan do m eu espírit o fez isto, todo o com u m sofreu dan o em m im , sem que eu o
percebesse, e com eçou a querer vid a, pois eu n ão a vivia. Por isso acon t eceu-m e
esta aven t ura. O rom ân t ico m e atacou. O rom ân t ico é u m passo para trás. Para
chegar ao cam in h o, n ós devem os t am bém dar alguns passos para t r ás 25 .
N a aven t ura, vivo o que vi n o m ist ério. O que lá vi com o Elias e Salom é,
ist o t ran sform ou -se em vid a n o velh o sábio e em sua pálid a e aprision ada filh a.

23 Em "Aspectos psicológicos da Co r e"(i9 5i), Jung descreve este episódio assim: "Um a casa isolada numa
floresta. Nela mora um velho sábio. Aparece de repente sua filha, uma espécie de fantasma, queixando-se
de que as pessoas sempre a consideram como mero fantasma" ( O C, 9/ 1, § 361). Jung comentou (seguindo
suas observações sobre o episódio de Elias e Salomé, acima nota 212, p. 318): "O sonho 3 apresenta o
mesmo tema, porém num plano mais semelhante ao do conto de fadas. Aqu i a anima é caracterizada como
um ser fantasmagórico" (ibid., § 373).
24 O esboço continua: "Meu amigo, não percebes nada de minha vida exteriormente visível. Só ouves de
minha vida interior a contrapartida da vida exterior. Mas se pensas por isso que eu só tenho minha vida
interior e que esta é m inha única vida, estás enganado. Pois precisas saber que tua vida interior não fica
mais rica à custa da vida exterior, mas fica mais pobre. Se não vives exteriormente, não ficarás mais rico
interiormente, apenas mais sobrecarregado. Isto não contribui para teu benefício, e é um começo do
mal. Nem tua vida exterior ficará mais rica e mais bela à custa da vida interior, mas só mais pobre e mais
miserável. O equilíbrio encontra o caminho" (p. 188).
2$ O esboço continua: "Voltei à minha Idade Média, onde ainda fui romântico e lá vivi a aventura" (p. 190).
O C AST E LO N A FLO REST A 203

O que eu vivo é u m ret rat o det urpado do m ist ério. N o cam in h o do rom ân t ico
cheguei à disform idade e m edian idade da vid a, em que m eus pen sam en tos se
apagam e n a qual esqu eço prat icam en t e a m im m esm o. O que am ava antes
disso, devo agora viven ciar com o bagaço e ressequido, e o que desprezava an tes,
t ive que in vejar com o ascendente e desejar desam parado. Eu aceit ei o ridícu lo
dessa aven t ura. Mas acon teceu isto, vi t am bém que a m oça se t ran sform ava e
m ost rava u m sen t ido p róp rio seu. Se pergun t arm os pelo desejo do ridículo, ist o
basta para t ran sform á-lo.
O que se passa com a m asculin idade? Sabes qu an t a fem in ilid ad e falt a ao
h om em para seu aperfeiçoam en t o? Sabes qu an t a m asculin idade falt a à m u lh er
para seu aperfeiçoam en t o? Vó s procu rais o fem in in o n a m u lh er e o m ascu lin o
n o h om em . E assim h á sem pre apenas h om en s e m ulh eres. Mas onde estão
as pessoas? Tu , h om em , n ão deves procu rar o fem in in o n a m ulh er, mas deves
p rocu rá-lo e recon h ecê-lo em t i, pois t u [o] possuis desde o com eço. Mas gos-
tas de desem pen h ar o papel da m ascu lin idade, porque ist o flui pelo cam in h o
desim pedido do t rad icion al. Tu , m ulh er, n ão deves procu rar o m ascu lin o n o
h om em , mas deves aceit ar em t i o m asculin o, pois t u / o possuis desde o com e-
ço. Mas ist o te d ivert e e é fácil fazer o papel de m u lh er zin h a, por isso o h om em
te despreza, pois ele despreza o fem in in o. Mas a pessoa é m ascu lin a e fem in in a,
n ão é só h om em ou só m ulh er. D e t u a alm a n ão sabes d izer de que gén ero ela
é. Mas se prestares b em aten ção, verás que o h om em m ais m ascu lin o t em alm a
fem in in a, e que a m u lh er m ais fem in in a t em alm a m ascu lin a. Q u an t o m ais
h om em és, t an t o m ais afastado est á de t i o que a m u lh er realm en t e é, pois o
fem in in o em t i m esm o te é est ran h o e d esp rezível 26 .
Se tom ares do d em ón io u m ped aço de alegria e com isso saíres para a aven -
t u ra, aceitas para t i t eu prazer. Mas o prazer alicia im ed iat am en t e tudo o que
desejas, e agora depen de de t i se t eu prazer te vai corrom per ou elevar. Se fores
do d em ón io, vais an dar às escuras atrás d a variedade e n ist o te perder. Mas se
ficares con tigo m esm o, com o pessoa que é seu si-m esm o e n ão do d em ón io,
en t ão te recordarás de t u a h um an idade. T u te com port arás para com a m u lh er

26 Em Tipos psicológicos (1921), Jung escreveu: "Mulher muito feminina tem alma masculina; homem muito
masculino tem alma feminina. Deve-se este contraste ao fato de o homem não ser plenamente viril em
todas as coisas, mas possuir, via de regra, certos traços femininos. Quanto mais viril sua atitude externa,
mais suprimidos são os traços femininos; aparecem, então, no in con scien t e"(O C, 6, § 759 [884]). Ele
designa a alma feminina do homem de anima, e a alma masculina da mulher de anímus, e descreve como as
pessoas projetam suas imagens da alma sobre os membros do sexo oposto (ibid.).
204 LI BE R SECU N D U S 9/10

n ão sim plesm en t e com o h om em , mas com o pessoa, ist o é, com o se fosses do


m esm o gén ero dela. T u te record arás de t eu fem in in o. Pod erá parecer-t e com o
se fosses pouco vir il, até cert o pon t o est ú pid o e efem inado. Mas t u deves acei-
tar o ridículo, sen ão ele sofre necessidade em t i e, quan do m en os te previn es
con t ra ele, vai de repen t e cair sobre t i e t orn ar-t e ridículo.
E difícil para o h om em m ais m ascu lin o aceit ar seu fem in in o, pois lh e parece
ridículo, sin al de fraqueza e de deselegân cia. Sim , parece-t e com o se tivesses
perdido todas as virt u d es, com o se tivesses sido rebaixado. O m esm o se d á com
a m u lh er que aceit a seu m ascu lin o 27 . Parece-t e u m a escuridão. T u és escravo
daquilo que precisas em t u a alm a. O h om em m ais m ascu lin o precisa da m u lh er,
por isso é seu escravo. Tor n a-t e t u m esm o m u lh e r 28 , e ficarás livre da escraviza-
ção à m ulh er. N ã o te é p erm it id o aban don ar a m u lh er en quan t o n ão souberes
caçoar de t oda t u a m ascu lin idade. Fica-t e bem usar u m a vez vestes fem in in as:
vão zom bar de t i, mas à m ed id a que te t orn as m ulh er, alcanças a liberdade em
relação à m u lh er e de sua t iran ia. A aceit ação do fem in in o leva ao aperfeiçoa-
m en to. O m esm o vale para a m u lh er que aceit a seu m asculin o.
O fem in in o n o h om em está ligado ao m al. En con t r o-o n o cam in h o do
prazer. O m ascu lin o n a m u lh er est á ligado ao m al. Por isso repugn a à pessoa
aceit ar seu p róp rio outro. Mas, se o aceitas, acontece o que está vin cu lad o ao
aperfeiçoam en t o da pessoa: quan do te t orn ast e objeto de caçoada para t i, vem
voan do para pert o o pássaro bran co da alm a, que estava longe, mas que t u a h u -
m ildade a t r a iu 29 . O m ist ério chega pert o de t i, e acon t ecem coisas ao t eu redor
com o m ilagres. Br ilh a o fulgor áureo, pois o sol em erge de seu sepulcro. Co m o
h om em , n ão tens alm a, pois ela est á n a m u lh er; com o m u lh er, n ão ten s alm a,
pois ela est á n o h om em . Mas quan do te t orn as pessoa, t u a alm a vem a t i.
Se perm an eces d en t ro dos lim it es arbit rária e art ificialm en t e criados, andas
com o en t re dois m uros: n ão enxergas a in com en su rabilid ad e do m un do. Mas
se derrubas os m u ros que lim it am t u a visão e quan do a in com en su rabilid ad e

27 Para Jung, a integração da anima para o homem, e do animus para a mulher era necessária para o desenvol-
vimento da personalidade. Em 1928, ele descreveu este processo, que exigiu a retirada das projeções dos
membros do sexo oposto, diferenciando-as e tomando consciência delas em "O eu e o inconsciente" ( O C ,
7, § 29 6S. Cf. tb. Aion, 1951. O C , 9/ 2, § 20s.).
28 Em vez dessa frase, o esboço corrigido tem: "Mas se ele assumir em si mesmo o feminino, ficará livre da es-
cravidão da mulher" (p. 178).
29 Albrecht Dieterich observou: "Muitas vezes, a alma já é de antemão um pássaro na crença popular"
(Ábraxas - Studien zur Religionsgeschichte des spáten Altertum s. Leipzig: [s.e.], 1891, p. 184).
O C AST E LO N A FLO REST A 205

e sua in fin it a in cert eza se t orn arem assustadores para t i, despert a em t i o an -


t iqu íssim o adorm ecido cujo m en sageiro é o pássaro bran co. En t ão precisas da
m en sagem do velh o dom ador do caos. N o t u rbilh ão do caos m or am os etern os
m ilagres. Te u m u n d o com eça a ficar m aravilh oso. A pessoa n ão faz part e só de
u m m u n d o ordenado, mas pert en ce t am bém ao m u n d o m aravilh oso de sua
alm a. Por isso precisaríeis in cu t ir h or r or em vosso m u n d o orden ado a fim de
que percais o gosto pelo estar dem asiado fora.
Vossa alm a sofre necessidade, pois em seu m u n d o pesa a cobiça. Q u an d o
olh ais para fora de vós, vedes a m at a ao longe e as m on t an h as e para além disso
vosso olh ar sobe para os espaços siderais. Mas quan do olh ais para d en t ro de
vós, vedes n ovam en t e o que est á pert o, longe e in fin it o, pois o m u n d o in t er ior
é tão in fin it o quan t o o m u n d o ext erior. Assim com o tendes part e n a n at u reza
m u lt iform e do m u n d o através de vosso corpo, assim tendes part e n a n at u reza
m u lt iform e do m u n d o in t er ior através de vossa alm a. Est e m u n d o in t er ior é
realm en t e in fin it o e em n ada m ais pobre do que o ext erior. O ser h u m an o vive
em dois m un dos. U m dem en t e vive aqui ou lá, mas n u n ca aqui e lá.
3
°Tu pensas talvez que u m a pessoa, que dedica sua vid a à pesquisa, leve u m a
vid a esp irit u al e viva sua alm a em / m aior m ed id a do que qualquer ou t ra pessoa. 9/10
Mas t am b ém esta vid a é ext ern a, t ão ext ern a com o a vid a de u m a pessoa que
vive as coisas ext ern as. U m t al pesquisador n ão vive as coisas ext ern as, mas os
pen sam en tos ext ern os, port an t o n ão a si m esm o, p orém seu objeto. Se dizes
de u m a pessoa que ela se perd eu t ot alm en t e n a ext eriorid ad e e d esperd iça em
devassidão seus anos, deves d izer o m esm o desse velh o. Ele avilt ou -se em todos
os livros e em todos os pen sam en tos de outros. Por isso sua alm a passa por
necessidade, precisa h u m ilh ar-se e correr ao quart o de todos os estran h os, para
m en digar aquele recon h ecim en t o que ela lh e nega.
Por isso vês aqueles velh os sábios corren d o atrás de recon h ecim en t o de
m odo rid ícu lo e desprezível. Ficam ofen didos quan do n ão se m en cion a seu
n om e, desolados, quan do alguém d iz m elh or a m esm a coisa, in t ran sigen t es,
quan do alguém m u d a u m a coisin h a em sua opin ião. Se fores a u m a reu n ião de
pessoas sábias, verás esses velh os last im áveis com seus grandes m érit os e suas

30 O esboço e o esboço corrigido têm: "À medida que eu era este velho, enterrado em livros c árida ciência, justo e
ponderado, arrancando grãos de areia do deserto sem fim , sofre meu [si-mesmo] assim chamado alma, isto
c, meu si mesmo interior, grande necessidade (p. 180).
20 6 LI BE R SECU N D U S IO/ II

alm as fam in t as, que est ão sedentas de recon h ecim en t o, mas que n u n ca con se-
guem m it igar sua sede. A alm a exige t u a t olice, n ão t eu saber.
Pelo fato de n ão m e elevar acim a do sexu al-m ascu lin o e assim n ão u lt rapas-
sar o h um an o, t ran sform a-se o rid ícu lo fem in in o para m im n u m a n at u reza p le-
n a de sen tido. O m ais difícil é estar além do sexual e ficar d en t ro do h um an o.
Se te elevas acim a do sexual, com a ajuda de u m a proposição geral, t u m esm o te
torn as aquela proposição e ultrapassas o h um an o. Ficarás port an t o seco, du ro
e in u m an o.
T u gostarias de ult rapassar o sexual a p ar t ir de fun dam en t os h um an os e
jam ais a p ar t ir de fun dam en tos de u m a proposição geral que con t in u a sendo
sem pre a m esm a nas m ais diversas sit uações e que, por isso, n ão t em valor p le-
n o para cada sit uação em part icu lar. Q u an d o atuas a p ar t ir do h u m an o, atuas a
p art ir da respect iva situação, sem prin cípio geral, só de acordo com a situação.
Assim correspon des à situação, talvez com violação de u m a proposição geral.
Mas ist o n ão deve m olest á-lo dem ais, pois t u n ão és a proposição. Exist e u m
out ro h um an o, u m dem asiado h um an o, e qu em en t rou neste h u m an o, a este
faz bem lem brar-se do ben efício da proposição geral 31. Pois t am bém a propo-
sição geral t em sen t ido e n ão foi colocada por brin cad eira. H á m u it o trabalh o
respeit ável do espírit o h u m an o n ela. Pessoas dessa espécie n ão est ão além da
sexualidade devido a u m p rin cíp io geral, mas devido à sua im agin ação n a qual
se perd eram . Torn aram -se sua p róp ria im agin ação e arbit raried ad e, para seu
p róp rio preju ízo. Faz-lh es falt a lem brar-se do sexual a fim de que acordem de
seus sonhos para a realidade.
É t ão doloroso quan to u m a n oit e em claro sen t ir o além a p ar t ir do aquém ,
isto é, o out ro e o oposto em m im . Ap r oxim a-se cautelosam en te qual febre,
qual n évoa ven en osa. E quan do teus sen tidos est ão excit ados e tensos ao m á-
xim o, en t ão vem o d em on íaco com o algo t ão in sípid o e gasto, t ão m orn o e
sem sabor, que sentes enjoo. Aq u i gostarias m u it o de n ão m ais sen t ir t eu além .
Assu st ad o e enojado, desejas estar de volt a à beleza m u it o alt a de t eu m u n d o
visível. Cospes e am aldiçoas t udo o que está além de t eu belo m un do, pois sabes
que é n áusea, escória, im u n d ície do an im al h um an o, que se alim en t a em casas

31 Humano, demasiado humano é o título de uma obra de Nietzsche, publicada em três fascículos a partir de 1878.
Descreve a observação psicológica como a reflexão sobre o "humano, demasiado humano" (Cambridge:
Cambridge University Press, 1996, p. 31 [trad. de R J. Hollingdale]).
O C AST E LO N A FLO REST A 207

boloren t as, que se arrast a em todas as t rilh as, que m ete o n ariz em todos os
can tos do m u n d o e que, desde o b erço até a m ort e, só desfrut a daquilo que já
an dou n a boca de todos.
Mas n ão gostarias de parar aqui, n ão coloques a n áusea en t re t eu aquém e
t eu além . O cam in h o para t eu além passa pelo in fern o, por t eu in fern o todo es-
pecial, cujo ch ão con sist e de en t u lh o que atinge os joelh os, cujo ar foi respirado
m ilh ares de vezes, cujo fogo é a paixão de an ões e cujo d em ón io são os let reiros
qu im éricos.
Tod o o odiado e t odo o n ojen t o é t eu in fern o todo especial. Pod eria ser
diferen t e? Tod o in fern o diferen t e seria ao m en os dign o de ser vist o ou d iver-
tido. Mas ist o n ão é n u n ca o in fern o. Te u in fern o está con st ru íd o de todas as
coisas que t u atiras com u m a m ald ição e u m p on t ap é para fora de t eu san tuário.
Q u an d o en tras em t eu in fern o, n ão penses jam ais que en t ras com o alguém
que sofre em t erm os de beleza ou com o u m desprezador orgulhoso, mas en tras
com o u m im b ecil cu rioso e adm iras as m igalhas que caíram de t u a m esa 32 . /
T u preferirias tudo bem irrit ad o, mas percebes ao m esm o t em po com o lh e
vai b em a ir a. Te u rid ícu lo in fern al esten de-se por m ilh as. Feliz de t i quan do
consegues praguejar! Vais sen t ir que o praguejar red im e a vid a. Q u an d o passa-
res, port an t o, pelo in fern o, n ão te esqueças de prest ar at en ção em tudo o que
vais en con t ran do. En t en d e-t e calm am en t e com tudo o que quer despert ar t eu
desprezo ou t u a raiva; assim abres cam in h o para a m aravilh a que eu viven ciei
com a m oça pálida. T u dás alm a ao desalm ado e, através disso, pode surgir algu-
m a coisa do pavoroso n ada. Assim t eu out ro será salvo para a vid a. Teus valores
vão p u xá-lo daquilo que és at ualm en t e para fren t e e para além de t i m esm o.
Mas t eu sendo vai p u xar-t e para o ch ão com o ch um bo. N ã o podes viver as duas
coisas ao m esm o tem po. Por isso salva-te o cam in h o. T u n ão podes estar ao
m esm o t em po n a m on t an h a e n o vale, mas t eu cam in h o leva-t e da m on t an h a
para o vale e do vale para a m on t an h a. Mu it a coisa com eça d ivert id o e con duz
para a escuridão. O in fern o t em círcu los 33.

32 Em outubro de 1916, em sua palestra no Clube de Psicologia sobre "Individuação e coletividade", Jung
ponderou que, através da individuação, "o indivíduo precisa agora consolidar-se, separando-se totalmente
da divindade e tornando-se ele mesmo. Com isso separa-se ao mesmo tempo da sociedade. Exteriormente
mergulha na solidão e internamente no inferno, no afastamento de Deu s"(O C, 18/2, § 1.103).
33 Na descrição de Dante, em a Divina Comédia, o inferno tem nove círculos.
208 LI BE R SECU N D U S 11/12

U m dos degradados34
Cap. iii.

[ I H 11] N a n oit e segu in t e 35 en con t rei-m e de n ovo an dan do em t erras co-


bertas de neve de aspecto fam iliar. U m céu de an oit ecer cin zen t o en cobria o
sol. O ar é de frio úm ido. Algu ém ju n t ou -se a m im , que n ão parecia con fiável.
Tin h a u m olh o só e ain d a u m a série de cicat rizes n o rosto. Est á vest ido de m a-
n eira pobre e suja, u m vagabundo. Tin h a u m a barba pret a com prid a, que n ão
via t esoura h á m u it o tem po. Para qualquer em ergên cia, eu t in h a u m b om bas-
tão. "Est á u m frio m ald it o", disse ele após algum tem po. Con cor d ei. Ap ó s pausa
ain d a m ais lon ga, pergun t ou: "Par a onde o sen h or vai?"
Eu : "Eu vou até o p róxim o vilarejo, on de pret en do passar a n oit e".
Ele: "Tam b ém qu eria fazer o m esm o, mas n ão vai dar para u m a cam a".
Eu : "Falt a d in h eiro? Bem , verem os. O sen h or n ão t em em prego?"
Ele: "Pois é, os tem pos est ão difíceis. At é poucos dias atrás, era em pregado
de u m serralh eiro. Aí ele ficou sem trabalho. Agora est ou n a estrada e procu ro
em prego".
Eu : "N ã o quer em pregar-se n u m a lavoura? N o cam po sem pre h á falta de
força de t rabalh o".
Ele: "O em prego n a lavou ra n ão m e serve. Sign ifica levan t ar cedo de m an h ã,
o t rabalh o é pesado e o salário é baixo".
Eu : "Mas n o cam po é sem pre m ais bon it o do que n u m a cidade".
Ele: "No cam po é m on ót on o, a gente n ão vê n in gu ém ".
Eu : "Exist e m pessoas t am bém n a aldeia".
Ele: "Mas n ão se t em at rações in t elect u ais, os cam poneses são rudes.
Eu o olh ei adm irado. Por Deu s, ele t am bém quer at rações in t elect uais? Ele
d everia gan har h on est am en t e seu susten to e, depois disso, pen sar n u m a atração
u/ 12 in t elect u al. /
Eu : "Mas d ize-m e, qual a at ração in t elect u al que o sen h or en con t ra n a c i -
dade?"

34 O esboço m anuscrito tem: Terceira aventura (p. 440 ) . O esboço corrigido tem: "O vagabundo", que vem coberto por
um papel (p. 186).
35 29 de dezembro de 1913
U M D O S D EGRAD AD O S 209

Ele: "À n oit e pode-se ir aos cin em at ógrafos. É form id ável e barato. Lá é
possível ver tudo o que se passa n o m u n d o".
Devo pen sar n o in fern o, lá t am bém exist em cin em at ógrafos para aqueles
que desprezaram este in st it u t o n a t erra e n ele n ão en t raram , porque todos os
outros en con t raram n ele seu gosto.
Eu : "O que lh e in t eressou m ais n o cin em at ógrafo?"
Ele: "A gente vê t odo t ipo de belas h abilidades. H a via u m que cor r ia pelas
casas acim a. U m ou t ro t razia a cabeça debaixo do braço. O u t r o ain d a ficava em
m eio ao fogo sem se queim ar. É realm en t e m aravilh oso o quan to as pessoas
sabem fazer".
E ist o o h om em ch am a de at rações in t elect u ais! D e fato - ist o parece m a -
ravilh oso: os santos t am bém n ão t raziam as cabeças debaixo do b r aço ? 36 São
Fran cisco e San to In ácio t am bém n ão se elevaram do ch ão oran do - os três
h om en s n u m forn o em ch am as? 37 N ã o é u m a id eia blasfem a con siderar a Acta
Sanctorum com o u m cin em at ógrafo h ist órico? 38 Ah , os m ilagres de h oje são sim -
plesm en t e algo m en os m ít ico do que técn ico. O lh o para m eu acom pan h an te
com t er n u r a - ele vive a h ist ória do m u n d o - e eu?
Eu : "D e certo, ist o é m u it o b em feito. Vi u m ais algum a coisa do gén ero?
Ele: "Sim , eu vi com o o r ei da Esp an h a foi assassinado".
Eu : "Mas ele n ão foi assassinado".
Ele: "Be m , isto n ão im port a, en t ão foi u m outro desses m alditos reis capit alis-
tas. U m ao m enos se foi. Pen a que n ão levou a todos, en t ão o povo estaria livre".
N ã o ousei d izer m ais nada: Guilherm e Tell, u m a obra de Fr ied r ich Sch iller - o
h om em est á n o m eio, n a t orren t e d a h ist ória h eróica. Algu ém que dá aos povos
adorm ecidos a n ot ícia do assassinato do t ir a n o 39 .

36 O emblema da cidade de Zurique traz este motivo, mostrando os mártires do final do século terceiro,
Félix, Régula e Exuperâncio.
37 Parece ser uma referência a Sidrac, Misac e Abdénago, em Dan iel 3, aos quais Nabucodonosor mandou
jogar na fornalha por se recusarem a adorar o ídolo de ouro que ele havia erigido. Eles saíram ilesos do
fogo, o que levou Nabucodonosor a decretar que seria decapitado desde então quem falasse contra o Deus
deles.
38 A Acta Sanctorum é uma coletânea da vida e lendas dos santos, ordenada de acordo com seus dias
comemorativos, publicada pelos jesuítas da Bélgica, conhecidos como padres bolandistas. A publicação
começou em 1643 e chegou a 63 fólios.
39 Em Guilherme Tell (1805), Friedrich Schiller dramatizou a revolta dos cantões suíços contra o controle pelo
império dos Hapsburgos da Áustria no começo do século catorze, o que levou à fundação da confederação
suíça. No quarto ato, terceira cena, Guilherm e Tell mata Gessler, o representante imperial. Stussi, o guarda
florestal, anunciou: "O tirano do país está morto. Daqui para frente não teremos mais opressão. Somos
homens livres" ( T E LL, W Chicago: Un iversity of Chicago Press, 1973, p. 119 [Trad. de W Main lan d]).
2IO LI BE R SECU N D U S 12/13

Ch egam os à h ospedaria, u m a propriedade r u r al — u m a sala so-frivelm en t e


lim p a - alguns h om en s sentados a u m can to, beben do cerveja. Sou t rat ado por
"sen h or" e levado para o m elh or canto, on de u m a t oalh a qu adricu lada cobria a
part e su perior da m esa. O ou t ro sen tou-se n a parte in ferior da m esa, e resolvi
en com en d ar-lh e u m a boa jan t a. Ele m e olh ava im pacien t e e fam in t o - com
seu ú n ico olho.
Eu : "O n d e o sen h or perd eu seu olh o?"
Ele: "N u m a briga. Mas eu t am bém esfaqueei ele bastan te. Ele recebeu u m a
pen a de três meses de prisão. Eu recebi seis meses. Mas era bon it o n a prisão.
Naquele tem po, a con st ru ção era t ot alm en t e n ova. Eu t rabalh ava n a serralh eria.
N ã o h avia m u it o que fazer, mas a com id a era boa. A prisão n ão é tão r u im ".
O lh e i ao redor para cert ificar-m e de que n in gu ém estava escutan do que eu
estava em com pan h ia de u m ex-presid iário. Parece que n in gu ém h avia p ercebi-
do n ada. Ao que tudo in d icava, eu estava n u m a sociedade lim p a. H á n o in fern o
t am bém presídios para aqueles que n u n ca est iveram n u m deles em vida? Alé m
do m ais — n ão será u m sen t im en t o m u it o bon it o t er chegado u m a vez bem ao
fundo do poço, ao ch ão da realidade, a p ar t ir do qual n ão exist e n en h u m para
baixo, mas no m áxim o ain d a u m para cim a? O n d e se t em dian t e de si t oda a
alt u ra da realidade?
Ele: "Dep ois de cu m p rid a a pen a, fiqu ei ao desam paro, porque m e m an d a-
ram em bora. Fu i, en t ão, para a Fran ça. Lá era bon it o".
Q u e n uan ces apresen ta a beleza! E possível apren der algum a coisa de pes-
soas assim .
Eu : "Q u a l foi o m ot ivo de sua briga?"
Ele: "Fo i por causa de u m a m oça. El a teve u m filh o bastardo com ele, mas
eu qu eria casar com ela assim m esm o. D e resto, ela era d ireit a. Dep ois, ela n ão
quis m ais. Nu n ca m ais t ive n ot ícias dela".
Eu : "Q u e idade o sen h or t em agora?"
Ele: "Faço 35 n a prim avera. Preciso en con t rar u m trabalh o decen te, en t ão
nos casarem os. Eu en con t rei u m . Mas eu t en h o u m problem a nos pu lm ões.
Ist o, n o en t an t o, m elh orará em breve".
/ Teve u m violen t o acesso de tosse. N ã o eram boas perspectivas e eu m e
ad m irava em silên cio do in abalável ot im ism o do pobre diabo.
Ap ó s o jan t ar, fu i para a cam a n u m quart o bem sim ples. Escu t ei com o o
ou t ro arru m ava seu alojam en t o ao lado. Tossiu várias vezes. Dep ois ficou qu ie-
U M D O S D EGRAD AD O S 211

to. Mas de repen t e acordei de n ovo com seus gem idos e gorgolejar lúgubres,
m ist u rados com tosse sem issufocada. Escu t ei com at en ção preocupada - sem
dúvida, era o outro. É com o u m a coisa perigosa. Levan t ei-m e depressa e vest i
apenas o n ecessário. Ab r i a p ort a de seu quarto. O b rilh o d a lu a en t rava de
cheio. O h om em jazia vestido sobre u m colch ão de palha. D e sua boca saía u m
fio escuro de sangue que fez u m a poça no chão. Ele gem ia semissufocado e ex-
pectorava sangue. Q u is levan tar-se, mas caiu de novo para trás. Apressei-m e em
socorrê-lo. Mas vi que a m ort e já h avia colocado a m ão sobre ele. Est á tudo sujo
de sangue. Min h as m ãos est ão ch eias de sangue. Solt a u m suspiro de estertor.
A t en são se desfaz, u m leve est rem ecim en t o perpassa seus m em bros. E en t ão
tudo est á m ort o e quieto.
O n d e estou? Exist e m t am bém falecim en tos n o in fern o para aqueles que
n u n ca pen saram n a m ort e? O lh o para m in h as m ãos cobertas de sangue - com o
se eu fosse u m assassino... N ã o é o sangue de m eu irm ão que se cola em m in h as
m ãos? A lu a desen h a em pret o m in h a som bra n a parede bran ca do quarto. O
que faço aqui? Para que este espet áculo pavoroso? O lh o in t errogat ivam en t e
para a lu a com o t est em un h a. O que in t eressa ist o à lua? El a já n ão viu coisa
pior? Ist o é in d iferen t e para suas m on t an h as an ulares de et ern a duração - u m
pouco m ais ou m en os. A m ort e? N ã o revela ela o em buste t errível d a vida? Por
isso é t ot alm en t e in d iferen t e para a lu a se e com o alguém part e daqui. Som en t e
n ós dam os m u it a im p ort ân cia a isso — com que d ireit o?
O que fez este h om em ? Ele t rabalh ou , passou algum t em po sem fazer n ada,
r iu , bebeu, com eu , d o r m iu , sacrificou seu olh o pela m u lh er e, por am or a ela,
perd eu sua h on r a de cidadão, além disso viveu sofrivelm en t e o m it o h um an o,
ad m irou os autores de coisas m aravilh osas, elogiou o assassinato do t iran o e
son h ou obscuram en t e com a liberdade do povo. E en t ão - en t ão m or r eu la -
m en t avelm en t e - com o todos os outros. Ist o é válid o em geral. Eu m e sen t ei
sobre o fun dam en t o m ais baixo. Q u a n t a som bra sobre a t erra! Todas as luzes
som em n a ú lt im a d esesperan ça e solidão. Ist o é u m a ú lt im a verdade, n ão u m
en igm a. Q u e ilusão p ôd e fazer-n os acredit ar n u m enigm a?

[2] N ó s estam os sobre as pedras agudas d a m iséria e d a m ort e.


U m vagabundo ju n t ou -se a m im e quer en t rar em m in h a alm a, port an t o
sou m u it o vagabundo. O n d e se m et eu m in h a vagabundagem , en quan t o eu n ão
a praticava? Eu fu i u m jogador d a vid a, alguém que a pen sava com o difícil e a
212 LI BE R SECU N D U S 13/14

vivia n a facilidade. O vagabundo estava bem longe e esquecido. A vid a torn ara-se
d u ra e m ais som bria. O in vern o n ão t erm in ava m ais, e o vagabundo estava n a
neve e sen t ia frio. Ju n t ei-m e a ele, pois precisava dele. Ele t orn a a vid a fácil e
sim ples. Ele con duz à profun deza, ao fun dam en to, em que eu vejo a alt it ude.
Sem a profun deza, n ão t en h o a alt it ude. Talvez eu esteja n a alt it u de, mas é exa-
t am en t e por isso que n ão me d ou con t a dela. Preciso por isso do n ível profun do
para m in h a ren ovação. Se eu est iver sem pre n a alt it u de, eu a desgasto, e en t ão
o m elh or se t orn a para m im u m h orror.
Mas com o n ão quero que m eu m elh or se t orn e u m h orror, eu m esm o m e
t ran sform o n u m h orror, n u m h or r or para m im , n u m h or r or para os out ros,
n u m t errível espírit o de t ort u ra. Sê h on esto e dize que t eu m elh or t orn ou -se
u m h or r or para t i, assim livrarás a t i e a outros de u m t orm en t o in út il. U m a
pessoa que n ão consegue m ais descer de sua alt it ude é doen te e t orm en t o para
si e para os outros. Q u an d o at in gires t u a profun deza, verás t u a alt it u de b r ilh ar
claram en t e sobre t i, dign a de desejo e longe, com o se fosse in alcan çável, pois n o
m ais ín t im o de t i preferes ain d a n ão alcan çá-la, por isso ela te parece in alcan -
çável. T u gostas de exalt ar t u a alt it u de, m esm o n o tem po de t eu n ível profun do,
e d izer-t e que só a abandonaste com pesar e que n ão vivest e neste t em po todo
em que passaste sem ela. Bon s costum es, que quase se t ran sform aram em ou t ra
n at u reza em t i, fizeram que assim falasses. Mas sabes que bem n o fundo ist o
n ão é verdade.
Em t eu n ível profun do n ão te distin gues em n ada m ais de teus irm ãos h u -
m an os. N ã o te envergonhes e n ão te arrepen das, pois à m ed id a que vives a vid a
de teus irm ãos e desces à sua in feriorid ad e, / em barcas t am bém n a t orren t e
sagrada da vid a em geral, n a qu al n ão és m ais u m in d ivíd u o em alt a m on t an h a,
mas u m peixe en t re peixes, u m a rã en t re rãs.
Tu a alt it ude é t u a p róp ria m on t an h a, que pert en ce a t i e só a t i. Lá estás em
t ua in d ivid u alid ad e e vives t u a vid a part icularíssim a, n ão vives a vid a d a h ist ória
e dos fardos e bens im perd íveis, n u n ca perdidos da h u m an idade. Lá vives o ser
con t ín u o, mas n ão o t orn ar-se. O t orn ar-se pert en ce à alt it ude e é doloroso.
Co m o podes t orn ar-t e, se n u n ca és> Por isso precisas do n ível profun do, pois lá
t u és. Por isso precisas da alt it u d e, pois lá te t orn as.
Q u an d o vives n o t eu n ível profun do a vid a com u m , tom as con sciên cia de
t eu si-m esm o. Q u an d o estás em t u a alt it u de, t u és t eu m elh or e só tom as con s-
ciên cia de t eu m elh or, mas n ão daquilo que és com o sendo n a vid a com u m . O
U M D O S D EGRAD AD O S 213

que n ós somos com o t orn an d o-se n ão se sabe n u n ca. Mas n a alt it u d e, a im agi-
n ação é m ais forte. Im agin am os que sabemos o que somos com o t orn an d o-n os
e t an t o m ais quan t o m en os querem os saber o que somos com o sendo. Por isso
n ão gostamos do n ível profun do, apesar de, ou sobretudo porque som en te lá
at in girem os u m con h ecim en t o claro de n ós m esm os.
Para o t orn an d o-se tudo é en igm át ico, para o sendo não. Q u e m sofre por
causa do en igm át ico pen sa em seu n ível profun do; resolve os enigm as de que
sofrem os, mas n ão aqueles em que nos alegramos.
Ser aquele que t u és é ban h o do ren ascim en t o. O ser do n ível profun do n ão
é u m p ersist ir in con d icion al, mas u m crescim en t o in fin it am en t e vagaroso. T u
pensas estar parado quiet o com o água de cist ern a, mas t u te derram as len t a-
m en t e n o m ar, que cobre em t oda part e a t er r a nos lugares m ais profun dos e é
tão gran de que a t er r a firm e parece apenas u m a ilh a, en caixad a n o seio do m ar
in fin do.
Co m o gota do m ar part icipas das corren t es das m arés altas e baixas. De va -
gar avan ças para a t er r a e devagar ret orn as, n u m respirar de in fin d a duração.
T u viajas longas dist ân cias em corren t ezas im percept íveis, banhas lit orais des-
con h ecidos e n ão sabes com o chegaste lá. Levan t as-t e com as ondas da grande
tem pestade e despencas de n ovo n a profun deza. E n ão sabes com o ist o te acon -
tece. An t es pensavas que t eu m ovim en t o vin h a de t i e que h avia necessidade de
t u a decisão e de t eu esforço para que te m ovim en t asses e saísses do lugar. Mas
com todo o esforço n u n ca terias chegado àquele m ovim en t o e àquelas paragens
a que o m ar e o grande ven t o do m u n d o te levam .
Sobre in fin d as plan ícies azuis afundas em negras profun dezas; peixes lu m i-
nosos passam por t i, ram agem m aravilh osa te en volve. T u te esgueiras através
de fendas e de plan tas en t relaçadas, balou çan t es, de folhas escuras, e o m ar aflui
n ovam en t e para t i em água verd e-clara sobre lit orais de areia bran ca, e u m a
on d a te espum eja para a p raia e te engole ou t ra vez, e u m a grande on d a m an sa
te ergue e te con duz para novas plan ícies e profun dezas, para plan tas en t relaça-
das, peixes de rabos longos e polvos viscosos deslizan do devagar, e água verde,
e areia bran ca, e ondas de arreben t ação.
Mas de longe b r ilh a para t i em lu z dourada t u a alt it u de sobre o m ar, com o a
lu a que em erge d a m aré alta, e t u tom as con sciên cia de longe de t eu si-m esm o.
E o desejo apan h a a t i e a von t ade para seu p róp rio m ovim en t o. T u queres ir do
ser para o t orn ar-se, pois recon heceste que a respiração do m ar exist e e que seu
214 LI BE R SECU N D U S 14/15

fluir e reflu ir que te leva de lá para cá, onde part e n en h u m a te pren de, e onde
suas ondas, que te jogam para lit orais estran h os e te en golem n ovam en t e, te
gorgolejam para baixo e para cim a.
T u vist e que ist o foi a vid a do t odo e a m ort e de cada in d ivíd u o. A l i te
sen t ist e en volvid o pela m ort e geral, p ela m ort e n o lugar m ais profu n d o d a
t erra, pela m ort e em t u a p r óp r ia profu n d eza, resp iran d o e flu in d o est ran h a-
m en t e. O h - t u desejas sair, desespero e m edo m o r t al t om am con t a de t i em
t od a est a m ort e, que resp ira devagar e que flu i et ern am en t e p ara lá e con t ra.
Todas essas águas claras e escuras, quen t es, m orn as e frias. Tod os esses z o ó -
fitos on deados, balou çan t es e oscilan t es, todas essas m aravilh as n ot u rn as vão
t orn ar-se h or r or p ara t i e t u desejas sol, ar lím p id o e seco, roch ed o fir m e, l u -
gar d et erm in ad o e lin h a ret a, o im óvel e seguro, regra e objet ivo prem ed it ad o,
est ar só e in t en ção p róp ria.
D e n oit e veio-m e o con h ecim en t o da m ort e, do m or r er que en globa o m u n -
do todo. V i com o n ós vivem os para d en t ro d a m ort e, com o o cereal dourado
e on du lan t e vem abaixo sob a foice do ceifeiro, / à sem elh an ça de u m a on da
m an sa do m ar n a praia. Q u e m est á posicion ado n a vid a com u m t om ará con sci-
ên cia, assustado, da m ort e. Por isso o m edo da m ort e o em p u rra para a solidão.
Lá ele n ão vive, mas t om a con sciên cia d a vid a e se alegra, pois n a solidão ele é
u m t orn an do-se e ven ceu a m ort e. Ele ven ce a m ort e através da vit ória sobre
a vid a com u m . N a solidão ele n ão vive, pois ele n ão é o que é, mas ele se t orn a.
Algu ém t orn an do-se t om a con sciên cia da vid a, alguém sendo, n u n ca, pois
está n o m eio da vid a. Ele precisa da alt it u de e da solidão para t om ar con sci-
ên cia da vid a. Mas n a vid a t orn a-se con scien t e da m ort e. E é b om que tom es
con sciên cia da m ort e com u m , pois en t ão sabes para que servem t u a solidão e
t ua alt it ude. Tu a alt it u de é com o a lu a, que cam in h a solit ariam en t e ilu m in an d o
e et ern am en t e clara observa as n oit es. As vezes ela se esconde, e en t ão estás
t ot alm en t e n o escuro da t erra, mas sem pre de n ovo com pleta-se até a claridade
plen a. O m orrer da t er r a lh e é estran ho. Ela vê de longe a vid a n a t erra, ela m es-
m a im óvel e clara, sem vapor en volven t e e sem m ar em m ovim en t o. Su a form a
im ut ável está firm e desde a et ern idade. El a é a lu z solit ária e clara d a n oit e, o
ser in d ivid u al e o ped aço p r óxim o da et ern idade.
A p art ir dela t u vês de m odo frio, im óvel e radian t e. Co m u m a lu z prateada
do além e com crepúsculos verdes, soterras o h orror lon gín qu o. T u o vês, mas
t eu olh ar é claro e frio. Tuas m ãos estão verm elh as de sangue vivo, mas o lu ar
O EREMITA 215

de t eu olh ar é im óvel. É o sangue vit al de t eu irm ão; sim , é t eu p róp rio sangue,
mas t eu olh ar perm an ece brilh an d o e abrange o todo do h orror e a rot un didade
d a Ter r a. Te u olh ar repousa sobre m ares prateados, sobre cum es cheios de neve,
sobre vales azuis, e n ão ouves o gem er e u ivar do an im al h um an o.
A lu a est á m ort a. Tu a alm a foi para a lu a, para o guarda das alm as 4 0 . E assim
a alm a en t r ou n a m o r t e 4 1. Eu en t r ei n a m ort e in t er ior e vi que o m orrer ext erior
é m elh or do que a m ort e in t erior. E eu resolvi m orrer fora e viver den t ro. Por
isso eu m e d esviei 4 2 e p rocu rei os lugares d a vid a in t erior.

O erem it a
Cap. iv. Dies I . 4 3
[ I H 15] Novam en t e n a n oit e segu in t e 44 , en con t rei-m e em novos cam in h os;
ar quen te e seco m e circu n d ava, e eu vi: o deserto, areia am arela em t oda a
ext en são, am on t oada em dun as, u m sol caustican te, u m céu azu l com o aço liq -
uefeito, o ar t rem u lan d o sobre a t erra, à m in h a d ir eit a u m vale profun dam en t e
escavado com u m leit o seco de rio, algumas gram ín eas am areladas e algumas
sarças cobertas de poeira. N a areia vejo pegadas de p és descalços que vão do
vale roch oso para o plan alto. Eu os segui ao longo de u m a d u n a elevada. O n d e
ela en t ra em declive, as pegadas m u d am para ou t ra direção, parecem frescas, ao

40 Em Transformações e símbolos da libido (1912) Jung cita crenças de diferentes culturas de que a lua foi o lugar de
reunião das almas que haviam partido ( O C , B, § 49 6). Em Mysterium coniunctíonís (1955/ 1956), Jung comenta
este motivo na alquimia ( O C, 14, § 150).
41 O esboço continua: "Eu aceitei o vagabundo, vivi e m orri com ele. Ao vivê-lo, eu o assassinei, pois a gente
mata o que a gente vive" (p. 217).
42 O esboço corrigido tem: "da m orte" (p. 20 0 ) .
43 (Prim eiro dia.) O esboço m anuscrito tem: "Quarta aventura: prim eiro dia (p. 476 ). O esboço corrigido tem: "Dies I .
Noite" (p. 201).
44 30 de dezembro de 1913, No Livro Negro 3, Jung observou: "Todo tipo de coisas me desviam para longe de
minha ciência à qual eu acreditava estar dedicado firmemente. Através dela, queria servir à humanidade,
e agora, m inha alma, tu me levas para essas coisas novas. Sim , o mundo do meio, intransitável, multiplamente
cintilante. Esqueci que cheguei a um mundo novo, que antes me era estranho. Não vejo caminho nem
trilha. Aqu i deverá tornar-se verdade o que acreditei sobre a alma, que ela sabia melhor seu próprio
caminho e que nenhum desígnio lhe poderia prescrever um caminho melhor. Sinto que é tirado um grande
pedaço da ciência. Deve estar certo, por amor à alma e por amor à sua vida. Dolorosa é apenas a ideia de
que isto só aconteceu para mim e que talvez ninguém consiga tirar alguma luz daquilo que eu produzo. Mas
minha alma exige esta produção. Devo poder dizê-lo também só para mim sem esperança - por amor a
Deus. Deveras um caminho duro. Contudo aqueles eremitas dos primeiros séculos cristãos - o que faziam
de diferente? E eram, por acaso, as piores e mais imprestáveis pessoas que viviam naquele tempo? De modo
nenhum, pois eram aqueles que tiravam a mais inexorável consequência da necessidade psicológica de seu
tempo. Eles deixavam mulher e filhos, riqueza, fama - ciência e se dirigiam ao deserto - por amor a Deus.
Assim seja" (p. 1-2).
2l6 LI BE R SECU N D U S 15/16

la d o e s t ã o p egad as ve lh a s, sem ia p a ga d a s. Sigo - a s c o m a t e n ç ã o : vã o n o va m e n t e


pela en cost a da d u n a e desem bocam n u m a ou t ra pegada — mas é a m esm a / que
eu já h avia seguido, ou seja, aquela que su biu do vale.
Sigo, adm irado, as pegadas agora para baixo. Logo chego às rochas quen tes,
averm elhadas, carcom idas pelo ven to. Sobre a pedra, perde-se a pegada, mas
vejo on de o roch edo cai em degraus e eu desço. O ar est á quen te e a pedra
qu eim a m in h as solas dos pés. Agora estou embaixo; aqui estão de novo as pegadas.
Elas vão ao longo das curvas do vale e percorrem curt a distância. Est ou de repente
diante de pequena cabana de adobe, coberta de juncos. U m a bamboleante arm ação
de m adeira formava a porta sobre a qual estava desenhada u m a cruz em vermelho.
Ab r i devagar. U m h om em magro, de cabeça calva, pele m arrom -escura, envolto
n um m an t o bran co de lin h o, est á sentado n u m a est eira, com o dorso encostado
n a parede. Sobre seus joelh os est á u m livro em pergam in h o am arelado com
bela escrit a pret a - u m livro em grego, dos evangelhos sem dúvida. Est ou ju n t o
a u m erem it a do deserto líb io 4 5 .
Eu : "Est o u pert u rban d o o senhor, pai?"
E: "T u n ão pert urbas. Mas n ão m e cham es de pai. Sou u m h om em com o t u .
O que desejas?"
Eu : "Ven h o sem desejo algum . Vi m por acaso a este lugar do deserto e e n -
con t rei lá em cim a pegadas n a areia, que m e t rou xeram por diversas voltas a t i".
E: "T u en con t rast e as pegadas de m in h a cam in h ad a diária à h ora do arrebol
e à h ora do p ôr do sol".
Eu : "Perd oa-m e se in t errom p o t u a con cen t ração. Mas para m im é u m a
oport un idade ú n ica estar ju n t o a t i. Nu n ca t in h a vist o u m erem it a".
E: "Da q u i para baixo podes ver n ão poucos neste vale. Algu n s t êm cabanas
com o eu, outros m or am em t úm ulos que os antigos escavaram nessas rochas.
Eu m oro n o lugar m ais alto do vale, porque aqui é o pon t o m ais solit ário e m ais
quieto e porque aqui t en h o m ais p róxim o o sossegÒ do deserto".
Eu : "Já estás h á m u it o t em po aqui?"

45 No capítulo seguinte, o eremita é identificado com Amónio. Numa carta de 31 de dezembro de 1913,
Jung observou que se trata de um eremita do terceiro século d.C. (AFj). H á três personagens históricos de
nome Am ón io em Alexan dria daquela época: Amónio, um filósofo cristão do terceiro século, considerado
por um tempo o responsável pela divisão medieval dos evangelhos; Am ón io Ceto, nascido cristão, mas que
voltou à filosofia grega, e cuja obra apresenta uma transição do platonismo para o neoplatonismo; e um
Am ón io neoplatônico do século quinto, que tentou conciliar Aristóteles e a Bíblia. Em Alexan dria havia
bom entendimento entre neoplatonismo e cristianismo, e alguns dos discípulos deste último Am ón io
converteram-se ao cristianismo.
O EREMITA 217

E: "Vivo aqui provavelm en t e h á un s dez anos, mas de fato n ão consigo le m -


b rar-m e exat am en t e quan to t em po faz. Pode fazer alguns anos m ais. O t em po
passa tão depressa".
Eu : "O t em po passa rápid o para t i? Co m o é possível? Tu a vid a deve ser t re-
m en d am en t e m on ót on a".
E: "Cer t am en t e, o tem po passa rápid o para m im . At é rápid o dem ais. T u
pareces ser u m pagão".
Eu : "Eu ? N ã o — n ã o e xa t a m e n t e . C r e s c i n a fé cr ist ã ".

E: "En t ão, com o podes pergun t ar se o t em po é longo para m im ? Deves saber


com que se ocupa alguém que est á t rist e. Lon go se t orn a o tem po só para os
ociosos".
Eu : "Perd oa-m e de n ovo - m in h a curiosidade é grande - com que te ocupas
t u ?"
E: "Es por acaso u m a crian ça? E m p r im eir o lugar vês que aqui eu leio e, de-
pois, t en h o m in h a d ist ribu ição regular do t em po".
Eu : "Mas eu n ão vejo n ada aqu i com que poderias te ocupar. Est e livro já o
deves t er lid o todo várias vezes. E se são os evangelhos, com o supon ho, cert a-
m en t e já os sabes de cor".
E: "Co m que in fan t ilid ad e t u falas! T u sabes que se pode ler u m livro d i-
versas vezes - talvez o saibas quase de cor, e apesar disso, quan do olhas para as
lin h as que est ão dian t e de t i, vão aparecer coisas novas para t i, ou terás m esm o
ideias t ot alm en t e n ovas, que n ão t in h as antes. Ca d a palavra pode agir criat iva-
m en t e em t eu espírit o. E m ais, se puseres de lado o livro por u m a sem an a e o
ret om ares, depois que t eu espírit o sofreu nesse m eio t em po diversas t ran sfor-
m ações, n ascerá para t i m ais do que u m a n ova lu z".
Eu : "Ten h o dificuldade em en t en der isso. N o livro est á sem pre apenas u m a
ú n ica e m esm a coisa, cert am en t e u m con t eú d o m aravilh osam en t e profun do,
m esm o d ivin o, mas n ão t ão rico que pudesse en ch er anos in con t áveis".
E: "T u és surpreen den t e. Co m o lês este livro sagrado? T u vês de fato sem -
pre apenas u m ú n ico e m esm o sen t ido nele? Don d e ven s tu? És realm en t e u m
pagão".
Eu : "Rogo-t e, n ão m e leves a m al se falo com o u m pagão. Perm it e apenas
que fale contigo. Est o u aqui para apren der de t i. Con sid er o-m e u m alun o ign o-
ran t e, que o sou deveras nessas coisas".
218 LI BE R SECU N D U S 16/17

E: "Se te ch am o pagão, n ão con sideres ist o u m in su lt o. Tam bém eu fu i an t i-


gam ente u m pagão e pensava, se bem / m e lem bro, exat am en t e com o t u . Co m o
posso en t ão con den ar t u a ign orân cia?"
Eu : "Agradeço t u a paciên cia. Mas in t eressa-m e m u it o saber com o t u lês e o
que ext rais do livr o".
E: "N ã o é fácil respon der à t u a pergun ta. É m ais fácil explicar as cores a
u m cego. An t es de m ais n ada precisas saber de u m a coisa: u m a sequên cia de
palavras n ão t em apenas u m sen tido. Mas as pessoas se esforçam por dar a u m
orden am en t o de palavras apenas u m ú n ico sen tido, ist o é, por t er u m a lin gu a-
gem in equívoca. Est e esforço é u n iversal e lim it ad o e pert en ce aos graus m ais
profun dos do plan o criad or de Deu s. Nos graus m ais elevados da in t rospecção
dos fun dam en tos d ivin os, conheces que os orden am en t os de palavras t êm m ais
de u m sen t ido válido. Só ao on iscien t e é dado con h ecer todos os sen t idos das
sequên cias das palavras. Aos poucos, e com esforço, conseguim os captar algum
sen t ido m ais".
Eu : "Se en t en do bem , é t u a opin ião que t am bém as Sagradas Escrit u ras do
Novo Test am en t o t êm u m sen t ido duplo, u m sen t ido exot érico e esot érico,
assim com o o afirm am de seus livros sagrados alguns letrados judeus".
E: "Lon ge de m im t al sin ist ra superstição. Percebo que és bem in experien t e
nas coisas de Deu s".
Eu : "Preciso recon h ecer m in h a profun da ign orân cia nessas coisas. Mas es-
t ou curioso para perceber e assim ilar o que t u en ten des por sen t ido m ú lt iplo
do orden am en t o das palavras".
E: "In felizm en t e n ão estou em con dições de lh e d izer tudo o que sei a este
respeito. Mas t en t arei esclarecer-lh e ao m en os os elem en tos básicos. Para t an -
to e devido à t u a ign orân cia, vo u com eçar por u m ou t ro lado: precisas saber
que eu , antes de con h ecer o crist ian ism o, fu i professor de ret órica e filósofo n a
cidade de Alexan d r ia. Eu t in h a grande afluên cia de estudantes, en t re os quais
m u it os rom an os, t am bém alguns bárbaros da Gália e Bret an h a. Eu n ão lhes e n -
sin ava apenas a h ist ória da filosofia grega, mas t am bém os sistem as m ais novos,
en t re eles t am bém o sist em a de Filo, que n ós ch am ávam os "o ju d e u "4 6 . Er a u m

46 Filo, o judeu, também chamado Fílon de Alexan dria (20 a.C-50 d . C) , foi um filósofo judeu de língua
grega. Suas obras são uma fusão da filosofia grega e do judaísmo. Para Fílon, Deus, a quem se referia pelo
termo platónico "O Un o", era transcendente e incognoscível. Certos poderes desciam de Deus para o
mundo. A faceta de Deus que nos é conhecível através da razão é o Logos divino. Houve muito debate
O EREMITA 219

crân io, mas t rem en d am en t e abstrato, com o cost u m am ser os judeus quan do
cr iam sistem as, e com isso era escravo de suas palavras. En t ão criei m eu p róp rio
sist em a e u r d i u m a t ram a m ed on h a de palavras n a qual sufoquei n ão só m eus
ouvin t es com o t am bém a m im m esm o. Digeríam os m al palavras e con ceit os,
nossas próprias palavras d eploráveis, e lh es at ribu íam os até pot ên cia d ivin a.
Acred it ávam os m esm o em sua realidade e ju lgávam os possuir o d ivin o e t ê-lo
fixado em palavras".
Eu : "Mas Filo , o ju d eu — c e r t a m e n t e t e r e fe r e s a est e —, fo i u m filó so fo sé r io

e grande pensador, e o p róp rio evan gelista João n ão se recu sou a assum ir alguns
pen sam en tos de Filo em seu evan gelho".
E: "Ten s razão. Est e é o m érit o de Filo. Ele cu n h ou u m a lin guagem , com o
tan tos out ros filósofos. Ele pert en ce aos art ist as da lin guagem . Mas as palavras
n ão devem t orn ar-se d eu ses"47.
Eu : "Aqu i n ão te en ten do. N ã o est á d it o n o evangelho de João: Deu s era a
Palavra? Parece-m e estar d it o aí claram en t e o que t u con den aste h á pouco".
E: "Cu id a-t e para n ão te t orn ares u m escravo da palavra. Aq u i está o evan -
gelho. Lê a p ar t ir dessa passagem on de se d iz: n ela estava a vid a. O que d iz João
a li?"4 8
Eu : "' E a vid a era a lu z dos h om en s. A lu z b r ilh a nas trevas, mas as trevas n ão
a com preen deram . H ou ve u m h om em en viado por Deu s, de n om e João. Ele
veio com o t est em un h a, para dar t est em un h o da lu z. Er a est a a lu z verd ad eira
que, vin d o ao m un do, ilu m in a todas as pessoas. El a estava n o m un do, e por ela
o m u n d o foi feito, mas o m u n d o n ão a con h eceu . E ist o que leio aqui. Mas o
que achas disso?"

sobre a exata relação entre o conceito de Logos de Fílon e o do Evangelho de João. Em 23 de junho de
!934» J u n g escreveu a James Kirsch : "A gnose, da qual proveio o Evangelista João, é certamente judia, mas é
helénica na essência, no estilo de Fílon judeu, do qual também se origina a doutrina do Logos" ( JA) .
47 Em 1957, Jung escreveu: 'Até hoje não se percebeu com a necessária clareza e profundidade que a nossa
época, apesar do excesso de irreligiosidade, está consideravelmente sobrecarregada com o que adveio da
era cristã, a saber, com o predomínio da Palavra, daquele Logos que representa a figura central da fé cristã. A
palavra tornou-se, ao pé da letra, o nosso Deus e assim permaneceu" ( O C, 10, § 554).
48 Jo 1,1-10: "No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus. No princípio
ela estava com Deus. Todas as coisas foram feitas por meio dela, e sem ela nada se fez do que foi feito.
Nela estava a vida, e a vida era a luz dos seres humanos. A luz brilha nas trevas, mas as trevas não a
compreenderam. Houve um homem enviado por Deus, de nome João. Ele veio como testemunha, para
dar testemunho da luz, a fim de que todos cressem por meio dele. Ele não era a luz, mas veio para dar
testemunho da luz. Era esta a luz verdadeira que, vindo ao mundo, ilum ina todas as pessoas. Ela estava no
mundo, e por ela o mundo foi feito, mas o mundo não a conheceu".
220 LI BE R SECU N D U S 17/19

E: "Eu te pergun to, este Àoyoç (logos) era u m con ceito, u m a palavra? Ele era
u m a lu z, até m esm o u m h om em e m orou en t re os h om en s. T u vês, Filo só e m -
prest ou a palavra a João, para que Jo ão tivesse à disposição, além da palavra l u z ' ,
t am bém a palavra Àoyoç, para descrever o Filh o do H o m e m . E m João, o sen t i-
do do Àoyoç foi at ribu íd o ao h om em vivo, mas em Filo foi at ribu íd o ao Àoyoç a
vid a, a vid a d ivin a in clu sive ao con ceit o de m ort o. Co m isso, o m ort o n ão gan h a
n en h u m vid a, e o vivo será m ort o. E ist o t am bém foi m eu erro m on st ru oso".
Eu : "Percebo o que pensas. Est e pen sam en t o é n ovo para m im e parece-m e
8 dign o de con sideração. Sem pre m e pareceu até agora / que era exat am en t e ist o
o m ais sign ificat ivo em João, de que o Filh o do H o m e m é o Àoyoç, erguendo
o m ais ín fim o até o esp irit u al m ais elevado, até o m u n d o do Àoyoç. Mas t u m e
levas a ver a coisa de m odo in vert id o, ou seja, que João t raz para baixo o sen t ido
do Àoyoç ao h om em ".
E: "Ap ren d i a recon h ecer que João t em in clu sive o grande m érit o de t er
elevado o ser h u m an o acim a do sen t ido do Àoyoç".
Eu : "T u tens pon tos de vist a estran h os que despert am ao m áxim o m in h a
curiosidade. Co m o é isto? T u pensas que o h u m an o est á acim a do Àoyoç?"
E: "A esta pergu n t a quero respon der d en t ro do lim it e de t u a com preen são:
se o h u m an o n ão tivesse sido o m ais im p ort an t e para Deu s, ele, com o Filh o,
n ão t eria sido m an ifestado n a carn e, mas n o Àoyoç"49
Eu : "Ist o m e parece eviden t e, mas confesso que esta con cepção é su preen -
den te para m im . E especialm en te adm irável que t u , u m erem it a crist ão, tenhas
chegado a tais ideias. Jam ais esperava ist o de t i".
E: "Co m o já observei, t u fazes u m a id eia t ot alm en t e errad a de m im e de
m in h a n at ureza. T u desejas ver aqui u m pequen o exem plo de m in h a ocupação.
Só com a m u d an ça de apren dizado passei m u it os anos. T u t am bém já m udaste
algum a vez de apren dizado? - En t ão deves saber que é preciso m u it o tem po
para isso. Eu fu i u m professor de sucesso em m in h a profissão. Co m o sabes,
essas pessoas d ificilm en t e ou jam ais m u d am de apren dizado. Eu , por exem plo,
vejo que o sol se pôs. Logo será n oit e t ot al. A n oit e é o t em po do silên cio. Vo u
m ost rar-lh e o lugar de passar a n oit e. A m an h ã eu a preciso para m eu trabalh o,
mas após o m eio-d ia podes vir de novo, se quiseres. Con t in u ar em os en t ão a
n ossa con versa".

49 Jo 1,14: "E a Palavra se fez carne e habitou entre nós, vimos a sua glória, a glória do Filho único do Pai,
cheio de graça e verdade".
O EREM ITA 221

Co n d u ziu -m e para fora da cabana, o vale est á im erso em som bra azul. Já
b r ilh am as p rim eiras estrelas n o céu. Levou -m e ao red or do can t o de u m r o -
chedo. Est am os d ian t e da en t rad a de u m t ú m u lo 50 , que foi escavado n a pedra.
En t ram os: n ão longe da en t rad a h avia u m m on t e de ju n cos, coberto com u m a
esteira. Ao lado, u m a m orin ga de água, e sobre u m a t oalh a bran ca, t âm aras secas
e u m pão preto.
E: "Aqu i está t u a pousada e t u a refeição da n oit e. D o r m e bem e n ão te es-
queças de t u a oração da m an h ã, quan do o sol se levan t ar".

[2] O solit ário m or a n u m deserto im en so, ch eio de beleza adm irável. Ele
observa o todo n o sen t ido in t erior. Para ele é odioso o m u lt iform e quan do lh e
está p róxim o. Ele o observa de lon ge, em seu todo. Por isso est ão para ele acim a
do m u lt iform e, o fulgor prateado, a paz e a beleza. O que lh e está p róxim o p re-
cisa ser sim ples e n at u ral, pois o m u lt iform e e em baraçado, quan do p róxim os,
rasgam e quebram o fulgor prateado. N ã o pode h aver n en h u m a t urvação do
ar, n en h u m a fum arada e n en h u m a n eb lin a ao seu redor, caso con t rário n ão
consegue observar o dist an t e m u lt iform e n o todo. Por isso, o solit ário prefere o
deserto, on de tudo o que está pert o é sim ples, e n en h u m a t urvação e em bara-
lh am en t o h á en t re ele e o lon gín qu o.

A vida do solitário seria fria, nãofosse o grande sol, que aquece o are os rochedos. O sol e seu brilho
eterno substituem no solitário o calor de sua vida.
Seu coração deseja ardentem ente o sol.
Ele viaja para as terras do sol.
Sonha com o brilho trem eluzente do sol, com pedras de calor abrasador, expostas ao sol do m eio-dia,
com reflexos de calor dourado da areia seca. f
O solitário procura o sol, e ninguém está m ais disposto do que ele para abrir seu coração. Por isso
am a m ais que tudo o deserto, porque am a seu profundo sossego.
Precisa de m enos alim ento, pois o sol e seu calor o alim entam . Por isso, o solitário am a sobretudo o
deserto, pois é um a m ãe para ele, que dá no tem po oportuno alim ento e calor vivificantes.
No deserto, o solitário está livre de preocupações, por isso toda sua vida se volta para os pom ares
em florde sua alm a, que só conseguem m edrar sob um sol quente. Em seus pom ares crescem as preciosas
frutas verm elhas, que escondem , sob pele esticada, doçura tum escente.

50 O esboço tem: "egípcio" (p. 227). Nesse contexto, água, tâmaras e pão eram oferendas aos mortos.
222 L I B E R S E C U N D U S 19/21

Tu pensas que o solitário épobre. Não vês que ele cam inha debaixo de árvores carregadas de frutas e
que sua m ão toca em centenas de grãos. Sobfolhas escuras, nasce de um viçoso rebento a for de um ver-
m elho exuberante, e os frutos quase explodem devido ao sum o que pressiona. Resinas cheirosas gotejam
de suas árvores, e sob seus pés desabrocha a sem ente que pressiona.
Quando o sol, com o pássaro cansado, desce sobre a superfície plana do m ar, o solitário se recolhe,
suspende a respiração, não se m exe e ésó expectativa até que a m aravilha da renovação da luz se eleva
no Oriente.

Existe um a expectativa bastante incerta para o solitário?1.


Os sustos do deserto e a m orte por sede o envolvem , e tu não entendes com o o solitário consegue
19/ 20 viver. /
Seu olhar, porém , repousa sobre os pom ares e seu ouvido escuta as fontes, sua m ão toca ao m esm o
tem po as folhas e os frutos e sua respiração inala doces arom as de árvores ricam ente floridas.
Não tem palavras suficientes parafalar-te sobre a m agnificência exuberante de seus pom ares.
Gagueja quando fala disso e parece pobre de espírito e vida. Sua m ão não sabe onde pegar nessa abun-
dância indescritível.

Ele te dá um a pequena e pouco vistosafruta que caiu agora m esm o a seus pés. Parece-te sem valor;
m as quando a observas, vês que esta fruta tom ou um sol que nunca terias sonhado. Exala um arom a que
perturba teu sentido olfativo, que te leva a sonhar com jardins de rosas, com vinhos doces e palm eiras
sussurrantes. E tu seguras sonhando esta fruta na m ão e tu gostarias de ter a árvore na qual ela cresceu,
o pom ar no qual esta árvore está e o sol que fecundou este pom ar.

E tu m esm o queres ser aquele solitário que cam inha com o sol por seus pom ares, cujo olhar repousa
sobre ram agens que pendem floridas,cuja m ão acaricia o grão cêntuplo cuja respiração perm ite beber os
arom as de m ilhares de rosas.

Extenuado pelo sol e em briagado por vinho espum ante, vais deitar-te para repouso em túm ulos
antiquíssim os, cujas paredes ressoam de várias vozes e estão m ulticoloridas por m ilhares de anos solares
do passado.

20/ 21 Ao acordar, vês tudo vivo de novo o que já passou, e quando dorm es, descansas com o tudo que já
passou, e teus sonhos fazem ressoar de novo suaves hinos sacros, vindos de longe.

Tu afundas no sono através dos m ilhares de anos solares e te ergues despertando através dos m ilhares
de anos solares, e teus sonhos, cheios de coisas já sabidas enfeitam as paredes de teu quarto de dorm ir.

Tu te vês tam bém no todo.

51 O esboço continua: "Seguindo rastos e círculos aleatórios, volto a m im mesmo e a ele, o solitário, cuja luz
protegida vive na profundeza, protegida por maciços rochedos, tendo acima deserto escaldante e céu
resplandecente" (p. 229).
O EREM ITA 223

T u estás sentado, encostado n a parede e observas o todo belo e en igm át ico.


A Sum m a52 est á d ian t e de t i com o u m livro, e u m desejo in dizível se apossa de
t i para d evorá-lo. Por isso te recostas, ficas com o que paralisado e sen tado por
longo tem po. Es t ot alm en t e in capaz de com p reen d ê-lo. Cá e lá t rem u la u m a
lu z, cá e lá cai u m a fru t a de alt a árvore, que podes apanhar, cá e lá t eu pé d á de
en con t ro a ouro. Mas o que é isto, com parado com o todo que está exposto
dian t e de t i e ao t eu alcance? T u estendes a m ão, mas ela fica presa em teias
in visíveis. T u queres ver ist o com exat idão, mas logo se in t erp õe algo n ebuloso
e através do qual n ão se pode enxergar. Gost arias de arran car u m ped aço para
t i. Mas é liso e im pen et rável com o ferro polido. Por isso te recostas n a parede
e, quan do t iveres rastejado através de todos os cadin h os in can descen tes do i n -
fern o do desespero, estás sentado de n ovo e te recostas e observas a m aravilh a
d a Sum m a que jaz espalh ada dian t e de t i. Cá e lá t rem u la u m a lu z, cá e lá cai u m a
frut a. Tu d o é m u it o pouco para t i. Mas com eças a te d iver t ir e n ão dás at en ção
aos anos que vão passando. O que são anos? O que é t em po passando depressa
para aquele que est á sentado debaixo da árvore? Te u t em po passa com o u m
sopro e t u esperas pela p róxim a lu z, pela p róxim a fru t a.

A Escrit u ra está dian t e de t i e d iz sempre a m esm a coisa se acreditas em pala-


vras. Mas se acreditas em coisas para as quais foram estabelecidas apenas palavras,
n u n ca chegarás ao fim . E assim m esm o precisas cam in h ar pela estrada sem fim ,
pois a vid a n ão flui sobre cam in h os lim it ad os, mas ilim it ad os. Mas a ausên cia
de lim it es t e 53 m ete m edo, pois o ilim it ad o é assustador, e t eu h u m an o se revolt a
con t ra isso; por isso procuras lim it es e rest rições para que n ão te percas cam ba-
lean do para d en t ro do in fin it o. Rest rição será im prescin d ível para t i. T u gritas
pela palavra que t em este ú n ico sign ificado e n en h u m outro, a fim de que esca-
pes do am bígu o ilim it ad o. A palavra será Deu s para t i, pois ela te protege das
in ú m eras possibilidades de in t erpret ação. A palavra é m agia prot et ora con t ra
os d em ón ios do in fin it o que qu erem arran car t u a alm a e espalh á-la aos quatro
ven t os. Est ás salvo se puderes fin alm en t e dizer: ist o é ist o e som en te isto. T u

52 Palavra latina para "todo"/ "toda", "inteiro"/ "inteira".


53 O esboço tem "te" (Dich ) e o esboço corrigido tem "me" (Mir ), p. 232. Durante toda esta seção, o esboço corrigido
substitui "te" por "me" e "t u " por "eu" (p. 214).
224 LI BE R SECU N D U S 21/23

dizes a palavra mágica, e o ilim it ad o est á preso n o fin it o. Por isso as pessoas
p rocu ram e cr iam palavras 54 .
Q u e m rom pe o dique da palavra d erru b a deuses e profan a o tem plo. O
solit ário é u m assassino. Ele m at a o povo, pois com isso pen sa e quebra velh as
m uralh as sagradas. Ele ch am a para d en t ro os d em ón ios do ilim it ad o. Ele fica
sentado, recosta-se e n ão vê n em ouve o gem er da h u m an id ad e, tom ado pela
t errível em briaguez de fogo. Ap esar disso n ão consegues en con t rar as novas
palavras, se n ão quebrares as velh as. Mas n in gu ém deve quebrar velh as palavras,
porque en con t ra a palavra n ova que é u m dique resist en t e con t ra o ilim it ad o e
t raz em si m ais vid a do que a palavra velh a. U m a palavra n ova é u m Deu s n ovo
para a pessoa velh a. A pessoa perm an ece a m esm a, se t u lh e crias t am bém im a -
gens novas de Deu s. El a con t in u a sendo u m a im it ad ora. O que era palavra deve
t orn ar-se pessoa. A palavra cr iou e era antes do m un do. Br ilh o u com o u m a lu z
nas trevas, e as trevas n ão a en t en d eram 55 . Deve port an t o surgir u m a palavra
que en t en d a as trevas, pois para que serve a lu z que n ão en t en de as trevas? Mas
tua lu z deve alcan çar o sign ificado da lu z.

O Deu s da palavra é frio e m ort o e b r ilh a de longe com o a lua, en igm át ica e
21/22 in at in gível. D e ixa que a palavra volt e a seu / criador, precisam en t e ao h om em ,
e assim a palavra é elevada ao h om em . Q u e o h om em seja lu z, lim it e, m edida.
Q u e seja vosso fru t o que an siosam en te t en t ais pegar. As trevas n ão en t en d em
a palavra, mas o h om em ; sim , elas o en t en d em , pois ele m esm o é u m ped aço das
trevas. N ã o descendo da palavra para o h om em , mas subin do da palavra até o
h om em , ist o en t en d em as trevas. As trevas são t u a m ãe, con vém a elas t er res-
peito, pois a m ãe é perigosa. El a t em poder sobre t i, pois é t u a gen it ora. H o n r a
as trevas com o a lu z, assim ilu m in as tuas trevas.

Q u an d o en ten des as trevas, elas t om am posse de t i. Vê m sobre t i com o a


n oit e com u m a som bra azul e in ú m eras estrelas bru xu lean t es. Silên cio e paz te
en cobrem quan do com eças a en t en der as trevas. Só qu em n ão en t en de as t r e-
vas tem e a n oit e. At ravés da com preen são das trevas, do n ot u rn o, do abissal em

54 Em 1940, Jung comentou sobre a magia protetora da palavra ("O símbolo da transformação na missa".
O C , 11, § 4 4 2) .
55 Cf. nota 48, p. 219..
D IES I I 225

t i, serás t ot alm en t e sim ples. E t u te preparas para d or m ir com o todos du ran t e


os séculos, e dorm es por debaixo do seio dos m ilén ios, e tuas paredes ressoam
de velh os cân t icos sacros. Pois o sim ples é aquilo que sem pre foi. Silên cio e
n oit e azu l est en dem -se sobre t i, en quan t o t u dorm es n o t ú m u lo dos m ilén ios.

Dies I I . ' 6
Ca p . v.
[ I H 22] 57 , 58 Aco r d e i, o d ia avermelhava o O rien t e. U m a noite, u m a noite m aravil-
hosa ficou para trás, n a profundeza m ais longínqua dos tempos. Em que espaços
distantes estive? Co m que sonhei? Co m u m cavalo branco? Parece-me que vi este
cavalo branco no céu orien t al sobre o sol nascente. O cavalo falou-me: "O que disse
isto?" Ist o falou: "Vivas a quem está n a escuridão, pois para ele o dia já passou".
Er am quatro cavalos brancos com asas douradas. Puxavam o carro do sol para cim a,
nele estava de pé H élio, com cabeça ch am ejan t e 59 . Eu estava aqui embaixo n o des-
filadeiro, admirado e assustado. Milh ares de serpentes negras apressavam-se para
seus buracos. H élio con tin uava subindo para as largas trilhas do céu. Ajoelh ei-m e,
levantei m in has m ãos suplicantes para o alto e gritei: "Dá-n os tua luz, sedutor do
fogo, abraçado, crucificado e ressuscitado, tua luz, tua luz". Co m esse clamor, acor-
dei. Nã o disse Am ón io on t em à noite: "Nã o te esqueças de tua oração da manhã,
quando o sol se levantar?" Pensei: talvez ele adore secretamente o sol. /
D o lado de fora soprava u m ven t o fresco d a m an h ã. Ar e ia am arela escorre
em fin os veios pelas rochas abaixo. O verm elh o esten de-se sobre o céu, e eu
vejo os p rim eiros raios se lan çan d o para o firm am en t o. Silên cio e solidão m a -
jestosos ao redor. Lá u m a grande lagart ixa sobre u m a pedra espera o sol. Est ou
com o que paralisado e lem b ro-m e com dificuldade de tudo o que acon teceu
on t em e sobretudo do que disse Am ón io. O que disse afinal? Q u e as sequ ên -
cias de palavras t êm vários sen tidos e que João t rou xe para os h om en s o Àoyoç.

56 O esboço corrigido tem: "( O erem ita). Segundo dia. De manhã" (p. 219).
57 Em "A árvore filosófica" (1945), Jung observou: "Um a pessoa que está enraizada embaixo e no alto
pareceria uma árvore tanto na posição normal, como na inversa. A meta não é o alto, mas o centro" ( O C ,
U> § 333)- Com entou também sobre "a árvore invertida" no § 41OS.
58 I O de janeiro de 1914.
59 Na mitologia grega, Hélio era o deus-sol, que dirigia pelo cosmo uma carruagem puxada por quatro
corcéis.
226 LI BE R SECU N D U S 23/ 24

Ist o n ão soa m u it o cristão. Será que ele é u m gn ó st ico ? 6 0 Não , parece-m e i m -


possível, pois ist o o foram os piores de todos os idólat ras da palavra, com o ele
provavelm en t e d iria.
O sol - o que m e en ch e de t ão gran de jú b ilo in t er ior ? N ã o devo esquecer
m in h a oração da m an h ã — mas on de est á m in h a oração d a m an h ã? Am ad o sol,
n ão t en h o oração, pois n ão sei com o devo in vocar-t e. Agor a rezei para o sol.
Mas Am ó n io ach ava que eu d evia rezar a Deu s ao raiar d a m an h ã. Mas ele n ão
sabe — n ão tem os m ais oração. Co m o p od eria t er n oção de n ossa n u dez e p o-
breza? Para on de foram as orações? Aq u i elas m e falt am . Ist o deve ser causado
pelo deserto. Aq u i parece que d everia h aver oração. Será que este deserto é
t ão especialm en t e difícil? Pen so que n ão é m ais difícil do que nossas cidades.
Mas por que n ão rezam os lá? Devo olh ar para o sol, com o se ele tivesse algum a
coisa a ver com isso. A h - son h os an t iqu íssim os da h u m an id ad e, n ão é possível
fugir deles.
O que farei n est a lon ga m an h ã toda? N ã o en t en d o com o Am ó n io agu en -
t ou est a vid a p or u m an o que seja. An d o p ara cim a e p ara baixo n o leit o seco
do r io e sen t o-m e fin alm en t e n u m a ped ra. Dia n t e de m im , algum as ervas
am arelas. U m besouro pret o ve m se arrast an d o e va i em p u rran d o u m a b o li-
n h a d ian t e de si - u m escaravelh o 6 1. Ó pequ en o e qu erid o an im alzin h o, estás
ain d a n o t rabalh o de viver t eu belo m it o? Co m o t rabalh a com seriedade e
sem descan so! Tivesses apenas u m a p álid a id eia de que represen t as u m m it o
an tigo, pararias com t u a q u im er a, assim com o n ós, h u m an os, param os de r e -
presen t ar m it ologia.
O ir r eal causa n ojo. Soa bem est ran h o neste lugar o que digo, e o bom
Am ó n io cert am en t e n ão con cord aria com isso. Mas, o que procu ro exat am en t e
aqui? Nã o , n ão quero julgar de an t em ão, pois ain d a n ão en t en d i realm en t e o
que ele pen sa de fato. Ele t em d ireit o de ser ouvido. Alé m do m ais, on t em eu
pen sava diferen t e, era-lh e até m u it o grato por querer m e en sin ar. Tom o n o-

60 Durante este período, Jung estava ocupado com o estudo dos textos gnósticos, nos quais encontrou
paralelos históricos com suas próprias experiências. Cf. R I BI , A. Die Suche nach den eígenenW urzeln: Die
Bedeutung von Gnosis, Herm etik und Alchem ie fur C G . Jung und Marie-Louise von Franz und deren
Einfluss auf das moderne Verstándnis dieser Disziplin . Berna: Peter Lang, 1999.
61 Em "Síncronícidade: um princípio de conexões acausaís' (1952), Jung escreveu: "O escaravelho é um símbolo clássico
do renascimento. O livro Am-Tuatào Egito descreve a maneira como o deus-sol morto se transforma no
Kheperâ, o escaravelho, na décima estação e, a seguir, na duodécima estação, sobe à barcaça que trará o
deus-sol rejuvenescido de volta ao céu matinal do dia seguinte" ( O C, 13, § 843).
D IES I I 227

vãm en t e u m a at it ude crít ica e superior, est ou port an t o n o m elh or cam in h o de


n ada apren der. Seus pen sam en t os, que n ão são t ão ru in s, são até bon s. N ã o sei
por que desejo sem pre rebaixar a pessoa.
Q u e r id o besouro, para onde foste, n ão te vejo m ais — ah , lá adian te já estás
com t u a b olin h a m ít ica. Esses an im aizin h os ficam absortos em seu t rabalh o de
m an eira bem diferen t e de n ós - n en h u m a dúvida, n ada de desistir, n en h u m a
h esitação. Será que ist o vem do fato de eles viver em seu m it o?

Querido escaravelho, m eu pai, eu te venero, bendito seja teu trabalho - eternam ente - am ém .

Q u e absurdo est ou dizen do? Est ou adoran do u m bich o — deve ser efeito do
deserto. Ele parece exigir in con d icion alm en t e oração.
Co m o é bon it o aqui! A cor averm elh ada das pedras é m aravilh osa. Elas r e-
flet em o calor de cem m il sóis passados - esses grãozin h os de areia rolaram
em m ares fan t ast icam en t e p rim it ivos nos quais n adavam m on st ros de form as
jam ais vist as. O n d e estavas t u , ser h um an o, naqueles dias? Nest a areia quen te
est iveram deitados, aconchegados com o crian ças à sua m ãe, teus antepassados
p ré-h ist óricos ain d a em form a an im al.
Ó m ãe pedra, eu te am o, aconchegado a teu corpo quente, estou deitado, teu filho tardio. Bendita

sejas, m ãe prim itiva.

I Teus são m eu coração, toda a glória e força. Am ém . 23/24

O que digo? Ist o foi o deserto. Co m o tudo me parece t er vida! Est e lugar é
realm en te terrível. Essas pedras - são mesmo pedras? Parece que se ju n t aram
deliberadam ente. Est ão ordenadas com o u m exércit o perfilado. Dispu seram -se
sim et ricam en t e em form ações rochosas, as grandes ficam sós, as pequenas p re-
en ch em as lacun as e se ju n t am n u m grupo que precede o grande. Aq u i as pedras
foram Est ados.
Est o u son h an do ou acordado? Faz calor — o sol já vai alto — com o an d am
depressa as horas! D e fato, a m an h ã já passou — e com o foi m aravilh osa! Será
que é o sol, ou serão essas pedras vivas, ou será o deserto que fazem zu n ir m in h a
cabeça?
Vo u subin do do vale para cim a e logo est ou dian t e da caban a do erem it a.
Est á sen tado em sua est eira, perd id o em profu n d a m edit ação.
Eu : "Me u pai, aqui est ou eu ".
E: "Co m o passaste t u a m an h ã?"
228 L I B E R S E C U N D U S 24/25

Eu : "O n t e m , fiquei adm irado quan do disseste que o tem po passava m u it o


depressa para t i. N ã o pergu n t ei m ais n ada e n ão m e ad m ir ei m ais disso. Ap r e n -
d i m u it a coisa. Mas n ão o suficien t e para que con t in u es sendo u m en igm a ain -
da m aior para m im agora do que antes. O que n ão deves viven ciar n o deserto,
h om em adm irável! At é as pedras devem falar con t igo".
E: "Alegro-m e que tenhas apren dido a en t en d er algum a coisa da vid a de
erem it a. Ist o facilit ará n ossa difícil tarefa. N ã o quero m et er-m e em teus segre-
dos, mas sin t o que ven s de u m m u n d o est ran h o que n ão t em n ada a ver com o
m eu ".
Eu : "O que dizes é verdade. Aq u i eu sou u m estran h o, o m ais est ran h o que
já vist e. Mesm o u m h om em das costas m ais dist an t es da Br et an h a est aria m ais
p róxim o de t i do que eu. Por isso, t em paciên cia, m est re, e p erm it e que eu beba
da fon te de t u a sabedoria. Ain d a que o deserto sedento nos rodeie, flui de t i
u m a t orren t e in visível de água viva".
E: "Fizest e t u a oração?"
Eu : "Perd ão, m est re, eu p rocu rei, m as n ão en con t rei oração algum a. Sen t i
n o en t an t o que eu rezava ao sol n ascen te".
E: "N ã o te preocupes por causa disso. Se t u n ão en con t rast e palavras, t u a
alm a, con tudo, en con t rou palavras in dizíveis para saudar o d ia que raiava".
Eu : "Mas foi u m a oração pagã a H élio ".
E: "Isso te basta".
Eu : "Mas, m est re, eu n ão rezei em m eu son h o só ao sol, e sim t am bém , em
m eu aut o-esquecim en t o, ao escaravelho e à t erra".
E: "N ã o te adm ires de n ada e de m odo n en h u m con den es ou lam en t es isso.
Vam os ao trabalho. Gost arias de pergun t ar algo a respeit o de n ossa con versa
de on t em ?"
Eu : "E u te in t er r om p i on t em quan do falavas de Filo. Q u er ias exp licar-m e o
que en ten des pelo sen t ido m ú lt iplo das sequên cias de palavras".
E: "Q u e r o agora con t ar-t e com o fiqu ei livre do t errível en redam en t o da
t eia de palavras: cert a vez aproxim ou -se de m im u m lib ert o de m eu pai, que
desde m in h a in fân cia m e era afeiçoado, e m e disse:

Am ón io, está tudo bem contigo?' 'Cert am en t e', respondi, 'vês que sou
letrado e tenho grande êxito'.
Ele: 'Eu quero dizer, estás feliz e completamente vivo?'
D IES I I 229

Eu ri: 'Estás vendo que tudo está bem '.


Disse o idoso: ' Eu vi como deste preleções. Parecias preocupado com
o julgamento de teus ouvintes. Inserias chistes espirituosos para agradar o
auditório. Reun ias maneiras eruditas de falar para im pressioná-lo. Tu eras
inquieto e apressado, como se ainda tivesses que arrebatar todo o saber para
t i. Tu não estás em t i mesmo'.
Ain d a que essas palavras me tivessem parecido in icialm en te ridículas,
elas me im pressionaram , e eu, con tra a m in h a vontade, tive de / dar razão ao
velho, pois ele estava certo.
Disse ele então: 'Meu prezado Am ón io, tenho para t i um a excelente n o-
vidade: Deus tornou-se carne em seu Filho e trouxe a nós todos a salvação'.
' O que dizes', exclam ei, 'queres evidentemente significar O sír is 6 2 , que
deve aparecer em corpo m ort al'.
'Não', retrucou ele, 'este homem viveu na Judeia e nasceu de uma virgem'.
Ri e respondi: 'Já sei, um mercador judeu levou para a Judeia a notícia
de nossa rain ha-virgem , cuja imagem vês n a parede de um de nossos t em -
plos, e lá a contou como história da carochinha'.
'Não', in sist iu o velho, 'ele era o Filh o de Deus'.
'En tão pensas naturalmente em H o r u s 6 3 , o filho de Osíris', respondi eu.
'Não, ele não era H oru s, mas um homem real e foi suspenso numa cruz'.
Ah , pensas então em Seth, cujo castigo nossos antepassados relataram
muitas vezes'.
O velho con tin uou em sua convicção e disse: 'Ele m orreu e, ao terceiro
dia, ressuscitou'.
'Nesse caso, trata-se de O síris', falei já com certa impaciência.
'Não', exclamou ele, 'seu nome era Jesus, o Un gido'.
Ah , t u queres dizer esse Deus judeu, que o povo da classe in ferior ve-
n era no porto e cujos mistérios imundos ele celebra nos subterrâneos'.
'Ele era u m hom em e contudo Filh o de Deus', disse o velho, e me olhou
fixamente.
'Ist o é absurdo, meu prezado velho', disse eu e o em purrei pela porta
a fora. Mas como u m eco em distantes rochedos escarpados repetiam-se as
palavras em m im : um a pessoa hum ana e contudo Filh o de Deus. Pareceu-
-me significativo, e foram estas palavras que me levaram ao cristianism o.

62 Osíris era o Deus egípcio da vida, morte e fertilidade. Seth era o Deus do deserto. Osíris foi assassinado e
esquartejado por seu irmão Seth. Seu corpo foi recuperado por sua esposa Isis, reajuntado e ressuscitado.
Jung tratou de Osíris e Seth em Transformações e símbolos da libido (1912). O C , B, § 3$8s.
63 Hórus, filho de Osíris, era o Deus egípcio do céu. Ele lutou contra Seth.
230 LI BER SECU N D U S 25/27

Eu : "Mas n ão pensas que o crist ian ism o pod eria ser ao fin al u m a rem od ela-
ção de vossas d ou t rin as egípcias?"
E: "Se dizes que nossas antigas d ou t rin as eram expressões m en os p er t in en -
tes ao crist ian ism o en t ão con cordo de im ed iat o con t igo".
Eu : "Sim , mas aceitas en t ão que a h ist ória das religiões visa a u m objet ivo
ú lt im o?"
E: "Me u pai com p rou cert a vez u m escravo negro n a região das nascentes
do rio Nilo. Vin h a de u m país que n u n ca ou vira falar de O síris ou de q u al-
quer ou t ro de nossos deuses, mas ele m e con t ava coisas que n u m a lin guagem
sim ples d iziam a m esm a coisa que n ós acredit ávam os de O síris e dos outros
deuses. Ap r e n d i a en t en der que aqueles negros in cu lt os já possu íam , sem o sa-
ber, a m aior ia daquilo que as religiões dos povos cultos desen volveram até u m a
d ou t rin a acabada. Q u e m entendesse corret am en t e aquela lin guagem pod eria
recon h ecer n ela n ão só as d ou t rin as pagãs, mas t am bém a d ou t rin a de Jesus. E
é com isso que m e ocupo agora: leio os evangelhos e procu ro seu sen t ido vin -
douro. Con h ecem os seu sign ificado com o est á paten te d ian t e de n ós, mas n ão
con h ecem os seu sen t ido ocult o que apon t a para o futuro. E u m erro acredit ar
que as religiões sejam diferen t es em sua essên cia. No fundo, t rat a-se sem pre d a
m esm a religião. Ca d a form a religiosa subsequente é o sen t ido das an t eriores".
Eu : " E descobriste o sign ificado vin d ou ro?"
E: "Nã o , ain d a n ão, é m u it o difícil, mas t en h o esperan ça de que vou con se-
guir. At é agora quer parecer-m e que preciso do est ím u lo de out ros para isso,
mas são t en t ações de satan ás, eu o sei".
Eu : "N ã o chegas a acredit ar que esta obra pod eria an t ecipar seu êxit o se
estivesses m ais pert o de outras pessoas?"
E: "Talvez ten has razão."
D e repen te ele olh ou para m im com o que em d ú vid a e desconfiado. "Mas",
con t in u ou ele, "eu am o o deserto, com preen des? Est e deserto am arelo, ch eio do
calor do sol. Aq u i t u vês d iariam en t e a face do sol, aqui estás sozin h o, aqui vês
o glorioso H élio — n ão isto é pagão — o que h á com igo? Est ou pert urbado - t u
és satan ás - eu te con h eço - afasta-te de m im , in im igo".
/ Levan t ou -se de repen t e com o en louquecido e quis at irar-se sobre m im .
Mas eu estou b em longe, n o século vin t e 6 4 .

64 O esboço corrigido tem: "e a m im mesmo pareceu tão irreal como um sonho" (p. 228). O s eremitas cristãos
estavam sempre de prontidão contra o aparecimento de satanás. Famoso exemplo de tentações pelo
demónio ocorre na vida de Santo Antão, escrito por Santo Atanásio. Para prevenir seus monges, "ensina
como o diabo se disfarça para levar à queda os santos. O diabo é, evidentemente, a voz do próprio
D IES I I 231

[2] [ I H 26] Quem dorm e no túm ulo dos m ilénios sonha um sonho glorioso. Sonha um sonho
antiquíssim o. Sonha com o sol nascente.
Se tu dorm es este sono nesta época do m undo e sonhas este sonho, sabes que nesta época tam bém
nascerá o sol. Agora ainda estam os na escuridão, m as o dia está acim a de nós.
Quem traz em si as trevas, a este está próxim a a luz. Quem desce para dentro de suas trevas, este
chega ao nascer da luz atuante, do Hélio que atrai o sol.
Seu carro sobe puxado por quatro corcéis brancos; em suas costas não há cruz e em seu lado não há
chaga, m as ele é saudável e sua cabeça arde em fogo.
Não éum hom em , objeto de escárnio, m as um ser glorioso e de poder indiscutível.
Eu não sei o que eu falo, eu falo no sonho. Am para-m e, pois cam baleio em briagado de fogo.
Bebi fogo nesta noite, pois desci pelos m ilénios abaixo e m ergulhei no m ais profundo do sol.
E ergui-m e em briagado de sol, com a face ardente e m inha cabeça em fogo.
Dá-m e tua m ão, um a m ão hum ana, para que m e m antenha preso à terra, pois j rodas girantes de
fogo m e levantam e desejo jubiloso m e arrebata até o zénite.

N o en t an t o vem o d ia, verd ad eiro d ia, o d ia desse m un do. E eu est ou escon -


dido n o desfiladeiro da t erra, b em em baixo e sozin h o, n a som bra alvorecen te
do vale. Est a é a som bra e a gravidade da t erra.
Co m o posso rezar ao sol que nasce bem dist an t e n o O r ie n t e sobre o deser-
to? Por que devo rezar a ele? Eu bebi o sol em m im , por que d everia rezar? Mas
o deserto, o deserto em m im exige oração, pois o deserto quer en ch er-se de
coisa viva. Eu gost aria de ped i-lo a Deu s, ao sol e a algum dos outros im ort ais.
Eu peço porque sou vazio e u m pedin t e. N o d ia do m u n d o esqueço que eu
bebi em m im o sol e est ou em briagado de lu z atuan te e força que qu eim a. Mas
eu en t r ei n a som bra d a t erra e vi que estou n u e que n ada t en h o para cob rir
m in h a pobreza. Ma l tocas a t erra, liqu id ad a est á a vid a que m or a em t i; ela foge
de t i para d en t ro das coisas.
E u m a vid a m aravilh osa com eça nas coisas. O que t u con sideravas m ort o
e in an im ad o revela vid a secreta, in t en ção silen ciosa e in exorável. T u en trast e
n u m a engrenagem em que cada coisa percorre seu p róp rio cam in h o com gestos
específicos, ao t eu lado, acim a de t i, abaixo de t i e através de t i, in clu sive as pe-

inconsciente do eremita que se volta contra a repressão violenta da natureza individual" ( O C, 6, § 82). As
experiências de Antão foram elaboradas por Flaubert em seu livro La tentatíon de Saint Antoine, obra familiar a
Jung (Psicologia e alquim ia. O C , 12, § 59).
232 L I B E R S E C U N D U S 27/ 29

dras falam con tigo e fios m ágicos t ecem u m a t ram a de t i para a coisa e d a coisa
para t i. Coisas dist an t es e próxim as at uam em t i e t u ages de m an eira obscura
sobre a coisa p róxim a e dist an t e. E sem pre estás desam parado e és vít im a.
Mas se olh ares bem , verás algo que n u n ca vist e an tes, ist o é, que as coisas v i -
vem t u a vid a, que elas se alim en t am de t i: os rios carregam t u a vid a para o vale,
com t u a força cai u m a pedra sobre a ou t ra, t am bém plan t as e an im ais crescem
através de t i e t u m orres neles. U m a folh a d an çan d o ao ven t o d an ça em t i, o
an im al ir r a cio n a l 6 5 ad ivin h a teus pen sam en tos e te represen t a. A t erra in t eir a
suga sua vid a de t i e t udo se espelh a em t i.
N ã o acontece n ada n aquilo em que n ão estás en redado de m an eira secreta;
pois tudo se ord en ou em t orn o de t i e represen t a t eu m ais ín t im o. Nad a em t i
está ocult o às coisas p or m ais dist an t e, precioso e secreto que seja. As coisas o
possuem . Te u cach orro rou ba t eu pai falecido de h á m u it o e t u o achas parecido
com ele. A vaca n o pasto ad ivin h ou t u a m ãe e, ch eia de t ran qu ilid ad e e cert eza,
ela te fascina. As estrelas in sin u am -se em teus segredos m ais profun dos, e os
vales m acios d a t erra abrigam -t e em seio m at ern o.
Q u a l crian ça sem ru m o estás lam en t avelm en t e en t re os poderosos que se-
gu ram os fios de t u a vid a. T u bradas por socorro e te agarras ao m elh or que
p rim eiro aparece n o cam in h o. Talvez ele saiba acon selh ar-t e, talvez con h eça os
pen sam en tos que n ão tens e que todas as coisas sugaram de t i.

Eu sei que tu gostarias de ouvir notícias daquele que nunca foi vivido pelas coisas, m as que viveu e

realizou a si m esm o. Pois tu és um filho da terra, esgotado pela terra sugadora, que por si nada pode, m as

apenas suga o sol. Por isso gostarias de ter notícias do filho do sol, que brilha e não suga.

I Gostarias de ouvir do Filho de Deus, que brilhou, ofereceu e testem unhou, e do qual foi renascido,

com o a terra gera para o solfilhos verdes e coloridos.

Dele gostarias de ouvir, do salvador reluz ente, que, com ofilho do sol, cortou as teias da terra, que

arrebentou os fios m ágicos e soltou o am arrado, quefoi dono de si m esm o e servo de ninguém , que não

exauriu ninguém e cujo tesouro ninguém esvaz iou.

Gostarias de ouvir daquele que não foi obscurecido pela som bra da terra, m as que a ilum inou, que

viu todos os pensam entos e cujos pensam entos ninguém adivinhou, que possuiu em sí o sentido de todas as

coisas e cujo sentido nenhum a coisa soube exprim ir.

65 Um a inversão da definição de Aristóteles do homem como "animal racional".


D IES I I 233

O solit ário fugiu do m un do, fech ou os olh os, t am pou os ouvidos e en t er-
rou-se n u m a cavern a d en t ro de si m esm o, mas de n ada adian t ou . O deserto o
exau riu , a pedra falou a seus pen sam en t os, a cavern a ressoa seus sen t im en t os, e
assim t orn ou -se ele m esm o deserto, pedra e cavern a. E tudo era vazio, deserto,
im p ot ên cia e est erilidade, pois ele n ão b rilh ava e con t in u ou sendo u m filh o
d a t erra, que esgotou u m livro e ele m esm o foi esgotado pelo deserto. Ele era
desejo e n ão brilh o, t ot alm en t e t er r a e n ão sol.
Por isso estava n o deserto com o u m san to esperto, pois sabia m u it o bem
que de ou t ro m odo n ão con seguiria d ist in gu ir-se dos out ros filh os da t erra.
Tivesse bebido de si, t eria bebido fogo.

O solit ário foi para o deserto a fim de en con t rar-se. N ã o deseja, p orém ,
en con t rar a si m esm o, mas o sen t ido m ú lt iplo do livro sagrado. T u podes su -
gar para d en t ro de t i a in com en su rabilid ad e do pequen o e do grande, mas t u
ficarás m ais vazio, cada vez m ais vazio, pois plen it u d e in com en su rável e vazio
in com en su rável são a m esm a co isa 6 6 .
Desejava en con t rar n o ext er ior aqu ilo de que precisava. Mas o sen t id o
m ú lt ip lo t u só o en con t ras em t i, n ão nas coisas, pois a m u lt ip licid ad e do sen -
t id o n ão é algo que é dado de u m a só vez, m as é u m en cadeam en t o de sign ifi-
cados. O s sign ificados que se seguem un s aos out ros n ão est ão nas coisas, mas
em t i, que estás su jeit o a m u it as m u d an ças en qu an t o t iveres part e n a vid a.
Tam b ém as coisas m u d am , m as t u n ão o percebes, se t u m esm o n ão m u d a-
res. Mas se m udas, m od ifica-se o aspecto do m un do. O sen t id o m ú lt ip lo das
coisas é t eu sen t id o m ú lt iplo. E in ú t il qu erer fu n d am en t á-lo nas coisas. E é
p rop riam en t e por isso que o solit ário foi p ara o deserto; n ão exam in a p orém
a si m esm o, mas a coisa.
E por isso acon t eceu -lh e o m esm o que a t odo solit ário quan do ele deseja: o
d em ón io veio a ele com fala m an sa e fu n d am en t ação con vin cen t e, sabia d izer
a palavra cer t a n o m om en t o cert o. Ele o alicia para o seu desejo. E u cer t a-
m en t e d everia parecer o d em ón io para ele, pois eu assu m i m in h as t revas. Eu
com ia a t er r a e bebia o sol, e eu era u m a árvore verd e, que est á de pé e cresce
n a so lid ã o 6 7 ./

66 Cf. a descrição de pleroma, em Jung, p. 449ss. adiante.


67 O esboço e o esboço corrigido continuam: "Mas eu vi a solidão e sua beleza, eu compreendi a vida do não vivido
e o sentido do sem-sentido. Compreendi também este lado de minha multiplicidade. E assim cresceu
minha árvore na solidão e no sossego; comeu a terra com raízes profundas e bebeu o sol com galhos altos.
234 LI BE R SECU N D U S 29/ 30

A m ort e 68
Cap. vi.
[ I H 29 ] N a n oit e segu in t e 6 9 , fu i para a t er r a do Nor t e e en con t rei-m e sob céu
cin zen t o, n u m ar n ebuloso e ú m id o-frio. Dir igi-m e para as plan ícies, onde as
águas em m an so deslizar, lu zin d o em grandes espelhos, aproxim am -se do m ar,
onde m ais e m ais acaba t oda pressa do fluir e onde t oda força e todo esforço
se acasalam com a im en sid ão ilim it ad a do oceano. As árvores rareiam , grandes
ch arn ecas acom pan h am as águas calm as e t urvas, sem fim e solit ário é o h o r i-
zon t e, rodeado por n uven s cin zen t as. Devagar, com a respiração suspensa, com
a gran de e m edrosa expect at iva daquele que espum ej a furiosam en t e e se espar-
ram a pelo in fin it o, sigo m in h a irm ã, a água. Silen cioso e quase im percept ível é
seu fluir e, assim m esm o, aproxim am o-n os sem pre m ais do feliz e m ais elevado
abraço, para en t rar n o seio da origem , n a ext en são sem lim it es e n a p rofu n -
deza in com en su rável. Lá se erguem colin as baixas e am arelas. U m lago grande
e m ort o esten de-se a seu sopé. Cam in h am os silen ciosam en t e ao seu redor, e as
colin as se ab riram para u m h orizon t e crepuscular, in d izivelm en t e lon gín qu o,
onde céu e m ar se fu n d em n u m a in fin it u d e.
Lá em cim a, sobre a últim a dun a está alguém, trazia u m m an to preto e preguea-
do, está de pé, im óvel, e olha para longe. Ap roxim o-m e dele; é magro e pálido e u m a
seriedade absoluta estampa-se em seus traços fisionóm icos. Dirijo-lh e a palavra:
"Posso ficar u m pouco con tigo, Escu ro? Eu te recon h eci de longe. Só u m fica
parado com o t u , t ão só e n o ú lt im o can t o do m u n d o".
Respon d eu : "Est ran h o, podes ficar à von t ade com igo se n ão ficares com
frio. Vê s que sou frio e n u n ca u m coração bat eu em m im ".
"E u sei que és gelo e fim , t u és a quietude fria da pedra, t u és a neve m ais
alt a das m on t an h as e a geada m ais in t en sa n o espaço cósm ico vazio. Ist o preciso
sen t ir e é a razão por que devo ficar pert o de t i".
"O que te t raz a m im , m at éria viva? O s vivos n u n ca são h ósped es aqui. E
verdade que vêm todos passando t rist es em grandes grupos, todos que se des-

O hóspede solitário [estranho] entrou em minha alma. Mas minha vida verdejante me inundou. [Assim
caminhei, seguindo a natureza da água]. A solidão cresceu c estendeu se cm torno de m im . Eu não
conhecia a infinitude da solidão, c cu caminhava, caminhava c olhava. Q u eria sondar as profundezas da
solidão c fui tão longe ate que se extinguiu cada um dos últimos ecos da vida" (p. 235).
68 O esboço m anuscrito tem: Quinta aventura: a m orte (p. 557).
69 2 de janeiro de 1914.
A M O RTE 235

p ed iram / lá em cim a d a lu z do d ia, para n u n ca m ais volt ar. Mas pessoas vivas
n ão vêm n u n ca. O que procuras aqu i?"
"Me u cam in h o est ran h o e in esperado t rou xe-m e até aqui, quan do eu se-
guia, ch eio de esperan ça, o cam in h o das t orren t es da vid a. E assim te en con t rei.
Aq u i estás bem e n o t eu devido lugar?"
"Sim , d aqu i se part e para o in d ist in gu ível, onde n in gu ém é igual ou d iferen -
te do out ro, mas on de todos são u m . Vê s o que vem vin d o lá?"
"Vejo algo com o u m a parede escura de nuvens que vem nadando n a t orren t e".
"O lh a m elh or, o que recon h eces?"
"Vejo tropas incalculáveis e bem cerradas de hom ens, velhos, mulheres e crian -
ças. No meio, vejo cavalos, gado e rebanho m iúdo, u m a n uvem de insetos voa em
volt a da tropa - u m a floresta vem boiando — flores murchas sem conta — u m ve-
rão todo, m ort o. Est ão perto. O olh ar de todos é fixo e frio — seus pés n ão se
m ovem - n en h u m som sai de suas fileiras cerradas. Rígid os, seguram -se pe-
las m ãos e braços, olh am para fren t e e n ão prest am at en ção em n ós - passam
fluindo n a m on st ru osa t orren t e. Escu ro, esta visão é h orrível!"
"T u quiseste ficar com igo, sossega. Prest a at en ção agora!"
Eu vejo: "As p rim eiras filas ch egaram lá onde as ondas d a reben t ação se m is-
t u ram violen t am en t e com a água da t orren t e. E parece com o se u m a on d a de
ar, bat en do con t ra o m ar, estivesse baten do con t ra a m u lt id ão dos m ort os. Be m
alto red em oin h am , esvoaçan d o em pretos farrapos e se desfazendo em n uven s
turvas de n évoa. U m a on d a após ou t ra se ap roxim a e sem pre novas m u lt id ões
som em n o ar negro. Escu ro, d ize-m e, ist o é o fim ?"
"O b ser va!"
O m ar escuro reben t a com fragor - u m a pedra averm elh ada aparece den t ro
disso - é com o sangue - u m m ar de sangue espum eja aos meus pés - a profu n -
deza do m ar fica verm elh a — sin t o-m e estranho — estou dependurado n o ar pelos
pés? Ist o é o m ar ou o céu? U m a bola de sangue e de fogo se m ist u ra - u m a lu z
verm elh a est oura de seu in vólu cro fumegante - u m n ovo sol avan ça para a m ais
ext rem a profu n deza - ele desaparece sob m eus p és 7 °.
O l h o ao m e u red or. Es t o u só. Fic o u n oit e. O que d isse Am ó n io ? A n oit e
é o t em p o d o silên cio.

70 Cf. a visão no Liber Prímus, cap. 5, "Descida ao inferno no futuro", p. 133.


236 L I B E R S E C U N D U S 30/31

[2] [ I H 30] O lh e i ao m eu red or e percebi que a solidão se e st e n d e r a ao i n -


com en su rável, e m e pen et rou de u m frio h orrip ilan t e. Ain d a ard ia sol em m im ,
mas eu sen t i que en t rava n a grande som bra. Sigo a m u lt id ão que, devagar e i m -
pert u rbável, en con t ra o cam in h o da profun deza, da profun deza do vin d ou ro.
Assim saí daquela n oit e (era a segunda n oit e de 1914) e fiqu ei ch eio de expec-
t at iva m edrosa. Saí para abraçar o vin d ou ro. O cam in h o era longo, e assustador
era o vin d ou ro. Er a a m ort e h orren d a, u m m ar de sangue, que eu vi. Disso
fez-se u m n ovo sol, pavoroso e u m a in versão do que ch am ávam os de d ia. Agar -
ram os a escuridão, e seu sol h á de b rilh ar sobre n ós, san gren to e arden t e com o
u m grande ocaso.
Q u an d o en t en d i m in h a escuridão, veio sobre m im a n oit e m aravilh osa, e
m eu son h o m ergu lh ou -m e nas profun dezas dos m ilén ios, e d aí ergueu-se m i -
n h a fén ix.

Mas o que acon teceu com m eu dia? Ar ch ot es foram acesos, cólera san gren t a
e brigas se in flam aram . Assim que a escuridão t om ou con t a do m un do, levan -
tou-se a guerra cru el, e a escu ridão d est ru iu a lu z do m un do, pois ela era i n -
con cebível e n ão prest ava m ais. Port an t o, t ín h am os de exp erim en t ar o in fern o.
Eu vi com o as virt u d es se t ran sform aram nessa época em vício, com o t u a
d oçu ra se t ran sform ou em d u reza, t u a bon dade em ru d eza, t eu am or em ód io e
tua razão em lou cu ra. Por que querias en t en d er a escuridão? Mas t u precisavas
en t en d ê-la, sen ão ela te agarraria. Feliz daquele que se an t ecipa a este agarra-
m en to.
Pensaste alguma vez n o m al em ti? O h , falaste disso, t u o m en cion aste e con -
sentiste sorrin do nele com o u m defeito h um an o em geral ou com o u m m al-en -
ten dido que aparece frequentes vezes. Mas sabias / o que é o m al e que ele está
m u it o pert o, atrás de tuas virt u d es, de t al m odo que ele é in clu sive t u a p róp ria
virt u d e, com o seu con t eú d o in evit ável 71. T u en carceraste satan ás d u ran t e u m
m ilén io n o abism o e, passado este m ilén io, rist e dele, porque se t orn ara u m
con t o de fadas in fa n t il 72 . Mas quan do o t errível Gr an d e levan t a sua cabeça,

71 Em 1940, Jung escreveu: "O mal é relativo; em parte é evitável e em parte é uma fatalidade. Isto se aplica
também à virtude, e muitas vezes não sabemos o que é pior" ("Interpretação psicológica do dogma da
Trindade". O C , 11/2, § 291.
72 No esboço corrigido esta frase é substituída por: "O mal é a metade do mundo, uma das conchas da ostra"
(p. 242).
A M O RTE 237

o m u n d o estrem ece. O frio ext erior pen et ra em t i. Co m pavor vês que estás
indefeso e que a m u lt id ão de tuas virt u d es cai im pot en t e de joelh os. O m al se
agarra com a violên cia de d em ón ios, e tuas virt u d es t ran svazam para ele. Nest a
bat alh a estás t ot alm en t e só, pois teus deuses ficaram surdos. N ã o sabes quais
são os piores d em ón ios, se teus vícios ou tuas virt u d es. Mas de u m a coisa ficarás
cien te: que virt u d e e vício são irm ãos.
73
N ó s precisam os do frio da m ort e para que vejam os claram en t e. A vid a
quer viver e m orrer, com eçar e t er m in a r 74 . T u n ão és forçado a viver et ern a-
m en t e, mas t am bém podes m orrer, pois para ambas as coisas h á u m a von t ade
em t i.
Vid a e m ort e devem m an t er em t u a exist ên cia o eq u ilíb r io 75 . As pessoas de
h oje precisam de u m gran de ped aço de m ort e, pois coisa in corret a dem ais vive
n elas, e coisas correias dem ais m or r em nelas. Co r r et o é o que m an t ém o eq u i-
líbrio, in corret o é o que d est rói o equilíbrio. Mas at in gido o equ ilíbrio, en t ão
é in corret o o que m an t ém o equ ilíbrio e corret o o que o d est rói. Equ ilíbrio é
vid a e m ort e ao m esm o tem po. D a perfeição d a vid a faz part e o equ ilíbrio com
a m ort e. Q u an d o aceito a m ort e, reverdece m in h a árvore, pois a m ort e in t en si-
fica a vid a. Se eu m e con cen t ro n a m ort e global, m eus bot ões se abrem . Q u an t o
n ossa vid a precisa d a m ort e!
A alegria nas m en ores coisas só vem a t i quan do t iveres aceito a m ort e. Mas
se olh ares vorazm en t e para aquilo que ain d a poderias viver, t eu en t ret en im en -
to n ão é gran de o suficien t e para t i, e as coisas m en ores que ain d a te cercam
n ão são m ais alegria para t i. Por isso en caro a m ort e com sim pat ia, pois ela m e
en sin a a viver.
Q u an d o aceitas a m ort e em t i, ist o é com o u m a n oit e de am ad u recim en t o
e u m pressen t im en t o m edroso, mas é u m a n oit e de am ad u recim en t o n u m a vi -

73 O esboço continua: "Nesta batalha sangrenta, a morte se dirigiu a ti, assim como hoje o grande matar e morrer
enche o mundo. O frio da morte te penetra. Quando na solidão eu estava enrijecido até a morte, vi clara-
mente e vi o vindouro tão claramente como as estrelas e as montanhas distantes na noite gelada" (p. 260).
74 Em Transformações e símbolos da libido (1912) Jung afirmou que a libido não era apenas um impulso vital
schopenhaueriano, mas que continha o esforço contrário em direção à morte nela mesma ( O C, B, § 69 6).
75 O esboço continua: "Deixar viver o correto e deixar morrer o incorreto, esta é a arte de viver" (p. 261).
Em 1934, Jung escreveu: "A vida é um processo energético como qualquer outro, mas, em princípio, todo
processo energético é irreversível e, por isso, orientado univocamente para um objetivo. E o objetivo é o
estado de repouso... Do meio da vida em diante, só aquele que se dispõe a morrer conserva a vitalidade,
porque na hora secreta do meio-dia da vida inverte-se a parábola e nasce a morte... Não querer viver é
sinónimo de não querer morrer. A ascensão e o declínio formam uma só curva" ("A alma e a morte". O C ,
8, § 798 e 8 0 0 ) . Cf. meu "'Th e Boundless Expanse': Jungs Reflections on Life and Death". Quadrant:
Journal of the C G . Jung Foundation for Analytical Psychology, 38, 2008, p. 9-32.
238 LI BE R SECU N D U S 31/32

n h a, carregada de uvas d oces 76 . E m breve te alegrarás com t u a riqu eza. A m ort e


am adurece. Precisam os da m ort e para poder colh er frut os. Sem a m ort e, a vid a
n ão t em sen tido, pois o prolon gam en t o an u la de n ovo a si m esm o e nega seu
p róp rio sen tido. Para ser e gozar de t eu ser, precisas d a m ort e, e a lim it ação faz
com que possas realizar t eu ser.

[ I H 31] Q u an d o vejo a desolação e a t olice da t er r a e por isso en t ro de


cabeça cobert a n a m ort e, tudo o que vejo vir a gelo, mas n o m u n d o da som bra
se levan t a o outro, se levan t a o sol ver m elh o 77 . Ele se ergue secreta e in espera-
dam en t e e, com o fan tasm a satân ico, gira m eu m un do. Eu pressin t o sangue e
assassinato. Som en t e sangue e assassinato ain d a são sublim es e t êm sua beleza
própria. Pode-se aceit ar a beleza de u m ato san gren to de violên cia.
Mas é o in aceit ável, o t rem en d am en t e adverso, aquilo que eu r ejeit ei desde
sem pre, que se ergue d en t ro de m im . Pois quan do t er m in a a m iserabilidade e
pobreza desta vid a, com eça u m a ou t ra vid a n aqu ilo que é o oposto a m im . Ist o
é t ão oposto que n em faço id eia. Pois n ão est á oposto segundo as leis d a razão,
mas t ot alm en t e e de acordo com todo o seu ser. Sim , n ão é apenas oposto, mas
repugn an te, in visível e h orrivelm en t e repugn an te, algo que m e t ir a o fôlego,
que arran ca a força dos m úsculos, con fun de m in h a m en t e, que m e fere ven e-
n osam en t e e por trás n o calcan h ar e sem pre acert a ju st am en t e lá onde eu n ão
im agin ava que tivesse u m lugar vu ln er ável 78 .
N ã o vem de en con t ro a m im com o u m in im igo fort e, valen t e e perigoso,
mas eu é que m or r o n u m m on t e de esterco, en quan t o galinhas m ansas cacare-
jam ao m eu redor e, adm iradas e sem n ada en ten der, bot am ovos. U m cach orro
passa e levan t a sua p ern a n a m in h a d ireção e con t in u a t rot an d o calm am en t e
seu cam in h o. Am ald içoo sete vezes a h ora de m eu n ascim en t o, e se eu n ão p re-
ferir su icid ar-m e im ed iat am en t e, preparo-m e para viver m in h a segunda h ora
de n ascim en t o. O s antigos d iziam : "Interfaeces et urinam nascímur79. Du r an t e n oit es
perdidas cercaram -m e os h orrores do n ascim en t o. N a t erceira n oit e fez-se o u -
vir u m a risad a da m at a virgem para a qu al n ada é sim ples dem ais. En t ão a vid a
31/32 com eçou n ovam en t e a se m exer. /

76 Cf. acima, nota de rodapé 20, p. 231.


77 Um a referência à visão supra.
78 Em Transformações e símbolos da libido (1912), Jung comentou o motivo do calcanhar ferido ( O C, B, § 461).
79 "Nascemos entre fezes e urina", um dito atribuído a Santo Agostinho, entre outros.
O S REST O S D E T E M P LO S A N T I G O S 239

O s restos de templos
an tigos 80
Ca p . v i i .

[ I H 32] 8 l , 8 2 E apareceu ou t ra vez u m a n ova aven t ura: dian t e de m im est en -


dem -se im en sas pradarias - u m tapete de flores - colin as suaves - b em ao
longe - bosques de verde vivo. En con t r o-m e com duas pessoas estran h as -
com pan h eiros bem casuais de cam in h ada: u m velh o m onge e u m a pessoa alt a,
espigada e m agra, com an dar in fan t il e com u m a veste verm elh a desbotada.
Q u an d o ch egaram m ais perto, recon h eci n o com prid o o cavaleiro verm elh o.
Co m o m u d ou ! Est á m ais velh o, seu cabelo verm elh o ficou grisalho, sua veste
de u m verm elh o de fogo estava gasta, su rrad a e last im ável. E o outro? Te m u m a
barriga respeit ável e parece que n ão teve dias ru in s. Mas seu rosto m e pareceu
con h ecido: ele é, por todos os deuses, Am ó n io !
Q u e t ran sform ações! E don de vêm esses h om en s diferen t íssim os? Ap r o xi-
m o-m e deles e os saúdo. Am b os m e olh am assustados e fazem o sin al da cru z.
Percebo que o h orror deles é causado por m in h a aparên cia: est ou todo cobert o
de folhas verdes que b rot am de m eu corpo. Eu os saúdo, sorrin do, por u m a
segunda vez.

Am ó n io exclam a h orrorizad o: "Apage Sat an ás"8 3.


O Verm elh o: "Mald it a ralé pagã da floresta!"
Eu : "Mas, prezados am igos, o que pensais? Eu sou o est ran h o h ip erbóreo,
que te visit ou n o deserto, Am ó n io 8 4 . E eu sou o guarda da t orre que t u , Ve r m e -
lh o, visit ast e u m a vez".
Am ó n io : "Eu te con h eço, chefe dos d em ón ios. Con t igo com eçou m in h a de-
gradação".

80 Em vez disso, o esboço manuscrito tem: "Sexta aventura" (p. 586). O esboço corrigido tem: "6. Ideais adulterados"
(P- 247)-
81 A forma de mosaico se parece com os mosaicos de Ravena, que Jung visitou em 1913 e 1914 e que lhe
causaram profunda impressão.
82 5 de janeiro de 1914.
83 "Retira-te, satanás" - expressão comum na Idade Média.
84 Na mitologia grega, os hiperbóreos eram um povo que vivia num país de luz solar, além do vento norte,
adorando Apolo. Nietzsche se refere várias vezes aos espíritos livres como hiperbóreos em O anticristo, § 1.
Frankfurt no Meno: Insel Verlag, 1986.
240 LI BE R SECU N D U S 32/33

O Verm elh o olh ou para ele repreen sivam en t e e lh e d eu u m cutucão. O


m onge calou-se con stran gido. O Verm elh o d irigiu -se orgulh osam en te a m im .
V: Ap esar de t u a seriedade h ipócrit a, t u m e deste já n aquela vez u m a i m -
pressão duvidosa de falt a de caráter. Tu a m ald it a pose crist ã!"
Nest e m om en t o, Am ó n io d eu -lh e fort e cutucão, e o Verm elh o se calou
con t rariado. E assim ficaram os dois dian t e de m im con stran gidos e ridícu los, e
t am bém dignos de com paixão.
Eu : "H o m e m de Deu s, de on de ven s? Q u e dest in o in au d it o te t raz até aqui
e, ain d a m ais, n a com pan h ia do Verm elh o?"
A: "N ã o gosto de falar contigo. Mas parece ser u m d esígn io de Deu s, do
qual n ão se pode fugir. E bom que saibas que t u , espírit o m align o, operaste algo
32/33 h orrível em m im . T u m e seduziste com / t u a am ald içoad a curiosidade a fim de
esten der avidam en t e m in h a m ão para os m ist érios d ivin os, pois m e t orn ast e
con scien t e n aquela vez de que eu n ão sabia propriam en t e n ada sobre eles. Tu a
observação de que eu precisava d a proxim id ad e das pessoas para chegar aos
m ais altos m ist érios en t orpeceu -m e com o ven en o in fern al. Logo em seguida,
con voqu ei u m a reu n ião dos irm ãos n o vale e disse-lh es que u m m en sageiro de
Deu s m e aparecera — tão m iseravelm en t e m e deslum braste — e m e acon selh ara
a fun dar u m m ost eiro com os irm ãos.
Q u an d o o Irm ão Filet o levan t ou u m a objeção, refu t ei-a m en cion an d o a
passagem d a Sagrada Escr it u r a on de se d iz que n ão é b om para o h om em viver
só 8 5 . E assim fun dam os o m ost eiro, pert o do Nilo, don de p od íam os ver os n a -
vios passando.
Cu lt ivam os cam pos fért eis, e t an t o h avia a fazer, que os estudos sagrados
caíram em esquecim en to. Torn am o-n os prósperos, e u m d ia fu i tom ado de
im en sa saudade de rever Alexan d r ia. Met i-m e n a cabeça que lá qu eria visit ar
o bispo. Mas p rim eiram en t e a vid a n o n avio, depois o grande m ovim en t o n as
ruas de Ale xa n d r ia m e in eb riaram de t al form a que m e p erd i com plet am en t e.
Co m o n o sonho, em barqu ei n u m dos grandes n avios que iam para a Itália.
Fu i tom ado de ân sia in con t rolável de ver o m u n d o; bebia vin h o e via que as

85 Um a referência a Gn 2,18: "E o Senhor disse: Não é bom que o homem esteja só; vou fazer-lhe uma
auxiliar que lhe corresponda". H á uma referência a um certo Fileto na Bíblia, 2Tm 2,16-19: "Evit a as
conversas fúteis e mundanas. O s que com elas se ocupam, mais e mais avançam para a impiedade, e
sua palavra alastra-se como gangrena. Him en eu e Fileto são desse grupo. Eles se desviaram da verdade,
dizendo que a ressurreição já se realizou e, assim, subvertem a fé de alguns".
O S REST O S D E T E M P LO S A N T I G O S 241

m ulh eres eram lin d as. E u m e d eliciava com os prazeres e m e an im alizava t o-


t alm en t e. Q u an d o desem barquei em Náp oles, lá estava o Verm elh o e soube
en t ão que h avia caído nas m ãos do m align o".
V: "Cala-t e, velh o m aluco. N ã o fosse eu , t erias te t ran sform ado t ot alm en t e
em porco. Q u an d o m e avistaste, t u fin alm en t e te con t rolast e, abandonaste a
bebida e as m ulh eres e volt ast e ao m ost eiro.
Agor a escuta m in h a h ist ória, sát iro m ald it o: eu t am bém caí n a t u a ar m a-
d ilh a, tuas art im an h as pagãs m e sed u ziram . Dep ois daquela n ossa con versa,
n a qu al m e apanhaste n u m a arm ad ilh a de raposas com t u a observação sobre
a dan ça, fiqu ei sério, t ão sério que en t rei para o m ost eiro, rezei, jeju ei e m e
con vert i.
Em m eu deslum bram en t o, qu eria reform ar o cult o d ivin o, e in t rod u zi, com
a aprovação episcopal, a dan ça n o rit u al.
To r n ei-m e Abad e e, com o t al, era o ú n ico a t er o d ireit o de dan çar dian t e
do altar, assim com o D a vi dian t e da Ar c a da Alia n ça 8 6 . Mas aos poucos t am bém
os irm ãos com eçaram a dan çar, in clu sive a piedosa com un idade, e fin alm en t e
d an çou a cidade in t eira.
Fo i espantoso. Fu gi para a solidão e d an cei o d ia todo até a exaustão, mas de
m an h ã recom eçou a d an ça in fern al.
Procu rei fugir de m im m esm o, an d ei erran t e pelas n oit es afora. D e d ia eu
m e ocult ava e dan çava sozin h o nas m atas e m on t es desertos. Assim cheguei aos
poucos à Itália. Lá em baixo, n o Su l, passei m ais despercebido do que n o Nor t e,
e pude m ist u rar-m e ao povo. Só em Náp oles reen con t rei cert a orien t ação e foi
t am bém lá que en con t rei este esfarrapado h om em de Deu s. Seu aspecto m e
fort aleceu. Nele pude rest abelecer-m e. O u vist e com o t am bém ele recobrou o
ân im o com igo e p ôd e chegar de n ovo ao cam in h o cert o".
A: "Preciso confessar que n ão m e en t en d i t ão m al com o Verm elh o, ele é
u m a espécie de d em ón io aten uado".
V: "Tam b ém eu devo d izer que m eu m onge é de u m a espécie pouco fan át i-
ca, apesar de eu t er adqu irido u m a grande m á von t ade con t ra t oda essa religião
crist ã desde m in h as vivên cias n o m ost eiro".

86 Em i Cr 15, Davi dança diante da Arca da Aliança.


242 L I B E R S E C U N D U S 33/34

Eu : "Prezados am igos, alegro-m e de coração por vê-los ju n t os e satisfeitos".


Am b os: "N ã o estam os satisfeitos, zom bador e satan ás; d eixa o cam in h o l i -
vre, ladrão, pagão!"
Eu : "En t ão por que an dais ju n t os pelo m u n d o se n ão estais satisfeitos e se
n ão sois am igos?"
A: "O que fazer? Tam bém o d em ón io é n ecessário, caso con t rário n ão se
t em n ada para in cu t ir t em or às pessoas".
V: " E absolut am en te n ecessário que eu com pactue com o clero, sen ão perco
m in h a freguesia".
Eu : "Q u e r d izer que foi a necessidade da vid a que vos reu n iu ! Id e em paz e
su port ai-vos u m ao ou t ro".
Am b os: "Ist o n ão poderem os jam ais".
Eu : "O h , eu vejo, ist o depen de do sist em a. Vó s quereis p r im eir o m orrer de
todo? Agor a d eixai o cam in h o livre para m im , velh os fan tasm as!"

[2] [ I H 33] Dep ois que vi a m ort e e todo o t errível aparato que a cercava e
depois que eu m esm o m e t or n ei n oit e e gelo, levan t ou-se em m im u m a vid a e
m ovim en t o desagradáveis. Co m eço u m in h a sede pelas águas ruidosas do saber
m ais p rofu n d o 8 7 ; com o t in ir dos copos de vin h o, ou via ao longe grit aria de bê*
33/34 bados, risadas de m u lh eres, baru lh o de ru a. Mú sica de dan ça, / bat id a de pés e
grit os de euforia brot avam de todas as gretas e, em vez do ven t o su l com odor
de rosas, cercava-m e o ch eiro do an im al h um an o. Tagarelice su ja de lu xú ria
de prost it ut as resvalava em risadin h as ao longo das paredes, vapor de vin h o e
fum aça de cozin h a, vozerio est ú pid o d a m u lt id ão vin h am em fum açada. Mãos
quen tes, pegajosas e m acias t en t avam agarrar-m e, cobertas m acias de cam a de
en ferm os m e en rolaram . Fu i gerado para a vid a a p ar t ir de baixo, e cresci com o
crescem os h eróis, t an t o em h oras com o em anos. E, quan do estava crescido,
en con t rei-m e n o m eio da t er r a e vi que era prim avera.

[ I H 34] Mas eu n ão era m ais a pessoa que h avia sido, e sim u m est ran h o
cresceu através de m im . Est e ser era u m en te alegre da floresta, u m m on st ro
de folhas verdes, u m sát iro e travesso, que m ora sozin h o n a floresta e que é u m

87 O esboço corrigido tem "da sabedoria", em vez de "do saber mais profundo" (p. 251).
O S REST O S D E T E M P LO S A N T I G O S 243

ser arbóreo, que n ada m ais am a do que o verd ejan t e e o que cresce, que n ão vai
à p rocu ra n em recebe as pessoas, ch eio de caprich os e acasos, obedecen do a
leis in visíveis, esverdean do e m u rch an d o com as árvores, n em belo e n em feio,
n em b om e n em m au , som en te vivo, velh íssim o e ain d a bem jovem , n u e assim
m esm o vest ido n at u ralm en t e. N ã o é gente, mas n at u reza, assustador, ridículo,
poderoso, in fan t il, fraco, enganador e enganado, ch eio de in con st ân cia e su -
perficialidade e, n o en t an t o, at in gin do a profun didade até o cern e do m un do.
Eu h avia sugado para d en t ro de m im a vid a de m eus dois amigos; sobre as
ruín as do t em plo cresceu u m a árvore verde. Eles n ão se opuseram à vid a, m as,
seduzidos pela vid a, t orn aram -se sua p róp ria farsa. Eles caíram n o esterco, por
isso ch am avam o ser vivo de d em ón io e t raidor. Pelo fato de os dois acred i-
t arem à sua m an eira em si e em sua própria bondade, caíram fin alm en t e n o
esterco, com o lugar de en t erro n at u ral e ú lt im o de todos os ideais sobrevividos.
O m ais belo e o m elh or, com o o m ais feio e o p ior t er m in am a seu t em po n o l u -
gar m ais ridícu lo do m un do, rodeados por m ascarados, con duzidos por loucos,
seguem h orrorizad os para a cova d a pod rid ão.

Depois do am aldiçoar vem o riso, para que a alm a seja liberta dos m ortos.
O s ideais são desejados e pensados segundo sua natureza e n a m edida em que
são, mas tam bém só n a m edida em que são. Con t udo, não se pode negar seu ser
atuante. Q u e m acha que vive realm ente seus ideais, ou que possa vivê-los, t em m a-
n ia de grandeza e se com porta como louco, ao representar para si u m ideal elevado:
o herói, porém , está m orto. O s ideais são m ortais, portanto é preciso preparar-se
para seu fim : pode custar-lhe talvez o pescoço. Mas não vês que foste t u que deste
sentido, valor e força atuante a t eu ideal? Q u an d o te tornaste vít im a do ideal, então
o ideal enlouquece, brin ca carnaval contigo e conduz n a Q u art a-feira de Cin zas
ao inferno. O ideal é u m in strum en to que se pode descartar a qualquer momento,
u m a tocha em cam inhos escuros. Q u e m anda por aí de d ia com u m a tocha é louco.
Q u an t o desceram meus ideais, com que frescor reverdejou m in h a árvore!

88
Q u a n d o eu reverd eci, estavam aí os restos t rist es de t em plos e jard in s de
rosas an tigos, e eu recon h eci com h orror seu paren tesco ín t im o. Ao que m e

88 O esboço e o esboço corrigido têm: "Eu era o holocausto de meus santuários e me tornara belezas, por isso eles
me levaram para a morte no abatimento [por isso me sobreveio a m orte]" (p. 254).
244 LI BE R SECU N D U S 34/35

parece, eles se u n ir am n u m a alian ça desavergonhada. Mas en t en d i que esta


alian ça já exist iu em tem pos idos. U m a vez que eu ain d a afirm ava de m aus
san t uários de que eram de pu reza crist alin a, u m a vez que eu com parava m eus
am igos com o perfum e das rosas da Pér sia 8 9 , os dois con clu íram u m pacto de
silen ciosa reciprocidade. Ap aren t em en t e fugiam u m do outro, mas secret a-
m en t e t rabalh avam de m ãos dadas. O silên cio solit ário do t em plo at raiu -m e
para longe das pessoas, para m ist érios suprat erren os, nos quais m e en volvi até
o t édio. En qu an t o eu lu t ava com Deu s, o d em ón io ficou pron t o para que eu o
recebesse e m e arrast ou o quan t o possível para seu lado. Tam bém lá n ão en con -
t rei lim it es a n ão ser t éd io e n ojo. E u n ão vivia, mas era im pelid o, u m escravo
de m eus id eais 9 0 .
Agor a est ão elas aí, as ruín as, d iscu t em en t re si e n ão con seguiram recon ci-
liar-se n em m esm o em sua m iséria com u m . Eu m e h avia t orn ado u m com igo
m esm o com o ser n at u ral, mas eu era u m sá t ir o 9 1, que assustava cam in h an t es
solit ários e que evit ava os lugares das pessoas. Mas eu reverd ecia e florescia por
m im m esm o. Ain d a n ão era n ovam en t e alguém com seu con flit o en t re prazer
m u n d an o e prazer do espírit o. Eu n ão vivia esses prazeres, mas vivia a m im
m esm o, e era u m a árvore verde bem feliz n u m a dist an t e floresta p r im aver il.
Assim apren d i a viver sem m u n d o e sem espírit o, e m e ad m irava de com o se
pode viver bem dessa m an eira.
Mas o ser h u m an o, a h u m an idade? Al i est avam as duas pon tes aban d on a-
das, que d everiam levar para a h u m an id ad e: u m a levava de cim a para baixo, e
as pessoas escorregavam n ela p ara baixo; ist o as d ivert ia. / A ou t ra levava de
baixo p ara cim a, e as pessoas su biam por ela gem en do. Ist o as can sava. N ó s v i -
vem os nossos sem elh an t es n o can saço e n a alegria. Se eu m esm o n ão vivo, mas
só m e arrast o p ara cim a, ist o p rop orcion a ao ou t ro d iversão im erecid a. Se eu
apenas m e d ivirt o, ist o causa ao ou t ro can saço im erecid o. Se eu só vivo, est ou
afastado das pessoas. Elas n ão m e veem m ais, e, se m e vir em , ficam adm iradas

89 Na Pérsia, as pétalas esmagadas de rosas eram destiladas para se fazer óleo de rosas, do que se faziam
perfumes.
90 Em 1926, Jung escreveu: "A passagem da manhã para a tarde é uma inversão dos antigos valores. E imperiosa
a necessidade de se reconhecer o valor oposto aos antigos ideais, de perceber o engano das convicções
defendidas até então de reconhecer e sentir a inverdade das verdades aceitas até o momento, de
reconhecer e sentir toda a resistência e mesmo a inimizade do que até então julgávamos ser amor" ("O
inconsciente na vida psíquica normal e patológica". O C , 7, § 11$).
91 O esboço corrigido tem: "um ente verde" (p. 255).
O S REST O S D E T E M P LO S A N T I G O S 245

e assustadas. Mas eu m esm o, sim plesm en t e viven d o, reverdecen do, florindo,


m u rch an d o, est ou com o árvore sem pre n o m esm o lugar e d eixo im p assivel-
m en t e que os sofrim en t os e as alegrias das pessoas soprem ru id osam en t e por
cim a de m im . E m esm o assim sou u m a pessoa que n ão pode alien ar-se d a
d iscórd ia do coração h u m an o.
Mas m eus ideais podem ser t am bém m eus cach orros, cujos lat idos e brigas
n ão m e p ert u rbam . En t ão sou para as pessoas ao m en os u m cach orro bon zin h o
ou m au . Mas o que d everia ser n ão é obtido, ist o é, que eu viva e seja u m a pes-
soa. Parece quase im possível viver com o pessoa. En q u an t o n ão estiveres con s-
cien t e de t eu si-m esm o, podes viver; mas quan do te t orn ares con scien t e de t eu
si-m esm o, vais cain do de u m buraco em outro. Co m todos os t e u s 9 2 ren asci-
m en t os poderias d a r -t e 9 3 m al em ú lt im a an álise. Por isso t am bém Bu d a d esist iu
fin alm en t e do ren ascim en t o, pois estava farto de passar por todas as form as de
pessoas e a n im a is 9 4 . Ap ó s todos os ren ascim en t os perm an eces sendo o leão de
quatro patas sobre a t erra, o %ajxaÀecov [cam aleão], u m a criat u ra, u m calei-
doscópio, u m sáurio rast ejan t e e brilh an t e, mas n en h u m leão, cu ja n at u reza seja
an áloga à do sol, que t em sua força por si m esm o e que n ão en t ra de rastos nas
cores pro te toras do m eio am bien t e e que se defende pelo disfarce. Eu con h eci
o cam aleão e n ão quero m ais an dar de rastos sobre a t erra, m u d ar de cor e ser
ren ascido, mas quero ser por força própria, com o o sol que dá a lu z e n ão a
suga. Ist o é p róp rio d a t erra. Lem b r o-m e de m in h a n at u reza solar e gost aria de
apressar-m e n a d ireção de m eu com eço. Mas as r u ín as 9 5 est ão n o m eu cam in h o.
Elas d izem : "E m relação às pessoas t u deves ser ist o ou aqu ilo". Min h a pele de
cam aleão se eriça. As ruín as in sist em com igo e qu erem colorir-m e. Mas já n ão
deve ser. N e m o bem e n em o m al devem ser m eus sen hores. Em p u r r o-as para o
lado, restos ridículos de vid a, e con t in u o m eu cam in h o que m e leva ao O r ien t e.

92 O esboço corrigido tem "meus" (p. 257).


93 O esboço corrigido tem "me" (p. 257).
94 O esboço corrigido tem: "como um camaleão" (p. 258). Ocorre aqui uma passagem no esboço do qual o que
se segue é uma paráfrase: é nossa natureza de camaleão que nos impele através dessas transformações.
Enquanto formos camaleões, necessitamos de uma incursão anual no banho do renascimento. Por isso,
Jung olhava com horror para o aspecto ultrapassado de seus ideais, pois amava seu verde e desconfiava
de sua pele de camaleão, que mudava de cor segundo o meio ambiente. O camaleão faz isso astutamente.
H á quem chame esta mudança de progresso através do renascimento. Assim t u experimentas 777
renascimentos. O Buda não precisou de tanto tempo para ver que mesmo os renascimentos eram em vão
(p. 275-276). Havia uma crença de que a alma tinha de passar por 777 reencarnações ( W O O D S, E. The
NewTheosophy. Wheaton, 111.: Th e Theosophical Press, 1929, p. 41).
95 Em vez disso, o esboço tem: "meus restos ideais de vida" (p. 277).
246 LI BE R SECU N D U S 35/37

At r á s de m i m e st ã o as fo r ça s q u e r e la n t e s q u e e s t i ve r a m t a n t o t e m p o e n t r e m i m
e m im m esm o.
Agor a estou bem sozin h o. Já n ão posso d izer-t e: "Escu t a!", ou: "t u deves",
ou: "t u poderias", mas agora só falo ain d a com igo. Agora n in gu ém pode fazer
por m im a m en or coisa que seja. N ã o t en h o m ais obrigação contigo, e t u n ão
tens obrigação com igo, pois eu d esapareço e t u desapareces para m im . N ã o
escuto m ais pedido n en h u m e n ão t en h o pedido a te fazer. N ã o brigo n em m e
recon cilio m ais contigo, mas coloco o silên cio en t re m im e t i.
Lon ge perde-se t eu cham ado, e o rasto de m eus passos n ão podes en con t rar.
Pois com o ven t o oeste, que vem da superfície do oceano, viajo sobre a t er r a
verde, passo pelas florestas e vou dobran do a relva n ova. Falo com as árvores e
os an im ais da floresta, e as pedras m e in d icam o cam in h o. Q u an d o sin t o sede, e
a fon te n ão vem a m im , eu m esm o vou à fonte. Q u an d o sin t o fom e, e o pão n ão
vem a m im , procu ro m eu pão e o pego lá onde o en con t ro. N ã o presto ajuda e
n ão preciso de ajuda n en h u m a. Se algum a necessidade m e aflige, n ão olh o ao
redor se h á algum ajudan te por perto, mas aceito a necessidade, eu m e curvo, eu
m e vir o e supero. Eu rio, eu ch oro, eu blasfem o, mas n ão olh o ao redor.
Nest e cam in h o n in gu ém m e segue, e eu n ão cru zo o cam in h o de n in gu ém .
Est ou sozin h o, mas preen ch o m in h a solidão com m in h a vid a. Sou para m im
m esm o pessoa, barulh o, en t ret en im en t o, consolo, aju da suficien t es. E assim
viajo para o dist an t e O r ien t e. N ã o que eu soubesse qual seria o m eu d est i-
n o lon gín qu o. Vejo h orizon t es azuis dian t e de m im : são para m im objet ivo
suficien t e. Ap resso-m e para o O r ien t e, para o m eu com eço. Eu quero o m eu
n ascen te. / [Ilu st ração 36 ] 9 6 /

96 Legenda da ilustração: "Este quadro foi pintado no Natal de 1915. "O quadro de Izdubar parece-se
muito com uma ilustração dele na obra de W ilh elm Roscher, Ausfúhrliches Lexíkon dergríechíschen und rõmíschen
Mythologíe, do qual Jung possuía um exemplar (Leipzig: Teubner, 1884-1937). Izdubar era o nome original
do personagem conhecido agora como Gilgamesh. Isto baseou-se numa transcrição errada. Em 1906,
Peter Jensen observou: "O fato de o principal herói da epopeia chamar-se Gilgamesh, e não por exemplo
Gistchubar ou Izdubar, como se admitia antes, sabemo-lo agora definitivamente" (Das Gilgamesh-Epos in
derW eltliteratur. Strassburgo: Kar l Triibner, 1906, p. 2). Jung tratou da epopeia Gilgamesh em 1912, em
Transformações e símbolos da libido, usando a forma correta e citando várias vezes a obra de Jensen.
P RIM EIRO D I A 247

Prim eiro d ia
Cap. vi i i . 9 7

[ I H 37] N a t erceira n o it e 9 8 , u m m on t e gigantesco de pedras ob st ru iu m eu


cam in h o, mas u m desfiladeiro p er m it iu -m e passagem. O cam in h o prossegue
in evit avelm en t e en t re altas paredes de m on t an h as. Meus pés est ão descalços
e eles se m ach u cam nas pedras pontiagudas —. Aq u i a vered a t orn a-se plan a e
u n iform e. U m a part e do cam in h o é bran ca, a ou t ra, pret a. Piso n o lado pret o
e recuo assustado: é ferro quen te. Piso n a m etade bran ca: é gelo. Mas deve ser
assim . Ap resso-m e a u m a saída e, fin alm en t e, o vale se alarga n u m im en so cal-
d eirão rochoso. U m a sen da est reit a con duz por rochas vert icais para o alto, ao
cum e da m on t an h a.
Ao ap roxim ar-m e do alto, vem u m forte est ron do do ou t ro lado do m on t e,
com o de m in ério ext raíd o. O som vai crescen do aos poucos, e m u it o est ron dar
repercut e o som nas m on t an h as. Ao at in gir a passagem, vejo n o ou t ro lado
aproxim ar-se u m a pessoa gigantesca.
D e sua en orm e cabeça saem dois ch ifres de touro. U m a arm ad u ra pret a e
t ilin t an t e cobre seu peito. Sua barba n egra est á agrisalhada e en feit ada com pe-
dras preciosas. N a m ão t raz o m ach ado b rilh an t e de dois gumes, com o qu al se
abatem os touros. An t es de m e h aver recuperado do grande susto, o port en t oso
estava d ian t e de m im , e eu vejo seu rosto: é pálido, am arelado e profun dam en t e
am edron tado. Seus olh os escuros, em form a de am ên d oas, en caram -m e ad m i-
rados. Eu sou tom ado pelo pavor: ist o é Izd u bar, o poderoso, o h om em -t ou ro.
Ele está parado e olh a para m im : seu rosto exp rim e m edo con su m id or in t ern o,
suas m ãos e joelh os t rem em . Izd u bar, o poten te touro, trem e? Ele t em m edo de
m im ? Eu o in t erpelo:

"Ó Izd u bar, o m ais poderoso, poupa m in h a vid a e perdoa o fato de eu , ver -
m e, t er-m e colocado em t eu cam in h o".
Iz: "N ã o exijo t u a vid a. Don d e ven s?"
Eu : "Ven h o do O cid en t e".

97 Em vez disso, o esboço m anuscrito tem: "Sétim a aventura. Prim eiro dia" (p. 626). Mas o esboço corrigido tem: "7. O
grande encontro. Primeiro dia. O herói do O rien t e" (p. 262).
98 8 de janeiro de 1914.
248 LI BE R SECU N D U S 37/38

Iz: "Ven s do O c i d e n t e ? Sab es a lgu m a c o is a d a t e r r a d o O c i d e n t e ? É est e o


cam in h o cert o para a t erra do O cid e n t e ?"9 9
Eu : "E u ven h o de u m a t erra ocid en t al, cujos lit orais são banhados pelo m ar
ocid en t al".
Iz: "O sol afunda naquele m ar? O u t oca ele, em seu ocaso, a t erra firm e?"
Eu : "O sol se p õe m u it o além do m ar".
Iz: "Além do m ar? O que exist e lá?"
Eu : "Lá n ão h á n ada, espaço vazio. A t erra é redon da e gira, além disso, ao
redor do sol".
Iz: "Mald it o, don de te vem t al con h ecim en t o? En t ão n ão exist e em lugar
n en h u m aquela t erra im ort al, on de o sol en t ra para ren ascer? Falas a verdade?"
Seus olhos flam ejam de raiva e medo. D á u m passo t repidan t e para m ais
perto. Eu trem o.
Eu : "Ó Izdubar, o m ais poderoso, perdoa m in h a pet ulân cia, mas falo r eal-
m en t e a verdade. Ven h o de u m a t erra onde ist o é ciên cia in discut ível e onde
m oram as pessoas que dão volt a ao redor da t erra em seus n avios. Nossos cien -
tistas sabem exat am en t e através de m edições o quan to d ist a o sol de cada p on -
to da superfície da t erra. Ele é u m corpo celeste que está in d izivelm en t e longe
n o espaço in fin it o".
Iz: "In fin it o, dizes tu? O u n iverso é in fin it o e n ós n u n ca podem os chegar
ao sol?"
Eu : "Pod erosíssim o, en quan t o fores da espécie m or t al, jam ais pod erás ch e-
gar ao sol".
Vejo que ele é tom ado de m edo sufocante.
Iz: "E u sou m or t al — e eu n u n ca poderei alcan çar o sol, a im ort alid ad e?"
Co m u m golpe violen t o, de som agudo, despedaça seu m achado n a pedra.
Iz: "Vai-t e, arm a m iserável, n ão serves para n ada. O que poderias valer
con t ra o in fin it o, con t ra o et ern o vazio / e o n ão preen ch ível? N ã o tens m ais
n in gu ém a dom in ar. Desp ed aça-t e - o que ad ian t a!" ( N o O cid en t e o sol de
verm elh o-san gue desaparece n o seio de n uven s abrasadoras). "Assim te vais,
sol, Deu s três vezes m aldit o, e te escondes em t u a in fin it u d e!" ( Ele aju n t a do
chão os pedaços part idos de seu m achado e os at ira atrás do sol). "Aqu i tens t eu
sacrifício, t eu ú lt im o sacrifício!"

99 Na mitologia egípcia, as terras ocidentais (a margem ocidental do Nilo) eram a terra dos mortos.
P RIM EIRO D IA 249

Ele cai e solu ça com o u m a crian ça. Fico im óvel, ch ocado, e m al ouso m e-
xer -m e.
Iz: "Ver m e m iserável, onde sugaste este ven en o?"
Eu : O Izd u bar, poderoso, é a ciên cia que t u cham as de ven en o. E m n os-
sa t er r a somos alim en t ados com isso desde a ju ven t u d e, e ist o pode ser u m
dos m ot ivos de n ão nos desen volverm os t ão b em e perm an ecerm os pequenos
com o an ões. Q u an d o olh o para t i, fico pen san do se n ão estamos todos en ven e-
n a d o s de cer t a f o r m a " 10 0 .
Iz: "Ne n h u m forte jam ais m e d erru bou , n en h u m m on st ro re-sist iu à m in h a
força. Mas t eu ven en o, verm e, que t u puseste em m eu cam in h o, paralisou-m e
n a m edula. Tu a m agia ven en osa é m ais poderosa do que o exércit o de Tia m a t 10 1.
(Jazia com o paralisado, esten dido ao com prido n o ch ão). "Deu ses, ajudai, aqui
está deitado vosso filh o, derrubado pela m ord id a n o calcan h ar da cobra in visí-
vel. Tivesse eu te esmagado quando te vi, e n u n ca tivesse escutado tuas palavras!"
Eu : "Ó Izd u bar, grande, dign o de com paixão, tivesse eu sabido que m in h a
ciên cia te pudesse derrubar, t er ia calado m in h a boca d ian t e de t i. Mas eu qu eria
d izer-t e a verdade".
Iz: "T u cham as o ven en o de verdade? O ven en o é verdade? O u a verdade é
ven en o? N ã o d izem t am bém nossos in t érpret es dos astros e nossos sacerdotes
a verdade? N o en t an t o, ela n ão at ua com o ven en o".
Eu : "Ó Izdu bar, a n oit e desce e aqui n o alto fica frio. N ã o devo buscar ajuda
para t i ju n t o às pessoas?"
Iz: "D e ixa estar, é m elh or que m e respon das".
Eu : "Mas n ão podem os filosofar aqu i. Te u estado last im ável requ er cu i-
dados".
Iz: "E u repit o, d eixa estar. Se eu t iver que m orrer esta n oit e, assim deve ser.
Agora respon de-m e".
Eu : "Tem o que m in h as palavras sejam fracas se t iverem que cu rar".
Iz: "Coisas piores n ão podem causar. A desgraça já acon teceu. Port an t o, dize
o que sabes. Talvez ten has u m a palavra m ágica que t ire o efeito do ven en o".
Eu : "Min h as palavras, pod erosíssim o, são pobres e n ão t êm força m ágica".

100 Em DíefróhlícheW íssenschaji ( A gaia ciência) Nietzsche argumenta que o pensar nasceu do cultivo e da
união de vários impulsos que tinham o efeito de venenos: o impulso de duvidar, de negar, de esperar, de
coletar e dissolver ("A doutrina dos venenos", livro 3, seção 113, Frankfurt no Meno: Insel Verlag, 20 0 0 ) .
101 Na mitologia babilónica, Tiam at, a mãe dos deuses, entrou em guerra contra um exército de demónios.
2 $0 L I B E R S E C U N D U S 38/39

Iz: "Seja com o for, fala!"


Eu : "N ã o duvido que vossos sacerdotes digam a verdade. E, sem dúvida,
u m a verdade, mas que soa diferen t e da n ossa verdade".
Iz: "Exist e m en t ão dois tipos de verdade?"
Eu : "Parece-m e que é assim . Nossa verdade é aquilo que nos vem a p ar t ir do
con h ecim en t o das coisas ext ern as. A verdade de vossos sacerdotes é aquela que
vos ad vém a p art ir das coisas in t ern as".
Iz (levan t an d o m eio corp o): "Ist o foi u m a palavra salu t ar".
Eu : "Sin t o-m e bem pelo fato de m in h a fraca palavra t er-t e causado alívio.
Soubesse eu m ais dessas palavras que te pudessem ajudar! Est á fican do frio e
escuro. Vo u fazer fogo para esquen tar a t i e a m im ".
Iz: "Faze isto, talvez esta ação proporcion e ajuda". ( Aju n t o len h a e acendo
u m grande fogo) "O fogo sagrado m e aquece. Mas d ize-m e com o fazes fogo tão
rápida e m ist eriosam en t e?"
Eu : "Par a isso só preciso de fósforo. Vê , são pauzin h os com u m a subst ân cia
especial n a pon t in h a. Esfrega-se u m pau zin h o n a caixa e tem os o fogo".
Iz: "Ist o é adm irável! O n d e apren deste esta art e?"
Eu : "E m nossa t er r a todos t êm fósforos. Mas isto é o de m en os. N ó s t am -
38/39 bem podem os voar com m áquin as engenhosas". /
Iz: "Podeis voar com o os pássaros? Se tuas palavras n ão con t ivessem t an t a
m agia, eu d iria: t u m en t es".
Eu : "N ã o estou m en t in d o. Vê , aqui t en h o t am bém por exem plo u m relógio,
que in d ica com precisão as h oras do d ia e da n oit e".
Iz: "Ist o é fan tástico. Vejo que ven s de u m a t erra especial e m agn ífica. Ce r -
t am en t e ven s da afort un ada t er r a do O cid en t e. T u és im or t al?"
Eu : "E u - im ort al? N ã o exist e n ada m ais m or t al do que n ós".
Iz: "O que? Vó s n ão sois im ort ais e en t en deis assim m esm o dessas artes?"
Eu : "In felizm en t e nossa ciên cia ain d a n ão d escobriu u m recurso con t ra o
m or r er ".
Iz: "En t ão, qu em vos en sin ou essas art es?"
Eu : "No correr dos séculos, as pessoas fizeram várias descobertas por m eio
de u m a observação precisa e de con h ecim en t o cien t ífico das coisas ext ern as".
Iz: "Mas este con h ecim en t o cien t ífico é precisam en t e a m agia abom in ável
que m e paralisou . Co m o é possível que ain d a estejais vivos, se todo d ia tom ais
desse ven en o?"
P RIM EIRO D IA 251

Eu : "N ó s nos acostum am os a ele com o tem po, assim com o o ser h u m an o se
acostum a a tudo. Mas já estam os algo paralisados. Con t u d o, este con h ecim en t o
cien t ífico proporcion a por ou t ro lado u m grande ben efício, com o t u vist e. O
que perdem os em força, n ós o recuperam os m u it as vezes através da d om in ação
sobre as forças da n at u reza".
Iz: "N ã o é lam en t ável ser paralít ico dessa form a? Eu , por m in h a vez, prefiro
m in h a p róp ria força às forças d a n at ureza. De ixo as forças ocultas aos covardes
ilu sion ist as e aos m ágicos efem in ados. Q u an d o red u zi a cabeça de alguém a
u m a pasta só, cessa t am bém sua m agia m iserável".
Eu : "Mas t u vês com o o con t at o com n ossa m agia at u ou sobre t i? Penso -
t errível".
Iz: "In felizm en t e ten s razão".
Eu : "Co m o vês, n ão t ivem os escolha. Tivem os de en golir o ven en o da ciên -
cia. Se n ão acon t eceria a n ós todos o que acon t eceu a t i: est aríam os t ot alm en t e
paralisados se t ivéssem os t ido con t at o com ele in ad vert id a e despreparada-
m en t e. Est e ven en o é t ão in ven civelm en t e fort e, que cada qu al, m esm o o m ais
forte, e m esm o os deuses etern os a ele sucum bem . Se am am os a vid a, sacrifica-
m os de preferên cia u m ped aço de n ossa força vit al, a expor-n os à m ort e cert a".
Iz: "Já n ão penso que ven s da afort un ada t er r a do O cid en t e. Tu a t er r a deve
ser m on ót on a, ch eia de paralisia e ren ún cia. An seio volt ar para o O r ien t e, onde
corre a fon te p u ra de n ossa sabedoria dispen sadora da vid a".
Ficam os sentados em silên cio pert o do fogo crepit an t e. A n oit e é fria. Iz d u -
bar respira com dificuldade e olh a para o céu estrelado.
Iz: "O d ia m ais t errível de m in h a vid a - in t erm in ável - tão com prid o - tão
com prid o — m iseráveis artes m ágicas — nossos sacerdotes n ão sabem n ada, caso
con t rário pod eriam t er-m e protegido con t ra isso — até m esm o os deuses m or -
rem , d iz ele. N ã o tendes m ais deuses en t ão?"
Eu : "Nã o , só tem os ain d a as palavras".
Iz: "Mas essas palavras são poderosas?"
Eu : "Afirm a-se que sim , mas n ão se percebe n ada disso".
Iz: "N ó s t am bém n ão vem os os deuses, mas crem os que exist em . Recon h e-
cem os sua atuação nos acon t ecim en t os n at u rais".
Eu : "A ciên cia t irou -n os a capacidade de c r e r " 10 2 .

102 A questão da relação da ciência com a fé foi crítica na psicologia junguiana da religião. Cf. Psicologia e
Religião (1938). O C , 11.
252 L I B E R S E C U N D U S 39/41

Iz: "Tam b ém isso perdestes? Co m o viveis en t ão?"


Eu : "Vivem os assim : u m pé n o frio e o ou t ro n o quen te e, n o m ais, t udo ao
deus dará".
Iz: "T u te expressas de m an eira obscura".
Eu : "Assim acontece conosco, tudo é obscuro".
Iz: "Podeis su port ar isso?"
Eu : "N ã o m u it o bem . Eu pessoalm en te n ão m e sin t o bem com esta situação.
Por isso eu m e pus a cam in h o do O r ien t e, para a t erra do sol n ascen te, a fim de
procu rar a lu z que nos falta. O n d e nasce, pois, o sol?"
Iz: "A t erra, com o dizes, é red on d a em t oda parte. Port an t o, o sol n ão nasce
em lugar n en h u m ".
39/ 40 Eu : "Ten d es, por acaso, a lu z que nos falta?" /
Iz: "O lh a para m im : eu m e desen volvi à lu z do m u n d o orien t al. Podes en t ão
fazer u m a id eia da fecun didade dessa lu z. Mas se t u ven s de u m a t al t erra de
escuridão, protege-te con t ra a lu z in ven cível; poderias ficar cego, assim com o
n ós todos somos u m pouco cegos".
Eu : "Se vossa lu z é tão fabulosa, com o t u és, serei precavido".
Iz: "Fazes bem ".
Eu : "Est o u ansioso por vossa verdade".
Iz: "Assim com o eu pela t er r a do O cid en t e. Eu te p revin o".
Fez-se silên cio. Já é tarde da n oit e. Pegamos n o sono ju n t o ao fogo.

[2] [ I H 4 0 ] Fu i para o su l e en con t rei o calor in su port ável do estar só co m i-


go m esm o. Fu i para o n ort e e en con t rei a m ort e fria, pois todo m u n d o m orre.
Volt ei para m in h a t er r a ocid en t al, onde as pessoas são ricas em saber e poder,
e com ecei a sofrer da escuridão vazia de sol. Largu ei tudo para lá e fu i para o
O r ien t e, onde d iariam en t e a lu z se ergue. Co m o u m a crian ça, fui para o O r ie n -
te. N ã o pergun tava, só esperava.
Prados cordiais de flores e am oráveis florestas de p rim avera orlavam m eu
cam in h o. Mas n a t erceira n oit e veio o pesado. Co m o u m m on t e de pedras,
ch eio de deserto t rist e, ficou dian t e de m im , e tudo qu eria m e desen corajar de
prosseguir lá o cam in h o de m in h a vid a. Mas eu en con t rei a en t rad a e o cam in h o
estreito. O sofrim en t o era grande, pois n ão foi à t oa que eu afastei de m im os
dois decrépit os e degenerados. O que eu rejeit o, eu o aceito em m im con fiada-
m en t e. O que aceito, ist o vai para a part e de m in h a alm a que eu con h eço; o que
P RIM EIRO D IA 253

rejeit o vai para a part e de m in h a alm a que descon h eço. O que aceito, eu m esm o
o faço; o que rejeit o, ist o é feit o a m im .
Port an t o, o cam in h o de m in h a vid a con d u ziu -m e apesar de tudo por so-
bre os opostos rejeit ados, que u n idos n u m a estrada por dem ais escorregadia
e — ah — t ão dolorosa estavam dian t e de m im . Pisei neles com os pés, mas eles
qu eim aram e gelaram as plan tas de m eus pés. E assim alcan cei o ou t ro lado.
Mas o ven en o da cobra, cu ja cabeça esmagaste, en t ra em t i através da ferid a n o
calcan har, e assim a cobra fica m ais perigosa para t i agora do que era antes. Pois,
o que rejeit o t am bém est á em m in h a n at ureza. Ach o que estava fora e por isso
acred it ei que pod eria d est ru í-lo. Mas está em m im e só assu m iu form a ext erior
t ran sit ória e veio ao m eu en con t ro. Dest r u í sua form a e acred it ei ser u m ve n -
cedor. Mas eu ain d a n ão m e ven ci.
O oposto ext ern o é u m a im agem de m eu oposto in t erior. Q u an d o reco-
n h eci isto, fico quiet o e penso n o abism o de desu n ião em m in h a alm a. O post os
ext ern os são fáceis de ven cer. Eles exist em de verdade, mas apesar disso podes
estar de acordo con tigo mesmo. Vã o qu eim ar e gelar realm en t e as plan tas de
teus pés, mas som en te as plan tas dos pés. Dó i, mas t u cam in h as e olhas para
objetivos distan tes.
Ap ó s t er alcan çado a m aior alt it ude e querer con t em plar m in h a esperan -
ça pelo O r ien t e, acon teceu algo m aravilh oso: assim com o eu m e d irigia para
o O r ien t e, u m ou t ro vin h a apressado do O r ien t e a m eu en con t ro e alm ejava
a lu z que se apagava. Eu qu eria lu z, ele n oit e. Eu qu eria subir, ele descer. Eu
era n an ico com o crian ça, ele grande com o gigante, u m h erói de força atávica.
Eu vin h a paralisado de saber, ele ofuscado pela plen it u d e da lu z. E assim nos
apressamos u m ao en con t ro do outro, ele vin d o da lu z e eu, da escuridão; ele
forte e eu fraco; ele Deu s, eu cobra; ele m u it íssim o velh o, eu ain d a bem jovem ;
ele ign oran t e, eu con hecedor; ele fabuloso, eu austero; ele corajoso, violen t o, eu
covarde, ardiloso. Mas ambos adm irados por nos verm os n a lin h a d ivisória da
m an h ã e d a n oit e.
Co m o eu era u m a crian ça e crescia com o árvore verd ejan t e e d eixava cal-
m am en t e soprar através de m eus ram os o ven t o, gritos distan tes e a agitação
dos opostos, / com o eu era u m m en in o e caçoava de h eróis m ort os, com o eu era 40/ 41
u m adolescente que afasta de si, t an t o à d ir eit a quan to à esquerda, as am arras,
n ão ligava para o poderoso, o cego e im or t al que se d irigia an siosam en te para o
sol poen te, que qu eria p art ilh ar do oceano até seus fun dam en tos e descer até a
254 L I B E R S E C U N D U S 41/43

fon te da vid a. Pequeno é o que se apressa para o levan t e, grande é o que se volt a
para o poente. Por isso eu era pequeno, pois m al h avia saído da profun deza de
m eu poen te. Eu estive lá, para on de ele quer ir. Aqu ele que vai para o poen te
é grande, e algo fácil para ele seria esm igalh ar-m e. Mas u m Deu s que escolhe
o sol para si n ão dá caça a verm es. O verm e, n o en t an t o, visa ao calcan h ar do
poderoso e vai preparar-lh e o ocaso de que precisa. Su a força é grande e cega. E
form id ável vê-lo e despert a medo. Mas a cobra en con t ra seu lugar. U m pouco
de ven en o, e o grande tom ba. As palavras daquele que nasce n ão t êm resson ân -
cia e são amargas. N ã o se t rat a de u m ven en o doce, m as de u m ven en o m or t al
para todos os deuses.

Ah, ele é m eu am igo m ais helo e preferido, ele que se apressa para cá, que seguindo o sol e sem elhante
ao sol, que deseja casar-se com a m ãe incom ensurável Com o têm parentesco próxim o, sim , com o são
totalm ente unos cobra e Deus! A palavra, que era nosso salvador, tornou-se um a arm a m ortal, tornou-se
um a cobra que m orde traiçoeiram ente.

N ã o são m ais opostos ext ern os que bloqu eiam m eu cam in h o, mas é m in h a
p róp ria oposição que vem a m eu en con t ro; levan t a-se gigantescam ente dian t e
de m im , e n ós nos bloqueam os m u t u am en t e o cam in h o. Co m efeito, a pala-
vr a da cobra ven ce o perigo, mas o m eu cam in h o con t in u a bloqueado, pois n a
con t in u ação de m eu cam in h o devo cair da paralisia para a cegueira, en quan t o
o Poderoso, para escapar de sua cegueira, su cu m biu à paralisia. Eu n ão posso
chegar à força ofuscante do sol, assim com o ele, o Poderoso, n ão pode chegar
ao seio ren ascen te d a escuridão. Parece que a m im foi recusada a força; a ele, o
ren ascim en t o, mas eu evit o a ofuscação n a força, e ele evit a a m ort e n o nada.
Min h a esperan ça n a plen it u d e d a lu z se despedaça, assim com o naufraga seu
desejo por u m a vid a con quist ada sem lim it es. Eu aguardei os m ais fortes, e o
Deu s desce até ao m oribu n do.

[ BO 41] O Poderoso caiu, jaz no chão103.

O poder precisa afastar-se por am or à vida.

A abrangência da vida exterior precisa ser dim inuída.

103 O esboço continua: "Foi isto o que vi no sonho" (p. 295).


P RIM EIRO D I A 255

Muito m ais m istério, fogo solitário, cavernas, for estas grandes e escuras, pequenas povoações dos
poucos, águas fluindosilenciosam ente, noites silenciosas de inverno e verão, poucos navios e carros, e
escondido nas casas o raro e o precioso.
De longe vêm viajantes por estradas solitárias e olham isto e aquilo.
Im possível a pressa, cresce a paciência. / 41/ 42

[ BO 4 2] Cessa o barulho do dia do m undo, e no interior arde o fogo que esquenta.


Em torno do fogo estão sentadas as som bras de outrora, queixam -se baixinho e dão notícia do que
passou.
Vinde ao fogo solitário, vós, cegos e paralíticos, e escutai os dois aspectos da verdade: o cego ficará
paralítico, e o paralítico ficará cego, no entanto o m esm o fogo aquece os dois, o m esm o fogo que arde
sozinho na noite im ensa.

Um fogo m uito velho e m isterioso arde entre nós, dando pouca claridade, m as calor abundante.
O fogo antiquíssim o, que dom ina toda e qualquer necessidade, deve incendiar-se de novo, pois a noite
do m undo é im ensa efria, e a necessidade égrande.
O fogo bem cuidado reúne os distantes, os que sofrem frio, que m utuam ente não se podem ver nem
tocar, nem vencer o sofrim ento e despedaçar a necessidade.

As palavras ao fogo são am bíguas e profundas e apontam o cam inho certo da vida.
O cego deve ser paralítico afim de não correr para o abism o, e o paralítico deve ser cego afim de não
olhar ávida e desdenhosam ente para as coisas que não pode alcançar.

Am bos desejam estar conscientes de sua profunda desvalia, afim de venerar novam ente o fogo sagra-

do, as som bras, que estão sentadas ao redor da lareira, e as palavras que gravitam em torno da cham a.

O s an t igos ch am avam de Logos a Palavra salvadora, u m a exp ressão d a razão


d i vi n a 10 4 . H a via t an t a irracion alid ad e / n o ser h u m an o, que n ecessit ava d a r a - 42/ 43

zão com o salvação. Q u a n d o a gen t e espera o t em po su ficien t e, vê-se com o os


deuses ao fin al se t r an sfor m am t odos em cobras e d ragões do su bm u n do. Est e
é t am b ém o d est in o do Logos: ao fin al ele n os en ven en a a t odos. Co m o t em po
fom os en ven en ad os, m as gu ard ávam os em n ós, sem o saber, o U m , o Poderoso,
o que sem pre est á viajan d o, lon ge do ven en o. N ó s espalh am os ven en o e p ar a-
lisia ao red or de n ós, à m ed id a que qu erem os edu car t odo o m u n d o em t orn o
de n ós p ara a razão.

104 Cf. Liber Secundus, cap. 4, p. 220.


256 LI BE R SECU N D U S 4 3/ 44

U m t em sua razão n o pensar, out ro n o sen tir, ambos são servidores do Lo -


gos e se t orn aram secretam en te adoradores de cob r as 10 5 .
T u podes im p or-t e u m jugo, podes acorren t ar-t e, d iariam en t e te flagelar
até arran car sangue: t u te rebaixaste, mas n ão te ven ceste. Mas precisam en t e
através disso ajudaste o Poderoso, fortaleceste t u a paralisia e fom en taste t u a
cegueira. Ele é qu em gost aria de ver e fazer sem pre nos outros o que ávida e
t iran icam en t e, com obst in ação e ten acidade de touro, gost aria de im p or a t i e
a out ros o Logos. Dá-lh e do Logos para experim en t ar. Ele t em m edo, t rem e já
de longe, pois ele pressen te que sobreviveu e que u m a got in h a ín fim a do ve-
n en o do Logos vai paralisá-lo. Mas por ser t eu belo e bem -am ado irm ão, estás
escravam en te dedicado a ele e gostarias de pou par-lh e o que n ão poupaste a
n en h u m de teus sem elh an tes. N ã o titubeaste dian t e de n en h u m m eio ardiloso
e violen t o para at in gir teus sem elh an tes com a seta ven en osa. U m an im al de
caça aleijado é u m despojo in dign o. O p róp rio caçador poderoso, que lu t ou
com o t ouro até d erru bá-lo, que d esped açou o leão e d errot ou o exércit o de
Tiam at , ele é u m alvo dign o de t eu a r co 10 6 .

Q u an d o t u vives com o aquele que t u és, ele vai in vest ir com fúria con t ra t i,
t u n ão podes d eixar de en con t rá-lo. Ele te fará violên cia e te forçará a serviços
de escravo, se n ão te lem brares de t u a arm a secreta e t em ível, que sem pre usaste
em t eu serviço con t ra t i m esm o. Ast u t o, cru el e frio deves ser, se puseres m ãos
à obra para d eit ar abaixo o belo e bem -am ado. Con t u d o n ão deves m at á-lo,
m esm o quan do ele sofre e se t orce em dores in su port áveis. Am a r r a São Se-
bast ião n u m a árvore e at ira devagar e sen satam en te flecha após flecha em sua
carn e que est r em ece 10 7 . Lem b r a-t e ao fazer isso de que cada flecha que o atinge
é poupada a u m de teus irm ãos m u it o pequen os e paralít icos. Port an t o queres
at irar m uit as flechas. Mas n um erosos por dem ais e quase in ext irpáveis são os
m al-en t en d id os: as pessoas qu erem sem pre d est ru ir o belo e bem -am ado fora
delas, n u n ca p orém d en t ro delas.

105 Em Tipos psicológicos (1921) Jung considerou o pensar e sentir como funções racionais ( O C, 6, § 731).
106 O esboço continua: "Gostarias de prostrá-lo com um tiro atrevido de funda assim como Davi fez com
Golias! (p. 299). Em Transformações esimbolos da libido ( O C, B, § 383S.) Jung aborda o mito babilónico da
criação, no qual Marduk, deus da primavera, combate com Tiam at, mãe dos deuses, e com todo o exército
dela. Marduk mata Tiam at e disso criou o mundo. Por isso o "caçador poderoso" corresponde a Marduk.
107 São Sebastião foi um mártir cristão, perseguido pelos romanos, que viveu no terceiro século. E
representado muitas vezes amarrado numa árvore e alvejado por flechas. A representação mais antiga
encontra-se na basílica de Santo Apolinário, em Ravena.
P RIM EIRO D I A 257

Ele, o belo e bem -am ado, vem ao m eu en con t ro do O r ien t e, vem daquele
lugar aonde eu m e esforçava por chegar. Ad m irad o, vi sua força e esplendor, e
descobri que ele p rocu ra alcan çar exat am en t e aquilo que eu h avia abandonado,
ist o é, o am on toado popu lacion al n a obscuridade. Percebi a cegueira e ign o-
rân cia de sua aspiração, que se opu n h a ao m eu desejo, e eu lh e abri os olhos e
paralisei com picada ven en osa seus m em bros fortes. Ele ficou deitado ch or an -
do com o crian ça, com o aquilo que era, u m a crian ça, u m a an t iqu íssim a crian ça
grande, n ecessitada do Logos h um an o. Assim jazia dian t e de m im , indefeso,
m eu cego, en xergan do só pela m etade, Deu s paralít ico. Fiq u ei tom ado de com -
paixão, pois percebi com t ot al clareza que n ão pod eria m or r er -m e, ele que m e
veio ao en con t ro desde o n ascen te, daquele lugar onde ele pod eria estar bem ,
mas aonde eu jam ais con seguiria chegar. Eu possu ía agora aquele que eu p r ocu -
rava. O O r ie n t e n ada m ais m e pod eria dar do que ele, o doen te, o sucum bido.

Tu só ten s que fazer a m etade do cam in h o, a ou t ra m etade ele a faz. Se o


ultrapassas, sucum bes à cegueira. Se ele te ultrapassa, sucum be à paralisia. Por
isso, en quan t o for d a ín d ole dos deuses ult rapassar os m ort ais, su cu m bem à
paralisia e se t orn am indefesos com o crian ças. Divin d ad e e h u m an id ade são
preservadas, quan do o ser h u m an o fica parado dian t e do Deu s, e o Deu s dian t e
do ser h um an o. A ch am a elevada é o cam in h o do m eio, cujo t rajet o lu m in oso
se estende en t re o h u m an o e o d ivin o.
A força p r im it iva dos deuses é cega, pois sua face t ran sform ou -se em ser
h um an o. O ser h u m an o é a face d a divin dade. Q u an d o Deu s se ap roxim a de t i,
pede que con serve t u a vid a, pois o Deu s é t error am oroso. O s antigos d iziam
que é t errível cair nas m ãos do Deu s vi vo 10 8 . Falavam assim porque o sabiam ,
pois ain d a estavam pert o da an t iga floresta e à m an eira de crian ças verd ejavam
com o as árvores e se elevavam longe para o O r ien t e. / 43/ 44

E n isso caíam nas m ãos do Deu s vivo. Ap r en d ia m a ficar de joelh os e com a


face por t erra, apren d iam a m en digar a com paixão, o m edo servil e o agradeci-
m en to. Mas qu em o viu , o belo-assustador, com seus olh os negros e aveludados
e as grandes pestanas, os olhos que n ão en xergam , mas que só con t em plam le-
vem en t e am edron t ados, este apren d eu a grit ar e a gemer, para ao m en os at in gir

108 Isto se refere a H b 10,31: "É terrível cair nas mãos do Deus vivo".
258 LI BE R SECU N D U S 44/ 46

o o u vid o d a d ivin d a d e . Som en t e t eu grit o de pavor faz com que Deu s pare. E
en t ão vês que t am bém o Deu s t rem e, pois est á dian t e de sua face, de seu olh ar
vid en t e em t i, e ele sente u m a força descon h ecida. O Deu s t em m edo h um an o.

Se m eu Deu s est iver paralít ico, preciso ficar com ele, pois n ão posso aban -
don ar o bem -am ado. Sin t o que ele é o m eu qu in h ão, m eu irm ão, que estava n a
lu z e n ela crescia, en qu an t o eu [estava] n o escuro e m e alim en t ava de ven en o.
E b om saber disso: quan do n ós estam os n a n oit e, nosso irm ão est á n a p len i-
tude d a lu z, realiza suas grandes obras, d esped aça o leão e m at a o dragão. E
ret esa seu arco para alvos cada vez m ais d ist an t es, até que descobre o sol que
viaja p ara o alto e ao qu al gost aria de caçar. Mas quan do d escobriu seu despojo
m ais valioso, cresce t am b ém em t i o desejo pela lu z. T u arran cas as am arras e
te diriges para o lugar da lu z n ascen te. E assim cam in h ais apressados u m ao
en con t ro do outro. Ele julgava poder capt u rar o sol e se d efron t ou com o ver -
m e d a som bra. T u im agin avas que n o O r ie n t e poderias beber da fon te de lu z
e capt uras para t i o gigante de ch ifres, d ian t e do qu al t u cais de joelh os. Su a
n at u reza é cega de cobiça desm edida e de força im pied osa; m in h a n at u reza é
lim it ação que vê e a in capacidade do esperto. Ele possui em abu n d ân cia o que
m e falt a. Por isso t am b ém n ão quero aban d on á-lo, o deu s-t ou ro, que ou t rora
paralisou a coxa de Jacó e o qu al eu p aralisei agora para m i m 10 9 . Go st ar ia de
apossar-m e de sua força.
É por isso u m esforço cuidadoso m an t er com vid a alguém gravem en te fe-
rido, para que sua força m e seja con servada. D e n ada sen t im os m ais falta do
que da força d ivin a. Dizem os: "Sim , sim , assim d everia ou pod eria ser. Ist o ou
aquilo d everia ser alcan çado". Falam os assim , ficam os parados assim e olh am os
con stran gidos ao nosso redor se em algum lugar algum a coisa vai acontecer. E
quan do algum a coisa está para acontecer, observam os e dizem os: "Sim , sim ,
en t en dem os, é ist o ou aquilo, é sem elh an t e a ist o ou àqu ilo". Assim falam os,
ficam os parados e olh am os ao nosso redor para ver se algo m ais vai acon t e-

109 Isto refere-se à luta de Jacó contra o anjo, em Gn 32,24-29: "Quando Jacó ficou sozinho, um homem
se pôs a lutar com ele até o romper da aurora. Vendo que não podia vencê-lo, atingiu-lhe a articulação da
coxa de modo que o tendão da coxa de Jacó se deslocou enquanto lutava com ele. O homem disse a Jacó:
'Solta-me, pois já surge a aurora'. Mas Jacó respondeu: 'Não te soltarei se não me abençoares'. E o homem
lhe perguntou: 'Q u al é teu nome?' 'Jacó', respondeu. E ele lhe disse: 'De ora em diante já não te chamarás
Jacó, mas Israel, pois lutaste com Deus e com homens e venceste. E Jacó lhe pediu: 'Dize-m e por favor teu
nome'. Mas ele respondeu: 'Para que perguntas por meu nome? E ali mesmo o abençoou".
SEGU N D O D I A 259

cer em algum lugar. Sem pre acontece algum a coisa, mas n ós n ão acon tecem os,
pois nosso Deu s est á doen te. D e t an t o ver e en ten der, n ós o m atam os com u m
olh ar ven en oso de basilisco. N ó s tem os de pen sar em su a cura. E eu o sen t i
n ovam en t e com o cert eza de que m in h a vid a seria p art id a ao m eio se n ão con -
seguisse cu rar m eu Deu s. Por isso fiqu ei com ele du ran t e a lon ga n oit e fria.
[Ilust ração 4 4 ] / [Ilust ração 4 5 ] 110 / 44/ 46

Segundo dia
Cap . ix.

[ I H 4 6 ] Nen h u m sonho in sp irou -m e a palavra r ed en t or a 111. Izd u bar esteve d e-


itado quieto e rígido, duran t e t oda a n oit e, at é o novo d ia 112 . Eu an dava p en -
sativo de cá para lá n o cum e d a m on t an h a e olhava ret rospect ivam en t e para
m in h a t erra ociden t al, onde h avia t an t o con h ecim en t o e t an t a possibilidade de
ajuda. Eu am o Izdubar, ele n ão deve perecer m iseravelm en t e. Mas donde pod erá
vir ajuda? Nin gu ém vai ultrapassar o cam in h o quen te-frio. E eu? Ten h o m edo
de volt ar àquele cam in h o. E n o O rien t e? Será que t eria ajuda lá? Mas os p er i-
gos desconhecidos que lá am eaçam ? Eu n ão gostaria de ficar cego. O que isto
aproveit aria a Izdubar? Tam bém com o cego n ão posso carregar este paralítico.
Sim , se eu fosse forte com o Izdubar. D o que adian t a aqui toda a ciência?
Mas ao an oit ecer cheguei pert o de Izd u bar e disse:
"Izd u bar, m eu prín cipe, ouve! N ã o d eixarei que vás perecer. A segunda n o i-
te já se aproxim a. N ã o tem os com id a, e a m ort e cert a é im in en t e para n ós se

110 Legenda da ilustração: "Atharva-veda 4,14". Atharva-veda 4,1,4 é um encantamento para estimular a
virilidade: "A t i, planta que Gandharva desenterrou para Varuna, quando sua virilidade decaiu, a t i que
causas força, nós te desenterramos. / Ushas (Aurora), Surya (o sol) e este encantamento meu; o touro
Pragâpati (o senhor das criaturas) irá despertá-lo com seu fogo poderoso! / Esta erva encher-te-á de tanta
força poderosa que, quando estiveres excitado, exalarás calor como uma coisa incandescente! / O fogo das
plantas e a essência dos touros despertá-lo-ão! Tu , ó Indra, controlador dos corpos, põe a força poderosa
dos homens nesta pessoa! / Tu (ó erva) és a seiva primogénita das águas e também das plantas. Ademais,
tu és o irmão de Soma e a força poderosa do antílope macho! / Por favor, ó Agn i, por favor, ó Savitar, por
favor, ó deusa Sarasvatí, por favor, ó Brahmanaspati, retesa o pasas como um arco! Eu reteso teu pasas
como uma corda de arco no arco. Abraça (as mulheres) como o antílope macho abraça a gazela com
(força) sempre inesgotável! / Concede-lhe a força do cavalo, do jumento, do bode e do carneiro, e também
a força do touro, ó controlador dos corpos (In d ra)!" (SacredBooksoftheEast, 42, p. 31-32). E uma referência à
cura do deus-touro ferido, Izdubar, mencionado no texto.
111 Em vez disso, o esboço manuscrito tem: "Dorm i pouco; sonhos confusos me perturbaram mais do que me
inspiravam a palavra salvadora" (p. 686).
112 9 de janeiro de 1914.
26o LI BE R SECU N D U S 46/ 47

e u n ã o co n se gu ir t r a z e r aju d a. D o O cid en t e n ão podem os esperar ajuda. Mas


n o O r ie n t e talvez exist a algum a possibilidade. N ã o en con t rast e n in gu ém pelo
cam in h o que p od eríam os ch am ar em socorro?"
Iz: "D e ixa estar, a m ort e pode vir quan do quiser.
Eu : "O coração m e sangra quan do penso que devo aban don ar-t e aqui sem
ao m en os h aver t en t ado a ú lt im a coisa por t i".
Iz: "O que te vale t u a art e m ágica? Se fosses forte com o eu, poderias carre-
gar-m e. Mas vosso ven en o só pode d est ru ir e n ão aju d ar".
Eu : "Est ivéssem os em m in h a t erra, carros velozes pod eriam t razer-n os aju -
da".
Iz: "Est ivesse eu em m in h a t erra, t eu ferrão ven en oso n ão m e t eria at in gi-
do".
Eu : "D iz e -m e , n ão conheces n en h u m a ajuda do O r ien t e?"
Iz: "O cam in h o para lá é longo e erm o, e quan do sais das m on t an h as para a
plan ície, atin ge-te o sol violen t o, que vai cegar-te".
Eu : "Mas se eu cam in h ar de n oit e e m e proteger do sol du ran t e o dia?"
Iz: "D e n oit e saem todas as cobras e dragões de seus buracos e t u , d esarm a-
do, serás vít im a irrem ed iável deles. D e ixa estar! O que ist o vai ajudar? Min h as
pern as est ão secas e m ort as. Prefiro n ão levar para casa a ru ín a dessa viagem ".
Eu : "N ã o devo t en t ar t udo?"
Iz: "In ú t il! Nad a se gan h a se pereceres".
Eu : "De ixa -m e reflet ir m ais u m pouco, talvez ain d a m e su rja algum pen sa-
m en t o salvador".
Afast ei-m e e m e sen t ei n u m a pedra b em n o alto do cum e da m on t an h a.
Co m eço u en t ão em m im este discurso: "Gr an d e Izd u bar, t u estás n u m a sit u a-
ção sem saída - e eu n ão m en o s 113 . O que fazer? N e m sem pre é n ecessário fazer,
às vezes pen sar é m elh or. N o fundo, estou con ven cido de que Izd u b ar n ão é real
n o sen t ido com u m , mas u m a fan tasia. A situação est aria resolvid a se lh e fosse
dado ou t ro aspecto... fosse dado... fosse dado - fen om en al, o fato de que aqui
até ecoarem os pen sam en t os, é preciso que se esteja b em sozin h o. Mas ist o será
difícil. N ã o vai querer aceit ar que ele seja u m a fan tasia, mas afirm ará que é bem
real e que só p od erá ad vir-lh e aju da de m odo real: con tudo, pode-se t en t ar este
m eio. Por isso vo u in t erp elá-lo e lh e dizer:

113 O esboço continua: "(assim falou outra voz em m im como um eco)" (p. 309).
SEGU N D O D I A 261

Eu : "Me u prín cipe, poderoso, ouve: t ive u m a id eia que talvez traga a salva-
ção. Est ou pen san do que t u n ão és real, mas apenas u m a fan t asia".
Iz: "Sin t o arrepios por causa desses teus pen sam en tos. Eles são m ort íferos.
Q u eres d eclarar-m e ir r eal / - depois que m e paralisaste m iseravelm en t e?" 46/ 47
Eu : "Talvez m e t en h a expressado de form a equivocada, por dem ais n a lin -
guagem da razão. N ã o preciso n at u ralm en t e que sejas t ot alm en t e irreal, mas
apenas t ão real quan t o u m a fan tasia. Se pudesses aceit ar ist o, m u it a coisa est a-
r ia gan h a".
Iz: "O que se gan h aria com isso? T u és u m d em ón io at orm en t ad or".
Eu : "Dign o de com paixão, eu n ão quero at orm en t ar. A m ão do m éd ico n ão
quer at orm en t ar, m esm o quan do ela faz doer. N ã o poderias aceit ar o fato que
és u m a fan tasia?"
Iz: "Ai de m im ! E m que m agia queres sufocar-m e? Ist o ajudará se eu m e
con siderar u m a fan tasia?"
Eu : "T u sabes que o n om e que trazem os sign ifica m u it o. Sabes t am bém que
m uit as vezes se dá ou t ro n om e aos doentes para cu rá-los, pois com o n ovo
n om e recebem u m a n ova n at u reza. Te u n om e é t u a n at u reza".
Iz: "Ten s razão. Ist o o d izem t am bém nossos sacerdotes".
Eu : "Port an t o, queres ad m it ir que és u m a fan tasia?"
Iz: "Se ist o ajuda - sim !"
A voz in t er ior falou-m e en t ão da seguinte m an eira: Agor a ele é u m a fan -
tasia, mas apesar disso a situação está ext rem am en t e en rolada. Mesm o u m a
fan tasia n ão se d eixa sim plesm en t e negar e m an ip u lar com resign ação. Algu -
m a coisa precisa acon tecer con com it an t em en t e. Em b o r a seja u m a fan t asia -
port an t o n ot avelm en t e volát il — acho que vejo u m a possibilidade: agora posso
t om á-lo sobre os om bros. Ap r o xim ei-m e en t ão de Izd u bar e disse:
"Fo i en con t rado u m cam in h o. T u ficaste leve, m ais leve que u m a pen a. Ago-
ra posso carregar-t e". Eu o peguei e levan t ei do ch ão; é m ais leve que o ar, e
t en h o até dificuldade em m an t er m eus pés n o ch ão, pois m in h a carga m e faz
flutuar.
Iz: "Ist o foi u m golpe de m estre. Para on de m e levas?"
Eu : "Vo u levá-lo para a t erra do O cid en t e. Meus com patriotas vão alegrar-se
em poder receber u m a tão grande fan tasia. Q u an d o t iverm os deixado para trás
as m on t an h as e chegado às cabanas h ospit aleiras das pessoas, posso procu rar
com calm a u m rem éd io que o fará recuperar-se com plet am en t e".
262 L I B E R S E C U N D U S 47/ 48

Co m ele às co st a s, d e sci c u id a d o s a m e n t e o e s t r e it o c a m i n h o d e p e d r a s, t e -

m en do m ais ser arrebatado aos ares pelo ven t o do que ser arrastado ao abism o
por m in h a carga. Est o u preso à m in h a carga superleve. Fin alm en t e chegamos
ao vale, e aí está t am bém o cam in h o das dores quen t e-frio. Mas dessa vez u m
ven t o orien t al bem forte, sopran do através d a garganta de pedras, levou -m e
por cim a dos cam pos para lugares h abitados. O cam in h o doloroso n ão at in giu
as plan t as de m eus pés. Alad o, passo apressado por t er r a bon it a. Dian t e de m im
an d am dois n a estrada. São Am ó n io e o Verm elh o. Q u an d o nos aproxim am os
deles por trás, eles se vir ar am e correram com gritos pavorosos pelos cam pos
afora. Port an t o, m eu aspecto d evia ser est ran h íssim o.
Iz: "Q u e figuras disform es são essas? São teus com pat riot as?"
Eu : "N ã o são pessoas, são as cham adas relíquias do passado que en con -
t ram os m uit as vezes n o O cid en t e. An t igam en t e t in h am grande im port ân cia.
Agora são em pregados sobretudo com o pastores de ovelh as".
Iz: "Q u e t er r a esquisit a! Mas olh a, n ão est á ali u m a cidade? N ã o queres ir
para lá?"
Eu : "Nã o , Deu s m e livre, n ão quero provocar u m m o t im , lá m or am os escla-
recidos. T u n ão percebes seu ch eiro? Eles são deveras perigosos, pois cozin h am
os ven en os m ais fortes, dos quais até eu t en h o de m e precaver. As pessoas de
lá são t ot alm en t e paralít icas, en volvidas n u m vapor m ar r om de ven en o, rod ea-
das por m áquin as baru lh en t as que m at raqu eiam e só conseguem m over-se por
m eios art ificiais. / Mas n ão te preocupes. Já est á tão escuro agora, que n in gu ém
nos vê. Alé m disso, n in gu ém afirm aria t er-m e vist o. Con h eço aqui u m a casa
solit ária. Lá t en h o amigos con fiáveis que nos darão hospedagem por esta n oit e.
Ch egu ei com Izd u b ar a u m jar d im escuro e quieto, n o qual h avia u m a casa
silen ciosa. Escon d i Izd u bar debaixo dos galhos frondosos e bem baixos de u m a
árvore e fu i em d ireção à p ort a da casa para bater. O lh e i pen sat ivam en t e para
a port a: é pequen a dem ais. Nu n ca con seguirei fazer passar n ela Izdu bar. Mas
u m a fan tasia n ão precisa de espaço! Por que n ão cheguei antes a esta id eia ex-
celen te? Volt ei ao jar d im , apert ei sem esforço algum Izd u b ar até o t am an h o de
u m ovo e o coloquei n o bolso. En t r e i assim n a casa h ospit aleira, on de Izd u b ar
h averia de en con t rar a cura.
SEGU N D O D I A 263

[2] [ I H 4 8 ] 114 Assim en con t rou a salvação o m eu Deu s. A salvação se deu


por lh e acon tecer exat am en t e o que se d everia con siderar o im p ret erivelm en t e
m ort al, ist o é, que fosse con siderado u m a t r am a da im agin ação. Q u an t as vezes
já se pen sou que os deuses eram levados a seu fim dessa m a n e ir a 115 . Fo i r eal-
m en t e u m grande engano, pois por m eio disso o Deu s era precisam en t e salvo.
Ele n ão perecia, mas t orn ava-se u m a fan tasia viva, cujo efeito eu exp erim en t ei
n o m eu p róp rio corpo: o peso que m e cabia por n at u reza su m iu , o cam in h o
qu en t e-frio das dores já n ão qu eim ava n em gelava a p lan t a de m eus pés, a gra-
vidade já n ão m e p ren d ia ao ch ão, m as, leve com o u m a p lu m a, carregava-m e o
ven t o, en quan t o eu carregava o gigan t e 116 .
A gente acredit ava que era possível com et er u m assassinato de Deu s. Mas
o Deu s foi salvo, ele forjou ao fogo u m n ovo m achado e m ergu lh ou de n ovo n a
t orren t e de lu z do O r ien t e, para recom eçar sua prim igên ia circu n volu ção"7 .
Mas n ós, pessoas in t eligen t es, an d ávam os fu rt iva e ven en osam en t e por aí e n ão
sabíam os que nos faltava algum a coisa. Mas eu am ava o m eu Deu s e o levei
com igo para a casa das pessoas, pois estava con ven cido de que, m esm o com o
fan tasia, vivia realm en t e e por isso n ão d evia ser deixado só, ferido e doen te.
Por isso exp erim en t ei o m ilagre de que m eu corpo perd eu seu peso quan do eu
t om ei às costas o Deu s.
São Crist óvão, o gigante, sen t iu o peso de sua carga, apesar de só carregar
o Men in o Jesu s"8 . Mas eu era pequen o com o crian ça e carreguei o gigante e,
m esm o assim , m in h a carga m e ergueu. Para o Men in o Jesus, o gigante Cr ist ó -
vão t eria sido u m a carga leve, pois o p róp rio Cr ist o disse: "Me u jugo é suave e

114 Isto se refere à cena do texto que descreve como Jung reduziu Izdubar ao tamanho de um ovo para
possibilitar-lhe entrar na casa a fim de poder ser curado. Jung disse a An iela Jaffé, a respeito destas seções,
que algumas das fantasias foram acionadas pelo medo, como o capítulo sobre o demónio e o capítulo
sobre Gilgamesh- Izdubar. De certo ponto de vista era uma estupidez ele precisar encontrar uma forma
de ajudar o gigante, mas ele achava que, se não o fizesse, ele teria fracassado. Pagou pela ridícula solução
percebendo que havia capturado um Deus. Muitas destas fantasias eram uma combinação diabólica de
sublime e ridículo (MP, p. 147-148).
115 No esboço a frase soa assim: "Quantos deuses e quantas vezes foi o Deus interpretado como fantasia, e
assim se acredita ter acabado com ele" (p. 314).
116 O esboço continua: "Nós, humanos, pensamos que uma fantasia não existe, e quando dizemos que algo
é fantasia, então está completamente aniquilada" (p. 314). Em 1932, Jung comentou sobre o descrédito
contemporâneo da fantasia ("Da formação da personalidade". O C , 17, § 302).
117 Isto parece referir-se ao capítulo seguinte.
118 São Cristóvão (em grego "carregador de Crist o") foi um mártir do século I I I . Segundo a lenda, teria
ele procurado um eremita e perguntado como poderia servir a Jesus. O eremita sugeriu-lhe que ajudasse
as pessoas a atravessarem um rio perigoso. E ele assim o fez. Cert a ocasião, uma criança pediu-lhe que
a levasse para o outro lado. Ele achou a criança mais pesada do que qualquer outra pessoa; e a criança
revelou-lhe que ela era Cristo, carregando os pecados do mundo.
264 LI BE R SECU N D U S 4849

m e u p e so é l e ve " 119 . N ã o d e ve m o s ca r r e ga r Cr i s t o , p o is ele é in c a r r e gá ve l, m a s

devem os ser crist os, en t ão nosso ju go é suave e nosso peso, leve. Est e m u n d o
palpável e visível é u m a das realidades, mas a fan tasia é a ou t ra das realidades.
En qu an t o d eixarm os o Deu s visível e palpável fora de n ós, ele é in carregável e
sem esperan ça. Mas se t ran sform arm os o Deu s n u m a fan tasia, est ará em n ós e
leve de se carregar. Deu s fora de n ós au m en t a o fardo com tudo o que é pesado,
Deu s em n ós t orn a leve todo o pesado. Por isso todos os crist óforos t êm costas
en curvadas e fôlego ofegante, pois o m u n d o é pesado.
[ I H 48/ 2] H a m u it os que gost ariam de buscar aju da para seu Deu s doen te
e que foram engolidos pelas cobras e dragões que est ão de t ocaia n o cam in h o
para a t er r a do sol. Eles su bm ergiram n o d ia superclaro e se t orn aram h om en s
da escuridão, pois seus olhos foram cegados. Agora vagueiam por aí com o som -
bras, falam da lu z e n ão en xergam n ada. Mas seu Deu s está em tudo o que eles
n ão veem : ele está n a t erra escura do O cid en t e e aguça olhos que en xergam ,
ajuda a cozin h ar o ven en o e d irecion a as cobras para os calcan h ares dos cegos
que p rat icam a violên cia. Por isso, se fores in t eligen t e, levas o Deu s ju n t o, en t ão
sabes on de ele está. Se n ão o t iveres con tigo n a t erra do O cid en t e, ele virá sobre
t i em atropelo d u ran t e a n oit e, com couraça t ilin t an t e e m achado esm agador
de lu t a 12 0 . Se n ão o t iveres con tigo n a t erra do O r ien t e, pisarás sem querer n o
verm e d ivin o, que espreit a t eu calcan h ar despreven ido. /

[ I H 4 9 ] Tíido recebes do Deu s a qu em carregas, mas n ão sua arm a, pois ele


a quebrou. Usa a ar m a quem quer con quistar. Mas o que ain d a queres con qu is-
tar? Mais do que a Te r r a n ão podes con quistar. E o que é a Terra? El a é redon da
em t oda part e, u m a gota que est á depen durada n o grande un iverso. E ao sol
jam ais ch egarás, n em m esm o à lu a m on ót on a chega t eu poder, n ão d om in arás
o m ar, n em a neve dos poios, n em a areia do deserto, mas ao fin al só un s p ou -
cos sít ios de t erra verde. N e m m esm o con quistas algo com o passar do tem po.
Am a n h ã t eu d om ín io vir a p ó, pois deverias sobretudo - e ao m en os - d om in ar
a m ort e. Port an t o n ão sejas u m t olo e d ep õe a arm a. O p róp rio Deu s d est ru iu
sua arm a. A arm ad u ra basta para te proteger dos loucos que ain d a sofrem de

119 Mt 11,30.
120 Isto é, como Izdubar veio a Jung.
SEGU N D O D I A 265

con quist a. A arm ad u ra de Deu s te t orn a in vu ln erável, e até m esm o in visível


para os loucos m ais perigosos.

Leva t eu Deu s ju n t o. Leva-o para baixo, à t u a t erra escura, onde m oram


as pessoas que t oda m an h ã esfregam os olh os, mas que sem pre en xergam a
m esm a coisa e n u n ca a ou t ra coisa. Leva t eu Deu s para baixo, ao vapor pren h e
de ven en o, mas n ão com o aqueles cegados, que qu erem ilu m in ar as trevas com
lâm padas, a esses a t reva n ão en t en de, mas leva secretam en te t eu Deu s para o
teto h ospit aleiro. Pequenas são as cabanas das pessoas e, apesar de sua h osp it a-
lidade e boa von t ade, n ão podem receber o Deu s. Por isso n ão esperes até que
m ãos bru t alm en t e in ábeis de pessoas despedacem t eu Deu s, mas en volve-o de
novo, am orosam en t e, até que ele t en h a assum ido a form a do p rim eiro de todos
os seus com eços. N ã o deixes que u m olh o h u m an o veja o bem -am ado, t er r ivel-
m en t e m agn ífico n o estado de sua d oen ça e im pot ên cia. Lem b ra-t e de que teus
con cidadãos são an im ais, sem o saberem . En qu an t o cam in h am em suas past a-
gens ou ficam deitados ao sol, ou am am en t am suas crias, ou se acasalam , são
belas e in ofen sivas criat u ras d a pret a m ãe t erra. Mas quan do aparece o Deu s,
com eçam a en furecer-se, pois a proxim id ad e do Deu s gera fúria. Tr e m e m de
m edo e raiva e lan çam -se de repen t e n u m a bat alh a frat ricid a, pois u m fareja
n o out ro o Deu s próxim o. Escon d e port an t o o Deu s que t rouxest e contigo.
D e ixa que se en fureçam e se d ilacerem m u t u am en t e. Tu a voz é m u it o fraca
para que os raivosos a possam escutar. Por isso n ão fales e n ão m ostres o Deu s,
mas sen t a-t e n u m lugar erm o e can t a as en can t ações de acordo com a m an eira
bem antiga:

Coloca diante de t i o ovo, o Deus em seu princípio.


E contempla-o.
E com teu olhar de calor mágico choca-o.

49/ 50 A Q U I CO M EÇAM AS EN CAN TAÇÕ ES. /


266 LI BE R SECU N D U S 50/ 54

As en can t ações 121


Cap . x.

[Ilu st ração 5 0 ] 12 2
0 Natal chegou. O Deus está no ovo.
Estendi para m eu Deus um tapete, um tapete verm elho e m uito valioso do Oriente.
Que esteja cercado pelo brilho da m agnificência de sua terra oriental.
Sou a m ãe, a serva pura que concebeu e não soube com o.
Eu sou o pai cuidadoso que protege a serva.
Eu sou o pastor que recebeu a m ensagem , quando apascentava seu rebanho durante a noite em pastos
escuros 125.

1 [Ilu st ração 51]


Eu sou o sagrado anim al que está adm irado e não consegue entender o vir a ser de Deus.
Eu sou o sábio que veio do Oriente, pressentindo de longe a m aravilha124.
E eu sou o ovo que contém eguarda em si o germ e do Deus.

I [Ilu st ração 52]


As horas festivas crescem .
E m eu hum ano é m iserável e padece torm ento.
Pois eu sou um a parturiente.
Para onde m e deslum bras, ó Deus?
Ele é o eterno vazio e o eterno cheio125.
Nada se lhe parece, e ele se parece a tudo.
Eternam ente escuro e eternam ente claro.

Eternam ente em baixo e eternam ente em cim a.

121 O título foi omitido no volume caligráfico, e foi mantido aqui com base no esboço.
122 As ilustrações 50-64 representam simbolicamente a regeneração de Izdubar.
123 Lc 2,8-U: "Naquela mesma região havia uns pastores no campo, vigiando à noite o rebanho. Um anjo do
Senhor apresentou-se diante deles, e a glória do Senhor os envolveu de luz, ficando eles muito assustados.
O anjo lhes disse: Não temais, pois vos anuncio uma grande alegria, que é para todo o povo. Nasceu-vos
hoje, na cidade de Davi, um Salvador, que é Cristo Senhor".
124 Mt 2,1-2: "Tendo nascido Jesus em Belém da Judeia no tempo do rei Herodes, alguns magos do O rien te
chegaram a Jerusalém e perguntaram: Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Vim os sua estrela
no O rien te e viemos adorá-lo".
125 O s atributos do Deus são elaborados nesta seção como os atributos de Abraxas, no segundo sermão em
"Aprofundamentos". Cf. adiante, p. 456.
AS E N C AN T AÇ Õ E S 267

Dupla natureza na sim plicidade.


Sim ples no m últiplo.
Sentido no absurdo.
Liberdade na rejeição.
Subm isso quando vitorioso.
Velho na juventude.
Sim no não.

I [Ilu st ração 53]


Ó
luz do cam inho do m eio,
encerrado no ovo,
germ inativo,
repleto de dificuldade, oprim ido.
Repleto de tensão,
esperando m em ória perdida, visionário.
Pesado com o pedra, rígido.
Quente derretendo,
transparente.
Claro brilhando, voltado para si.

I [Ilu st ração 54] I2 V27


Am ém , tu és o Senhor do nascente.
Am ém , tu és a estrela do Oriente.
Am ém , tu és a for queflorescesobre todos.

Am ém , tu és o cervo que irrom pe da floresta.


Am ém , tu és o castigo que ressoa longe sobre a água.
Am ém , tu és o com eço e o fim.

126 Em "Dream s", Jung anotou a 3 de janeiro de 1917: "I n Lib. nov. snake image I I I incent." [estímulo à
imagem da serpente em Líber Novus] (p. 1). Isto parece referir-se a esta imagem.
127 Legenda da ilustração: "Brahmanaspati". Julius Eggling nota que "Brihaspati ou Brahmanaspati, o senhor
da oração ou do culto, toma o lugar de Agn i como representante da dignidade sacerdotal... No Rig-Veda
X, 68,9... diz-se que Brihaspati descobriu (avindat) a aurora, o céu e o fogo (agni) e expulsou as trevas com
sua luz (arka, sol); parece representar antes o elemento da luz e do fogo em geral" (SacredBooksoftheEast 12,
p. xvi.) Cf. tb. nota da ilustração 45, nota l i o , p. 259.
268 LI BE R SECU N D U S 54/59

12 8
54/ 55 / [ Ilu s t r a ç ã o 55]
Um a palavra que nunca foi pronunciada.
Um a luz que jam ais brilhou.
Um a confusão sem igual.
E um a estrada sem fim .

55/56 / [Ilu st ração 56]


Eu m e perdoo estas palavras com o tam bém tu m e perdoas por am or à tua luz cham ejante.

56/57 / [Ilu st ração $7]

Sobe, fogo com passivo da noite antiga.


Eu beijo a soleira de teu surgim ento.
Minha m ãe te estende tapetes e espalha sobre tua plenitudeflores verm elhas.

Sobe, m eu am igo, que estavas doente, rom pe a casca.


Nós te preparam os um a refeição.
Oferendas foram postas diante de ti.
Dançarinas te aguardam .
Construím os um a casa para ti.
Teus servos estão à tua disposição.
Reunim os para ti rebanhos em verde pastagem .
Enchem os teu cálice com vinho tinto.
Colocam os frutas cheirosas em travessas douradas.
Batem os à porta de tua prisão e nela aplicam os nosso ouvido para escutar.
As horas aum entam , não tardes m ais.

128 O barco solar é um motivo comum no Antigo Egito. O barco era considerado o meio típico de
locomoção do sol. Na mitologia egípcia o deus sol lutou contra o monstro Aphophis, que tentou engolir
o barco solar quando este atravessava o céu cada dia. Em Transformações e símbolos da libido, Jung analisou o
"disco solar vivo" egípcio ( O C , B, § 153) e o motivo do monstro marinho (§ 549s.). Na revisão que fez
deste texto em 1952, observou que a batalha com o monstro marinho representava a tentativa de libertar
a consciência do ego do controle do inconsciente (Símbolos da transformação. O C , Y § 539). O barco solar
assemelha-se a algumas das ilustrações contidas no Livro egípcio dos mortos ( W ALLI S BU D G E , E.A. (org.).
Londres: Arkan a, 1899/ 1985) (isto é, as vinhetas nas p. 390, 4 0 0 e 404). O remador é geralmente um
Hórus com cabeça de falcão. A viagem noturna do Deus Sol através do mundo inferior é descrita no
Amduat, e foi considerada um processo simbólico de transformação. Cf. ABT, T. & H O R N U N G , E.
Knowledgefor the Afierlífe - Th e Egyptian Am duat - A Quest for Immortality. Zurique: Livin g Hum an
Heritage, 2003.
AS E N C AN T AÇ Õ E S 269

/ [Ilu st ração 58 ] 12 9
Nós som os m iseráveis sem ti e esgotam os nossos cantos.
Nós te dissem os todas as palavras que nosso coração nos deu.
O que queres m ais?
O que devem os realizar para ti?
Abrim os para ti todas as portas.
Dobram os nossos joelhos aonde tu quiseres.
Vam os a todas as direções do céu, segundo teu desejo.
Trazem os o que está em baixo para cim a, e o que está em cim a, nós o tornam os o inferior, conform e

m andares.

Nós dam os e tom am os segundo tua vontade.


Queríam os ir à direita, mas vam os à esquerda, obedecendo a um aceno teu. Subim os e caím os, ba-
lançam os eficam os firm es, nós enxergam os e som os cegos, ouvim os e som os surdos, dizem os sim e não,
sem pre atendendo à tua palavra.
Não entendem os, e vivem os o incom preensível.
Não am am os, e vivem os o não am ado.
E novam ente nos viram os, e com preendem os, e vivem os o com preensível.
Am am os e vivem os o am ado, fiéis à tua lei. /

Vem a nós, que som os obedientes por vontade própria.


Vem a nós, que te entendem os por inteligência própria.
Vem a nós, que te esquentam os com fogo próprio.
Vem a nós, que te curam os com arte própria.
Vem a nós, que te geram os com ventre próprio.
Vem, criança, ao pai e à mãe.

129 Em "Sonhos", Jung escreveu: "17 I 1917: Hoje de noite: avalanches assustadoras e terríveis despencam
das montanhas, como nuvens colossais vão encher o vale, em cuja extremidade, no lado oposto, eu me
encontrava. Eu sei que preciso fugir para o alto, diante da terrível catástrofe. Este sonho foi bem explicado
na mesma data no Livro Negro. Em 17.01.1917 surgiu também o desenho vermelho da mancha na p. 58, do
Lib. Nov. Em 18.01.1917, li no jornal sobre a grandiosa formação atual das manchas do sol". O que segue
é uma paráfrase do apontamento de 17 de janeiro de 1917 no Livro Negro 6: Jung pergunta o que é que o
enche de ansiedade e pavor, o que está caindo da alta montanha. Sua alma lhe diz que ajude os deuses e
lhes ofereça sacrifícios. Ela lhe diz que o verme rasteja até o céu, começa a cobrir as estrelas e com uma
língua de fogo devora a mansão dos sete céus azuis. Ela lhe diz que também ele será devorado e que ele
deve rastejar para dentro da pedra e aguardar no estreito abrigo até que a torrente de fogo passe. Das
montanhas cai neve, porque o hálito ígneo cai de cima das nuvens. O deus está chegando, Jung deve
preparar-se para recebê-lo. Jung deve esconder-se na pedra, já que o deus é um fogo terrível. Precisa
permanecer quieto e olhar para dentro, de modo que o deus não o consuma nas chamas (p. i$2s.).
270 L I B E R S E C U N D U S 59/62

[Ilu st ração 5 9 ] 13 0 /
Perguntam os à terra.
Perguntam os ao céu.
Perguntam os ao m ar.

Perguntam os ao vento.
Perguntam os ao fogo.
Nós te procuram os em todos os povos.
Nós te procuram os junto a todos os reis.
Nós te procuram os junto a todos os sábios.
Nós te procuram os na nossa própria cabeça e coração.
E nós te encontram os no ovo. [Ilu st ração 6 0 ] /

Eu te im olei um a preciosa vitim a hum ana,


um jovem e um velho.
Eu esfolei m inha pele com facas.
Eu aspergi teu altar com m eu próprio sangue.
Expulsei pai e mãe, para que tu pudesses m orar com igo.
Fiz de m inha noite dia e andei por volta do m eio-dia com o um sonâm bulo.
Derrubei todos os deuses, infringi as leis, com i o que era im puro.
Joguei de lado m inha espada e vesti roupas efem inadas.
Arrebentei meu castelo fortificado e brinquei na areia com o criança.
Vi os guerreiros indo para a batalha e quebrei m inha arm adura com o m artelo.
Eu plantei meu cam po e deixei as frutas apodrecerem .
Tornei pequeno todo o grande e todo o pequeno, grande.
Troquei m eus objetivos m ais distantes pelo que havia de m ais próxim o, portanto estou pronto.

130 Legenda da ilustração: "hiranyagarbha". No Rig-Veda, hiranyagarbha era a semente primordial da qual
nasceu Brahma. No exemplar de Jung do vol. 32 dos Livros Sagrados do Oriente (H in os védicos), a única seção
que está destacada é a seção inicial, que começa com um hino "Ao Deus Desconhecido". Este começa: "No
início surgiu a Criança Dourada (Hiranyagarbha); logo que nasceu, foi o único senhor de tudo que existe.
Estabeleceu a terra e este céu: - Q uem é o Deus ao qual devemos oferecer sacrifício?" (p. 1). No exemplar
de Jung dos Upanishads, nos Livros sagrados do Oriente, há um pedaço de papel na p. 311 do Maitrâyana-
Brâhmana-Upanishad, e uma passagem que descreve o Si-mesmo, que começa: "E o próprio Si-mesmo é
também chamado... Hiranyagarbha" (SacredBooksoftheEast. Vol. 15, parte 2).
AS E N C AN T AÇ Õ E S 271

[Ilu st ração 6 1] 131


/ [ I H 62] Mas n ão est ou pron t o, pois ain d a n ão assum i em m im aquilo que 61/62
apert a o coração. Aqu ele t errível é a decisão do Deu s n o ovo. Alegro-m e m u it o
que acon t eceu a grande façan ha, mas esqueci do susto por causa dessa façanha.
Eu am o e ad m iro o que é poderoso. Nin gu ém é m aior do que aquele com os
ch ifres de touro, e assim m esm o eu o t or n ei paralít ico, eu o carreguei e o d i-
m in u í com facilidade. Q u ase caí ao ch ão quan do o vi, e agora eu o escondo n o
côn cavo da m ão. Est as são as forças que te am ed ron t am e op rim em , estes são
teus deuses, teus sen hores desde tem pos im em oriais: t u podes t am bém colocá-
los n o bolso. O que pode u m a blasfém ia con t ra isso? Eu gost aria de poder blas-
fem ar con t ra o Deu s: t eria ao m en os u m Deu s ao qual pudesse ofender, mas
n ão vale a pen a ofen der u m ovo que a gente carrega n o bolso. Est e é u m Deu s
que n u n ca se pode ofender.
Eu odeio a m iséria do Deu s. Bast a-m e a m in h a vileza. El a n ão se im p or t a se
eu a carregar ain d a com a m iserabilidade do Deu s. N ã o resiste: t u te desagradas
a t i m esm o, t u te desfazes em p ó. T u desagradas o Deu s, e ele se esconde, assus-
tado, n u m ovo. T u asperges as port as do in fern o: risos sufocados de m áscaras
e m úsica de loucos se fazem ouvir. T u assaltas o céu: os bastidores do teatro
d esm oron am e o pon t o em seu cubículo desm aia. T u percebes: n ão és real, em
cim a n ão é real, em baixo n ão é real, à esquerda e à d ir eit a est ão ilusões. Para
onde tateias h á ar, ar, ar.
Mas eu o p ren d i, aquele que é t em id o desde tem pos im em oriais, e o t orn ei
pequeno; m in h a m ão o abarca todo. Ist o é o fim dos deuses: o h om em coloca-os
n o bolso. Est e é o fim da h ist ória dos deuses. Nad a rest ou dos deuses a n ão ser
u m ovo. E este ovo, eu o possuo. Talvez eu possa acabar com este ú n ico e ú lt im o
e assim ext erm in ar d efin it ivam en t e a espécie dos deuses. Agora que sei que
os deuses caíram em m eu poder — o que pod em ain d a con t ra m im os deuses?
Velh os e m aduros dem ais t om baram e foram en t errados n u m ovo.
Co m o acon teceu isso? Eu abat i o Gr an d e, eu o lam en t ei, n ão quis aban -
d on á-lo, pois eu o am ava, porque n in gu ém dos m ort ais se igualava a ele. Por
am or im agin ei o t ru qu e que o exon erou do peso e o lib er t ou da espacialidade.
Por am or, eu lh e t ir ei a form a e a corporeidade. Eu o t ran qu ei am orosam en t e

131 A cara do monstro é semelhante a I H 29.


272 L I B E R S E C U N D U S 62/ 66

n o ovo m at ern al. Devo eu m at ar o indefeso, a qu em amo? Devo d esped açar a


débil casca de seu t ú m u lo e aban don ar aos ven t os do m u n d o o sem peso e sem
expan são? Mas n ão can t ei a en can tação por causa de sua desolação? N ã o o fiz por
am or a ele? Por que eu o amo? N ã o quero arran car de m eu coração o am or ao
Gran d e. Q u er o am ar o m eu Deu s, o desarmado e desamparado. Q u er o adot á-lo
com o a u m a crian ça.
N ã o somos filh os dos deuses? Por que os deuses n ão podem ser os nossos fi -
lhos? Se m orrer para m im m eu Deu s-p ai, deve n ascer para m im u m Deu s-filh o
de m eu coração m atern al. Pois eu amo o Deus e não quero abandoná-lo. Só quem
am a o Deus pode abatê-lo, e o Deus se entrega a seu vencedor e adapta-se às suas
m ãos e m orre em seu coração que o am a e lh e prom et e n ascim en t o.

Meu Deus, eu te amo, com o um a m ãe am a o não nascido que ela carrega debaixo de seu coração.
Cresce no ovo do Oriente, alim enta-te de seu am or, bebe as seivas de m inha vida, para que te tornes um
Deus brilhante. Precisam os de tua luz, ó criança. Um a vez que andam os na escuridão, ilum ina nosso
cam inho. Tua luz brilhe diante de nós, teu fogo esquente o frio de nossa vida. Não precisam os de tua
força, mas da vida.

62/ 63 I De que nos aproveit a a força? N ã o querem os dom in ar. Q u erem os viver,
querem os a lu z e o calor, e por isso precisam os de t i. Assim com o a t er r a e a l-
guns corpos vivos precisam do sol, precisam os n ós com o espírit os de t u a lu z e
calor. U m espírit o sem sol t orn a-se u m parasit a do corpo. Mas o Deu s alim en t a
63/ 64 o espírit o. [Ilust ração 63] / [Ilu st ração 64] I 3 U 3 3 /
64/ 65

132 Em "Sonhos", Jung anotou a 4 de fevereiro de 1917: "Começado o trabalho sobre a Abertura do O vo
(ilust r.)" (p. 5). Isto mostra que a ilustração retrata a regeneração de Izdubar do ovo. A respeito do barco
solar nesta ilustração, cf. ilustração 55.
133 Legenda da ilustração: "çatapatha-brâhmana 2,2,4". Çatapatha-brâhmana 2,2,4 (SacredBooksoftheEast.
Vol. 12) apresenta a justificação cosmológica que está por trás do Agnihotra. Começa descrevendo como
Prajapati, desejando ser reproduzido, produziu Agn i de sua boca. Prajapati ofereceu-se a Agn i e salvou-o
da Morte, porque estava prestes a ser devorado. O Agnihotra (lit. cura pelo fogo) é um ritual védico
realizado ao nascer do sol e ao pôr do sol. Aquele que o executa purifica-se, acende um fogo sagrado, recita
versos e uma oração a Agn i.
A ABERT U RA D O O VO 273

A abertura do ovo 134


Cap . xi.
I 35
[IH 65] À noite do terceiro dia, ajoelhei-m e novam ente no tapete e abri cuidadosam ente o ovo.

Qual fum aça isto saiu de dentro, e de repente está Iz dubar de pé diante de m im , enorm e com o um gigan-

te, transform ado eperfeito. Seus m em bros estão sadios, e eu não encontro neles vestígio do dano sofrido.

É com o se ele despertasse de um sono profundo. Falou:

"Onde estou? Com o é apertado aqui - com o está escuro - com o está frio - estou no túm ulo? Onde

estive? Pareceu-m e que estive lá fora no universo - acim a e abaixo de m im um céu escuro e sem fim ,

cintilante de estrelas

- eu estava num calor indiz ivelm ente agradável.

Torrentes de fogo irrom piam de m eu corpo brilhoso -

Eu m esm oflut uavaem cham as vivas -

Eu m esm o nadava em m ar bem apertado contra m im de fogo cheio de vida -

Todo luz, todo desejo, todo eternidade -

Antiquíssim o e eternam ente m e renovando -

Caindo do m ais alto para o m ais baixo e do m ais baixo para o m ais alto agitado luz ente para cim a -

Em nuvens incandescentes pairando em torno de m im m esm o -

134 Em vez disso, o esboço tem: "Terceiro dia" (p. 329).


135 10 de janeiro de 1914. No Livro Negro 3, Jung escreveu: "Parece como se através dessa experiência
memorável se tenha alcançado novamente alguma coisa. Mas ainda não dá para ver aonde tudo isto vai
levar. Ouso dizer apenas que o destino de Izdubar é trágico-cómico, pois a vida mais santa é trágico-
cômica. Fr. Th . Vischer (A[u ch ]. E [iner].) fez a prim eira tentativa de erigir em sistema esta verdade. A
ele se deve um lugar entre os imortais. O que está no meio é a verdade. Ela tem muitas faces. Um a delas
é certamente cómica, outra triste, uma terceira má, uma quarta trágica, uma quinta feliz, uma sexta uma
careta, etc. Se uma dessas faces se torna especialmente impositiva a nós, reconhecemos nisso que nos
desviamos da verdade segura e nos aproximamos de um extremo, que é certamente um beco sem saída,
se quisermos teimar em continuar neste caminho. É uma tarefa sangrenta escrever uma sabedoria da vida
real, sobretudo quando nós passamos muitos anos na seriedade da ciência. A coisa mais difícil é captar o
jocoso (nos preferiríamos dizer - o infantil) da vida. Todos os aspectos diversos da vida: o grande, o belo,
o sério, o negro, o demoníaco, o bom, o ridículo, o grotesco são áreas de utilização das quais todo indivíduo
trata de engolir totalmente o observador ou quem descreve. / Nossa época precisa de um regulador do
espiritual. Assim como o mundo do concreto se ampliou a partir da visão lim itada dos antigos para a
multiplicidade incomensurável da visão moderna, também o mundo das possibilidades espirituais se
desenvolveu para o multiforme inconcebível. Caminhos infinitamente longos, calçados com grossos
cordéis, levam de uma especialidade a outra. Em breve ninguém mais poderá trilhar estes caminhos. E
então só haverá mais especialistas. Precisamos mais do que nunca da verdade viva da vida espiritual, uma
orientação reguladora" (p. 74-77). A obra de Vischer era Auch Eíner: Ein e Reisebekanntschaft. Stuttgart,
1884. Em 1921, Jung escreveu: "O romance de F. Th . Vischer, Auch Eíner, dá uma visão pertinente desse
lado do estado introvertido da alma, bem como do simbolismo subjacente ao inconsciente coletivo" (Tipos
psicológicos. O C , 6, p. 627). Em 1932, Jung comentou a compreensão de Vischer da "malícia do objeto",
em SH AM D ASAN I , S. (org.). A psicologia da ioga kundaliní. Princeton: Princeton University Press, 1996, p.
54 [Bollingen Series]. Sobre Auch Eíner, cf. H E L L E R , R. "Auch Einer: the epitome of F. Th . Vischer's
Philosophy of Life". German Life and Letters, 8,1954, p. 9-18.
274 L I B E R S E C U N D U S 65/67

Enquanto a chuva incandescente batendo com o espum a da rebentação, / inundando


a m im m esm o em fervura -
Em jogo incom ensurável me abraçando e repelindo -
Onde estava eu? Eu era todo sol."136

Eu : " O Izd u bar! Divin o ! Q u e m aravilh a! T u estás cu rad o!"

"Curado? Estive algum a vez doente? Quem está falando de doença? Eu era sol, todo sol Eu sou
o sor.

U m a lu z in dizível sai de seu corpo, u m a lu z que m eus olhos n ão podem


suportar. Ten h o de cob rir m eu rost o e p rot ejo-o n o chão.
Eu : "T u és o sol, a lu z et ern a - perdoa, Pod erosíssim o, que m in h a m ão te
t en h a carregado".
Tu d o est á quiet o e escuro. O lh o ao m eu redor: sobre o tapete est á a casca
vazia de u m ovo. Eu apalpo a m im m esm o, apalpo o ch ão e as paredes: tudo está
com o sem pre foi, bem sim ples e b em real. Eu gost aria de dizer: tudo em t orn o
de m im vir o u ouro. Mas n ão é verdade - tudo é com o sem pre foi. Aq u i b r ilh a
a lu z et ern a, in com en su rável e u lt rap od erosa 137 .

[2] [ I H 6 6 ] Acon t eceu que eu abri o ovo e que o Deu s saiu do ovo. Est ava per-
feit am en t e bem e b rilh ava em con st it u ição t ran sform ada; eu m e ajoelh ei com o
crian ça e n ão con segui en t en der o m ilagre. Ele que jazia com p rim id o n o casulo
do prin cípio, levan t ou -se e n ão se en con t rou n ele n en h u m vest ígio de doen ça.
E quan do eu im agin ei que h avia pren d id o o Fort e e segurado n o côn cavo d a
mão, era o p róp rio sol.
Eu viajei para o O r ien t e, para o n ascen te do sol. Eu m esm o qu eria nascer
com o se fosse o sol. E u qu eria agarrar o sol e com ele su bir para o d ia resp lan -

136 Roscher observa que, "como Deus, Izdubar está associado ao deus-sol" (Ausfuhrlíches Lexikon dergríechíschen
und rõmíschen Mythologíe. Vol. 2, p. 774). A incubação e renascimento de Izdubar segue o padrão clássico dos
mitos solares. Em Das Zeítalter des Sonnengottes, Leo Frobenius salienta o difundido motivo de uma mulher
engravidando através de um processo de concepção imaculada e dando à luz o deus-sol, que se desenvolve
num período de tempo notoriamente curto. Em algumas formas, fica incubado num ovo. Frobenius
relaciona isto ao nascer e ao pôr do sol no mar (Berlim : G. Reimer, 1904, p. 223-263). Jung cita esta obra
em diversas passagens em Transformações e símbolos da libido (1912).
137 Em Tipos psicológicos (1921) Jung comentou o motivo do Deus renovado: "O Deus renovado significa uma
atitude renovada de vida intensa, uma nova consecução de vida, porque psicologicamente Deus significa
sempre o valor maior, a maior quantidade de libido, a maior intensidade de vida, o ótimo da vitalidade
psicológica" ( O C, 6, § 301).
A ABERT U RA D O O VO 275

decen te. Mas ele veio ao m eu en con t ro e in d icou -m e o cam in h o. Tive de ou vir
dele que m e h avia sido t irad a t oda possibilidade de chegar ao n ascen te. Mas, ele
qu eria apressar-se para o poen te, para descer com o sol ao seio da n oit e, foi p a-
ralisado por m im e foi-lhe t irad a t oda esperan ça de chegar ao bem -aven t u rad o
O cid en t e.
Mas observa! Eu ap rision ei o sol sem o saber e o carreguei em m in h a m ão.
Ele, que qu eria p ôr -se com o sol, en con t rou por m eu in t erm éd io o seu ocaso.
Eu m esm o t orn ei-m e sua m ãe n ot u rn a, que ch ocou o ovo do prin cípio. E ele
n asceu ren ovado, ren ascido para m aior glória.
Mas en quan t o ele nasce, eu chego ao ocaso. En q u an t o eu su jeit ava o Deu s,
sua força fluía para m im . Mas en quan t o o Deu s descansava n o ovo e esperava
seu com eço, m in h a força passou para ele. E en quan t o se erguia relu zen t e, eu
estava prost rado sobre m eu rosto. Ele t om ou m in h a vid a consigo. Tod a m in h a
força estava com ele. Min h a alm a n adava com o peixe em seus m ares de fogo.
Meu h u m an o, p orém , estava deit ado n a h orrip ilan t e frialdade d a som bra d a
t erra e afundava cada vez m ais n a escuridão m ais in ferior. Tod a lu z se ret irara
de m im . O Deu s ergueu-se n a t er r a do O r ien t e, e m eu eu caiu n o h or r or do
m u n d o in ferior. Co m o u m a p art u rien t e t errivelm en t e dilacerada e sangrando
sopra sua vid a sobre o recém -n ascid o, e n o olh ar m oribu n d o u n ifica m ort e e
vid a, assim jazia eu , a m ãe do d ia, u m a presa da n oit e. Me u Deu s m e d ilacerou
h orrivelm en t e, bebeu a seiva de m in h a vid a, bebeu para d en t ro de si a m áxim a
força de m eu am or e t orn ou -se m agn ífico e fort e com o o sol, u m Deu s curado
em que n ão h á m an ch a n em falta. Tir o u - m e a asa, rou bou -m e a in t u m escên cia
de m eus m úsculos, o poder de m in h a von t ade desapareceu com ele. A m im
d eixou -m e im p ot ên cia e lam úrias.
/ Eu n ão sabia com o m e acon t eceu que agora m esm o desapareceu de m eu
seio m at ern al tudo o que era poderoso, belo, ch eio de alegria, sobre-h um an o;
n ada m e rest ou do ouro brilh an t e. Terrível e in grat am en t e, o pássaro do sol
abriu suas asas e levan t ou voo para o espaço in com en su rável. Rest aram -m e
cascas quebradas, casulo d eplorável de seu prin cípio, e o vazio d a profun deza
abriu-se em baixo de m im .
Ai da m ãe que dá à luz u m Deus! Se der à luz u m Deus ferido e cheio de dores,
u m a espada traspassará sua alma. Mas se der à luz u m Deus curado, abrir-se-á para
ela o in fern o do qu al sairão m on st ros serpen t ários, que sufocarão a m ãe com
bafo pest ilen t o. O n ascim en t o é difícil, mas m il vezes m ais difícil é o p ós-p art o
276 L I B E R S E C U N D U S 67/ 68

i n fe r n a l 13 8 . At r á s do filh o d i vi n o v ê m t o d o s os d r a g õ e s e m o n s t r o s s e r p e n t á r io s
do vazio etern o.
O que rest a da n at u reza h u m an a, quan do o Deu s se t or n ou m aduro e u su r-
pou t oda a força para si. Tu d o o que é in capaz, tudo o que é sem força, todo
o et ern am en t e t rivial, todo o vazio, todo o desfavorável e p reju d icial, todo o
repugn an te, avilt an t e, dest ruidor, todo o absurdo, tudo o que en cerra em si a
in son dável n oit e da m at éria, ist o é o p ós-p art o do Deu s e a deform idade h or -
rip ilan t e de seu irm ão in fern al.
O Deu s sofre quan do o ser h u m an o n ão assume suas trevas. Por isso as pes-
soas t iveram que t er u m Deu s sofredor, en quan t o elas sofriam do m al. Sofrer
do m al sign ifica que t u ain d a amas o m al e n o en t an t o n ão o amas m ais. T u te
prom etes ain d a algo disso, m as n ão queres ad m it ir, por m edo, que podes desco-
b r ir que apesar disso ain d a amas o m al. Por isso sofre o Deu s, porque t u , ain d a
am an do o m al, sofres disso. T u n ão sofres disso porque tens de recon h ecer o
m al, mas porque ele ain d a te p rop orcion a u m a diversão secreta e porque ele
parece p rom et er-lh e algum prazer em algum a ocasião descon h ecida.
En q u an t o t eu Deu s sofre, tens pen a dele e de t i. Co m isso poupas t eu in fer-
n o e prolongas seu sofrim en t o. Se t u , sem pen a secreta de t i, quiseres cu rá-lo, o
m al te cairá nos braços, cu ja exist ên cia t u reconheces em geral, mas cu ja força
in fern al em t i m esm o t u n ão conheces. Tu a ign orân cia do m al provém da in o -
cên cia prévia de t u a vid a, do sossego da con ju n t u ra e da ausên cia do Deu s. Mas
quan do o Deu s se aproxim a, t u a n at u reza se agita, e o lado negro da profun deza
vem à t on a.
O ser h u m an o est á en t re o ch eio e o vazio. Q u an d o sua força se un e ao
cheio, ele atua n o ch eio m oldan do. Est a m od elação é sem pre de qualquer m odo
boa. Q u an d o sua força se un e ao vazio, ela at ua dissolven do e dest ruin do, n ão
poden do o vazio ser m odelado jam ais, mas só am bicion a saciar-se à cu st a do
cheio. Assim u n id a, a força h u m an a faz do vazio o m al. Q u an d o t u a força m o -
dela o ch eio, ela assim procede devido à sua u n ião com o cheio. Mas para que
tua m odelagem perdu re, é n ecessário que t u a força fique ligada a ela. At ravés
da con st an t e m odelagem perdes aos poucos t u a força, quan do fin alm en t e t oda
a força fica u n id a ao m odelado. Ao fin al, quan do julgas estar rico, ficaste pobre

138 No próximo capítulo, Jung se encontra no inferno.


A ABERT U RA D O O VO 277

e estás com o m en digo em m eio às tuas m od elações. Est e é en t ão o m om en t o


em que a pessoa deslum brada é t om ada por m aior desejo d a m odelação, pois
ela ach a que através de form as m u it as vezes m u lt iplicad as pode ser saciado seu
desejo. Pelo fato de sua força estar n o fim , t orn a-se ávida e com eça a obrigar os
out ros a ser vi-la e t ir a deles a força para con figurar a sua.
Nesse m om en t o precisas do m al. Q u an d o percebes que t u a força chega ao
fim e que com eça a cobiça, precisas t irar t u a força da con form ação e p u xá-la de
volt a para t eu vazio e, através dessa ligação com o vazio, consegues d ilu ir em t i
a con form ação. Assim con quistas de volt a a liberdade, ao despren der t u a força
da u n ião opressora com o objeto. En qu an t o persist ires n o pon t o de vist a do
bem , n ão podes d ilu ir t u a con form ação, pois ela é precisam en t e o t eu bem . N ã o
podes d ilu ir bem com bem . Só podes d ilu ir o bem com o m al. Pois t am bém t eu
bem te con duz fin alm en t e à m ort e através da progressiva ligação de t u a força.
N ã o podes viver de form a n en h u m a sem o m al.
Tu a form a de ser cr ia em p r im eir o lugar u m a im agem de t u a con form ação
em t i m esm o. Est a im agem perm an ece em t i e / é a p r im eir a e im ed iat a ex- 67/ 68

pressão de t u a form a de ser. En t ão se cria através dessa im agem u m a im agem


ext ern a, que pode su bsist ir sem t i e sobreviver a t i. Tu a força n ão est á vin cu -
lada d iret am en t e à t u a con form ação ext erior, mas só através da im agem que
perm an ece em t i. Q u an d o com eças a d ilu ir t u a con form ação com o m al, n ão
dest róis a con form ação ext erior, caso con t rário d est ru irias t u a p róp ria obra.
Mas só dest róis a im agem que form aste em t i. pois é esta im agem que segura
t ua força. N a m ed id a em que esta im agem pren de t u a força, n a m esm a m ed id a
precisarás t am bém do m al para d ilu ir t u a con form ação e lib ert ar a t i m esm o do
poder do que passou.
Por isso h á m u it os bon s que se esvaem em sangue d evid o à sua con for m a-
ção porque n ão con seguem aceit ar n a m esm a m ed id a t am b ém o m al. Q u a n t o
m elh or algu ém é e qu an t o m ais, p or isso, est á preso à sua con form ação, t an t o
m ais p er d er á sua força. O que acon tece qu an do o b om p erd eu t ot alm en t e
sua força em su a con form ação? N ã o só t en t ará forçar out ras pessoas com
ast ú cia e violên cia in con scien t es ao serviço de sua con form ação, m as t a m -
b ém se t orn ará, sem o saber, m au em seu b em , pois seu desejo de saciedade
e fort alecim en t o va i t or n á-lo cad a vez m ais egoíst a. Mas com isso, o b om
d est rói fin alm en t e sua p r óp r ia obra, e t odos que ele forçou ao serviço de sua
278 LI BE R SECU N D U S 68/ 69

o b r a se t o r n a r ã o seu s i n i m i g o s , p o r q u e e le os a l i e n o u . Mas q u e m te alien a

de t i m esm o, ain d a que a serviço d a m elh or causa, t u vais com eçar a od iá-lo
secret am en t e, m esm o con t r a t eu p r óp r io desejo. Ao b om , que com p rom et eu
sua força, t o r n ar -se-á in felizm en t e fácil dem ais en con t r ar escravos p ara seu
serviço, pois exist em m u it os que n ão d esejam ou t ra coisa do que alien ar-se
de si sob u m b om pret ext o.
T u sofres com o m al porque n ão o amas con scien t em en t e n o ocu lt o n em
para t i m esm o. Gost arias de evit á-lo e com eçar a od iar o m al. E ou t ra vez es-
tás ligado ao m al at ravés de t eu ód io, pois se o amas ou odeias, ist o con t in u a
sendo o m esm o para t i: estás ligado ao m al. Deve-se aceit ar o m al. O que n ós
querem os perm an ece em n ossa m ão. O que n ão querem os, e assim m esm o
é m ais fort e do que n ós, arrast a-n os ju n t o e n ão podem os d et ê-lo sem n os
p reju d icar a n ós m esm os. Pois n ossa força perm an ece en t ão n o m al. Port an t o
devem os aceit ar nosso m al, sem am or e sem ód io, recon h ecen do que ele est á
aí e que precisa t er sua part e n a vid a. Dessa m an eir a t iram os dele a força para
nos ven cerm os.

Q u an d o conseguim os criar u m Deu s e quando, através dessa criação, t oda


a n ossa força en t rou nessa con figuração, somos tom ados do desejo irresist ível
de elevar-n os com o filh o d ivin o e t orn ar-n os part ícipes de sua glória. Mas nos
esquecem os de que en t ão n ada m ais somos do que form a vazia, ten do a con fi-
guração de Deu s arran cado para si t oda n ossa força. N ã o nos t orn am os apenas
pobres, mas m at éria com plet am en t e podre, à qual jam ais con viria p art icip ar da
divin dade.
Co m o sofrim en t o t errível ou p ersegu ição d em on íaca in evit ável con st r an -
gem os a m iséria e a necessidade de n ossa m at éria. A m at éria im pot en t e co-
m eça a sugar e gost aria de en golir n ovam en t e sua im agem . Mas com o estam os
sem pre en am orados de n ossa con figuração, acredit am os que o Deu s nos ch am a
a si, e n ós fazemos esforços desesperados para seguir a Deu s n o espaço m ais
elevado, ou nos volt am os aos nossos con cid ad ãos, pregan do e adm oestan do a
que forcem ao m en os outras pessoas a seguir Deu s. In felizm en t e exist em pes-
soas que se d eixam facilm en t e con ven cer disso para preju ízo delas e nosso.
H á m u it a fatalidade n est a pressão: pois qu em pod eria im agin ar que ele,
criado por Deu s, estivesse con den ado ao in fern o? E n o en t an t o é assim , pois a
A ABERT U RA D O O VO 279

m at éria, que está despida da força do b rilh o d ivin o, é vazia e ten ebrosa. Q u a n -
do o Deu s sai da m at éria, sen t im os o vazio d a m at éria com o part e do espaço
in fin it am en t e vazio.
At ravés da pressa, da von t ade e do agir m u lt iplicad os querem os escapar do
vazio e, port an t o, do m al. Mas o cam in h o cert o é aceit ar o vazio, d est ru ir a im a -
gem da con figuração em n ós, u n ir o Deu s e descer ao in son d ável e abom in ável
da m at éria. O Deu s com o obra n ossa está fora de n ós e já n ão precisa de n ossa
ajuda. Ele est á criado e perm an ece entregue a si m esm o. U m a obra criad a que
desaparece tão logo nos afastemos dela n ão prest a, m esm o que / fosse u m Deu s. 68/ 69

Mas on de está en t ão o Deu s após sua criação e após sua separação de m im ?


Q u an d o con st róis u m a casa, t u a vês posicion ada n o m u n d o ext erior. Q u an d o
criaste u m Deu s, que n ão vês com os olhos corporais, en t ão ele est á n o m u n d o
espirit u al, que n ão é m en or que o m u n d o real ext ern o. Ele está lá e opera para
t i e para os outros t udo o que podes esperar de u m Deu s. Assim , t u a alm a é t eu
p róp rio si-m esm o n o m u n d o espirit u al. Mas o m u n d o espirit u al, com o m orad a
dos espírit os, é t am bém u m m u n d o ext erior. Assim com o t u n ão estás sozin h o
n o m u n d o visível, mas rodeado por coisas que te pert en cem e que só a t i obede-
cem , t am bém t u ten s pen sam en tos que te p ert en cem e só a t i obedecem . Mas
assim com o t am bém estás rodeado n o m u n d o visível por coisas e seres, que n ão
te p ert en cem n em te obedecem , t am bém estás cercado n o m u n d o esp irit u al
por pen sam en tos e seres ideais que n ão te obedecem n em te pert en cem .
Assim com o teus filh os carn ais foram gerados e n ascidos de t i, crescem e
se separam de t i, para viver em seu p róp rio destin o, t am b ém geras ou dás à lu z
seres ideais que se separam de t i e vivem sua p róp ria vid a. Assim com o u m a
pessoa se separa de seus filh os quan do fica velh a e devolve seu corpo de n ovo
à t erra, t am bém eu m e separo de m eu Deu s, o sol, e m ergulh o n o vazio da m a-
t éria e apago em m im a im agem que t in h a de m im com o crian ça. Ist o acontece
quan do aceito a n at u reza da m at éria e d eixo fluir a força de m in h a con figuração
para d en t ro de m eu vazio. Assim com o eu fiz ren ascer ren ovado o Deu s doen te
através de m in h a força geradora, d ou vid a agora ao vazio d a m at éria, donde
nasce a con figuração do m al.

A natureza é brincalhona e assustadora. Uns veem o lado brincalhão,riem com ele e deixam que bri-

lhe. Outros veem o horror, cobrem a cabeça e estão m ais m ortos do que vivos. O cam inho não está entre
28o LI BER SECU N D U S 69/ 74

69/ 73 os dois, abrange os dois em si. Éjogo divertido e horrorfrio139. [Ilu st ração 6 9 ] 14 0 / [Ilu st ração

70 ] / [Ilust ração 71] 14 1 / [Ilu st ração 72]. /

O in fern o
Cap. xii.

[ I H 73] N a segunda n o it e 14 2 após a criação do m eu Deu s, in form ou -m e u m a


visão de que eu h avia chegado ao subm un do.
Eu estava n u m su bt errân eo tenebroso, o ch ão con sist ia de placas úm idas
de pedras. No m eio h avia u m a colu n a d a qu al p en d iam cordas e en xadas. Ao
pé d a colu n a jazia u m em aran h ado assustador, sem elh an te a cobras, de corpos
h um an os. V i em p rim eiro lugar a figura de u m a jovem com m aravilh oso cabelo
verm elh o-dourado - debaixo dela, encoberto até a metade, estava deitado u m
h om em de aspecto dem on íaco - sua cabeça estava in clin ad a para trás - u m filete
de sangue escorria de sua testa — sobre os pés e o corpo da m oça jogaram -se m ais
dois d em ón ios sem elh an tes. Seus rostos t êm expressão in u m an a - o m al em
pessoa — seus m úsculos est ão tensos e rígidos e seus corpos são elásticos com o
os de cobras. Est ão deitados in ert es. A jovem m an t ém a m ão sobre o ú n ico olh o
do h om em que está deitado debaixo dela, que é o m ais poderoso dos três — sua
m ão segura firm em en t e u m pequen o an zol de prat a que ela cravou n o olh o do
d em ón io.
U m suor de m edo brot ou -m e de todos os poros. Eles qu eriam t ort u rar a
jovem at é a m ort e; ela reagia com a força de ext rem o desespero e con seguiu
at in gir o olh o do diabo com o pequen o arpão. Se ele se m exesse, ela lh e ar r an -

139 Em "Sonhos" Jung escreveu em 15 de fevereiro de 1917: "A cena da abertura completamente transcrita.
/ O mais belo sentimento de renovação. Hoje de manhã novamente ao trabalho científico. / Tipos!" (p.
5). E uma referência à conclusão da transcrição desta seção para o volume caligráfico e à continuação dos
trabalhos sobre os tipos psicológicos.
140 O s círculos azuis e amarelos são semelhantes aos da ilustração 60, na edição ilustrada.
141 Esta ilustração pode ser aquela a que se refere Tin a Keller na seguinte afirmação numa entrevista em que
lembra a discussão de Jung de suas relações com Em m a Jung e Ton i Wolff: "Jung mostrou-me certa vez
uma ilustração no livro que estava pintando e me disse: 'Veja que estas três cobras estão entrelaçadas. Esta
é a maneira como nós três lutamos com este problema'. Só posso dizer que me pareceu muito importante
que, mesmo como fenómeno passageiro, aqui estavam três pessoas aceitando um destino que não correu
muito bem para satisfação pessoal delas" (En trevista com Gene Nameche, 1969, R.D. Laing papers,
University of Glasgow, p. 27).
142 12 de janeiro de 1914.

t
O IN FERN O 281

caria o olh o com u m ú lt im o puxão. O pavor m e paralisou: o que acon t ecerá?


U m a voz falou:
"O diabo não pode fazer sacrifícios, não pode oferecer em sacrifício seu olho, a vitória está com
aquele que pode oferecer sacrifícios".143

[2] A visão desapareceu. Eu percebi que m in h a alm a h avia caíd o n o poder


abissal do m aligno. O poder do m align o é in con t est e; é com razão que o t e-
m em os. Aq u i n ão ajuda n en h u m a oração, n en h u m a palavra piedosa, n en h u m
passe de m ágica. Às vezes te acom ete violên cia b ru t al, e n ão h á aju da em lugar
n en h u m . O u t r as vezes, o m al te agarra sem com paixão, e n ão h á pai, n em m ãe,
n em d ireit o, n em m u ros e t orres, n em arm ad u ra e força prot et ora que ven h am
em t eu socorro. Mas, im pot en t e e t ot alm en t e só, cais n a m ão da superioridade
do m al. Nest a bat alh a estás sozin h o. Eu qu eria dar à lu z o m eu Deu s, por isso
qu eria t am bém o m al. Q u e m quer criar o et ern am en t e ch eio, vai criar para si
t am bém o et ern am en t e va z io 14 4 . N ã o podes u m a coisa sem a ou t ra. Se queres
fugir do m al, n ão crias n en h u m Deu s, mas tudo o que fazes é m orn o e cin zen t o.
Eu qu eria m eu Deu s in con d icion alm en t e. Por isso quero t am bém o m eu m al.
Se m eu Deu s n ão fosse ultrapoderoso, t am bém n ão seria ult rapoderoso o m eu
m al. Mas eu quero que m eu Deu s seja poderoso e m agn ífico e relu zen t e sobre
as massas. Só assim eu am o o m eu Deu s. E por am or ao b r ilh o de sua beleza vou
exp erim en t ar t am bém o ch ão do in fern o.
Me u Deu s levan t ou-se n o céu orien t al, m ais claro que todos os astros e
t rou xe para cim a u m n ovo d ia sobre as n uven s. Por isso desejo viajar para o
in fern o. U m a m ãe n ão dá sua vid a por seu filh o? Q u an t o m ais n ão d aria m i -
n h a vid a, quan do só m eu Deu s ven ce o t orm en t o da ú lt im a h ora d a n oit e e
t riu n fan t e irrom p e através d a n évoa verm elh a da m an h ã. N ã o duvido: eu quero
t am bém o m al por am or a m eu Deu s. Eu aceito a bat alh a desigual, pois esta
bat alh a é sem pre desigual e de in u t ilid ad e cert a. Co m o seria de ou t ro m odo
assustadora e desesperada esta batalha? Mas é exat am en t e ist o que ela é e será.

/ Nad a é m ais valioso para o m align o do que seu olho, pois só por causa de
seu olh o pode o vazio captar o ch eio brilh an t e. Pelo fato de o vazio sen t ir a falta

143 Nota marginal ao volume caligráfico: "çatapatha-brâhmanam 2,2,4". A mesma inscrição é dada à ilustr.
64. Cf. notas 132 e 133 acima.
144 Em Assim falava Zaratustra, Nietzsche escreveu: "E preciso ter um caos dentro de si, para poder gerar uma
estrela dançante ("Prólogo de Zaratustra", § 5). ( O itálico está^ublinhado no exemplar de Jung).
282 L I B E R S E C U N D U S 74/75

do ch eio, am bicion a o ch eio e sua força relu zen t e. E ele o bebe através de seu
olho, que consegue captar a beleza e o b rilh o sem m an ch a do cheio. O vazio é
pobre e, se n ão tivesse o olho, seria sem esperan ça. Ele vê o m ais belo e quer
en goli-lo para d est ru í-lo. O d em ón io sabe o que é belo, por isso ele é a som -
bra do belo e o segue por t oda part e, esperan do o m om en t o em que a beleza,
revolven do-se em dores, gost aria de dar a vid a a Deu s.
Q u an d o t u a beleza cresce, arrast a-se para cim a t am bém o m on st ru oso ver -
m e, esperan do sua presa. Para ele n ada é sagrado sen ão seu olho, com o qual
observa o m ais belo. Jam ais aban d on ará seu olho. Ele é in vu ln erável, mas n ada
protege seu olh o; ele é t ern o e claro, perit o em beber a lu z et ern a. Ele quer a t i,
a lu z verm elh o-clara de t u a vid a.
Eu con h eço a n at u reza h u m an a t rem en d am en t e diabólica. Cu b r o dian t e
dela m eus olhos. Est en d o m in h a m ão recusan te quan do alguém deseja apro-
xim ar-se de m im , por m edo que m in h a som bra possa cair sobre ele, ou sua
som bra cair sobre m im , pois eu vejo t am bém o d iabólico n ele, o com pan h eiro
in ofen sivo de sua som bra.
Q u e n in gu ém m e toque; assassinato e in fâm ia espreit am a t i e a m im . T u
sorris in ocen t em en t e, m eu amigo? N ã o vês que u m leve pest an ejar de t eu olh o
revela o t errível, cujo m en sageiro t u és sem suspeitar? Te u tigre sedento de san -
gue rosn a baixin h o, t u a cobra p eçon h en t a sibila fu rt ivam en t e, en quan t o t u , só
con scien t e de t u a bondade, estendes t u a m ão para o cu m prim en t o. Eu con h eço
t ua e m in h a som bra, que an da atrás de n ós e que nos acom pan h a, só esperando
a h ora do crepúsculo, onde ela, com todos os d em ón ios da n oit e, vai estran gular
a t i e a m im .

Q u e abism o de h ist ória san gren t a separa a t i e a m im ! Eu t om ei t u a m ão e


olh ei n o t eu olh o h um an o. Eu d eit ei m in h a cabeça em t eu colo e sen t i o calor
vit al de t eu corpo, era t ão especialm en te m eu , que parecia ser m eu p róp rio cor-
po - e eu sen t i de repen t e u m a cord a escorregadiça em t orn o do pescoço, que
sufocava sem d ó, e u m a m art elad a at roz cravou -m e u m prego n a testa. Pelos
pés, arrast aram -m e sobre o pavim en t o, e cães ferozes devoravam partes de m eu
corpo n a n oit e lúgubre.

Nin gu ém deve ad m irar-se de que as pessoas sejam t ão dist an t es um as das


out ras, de que n ão se en t en d am , de que se façam gu erra e se m at em . H á que
O IN FERN O 283

ad m irar-se m u it o m ais de que as pessoas acred it em que est ão p róxim as um as


das out ras, de que se en t en d em e se am am . Ai n d a h á duas coisas a serem des-
cobert as. A p r im eir a é o abism o in fin it o que separa as pessoas um as das o u -
tras. A segunda é a pon t e que p od eria ligar duas pessoas en t re si. Já pensaste
algum a vez em qu an t a an im alid ad e jam ais im agin ad a te p ossib ilit a con viver
com as pessoas?

I45
Q u a n d o m i n h a a l m a c a i u n as m ã o s d o m a l , e st a va in d e fe sa a t é q u e su a
fraca var a de pescar pudesse t irar n ovam en t e o peixe de sua força do m ar do
vazio. O olh o do m al sugou t oda a força de m in h a alm a, só lh e restan do sua
von t ade, que é precisam en t e aquele pequen o an zol. Eu qu eria o m al, pois eu vi
que n ão con seguiria fugir dele. E pelo fato de eu querer o m al, m in h a alm a se-
gu rou n a m ão o precioso an zol com o qual eu qu eria pren d er o lugar vu ln erável
do m al. Q u e m n ão quer o m al, a este falta a possibilidade de salvar sua alm a do
in fern o. Ap esar de ele m esm o perm an ecer n a lu z do m u n d o de cim a, t orn a-se
a som bra de seu si-m esm o. Mas sua alm a d efin h a n o cárcere dos d em ón ios.
Co m isso lh e é criado u m con trapeso que o lim it a para sem pre. O s círculos
m ais elevados do m u n d o in t er ior perm an ecem -lh e in at in gíveis. Ele fica onde
estava, sim , ele retrocede. T u conheces essas pessoas e conheces o m odo esban -
jador com o a n at u reza das pessoas espalh a / vid a e força em desertos áridos. 74/75

N ã o deves lam en t á-lo, caso con t rário te t orn as u m profet a e queres salvar o
que n ão deve ser salvo. N ã o sabes que a n at u reza t am bém aduba seus cam pos
com pessoas? Recebe aquele que procu ra, mas n ão vás à procu ra seguindo os
que erram . O que sabes de seu erro? Talvez seja sagrado. N ã o deves p ert u rbar

145 Nota marginal ao volume caligráfico: "khândayoga-upanishad 1,2,1-7". O Chânâayoga Upantshaâ assim reza:
"O utrora, quando os deuses e demónios, ambos filhos de Prajapati, dispuseram-se em ordem de batalha
uns contra os outros, os deuses apoderaram-se do Grande Canto. 'Com isto os derrotaremos', pensaram
eles. / Por isso veneraram o Grande Canto como o sopro nas narinas. O s demónios cobriram-no de
mal. / Em consequência, cheira-se com ele tanto os odores agradáveis quanto os desagradáveis, pois está
coberto de mal. / Depois veneraram o Grande Canto como fala. O s demónios cobriram-no de mal. Em
consequência, fala-se com ele tanto o que é verdadeiro quanto o que é falso, pois está coberto de mal. /
Depois veneraram o Grande Canto como visão. O s demónios cobriram-no de mal. Em consequência,
vê-se com ele tanto o que é bom quanto o que não é bom, pois está coberto de mal. / Depois veneraram o
Grande Canto como audição. O s demónios cobriram-no de mal. Em consequência, ouve-se com ele tanto
o que é bom de ouvir quanto o que não é, pois está coberto de mal. / Depois veneraram o Grande Canto
como a mente. O s demónios cobriram-no de mal. Em consequência, pensa-se com ele tanto o que é bom
de pensar quanto o que não é, pois está coberto de mal. / Finalmente veneraram o Grande Canto como
simplesmente este sopro aqui dentro da boca. E quando os demónios se precipitaram contra ele, foram
reduzidos a pedacinhos como um torrão de terra jogado contra um alvo que é uma rocha" (Upaníshads.
O xford University Press, 1996 [Trad. de P. O livelle]). O "Grande Can t o" é O M .
284 LI BE R SECU N D U S 75/ 77

o sagrado. N ã o olhes para trás e n ão lam en t es. Vê s m u it os caírem ao t eu lado?


Sentes com paixão? Mas t u deves viver t u a vid a, en t ão rest ará ao m en os u m de
m ilh ares. T u n ão im pedes o m orrer.

Mas por que m in h a alm a n ão arran cou o olh o do m al? O m al t em m u it os


olhos; perden do u m , n ada se perde. E se o tivesse feito, est aria assim t ot al-
m en t e à m ercê do m al. O diabo só n ão pode oferecer sacrifício. N ã o deves
preju d icá-lo, sobretudo n ão seu olh o, pois o m ais belo n ada seria se ele n ão visse
o diabo e depois o desejasse. O diabo é sagrado.

O vazio n ão pode oferecer n ad a em sacrifício, pois est á sem pre em pen úria.
Só o ch eio pode oferecer sacrifício, pois t em a plen it u d e. O vazio n ão pode
oferecer em sacrifício sua fome do cheio, pois n ão pode negar sua p róp ria n a-
t ureza. Por isso n ós t am bém precisam os do diabo. Mas, pelo fato de h aver rece-
bido an t eriorm en t e a plen it u d e, posso sacrificar ao diabo m in h a von t ade. Tod a
a força flui de n ovo para m im , u m a vez que o diabo d est ru iu m in h a im agem da
figura de Deu s. Mas a im agem d a figura de Deu s ain d a n ão estava d est ru íd a em
m im . Cau sa-m e h or r or esta dest ruição, pois ela é t errível, u m a profan ação sem
igual do tem plo. Tu d o se arrep ia em m im con t ra a m on st ruosidade sem par.
75/76 Pois eu ain d a n ão sabia o que sign ificava dar à lu z u m Deu s. [Ilu st ração 75] /

O assassinato sacrificial 146


Cap. xiii.

[ I H 76] Mas est a foi a visão que eu n ão qu eria ver, o t er r or que eu n ão qu eria
viver. U m a sen sação d oen t ia de n ojo m e su rpreen d eu , cobras repugn an tes e
t raiçoeiras serpeiam devagar e estalan do pelos bosques, ficam depen duradas
p regu içosam en t e e ch eias de sono asqueroso, en roscadas n u m en ovelado h or -
roroso nos galhos. Fico arrepiad o em pisar n este vale de figuras en fadon has
e feias, on de os bosques ficam em en costas pedregosas. O vale parece t ão
vulgar, seu ar ch eir a a crim e, a t od a ação covarde e r u im . Sou acom et ido de
n ojo e h orror. An d o h esit an t e sobre pedras de cascalho, evit an d o aquele lugar

146 Em vez disso, o esboço m anuscrito tem: "Oitava aventura" (p. 793).
O ASSASSI N AT O S A C R I F I C I A L 285

escuro, por medo de pisar n u m a cobra. O sol b rilh a fracam ente n u m céu distan te
e cin zen t o, e toda a relva está seca. D e repente, vejo dian te de m im , n o m eio das
pedras, u m a boneca com a cabeça quebrada - m ais alguns passos, u m pequeno
aven tal - e lá, atrás de u m a m oit a, o corpo de u m a m en in a - cheio de h orríveis
ferim en tos — ensanguentado — u m pé está com m eia e sapato, o outro, ch eio de
sangue e esmagado — a cabeça — onde está a cabeça? — A cabeça é u m a sopa de
sangue m ist urada com cabelo, con ten do ain da pedaços esbran quiçados de ossos
- em volt a estão as pedras respingadas de massa encefálica e sangue. Min h a visão
é tom ada de h orror - do lado da crian ça está u m a figura en coberta, com o a de
u m a m ulh er, quieta, o rosto coberto por u m véu im pen etrável. Ela m e perguntou:

Ela: "O que dizes disso?"


Eu : "O que d izer? Aq u i n ão cabem palavras".
Ela: "En t en d es isso?"
Eu : "Recu so-m e a en t en der algo assim . N ã o posso falar disso sem ficar i r -
rit ad o".
Ela: "Por que deverias te irrit ar? T u irias te ir r it ar todo d ia, en quan t o vive-
res, pois isso e coisa sem elh an t e acon t ecem n a t er r a d iariam en t e".
Eu : "Mas n a m aior ia das vezes n ão o vem os".
Ela: "Port an t o, n ão te basta saber disso para ficares irrit ad o?
Eu : "Q u an d o apenas sei de algo, a coisa se t orn a m ais fácil e sim ples. O as-
sustador n o m ero saber é m en os real".
Ela: "Ap roxim a-t e, vês que o ven t re d a crian ça foi aberto com faca, t ir a o
fígado".
Eu : "E u n ão vo u tocar neste cadáver. Se alguém m e visse, d ir ia que eu era o
assassino".
Ela: "És covarde, pega o fígado".
Eu : "Por que devo fazer isso? É absurdo".
Ela: "E u quero que t ires o fígado. T u precisas fazê-lo".
Eu : "Q u e m és t u para pen sar que podes d ar-m e esta ord em ?"
Ela: "E u sou a alm a desta crian ça. T u ten s de fazer esta ação por m im ".
Eu : "N ã o en t en do n ada, mas vo u acredit ar em t i e fazer a t olice h orrorosa". / 76/ 77

Met o a m ão n o ven t re aberto - sin t o que ain d a est á quen te - o fígado está
preso - pego d a m in h a faca e cort o nos lugares que o pren d em . Ret ir o -o e
apresen t o-o com m ãos cheias de sangue à figura.
286 LI BE R SECU N D U S 77/ 78

Ela: "Agradeço m u it o".


Eu : "O que devo fazer?"
Ela: "Con h eces a im p ort ân cia e sign ificado do fíga d o 14 7 e deves com ele
cu m p rir o r it o sagrado".
Eu : " E qu al é?"
Ela: "To m a u m pedaço, em vez do fígado todo, e com e".
Eu : "O que estás exigin do? Ist o é lou cu ra perigosa. Ist o é violação de cad á-
ver. É an tropofagia. T u m e t orn as cú m plice deste m ais m edon h o de todos os
crim es".
Ela: "T u im agin aste os piores t orm en t os para o assassino com que p u d ésse-
m os expiar sua ação. Só h á u m a expiação: rebaixa-t e e com e".
Eu : "N ã o posso - eu m e r e cu so -, n ão posso p art ilh ar dessa cu lpa t errível".
Ela: "T u tens part e n est a cu lpa".
Eu : "Eu ? Parte n est a culpa?"
Ela: "T u és u m ser h um an o, e u m ser h u m an o perpet rou este ato".
Eu : "Sim , eu sou u m ser h u m an o — eu o am ald içoo por ele ser u m h um an o,
e eu m e am ald içoo por eu ser u m h u m an o".
Ela: "Port an t o — t om a part e em seu ato, rebaixa-t e e com e. Eu preciso da
expiação".
Eu : "Assim seja, por am or à t u a von t ade, já que és a alm a desta crian ça".

Ajoelh ei-m e nas pedras, separo u m pedaço do fígado e o enfio n a boca. Min h as
entranhas trazem o vóm it o até a garganta - lágrimas saem de meus olhos - suor
frio sobre m in h a testa - u m gosto in sipid am en t e adocicado de sangue - en -
gulo com esforço desesperado - n ão vai - m ais u m a vez e m ais ou t ra - quase
desm aio - deu certo. O repugn an te se co n su m o u 14 8 .
Ela: "E u te agrad eço".
Ela afasta seu véu para trás - u m a bela m ocin h a de cabelo ruivo.
Ela: "T u m e con h eces?"

147 Em Memórias, ao comentar o sonho de Liverpool (cf. adiante, p. 369, n. 296), Jung observou: "O fígado,
segundo concepção antiga, é a sede da vida" (p. 236).
148 Em 1940, Jung discutiu a antropofagia ritual, sacrifício e antissacrifício em "O símbolo da transformação
na missa" ( O C, n ) .
O AS S AS S I N AT O S A C R I F I C I A L 287

Eu : "Por m ais est ran h am en t e con h ecid a que m e sejas, qu em és?"


Ela: "E u sou t u a a lm a " 14 9

[2] O sacrifício está consumado: a criança divin a, a imagem da figura divin a


está assassinada e eu com i da carne do sacrifício 150 . N a criança, n a imagem da figura
divin a, não está contido apenas o m eu desejo humano, mas tam bém o prim it ivo e
a força originária, que os filhos do sol possuem como herança im perdível. De tudo
isso precisa o Deus para seu nascimento. Mas se ele é criado e se ret ira rapidam ente
para os espaços in fin itos, então precisamos novamente do ouro do sol. Precisamos
restaurar de novo a nós mesmos. Mas como a criação de Deus é u m a ação criadora
do mais elevado amor, a restauração de nossa vid a h um an a significa u m a ação do
inferior. Est e é u m grande e obscuro mistério. A pessoa h um an a não consegue por
si só realizar esta obra, para tanto ajuda-a o maligno, que a faz em lugar da pessoa.
Mas a pessoa precisa reconhecer sua culpa con jun t a n a obra do diabo. Precisa com -
provar este reconhecim ento comendo da carne sangrenta do sacrifício. Co m esse
gesto an un cia que é u m a pessoa h um an a, que reconhece tanto o m al quanto o bem ,
e que através da retração de sua força vit al destrói a imagem da figura divin a, e com
isso tam bém se declara desvinculada do Deus. Ist o acontece para o bem da alm a,
que é a verdadeira m ãe da criança divin a./
Q u an d o m in h a alm a carregou e gerou o Deu s, ela era t ot alm en t e de n at u -
reza h u m an a, possuin do em si as forças origin árias desde os tem pos an tigos,
mas em estado de sono. Elas fluíam para d en t ro da figura de Deu s sem m in h a
colaboração. Mas, pelo assassinato sacrificial, ret om ei as forças origin árias para
d en t ro de m im e as acresen t ei à m in h a alm a. U m a vez d en t ro de u m a con figu -
ração viva, as forças origin árias despert aram para u m a vid a própria. Se as t om ar
de volt a agora, elas n ão est arão m ais em estado de sono, mas acordadas, ativas e
refulgin do o b rilh o de seu agir d ivin o em m in h a alm a. E assim ela recebe u m a

149 No Livro Negro 3, Jung observa: "A cortina cai. Q ue peça horrível foi representada aqui? Eu percebo:
Nil humanum a me alienum esse puto [julgo que nada de humano é alheio a m im ]" (p. 91). A frase é do
teatrólogo romano Terêncio, de Heauton Tímorumenos. Em 2 de setembro de 1960, Jung escreveu a Herbert
Read: "Na qualidade de psicólogo e médico, não só acho, mas estou plenamente convencido de que nil am e
alienum esse é inclusive meu dever" (Cartas, vol. I I , p. 284).
150 Em vez dessa frase, o esboço tem: "Nessa experiência consumou-se aquilo de que eu precisava. Aconteceu
de maneira horrível. O mal, que eu queria, realizou a ação ignominiosa, aparentemente sem m im , mas
assim mesmo comigo, pois eu senti que tinha parte em toda a natureza assustadoramente humana. Eu
mesmo destruí a criança divina, a imagem de minha figura de Deus, com o mais horrendo dos crimes
de que a natureza humana é capaz. Houve necessidade dessa ação pavorosa, a fim de destruir em m im a
imagem de Deus, que bebera todas as seivas de minha vida, e assim puder recuperar minha vida" (p. 355).
288 LI BE R SECU N D U S 78/ 90

con d ição d ivin a que ult rapassa sua con d ição h u m an a. Por isso, o com er d a car-
ne sacrificial con t rib u i para seu bem . Ist o t am bém nos m ost raram os an tigos,
quan do nos en sin aram a beber o sangue e a com er a carn e do Salvador. O s
antigos acredit avam que ist o con t ribu ía para o bem da a lm a 151.

N ã o exist em m u it as verdades, mas poucas. Seu sen t ido é profun do dem ais
para que as possam os en ten der, a n ão ser com o sím b o lo s 152 .

U m Deu s que n ão é m ais fort e do que os seres h um an os - o que ele é? Vó s


deveis exp erim en t ar ain d a o m edo d ivin o. Co m o quereis saborear dign am en t e
o vin h o e o pão, sen ão t iverdes en t rado em con t at o com o fun dam en t o negro
da n at u reza h um an a? Por isso sois som bras t íbias e enfadonhas, radian t es com
vossas praias rasas e largas rodovias. Mas serão abertas com port as, h á coisas
irresist íveis das quais só Deu s vos salvará.

A força origin ária é b rilh o solar, que os filh os do sol t razem em si desde
os éon s e legam a seus filh os. Mas quan do a alm a m ergu lh a n o brilh o, ela se
t orn ará im placável com o o p róp rio Deu s, pois a vid a da crian ça d ivin a, que t u
comeste, estará em t i com o brasas incandescentes. É com o u m fogo espantoso,
que jam ais se apaga. Mas, apesar de todo o torm en to, n ão podes sair dessa sit u a-
ção, pois ele n ão te larga. Recon h ecerás n isso que t eu Deu s vive e que t u a alm a
com eçou a an dar por cam in h os im piedosos. T u sentes que o fogo do sol está
ext in t o. Foi-t e acrescen tado algo novo, u m a d oen ça sagrada.
Por vezes t u m esm o n ão te reconheces m ais. T u queres ven cer isso, mas é
ele que te ven ce. T u queres im p or-lh e lim it es, mas ele te m an t ém cercado. T u
queres fugir dele, mas ele vem contigo. T u queres u sá-lo, mas t u és seu in st r u -
m en t o; t u queres t irá-lo do pen sam en to, mas teus pen sam en tos pert en cem a
ele. Fin alm en t e és tom ado de pân ico por causa do in evit ável, pois devagar e
in ven civelm en t e ele se achega a t i.
N ã o h á escapat ória. Recon h ecerás n isso o que é u m verd ad eiro Deu s. T u
im agin as todo t ipo de palavras sábias, m edidas de precaução, saídas secretas,
subt erfúgios, beberagens de esquecim en t o de todo tipo, mas tudo in út il. O
fogo te perpassa com seu calor. Aq u ilo que guia obriga-te a seguir o cam in h o.

151 Isto é, o ritual da missa.


152 Jung desenvolveu suas ideias sobre o significado dos símbolos em Tipos psicológicos (1921). O C , 6, § 814S.
O ASSASSI N AT O S A C R I F I C I A L 289

Mas o cam in h o é o m eu m ais próprio si-m esm o, m in h a própria vid a, baseada


sobre m im . O Deu s quer m in h a vid a. Ele quer ir comigo, sen tar-se à m esa co m i-
go, t rabalh ar comigo. Q u e r estar presente sem pre e em toda p ar t e 153. Mas eu t e-
n h o vergon h a do m eu Deu s. N ã o gostaria de ser d ivin o, m as racion al. O d ivin o
me parece u m a ilusão irracion al. Eu o odeio com o u m a pert u rbação in sen sat a de
m eu agir h u m an o sensato. Parece-m e u m a d oen ça im p ert in en t e que se in filt rou
n o curso orden ado de m in h a vid a. Sim , eu acho o d ivin o t ot alm en t e supérfluo. / 78/ 92

[Ilu st r ação 79 ] [Ilu st r ação 8 0 ] [Ilu st r ação 81] [Ilu st r ação 8 2] [Ilu st r a çã o
83] [Ilu st r ação 8 4 ] 15 4 [Ilu st r ação 85] [Ilu st r a çã o 8 6 ] [Ilu st r ação 8 7] [ I l u s -
t r ação 8 8 ] [Ilu st r ação 8 9 ] 15 5 [Ilu st r ação 9 0 ] [Ilu st r a çã o 91] [Ilustração 92]

153 Em 1909, ficou pronta a casa de Jung em Kúsnacht, que trazia gravada sobre a porta o seguinte mote do
oráculo de Delfos: "Vocatus atque non vocatus deus aderit" [chamado ou não, deus estará presente]. A
fonte da citação foi a Collectaneaadagiorum, de Erasmo. Jung explicou o mote da maneira seguinte: "Ele quer
dizer: sim, o deus estará no local, mas sob que forma e para qual finalidade? Coloquei esta inscrição lá para
lembrar a m im e a meus pacientes que o 'Timor dei initium sapientiae (Sl I I I . I O ) . Aqui começa um outro e não
menos importante caminho, não o acesso ao cristianismo', mas a Deus mesmo, e esta parece ser a questão
definitiva" (carta a Eugene Rolfe, 19/ 11/ 1960, em Cartas, vol. I I I , p. 304).
154 H á uma nota ao pé da página: "21.VIII.1917. fect. 14.X.17" [possivelmente uma abreviação de "fecit", i.e,
"fez"].
15$ No Livro Negro 7, na fantasia de Jung, de 7 de outubro de 1917, aparece uma figura, H a, que diz que é o pai
de Filêmon. A alma de Jung o descreve como um homem da magia negra. Seu segredo são as runas, que a
alma de Jung quer conhecer. Ele se recusa a ensiná-las, mas mostra alguns exemplos, que a alma de Jung
pede para lhe explicar. Algumas dessas runas aparecem mais tarde nessas pinturas. Sobre as runas nesta
pintura, H a explicou: "O lh a os dois com pés diferentes, um pé terreno e um pé solar - eles estendem a
mão para o cone superior e têm dentro o sol, mas eu tracei uma linha torta para um outro sol. Por isso
um deles precisa descer. Entretanto, o sol superior sai do cone, e o cone olha para ele, preocupado em
saber para onde ele vai. E preciso pegá-lo de volta com o arpão e encerrá-lo na pequena prisão. Então
precisam 3 ficar juntos, unir-se e enrodilhar-se juntos no alto (... [?]). Assim recebem o sol de volta da
prisão. Agora fazei um chão firme e um telhado onde o sol esteja seguro no alto. Mas no interior da casa,
também o outro sol se levantou. Por isso estais enrodilhados também no alto e fizestes embaixo de novo
um telhado sobre a prisão, para que o sol superior ali não penetre. Pois ambos os sóis querem sempre
encontrar-se - eu bem que o disse - os dois cones - cada qual tem um sol. Vós quereis que eles se
encontrem, porque então pensais que poderíeis ser assim um só. Trouxestes agora para fora os dois sóis e
os fizestes se encontrar e estais em posição oblíqua ao outro lado - isto é importante (=)> m ^ s então há
simplesmente dois sóis embaixo, por isso pensais em ir para o cone inferior. Lá juntareis os sóis, mas no
meio, não em cima nem embaixo, por isso não há 4, e sim 2, mas o cone superior está embaixo e em cima
há um telhado grosso e se quereis ir adiante, vós desejais com ambos os braços retroceder. Mas embaixo
tendes uma prisão para dois, para vós dois. Por isso fazeis uma prisão para o sol inferior e caís para o outro
lado, para tirar da prisão o sol inferior. Em seguida sentis saudades, e o cone superior vem e faz uma ponte
para a parte inferior, toma de novo dentro de si seu sol, que anteriormente lhe havia fugido e já aparecem
no cone inferior as nuvens da manhã, mas seu sol tornou-se invisível após a linha (horizonte). Agora sois
um e alegres por terdes o sol em cima e desejais ir ao alto até ele. Mas vós estais presos na prisão do sol
inferior que acaba de nascer. H á uma parada. Agora fazeis em cima algo quadrado, que chamais de ideia,
uma prisão sem porta com grossas paredes, para que o sol do alto não avance, mas o cone já sumiu. Vós vos
deitais para o outro lado, desejais o inferior e vos enrodilhais embaixo. Então sois um e fazeis o caminho
das cobras entre os sóis - isto é divertido! (~) e importante (=). Mas porque estava alegre embaixo, em
cima há um telhado e vós deveis levantar para o alto o arpão com ambos os braços, para que atravesse o
telhado, Então o sol é livre embaixo e há uma prisão em cima. Vós olhais para baixo, mas o sol superior
olha para vós. Mas vós estais precisamente a dois e afastastes de vós a cobra - isto vos faz pena. Por isso
fazeis uma prisão para o inferior. Agora a cobra anda por si através do céu sobre a terra. Vós vos afastais
totalmente, a cobra se enrosca através do céu em volta de todas as estrelas longe sobre a terra. / Embaixo
29o LI BE R SECU N D U S 90/ 98

93/98 [Ilustração 9 3] 15 6 [Ilustração 9 4 ] 15 7 [Ilustração 95] [Ilustração 9 6] [Ilustração 97] /

está: esta sabedoria me deu a mãe. / Ficai satisfeitos" (p. 9-10). Para An iela Jaffé, Jung contou que tivera
uma visão de uma tabuleta de argila vermelha com hieróglifos na parede de seu quarto, que ele transcreveu
no dia seguinte. Ele achava que continha uma mensagem importante, mas que ele não entendia (MP, p.
172). Em cartas de 13 de setembro e 10 de outubro de 1917, Jung escreveu a Sabina Spielrein, comentando
o significado de alguns hieróglifos num sonho que ela lhe havia mandado. Em 10 de outubro, escreveu-lhe
que "com seus hieróglifos estamos lidando com engramas filogenéticos de natureza histórico-simbólica".
Comentando o menosprezo manifestado pelos freudianos em relação a Transformações e símbolos da libido,
descreveu a si mesmo como "aderindo às runas", que não passaria àqueles que não as queriam entender
("Th e Letters of Jung to Sabine Spielrein". Journal of Analytícal Psychology, 41, 2001, p. 187-188).
156 As runas neste quadro aparecem no Livro Negro 7, no inciso de 7 de outubro de 1917. Jung colocou
nelas a data de 10 de outubro de 1917. H a explicou: "Se tiverdes recebido o dorso para frente, fazei
abaixo uma ponte e ide a partir do meio para cima e para baixo, ou separareis em cima embaixo, dividi
novamente o sol e rastejai como a cobra sobre o superior e recebei o inferior. Vós levais junto aquilo que
experimentastes e ides para frente em direção a algo novo" (p. 11).
157 As runas deste quadro aparecem no Livro Negro 7, no inciso de 7 de outubro de 1917. Jung acrescenta a
elas a data de 11 de setembro de 1917. H a explicou: "Agora fazeis uma ponte entre vós, e uma das coisas
deseja o superior. Mas então a cobra rasteja em cima e pega para si o sol. Então andais ambos em cima e
quereis ir para cima ( ) , mas o sol está embaixo e procura puxar-vos para baixo. Vós, porém, fazeis um
risco sobre o inferior e desejais o alto e sois totalmente um aí dentro. Chega então a cobra e quer beber
do recipiente embaixo. Mas vem o cone superior e para. Mas novamente avança a visão igual à da cobra
e, depois, desejais muito ( - ) voltar. Mas o sol inferior puxa e assim chegais novamente ao equilíbrio. Mas
logo tombais para trás, pois uma coisa pesquisou o sol superior. A outra não quer, e assim vos desfazeis,
precisais por isso amarrar-vos juntos três vezes. Então estais novamente em posição correta e segurais
ambos os sóis diante de vós, como se fossem vossos olhos, vós a luz do em cima e do embaixo diante de
vós e vós estendeis os braços para isso, e vós vos reunis num só e precisais separar os dois sóis e suspirais
um pouco pelo inferior e agarrais para diante pelo superior. Mas, pelo fato de os sóis estarem tão perto, o
cone inferior engoliu o cone superior. Por isso empurrais de novo para cima o cone superior e, pelo fato
de o inferior não estar mais aí, quereis trazê-lo novamente para cima e tendes grande saudade do cone
inferior, enquanto em cima está vazio, porque o sol por cima do risco é invisível. Porque tivestes tanta
saudade do que passou e do inferior, o cone superior desce e tenta prender dentro de si o sol superior
e invisível. Ali vai o caminho da cobra bem no alto, vós estais divididos, e todo o inferior está debaixo
do chão. Vós continuais desejando o alto, mas logo vem o desejo inferior qual cobra e vós fazeis uma
prisão sobre ela. Mas surge então o cone inferior, vós desejais o bem baixo e de repente aí estão de novo
os dois sóis, próximos um do outro. Vós sentis saudades e sois encerrados na prisão. Um teima, o outro
deseja o inferior. A prisão se abre, o um deseja ainda mais o inferior, o que teima deseja em cima e não
está mais teimoso, mas exige aquilo que virá. Aí vem ele: embaixo o sol nasce, mas está aprisionado e em
cima foram feitos 3 ninheiros para vós dois e o sol superior que esperais, porque aprisionastes o inferior.
Desce então com grande poder o cone superior e vos parte em dois e engole o cone inferior. Isto não
funciona. Por isso colocais os cones ponta contra ponta e vos enrodilhais para frente no meio. Pois assim
não o podeis deixar. Portanto, tem que ser diferente. O um procura embaixo, o outro em cima; isto lhes
deve causar esforço, pois, quando os cones se encontram na ponta, então quase não se pode mais separá-
los - por isso introduzi no meio o cerne duro. Ponta contra ponta - isto seria belo demais normalmente.
Isto agrada a pai e mãe, mas onde fico eu? E meu cerne? Por isso rapidamente outra coisa! Nós fazemos
ponte entre vós dois, encarceramos novamente o sol inferior, o um tem saudade do superior e embaixo,
o outro especialmente forte para frente, em cima e embaixo. Assim o futuro pode tornar-se - vê como já
posso falar bem agora - sim, eu sou inteligente - mais inteligente do que vós - agora que tomastes tudo
tão belamente na mão, conseguis colocar também tudo tão belamente sob o telhado e dentro da casa, a
cobra e os dois sóis. Isto é sempre o mais divertido. Mas vós estais separados e porque fizestes o risco em
cima, a cobra está por demais embaixo com os sóis. Isto provém do fato de vos terdes enrodilhado antes
a partir de baixo. Mas chegais juntos e de acordo e estais direito, porque é bom, alegre e bem sucedido e
dizeis: assim ficará. Mas já vem descendo o cone superior, porque se sentiu insatisfeito, uma vez que vós
fizestes antecipadamente os limites. O cone superior estende logo sua mão para seu sol - mas não há mais
sol em lugar nenhum e a cobra também salta para fora para pegar o sol. Vós tombais, e um de vós será
devorado pelo cone inferior. Com a ajuda do cone superior, vós o tirais para fora e dais em vez disso ao
cone inferior seu sol e ao cone superior também. Vós vos deitais em cima como o Polifemo, que vagueia
pelo céu, e mantendes o cone embaixo de vós - mas no fim a coisa vai mal. Vós deixais que os cones e os
sóis vão embora e ficais juntos, mas não quereis a mesma coisa. No final chegais a um acordo, amarrar-
vos triplamente ao cone superior que vem descendo neste instante. / Eu me chamo H a, H a, H a - um
nome alegre - eu sou inteligente - vede meu último sinal, esta é a magia do homem branco, que mora nas
grandes casas da magia, a magia que vós chamais de cristianismo. Vosso curandeiro o disse pessoalmente:
A D I VI N A LO U CU RA 291

A d ivin a lou cu ra 158


Cap. xiv.

[ I H 9 8 ] 15 9 Est o u n u m salão alto. Dia n t e de m im vejo u m cort in ad o verde en t re


duas colun as. A cor t in a se abre devagar. Vejo u m recin t o pouco profun do com
paredes n uas, n o alto u m a pequen a e red on d a jan ela com vid r o azulado. Coloco
m eu pé n o degrau que leva a este recin t o en t re as colun as e en t ro. À d ir eit a e à
e sq u e r d a ve jo u m a p o r t a n a p a r e d e t r a s e ir a d o r e c in t o . T e n h o a i m p r e s s ã o d e
que devo d ecid ir en t re esquerda e d ireit a.
Escolh o a d ireit a. A p ort a est á aberta, eu en t ro: estou n a sala de leit u r a de
u m a grande bibliot eca. Be m n o fun do está sentado u m h om em pequen o e m a-
gro, de rost o pálido, cert am en t e o bibliot ecário. A atm osfera est á pesada - a m -
bições eru dit as - presu n ção de sabedoria - vaidade de eru d ição ferida. Alé m
do bibliot ecário n ão vejo n in gu ém . Vo u até ele. Levan t a os olh os de seu livr o e
pergun ta: "O que deseja?"
Est ou u m pouco confuso, pois n ão sei exat am en t e o que desejo: ocorre-m e
m en cion ar Tom ás de Kem p is.
Eu : "Gost ar ia de t er A imitação de Cristo, de Tom ás de Ke m p is"l 6 °.
Ele m e olh a com cert o espanto, com o n ão acredit an do em m im , e d eu -m e
a preen ch er u m a fich a de requisição. Eu t am b ém penso que é espantoso ped ir
exat am en t e Tom ás de Kem p is.

"Eu e o Pai somos um. Ninguém vem ao Pai senão por m im ". Eu vo-lo havia dito, o cone superior é o Pai.
Ele se ligou triplamente a ele e está entre os outros e o Pai. Por isso, o outro precisa passar por ele se quiser
ir ao cone" (p. 13-14).
158 Em vez disso, o esboço manuscrito tem: "Non a aventura. Noite I " (p. 814).
159 14 de janeiro de 1914.
160 A imitação de Cristo é uma obra de ensino devocional que apareceu no início do século X V e que se tornou
extremamente popular. Sua autoria ainda é discutida, mesmo que geralmente seja atribuída a Tomás
de Kempis (por volta de 1380-1471), cónego regular agostiniano, do mosteiro de Agnetenberg, um dos
primeiros representantes da devotio moderna, um movimento que enfatizava a meditação e a vida interior.
Numa linguagem clara e simples, A imitação de Cristo exorta as pessoas a ocupar-se com a vida interior, como
oposta às coisas exteriores, dá conselhos de como esta deve ser vivida e indica o conforto e recompensa
final de uma vida vivida em Cristo. O título provém da prim eira lin ha do primeiro capítulo em que
também se afirma que "quem quiser compreender e saborear plenamente as palavras de Cristo, é-lhe
preciso que procure conformar à dele toda a sua vida" (A imitação de Cristo. Petrópolis: Vozes, 1969, p. 22
[Trad. de Fr. T. Borgm eier]). O tema da imitação de Crist o é de data bem anterior. Houve discussão na
Idade Média sobre como ela podia ser entendida (sobre a história desse conceito, cf. C O N ST ABLE,
G. "Th e Ideal of the Im it at ion of Ch rist ". In : Three Studies in Medieval Religious and Social Thought. Cam bridge,
Cambridge University Press, 1955, p. 143-248). Com o mostra Constable, podem ser distintas duas grandes
abordagens, dependendo de como a imitação era entendida: a primeira, a imitação da divindade de Cristo,
salientava a doutrina da deificação, pela qual "Crist o mostrou a maneira de tornar-se Deus através dele"
(p. 218). A segunda, a imitação da humanidade e corpo de Cristo, salientava a imitação de sua vida na
terra. A forma mais extremada disso estava na tradição dos estigmáticos, indivíduos que traziam as chagas
de Crist o em seus corpos.
292 LI BE R SECU N D U S 98/ 99

"Ad m ira-se o sen h or de que eu peça exat am en t e a obra de Tom ás?"


"D e fato, o livro é pouco solicit ado, e precisam en t e do sen h or n ão t eria
esperado este in t eresse".
"Eu devo confessar que m e surpreen deu essa id eia repen t in a, mas l i recen -
tem en te [um a passagem] de Tom ás, que m e causou im pressão especial; por que,
n ão saberia dizê-lo. Se bem m e lem bro, foi o problem a do seguimento de Cr ist o".
"O sen h or t em in teresses t eológicos ou filosóficos especiais, ou - "
"O sen h or pen sa - se quero lê-lo por d evoção?"
"Be m , provavelm en t e n ão".
"Q u an d o leio Tom ás de Kem p is, ist o acontece m ais por d evoção ou por algo
sem elh an t e do que por in teresse cien t ífico".
" O sen h or é t ão religioso assim ? N ã o sabia".
"O sen h or sabe que eu prezo sum am en t e a ciên cia, mas exist em de fato
m om en t os n a vid a em que t am bém a ciên cia nos d eixa vazios e doen tes. E m
tais m om en t os, u m livro com o o de Tom ás de Kem p is sign ifica m u it o, pois foi
escrit o a p ar t ir da alm a".
"Mas algo bem ultrapassado. N ã o podem os m ais h oje em d ia fiar-n os n a
d ogm át ica crist ã".
"Co m o crist ian ism o n ão chegamos ao fim , se sim plesm en t e o colocarm os
de lado. Parece-m e que h á m ais n isso do que vem os".
98/ 99 " O que m ais est aria nisso? E só u m a religião". /
"Por que razões e em que idade a gente o coloca de lado? A m aior ia o faz
ao t em po dos estudos ou até m ais cedo. O sen h or ch am a este u m t em po espe-
cialm en t e adequado para julgam en tos? E o sen h or exam in ou algum a vez com
m aior precisão as razões pelas quais a gente coloca de lado a religião positiva?
As razões são, n a m aioria das vezes, levian as; por exem plo, porque o con t eú d o
da fé se ch oca com a ciên cia ou com a filosofia".
"Ist o n ão é, segundo acho, u m a con t rarrazão a ser in con d icion alm en t e des-
prezada, apesar de exist ir em razões m elh ores. A falt a de sen t ido d a realid a-
de nas religiões, eu a con sidero por exem plo d iret am en t e u m preju ízo. Alé m
do m ais criou -se agora abun dan te subst it uição para a perd a do pen dor para a
devoção, causada pelo desm oron am en t o da religião. Niet zsch e escreveu, por
exem plo, m ais do que u m verd ad eiro d evo cio n ár io 16 1, sem falar do Faust o".

161 Isto é, Assim falava Zaratustra.


A D I VI N A LO U CU RA 293

"Ist o é corret o em cert o sen tido. Mas sobretudo a verdade de Niet zsch e é
para m im por dem ais in qu iet a e provocat iva - boa para aqueles que ain d a de-
vem ser libert ados. Mas por isso sua verdade t am bém só é boa para eles. Acr e -
d it o t er descoberto u lt im am en t e que precisam os t am bém de u m a verdade para
aqueles que t êm de cam in h ar n a est reit eza. Para eles é u m a verdade depressiva
aquela que d im in u i e in t er ior iza a pessoa, talvez m ais por necessidade".
"Mas, por favor, Niet zsch e in t er ior iza a pessoa de m odo t ot alm en t e in co-
m u m ".
"Talvez o sen h or t en h a razão a p art ir de seu pon t o de vist a, mas n ão posso
fugir da im pressão de que Niet zsch e fala por si m esm o àqueles a qu em m ais
falta faria a liberdade, mas n ão àqueles que colid iram du ram en t e com a vid a e
san gram de suas feridas, que se p ren d eram às coisas da realidade".
"Mas t am bém a essas pessoas at rib u i Niet zsch e u m valioso sen t im en t o de
superioridade".
"N ã o posso n egá-lo. Mas con h eço pessoas que n ão precisam da su p eriori-
dade, e sim da in feriorid ad e".
"O sen h or se expressa m u it o paradoxalm en t e. N ã o consigo en t en d ê-lo. A
in feriorid ad e pod eria n o m áxim o ser u m desíderatum\
"Talvez m e en t en d a m elh or se, em vez de in feriorid ad e, eu disser su bm is-
são, u m a palavra que se ou via m u it o an t igam en t e, mas raras vezes h oje em d ia".
"Ist o t am bém soa m u it o crist ão".
"Co m o ficou dit o, n o crist ian ism o parece h aver de tudo que talvez ain d a t e-
n h am os de t om ar para n ós. Niet zsch e é por dem ais con t radição. In felizm en t e
a verdade se m an t ém , com o todo o saudável e duradouro, mas n o cam in h o do
m eio, que n ós abom in am os in ju st am en t e".
"Eu n ão sabia realm en t e que o sen h or ocupava u m a posição t ão con cilia-
dora".
"N e m eu - m in h a posição n ão é m u it o clara para m im . Se eu con cilio, faço-o
de u m a m an eira b em específica".

Nest e m om en t o, o aten den te t rou xe o livro, e eu m e despedi do b ib liot e-


cário.

[2] O d ivin o quer viver comigo. Min h a recusa é em vão. Pergu n t ei ao m eu


pensar, e ele falou: "Tom e u m m odelo que te m ost re com o se deve viver o d i-
294 LI BE R SECU N D U S 99/ 100

vin o ". Nosso m o d e lo n a t u r a l é o Cr i s t o . Es t a m o s d e sd e s e m p r e sob su a l e i ,


p rim eir o ext eriorm en t e e depois in t eriorm en t e. Pr im eir o n ós o sabíam os e de-
pois n ão o sabíam os m ais. Lu t ávam os con t ra o Cr ist o, n ós o d epú n h am os e nos
sen t íam os ven cedores. Mas ele perm an ecia em n ós e nos dom in ava.
Melh or seria estar preso em algemas visíveis do que in visíveis. T u podes
perfeit am en t e aban don ar o Cr ist o, mas ele n ão te aban don a. Tu a libert ação
dele é u t opia. Cr ist o é o cam in h o. T u podes an dar por desvios, mas en t ão n ão
estás m ais n o cam in h o. O cam in h o do Cr ist o t er m in a n a cru z. Por isso estam os
crucificados com ele d en t ro de n ós. Co m ele esperam os n ossa ressu rreição n a
m o r t e 16 2 . Co m Cr ist o, o ser vivo n ão exp erim en t a n en h u m a ressurreição, a n ão
ser que lh e acon t eça ist o depois da m o r t e 16 3 .
Q u an d o sigo o Cr ist o, ele est á sem pre à m in h a fren te e eu n ão posso chegar
99/ 100 n u n ca ao objetivo, a n ão ser n ele. / Mas dessa form a saio de m im e do tem po
n o qu al e através do qual sou assim com o sou. En t r o en t ão n o Cr ist o e em seu
tem po, que o cr iou assim e n ão diferen t e. E assim est ou fora do m eu tem po,
ain d a que m in h a vid a esteja neste tem po, e eu fico d ivid id o en t re a vid a do
Cr ist o e a m in h a, que pert en ce a este t em po presen te. Se quiser en t en d er de
fato o Cr ist o, devo con siderar com o o Cr ist o viveu realm en t e sua p róp ria vid a
e que n ão im it o u n in gu ém . Ele n ão im it o u m odelo a lgu m 16 4 .
Se eu, port an t o, seguir verd ad eiram en t e o Cr ist o, n ão sigo a n in gu ém , n ão
im it o n in gu ém , mas t rilh o m eu p róp rio cam in h o, n em m e d en om in arei m ais
cristão. A p rin cíp io quis im it ar o Cr ist o, segui-lo, queren do viver m in h a vid a,
mas sob a observân cia de suas leis. U m a voz d en t ro de m im revolt ou-se con t ra
isso e quis lem b rar-m e de que t am bém este m eu tem po t eria seus profetas que

162 Na Imitação de Cristo, Tomás de Kempis escreveu: "Não há salvação da alma nem esperança de vida senão
na cruz. Toma, pois, tua cruz, segue a Jesus e entrarás na vida eterna. O Senhor foi adiante, com a cruz às
costas, e nela morreu por teu amor, para que tu também leves a tua cruz e nela desejes morrer. Porquanto,
se com ele morreres, também com ele viverás" (Livro segundo, cap. 12, p. 121).
163 O esboço continua: "Sabemos que os antigos nos falaram em imagem. Por isso sugeriu-me meu
pensamento que tomasse o Crist o como modelo, não imitá-lo por causa dele, mas porque ele é o
caminho. Quando sigo por um caminho, não o imito. Mas quando sigo Cristo, então ele é meu objetivo,
não meu caminho. Mas quando ele é meu caminho, então eu vou ao seu objetivo, como me foi mostrado
anteriormente no mistério. Assim falou-me meu pensamento em linguagem confusa e ambígua, quando
me aconselhou a seguir Crist o" (p. 366).
164 O esboço continua: "Este seu caminho próprio levou-o à cruz, pois o caminho próprio da humanidade
leva à cruz. Também o meu caminho me leva à cruz, mas não à cruz de Cristo, e sim à m inha cruz, que é
a imagem do sacrifício e da vida. Mas como eu ainda estava obcecado, in clin ei-m e a condescender com a
enorme tentação da imitação e olhar para o Crist o como se Ele fosse um objetivo, e não meu caminho"
(P- 367).
N O X SECU N D A 295

se in su r gir iam con t ra o jugo que o passado nos im pôs. E eu n ão fiii capaz de
sin t on izar o Cr ist o com o profet a desse tem po. U m exige suportar, o ou t ro
derrubar, u m recom en d a subm issão, o out ro vo n t ad e 16 5 . Co m o d everia eu con -
ceber esta con t radição, sem fazer in ju st iça a este ou àquele? O que n ão posso
pen sar en quan t o est ou ju n t o, posso vivê-lo u m após outro.
Resolvi, pois, passar ao out ro lado, para a vid a m ais h u m ild e e com u m , para
a m in h a vid a, e lá em baixo com eçar onde eu estava realm en t e.
Q u an d o o pen sar leva ao im pen sável, é t em po de volt ar à vid a sim ples. O
que o pen sar n ão solu cion a, ist o a vid a solucion a, e aquilo que o fazer n u n ca de-
cide est á reservado ao pensar. Se eu , de u m lado, t iver subido ao m ais elevado e
m ais difícil, mas quiser at in gir u m a ascen são para m ais alto ain da, o verd ad eiro
cam in h o n ão vai para o alto, mas para o fundo, pois só m eu ou t ro m e con duz
para além de m im m esm o. Mas aceit ar o ou t ro sign ifica u m a descida para o
con t rad it ório, do sério para o ridículo, do t rist e para o alegre, do belo para o
feio, do pu ro para o im p u r o 16 6 .

Nox secun da 167


Cap. xv.

[ I H 10 0 ] Q u an d o h avia saído da bibliot eca estava de n ovo n a an t essala 16 8 .


Dessa vez olh o para a p ort a do ou t ro lado à esquerda. Coloq u ei o pequen o l i -
vro n o bolso. Fu i até aquela port a; t am bém ela estava aberta: atrás, u m a grande
cozin h a, sobre o fogão u m pot en t e exaustor. Du as longas mesas estavam n o
cen t ro do recin t o; ao lado delas, ban cos. Nas paredes h avia, sobre estan tes, fr i-
gideiras de lat ão e de cobre e outras vasilh as m ais. Ao fogão estava u m a sen h ora
grande e corp u len t a - sem d ú vid a a cozin h eira, com u m aven t al quadriculado.
Cu m p r im en t ei-a u m pouco surpreso. Tam bém ela parecia con st ran gida. Eu lh e
pergun t ei: "Pod eria sen t ar-m e u m pouco aqu i den t ro? Est á frio lá fora e eu
preciso esperar por u m a coisa".

165 As referências parecem ser a Schopenhauer e a Nietzsche respectivamente.


166 O esboço continua: "Considera isto. Quando tiveres considerado isto, entenderás a aventura que me
ocorreu na noite seguinte" (p. 368).
167 Segunda noite.
168 17 de janeiro de 1914.
296 LI BE R SECU N D U S IOO/ IOI

"P o r favor , a co m o d e - se ".


Ela passou u m pan o n a m esa à m in h a fren t e. Co m o n ão t in h a ou t ra coisa a
fazer, t om ei do m eu Tom ás e com ecei a ler. A cozin h eira est á cu riosa e m e olh a
fu rt ivam en t e. D e vez em quan do passa pert o de m im .
"Descu lp e pergun tar, o sen h or é por acaso u m h om em espirit u al?"
"Não, p or que pen sa assim ?"
"O h , eu apenas pen sei assim porque o sen h or está len do u m pequen o livr o
preto. Eu t am bém t en h o u m que gan h ei de m in h a m ãe de saudosa m em ória".
"Sei, e que livr o é este?"
"Ch am a-se A imitação de Cristo. É u m livr o m u it o bon it o. Mu it as vezes rezo
nele à n oit e".
"A sen h ora ad ivin h ou bem , este livr o que est ou len do t am bém é A imitação
de Cristo".

"N ã o acredito, u m cavalh eiro com o o sen h or n ão ler ia u m livr o desses, a n ão


ser que seja u m past or".
"Por que n ão d everia lê-lo? Tam bém a m im faz b em ler algo corret o".
" Min h a saudosa m ãe o t in h a consigo, m esm o em seu leit o de m ort e, e ela o
en t regou em m in h a m ão antes de m or r er ".
En qu an t o ela falava, folh eei aleat oriam en t e o livro. Min h a at en ção recaiu
n o cap. 19 sobre a seguinte / passagem: " O p rop ósit o dos just os m ais se fir m a
n a graça de Deu s, n a qual con fiam em tudo o que em preen d em , do que sobre
sua p róp ria sab ed or ia"16 9 .
Penso en t ão que é o m ét od o in t u it ivo que Tom ás r eco m en d a 170 . Dir igi-m e
à cozin h eira: "Su a m ãe foi u m a sen h ora in t eligen t e, fez bem em d eixar-lh e este
livro".
"Cer t am en t e, ele já m e con solou m u it as vezes em h oras difíceis, e é possível
sem pre buscar n ele u m con selh o".

169 O propósito dos justos mais se firma na graça de Deus, que em sua própria sabedoria, nela confiam
sempre, em qualquer empreendimento. Porque o homem propõe, mas Deus dispõe, e não está na mão do homem
o seu cam inho" (im itação de Cristo, livro prim eiro, cap. 19, p. $9).
170 Em vez dessa frase, o Livro Negro 4 tem: "Pois bem, H en ri Bergson, penso eu, aqui acertaste em cheio - este
é o autêntico e verdadeiro método intuitivo" (p. 9). Em março de 1914, Ad olf Keller deu uma palestra sobre
"Bergson und die Libidotheorie" à Sociedade Psicanalítica de Zurique. Na discussão, Jung disse: "Bergson
já deveria ter sido discutido aqui há muito tempo. Ele diz tudo o que nós não dissemos ( MSZ, vol. 1, p.
57). Em 24 de julho de 1914, Jung deu uma conferência em Londres em que observou que seu "m éto-
do construtivo" correspondia ao "método intuitivo" de Bergson ( LO N G, C. (org.). "O n Psychological
Understanding". Collected Papers on Analytícal Psychology. Londres: Ballière/ Tindall and Cox, 1917, p. 399). A obra
que Jung leu foi Vévolutíon créatrice. Paris: Alcan , 1907. Jung possuía a tradução alemã, de 1912.
N O X SECU N D A 297

Est ou n ovam en t e m ergulh ado em m eus pen sam en tos: penso que se pode ir
t am bém atrás do p róp rio n ariz. Tam bém ist o seria m ét od o in t u it ivo 171. Mas a
bela form a em que o faz o crist ão pod eria ser de valor bem especial. Eu gost aria
de im it ar os crist ãos — U m a in qu iet u d e in t er ior m e en volve — o que deve acon -
tecer? U m est ran h o r u m or e zu m bid o ecoam - e de repen t e ouve-se n o salão
u m baru lh o com o o de u m ban do de grandes pássaros — com estron doso bat er
de asas — com o som bras, vejo m u it as figuras de pessoas passando por m im e
ou ço do repet ido vozerio as palavras "adorem os n o t em plo".
"Par a on de vão com t an t a pressa?", pergu n t ei em voz alta. U m h om em bar-
budo, de cabelos desgrenhados e de olh ar som brio parou e se volt ou para m im :
"Est am os in d o a Jeru salém para rezar n o t ú m u lo m ais sagrado".
"Levai-m e con vosco".
17 2
"N ã o podes vir ju n t o, t u ten s u m corpo. N ó s, p orém , estam os m ort os".
"Q u e m és?"
"Meu n om e é Ezeq u iel e sou u m an ab at ist a"173.
"Q u e m são esses com os quais viajas?"
"São m eus irm ãos n a fé".
"Por que viajais en t ão?"
"N ã o podem os parar, tem os que peregrin ar para todos os lugares sagrados".
"O que vos im pele a isso?"
"N ã o sei. Mas parece que ain d a n ão tem os descanso, m esm o que ten h am os
m orrid o n a verd ad eira fé".
"Por que n ão ten des descanso se m orrest es n a verd ad eira fé?"
"Parece-m e sem pre com o se n ão t ivéssem os chegado a u m fim corret o com
a vid a".

171 A transcrição de Cary Baynes tem: "Bergsons".


172 No esboço, o falante é identificado como "o sinistro".
173 O Ezequiel bíblico foi um profeta de Israel no século V I a.C. Jung viu muita coisa de significado
histórico em suas visões que incorporaram um mandala com quaternidades, como que representando a
humanização e diferenciação de Javé. Ain d a que as visões de Ezequiel sejam muitas vezes consideradas
patológicas, Jung defende sua normalidade, dizendo que as visões são fenómenos naturais que só podem
ser chamadas de patológicas quando seus aspectos mórbidos forem provados ("Resposta a Jó", 1952. O C ,
11/4, § 665, 667, 686). O anabatismo foi um movimento radical da Reforma protestante do século X V I
que tentou restaurar o espírito da Igreja prim itiva. O movimento teve origem em Zurique nos anos 1520,
rebelando-se contra a relutância de Zwinglio e Lutero de reformar completamente a Igreja. Rejeitavam a
prática do batismo de crianças e promoviam os batismos de adultos (o primeiro teve lugar em Zõllikon,
perto de Kúsnacht, onde Jung morava). O s anabatistas frisavam a imediaticidade da relação humana com
Deus e criticavam as instituições religiosas. O movimento foi violentamente sufocado, e milhares foram
mortos. Cf. L I E C H T Y, D. (org.). Anabaptíst Spírítualíty: Selected Writings. Nova York: Paulist Press, 1994.
298 LI BE R SECU N D U S 101/ 102

"Esp lên d id o — mas com o assim ?"


"Parece-m e que esquecem os algo im p ort an t e que t am bém era para t er sido
vivid o".
" E o que t eria sido?"
"T u o sabes?"
A essas palavras olh ou ávida e in qu iet am en t e para m im , seus olhos b r ilh a-
vam com o de u m ardor in t ern o.
"Solt a, d em ón io, t u n ão vivest e t eu a n im a l" 17 4 .
Dian t e de m im estava a cozin h eira, com cara de espanto, t om ou -m e pelo
braço e m e segurou: " Por am or de Deu s", disse ela, "o que h á com o sen hor?
Est á passando m al?"
O lh e i- a adm irado e p rocu rei lem b rar-m e de onde estava. Mas já en t ravam
de rold ão pessoas estran h as - o bibliot ecário t am bém estava ali - in icialm en t e
surpreso e confuso ao ext rem o, mas depois sorrin d o m aliciosam en t e: "O h , ist o
eu h avia im aginado. Ráp id o, a polícia!"
An t es que pudesse refazer-m e, fu i em pu rrad o por u m a m u lt idão de pessoas
para d en t ro de u m carro. Segurava ain d a nas m ãos o m eu Tom ás, e veio-m e à
m en t e a pergun ta: "O que d iz ele agora dessa n ova sit uação?" Ab r i o livr in h o e
m eu olh ar caiu n o capít ulo 13, on de se lê: "En q u an t o vivem os neste m un do, n ão
podem os estar sem trabalhos e t en t ações. Nin gu ém h á t ão perfeit o e san to que
n ão t en h a às vezes t en t ações, e n ão podem os ser delas t ot alm en t e isen t os"175 .
Sábio Tom ás, t u sabes de fato e sem pre u m a palavra apropriada! Ist o n ão o
sabia o m aluco do an abatista, sen ão pod eria t er parado t ran qu ilam en t e. Pode-
r ia t ê-lo lid o t am b ém em Cícer o : rerum om nium satietas vitae facít satíetatem - satietas
vitae tem pus maturum mortisaffert [ A saciedade de todas as coisas causa a saciedade d a
vid a - a saciedade da vid a t raz o tem po m adu ro da m o r t e ] 17 6 . Est e con h ecim en -

174 Em 1918, Jung afirmou que o cristianismo suprimiu o elemento animal ("Sobre o inconsciente", in
Civilização em transição. O C , 10/3, § 31). Desenvolveu este tema em seus seminários, de 1923, em Polzeath,
Corn wall. Em 1939, disse que o "pecado psicológico" que Crist o cometeu foi de "não ter vivido o lado
animal de si mesmo" (Modem Psychology, 4, p. 230).
175 O cap. 13 do livro primeiro da Imitação de Cristo começa assim: "Enquanto vivemos neste mundo, não
podemos estar sem trabalhos e tentações. Por isso lemos no Livro de Jó: É um combate a vida do homem
sobre a terra. Cada qual, pois, deve estar acautelado contra as tentações, mediante a vigilância e a oração,
para não dar azo às ilusões do demónio, que nunca dorme, mas anda por toda parte em busca de quem
possa devorar. Ninguém há tão perfeito e santo que não tenha, às vezes, tentações, e não podemos ser
delas totalmente isentos" (p. 44). Con tin ua enfatizando os benefícios da tentação, como meios através dos
quais o homem é "humilhado, purificado e disciplinado".
176 A citação é tirada de Cícero, Cato Maior de Senectute [Catão Maior sobre a velhice]. O texto é um elogio
à velhice. As linhas que Jung cita vêm em itálico na passagem a seguir: "76. O m n in o, ut m ih i quidem
N O X SECU N D A 299

to levou -m e obviam en t e a u m con flit o com a sociedade: à d ir eit a est á sentado


u m p olicial e à esquerda está sentado u m p olicial. "Be m ", disse-lh es eu , "agora
podem solt ar-m e de n ovo". "Sim , n ós podem os" / , d iz u m deles rin d o. "Fica 101/ 102

sentado aí bem qu iet o", disse o ou t ro severam en te. Port an t o: a viagem seguirá
cert am en t e para o m an icôm io. Ist o é u m desperdício. Mas parece que este ca-
m in h o t am bém deve ser percorrido. Ele n ão é t ão in com u m , pois m ilh ares de
nossos sem elh an tes o p ercorrem .

Ch egam os — u m en orm e port ão, u m a sala b em grande — u m am ável e d i-


ligen t e supervisor - e agora t am bém dois m estres doutores. U m deles é u m
professor pequen o e gordo.
Pr: "Q u e espécie de livro o sen h or t em aí?"
"É Tom ás de Kem p is: A imitação de Cristo".
Pr: "Port an t o u m a form a religiosa de alien ação, claram en t e u m a paran óia
r eligiosa 177 . — O sen h or vê, m eu prezado, o seguim en to de Cr ist o leva h oje em
d ia ao m an icôm io".
"N ã o h á d ú vid a n en h u m a, sen h or professor".
Pr: " O h om em t em h u m or — cert am en t e algo despertado m an iacam en t e.
O sen h or ouve vozes?"
" E claro! H o je foi todo u m ban do de anabatistas que esvoaçaram pela co-
zin h a".
Pr: "Be m , aí está. O sen h or é perseguido pelas vozes?"
"D e m odo n en h u m , sou eu que as procu ro".
Pr: "Ah , é out ro caso que prova claram en t e que os alucin an t es p rocu ram
d iret am en t e as vozes. Ist o pert en ce à h ist ória da doen ça. Q u e r t er a bondade,
sen h or doutor, de an ot ar isto im ed iat am en t e?"

videtur, rerum omnium satietas vitaefacit satíetatem. Sunt pueritiae studia certa; num igitur ea desiderant
adulescentes? Sunt ineuntis adulescentiae: num ea constans iam requirit aetas quae media dicitur? Sunt
etiam eius aetatis; ne ea quidem quaeruntur in senectute. Sunt extrema quaedam studia senectutis: ergo,
ut superiorum aetatum studia occidunt, sic occidunt etiam senectutis; quod cum evenit, satietas vitae tempus
m aturum m ortis afferf. [Sem dúvida, como ao menos me parece, a saciedade de todas as coisas causa a saciedade da vida.
A infância tem certas atividades; será que os adolescentes também as desejam? A juventude tem seus
interesses: será que as pessoas maduras ou de meia-idade precisam deles? A maturidade também possui
interesses que não são procurados na velhice e, finalmente, existem os interesses próprios da velhice. Por
isso, assim como os prazeres e interesses das idades anteriores perdem sua atração, isto também acontecerá
com os da velhice; e quando isto acontece, a pessoa está saciada da vida, e o tempo está maduro para a
m orte"]. CÍ CERO . De Senectute, DeAmicitia, DeDivinatione. Londres: W illiam Heinem ann, 1927, p. 86-88.
177 O Livro Negro 4 tem: "forma paranoide de dementia praecox" (p. 16).
300 L I B E R S E C U N D U S 102/ 103

"P e r m i t a , s e n h o r p r o fesso r , a o b s e r va ç ã o : ist o n ã o é a b s o lu t a m e n t e d o e n t io ;


é, an tes, m ét od o in t u it ivo".
Pr: "Decid id am en t e, o h om em t em t am bém u m a form ação de lin guagem
n ova. O r a - o d iagn óst ico pod eria estar su ficien t em en t e esclarecido. Desejo,
pois, m elh oras, e m an t en h a-se b em quiet o".
"Mas, sen h or professor, eu n ão est ou doen te. Sin t o-m e m u it o b em ".
Pr: "Veja, m eu prezado, o sen h or ain d a n ão t em id eia da doen ça. O prog-
n óst ico é n at u ralm en t e m au , n o m elh or dos casos t rat a-se de cu ra deficien t e".
Supervisor: "O pacien t e pode ficar com o livro?"
Pr: "Cer t am en t e, parece u m livr o in ofen sivo de piedade".
Fazem u m in ven t ário de m in h as roupas - depois vem o ban h o - e agora
sou levado ao isolam en t o. En t r o n u m a grande en ferm aria, onde devo ir para
a cam a. Me u vizin h o de cam a à esquerda est á deitado im óvel, com o rost o pe-
t rificado, o da d ir eit a parece t er u m cérebro que d im in u i de volu m e e peso. Eu
gozo de perfeit a t ran qu ilid ad e. O problem a da lou cu ra é profun do. A lou cu ra
d ivin a — u m a form a m ais elevada da irracion alid ad e d a vid a que flui em n ós —
ain d a assim lou cu ra que n ão deve ser in corporad a à sociedade h od iern a — mas
com o? Se a gente in corp ora a form a social n a loucura? Aq u i fica escuro e n ão
h á fim à vis t a 17 8 .

[2] [ I H 102] A p lan t a que cresce faz brot ar u m reben t o à d ireit a, e quan do
este est á plen am en t e desen volvido, o im pu lso n at u ral de crescim en t o n ão quer
con t in u ar crescen do para além do brot o fin al, mas flu i de volt a ao t ron co, à m ãe
do galho e abre para si n o escuro e m ergulh ado n o t ron co u m cam in h o in cert o
e en con t ra fin alm en t e o lugar cert o à esquerda e faz brot ar lá u m n ovo reben to.
Mas esta n ova d ireção do crescim en t o é t ot alm en t e con t rária à an tiga. E assim
m esm o a p lan t a cresce sim et ricam en t e, sem t en são exagerada e sem p ert u rb a-
ção do equilíbrio.
À d ir eit a est á m eu pensar, à esquerda, m eu sen tir. Eu en t ro n o recin t o do
m eu sen t ir, que antes disso m e era descon hecido, e vejo com surpresa a d ife-

178 No esboço ocorre uma passagem da qual é uma paráfrase o que segue: Sendo eu um pensador, meu
sentimento era o mais ínfimo, o mais antiquado e menos desenvolvido. Quando eu fui instruído contra
o impensável através de meu poder de pensar, então só podia pressionar para frente de uma maneira
forçada. Mas eu sobrecarreguei de um lado, e o outro lado submergiu mais fundo. Sobrecarregar não é
crescimento, que é o de que precisamos (p. 376).
N O X SECU N D A 301

ren ça en t re m eus dois recin t os. N ã o consigo r ep r im ir o riso - m u it os r ie m em


vez de ch orar. Pisei com o pé d ireit o sobre o esquerdo e est rem eci at in gido por
dor in t ern a. É grande dem ais a d iferen ça en t re quen te e frio. Eu aban don o o
espírit o desse m un do, que od iou o Cr ist o até o fim , e passo para aquele out ro
rein o alegre — t rem en do, n o qu al reen con t ro o Cr ist o.
"A im it ação de Cr ist o " levou -m e ao p róp rio m est re e a seu ad m irável r e i-
no. N ã o sei o que lá quero, só posso seguir o m estre que com an d a este out ro
rein o em m im . Nest e rein o vigoram outras leis que n ão as diret ivas de m in h a
sabedoria. A "graça de Deu s", à qu al n u n ca m e con fiei em m eu rein o por boas
razões da experiên cia, é aqui a lei su prem a do agir. A graça de Deu s sign ifica u m
estado / especial da alm a, em que m e con fio a todo o p róxim o, com t rem or e 102/ 103

h esit ação e m áxim o d ispên d io de esperan ça, de que tudo sairá a con t en t o.
Já n ão posso dizer: é preciso alcan çar este ou aquele objetivo, vale esta ou
aquela razão porque deve ser boa, mas vou tatean do através de n évoa e n oit e.
N ã o se prod u z u m a lin h a, n en h u m a le i se estabelece, tudo é t ot al e con vin cen -
t em en t e fort u it o, at é assustadoram en te fort u it o. Mas u m a coisa fica pavorosa-
m en t e clara: em relação a m eus cam in h os antigos e a todas as suas in t en ções e
in t u ições, t udo é descam in h o a p ar t ir de agora. Fica sem pre m ais claro que n ada
con duz, com o m in h a esperan ça m e quis in sin u ar, mas que tudo seduz.
E de repen te t e fica claro, para t eu h orrível espanto, que caíste n o desm e-
dido, n o desordenado, n a estupidez do caos etern o. Ap r oxim a-se velozm en t e
com o nas asas ruidosas do t em poral, com o n a on d a avassaladora do m ar.
Ca d a pessoa t em em sua alm a u m lugar sossegado, on de tudo é óbvio e facil-
m en t e explicável, u m lugar n o qu al gosta de refugiar-se con t ra as possibilidades
pert urbadoras da vid a, porque lá t udo é sim ples e claro, de fin alidade m an ifest a
e rest rit a. Para n ada n o m u n d o pode a pessoa d izer com igual con vicção do que
para este lugar: "T u n ada m ais és do que...", e ele t am bém o disse.
E m esm o este lugar é u m a superfície lisa, u m an teparo de todo d ia, n ada
m ais do que u m a crost a bem prot egida e m u it as vezes p olid a sobre o m ist ério
do caos. Se quebrares o m ais cot id ian o de todos os an teparos, jo r r a para d en t ro
em t orren t e in con t rolável o caos. O caos n ão é u m m ú lt iplo sim ples, mas in t er -
m in ável. N ã o é in form e, caso con t rário seria sim ples, mas est á repleto de figu -
ras que, por am or à sua plen it u d e, at uam de m odo pert u rbad or e t r iu n fa n t e 179 .

179 Nota marginal ao volume caligráfico: "26.1.1919". Parece que a data se refere ao tempo em que a seção
foi transcrita.
302 LI BE R SECU N D U S 103/104

Essas figuras são os m ort os, n ão só os teus m ort os, ist o é, todas as im agens
de t u a con form ação passada, que d eixou para trás de si t u a vid a progressiva,
mas as massas dos m ort os da h ist ória h u m an a, o cort ejo de fantasm as do pas-
sado, que é u m m ar em vist a da gota de t u a p róp ria du ração de vid a. Vejo atrás
de t i, atrás do espelho de t eu olh o a aglom eração de perigosas som bras, dos
m ort os que olh am avidam en t e através de buracos vazios dos olh os, que gem em
e esperam realizar através de t i o in dissolúvel de todos os tem pos que neles
suspira. Tu a ign orân cia n ão prova nada. Co la t eu ouvido n a parede e perceberás
o baru lh o de seu cort ejo.
Agor a sabes por que colocas naquele lugar o m ais sim ples e o m ais esclare-
cedor, por que louvas aquele lugar sossegado com o o m ais seguro: para que n in -
gu ém , e m u it o m en os t u , desen t erre lá o m ist ério. Pois este é o lugar on de d ia e
n oit e se m ist u r am dolorosam en t e. O que t u exclu is de t u a vid a, o que t u abjuras
e am aldiçoas, tudo que foi e pod eria t er sido desvio para t i, ist o te espera atrás
daquele an teparo em fren t e ao qu al estás sen tado calm am en t e.
Q u an d o lês os livros de h ist ória, en con t ras relatos sobre pessoas que que-
r iam o extravagan te e in au dit o, que arm avam ciladas para si m esm as e que fo-
ram capturadas por outros em arm adilh as para lobos, que qu eriam o m ais alto
e m ais profun do e que foram apagadas, im perfeit as, do quadro dos sobrevi-
ven tes. Poucos dos vivos sabem delas, e esses poucos n ão sabem valorizar n ada
nelas, mas sacodem a cabeça devido à sua lou cu ra.
En qu an t o t u zom bas delas, u m a está atrás de t i, bufan do de raiva e desespe-
ro para que t u a estupidez n ão a contagie. El a te oprim e com n oites sem d orm ir,
às vezes te pren de n u m a d oen ça e às vezes fru st ra tuas in t en ções. El a te t orn a
alt ivo e ávido, ela in cit a teus desejos por tudo que n ão te aproveit a, ela afoga
teus êxit os em in satisfação. El a te acom pan h a com o t eu espírit o ao qu al n ão
concedeste n en h u m a salvação.
O u vist e algo daqueles escuros que acor r iam in cógn it os ao lado dos que
d om in avam o d ia e que con ju rados causavam a in t ran qu ilid ad e? Q u e excogi-
t avam ousadias e n ão recu avam t em erosos d ian t e de n en h u m d elit o em h on r a
de seu Deu s?
En t r e esses coloca o Cr ist o, que foi o m aior deles. Mas para ele foi m u it o
pouco p ar t ir o m u n d o e por isso p ar t iu a si m esm o. E assim ficou sendo o m aior
deles todos, e os poderes deste m u n d o n ão o at in giram . Mas eu falo dos m ort os
N O X SECU N D A 303

que caíram vít im as do poder, part idos pela violên cia e n ão por si m esm os. Seus
bandos povoam o t erren o da alm a. Se t u os aceitas, / eles te en ch em com delírio 103/ 104

e revolt a con t ra aquilo que govern a o m un do. A p art ir do m ais profun do e do


m ais alto plan ejam as coisas m ais perigosas. N ã o eram de n at u reza com u m ,
mas som n obre do m ais puro aço. Eles desprezam t oda part icipação n a pequen a
vid a da pessoa. Vivia m em alturas e n o rejeit ável m ais com pleto. Eles esquece-
r am algo: n ão viviam seu an im al.
O an im al n ão se revolt a con t ra sua espécie. O b ser va os an im ais: com o são
im parciais, h on estos, com o obedecem ao t rad icion al, com o são fiéis à t er r a que
os sust en t a, com o volt am à sua m igração cost u m eira, com o cu id am de suas
crias, com o vão ju n t os ao seu pasto e com o levam un s aos outros à fonte. N ã o
h á n en h u m que escon da sua sobra da presa e deixe seu irm ão m orrer de fom e.
N ã o h á n en h u m que force sua p róp ria espécie à sua von t ade. N ã o h á n en h u m
que im agin e ser elefante quan do é apenas u m a m osca. O an im al vive h on est a e
fielm en t e a vid a de sua espécie, n ada m ais e n ada m en os.
Q u e m n u n ca vive seu an im al vai t rat ar forçosam en t e seu irm ão com o u m
an im al. H u m ilh a -t e e vive t eu an im al, a fim de que possas ser ju st o com t eu
irm ão. Assim salvas todos aqueles m ort os que vagueiam por aí e aspiram n u -
t r ir -se ju n t o aos vivos. E n ão faças daquilo que praticas u m a lei, pois ist o é
arrogân cia de p o d e r l 8 °.
Q u an d o chegar o t em po em que abres as portas aos m ort os, teus t errores
vão acom eter t am bém t eu irm ão, pois t eu rost o an u n cia a desgraça. Por isso
ret ira-t e e vai para a solidão, pois n in gu ém pode acon selh ar-t e quan do lutas
com os m ort os. N ã o grites por socorro quan do os m ort os te cercam , caso con -
t rário fogem de t i os vivos que são t u a ún ica pon t e para o dia. Vive a vid a do d ia
e n ão fales dos m ist érios, mas consagra a n oit e aos m ort os por am or à salvação.
Mas qu em te arran ca dos m ort os com disposição de ajudar prest ou a t i o
pior dos serviços, pois cort ou t eu galho vit al da árvore da divin dade. Tam bém

180 Em 1930, Jung disse num seminário: "Nós temos preconceitos em relação ao animal. As pessoas não
entendem quando digo que elas se devem familiarizar com seus animais ou assimilar seus animais. Elas
pensam que o animal está sempre pulando sobre paredes e fazendo barulheira infernal em toda a cidade.
Mas, por natureza, o animal é um cidadão bem comportado. Ele é leal, segue o caminho com grande
regularidade, nada faz de extravagante. Somente o ser humano é extravagante. Se você assimilar o caráter
do animal, você se tornará um cidadão respeitador da lei e da ordem, você irá com muita cautela e se
tornará muito sensato em seus caminhos, na medida em que conseguir assimilá-lo" (Vísíons I , p. 168).
304 LI BE R SECU N D U S 104/ 106

se in su r ge c o n t r a a r e c o n d u ç ã o d o c r ia d o e m a is t a r d e s u b m e t i d o e p e r d i d o 18 1.

" C o m efeito, o m u n d o criado aguarda an siosam en te a m an ifest ação dos filh os


de Deu s. D e fato, as criat u ras est ão sujeitas a caducar, n ão volu n t ariam en t e,
mas pela von t ade daquele que as su jeit ou , n a esperan ça de serem t am bém elas
libert adas do cat iveiro da corru pção para p art icip arem da liberdade gloriosa
dos filh os de Deu s. Pois sabem os que t oda a criação até agora geme e sente
dores de part o".
Ca d a degrau para cim a será a recon d u ção de u m degrau para baixo, a fim
de que os m ort os sejam salvos para a liberdade. A criação do n ovo receia o
dia, pois sua n at u reza é secreta, ela prepara a d est ru ição desse m esm o d ia, n a
esperan ça de sua passagem para u m a n ova criação. N a criação do n ovo est á u m
m al que n ão podes d ifu n d ir em voz alta. O an im al que espreit a novas op or t u -
n idades de caça vai agachado e farejan te por cam in h os cam uflados e n ão quer
ser surpreen dido.
Pen sa que este é o sofrim en t o do crian do: que t raz em si u m m al, u m a lep ra
da alm a, que o separa de seus sem elh an tes. Ele pod eria ost en t ar sua lep ra com o
virt u d e, e deveras o pod eria por virt u d e. Mas ele im it ar ia o Cr ist o e seria por
isso seu seguidor. Mas só u m foi Cr ist o e só u m pod ia in frin gir as leis com o ele.
E im possível com et er m aior violação em seu cam in h o. Cu m p r e aquilo que te
d iz respeito. Part e o Cr ist o em t i para que te en con t res e fin alm en t e en con t res
t eu an im al que é h on esto em seu ban do e n ão quer violar suas leis. Baste a
violação da lei de que n ão im it es o Cr ist o, pois com isso dás u m passo para trás
dian t e do crist ian ism o e u m passo para além . At ravés do poder, Cr ist o t rou xe a
salvação, o n ão poder vai salvar-t e.
Con t ast e os m ort os que o sen h or do h olocausto ju lgou dignos? T u lh es per-
guntaste por am or a que sofreram a m ort e? Tom ast e con sciên cia da beleza do
pen sam en t o deles, d a pu reza de in t en ção deles? "Ao sair, p od erão con t em plar
os corpos daqueles que se revolt aram con t ra m im , pois seu verm e n ão m orre e
seu fogo n ão se ap aga"18 2 .
Por isso faze p en it ên cia e vê o que coube à m ort e p or am or ao cr ist ian is-
m o, coloca-o d ian t e de t i e força-t e a assu m i-lo em t i. Pois os m ort os p r eci-

181 O esboço manuscrito tem na margem: "Rm 8,19" (p. 863). O que se segue é uma citação de Rm 8,19-22.
182 E uma citação de Is 66,24.
N O X SECU N D A

sam de salvação. A m u lt id ão dos m ort os n ão salvos t orn ou -se m aior do que


o n ú m er o dos crist ãos vivos, p or isso é t em po que n ós in t erven h am os a favor
dos m o r t o s 18 3 .
N ã o in vist as com raiva ou com in t en ção d est ru t iva con t ra o que se t orn ou .
O que queres colocar em seu lugar? Q u an d o consegues d est ru ir o que se t or-
n ou , n ão sabes que volt arás con t ra t i m esm o a von t ade de d est ru ir? Mas cada
qual que faz da d est ru ição seu objetivo, p erecerá através da aut odest ruição. E
m u it o m elh or levar b em em con sid eração o que se t orn ou , pois o respeit o é
u m a bên ção.
Dep ois disso volt a-t e para os m o r t o s 18 4 , ouve suas queixas e vai ao en con t ro
deles com amor. N ã o sejas seu port a-voz d eslu m b r ad o 18 5 , / [Ilu st ração 10 5] 18 6 / 104/ 106

183 O esboço continua: "Um profeta caminhou à frente de nós, a quem a proximidade de Deus deixou furioso.
Ele esbravejava cegamente em sua pregação contra o cristianismo, mas era o advogado dos mortos que
o escolheram para porta-voz e trombeta sonante. Ele gritava com voz fortíssima de modo que muitos o
ouviam, e o poder de sua fala queimava também os adversários dos mortos. Ele ensinava a luta contra o
cristianismo. Também isso era bom" (p. 387). A referência é a Nietzsche.
184 O esboço continua: "cujo advogado tu és" (p. 388).
185 O esboço continua: "como aquele profeta furioso que não sabia de quem era a causa que estava
defendendo, mas acreditava que falava a partir de si mesmo, e se considerava a vontade da destruição" (p.
388). A referência é a Nietzsche.
186 Em 1930, Jung reproduziu de forma anónima esta ilustração no "Com entário ao Segredo da Flor de ouro"
como um mandala desenhado por um paciente durante o tratamento. Ele o descreveu assim: "No centro
a luz branca, brilhando no espaço sideral; na primeira circunferência, germes protoplasmáticos de vida; na
segunda: princípios cósmicos girando que contêm as quatro cores básicas; na terceira e na quarta: forças
criadoras atuando para dentro e para fora. Nos pontos cardeais: as almas feminina e masculina, ambas
separadas novamente segundo claro e escuro" ( O C, 13). Ele o reproduziu novamente em 1952, em "O
simbolismo do mandala", e escreveu: "Trata-se do quadro de um homem de meia idade. No centro há uma
estrela. O céu é azul com nuvens douradas. Nos quatro pontos cardeais vemos figuras humanas: em cima,
um velho em atitude contemplativa e embaixo Loki ou Hefesto, com cabelo ruivo chamejante, segurando
um templo na mão. A direita e à esquerda há duas figuras femininas, uma escura e outra clara. São
indicados desse modo quatro aspectos da personalidade, isto é, quatro figuras arquetípicas que pertencem
por assim dizer à periferia do si-mesmo. As duas figuras femininas podem ser logo reconhecidas como os
dois aspectos da anima. O velho corresponde ao arquétipo do sentido, ou seja, do espírito, e a figura ctônica
escura no plano inferior, ao oposto do sábio, isto é, ao elemento luciferiano, mágico (e às vezes destrutivo).
Na alquimia trata-se de Hermes Trismegisto versus Mercúrio como o 'trickster' evasivo. O primeiro círculo
ao redor do céu contém estruturas vivas semelhantes a protozoários. As dezesseis esferas de quatro
cores no círculo contíguo provêm de um tema originário de olhos e representam portanto a consciência
observadora e diferenciadora. Assim também os ornamentos que se abrem para dentro do círculo seguinte
significam aparentemente receptáculos, cujo conteúdo é despejado em direção ao centro [nota de rodapé:
Ideia semelhante encontra-se na alquimia, isto é, no assim chamado Manuscrito Ripley e suas variantes
(cf. Psicologia e alquimia, p. 524, fig. 257). Nela os deuses planetários misturam suas qualidades ao banho do
renascimento]. O s ornamentos do círculo mais externo abrem-se inversamente para fora, a fim de receber
algo do exterior. No processo de individuação, as projeções originárias refluem para dentro, isto é, são
novamente integradas na personalidade. Em contraste com a ilustração 25, o em cima' e o embaixo', bem
como o 'masculino' e o 'feminino', aqui são integrados, como no hermaphroditus alquímico ( O C, 9/ 1, § 682).
Em 21 de março de 1950, Jung escreveu a Raymond Piper a respeito da mesma ilustração: "A outra figura é
a de um homem bastante culto, com aproximadamente 40 anos de idade. Também ele fez o desenho como
uma tentativa, a princípio inconsciente, de restaurar a ordem no estado emocional em que se encontrava,
provocado pela invasão de conteúdos inconscientes" (Cartas I I , p. 157).
3o6 LI BE R SECU N D U S 104/ 106

h á p r o fe t a s q u e n o fi n a l se a p e d r e ja m a s i m e s m o s . M a s n ó s p r o c u r a m o s a s a l-
vação e por isso precisam os t er respeit o dian t e do que se t orn ou e da aceit ação
dos m ort os, que desde tem pos im em oriais voam através dos ares e, com o m or -
cegos, m oram sob nosso teto. O n ovo se con st ru irá sobre o velh o, e m ú lt iplo
será o sen t ido do que se t orn ou . Port an t o salvaguardarás t u a pobreza n o que se
t orn ou para a riqu eza do que virá.

O que gost aria de afastar-te do crist ian ism o e de seu bem -su cedido m a n -
dam en t o do am or são os m ort os que n ão pu d eram en con t rar a paz n o Sen h or,
pois suas obras inacabadas os seguiam . U m a n ova salvação é sem pre u m a repo-
sição do perdido an t eriorm en t e. N ã o foi o p róp rio Cr ist o que t rou xe de volt a
o sacrifício h u m an o cru en t o que desde tem pos antigos h avia sido elim in ad o
do rit u al sagrado por costum es m elh ores? N ã o foi ele que r ein t r od u ziu o rit u al
sagrado de com er o sacrifício h um an o? E m t eu rit u al sagrado será n ovam en t e
in clu íd o o que u m a le i an t erior h avia condenado.
Co m o foi o p róp rio Cr ist o que t rou xe n ovam en t e o sacrifício h u m an o e o
com er do sacrifício, acon teceu tudo n ele e n ão n o irm ão, pois o Cr ist o colocou
por cim a disso o m aior m an d am en t o do am or, ist o é, que n in gu ém pudesse
preju d icar n isso o irm ão, mas que todos pudessem alegrar-se com a reposição.
O m esm o acon teceu com o an t igam en t e, mas sob a lei do a m o r 18 7 . Port an t o, se
n ão ten s respeit o pelo que se t orn ou , dest ruirás a le i do a m o r 18 8 . O que acon -
t ecerá en t ão con tigo? Serás forçad o a t razer de volt a o que exist ia em tem pos
passados, ist o é, violên cia, assassinato, in ju st iça e desprezo de t eu irm ão. U m
será est ran h o ao out ro, e rein ará a con fusão.
Por isso deves t er respeit o pelo que se t orn ou , para que a le i do am or se
t ran sform e em salvação através da recon d u ção do in ferior e do passado e n ão

187 O esboço continua: "Nenhum título da lei cristã foi abolido, mas nós acrescentamos outro: a aceitação do
lamento dos mortos" (p. 390).
188 O esboço continua: "Não é mais que prazer costumeiro e mau, nada mais que tentação cotidiana,
enquanto não sabes que é a exigência dos mortos. Mas assim que sabes a respeito dos mortos, entendes
tua tentação. Enquanto não for mais que prazer mau, o que podes fazer com ela? Trapacear, arrepender-
te e levantar de novo, para tropeçar de novo, ridicularizar-te e odiar-te, mas com certeza desprezar
interiormente e ter compaixão. Mas se souberes da exigência dos mortos, a tentação vai transformar-
se para t i em fonte de tua melhor criação, da obra salvadora em geral: quando Crist o ressuscitou após
completar sua obra, levou para o alto consigo os que haviam morrido prematura e imperfeitamente sob a
lei da dureza, da alienação e da mais crua violência. Naquele tempo os ares estavam tão cheios de lamentos
dos mortos e seu queixume tornou-se tão forte que até mesmo os vivos ficaram tristes, cansados e fartos
da vida, desejando morrer para este mundo já em seu corpo vivo. Assim conduzes também tu em tua obra
salvadora os mortos à sua perfeição" (p. 390-391).
N O X SECU N D A 307

em con d en ação através do d om ín io ilim it ad o dos m ort os. Mas os espírit os d a-


queles que, por am or à n ossa at u al im perfeição, su cu m bem agora à m ort e antes
do tem po, vão h abit ar em ban dos escuros o forro de nossas casas e en ch er n os-
sos ouvidos com lam en t os de u rgên cia até que n ós lh es proporcion em os sal-
vação através da reposição daquilo que exist iu an t igam en t e sob a le i do amor.
O que n ós ch am am os de t en t ação é a exigên cia dos m ort os que antes do
tem po e im perfeit os p ar t ir am através do d elit o do b em e d a lei. Pois n en h u m
bem é t ão perfeit o que n ão fizesse in ju st iça e quebrasse o que n ão d everia ser
quebrado.

N ó s somos u m a geração cega. Vivem os apenas n a superfície, só n o h oje e


pensam os só n o am an h ã. Agim os cru am en t e com o passado, n ão nos im p or -
tan do com os m ort os. Só querem os fazer trabalh os com resultados visíveis.
Q u erem os sobretudo ser pagos. Pareceria absurdo fazerm os u m t rabalh o ocu l-
to que n ão servisse visivelm en t e às pessoas. N ã o h á d ú vid a de que a n ecessi-
dade da vid a nos forçou a preferir frutos palpáveis. Mas qu em sofre m ais sob a
in fluên cia sedut ora e en gan adora dos m ort os do que aqueles que se perd eram
t ot alm en t e n a superfície do m u n do?
Exist e u m a obra n ecessária, m as escon dida e peculiar, u m a ob ra-p rim a, que
t u precisas realizar em segredo por am or aos m ort os. Q u e m n u n ca consegue
chegar a seu cam po e a seu vin h ed o visíveis, este é seguro pelos m ort os que
dele exigem a obra de expiação. E antes que n ão t en h a realizado esta, n ão pode
chegar às suas obras ext eriores, pois os m ort os n ão lh o p erm it em . Q u e se vir e
e aja com t ran qu ilid ad e segundo seu d esígn io e com plete o secreto, para que os
m ort os se solt em . N ã o olhes dem ais para fren t e, mas para trás e para den t ro,
para que n ão deixes de ou vir os m ort os.
Ist o pert en ce ao cam in h o do Cr ist o: que ele leve consigo para cim a poucos
dos vivos m as m u it os dos m ort os. Su a obra era a salvação dos desprezados e
perdidos. E por causa deles foi cru cificado en t re dois m alfeit ores.
Eu sofro m eu t orm en t o en t re dois loucos. Eu cresço n a verdade quan do
desço. Acost u m a-t e a estar sozin h o com os m ort os. E difícil, mas exat am en t e
assim descobrirás o valor de teus sem elh an tes vivos.
O que fizeram os antigos por seus m ortos? T u acreditas que podias exim ir-t e
da at en ção e das obras n ecessárias pelos m ort os, pois o que estava m ort o era
3o8 LI BER SECU N D U S 106/ 108

passado. T u te desculpas com t u a descren ça n a im ort alid ad e d a alm a. Pensas


en t ão que os m ort os n ão t êm exist ên cia, porque t u im agin as que a im ort alid ad e
é im possível? T u acreditas em teus íd olos de palavras. O s m ort os at u am , é o que
basta. N o m u n d o in t er ior n ão exist e u m a explicação do cam in h o, tam pouco
quan to podes explicar n o m u n d o ext erior o cam in h o do m ar. T u precisas fin al-
m en t e en t en der qu al é o objet ivo de t u a explicação do cam in h o, ist o é, busca
de p r o t e çã o 18 9 .
106/ 108 Eu aceit ei o caos, e n a n oit e seguinte m in h a alm a veio a m im . / [Ilu st ração
10 7] /

Nox t er t ia 19 0
Cap . xvi.

[ I H 10 8 ] 19 1 Min h a alm a su ssu rrou -m e in sist en t e e m edrosam en t e: "Palavras,


palavras, n ão faças palavras dem ais. Cala-t e e escuta: T u reconheceste t u a lo u -
cu ra e a adm ites? Vist e que todas as tuas profun dezas est ão cheias de loucura?
N ã o queres recon h ecer t u a lou cu ra e d ar-lh e am áveis boas-vin das? T u querias
cert a vez aceit ar tudo. Ace it a en t ão t am bém a lou cu ra. D e ixa que b rilh e a lu z
de t u a lou cu ra, e d everá n ascer para t i u m a gran de lu z. N ã o se deve desprezar
n em t em er a lou cu ra, mas deves d ar-lh e a vid a".
Eu : "Tu as palavras soam duras, e difícil é a tarefa que m e colocas".
A: "Se queres en con t rar cam in h os, n ão deves t am bém rejeit ar a lou cu ra,
u m a vez que ela con st it u i tão gran de part e de t u a n at u reza".
Eu : "N ã o sabia que era assim ".
A: "Alegra-t e que o possas recon h ecer, assim evitas ser sua vít im a. A lo u -
cu ra é u m a form a especial de espírit o que adere a todas as teorias e filosofias,
m ais ain d a à vid a de todo d ia, pois a p róp ria vid a est á ch eia de t olices e é es-
sen cialm en t e irracion al. O ser h u m an o só lu t a pela razão a fim de que possa
criar regras para si. A vid a m esm a n ão t em regras. Est e é seu segredo e sua le i

189 O esboço continua: "Tu empregas velhas palavras mágicas para proteger-te supersticiosamente, pois ainda
és uma criança indefesa da antiga floresta. Mas nós vemos por trás de tua palavra mágica, e ela está sem
força, e nada te protege do caos a não ser a aceitação" (p. 398).
190 Terceira noite.
191 18 de janeiro de 1914.
NO X TERTIA 309

d e s c o n h e c id a . O q u e t u c h a m a s d e c o n h e c i m e n t o é u m a t e n t a t i va d e i m p o r à
v i d a algo c o m p r e e n s í ve l ".
E u : "I s t o so a b e m d e sco n so la d o r , m a s d e s p e r t a m i n h a d is c o r d â n c ia ".
A : " T u n ã o t e n s n a d a q u e d isco r d a r . Est á s n u m m a n i c ô m i o ".
A l i e s t á o go r d o p r o fe sso r - fo i ele q u e a s s i m falo u ? E e u p e n s e i q u e fosse
m i n h a a lm a .
P r o f : "Si m , m e u ca r o , o s e n h o r e s t á lo u co . O s e n h o r fa la d e m o d o t o t a l m e n -
t e in c o e r e n t e ".
E u : " E u t a m b é m c r e io q u e m e p e r d i c o m p le t a m e n t e . E s t o u r e a l m e n t e l o u -

co? Es t á t u d o t ã o co n fu so ".

P r o f : "T e n h a p a c iê n c ia , t u d o va i se a r r a n ja r . D u r m a b e m !"

E u : "O b r i g a d o , m a s t e n h o m e d o ".

T u d o se a git a e se p r e c i p i t a e m co n fu sã o . A c o is a fic a sé r ia , o cao s v e m . E


est e o fu n d a m e n t o ú lt i m o ? O cao s é t a m b é m u m a lice r ce ? Se ao m e n o s e u n ã o
se n t isse essa t e r r íve l a git a çã o . C o m o o n d a s e scu r a s t u d o se m i s t u r a n a m a i o r
co n fu sã o . Si m , e u ve jo e e n t e n d o : é o o ce a n o , a o n i p o t e n t e m a r é n o t u r n a - lá
va i u m n a vio — u m gr a n d e n a vio a va p o r — e u e n t r o n o sa lã o p a r a fu m a n t e s —
m u i t a s p esso as - b e lo s ve st id o s - t o d o s o l h a m su r p r e so s p a r a m i m - a lg u é m
se d ir ige a m i m : " O q u e h á c o m o se n h o r ? Es t á p a r e c e n d o u m fa n t a sm a ! O q u e
a co n t e ce u ?"

E u : "N a d a - ist o é - e u a ch o q u e e s t o u fo r a d e m i m - o c h ã o r o d o p i a -
t u d o g i r a —".
Al g u é m : "M a s n ó s t e r e m o s e st a n o it e u n i c a m e n t e o m a r a git a d o - b e b a u m
gr o gu e q u e n t e - o s e n h o r e st á c o m e n jo o ".
E u : " O s e n h o r t e m r a z ã o , e s t o u e n jo a d o , m a s d e u m m o d o e sp e cia l - e u
e s t o u n a ve r d a d e n o m a n i c ô m i o ".

Al g u é m : "Lá v e m o s e n h o r o u t r a ve z c o m p ia d a s, a v i d a vo l t a d e n o vo ".

E u : " O s e n h o r c h a m a ist o d e p ia d a ? Fa z p o u c o q u e o p r o fe sso r m e d e c l a r o u


t o t a lm e n t e lo u c o ".
O p e q u e n o e g o r d o p r o fe s s o r e s t á r e a l m e n t e s e n t a d o a u m a m e s a fo r r a d a
d e ve r d e , jo g a n d o c a r t a s . O u v i n d o m i n h a s p a la vr a s , vo l t o u - s e p a r a m i m e
s o r r i u : " O n d e o s e n h o r e st e ve ? Ve n h a a q u i . Be b e t a m b é m u m co p o ? O se -
n h o r é d e u m a o r i g i n a l i d a d e in c r íve l. C o m su a s id e ia s , o s e n h o r a l vo r o ç o u
t o d a s as d a m a s ".
LI BE R SECU N D U S 108/ 110

E u : "Se n h o r p r o fesso r , isso é d e m a is p a r a m i m . H á p o u c o e u e r a a i n d a se u


p a c ie n t e ".
O u v i u - s e u m a r is a d a ge n e r a liz a d a e b e m a lt a .
P r o f : "Es p e r o q u e n ã o t e n h a le va d o isso p e lo la d o t r á gic o ".
E u : "Se r t r a n c a d o n u m m a n i c ô m i o n ã o é n e n h u m a p ilh é r ia ".
O a lgu é m , c o m o q u a l e u h a vi a falad o a n t e r i o r m e n t e , a p r o xi m o u - s e d e r e -
p e n t e d e m i m e o l h o u - m e n o r o st o . E u m h o m e m d e b a r b a p r e t a e ca b elo s
r e vo lt o s, c o m o lh o s d e b r i l h o m e la n c ó lic o . Fa l o u - m e c o m vo z fir m e : "P a r a m i m
fo i p io r , já e s t o u a q u i h á c in c o a n o s".

Pe r ce b o , é m e u v i z i n h o d e c a m a q u e e vi d e n t e m e n t e a c o r d o u d e su a a p a -
t i a e q u e a go r a se s e n t o u n a m i n h a c a m a . E l e c o n t i n u a fa la n d o c o m fi r m e z a e
c o n vic ç ã o : " E u s o u N i e t z s c h e , m a s o r e b a t iz a d o , t a m b é m s o u Cr i s t o , o sa lva d o r
d e sign a d o p a r a sa lva r o m u n d o , m a s eles n ã o m e d e i xa m ".
E u : " Q u e m n ã o d e ixa ?"
O lo u co : " O d ia b o . A q u i n ó s e st a m o s n o in fe r n o . O s e n h o r n a t u r a l m e n t e
n ã o p e r c e b e u n a d a d isso. E u t a m b é m só p e r c e b i n o se gu n d o a n o d e m i n h a e s-
t a d a a q u i q u e o d i r e t o r e r a o d ia b o ".
E u : " O s e n h o r q u e r d i z e r o p r o fe sso r ? P a r e ce in a c r e d it á ve l".
O lo u co : " O s e n h o r é u m ign o r a n t e . E u já d e ve r i a t e r - m e ca sa d o h á m u i t o
t e m p o c o m a m ã e d e D e u s 19 2 . M a s o p r o fesso r , o d ia b o , é s e n h o r d e la . T o d a n o i -
t e ao p ô r d o so l ele ge r a u m filh o c o m e la . D e m a n h ã ced o, ao n a sce r d o so l, e la
108/ n o o d á à lu z . En t ã o v ê m t o d o s os d ia b o s e m a t a m a c r ia n ç a d e / [Ilu s t r a ç ã o 10 9 ] 19 3
/ fo r m a c r u e l. O u ç o p e r fe it a m e n t e seu s gr it o s".

E u : "M a s ist o é m i t o l o g i a m a is p u r a q u e o s e n h o r e st á c o n t a n d o ".


O lo u co : " T u e st á s lo u c o e p o r isso n ã o e n t e n d e s n a d a d isso. T u p e r t e n c e s
ao m a n i c ô m i o . M e u D e u s , p o r q u e m i n h a fa m ília s e m p r e m e t r a n c a ju n t o c o m
lo u co s? E u d e ve r ia sa lva r o m u n d o , p o is e u s o u o sa lva d o r ".

D e i t o u - s e n a c a m a e s u c u m b i u à su a a p a t ia a n t e r io r . E u a ga r r o as b e ir a d a s
d a m i n h a c a m a p a r a p r o t e ge r - m e c o n t r a o t e r r íve l b a lo u ça r . O l h o fi xa m e n t e
p a r a a p a r e d e a f i m d e p r e n d e r - m e ao m e n o s c o m m e u s o lh a r e s. N a p a r e d e h á

192 Em OEueo Inconsciente ( 19 28 ) Jung se refere a um caso de um homem com demência paranoide que ele
encontrou ao tempo de Burghõlzli, que estava em contato telefónico com a Mãe de Deus ( O C, 7, § 229 ) .
193 Legenda da ilustração: "Est a pessoa feita de matéria subiu demais para dentro do mundo do espírito, mas
lá o espírito perfurou-lhe o coração com o raio de ouro. Ela entrou em êxtase e se desagregou. A serpente,
que é o mal, não podia permanecer no mundo do espírito".
NO X TERTIA 311

u m a l i n h a h o r i z o n t a l , a b a ixo d e la a p a r e d e é p i n t a d a d e c o r m a is e scu r a . E m
fr e n t e e st á u m a q u e ce d o r - é u m c o r r i m ã o , m a is a d ia n t e ve jo o m a r . A l i n h a é
o h o r i z o n t e . E lá n a sce a go r a o s o l e m a u r a ve r m e l h a , só e m a je st o so — d e n t r o
h á u m a c r u z e n e l a e st á p e n d u r a d a u m a c o b r a — o u é u m t o u r o , e sq u a r t e ja d o
c o m o n o a ç o u g u e — o u é u m b u r r o ? E s e m d ú vi d a u m c a r n e i r o c o m a c o r o a d e
e sp in h o s — o u é o Crucífíxus, e u m e s m o ? O s o l d o m a r t í r i o n a s c e u e d e r r a m a
r a io s sa n gr e n t o s so b r e o m a r . D u r a m u i t o est e e sp e t á cu lo , o so l so b e m a is , seu s
r a io s fi c a m m a is b r i l h a n t e s 19 4 e m a is q u e n t e s e o so l a r d e b r a n c o cá p a r a b a ixo
so b r e u m m a r a z u l. O b a lo u ç a r t e r m i n o u . U m a c a l m a b e n fa z e ja d a m a n h ã d e
ve r ã o r e p o u s a so b r e o m a r t r e m e lu z e n t e . Er g u e - s e u m va p o r salgad o d e á gu a .
U m a o n d a fr a ca e e xt e n s a q u e b r a n a a r e ia c o m s o m ab afad o e s e m p r e d e n o vo
ela vo lt a , d o z e ve z e s, as b a d a la d a s d o r e ló gio d o m u n d o 19 5 - a d é c i m a se gu n d a
h o r a se c o m p le t o u . E a go r a se faz c a lm a . N e n h u m b a r u lh o , n e n h u m a r e s p i r a -
ção. T u d o e st á i n e r t e , e m q u ie t u d e m o r t a l . E u e sp e r o i n t i m a m e n t e a n gu st ia d o .
Ve jo s u r gir d o m a r u m a á r vo r e . Se u s galh o s a lc a n ç a m o c é u e su as r a íz e s d e s c e m
a t é o in fe r n o . Es t o u c o m p l e t a m e n t e só e a t a r a n t a d o e o lh o d e lo n ge. E c o m o
se t o d a a v i d a t ive sse fu gid o d e m i m , t o t a lm e n t e e n t r e gu e ao in c o n c e b íve l e
e sp a n t o so . Es t o u m u i t o fr a co e i m p o t e n t e . "Sa lva ç ã o ", s u s s u r r o e u . U m a vo z
e s t r a n h a fala: "Aq u i n ã o h á s a l va ç ã o " 19 6 , m a s o s e n h o r t e m d e fa z e r silê n cio , caso
c o n t r á r io v a i p e r t u r b a r os o u t r o s. E n o it e , e as o u t r a s p esso as q u e r e m d o r m i r ".
E u ve jo , é o gu a r d a . O sa lã o e st á fr a c a m e n t e i l u m i n a d o p o r u m p e q u e n o l a m -
p iã o , e t r i s t e z a p e sa so b r e o a m b ie n t e .
E u : " E u n ã o e n c o n t r e i o c a m i n h o ".
El e d iz : " O s e n h o r n ã o p r e c is a p r o c u r a r a go r a n e n h u m c a m i n h o ".
El e d i z a ve r d a d e . O c a m i n h o , o u se ja lá o q u e fo r so b r e o q u a l c a m i n h a m o s ,
é n o sso c a m i n h o , o c a m i n h o ce r t o . N ã o h á n e n h u m c a m i n h o t r a ç a d o p a r a o
fu t u r o . N ó s d i z e m o s q u e é est e c a m i n h o , e ele o é. N ó s c o n s t r u í m o s as e st r a d a s
e n q u a n t o c a m i n h a m o s . N o s s a v i d a é a ve r d a d e q u e p r o c u r a m o s . Só m i n h a v i d a
é a ve r d a d e , a ve r d a d e e m ge r a l. N ó s c r i a m o s a ve r d a d e e n q u a n t o a vive m o s .

194 Nota marginal de Jung no volume caligráfico: "22.3.1919", Isto parece referir-se à época em que esta
passagem foi transcrita no volume caligráfico.
195 Em Psicologia e religião (19 38) Jung comenta o simbolismo do relógio do mundo ( O C , 11, § n o s.).
196 Na Divina Comédia, de Dante, as seguintes linhas estão gravadas acima do portão de entrada do inferno:
"Lasciate ogni speranza voi ch'intrate" [Abandonai toda esperança vós que entrais] (Can t o 3, linha 9 ) . The
Divine CommedyofDante Aleghierí. Vol, I . Nova York: O xford University Press, 1997, p. 55 [org. e trad. de R.
Durlin g].
312 L I B E R S E C U N D U S no/ 112

[2] Es t a é a n o i t e e m q u e t o d o s os d iq u e s se r o m p e r a m , e m q u e se m o ve o
q u e a n t e s e st a va fi r m e , e m q u e as p e d r a s se t r a n s fo r m a r a m e m co b r a s e t o d o
se r vi vo fi c o u p a r a lisa d o . E u m a t r a m a d e p a la vr a s? En t ã o a t r a m a d e p a la vr a s é
i n fe r n o p a r a a q u e le q u e n e l a e s t á p r eso .
Ex i s t e m t r a m a s in fe r n a is d e p alavr as, so m e n t e p alavr as, m a s o q u e sã o p a la -
vr as? Sê cau t elo so c o m p alavr as, esco lh e-as b e m , t o m a p alavr as p r ecisas, p alavr as
s e m a r m a d ilh a s, n ã o as e n t r e la ce s p a r a q u e n ã o s u r ja n e n h u m a t r a m a , p o is t u és o
p r i m e i r o q u e n e la se e n r e d a 19 7 . P o is p alavr as t ê m sign ificad o s. N a s p alavr as p u xa s
p a r a c i m a o su b m u n d o . A p a la vr a é o m a is n u lo e o m a is fo r t e. N a p a la vr a c o r r e m
ju n t o s o va z i o e o ch e io . P o r isso, a p a la vr a é u m a i m a g e m d e D e u s . A p a la vr a
é o m á x i m o e o m í n i m o q u e o se r h u m a n o c r i o u , a s s im c o m o a q u ilo q u e a t u a
a t r a vé s d o ser h u m a n o é o m a i o r e o m e n o r .

P o r isso, q u a n d o s u c u m b o à t r a m a d a p a la vr a , s u c u m b i ao m a i o r e ao m e n o r .
Es t o u e n t r e gu e ao m a r , à o n d a i n d e fi n i d a , q u e in c a n s a ve lm e n t e a lt e r a o lu gar .
Su a n a t u r e z a é m o vi m e n t o , e m o v i m e n t o é s u a o r d e m . Q u e m r e sist e à o n d a
e st á a b a n d o n a d o ao acaso. O c o n t í n u o é o b r a d o se r h u m a n o , m a s ist o b o ia
so b r e o caos. Q u e m v e m d o m a r , a est e p a r e ce l o u c u r a a a t ivid a d e d as p essoas.
M a s as p esso as o c o n s i d e r a m u m l o u c o 19 8 . Q u e m v e m d o m a r é d o e n t e . M a l
co n se gu e s u p o r t a r o o lh a r d as p essoas. P o is elas lh e p a r e c e m t o d a s b ê b a d a s e
a lu cin a d a s p o r ca u sa d o s ve n e n o s s o n ífe r o s . El a s q u e r e m v i r e m t e u so co r r o ,
m a s t u go st a r ia s d e a ce it a r m e n o s a ju d a d o q u e i l u d i r - t e m a is e m s u a c o m p a -
n h i a e se r c o m p le t o , c o m o a l g u é m q u e n u n c a v i u o cao s, m a s q u e só fa la d ele.

P a r a q u e m v i u o caos, n ã o h á m a is o cu lt a çã o , m a s ele sab e q u e o c h ã o t r e m e


e o q u e est e t r e m o r sign ifica . E l e v i u a o r d e m e a d e s o r d e m d o in fin it o , ele e st á a
p a r d as le is ile gít im a s. E l e t e m c o n h e c i m e n t o d o m a r e ja m a i s p o d e e s q u e c ê - lo .
Te r r íve l é o caos: d ia s ch e io s d e c h u m b o , n o it e s ch e ia s d e h o r r o r 19 9 .

M a s a s s im c o m o C r i s t o sa b ia q u e ele e r a o c a m in h o , a ve r d a d e e a vid a , e n -
q u a n t o a t r a vé s d e le ch e go u ao m u n d o o n o vo t o r m e n t o e sa lva çã o r e n o va d a ,

197 O esboço continua: "Pois palavras não são meras palavras, mas têm significados para quem foram
compostas. Elas atraem os significados como sombras demoníacas. Pelas palavras puxas para cima o
submundo" (p. 4 0 3) .
198 O esboço continua: "Depois de teres visto o caos, olha uma vez para teu rosto: tu viste mais que morte e
sepultura, t u viste o outro lado, e teu rosto está marcado como o rosto de alguém que viu o caos e assim
mesmo era um ser humano. Muitos passam para o outro lado, mas não veem o caos; o caos porém os vê,
olha fixamente em seu rosto e lhes imprime uma marca. Ficam então assinalados para sempre. Chame
alguém assim de louco, pois ele o é; tornou-se onda e perdeu seu humano, seu permanente" (p. 4 0 4 ) .
199 A frase anterior está riscada no esboço corrigido e tem escrito na margem "identificação OIAHMÊ2N" (p. 4 0 5) .
NOX TERTIA 313

t a m b é m e u s e i q u e o ca o s d e ve v i r so b r e os se r e s h u m a n o s e q u e as m ã o s d a q u e -

le s q u e , c o n fia n t e s e s e m o sab er , a t r a ve s s a m as fin a s p a r e d e s, q u e n o s a fa s t a m

d o m a r , e s t ã o o cu p a d a s. P o is e st e é o n o sso c a m i n h o , n o s s a ve r d a d e e n o s s a vi d a .

A s s i m c o m o o s d i s c í p u l o s d e C r i s t o r e c o n h e c e r a m q u e o D e u s se t o r n a r a

c a r n e e q u e m o r a v a e n t r e e le s c o m o u m a p e s s o a h u m a n a , t a m b é m n ó s r e c o n h e -

c e m o s a go r a q u e o U n g i d o d e s s a é p o c a é u m D e u s q u e n ã o a p a r e ce n a c a r n e ,

n ã o é p essoa h u m a n a , e a ssim m e s m o é u m Fi lh o d o H o m e m , n ã o n a ca r n e ,

m a s n o e s p í r i t o , e p o r isso s ó p o d e n a s c e r a t r a vé s d o e s p í r i t o d o se r h u m a n o n a

c o n d i ç ã o d e ú t e r o c o n c e b e d o r d e D e u s 2 0 0 . A e st e D e u s é fe it o o q u e t u fa z e s ao

m e n o r e m t i m e s m o , so b a l e i d o a m o r , d a q u a l n a d a p o d e se r s u b t r a í d o . P o is

d e q u e o u t r o m o d o p o d e t e u m a i s í n fi m o se r sa lvo d a c o r r u p ç ã o ? / [ I l u s t r a ç ã o no/ 112


201
111] / Q u e m d e ve e n c a r r e g a r - s e d o m a i s í n fi m o e m t i se t u n ã o o fa z es? M a s

q u e m o fa z p o r o r g u lh o , e g o í s m o o u c o b i ç a , e n ã o p o r a m o r , e s t á c o n d e n a d o .

Ta m b é m n a con d en ação n ad a é su b t r a íd o 20 2.

2 0 0 Jung desenvolveu este assunto muitos anos depois em Resposta a Jó ( 19 52) , onde estudou a transformação
histórica das imagens judeu-cristãs de Deus. Um tema importante nesse contexto foi a encarnação
continuada de Deus depois de Cristo. Tecendo um comentário sobre o Apocalipse, Jung argumentou
que "desde o momento em que João, autor do Apocalipse, sentiu pela prim eira vez (talvez de modo
inconsciente) o conflito no qual o cristianismo introduz diretamente, a humanidade está debaixo de seu
peso: Deus quis e quer tornar-se homem" ( O C, n , § 739 ) . Na concepção de Jung, havia uma vinculação
direta entre os pontos de vista de João e os de Eckhart: "Est a irrupção perturbadora gerou dentro dele
a figura da companheira divina, cuja imagem habita em cada homem, da criança que também Mestre
Eckhart contemplou em sua visão. Ele foi aquele que sabia que Deus não é feliz sozinho em sua divindade,
mas deve nascer na alma do ser humano. A encarnação em Crist o é o protótipo que será transposto
progressivamente para a criatura através do Espírito Santo" (ibid., § 741). Em tempos mais recentes,
Jung deu grande importância à Bula papal da Assunção de Maria. Ele afirmou que ela: "aponta para a
realização do hierósgamos no pleroma, e este hierósgamos, por sua vez, refere-se, como já foi dito, ao
futuro nascimento da criança divina que, em virtude da tendência divina de encarnar-se, escolherá o
homem empírico para lugar de nascimento. Este acontecimento metafísico é conhecido pela psicologia do
inconsciente com o processo de individuação" (ibid., § 755). O processo de individuação encontrou seu sentido
último através de sua identificação com a encarnação continuada de Deus na alma. Em 3 de maio de 1958,
Jung escreveu a Morton Kelsey: "A verdadeira história do mundo parece ser a encarnação progressiva da
deidade" (Cartas I I I , p. 151).
20 1 Legenda da ilustração: "A serpente tombou morta sobre a terra. E este foi o cordão umbilical de seu
novo nascimento". A serpente é semelhante à da ilustração 109 . No Livro Negro 7, em 27 de janeiro de
1922, a alma de Jung se refere retrospectivamente às ilustr. 10 9 e 111. Sua alma diz: "Terrível é a nuvem
gigante da noite eterna. Vejo sobre esta nuvem da esquerda para cima um risco de brilho amarelo na
forma de um raio irregular, por trás luz vermelha indeterminada na nuvem. Não se movimenta. Debaixo
da nuvem vejo deitada uma cobra preta morta, e o raio está cravado em sua cabeça como uma lança. Um a
mão, grande como a de um Deus, atirou a lança e tudo ficou rijo qual imagem de brilho sombrio. Seja qual
for seu significado! Lembras-te daquele quadro que pintaste há anos em que o homem vermelho-escuro
com a cobra branco-preta foi atingido pelo raio de Deus? Lá está dependurado aquele quadro, pois mais
tarde pintaste também a cobra morta, e não é que hoje de manhã apareceu-te diante dos olhos um quadro
lúgubre, aquele homem com veste branca e rosto negro como uma múmia?" " I " de Jung: "O que é isso?"
Alm a: "Um a imagem de teu si-mesmo" (p. 57) .
20 2 O esboço continua: "Mas quem o faz sob a lei do amor, a este sucederá para além do sofrimento, sentar-se
à mesa com o Ungido e contemplar a glória de Deus" (p. 4 0 6 ) .
314 LI BE R SECU N D U S 110/ 112

I n e vi t á ve l é o s o fr i m e n t o q u a n d o t u a s s u m e s o m a i s í n fi m o e m t i , p o is t u

fazes o a b je t o e e r gu e s o q u e e s t a va d e s t r u í d o . H á m u i t o s e p u lc r o e c a d á ve r p u -

t r e fa t o e m n ó s , u m m a u c h e i r o d e d e c o m p o s i ç ã o 2 0 3 . A s s i m c o m o C r i s t o s u b j u -

go u a c a r n e a t r a vé s d o s o fr i m e n t o d a s a n t ific a ç ã o , t a m b é m o D e u s d e ssa é p o c a

m a r t i r i z a r á o e s p í r i t o a t r a vé s d a c a r n e . P o is n o s s o e s p í r i t o t o r n o u - s e p r o s t i t u t a

i n s o l e n t e , u m e s c r a vo d as p a la vr a s c r ia d a s p e lo s se r e s h u m a n o s e n ã o m a i s a

p r ó p r i a p a l a vr a d i v i n a 2 0 4 .

O í n fi m o e m t i é a fo n t e d a gr a ç a . N ó s a s s u m i m o s e s t a d o e n ç a , a fa lt a d e p a z ,

a i n s i g n i fi c â n c i a e b a i xe z a , p a r a q u e o D e u s fiq u e c u r a d o e se l e va n t e l u m i n o s o ,

p u r i fi c a d o d a d e c o m p o s i ç ã o d a m o r t e e d a l a m a d o s u b m u n d o . Fu l g u r a n t e e

t o d o c u r a d o se e r g u e r á p a r a s u a l i b e r t a ç ã o o ve r g o n h o s a m e n t e a p r is io n a d o 20 5.

20 3 O esboço continua: "Mas quem toma sobre si seu sofrimento sob a lei do amor, a este virá o Deus e fará
com ele uma nova aliança. Pois está predeterminado que o Ungido deve retornar, não mais em carne, mas
em espírito. Assim como o Crist o levou a carne a curar-se através do padecimento, também o Ungido
dessa época levou o espírito a curar-se através do padecimento" (p. 4 0 7) .
20 4 O esboço continua: "O ínfimo em t i é a pedra que os construtores rejeitaram. Ela se tornará a pedra
angular. O ínfimo em t i vai brotar, erguer-se e ficar bem alto como um rebento em solo árido, em areia
do deserto mais seco. Do rejeitado vem para t i a felicidade. De brejos lamacentos nasce teu sol. Tu te
aborreces, como todos os outros, com o ínfimo em t i porque sua forma é mais feia do que a imagem que
tu amas em t i mesmo. O ínfimo em t i é o universalmente desprezado e desvalorizado, cheio de dores e
doença. Ele é tão desprezado que a gente esconde o rosto diante dele, que a gente o considera um nada,
que até se diz que ele não existe, pois a gente se envergonharia e se desprezaria a si mesmo por causa
dele. Na verdade, ele suporta nossa doença e está carregado de nossas dores. Nós o consideramos como
aquele que foi atormentado e castigado por causa de sua feiúra desprezível. Mas ele foi ferido e entregue à
loucura por causa de nossa própria justiça, por causa de nossa própria beleza foi torturado e oprimido. Nós
deixamos o castigo e a tortura para ele, para que nós pudéssemos ter paz. Mas tomaremos sobre nós sua
doença e, através de nossas feridas, virá a nós a felicidade" (p. 4 0 7 - 4 0 8 ) . As primeiras linhas se referem ao
Sl 108,22; A passagem é um eco de Is $3, que Jung cita acima, p. 229 .
20 5 O esboço continua: "Por que nosso espírito não deve tomar sobre si tormento e falta de paz para a
santificação? Mas tudo isso virá sobre vós, pois já ouço os passos daqueles que receberam a chave para
abrir os portões da profundeza. O barulho das lutas que ressoa por vales e montanhas, o lamento dorido
que se ergue de inúmeros lugares habitados é prenúncio do que virá. Minhas visões são verdade, pois eu
vi o que virá. Mas não deveis acreditar em m im , caso contrário vos desviareis de vosso caminho certo que
vos conduz por via segura exatamente para vosso sofrimento, que eu prevejo. Nenhuma crença vos leve ao
erro, assumi vossa descrença máxima e conduzi-vos ao caminho. Assum i vossa traição e deslealdade, vosso
orgulho e vossa pretensão e chegareis à estrada correta que vos levará ao vosso ínfimo; e o que fazeis ao
vosso ínfimo em vós, isto o fazeis para o Ungido. Não vos esqueçais de uma coisa: nada é abolido da lei do
amor, mas muita coisa lhe é acrescentada. Mas amaldiçoado é aquele que mata por si ou em si aquele que
ama, pois incontável é o número de mortos que morreram por causa do amor, e o mais poderoso entre
esses mortos é o Senhor, o Cristo. Veneração diante desses mortos é sabedoria. O fogo do inferno espera
por aquele que mata dentro de si o que ama. Vós lamentareis e odiareis a impossibilidade de unir em
vós o ínfimo com a lei do amor. Eu vos digo: como Crist o submeteu a natureza do corporal ao espiritual
sob a lei da Palavra do Pai, assim deverá ser submetida a natureza do espiritual ao corporal sob a lei da
lei, completada por Cristo, da obra da salvação através do amor. Vós tendes medo da periculosidade; mas
sabei que onde Deus está mais próximo, aí o perigo é maior. Com o podeis reconhecer o Ungido sem
perigo? Pode-se adquirir uma valiosa pedra preciosa por uma moeda de cobre? O ínfimo em vós é também
vosso perigo. O medo e o perigo são os guardas da porta de vosso caminho. O ínfimo em vós é ilimitado,
pois não o vedes. Portanto, dai-lhe forma e contemplai-o. Com isso abris as comportas do caos. Do mais
escuro, molhado e frio nasce o sol. As pessoas ignorantes dessa época só veem o um; nunca percebem
a aproximação do outro. Mas se existe o um, também existe um outro" (p. 4 0 9 - 4 10 ) . Jung cita aqui
NO X TERTIA 315

Exi s t e u m s o fr i m e n t o q u e se ja gr a n d e d e m a is p o r a m o r a n o sso D e u s ? T u
só vê s u m a c o is a e n ã o p e r ce b e s a o u t r a . M a s se e xist e u m a co isa , e n t ã o e xis t e
t a m b é m u m a o u t r a , e e st a é o í n fi m o e m t i . M a s o í n fi m o e m t i é t a m b é m o
o lh o d o m a l , q u e t e e n c a r a fi xa m e n t e e c o m fr ie z a , e q u e su ga t u a l u z p a r a
d e n t r o d o a b is m o e scu r o . Be n d i z e i a m ã o q u e vo s m a n t é m n o alt o , n o m í n i m o
h u m a n o , n o í n fi m o c o m vid a . N ã o p o u co s v ã o p r e fe r ir a m o r t e . P o is c o m o o
C r i s t o i m p ô s à h u m a n i d a d e o sa cr ifício c r u e n t o , t a m b é m o D e u s r e n o va d o n ã o
p o u p a r á o san gu e.

P o r q u e t e u m a n t o e s t á t ã o ve r m e l h o e t u a r o u p a c o m o a d e q u e m p i s a o
lagar ? E u p iso s o z in h o o lagar e n i n g u é m e st á co m igo . E u m e e s p r e m i e m m i n h a
i r a e p isa d o fu i e m m e u fu r o r . P o r isso m e u sa n gu e b o r r i fo u m i n h a s ve st e s, e e u
s u je i m e u m a n t o p o r in t e ir o . P o is e u m e p r o p u s u m d i a d e vin g a n ç a , ch e go u o
d i a d e m e lib e r t a r . O l h e i e m t o r n o d e m i m , e n ã o h a vi a q u e m m e aju d asse; e u
m e a d m i r e i , e n i n g u é m m e s o c o r r e u , m a s m e u b r a ç o t eve d e m e a ju d a r , e m i n h a
i r a ve i o e m m e u a u xílio . E e u p is e i e m c i m a d e m i m e m m i n h a i r a , e u m e e m -
b r ia gu e i e m m e u fu r o r , e d e r r a m e i m e u sa n gu e so b r e a t e r r a 2 0 6 . P o is e u t o m e i
so b r e m i m m e u d e lit o p a r a q u e D e u s ficasse cu r a d o .

C o m o o C r i s t o d isse q u e n ã o t r o u xe r a a p a z , m a s a e s p a d a 2 0 7 , a s s im a q u e le
q u e a p e r fe iç o a o C r i s t o d e n t r o d e s i n ã o se d a r á a p a z , m a s u m a esp ad a. E l e se
le va n t a r á c o n t r a s i m e s m o , e u m a c o is a e s t a r á d i r i g i d a c o n t r a a o u t r a d e n t r o
d ele. E l e t a m b é m o d i a r á a q u ilo q u e a m a e m s i m e s m o . E l e se r á e m s i m e s m o
flagelad o, e s c a r n e c id o e e n t r e gu e ao t o r m e n t o d a c r u z , e n i n g u é m e s t a r á a s e u
la d o p a r a a b r a n d a r se u t o r m e n t o .
As s i m c o m o o C r i s t o fo i c r u c ific a d o e n t r e o s d o is m a lfe it o r e s , t a m b é m n o s -
so í n fi m o e s t á e m a m b o s os la d o s d e n o sso c a m i n h o . E c o m o u m d o s m a l fe i t o -
r es fo i p a r a o i n fe r n o e o o u t r o s u b i u ao cé u , t a m b é m n o sso í n fi m o e m n ó s se
d ivid ir á e m d u as m e t a d e s n o d i a d e n o sso ju íz o . U m a , d e s t in a d a à c o n d e n a ç ã o
e à m o r t e , a o u t r a , a q u e m ca b e s u b ir p a r a o a l t o 2 0 8 . M a s d e m o r a r á m u i t o a t é

implicitamente as primeiras linhas de Patthos, de Friedrich Hõlderlin, que era um de seus poemas favoritos:
"Perto está / o Deus, e difícil de entender./ Mas onde há perigo, / a salvação também cresce". Jung tratou
disso em Transform ações e sím bolos da libido (1912. O C , B, § 6$is.).
20 6 Essas linhas citam realmente Is 63,2-6.
20 7 Mateus 10,34: "Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer a paz, e sim a espada".
20 8 Em Resposta a Jó (19 52) Jung escreveu sobre o Crist o na cruz: "Este quadro é completado pela presença
de dois malfeitores, um dos quais desce ao inferno e o outro sobe ao paraíso. Não se poderia representar
melhor a antinomia do símbolo central do cristianismo" ( O C , I I , § 6 59 ) .
3i6 LI BE R SECU N D U S 112/ 114

e n t e n d e r e s o q u e e s t á d e s t in a d o à m o r t e e o q u e , à vi d a , p o is o í n fi m o e m t i
a i n d a e s t á i n d i vi s o e m t i , é u m a c o is a só e e m p r o fu n d o son o.
Q u a n d o a ce it o e m m i m o ín fim o , e n t e r r o u m ge r m e n o c h ã o d o in fe r n o .
O ge r m e é i n vi s i ve l m e n t e p e q u e n o , m a s d e le n a sce e cr e sce a á r vo r e d e m i n h a
v i d a q u e liga o i n fe r i o r ao su p e r io r . E m a m b a s as e xt r e m i d a d e s h á fogo e c a lo r
m á xi m o . O s u p e r io r e st á e m fogo e o i n fe r i o r e s t á e m fogo. En t r e os fogos
in s u p o r t á ve is cr e sce t u a vi d a . En t r e esses d o is p o io s e st á s d e p e n d u r a d o . N u m
m o v i m e n t o a t e r r a d o r s e m l i m i t e s o s c ila p a r a c i m a e p a r a b a ixo o p e n d e n t e
d ist e n d id o 20 9 .

P o r isso a ge n t e t e m e n o sso ín fim o , p o is é s e m p r e u n o c o m o cao s a q u ilo


q u e n ã o p o s s u í m o s , e t o m a p a r t e e m se u flu xo e r e flu xo e n ig m á t ic o s . Ac e i t a n -
d o e m m i m o ín fim o , p r e c is a m e n t e a q u e le so l a ve r m e lh a d o - in c a n d e s c e n t e d a
p r o fu n d e z a , e s u c u m b i n d o p o r ca u sa d isso à c o n fu s ã o d o caos, t a m b é m n a sce
p a r a m i m o so l q u e b r i l h a n o alt o. P o r isso q u e m a s p ir a ao m a is a lt o e n c o n t r a
o m a is p r o fu n d o .

P a r a sa lva r as p esso as d e s u a é p o c a d o p e n d e n t e d is t e n d id o , o C r i s t o t o m o u
r e a lm e n t e so b r e si est e t o r m e n t o e e n s i n o u : "Se d e e sp e r t o s c o m o as co b r a s e
s e m fa lsid a d e c o m o as p o m b a s " 2 10 . P o is a e s p e r t e z a a c o n s e lh a c o n t r a o caos, e
a in ge n u id a d e o c u l t a se u a sp e ct o h o r r íve l. P o r t a n t o , as p esso as p o d i a m a n d a r
p e lo se gu r o c a m i n h o d o m e io , c o m l i m i t e p a r a c i m a e p a r a b a ixo .

M a s os m o r t o s d e c i m a e d e b a ixo se m u lt i p li c a r a m , e su a e xigê n cia t o r n o u - s e


ca d a ve z m a is ve e m e n t e . E l e va n t a r a m - s e p esso as d is t in t a s e in fa m e s q u e , s e m
o sab er , t r a n s g r e d i r a m a l e i d o m e io . A b r i r a m p o r t a s p a r a c i m a e p a r a b a ixo .
Le v a r a m m u i t o s c o m eles p a r a o d e lír io s u p e r io r e i n fe r i o r e s e m e a r a m a s s im a
c o n fu s ã o e p r e p a r a r a m o c a m i n h o d a q u e le q u e e st á p a r a ch egar.

M a s q u e m e n t r a n o u m e n ã o ao m e s m o t e m p o n o o u t r o , e n q u a n t o a c e it a
a q u ele q u e lh e v e m ao e n c o n t r o , só e n s i n a r á e vi ve r á o u m , e d isso fa r á u m a
r e a lid a d e . P o is ele se t o r n a r á ví t i m a d o u m . Se t u e n t r a s n o u m e p o r isso c o n -
sid e r a s c o m o i n i m i g o o o u t r o q u e lh e v e m ao e n c o n t r o , c o m b a t e r á s o o u t r o .
P o is n ã o vê s q u e o o u t r o t a m b é m e s t á e m t i . T u ach as q u e ele v e m d e q u a lq u e r

20 9 Dieterich observa que no Górgias, de Platão, há o motivo de que os transgressores ficam dependurados
no Hades (Nekyía, p. 117). Na lista de referências de Jung no verso de seu exemplar de Nekyía, escreveu: "117
estão dependurados".
210 Mateus 10,16: "Eu vos envio como ovelhas no meio de lobos; sede, pois, prudentes como as serpentes e
simples como as pombas".
NO X TERTIA 317

m o d o d e fo r a e t u ach as q u e o vê s t a m b é m n a s o p i n i õ e s c o n t r á r ia s a t i e n as
a çõ e s d e t e u s c o n c id a d ã o s . Lá o co m b a t e s e e st á s t o t a lm e n t e cego. M a s q u e m
a c e it a o o u t r o q u e lh e v e m ao e n c o n t r o , p o r q u e t a m b é m já e st á n e le , est e já n ã o
c o m b a t e , m a s o l h a p a r a d e n t r o d e s i e se ca la . / [ Ilu s t r a ç ã o 113] 211 / 112/ 114

211 Legenda da ilustração: "Est a é a imagem da criança divina. Significa a plenitude de uma longa trajetória.
Justo quando a ilustração estava pronta, em abril de 1919, e a próxima estava sendo iniciada, veio aquele
que trouxe o 0 conforme OIAHMÊ2N [Filêmon] me havia predito. Eu o chamei O AN H 2 [Fanes], porque
ele é o Deus recém-aparecendo". 0 pode ser o sinal astrológico para o sol. Na teogonia órfica, Et e r e Ca o s
nasceram de Crono. Cron o fez um ovo em Eter. O ovo se partiu em dois e apareceu Fanes, o primeiro dos
deuses. Guth rie escreve que "ele é imaginado como extraordinariamente belo, uma figura de luz brilhante,
com asas de ouro às costas, quatro olhos e as cabeças de vários animais. Tem os dois sexos, pois deve criar
sozinho a raça dos deuses" ( G U T H R I E . Orpheus and Greek Religíon: A Study of the O rph ic Movement.
Londres: Methuen, 193$, p. 8 0 ) . Em Transformações e símbolos da libido (19 12), ao discutir as concepções
mitológicas da força criativa, Jung chamou a atenção para "a figura órfica de Fanes, o 'brilhante', o
princípio da criação, o 'pai de Eros'. Fanes tem também o significado (órfico) de Priapo, é um Deus do
amor, bissexual e equiparado ao tebano Dioniso Lísio. O sentido órfico de Fanes é igual ao do Kâma
hindu, o Deus do amor que é também um princípio cosmogênico" ( O C , B, § 223). Fanes aparece no Livro
Negro 6, no outono de 1916. Seus atributos condizem com as descrições clássicas, e é descrito como o
brilhante, um Deus de beleza e luz. O exemplar que Jung possuía do livro de Isaac Cory Ancient Lragments of
the Phoenician, Chaldean, Lgyptian, Tyrian, Carthaginian, Indian, Persian, andOtherW ríters; W ith an Introductory Dissertation;
And an Inquíry into the Philosophy and Tríníty of the Ancíents, traz partes sublinhadas na seção sobre a teogonia órfica
e uma tira de papel com a seguinte frase: "Imaginam o Deus como um ovo concebente e concebido, ou
uma veste branca, ou uma nuvem, porque Fanes nasce deles" (Londres: W illiam Pickering, 1832, p. 310 ) .
Fanes é o Deus de Jung. Em 20 de fevereiro de 1917, Fanes é descrito como um pássaro de ouro (Livro Negro
6, p. 119). Em 20 de fevereiro de 1917, Jung se refere a Fanes como o mensageiro de Abraxas (ibid., p. 167).
Em 20 de maio de 1917, Filêmon diz que deseja tornar-se Fanes (ibid., p. 19$). Em 11 de setembro,
Filêmon o descreve assim: "Fanes é o Deus que sobe brilhante das águas. / Fanes é o sorriso da aurora. /
Fanes é o dia luzente. / Ele é o rumorejar das torrentes. / E o galopar dos ventos. / E fome e saciedade. / E
amor e prazer. / E tristeza e consolo. / E promessa e cumprimento. / E a luz que ilum ina toda escuridão. /
É o eterno dia. / E a luz prateada da lua. / E o cintilar das estrelas. / E a estrela cadente que brilha, passa e
se apaga. / E a chuva de estrelas cadentes que se repete a cada ano. / E o sol e a lua que retornam. / E o
cometa que traz guerras e vinho nobre. / E o bem e a plenitude do ano. / Ele enche as horas de encantos de
vida. / E o abraço e o balbucio do amor. / E o calor da amizade. / E a esperança que vivifica o vazio. / E o
esplendor de todos os sóis renovados. / E a alegria por todo nascimento. / E o resplendor das flores. / E o
aveludado das asas das borboletas. / E o aroma dos jardins floridos que enche as noites. / E o canto da
alegria. / E a árvore da luz. / Ele é toda a perfeição, cada aperfeiçoamento. / Ele é tudo que soa bem. / E a
harmonia. / E o número sagrado. / E a promessa de vida. / E o contrato e o sagrado juramento. / E a
multiplicidade de tons e cores. / E a santificação da manhã, do meio-dia e da noite. / E a bondade e a
mansidão. / Ele é a salvação... / Realmente, Fanes é o dia feliz... / Realmente, Fanes é o trabalho, sua
realização e sua paga. / Ele é o labutar cansativo e o repouso noturno. / E o passo no caminho do meio, é
seu começo, sua metade e seu fim. / Ele é a previsão. / E o fim do medo. / E a semente germinativa, o botão
que se abre. / E a porta da recepção, o acolhimento e a hospedagem. / E a fonte e o deserto. / E o porto
seguro e a noite tempestuosa. / E a certeza e a dúvida. / E a segurança na dissolução. / E a libertação do
cativeiro. / E o conselho e a força no caminhar para frente. / E o amigo dos seres humanos, a luz que dele
emana, a luz clara que observa a pessoa em seu caminho. / E a grandeza do ser humano, seu valor e sua
força" (Livro Negro 7, p. 16-19). Em 31 de julho de 1918, o próprio Fanes diz: "O mistério da manhã de verão,
o dia feliz, a realização do momento atual, a plenitude do possível, nascido de sofrimento e alegria, a joia
da eterna beleza, a meta dos 4 caminhos, a fonte e o mar dos 4 caudais, a realização dos 4 sofrimentos e
das 4 alegrias, pai e mãe dos deuses dos 4 ventos, crucifixão, sepultamento, ressurreição e elevação dos
homens a Deus, a máxima ação e o ser nada, mundo e grão, eternidade e momento atual, pobreza e
abastança, desdobramento, morte e renascimento de Deus, suportado por força criativa eterna, brilhando
em toda atividade, amado pelas duas mães e esposas-irmãs, encanto indizivelmente importuno,
incognoscível, impensável, uma ponta de agulha entre a morte e a vida, uma torrente de universos
cobrindo o céu - eu lhe dou o amor humano, o cântaro de opala; ele derrama água, vinho, leite e sangue,
alimento dos homens e dos deuses. / Eu lhe dou a alegria do sofrimento e o sofrimento da alegria. / Eu lhe
dou o encontrado: a duração na mudança e a mudança na duração. / A talha de pedra, o vaso do
3i8 L I B E R S E C U N D U S 112/114

El e v ê a á r vo r e d a vi d a , c u ja s r a íz e s c h e g a m a t é o i n fe r n o e c u ja c o p a t o c a

o c é u . T a m b é m n ã o c o n h e c e s m a i s as d i f e r e n ç a s 2 12 : Q u e m t e m r a z ã o ? Q u e m é

s a n t o ? O q u e é ve r d a d e ? O q u e é b o m ? O q u e e s t á c e r t o ? E l e s ó c o n h e c e u m a

d i fe r e n ç a : a d i fe r e n ç a e n t r e o e m b a i xo e o e m c i m a . P o is e le vê q u e a á r vo r e d a

v i d a c r e s c e d e b a i xo p a r a c i m a , e q u e e m c i m a t e m u m a c o p a n i t i d a m e n t e d i fe -

r e n t e d a s r a íz e s . I s t o é ó b vi o p a r a e le . A s s i m c o n h e c e e le o c a m i n h o d a s a lva ç ã o .

Fa z p a r t e d e t u a s a lva ç ã o q u e d e s a p r e n d a s as d i fe r e n ç a s , e xc e t o e s t a d a d i -

r eção. As s i m t e lib e r t a s d a a n t iga m a ld içã o d o c o n h e c im e n t o d o b e m e d o m a l.

P o r q u e se p a r a st e , d e a c o r d o c o m t u a m e l h o r o p i n i ã o , o b e m d o m a l e s ó a t e n -

t a st e p a r a o b e m e r e n e ga s t e o m a l , q u e a p e s a r d is s o p r a t i c a s t e e n ã o o t o m a s t e

so b r e t i , t u a s r a íz e s n ã o m a i s s u g a r a m a e s c u r a n u t r i ç ã o d a p r o fu n d e z a , e t u a

á r vo r e fi c o u d o e n t e e se c o u .

P o r isso d i z i a m o s a n t igo s q u e , a p ó s A d ã o t e r c o m i d o a m a ç ã , a á r vo r e d o

p a r a í s o s e c o u 2 13 . T u p r e c is a s d o e s c u r o p a r a t u a vi d a . M a s q u a n d o sa b e s q u e é

o m a l , n ã o m a i s o p o d e s a ce it a r , p a ssa s p o r n e c e s s id a d e s e n ã o sa b e s p o r q u ê .

M a s t a m b é m n ã o o p o d e s a c e i t a r c o m o o m a l , ca so c o n t r á r i o t e u b e m t e r e je i t a .

aperfeiçoamento. A água correu para dentro, o vinho correu para dentro, o leite correu para dentro, o
sangue correu para dentro. / O s quatro ventos precipitaram-se para dentro do vaso precioso. / O s deuses
dos quatro cantos do céu conservam sua rotundidade, as duas mães e os dois pais observam-na. O fogo do
Norte queima sobre sua boca, a cobra do Sul rodeia seu chão, o espírito do O rien t e mantém seu lado, e o
espírito do Ocidente mantém seu outro lado. / Eternamente negado, permanece por toda a eternidade.
Retornando sob todas as formas, eternamente o mesmo, o único vaso precioso, apertado pelo círculo dos
animais, nepando-se a si mesmo, e brilhando de modo novo por sua negação. / O coração de Deus e do ser
humano. / E um só e muita coisa. Um caminho que leva através de montanhas e vales, uma estrela-guia no
mar em t i e sempre adiante de ti. / Perfeito, sim , perfeito é aquele que sabe disso. / Perfeição é pobreza.
Mas pobreza significa gratidão. Gratidão é amor ( 2 de agosto). Na verdade, perfeição é o sacrifício. /
Perfeição é alegria e previsão da sombra. / Perfeição é fim . Fim significa começo, por isso perfeição é
pequenez e começo no menor. / Tudo é imperfeito, por isso perfeição é solidão. / Mas a solidão procura
por comunidade. Por isso, perfeição significa comunidade. / Eu sou a perfeição, mas só é perfeito quem
alcançou seus limites. / Eu sou a luz que jamais se apaga, mas é perfeito quem está entre o dia e a noite. Eu
sou o amor que dura para sempre, mas perfeito é quem colocou a faca sacrificial ao lado de seu amor. / Eu
sou a beleza, mas perfeito é quem está sentado perto do muro do templo e remenda sapatos em troca de
pagamento. / O perfeito é simples, solitário e concorde. Por isso procura o variado, a comunidade, o
discordante. Por sobre o variado, o comum, o contestado ele avança para a simplicidade, para a solidão e
para a conformidade. / O perfeito conhece o sofrimento e a alegria, mas eu sou o encanto para além da
alegria do sofrimento. / O perfeito conhece o claro e o escuro, mas eu sou a luz para além do dia e das
trevas. / O perfeito conhece o em cima e o embaixo, mas eu sou a altura para além do alto e do baixo. / O
perfeito é o que cria e o criado, mas eu sou a imagem geradora para além da criação e do criado. / O
perfeito conhece o amar e o ser amado, mas eu sou o amor para além do abraço e da tristeza. / O perfeito
conhece o homem e a mulher, mas eu sou a pessoa, seu pai e seu filho para além da masculinidade e da
feminilidade, para além da criança e do ancião. / O perfeito conhece nascer e ocaso, mas eu sou o ponto
intermédio para além da aurora e do pôr do sol. / O perfeito me conhece e por isso é diferente de m im "
(livro Negro 7, p. 76 - 8 0 ) .

212 Nota à margem no volume caligráfico: "14. I X. 1922".


213 Em Transformações e símbolos da libido (19 12), Jung se refere a uma lenda em que a árvore secou após o outono
( O C, B,§ 375).
NO X TERTIA 319

T a m b é m n ã o p o d e s n e ga r q u e co n h e ce s o b e m e o m a l . P o r isso o c o n h e c i m e n -

t o d o b e m e d o m a l fo i u m a m a l d i ç ã o in s u p e r á ve l.

M a s se vo lt a r e s p a r a o caos p r i m i t i vo , se se n t ir e s e co n h e ce r e s o p e n d e n -

t e d i s t e n d i d o e n t r e os p o io s in s u p o r t á ve is d o fogo, p e r c e b e r á s q u e n ã o p o d e s

m a is se p a r a r d e fi n i t i va m e n t e o b e m e o m a l , n e m p e lo s e n t i m e n t o e n e m p e lo

c o n h e c i m e n t o , m a s q u e só t e é d a d o d i s t i n g u i r a d ir e ç ã o d o c r e s c im e n t o , q u e

va i d e b a i xo p a r a c i m a . As s i m d e sa p r e n d e s a d ife r e n ç a e n t r e o b e m e o m a l e

n ã o a sab es m a is e n q u a n t o t u a á r vo r e cr e sce d e b a i xo p a r a c i m a . M a s lo go q u e

o c r e s c i m e n t o p a r a , d e sfa z -se o u n ific a d o in d ife r e n ç á ve l n o c r e s c i m e n t o e t u

co n h e ce s n o va m e n t e o b e m e o m a l .

Ja m a is p o d e s n e ga r d ia n t e d e t i m e s m o o c o n h e c i m e n t o d o b e m e d o m a l ,

d e fo r m a q u e p u d esses e n ga n a r t e u b e m p a r a vi ve r o m a l . T ã o lo go sep a r a s b e m

e m a l , t u os co n h e ce s. Só n o c r e s c i m e n t o e s t ã o a m b o s u n ific a d o s . M a s t u c r e s -

ces q u a n d o ficas q u ie t o n u m a gr a n d e d ú vid a , e p o r isso a q u ie t u d e n a gr a n d e

d ú vi d a é u m a ve r d a d e i r a flor d a vid a .

Q u e m n ã o s u p o r t a a d ú vi d a n ã o s u p o r t a a si m e s m o . Es t a p e sso a é in d e c is a ,

n ã o cr e sce e p o r isso t a m b é m n ã o vive . A d ú vi d a é o s in a l d o m a is fo r t e e d o

m a is fr aco . O fo r t e t e m a d ú vid a , m a s a d ú vi d a p o s s u i o fr aco . P o r isso o m a is

fr a co e st á p r ó x i m o d o m a is fo r t e e q u a n d o p o d e d i z e r p a r a s u a d ú vi d a " E u t e

p o ssu o ", e n t ã o ele é o m a is fo r t e 2 14 . M a s n i n g u é m p o d e d i z e r s i m à s u a d ú vid a ,

ele s u p o r t a e n t ã o o caos a b e r t o . P e lo fat o d e h a ve r t a n t o s a b a ixo d e n ó s q u e

p o d e m d i z e r t u d o , r e p a r a c o m o v i v e m . O q u e u m d i z p o d e sign ifica r m u i t o o u

b e m p o u co . P e sq u isa p o r isso s u a vi d a .

M e u d is c u r s o n ã o é c la r o n e m e scu r o , p o is é o d is c u r s o d e a lg u é m e m c r e s -

c im e n t o .

214 O esboço continua: "Por isso ensinou o Cristo: Felizes sois vós, os pobres, porque vosso é o Reino de
Deus" (p. 4 16 ) . Texto referente a Lc 6,20.
320 LI BE R SECU N D U S 114/ 116

Nox qu art a 215


Ca p . xvi i .

[ I H 114 ] 216 O u ç o o z u n i d o d o ve n t o d a m a n h ã , q u e d e sce p elas m o n t a n h a s .

A n o i t e fo i su p e r a d a , u m a ve z q u e t o d a m i n h a v i d a fo i sa cr ifica d a e su fo ca d a n o

e t e r n o co n fu so e p e n d i a d i s t e n d i d a e n t r e os p o io s d e fogo.

M i n h a a l m a fa lo u - m e e m vo z cla r a : "A p o r t a d e ve ser t i r a d a d o s go n z o s

p a r a h a ve r u m a p a ssa ge m l i vr e e n t r e a q u i e lá, e n t r e s i m e n ã o , e n t r e e m c i m a

e e m b a ixo , e n t r e d i r e i t a e e sq u e r d a . D e v e m se r c o n s t r u íd a s p assagen s a r e ja d a s

e n t r e t o d a s as co isa s o p o st a s, e st r a d a s p la n a s e fá ce is d e ve m le va r d e u m p o lo

a o u t r o . U m a b a la n ç a d e ve ser m o n t a d a , c u jo fie l o scile le ve m e n t e . D e v e a r d e r

u m a c h a m a q u e n ã o se ja a p a ga d a p e lo ve n t o . U m a t o r r e n t e d e ve c o r r e r p a r a s u a

m e t a m a is p r o fu n d a . O s b a n d o s d e a n i m a i s selvagen s d e ve m v i r a seu s lu ga r e s

d e p a st a ge n s n a s u a t r a d i c i o n a l m igr a ç ã o . A v i d a segu e d a q u i e m d ia n t e s e u

c a m i n h o , d o n a s c i m e n t o à m o r t e , d a m o r t e ao n a s c im e n t o , i n i n t e r r u p t a m e n t e

c o m o o c a m i n h o d o so l. Q u e t u d o fa ça est e c a m i n h o ".

As s i m fa la m i n h a a lm a . M a s e u b r i n c o n e glige n t e e i n s e n s i ve l m e n t e c o m igo

m e s m o . E d i a o u n o it e ? Es t o u d o r m i n d o o u a co r d a d o ? E s t o u vi vo o u já m o r r i ?

T r e va s esp essas m e c e r c a m — u m gr a n d e m u r o — u m ve r m e c i n z e n t o d o

c r e p ú s c u lo se a r r a s t a ao lo n go d ele. E l e t e m u m a c a r a r e d o n d a e r i . A r is a d a é

e n t e r n e c e d o r a e r e a l m e n t e lib e r t a d o r a . A b r o os o lh o s: d ia n t e d e m i m e st á a

go r d a c o z i n h e i r a : " O s e n h o r t e m u m so n o d e ve r a s b o m . O s e n h o r d o r m i u p o r

m a is d e u m a h o r a ".

E u : " E ve r d a d e ? E u d o r m i ? T i v e u m so n h o , u m e s p e t á c u lo h o r r íve l! Pe gu e i

n o so n o n e s t a c o z i n h a ; é est e d e fat o o r e i n o d as m ã e s ? " 2 17

"Be b a u m c o p o d e á gu a , o s e n h o r a i n d a e s t á t o n t o d e so n o ".

215 Q u art a noite.


216 19 de janeiro de 1914.
217 No primeiro ato da segunda parte do Fausto, de Goethe, Fausto tinha de descer ao reino das mães. Houve
muita especulação sobre o significado dessa expressão em Goethe. Para Eckermann, Goethe afirmou que
a origem do nome vem de Plutarco. Com toda a probabilidade, esta foi a discussão de Plutarco da deusa-
mãe em Engina (cf H A M F I N , C. (org.). Faust. Nova York: Norton, 1976, p. 328 -329 ) . Em data posterior,
Jung identificou o reino das mães com o inconsciente coletivo ("Um mito moderno: a respeito de coisas
vistas no céu", 1958. O C , 10, § 714).
N O X Q U ART A 321

E u : "Si m , est e s o n o p o d e d e i xa r a lg u é m t o n t o . O n d e e st á m e u To m á s ? A l i
e st á , a b e r t o n o c a p ít u lo 21: ' O m i n h a a lm a , e m t u d o e a c i m a d e t u d o d e sca n sa
s e m p r e n o Se n h o r , p o r q u e ele é o e t e r n o r e p o u s o d o s s a n t o s "' 2 18 .
L i e st a p a ssa ge m e m vo z a lt a . N ã o e st á d e p o is d e ca d a p a la vr a u m p o n t o d e
in t e r r o ga ç ã o ?
"Se o s e n h o r p e go u n o so n o c o m e st a fr ase, e n t ã o d e ve t e r t id o u m b e lo
so n h o ".
E u : " E u s o n h e i s e m d ú vi d a — p e n s a r e i n o so n h o . M a s , d iga - m e , p a r a q u e m
a s e n h o r a c o z i n h a ?"
"So u c o z i n h e i r a d o s e n h o r b ib lio t e c á r io . E l e go st a d e u m a b o a c o z i n h a , e e u
já e st o u n e st e s e r viç o h á m u i t o s a n o s". / [Ilu s t r a ç ã o 115] 219 / 114/ 116

E u : " O h , e u n ã o sa b ia q u e o s e n h o r b ib lio t e c á r io t i n h a s e m e lh a n t e c o z i n h a ".


"Si m , o s e n h o r p r e c is a sab er, ele é u m g a s t r ô n o m o ".
E u : "P a ssa r b e m , s e n h o r i t a c o z i n h e i r a ; a gr a d e ç o su a a c o lh id a ".
" D e n a d a , a h o n r a fo i t o d a m i n h a ".
Ag o r a e st o u d o la d o d e fo r a . Es t a é e n t ã o a c o z i n h a d o s e n h o r b ib lio t e c á r io .
Se r á q u e ele sab e o q u e a li d e n t r o se c o z in h a ? P r o va ve lm e n t e n u n c a e xp e r i -
m e n t o u a í d e n t r o u m so n o d o t e m p l o 2 2 0 . C r e i o q u e v o u d e vo lve r - lh e o T o m á s
d e Ke m p i s . E n t r o n a b ib lio t e c a .
B: "Bo a - n o i t e , a í e s t á s e n h o r d e n o vo ".
E u : "Bo a - n o i t e , s e n h o r b ib lio t e c á r io , e s t o u d e vo lve n d o o To m á s . E u m e
s e n t e i p o r in s t a n t e s n u m c a n t o d e s u a c o z i n h a p a r a le r , m a s n ã o sa b ia q u e e r a
su a c o z i n h a ".
B: " N ã o se i m p o r t e , n ã o faz m a l n e n h u m . Es p e r o q u e m i n h a c o z i n h e i r a o
t e n h a r e ce b id o b e m ".
E u : "So b r e a a c o lh i d a n ã o p o sso m e q u e ixa r . E u a t é t i r e i u m a so n e ca e m
c i m a d o T o m á s ".
B: "I s t o n ã o m e a d m i r a . Esse s d e vo c i o n á r i o s sã o t e r r i ve l m e n t e e n fa d o n h o s".
E u : "Si m , p a r a n ó s o u t r o s. M a s p a r a su a c o z i n h e i r a , est e p e q u e n o l i vr o s ig-
n ific a m u i t a e d ifica çã o ".

218 A im itação de Cristo, cap. 21, p. 181.


219 Legenda da ilustração: "Isto é o ouro material no qual mora a sombra de Deus".
220 Jung refere-se às práticas gregas da incubação do sonho, assim como no culto a Asclépio. Cf. M E I E R ,
C A . HealíngDream and Ritual: An cien t Incubation and Modem Psychotherapy. Einsiedeln: Daim on Verlag,
1989.
322 L I B E R S E C U N D U S 114/116

B: "Si m , p a r a a c o z i n h e i r a ".
E u : "P e r m i t a - m e u m a p e r g u n t a in d is c r e t a : o s e n h o r t a m b é m já t i r o u u m
so n o d e in c u b a ç ã o e m su a c o z i n h a ?"

B: "N ã o , n u n c a m e p a sso u p e la c a b e ç a i d e i a t ã o e xt r a va ga n t e ".


E u : "D i g o - l h e q u e c o m isso p o d e r i a t e r a p r e n d id o algo so b r e a n a t u r e z a d e
su a c o z i n h a . Bo a - n o i t e , s e n h o r b ib lio t e c á r io ".
D e p o i s d essa co n ve r sa , saí d a b ib lio t e ca e fu i p a r a a a n t essa la o n d e m e d e p a r e i
c o m a c o r t i n a ve r d e . P u xe i - a p a r a u m lad o , e o q u e vi? V i u m alt o p ó r t ic o - n o
p la n o d e fu n d o u m j a r d i m q u e p a r e c ia m a g n ífic o - o j a r d i m m á g i c o d e K l i n -
gsor, c o m o lo go p e r c e b i. E u e n t r e i n u m t e a t r o : lá e s t ã o d o is q u e fa z e m p a r t e
d a p e ça : An fo r t a s e Ku n d r y o u a n t e s - o q u e ve jo ? É o s e n h o r b ib lio t e c á r io e
su a c o z i n h e i r a . E l e e st á d o e n t e , p á lid o e c o m o e s t ô m a g o e m b r u lh a d o , e la e st á
d e s ilu d id a e c o m r a iva . A e sq u e r d a e st á Kl i n g s o r e se gu r a a c a n e t a q u e o s e n h o r
b ib lio t e c á r io c o s t u m a t r a z e r a t r á s d a o r e lh a . Kl i n g s o r m e p a r e ce t ã o fa m ilia r !
M a l d i t a p e ça ! M a s o b se r va , d a d i r e i t a v e m P a r sifa l. M a r a vilh o s o , t a m b é m ele
m e p a r e ce fa m ilia r . Kl i n g s o r a t i r a m a ld o s a m e n t e a c a n e t a n a d ir e ç ã o d e P a r s i -
fal, q u e a p ega c a lm a m e n t e .

A c e n a m u d a : p a r e ce q u e o p ú b lic o , n e st e caso e u , p a r t i c i p a d a r e p r e s e n -
t a çã o d o ú l t i m o at o. T e m o s d e a jo e lh a r , p o is o s u p líc io d a Se xt a - fe i r a Sa n t a
c o m e ç a : P a r sifa l e n t r a - c o m p asso s va ga r o so s, a c a b e ç a c o b e r t a c o m u m e l m o
n e gr o ; t r a z so b r e os o m b r o s a p e le d o le ã o d e H é r a c l e s e n a m ã o , a cla va , a lé m
d isso u s a m o d e r n o s ca lçõ e s p r e t o s, p o r ca u sa d o gr a n d e fe r ia d o r e ligio so . E u m e
a r r e p i e i e e s t e n d i as m ã o s e m gest o d e r e p u lsa , m a s a p e ç a c o n t i n u a . P a r s ifa l t i r a
o e l m o d a ca b e ça . M a s n ã o e st á p r e se n t e n e n h u m G u r n e m a n z p a r a a b s o lvê - lo e
u n gi- lo . Ku n d r y e st á lo n ge , e sco n d e a c a b e ç a e r i . O p ú b lic o e st á d e s lu m b r a d o e
se r e c o n h e c e a s i m e s m o e m P a r sifa l. El e é e u . E u m e d is p o d e m i n h a a r m a d u r a
h is t ó r ic o - fa c t u a l, d e m e u o r n a m e n t o q u i m é r i c o e m e d i r i jo e m m i n h a c a m i s o la
d e p e n i t ê n c i a à fo n t e , la vo s e m a ju d a e s t r a n h a m e u s p é s e m ã o s . T i r o e n t ã o
m i n h a c a m is o la e s p i r i t u a l e vi s t o m e u s t r a je s civis. Sa í d e c e n a e a p r o xi m e i - m e
d e m i m m e s m o , p o is e u c o m o p ú b l i c o a i n d a e st a va p ie d o s a m e n t e d e jo e lh o s.
Le va n t e i a m i m m e s m o d o c h ã o e t o r n e i - m e u m c o m igo m e s m o 2 2 1.

221 No Parsifal, Wagner apresentou sua reelaboração da lenda do Graal. O enredo é o seguinte: Tit u rel e
seus cavaleiros cristãos têm o santo Graal sob sua proteção em seu castelo, com uma lança sagrada para
protegê-lo. Klingsor é um feiticeiro que procura o Graal. Ele seduziu os guardas do Graal atraindo-os para
seu jardim mágico, onde existem donzelas-flores e a feiticeira Kundry. Amfortas, filho de Tit u rel, entra no
N O X Q U ART A 323

[2] O q u e s e r i a z o m b a r i a , se n ã o fo sse ve r d a d e i r a z o m b a r i a ? O q u e s e r i a

d ú vi d a , se n ã o fo sse ve r d a d e i r a d ú vi d a ? O q u e s e r i a o p o s i ç ã o , se n ã o fo sse v e r -

d a d e i r a o p o s i ç ã o ? Q u e m q u i s e r a c e i t a r a s i m e s m o d e ve t a m b é m a c e i t a r v e r -

d a d e i r a m e n t e s e u o u t r o . P o is n o s i m , t o d o n ã o é n ã o ve r d a d e i r o , e n o n ã o t o d o

s i m é m e n t i r a . M a s c o m o h o je p o s s o e s t a r n o s i m e a m a n h ã n o n ã o , t a n t o s i m

e n ã o s ã o ve r d a d e i r o s . S i m e n ã o n ã o p o d e m ce d e r , p o is s ã o n o sso s c o n c e i t o s

d e ve r d a d e e d e e r r o .

T u go s t a r ia s d e t e r c e r t e z a s o b r e ve r d a d e e e r r o ? C e r t e z a d e n t r o d o u m

o u d o o u t r o n ã o s ó é p o s s í ve l , m a s t a m b é m n e c e s s á r i o , m a s a c e r t e z a n o u m é

ga r a n t ia e r e sist ê n cia c o n t r a o o u t r o . Q u a n d o est ás n o u m , t u a ce r t e z a d o u m

e x c l u i o o u t r o . M a s e n t ã o c o m o p o d e s c h e ga r a o o u t r o ? E p o r q u e o u m n u n -

c a c o n s e gu e b a s t a r - n o s ? O u m n ã o n o s p o d e b a s t a r p o r q u e t a m b é m o o u t r o

e s t á e m n ó s . E se n ó s n o s c o n t e n t á s s e m o s c o m o o u t r o , o o u t r o p a s s a r i a n e -

c e s s id a d e e n o s a t a c a r i a c o m s u a fo m e . M a s n ó s n ã o e n t e n d e m o s e ssa fo m e e

a c r e d i t a m o s t e r s e m p r e m a i s fo m e d o u m e p o r isso n o s a fe r r a m o s m a i s a i n d a

e m n o s s a l u t a p e lo u m .

Ev i d e n t e m e n t e l e va m o s c o m isso a q u e o o u t r o fa ça va l e r e m n ó s c o m m a i s

fo r ç a s u a e xi g ê n c i a . Se e s t i ve r m o s d is p o s t o s e n t ã o a r e c o n h e c e r e m n ó s a e x i -

g ê n c i a d o o u t r o , p o d e m o s p a ssa r p a r a d e n t r o d o o u t r o a f i m d e s a c iá - lo . M a s

s ó p o d e m o s ch e ga r lá p o r q u e o o u t r o fi c o u c o n s c i e n t e p a r a n ó s . M a s se n o s s a

c e g u e ir a a t r a vé s d o u m fo r fo r t e , a fa s t a m o - n o s a i n d a m a i s d o o u t r o , e a b r e - s e

castelo para destruir Klingsor, mas é enfeitiçado por Kun dry e deixa cair a lança sagrada, e Klingsor o fere
com ela. Amfortas precisa do toque da lança para curar a ferida. Gurnemanz, o mais velho dos cavaleiros,
procura Kundry, não sabendo do papel dela no ferimento de Amfortas. Um a voz vinda do santuário do
Graal profetiza que só um jovem sem malícia e inocente pode recuperar a lança. Parsifal entra, depois de
matar um cisne. Não sabendo o seu nome nem o de seu pai, os cavaleiros esperam que seja ele esse jovem.
Gurnemanz leva-o ao castelo de Klingsor. Klingsor manda Kun dry seduzir Parsifal. Parsifal derrota os
cavaleiros de Klingsor. Kun dry é transformada numa linda mulher. Ela o beija. A partir daí, ele percebe
que Kun dry seduziu Amfortas, e a repele. Klingsor arremessa a lança contra ele e Parsifal a agarra. O
castelo e o jardim de Klingsor desaparecem. Depois de muito perambular, Parsifal encontra Gurnem anz,
agora vivendo como eremita. Parsifal está revestido com uma armadura negra e Gurnemanz fica
escandalizado por ele estar armado na Sexta-feira Santa. Parsifal põe a lança diante dele e tira o capacete
e depõe as armas. Gurnemanz reconhece-o e unge-o rei dos cavaleiros do Graal. Parsifal batiza Kundry.
Eles vão ao castelo e pedem a Amfortas que descubra o Graal. Amfortas pede-lhes que o matem. Parsifal
entra e toca-lhe a ferida com a lança. Amfortas é transfigurado e Parsifal, radiante, ergue o Graal. A 16
de maio de 1913, Mensendieck fez uma apresentação à Sociedade Psicanalítica de Zurique sobre "A saga
Graal-Parsival". No debate, Jung disse: "Para o tratamento exaustivo da Saga Graal-Parsifal em Wagner
dever-se-ia acrescentar ainda a consideração sintética de que às diversas personagens correspondem no
artista diversas aspirações. - O fato de a sedução de Kun dry ter malogrado talvez não deva ser explicado
com a proibição do incesto, mas pela medida psíquica da tendência superior do anseio humano" (Atas da
Sociedade Psicanalítica de Zurique, p. 20 . Zurique: Archives of the Psychological Clu b). Em Tipos psicológicos
(1921), Jung apresentou uma interpretação psicológica do Parsifal ( O C, 6, § 4 21-4 22) .
3^4 LI BE R SECU N D U S 116/ 118

u m c a la m it o s o a b is m o e m n ó s e n t r e o u m e o o u t r o . O u m fica su p e r sa cia d o
e o o u t r o s u p e r fa m in t o . O sa cia d o fica p o d r e e o fa m i n t o fica fr aco. E a s s im
a fo ga m o - n o s n a go r d u r a , c o n s u m i d o s p e la escassez.
I s t o é d o e n t io , m a s d esse t ip o vê s m u i t o s . D e v e se r a s s im , m a s t a m b é m n ã o
d e ve se r a ssim . H á r a z õ e s e cau sas su ficie n t e s p a r a se r a s s im , m a s n ó s q u e r e m o s
116/ 117 q u e t a m b é m n ã o / se ja a ssim . F o i d a d a ao se r h u m a n o a lib e r d a d e d e s u p e r a r
t a m b é m as cau sas, p o is ele é c r i a d o r e m si e p o r si m e s m o . Q u a n d o c o n q u is t a s -
t e a t r a vé s d o s o fr i m e n t o d e t e u e s p ír it o a q u e la lib e r d a d e , a p esa r d e t u a m á xi m a
c r e n ç a n o u m , d e a ce it a r t a m b é m o o u t r o p o r q u e t a m b é m o é s, e n t ã o c o m e ç a
t e u c r e s c im e n t o .
Q u a n d o os o u t r o s z o m b a m d e m i m , sã o s e m p r e os o u t r o s q u e o fa z e m ,
e e u p o sso a t r i b u i r - l h e s c u l p a p o r ca u sa d isso e e s q u e c e r - m e d e z o m b a r d e
m i m m e s m o . M a s q u e m n ã o co n se gu e z o m b a r d e s i m e s m o t o r n a - s e o b je t o d e
z o m b a r i a d os o u t r o s. P o r t a n t o , a c e it a t a m b é m t u a a u t o z o m b a r i a , a f i m d e q u e
d e sca ia d e t i o c a r á t e r d e ser es d e u s e h e r ó i e t e t o r n e s t ã o s o m e n t e h u m a n o .
T e u c a r á t e r d e ser es d e u s e h e r ó i é p a r a o o u t r o u m a z o m b a r i a e m t i . P o r a m o r
ao o u t r o e m t i , a b a n d o n a t e u p a p e l m i r a b o l a n t e q u e d e s e m p e n h a s t e a t é a go r a
e t o r n a - t e o q u e és.

Q u e m p o s s u i a ve n t u r a e d e s ve n t u r a d e u m d o m e sp e cia l, s u c u m b e à ilu sã o
d e a c r e d it a r se r ele m e s m o esse d o m . P o r isso ele é t a m b é m m u i t a s ve z e s se u
p r ó p r i o b u fã o . U m d o m e sp e cia l é algo fo r a d e m i m . N ã o s o u a m e s m a co isa
q u e ele. A n a t u r e z a d o d o m n ã o t e m n a d a a ve r c o m a n a t u r e z a d a p esso a, q u e é
se u p o r t a d o r . E l e vi ve in c lu s ive m u i t a s ve z e s à c u s t a d o c a r á t e r d e se u p o r t a d o r .
Su a p e r s o n a lid a d e é m a r c a d a p elas d e sva n t a ge n s d e se u d o m , a t é m e s m o p e la
o p o s i ç ã o a ele. P o r isso, n u n c a e s t á à a l t u r a d e se u d o m , m a s s e m p r e a b a ixo .
Q u a n d o a c e it a s e u o u t r o , t o r n a - s e a p t o a s u p o r t a r se u d o m s e m p r e ju íz o s . M a s
se q u is e r vi ve r a p e n a s e m se u d o m e p o r isso r e je i t a o o u t r o , p e r d e a m e d i d a ,
p o is a n a t u r e z a d e se u d o m é e xt r a - h u m a n a e u m fe n ó m e n o d a n a t u r e z a , o q u e
ele n a ve r d a d e n ã o é. T o d o m u n d o vê s e u e r r o , e ele é ví t i m a d e s u a z o m b a r i a .
D i z ele e n t ã o q u e sã o os o u t r o s q u e d e le z o m b a m , e n q u a n t o é a p e n a s a n e g li -
g ê n c ia d e se u o u t r o q u e o t o r n a r id ícu lo .

Q u a n d o o D e u s e n t r a n a m i n h a vi d a , vo lt o p a r a m i n h a p e q u e n e z p o r a m o r
a D e u s . E u t o m o so b r e m i m o p e so d a p e q u e n e z e ca r r e go t o d a m i n h a fe iu r a
e r id íc u lo e t a m b é m t o d o o d e s p r e z íve l e m m i m . D e s s a m a n e i r a a livio o p e so
d o D e u s d e t u d o o q u e ca u sa c o n fu s ã o e d e t o d a t o lic e q u e so b r e ele c a i r i a m
N O X Q U ART A 325

se e u n ã o o a s s u m is s e . A s s i m p r e p a r o o c a m i n h o p a r a o a gir d e D e u s . A i n d a é

n o i t e , u m a l o n g a n o i t e c h e i a d e i n q u i e t a ç ã o . O q u e v a i a c o n t e c e r ? O s a b is m o s

e scu r o s fo r a m e sva z ia d o s e e sgo t a d o s? O u o q u e é q u e e s p e r a e e s t á lá e m b a i xo ,

a m e a ç a d o r e c o m b r i l h o ve r m e l h o ? [ I l u s t r a ç ã o 117] 2 2 2

/ Q u e fo go n ã o fo i a p a ga d o e q u e b r a sa s a i n d a a r d e m ? N ó s s a c r i fi c a m o s 117/ 118

i n ú m e r a s ví t i m a s à p r o fu n d e z a e s c u r a , m a s e l a c o n t i n u a e xi g i n d o m a i s . O q u e

é o d e s e jo a b s u r d o q u e q u e r se r sa t isfe it o ? Q u e m é q u e l e va n t a a g r i t a r i a t r e s -

lo u c a d a ? Q u e m so fr e a s s i m e n t r e os m o r t o s ? Ap r o x i m a - t e e b e b e sa n gu e a f i m

d e q u e p o ssa s fa l a r 2 2 3 . P o r q u e r e cu sa s o sa n gu e ? Q u e r e s le it e ? O u o s u c o v e r -

m e l h o d a vi d e i r a ? Q u e r e s t a lve z a m o r ? A m o r aos m o r t o s ? E n a m o r a m e n t o d o s

m o r t o s ? Exi g e s s e m e n t e d a v i d a p a r a o c o r p o m o r t o h á m i l h a r e s d e a n o s d o

s u b m u n d o ? U m a l i b e r t i n a g e m i m p u r a e i n c e s t u o s a p e lo s m o r t o s . Al g o q u e faz

o sa n gu e e n r e ge la r . T u q u e r e s u m a p r o m i s c u i d a d e l a s c i va c o m o c a d á ve r ? E u

222 Texto na ilustração: "(At m avict u); (iuvenis adiutor) [um jovem ajudante]; ( T EAESO 0 P 0 E)
[ T E LÉS F O RO ] ; Spiritus malus in hominibus quibusdam) (espírito mau em alguns homens)". Legenda
da ilustração: "O dragão quer comer o sol, o jovem implora que não o faça. Apesar disto ele o come".
Atm aviktu (como é grafado aqui) aparece pela primeira vez no Livro Negro 6 em 1917. Eis uma paráfrase
da fantasia de 25 de abril de 1917: A serpente diz que Atm aviktu foi seu companheiro durante milhares
de anos. Era primeiro um velho, depois morreu e tornou-se um urso. Depois morreu e tornou-se uma
lontra. Depois morreu e tornou-se uma salamandra. Depois morreu novamente e tornou-se a serpente. A
serpente é Atm aviktu. Antes disso, ele cometeu um erro e tornou-se um homem, enquanto era ainda uma
serpente terrestre. A alma de Jung diz que Atm aviktu é um duende, um encantador de serpentes, uma
serpente. A serpente diz que ela é o núcleo do eu. De serpente, Atm aviktu transformou-se em Filêmon
(p. 179S.). Existe uma escultura dele no jardim de Jung em Kúsnacht. Em "Das primeiras experiências de
minha vida", Jung escreveu: "Quando eu estive na Inglaterra em 19 20 , esculpi duas figuras semelhantes
de ramo fino sem ter a mais leve lembrança dessa experiência de infância. Um a delas eu reproduzira
em tamanho maior em pedra e esta figura está agora em meu jardim em Kuesnacht. Só nessa época é
que o inconsciente forneceu-me um nome. Ch am ei a figura de Atm avictu - o 'sopro da vida'. É um
desenvolvimento ulterior desse objeto quase-sexual de minha infância, que veio a ser o 'sopro da vida',
o impulso criativo. Basicamente, o homúnculo é um kabir" (JA, p. 29 - 30 . Cf. Memórias, p. 52-53). A figura
de Telésforo é como Fanes na ilustr. 113. Telésforo é um dos cabiros, e o daimon de Asclépio (cf. fig. 77
de Psicologia e alquimia. O C , 12). Foi também considerado um Deus da cura e tinha um templo em Pérgamo
na Ásia Menor. Em 1950, Jung cinzelou uma imagem dele em sua pedra em Bollingen, junto com uma
dedicatória a ele em grego, combinando versos de Heráclito, da Liturgia mitraica e de Homero (Memórias,
p. 26 7) .
223 No livro I I da Odisseia, Ulisses faz uma libação aos mortos para habilitá-los a falar. Walter Burkert
observa: "O s mortos bebem as libações e até o sangue - eles são convidados a vir ao banquete, a saciar-se
com sangue; assim como os líquidos derramados penetram na terra, assim os mortos enviarão coisas boas
para cim a" (Greek Religion. O xford: Basil Blackwell, 1987, p. 194-195 [trad. de J. Raffar]). Jung havia usado
este motivo em sentido metafórico em 1912 em Transformações e símbolos da libido: "esforcei-me, como outrora
Ulisses, por fazer esta sombra [Miss Frank Miller] beber apenas a quantidade suficiente de sangue para
fazê-la falar, a fim de que ela nos revelasse alguns segredos do mundo in ferior" ( O C, B, § 57n .). Por volta
de 1910, Jung empreendeu uma viagem de barco a vela com seus amigos, Albert O eri e Andreas Vischer,
durante a qual O eri leu em voz alta os capítulos da Odisseia que tratam de Circe e a nekyía. Jung observou
que, pouco depois disto, ele "como Ulisses foi presenteado pelo destino com uma nekyía, a descida ao
sombrio Hades" ( JU N G & JAFFÉ. Memórias, sonhos, reflexões, p. 130 ). A passagem que segue, descrevendo
a reanimação da criança pelo profeta, parafraseia a reanimação do filho da viúva sunamita por Eliseu em
2Rs 4,32-36.
326 LI BE R SECU N D U S 116/ 118

fa le i d e "a ce it a çã o "— m a s t u q u e r e s "a p o d e r a r - t e d e m i m , a b r a ç a r - m e , c o p u -


l a r ?" T u q u e r e s vio la ç ã o d a m o r t e ? Aq u e l e p r o fe t a , d iz e s t u , d e it o u - s e so b r e
a cr ia n ça , c o lo c o u s u a b o c a so b r e a b o c a d a cr ia n ça , seu s o lh o s so b r e os o lh o s
d e la , su as m ã o s so b r e as m ã o s d e la e e st e n d e u - se p o is so b r e a cr ia n ça , p a r a q u e
o c o r p o d e la ficasse q u e n t e . Le va n t o u - s e d e n o vo e c a m i n h o u n o q u a r t o d e cá
p a r a lá, vo l t a n d o a s u b i r e se e n c u r va r so b r e a cr ia n ça . E l a e s p i r r o u set e ve z e s e
a b r i u os o lh o s. A s s i m d e ve se r t u a a ce it a çã o , a s s im d e ve s a ce it a r , n ã o fr ia m e n t e ,
n ã o c o m s u p e r io r id a d e , n ã o a s t u t a m e n t e , n ã o c o m o m o r t ific a ç ã o p r ó p r ia , m a s
c o m p r a z e r , e xa t a m e n t e c o m a q u e le p r a z e r a m b í g u o , i m p u r o , q u e a t r a i o m a is
p r o fu n d o e q u e , d e vid o à s u a a m b igu id a d e , vi n c u l a o m a is e le va d o c o m a q u e le
p r a z e r s a n t o - m a u , d o q u a l n ã o sab es se é vi r t u d e o u vício , c o m a q u e le p r a z e r
q u e é r e p u g n â n c i a la sciva , m e d o lib id in o s o , i m a t u r i d a d e se xu a l. C o m esse p r a -
z e r a ge n t e d e s p e r t a m o r t o s .

T e u í n fi m o e st á n u m so n o s e m e lh a n t e à m o r t e e p r e c is a d o c a lo r d a vi d a ,
q u e c o n t é m o b e m e o m a l i n d i s t i n t o s e in d is t in gu íve is . Es t e é o c a m i n h o d a
vi d a , t u n ã o p o d e s c h a m á - l o d e m a u o u b o m , d e p u r o o u i m p u r o . M a s ist o n ã o
é o b je t ivo e s i m c a m i n h o e p a ssa gem . E t a m b é m d o e n ç a e c o m e ç o d a c u r a . E
a m ã e d e t o d as as in fâ m ia s e d e t o d o s os s í m b o lo s sa lu t a r e s. E a fo r m a m a is
p r i m i t i v a d a cr ia çã o , o p r i m e i r í s s i m o i m p u l s o e scu r o , q u e , n o m a is a b s c ô n d it o ,
a t r a ve ssa os r e ca n t o s se cr e t o s e p assagen s t e n e b r o sa s, c o m a r e gu la r id a d e n ã o
i n t e n c i o n a l d a á gu a , e fe r t i l i z a os lu ga r e s in e sp e r a d o s d e so lo d e scu id a d o , d e
gr et as m in ú s c u la s b r o t a n d o t e r r a seca. E o p r i m e i r o e se cr e t o m e s t r e d a n a t u -
r e z a , q u e e n s i n o u às p la n t a s e a n i m a i s as a st ú cia s e a r t e s a d m ir á ve is e su p e r e s-
p e r t a s, q u e n o ssa r a z ã o m a l co n se gu e e n t e n d e r . É o gr a n d e sá b io , q u e c o n h e c e
o s o b r e - h u m a n o , q u e t e m o d o m í n i o d e t o d a s as ciê n cia s, q u e d a c o n fu s ã o c r i a
a o r d e m e o lh a n d o p a r a a d ia n t e d a p le n i t u d e in c o n c e b íve l p r e d iz co isa s fu t u -
r as. É o c a r á t e r s e r p e n t á r io , o p e r n ic io s o e sa lu t a r , o d e m o n í a c o a t e r r a d o r e
r id ícu lo . É a se t a q u e s e m p r e a t in ge o p o n t o fr aco , a m a n d r á g o r a q u e a b r e as
t e so u r a r ia s t r a n ca d a s.

N ã o p o d e s c h a m á - l o d e e sp e r t o n e m d e b o b o , n e m d e b o m e n e m d e m a u ,
p o is é t o t a lm e n t e d e n a t u r e z a i n u m a n a 2 2 4 . E o filh o d a t e r r a , o e scu r o , q u e t u
d e ve s d e sp e r t a r . E h o m e m e m u l h e r ao m e s m o t e m p o e d e se xo i m a t u r o , r i c o

224 Cf. adiante, p. 39 6 .


N O X Q U ART A 327

d e i n t e r p r e t a ç ã o e d e m á in t e r p r e t a ç ã o , t ã o p o b r e e m s e n t id o e a s s im m e s m o
t ã o r ico . Es t e é o q u e e s t á m o r t o , q u e g r i t o u m a is a lt o , q u e e st a va n o p la n o m a is
b a ixo e e sp e r a va , q u e s o fr e u m a is q u e t o d o s. N ã o q u e r san gu e, n e m le it e e n e m
vi n h o p a r a o sa cr ifício aos m o r t o s , m a s a b o a vo n t a d e d e n o ssa c a r n e . Se u d e se -
jo n ã o liga va p a r a os s o fr im e n t o s d e n o sso e sp ír it o , q u e se e s fo r ç a va e m a r t i r i -
z a va p a r a e n t e n d e r o q u e n ã o e r a p a r a se e n t e n d e r , q u e a s i m e s m o se fla gela va
e se e n t r e ga va c o m o o fe r e n d a . Q u a n d o n o sso e s p ír it o ja z i a e sq u a r t e ja d o so b r e
o a lt a r , só e n t ã o o u vi a vo z d o filh o d a t e r r a , só e n t ã o v i q u e ele e r a o gr a n d e
so fr e d o r q u e p r e c is a va d a r e d e n ç ã o . E l e é o e sco lh id o , p o is fo i o m a is r e je it a d o .
E d u r o d i z e r ist o ; t a lve z e u o u ç a m a l , t a lve z e n t e n d a e r r a d o o q u e a p r o fu n d e z a
d iz . É t r is t e d i z e r ist o , m a s p r e c iso d iz ê - lo .

A p r o fu n d e z a se ca la . E l e se e r gu e u , o b s e r va a l u z d o so l e d e m o r a - s e e n t r e
os vivo s . I n q u i e t a ç ã o e d i s c ó r d i a l e va n t a m - s e c o m ele, d ú vi d a e a p l e n i t u d e d a
vid a .

As s i m , e s t á t e r m i n a d o . Re a l é o q u e e r a i r r e a l ; i r r e a l , o q u e e r a r e a l. M a s e u
n ã o d esejo, e u n ã o q u er o , e u n ã o p osso. O m is é r ia h u m a n a ! O fa lt a d e vo n t a d e
e m n ó s! O d ú vid a e d esesp er o! Es t a é r e a lm e n t e a Se xt a - fe ir a Sa n t a e m q u e o
Se n h o r m o r r e u , d e sce u aos in fe r n o s e c o n c l u i u o m i s t é r i o 2 2 5 . Es t a é a Se xt a - fe ir a
Sa n t a e m q u e a p e r fe i ç o a m o s o C r i s t o e m n ó s e e m q u e n ó s m e s m o s d e sce m o s
aos in fe r n o s . Es t a é a Se xt a - fe i r a Sa n t a e m q u e l a m e n t a m o s e c h o r a m o s p o r
ca u sa d o a p e r fe i ç o a m e n t o d e C r i s t o , p o is a p ó s se u a p e r fe i ç o a m e n t o n ó s d e s-
ce m o s aos in fe r n o s . T ã o p o d e r o s o fo i o C r i s t o , q u e s e u r e i n o c o b r i u o m u n d o
t o d o , só d e i xa n d o fo r a d e si o in fe r n o .

Q u e m co n se gu e c o m b o a s r a z õ e s c o n s c iê n c ia p u r a e o b e d e c e n d o à l e i d o
a m o r u lt r a p a ssa r os l i m i t e s d esse r e in o ? Q u e m é, e n t r e os vivo s , o C r i s t o q u e
d esce aos in fe r n o s e m c a r n e viva ? Q u e m é q u e a m p l i a o r e i n o d o C r i s t o p o r
ca u sa d o in fe r n o ? Q u e m é q u e , só b r io , e st á c h e io d e e m b r ia gu e z ? Q u e m é q u e
d o ser u n o d e sce u p a r a o se r d u p lo ? Q u e m é q u e r a sgo u se u p r ó p r i o c o r a ç ã o
p a r a u n i r o se p a r a d o ?

E u o so u , o s e m - n o m e , q u e n ã o se c o n h e c e a si m e s m o e c u jo n o m e e st á
o c u lt o d ia n t e d e le m e s m o . E u n ã o t e n h o n o m e , p o is a i n d a n ã o e r a , m a s só m e
t o r n e i h á p o u co . So u p a r a m i m u m r e b a t iz a d o , e s t r a n h o p a r a m i m . E u , o e u q u e
e u so u , n ã o o so u . M a s e u , o e u a n t e s d e m i m e o e u d e p o is d e m i m , q u e se r á , e u

225 Cf. acima, nota 135, p. 151.


328 LI BE R SECU N D U S 118/ 123

o s o u c o m ce r t e z a . A o m e r e b a ixa r , e le ve i- m e c o m o u m o u t r o . A o m e a ssu m ir ,
d i v i d i - m e e m d o is, e a o m e c o n c i l i a r c o m igo m e s m o , t o r n e i - m e u m a p e q u e n a
p a r t e d e m e u s i- m e s m o . I s t o e u s o u e m m i n h a c o n s c iê n c ia . N o e n t a n t o , s o u
e m m i n h a c o n s c iê n c ia a s s im c o m o se t a m b é m est ivesse se p a r a d o d isso . E u n ã o
118/ 120 e s t o u / [Ilu s t r a ç ã o 119 ] 2 2 6 / e m m e u se gu n d o e m a io r , c o m o se e u m e s m o fosse
est e se gu n d o e m a io r , m a s e s t o u s e m p r e e m m i n h a c o n s c iê n c ia c o m u m , m a s
t ã o se p a r a d o e d i s t i n t o d isso , c o m o se est ivesse e m m e u se gu n d o e m a io r , m a s
s e m o e st a r r e a lm e n t e d e a co r d o c o m m i n h a c o n s c iê n c ia . E u fiq u e i a t é m e s m o
m e n o r e m a is p o b r e , m a s p r e c is a m e n t e p o r ca u sa d e m i n h a p e q u e n e z p o sso
t o r n a r - m e c o n s c ie n t e d a p r o xi m i d a d e d a gr a n d e z a ,.

Eufuí batízado com água im pura para o renascim ento. Um a cham a de fogo do inferno m e esperava
sobre a pia batísm al. Banheí-m e com im pureza, e com sujeira m e purifiquei. Eu o recolhi, eu o aceitei, o
irm ão divino, ofilhoda terra, o bissexual e im aturo, e durante a noite tornou-se púbere. Nasceram -lhe
dois dentes incisivos, e penugem de barbajuvenil cobriu seu queixo. Eu o segurei, eu o venci, eu o envolvi.
Ele exigiu m uito de m im e assim m esm o contribuiu com tudo. Pois ele éríco; a ele pertence a terra. Mas
seu cavalo preto está separado dele.

Ve r d a d e ir a m e n t e , liq u id e i u m so b er b o in im igo m e u , u m m a io r e m a is for t e


fo r ce i a ser m e u am igo. N a d a d eve se p a r a r -m e d ele, o escu ro. Se q u e r o afast ar -m e
d ele, ele m e segu e c o m o u m a so m b r a . M e s m o q u e n ã o p e n se n ele, e st á a ssim
m e s m o s in is t r a m e n t e p e r t o d e m i m . El e se t r a n s fo r m a e m m e d o q u a n d o e u o
ren ego. D e vo p e n sa r m u i t o n e le , d e vo fa z e r - lh e o fe r t a d e a lim e n t o s; e u e n ch o
u m p r a t o p a r a ele e m m i n h a m e sa . M u i t a co isa q u e a n t iga m e n t e t e r ia feit o às
p essoas, t e n h o d e fazer agor a a ele. P o r isso c o n s i d e r a m - m e e go íst a , p o is n ã o
sa b e m q u e a n d o c o m m e u am igo, e q u e m u it o s d ias lh e sã o co n sa gr a d o s 2 2 7 . M a s
a in t r a n q u ilid a d e cesso u , leve t r e m o r su b t e r r â n e o , u m r u m o r e ja r lo n g ín q u o e
gr an d e. C a m i n h o s sã o ab er t o s p a r a o p assad o r e m o t o e p a r a o fu t u r o vin d o u r o .
P r o d ígio s e st ã o p r ó xi m o s e t e r r íve is segred os. E u sin t o as coisas q u e fo r a m e q u e
ser ão. At r á s d o t r ivia l e n t r e a b r e m - se os a b ism o s e t e r n o s. A t e r r a m e d e vo lve o

226 Legenda da ilustração: "O maldito dragão devorou o sol, abriram-lhe a barriga com uma faca e agora
precisa entregar o ouro do sol, juntamente com seu sangue. Esta é a volta de Atmavictus, o velho. O senhor
que destruía as colinas verdes e vicejantes é o jovem que me ajudou a matar Siegfried". A referência é ao
Líber Prímus, cap. 7, "Assassinato do herói".
227 O esboço continua: "Deixei de lado muitas pessoas, livros e pensamentos por amor a ele, mas muito mais
tirei do mundo presente e fiz o trivial e simples, o mais imediato para seu serviço secreto. Enquanto eu
fazia isso para a escuridão, aproximou-se de m im um outro no caminho da graça. Se me atormentam
intenções e desejos, penso, sinto e ajo dentro do mais próximo. Assim me atinge o mais distante" (p. 434).
N O X Q U ART A 329

q u e ele r e c o lh e u . / [ Ilu s t r a ç ã o 121] 228 , 2 2 9 3 230


/ [ Ilu s t r a ç ã o 122] 2 31, 2 32 / 120/ 123

228 Em 1944, em Psicologia e alquimia, Jung se refere a uma representação alquímica de um círculo enquadrado
por quatro "rios" no contexto de uma discussão sobre o simbolismo do mandala ( O C, 12, § l6 7n . ) . Jung
comentou sobre os quatro rios do paraíso em diversas ocasiões - cf, por exemplo, Aíon. O C , 9/ 2, § 311,
353, 358, 372.
229 Legenda da ilustração: "XI . M C M XI X. [11.1919: A data parece referir-se ao tempo em que esta ilustração
foi feita]. Esta pedra, de aspecto fascinante, é certamente o Lápis Phílosophorum. Lia é mais dura que o
diamante. Mas estende-se no espaço sob quatro propriedades, quais sejam, largura, altura, profundidade
e tempo. Por isso é invisível e tu podes passar através dela, sem o perceber. Da pedra fluem as quatro
t or r en t es d e aq u ário. Es t a é a sem en t e in co r r u p t ível, colocad a en t r e p a i e m ã e , qu e im p e d e qu e as p on t as
dos dois cones se toquem, a mônada que contrabalança o pleroma". Sobre o pleroma, cf. abaixo, p. 347. Com
referência à semente incorruptível, ver o diálogo com H a, na nota da ilustr. 9 4, p. 29 2, nota 157 acima.
230 Em 3 de junho de 1918, a alma de Jung descreve Filêmon como a alegria da terra: "O s demónios se
reconciliam no ser humano, que se encontrou a si mesmo, que é a fonte das quatro torrentes, ele mesmo
a terra que gera as fontes. De seu cerne jorram águas para os quatro ventos. Ele é o mar que dá à luz o sol,
ele é a montanha que carrega o sol, ele é o pai das quatro grandes torrentes, ele é a cruz que amarra os
quatro grandes demónios. Ele é a semente incorruptível do nada, que por acaso cai através dos espaços.
Esta semente é começo, mais novo do que todos os começos, mais velho que qualquer fim " (Livro Negro 7, p.
61). Alguns motivos dessa afirmação podem ter alguma conexão com esta ilustração. H á uma lacuna entre
julho de 1919 e fevereiro de 19 20 no Livro Negro, 7 quando Jung estava, presumivelmente, escrevendo os Tipos
psicológicos. No dia 23 de fevereiro, há o seguinte parágrafo: "O que há no entremeio, disso se fala no livro dos
sonhos, mais ainda porém se encontra nas ilustrações do Livro Vermelho" (p. 8 8 ) . Em "Sonhos", Jung menciona
em torno de oito sonhos durante este período e a visão, numa noite de agosto de 1919, de dois anjos,
uma massa escura e transparente e uma jovem mulher. Isto sugere que o processo simbólico continua nas
ilustrações do Liber Novus, que não parecem ter referência direta nem ao Liber Novus e nem aos Livros Negros. Em
193$, Jung apresentou uma interpretação psicológica do simbolismo da alquimia medieval, considerando a
pedra filosofal - a meta do opus alquímico - como um símbolo do si-mesmo (Psicologia e alquimia. O C , 12).
231 Legenda da ilustração: "4 . D e c . M CM XI X [1919: A data parece referir-se ao tempo da pintura da
ilustração]. Esta é a parte de trás da joia. Q uem está na pedra tem esta sombra. Este é Atmavictus, o velho,
depois que se retirou da criação. Ele voltou para a interminável história, donde tirou seu começo. Torn ou-
se novamente pedra e resíduo depois que term inou sua criação. Em Izdubar superou em crescimento o ser
humano e a partir dele libertou OIAHMÍ2N (Filêmon) e Ka. <Ê>IAHMQON deu a pedra, Ka deu o 0 ". Este
sinal parece ser um símbolo astrológico para o sol.
232 Sobre Atmavictus, cf. nota à ilustr. 117. Em 20 de maio de 1917, Filêmon disse: "Com o Atmavictus cometi
o erro e me tornei ser humano. Meu nome era Izdubar. E como tal fui a seu encontro. Ele me paralisou.
Sim , o ser humano me paralisou e me transformou numa serpente-dragão. Aconteceu-me a salvação, pois
reconheci meu erro, e o fogo devorou a serpente. E assim se fez Filêmon. Min h a figura é aparência. An tes
disso, m inha aparência era a figura" (Livro Negro 7, p. 195). Em Memórias, disse Jung: "Mais tarde, Filêmon
foi relativizado pela aparição de outro personagem que denominei Ka. No antigo Egito, o ' Ka do Rei'
era considerado sua forma terrestre, sua alma encarnada. Na minha fantasia, a alm a-Ka vinha de sob a
terra como que de um poço profundo. Pin t ei-a em sua forma terrestre como um Hermes, cujo pedestal
era de pedra e a parte superior de bronze. Bem no alto da imagem aparece uma asa de martim-pescador;
entre esta última e a cabeça do Ka paira uma nebulosa redonda e luminosa. A expressão do Ka tem algo
de demoníaco, e mesmo de mefistofélico. Segura numa das mãos uma forma semelhante a um pagode
colorido ou a um cofre de relíquias; na outra segura um estilete e com este trabalha aquele objeto. O Ka
diz sobre si mesmo: 'Eu sou aquele que enterra os deuses no ouro e nas pedras preciosas'./ Filêmon tem
um pé paralisado, mas é um espírito alado, enquanto o Ka é uma espécie de demónio da terra ou dos
metais. Filêmon encarna o aspecto espiritual, o 'sentido'. O Ka, pelo contrário, é um génio da natureza
como o anthroparion da alquimia grega, que eu desconhecia nessa época. O Ka é aquele que torna tudo
real, mas que vela o espírito do martim-pescador, o sentido, ou que o substitui pela beleza, pelo 'eterno
reflexo'./ Com o tempo integrei essas duas figuras. O estudo da alquimia ajudou-me a consegui-lo" (p.
220 - 221) . Wallace Budge observa que "O Ka era uma individualidade abstraía que possuía a forma e
atributos do homem a que pertencia e, ainda que seu lugar normal de moradia fosse no túmulo com o
corpo, podia peregrinar à vontade; era independente da pessoa e podia ir e morar em qualquer estátua
dela" (LgyptíanBookoftheDead, p. lxv). Em 1928, Jung comentou: "Nu m estádio superior de desenvolvimento,
quando já existem representações da alma, nem todas as imagens continuam projetadas... mas um ou outro
complexo podem aproximar-se da consciência, a ponto de não serem percebidos como algo estranho, mas
sim como algo próprio... Tal sentimento fica de certo modo entre o consciente e o inconsciente, numa
zona crepuscular: por um lado pertence ao sujeito da consciência, mas por outro lhe é estranho, mantendo
uma existência autónoma que o opõe ao consciente. De qualquer forma, não obedece necessariamente à
intenção subjetiva, mas é superior a esta, podendo constituir um manancial de inspiração, de advertência,
33o LI BE R SECU N D U S 123/ 124

233
123/ 124 [ I l u s t r a ç ã o 123] /

As três profecias
Ca p . xvi i i .

234
[ I H 124] C o i s a s a d m ir á ve is se a p r o xi m a m . E u c h a m e i m i n h a a l m a e lh e p e d i
q u e m e r gu lh a sse n o a la ga d o u r o , c u jo b a r u l h o e u p e r ce b e r a . I s t o a c o n t e c e u n o
d ia 22 d e ja n e i r o d e 1914, c o m o v e m r e la t a d o e m m e u Livro Negro. M e r g u l h o u
n o e scu r o , c o m a r a p id e z d e u m a flecha, e lá d o fu n d o e la gr it o u : " T u a ce it a r á s
o q u e v o u t r a z e r ?"

ou de informação 'sobrenatural'. Psicologicamente, tal conteúdo poderá ser explicado como sendo um
complexo parcialmente autónomo e não totalmente integrado à consciência. Esses complexos são as
almas primitivas, as ba e ka egípcias" ( O C, 7, § 29 5) . Em 1956, Jung descreveu o anthroparion na alquimia
como "uma espécie de duende que, na qualidade de 7tV8l)| Lia mxpeôpov (espírito devotado) ou sptrítus
famílíarís, assiste o adepto no opus e ajuda o médico a ajudar os outros" ( O C, 14, § 29 8 ) . O anthroparion
representava os metais alquímicos ( O C, 9/ 1, § 26 8 ) e aparecia nas visões de Zósim o ( O C, 13, p. 6is.). O
desenho do Ka, a que Jung se refere não veio à luz. Ka apareceu a Jung numa fantasia de 22 de outubro de
1917, na qual ele mesmo se apresenta como o outro lado de H a, sua alma. Foi Ka que deu a H a as runas e a
sabedoria inferior (veja nota 155, pp. 28 9 - 29 0 ) . Seus olhos eram de ouro puro e seu corpo, de ferro preto.
Ele diz a Jung e à sua alma que eles precisam de seu segredo, que é a essência de toda a magia. Isto é amor.
Filêmon diz que Ka é a sombra de Filêmon (Livro Negro 7, p. 25S.). Em 20 de novembro, Ka chama Filêmon
de sua sombra e seu mensageiro. Ka diz que é eterno e permanece, ao passo que Filêmon é efémero e
passageiro (p. 34). Em 10 de fevereiro de 1918, Ka diz que construiu um templo como prisão e sepultura
para os deuses (p. 39 ) . Ka sobressai no Livro Negro 7 até 1923. Durante este período, Jung tenta entender
a conexão entre Ka, Filêmon e as outras figuras, e estabelecer a correta relação a eles. A 15 de outubro de
1920, Jung discutiu um quadro não identificado com Constance Long, que estava fazendo análise com
ele. Alguns comentários anotados por ela, lançavam luz sobre a compreensão que ele tinha da relação
entre Filêmon e Ka: "As duas figuras em cada lado são personificações dos 'pais' dominadores. Um a é
o pai criativo, Ka; a outra, Filêmon, aquele que dá forma e vida (o instinto formativo). Ka equivaleria a
Diôniso e F = Apolo. Filêmon dá formulação às coisas presentes nos elementos do inconsciente coletivo...
Filêmon dá a ideia (talvez de um deus), mas esta permanece flutuante, distante e indistinta, porque todas
as coisas que ele inventa são aladas. Mas Ka dá substância e é chamado aquele que sepulta os deuses em
ouro e mármore. Ele tem tendência a desprezá-los na matéria, e por isso eles correm o perigo de perder
seu sentido espiritual e de ficar sepultados na pedra. Assim o templo pode tornar-se o túmulo de Deus,
assim como a Igreja tornou-se o túmulo de Cristo. Quanto mais a Igreja se expande, tanto mais Crist o
morre. Não se deve perm itir a K produzir demais - você não deve depender da substanciação; mas
se for produzida muito pouca substância a criatura flutua. A função transcendente é o todo. Não este
quadro, nem minha racionalização dele, mas o novo e vivificante espírito criativo que é o resultado da
comunicação entre a inteligência consciente e o lado criativo. Ka é sensação, F é intuição, ele é também
supra-humano (ele é Zaratustra, extravagantemente superior no que ele diz e frio. C G J não im prim iu as
perguntas que dirigiu a F nem as respostas deste)... Ka e Filêmon são maiores do que o homem, eles são
supra-humanos (Desintegrado neles, o indivíduo está no Inconsciente Colet ivo)" (Diário, Countway
Library of Medicine, p. 32-33).
233 Legenda da ilustração: " I V Ja n .M CM XX [4 de janeiro de 19 20: A data parece referir-se ao tempo em
que a ilustração foi feita]. Este é o sagrado regador. Das flores que brotaram do corpo do dragão crescem
os cabiros. Em cima está o templo".
234 No Livro Negro 4, Jung observou: "Depois disso, prossigo com a tensão de uma pessoa que espera algo
novo, que antes nunca lhe havia ocorrido. Advertido, instruído e ouvindo corajosamente a profundeza,
esforçado em viver para fora uma vida plenamente humana" (p. 4 2) .
AS T RÊS P R O F E C I A S 331

E u : "Ac e i t a r e i o q u e q u ise r e s. N ã o cab e a m i m o d i r e i t o d e ju lga r e r e c u s a r ".

A : "En t ã o e scu t a : e xi s t e m a q u i e m b a i xo ve lh a s a r m a d u r a s , fe r r a m e n t a s d e

n o sso s p a is, c a r c o m id a s p e la fe r r u g e m , c o r r e ia s d e c o u r o e m b o lo r a d a s e s t ã o

p r esas n e la s, h a st e s c a r c o m id a s d e la n ça s, p o n t a s r e t o r c id a s d e esp ad as, fle ch a s

q u e b r a d a s, e scu d o s a p o d r e cid o s, ca ve ir a s, p e r n a s d e h o m e n s e d e ca va lo s m o r -

t o s, ve lh o s c a n h õ e s , ca t a p u lt a s, a r c h o t e s d e co m p o st o s, s in a liz a d o r e s d e s t r o ç a -

d o s, cla va s d e p e d r a , p o n t a s d e p e d r a , ossos a fia d o s, d e n t e s a gu ç a d o s p r ó p r i o s

p a r a flechas - t u d o o q u e as gu e r r a s d e o u t r o r a a b a n d o n a va m n o c a m p o d e

b a t a lh a . Q u e r e s a ce it a r t u d o isso ?"

Eu : " E u a ceit o . T u o sab es m e lh o r , m i n h a a lm a ".

A : "En c o n t r e i p e d r a s p in t a d a s , o sso s r isca d o s c o m sin a is m á - g i c o s , fó r m u la s

m á gic a s so b r e p e d a ç o s d e c o u r o e c h a p in h a s d e c h u m b o , b o lsa s su jas ch e ia s d e

d e n t e s, d e ca b e lo s e u n h a s h u m a n o s , p a u s a m a r r a d o s , b o la s p r e t a s, p eles d e a n i -

m a is a b a t id o s - t o d a s as s u p e r s t iç õ e s t r a m a d a s p e lo s a t r o s t e m p o s d o p assad o.

Q u e r e s t u d o isso ?"

E u : "Ac e i t o t u d o . C o m o p o sso r e je i t a r a lgu m a co isa ?"

A : "E n c o n t r e i c o is a a i n d a p io r : fr a t r icíd io , a ssa ssin a t o co va r d e — t o r t u r a -

sa cr ifício d e cr ia n ça s - e xt e r m í n i o d e p o vo s i n t e i r o s - i n c ê n d i o - t r a iç ã o -

g u e r r a - r e vo lu ç ã o - q u e r e s t a m b é m isso ?"

E u : "T a m b é m isso, se fo r p r e ciso . C o m o p o sso ju lga r ?"

A : "En c o n t r o e p id e m ia s - ca t á st r o fe s d a n a t u r e z a - n a vio s a fu n d a d o s - c i -

d a d e s d e s t r u íd a s - se lva ge r ia t e r r i ve l m e n t e a n i m a l - fo m e - fa lt a d e a m o r d as

p esso as — e m e d o — m o n t a n h a s i n t e i r a s d e m e d o ".

E u : "As s i m d e ve ser, p o r q u e t u o d á s".

A : "En c o n t r o os t e so u r o s d e t o d a s as c u lt u r a s p assad as - im a ge n s m a g n í -

ficas d e d e u se s - t e m p lo s e n o r m e s - p in t u r a s - r o lo s d e p a p ir o - fo lh a s d e

p e r g a m i n h o c o m a e s c r it a d e lín gu a s m o r t a s — livr o s ch e io s d e s a b e d o r ia e x-

t i n t a - c a n t o s e h i n o s d e a n t igo s sa ce r d o t e s - as h is t ó r ia s q u e fo r a m co n t a d a s

d u r a n t e m i l h a r e s d e ge r a ç õ e s ".

E u : "É u m m u n d o q u e n ã o co n sigo ab r an ger . C o m o p o sso a c e it a r ?"

A : " N ã o q u e r ia s a ce it a r t u d o ? N ã o co n h e ce s t eu s li m i t e s . N ã o co n se gu e s

r e s t r i n g i r - t e ?"

E u : "T e n h o d e r e s t r i n g i r - m e . Q u e m p o d e r i a a b a r ca r e st a r iq u e z a ?"
332 LI BE R SECU N D U S 124/ 126

A . "Sê m o d e s t o e c o n s t r ó i t e u j a r d i m c o m s o b r ie d a d e " 2 35 .
E u : "Q u e r o fa z ê - lo . Ve j o q u e n ã o a d i a n t a c o n q u is t a r u m p e d a ç o m a i o r d a
i n c o m e n s u r a b i l i d a d e e m ve z d e u m m e n o r . U m p e q u e n o j a r d i m b e m c u id a d o é
m e l h o r q u e u m j a r d i m gr a n d e e m a l cu id a d o . E m vi s t a d a i n c o m e n s u r a b i li d a d e ,
a m b o s os ja r d i n s sã o igu a lm e n t e p e q u e n o s, m a s cu id a d o s d e sigu a lm e n t e ".
A : "P e ga u m a t e so u r a e p o d a t u as á r vo r e s ".

[2] A p a r t i r d a e s c u r id ã o i n u n d a n t e q u e o filh o d a t e r r a h a vi a t r a z id o , a a l m a
d e u - m e co isas ve lh a s, q u e s ign ific a m o fu t u r o . D e u - m e t r ê s coisas: a c a l a m i d a -
d e d a gu e r r a , as t r e va s d a fe it iça r ia , a d á d i va d a r e ligiã o .
Se fo r es in t e lige n t e , e n t e n d e r á s q u e essas t r ês co isa s e s t ã o i n t e r - r e l a c i o -
n a d a s. Essa s t r ê s s ign ific a m a lib e r t a ç ã o d o caos e d e su as fo r ça s, m a s as t r ê s
sã o igu a lm e n t e o a p r i s i o n a m e n t o d o caos. A g u e r r a é m a n ife s t a e c a d a q u a l a
vê . A fe it iça r ia é e s c u r a e n i n g u é m a vê . A r e ligiã o a i n d a n ã o é m a n ife s t a , m a s
se r á . Pe n sa st e q u e os h o r r o r e s d e s e m e lh a n t e a t r o cid a d e b é lic a v i r i a m so b r e
n ó s? Pe n sa st e q u e e xist isse fe it iça r ia ? Pe n sa st e n u m a n o va r e ligiã o ? E u fiq u e i
se n t a d o p o r lo n ga s n o it e s, o lh a va p a r a o vi n d o u r o e fica va h o r r o r i z a d o . N ã o
m e a cr e d it a s? N ã o m e i m p o r t a . O q u e é a c r e d it a r ? O q u e é n ã o a c r e d it a r ? E u
o b s e r va va e m e h o r r o r i z a va .

M a s o m e u e s p ír it o n ã o co n se gu ia c a p t a r o m o n s t r u o s o , i m a g i n a r a a b r a n -
gê n c ia d o vi n d o u r o . A fo r ça d e se u d e se jo se esgo t ava, e s e m fo r ça s c a e m as
m ã o s q u e c o lh e m . E u s e n t ia o p e so d o t r a b a lh o m a is t e r r íve l d o s t e m p o s v i n -
d o u r o s. E u v i a o n d e e co m o , m a s n e n h u m a p a la vr a co n se gu ia d e fin i- lo , n e n h u -
m a vo n t a d e p o d e fo r çá - lo . N ã o p u d e fa z e r o u t r a co isa , d e i xe i - o c a ir d e n o vo
n a p r o fu n d e z a .

N ã o p o sso d á - l o a t i , só p o sso fa la r d o c a m i n h o d o vi n d o u r o . P o u c a c o is a
d e b o m vi r á a vó s d e fo r a . O q u e cab e a vó s e st á d e n t r o d e vó s . M a s o q u e e st á
lá! Go s t a r i a d e d e svia r os m e u s o lh o s, fe ch a r m e u s o u vid o s e r e n e ga r t o d o s os
m e u s se n t id o s, go st a r ia d e se r u m e n t r e vó s , q u e n a d a sab e e q u e n u n c a v i u
n a d a . E d e m a is e p o r d e m a is in e sp e r a d o . M a s e u o v i e m i n h a l e m b r a n ç a n ã o

235 Estas são as últimas linhas de Candide, de Voltaire: "Tout cela est bien dit - mais il faut cultiver notre
jardin " [Tudo isto está bem dito - mas é preciso cultivar nosso jardim ], Candide and Other Stories (O xford:
O xford University Press, 1759/ 1998, p. 392-393 [Trad. de R. Pearson]). Jung guardava um busto de
Voltaire em seu gabinete.
AS T RÊS P R O F E C I A S 333

m e a b a n d o n a 2 3 6 . M a s m e u d e se jo q u e go st a r ia d e e st e n d e r - se p a r a o fu t u r o , e u
o c o r t o e vo l t o p a r a m e u p e q u e n o j a r d i m q u e e st á a t u a lm e n t e e m flor e c u ja
d i m e n s ã o e u p o sso ca lcu la r . E l e d e ve ser cu id a d o .
O fu t u r o d e ve s e r d e ixa d o p a r a o s fu t u r o s. E u r e t o r n o a o p e q u e n o e r e a l,
p o is est e é o gr a n d e c a m i n h o , o c a m i n h o d a q u e le q u e vir á . E u r e t o r n o p a r a
m i n h a s im p le s r e a lid a d e , p a r a m i n h a in c o n t e s t á ve l p e d r a m e n o r . E e u t o m o
d e u m a fa ca e co lo co so b ju lg a m e n t o t u d o o q u e c r e s c e u s e m m e d i d a e s e m
o b je t ivo . Re a l m e n t e , m a t a s c r e s c e r a m a m e u r e d o r , p la n t a s t r e p a d e ir a s s o b e m
e m m i m , s o u t o t a lm e n t e c o b e r t o p o r co isas q u e vi c e j a m s e m fi m . A p r o fu n d e z a
é in e s go t á ve l, e la d á d e t u d o . T u d o é t ã o b o m c o m o n a d a . F i c a c o m u m p o u c o
e t e r á s a lg u m a co isa . E s e m m e d i d a c o n h e c e r e r e c o n h e c e r t u a c o b i ç a e t u a
237
a m b i ç ã o ; r e u n ir , / [ Ilu s t r a ç ã o 125] / m o n t a r , ab r an ger , t o r n a r ú t il, in flu e n c ia r , 124/ 126

d o m i n a r , o r d e n a r , d a r s e n t id o e i n t e r p r e t a ç ã o a t e u vício .
É d e sva r io , c o m o t u d o q u e u lt r a p a ssa seu s lim it e s . C o m o p o d e s r e t e r o q u e
n ã o és? T u go st a r ia s d e s u b m e t e r o t o d o , q u e t u n ã o é s, a o ju go d e t e u m i s e -
r á ve l sa b e r e c o n h e c e r ? P e n s a b e m , t u p o d e s c o n h e c e r a t i , e c o m isso sab es o
su ficie n t e . M a s t u n ã o p o d e s c o n h e c e r o o u t r o e t o d o o o u t r o . C u i d a p a r a n ã o
sab er es a lé m d e t i , s e n ã o afogas c o m a p r e s u n ç ã o d e t e u sa b e r a v i d a d o o u t r o ,
q u e se co n h e ce a s i m e sm o . U m co gn o sce n t e p o d e c o n h e c e r a s i m e s m o . Es t e
é se u l i m i t e .
C o m u m go lp e d o lo r o so , c o r t o o q u e p r e t e n d i sa b e r so b r e o a lé m d e m i m .
E u m e a m p u t o d o e m a r a n h a d o a r d ilo s o d o s sign ifica d o s q u e e u d e i a o a lé m d e
m i m . E m i n h a fa ca c o r t a a i n d a m a is fu n d o e m e se p a r a d o s sign ifica d o s q u e d e i
a m i m m e s m o . Ap r o fu n d o o c o r t e a t é a m e d u l a , a t é q u e t o d o o sign ifica t ivo se
d e s p r e n d a d e m i m , a t é n ã o s e r m a is n a d a d o q u e p o d e r i a p a r e c e r a m i m , a t é
sa b e r a p e n a s a i n d a q u e so u , s e m sa b e r o q u e so u . Q u e r o se r p o b r e e s im p le s ,
q u e r o e st a r n u d ia n t e d o Im p la c á ve l. Q u e r o s e r m e u c o r p o e su a in d igê n c ia .
Q u e r o s e r d e t e r r a e vi ve r s u a l e i . Q u e r o s e r m e u a n i m a l h u m a n o e a ce it a r
t o d o s o s seu s t e m o r e s e p r a z e r e s. Q u e r o p a ssa r p e lo l a m e n t o e fe licid a d e d a -

236 O esboço continua: "Com o posso abarcar dentro de m im aquilo que os 8 0 0 anos vindouros vão preencher,
até aquele tempo em que o um [mostrará] seu domínio? Só falo do caminho daquele que vem " (p. 4 4 0 ) .
237 A cena na paisagem representa de perto a cena que ocorre em uma das fantasias de Jung em estado
de vigília durante a infância, relatada em Memórias, em que a Alsácia é submersa pela água, Basileia é
transformada num porto, existe um navio a vela e um navio a vapor, uma cidade medieval, um castelo com
canhões e soldados e habitantes da cidade, e um canal (p. 111-112).
334 LI BE R SECU N D U S 124/ 126

q u e le q u e fica va c o m c o r p o p o b r e e d e s a r m a d o so b r e t e r r a e n so la r a d a , s o z in h o ,

u m a p r e s a d e se u i n s t i n t o e d o s a n i m a i s selvagen s à e s p r e it a , d a q u e le q u e fo r a

a ssu st a d o p o r fa n t a sm a s e s o n h a va c o m d e u se s d ist a n t e s, d a q u e le q u e p o s s u ía a

p r o xi m i d a d e e ao q u a l e r a h o s t i l a d is t â n c ia d a q u e le q u e t i r a va fogo d e p e d r a s e

d o q u a l fo r ça s ir r e c o n h e c íve is r o u b a va m os r e b a n h o s e d e s t r u í a m a s e m e n t e i r a

d e se u ca m p o , d a q u e le q u e n ã o sa b ia e n ã o c o n h e c ia , m a s vi vi a se gu n d o o p r ó -

xi m o , e ao q u a l co u b e p o r gr a ç a o r e m o t o .

E r a u m a c r ia n ç a e in se gu r a , e n o e n t a n t o c h e i a d e se gu r a n ç a , fr a ca e c o n t u -

d o d e t e n t o r a d e fo r ç a i n a u d i t a . Q u a n d o s e u D e u s n ã o a ju d o u , t o m o u u m o u -

t r o. E q u a n d o est e t a m b é m n ã o a ju d o u , e la o ca st igo u . E e n t ã o : n u m a p r ó xi m a

ve z os d eu ses a ju d a r a m . P o r t a n t o , jo go fo r a t o d o o la st r o d e sign ificad o s, t o d o

o d i vi n o e d e m o n í a c o c o m o q u a l o caos m e so b r e ca r r e go u . D e fat o, n ã o cab e a

m i m c o m p r o va r os d eu ses, os d e m ó n i o s e os m o n s t r o s d o caos, a lim e n t á - lo s c o m

r e sp o n sa b ilid a d e , a r r a st á - lo s cu id a d o sa m e n t e co m igo , c o n t á - lo s e d a r - lh e s n o m e

e c o m fé p r o t e g ê - l o s d a d e s c r e n ç a e d a d ú vid a .

U m h o m e m l i vr e só co n h e c e d e u se s e d e m ó n i o s livr e s , q u e s u b s is t e m p o r s i

e a t u a m c o m fo r ç a p r ó p r ia . Se n ã o a t u a m , é p r o b l e m a d e le s, e e u p o sso a l i vi a r -

- m e d esse far d o. M a s se a t u a m , n ã o p r e c i s a m d e m i n h a p r o t e ç ã o , n e m d e m e u s

c u id a d o s e n e m d e m i n h a fé. P o r isso p o d e s e sp e r a r t r a n q u i l a m e n t e p a r a ve r se

a t u a m . E q u a n d o a t u a m , sê e sp e r t o , p o is o t igr e é m a is fo r t e q u e t u . T u d e ve s

p o d e r a b a n d o n a r t u d o , caso c o n t r á r i o és o escr avo , m e s m o q u e sejas o e scr a vo

d e u m D e u s . A v i d a é l i vr e e e sco lh e se u c a m i n h o . Es t á l i m i t a d a o b a st a n t e , p o r

isso n ã o a u m e n t e s as b a r r e ir a s . P o r isso c o r t e i t u d o o q u e l i m i t a va . A q u i e st a va

e u , e lá ja z i a o m u l t i fo r m e e n i g m á t i c o d o m u n d o .

E u m p a vo r m e i n va d i u . N ã o s o u e u o l i m i t a d o ? E o m u n d o d e lá n ã o é o

i l i m i t a d o ? E m i n h a fr a q u e z a se t o r n o u c o n s c ie n t e p a r a m i m . O q u e s e r ia p o -

b r e z a , n u d e z , d e s a r m a m e n t o s e m a c o n s c iê n c ia d a fr a q u e z a e s e m o h o r r o r d a

i m p o t ê n c i a ? Fi q u e i p a r a d o e m e h o r r o r i z e i . En t ã o m i n h a a l m a m e s u s s u r r o u :
O D O M D A M AGI A 335

O dom da magia
Ca p . x i x .

238
[ I H 126] " N ã o o u ve s a lgu m a co isa ?"
E u : "N a d a d e q u e t e n h a c o n s c iê n c ia , o q u e d e vo e scu t a r ?"
A : " U m s o m ".
E u : " U m so m ? D e o n d e ? N ã o e scu t o n a d a ".
A : "En t ã o e scu t a m e l h o r ".
E u : "T a l ve z c o m o o u vid o e sq u e r d o . O q u e sign ifica ?"
A : "D e s g r a ç a ".
E u : "Ac e it o o q u e d iz e s. T e r e i so r t e e d e s gr a ç a ".
A : "Es t e n d e p o is t u a s m ã o s p a r a c i m a e r e ce b e o q u e t e cab e".
E u : " O q u e é? U m a va r a . U m a c o b r a p r e t a ? U m a va r a p r e t a , d a fo r m a d e
u m a c o b r a — d u as p é r o la s c o m o o lh o s - u m a c o r r e n t i n h a d e o u r o ao p e s c o ç o .
N ã o se p a r e ce c o m u m a v a r i n h a d e c o n d ã o ?"
A : "I s t o é u m a v a r i n h a d e c o n d ã o ".
E u : " O q u e s ign ific a m a gia p a r a m i m ? A v a r i n h a d e c o n d ã o é u m a d e sgr a ça ?
A m a g ia é u m a d e s gr a ç a ?"

A : " S i m p a r a a q u eles q u e a p o s s u e m ".

E u : "I s t o so a c o m o u m a ve l h a saga - c o m o és m a r a vilh o s a , m i n h a a lm a ! O


q u e s ign ific a m a gia p a r a m i m ? "
A: "P a r a t i s ign ific a m u i t o ".
E u : "T e m o q u e d e sp e r t e s m i n h a c o b iç a e m e u m a u e n t e n d i m e n t o . T u sab es
q u e o se r h u m a n o n ã o p a r a d e c o b iç a r a n e c r o m a n c i a e as co isas q u e n a d a lh e
c u s t a m ".
A : "A m a gia n ã o é s im p le s e c u s t a sa cr ifício ".

E u : "C u s t a e la o sa cr ifício d o a m o r ? D a h u m a n i d a d e ? En t ã o t o m a a va r a d e
vo lt a ".
A : " N ã o sejas p r e c ip it a d o . A m a g ia n ã o e xige est e sa cr ifício . E l a e xige o u t r o
sa cr ifício ".
E u : " Q u a l é o sa cr ifício ?"

A : " O sa cr ifício q u e a m a gia e xige é o d o c o n s o lo ".

238 23 de janeiro de 1914.


336 LI BE R SECU N D U S 126/ 128

Eu : "Co n s o l o ? E s t o u e n t e n d e n d o b e m ? É i n c r i ve l m e n t e d ifícil e n t e n d e r - t e .
D i z e o q u e ist o sign ifica ".
A : " O co n so lo é p a r a ser o fe r e cid o e m sa cr ifício ".
Eu : "C o m o im a gin a s isso ? O co n so lo q u e e u d o u o u q u e r e ce b o d e ve se r
o fe r e cid o e m sa cr ifício ?"
A : "As d u a s co isa s".
Eu : "E s t o u co n fu so . E m u i t o o b sc u r o ".

A : "P o r a m o r à v a r a p r e t a t e n s d e sa cr ifica r o co n so lo , o c o n so lo q u e d á s e o
c o n so lo q u e r e ce b e s".
E u : " N ã o d e vo r e ce b e r o c o n s o lo p o r p a r t e d a q u e le q u e e u a m o ? E n ã o d e vo
d a r n e n h u m c o n so lo à q u e le s q u e e u a m o ? I s t o s ign ific a a p e r d a d e u m p e d a ç o
d a h u m a n i d a d e e e m se u lu ga r e n t r a a q u ilo q u e c h a m a m o s d e d u r e z a c o n t r a s i
m e s m o e c o n t r a os o u t r o s " 2 3 9 .

A . "As s i m é".
E u : "A va r a e xige est e sa cr ifício ?"
A : " E l a e xige est e sa cr ifício ".
E u : "P o sso e u , d e vo e u fa z e r est e sa cr ifício p o r a m o r à va r a ? P r e c is o a ce it a r
a va r a ?"
A : "Q u e r e s o u n ã o q u e r e s?"

E u : " N ã o se i d iz e r . O q u e se i a r e s p e it o d a va r a p r e t a ? Q u e m a d á p a r a
m im ?"
A : "A e s c u r id ã o q u e e st á d e it a d a d ia n t e d e t i . E a p r ó xi m a co isa q u e t e cab e.
Q u e r e s a c e it á - la e o fe r e c e r - lh e t e u sa cr ifício ?"

Eu : "É d u r o o fe r e ce r à e s c u r id ã o , à t r e va cega - e q u e sa cr ifício !"


A : "A n a t u r e z a - a n a t u r e z a co n so la ? E l a r e ce b e c o n s o lo ?"
E u : " T u ou sas d i z e r u m a p a la vr a p esad a. Q u e s o lid ã o exiges d e m i m ? "
A : "E s t a é t u a d e s gr a ç a e - o p o d e r d a va r a p r e t a ".

E u : "C o m o falas lu g u b r e m e n t e , c h e i a d e p r e s s e n t im e n t o s ! T u m e e n vo lve s


24 0
126/ 128 c o m a a r m a d u r a / [Ilu s t r a ç ã o 127] / d e d u r e z a fé r r e a ? Ap e r t a s m e u c o r a ç ã o

239 Em Eccehomo, Nietzsche escreveu: "Toda aquisição, todo passo adiante no conhecimento é o resultado de
coragem, de severidade consigo mesmo, de limpeza com relação a si mesmo" (Harm ondsworth: Penguin,
1979, prefácio 3, p. 34 [Trad. de R J. Hollin gdale]).
24 0 Inscrição ao alto: "Amor triumphat". Inscrição ao pé: "Este quadro foi terminado em 9 de janeiro de
1921, após ter esperado, inacabado, por 9 meses. Ele expressa, não sei, que espécie de tristeza, um sacrifício
quádruplo. Quase não consegui decidir-me a acabá-lo. E a roda inexorável das quatro funções, a natureza
cheia de sacrifícios de tudo o que vive". Em 23 de fevereiro de 19 20 , Jung observou no Livro Negro 7: "O
O D O M D A M AGI A 337

c o m t o r n iq u e t e s d e b r o n z e ? E u m e alegr ei c o m o ca lo r d a vid a . D e v o p e r d ê - lo ? -
p o r a m o r à m a gia ? O q u e é m a gia ?"

A : " T u n ã o co n h e ce s a m a gia . P o r t a n t o n ã o ju lgu e s. C o n t r a o q u e t e o p õ e s ?"


E u : "M a g i a ? O q u e a d i a n t a a m a gia ? N ã o a c r e d i t o n e l a , n ã o p o sso c r e r
n e la . M e u c o r a ç ã o fe n e ce - e e u d e vo s a c r ific a r à m a g i a gr a n d e p a r t e d a h u -
m a n i d a d e ?"
A : " E u t e a co n se lh o d ir e it o . N ã o r e sist a s e so b r e t u d o - n ã o t e c o m p o r t e s
t ã o e s c la r e c id a m e n t e , c o m o se n o m a is í n t i m o n ã o a cr e d it a sse s n a m a gia ".
E u : " T u és im p la c á ve l. M a s e u n ã o p o sso a c r e d it a r n a m a gia - o u e u t e n h o
u m a i d e i a b e m e r r ó n e a d e la ".

A : "E s t a ú l t i m a p a r e ce se r a h i p ó t e s e vá lid a . Ab a n d o n a t eu s p r e c o n c e it o s
cegos e a t it u d e s cr ít ica s, caso c o n t r á r i o n u n c a ir á s e n t e n d e r n a d a . Q u e r e s a i n d a
d e s p e r d i ç a r m u i t o s a n o s e sp e r a n d o ?"

E u : " T e m p a c iê n c ia , m i n h a c iê n c ia a i n d a n ã o fo i ve n c i d a ".
A : "Es t á m a is q u e n a h o r a d e a ve n c e r e s ".
E u : " T u exiges m u i t o , q u ase m u i t o d e m a is. E m ú l t i m a a n á lise — a c iê n c ia é
in d is p e n s á ve l à vid a ? A c iê n c ia é vid a ? H á p esso as q u e v i v e m s e m ciê n cia . M a s
su b ju ga r a c iê n c ia p o r a m o r à m a gia ? I s t o é s i n i s t r o e a m e a ç a d o r ".

A : "Es t á s c o m m e d o ? N ã o q u e r e s a r r is c a r a vid a ? A v i d a n ã o c o lo c a est e


p r o b l e m a d ia n t e d e t i ?"

E u : " T u d e ixa s t u d o t ã o s o m b r i o e co n fu so p a r a m i m . N ã o t e n s u m a p a la vr a
de lu z p ar a m im ?"
A : " O h - p e d e s co n so lo ? Q u e r e s a va r a o u n ã o ?"
E u : " T u d ila ce r a s m e u co r a çã o . E u q u e r o s u b m e t e r - m e á v i d a - p o r m a is p e -
n o so q u e seja! E u q u e r o a va r a p r e t a , p o r q u e é a p r i m e i r a c o is a q u e a e s c u r id ã o
m e d á . N ã o se i o q u e e st a va r a s ign ific a n e m o q u e e la d á — e u só s in t o o q u e e la
t ir a . V o u a jo e l h a r - m e e r e ce b e r a va r a p r e t a e a segu r o, a e n igm á t ic a , e m m i n h a
m ã o - é fr i a e p e sa d a c o m o fe r r o . O s o lh o s p e r o lífe r o s d a c o b r a m e e n c a r a m
cega e c i n t i l a n t e m e n t e . O q u e q u e r e s, d á d i va m is t e r io s a ? T o d a a e s c u r id ã o ,
t o d o o m u n d o p r i m e vo se c o m p a c t a m e m t i , a ç o d u r o e p r e t o ! E s t u t e m p o e

que acontece entre o amante e o amado é toda a plenitude da divindade. Por isso eles são os dois enigmas
insondáveis. Pois quem entende a divindade? / Mas Deus é gerado na solidão, a partir do mistério do
indivíduo. / A separação entre vida e amor é a contradição entre ser um só e ser dois" (p. 88). A próxima
anotação no Livro Negro 7 acontece em 5 de setembro de 1921. Em março de 19 20 , Jung foi para o norte da
Africa com Herm an n Sigg, voltando em 17 de abril.
338 LI BE R SECU N D U S 128/ 130

d e st in o ? Es s ê n c ia d a n a t u r e z a , d u r a e e t e r n a m e n t e d e sco n so la d o r a , m a s s o m a
d e t o d a fo r ça m i s t e r i o s a d a cr ia çã o ? An t i q u í s s i m a s fó r m u la s m á gic a s p a r e c e m
b r o t a r d e t i - e fe it o m i s t e r i o s o t ece e m t o r n o d e t i - q u e a r t e s p o d e r o sa s d o r -
m i t a m e m t i? T u m e t r a n sp a ssa s c o m t e n s ã o i n s u p o r t á ve l - q u e t r a ve ssu r a s va is
a p r o n t a r ? Q u e m i s t é r i o a ssu st a d o r va is c r ia r ? Va i s t r a z e r t e m p o r a is , ve n t a n ia s ,
fr io e r a io s o u t o r n a r á s p r o d u t i vo s os c a m p o s e a b e n ç o a r á s o ve n t r e d a gr á vid a ?
Q u a l é a c a r a c t e r ís t ic a d e t e u ser ? O u n ã o p r e cisa s d e la , fi lh a d o se io t e n e b r o so ?
T u t e sat isfazes c o m a e s c u r id ã o n e b u lo sa , c u ja c o n c r e t iz a ç ã o e cr ist a liz a çã o t u
és? O n d e t e a lo ja r e i e m m i n h a a lm a ? E m m e u c o r a ç ã o ? A i , m e u c o r a ç ã o d e ve
ser t e u cla m o r , t e u s a n t u á r io ? En t ã o e sco lh e t e u lu gar . E u t e a ce it e i. Q u e t e n s ã o
p e n o s a t r a z e s co n t igo ! N ã o se p a r t e o fe ixe d e m e u s n e r vo s? E u d e i p o u sa d a ao
m e n s a ge ir o d a n o it e ".

A : "N e l e m o r a a m a gia m a is p o d e r o sa ".


E u : " E u o sin t o , m a s n ã o p o sso d e scr e ve r a t e r r íve l fo r ç a q u e lh e fo i d a d a . E u
q u e r i a r ir , p o r q u e n a r is a d a m u i t a c o is a m u d a e p o r q u e t a n t a co isa só e n c o n t r a
n e l a s u a so lu çã o . M a s a r is a d a m o r r e u e m m i m . A m a g ia d a va r a é r e sist e n t e
c o m o o fe r r o e fr i a c o m o a m o r t e . D e s c u l p a , m i n h a a lm a , n ã o q u e r o se r i m -
p a c ie n t e , m a s p a r e c e - m e q u e algo p r e c is a a c o n t e c e r p a r a r o m p e r e st a t e n s ã o
i n s u p o r t á ve l q u e a va r a m e t r o u xe ".

A : "Es p e r a , m a n t é m o lh o s e o u vid o s a b e r t o s".


Eu : "F i c o a r r e p ia d o , e n ã o se i p o r q u ê ".
A : "As ve z e s a ge n t e se a r r e p i a d ia n t e d o — m a i o r ".
E u : " E u m e c u r vo , m i n h a a lm a , d ia n t e d e fo r ça s d e sco n h e cid a s - go st a r ia

d e d e d ic a r u m a lt a r a c a d a D e u s d e sco n h e cid o . E u p r e ciso s u je i t a r - m e . O fe r r o

p r e t o e m m e u c o r a ç ã o m e d á u m a fo r ça m is t e r io s a . É c o m o d e sp e it o e - d e s-

p r e z o d as p e s s o a s " 2 4 1.

[2] O a çã o t é t r ica , p r o fa n a ç ã o , h o m i c í d i o ! D á à l u z , a b ism o , o a b o m i n á ve l.


Q u e m é n o sso sa lva d o r ? Q u e m é ch efe? O n d e e s t ã o c a m i n h o s a t r a vé s d e d e -
se r t o s t e n e b r o so s? D e u s , n ã o n o s a b a n d o n e s! O q u e c h a m a s d e D e u s ? Le v a n t a

241 No Livro Negro 4, Jung anotou o seguinte diálogo: [alma]: "Con t rola tua impaciência. Aqui só adianta
esperar". [ I] : Esperar - eu conheço esta palavra. Também Héracles, ao sustentar a abóbada celeste, achou
fatigante esperar sob o peso de sua carga, [alma]: "Por amor às maçãs, ele teve de esperar até que Atlas
voltasse e segurasse novamente a abóbada celeste" (p. 6 0 ) . A referência é ao décimo primeiro trabalho de
Hércules, no qual tinha de pegar as maçãs de ouro, que conferiam a imortalidade. Atlas ofereceu-se para
pegar as maçãs para ele, caso ele segurasse o mundo nesse meio tempo.
O D O M D A M AGI A 339

t u as m ã o s p a r a a e s c u r id ã o a c i m a d e t i , r e z a , d e se sp e r a , t o r ce as m ã o s , a jo e lh a ,
a p e r t a t u a t e st a c o n t r a o p ó , gr it a , m a s n ã o o m e n c i o n e s , n ã o o lh e s p a r a ele.
D e i x a - o s e m n o m e e s e m fo r m a . O q u e s ign ific a fo r m a p a r a q u e m n ã o t e m
fo r m a ? N o m e , p a r a q u e m n ã o t e m n o m e ? P i s a n o gr a n d e c a m i n h o e p e ga o
p r ó xi m o . N ã o p r o c u r e s c o m os o lh o s, n ã o q u e ir a s, m a s se gu r a as m ã o s p a r a
o alt o. Sã o ch e io s d e e n igm a s os d o n s d a e scu r id ã o . Q u e m co n se gu e p r o sse -
gu ir n o s e n igm a s, a est e e st á a b e r t o u m c a m i n h o . Su b m e t e - t e aos e n igm a s e ao
t o t a lm e n t e i n c o m p r e e n s í ve l . Sã o e n ga n o sa s / [Ilu s t r a ç ã o 129] / p o n t e s so b r e
a b ism o s d e p r o fu n d id a d e e t e r n a . M a s segu e os e n igm a s.
Su p o r t a - o s , os t e r r íve is. A i n d a e s t á e scu r o , a i n d a cr e sce o h o r r e n d o . M e r g u -
lh a d o s, e n go lid o s p elas t o r r e n t e s d e v i d a ge r a d o r a , a p r o xi m a m o - n o s d as fo r ça s
su p e r p o d e r o sa s e s o b r e - h u m a n a s q u e e s t ã o a t iva m e n t e t r a b a lh a n d o p a r a c r i a r
os t e m p o s vi n d o u r o s . Q u a n t a c o is a fu t u r a e sco n d e a p r o fu n d e z a ! N ã o se t e c e m
n e l a os fio s so b r e m i l é n i o s ? 2 4 2 C u i d a d o s e n igm a s, gu a r d a - o s e m t e u c o r a ç ã o ,
e sq u e n t a - o s, a n d a p r e n h e d eles. A s s i m ca r r e ga s fu t u r o .
I n s u p o r t á ve l é e m n ó s a t e n s ã o d o fu t u r o . P r e c i s a r o m p e r a t r a vé s d e fe n d a s
e st r e it a s, p r e c is a fo r ç a r n o vo s c a m i n h o s . T u go st a r ia s d e a lija r a car ga. G o s t a -
r ia s d e e sca p a r d o in e sc a p á ve l. M a s fu gir é ilu sã o e d e svio . Fe c h a os o lh o s p a r a
n ã o ve r e s o m u l t i fo r m e , o e xt e r n a m e n t e m ú lt ip lo , o a r r e b a t a n t e e a lic ia n t e . Só
e xist e u m c a m i n h o , e est e é o t e u c a m i n h o , só u m a sa lva çã o , e e st a é t u a sa lva çã o .
P o r q u e o lh a s ao r e d o r c o m o q u e m e st á p r o c u r a n d o a ju d a ? Ac r e d i t a s q u e v e m
a ju d a d e fo r a ? O vi n d o u r o s e r á c r ia d o e m t i e fo r a d e t i . P o r isso o l h a p a r a d e n -
t r o d e t i m e s m o . N ã o c o m p a r e s , n ã o m e ç a s . N e n h u m o u t r o c a m i n h o se p a r e ce
ao t e u . T o d o s os o u t r o s c a m i n h o s sã o p a r a t i ilu sã o e d e s c a m in h o . T u p r e cisa s
a p e r fe iç o a r o c a m i n h o d e n t r o d e t i .

O h , se t o d a s as p essoas e t o d o s os seu s c a m i n h o s p u d e s s e m t o r n a r - s e e s t r a -
n h o s p a r a t i . A s s i m p o d e r ia s r e e n c o n t r a r as p esso as fo r a d e t i e c o n h e c e r seu s
c a m i n h o s . M a s q u e fr a q u e z a ! Q u e d e se sp e r o ! Q u e m e d o ! T u n ã o s u p o r t a r á s
a n d a r t e u c a m i n h o . Te r á s s e m p r e ao m e n o s u m p é e m c a m i n h o e st r a n h o , p a r a
q u e n ã o t e s o b r e ve n h a a gr a n d e s o lid ã o ! P a r a q u e a m ã e - c o n s o l o e st e ja s e m p r e
p e r t o d e t i ! P a r a q u e sejas a p r o va d o , r e c o n h e c id o , la m e n t a d o , co n so la d o e e s t i -

242 Na mitologia grega as Moiras, ou três destinos, Cloto, Láquesis e Átropos, teciam e controlavam os fios
da vida humana. Na Mitologia Nórdica, as Nornas teciam os fios do destino aos pés de Vggdrasil, a árvore
do mundo.
34o LI BE R SECU N D U S 130/ 134

m u la d o ! P a r a q u e a lg u é m t e a r r a st e p a r a c a m i n h o s d e sco n h e cid o s o n d e t e e x-
t r a via s d e t i m e s m o e o n d e , a livia d o , t e p o ssas p ô r d e lad o . C o m o se n ã o fosses
t u m e s m o ! Q u e m d e ve p r a t ic a r t u a s a çõ e s? Q u e m d e ve ca r r e ga r t u a s vi r t u d e s
e t e u s far d o s? N ã o t e a r r a n ja r á s c o m t u a vi d a , e os m o r t o s vã o p e r t u r b a r - t e
t e r r i ve l m e n t e p o r ca u sa d e t u a v i d a n ã o vi vi d a . T u d o , t u d o m e s m o d e ve se r
c u m p r i d o . O t e m p o u r ge , p o r q u e q u e r e s a ju n t a r u m a c o is a aos m o n t e s e d e i xa r
a o u t r a se d e t e r io r a r ?

G r a n d e é o p o d e r d o c a m i n h o 2 4 3 . N e l e c r e s c e m ju n t o s c é u e in fe r n o , n e le
se u n e m as fo r ça s d e b a ixo e as fo r ça s d e c i m a . M á g i c a é a n a t u r e z a d o c a m i -
n h o , m á g i c o s sã o os p e d id o s e o a p e l o 2 4 4 , m á gic a s sã o m a l d i ç ã o e a çã o q u a n d o
a c o n t e c e m so b r e o gr a n d e c a m i n h o . É m a gia o e fe it o d as p esso as u m a s so b r e as
o u t r a s, m a s n ã o [é] a s s im q u e t u a a ç ã o va i a t in gir o p r ó xi m o , m a s e la t e a t in ge
p r i m e i r o a t i , e s ó q u a n d o lh e r e sist e s, a co n t e ce u m e fe it o in visíve l d e t i so b r e o
p r ó xi m o . H á m a is d isso n o a r d o q u e ja m a is im a g in e i. N o e n t a n t o , n ã o se p o d e
c a p t á - lo . O u v e :

O superior époderoso. O s ventos interm édios prendem o

O inferior époderoso. barlavento. Os poios se unem


Poder duplo existe em um . através dos poios interm édios. Degraus
Norte, aproxim a-te, levam de cim a para baixo.
Oeste, adapta-te, Água fervente borbulha em
Leste, fui para cim a, chaleiras. Cinza ardente envolve
Sul, transborda. os solos arredondados 24S.

A noite cai azul e profunda de cim a,

130/ 132 a terra se levanta negra de baixo. / [Ilu s t r a ç ã o 131] /

Um solitário cozinha poções terapêuticas,


ele asperge aos quatro ventos.
Lie saúda as estrelas e toca a terra.
Lie tem algo brilhante em suas m ãos.

243 O esboço continua: "Tão grande é o poder do caminho que ele arrasta consigo outros e os incendeia. Tu
não sabes como isto acontece, por isso é melhor que chames de mágico este efeito" (p. 453).
244 O esboço continua: "que precisamente devido à sua natureza especial, é representado pela cobra" (p. 453).
245 Isto parece referir-se ao círculo mágico em que são realizados os atos rituais.
O D O M D A M AGI A 34i

Flores brotam ao redor dele e um novo prazer prim averil beija todos os seus m em bros.
Pássaros vêm voando, e os anim ais ariscos daflorestaolham para ele.
Está longe das pessoas, e m esm o assim ofio de seu destino passa por sua m ão.
Credítai-lhe vossas preces, afim de que sua poção fique boa e forte e que traga a cura das feridas
m ais profundas.
É solitário por am or a vós, e sozinho espera entre céu e terra para que a terra suba e o céu desça até [ele].
Todos os povos ainda estão longe e atrás da parede da escuridão. Mas eu escuto suas palavras que
chegam até m im de longe.
Ele escolheu para si um escrevente ruim , com dificuldade de audição e que tam bém gagueja quando
escreve.
Não conheço o solitário. O que ele diz? Ele diz: "Tenho m edo e sofro necessidades por am or às
pessoas".
Eu desenterrei velhas runas efórm ulas m ágicas, pois as palavras não atingem nunca as pessoas. As
palavras tornaram -se som bra.
Por isso peguei utensílios velhos de m agia e cozinhei poções quentes, m isturei nelas coisas m isteriosas
e coisas fortes de tem pos im em oriais, coisas que nem o m ais inteligente adivinha.
Eu cozinhei as raízes de todos os pensam entos e ações hum anas. Durante m uitas noites estreladas
vigiei a caldeira. Muito lentam ente vai efervescendo a poção. Preciso de vossas preces, de vossa genufle-
xão, de vosso desespero e de vossa paciência. Preciso de vosso últim o e m aior desejo, de vossa vontade m ais
pura, de vossa subm issão m ais hum ilde.
Solitário, por quem esperas? A ajuda de quem aguardas? Não há ninguém que te possa socorrer,
pois todos olham para ti e esperam ansiosos por tua arte curativa.
Todos nós som os totalm ente im potentes e m ais necessitados de ajuda do que tu. Concede-nos tua
ajuda, para que te retribuam os ajuda.

O solitário fala: "Ninguém m e ajudará nesta necessidade? Devo abandonar o que estou fazendo
para ajudar-vos afim de que vós possais ajudar-m e em retribuição? Mas com o posso ajudar-vos se m inha
poção não fica pronta eforte? Eu teria de ajudar-vos. O que esperais de m im ?"

Vem a nós! Por que suportas e cozinhas coisas m aravilhosas? Que significam para nós tuas poções
m ágicas e curativas? Acreditas em poções terapêuticas? Encara a vida, evêo quanto ela precisa de ti! / 132/ 134

[Ilu s t r a ç ã o 133] /

O solitário fala: idiotas, não podeis ficar acordados um a hora com igo246, até que o difícil e dem orado
dê certo e que o cozim ento fique bom ?

24 6 Em Mt 24 ,4 0 , Crist o repreende seus discípulos por terem sido incapazes de vigiar uma hora enquanto
ele orava no Jardim do Getsêmani.
342 LI BE R SECU N D U S 134/ 136

Mais um pouco e a efervescência está pronta. Por que não podeis esperar? Por que deveria vossa
im paciênciafrustrar a obra m áxim a?"
O que é a obra m áxim a? Nós não vivem os;frio e entorpecim ento nos apanharam . Tua obra, soli-
tário, não vai term inar nem em éons, m esm o que prossiga dia após dia.

Interm inável éa obra da salvação. Por que desejas esperar o fim dessa obra? E m esm o que tua espera
te petrifique por tem pos ilim itados, não conseguirias durar até o fim . E se tua salvação tivesse chegado a
seu fim , deverias ser de novo salvo de tua salvação.
O solitário fala: "Que lam úria com ovente chega a m eus ouvidos! Que choradeira! Que sois vós,
céticos ignaros, crianças rebeldes! Esperai, ainda esta noite estará term inada".

Não esperarem os m ais noite nenhum a, chega de esperar. És um Deus, para o qual m il noites são
com o um a noite? Mesm o esta um a noite seria para nós, que som os seres hum anos, com o m il noites.
Desiste da obra da salvação ejá estarem os salvos. Por quanto tem po nos queres salvar?
O solitário fala: "Lam entável povo hum ano, tolo bastardo de Deus e anim al, falta ainda um pedaço
de tua carne preciosa na m istura de m inha caldeira. Sou porventura o pedaço m ais valioso de teu assado?
Vale a pena que eu m e deixe cozinhar por vós? Um se deixou pregar na cruz por am or a vós. Nele foi
sem dúvida o suficiente. Ele m e im pede o cam inho. Por isso não ando em seus cam inhos, preparo-vos um
cozim ento terapêutico, nenhum a poção im ortal247 de sangue eu vos deixo, m as deixo a poção e a caldeira
e o efeito secreto por am or a vós, pois não conseguis esperar e experim entar em detalhes a plenitude. Eu
dispenso vossas preces, vossas genuflexões, vossas invocações. Vós pretendeis salvar a vós m esm os de vossa
im possibilidade de salvação e de vossa possibilidade de salvação. Vosso valor subiu alto o bastante para
que um m orresse por vós. Mostrai agora vosso valor pelo fato de cada um viver para si. Meu Deus, com o
é difícil deixar incom pleta um a obra por am or aos seres hum anos! Mas por am or ao ser hum ano renun-
ciei a ser um salvador. Agora m inha poção com pletou sua efervescência. Eu não m isturei a m im m esm o
à poção, m as cortei um pedaço de hum anidade, e vede, ele clareou a poção de espum a turva.

Que sabor doce, Dupla tornou-se Leste, alarga-te,


que sabor am argo aform a do um . Sul, deita-te.
ele tem ! Norte, retira-te, Os ventos interm édios
134/ 135 O inferior éfraco, Oeste, afasta-tepara teu sontam o barlavento /
135/ 136 O superior éfraco. lugar, [ I l u s t r a ç ã o i 35 ] 2 4 8 /

247 Nota marginal ao volume caligráfico: "29/ 11/ 1922"'. Parece referir-se à data em que esta passagem foi
transcrita.
248 Inscrição: "Terminado em 25 de novembro de 1922. De Muspilli vem o fogo e engloba a árvore da
vida. Um a rotação está concluída, mas é a rotação no ovo do mundo. Um Deus estranho, que não dá para
chamar de Deus do solitário, foi o que chocou. Novos seres vitais formam-se a partir de fumaça e cinza".
Na mitologia nórdica, Muspilli (ou Muspelheim) é a morada dos Deuses do Fogo.
O CAM I N H O DA CRU Z 343

O s poios distantes estão separados A cinzafica pardacenta


pelos poios interm édios. debaixo de seu chão.
Os degraus são cam inhos extensos, A noite cobre o céu,
estradas pacientes. e longe em baixo está a terra escura.
A caldeira borbulhantefica fria.
O dia vem surgindo e o sol distante sobre as nuvens.
Nenhum solitário cozinha poções terapêuticas.
Os quatro ventos sopram e riem de sua dádiva.
E ele caçoa dos quatro ventos.
Ele viu as estrelas e tocou a terra.
Por isso sua m ão segura um a coisa lum inosa e sua
som bra cresceu até o céu. [Ilu s t r a ç ã o 136]

C o i s a in e xp lic á ve l a co n t e ce . T u go st a r ia s d e a b a n d o n a r a t i m e s m o e c o r r e r
p a r a a q u e le p o s s íve l m u lt íp lic e . T u go st a r ia s d e o u sa r t o d o t ip o d e c r i m e a f i m
d e r o u b a r e s p a r a t i o se gr e d o d o va r ie ga d o . M a s s e m f i m é a e st r a d a .

O cam in h o da cruz
Ca p . x x . 2 4 9

250
[ I H 136] E u v i c o m o a s e r p e n t e n e g r a 2 5 1 se e n r o s c o u n o a lt o d o l e n h o d a
c r u z . E l a e n t r o u n o c o r p o d o c r u c ific a d o e n o va m e n t e sa iu , t r a n s fo r m a d a , d a
b o c a d e le . H a v i a fica d o b r a n c a . E l a se e n r o l o u e m t o r n o d a c a b e ç a d o m o r -
t o c o m o u m d ia d e m a , e u m a l u z b r i l h o u so b r e a ca b e ça , e n o O r i e n t e s u r g iu
e sp le n d o r o so o sol. Fiq u e i est át ico e o lh e i d esor ien t ad o, e car ga p esad a o p r i m i u
m i n h a a lm a . M a s o p á ssa r o b r a n co q u e est ava p o u sad o e m m e u o m b r o d is s e - m e 2 5 2 :

249 Nota à margem no volume caligráfico: "25 de fevereiro de 1923. A transformação da magia negra em
branca".
250 27 de janeiro de 1914.
251 O esboço continua: "a cobra de meu caminho" (p. 4 6 0 ) .
252 No Livro Negro 4, quem diz isto é sua alma. Neste capítulo e nos Aprofundamentos encontramos uma mudança
na atribuição de algumas afirmações contidas nos Livros Negros: em vez de atribuídas à alma, passam a ser
atribuídas aos outros personagens. Pode-se considerar que esta revisão textual marca um importante
processo psicológico de diferenciação dos personagens, separando-os uns dos outros, e desidentificando-se
deles. Jung analisou este processo em geral em 1928, em Oeueo inconsciente, cap. 7: "A técnica de diferenciação
entre o eu e as figuras do inconsciente" ( O C, 7) . No Livro Negro 6, a alma de Jung explica-lhe em 1916: "Se eu
não me mantiver unido pela unificação do inferior e do superior, desintegro-me nas três partes: a Serpente,
344 LI BE R SECU N D U S 136/137

"D e i x a ch o ve r , d e i xa o ve n t o asso b iar , d e i xa q u e as á gu a s c o r r a m e q u e o fogo


a r d a e m ch a m a s. D e i x a a ca d a u m s e u c r e s c im e n t o , d e i xa ao q u e se va i t o r n a n d o
se u t e m p o ".

[2] 2. Re a l m e n t e , o c a m i n h o p a ssa p e lo c r u c ific a d o , ist o é, p o r a q u e le a


q u e m n ã o fo i p o u c o vi ve r s u a p r ó p r i a v i d a e q u e , p o r isso, fo i e le va d o à g l ó -
r ia . N ã o e n s i n o u c o n h e c i m e n t o n e m co isa s d ign a s d e s e r e m c o n h e c id a s, m a s
ele v i v e u ist o . N ã o d á p a r a d i z e r q u ã o gr a n d e d e ve se r a h u m i l d a d e d a q u e le
q u e t o m a so b r e s i a t a r e fa d e vi ve r s u a p r ó p r i a vid a . D ifíc il é d i m e n s i o n a r o
n o jo d a q u e le q u e d e se ja p e n e t r a r e m s u a p r ó p r i a vi d a . Ad o e c e fr e n t e à a ve r -
são. Vo m i t a so b r e s i m e s m o . Su a s e n t r a n h a s se r e vo l t a m , se u c é r e b r o d esfalece.
Exc o g i t a t o d o t ip o d e a r d i l q u e l h e p o s s ib ilit e a fu ga, p o is n a d a se c o m p a r a ao
t o r m e n t o d o p r ó p r i o c a m i n h o . P a r e ce se r p e n o s o ao im p o s s íve l, t ã o p e n o s o
q u e d i fi c i l m e n t e h a ve r á o u t r a c o is a q u e n ã o se p r e fi r a a est e t o r m e n t o . N ã o s ã o
p o u co s q u e a t é a m a m as p esso as p o r m e d o d e s i m e s m o s . Ac r e d i t o q u e t a m b é m
e xi s t e m aq u eles q u e c o m e t e m u m c r i m e p a r a e n c o n t r a r u m a r g u m e n t o c o n t r a
si m e s m o s . P o r isso a fe r r o - m e a t u d o q u e m e ve d a o c a m i n h o p a r a m i m m e s m o .

3 . 2 5 3 Q u e m va i ao e n c o n t r o d e s i m e s m o d esce. A o gr a n d e p r o fe t a , q u e p r e -
c e d e u e st a n o ssa é p o c a , a p a r e c e r a m figu r as la m e n t á ve i s e r id ícu la s; elas e r a m as
figu r as d e s e u p r ó p r i o ser. E l e n ã o as a c e it o u , e r e m e t e u - a s a o u t r o . M a s fi n a l -
m e n t e vi u - s e o b r iga d o a fa z e r u m a c e ia c o m s u a p r ó p r i a p o b r e z a e a ce it a r p o r
c o m p a i xã o aq u elas figu r a s d e s e u p r ó p r i o ser, c o m p a i xã o essa q u e é a a c e it a ç ã o
d o í n fi m o e m n ó s 2 5 4 . M a s e n t ã o e n fu r e ce u - se o le ã o d e s e u p o d e r e a fu ge n t o u

e enquanto tal ou em outra forma animal vagueio por aí, vivendo fatidicamente a natureza, infundindo
medo e anseio. A alma humana, aquilo que vive sempre contigo. A alma celeste, e como tal eu permaneço então
junto aos deuses, longe de t i e desconhecida a t i, aparecendo em forma de pássaro" (Apêndice C, p. 511).
As mudanças textuais que Jung faz entre a alma, a serpente e o pássaro dos Livros Negros neste capítulo e nas
Provações podem ser consideradas como o reconhecimento e diferenciação da tríplice natureza da alma. A
noção de Jung da unidade e multiplicidade da alma tem semelhanças com Eckhart. No Sermão 52 Eckhart
escreveu: "A alma com seus poderes superiores toca a eternidade, que é Deus, enquanto seus poderes
inferiores, estando em contato com o tempo, a tornam sujeita à mudança e inclinada a coisas corporais, que
a degradam" (Sermons efTreatises. Vol. 2. Londres: Watkins, 1981, p. 55 [Trad. de O .C. Washe]). No Sermão 85
escreveu: "Três coisas impedem a alma de unir-se com Deus. A primeira é que ela é por demais dispersa, e
não é unitária: porque, quando a alma está inclinada a criaturas, ela não é unitária. A segunda é quando ela
está envolvida com coisas temporais. A terceira é quando ela está voltada para o corpo, pois então ela não
consegue unir-se com Deus" (ibid., p. 264).
253 O esboço continua: "To r que', perguntas, 'o ser humano não quer ir a seu próprio encontro?' O profeta
delirante, que precedeu este tempo, escreveu um livro que enfeitou com um título imponente. Neste livro
podes ler como e por que o ser humano não quer ir ao encontro de si mesmo" (p. 461). A referência é ao
livro Assim falava Zaratustra, de Nietzsche.
254 C f "A ceia", em Assim falava Zaratustra, p. 355S.
O CAM I N H O DA CRU Z 345

o p e r d i d o e d e vo lvid o p a r a a e s c u r id ã o d a p r o fu n d e z a 2 5 5 . E , c o m o u m p o d e r o -
so, q u is a q u e le c o m o gr a n d e n o m e i r r o m p e r à s e m e l h a n ç a d o so l, d o se io d as
m o n t a n h a s 2 5 6 . M a s o q u e lh e a co n t e ce u ? Se u c a m i n h o o l e vo u p a r a d ia n t e d o
c r u c ific a d o , e ele c o m e ç o u a e sb r a ve ja r . E l e e n fu r e c e u - se c o n t r a o h o m e m d o
e s c á r n io e d as d o r e s, p o r q u e a fo r ç a d o se u p r ó p r i o se r o o b r igo u a se gu ir est e
c a m i n h o , a s s im c o m o o fez o C r i s t o a n t e s d e n ó s . M a s ele a n u n c i o u e m vo z a lt a
se u p o d e r e su a gr a n d e z a . N i n g u é m fa la va m a is a lt o d e s e u p o d e r d o q u e a q u ele
d e q u e m fu gia o c h ã o sob os p é s. Fi n a l m e n t e fo i a t in gid o p e lo í n fi m o n e le , a
i m p o t ê n c i a , e e st a c r u c i fi c o u se u e sp ír it o , p o r t a n t o , c o m o ele m e s m o p r e d isse ,
qu e su a a lm a m o r r e r ia an t es qu e seu c o r p o 257.
4. N i n g u é m so b e a c i m a d e si m e s m o q u e n ã o t e n h a e m p r e ga d o as a r m a s
m a is p e r igo sa s c o n t r a si m e s m o . Al g u é m q u e d e se ja s u b ir a c i m a d e s i m e s m o
d e sça , ca r r e gu e - se c o m o p e so d e si m e s m o e a r r a st e a s i m e s m o p a r a o lu ga r d o
sa cr ifício . M a s q u a n t a c o is a p r e c is a a c o n t e c e r à p e sso a a t é p e r c e b e r q u e o ê xit o
e xt e r n o e visíve l, q u e se d e i xa p e ga r c o m as m ã o s , / é u m c a m i n h o e r r a d o . P o r 136/ 137

q u a n t o s o fr i m e n t o d e ve p a ssa r a h u m a n i d a d e a t é q u e o se r h u m a n o p a r e d e
sa cia r s u a a m b i ç ã o d e p o d e r e m seu s s e m e lh a n t e s e d e q u e r ê - l o i m p o r s e m p r e
aos o u t r o s . Q u a n t o sa n gu e a i n d a d e ve c o r r e r a t é q u e se a b r a m os o lh o s d o se r
h u m a n o e ele ve ja s e u c a m i n h o e s e u p r ó p r i o i n i m i g o e a t é q u e se d ê c o n t a d e
seu s ve r d a d e ir o s ê xit o s . T u d e ve s p o d e r vi ve r co n t igo m e s m o e n ã o à c u s t a d e
t e u vi z i n h o . O a n i m a l d e r e b a n h o n ã o é o p a r a s it a e e s p ír it o a t o r m e n t a d o r d e
se u ir m ã o . Se r h u m a n o , t u e sq u e ce st e a t é m e s m o q u e t a m b é m és u m a n i m a l .
T u c o n t in u a s a c r e d it a n d o q u e é m e l h o r e st a r lá o n d e n ã o e st á s. A i d e t i se t e u
v i z i n h o t a m b é m p e n s a r a ssim . M a s p o d e s e st a r c e r t o d e q u e ele t a m b é m p e n s a
a ssim . Al g u é m d e ve c o m e ç a r a n ã o ser m a is i n fa n t i l .

5. T e u d e se jo se sa cia e m t i . N ã o p o d e s le va r a t e u D e u s a l i m e n t o s s a c r i -
ficia is m a i s va lio so s d o q u e a t i m e s m o . Q u e t u a vo r a c id a d e t e e n gu la , e n t ã o

255 No último capítulo de Assim falava Zaratustra, "O sinal", quando o homem superior veio para encontrar-
se com Zaratustra em sua caverna, "o leão afastou-se rapidamente de Zaratustra e precipitou-se para a
caverna, rugindo furiosamente" (p. 39 7) . Em 1926, Jung observou: "Rugindo, o leão zaratustriano fazia
com que todos os homens 'superiores', que clamavam pela participação vital, regressassem à caverna do
inconsciente. Logo, sua vida não demonstra seu ensinamento" ( O C, 7, § 37).
256 Nietzsche termina Assimfalava Zaratustra com as palavras: "Assim falou Zaratustra e afastou-se da caverna,
ardente e vigoroso como o sol matinal, que surge dos sombrios montes" (p. 39 7) .
257 No prólogo de Zaratustra, um malabarista caiu da corda bamba. Zaratustra disse ao malabarista da corda
bamba: "Tua alma vai morrer mais depressa ainda que teu corpo. Não temas mais" (Zaratustra, § 6, p. 30.
Sublinhado como no exemplar de Jung, p. 22) . Em 1926, Jung falou que isto foi uma visão profética do
próprio destino de Nietzsche (cf. O C , 7, § 36 - 4 4 ) .
346 LI BER SECU N D U S 137/ 138

e la ficará ca n sa d a e q u ie t a , e t u d o r m i r á s b e m e o lh a r á s o so l d e c a d a d i a c o m o
u m p r e se n t e . Se t u d e vo r a s o u t r o e m a is o u t r o e m ve z d e t i , t u a vo r a c id a d e
p e r m a n e c e e t e r n a m e n t e in s a t is fe it a , p o is e la e xige m a is , e xige o m a is va lio so ,
exige a t i . E a s s im fo r ça s t u a a m b i ç ã o so b r e t e u p r ó p r i o c a m in h o . T u go st a r ia s
d e i m p l o r a r a o u t r o s , à m e d i d a q u e p r e cisa s d e c o n s e lh o e a ju d a . M a s e xigir
n ã o d e ve s d e n i n g u é m , a m b i c i o n a r n ã o d e ve s d e n i n g u é m , e sp e r a r n ã o d e ve s
d e n i n g u é m , a n ã o se r d e t i m e s m o . P o is t e u d e se jo só se sa cia e m t i m e s m o . T u
t e m e s q u e i m a r - t e e m t e u p r ó p r i o fogo. D i s s o n a d a t e p o d e im p e d ir , n e m c o m -
p a ixã o e s t r a n h a e n e m c o m p a i xã o p e r igo sa d e t i m e s m o . P o is co n t igo m e s m o
d e ve s vi ve r e m o r r e r .
6. Q u a n d o a c h a m a d a t u a vo r a c id a d e t e d e vo r a e n a d a s o b r a d e t i a n ã o
ser c in z a s , e n t ã o n a d a h a vi a e m t i q u e su b sist isse . M a s a c h a m a n a q u a l t e c o n -
s u m is t e i l u m i n o u a m u it o s . M a s se t u , c h e io d e m e d o , foges d e t e u fogo, c h a -
m u sca s t e u s se m e lh a n t e s, e o t o r m e n t o a r d e n t e d e t u a vo r a c id a d e n ã o p o d e
a p a ga r -se e n q u a n t o n ã o d e se ja r e s a t i m e sm o .
7. D a b o c a sai a p a la vr a , o s in a l e o s ím b o lo . Se a p a la vr a fo r u m s in a l, e n t ã o
n ã o s ign ific a n a d a . M a s se a p a la vr a fo r u m s ím b o lo , s ign ific a t u d o 2 5 8 . Q u a n d o
o c a m i n h o e n t r a n a m o r t e , e n ó s e st a m o s e n vo lt o s e m p u t r e fa ç ã o e n o jo , so b e
e n t ã o n a e s c u r id ã o o c a m i n h o e sa i d a b o ca , c o m o o s í m b o l o salvad o r , a p a la vr a .
El e c o n d u z p a r a c i m a o so l, p o is n o s í m b o l o e st á a sa lva çã o d o s co a gid o s e a fo r -
ça h u m a n a q u e l u t a c o m a e scu r id ã o . N o s s a lib e r d a d e n ã o e st á fo r a d e n ó s , m a s
d e n t r o d e n ó s . Ext e r n a m e n t e , p o d e m o s e st a r a m a r r a d o s , e a s s im m e s m o n o s
s e n t i r m o s livr e s, p o r q u e a r r e b e n t a m o s as a m a r r a s in t e r io r e s . P o d e m o s c o n -
q u is t a r a lib e r d a d e e xt e r i o r a t r a vé s d e u m a gir vigo r o so , c o n t u d o a lib e r d a d e
i n t e r i o r só a c r ia m o s a t r a vé s d o s ím b o lo .
8. O s í m b o l o é a p a la vr a q u e sa i d a b o ca , q u e a ge n t e n ã o fala, m a s q u e so b e
d a p r o fu n d e z a d o s i - m e s m o c o m o u m a p a la vr a d a fo r ça e d a n e ce ssid a d e e q u e
in e s p e r a d a m e n t e se c o lo c a so b r e a lín gu a . E u m a p a la vr a s u r p r e e n d e n t e e q u e
a p a r e ce a le a t o r ia m e n t e , m a s a ge n t e a r e c o n h e c e c o m o s í m b o l o n o fat o d e ser
e s t r a n h a ao a sp e ct o c o n sc ie n t e . Q u a n d o a ge n t e a c e it a o s í m b o l o é c o m o se
u m a p o r t a se a b r isse p a r a u m n o vo e s p a ç o d e c u ja e xis t ê n c ia n a d a s a b ía m o s
a n t e r i o r m e n t e . M a s q u a n d o n ã o se a c e it a o s ím b o lo , é c o m o se p a s s á s s e m o s

258 Para a diferenciação que Jung faz de sinais e símbolos, cf. Tipos psicológicos (1921) ( O C, 6, § 903S.).
O CAM I N H O DA CRU Z 347

d e sa t e n t o s p o r e st a p o r t a ; e p e lo fat o d e se r a ú n i c a p o r t a q u e l e va aos a p o -

se n t o s i n t e r i o r e s , é p r e c iso p e ga r n o va m e n t e a e st r a d a e p r o sse gu ir e m t o d a s

as e xt e r io r id a d e s . M a s a a l m a so fr e n e ce ssid a d e , p o is a lib e r d a d e e xt e r i o r n ã o

lh e se r ve . A sa lva çã o é u m a lo n ga e st r a d a q u e l e va a t r a vé s d e m u i t a s p o r t a s.

A s p o r t a s sã o os s ím b o lo s . C a d a n o va p o r t a é a p r i n c í p i o in visíve l; é c o m o se

t ive sse q u e ser c r i a d a p r i m e i r a m e n t e / , p o is e la s e m p r e só e s t á a í q u a n d o n ó s

e sca va m o s a m a n d r á g o r a , o s ím b o lo .

P a r a e n c o n t r a r a m a n d r á g o r a , p r e c is a - s e d o c a c h o r r o p r e t o 2 5 9 , p o is é a s-

sim : o b e m e o m a l p r e cisa m se m p r e co n cilia r -se p r im e ir o , q u a n d o o sím b o lo

d e ve se r cr ia d o . O s í m b o l o n ã o p o d e se r id e a d o n e m i n ve n t a d o : ele se t o r n a .

Se u t o r n a r - s e é c o m o o t o r n a r - s e d o ser h u m a n o n o ve n t r e d a m ã e . A g r a vi -

d e z p o d e se r p r o vo c a d a p o r a c a s a la m e n t o fo r t u it o . M a s q u a n d o a p r o fu n d e -

z a c o n c e b e u , o s í m b o l o cr e sce p o r s i e n a sce d a c a b e ç a , c o m o c o n v é m a u m

D e u s . M a s lo go a m ã e go s t a r ia d e l a n ç a r - s e so b r e a c r i a n ç a c o m o u m m o n s t r o

e e n g o l i - l a n o va m e n t e .

D e m a n h ã , q u a n d o o n o vo s o l se le va n t a , sa i a p a la vr a d e m i n h a b o ca , m a s é

a ssa ssin a d a i m p i e d o s a m e n t e , p o is e u n ã o sa b ia q u e e la e r a o salvad o r . A c r i a n -

ça r e c é m - n a s c i d a cr e sce d e p r e ssa q u a n d o e u a a ce it o . E lo go t o r n o u - s e m e u

co ch e ir o . A p a la vr a é a c o n d u t o r a , o c a m i n h o d o m e io , q u e o s c ila le ve m e n t e

c o m o o fie l d a b a la n ç a . A p a la vr a é o D e u s q u e t o d a m a n h ã e m e r ge d as á gu a s e

a n u n c i a às n u ve n s a l e i o r ie n t a d o r a . L e i e xt e r n a e sa b e d o r ia e xt e r n a sã o e t e r -

n a m e n t e in sa t isfa t ó r ia s, p o is só e xis t e u m a l e i , só u m a sa b e d o r ia , ist o é, m i n h a

l e i d e t o d o d ia , m i n h a sa b e d o r ia d e t o d o d ia . E m c a d a n o i t e r e n o va - s e o D e u s .

O D e u s a p a r e ce e m m ú lt ip la s fo r m a s ; p o is, q u a n d o ele se m a n ife s t a , t e m

e m s i algo d o c a r á t e r d a n o it e e d as á gu a s n o t u r n a s e m q u e c o c h i l o u e e m q u e

l u t o u n as ú lt im a s h o r a s d a n o i t e p o r s u a r e n o va ç ã o . P o r isso s u a m a n ife s t a ç ã o é

d is c r e p a n t e e e q u ívo c a ; e la é i n c l u s i ve d ila c e r a n t e p a r a o c o r a ç ã o e a r a z ã o . E m

su a a p a r iç ã o , o D e u s m e c h a m a p a r a a d i r e i t a e a e sq u e r d a , d e a m b o s os la d o s

so a p a r a m i m se u ch a m a d o . M a s o D e u s n ã o q u e r n e m o u m e n e m o o u t r o . E l e

q u e r o c a m i n h o d o m e io . O m e i o é o c o m e ç o d o lo n go t r a je t o.

259 A mandrágora é uma planta cujas raízes têm alguma semelhança com a figura humana, e por isso tem
sido usada em ritos mágicos. Segundo a lenda, ela solta gritos agudos quando é arrancada do solo. Em "Der
philosophische Baum " (19 45), Jung observou, a respeito da mandrágora, que ela "lança o primeiro grito
quando, amarrada à cauda de um cão preto, é arrancada da terra" ( O C, 13, § 4 10 ) .
348 LI BE R SECU N D U S 138/ 139

M a s est e c o m e ç o , o ser h u m a n o n ã o o p o d e ve r n u n c a , ele só vê s e m p r e o

u m o u o o u t r o , o u o u m e o o u t r o , m a s n u n c a a q u ilo q u e o u m b e m c o m o o o u -

t r o e n c e r r a m e m s i. O p o n t o d o c o m e ç o é a i m o b i l i d a d e d a r a z ã o e d a vo n t a d e ,

u m e st a d o d e s u s p e n s ã o , q u e c h a m a p a r a fo r a m i n h a in s u b o r d in a ç ã o , m i n h a

t e i m o s i a e fi n a l m e n t e m e u gr a n d e p avo r . P o is n ã o ve jo m a is n a d a e n ã o p o sso

q u e r e r m a is n a d a . A o m e n o s é ist o q u e m e p a r e ce . O c a m i n h o é u m a e s t r a n h a

p a r a lis a ç ã o d e t u d o a q u ilo q u e a n t iga m e n t e e r a m o vi m e n t o , u m a e sp e r a cega,

u m e scu t a r d e sco n fia d o e m vo l t a e u m t a t e a r d e sco n fia d o e m vo lt a . A ge n t e

a ch a q u e p r e c is a e xp lo d ir . M a s é p r e c is a m e n t e d e ssa t e n s ã o q u e n a sce o r e sga -

t a d o r , e ele e st á q u a se s e m p r e a í o n d e a ge n t e m e n o s d e sco n fia .

M a s o q u e é o r e sga t a d o r ? É s e m p r e algo m u i t o a n t igo e e xa t a m e n t e p o r isso

algo n o vo , p o is algo p a ssa d o d e h á m u i t o , q u e h o je r e t o r n a n u m m u n d o t r a n s -

fo r m a d o , é n o vo . G e r a r algo a n t i q u í s s i m o p a r a d e n t r o d e u m t e m p o é cr ia çã o .

E c r ia ç ã o d o n o vo , e est e m e li b e r t a . Li b e r t a ç ã o é d e so b r iga r d a t a r e fa . Ta r e fa

é ge r a r p a r a d e n t r o d o n o vo t e m p o algo ve lh o . A a l m a d a h u m a n i d a d e é c o m o

a gr a n d e r o d a d o z o d í a c o q u e g ir a so b r e o c a m i n h o . T u d o o q u e, e m c o n s t a n t e

m o vi m e n t o , v e m d e b a ixo p a r a o a lt o já e st a va a n t iga m e n t e n o alt o. N ã o é u m a

p a r t e d a r o d a q u e n ã o vo lt a r i a . P o r isso flui o u t r a ve z p a r a c i m a o q u e já fo i, e

o q u e já fo i se r á n o va m e n t e . P o is sã o t o d as co isas cu ja s p r o p r ie d a d e s in a t a s sã o

d a n a t u r e z a h u m a n a . P e r t e n c e à n a t u r e z a d o m o vi m e n t o p a r a fr e n t e q u e a q u ilo

q u e já fo i r e t o r n e 2 6 0 . Só u m ign o r a n t e p o d e a d m i r a r - s e d isso . N o e t e r n o r e t o r -

n o d o id ê n t ic o n ã o e st á o s e n t i d o 2 6 1, m a s n o m o d o d e s u a r e c r ia ç ã o n o t e m p o .

26 0 O esboço continua: "Tudo é sempre a mesma coisa e, no entanto, não é a mesma coisa, pois a roda vai
girando sobre a longa estrada. Mas o caminho leva por vales e montes. O movimento da roda e a idêntica
volta de suas partes individuais é indispensável ao carro, mas o sentido está no caminho. O sentido só é
alcançado pelo constante girar e movimento para frente. Faz parte da natureza do movimento para frente
que aquilo que já foi retorne. Disso só um ignorante pode admirar-se. Por ignorância, revoltamo-nos
contra o retorno necessário do idêntico e, por avidez, nós nos deixamos lançar pela roda para cima e para
frente no movimento ascensional, porque achamos que com essa parte da roda chegaremos sempre mais
alto. Mas não chegamos mais alto e sim mais fundo e finalmente estaremos bem embaixo. Exalte, portanto,
a imobilidade, pois ela lhe mostra que não estás amarrado aos raios da roda como íxion , mas que estás
sentado ao lado do cocheiro que te explicará o sentido do caminho" (p. 4 6 9 - 4 7 0 ) . Na mitologia grega,
íxion era o filho de Ares. Ele tentou seduzir Hera, e Zeus o castigou amarrando-o a uma roda de fogo que
girava sem parar.
261 A noção de que todas as coisas retornam encontra-se em várias tradições, como o estoicismo e o
pitagorismo, e figura em lugar de destaque na obra de Nietzsche. Tem-se discutido muito, nos estudos
nietzschianos, se deve ser entendida primariamente como um imperativo ético de afirmação da vida
ou como uma doutrina cosmológica. C f LÕ W I T H , K. NíetzschêsDoctríneofthe Eternal Recurrenceofthe Same.
Berkeley: University of Califórnia Press, 1977 [Trad. de J. Lom ax]. Jung discute isto em 1934, em Níetzschês
Zaratustra. Vol. 1, p. 191-192.
O M AGO 349

O s e n t id o e s t á n o m o d o e n a o r i e n t a ç ã o d a r e cr ia çã o . M a s c o m o c r i o p a r a

m i m o c o c h e ir o ? O u go st a r ia d e se r e u m e u p r ó p r i o c o c h e ir o ? E u s ó p o sso

g u i a r - m e p e la vo n t a d e e p e la in t e n ç ã o . M a s vo n t a d e e i n t e n ç ã o sã o a p e n a s p a r -

t es d e m e u s i- m e s m o . P o r isso n ã o b a s t a m p a r a e xp r e ssa r m e u t o d o . I n t e n ç ã o é

o q u e p o sso t e r e m vis t a , e vo n t a d e é q u e r e r u m o b je t ivo p r e d e t e r m in a d o . M a s

d o n d e t i r o o o b je t ivo ? T i r o - o d a q u ilo q u e m e é c o n h e c id o a t u a lm e n t e . P o r t a n -

t o, co lo co o p r e se n t e n o lu ga r d o fu t u r o . D e s s a / fo r m a n ã o p o sso a lc a n ç a r o f u -

t u r o , m a s e u ge r o a r t i fi c i a l m e n t e u m c o n s t a n t e p r e se n t e . T u d o o q u e p r e t e n d e

i n t e r fe r i r n e st e p r e se n t e , e u o t o m o c o m o d i s t ú r b i o e p r o c u r o a fa st á - lo , a f i m

d e q u e m i n h a i n t e n ç ã o p e r m a n e ç a i n c ó l u m e . E a s s im e l i m i n o o p r o gr e sso d a

vid a . M a s c o m q u e p o sso se r c o c h e ir o a n ã o se r c o m a vo n t a d e e a in t e n ç ã o ? E

p o r isso t a m b é m q u e u m sá b io n ã o d e se ja se r c o c h e ir o , p o is sab e q u e a vo n t a d e

e a i n t e n ç ã o a lc a n ç a m o b je t ivo s, m a s i m p e d e m o v i r a se r d o fu t u r o .

O fu t u r o se p r o d u z fo r a d e m i m , e u n ã o o co n st r u o , m a s a s s im m e s m o e u o

co n st r u o , n ã o c o m in t e n ç ã o e vo n t a d e , m a s t a m b é m c o n t r a a in t e n ç ã o e a vo n t a -

d e. Se e u q u ise r c o n s t r u i r o fu t u r o , t r a b a lh o c o n t r a o m e u fu t u r o . E se n ã o q u ise r

c o n s t r u í- lo , n ã o t o m o p a r t e su ficie n t e n a c o n s t r u ç ã o d o fu t u r o , e t u d o a c o n t e -

c e r á se gu n d o le is in e vit á ve is d as q u a is se r e i vít im a . P a r a co n st r a n ge r o d e st in o ,

os a n t igo s i n ve n t a r a m a m a gia . P r e c is a va m d e la p a r a d e t e r m i n a r o d e st in o e x-

t e r n o . N ó s p r e cisa m o s d e la p a r a d e t e r m i n a r o d e st in o i n t e r n o e e n c o n t r a r o

c a m i n h o q u e n ã o p o d e m o s im a gin a r . P e n s e i lo n ga m e n t e so b r e o m o d o c o m o

e st a m a gia d e ve r ia ser. Ac a b e i n ã o ch e ga n d o a n a d a . Q u e m n ã o co n segu e ch egar

a a lgu m a c o n c lu s ã o p o r si m e s m o d e ve p r o c u r a r e n s in a m e n t o ; e n t ã o fu i p a r a u m

p a ís d is t a n t e o n d e m o r a u m gr a n d e m ago, c u ja fa m a m e ch e ga r a aos o u vid o s.

O m ago 26 2
Ca p . x x i .

263
[ I H : 139] {i }[ i ] A p ó s lo n ga p r o c u r a , e n c o n t r e i a p e q u e n a casa, n o ca m p o ,

d ia n t e d a q u a l se e s t e n d ia u m c a n t e ir o d e t u lip a s e m flo r e o n d e m o r a va m o

26 2 Em vez disso, o esboço m anuscrito tem: "Décim a aventura" (p. 1.061).


263 27 de janeiro de 1914.
35o LI BE R SECU N D U S 139/ 140

m a go O I A H M Q N ( Fi l ê m o n ) e B A Y K I S ( Bá u c i s ) . O I AH M É 2 N é u m m a go q u e
a i n d a n ã o c o n s e gu iu e xo r c i z a r a ve lh ic e , m a s q u e a vi ve c o m d ign id a d e , e su a
m u l h e r n a d a m a is p o d e d o q u e fa z e r o m e s m o 2 6 4 . Se u s in t e r e sse s n a v i d a p a r e -
c e m t e r fica d o r e s t r it o s , a t é m e s m o in fa n t is . El e s r e ga m se u c a n t e ir o d e t u lip a s
e fa la m e n t r e si d as flores q u e r e c é m - d e s a b r o c h a r a m . Se u s d ia s vã o se a p a ga n d o
n u m lu sco - fu sco p á li d o e o scila n t e , i l u m i n a d o p elas lu z e s d o p assad o, p o u c o
t e m e r o s o d a e s c u r id ã o d a q u e le q u e vir á .
P o r q u e O I A H M Q N é u m m a g o ? 2 6 5 C o m s u a m á gic a , ele e st á a r r a n ja n d o a
i m o r t a l i d a d e , u m a v i d a n o a lé m ? E l e só fo i m a go p o r vo c a ç ã o , m a s a go r a p a r e ce
u m m a go a p o se n t a d o , q u e se r e t i r o u d o n e gó c io . Ext i n g u i r a m - s e n e le o d e se jo

26 4 Nas Metamorfoses, Ovídio conta a história de Filêmon e Báucis. Júpiter e Mercúrio vão andando,
disfarçados de mortais, na região montanhosa da Frigia. Procuravam um lugar para descansar e foram
barrados em m il lares. Um casal de velhos os acolheu. Haviam casado em sua cabana quando jovens e
envelheceram juntos e aceitavam contentes sua pobreza. Prepararam uma refeição para os hóspedes.
Durante a refeição, viram como a jarra, logo que era esvaziada, enchia-se de novo automaticamente. Em
honra de seus hóspedes, prontificaram-se a matar o único ganso que tinham. O ganso refugiou-se junto
aos deuses, que disseram que ele não deveria ser morto. O s deuses revelaram-se e disseram ao casal que
a vizinhança seria castigada, mas eles dois seriam poupados, e pediram-lhes que subissem à montanha
com eles. Quando chegaram ao topo, viram que a região ao redor de sua cabana havia sido inundada
pela água, e apenas a cabana permanecia, transformada num templo com colunas de mármore e teto
de ouro. O s deuses perguntaram-lhes qual era o seu desejo, e Filêmon respondeu que gostariam de ser
seus sacerdotes e servir no seu templo e também que pudessem morrer juntos. Seu desejo foi acolhido e,
quando morreram, transformaram-se em árvores uma ao lado da outra. No Fausto 2, ato V, de Goethe, um
andarilho, que anteriormente fora salvo por eles, visita Filêmon e Báucis. Fausto estava construindo uma
cidade em terra recuperada ao mar. Fausto passa a dizer a Mefistófeles que ele quer que Filêmon e Báucis
sejam removidos. Mefistófeles e três homens fortes foram e incendiaram a cabana, com Filêmon e Báucis
dentro. Fausto respondeu que ele apenas queria mudar a moradia deles. A Eckermann, Goethe contou que
"meu Filêmon e Báucis [...] nada têm a ver com aquele antigo casal famoso ou com a tradição ligada a eles.
Dei a este casal os nomes apenas para exaltar seus personagens. As pessoas e as relações são semelhantes e
daí o uso dos nomes causa um bom efeito" ( 6 de junho de 1831, apud G O E T H E . Faust. Nova York: Norton
Crit icai Editions, 1976, p. 4 28 [trad. de W Ar n d t ]). A 7 de junho de 1955, Jung escreveu a Alice Raphael
uma carta em que faz referência aos comentários de Goethe a Eckermann: "Quanto a Filêmon e Báucis: uma
típica resposta goethiana a Eckermann! tentando ocultar seus vestígios. Filêmon (OlA,T| pa [philema] =
beijo), o carinhoso, o casal simples e carinhoso de velhinhos, apegados à terra e conscientes dos Deuses, o
oposto total do super-homem Fausto, produto do demónio. A propósito: em minha torre em Bollingen
há uma inscrição escondida: Phílemonís sacrum Faustípoenitentía [Santuário de Filêmon, Arrependimento de
Fausto]. Quando encontrei pela primeira vez o arquétipo do velho sábio, ele se chamava a si mesmo
Filêmon. / Na alquimia F. e B. representavam o artifex ou vir sapiens e a soror mystica (Zosimos-Theosebeia,
Nicolas Flamel-Péronelle, Mr. South e sua filha no século X I X ) e o par no mutus liber (por volta de
1677)". Beineke Fibrary, Yale University. Sobre a inscrição de Jung, cf. também sua carta a Herm an n
Keyserling, de 2 de janeiro de 1928 (Cartas, l, p. 6 5) . A 5 de janeiro de 1942, Jung escreveu a Paul Schmitt:
"[constatei que eu] havia assumido Fausto como herança, e isso como advogado e vingador de Filêmon e Báucis
que, diferentemente do super-homem Fausto, são os hospedeiros dos deuses numa época de infâmia e
esquecimento de Deus" (Cartas, l, p. 316).
265 Em Tipos psicológicos (19 21), no contexto da discussão sobre Fausto, Jung escreveu: "O feiticeiro preservou
um pedaço do paganismo antigo; ele mesmo possui em si uma natureza que não foi atingida pela
dilaceração cristã; isto é, tem acesso ao inconsciente que ainda é pagão onde os opostos ainda estão lado
a lado em ingenuidade original, e que está além de toda pecaminosidade, mas, quando assumido na vida
consciente, está apto a produzir com a mesma força original e, portanto, demoníaca, tanto o mal quanto
o bem... Por isso é um destruidor e também um salvador. Esta figura é, portanto, a mais indicada para se
tornar a imagem simbólica de uma tentativa de união" ( O C, 6, § 314).
O M AGO 351

ve e m e n t e e o d i n a m i s m o e, p o r m e r a i m p o t ê n c i a , go z a d o b e m m e r e c i d o d e s-
ca n so , c o m o t o d a p e sso a id o sa , q u e n a d a m a is p o d e fa z e r d o q u e p l a n t a r t u lip a s
e r ega r s e u p e q u e n o j a r d i m . A v a r i n h a d e c o n d ã o e st á gu a r d a d a n o a r m á r i o
d e p a r e d e ju n t a m e n t e c o m o se xt o e s é t i m o livr o s d e M o i s é s 2 6 6 e d o Li v r o d a
Sa b e d o r ia d e E P M H E T P I S M E r i X T O i : [ H e r m e s T r i s m e g i s t o ] 2 6 7 . O I A H M Q N
fic o u ve lh o e u m p o u c o d e m e n t e ; p o r u m b o m d o n a t ivo e m m o e d a s so n a n t e s
o u p a r a a c o z i n h a , a i n d a m u r m u r a a lgu m a s fó r m u la s m á gic a s e m p r o l d o ga d o
e n fe it iç a d o . M a s é i n c e r t o se a i n d a sã o as fó r m u la s co r r e t a s e se ele e n t e n d e
se u se n t id o . T a m b é m e st á c la r o q u e n ã o i m p o r t a o q u e ele m u r m u r a , / t a lve z o 139/ 140

ga d o fiq u e b o m p o r s i m e s m o . Lá va i o ve lh o O I A H M Í 2 N p e lo j a r d i m , e n c u r va -
d o, c o m o r e ga d o r n a s m ã o s t r é m u la s . B A Y K I E e st á à ja n e l a d a c o z i n h a e o l h a
p a r a ele c o m i n d i fe r e n ç a a p á t ica . E l a já v i u e st a c e n a m i l h a r e s d e ve z e s - ca d a
ve z algo m a i s d e c r e p it a m e n t e , m a is fr a c a m e n t e , c a d a ve z e n xe r ga m e n o s , p o is
a fo r ç a d e seu s o lh o s e st á d i m i n u i n d o aos p o u c o s 2 6 8 .
E u e st o u p a r a d o n o p o r t ã o d o ja r d i m . Ele s n ã o n o t a r a m a p r e s e n ç a d o e st r a -
n h o . "Fi l ê m o n , ve lh o fe it ice ir o , c o m o est ás p assan d o ?", falo e m vo z alt a. El e n ã o
m e o u ve, p ar ece c o m p le t a m e n t e su r d o . E u v o u at r ás d ele e o segu r o p e la m a n ga
d a ca m isa . El e se v i r a e m e c u m p r i m e n t a s e m je it o e t r é m u lo . T e m u m a b a r b a
b r a n ca , cab elos b r a n co s e r alo s e u m r o st o en r u gad o , m a s n est e r o st o p ar ece h a ve r
algo. Seu s o lh o s sã o b a ç o s e ve lh o s, m a s n eles u m a co isa é e st r a n h a , p o d e r - s e - ia
d iz e r , viva . "Vo u b e m , e st r a n h o ", r e sp o n d e u , "m a s o q u e q u er es d e m i m ? "

E u : "D i s s e r a m - m e q u e t u és e n t e n d i d o e m m a gia n e gr a . I n t e r e s s o - m e p e lo
a ssu n t o . P o d e r ia s c o n t a r - m e algo so b r e e la ?"
O : " O q u e d e vo c o n t a r ? N ã o h á n a d a p a r a c o n t a r ".
E u : " N ã o fiq u e s z a n ga d o , ve lh o , e u go st a r ia d e a p r e n d e r a lgu m a co isa ".
O : " T u és c e r t a m e n t e m a is in s t r u íd o d o q u e e u . O q u e p o d e r ia e u e n s in a r - t e ?"

E u : " N ã o sejas avar o . C o m c e r t e z a n ã o lh e fa r e i c o n c o r r ê n c ia . Só m e ca u sa


a d m i r a ç ã o o q u e t u fazes e e n fe it iç a s ".

26 6 O sexto e sétimo livros de Moisés (isto é, em aditamento aos cinco contidos na Torá) foram publicados
em 1849 por Johann Schiebel, que afirmou que eles provinham de antigas fontes talmúdicas. A obra é um
compêndio de fórmulas mágicas cabalísticas que haviam gozado de uma popularidade permanente.
26 7 A figura de Hermes Trismegisto foi formada por amálgama de Hermes com o Deus egípcio Toth. Foi
atribuído a ele o Corpus Hermetícum, coleção de textos majoritariamente alquímicos e mágicos, datados do
início da era cristã, mas inicialmente considerados muito mais antigos.
26 8 No Fausto, de Goethe, Filêmon fala do declínio de suas forças: "Mais velho, eu não estava à disposição
/ Não era útil como de costume / E à medida que minhas forças diminuíam / Também a onda já havia
passado" ( F. I 110 8 7-9 ) .
352 LI BE R SECU N D U S 140/ 141

O : " O q u e q u e r e s? E m t e m p o s p assad o s, e u a ju d e i cá e lá p esso as c o n t r a a


d o e n ç a e d a n o s d e vá r io s t ip o s".
E u : "C o m o fazes is t o ?"
O : " B e m s im p le s m e n t e , c o m s im p a t ia ".
E u : "E s t a p a la vr a , m e u ve lh o , so a c ó m i c a e a m b í g u a ".
O : " C o m o a s s im ?"
E u : "P o d e r i a sign ifica r : T u a ju d a st e as p esso as a t r a vé s d e p a r t ic ip a ç ã o p e sso -
a l o u c o m m e io s su p e r st icio so s, d e s i m p a t i a ".
O : "Be m , t a lve z t e n h a sid o a m b a s as co isa s".
E u : " E ist o e r a t o d a s u a m a gia ?"
O : " E u se i m a i s ".
E u : " O q u e é? Fa la ".

O : "I s t o n ã o t e in t e r e ssa . T u és m a l c r i a d o e i m p e r t i n e n t e ".


E u : "P o r favor , n ã o le ve s a m a l m i n h a c u r io sid a d e . Re c e n t e m e n t e o u vi fa la r
d a m a g ia q u e d e s p e r t o u m e u in t e r e sse p a r a e st a a r t e d o p assad o. En t ã o v i m
i m e d i a t a m e n t e a t i , p o r q u e o u vi d i z e r q u e er as e n t e n d i d o n a m a gia n e gr a . Se
a i n d a h o je e n s in a s s e m n a s U n i ve r s i d a d e s a m a gia , e u a t e r i a e st u d a d o lá. M a s já
faz m u i t o t e m p o q u e a ú lt i m a e sco la , q u e e n s i n a va as fo r ça s m á gic a s , fo i fe c h a -
d a . H o j e e m d i a n e n h u m p r o fe sso r sab e m a is n a d a so b r e m a gia . P o r t a n t o , n ã o
fiq u e s i r r i t a d o n e m sejas avar o , m a s d e i xa - m e sab er algo d e t u a a r t e . T u n ã o va is
q u e r e r le va r t eu s se gr e d o s c o n t igo p a r a o t ú m u l o ?"

O : " T u só ca ço a s d isso. P o r q u e d e ve r i a e u d i z e r - l h e a lgu m a co isa? É m e l h o r


q u e t u d o se ja e n t e r r a d o co m igo . Al g u é m , m a is t a r d e , p o d e d e s c o b r ir ist o d e
n o vo . A h u m a n i d a d e n ã o va i fic a r p r i va d a d e la , p o is a m a g ia r e n a sce c o m t o d o
ser h u m a n o ".

E u : " C o m o e n t e n d e s ist o ? Ac r e d i t a s q u e a m a gia é r e a l m e n t e i n a t a n o se r


h u m a n o ?"

O : " E u d ir ia : s i m , n a t u r a l m e n t e . M a s t u o ach as r id íc u lo ".


E u : "N ã o , d e ssa ve z n ã o e s t o u r i n d o , p o is já m e a d m i r e i m u i t a s ve z e s c o m
o fat o d e q u e t o d o s os p o vo s, e m t o d o s os t e m p o s e m t o d o s os lu ga r e s t ê m os
m e s m o s r it o s m á gic o s . E u m e s m o já p e n s e i a m e s m a c o is a q u e t u ".

O : " O q u e ach as d a m a gia ?"

E u : " D i t o a b e r t a m e n t e : n a d a , o u m u i t o p o u co . P a r e c e - m e q u e a m a gia é
u m d o s r e cu r so s im a g in á r io s d a p e sso a i n fe r i o r i z a d a p e r a n t e a n a t u r e z a . Al é m
d isso , n ã o p o sso d e s c o b r ir o u t r o sign ifica d o c o m p r e e n s í ve l d a m a gia ".
O M AGO 353

O : "T a n t o a s s im s a b e m p r o va ve lm e n t e t a m b é m t e u s p r o fe sso r e s".


E u : "Si m , m a s o q u e sab es a r e sp e it o d isso ?"
O : " N ã o go st a r ia d e d i z ê - l o ".
E u : " N ã o p r o ce d a s t ã o m i s t e r i o s a m e n t e , ve lh o , s e n ã o d e vo a d m i t i r q u e n ã o
sab es m a is so b r e isso d o q u e e u ".
O : "P o i s a d m it e , se ist o t e a gr a d a ".
E u : " E m c o n c lu s ã o a e st a r e sp o st a , d e vo a d m i t i r q u e e n t e n d e s d isso algo
m a is d o q u e os o u t r o s 5 '.
Õ : " H o m e m e sq u isit o , c o m o és t e im o s o ! Ag r a d a - m e , p o r é m , q u e n ã o t e d e i -
xa s d e s e n c o r a ja r p o r t u a r a z ã o ".
E u : " E est e r e a l m e n t e o caso. Se m p r e q u e q u e r o a p r e n d e r e e n t e n d e r a lgu -
m a co isa , d e ixo e m ca sa m i n h a a s s i m c h a m a d a r a z ã o e d o u à q u e la co isa , q u e
d e se jo a d q u ir ir , a fé q u e n e c e s s a r ia m e n t e e xige . E u a p r e n d i isso aos p o u co s,
p o is v i n o m a n e jo d a c iê n c ia m u i t í s s i m o s e xe m p lo s e sp a n t o so s d o c o n t r á r i o ".
O : "En t ã o p o d e s le va r isso m a i s / a d ia n t e ".
E u : "Es p e r o . M a s n ã o d e ixe s q u e n o s d i s t a n c i e m o s d a m a gia ".
O : "P o r q u e e n t ã o t e a fe r r a s t ã o t e i m o s a m e n t e a t e u p r o p ó s i t o d e a p r e n d e r
d a m a gia , se a fir m a s q u e d e ixa st e t u a r a z ã o e m casa? O u a c o n s e q u ê n c i a n ã o faz
p a r t e d e t u a r a z ã o ?"

E u : "M u i t o b e m - e u ve jo , o u m e lh o r , p a r e ce q u e és u m so fist a b e m e sp e r -
t o, q u e m e c o n d u z h a b i li d o s a m e n t e e m vo l t a d e ca sa e m e l e va n o va m e n t e ao
p o r t ã o ".

O : "I s t o t e p a r e ce a s s im p o r q u e ju lga s t u d o d o p o n t o d e vi s t a d e t e u i n t e -
le ct o . Se q u ise r e s d e s is t ir p o r u m m o m e n t o d e t u a r a z ã o , t a m b é m t u a c o n s e q u -
ê n c ia d e sist ir á ".
E u : "I s t o é u m a p r o va d e a p r e n d iz a g e m b e m d ifícil. M a s se e u q u is e r ser
a d ep t o , e n t ã o ist o t a m b é m d e ve ser, p a r a q u e se c u m p r a a e xigê n c ia . E u s o u
t o d o o u vid o s ".

O : " O q u e q u e r e s o u vi r ?"

E u : " T u n ã o m e se d u z e s. E u só e sp e r o p e lo q u e va is d i z e r ".
O : " E se e u n ã o d isse r n a d a ?"

E u : " B e m - e n t ã o e u m e r e t i r o u m p o u c o d e c e p c io n a d o e p e n so q u e F i -
l ê m o n é n o m í n i m o u m a r a p o sa e sp e r t a , d a q u a l se p o d e r i a a p r e n d e r a lgu m a
co isa ".

O : " C o m isso, r a p a z , a p r e n d e st e a lgu m a c o is a d e m a gia ".


354 L I B E R S E C U N D U S 141/142

E u : "I s t o p r e ciso p r i m e i r o d ige r ir . É d e fat o algo s u r p r e e n d e n t e . E u h a vi a


im a gin a d o a m a gia d e fo r m a d ife r e n t e ".
O : "D i s s o p o d e s c o n c l u i r q u e e n t e n d e s m u i t o p o u c o d e m a gia e q u e su as
c o n c e p ç õ e s a r e s p e it o d e la sã o in c o r r e t a s ".
E u : "Se ist o d e ve r i a ser a s s im , o u é a s s im , d e vo co n fe ssa r q u e a b o r d e i o p r o -
b l e m a d e m o d o t o t a lm e n t e e r r a d o . P a r e ce e n t ã o q u e ele n ã o a n d a p e lo c a m i -
n h o d a c o m p r e e n s ã o c o m u m ".
O : "I s t o t a m b é m n ã o é r e a l m e n t e o c a m i n h o d a m a gia ".
E u : "M a s t u n ã o m e d e se n co r a ja st e d isso ; ao c o n t r á r io , a r d o d e d e se jo d e
a p r e n d e r m a is . O q u e se i d isso a t é a go r a é e s s e n c ia lm e n t e n e ga t ivo ".
O : " C o m isso co n h e ce st e u m se gu n d o p o n t o p r i n c i p a l . An t e s d e t u d o d eves
sa b e r q u e a m a gia é o n e ga t ivo d a q u ilo q u e p o d e m o s c o n h e c e r ".
E u : "T a m b é m ist o , m e u c a r o Fi l ê m o n , é u m p e d a ç o d ifícil d e d ig e r ir q u e
m e ca u sa c o m p li c a ç õ e s n a d a in s ign ific a n t e s . O n e ga t ivo d a q u ilo q u e p o d e m o s
c o n h e c e r ? C o m isso ach as c e r t a m e n t e q u e n ã o o p o ssa m o s co n h e ce r , o u ? A q u i
t e r m i n a m i n h a c o m p r e e n s ã o ".
O : "Es t e é o t e r c e ir o p o n t o q u e d eves r e c o n h e c e r c o m o e sse n cia l, ist o é, q u e
t a m b é m n ã o t e n s n a d a a c o m p r e e n d e r ".
E u : "Be m , r e c o n h e ç o q u e ist o é n o vo e e st r a n h o . P o r t a n t o , n a m a gia n ã o h á
n a d a p a r a se c o m p r e e n d e r ".
O : "Exa t o . A m a gia é e xa t a m e n t e t u d o a q u ilo q u e n ã o se c o m p r e e n d e ".
E u : "M a s c o m o e n t ã o , p o r t o d o s os d ia b o s, d e ve - se e n s i n a r e a p r e n d e r a
m a gia ?"
O : "A m a gia n ã o d e ve se r e n s i n a d a n e m a p r e n d id a . E t o lic e t u a q u e r e r
a p r e n d e r m a gia ".
E u : "En t ã o a m a gia é e m s u m a u m e m b u s t e ".
O : " N ã o t e en ga n es. Fiz e s t e n o va m e n t e u so d e t u a r a z ã o ".
E u : "É d ifícil se r i r r a c i o n a l ".
O : "I g u a l m e n t e d ifícil é a m a gia ".
E u : "I s t o é u m b o ca d o d ifícil. P a r e c e - m e e n t ã o q u e é c o n d i ç ã o in d is p e n s á ve l
p a r a o a d e p t o e sq u e ce r t o t a lm e n t e su a r a z ã o ".
O : "Si n t o m u i t o , m a s é a s s im ".
E u : " O d eu ses, ist o é gr ave".
O : " N ã o é t ã o gr ave q u a n t o p e n sa s. C o m a id a d e , a r a z ã o d i m i n u i p o r si
m e s m a , p o is é u m a c o n t r a p a r t i d a ú t il d o s i n s t i n t o s , q u e sã o m a is fo r t e s n a j u -
ve n t u d e d o q u e n a ve lh ic e . Já vis t e a lgu m a ve z u m m a go jo ve m ?"
O M AGO 355

E u : "N ã o , o m a go é in c lu s ive p r o ve r b i a l m e n t e ve lh o ".

O : " T u vê s q u e t e n h o r a z ã o ".

E u : "M a s e n t ã o as p e r sp e ct iva s d o a d e p t o sã o r u in s . E l e t e m d e e sp e r a r a

ve lh ic e p a r a ch e ga r a c o n h e c e r os segr ed o s d a m a gia ".

O : "Se ele r e n u n c i a r m a is ce d o à s u a r a z ã o , t a m b é m m a i s ce d o p o d e r á c h e -

gar ao c o n h e c i m e n t o d e algo ú t il".

E u : "I s t o m e p a r e ce u m a e xp e r i ê n c i a p e r igo sa . N ã o se p o d e r e n u n c i a r s e m
m a is à r a z ã o ".

O : "T a m b é m n ã o se p o d e / se r u m m á g i c o s e m m a is ". 141/ 142

E u : " T u t e n s a r m a d i l h a s d a n a d a s".

O : " O q u e q u e r e s? I s t o é m a gia ".

E u : "Ve l h o d e m ó n i o , t u m e fazes t e r i n ve ja a t é d a ve lh i c e ca d u ca ".

O : " V ê só : u m j o v e m q u e go s t a r ia d e se r u m a n c iã o ! E p o r q u ê ? Go s t a r i a d e

a p r e n d e r a m a gia , m a s n ã o o o u sa p o r ca u sa d e s u a ju ve n t u d e ".

E u : " T u e st e n d e s u m a r e d e c r u e l , ve lh o a r m a d o r d e cila d a s".

O : "T a l ve z q u e ir a s e sp e r a r m a is a lgu n s a n i n h o s c o m a m a gia , a t é q u e t eu s

ca b e lo s se t e n h a m t o r n a d o gr isa lh o s e t e u ju í z o t e n h a d i m i n u í d o p o r s i ".

E u : "Go s t a r i a d e n ã o o u vi r t e u d e b o ch e . E u m e d e i xe i a p a n h a r c o m o u m

b o b o n a t u a a r m a d i l h a . N ã o p o sso a p r e n d e r n a d a d e t i ".

O : "M a s t a lve z b o b o já s e r ia u m a va n ç o n o c a m i n h o p a r a a m a gia ".

E u : "Al é m d o m a is , o q u e r e a liz a s n o m u n d o t o d o c o m t u a m a gia ?":

O : " E u vivo , c o m o e st á s ve n d o ".

E u : "I s t o t a m b é m fa z e m o u t r o s id o so s".

O : " E t u vis t e c o m o ?"

E u : "Si m , e n ã o fo i u m a vis ã o a gr a d á ve l. M a s e m t i t a m b é m o t e m p o d e i xo u

su as m a r c a s ".

O : "I s t o e u se i".

E u : "P o r t a n t o , o n d e e s t ã o t u a s va n t a ge n s?"

O : "Sã o aq u elas q u e n ã o vê s ".

E u : " O q u e sã o va n t a ge n s q u e a ge n t e n ã o vê ?"

O : "Sã o aq u elas q u e a ge n t e t e m ".

E u : " C o m o d e n o m i n a s essas va n t a ge n s?"

O : "D e n o m i n o - a s m a gia ".

E u : " T u t e m o vi m e n t a s n u m c ír c u lo vicio so . O d ia b o d e ve t e a ju d a r ".


356 LI BE R SECU N D U S 142/ 144

O : "Es t á s ve n d o ? I s t o t a m b é m é u m a va n t a g e m d a m a gia : n e n h u m a ve z o
d ia b o m e a ju d a . T u fazes p r o gr e sso s n o c o n h e c i m e n t o d a m a gia d e t a l fo r m a
q u e d e vo a c r e d it a r q u e t e n s b o m t a le n t o p a r a isso ".
E u : " E u t e a gr a d e ç o , O I A H M Í 2 N , b a st a , e s t o u z o n z o . Ad e u s !"
Sa io d o j a r d i m e sigo p e la e s t r a d a a b a ixo . H á p esso as p a r a d a s e m gr u p o s p o r
a li q u e m e o l h a m fu r t i va m e n t e . O u ç o m u r m u r a r e m às m i n h a s cost as: "Ve d e , a l i
va i ele, o d is c íp u lo d o ve lh o O I A H M Q N . C o n v e r s o u lo n ga m e n t e c o m o ve lh o .
El e a p r e n d e u a lgu m a co isa . E l e c o n h e ce os m is t é r io s . Se e u so u b esse ao m e n o s
o q u e ele sab e ago r a". "Ca l a i - vo s , lo u co s m a ld i t o s ", go s t a r ia d e g r i t a r - lh e s , m a s
n ã o p o sso , p o is n ã o se i se r e a l m e n t e n ã o a p r e n d i a lgu m a co isa . E p e lo fat o d e
e u calar , a c r e d i t a m fi r m e m e n t e d e sd e e n t ã o q u e e u r e c e b i d e O I A H M Q N a
m a gia n e gr a .

26 9
[ 2 ] [ I H 142 ] É um erro acreditar que existem p r á t ica s m á gic a s q u e p o d e m se r
a p r e n d id a s. N ã o se p o d e e n t e n d e r a m a gia . En t e n d e r só se p o d e o r a c io n a l.
M a s a m a gia é o i r r a c i o n a l q u e n ã o se p o d e e n t e n d e r . O m u n d o n ã o é só r a -
c io n a l, m a s t a m b é m i r r a c i o n a l . A s s i m c o m o se p o d e a b r i r o r a c i o n a l d o m u n d o
c o m a r a z ã o à m e d i d a q u e o r a c i o n a l d o m u n d o v e m ao e n c o n t r o d a c o m p r e e n -
142/ 143 são , a s s im t a m b é m se e n c o n t r a o i n c o m p r e e n s í ve l e o i r r a c i o n a l . /
Es t e e n c o n t r o é m á g i c o e a b s o lu t a m e n t e i n c o m p r e e n s í ve l . A c o m p r e e n s ã o
m á g i c a é a q u ilo q u e se c h a m a n ã o c o m p r e e n s ã o . T u d o o q u e t e m e fe it o m á -
gico é i n c o m p r e e n s í ve l , e o i n c o m p r e e n s í ve l t e m m u i t a s ve z e s e fe it o m á gico .
O e fe it o i n c o m p r e e n s í ve l , n ó s o c h a m a m o s d e m á gic o . O m á g i c o s e m p r e m e
e n glo b a , s e m p r e m e e n vo lve , a b r e e s p a ç o s q u e n ã o t ê m p o r t a s e c o n d u z p a r a
o n d e n ã o h á n e n h u m a sa íd a . O m á g i c o é b o m e m a u , e n ã o é b o m n e m m a u .
A m a g ia é p e r igo sa , p o is o i r r a c i o n a l c o n fu n d e , a t r a i e p r o d u z efeit o , e e u s o u
s e m p r e s u a p r i m e i r a vít im a .

N o r a c i o n a l n ã o p r e c is a m o s d e n e n h u m a m a gia , p o r isso n o ssa é p o c a n ã o


u s o u m a i s a m a gia . Só os i r r a c i o n a i s fi z e r a m u so d e la p a r a s u b s t i t u i r s u a fa lt a
d e r a z ã o . M a s é m u i t o i r r a c i o n a l n ã o j u n t a r o r a c i o n a l c o m a m a gia , p o is os
d o is n a d a t ê m a ve r u m c o m o o u t r o . P o r m e i o d a ju n ç ã o , os d o is sã o d e t e -

26 9 Nota marginal do volume caligráfico: "Jan. 1924". Isto parece referir-se à data em que esta passagem foi
transcrita para o volume caligráfico. Neste ponto, o texto escrito fica em tamanho maior, com mais espaço.
Neste tempo, Cary Baynes começou sua transcrição.
O M AGO 357

r io r a d o s . P o r isso a q u e le s i r r a c i o n a i s s u c u m b e m c o m r a z ã o ao s u p é r flu o e ao
d e sp r e z o . P o r isso t a m b é m u m a p e sso a r a c i o n a l d e n o s s a é p o c a ja m a i s se se r -
vi r á d a m a g i a 2 7 0 .
M a s é o u t r a c o is a q u e a b r i u e m si o caos. N ó s p r e c is a m o s d a m a gia p a r a
p o d e r m o s r e ce b e r o u c h a m a r o m e n sa ge ir o e a c o m u n i c a ç ã o d o n ã o c o m p r e -
e n síve l. N ó s r e c o n h e c e m o s q u e o m u n d o c o n s i s t i a d e r a z ã o e in se n sa t e z , e n ó s
e n t e n d e m o s q u e n o sso c a m i n h o p r e c is a va n ã o só d a r a z ã o , m a s t a m b é m d a
in se n sa t e z . Es t a s e p a r a ç ã o é a le a t ó r ia e d e p e n d e d o n íve l d a c o m p r e e n s ã o . M a s
p o d e - se t e r c e r t e z a d e q u e s e m p r e a m a i o r p a r t e d o m u n d o a i n d a n o s é i n c o m -
p r e e n s íve l. I n c o m p r e e n s í ve l e i r r a c i o n a l d e ve m ser id ê n t ic o s p a r a n ó s , a i n d a
q u e n ã o o s e ja m n e c e s s a r ia m e n t e e m s i, p o is u m a p a r t e d o i n c o m p r e e n s í ve l
só é a t u a lm e n t e i n c o m p r e e n s í ve l , p o d e n d o a m a n h ã ser t a lve z r a c io n a l. M a s
en q u an t o n ã o o en t en d em os, é t a m b é m ir r a cio n a l. À m e d id a que o n ão c o m -
p r e e n s íve l e m si é r a c i o n a l , p o d e - se t e n t a r i m a g i n á - l o c o m ê xit o , m a s à m e d i d a
q u e é i r r a c i o n a l e m s i, / p r e cisa - se d a p r á t ic a m á g i c a p a r a e xp lo r á - lo .
A p r á t ic a m á g ic a co n sist e e m t o r n a r c o m p r e e n s í ve l o i n c o m p r e e n s í ve l d e
c e r t a fo r m a n ã o c o m p r e e n s í ve l . A m a n e i r a m á g ic a n ã o é a r b it r á r ia , p o is ist o
s e r ia c o m p r e e n s í ve l , m a s é r e s u lt a d o d e r a z õ e s i n c o m p r e e n s í ve i s . Fa la r d e r a -
z õ e s t a m b é m n ã o e st á ce r t o , p o is as r a z õ e s sã o r a c io n a is . E t a m b é m n ã o se p o d e
fa la r d e d e s t it u íd o d e r a z õ e s, p o is d isso n a d a m a is se p o d e r i a a fir m a r : a m a n e i r a
m á g i c a se r e n d e . Q u a n d o a b r im o s o caos, t a m b é m a m a gia se r e n d e .

P o d e - se e n s in a r o c a m i n h o q u e le va ao caos, m a s n ã o se p o d e e n s in a r a m a -
gia. A r e sp e it o d e la só se p o d e calar , q u e p a r e ce ser o m e l h o r e n s in a m e n t o . Es t e
p o n t o d e vi s t a é d e sco n ce r t a n t e , m a s a ssim é a m a gia . A r a z ã o c r i a d e s o r d e m e
o b s c u r i d a d e 2 7 1. N a t r a d u ç ã o m á g ic a d o in c o m p r e e n s íve l p r e cisa -se in c lu s ive d a
r a z ã o , p o is só a t r a vé s d a r a z ã o p o d e ser cr ia d o o c o m p r e e n s íve l. M a s c o m o é p r e -
ciso e m p r e ga r n isso a r a z ã o , n i n g u é m p o d e d i z e r q u e o fat o já se r e a l i z o u q u a n d o
n ó s a p e n a s t e n t a m o s e xp r e ssa r o q u e sign ifica p a r a n ó s a a b e r t u r a d o c a o s 2 7 2 .

270 Em Tipos psicológicos (1921) Jung escreveu: ' A razão só pode fornecer o equilíbrio àquele cuja razão já é
um órgão de equilíbrio... O homem, via de regra, precisa ter também o oposto de um de seus estados para
então posicionar-se necessariamente no meio" ( O C, 6, § 435).
271 O esboço continua: "A prática mágica desagrega-se portanto em duas partes: a prim eira é a exploração do
caos, a segunda é a tradução da essência no compreensível" (p. 484).
272 O esboço continua: ' A participação da razão na magia é muito pequena. Isto vai aborrecê-lo. Idade e
experiência são necessárias. A incontrolável sofreguidão e medo da juventude, bem como sua virtude, tão
necessária a ela, impedem a atração conjunta e secreta de Deus e do demónio. Com demasiada facilidade
serás puxado para um ou outro lado, cegado ou paralisado" (p. 484).
358 LI BE R SECU N D U S 144/146

A m a gia é u m a e sp é cie d e vid a . Q u a n d o a gen t e d e u o m e l h o r d e si p a r a d i r i -


gir o c a r r o e e n t ã o p e r ce b e q u e u m o u t r o m a i o r o d ir ige , n esse caso p r o d u z - s e o
e fe it o m á gic o , p o is n i n g u é m co n se gu e c o n h e c ê - l o c o m a n t e c e d ê n c ia ; o m á g i c o
é p r e c is a m e n t e o s e m - l e i , q u e a co n t e ce s e m r e gr a fixa , fo r t u i t a m e n t e , p o r a s-
s i m d iz e r . M a s a c o n d i ç ã o é q u e a ge n t e se a ce it e t o t a lm e n t e e n a d a d e sp e r d ice ,
a f i m d e t r a n s fe r i r t u d o p a r a o c r e s c i m e n t o d a á r vo r e . A isso p e r t e n c e t a m b é m
a e s t u p id e z , d a q u a l c a d a u m t e m gr a n d e m e d i d a , e t a m b é m a fa lt a d e go st o q u e
é p a r a m u i t o s s e u m a i o r a b o r r e c im e n t o .
P o r isso é c o n d i ç ã o in d is p e n s á ve l d a v i d a u m a c e r t a s o lid ã o e a fa st a m e n t o
144/145 p a r a o p r ó p r i o b e m e o d o s o u t r o s , caso c o n t r á r i o n ã o p o d e m o s / se r s u fi c i e n -
t e m e n t e n ó s m e s m o s . Se r á in e vit á ve l c e r t a va ga r o sid a d e n a vi d a , q u e é c o m o
u m a p a r a d a . A i n c e r t e z a d e t a l v i d a se r á s e m d ú vi d a o m a is su fo ca n t e , m a s a i n -
d a a s s i m t e n h o d e c o n c i l i a r s e m p r e as d u a s fo r ça s c o n flit a n t e s d e m i n h a a l m a
e m a n t ê - l a s n u m a fie l u n i ã o a t é o fi m d e m i n h a vi d a , p o is o m a go c h a m a - s e
O I A H M Q N e s u a m u lh e r , B A Y K I E . Aq u i l o q u e o C r i s t o m a n t e ve se p a r a d o
e m si m e s m o e, a t r a vé s d e se u e xe m p lo , n o s o u t r o s, ist o e u m a n t e n h o u n id o ,
p o is q u a n t o m a is u m a d as m e t a d e s d e m e u se r l u t a p e lo b e m , t a n t o m a is r a p i -
d a m e n t e a o u t r a m e t a d e se e n c a m i n h a p a r a o in fe r n o .

Q u a n d o h a vi a t e r m i n a d o o m ê s d o s G é m e o s , as p esso as fa la va m p a r a su a
s o m b r a : " T u és e u ", p o is h a vi a m c o n s id e r a d o a n t e s s e u e s p ír it o c o m o u m a se -
g u n d a p e sso a e m t o r n o d elas. A s s i m as d u a s se t o r n a va m u m a só e d esse e n -
c o n t r o s u r g i u algo p o d e r o so , ist o é, a p r i m a ve r a d a c o n s c iê n c ia , q u e c h a m a m o s
d e c u l t u r a e q u e d u r o u a t é o t e m p o d o C r i s t o 2 7 3 . O p e ixe d e sign a va , p o r é m , o
m o m e n t o e m q u e o u n i d o se se p a r o u , se gu n d o a l e i e t e r n a d o m o v i m e n t o c o n -
t r á r io , n u m m u n d o i n fe r i o r e m u n d o su p e r io r . Q u a n d o a fo r ç a d o c r e s c i m e n t o
c o m e ç a a d e sa p a r e ce r , o u n i d o se d i vi d e e m seu s o p o st o s. O C r i s t o l a n ç o u o
i n fe r i o r n o in fe r n o , p o is ele l u t a c o n t r a o b e m . I s t o t e ve q u e se r a s s im . M a s o

273 É uma referência à concepção astrológica do mês, ou éon, platónico de Peixes, que se baseia na precessão
dos equinócios. Cada mês platónico consiste de um signo zodiacal e dura aproximadamente 2.300 anos.
Jung discute o simbolismo ligado a isto em Aíon ( O C , 9/ 2), capítulo 6. Observa ele que, por volta de
7 a .C, houve uma conjunção de Saturno e Júpiter, que representava uma união de opostos extremos,
o que colocaria o nascimento de Cristo em Peixes. O signo de Peixes (em latim Písces) é muitas vezes
representado por dois peixes nadando em direções opostas. Sobre os meses platónicos, cf. H O W E LL, A.
Jungian Synchronicíty in Astrological Signs and Ages. Wheaton: Quest Books, 19 9 0 , p. 125S. Jung começou a estudar
astrologia em 1911, durante seus estudos de mitologia, e aprendeu a fazer horóscopos (Jung a Freud, 8 de
maio de 1911, Sígm und Freud - C.G.JungBríejwechsel, p. 465) [ed. inglesa, p. 421]. Quanto às fontes de Jung para
a história da astrologia, ele citou nove vezes, em sua obra posterior, o livro L'Astrologíegrecque, de Auguste
Bouché-Feclerq (Paris: Ernest Feroux, 18 9 9 ) .
O M AGO 359

se p a r a d o n ã o p o d e fi c a r s e p a r a d o p a r a s e m p r e . V a i u n i r - s e d e n o vo , e e m b r e ve

o m ê s d e P e ixe s e s t a r á t e r m i n a d o 2 7 4 . N ó s p r e s s e n t i m o s e e n t e n d e m o s q u e o

c r e s c i m e n t o p r e c i s a d e a m b o s , p o r isso m a n t e m o s b e m ju n t o s o b e m e o m a l .

C o m o s a b e m o s q u e a d e n t r a r d e m a i s n o b e m s i g n i fi c a t a m b é m a d e n t r a r p o r

d e m a is n o m a l, m a n t e m o s u n id o s os d o i s 275.

M a s a ssim p e r d e m o s a d ir e çã o , e o cu r so n ã o é m a is d a m o n t a n h a p a r a o

va le , m a s cr e sce t r a n q u i l a m e n t e d o va le p a r a a m o n t a n h a . Aq u i l o q u e n ã o p o -

d e m o s m a i s i m p e d i r o u e s c o n d e r é n o sso fr u t o . A t o r r e n t e q u e fl u i t o r n a - s e

la go e m a r / q u e n ã o t ê m e s c o a d o u r o , o u se ja , su a s á gu a s s o b e m p a r a o c é u 145/ 146

c o m o va p o r e c a e m d a s n u ve n s c o m o c h u va . O m a r é u m a m o r t e , m a s t a m b é m

o lu ga r d a a s c e n s ã o . I s t o é O I A H M Í 2 N , q u e r e ga s e u j a r d i m . N o s s a s m ã o s fo r a m

a m a r r a d a s , e c a d a q u a l d e ve fic a r s e n t a d o c a l m a m e n t e e m s e u lu ga r . E l e so b e

in vis íve l e c a i c o m o c h u v a so b r e t e r r a s d i s t a n t e s 2 7 6 . A á g u a so b r e a t e r r a n ã o é

n e n h u m a n u v e m q u e d e ve sse c h o ve r . Só g r á vi d a s p o d e m d a r à l u z , n ã o a q u e la s

q u e a in d a d e ve m c o n c e b e r 277.

[IH 146] Que segredo, porém , m e dás a entender, ó O I A H M Q N , c o m t e u n o m e ? T u

é s r e a l m e n t e o a m o r o s o q u e c e r t a ve z a c o l h e u os d e u se s p e r e g r i n a n t e s p e l a

t e r r a , q u a n d o t o d a s as o u t r a s p e sso a s lh e s n e g a r a m p o u s a d a . T u é s a q u e le q u e ,

s e m o sa b e r , d e st e a c o l h i d a ao s d e u se s q u e , e m a g r a d e c im e n t o , t r a n s fo r m a r a m

274 Isto se refere ao fim do mês platónico de Peixes e ao começo do mês platónico de Aquário. A data
precisa é incerta. Em Aíon (1951), Jung observou: "Astrologicamente falando, o início do próximo éon
deverá situar-se entre 2 0 0 0 e 220 0 , dependendo do ponto de vista que se escolher" ( O C, 9/ 2, § 149,
nota 8 8 ) .
275 Em Aion (1951), Jung escreveu: "Se o éon de Peixes foi governado, ao que tudo indica, principalmente
pelo tema arquetípico do 'irmãos inimigos', por coincidência, com a aproximação do mês platónico
imediato, isto é, de Aquário, coloca-se o problema da união dos opostos. Já não se trata mais de volatilizar
o mal como mera 'privatio boni', mas de reconhecer sua existência real" ( O C, 9/ 2, § 142).
276 O esboço continua: "O tempo invernal das chuvas começou com Cristo. Ele ensinou às pessoas o cam i-
nho do céu. Nós aprendemos o caminho da terra. Por isso, nada é tirado do evangelho, mas acrescentado"
(p- 4 8 6 ) .
277 O esboço continua: "Nosso esforço era dirigido para a inteligência e supremacia espiritual, por isso
cultivamos em nós tudo o que é inteligente. Mas a quantidade extraordinária de estupidez, que está em
toda pessoa, caiu no desprezo e na renegação. Mas se aceitarmos em nós o outro, levaremos também para
cima a estupidez típica de nosso ser. A estupidez é uma cavalgadura das pessoas. Ela tem algo de divino
em si, algo da idiotice gigantesca do mundo. Por isso a estupidez é realmente grande. Ela mantém afastado
de nós tudo o que nos pudesse induzir à inteligência. Faz com que fique incompreendido tudo o que não
precisaria normalmente de compreensão. Esta estupidez típica manifesta-se no pensamento e na vida.
Algo surdo, algo cego, isto traz para perto de nós os destinos necessários e mantém longe de nós a virtude
irmanada com a sensatez. E a estupidez que divide e separa os germes misturados da vida, de modo a
vermos claramente demais o que é bom e mau, o que é racional e irracional. Mas muitas pessoas são
também lógicas em sua irracionalidade" (p. 4 8 7) .
36o LI BE R SECU N D U S 146/ 149

t u a c h o u p a n a n u m t e m p l o d e o u r o , e n q u a n t o o d ilú vio i a t r a ga n d o p o r t o d a
p a r t e . T u vivia s p a r a a lé m q u a n d o o caos i r r o m p e u . T u t e t o r n a st e o s e r vid o r
d o s a n t u á r io , q u a n d o o s d eu ses e r a m in vo c a d o s e m v ã o p o r seu s p o vo s. D e
fat o, o a m o r o s o vi ve p a r a a lé m . P o r q u e n ã o ví a m o s ist o ? E m q u e m o m e n t o se
r e ve l a r a m o s d eu ses? Q u a n d o B A Y K I E q u is s e r vi r ao s h o n r a d o s h ó s p e d e s s e u
ú n i c o gan so, a e s t u p id e z a b e n ç o a d a , a ave se r e fu gio u ju n t o ao s d eu ses, e n t ã o os
d eu ses se d e r a m a c o n h e c e r a seu s p o b r e s h o sp e d e ir o s q u e o fe r e c ia m a ú l t i m a
c o is a q u e t i n h a m . P o r t a n t o e u v i q u e o a m o r o s o vi ve p a r a a lé m , e q u e é e le q u e
d á p o u s a d a aos d eu ses s e m sa b e r q u e e r a m d e u s e s 2 7 8 .
Ve r d a d e ir a m e n t e , ó O I A H M Q N , n ã o v i q u e t u a c h o u p a n a é u m t e m p lo e

146/ 147 q u e t u m e sm o , O I A H M Q N , t u e B A Y K E sois o s se r vid o r e s d o sa n t u á r io . / R e -


a lm e n t e e st a fo r ça m á g ic a n ã o se p o d e e n s i n a r n e m se p o d e a p r e n d e r . I s t o n ó s
t e m o s o u n ã o t e m o s. E u c o n h e ç o o ú lt i m o d e t eu s segred os: t u é s u m a m a n t e .
T u co n se gu ist e u n i r o sep ar ad o, liga r o s u p e r io r e o in fe r io r . N ã o o s a b ía m o s n ó s
h á m u i t o t e m p o ? Si m , n ó s o s a b ía m o s ; n ã o , n ã o o s a b ía m o s . T u d o fo i se m p r e
a ssim , e n o e n t a n t o n u n c a fo i a ssim . P o r q u e t ive d e p e r c o r r e r lo n gas est r ad as
a t é ch e ga r a O I A H M Q N , se e le d e via e n s i n a r - m e o q u e t o d o m u n d o já sab e h á
m u i t o t e m p o ? A h , n ó s já sa b e m o s t u d o d e sd e os t e m p o s r e m o t o s , e n o e n t a n t o
ja m a is o sa b e r e m o s a t é q u e se ja a lca n ça d o . Q u e m esgot a o m is t é r io d o a m o r ?

[ I H 147] Sob que m áscara, ó O I A H M Q N , t u t e e sco n d e s? T u m e p a r e cia s u m


a m a n t e . M a s o s m e u s o lh o s se a b r i r a m e e u v i q u e é s u m a m a n t e d e t u a a lm a ,
q u e p r o t e ge t e m e r o s a e c io s a m e n t e s e u t e so u r o . E x i s t e m aq u eles q u e a m a m
p essoas, aq u eles q u e a m a m as a lm a s d a s p esso as e aq u eles q u e a m a m a p r ó p r i a
a lm a . U m d esses ú l t i m o s é O I A H M Q N , o h o s p e d e ir o d o s d eu ses.

T u e st á s d e it a d o ao so l, ó O I A H M Q N , c o m o u m a c o b r a q u e se e n go le a s i
m e s m a . T u a sa b e d o r ia é sa b e d o r ia d e se r p e n t e , fr ia , c o m u m a p i t a d a d e ve n e n o ,
t e r a p ê u t ic a e m p e q u e n a d ose. T u a m a gia p a r a lis a e, p o r isso, faz p esso as fo r t e s,
q u e se a r r e b e n t a m a s i m e sm a s. M a s elas t e a m a m , elas s ã o gr at as a t i , a m a n t e
d a p r ó p r i a a lm a ? O u elas t e a m a l d i ç o a m p o r ca u sa d e t e u ve n e n o m á g i c o d e
se r p e n t e ? El a s fi c a m a o lo n ge , s a c o d e m a c a b e ç a e c o c h i c h a m e n t r e s i.
147/ 148 T u é s a i n d a u m a p esso a, O I A H M Q N , o u / é an t es u m a p essoa aq u ele q u e é
u m a m a n t e d e su a p r ó p r i a alm a? T u és h o sp it a le ir o , O I A H M Q N , t u r eceb est e e m
t u a c h o u p a n a os p e r e gr in o s su jo s s e m sab er q u e m e r a m . T u a ca sa t o r n o u - s e u m

278 Neste parágrafo, Jung apresenta o clássico relato de Filêmon e Báucis, tirado das Metamorfoses.
O M AGO 361

t e m p l o d e o u r o , e e u sa í d e t u a m e s a r e a lm e n t e in sa cia d o ? O q u e t u m e d est e?
T u m e c o n vid a s t e p a r a u m a r e fe içã o ? T u r e lu z is t e m u l t i c o l o r i d o e e m a r a n h a d o
e, e m p a r t e n e n h u m a , t u t e d e st e a m i m c o m o ví t i m a . T u esca p a st e d e m e u a r d i l
p a r a t e p egar. N ã o t e e n c o n t r e i e m p a r t e a lgu m a . A i n d a és u m a p esso a? T u és
b e m m a is d a e s p é c ie d as se r p e n t e s.
E u q u is p e ga r - t e e a r r a n c á - l o d e t i , p o is os cr ist ã o s a p r e n d e r a m a c o m e r
t a m b é m o se u D e u s . E o q u e a co n t e ce c o m D e u s , n ã o v a i a co n t e ce r t a m b é m
m u i t o m a is às p esso as h u m a n a s ? E u o lh o p a r a a va s t i d ã o d a t e r r a e n ã o o u ç o
m a is d o q u e la m ú r ia s e n ã o ve jo o u t r a c o is a a n ã o ser p esso as q u e se d e vo r a m
m utuam en te.
Ó O I A H M Q N , t u n ã o és cr ist ã o . T u n ã o t e d e ixa st e d e vo r a r e n ã o m e d e -
vo r a st e . P o r isso n ã o t e n s salas d e a u la , n e n h u m p ó r t i c o e n e n h u m a lu n o q u e
fica e m r o d a s fa la n d o d o m e s t r e e so r ve su as p a la vr a s c o m o a á gu a d a vi d a . T u
n ã o és c r is t ã o n e m p a gã o , u m n ã o h o s p e d e ir o h o s p it a le ir o , u m h o s p e d e ir o d o s
d eu ses, u m q u e vi ve p a r a a lé m , u m e t e r n o , o p a i d e t o d a s as ve r d a d e s e t e r n a s.
M a s s e r á q u e e u sa í r e a l m e n t e in s a c ia d o d e ju n t o d e t i? N ã o , e u m e a fa st e i
d e t i p o r q u e e st a va r e a l m e n t e saciad o . M a s o q u e fo i q u e c o m i ? T u a s p a la vr a s
n ã o m e d e r a m n a d a . T u a s p a la vr a s m e a b a n d o n a r a m a m i m m e s m o e à m i n h a
d ú vid a . E a s s im e u m e c o m i . E p o r isso, ó O I A H M Q N , n ã o és u m cr ist ã o , p o is t e
a lim e n t a s d e t i m e s m o e o b r iga s as p esso as a fa z e r e m o m e s m o . I s t o é p a r a elas a
c o is a m a is d e s a gr a d á ve l, p o r q u a n t o d e n a d a t ê m m a is n o jo os a n i m a i s h u m a n o s
d o q u e d e s i m e s m o s . P o r isso p r e fe r e m d e vo r a r t o d a s as c r ia t u r a s q u e r a s t e ja m ,
q u e s a lt a m , q u e n a d a m e q u e vo a m , e a t é m e s m o s u a p r ó p r i a e s p é c ie , a n t e s d e
se r o e r e m a s i m e s m o s . M a s est e a l i m e n t o é e fica z , e lo go t o r n a a p e sso a sa cia d a .
P o r isso, ó O I A H M Q N , n ó s n o s le va n t a m o s saciad o s d e t u a m e sa .
T u a m a n e i r a , ó O I A H M Q N , é i n s t r u t i va . T u m e d e ixa s n u m a e s c u r id ã o s a -
lu t a r , o n d e n a d a p r e c is o e n xe r ga r n e m p r o c u r a r . T u n ã o és n e n h u m a l u z q u e
b r i l h a n a s t r e va s 2 7 9 , n e n h u m r e d e n t o r q u e est ab elece u m a ve r d a d e e t e r n a e a s-
s i m ap aga a / l u z n o t u r n a d o in t e le c t o h u m a n o . T u d e ixa s e s p a ç o p a r a a e s t u - 148/ 149

p id e z e gr a ce jo d o o u t r o . T u q u e r e s, ó a b e n ç o a d o , r e ga r o j a r d i m d o o u t r o , m a s
r egas as flores d e t e u p r ó p r i o j a r d i m . Q u e m p r e c is a d e t i p e r gu n t a - t e e, ó s á b io
Fi l ê m o n , e u s u p o n h o q u e t a m b é m t u p e r gu n t a s à q u e le d e q u e m p r e cisa s, e t u
p agas a q u ilo q u e r eceb es. O C r i s t o t o r n o u as p esso as á vid a s, p o is d e sd e e n t ã o

279 Comparar com Jo 1,5, onde Cristo é descrito como "a luz que brilha nas trevas, mas as trevas não a
compreenderam".
362 L I B E R S E C U N D U S 149/ 152

e s p e r a m d e se u r e d e n t o r d á d iva s s e m c o n t r a p r e s t a ç ã o . O d a r p r e se n t e s é t ã o
i n fa n t i l q u a n t o o p o d e r . Q u e m p r e s e n t e ia a r r o ga - se p o d e r . A vi r t u d e d o d a r d e
p r e se n t e é o m a n t o c e r ú le o d o t ir a n o . T u és sá b io , ó O I A H M Q N , t u n ã o p r e -
se n t e ia s. T u q u e r e s as flores d e t e u j a r d i m e q u e ca d a c o is a cr e sça p o r s i m e s m a .

E u lo u vo , ó O I A H M Q N , t u a a u s ê n c ia d a d i m e n s ã o d e sa lva d o r ; t u n ã o és
n e n h u m p a st o r q u e v a i a t r á s d a o ve lh a p e r d i d a , p o is a cr e d it a s n a d ign id a d e d a
p esso a, q u e n ã o é n e c e s s a r ia m e n t e u m a o ve lh a . M a s se e la fo r u m a o ve lh a , t u
lh e d e ixa s o d i r e i t o e a d ign id a d e d a o ve lh a , p o is p o r q u e d e ve r i a m o ve lh a s se r
t r a n s fo r m a d a s e m p essoas? N a ve r d a d e , e xi s t e m p esso as e m n ú m e r o su ficie n t e .
T u co n h e ce s, ó O I A H M Q N , a sa b e d o r ia d as co isas vi n d o u r a s , p o r isso és
ve lh o , m u i t í s s i m o ve lh o , e a s s im c o m o m e so b r e p u ja s e m a n o s, t a m b é m so b r e -
p u ja s e m fu t u r o o p r e se n t e , e o t e m p o d e t e u p a ssa d o é i n c o m e n s u r á ve l . T u és
le g e n d á r i o e in a t in gíve l. T u fost e e se r á s, r e t o r n a n d o p e r io d ic a m e n t e . In visíve l
é t u a sa b e d o r ia , in s c ie n t e t u a ve r d a d e , in ve r íd ic a e m q u a lq u e r t e m p o , e a s s im
m e s m o ve r í d i c a e m t o d a a e t e r n id a d e , m a s t u r egas c o m á gu a vi va , m e d i a n t e
a q u a l se a b r e m as flores d e t e u j a r d i m , u m a á gu a est elar , u m o r va lh o d a n o it e .
D e q u e m p r e cisa s, ó O I A H M Q N ? T u p r e cisa s d as p esso as p o r ca u sa d as
p e q u e n a s co isas, p o is t u d o o q u e é m a i o r e o m á x i m o e s t ã o e m t i . O C r i s t o
m i m o u as p esso as, p o is e n s i n o u - lh e s q u e só s e r i a m salvas e m U m , ist o é, N e l e ,
o Fi l h o d e D e u s , e d e sd e e n t ã o as p esso as e xi g e m s e m p r e m a is as co isas m a io r e s
d o o u t r o , p r i n c i p a l m e n t e su a sa lva çã o , e q u a n d o e m a lg u m lu ga r u m a o ve lh a se
149/ 150 t r a n s vi o u , / e la a cu sa o p ast or . Ó O I A H M Q N , t u és u m a p e sso a h u m a n a e p r o -
va s q u e as p essoas n ã o sã o o ve lh a s, p o is t u gu a r d a s o m a i o r e m t i , p o r isso flui
p a r a t e u j a r d i m á gu a fe c u n d a d e c â n t a r o in e s go t á ve l.

[ I H 150] Tu és solitário, ó O I A H M Q N , n ã o ve jo n e n h u m d is c íp u lo e n e n h u m a
a sso c ia ç ã o e m t o r n o d e t i , a p r ó p r i a B A Y K I E é ap en as t u a o u t r a m e t a d e . T u
vive s c o m as flores, á r vo r e s e p á ssa r o s, m a s n ã o c o m p esso as. N ã o d e ve r ia s t u
vi ve r c o m p essoas? A i n d a és u m a p e sso a h u m a n a ? N ã o q u e r e s sa b e r n a d a d as
p essoas? N ã o vê s c o m o fo r m a m r o d in h a s , i n v e n t a m b o a t o s e c o n t a m fá b u la s
in fa n t is a t e u r e sp e it o ? N ã o q u e r e s i r a t é elas e d i z e r - l h e s q u e és u m a p e sso a e
u m se r m o r t a l c o m o elas e q u e go st a r ia s d e a m á - la s ?

Ó O I A H M Q N , t u r is? E u t e e n t e n d o . Fa z p o u c o a i n d a q u e e n t r e i e m t e u
j a r d i m e q u e r i a a r r a n c a r d e t i o q u e e u t i n h a d e e n t e n d e r p o r m i m m e sm o . O
O I A H M Q N , e u e n t e n d o : e u fiz d e t i i m e d i a t a m e n t e u m sa lva d o r q u e se d e i xa
c o m e r e q u e p r e n d e p o r m e i o d e p r e se n t e s. As s i m sã o as p esso as, p e n sa s t u ;
O M AGO 363

elas t o d a s sã o a i n d a cr ist ã s, m a s elas q u e r e m m a is: t e q u e r e m a s s im c o m o é s,


caso c o n t r á r i o n ã o se r ia s p a r a elas O I A H M Q N , e fi c a r i a m in c o n s o lá ve is se n ã o
e n c o n t r a s s e m u m p o r t a d o r d e su as le n d a s. P o r isso t a m b é m h a ve r i a m d e r i r se
t u fosses a elas e d issesses q u e és u m m o r t a l c o m o elas e q u e d esejas a m á - la s .
Se fizesses isso, n ã o se r ia s Fi l ê m o n . El a s t e q u e r e m O I A H M Q N , m a s n ã o u m
m o r t a l a m a is , q u e so fr e d o m e s m o m a l q u e elas.
E u t e c o m p r e e n d o , ó O I A H M Q N , t u és u m ve r d a d e i r o / a m a n t e , p o is t u 150/ 151

a m a s t u a a l m a p o r a m o r às p essoas; elas p r e c i s a m d e u m r e i q u e vi ve p o r s i e
q u e n ã o d e ve s u a v i d a a n i n g u é m . É a s s im q u e t e q u e r e m . T u sat isfazes o d e se jo
d o p o vo e d e sa p a r e ce s. És u m r e c i p i e n t e d as fá b u la s. T u t e su ja r ia s se fosses a t é
as p esso as c o m o u m se r h u m a n o , p o is t o d a s elas h a ve r i a m d e r i r e c h a m a r - t e d e
m e n t i r o s o , p o r q u e O I A H M Q N n ã o é u m se r h u m a n o .
E u v i , ó O I A H M Q N , a q u e la r u ga e m t e u r o st o : h o u ve u m t e m p o e m q u e
er as j o v e m e q u e r ia s se r u m a p e sso a e n t r e as d e m a is p essoas. M a s os a n i m a i s
cr ist ã o s n ã o go s t a r a m d e t u a h u m a n i d a d e p a gã , p o is s e n t i r a m e m t i a q u e le d e
q u e m p r e c is a va m . El a s p r o c u r a m s e m p r e o As s in a la d o , e, q u a n d o o p e ga m
a lh u r e s e m lib e r d a d e , elas o p r e n d e m n u m a ga io la d e o u r o e lh e t i r a m a fo r ç a
d e s u a m a s c u lin id a d e , d e m o d o q u e fica se n t a d o p a r a lít ic o e calad o . En t ã o o
l o u va m e i n v e n t a m fá b u la s so b r e ele. E u se i q u e c h a m a m ist o d e ve n e r a ç ã o .
E q u a n d o n ã o e n c o n t r a m o Ve r d a d e i r o , t ê m ao m e n o s u m P a p a , c u jo o fíc io é
r e p r e s e n t a r a d i vi n a c o m é d i a . M a s o Ve r d a d e i r o s e m p r e d e s m e n t e a s i m e s m o ,
p o is n ã o co n h e c e n a d a m a i o r d o q u e se r u m a p e sso a h u m a n a .
T u r i s , ó O I A H M Q N ? E u t e c o m p r e e n d o : p a sso u o t e m p o d e ser es u m a
p e sso a c o m o as o u t r a s. E p o r q u e t u a m a va s d e fat o o se r h u m a n o , d e c id is t e l i -
vr e m e n t e se r ao m e n o s a p e sso a q u e os o u t r o s q u e r i a m d e t i . P o r isso e u t e ve jo ,
ó O I A H M Q N , c o m n e n h u m a p esso a , m a s c o m flores, á r vo r e s , p á s s a r o s e c o m
t o d a s as á gu a s c o r r e n t e s e p a r a d a s q u e n ã o s u ja m t e u e st a d o d e ser h u m a n o .
P o is p a r a as flores, as á r vo r e s , os p á s s a r o s e as á gu a s n ã o és O I A H M Q N , m a s
u m a p esso a. M a s q u e so lid ã o , q u e e st a d o d e i n u m a n i d a d e ! / 151/ 152

[ I H 152] Por que ris, ó O I A H M Q N , não consigo entender. Contudo, não vejo o ar azul de teu
jardim ? As som bras m aravilhosas que te rodeiam ? O sol que choca em torno de tifantasm as azuis do
m eio dia?
T u r i s , ó O I A H M Q N ? A h , e u t e e n t e n d o : fu giu - t e a h u m a n i d a d e , m a s s u a
s o m b r a s u r g i u p a r a t i . É b e m m a i o r e m a is glo r io s a a s o m b r a d a h u m a n i d a d e d o
q u e a p r ó p r i a h u m a n i d a d e . A s s o m b r a s a z u is d o m e i o - d i a d o s m o r t o s ! Si m , lá
364 LI BE R SECU N D U S 152/ 155

e st á t u a h u m a n i d a d e , ó O I A H M Q N , t u és u m m e s t r e e a m igo d o s m o r t o s . El e s
ficam s u s p ir a n d o à s o m b r a d e t u a casa, eles m o r a m so b os galh o s d e t u a s á r vo -
res. El e s b e b e m o o r va lh o d e t u as lá gr im a s , eles se a q u e n t a m n a b o n d a d e d e t e u
co r a çã o , eles t ê m fome d as p a la vr a s d e t u a sa b e d o r ia , q u e lh e s so a c h e ia , c h e i a
d e r e s s o n â n c ia vi t a l . E u t e v i , ó O I A H M Q N , n a h o r a d o m e i o - d i a , c o m s o l alt o,
t u est avas d e p é e falavas c o m u m a s o m b r a a z u l, h a vi a sa n gu e p isa d o e m t u a t e s-
t a e t o r m e n t o gr a n d io s o a a b scu r e cia . E u p o sso a d ivin h a r , ó O I A H M Q N , q u e m
e r a t e u h o sp e d e d a r e fe iç ã o d o m e i o - d i a 2 8 0 . C o m o fu i t ã o cego, e u d e m e n t e !

A q u i e st á s, ó O I A H M Q N ! M a s o n d e e s t o u eu ? V o u se gu in d o m e u c a m i n h o ,
m e n e a n d o a ca b e ça , e as p esso a s o l h a m p a r a m i m e e u calo. O silê n c io d e se s-
fi53 p e r a d o r !/ [ I H 153]

O senhor do jardim ! Eu vejo tuas árvores escuras de longe num sol escaldante. Minha estrada leva
aos vales onde m oram os seres hum anos. Eu sou um pedinte andarilho. E eu me calo.

M a t a r p r o fe t a s in fe r io r e s t r a z lu c r o ao p o vo . Se q u ise r assassin ar , go st a r ia
d e m a t a r seu s p r o fet a s. Q u a n d o a b o c a d o s d eu ses se ca la , ca d a q u a l p o d e o u vi r
su a p r ó p r i a fala. Q u e m a m a o p o vo se cala. Q u a n d o só m a is os m e st r e s d o e r r o
e n s i n a m , o p o vo m a t a r á os m e st r e s d o e r r o e a ssim , n o c a m i n h o d e seu s p ecad o s,
in c id ir á a t é m e s m o n a ve r d a d e . Só d e p o is d a n o it e m a is e scu r a faz-se d ia . E n c o -
b r i, p o r t a n t o , as lu z e s e ca la i, p a r a q u e a n o it e fiq u e e scu r a e sile n cio sa . O so l se
le va n t a s e m n o ssa a ju d a . Só q u e m co n h e ce o e r r o m a is n e gr o sab e o q u e é lu z .

Ó senhor do jardim ! De longe brilha para m im teu arvoredo m ágico. Eu venero teu envoltório
281
154 enganador. Tu, pai de todas as luzes e ilum inador do erro. / [Ilu s t r a ç ã o 154 ] 2 8 2

28 0 Cf. a fantasia de Jung, de I o de junho de 1916, em que o hóspede de Filêmon era Cristo (cf. abaixo, p. 359).
281 Nota marginal do volume caligráfico: "O Bhagavadgita diz: sempre que há um declínio da lei e um
aumento da iniquidade, eu apareço. Para salvar os piedosos e destruir os malfeitores, para estabelecer a lei
eu nasço em cada época". A citação é do cap. 4, versos 7-8 do BhagavadGíta. Krish n a está instruindo Arju n a
a respeito da natureza da verdade.
282 Inscrição na ilustração "IIP O O H TQ N I I AT H P n O AYO IAO Z O IAHMÍ2N" [Pai dos profetas, amável
Filêmon]. Mais tarde Jung pintou outra versão deste quadro como mural num dos quartos de sua torre
em Bollingen. Em particular, acrescentou a seguinte inscrição em latim no lado direito da ilustração:
"[Herm es: Compreendei, filhos da sabedoria, que esta Pedra preciosa clama dizendo:] Protege-me, e eu te
protegerei. Dá-m e o que é meu, a fim de que eu te ajude. Pois Sol é meu e seus raios estão no mais íntimo
de mim; mas Funa me pertence e minha luz supera toda luz e minhas virtudes são superiores a todas as
virtudes. Dou muitas riquezas e prazeres aos homens que os desejam e, quando procuro alguma coisa,
eles a reconhecem. Fevo-os a compreender e faço com que possuam a força divina. Eu gero a luz, mas a
escuridão também pertence à minha natureza. Embora meu metal seja seco, todos os corpos precisam de
O M AGO 365

P r o ssigo e m m e u c a m i n h o . U m a ç o b e m fin o , e n d u r e c i d o e m d e z fo go s,

e s c o n d i d o d e b a i xo d a t ú n i c a , é m e u c o m p a n h e i r o . T r a g o n o p e i t o u m a c o t a d e

m a l h a , d i s fa r ç a d a so b o m a n t o . D e n o i t e c o n q u i s t e i o a m o r d a s c o b r a s , a d i v i -

n h e i s e u e n i g m a . Se n t o - m e a s e u la d o so b r e as p e d r a s q u e n t e s d o c a m i n h o . Sã o

a st u t a s e t e r r í ve i s , m a s s e i c o m o c a t i vá - la s , a q u e le s d ia b o s fr io s q u e p i c a m n o

c a l c a n h a r as p e sso a s i n c a u t a s . T o r n e i - m e s e u a m ig o e t o c o p a r a elas u m a flauta

d e s o m su a ve . M a s m i n h a c a ve r n a e u a e n fe i t o c o m su a s p e le s l u z i d i a s . P r o s -

s e gu in d o e m m e u c a m i n h o , c h e g u e i a u m r o c h e d o a ve r m e l h a d o so b r e o q u a l

e s t a va d e i t a d a u m a c o b r a m u l t i c o l o r i d a . C o m o j á t ive sse a p r e n d i d o d o g r a n d e

F i l ê m o n a m a g ia , t o m e i m i n h a flauta e t o q u e i p a r a e l a u m a c a n ç ã o m á g i c a , q u e

a fe z a c r e d i t a r se r e l a a m i n h a a l m a . Q u a n d o e s t a va s u fi c i e n t e m e n t e e n fe i t i ç a -

d a , / [ I l u s t r a ç ã o 155] 2 8 3 | 2 }[ l ] 2 8 4 d i s s e - l h e e u : " M i n h a i r m ã , m i n h a a l m a , o q u e 154/155

d iz e s t u ? M a s e la fa lo u , l i s o n je a d a , e p o r isso c o m p a c iê n c ia : " E u fa ç o c r e s c e r

c a p i m s o b r e t u d o o q u e fa z e s".

E u : "I s t o s o a c o n fo r t a d o r e p a r e c e n ã o s i g n i fi c a r m u i t a c o is a ".

C : "Q u e r e s q u e e u d ig a m u i t a co isa ? E u t a m b é m p o sso se r b a n a l c o m o t u

sab es, e m e d o u p o r s a t is fe it a c o m is s o ".

m im , porque eu os umedeço. Removo sua ferrugem e extraio sua substância. Por isso nada há no mundo
de melhor e mais digno de veneração do que minha união com meu Filho". O texto é tirado de um texto
alquímico, o Rosaríum Phílosophorum, e Jung citou algumas destas linhas em Psicologia e Alquimia ( O C, 12, §
99,140,155). O Rosaríum, publicado pela prim eira vez em 1550, foi um dos mais importantes textos da
alquimia europeia e trata dos meios de produzir a pedra filosofal. Con t in h a uma série de xilogravuras
de figuras simbólicas, que Jung usou em 1946 para elucidar a psicologia da transferência: A psicologia da
transferência. Com entários baseados em um a série defiguras alquím icos (1946. O C , 16).
283 Em "Aspectos psicológicos da Core" (1951) Jung descreveu anonimamente este quadro como "11. Ela
[a anima] aparece numa igreja, no lugar em que havia antes um altar, de estatura acima do comum, mas
com a face velada". Ele comentou: "O sonho 11 restaura a anima na igreja cristã, não porém como um
ícone, mas como o próprio altar. Este é o lugar do sacrifício e, ao mesmo tempo, receptáculo das relíquias
consagradas" ( O C, 9/ 1, § 369, 380). No lado esquerdo está a palavra árabe para "filhas". Inscrição na orla
da ilustração: "De i sapientia in mysterio quae abscondita est quam praedestinavit ante secula in gloriam
nostram quam nemo principum huius seculi cognovit. Spiritus enim omnia scrutatur etiam profunda dei".
Esta é uma citação de iCo r (2,7-10) (Jung om itiu "Deus" antes de "ante secula"). As partes citadas são
marcadas aqui em itálico: "Mas nós falamos a sabedoria de Deus em m istério, sabedoria escondida, que Deuspreordenou antes
dos séculos para nossa glória: a qual nenhum dos príncipes deste mundo conheceu; pois, se a tivessem conhecido,
não teriam crucificado o Senhor da glória. Mas, como está escrito: o olho não viu nem o ouvido ouviu,
nem penetraram no coração do homem as coisas que Deus preparou para aqueles que o amam. Mas Deus
revelou-as a nós por seu Espírito: pois o Espírito perscruta todas as coisas, até m esm o as profundezas de Deus". Inscrição
em cada lado do arco: "Spiritus et sponsa dicunt ven i et qui audit dicat veni et qui sitit veniat et qui vult
accipiat acquam vitae grátis". O texto é do Ap 22,17: "O Espírito e a esposa dizem: Vem. E aquele que ouve
diga: Vem . E aquele que tem sede venha. E quem quiser receba de graça a água da vida". Inscrição acima
do arco: "ave virgo virginum"(Salve, virgem das virgens!). Este é o título de um hino medieval.
284 29 de janeiro de 1914.
366 L I B E R S E C U N D U S 155/157

E u : "T e n h o d ific u ld a d e e m a ce it a r ist o . E u a c r e d it a va q u e est avas e m í n t i m a

155/156 c o n e xã o c o m t o d o o a lé m / 2 8 s , c o m o m á x i m o e o m a is i n c o m u m . P o r isso p e n -

se i q u e b a n a lid a d e lh e s e r ia c o is a e s t r a n h a ".

C : "A b a n a lid a d e é m e u e le m e n t o vi t a l ".

E u : "Se e u a fir m a sse is t o d e m i m , s e r i a b e m m e n o s s u r p r e e n d e n t e ".

C : "Q u a n t o m a i s i n c o m u m t u fo r es, m a is c o m u m p o sso se r e u . U m ve r d a -

d e i r o r e p o u so p a r a m i m . Ac h o q u e se n t e s q u e h o je n ã o p r e c iso a t o r m e n t a r -

- m e ".

E u : "Si n t o - o e e s t o u p r e o c u p a d o q u e t u a á r vo r e ao fi n a l n ã o p r o d u z a m a is

n e n h u m fr u t o p a r a m i m ".

C : "Já p r e o cu p a d o ? N ã o sejas t o lo e d e i xa - m e d e sca n sa r ".

Eu : "P e r ce b o q u e t e co n t e n t a s c o m o b a n a l. M a s n ã o a ch o q u e sejas t r ágica,

m i n h a p r e z a d a a m iga , p o is ago r a já t e c o n h e ç o b e m m e l h o r d o q u e a n t iga m e n t e ".

C : " T u t e t o r n a s i n c o n ve n i e n t e . T e m o q u e t e u r e s p e it o e s t e ja d e s a p a r e -

c e n d o ".

E u : "Es t á s c o m m e d o ? C r e i o q u e s e r ia su p é r flu o . Es t o u b a st a n t e i n fo r m a d o

so b r e a c o n t igu id a d e e n t r e opathos e o b a n a l".

C : "P e r ce b e st e p o r t a n t o a l i n h a s e r p e n t i fo r m e d o t o r n a r - s e a n í m i c o ? Vi s t e

c o m o lo go se faz d ia , lo go se faz n o it e ? C o m o se a l t e r n a m á gu a e t e r r a seca? E

q u e t o d o c o n vu ls ivo é p r e ju d i c i a l ?"

E u : "Ac h o q u e e u o vi . So b r e e st a p e d r a q u e n t e , q u e r o fica r ao s o l p o r a lgu m

t e m p o . T a l ve z o so l m e ch o q u e ".

M a s a c o b r a a p r o xi m o u - s e d evagar , e n vo l ve u h a b i li d o s a e s i n i s t r a m e n t e

m e u s p é s 2 8 6 . An o i t e c e u e a n o i t e ch e go u . E u fa le i c o m a c o b r a e lh e d isse: " N ã o

se i o q u e d iz e r . C o z i n h a - s e e m t o d a s as p a n e la s".
28?
C : " U m a r e fe iç ã o e st á se n d o p r e p a r a d a ".

E u : " U m ja n t a r ?"

C . U m a c o n fr a t e r n iz a ç ã o c o m t o d a a h u m a n i d a d e ".

285 A partir deste ponto, no volume caligráfico, tornou-se menos coerente a coloração, por parte de Jung,
das iniciais em vermelho e azul. Algumas foram acrescentadas aqui por questão de coerência.
286 Esta linha não está no Livro Negro 4, onde a voz não é identificada como a cobra.
287 31 de janeiro de 1914.
O M AGO 367

Eu : " U m a h o r r i p i l a n t e e d o ce i d e i a d e se r ao m e s m o t e m p o c o m e n s a l e
c o m i d a d esse j a n t a r " 2 8 8 .
C : "I s t o foi t a m b é m o m a i o r p r a z e r d o C r i s t o !"
Eu : " C o m o t u d o flui d e m o d o sa n t o e p e ca d o r , q u e n t e e fr io p a r a d e n t r o
u m d o o u t r o ! Lo u c u r a e r a z ã o q u e r e m ca sa r -se , c o r d e i r o e lo b o p a s t a m ju n t o s
p a c i fi c a m e n t e 2 8 9 . T u d o é s i m e n ã o . O s o p o st o s se a b r a ç a m . O l h a m - s e m u t u -
a m e n t e n o s o lh o s e se a l t e r n a m . Re c o n h e c e m n u m p r a z e r t o r t u r a n t e s e u se r
u n o . M e u c o r a ç ã o e s t á r e p le t o d e l u t a fu r io sa . A s o n d a s d e u m a t o r r e n t e c la r a
e e s c u r a a p r e ssa m - se e m p r e c ip it a ç ã o u m a s c o n t r a as o u t r a s. Se m e lh a n t e c o is a
n u n c a s e n t i a n t e s".
C : "I s t o é n o vo , m e u ca r o , ao m e n o s p a r a t i ".
E u : " T u ca ço a s. M a s lá gr im a s e s o r r is o sã o u m a c o is a s ó 2 9 ° / Am b a s as co isa s 156/157
se p a s s a r a m co m igo e e u e s t o u e m r ígid a t e n sã o . O a m o r o s o ch e ga a t é o c é u e
igu a lm e n t e a lt o ch e ga a q u ilo q u e se o p õ e . O s d o is se m a n t ê m e n la ç a d o s e n ã o
d e s e ja m se p a r a r - se , p o is o e xce sso d e s u a t e n s ã o p a r e ce sign ifica r o ú l t i m o e
m á x i m o d e p o s s ib ilid a d e s e n t i m e n t a l ".
C : " T u t e e xp r e ssa s d e m o d o p a t é t ic o e filo só fico . Sab es q u e t u d o isso t a m -
b é m p o d e se r d it o d e m a n e i r a b e m m a is sim p le s. P o d e r - s e - i a d iz e r , p o r e x e m -
p lo , q u e és a m a d o p e lo s ca r a có is a t é ch e ga r Tr is t ã o e I s o l d a " 2 9 1.
E u : "Si m , e u se i, m a s ap esar d isso - "
C : "Se r á q u e a r e ligiã o a i n d a t e a t o r m e n t a ? D e q u a n t o s e scu d o s a i n d a p r e -
cisas? D i z e - o c o m t o d a fr a n q u e z a ".
E u : " T u n ã o m e a t in ge s".
C : "P o i s e n t ã o , o q u e a co n t e ce c o m a m o r a l? M o r a l e i m o r a l t o r n a r a m - s e
h o je t a m b é m u m a c o is a s ó ?"
E u : " T u ca ço a s, m i n h a i r m ã e d e m ó n i o c t ô n ic o . M a s d e vo d i z e r - t e q u e

aq u eles d o is q u e se m a n t ê m e n la ç a d o s e q u e c h e ga m a t é o c é u sã o t a m b é m o

288 Em Mysterium Coniunctionis (1955/ 1956), Jung observa: "Se o conflito projetado deve ser sanado, precisa
ele retornar à alma do indivíduo, onde ele se originou de modo inconsciente. Q uem quiser dominar esta
ruína, deve celebrar uma ceia consigo mesmo, comendo sua própria carne e bebendo seu próprio sangue,
isto é, deve reconhecer e aceitar o outro dentro de si" ( O C, 14/2, § 176).
289 C f Is I I ,6 : "Então o lobo será hóspede do cordeiro, e o leopardo se deitará com o cabrito; o bezerro, o
leãozinho e o animal cevado estarão juntos, e um menino os conduzirá".
290 Nota marginal: " X I V AU G . 1925". Isto parece referir-se à data em que esta passagem foi transcrita
no volume caligráfico. No outono de 1925, Jung foi para a Africa com Peter Baynes e George Beckwith.
Saíram da Inglaterra em 15 de outubro e chegaram de volta em Zurique no dia 14 de março de 1926.
291 A narrativa, datada do século X I I , do romance adulterino entre o cavaleiro cornualhês, Tristão, e a
princesa irlandesa, Isolda, foi recontada em muitas versões, até a ópera de Wagner, à qual Jung se refere
como um exemplo da forma visionária de criação artística ("Psicologia e poesia", 1930. O C , 15, § 142).
368 L I B E R S E C U N D U S 157/160

b e m e o m a l . N ã o e s t o u b r i n c a n d o , m a s ge m o p o r q u e a le gr ia e d o r s o a m e s t r i -
d e n t e m e n t e e m c o n s o n â n c ia ".

C : M a s o n d e e s t á a t u a in t e ligê n c ia ? Fic a s t e c o m p l e t a m e n t e t o lo . P o d e r ia s
r e s o lve r t u d o e m p e n s a m e n t o ".
E u : " M i n h a in t e ligê n cia ? M e u p e n sa r ? Já n ã o t e n h o in t e ligê n cia . T o r n o u - s e
in s u fic ie n t e p a r a m i m ".
C: " T u r e n e ga s t u d o e m q u e a cr e d it a s. Esq u e ce s c o m p l e t a m e n t e q u e m és.
Re n e ga s a t é m e s m o o Fa u st o , q u e p a sso u p e la m a r c h a s ile n c io s a d o s fa n t a s-
m a s ".

E u : " E u n ã o p o sso m a is . M e u e s p ír it o t a m b é m é u m fa n t a sm a ".


C : " Be m o ve jo . T u segu es m e u s e n s in a m e n t o s ".
E u : "I n fe l i z m e n t e a s s im é, e ist o m e ca u sa u m a a le gr ia d o lo r o sa ".
C: " T u fazes d e t eu s s o fr im e n t o s u m p r a z e r . Es t á s d e t u r p a d o , cego; p o is
e n t ã o so fr e, m a lu c o ".

Eu : "E s t a d e s gr a ç a va i a le gr a r - m e ".

N e s t e m o m e n t o , a c o b r a fi c o u r a ivo s a e d e u u m b o t e n a d ir e ç ã o d o m e u
co r a çã o , m a s q u e b r o u su as p r e sa s ve n e n o sa s n a m i n h a a r m a d u r a e s c o n d i d a 2 9 2 .
D e c e p c i o n a d a , r e c o lh e u - s e e d isse s ib ila n d o : " T u t e c o m p o r t a s r e a l m e n t e c o m o
se fosses in a t in gíve l".

Eu : "I s t o v e m d o fat o d e e u t e r a p r e n d i d o a p is a r c o m o p é e sq u e r d o so b r e

o d i r e i t o e vic e - ve r s a , o q u e o u t r a s p esso as fi z e r a m i n c o n s c i e n t e m e n t e d e sd e

s e m p r e ".
En t ã o a c o b r a se e n d i r e i t o u d e n o vo , c o lo c o u a p a r t e d a c a u d a c o m o p o r
58 acaso / d ia n t e d a b o ca , p a r a q u e e u n ã o p u d e sse ve r as p r e sa s ve n e n o sa s q u e b r a -
d as, e d isse o r gu lh o s a e c a l m a m e n t e 2 9 3 : "P o r t a n t o , t u fi n a l m e n t e o p e r ce b e st e ?"
M a s s o r r i n d o e u lh e d isse: "A l i n h a s e r p e n t ifo r m e d a v i d a n ã o p o d i a e sca p a r -
- m e p o r m u i t o t e m p o ".

[2] [ I H 158] O n d e e s t ã o fid e lid a d e e fé? O n d e c o n fia n ç a t é p id a ? T u d o ist o


e n c o n t r a s e n t r e as p essoas, m a s n ã o e n t r e p esso as e co b r a s, m e s m o q u e s e ja m
co b r a s a n ím ic a s . M a s e m t o d a p a r t e o n d e e xis t e a m o r , h á algo d e s e r p e n t in o .

292 Esta frase não está no Livro Negro 4.


293 Esta frase não está no Livro Negro 4.
O M AGO 369

O p r ó p r i o C r i s t o c o m p a r o u - s e a u m a s e r p e n t e 2 9 4 , e s e u i r m ã o i n fe r n a l , o A n t i -
cr ist o , é o p r ó p r i o ve l h o d r a g ã o 2 9 5 . O e xt r a - h u m a n o q u e se m a n i fe s t a n o a m o r
é d a n a t u r e z a d a c o b r a e d o p á ssa r o , e m u i t a s ve z e s a c o b r a e n fe it iç a o p á s s a r o
e r a r a s ve z e s o p á s s a r o le va a m e l h o r so b r e a co b r a . A p e sso a e st á n e st e i n t e r -
m é d io . O q u e t e p a r e ce p á ssa r o , p a r a o o u t r o é co b r a , e o q u e t e p a r e ce c o b r a
é p á s s a r o p a r a o o u t r o . P o r isso só t e id e n t ific a r á s c o m o o u t r o n o h u m a n o .
Se q u e r e s t o r n a r - t e , h á u m a l u t a e n t r e p á s s a r o s e co b r a s. E s ó q u a n d o q u e r e s
ser, se r á s p e sso a p a r a t i m e s m o e p a r a os o u t r o s. Aq u e l e q u e e st á e m p r o ce sso
d e t o r n a r - s e p e r t e n c e ao d e se r t o o u a u m a p r isã o , p o is e s t á n o e xt r a - h u m a n o .
Q u a n d o as p esso as q u e r e m t o r n a r - s e , c o m p o r t a m - s e c o m o a n im a is . N i n g u é m
n o s sa lva d o m a l d o t o r n a r - s e , a n ã o ser q u e p a sse m o s l i vr e m e n t e p e lo in fe r n o .

M a s p o r q u e agi a s s im c o m o se a q u e la c o b r a fosse m i n h a a lm a ? C e r t a m e n t e
p o r q u e m i n h a a l m a e r a u m a co b r a . Es t e c o n h e c i m e n t o d e u à m i n h a a l m a n o va
a p a r ê n c ia , e e u d e c i d i q u e d o r a va n t e e u a e n fe it iç a r ia e a s u b m e t e r i a ao m e u
p o d e r . A s co b r a s sã o e sp e r t a s, e e u q u e r i a q u e m i n h a c o b r a a n í m i c a d i vi d i s -
se c o m igo s u a e sp e r t e z a . N u n c a a v i d a fo i t ã o p r o b l e m á t i c a c o m o agor a, u m a
n o it e d e t e n s ã o s e m o b je t ivo , u m se r u n o n o se r d i r e c i o n a d o u m c o n t r a o o u -
t r o . N a d a se m o vi m e n t a , n e m D e u s , n e m o d e m ó n i o . D i r i g i - m e e n t ã o à c o b r a
q u e e st a va d e it a d a ao so l, c o m o se e m n a d a p e n sa sse . N ã o se v i a m seu s o lh o s,
29 6
p o is p e st a n e ja va n a b r i l h a n t e l u z d o so l, e / [Ilu s t r a ç ã o 159 ] / {3} [1] e u lh e 158/ 160

29 4 Jung comentou a comparação de Crist o com a serpente em Transformações e símbolos da libido. O C , B, § 585 e
em Aíon (19 51). O C , 9/ 2, § 29 1) .
29 5 C f Transform ações e sím bolos da libido. O C , B, § 585.
29 6 Legenda da ilustração: "D. I X januarii obiit Hermannus Sigg aet.s. 52 amicus meus" [9 de janeiro de
1927, morreu meu amigo Herm an n Sigg, aos 52 anos de idade]. Jung descreveu esta ilustração como "uma
flor luminosa no centro, com estrelas girando ao seu redor. Em volta da flor, paredes com oito portões.
O todo concebido como uma janela transparente". Esse mandala se baseia num sonho registrado em 2
de janeiro de 1927 (cf. acima, p. 76 ) . Ele também desenhou o "mapa da cidade", onde fica clara a relação
entre o sonho e a pintura (cf. Apêndice A) . Ele reproduziu anonimamente isto em 1930, no "Com entário
a 'O segredo da flor de ouro'", do qual é tomada esta descrição. Reproduziu-a novamente em 1952, e
acrescentou o seguinte comentário: "A rosa no centro é representada como um rubi, cuja circunferência
foi concebida como uma roda ou um muro circundante com pórticos (a fim de que o que está dentro
não saia e o nada de fora possa entrar). O mandala é um produto espontâneo da análise de um paciente".
Depois de contar o sonho, Jung acrescentou: "O sonhador diz: 'Tentei pintar este sonho, mas, como de
costume, saiu algo bem diferente. A magnólia tornou-se um tipo de rosa de vidro e sua cor era de um rubi
claro. Ela brilha como uma estrela de quatro raios. O quadrado representa o muro que cerca o parque e
ao mesmo tempo uma rua que circunda o parque quadrado. Neste começam quatro ruas principais e de
cada uma saem oito ruas secundárias, as quais se encontram num ponto central de brilho avermelhado, à
semelhança da Etoile de Paris. O conhecido mencionado no sonho mora em uma casa de esquina, numa
dessas Etoiles'. O mandala reúne, pois, os temas clássicos: flor, estrela, círculo, praça cercada (temenos),
planta de bairro de uma cidade com uma cidadela. 'O todo me parece uma janela que se abre para a
eternidade', escreve o sonhador" ("O simbolismo do mandala". O C , 9/ 1, § 655). Em 1955/ 1956, usou esta
mesma expressão para designar a ilustração do si-mesmo (Mysterium coniunctionis. O C , 14, § 4 18 ) . No dia 7 de
37o LI BE R SECU N D U S 160/ 161

fa l e i 2 9 7 : "C o m o s e r á agor a, já q u e D e u s c o d e m ó n i o se t o r n a r a m u m só ? El e s
c o n c o r d a r a m e m p a r a lis a r a vid a ? A l u t a d o s o p o st o s p e r t e n c e às c o n d i ç õ e s
in d is p e n s á ve is d a vid a ? E fica p a r a d o q u e m c o n h e ce e vi ve o ser u n o d o s o p o s -
t os? E l e t o m o u t o t a lm e n t e o p a r t i d o d a ve r d a d e i r a v i d a e n ã o age m a is c o m o se
p e r t e n ce sse a u m p a r t i d o e d e ve sse c o m b a t e r os o u t r o s, m a s ele é a m b o s e p ô s
u m f i m à s u a c o n t e n d a . E p e lo fat o d e h a ve r t ir a d o est e p e so d a vi d a , t i r o u - l h e
t a m b é m o i m p u l s o ? "2 9 8

En t ã o a c o b r a se v i r o u e d isse m a l - h u m o r a d a : "Ve r d a d e i r a m e n t e , t u m e a fli -


ges. A o p o s i ç ã o s e m p r e fo i p a r a m i m u m e le m e n t o vi t a l . I s t o d e ve s t e r p e r c e -
b id o . C o m t u as i n o va ç õ e s d e sa p a r e ce u e st a m i n h a fo n t e d e fo r ça . N ã o co n sigo
s e d u z i r - t e com pathos n e m i r r i t a r - t e c o m b a n a lid a d e . Es t o u algo co n fu sa ".
E u : "Se e st á s co n fu sa , q u e r e s q u e e u t e d ê co n se lh o s? M e r g u l h a - m e d e p r e -
fe r ê n c ia n o s fu n d a m e n t o s m a is p r o fu n d o s a q u e t e n s acesso e p e r g u n t a ao H a -
d es o u ao ce le st ia l, t a lve z lá s a ib a m d a r a lg u m c o n s e lh o ".
C : " T u ficast e a u t o r it á r io ".
E u : "A n e ce ssid a d e é a i n d a m a is a u t o r it á r ia d o q u e e u . P r e c is o vi ve r e p o d e r
m o vi m e n t a r - m e ".
C : " T u t e n s o va st o m u n d o . O q u e d eseja s p e r gu n t a r ao a lé m ?"
E u : " N ã o so u le va d o p e la c u r io s id a d e , m a s p e la n e ce ssid a d e , e u n ã o r e t r o -
ce d o ".
C : " E u o b e d e ç o , m a s r e sist in d o . Es t e e st ilo é n o vo e in u s it a d o p a r a m i m ".
E u : "La m e n t o , m a s a n e ce ssid a d e u r ge. D i z e à p r o fu n d e z a q u e n o ssa s i t u a -
ç ã o é d ifícil, p o r c o r t a r m o s d a v i d a u m ó r g ã o i m p o r t a n t e . C o m o sab es, n ã o s o u
o cu lp a d o , p o is m e le va st e p r e m e d i t a d a m e n t e a est e c a m i n h o ".

outubro de 1932, Jung mostrou este mandala num seminário e o comentou no dia seguinte. Neste relato,
afirma que o desenho do mandala precedeu o sonho: "Vocês se lembram provavelmente do quadro que lhes
mostrei ontem à noite, a pedra central e as pequenas jóias ao seu redor. Talvez seja interessante que lhes
fale sobre o sonho em conexão com o quadro. Eu fui o perpetrador desse mandala num tempo em que
não tinha a mínima ideia do que era um mandala, e em minha extrema modéstia pensei que eu era a joia
no centro e que aquelas pequenas luzes eram certamente pessoas muito simpáticas que acreditavam que
elas também eram jóias, só que menores... Eu tinha um bom conceito de m im , pensando que era capaz
de expressar a m im mesmo assim: meu centro maravilhoso aqui e eu estando bem em meu coração". Ele
acrescentou que não reconhecia de imediato que o parque era a mesma coisa que o mandala que havia
desenhado e comentou: "Agora Liverpool é o centro da vida - liver (fígado) é o centro da vida - e eu não
sou o centro, eu sou o louco que vive em algum lugar escuro, sou uma daquelas pequenas luzes laterais.
Desta forma, meu preconceito ocidental de eu ser o centro do mandala foi corrigido - de que sou tudo,
sou o espetáculo todo, o rei, o deus" (The Psychology of Kundalíní Yoga, p. 10 0 ) . Em Memórias, Jung acrescenta
outros detalhes (p. 235-236).
29 7 I o de fevereiro de 1914.
29 8 No Livro Negro 4, também consta: "Eu te faço hoje esta pergunta, minha alma" (p. 9 1). Aqu i a cobra é
substituída pela alma.
O M AGO 37i

2
C: " " T u p o d e r ia s t e r r e cu sa d o a m a ç a ' .
E u : " D e i x a d e b r i n c a d e i r a . T u co n h e ce s a q u e la h is t ó r ia m e l h o r d o q u e e u .
P a r a m i m e la é sé r ia . E p r e ciso q u e h a ja ar. P õ e - t e a c a m i n h o e p e ga o fogo. Já
faz t e m p o d e m a is q u e e st á e scu r o ao m e u r e d o r . És p r e g u i ç o s a o u c o va r d e ?"
C : "E s t o u i n d o à o b r a . Va i p e ga n d o o q u e e u t r o u xe lá d e b a i x o " 3 0 0 .

[ I H 160] D e va ga r le va n t a - s e n o r e c i n t o va z i o o t r o n o d e D e u s , e m se gu id a
v e m a Sa n t í s s i m a T r i n d a d e , o c é u in t e ir o , d e p o is t o d o o i n fe r n o e, ao fin a l, o
p r ó p r i o sa t a n á s. E l e r e sist e e se a fe r r a ao s e u a lé m . N ã o q u e r / a b a n d o n á - l o . O 160/ 161

m u n d o s u p e r io r é p a r a ele m u i t o fr esco.
C : "Co n s e g u e s s e g u r á - lo b e m ? " 3 0 1
E u : "Be m - v i n d o , h a b it a n t e q u e n t e d as t r e va s! M i n h a a l m a t e t r o u xe c o m
vi o lê n c i a p a r a c i m a ?"
302
S: "0 q u e s ign ific a est e b a r u lh o ? P r o t e s t o c o n t r a est e a r r a n c a r vi o l e n t o ".
Eu : "F i c a ca lm o . E u n ã o t e e sp e r a va . Vi e s t e p o r ú lt im o . Pa r e ce s se r a p a r t e
m a is p e sa d a ".

S: " O q u e q u e r e s d e m i m ? N ã o p r e ciso d e t i , c o m p a n h e i r o m a lc r ia d o ".


E u : " E b o m q u e t e t e n h a m o s . T u és o m a is vi vo d e t o d a a d o g m á t i c a " 3 0 3 .
S: " O q u e m e i m p o r t a t e u le r o - le r o ? So m e d e p r e ssa . E s t o u c o m fr io ".
E u : "O u v e b e m , a c o n t e c e u - n o s a lgu m a co isa , n ó s u n i m o s os o p o st o s. En t r e
o u t r o s, t a m b é m fiz e m o s c o m q u e t u fosses u m c o m D e u s " 3 0 4 .
S: "Se n h o r D e u s , fo i e st e o b a r u l h o a b o m i n á ve l ? Q u e e s t u p id e z a p r o n -
t a st e s?"

E u : "D e s c u l p e , m a s is t o n ã o fo i t ã o e s t ú p id o . A u n i ã o é u m p r i n c í p i o i m p o r -
t a n t e . N ó s c o lo c a m o s u m f i m n e s t a d i s p u t a i n t e r m i n á ve l, a f i m d e fi n a l m e n t e
t e r m o s as m ã o s livr e s p a r a a ve r d a d e i r a vi d a ".

S: "I s t o c h e i r a a m o n i s m o . E u t o m e i n o t a d e a lgu n s d esses se n h o r e s. P a r a

eles fo r a m a q u e cid a s c â m a r a s e sp e cia is".

29 9 Livro Negro 4: "Tu brincas comigo de Adão e Eva" (p. 9 3) .


30 0 Nota marginal no volume caligráfico: "Visio".
301 Livro Negro 4: "Satanás com chifres e rabo sai de um buraco escuro, eu o puxo pelas mãos" (p. 9 4 ) .
30 2 O interlocutor agora é satanás.
303 Para o relato de Jung sobre o significado de satanás, cf. Resposta a Jó (19 52). O C , 11/4.
30 4 Jung discutiu longamente a questão da união dos opostos em Tipos psicológicos (19 21), cap. V "O problema
dos tipos na arte poética". A união dos opostos acontece através de produção do símbolo da reconciliação.
372 L I B E R S E C U N D U S 161/164

E u : " T u t e e n ga n a s. Co n o s c o as co isa s n ã o a c o n t e c e m t ã o r a c i o n a lm e n t e .
T a m b é m n ã o t e m o s n e n h u m a ve r d a d e d e fi n i t i v a 3 0 5 . T r a t a - s e a n t e s d e u m fat o
n o t á ve l e e s t r a n h o : d e p o is d a u n i ã o d o s o p o st o s a c o n t e c e u - o q u e é i n e s p e r a -
d o e i n c o m p r e e n s í ve l , q u e n a d a m a is a co n t e ce u . T u d o fi c o u e m p a z u m c o m o
o u t r o , m a s t o t a lm e n t e i m ó ve l, e a v i d a t r a n s fo r m o u - s e n u m a p a r a lis a ç ã o ".

S: "Ah , seu s i m b e c i s , a p r o n t a st e s algo b e m b o n i t o ".


E u : " T u a z o m b a r i a é d e sn e ce ssá r ia . I s t o a c o n t e c e u c o m i n t e n ç ã o sé r ia ".
S: " N ó s ch e ga m o s a s e n t i r e st a vo ssa se r ie d a d e . A o r d e m d o a lé m e s t á a b a -
la d a n a s su as fu n d a ç õ e s ".

E u : "P e r ce b e s, p o r t a n t o , q u e se t r a t a d e c o is a sé r ia . Q u e r o u m a r e sp o st a à
m i n h a p e r g u n t a so b r e o q u e d e ve a co n t e ce r a go r a n e s t a sit u a çã o . N ã o sa b e m o s
m a is n a d a d a q u i p a r a fr e n t e ".
S: "Aq u i u m b o m c o n s e lh o fica ca r o , m e s m o q u a n d o se go st a r ia d e d á - lo .
V ó s so is lo u co s d e s lu m b r a d o s , u m a ge n t e d e sca r a d a . P o r q u e fost es m e t e r as
m ã o s n isso ? C o m o q u e r e is e n t e n d e r a o r d e m d o m u n d o ? "

E u : "Q u a n d o n o s acu sas, p a r e ce q u e ist o t e a b o r r e ce d e m o d o e sp e cia l. Vê , a


Sa n t í s s i m a T r i n d a d e e s t á se r e n a . A s in o va ç õ e s n ã o p a r e c e m c o n t r a r iá - la .
161/ 162 S: " Be m , a T r i n d a d e é t ã o i r r a c i o n a l , q u e n ã o / se p o d e c o n fia r e m su as r e a -
çõ e s. E u t e d e sa co n se lh o ve e m e n t e m e n t e a t o m a r a s é r io d e q u a lq u e r m a n e i r a
aq u eles s í m b o l o s " 3 0 6 .

E u : "Ag r a d e ç o - t e o c o n s e lh o b e m - i n t e n c i o n a d o . M a s p a r e ce s in t e r e s s a d o .
N ó s p o d e r í a m o s e s p e r a r d e t u a p r o ve r b i a l i n t e l i g ê n c i a u m ju l g a m e n t o i m -
p a r c i a l ".

S: " N ã o e s t o u se n d o p a r c ia l. T u m e s m o p o d e s ju lga r . Se e xa m i n a r e s est e a b -


s o lu t is m o e m t o d a a s u a se r e n id a d e s e m vi d a , p o d e s fa c ilm e n t e p e r c e b e r q u e a
sit u a çã o e p a r a lis a ç ã o cau sad as p o r t u a in d is c r iç ã o t ê m gr a n d e s e m e l h a n ç a c o m
o a b so lu t o . Se e u t e a co n se lh o c o n t r a isso, c o lo c o - m e t o t a lm e n t e d o t e u lad o ,
p o is n e m t u co n se gu e s s u p o r t a r e st a p a r a lis a ç ã o ".

E u : "C o m o ? T u e st á s d o m e u la d o ? I s t o é e s t r a n h o ".

S: " N ã o h á n a d a d e e s t r a n h o n isso . O a b so lu t o s e m p r e fo i d e s fa vo r á ve l ao
ser vivo . E u , n o e n t a n t o , s o u o ve r d a d e i r o m e s t r e d a vi d a ".

305 Em vez dessa frase, o Livro Negro 4, tem: "Conosco não transcorre tudo tão intelectualmente e eticamente
em geral como no monismo" (p. 9 6 ) . A referência é ao sistema monista de Ern st Haeckel, que Jung
criticava.
30 6 Cf. JU N G . "Tentativa de uma interpretação psicológica do dogma da Trindade" ( 19 4 0 ) . O C , I I .
O M AGO
373
E u : "I s t o é su sp e it o . T u r e a ge s d e m o d o m u i t o p e sso a l".

S: " E u n ã o r e a jo d e m o d o p e sso a l. So u t o t a l m e n t e a v i d a s e m d e sca n so ,

a p r e ssa d a . N u n c a e s t o u sa t isfe it o , n u n c a se r e n o . E u d e r r u b o t u d o e r e c o n s t r u o

r a p i d a m e n t e . So u e g o í s m o , a vid e z d e fa m a , p r a z e r d e r e a li z a ç õ e s , s o u a fo n t e d e

n o va s id e ia s e a ç õ e s . O a b s o lu t o é e n fa d o n h o e ve ge t a t ivo ".

E u : " E u q u e r o a c r e d i t a r e m t i . P o r t a n t o , o q u e a c o n s e lh a s ?"

S: " O m e l h o r q u e t e p o sso a c o n s e lh a r é: fa z e c o m q u e t o d a t u a i n o va ç ã o

p r e j u d i c i a l vo l t e à p o s i ç ã o a n t e r i o r o q u a n t o a n t e s p o s s í ve l ".

E u : " O q u e se g a n h a r á c o m isso ? T e r í a m o s d e r e c o m e ç a r d e sd e o i n í c i o e

c h e g a r í a m o s i m p r e t e r i v e l m e n t e u m a s e gu n d a ve z à m e s m a c o n c lu s ã o . O que

se a p r e n d e u u m a ve z n ã o p o d e se r i n t e n c i o n a l m e n t e n ã o s a b id o e fa z ê - l o n ã o

a c o n t e c id o . T e u c o n s e l h o n ã o é c o n s e l h o n e n h u m ".

S: "M a s n ã o p o d e is e xis t ir s e m b ip a r t iç ã o e s e m co n t e n d a . D e ve i s in q u ie t a r - vo s

p o r a l g u m a c o is a , t o m a r u m p a r t i d o , ve n c e r o p o s i ç õ e s , se q u is e r d e s v i v e r ".

E u : "I s t o n ã o a ju d a e m n a d a . N ó s n o s ve m o s t a m b é m n a o p o s i ç ã o . Es t a m o s

fa r t o s d e s t e jo go ".

S: " E , c o m isso , d a v i d a ".

E u : "P a r e c e - m e q u e se t r a t a d a q u i l o q u e c h a m a s d e vi d a . T e u c o n c e i t o d e

v i d a t e m a lgo d e e s c a la d a e a lgo d e d e r r o c a d a , d e a fi r m a ç ã o e d ú vi d a , d e u m

d e a m b u l a r in c e s s a n t e , / [ I l u s t r a ç ã o 16 3] 30 7 / d e d e s e jo i r r e fl e t i d o . Fa l t a - t e o 162/ 164

a b s o lu t o e s u a p a c i ê n c i a l o n g â n i m e ".

30 7 Legenda da ilustração: "1928. Ao pintar este quadro, que mostra o castelo de ouro bem armado,
mandou-me Rich ard W ilh elm de Frankfurt o texto chinês, com m il anos de idade, sobre o castelo
amarelo, o germe do corpo imortal, Ecclesia catholica et protestantes et seclusi in secreto. Aeon finitus"
[A Igreja Católica e os protestantes envoltos em segredo. O fim de um éon]. Jung descreve a ilustração
como "uma flor luminosa no centro, com estrelas girando a seu redor. Em volta da flor, paredes com oito
pórticos. O todo concebido como uma janela transparente". Jung reproduziu isso anonimamente em 1930
no "Com entário ao 'Segredo da flor de ouro'", do qual é tirada esta descrição. Reproduziu-o novamente
em 1952, em "O simbolismo do mandala" e acrescentou o seguinte comentário: "Representação de uma
cidade medieval, com fossos de água, ornamentos e igrejas numa disposição de quatro raios. A cidade
interna também é cercada de muros e fossos, semelhante à cidade imperial em Pequim. Toda a construção
abre-se aqui em direção ao centro, representado por um castelo com teto de ouro. Este também é
cercado por um fosso de água. O chão em torno do castelo é coberto de ladrilhos pretos e brancos. Eles
representam os opostos que assim se reúnem. Este mandala foi feito por um homem de idade madura...
Tal imagem não é estranha à simbologia cristã. A Jerusalém celeste do Apocalipse de São João é conhecida
de todos. No mundo das ideias indianas encontramos a cidade de Brahma no Monte Meru, montanha do
mundo. Podemos ler na Flor de ouro: 'O livro do Castelo Am arelo diz: No campo de uma polegada quadrada
da casa de um pé quadrado podemos ordenar a vida. A casa de um pé quadrado é a face. Na face, o campo
da polegada quadrada, o que poderia ser senão o coração celeste? No meio da polegada quadrada mora a
glória. Na sala púrpura da cidade de jade mora o deus do vazio supremo e da vida'. O s taoístas chamam
este centro de 'terra dos antepassados ou Castelo Am arelo'" ( O C, 9/ 1, § 6 9 1) . Sobre este mandala, cf.
P EC K, J. TheVisio Dorothei: Desert Con text, Im perial Setting, Later Alignments. Zurique: C G . Jung
Institute, Zurique 1992, p. 183-185. [Tese de diplomação].
LI BE R SECU N D U S 164/ 166
374
S: "Co r r e t o , m i n h a vi d a b o r b u l h a , e s p u m e ja e le va n t a o n d a s agit ad as, é p u -
xa r p a r a si e jo ga r fo r a , d e se jo ve e m e n t e e d esassossego. I s t o p o r acaso é vi d a ?"
E u : "M a s o a b so lu t o t a m b é m vi ve ".
S: "I s t o n ã o é vi d a . E p a r a lis a ç ã o o u , m e l h o r d it o , e q u iva le n t e à p a r a lisa çã o :
vi ve i n fi n i t a m e n t e d e va ga r e d e s p e r d i ç a m i l é n i o s , e xa t a m e n t e c o m o o e st a d o
m is e r á ve l q u e vó s cr ia st e s".
E u : " T u m e a ce n d e s u m a lu z . T u és v i d a p e sso a l, m a s a p a r a lis a ç ã o a p a r e n t e é
á v i d a l o n g â n i m e d a e t e r n id a d e , á v i d a d a d ivin d a d e . D e s t a ve z m e a co n se lh a st e
b e m . E u t e d e ixo livr e . Bo a vi a g e m !"

[ I H 164] Sa t a n á s d e s l i z o u r a p i d a m e n t e c o m o u m a t o u p e i r a p a r a d e n t r o d e
se u b u r a co . O s s í m b o l o s d a T r i n d a d e e s e u s é q u it o e r gu e m - s e c a l m a e s e r e n a -
m e n t e ao cé u . E u t e a gr a d e ç o , c o b r a , t u t r o u xe s t e à t o n a p a r a m i m o ju st o . Su a
lin gu a ge m é c o m p r e e n d i d a u n i ve r s a l m e n t e , p o is e la é p e sso a l. P o d e m o s n o va -
m e n t e vive r , u m a lo n ga vid a . P o d e m o s d e s p e r d i ç a r m i lé n i o s .

[ I H 164/ 2] [2] O n d e c o m e ç a r , ó vó s d eu ses? N o s o fr im e n t o , n a a le gr ia o u


n o s e n t i m e n t o i n t e r m é d i o m a ls u c e d id o ? O c o m e ç o é s e m p r e a c o is a m e n o r , ele
i n i c i a n o n a d a . Q u a n d o c o m e ç o lá, ve jo a go t a "a lgo " q u e c a i n o m a r d o n a d a . É
p r e c iso c o m e ç a r s e m p r e lá b e m e m b a ixo , o n d e o n a d a se a m p l i a e m lib e r d a d e
i l i m i t a d a 3 0 8 . A i n d a n ã o a c o n t e c e u n a d a , o m u n d o a i n d a p r e c is a c o m e ç a r , o so l
a i n d a n ã o n a sce u , a t e r r a fi r m e a i n d a n ã o e st á se p a r a d a d as á g u a s 3 0 9 . A i n d a n ã o
s u b im o s n a s co st as d e n o sso s p a is, p o is t a m b é m n o sso s p a is a i n d a n ã o se t o r -
n a r a m . Fa l e c e r a m h á p o u c o e d e s c a n s a m n o se io d e n o ssa Eu r o p a sa n gu in á r ia .
N ó s e st a m o s n a a m p l i d ã o , u n i d o s à c o b r a , e p e n s a m o s n a p e d r a q u e p o d e -
164/ 165 r i a t o r n a r - s e a p e d r a a n gu la r d a c o n s t r u ç ã o , / q u e a i n d a n ã o c o n h e c e m o s . A
c o is a m a i s a n t iga ? Se r ve p a r a s í m b o lo . N ó s q u e r e m o s c o is a p a lp á ve l. Es t a m o s
ca n sa d o s d as t e ia s q u e o d i a t ece e a n o i t e d esfaz. O d ia b o d e ve fa z ê - lo , o gu e r -
r i l h e i r o i m b e c i l d e fa lsa i n t e li g ê n c i a e m ã o s á vid a s? E l e a p a r e c e u , o m o n t e d e
e st e r co e m q u e os d e u se s e s c o n d e r a m s e u o vo . E u go s t a r ia d e a fa st a r d e m i m ,
c o m u m p o n t a p é , o l i xo , se n ã o fosse o g r ã o d e o u r o n o c o r a ç ã o n o je n t o d a
figu r a d i s fo r m e .

30 8 Esta linha se conecta com o começo do Sermo I , Aprofundamentos (cf. adiante, p. 4 4 9 ) .


30 9 Referência ao relato da criação no livro do Génesis.
O M AGO
375
P a r a o alt o, p o is, filh o d as t r e va s e d o m a u c h e ir o ! C o m o segu r as fi r m e n o
l i xo e e n t u l h o d a e t e r n a clo a ca ! E u n ã o t e n h o m e d o d e t i , m a s t e o d e io , i r m ã o
d e t u d o o q u e é d e t e s t á ve l e m m i m . H o j e d e ve s se r fo r ja d o c o m p e sa d o s m a r -
t e lo s, d e m o d o q u e e sgu ich e d o t e u c o r p o o o u r o d o s d eu ses. T e u t e m p o se e s-
go t o u , t e u s a n o s e s t ã o co n t a d o s e h o je ch e go u t e u ju í z o fin a l. Te u s e n vo lt ó r i o s
d e ve m e st o u r a r , t e u c e r n e , o d e o u r o , q u e r e m o s t o m á - l o n a s m ã o s e livr á - lo d a
s u je i r a p egajo sa. T u d e ve s so fr e r fr io , d e m ó n i o , p o is n ó s t e fo r ja r e m o s a fr io . O
a ço é m a is d u r o q u e o fe r r o . D e ve s s u je i t a r - t e à n o ssa fo r m a , la d r ã o d a m a r a -
v i l h a d i vi n a , a r r e m e d o d e m ã e , q u e e n ch e s t e u c o r p o c o m o o vo d o s d e u se s e
a s s im ga n h a s p eso. N ó s so m o s a m a l d i ç o a d o s e m t i , n ã o p o r t u a ca u sa , m a s p o r
ca u sa d o c e r n e d e o u r o .
Q u e figu r as p r e st a t iva s e m e r g e m d e t e u co r p o , a b is m o la d r o e ir o ? Sã o c e r -
t a m e n t e e s p ír it o s e le m e n t a r e s , ve s t i n d o cap as a m a r r o t a d a s , ca b ir o s d e figu r a
gr o t e sca , d i ve r t i d a , n o va e m e s m o a s s im ve lh a , a n ã , e n r u ga d a , p o r t a d o r a p o u co
vis t o s a d e a r t e s se cr e t a s, d o n a d a sa b e d o r ia r id ícu la , p r i m e i r a s fo r m a ç õ e s d o
o u r o i n fo r m e , ve r m e s q u e s a e m d o o vo li b e r t a d o d o s d eu ses, c o is a p r i m i t i -
va , n ã o n a sc id a , a i n d a in visíve l. O q u e s ign ific a p a r a n ó s vo sso a p a r e c im e n t o ?
Q u a i s sã o as n o va s a r t e s q u e t r a z e is à lu z , vi n d a s d a c â m a r a e s c u r a e in a ce ssíve l,
d a ge m a so la r d o o vo d o s d eu ses? V ó s a i n d a t e n d e s r a íz e s n o so lo c o m o p l a n -
t as e so is c a r ic a t u r a s a n im a le sca s / d o c o r p o h u m a n o , vó s so is lo u co s e n g r a ç a - 165/ 166

d o s, s in is t r o s , i n i c i a n t e s e t e r r e n o s . N ã o e n t e n d e m o s vo ssa n a t u r e z a , gn o m o s,
a lm a s o b je t iva s. T e n d e s vo sso c o m e ç o n o m a is in fe r io r . Q u e r e i s ser gigan t es,
p e q u e n o s p o le ga r e s? Fa z e is p a r t e d o s é q u it o d o filh o d a t e r r a ? So is os p é s t e r -
r e n o s d a d ivin d a d e ?

O q u e q u e r e is? F a l a i ! 3 10

310 O s cabiros eram divindades celebradas nos mistérios da Samotrácia. Eram considerados os promotores
da fertilidade e os protetores dos marinheiros. Creuzer (SymbolikundMythologiederaltenVòlker, 1810-1823) e
Schelling (uberdieGottheitenvonSamothrake, 1815) acham que eles são as primeiras divindades da mitologia
grega, das quais todas as demais se derivam. Jung tinha exemplares de ambos os livros. Eles aparecem no
Fausto, de Goethe, parte 2, At . 2. Jung discutiu os cabiros em Transformações e Símbolos da libido (1912. O C , B,
§ 20 9 -211) . Em 19 40 , Jung escreveu: "O s cabiros são verdadeiramente as forças secretas da imaginação
criadora, os duendes que trabalham subterraneamente na região subliminar de nossa psique, para
prover-nos de 'ideias súbitas', e que, à maneira dos coboldes, pregam todos os tipos de peças, roubando
de nossa memória e inutilizando datas e nomes que 'tínhamos na ponta da língua'. Eles se encarregam
de tudo quanto a consciência e as funções de que ela dispõe não dispensaram... Um a consideração mais
atenta permitirá que descubramos precisamente nos motivos primitivos e arcaicos da função inferior
determinadas significações e relações simbólicas significativas, sem que zombemos dos cabiros como
se fossem ridículos Pequenos Polegares sem importância; pelo contrário, devemos suspeitar que eles
encerram um tesouro de sabedoria escondida ("Tentativa de uma interpretação psicológica do Dogma da
Trindade", 19 40 . O C , 11, § 24 4 ) . Jung comentou a cena dos cabiros em Fausto, em Psicologia e alquimia ( 19 44)
LI BER SECU N D U S 166/ 168
376
O s ca b ir o s: " N ó s vi e m o s s a u d á - l o c o m o o s e n h o r d a n a t u r e z a i n fe r i o r ".
E u : "Es t a i s fa la n d o co m igo ? So u vo sso s e n h o r ?"
O s ca b ir o s: " T u n ã o o e r a s, m a s o és ago r a".
E u : "Vó s o d iz e is . Es t á p r e ssu p o st o . M a s o q u e sign ific a vo ssa c o m i t i va ?"
O s ca b ir o s: " N ó s n ã o le va m o s is t o p a r a p o r t a d o r e s d e b a i xo p a r a c i m a . N ó s
so m o s os su co s q u e s o b e m d e m a n e i r a se cr e t a , n ã o p o r fo r ça , m a s su ga d o s e q u e
p o r i n d o l ê n c i a n o s g r u d a n a q u ilo q u e cr e sce . N ó s c o n h e c e m o s os c a m i n h o s
d e sco n h e cid o s e as le is i n s o n d á ve i s d a m a t é r i a viva . N ó s t r a z e m o s n e l a p a r a
c i m a a q u ilo q u e d o r m i t a n o t e r r o so , q u e e s t á m o r t o e m e s m o a s s im p e n e t r a n o
q u e e s t á vivo . N ó s fa z e m o s d e va ga r e fa c ilm e n t e o q u e t u t e e sfo r ça s e m vã o p o r
fa z e r à t u a m a n e i r a h u m a n a . N ó s r e a liz a m o s a q u ilo q u e p a r a t i é im p o s s íve l".

E u : " O q u e d e vo d e i xa r p a r a vó s ? Q u e e s fo r ç o p o sso p o u p a r - vo s ? O q u e n ã o

d e vo fazer , e q u e vó s fa z eis m e l h o r ? "


O s ca b ir o s: " T u e sq u e ce s a in é r c ia d a m a t é r ia . Q u e r e s a r r a n c a r p a r a c i m a
c o m fo r ç a p r ó p r i a o q u e só p o d e s u b ir l e n t a m e n t e , p r e n d e r - s e su ga n d o , c o l a n -
d o - se i n t e r i o r m e n t e . Ab a n d o n a o e sfo r ço , s e n ã o p r e ju d ic a s n o sso t r a b a lh o ".
E u : "D e v o e u c o n fia r e m vó s , n ã o c o n fiá ve is , se r vo s e a lm a s se r vis? M e t e i
m ã o s à o b r a . A s s i m se ja ".

3 11
[ I H 166] "P a r e c e - m e q u e vo s d e i u m lo n go p r a z o . N ã o d e sci a t é vó s , n ã o

p e r t u r b e i vo ssa o b r a . E u v i v i à l u z d o d i a e fiz a o b r a d o d ia . O q u e fiz e st e s vó s ?"

O s ca b ir o s: " N ó s ca r r e ga m o s p a r a c i m a , n ó s c o n s t r u í m o s . Co l o c a m o s p e d r a
so b r e p e d r a . A s s i m e st á s se gu r o ".
E u : " E u s in t o c h ã o fi r m e . E u m e e st ico p a r a c i m a ".
166/ 167 O s ca b ir o s: " N ó s t e fo r ja m o s u m a e sp a d a / r e lu z e n t e , c o m a q u a l p o d e s
c o r t a r o n ó q u e e s t á t e p r e n d e n d o ".

E u : " E u se gu r o c o m fi r m e z a a e sp a d a e m m i n h a m ã o . Le va n t o o b r a ç o p a r a
o go lp e ".

O s ca b ir o s: " N ó s t a m b é m c o lo c a m o s d ia n t e d e t i o n ó e n t r e la ç a d o c o m o
a r t e d ia b ó lic a , p e lo q u a l e st á s fe ch a d o e la cr a d o . D á u m go lp e , só u m a l â m i n a
p o d e p a r t i - l o ".

( O C, 12, § 203S.). O diálogo com os cabiros, que tem lugar aqui, não se encontra no Livro Negro 4, mas está
no esboço manuscrito. Pode ter sido escrito separadamente; e, neste caso, teria sido escrito antes do verão
de 1915.
311 Nota marginal no volume caligráfico: "Depois disso, deixei o assunto em banho-maria por três semanas".
O M AGO
377
E u : "D e i x a i - m e ve r o n ó , o m u l t i p l a m e n t e e n t r e la ç a d o ! É r e a lm e n t e u m a
o b r a - p r i m a d e n a t u r e z a i m p e n e t r á ve l , u m r a i z a m e e n ge n h o so e n a t u r a l m e n t e
e m a r a n h a d o e m s e u c r e s c im e n t o ! Só a m ã e n a t u r e z a , a t e ce lã cega, p o d e p r o -
d u z i r t a l e m a r a n h a d o . U m gr a n d e n o ve lo e m i l h a r e s d e p e q u e n o s n ó s , t u d o
a r t i s t i c a m e n t e e n o ve la d o , e n r o la d o , e n r a iz a d o , r e a lm e n t e u m c é r e b r o h u m a n o !
Es t o u ve n d o c la r a m e n t e ? O q u e fizest es? Es t a i s c o lo c a n d o d ia n t e d e m i m o
m e u c é r e b r o ! D e s t e s - m e u m a e sp a d a n a m ã o p a r a q u e su a l â m i n a b r i l h a n t e
d i vi d a m e u p r ó p r i o c é r e b r o ? O q u e est ais p e n s a n d o ?" 3 12
O s ca b ir o s: " O se io d a n a t u r e z a t e c e u o c é r e b r o , o se io d a t e r r a d e u o fe r r o .
E a s s im a m ã e n a t u r e z a t e d e u as d u a s coisas: e n t r e l a ç a m e n t o e s e p a r a ç ã o ".
E u : "M i s t e r i o s o ! V ó s q u e r e is fa z e r - m e ca r r a sco d e m e u c é r e b r o ?"
O s ca b ir o s: "I s t o t e é p r ó p r i o c o m o o s e n h o r d a n a t u r e z a in fe r io r . O ser
h u m a n o e s t á e n t r e la ç a d o e m se u c é r e b r o e a ele t a m b é m fo i d a d a a e sp a d a p a r a
c o r t a r o e m a r a n h a d o ".
E u : " O q u e é o e m a r a n h a d o d e q u e fa la is? O q u e é a e sp a d a q u e d e ve se -
p a r a r ?"
O s ca b ir o s: " O e m a r a n h a d o é t u a lo u c u r a , a e sp a d a é a s u p e r a ç ã o d a
l o u c u r a " 3 13 .
E u : "Fr u t o s d o d e m ó n i o , q u e m vo s d i z q u e e s t o u lo u co ? Fa n t a s m a s d a t e r r a ,
r a íz e s d e b a r r o e l a m a , n ã o so is vó s os fila m e n t o s d e m e u c é r e b r o ? Tr e p a d e ir a s
d e t e n t á c u lo s d e p o lvo , ca n a is d e su co s d e s o r d e n a d a m e n t e m is t u r a d o s , p a r a -
s it a e m c i m a d e p a r a sit a , su gad o s p a r a c i m a e e n ga n a d o s p a r a c i m a , t r e p a d o s
u n s so b r e os o u t r o s s e c r e t a m e n t e d e n o it e , p a r a vó s se r ve a l â m i n a r e lu z e n t e
d e m i n h a esp ad a. V ó s q u e r e is c o n ve n c e r - m e a vo s a b a t e r ? Pe n sa is e m a u t o -
d e s t r u iç ã o ? C o m o p o d e ser q u e a n a t u r e z a ger e p a r a s i c r ia t u r a s q u e q u e r e m
d e s t r u i r a s i m e s m a s ?"
O s ca b ir o s: " N ã o va cile s. N ó s p r e c is a m o s d a d e s t r u iç ã o , p o is n ó s m e s m o s
so m o s o e m a r a n h a d o . Q u e m q u is e r c o n q u is t a r a n o va t e r r a , / d e s t r ó i as p o n t e s 167/ 168

a t r á s d e s i. N ã o n o s d e ixe s s o b r e vive r p o r m a is t e m p o . So m o s m i lh a r e s d e c a -
n a is n o s q u a is t u d o c o r r e o u t r a ve z d e vo l t a p a r a seu s c o m e ç o s ".

312 Em "O símbolo da transformação na missa" (19 41), Jung observou que o motivo da espada desempenhou
papel importante na alquimia e discutiu seu significado como instrumento de sacrifício, suas funções
divisivas e separativas. Observou que "A espada alquimista opera a solutío ou separatío elementorum, pela qual
o estado inicial caótico é novamente estabelecido, de forma que, por meio de uma nova ímpresstoformae ou
imagínatio, é produzido um corpo novo, mais perfeito" ( O C , 11/3, § 357s.).
313 Aqu i a ideia de superar a loucura se aproxima da distinção de Schelling entre a pessoa que é vencida pela
loucura e a pessoa que tudo faz para governar a loucura (cf. nota 8 9 , p. 238 ) .
LI BE R SECU N D U S 168/ 173
378

E u : "D e v o c o r t a r m i n h a s p r ó p r ia s r a íz e s? M a t a r m e u p r ó p r i o p o vo c u jo r e i

s o u eu ? D e v o fa z e r se ca r m i n h a p r ó p r i a á r vo r e ? Vó s so is r e a l m e n t e filh o s d o

d ia b o ".

O s ca b ir o s: " D á o go lp e, n ó s so m o s se r vo s q u e q u e r e m m o r r e r p e lo se u

s e n h o r ".

E u : " O q u e va i a c o n t e c e r se e u d e r o go lp e ?"

O s c a b ir o s : "En t ã o n ã o és m a i s t e u c é r e b r o , m a s e st á s a l é m d e t u a l o u c u r a .

N ã o vê s q u e t u a l o u c u r a é t e u c é r e b r o , o t e r r í ve l e m a r a n h a d o e e n l a ç a m e n t o

n a s ju n ç õ e s d as r a íz e s , n a s r e d e s d e c a n a is , a e m b r u l h a d a d e fio s. A c o n c e n -

t r a ç ã o n o c é r e b r o t e t o r n a lo u c o . D á o go lp e ! Q u e m e n c o n t r o u o c a m i n h o

so b e p a r a a lé m d e s e u c é r e b r o . N o c é r e b r o és a n ã o ; p a r a a l é m d o c é r e b r o ,

ga n h a s e s t a t u r a d e giga n t e . So m o s r e a l m e n t e filh o s d o d ia b o , m a s n ã o fo st e

t u q u e n o s fo r ja st e n o c a lo r e n a e s c u r i d ã o ? A s s i m t e m o s algo d e s u a e d e

t u a n a t u r e z a . O d ia b o d i z q u e t u d o o q u e su b sist e t a m b é m m e r e c e p e r e ce r .

C o m o filh o s d o d ia b o q u e r e m o s d e s t r u i ç ã o , m a s c o m o t u a s c r i a t u r a s q u e -

r e m o s n o s s a p r ó p r i a d e s t r u i ç ã o . P e la m o r t e q u e r e m o s r e s s u r g ir e m t i . N ó s

s o m o s r a íz e s q u e s u g a m d e t o d a s as p a r t e s , e n t ã o t e n s t u d o d e q u e p r e c is a s ,

p o r isso c o r t a - n o s , a r r a n c a - n o s ".

E u : "D e v o p e r d e r - vo s c o m o se r vo s? C o m o se n h o r , p r e c iso d e e m p r e ga d o s".

O s ca b ir o s: " O s e n h o r se r ve a s i m e s m o ".

E u : "Fi l h o s in c o e r e n t e s d o d ia b o , c o m est as p a la vr a s selast es vo sso d e st in o .

M i n h a e sp a d a vo s fi r a e q u e est e go lp e p r o d u z a e fe it o p a r a s e m p r e ".

O s ca b ir o s: " A i , a i! Ac o n t e c e u o q u e t e m í a m o s , o q u e d e s e já va m o s ".

/ [Ilu s t r a ç ã o 169] / [ I H 171] E u c o lo q u e i m e u p é so b r e a n o va t e r r a . N a d a

d o q u e fo i le va d o p a r a c i m a d e ve flu ir d e vo lt a . N i n g u é m d e ve d e s t r u i r o q u e

c o n s t r u í. M i n h a t o r r e é d e fe r r o e s e m b r e c h a . O d ia b o e st á e n ga st a d o n o fu n -

d a m e n t o . O s ca b ir o s o c o n s t r u í r a m e so b r e o p in á c u lo d a t o r r e fo r a m s a c r ifi-

cad o s p e la e sp a d a os m e st r e s d e o b r a . As s i m c o m o u m a t o r r e s o b r e p u ja o c u m e

d a m o n t a n h a so b r e a q u a l e st á , a s s im e s t o u a c i m a d e m e u c é r e b r o d o q u a l e u

n a sci. T o r n e i - m e d u r o e n ã o p o sso m a is vo l t a r ao q u e e r a a n t e s. N ã o flu o m a is

d e vo lt a . So u o s e n h o r d e m i m m e s m o . A d m i r o m i n h a gló r ia . So u fo r t e , b e lo

e r ico . A s va st a s t e r r a s e o c é u a z u l se e s t e n d e r a m ao m e u r e d o r e se c u r va m à
O M AGO
379
m i n h a gló r ia . N ã o s ir vo a n i n g u é m e n i n g u é m m e se r ve . E u s ir vo a m i m m e s m o

e m e s ir vo a m i m . P o r isso t e n h o a q u ilo d e q u e p r e c i s o 3 14 .
M i n h a t o r r e c r e s c e u i m p e r d í ve l p e lo s m ilé n io s . M a s e la p o d e t o r n a r - s e u n i -
ve r s a l e s e r á u n ive r s a l. Po u co s e n t e n d e m m i n h a t o r r e , p o is e la e st á n u m a lt o
1
m o n t e . M a s m u i t o s a ve r ã o / e n ã o a e n t e n d e r ã o . P o r isso m i n h a t o r r e p e r - W
m a n e c e r á s e m u so. N i n g u é m s u b ir á e m su as p a r e d e s lisa s. N i n g u é m t e n t a r á
vo a r d e se u t e lh a d o p o n t ia gu d o . Só q u e m e n c o n t r a a e n t r a d a e s c o n d id a p a r a a
m o n t a n h a e sob e a t r a vé s d o s c a m i n h o s e r r a d o s d a s e n t r a n h a s co n se gu e e n t r a r
n a t o r r e e a lc a n ç a r a gló r ia d o e sp e ct a d o r e d a q u e le q u e vi ve p o r s i m e s m o .
Is t o fo i co n se gu id o e r e a liz a d o . N ã o se t o r n o u p o r r e m e n d o s d o p e n s a m e n t o
h u m a n o , m a s fo i fo r ja d o a p a r t i r d o ca lo r a b r a sa d o r d as e n t r a n h a s , os p r ó p r i o s
ca b ir o s l e va r a m a m a t é r i a p a r a a m o n t a n h a e c o n s a gr a r a m a c o n s t r u ç ã o c o m
se u san gu e, c o m o o s ú n ic o s q u e c o n h e c i a m o m is t é r io d e se u s u r gim e n t o . E u a
c r i e i a p a r t i r d o a lé m i n fe r i o r e s u p e r io r e n ã o a p a r t i r d a su p e r fície d o m u n d o .
P o r isso é n o va e e s t r a n h a e u lt r a p a ssa a p la n íc ie h a b it a d a p e lo ser h u m a n o . Es t a
é a fo r t a le z a e o c o m e ç o 3 15 .

[ I H 172] E u m e r e c o n c i l i e i c o m a c o b r a d o a lé m . Ac e i t e i e m m i m t o d o o a lé m . A
p a r t i r d isso c o n s t r u í m e u c o m e ç o . Q u a n d o e st a o b r a h a vi a t e r m i n a d o , a le gr e i-
m e e a c o m e t e u - m e u m a c u r io s id a d e d e sa b e r o q u e a i n d a p o d e r i a h a ve r n o m e u
a lé m . P o r isso, d i r i g i - m e à m i n h a c o b r a e lh e p e r g u n t e i / a m iga ve lm e n t e se e la 172/ 1
n ã o q u e r i a r a st e ja r p a r a c i m a e t r a z e r - m e n o t íc ia s d o q u e a c o n t e c ia n o a lé m .
M a s a c o b r a e st a va e sgo t a d a e d isse q u e n ã o t i n h a vo n t a d e n e n h u m a p a r a t a n t o .

| 4 }[ i ] 3 16 E u : " N ã o q u e r o fo r ç a r n a d a , m a s, t a lve z , q u e m sab e? va m o s e xp e r i -


m e n t a r co isa s in t e r e ssa n t e s". A c o b r a a i n d a t i t u b e o u p o r u m in s t a n t e e d e p o is
d e sa p a r e ce u n a p r o fu n d e z a . Lo go o u vi su a vo z : " E u ch e gu e i, a cr e d it o , ao i n fe r -

314 Nota marginal no volume caligráfico: "accipe quod tecum est. in collect. Mangeti in ultimis paginis"
[recebe o que está contigo. Nas últimas páginas da colet. Mangeti]. Isto parece referir-se a Bíblíotheca
chem íca curiosa, seu rerum adalchem iam pertinentíum thesaurus instructissim us, de JJ. Manget ( 170 2) , uma coletânea de
textos alquimistas. Jung possuía um exemplar dessa obra, que tinha algumas tiras de papel dentro e alguns
sublinhados. A observação de Jung refere-se provavelmente à última xilogravura do Mutus Liber, que conclui
o volume um de Bibliotheca chemica curiosa, uma representação do término do opus alquímico, com um homem
sendo levado ao alto pelos anjos, enquanto outro jaz prostrado no chão.
315 Em Tipos psicológicos Jung comentou o simbolismo da torre em sua abordagem da visão da torre no Pastor de
Hermas ( O C, 6, § 439 s.). Em 19 20 , Jung começou a planejar sua torre em Bollingen.
316 2 de fevereiro de 1914.
L I B E R S E C U N D U S 173/ 176
38o
n o . A q u i h á u m e n fo r ca d o ". U m h o m e m fe io e m su a a p a r ê n c ia e c o m o r o st o
d e fo r m a d o e st á d ia n t e d e m i m . T e m o r e lh a s d e a b a n o e u m a c o r c u n d a . E l e d iz :
"So u u m e n ve n e n a d o r q u e fo i c o n d e n a d o a m o r r e r n a fo r ca ".
E u : " O q u e fiz e st e , p o is ?"
El e : " E u e n ve n e n e i m e u s p a is e m i n h a m u l h e r ".
E u : "P o r q u e fiz e st e is t o ?"
El e : " E m l o u vo r a D e u s ".
E u : "C o m o ? E m l o u vo r a D e u s ? O q u e q u e r e s d i z e r c o m ist o ?
El e : "P r i m e i r a m e n t e t u d o a co n t e ce , d a q u ilo q u e a co n t e ce , p a r a a gló r ia d e
D e u s , e, e m se gu n d o lu gar , e u t ive m i n h a s p r ó p r ia s id e ia s".
E u : " O q u e a p r o n t a st e e n t ã o ?"
El e : " E u a a m a va e q u e r i a t ir á - la d e u m a v i d a m is e r á ve l e le vá - la r a p i d a m e n -
t e p a r a a b e m - a ve n t u r a n ç a e t e r n a . E u lh e d e i u m s o n ífe r o fo r t e , fo r t e d e m a is ".
E u : " N ã o visa st e n isso t a m b é m t e u p r ó p r i o b e n e fí c i o ?"
El e : " E u fiq u e i s o z i n h o e foi m u i t o in fe liz . Q u e r i a c o n t i n u a r vi ve n d o p o r
a m o r a m e u s d o is filh o s, p a r a os q u a is e u p r e vi a u m foturo m e lh o r . C o r p o r a l -
173/ 174 m e n t e , e u e r a m a is sa u d á ve l q u e m i n h a m u lh e r , p o r isso / e u q u e r i a c o n t i n u a r
vi ve n d o ".

E u : " T u a m u l h e r e st a va d e a c o r d o c o m o a ssa ssin a t o ?"


El e : "N ã o , e la c e r t a m e n t e n ã o e st a r ia , m a s n ã o sa b ia d e m i n h a s in t e n ç õ e s .
I n fe l i z m e n t e , o a ssa ssin a t o fo i d e sco b e r t o e e u foi c o n d e n a d o à m o r t e ".
E u : "Re e n c o n t r a s t e agor a, n o a lé m , t e u s fa m ilia r e s ?"

El e : "I s t o é u m a h is t ó r ia e s t r a n h a m e n t e i n c e r t a . E u s u p u n h a c o m r a z ã o q u e
e st a va n o in fe r n o . D e ve z e m q u a n d o m e p a r e c ia q u e m i n h a m u l h e r t a m b é m
e st a va a q u i, às ve z e s t a m b é m n ã o o sa b ia ao ce r t o , a s s im c o m o n ã o e st a va c e r t o
de m i m m esm o.

E u : " C o m o é isso ? C o n t a m a is ".


El e : "As ve z e s p a r e ce q u e fa la c o m igo e e u lh e r e sp o n d o . M a s a t é a go r a n ã o
fa la m o s d o a ssa ssin a t o n e m d e n o sso s filh o s. Só fa la m o s d e ve z e m q u a n d o u m
c o m o o u t r o e e n t ã o s e m p r e d e co isa s b a n a is, d e co isa s s im p le s d e n o ssa v i d a
c o t i d i a n a d e o u t r o r a , m a s t u d o m u i t o im p e s s o a l, c o m o se n a d a m a is t ivé s s e m o s
u m c o m o o u t r o . E u m e s m o n ã o e n t e n d o c o m o ist o é d e fat o. D e m e u s p a is
p e r ce b o m e n o s a in d a ; m i n h a m ã e , a c r e d it o e u , n u n c a a e n c o n t r e i . M e u p a i e s-
t eve u m a ve z a q u i e fa lo u d e se u c a c h im b o , q u e h a vi a p e r d i d o e m a lg u m lu ga r ".
O M AGO
38i
E u : "M a s c o m o p assas o t e u t e m p o ?"
El e : "Ac h o q u e co n o sco n ã o h á t e m p o , p o r isso n ã o se p o d e p a s s á - lo . N ã o
a co n t e ce a b s o lu t a m e n t e n a d a ".
E u . "M a s ist o n ã o é / s o b r e m a n e i r a e n fa d o n h o ?" 174/ 175

El e : "En fa d o n h o ? N u n c a h a vi a p e n sa d o n isso . En fa d o n h o ? Ta lve z , e m t o d o


caso n ã o h á n a d a d e in t e r e s s a n t e . N a ve r d a d e , t u d o é i n d i fe r e n t e ".
E u : " O d ia b o n ã o vo s a t o r m e n t a ?"
El e : " O d ia b o ? N ã o v i n a d a d e le ".
E u : "M a s t u ve n s d o a lé m e n ã o sa b e r ia s c o n t a r n a d a ? I s t o é p o u co p r o vá ve l".
El e : "Q u a n d o e u a i n d a t i n h a u m co r p o , t a m b é m p e n s e i m u i t a s ve z e s q u e se -
r i a b e m in t e r e s s a n t e fa la r c o m a l g u é m q u e vo lt a sse d e p o is d a m o r t e . Ag o r a n ã o
a ch o n a d a n isso . C o m o se d i z , c o n o s c o t u d o é im p e s s o a l e p u r a m e n t e o b je t ivo .
Ac h o q u e é a s s im q u e se d i z ".
Eu : "M a s ist o é desesperador. Pr e su m o q u e est ejas n o m a is p r o fu n d o d o in fe r n o ".
El e . " C o m o q u ise r ! Po sso ir ? Ad e u s ".
E l e d e sa p a r e ce u d e r e p e n t e . M a s e u m e d i r i g i à c o b r a 3 17 e fa le i " O q u e s i g n i -
fica e st a vi s i t a e n fa d o n h a v i n d a d o a lé m ?"
C : " E u o e n c o n t r e i n o la d o d e lá, a n d a n d o às cegas c o m o t a n t o s o u t r o s. E u o
p e gu e i e t r o u xe p a r a c i m a . Q u e r p a r e c e r - m e q u e é u m b o m e xe m p lo ".
E u : "M a s é t u d o t ã o d e s c o lo r id o n o a l é m ?"
C : "P a r e c e ; lá só e xis t e m o vi m e n t o q u a n d o p asso p a r a o o u t r o lad o . D e r est o ,
t u d o flu t u a só c o m o s o m b r a p a r a c i m a e p a r a b a ixo . Fa l t a t o t a lm e n t e o p e sso a l".
E u : " O q u e a co n t e ce e n t ã o c o m esse m a l d i t o p esso al? Re c e n t e m e n t e , s a -
t a n á s c a u s o u - m e / fo r t e im p r e s s ã o , c o m o se fosse a q u in t e s s ê n c ia d o p e sso a l". 175/ 176

C : "N a t u r a l m e n t e , ele é o e t e r n o a d ve r sá r io , p o is n u n c a co n se gu e h a r m o n i -
z a r v i d a p e sso a l c o m v i d a a b so lu t a ".
E u : " N ã o é p o s s íve l e n t ã o u n i r esses o p o st o s?"
C : "El e s n ã o sã o o p o st o s, a p e n a s d ife r e n ç a s . T u t a m b é m n ã o c h a m a r á s o d i a
d e o p o st o a o an o , o u o a lq u e ir e d e o p o st o ao c ô va d o ".
E u : "I s t o é e vid e n t e , m a s algo e n fa d o n h o ".

C : " C o m o s e m p r e , q u a n d o a ge n t e fa la d o a lé m . E s e r á ca d a ve z m a is , s o -
b r e t u d o d e sd e q u e n i ve la m o s o s o p o st o s e n o s ca sa m o s. E u a ch o q u e o s m o r t o s
e s t ã o p r e st e s a d e sa p a r e ce r ".

317 O Livro Negro 4, tem "alm a" (p. 11 o ) .


382 LI BE R SECU N D U S 176/ 180

[ I H 176] {2} O d ia b o é a s o m a d a e scu r id ã o d a n a t u r e z a h u m a n a . P a r a se r


segu n d o a im a ge m d e D e u s , e sfo r ça - se aq u ele q u e vive n a lu z , p e la im a g e m d o
d iab o, aq u ele q u e vive n a e scu r id ã o . Pelo fat o d e e u q u e r e r vi ve r n a lu z , ap ago u -se
p a r a m i m o so l, q u a n d o t o q u e i a p r o fu n d e z a . E l a e r a e s c u r a e s e r p e n t in a . E u m e
ligu e i a e la e n ã o a ve n c i . M i n h a p a r t e d a d e g r a d a ç ã o e s u b m i s s ã o e u a t o m e i
so b r e m i m , à m e d i d a q u e m e ju n t a va à n a t u r e z a s e r p e n t in a .
176/ 177 Se n ã o t ive sse / a s s u m id o a n a t u r e z a s e r p e n t in a , o d ia b o , a q u in t e s s ê n c ia d e
t o d a n a t u r e z a s e r p e n t in a , t e r i a c o n s e r va d o est e p e d a ç o d e p o d e r so b r e m i m .
N e l a o d ia b o t e r i a e n c o n t r a d o u m ga n h o p a r a o b r i g a r - m e a p a c t u a r c o m e le ,
a s s im c o m o a s t u c io s a m e n t e e le i l u d i u Fa u s t o 3 18 . M a s e u m e a n t e c ip e i a e le ,
u n i n d o - m e à c o b r a c o m o u m h o m e m se u n e a u m a m u lh e r .
As s i m t i r e i ao d ia b o a p o ssib ilid a d e d a in flu ê n c ia q u e s e m p r e p a ssa a p e n a s
p e la p r ó p r i a n a t u r e z a s e r p e n t i n a 3 19 , q u e n ó s a t r i b u í m o s n o r m a l m e n t e ao d i a -
b o, e m ve z d e a n ó s m e s m o s . M e fis t ó fe le s é sa t a n á s r e ve s t id o d e s u a n a t u r e z a
s e r p e n t in a . O p r ó p r i o sa t a n á s é a q u in t e s s ê n c ia d o m a l , e p o r isso s e m se d u çã o ,
ja m a is sen sat o , m a s só n e ga ç ã o s e m fo r ça d e c o n ve n c i m e n t o . A s s i m r e s is t i à su a
in flu ê n c ia d e s t r u id o r a , a ga r r e i- o e o so ld e i fi r m e m e n t e . Su a p o st e r id a d e m e
s e r via e e u a s a c r ifiq u e i p e la esp ad a.

A s s i m fi z u m a c o n s t r u ç ã o só lid a . P o r m e i o d isso co n se gu i e u m e s m o fi r -
m e z a e d u r a b ilid a d e e p u d e r e s is t ir às o sc ila ç õ e s d o p e sso a l. D e s t a m a n e i r a
fo i sa lvo e m m i m o i m o r t a l . À m e d i d a q u e e u p u xa va p a r a fo r a d e m e u a lé m a
e s c u r id ã o p a r a d e n t r o d o d ia , e s va z ie i m e u a lé m . A s s i m d e s a p a r e c e r a m as r e i -
vin d ic a ç õ e s d o s m o r t o s , p o is fi c a r a m saciad o s.

177/ 178 / Já n ã o s o u a m e a ç a d o p e lo s m o r t o s , u m a ve z q u e a c e it e i su as r e ivin d ic a ç õ e s


ao a c e it a r a co b r a . M a s c o m isso t a m b é m i n t r o d u z i e m m e u d i a algo m o r t a l .
P o r é m e r a n e ce ssá r io , p o is a m o r t e é a c o is a m a is e s c u r a d e t o d a s as co isas, o
q u e n ã o p o d e m a is se r a n u la d o . A m o r t e m e o u t o r ga d u r a b ilid a d e e fi r m e z a .
En q u a n t o e u s ó q u e r i a sa t isfa z e r m i n h a s p r e t e n s õ e s , e u e r a p e sso a l e, p o r isso,
vi vo n o s e n t id o d o m u n d o . M a s q u a n d o a d m i t i e m m i m as r e ivin d ic a ç õ e s d o s
m o r t o s e as sa t isfiz , r e n u n c i e i a m e u e s fo r ç o p e sso a l p r i m i t i vo , e o m u n d o t eve
d e m e t o m a r c o m o u m m o r t o . P o is u m fr io in t e n s o s o b r e vê m à q u e le q u e , n o

318 No Fausto, de Goethe, Mefistófeles faz um pacto com Fausto de que ele o serviria na vida sob a condição
de que Fausto o servisse no além (1. 1655).
319 No esboço corrigido consta: "de m im com a cobra" (p. 251).
O M AGO
383
e xce sso d e s e u e s fo r ç o p e sso a l, r e c o n h e c e u a r e ivin d ic a ç ã o d o s m o r t o s e p r o -
c u r o u sa t isfa z ê - la .

Se n t e p e r fe it a m e n t e e n t ã o c o m o se u m ve n e n o se cr e t o t ivesse p a r a lisa d o a
vit a lid a d e d e su as r e la ç õ e s p esso a is, m a s d o o u t r o la d o , e m s e u a lé m , ca la -se a
vo z d o s m o r t o s ; a a m e a ç a , o m e d o e a a git a ç ã o t e r m i n a m . P o is t u d o o q u e a n t e s
a gu a r d a va fa m e lic a m e n t e n e le , vi ve a go r a c o m e le e m se u d ia . Su a v i d a é b e la e
r ic a , p o is e le é e le m e s m o .
Re p u g n a n t e , p o r é m , é a q u e le q u e s e m p r e d e se ja a p e n a s a fe licid a d e d o o u -
t r o , p o is ele / a t r o fia a si m e s m o . As s a s s i n o é a q u e le q u e d e se ja fo r ç a r o o u t r o à 178/ 179

b e m - a ve n t u r a n ç a , p o is e le m a t a s e u p r ó p r i o c r e s c im e n t o . Lo u c o é a q u e le q u e
e l i m i n a p o r a m o r s e u a m o r . Es t e e s t á p e sso a lm e n t e n o o u t r o . Se u a lé m é c i n -
z e n t o e im p e s s o a l. E l e se i m p õ e a o u t r o s, p o r isso t e m a s i n a d e i m p o r - s e a s i
m e s m o n u m fr io n a d a . Aq u e l e q u e a c e it o u as r e ivin d ic a ç õ e s d o s m o r t o s d e s-
t e r r o u s u a r e p u g n â n c i a p a r a o a lé m . N ã o m a is se i m p õ e a vid a m e n t e ao s o u t r o s,
vive so lit á r io , e m b e le z a , e fa la c o m o s m o r t o s . M a s u m a ve z t a m b é m a r e i v i n d i -
ca çã o d o s m o r t o s é sa t isfe it a . Q u a n d o e n t ã o a i n d a se p e r sist e n a so lid ã o , o b e lo
d e sa p a r e ce n o a lé m e o d e so la d o r e n t r a n o a q u é m . D e p o i s d e u m a fase b r a n c a
ve m u m a p r et a, sem p r e est ão a í céu e i n fe r n o 320 .

{$} [1] [ I H 179] Q u a n d o h a vi a e n c o n t r a d o a b e le z a e m m i m e c o m igo m e s -


m o , fa le i à m i n h a c o b r a 3 2 1: " O l h o p a r a t r á s c o m o so b r e u m t r a b a lh o r e a liz a d o ".
Co b r a : "N a d a a i n d a e s t á t e r m i n a d o ".
E u : " C o m o ach as? N a d a t e r m i n a d o ?"
C : "Ago r a q u e e s t á c o m e ç a n d o ".
E u : "T e n h o a i m p r e s s ã o d e q u e m e n t e s ".
C : " C o m q u e m e st á s d is c u t in d o ? T u o sab es m e l h o r ?"

E u : " E u n ã o se i / n a d a , a p en a s j á m e fa m i l i a r i z e i c o m a i d e i a d e q u e t i n h a - 179/ 180

m o s a lc a n ç a d o u m o b je t ivo , a i n d a q u e p r o vis ó r io . Se a t é o s m o r t o s e s t ã o t e r m i -
n an d o, o q u e a in d a r est a p o r vir ?"

C : "En t ã o p r e c i s a m p r i m e i r a m e n t e os vivo s c o m e ç a r a vi ve r ".


E u : "E s t a o b s e r va ç ã o p o d e r i a s e r p r o fu n d a , m a s p a r e ce q u e se l i m i t a a u m a
p ia d a ".

320 Nota marginal no volume caligráfico: "Ainda não havia percebido que eu mesmo era este assassino".
321 9 de fevereiro de 1914. O Livro Negro 4, tem "alma" (p. 114).
384 LI BE R SECU N D U S 180/ 183

C : "Es t á s ficando a t r e vid o . E u n ã o e s t o u b r in c a n d o . P r i m e i r a m e n t e , a v i d a


t e m d e c o m e ç a r ".

E u : " O q u e t u e n t e n d e s p o r vi d a ?"
C : " E u d igo, a v i d a a i n d a t e m d e c o m e ç a r . T u n ã o t e se n t ist e va z i o h o je ?
C h a m a s ist o d e vi d a ?"
E u : "É ve r d a d e o q u e d iz e s. M a s e u m e e s fo r ç o p o r a ch a r t u d o t ã o b o m
q u a n t o p o s s íve l e d a r - m e fa c ilm e n t e p o r sa t isfe it o ".

C : "I s t o t a m b é m p o d e r i a se r b a st a n t e c ó m o d o . M a s t u p r e cisa s e d e ve s t e r
m a io r e s p r e t e n s õ e s ".

E u : "T e n h o h o r r o r d isso. N e m o u so p e n s a r q u e e u m e s m o p o ssa sa t isfa z ê -


- la s, m a s t a m b é m n ã o c o n fio e m q u e t u p o d e r ia s sa t isfa z ê - la s. P o d e se r q u e
e st e ja n o va m e n t e c o n fia n d o p o u c o e m t i . Re s p o n s á ve l p o r isso p o d e t e r sid o o
fat o d e e u t e a c h a r h á p o u co t ã o h u m a n a m e n t e a b o r d á ve l e g e n t il".

C : "I s t o n ã o p r o va n a d a . Só n ã o p e n se s q u e p o d e r ia s e n vo l ve r - m e d e a lgu -
m a fo r m a e i n c o r p o r a r - m e a t i ".
E u : "En t ã o , c o m o va i ser ? E s t o u p r o n t o ".
180/ 181 C : " T u t e n s d i r e i t o a u m p a ga m e n t o p e lo / q u e se t e r m i n o u a t é ago r a".
E u : "D o c e p e n s a m e n t o q u e d e ve h a ve r u m p a ga m e n t o p o r isso ".
C : " E u t e d o u o p a ga m e n t o n a ilu st r a çã o . Vê ".

[ I H 181] El i a s e Sa lo m é ! A r o t a ç ã o c o m p le t o u - s e , e os p o r t õ e s d o m i s t é r i o
a b r i r a m - s e d e n o vo . El i a s c o n d u z Sa l o m é , a vi d e n t e , p e la m ã o . E l a b a i xa os
o lh o s r u b o r i z a d a e a m o r o s a .

E : "Aq u i t e d o u Sa lo m é . Q u e se ja t u a ".
E u : "P o r a m o r d e D e u s - o q u e fa r e i c o m Sa lo m é ? E u já so u casad o, e n ó s
n ã o vi ve m o s e n t r e os t u r c o s " 3 2 2 .
E: " Ó h o m e m s e m e xp e d ie n t e , c o m o és t a r d o . N ã o é e la u m b e lo p r e se n t e ?
A c u r a d e la n ã o é o b r a t u a? N ã o q u e r e s a ce it a r se u a m o r c o m o p a ga m e n t o b e m
m e r e c i d o p o r t e u e s fo r ç o ?"

E u : "P a r e c e - m e q u e é u m p r e se n t e e st r a n h o , a n t e s u m p e so d o q u e u m a a le -
gr ia . E s t o u fe liz p e lo fat o d e Sa l o m é m e se r a gr a d e cid a e m e a m a r . E u t a m b é m
a a m o - d e c e r t a fo r m a . A l é m d o m a is , o t r a b a lh o q u e e la m e d e u fo i - l i t e -

322 A poligamia é prática comum na Turquia. Foi oficialmente abolida por Ataturk em 1926.
O M AGO
385
r a l m e n t e fa la n d o - m a is a r r a n c a d o d e m i m d o q u e se e u o t ive sse p r e st a d o d e

livr e e e s p o n t â n e a vo n t a d e . Se e st a t o r t u r a , in vo lu n t á r ia d e m i n h a p a r t e , / t e ve 181/ 182

u m r e su lt a d o t ã o b o m , já e s t o u m u i t o sa t isfe it o ".

Sa l o m é p a r a El i a s : "D e i x a - o , é u m h o m e m e sq u isit o . Sa b e D e u s q u a is sã o

seu s m o t i vo s d e a s s i m p r o ce d e r , m a s p a r e ce q u e p a r a ele o a ssu n t o é sé r io . E u

n ã o s o u fe ia e s o u c o m c e r t e z a d e s e já ve l p a r a m u i t o s ". D i r i g i n d o - s e a m i m :

"P o r q u e m e r ecu sas? E u q u e r o se r t u a e m p r e ga d a e t e se r vir . Q u e r o c a n t a r

e d a n ç a r e m t u a p r e s e n ç a , q u e r o t o c a r a la ú d e p a r a t i , v o u c o n s o la r - t e q u a n t o

e st ive r e s t r is t e , v o u r i r co n t igo q u a n d o e st á s alegr e. Q u e r o gu a r d a r e m m e u c o -

r a ç ã o os t e u s p e n s a m e n t o s . V o u b e i ja r as p a la vr a s q u e d isse r e s p a r a m i m . T o d o

d i a v o u c o lh e r r o sa s p a r a t i , e t o d o s os m e u s p e n s a m e n t o s vã o e sp e r a r s e m p r e

p o r t i e e st a r co n t igo ".

Eu : "Ag r a d e ç o t e u a m o r . É b e lo o u vi r fa la r d e a m o r . E m ú s ic a , a sa u d a d e

d is t a n t e e a n t iga . T u vê s q u e m i n h a s lá gr im a s c a e m so b r e t u a s b o a s p a la vr a s.

Go s t a r i a d e a jo e l h a r - m e d ia n t e d e t i e b e ija r c e m ve z e s t u a m ã o , p o r q u e e la m e

q u is d a r a m o r . T u falast e c o m t a n t a b e le z a so b r e o a m o r . N ó s n ã o n o s c a n s a m o s

ja m a is d e o u vi r fa la r d e a m o r .

Sa l: "P o r q u e só fa la r ? Q u e r o se r t u a , p e r t e n c e r t o d a a t i ".

E u : " T u é s c o m o a c o b r a , q u e m e e n vo l ve u e e s p r e m e u m e u s a n g u e 32 3 . / Tu a s 182/ 183

p a la vr a s d o ce s m e e n vo l ve m , e e u fico c o m o u m c r u c ific a d o ".

Sa l: "P o r q u e s e m p r e a i n d a u m c r u c ific a d o ?"

E u : " N ã o vê s q u e n e ce ssid a d e i n e xo r á ve l m e p r e go u n a c r u z ? É a i m p o s s i -

b ilid a d e q u e m e p a r a lis a ".

Sa l: " N ã o q u e r e s s u p e r a r a n e ce ssid a d e ? É d e fat o u m a n e ce ssid a d e o q u e t u

a s s im c h a m a s ? 3 2 4

E u : "Es c u t a , e u d u vi d o q u e se ja t e u d e s t in o p e r t e n c e r a m i m . N ã o q u e r o

i m i s c u i r - m e n a v i d a q u e t e p e r t e n c e , p o is n u n c a p o d e r e i a ju d a r - t e a l e vá - l a a t é

o fi m . E o q u e ga n h a s se e u t i ve r q u e r e le ga r - t e c o m o u m a r o u p a u sa d a ?"

Sa l: "T u a s p a la vr a s sã o t e r r íve is. M a s t e a m o t a n t o q u e e u m e s m a p o d e r i a

t a m b é m r e le ga r - m e q u a n d o t e u t e m p o t ive sse ch e ga d o ".

323 Nota marginal no volume caligráfico: "No cap. X I do jogo do mistério" (cf. acima, p. 251).
324 O Livro Negro 4, continua: [Eu ]: "Meus princípios - soa estúpido - perdoai-me - , mas eu tenho princí-
pios. Não penseis que são princípios insípidos de moral, mas são conhecimentos que a vida me impôs".
[Alm a]: "Q ue princípios?" (p. 121-122).
386 LI BE R SECU N D U S 183/ 187

E u : "Se i q u e s e r ia p a r a m i m o m a i o r t o r m e n t o d e i xá - l a p a r t i r a s s im . M a s
se t u p o d e s fa z ê - lo p o r m i m , t a m b é m e u o p o sso p o r t i . E u p r o s s e gu ir ia s e m
q u e ixa , p o is n ã o e s q u e ç o a q u e le s o n h o o n d e v i m e u c o r p o d e it a d o so b r e p r e go s
p o n t ia gu d o s e m e u p e it o se n d o t r i t u r a d o p o r u m a r o d a d e b r o n z e . T e n h o d e
p e n s a r n e st e s o n h o s e m p r e q u e p e n so n o a m o r . Se fo r p r e ciso , e s t o u p r o n t o ".
Sal: " N ã o q u e r o s e m e lh a n t e sa cr ifício . Q u e r i a t r a z e r - t e a le gr ia . N ã o p o sso
se r a le gr ia p a r a t i ?"
183/ 184 E u : " E u n ã o se i — t a lve z — / t a lve z t a m b é m n ã o ".
Sal: "T e n t a ao m e n o s ".
E u : "A t e n t a t i va e q u iva le à ação . P o is t e n t a t iva s sã o ca r a s".
Sal: " N ã o q u e r e s p a ga r p o r m i m ? "
E u : "E s t o u u m p o u c o fr aco , s e m fo r ça s, d e p o is d o q u e so fr i p o r t i , p a r a e st a r
e m c o n d i ç õ e s d e r e a li z a r o u t r a s t ar efas p o r t i . N ã o p o d e r i a s u p o r t á - l o ".
Sa l: "Se n ã o m e q u ise r e s t o m a r , e n t ã o n e m e u t e p o sso t o m a r ?"
E u : " N ã o se t r a t a d o t o m a r , m a s se se t r a t a r d e a lgu m a co isa , e n t ã o é d o d a r ".
Sal: " E u m e d o u a t i . Só m e a ce it a ".
E u : "Se só d e p e n d e sse d isso ! M a s o e n vo l vi m e n t o c o m o a m o r ! Só p e n s a r
n isso é h o r r íve l".
Sal: " T u exiges q u e e u se ja e ao m e s m o t e m p o n ã o seja. I s t o é im p o s s íve l. O
q u e t e fa lt a ?"
E u : "Fa l t a - m e fo r ç a p a r a t o m a r n o s o m b r o s m a is u m d e st in o . Já t e n h o o
s u fic ie n t e p a r a ca r r e ga r ".
Sal: "M a s , se e u t e a ju d a r a ca r r e ga r est e p e so ?"
E u : "C o m o p o d es? T e r i a s q u e ca r r e ga r a m i m , u m p e so r e b e ld e . N ã o d e vo
e u m e s m o c a r r e g á - l o ?"
E : " T u d iz e s a ve r d a d e . C a d a q u a l ca r r e ga se u p eso. Q u e m i m p õ e aos o u t r o s
su a ca r ga é se u e s c r a vo 3 2 5 . A n i n g u é m se ja t ã o p e sa d o ca r r e ga r a s i p r ó p r i o ".
Sal: "M a s , P a i, n ã o p o d e r i a e u a ju d á - l o a ca r r e ga r se u p e so ao m e n o s p o r u m
t r e c h o ?"
184/ 185 E : "En t ã o ele s e r ia t e u e scr a vo ". /
Sal: " O u m e u s e n h o r e d o n o ".
E u : "I s t o n ã o q u e r o ser. T u d e ve r á s se r u m a p e sso a livr e . N ã o co n sigo s u p o r -
t a r e scr a vo s n e m se n h o r e s. E u go st o d e p essoas".

325 O tema da moral de senhor e escravo aparece com destaque no primeiro ensaio da obra de Nietzsche: A
genealogia da moral. Petrópolis: Vozes, 2 0 0 9 [Trad. de Mário Ferreira dos Santos].
O M AGO
387
Sa l: " E e u n ã o s o u u m a p esso a?"

E u : "Sê t e u p r ó p r i o s e n h o r e t e u p r ó p r i o e scr a vo , n ã o p e r t e n ç a s a m i m , m a s

a t i. N ã o ca r r e gu e s o m e u far d o , m a s o t e u . A s s i m m e d e ixa r ia s m i n h a lib e r d a d e

h u m a n a , u m a c o is a q u e p a r a m i m t e m m a is va lo r d o q u e o d i r e i t o d e p r o p r i e -

d a d e so b r e u m a p esso a".

Sal: "Es t á s m e m a n d a n d o e m b o r a ?"

Eu : " N ã o e s t o u t e m a n d a n d o e m b o r a . T u n ã o go st a r ia s d e fica r lo n ge d e

m i m . M a s n ã o m e d ê s d e t e u d esejo , e s i m d e t u a p le n it u d e . N ã o p o sso sa cia r

t u a p o b r e z a , a s s im c o m o n ã o p o d e s a c a lm a r m e u d esejo. Se t ive r e s u m a a b u n -

d a n t e c o lh e it a , d á - m e a lgu n s fr u t o s d e t e u p o m a r . Se sofr es d e excesso , b e b e r e i

d o c h ifr e t r a n s b o r d a n t e d e t u a a le gr ia . E u s e i q u e s e r á u m a lívio p a r a m i m . E u

só p o sso m e sa cia r à m e s a d o s sa cia d o s, n ã o n a s t r avessas va z ia s d o s sau d o so s.

E u n ã o r o u b a r e i d e m i m o m e u sa lá r io . T u n ã o p o ssu is n a d a , c o m o p o d e s d a r ?

T u exiges e n q u a n t o d á s. El i a s , a n ciã o , o u ve: t u t e n s u m a g r a t i d ã o e s t r a n h a . N ã o

d ê s d e p r e s e n t e t u a filh a , m a s c o lo c a - a d e p é / so b r e as p r ó p r ia s p e r n a s. E l a 185/ 186

go st a r ia d e d a n ça r , c a n t a r o u t o c a r o a la ú d e p a r a as p esso as, e elas go s t a r ia m d e

a t i r a r - l h e ao s p é s su as m o e d a s c in t ila n t e s . Sa l o m é , a g r a d e ç o t e u a m o r . Se m e

a m a s d e ve r d a d e , d a n ç a d ia n t e d a m u lt id ã o , a gr a d a as p esso as, p a r a q u e e lo gie m

t u a b e le z a e t u a a r t e . E se t ive r e s fe it o r i c a c o lh e it a , a t i r a - m e u m a d e t u a s r o sas

p e la ja n e la , e se a fo n t e d e t u a a le gr ia t r a n s b o r d a , d a n ç a e c a n t a t a m b é m p a r a

m i m u m a ve z . E u d e se jo m u i t o a a le gr ia d as p esso as, su a sa cie d a d e e sa t isfa çã o

e n ã o s u a in d igê n c ia ".

Sa l: " Q u e h o m e m d u r o e i n c o m p r e e n s í ve l é s t u !"

E: " T u m u d a s t e m u i t o d e sd e a ú l t i m a ve z q u e t e v i . Fa la s o u t r a lín g u a q u e ,

p a r a m i m , so a e s t r a n h a ".

Eu : " M e u p r e z a d o a n ciã o , a c r e d it o r e a lm e n t e q u e m e a ch es m u d a d o , m a s

co n t igo t a m b é m p a r e ce t e r h a vid o u m a m u d a n ç a . O n d e e s t á t u a co b r a ?"

E: " E l a se p e r d e u . Ac h o q u e fo i r o u b a d a d e m i m . D e s d e e n t ã o as co isa s a n -

d a m t r ist e s co n o sco . P o r t a n t o , e u t e r i a fica d o c o n t e n t e se t u ao m e n o s t ivesses

a ce it o m i n h a filh a ".

Eu : " E u se i o n d e e st á t u a co b r a . E l a e st á co m igo . N ó s a t ir a m o s d o s u b m u n d o .

E l a / m e d á so lid e z , sa b e d o r ia e fo r ça m á gica . N ó s p r e cisa m o s d e la n o m u n d o 186/ 187

su p e r io r , caso c o n t r á r io o s u b m u n d o t e r ia t id o a va n t a ge m d e p r e ju d ic a r - n o s ".

E: " A i d e t i , la d r ã o m a ld it o , D e u s t e ca st igu e ".


LI BE R SECU N D U S 187/ ESBO ÇO
388
E u : " T u a m a ld i ç ã o é i m p o t e n t e . A q u e m p o s s u i a c o b r a n ã o a t in ge m a ld iç ã o
n e n h u m a . P o r t a n t o , a n ciã o , sê in t e lige n t e : q u e m p o s s u i a sa b e d o r ia n ã o é á vid o
d e p o d er . Só p o s s u i o p o d e r a q u e le q u e n ã o o e xe r ce . Sa l o m é , n ã o ch o r e s, só
é fe licid a d e a q u ilo q u e t u cr ia s e n ã o a q u ilo q u e r eceb es. D e s a p a r e c e i, m e u s
a m igo s a flit o s, já é t a r d e d a n o it e . El i a s , t o m a o falso b r i l h o d e p o d e r d e t u a
sa b e d o r ia e t u , Sa l o m é , p o r a m o r ao n o sso a m o r , n ã o t e e sq u e ça s d e d a n ç a r ".

[ 2] 3 2 6 Q u a n d o t u d o h a vi a t e r m i n a d o e m m i m , vo l t e i in e s p e r a d a m e n t e p a r a

o m is t é r io , p a r a a q u e le p r i m e i r o a sp ect o d o s p o d e r e s d o a lé m d o e s p ír it o e d a

co b iça . A s s i m c o m o e u a lc a n c e i o p r a z e r e m m i m e o p o d e r so b r e m i m , a s s im

Sa l o m é p e r d e u o p r a z e r n e l a m e s m a , m a s a p r e n d e u o a m o r ao p r ó xi m o , e El i a s

p e r d e u o p o d e r d e su a sa b e d o r ia , m a s a p r e n d e u a r e c o n h e c e r o e s p ír it o d o p r ó -

187/ 188 xi m o . As s i m , Sa l o m é p e r d e u o p o d e r d a s e d u ç ã o e / t o r n o u - s e a m o r . U m a ve z

q u e ga n h e i o p r a z e r e m m i m , q u e r o t a m b é m o a m o r a m i m . I s t o s e r ia d e m a is

e c o lo c a r ia u m a n e l d e fe r r o e m t o r n o d e m i m , q u e m e su fo ca. C o m o p r a z e r ,

a ce it o Sa lo m é ; c o m o a m o r , e u a r e je it o . M a s e la q u e r v i r a m i m . C o m o - d e vo

t a m b é m t e r a m o r a m i m m e s m o ? O a m o r , a c r e d it o e u , p e r t e n c e ao p r ó xi m o .

M a s m e u a m o r q u e r v i r a m i m T e n h o m e d o d ele. O p o d e r d e m e u p e n s a m e n t o

go st a r ia d e a fa st á - lo d e m i m p a r a o m u n d o , p a r a as co isa s, p a r a as p essoas. P o is

a lgu m a c o isa d e ve u n i r as p essoas, a lgu m a c o isa t e m d e ser p o n t e . P i o r t e n t a çã o ,

q u a n d o a t é m e s m o m e u a m o r q u e r v i r a m i m ! M is t é r io , a b r e t u a c o r t i n a p a r a o

n o vo ! E u q u e r o le va r a t e r m o est e co m b a t e . So b e, se r p e n t e , d o a b is m o e scu r o !

| 6 }3 2 7 [1] O u ç o Sa l o m é c o n t i n u a r c h o r a n d o . O q u e e la q u e r a in d a , o u o q u e

e u q u e r o a in d a ? I s t o é u m p a ga m e n t o m a l d i t o q u e m e d e st in a st e , u m p a g a m e n -

t o n o q u a l n ã o se p o d e t o ca r s e m sa cr ifício ; e q u e e xige a i n d a m a i o r sa cr ifício

q u a n d o se t o c o u n e le .

C o b r a 3 2 8 : "Q u e r e s e n t ã o vi ve r s e m sa cr ifício ? A v i d a n ã o t e d e ve cu st a r a l -

g u m a co isa ?"

Eu : "C r e i o q u e já p agu ei. E u r e je it e i Sa lo m é . Ist o n ã o é sa cr ifício su ficie n t e ?"

C : "P a r a t i m u i t o p o u co . C o m o se d i z , t u d eves se r e xige n t e ".

326 No Volume Caligráfico há um espaço em branco para uma in icial com base histórica.
327 11 de fevereiro de 1914.
328 No Livro Negro 4, esta figura é identificada como "alma" (p. 131).
O M AGO
389
E u : " T u q u e r e s d i z e r c e r t a m e n t e c o m t u a m a l d i t a ló gica : e xige n t e n o sa cr ifí-
cio ? N ã o o e n t e n d i / a s s im . E u m e e n ga n e i e m m i n h a va n t a g e m . D i z e - m e : n ã o 188/ 189

é s u fic ie n t e q u e e u e m p u r r e m e u s e n t i m e n t o p a r a o p la n o d e fu n d o ?"
C : " T u n ã o e m p u r r a s t e u s e n t i m e n t o p a r a o p la n o d e fu n d o , m a s é b e m m e -
l h o r p a r a t i n ã o t e r q u e c o n t i n u a r q u e b r a n d o a c a b e ç a p o r Sa l o m é ".
E u : " E c o m p li c a d o q u a n d o se d i z a ve r d a d e . E e st a a r a z ã o d e Sa l o m é e st a r
a i n d a c h o r a n d o ?"
C : "Si m . E e st a a r a z ã o ".
E u : " E o q u e se p o d e fa z e r ?"
C : " O h , t u q u e r e s fa z er ? P o d e - s e t a m b é m p e n s a r ".
E u : "C e r t o , o q u e se d e ve p e n sa r ? Co n fe s s o q u e n ã o s e i p e n s a r n a d a n e st e
caso. T a l ve z t e n h a s a lg u m a su ge st ã o . T e n h o a i m p r e s s ã o d e q u e e u d e ve r i a s u b ir
p a r a a lé m d e m i n h a ca b e ça . I s t o n ã o o p osso. O q u e a ch a s?"
C : " N ã o a ch o n a d a , n e m t e n h o s u ge s t ã o ".
E u : "En t ã o p e r g u n t a aos d o a lé m , v a i ao i n fe r n o o u ao cé u , t a lve z lá e xi s t a
a lgu m a s u ge s t ã o ".
C : "So u p u xa d o p a r a c i m a ".
En t ã o a c o b r a t r a n s fo r m o u - s e n u m p e q u e n o p á s s a r o b r a n c o q u e se e le vo u
p a r a as n u ve n s o n d e d e sa p a r e ce u . E u o a c o m p a n h e i p o r lo n go t e m p o c o m o
o l h a r 329 .

O p á ssa r o : "Es t á s m e o u vin d o ? Es t o u lo n ge . O c é u é d is t a n t e . O i n fe r n o


e st á b e m m a is p r ó x i m o d a t e r r a . E u e n c o n t r e i algo p a r a t i , u m a c o r o a a b a n d o -
n a d a . E l a e st a va n u m a e st r a d a n o s e s p a ç o s i n c o m e n s u r á ve i s d o cé u , u m a c o r o a
d e o u r o ". J á e st á e m 3 3 ° / m i n h a s m ã o s , u m a c o r o a r é gia d e o u r o . N a p a r t e i n t e r - 189/ esboço

n a e s t ã o gr a va d a s le t r a s, o q u e d i z e m ?

" O a m o r n ã o a ca b a j a m a i s " 3 3 1.

U m p r e se n t e d o cé u ! M a s o q u e sign ifica ?
P: " E u e s t o u a q u i, e st á s sa t isfe it o ?"

E u : " E m p a r t e - a g r a d e ç o - t e e m t o d o caso o p r e se n t e sign ifica t ivo . M a s é


e n ig m á t ic o , e t eu s p r e se n t e s t o r n a m - m e p o r f i m d e sco n fia d o ".

329 Esta frase foi acrescentada no esboço, p. 533.


330 A transcrição para a versão caligráfica do Líber Novus termina aqui. O que segue é transcrito diretamente
do datiloscrito do esboço (p. 533-556).
331 E uma passagem de iCo r 13,8. Próximo ao fim de sua vida, Jung citou-a novamente em suas reflexões
sobre o amor ao final de Mem órias (p. 4 0 5 S S . ) . No Livro Negro 4, a inscrição é em letras gregas (p. 134).
LI BE R SECU N D U S ESBO ÇO
39o
P: "M a s o p r e se n t e v e m d o c é u ".
E u : "É m u i t o b o n it o , m a s t u co n h e ce s a c o n c lu s ã o a q u e ch e ga m o s so b r e c é u
e i n fe r n o ".

P: " N ã o exager es. H á c o n t u d o u m a d i fe r e n ç a e n t r e c é u e in fe r n o . E u c r e io


q u e d e vo ju lga r p e lo q u e v i : q u e n o c é u a co n t e ce t ã o p o u c o c o m o n o in fe r n o ,
m a s p r o va ve lm e n t e d e u m o u t r o m o d o . T a m b é m o q u e n ã o a co n t e ce n ã o p o d e
a c o n t e c e r d e u m m o d o e sp e cia l".
E u : " T u falas e m e n igm a s, q u e p o d e m t o r n a r a lg u é m d o e n t e se ele os c o n s i -
d e r a r d e fo r m a t r á gica . D i z e - m e : o q u e ach as d a co r o a ?"
P: " O q u e a ch o ? N a d a . E l a n a ve r d a d e fa la p o r s i ".

E u : " O u seja, p elas p a la vr a s q u e c o n t é m ? "

P: "Exa t a m e n t e ; ist o n ã o t e p a r e ce e vid e n t e ?"


E u : " D e c e r t a fo r m a . M a s ist o m a n t é m a p e r g u n t a h o r r i ve l m e n t e ín suspenso".
P: "M a s ist o , s e m d ú vid a , é i n t e n c i o n a l ".
Aq u i , o p á s s a r o se t r a n s fo r m a , d e r e p e n t e , d e n o vo n a c o b r a 3 3 2 .
E u : " T u e st á s fic a n d o n e r vo s o ".
C o b r a 3 3 3 : "Só p a r a c o m a q u e le q u e n ã o é u m c o m igo ".
E u : "I s t o c e r t a m e n t e n ã o o so u . M a s c o m o se p o d e r ia ? É h o r r íve l fic a r d e -
p e n d u r a d o d essa fo r m a n o a r ".

C : " E d ifícil d e m a is esse sa cr ifício ? D e ve s t a m b é m p o d e r fica r d e p e n d u r a d o


q u a n d o q u e r e s r e s o lve r p r o b le m a s . Vê , p o r e xe m p lo , Sa l o m é !"
E u ( p a r a Sa l o m é ) : " E u ve jo , Sa l o m é , q u e a i n d a ch o r a s. A i n d a n ã o e st á s c a l -
m a . E u e s t o u d e p e n d u r a d o e a m a l d i ç o o est e m e u e st a r d e p e n d u r a d o . Es t o u
d e p e n d u r a d o p o r a m o r a t i e a m i m . I n i c i a l m e n t e e st a va c r u c ific a d o , a go r a só
e s t o u d e p e n d u r a d o — m e n o s e le ga n t e, m a s n ã o m e n o s d o l o r o s o 3 3 4 . P e r d o a - m e
p o r t e r q u e r i d o a c a lm a r - t e ; e u p e n s a va e m sa lva r - t e , c o m o n a q u e la ve z e m q u e ,
a t r a vé s d e m e u a u t o ssa cr ifício , c u r e i t u a ce gu e ir a . T a l ve z e u t e n h a q u e ser d e c a -
p it a d o p e la t e r c e i r a ve z p o r t i , c o m o t e u a n t igo a m igo Jo ã o , q u e n o s a p r e s e n t o u
o C r i s t o so fr ed o r . E s t u in sa ciá ve l? A i n d a n ã o vê s n e n h u m c a m i n h o p a r a t e
t o r n a r e s se n sa t a ?"

Sal: " M e u a m a d o , q u e c u l p a t e n h o eu ? Re n u n c i e i t o t a lm e n t e a t i ".

332 Esta frase foi acrescentada no esboço (p. 534).


333 Esta figura não é identificada como a cobra no Livro Negro 4.
334 Em Transformações e símbolos da libido (19 12), Jung comentou o motivo do enforcamento no folclore e na
mitologia ( O C, B, § 358 ) .
O M AGO 391

Eu : "En t ã o , p o r q u e co n t in u a s ch o r a n d o ? Sab es q u e n ã o p o sso su p o r t a r ve r - t e


se m p r e e m lá gr im a s ".
Sa l: " E u p e n s e i q u e er as in vu ln e r á ve l, d e sd e a é p o c a e m q u e p o ssu is a va r a
d a c o b r a ".
E u : " O e fe it o d a va r a p a r e c e - m e d u vid o so . P e lo m e n o s e m u m a c o is a a va r a
d a c o b r a m e a ju d a : n ã o m e su foco, a p esa r d e e st a r e n fo r ca d o . A va r a d e c o n d ã o
m e a ju d a s e m d ú vi d a a s u p o r t a r o e st a r e n fo r ca d o , e m b o r a se ja u m b e n e fí c i o e
u m a a ju d a h o r r íve is . N ã o q u e r e s p e lo m e n o s c o r t a r a c o r d a ?"
Sa l: " C o m o p o d e r ia ? Est á s d e p e n d u r a d o t ã o a l t o 3 3 5 . T ã o a lt o n a c o p a d a á r -
vo r e d a vi d a , o n d e n ã o p o sso a lca n ça r . N ã o p o d e s a ju d a r a t i m e s m o , t u , c o n h e -
ce d o r d a s a b e d o r ia d as co b r a s?"
E u : "T e n h o q u e fica r d e p e n d u r a d o p o r m u i t o t e m p o a in d a ?"
Sa l: "T a n t o t e m p o , a t é q u e t e n h a s im a gin a d o u m a u xílio p a r a t i ".
E u : " D i z - m e , ao m e n o s , o q u e ach as d a c o r o a q u e m e u p á s s a r o a n í m i c o p e -
go u d o c é u ?"
Sa l: " O q u e d iz e s? A co r o a ? T u t e n s a co r o a ? Fe l i z a r d o ! E a i n d a t e q u e ixa s
d e q u ê ?"
E u : " U m r e i e n fo r c a d o t r o c a r i a d e b o a vo n t a d e c o m q u a lq u e r p e d in t e n ã o
e n fo r c a d o d a e st r a d a ".
Sa l ( e m ê xt a s e ) : "A co r o a ! T u t e n s a c o r o a !"
E u : "Sa l o m é , t e m c o m p a i xã o d e m i m . O q u e d e vo fa z e r c o m a c o r o a ?"
Sa l ( e m ê xt a s e ) : "A c o r o a - t u d e ve s ser co r o a d o ! Q u e fe licid a d e p a r a m i m
e p a r a t i !"
E u : "Ah , o q u e t e n s a ve r c o m a co r o a ? N ã o p o sso e n t e n d ê - l o e so fr o t o r -
m e n t o in d iz íve l".
Sa l ( c r u e l ) : "F i c a e n fo r c a d o a t é e n t e n d e r e s ".

E u m e ca lo e e s t o u d e p e n d u r a d o b e m a lt o a c i m a d o c h ã o e m ga lh o b a l o u -
ç a n t e d a á r vo r e d i vi n a , p a r a q u e a s s i m já os a n t e p a ssa d o s n ã o p u d e s s e m a b a n -
d o n a r o p e c a m in o s o . M i n h a s m ã o s e s t ã o a m a r r a d a s e e u e s t o u c o m p l e t a m e n t e
d e sa m p a r a d o . Es t o u d e p e n d u r a d o h á t r ê s d ia s e t r ê s n o it e s.
D o n d e p o d e r i a v i r a ju d a ? A l i e s t á p o u sa d o m e u p á ssa r o , a c o b r a q u e ve s t i u
su a r o u p a b r a n c a d e p e n a s.

335 Falta uma página no Livro Negro 4, cobrindo o fim desse diálogo e o parágrafo seguinte.
392 LI BE R SECU N D U S ESBO ÇO

P á s s a r o : " N ó s va m o s b u s c a r a ju d a d as n u ve n s q u e p a ssa m p o r so b r e a t u a
ca b e ça , se n ã o c o n s e gu ir m o s a ju d a d e o u t r o m o d o ".
E u : "Q u e r e s b u s c a r a ju d a d as n u ve n s ? C o m o é p o s s íve l?"
P: " E u v o u t e n t a r ".
O p á s s a r o v o o u q u a l c o t o via , fo i fic a n d o c a d a ve z m e n o r a t é d e sa p a r e ce r
n as d e n sa s n u ve n s c in z e n t a s q u e c o b r i a m o cé u . E u o a c o m p a n h e i c o m o lh a r
sa u d o so e n ã o v i m a is n a d a d o q u e o c é u i n fi n d o , c o b e r t o d e n u ve n s c in z e n t a s
so b r e m i m , i m p e n e t r a ve l m e n t e c in z e n t o , u n i fo r m e m e n t e c i n z e n t o e ile gíve l.
M a s a in s c r iç ã o n a c o r o a - e la é le gíve l. " O a m o r n ã o a ca b a ja m a i s " — sign ific a o
e t e r n o e n fo r c a m e n t o ? N ã o fo i à t o a q u e fiq u e i d e sco n fia d o q u a n d o m e u p á s s a -
r o t r o u xe a co r o a , a c o r o a d a v i d a e t e r n a , a c o r o a d o m a r t í r i o - co isa s o m in o s a s
q u e sã o p e r igo s a m e n t e a m b íg u a s .
Es t o u ca n sa d o , n ã o só ca n sa d o d e e st a r d e p e n d u r a d o , m a s d a l u t a p elas
im e n s id a d e s . Lá lo n ge , d e b a ixo d o s m e u s p é s , n o c h ã o d a t e r r a , e s t á a c o r o a
e n igm á t ic a , r e l u z i n d o e m fu lgo r es d e o u r o . E u n ã o e s t o u p a ir a n d o , n ã o , e s t o u
d e p e n d u r a d o , o u , p io r , e s t o u su sp e n so e n t r e c é u e t e r r a — e n ã o p o sso fica r
sa cia d o d o e st a r d e p e n d u r a d o —, p u d e sse e u ao m e n o s s a c i a r - m e d isso p a r a
s e m p r e , m a s o a m o r n ã o a ca b a ja m a is . E r e a l m e n t e ve r d a d e q u e o a m o r n ã o
d e ve a ca b a r ja m a is ? O q u e fo i b o a - n o va p a r a aq u eles, é o q u e p a r a m i m ?
"I s t o d e p e n d e d o c o n c e it o ", d isse d e r e p e n t e u m ve l h o c o r vo q u e , n ã o lo n ge
d e m i m , e sp e r a n d o o b a n q u e t e fú n e b r e , e s t á p o u sa d o n u m galh o, filo s o fic a -
m e n t e m e r g u lh a d o e m si m e s m o .
E u : "C o m o d e p e n d e d o c o n c e it o ?"
C o r v o : " D e t e u c o n c e it o e d a q u e le c o n c e it o d e a m o r ".
E u : " E u se i, ve l h a ave a go u r e n t a , t u p e n sa s e m a m o r ce le st ia l e t e r r e n o 3 3 6 . O
a m o r ce le st ia l s e r ia b e m b o n it o , m a s n ó s so m o s ser es h u m a n o s , e e u m e d e c i d i ,
já q u e so m o s ser es h u m a n o s , se r u m a p e sso a ín t e gr a e c o r r e t a .
C o r v o : " T u és u m i d e ó l o g o ".
E u : "Ra ç a e s t ú p i d a d e co r vo s, a fa st a -t e d e m i m ".
Be m p e r t o d o m e u r o st o m o vi m e n t a - s e u m galh o , u m a c o b r a p r e t a e n r o -
lo u - s e n e le e m e o l h a c o m o o p a co b r i l h o p e r o lí fe r o d e seu s o lh o s. N ã o é a
m i n h a co b r a ?

336 Swedenborg descreveu o amor celestial como consistindo em "amar os usos por causa dos usos, ou os
bens por causa dos bens, que um homem realiza pela Igreja, por sua pátria, pela sociedade humana e por
um concidadão", diferenciando-o do amor a si mesmo e do amor ao mundo (Heaven and ítsW onders and Hell.
FromThingsHeardandSeen. Londres: Swedenborg Society, 19 20 , § 554S. [Trad. de J. Ren dell]).
O M AGO
393
E u : "I r m ã e va r a p r e t a d e c o n d ã o , d e o n d e ve n s ? P e n s e i q u e t ivesses vo a d o
c o m o p á s s a r o p a r a o cé u , e a go r a e st á s a q u i? T r a z e s a ju d a ?"
Co b r a : " E u s o u a p e n a s u m a m i n h a m e t a d e . N ã o s o u u m a , m a s d u a s, s o u o
u m e o o u t r o . Es t o u a q u i a p e n a s c o m o o s e r p e n t in o , o m á gic o . M a s a m a gia n ã o
a ju d a a q u i e m n a d a . E u m e e n r o l e i n e st e ga lh o s e m n a d a q u e fazer , e sp e r a n d o
o d e s e n r o la r d as co isa s. T u p o d e s p r e c is a r d e m i m e m vi d a , m a s n ã o n o e n fo r -
c a m e n t o . N o p i o r d o s casos, e s t o u d is p o s t a a l e vá - l o p a r a o H a d e s . C o n h e ç o o
c a m i n h o p a r a lá".
N o ar, d ia n t e d e m i m , c o n d e n s o u - s e u m a figu r a n e gr a , sa t a n á s, c o m u m
s o r r is o sa r cá st ico . G r i t o u - m e : "I s t o p r o vé m d a c o n c ilia ç ã o d o s o p o st o s! Re n e g a
e i m e d i a t a m e n t e e st a r á s c á e m b a i xo so b r e a t e r r a ve r d e ja n t e ".

E u : " E u n ã o r en ego , n ã o s o u i m b e c i l . Se ist o t ive r q u e se r a s s im , q u e a s s im


se ja ".
C : " O n d e e st á t u a i n c o n s e q u ê n c ia ? P o r favor , l e m b r a - t e d e ssa i m p o r t a n t e
r e gr a d a a r t e d e vi ve r ".
E u : "A i n c o n s e q u ê n c i a fo i sa t isfe it a c o m o fat o d e e u e st a r d e p e n d u r a d o
a q u i. V i v i a t é o t é d io se gu n d o a in c o n s e q u ê n c ia . O q u e q u e r e s m a i s ?"

C : "M a s t a lve z i n c o n s e q u ê n c i a n o lu ga r c e r t o ?"

E u : "P a r a ! O q u e se i e u d o q u e é lu ga r c e r t o e e r r a d o ?"
Sa t a n á s: " Q u e m l i d a t ã o s o b e r a n a m e n t e c o m os o p o st o s sab e o q u e é e s-
q u e r d o e d i r e i t o ".
E u : "C a l a a b o ca , i n t r o m e t i d o ! Se p e lo m e n o s vie sse m e u p á s s a r o b r a n c o e
m e t r o u xe sse a ju d a , e s t o u c o m m e d o , e s t o u fic a n d o fr a co ".
C : " N ã o sejas b o b o , a fr a q u e z a t a m b é m é u m c a m i n h o , a m a gia v a i à d e s-
fo r r a ".
Sa t a n á s: " O q u ê ? N ã o t e n s c o r a ge m p a r a e n fr e n t a r a fr a q u e z a ? Q u e r e s ser
p e sso a h u m a n a c o m p le t a , e as p esso as n ã o sã o fo r t e s?"
E u : " M e u p á s s a r o b r a n c o , n ã o e n c o n t r a s o c a m i n h o d e vo lt a ? Fo s t e e m b o r a
p o r q u e c o m igo n ã o d á p a r a vi ve r ? O h , Sa lo m é ! Lá v e m e la . V e m a t é m i m , Sa -
l o m é ! O u t r a n o it e se p a sso u . N ã o t e o u vi ch o r a r , m a s e st ive e n fo r c a d o e a i n d a
e st o u ".

Sa l: " N ã o c h o r e i m a is , p o is fe licid a d e e in fe lic id a d e e q u i l i b r a m e m m i m su a


b a la n ç a ".
E u : " M e u p á s s a r o b r a n c o fo i e m b o r a e a i n d a n ã o vo l t o u . N ã o se i n a d a e n ã o
e n t e n d o n a d a . Is t o t e m a ve r c o m a co r o a ? Fa l a !"
LI BE R SECU N D U S ESBO ÇO
394
Sal: " O q u e d e vo falar ? P e r g u n t a a t i m e s m o ".

E u : " N ã o co n sigo , m e u c é r e b r o é c o m o c h u m b o , só p o sso c h o r a m i n g a r p o r

a ju d a . N ã o se i se t u d o e st á d e s m o r o n a n d o , o u se t u d o e s t á q u ie t o . M i n h a e s-

p e r a n ç a e st á e m m e u p á s s a r o b r a n co . A h , n ã o é p o s s íve l q u e ser p á s s a r o é o

m e s m o q u e e st a r e n fo r ca d o ".

Sa t a n á s: "Co n c i l i a ç ã o d o s o p o st o s! I g u a l d i r e i t o p a r a t o d o s e p a r a t u d o !

D o i d i c e s !"

E u : "O u ç o u m p á s s a r o c h ilr e a r ! E s t u ? Vo lt a s t e ?"

P á s s a r o : "Se a m a s a t e r r a , e st á s e n fo r ca d o ; se a m a s o cé u , e st á s p a ir a n d o ".

E u : " O q u e é t e r r a ? O q u e é c é u ?"

P: "T u d o e m b a i xo d e t i é t e r r a , t u d o a c i m a d e t i é cé u . Vo a s q u a n d o a sp ir a s

ao q u e e s t á a c i m a d e t i , e st á s e n fo r ca d o se a sp ir a s ao q u e e s t á e m b a i xo d e t i ".

E u : " O q u e h á a c i m a d e m i m ? O q u e h á e m b a i xo d e m i m ? "

P: "Ac i m a d e t i , o q u e e st á a d ia n t e d e t i ; e m b a i xo d e t i , o q u e e s t á p a r a t r á s

d e t i ".

E u : " E a co r o a ? D e s ve n d a - m e o e n i g m a d a c o r o a ".

P: "A c o r o a e a c o b r a sã o o p o st o s e u m . N ã o vis t e a c o b r a c o r o a n d o a c a b e ç a

d o c r u c ific a d o ?"

E u : "I n fe l i z m e n t e n ã o t e e n t e n d o ".

P: " Q u a l fo i a p a la vr a q u e a c o r o a t e t r o u xe ? ' O a m o r n ã o a ca b a ja m a i s ' -

est e é o m i s t é r i o d a c o r o a e d a c o b r a ".

E u : " E Sa lo m é ? O q u e va i a c o n t e c e r c o m Sa l o m é ?"

P: " T u vê s , Sa l o m é é c o m o t u és. Vo a , e n t ã o c r e s c e r ã o asas n e la ".

A s n u ve n s se d i vi d e m , o c é u e s t á c h e io d e a r r e b o l d o t e r c e ir o d i a q u e t e r m i -

n o u 3 3 7 . O s o l m e r g u l h a n o m a r , e c o m ele d e s liz o d o c i m o d a á r vo r e p a r a a t e r r a .

Si l e n c i o s a e p a c ific a m e n t e c a i a n o it e .

[2] O m e d o t o m a c o n t a d e m i m . A q u e m le va st e s p a r a a m o n t a n h a , ca b ir o s?

E a q u e m o fe r e ci sa cr ifício e m vó s ? V ó s elevast es a m i m m e s m o q u a l t o r r e ,

fiz e st e s d e m i m u m a t o r r e so b r e r o ch e d o s in a ce ssíve is, d e m i m fiz e st e s m i n h a

igr e ja , u m m o s t e ir o , m e u lu ga r d e su p lício , m i n h a p r isã o . Es t o u p r e so e m m i m

m e s m o e s o u ju lga d o . E m m i m s o u m e u p r ó p r i o sa ce r d o t e e c o m u n i d a d e , ju i z

e se n t e n cia d o , D e u s e sa cr ifício h u m a n o .

337 Segundo o relato bíblico da criação, o mar e a terra foram separados no terceiro dia.
O M AGO
395
A i , ca b ir o s, q u e o b r a r e a liz a st e s! Fiz e st e s n a sce r d o cao s u m a l e i t e r r íve l q u e
n ã o p o d e m a is ser a b o lid a . F o i e n t e n d i d a e a ce it a .

O t é r m i n o d o q u e foi p r o d u z i d o e m se gr e d o se a p r o xi m a . O q u e e u v i , e u o
d e s c r e vi e m p a la vr a s d a m e l h o r m a n e i r a q u e p u d e . A s p a la vr a s sã o p o b r e s e n ã o
foram e m b e le z a d a s. M a s , a ve r d a d e é b e la e a b e le z a é ve r d a d e i r a ? 3 3 8

E p o s s íve l fa la r d o a m o r c o m b elas p a la vr a s, m a s d a vid a ? E a vi d a e st á a c i m a


d o a m o r . M a s o a m o r é a m ã e in d is p e n s á ve l d a vi d a . A v i d a n ã o d e ve n u n c a ser
fo r ç a d a p a r a d e n t r o d o a m o r , m a s, s i m , o a m o r p a r a d e n t r o d a vi d a . O a m o r
p o d e e st a r s u je it o ao t o r m e n t o , m a s n ã o à vi d a . En q u a n t o o a m o r a n d a p r e n h e
d a vi d a , d e ve ser b e m va lo r iz a d o ; m a s se t ive r p a r i d o a vi d a , t o r n o u - s e u m i n -
vó l u c r o va z i o e s u c u m b e à t r a n s it o r ie d a d e .
E u falo c o n t r a a m ã e q u e m e ca r r e go u , e u m e afast o d o se io g e r a d o r 3 3 9 . N ã o
falo m a is p o r ca u sa d o a m o r , m a s p o r ca u sa d a vi d a .
A p a la vr a se t o r n o u d ifícil p a r a m i m , m a l co n se gu e so lt a r - se d a a lm a . P o r -
t õ e s d e b r o n z e se fe c h a r a m . Fo go s se q u e i m a r a m e v i r a r a m c in z a . Fo n t e s se
e sgo t a r a m , e o n d e h a vi a m a r e s, h á t e r r a seca. M i n h a t o r r e e st á n o d e se r t o . Fe l i z
d a q u e le q u e p o d e e st a r só e m s e u d e se r t o . E l e vi ve m a is a lé m .

N ã o é o p o d e r d a c a r n e q u e d e ve se r q u e b r a d o , m a s o d o a m o r , p o r ca u sa d a
vi d a , p o is a v i d a e st á a c i m a d o a m o r . U m a p e sso a p r e c is a d e s u a m ã e a t é q u e su a
vi d a se t e n h a t o r n a d o . En t ã o se s e p a r a r á d e la . A s s i m t a m b é m a v i d a p r e c is a d o
a m o r , a t é q u e se t e n h a t o r n a d o , e n t ã o va i se p a r a r - se d ele. D u r a é a s e p a r a ç ã o d a
c r ia n ç a d e s u a m ã e , m a s a i n d a m a is d u r a é a s e p a r a ç ã o d a v i d a d o a m o r . O a m o r
p r o c u r a o t er , m a s a v i d a go st a r ia d o m a is a lé m .

O c o m e ç o d e t o d a s as co isas é o a m o r , m a s o se r d as co isa s é a v i d a 3 4 0 Es t a
d is t in ç ã o é t e r r íve l. P o r q u e , e s p ír it o d a p r o fu n d e z a e scu r a , m e o b r iga s a d iz e r :

338 O poema de John Keat "Ode to a Grecian Ur n " termina assim: "Beauty is truth, truth beauty, - that is
ali / Ye know on earth, and ali ye need to know".
339 Em Transformações e símbolos da libido (1912. O C , B) , Jung argumenta que no decorrer do desenvolvimento
psicológico, o indivíduo tem de libertar a si mesmo da figura da mãe, como representada nos mitos
heróicos (cf. cap. V I , "A luta pela libertação da m ãe").
34 0 Em Transformações e símbolos da libido (19 12), ao discutir seu conceito de libido, Jung se refere ao significado
cosmogônico de Eros na Teogonia de Hesíodo, que ele vincula à figura de Fanes no orfismo e a Kam a, o
Deus hindu do amor ( O C, B, § 223).
LI BE R SECU N D U S ESBO ÇO
396
q u e m a m a n ã o vive , e q u e m vi ve n ã o a m a ? E u d isse s e m p r e o c o n t r á r io ! Se r á
q u e t u d o d e ve ser t r a n s fo r m a d o e m se u o p o s t o ? 3 4 1 Se r á m a r o n d e e s t á o t e m p l o
d e O I A H M Q N ? Su a i l h a s o m b r e a d a a fu n d a r á n o so lo m a is p r o fu n d o ? N o r e -
d e m o i n h o d o d ilú vio e m r e cu o , q u e a n t e s e n go lia t o d a s as t e r r a s e p o vo s? Se r á
so lo m a r i n h o o n d e se e r gu e o A r a r a t ? 3 4 2
Q u e p a la vr a s a b o m i n á ve i s m u r m u r a s , filh o m u d o d a t e r r a ? Q u e r e s d e sfa z e r
o a b r a ç o d e m i n h a a lm a ? T u , m e u filh o , t e i m i s c u i s n isso ? Q u e m és? E q u e m
t e d á a fo r ça ? T u d o o q u e a m b i c i o n e i , t u d o o q u e a r r a n q u e i d e m i m m e s m o t u
q u e r e s n o va m e n t e i n ve r t e r e a n u la r ? T u és o filh o d o d ia b o p a r a q u e m t o d o o
sa gr a d o é o d io so . Su r ges avassalad or . T u m e in c u t e s m e d o . D e i x a a le gr a r - m e
c o m o a b r a ç o d e m i n h a a l m a e n ã o p e r t u r b e s o sossego d o t e m p lo .
A i , t u m e p e n e t r a s c o m fo r ç a p a r a lis a n t e . M a s e u n ã o q u e r o t e u c a m i n h o .
D e v o c a ir i m p o t e n t e a t eu s p é s? D i a b o e filh o d o d ia b o , fala! T u a m u d e z é i n -
s u p o r t á ve l e d e b u r r i c e a ssu st a d o r a .
E u ga n h e i m i n h a a lm a , e o q u e fo i q u e e la m e ge r o u ? A t i , m o n s t r o , u m filh o ,
a h — u m t e r r íve l p r o d u t o a b o r t ivo , u m t a r t a m u d o , u m c a b e ç a d e b a gr e, u m s á u -
r i o p r i m i t i vo . Q u e r e s ser o r e i d o m u n d o ? Q u e r e s c a t iva r os h o m e n s o r g u lh o -
sos e livr e s , e n fe it iç a r as b elas m u l h e r e s , a r r a s a r os ca st e lo s, a b r i r vi o l e n t a m e n t e
as n a ve s d as a n t iga s ca t e d r a is? U m m u d o , u m a r ã d e o lh o s a r r e ga la d o s e p r e g u i -
ç o s o s q u e ca r r e ga e sp ir o q u e t a s so b r e a s u p e r fíc ie d e s u a la s t im á ve l ca b e ça . E t u
q u e r e s c h a m a r - t e m e u filh o ? N ã o és m e u filh o , m a s o filh o d o d ia b o . O p a i d o
d ia b o e n t r o u n o se io d e m i n h a a l m a e t o r n o u - s e c a r n e e m t i .
E u t e r e c o n h e ç o , O I A H M Q N , t u , o m a is a st u t o d e t o d o s os e n ga n a d o r e s! T u
m e lo gr a st e. M i n h a vi r g e m a l m a ge r o u p a r a t i o ve r m e asq u er o so . O I A H M Q N ,
m a l d i t o ch a r la t ã o , t u s im u la s t e m i s t é r i o p a r a m i m , co lo ca st e e m vo l t a d e m e u s
o m b r o s o m a n t o d e e st r e la s, r e p r e se n t a st e c o m igo u m a c o m é d i a a m a lu c a d a d e
Cr i s t o , t u m e d e p e n d u r a s t e , c o m p ie d a d e r id ícu la , n a á r vo r e c o m o O d i n 3 4 3 , t u
m e fiz e st e i m a g i n a r r u n a s p a r a d e s e n fe it iç a r Sa l o m é , e e n q u a n t o isso ge r a st e
c o m m i n h a a l m a o ve r m e n a s c id o d o p ó . Em b u s t e a t r á s d e e m b u st e ! C h a r l a t a -
n ic e d e m o n í a c a in c o n c e b íve l!

341 Em sua obra posterior, Jung deu importância à "enantiodromia", o princípio de que todas as coisas se
transformam em seus opostos, que ele atribuiu a Heráclito. Cf. Tipos psicológicos (19 21). O C , 6, § 793s.
342 No relato bíblico do dilúvio, a arca acabou pousando sobre o Monte Ararat ( Gn 8 ,4) . Ararat é uma
elevação vulcânica inativa na Arm ênia (atual Turquia).
343 Na mitologia nórdica, O d in foi traspassado por uma lança e dependurado na árvore do
mundo, Yggdrasill, onde ficou por nove noites, até que encontrou as runas, que lhe deram força.
O M AGO
397
T u m e d e st e p o d e r m á gic o , m e co r o a st e , m e co r o a st e c o m o b r i l h o d o p o d e r ,
p a r a q u e e u , q u a l Jo s é , fosse u m p a i fict ício d e t e u filh o . Co lo c a s t e u m o vo d e
b a silisco n o n i n h o d a p o m b a .
M i n h a a lm a , p r o s t i t u t a a d ú lt e r a , t u fica st e p r e n h e d esse b a st a r d o ! Es t o u
d e so n r a d o , e u , p a i c a r ic a t o d o a n t ic r is t o ! C o m o d e s c o n fie i d e t i ! E q u ã o m i -
se r á ve l fo i m i n h a d e s c o n fia n ç a q u e n ã o c o n s e gu iu i m a g i n a r a m a gn it u d e d e ssa
in fâ m ia !
O q u e p a r t is t e e m d o is? P a r t is t e e m d o is o a m o r e a vi d a . D e s s a p a r t iç ã o e

t e r r íve l s e p a r a ç ã o n a s c e u a r ã e o filh o d a r ã. Vi s ã o r id íc u la e a b o m in á ve l! A p a -

r e c i m e n t o in e vit á ve l!
El e s e s t a r ã o se n t a d o s n a b e i r a d a á gu a d o ce e e sc u t a n d o o c a n t o n o t u r n o
d as r ã s, p o is s e u D e u s n a s c e u c o m o u m filh o d a r ã.

O n d e e s t á Sa lo m é ? O n d e a p e r g u n t a i r r e s p o n d í ve l d o a m o r ? N e n h u m a
p e r g u n t a m a is , m e u o lh a r se vo l t a p a r a a lé m , p a r a as co isas q u e vir ã o , e Sa l o m é
e st á o n d e e u e st o u . A m u l h e r segu e s e u m a is fo r t e , n ã o a t i. A s s i m e la ge r a p a r a
t i filh o s, n o b e m e n o m a l .

{7} [1] C o m o e u est ivesse d e t a l m o d o s o z i n h o so b r e a t e r r a , ce r ca d o p o r


n u ve n s d e c h u va e p e la n o it e q u e ca ía , ve io r a s t e ja n d o a t é m i m m i n h a c o b r a 3 4 4
e m e c o n t o u u m a h ist ó r ia :

" E r a u m a ve z u m r e i q u e n ã o t i n h a filh o s. M a s go st a r ia d e t e r u m filh o . P o r


isso fo i p r o c u r a r u m a m u l h e r sá b ia q u e m o r a va n a floresta, n a q u a lid a d e d e
b r u xa , e lh e co n fe sso u t o d o s os seu s p e ca d o s, c o m o se e la fosse u m sa ce r d o t e
n o m e a d o p o r D e u s . Ap ó s a co n fissã o , e la lh e fa lo u : ' Se n h o r r e i , o s e n h o r fez o
q u e n ã o d e ve r i a t e r feit o . M a s c o m o a co n t e ce u , a c o n t e c id o e st á , e va m o s ve r o
q u e d e m e l h o r lh e p o d e r e s e r va r o fu t u r o . T o m e m e i o q u ilo d e b a n h a d e l o n t r a ,
e n t e r r e - o n a t e r r a e d e ixe q u e se p a sse m n o ve m eses. D e p o i s a b r a a c o va e ve ja
o q u e a ch a r á '. O r e i fo i p a r a ca sa e n ve r go n h a d o e d e so la d o p o r q u e se h a vi a h u -

344 23 de fevereiro de 1914. No Livro Negro 4, o diálogo é com a alma e esta seção começa com Jung
perguntando-lhe o que a está impedindo de voltar ao seu trabalho, e ela lhe diz que é sua ambição. Ele
pensava que a havia superado, mas a alma disse que ele simplesmente a havia negado, e por isso lhe conta
a história que segue (p. 171). A 13 de fevereiro de 1914, Jung deu uma conferência "Zu r Traumsymbolik"
para a Sociedade Psicanalítica de Zurique. De 30 de março a 13 de abril, Jung partiu de férias para a Itália.
LI BE R SECU N D U S ESBO ÇO
398
m i l h a d o d ia n t e d a b r u xa n a floresta. M a s o b e d e ce u à in s t r u ç ã o d e la , c a vo u d e
n o i t e u m b u r a c o n o j a r d i m e c o lo c o u d e n t r o d e le u m p o t e d e b a n h a d e l o n t r a ,
q u e h a vi a co n se gu id o a m u i t o cu st o .

D e i x o u p a ssa r n o ve m e se s. D e c o r r i d o est e t e m p o , fo i n o va m e n t e d e n o it e
ao m e s m o lu gar , o n d e e st a va e n t e r r a d o o p o t e , e o d e s e n t e r r o u . P a r a s e u m a i o r
e sp a n t o , e n c o n t r o u d e n t r o d e le u m a c r ia n ç a d o r m i n d o ; m a s a b a n h a h a vi a
d e sa p a r e cid o . T i r o u a c r ia n ç a e l e vo u - a sa t isfe it o p a r a s u a esp osa. E l a a l e vo u
i m e d i a t a m e n t e ao p e it o e ve ja - se u le it e ve i o e m a b u n d â n c ia . A c r ia n ç a i a
cr e sce n d o , t o r n o u - s e gr a n d e e fo r t e . D e s e n vo l ve u - s e n u m h o m e m m a is a lt o e
m a is fo r t e d o q u e t o d o s os o u t r o s .

Q u a n d o ch e go u a id a d e d e vi n t e a n o s, a p r e se n t o u - se d ia n t e d o p a i e d isse:
' E u se i q u e t u m e ge r a st e a t r a vé s d e m a gia e e u n ã o n a s c i c o m o os d e m a is h o -
m e n s . T u m e cr ia st e p e lo a r r e p e n d i m e n t o d e t eu s p e ca d o s, e ist o m e t o r n o u
fo r t e . N ã o n a s c i d e m u lh e r , e is t o m e fez in t e lige n t e . So u fo r t e e in t e lige n t e
e p o r isso e xi jo d e t i a c o r o a d o r e in o ' . O r e i ficou a ssu st a d o c o m a sa b e d o r ia
d e se u filh o e a i n d a m a is c o m a e xi g ê n c i a i m p e t u o s a d o p o d e r r e a l. Ca l o u - s e e
p e n so u : ' O q u e fo i q u e t e ge r o u ? Ba n h a d e l o n t r a . Q u e m t e ca r r e go u ? O ve n t r e
d a t e r r a . E u t e t i r e i d e u m p o t e , u m a b r u xa m e h u m i l h o u ' . D e c i d i u e n t ã o fa z e r
c o m q u e se u filh o fosse m o r t o .

M a s c o m o se u filh o e r a m a i s fo r t e d o q u e t o d o s os o u t r o s, ele o t e m i a e p o r
isso p e n s o u e m r e c o r r e r a u m a r d i l . F o i n o va m e n t e p r o c u r a r a b r u xa n a floresta
e lh e p e d i u co n se lh o . E l a d isse: ' Se n h o r r e i , d e ssa ve z o s e n h o r n ã o m e co n fe s-
s o u n e n h u m p ecad o , p o r q u e d e se ja c o m e t e r u m p ecad o . Ac o n s e l h o q u e e n t e r r e
n o va m e n t e u m p o t e c o m b a n h a d e l o n t r a e d e ixe ist o n a t e r r a d u r a n t e n o ve
m e se s. D e p o i s , d e s e n t e r r e - o e ve ja o q u e a co n t e ce u '. O r e i fez e xa t a m e n t e o
q u e a b r u x a lh e r e c o m e n d o u . A p a r t i r d a í se u filho fo i fic a n d o c a d a ve z m a is
fr a co e, q u a n d o o r e i , a p ó s n o ve m e se s, fo i ao lu ga r o n d e e st a va e n t e r r a d o o
p o t e , p ô d e t a m b é m a b r i r a s e p u lt u r a p a r a se u filho. C o l o c o u o d e fu n t o n a c o va
ju n t o d o p o t e va z io .

M a s o r e i fi c o u d e so la d o e, c o m o n ã o c o n s e gu iu d o m i n a r s u a d e s o la ç ã o ,
fo i d e n o i t e n o va m e n t e a t é a b r u x a e lh e p e d i u co n se lh o . E l a d isse: ' Se n h o r
r e i, o s e n h o r q u is u m filh o , m a s q u a n d o o filh o q u is ser o r e i e t i n h a a fo r ça e
in t e ligê n c ia p a r a t a n t o , o s e n h o r n ã o q u is m a is filho n e n h u m . P o r isso p e r d e u
se u filho. P o r q u e se q u e ixa ? O s e n h o r t e ve t u d o q u e q u e r ia ' . O r e i fa lo u : ' T e n s
r a z ã o . E u o q u is a ssim . M a s n ã o q u e r i a e st a d e so la ç ã o . N ã o co n h e ce s u m r e -
O M AGO
399
m é d i o p a r a o r e m o r s o ?' Fa l o u a b r u xa : ' Se n h o r r e i , vá à s e p u lt u r a d e se u filh o ,
e n c h a n o va m e n t e o p o t e c o m b a n h a d e l o n t r a e, a p ó s n o ve m e se s, vá ve r o q u e
e n c o n t r a r á n o p o t e '. O r e i fez t u d o d e a co r d o c o m a in s t r u ç ã o e, d e sd e e n t ã o ,
fi c o u alegr e e n ã o sa b ia p o r q u ê .
Passad o s os n o ve m e se s, d e s e n t e r r o u o p o t e ; o c a d á ve r h a vi a s u m i d o e, n o
p o t e , ja z i a u m m e n i n i n h o a d o r m i r , e ele r e c o n h e c e u q u e a c r ia n ç a e r a s e u filh o
fa lecid o . E l e t o m o u o m e n i n i n h o co n sigo , e a p a r t i r d esse m o m e n t o ele c r e s -
c e u n u m a s e m a n a t a n t o q u a n t o as cr ia n ça s c r e s c e m n u m an o . Passad as vi n t e
se m a n a s, o filh o ve i o n o va m e n t e p e r a n t e o p a i e e xi g i u se u r e in o . M a s o p a i
já sa b ia p o r e xp e r i ê n c i a e h á m u i t o t e m p o c o m o t u d o a c o n t e c e r ia . M a l o filh o
a ca b a r a d e e xp r e ssa r s e u d esejo , o ve l h o r e i le va n t o u - s e d e s e u t r o n o , a b r a ç o u
c o m lá gr im a s d e a le gr ia s e u filh o e ele m e s m o o c o r o o u r e i . E o filh o , fe it o r e i ,
m o s t r o u - s e gr a t o a s e u p a i e o h o n r o u s u m a m e n t e e n q u a n t o a i n d a vi ve u ".

M a s e u d isse à m i n h a co b r a : "Re a l m e n t e , m i n h a c o b r a , e u n ã o sa b ia q u e
t a m b é m és u m a c o n t a d o r a d e c o n t o s d e fad as. M a s d i z e - m e : c o m o d e vo i n t e r -
p r e t a r t e u c o n t o d e fad as?".
C : "I m a g i n a q u e és o ve l h o r e i e t e n s u m filh o ".
Eu : " Q u e m é o fi l h o ?"
C : " O r a , e u p e n s e i q u e t ivesses falad o a go r a m e s m o d e u m filh o q u e t e d á
p o u c a a le gr ia ".
Eu : "C o m o ? T u n ã o e st á s p e n s a n d o - d e vo c o r o a r a e le ?"
C : "Si m , q u e m m a is se r ia ?"
Eu : "I s t o é sin ist r o . O q u e se p a ssa c o m a b r u xa ?"
C : "A b r u x a é u m a m u l h e r m a t e r n a l d a q u a l d e ve r ia s ser filh o , p o is t u és e m
t i m e s m o u m a c r ia n ç a q u e se r e n o va ".
Eu : " A i d e m i m , s e r á im p o s s íve l t o r n a r - m e h o m e m a lg u m d ia ?"
C : "Se r h o m e m o b a st a n t e , p a r a m a is a lé m se r cr ia n ça , a p le n it u d e . P o r isso
p r e cisa s d a m ã e ".
Eu : "T e n h o ve r g o n h a d e ser c r ia n ç a ".

C : " C o m isso, m a t a s o filh o . Al g u é m d o r m i n d o p r e c is a d a m ã e , p o is t u n ã o


és m u l h e r ".
E u : "E s t a ve r d a d e é e sp a n t o sa . E u p e n s a va e e sp e r a va p o d e r ser t o t a l m e n t e
u m h o m e m ".
C : "I s t o n ã o o p o d e s p o r a m o r ao filh o . G e r a r sign ifica : m ã e e filh o ".
4 QO LI BE R SECU N D U S ESBO ÇO

E u : "A i d e i a d e t e r d e p e r m a n e c e r c r ia n ç a é in s u p o r t á ve l".

C : "P o r a m o r a t e u filh o , t e n s d e ser c r ia n ç a e d e i xa r - l h e a c o r o a ".

E u : " A i d e i a d e t e r d e p e r m a n e c e r c r ia n ç a é h u m i l h a n t e e d e s t r u id o r a ".
C : " U m a n t í d o t o e fica z c o n t r a o p o d e r ! 3 4 5 N ã o t e i r r i t e s c o n t r a o p e r m a n e -
ce r cr ia n ça , s e n ã o t e i r r i t a s c o n t r a o f i l h o 3 4 6 , q u e é o q u e m a is d esejas".
E u : " E ve r d a d e , e u q u e r o o filh o e vi ve r p a r a m a is a lé m . M a s o p r e ç o é a lt o ".
C : "M a i s a lt o e s t á o filh o . T u és m e n o r e m a is fr a co d o q u e o filh o . E u m a
ve r d a d e a m a r ga , m a s n ã o se p o d e p o u p á - l a . N ã o fiq u e s a m u a d o , as cr ia n ça s
t ê m d e se r b e m - c o m p o r t a d a s ".

E u : "M a l d i t a z o m b a r i a !"
C : " H o m e m d a z o m b a r i a ! E u t e n h o p a c iê n c ia co n t igo ! Q u e m i n h a s fo n t e s
j o r r e m p a r a t i e t e fo r n e ç a m a b e b id a d a sa lva çã o , q u a n d o a se ca e xa u r i r t o d a a
t e r r a e t o d o s v i e r e m a t i p a r a i m p l o r a r - t e a á gu a d a vi d a . P o r t a n t o , s u b m e t e - t e
ao fi lh o ".
E u : "O n d e d e vo p e ga r a im e n s id a d e ? M e u sab er e p o d e r sã o l i m i t a d o s , m i -
n h a fo r ç a n ã o b a st a ".
En t ã o a c o b r a m o vi m e n t o u - s e , e n r o lo u - s e c o m o u m n ó e fa lo u : "N u n c a
p e r gu n t e s p e lo a m a n h ã , o h o je d e ve b a st a r - t e . N ã o p r e cisa s p r e o c u p a r - t e c o m
os m e io s . D e i x a t u d o cr escer , d e i xa t u d o b r o t a r ; o filh o cr e sce p o r si m e s m o ".

[2] O m i t o e n t o a só p a r a a vi d a , n ã o p a r a o ca n t o , ele c a n t a p a r a si m e s m o .
E u m e s u b m e t o ao filh o , ao ge r a d o m a gic a m e n t e , ao i r r e a l m e n t e n a scid o , ao
filh o d a r ã, ao filh o q u e e st á n a b e i r a d a á gu a , fa la n d o c o m seu s p a is e e s c u t a n -
d o se u c a n t o n o t u r n o . E l e é d e ve r a s m i s t e r i o s o e s u p e r i o r e m fo r ç a a t o d o s os
h o m e n s . N e n h u m h o m e m o ge r o u , n e n h u m a m u l h e r o p a r i u .

O a b su r d o p e n e t r o u n a m ã e p r i m i t i va , e e m so lo p r o fu n d o c r e s c e u o filh o .
El e d e s a b r o c h o u e fo i m o r t o . E l e r e s s u s c it o u , ge r a d o n o va m e n t e d e m o d o m á -
gico e c r e s c e u m a is a go r a d o q u e a n t e s. E u lh e d e i a c o r o a q u e u n i fi c a o s e p a r a -
d o. E a s s i m ele u n i fi c a p a r a m i m o sep ar ad o . E u lh e d e i o p o d e r , e e n t ã o p a sso u
ele a c o m a n d a r , p o is s u p e r a a t o d o s os o u t r o s e m fo r ç a e in t e ligê n c ia .

N ã o o q u e r o p o r vo n t a d e l i vr e m i n h a , m a s p o r d e d u ç ã o ló gica . N e n h u m a
p e sso a u n e o i n fe r i o r e o su p e r io r . M a s ele, q u e n ã o se t o r n o u c o m o u m se r

345 O Livro Negro 4, traz "am bição" (p. 18 0 ) .


346 O Livro Negro 4, traz "obra" em vez de "filh o" nas poucas linhas a seguir (p. 18 0 ) .
O M AGO 401

h u m a n o e, n o e n t a n t o , t e m a figu r a d e u m se r h u m a n o , c o n s e gu iu u n i - l o . M e u
p o d e r e s t á p a r a lisa d o , m a s e u c o n t i n u o a vi ve r e m m e u filh o . E u d e ixo d e la d o
a p r e o c u p a ç ã o , ele d e se ja go ve r n a r os p o vo s. E u e s t o u só , os p o vo s o a c l a m a m .
E u e r a p o d e r o so , a go r a s o u i m p o t e n t e . E u e r a fo r t e , a go r a e s t o u fr aco. P o is ele
r e c o l h e u e m s i t o d a a fo r ç a T u d o se i n ve r t e u .

E u a m a va a b e le z a d o s b e lo s, a in t e ligê n c ia d o s in t e lige n t e s , a fo r ç a d o s fo r -
t es; e u r i a d a t o lic e d o s t o lo s, e u d e sp r e z a va a fr a q u e z a d o s fr a co s, a a va r e z a d o s
a va r e n t o s e o d ia va a r u i n d a d e d o s m a u s. M a s a go r a t e n h o d e a m a r a b e le z a d o s
feio s, a a va r e z a d os t o lo s e a fo r t a le z a d o s fr a co s. T e n h o d e a d m i r a r a i g n o r â n -
c i a d o s in t e lige n t e s , t e n h o d e r e s p e it a r a fr a q u e z a d o s fo r t e s e a a va r e z a d o s
ge n e r o so s, t e n h o d e p r e z a r a b o n d a d e d o s m a u s. O n d e fi c a m z o m b a r i a , d e s-
p r e z o , ó d i o ? El e s se t r a n s fe r e m p a r a o filh o c o m sin a is d o p o d e r . Su a z o m b a r i a
é sa n gr e n t a , c o m o b r i l h a se u o lh o q u e d e sp r e z a ! Se u ó d i o é fogo e m ch a m a s!
In ve já ve l filh o d os d e u se s, q u e m o u s a r i a n ã o t e o b e d e ce r ?

El e m e fez e m d o is, ele m e c o r t o u . E l e c o n s e r va u n i d o o sep ar ad o . Se m ele

e u m e fiz p e d a ç o s , m a s m i n h a v i d a c o n t i n u o u c o m ele. M e u a m o r fic o u co m igo .

E a s s i m e n t r e i c o m o l h a r s o m b r i o n a so lid ã o , c h e io d e r a n c o r e r e vo l t a c o n -
t r a o p o d e r d o filh o . C o m o p ô d e m e u filh o u s u r p a r m e u p o d e r ? F u i a t é m e u s
ja r d i n s e m e s e n t e i n u m lu ga r s o lit á r io so b r e as p e d r a s, à b e i r a d a á gu a e p e n s e i
co isa s n egr as. C h a m e i a co b r a , m i n h a c o m p a n h e i r a n o t u r n a , q u e e st a va d e it a d a
c o m igo so b r e as p e d r a s e m a lg u m lu sco - fu sco e m e fa la va c o m s a b e d o r ia d e
co b r a . M a s e m e r g i u e n t ã o d a á gu a m e u filh o , gr a n d e e p o d e r o so , c o m a c o r o a
n a c a b e ç a e ju b a d e le ã o , p e le l u z i d i a d e c o b r a e n vo l vi a se u c o r p o e ele fa lo u
a s s im c o m i g o 3 4 7 :

{8 } [1] "E s t o u v i n d o a t i e e xi jo t u a vi d a ".


E u : " O q u e sign ific a ist o ? P o r acaso vir a s t e u m D e u s ? " 3 4 8
El e : " E u su b o n o va m e n t e , t o r n e i - m e c a r n e , a go r a vo l t o p a r a o gr a n d e b r i l h o
e r e sp le n d o r , p a r a o e t e r n o a r d o r d o so l e t e d e i xo t u a t e r r e n id a d e . T u ficas
c o m os ser es h u m a n o s . Es t ive s t e t e m p o s u fic ie n t e e m c o m u n i d a d e i m o r t a l .
T u a o b r a p e r t e n c e à t e r r a ".

347 19 de abril de 1914. O parágrafo precedente foi acrescentado no esboço.


348 No Livro Negro 5, este diálogo é com a alma (p. 29S.).
402 LI BE R SECU N D U S ESBO ÇO

E u : " Q u e m o d o d e falar ! N ã o t e r e vo lve st e n o m a is t e r r e n o e m a is s u b t e r -


r â n e o ?"
Ele : " E u m e t o r n e i h o m e m e a n i m a l e su b o a go r a d e n o vo p a r a m e u lu ga r ".
E u : "O n d e é t e u lu ga r ?"
El e : " N a l u z , n o ovo, n o so l, n o m a is í n t i m o e st a r fo r ç a d o u m so b r e o o u t r o ,
n o e t e r n o ca lo r d a a n sie d a d e . A s s i m n a sce o s o l e m t e u c o r a ç ã o e la n ç a seu s
r a io s p e lo fr io m u n d o a fo r a ".
E u : " C o m o t e t r a n sfigu r a s?"
El e : "Vo u d e sa p a r e ce r d e t u a visã o . D e ve s vi ve r e m n e gr a so lid ã o ; p esso as —
n ã o d e u se s - d e ve m i l u m i n a r t u a e s c u r id ã o ".
E u : " C o m o és d u r o e n o b r e ! E u go s t a r ia d e m o l h a r t e u s p é s c o m m i n h a s
lá gr im a s , e n xu g á - l o s c o m m e u s ca b elo s - e u d e lir o , s o u u m a m u l h e r ? "
Ele : "T a m b é m u m a m u lh e r , t a m b é m u m a m ã e q u e e n gr a vid a . D a r à l u z t e
a gu a r d a ".
E u : " O Es p í r i t o Sa n t o , m a n d a - m e u m a c e n t e lh a d e t u a l u z e t e r n a ".
El e : " T u ca r r ega s a cr ia n ça ".
E u : " E u s in t o o t o r m e n t o , o m e d o e o d e s a m p a r o d a p a r t u r i e n t e . T u t e afas-
t as d e m i m , m e u D e u s ? "
El e : " T u t e n s a cr ia n ça ".
E u : " M i n h a a lm a , a i n d a és t u ? T u , c o b r a , t u sap o, t u m e n i n o ge r a d o a t r a vé s
d a m a gia q u e m i n h a s m ã o s e n t e r r a r a m , t u , o c a ç o a d o , d e sp r e z a d o e o d ia d o q u e
m e a p a r e c e u n u m a fo r m a d isp a r a t a d a ? A i d a q u e le s q u e c o n t e m p l a m s u a a l m a e
a a p a lp a m c o m as m ã o s . E u e s t o u i m p o t e n t e e m t u a m ã o , m e u D e u s !"
Ele : "As gr á vid a s p e r t e n c e m ao d e st in o . D e i x a - m e p a r t ir , su b o p a r a os e s-
p a ç o s e t e r n o s".
E u : " N ã o o u vi r e i m a is t u a vo z ? Ó m a l d i t a ilu sã o ! O q u e p e r gu n t o ? T u fa la -
r ás d e n o vo c o m igo a m a n h ã , va is t a ga r e la r c o n s t a n t e m e n t e n o e sp e lh o ".
Ele . " N ã o b la sfe m e s. E u e s t a r e i p r e se n t e e n ã o p r e se n t e . T u m e o u vir á s e
n ã o m e o u vir á s. E u s e r e i e n ã o s e r e i".
E u : "Fa la s d e m a n e i r a h o r r i ve l m e n t e e n ig m á t ic a ".
El e : "E s t a é m i n h a lin gu a ge m e e u t e d e i xe i a c o m p r e e n s ã o . N i n g u é m t e m
t e u D e u s c o m o t u m e s m o . Es t á o t e m p o t o d o co n t igo , e t u o vê s n o o u t r o , e
a s s i m ele n u n c a e st á co n t igo . T u q u e r e s a p o d e r a r - t e d a q u e la s p esso as q u e p a r e -
c e m p o s s u ir o t e u D e u s . T u ve r á s q u e elas n ã o o p o s s u e m , q u e só t u o p o ssu is.
A s s i m e st á s s o z i n h o c o m p esso as, n a m u lt id ã o , e a s s im m e s m o só . So l i d ã o c o m
m u i t o s - p e n s a n is s o !"
O M AGO 403

E u : "D e p o i s d isso e u d e ve r i a c a l a r - m e , m a s n ã o p o sso ; m e u c o r a ç ã o sa n gr a


q u a n d o ve jo c o m o t u t e afast as d e m i m ".

El e : "D e i x a - m e p a r t ir . Vo l t a r e i e m fo r m a r e n o va d a . Vê s o so l c o m o ele d e -
sap ar ece ve r m e l h o n a s m o n t a n h a s ? A o b r a d e st e d i a e s t á t e r m i n a d a , e n o vo so l
va i vo lt a r . P o r q u e t e la m e n t a s p e lo s o l d e h o je ?"
E u : "A n o it e d e ve c o m e ç a r ?"
El e : " E l a n ã o é a m ã e d o d ia ?"
E u : " E u d e s e ja r ia d e se sp e r a r p o r ca u sa d e ssa n o it e ".
El e : " O q u e la m e n t a s ? É o d e st in o . D e i x a - m e p a r t ir , m i n h a s asas e s t ã o c r e s -
ce n d o , e o d e se jo d a l u z e t e r n a cr e sce p o d e r o s a m e n t e e m m i m p a r a o alt o. N ã o
p o d e s p r e n d e r - m e p o r m a is t e m p o . Se gu r a t u a s lá gr im a s e d e i xa - m e s u b i r c o m
a le gr ia . T u és u m a gr icu lt o r , p e n s a e m t u a p la n t a ç ã o . Es t o u fic a n d o le ve , c o m o
u m p á s s a r o l e va n t a vo o n o c é u d a m a n h ã . N ã o m e p r e n d a s , n ã o la m e n t e s , já
e s t o u p a ir a n d o , o gr it o d e v i d a b r o t a e m m i m , n ã o p o sso r e t a r d a r p o r m a is
t e m p o m e u p r a z e r m á xi m o . D e v o i r p a r a c i m a — r e a liz o u - s e , e st á r o m p i d o o
ú l t i m o la ço , m i n h a s asas m e l e va m p a r a c i m a . E u m e r g u lh o n o m a r d a lu z . T u
q u e e st á s e m b a ixo , s e m p r e m a is d is t a n t e , m a is c r e p u s c u la r - t u d e sa p a r e ce s d e
m i n h a vi s t a ".

E u : "P a r a o n d e fost e? Ac o n t e c e u algo. Es t o u p a r a lít ico . D e u s n ã o d e sa p a r e -


ceu de m im ?"

O n d e e st á o D e u s ?
O q u e a co n t e ce u ?

Q u e va z io , q u e va z i o a b issa l! D e v o e u c o m u n i c a r às p esso as c o m o t u d e sa -
p a r e ce st e ? D e v o p r e ga r o e va n ge lh o d a s o lid ã o a b a n d o n a d a p o r D e u s ?
D e v e r í a m o s t o d o s i r p a r a o d e se r t o e c o b r i r n o ssa c a b e ç a d e c in z a s , u m a ve z
que Deu s n os aban don ou?

Ac r e d i t o e co n fe sso q u e o D e u s 3 4 9 é a lgu m a c o is a d ife r e n t e d e m i m .


E l e l e va n t o u vo o c o m a le gr ia r e ju b ila n t e .
E u e s t o u n a n o i t e d o s s o fr im e n t o s .
N ã o m a i s u m D e u s 3 5 0 , m a s s o z i n h o c o m igo m e sm o .

349 No Livro Negro $: "alm a" (p. 37) .


350 No Livro Negro $: "com m inha alma" (p. 38 ) .
LI BER SECU N D U S ESBO ÇO
4Q4
Fe c h a i - vo s agor a, p o r t õ e s d e b r o n z e q u e e u a b r i p a r a d a r va z ã o ao d ilú vio
d a d e s t r u iç ã o e d a m o r t e so b r e os p o vo s, q u e e u a b r i p a r a a ju d a r o D e u s e m se u
n a s c im e n t o .

Fe c h a i - vo s , m o n t a n h a s vo s s o t e r r e m , m a r e s vo s a fo g u e m 35 1.

E u ch e gu e i ao m e u s i - m e s m o 3 5 2 , u m a figu r a in s e gu r a e la st im á ve l. M e u e u !
E u n ã o d e se je i est e s u je it o p a r a m e u c o m p a n h e i r o . E u m e e n c o n t r e i c o m ele.
E p r e fe r íve l u m a m u l h e r m á o u u m cã o fe r o z , m a s o p r ó p r i o e u — fiq u e i h o r -
r o r iz a d o !
353
U m a o b r a é n e c e s s á r ia so b r e a q u a l se p o d e d e s p e r d i ç a r d e z e n a s d e a n o s,
n e c e s s a r ia m e n t e se d e ve d e s p e r d iç a r . E u t e n h o d e r e c u p e r a r u m p e d a ç o d e I d a -
d e M é d i a e m m i m . T e r m i n a m o s m a l e m a l a Id a d e M é d i a n o o u t r o . T e n h o d e
c o m e ç a r ced o, n a q u e le t e m p o e m q u e os e r e m it a s d e s a p a r e c e r a m 3 5 4 . As c e s e ,
in q u isiç ã o , t o r t u r a e s t ã o à m ã o e se i m p õ e m . O b á r b a r o p r e c is a d e m e io s b á r -
b a r o s d e e d u ca çã o . M e u e u , t u és u m b á r b a r o . Q u e r o vi ve r co n t igo , p o r isso v o u
a r r a s t á - lo a t r a vé s d e t o d o u m i n fe r n o m e d i e va l, a t é q u e sejas ca p a z d e t o r n a r
s u p o r t á ve l a v i d a co n t igo . D e ve s se r r e c ip ie n t e e m ã e ge r a d o r a d a vi d a , p o r t a n -
t o v o u p u r i fi c a r - t e .

A p e d r a - d e - t o q u e é o e st a r só co n sigo m e s m o .

Es t e é o c a m i n h o 3 5 5 , [p . 190]

351 Este parágrafo foi acrescentado no esboço.


352 Esboço corrigido: "a m im mesmo" (p. 555).
353 O restante foi acrescentado no esboço (p. $$$s.).
354 Em 1930 Jung afirmava: "Um movimento de volta à Idade Média é uma espécie de regressão, mas não
é pessoal. É uma regressão histórica, uma regressão ao passado do inconsciente coletivo. Isto sempre
ocorre quando o caminho para a frente não está livre, quando há um obstáculo diante do qual recuamos:
ou quando precisamos tomar algo do passado a fim de escalar o muro à nossa frente" (Visíons. Vol. 1, p.
148). Por esse tempo, Jung começou a trabalhar intensamente sobre a teologia medieval (cf. Tipos psicológicos
[1921]. O C , 6 cap. i : "O problema dos tipos na história do pensamento antigo e medieval").
355 Neste ponto, o esboço manuscrito tem: "Fin is", contornado por um quadrado (p. 1.205).
Aprofundamentos
Aprofun dam en tos
{1} E u r esist o, e u n ã o p osso a ce it a r esse n a d a va z io q u e e u so u . O q u e sou ? O

q u e é m e u eu ? E u se m p r e p r e ssu p o n h o m e u e u . Ag o r a ele e st á d ia n t e d e m i m -

e u d ia n t e d o m e u e u . Fa lo a go r a co n t igo , m e u e u :

' N ó s e st a m o s s o z in h o s e n o sso e st a r j u n t o c o r r e o p e r igo i m p r e t e r í ve l d e

t o r n a r - s e m o n ó t o n o . T e m o s d e fa z e r a lgu m a co isa , p e n s a r n u m p a ssa t e m p o :

p o r e xe m p lo , e u p o d e r i a e d u c a r - t e . C o m e c e m o s c o m t e u d e fe it o p r i n c i p a l q u e

m e o c o r r e d e im e d ia t o : t u n ã o t e n s ve r d a d e i r o a p r e ç o p o r t i m e s m o . N ã o t e n s

n e n h u m a b o a q u a lid a d e d a q u a l t e p o ssas o r gu lh a r ? T u ach as q u e é n e c e s s á r io

a r t e p a r a ist o . M a s a r t e s a ge n t e t a m b é m p o d e a p r e n d e r d e a lgu m a fo r m a . P o r

favor , faze ist o . E d ifícil p a r a t i - m a s t o d o c o m e ç o é d ifíc il 2 . Lo go o sa b e r á s

m e lh o r . T u d u vid a s? I s t o n a d a a d ia n t a . D e ve s p o d ê - l o , ca so c o n t r á r i o n ã o p o -

d e r e i vi ve r co n t igo . D e s d e q u e o D e u s r e s s u s c it o u e n ã o se i e m q u e c é u d e fogo

ele se e xp a n d e p a r a fa z e r n ã o se i o q u e , d e p e n d e m o s u m d o o u t r o . P o r isso p r e -

cisas p e n s a r e m m e lh o r a r , s e n ã o n o ssa v i d a c o m u m va i t o r n a r - s e in s u p o r t á ve l.

P o r t a n t o , c o b r a â n i m o e va l o r i z a - t e ! N ã o q u e r e s?

Fi g u r a la m e n t á ve l! V o u a t o r m e n t a r - t e u m b o c a d o se n ã o t e e sfo r ça r e s. P o r

q u e t e q u e ixa s? T a l ve z t e fosse b e n é fi c a a ch ib a t a ?

Is t o p e n e t r a n a p r ó p r i a ca r n e ? M a s a i n d a u m — e m a is u m . Q u e go st o t e m ?

D e san gu e, s e m d ú vid a ? D e algo m e d i e va l ín m aíorem Dei gloriam ?3

O u q u e r e s a m o r , o u q u e o u t r o n o m e se lh e d ê ? P o d e - s e t a m b é m e d u ca r

c o m a m o r q u a n d o su r r a s n a d a co n se gu e m . D e vo , p o is, a m a r - t e ? Ap e r t a r - t e

ca r in h o sa m en t e co n t r a m im ?

C r e i o r e a lm e n t e q u e b o ce ja s.

C o m o , t u q u e r e s fa la r ? M a s n ã o v o u p e r m i t i r q u e fales, s e n ã o va is a fi r m a r

a fin a l q u e és m i n h a a lm a . M a s saib as q u e m i n h a a l m a e s t á c o m o ve r m e d e fogo,

c o m o filh o d e r ã q u e v o o u p a r a o s o b r e c é u , p a r a as fo n t e s su p e r io r e s. Se i e u o

q u e ele faz lá? M a s t u n ã o és a m i n h a a lm a , m a s m e u s im p le s e va z i o n a d a . — E u ,

est e ser a n t ip á t ic o , ao q u a l n e m m e s m o se p o d e n e ga r o d i r e i t o d e n ã o d a r va lo r

a si m e s m o .

1 19 de abril de 1914.
2 Todos os começos são difíceis", provérbio do Talmud.
3 Para a maior glória de Deus". Lem a dos jesuítas de então.

40 7
AP RO FU N D AM EN T O S
4o8
C o m vo c ê é p o s s íve l i r ao d e se sp e r o : t e u s m e l i n d r e s e t u a c o b iç a u lt r a p a s -
s a m q u a lq u e r m e d i d a r a z o á ve l. E co n t igo é q u e d e vo vi ve r ? D e v o s i m , d e sd e
q u e a c o n t e c e u a m a r a vi l h o s a d e s gr a ç a q u e m e d e u u m filho e o t o m o u .
La m e n t o t e r d e d i z e r - t e u m a ve r d a d e c o m o est a. Si m , t u és r i d i c u l a m e n t e
m e lin d r o s o , t e im o so , r e b e ld e , d e sco n fia d o , p e s s im is t a , co va r d e , d e sle a l co n t igo
m e s m o , ve n e n o so , vin ga t ivo ; so b r e t e u o r gu lh o i n fa n t i l , t u a a m b i ç ã o d e p o d e r ,
t e u d e se jo d e d o m i n a r , t u a a m b i ç ã o r id ícu la , sed e d e gló r ia q u a se n ã o se p o d e
fa la r s e m s e n t ir - s e m a l .
Fi c a m a l p a r a t i t o d o fin g im e n t o e p r e s u n ç ã o , m a s ab u sas d eles a p le n o va p o r .
C r ê s q u e é u m a d ive r s ã o e n ã o a n t e s u m n o jo vi ve r co n t igo ? N ã o , t r ê s ve z e s
n ã o ! M a s e u p r o m e t o e s t ic a r - t e n o t o r n iq u e t e e t i r a r - t e o c o u r o aos p o u co s. E u
t e d a r e i o p o r t u n i d a d e d e m u d a r d e p ele.
T u , e xa t a m e n t e t u , q u ise st e c o r t a r o m e s m o n a ca sa ca d e o u t r a s p essoas?
V e m cá, v o u c o s t u r a r - t e u m r e m e n d o n a p e le p a r a q u e sin t a s c o m o é b o m .
Q u e r e s q u e i xa r - t e d e q u e os o u t r o s t e fi z e r a m in ju st iça , n ã o t e e n t e n d e r a m ,
t e i n t e r p r e t a r a m m a l , t e o fe n d e r a m , t e p r e t e r i r a m , n ã o t e d e r a m o d e vid o v a -
lo r , t e a c u s a r a m i n ju s t a m e n t e e o q u e m a is? Vê s n isso t u a va id a d e , t u a va id a d e
e t e r n a m e n t e r id ícu la ?
T u t e q u e ixa s d e q u e o t o r m e n t o a i n d a n ã o t e n h a ch e ga d o ao fim ?
D i g o - t e q u e ele m a l c o m e ç o u . N ã o t e n s p a c iê n c ia n e m se r ie d a d e . Só o n d e
se t r a t a d e t u a d ive r s ã o , elogias t u a p a ciê n cia . P r o lo n g a r e i p o r isso ao d o b r o o
t o r m e n t o p a r a q u e a p r e n d a s a t e r p a c iê n c ia .
Ac h a s a d o r in s u p o r t á ve l, m a s e xi s t e m co isa s q u e d o e m m a is a i n d a e p o d e s
ca u sá - la s a o u t r o s c o m a m a i o r sin ge le z a e t e escu sas c o m o se n d o d e s c o n h e c i -
m en t o.
M a s t u a p r e n d e r á s a calar . P a r a t a n t o v o u a r r a n c a r - t e a lín gu a c o m a q u a l
z o m b a st e , b la sfe m a st e e - p i o r a i n d a - e n ga n a st e . Q u e r o e sp e cifica r t o d a s as
t u as p a la vr a s in ju s t a s e b la sfe m a s e c o s t u r á - la s a t e u c o r p o p a r a se n t ir e s c o m o
m a c h u c a m as p a la vr a s m á s .
Ad m i t e s q u e t a m b é m ach as d i ve r t i d o est e t o r m e n t o ? V o u a u m e n t a r e st a
d ive r s ã o a t é q u e vo m i t e s d e p r a z e r , p a r a q u e saib as o q u e é t e r d ive r s ã o n o
t o r m e n t o p r ó p r io .
T u t e r e vo lt a s c o n t r a m i m ? V o u a p e r t a r m a is o t o r n iq u e t e . V o u e sm iga lh a r
os t eu s ossos a t é q u e n ã o so b r e r e s is t ê n c ia n e le s.
P o is e u v o u m e vi r a r c o n t igo — s i m , e u p r e c iso — c u id a - t e , d ia b o — t u és
m e u e u c o m o q u a l t e n h o d e m e a r r a s t a r a t é a s e p u lt u r a . Pe n sa s q u e e u q u e r o
AP RO FU N D AM EN T O S 409

ca r r e ga r e m t o r n o d e m i m esse t r a st e p e lo r e st o d e m i n h a vid a ? Se t u n ã o fosses


m e u e u , h á m u i t o t e m p o já t e t e r i a fe it o e m p e d a ç o s .
M a s e s t o u c o n d e n a d o a a r r a s t a r - t e a t r a vé s d e u m p u r ga t ó r io , p a r a q u e t e
t o r n e s algo m a is a ce it á ve l.
I n vo c a s a a ju d a d e D e u s ?
O ve l h o e a m o r o s o D e u s m o r r e u 4 , e é b o m a s s im , s e n ã o ele t e r i a c o m p a i -
xã o d e t u a p e c a m in o s id a d e a r r e p e n d i d a e e st r a ga r ia m i n h a e xe c u ç ã o c o m i n -
d u lgê n c ia . T u p r e cisa s sa b e r q u e a i n d a n ã o s u r g i u n e n h u m D e u s d e a m o r o u
u m D e u s a m o r o so , m a s u m ve r m e d e fogo a r r a s t o u - s e p a r a o alt o , u m a figu r a
glo r io s a m e n t e a ssu st a d o r a , q u e fez c h o ve r fogo so b r e a t e r r a , ca u sa n d o g r i t a -
r i a ge n e r a liz a d a 5 . P o r t a n t o , i n vo c a D e u s , e ele v a i q u e i m a r - t e c o m fogo p a r a
r e m i s s ã o d e t eu s p e ca d o s. Fo r ç a - t e a t é su a r san gu e. Es t a c u r a t u a n e ce ssit a s
h á m u i t o t e m p o . Si m - os o u t r o s s e m p r e c o m e t e m in ju s t iç a —, e t u ? T u és o
in o c e n t e , o ju st o . P r e cisa s d e fe n d e r o t e u b o m d i r e i t o e t e n s u m b o m e a m o r o s o
D e u s a t e u la d o , q u e s e m p r e p e r d o a p e ca d o s m i s e r i c o r d i o s a m e n t e . O s o u t r o s
t ê m d e ch e ga r ao c o n h e c i m e n t o , t u t e ap o ssast e d e t o d o c o n h e c i m e n t o d e sd e
s e m p r e e e st á s p l e n a m e n t e c o n ve n c i d o d e t e u d ir e it o . P o r t a n t o , c l a m a c o m t o -
d as as fo r ça s a t e u b o m D e u s — ele v a i o u vi r - t e e fa z e r c a ir fogo so b r e t i . N ã o
p e r ce b e st e a i n d a q u e t e u D e u s se t o r n o u u m ve r m e d e fogo c o m c r â n io ch a t o ,
q u e se a r r a s t a so b r e a t e r r a c o m u m ca lo r a b r a sa d o r ?
T u q u e r ia s fic a r p o r c i m a . D á p a r a r ir . Es t a va s p o r b a ixo . Est á s p o r b a ixo .
Q u e m r e a lm e n t e és? U m r efu go q u e m e ca u sa n o jo .
Se r á q u e e st á s algo i m p o t e n t e ? V o u c o lo c a r - t e n u m ca n t o , o n d e p o d e s fica r
d e it a d o a t é q u e vo lt e s n o va m e n t e a t i . Se n ã o se n t ir e s m a is n a d a , o p r o c e d i -
m e n t o n ã o se r ve d e n a d a . T e m o s d e agir c o n fo r m e as r egr as d a a r t e . Es t á r e a l -
m e n t e a t e u fa vo r q u e , p a r a t u a r e visã o , h á n e ce ssid a d e d e m e io s t ã o b á r b a r o s ,
t e u p r o gr e sso p a r e ce se r m í n i m o d e sd e a b a i xa Id a d e M é d i a .

6
T u t e sen t es h o je q u e b r a d o , r e b a ixa d o , in fe r io r ? Q u e r e s q u e t e d iga p o r q u ê ?
T u a a m b i ç ã o n ã o t e m li m i t e s . T u a s r a z õ e s n ã o sã o o b je t iva s, m a s p a r a sa -
t isfa z e r t u a r e p u t a ç ã o . N ã o t r a b a lh a s e m p r o l d a h u m a n i d a d e , m a s p a r a t e u

4 Cf. adiante, nota 9 1, p. 454.


5 As referências a este Deus nas páginas seguintes não estão no Livro Negro 5.
6 20 de abril de 1914. No mesmo dia, Jung renunciou à presidência da Associação Psicanalítica Internacional
(Sígm und Freud CG. JungBriefivechsel, p. 613).
AP RO FU N D AM EN T O S

in t e r e sse p e sso a l. N ã o b u sca s o a p e r fe i ç o a m e n t o d a q u e st ã o , m a s o r e c o n h e -


c i m e n t o ge r a l e a p r e s e r va ç ã o d e t e u s p r ivilé gio s . E u t e p r e s t a r e i h o m e n a ge n s
c o m u m a c o r o a p o n t ia gu d a d e fe r r o , q u e t e m os d e n t e s n o i n t e r i o r e q u e p e n e -
t r a m n a t u a ca r n e .
E a go r a ch e ga m o s ao r e m a t a d o e m b u s t e q u e p r a t ica s c o m t u a e sp e r t e z a .
Fa la s h a b ilid o s a m e n t e , ab u sas d e t u a ca p a cid a d e , d e sco lo r e s, a t e n u a s, r e fo r ça s,
d ivid e s l u z e s o m b r a e a n u n c ia s e m vo z a lt a t u a h o n e s t id a d e e ín t e gr a b o a - fé .
Exp l o r a s a b o a - fé d o s o u t r o s, t u os p r e n d e s m a l i c i o s a m e n t e e m t u as a r m a d i lh a s
e a i n d a falas d e t u a s u p e r io r id a d e b e n fa z e ja e d a fe licid a d e q u e t u sign ifica s
p a r a os o u t r o s. T u r e p r e se n t a s m o d é s t i a e n ã o m e n c i o n a s t e u s m é r i t o s , n a e s-
p e r a n ç a c e r t a d e q u e a lgu m o u t r o o fa r ia p o r t i , e ficas d e s ilu d id o e ch a t e a d o
q u a n d o ist o n ã o a co n t e ce .
Pr egas h i p o c r i t a m e n t e se r e n id a d e . M a s q u a n d o se t r a t a d isso , és se r e n o ?
N ã o , m e n t e s . T u t e c o n so m e s e m r a iva e t u a lín gu a fa la p u n h a is fr io s e so n h a s
c o m vin ga n ç a .
T u és m a ld o s o e in ve jo so . N ã o d eseja s ao o u t r o a l u z d o so l, p o is go st a r ia s d e
d i vi d i - l o c o m aq u eles q u e t u favo r eces, p o r q u e eles t e fa vo r e ce m . I n ve ja s t o d a
p r o s p e r id a d e e m t o r n o d e t i e a fir m a s d e s c a r a d a m e n t e o c o n t r á r io .
E m t e u í n t i m o p e n sa s i m p i e d o s a e n o r m a l m e n t e só e s e m p r e o q u e t e c o n -
v é m e n is s o n ã o t e se n t e s n e m n o m í n i m o r e s p o n s á ve l p e la h u m a n i d a d e . M a s
és r e s p o n s á ve l p e la h u m a n i d a d e e m t u d o q u e p e n sa s, se n t e s e fazes. N ã o s i m u -
les p a r a m i m n e n h u m a d ife r e n ç a e n t r e p e n s a r e agir. T u t e a p o ia s só n o p r o ve i -
t o i m e r e c i d o d e n ã o se r o b r iga d o a d i z e r o u fa z e r a q u ilo q u e p e n sa s o u sen t es.

M a s t u és d e sca r a d o e m t u d o q u a n d o n i n g u é m t e vê . Se a lgu m o u t r o t e d i s -
sesse ist o , fica r ia s m o r t a l m e n t e o fe n d id o , m e s m o sa b e n d o q u e é ve r d a d e . Q u e -
r es c e n s u r a r os e r r o s d o s o u t r o s? P a r a q u e m e l h o r e m ? M a s co n fe ssa , t u m e l h o -
r ast e? D o n d e t ir a s o d i r e i t o d e ju lga r os o u t r o s? O n d e e st á t e u a u t o ju lga m e n t o ?
E o n d e e s t ã o os b o n s fu n d a m e n t o s q u e s u s t e n t a m ist o ? Te u s fu n d a m e n t o s sã o
t eias m e n t ir o s a s q u e e n c o b r e m u m c a n t o su jo . Ju lga s os o u t r o s e lh e s m o s t r a s
o q u e d e ve r i a m fazer . Is t o o fazes p o r q u e n ã o t e n s n e n h u m a o r d e m co n t igo
m e s m o , m a s p o r q u e n ã o és l i m p o .

E e n t ã o - c o m o p e n sa s n a ve r d a d e ? P a r e c e - m e q u e p e n sa s a t é m e s m o e m
p esso as, s e m c o n s id e r a r su a d ign id a d e h u m a n a ; ou sas p e n s a r n e la s e u t iliz á - la s
c o m o p e ç a s e m t e u t a b u le ir o , c o m o se fo sse m a q u ilo q u e p e n sa s q u e são ? Já
t e p a sso u u m a ve z p e la c a b e ç a q u e c o m isso p r a t ica s u m a t o i g n o m i n i o s o d e
AP RO FU N D AM EN T O S 411

vio lê n c ia , t ã o p e r ve r s o q u a n t o a q u e le q u e c o n d e n a s n o s o u t r o s , o u seja, d e q u e
a m a m os s e m e lh a n t e s c o m o d i z e m , m a s q u e n a r e a lid a d e os e xp l o r a m e m se u
p r o ve it o ? T e u p e ca d o cr e sce n o e sco n d id o , m a s n ã o é m e n o r n e m m e n o s c r u e l
e co r r iq u eir o .
M a s v o u t r a z e r à l u z o t e u o cu lt o , d e sa ve r go n h a d o ! V o u e s p e z in h a r t u a s u -
p e r io r id a d e .
N ã o m e fales d e t e u am o r . O q u e ch a m a s d e a m o r e st á e n ch a r ca d o d e e go ís -
m o e c o b iç a . P o r é m falas d ele c o m p a la vr a s a lt isso n a n t e s, m a s q u a n t o m a is e n -
fá t ica s as p a la vr a s, m a is l a m e n t á ve l é o t e u c h a m a d o a m o r . N ã o m e fales n u n c a
d e t e u a m o r . M a n t é m t u a b o c a fe ch a d a . E l a m e n t e .
Q u e r o q u e fales d e t u a ve r g o n h a e q u e , ao in vé s d e p a la vr a s a lt isso n a n t e s,
p r o vo q u e s u m r u í d o d is s o n a n t e d ia n t e d a q u e le s c u ja c o n s i d e r a ç ã o q u ise st e
c o n q u is t a r à fo r ça . T u m e r e ce s d e sp r e z o , n ã o c o n s id e r a ç ã o .
Q u e r o e xt i n g u i r d e t i t e u c o n t e ú d o d o q u a l t e o r gu lh a va s, p a r a q u e fiq u e s
va z i o c o m o u m va so d e r r a m a d o . N ã o d e ve s m a is t e r o r gu lh o d e n a d a a n ã o
ser d e t e u va z i o e m is e r a b ilid a d e . D e vi a s se r va so d a vi d a , p o r t a n t o i m o l a t eu s
íd o lo s.
A t i n ã o p e r t e n c e a lib e r d a d e , m a s a fo r m a lid a d e , n ã o a fo r ça , m a s o s u p o r -
t a r e r eceb er .

D e ve s fa z e r d o m e n o s p r e z o d e t i m e s m o u m a vi r t u d e q u e e u e s t e n d e r e i
d ia n t e d as p esso as c o m o u m t a p e t e . El a s p is a r ã o n e le c o m p é s su jo s e ve r á s q u e
és m a is su jo d o q u e t o d o s os p é s q u e p i s a m so b r e t i .
7
Q u a n d o e u t e d o m a r , b e st a , d a r e i o p o r t u n i d a d e a o u t r o s p a r a t a m b é m eles
d o m a r e m su as b est as. O d o m a r c o m e ç a e m t i , m e u e u , e m n e n h u m o u t r o lu gar .
N ã o q u e t u , i r m ã o e s t ú p i d o e u , t ive sse s sid o e s p e c ia lm e n t e se lva ge m . H á q u e m
se ja m a is selvagem . M a s e u p r e ciso a ç o it a r - t e a t é q u e su p o r t e s a selvager ia d os
o u t r o s. En t ã o p osso vi ve r con t igo. Q u a n d o a lgu é m t e faz in ju st iça , v o u ju d i a r - t e
a t é o san gu e, a t é q u e t e n h a s p e r d o a d o a in ju s t iç a so fr id a , e n ã o só c o m os lá b io s,
m a s t a m b é m e m t e u c o r a ç ã o m a u c o m su a i r r i t a b i l i d a d e p e r ve r sa . T u a i r r i t a b i -
lid a d e é t u a fo r m a e sp e cífica d e vio lê n c ia .

P o r isso e scu t a , i r m ã o e m m i n h a so lid ã o , e u a p r o n t e i t o d o t ip o d e t o r t u r a s


p a r a t i , se r e so lve r e s n o va m e n t e ser ir a scíve l. D e ve s s e n t i r - t e in fe r io r . D e ve s

7 21 de abril de 1914.
412 AP RO FU N D AM EN T O S

s u p o r t a r q u e c h a m e m t u a l i m p e z a d e s u je i r a e q u e a m b i c i o n e m t u a i m u n d í -
cie , q u e c o n s i d e r e m ge n e r o sid a d e t e u e s b a n ja m e n t o e l o u ve m t u a c o b i ç a c o m o
vi r t u d e .

E n c h e t u a t a ç a c o m a b e b i d a a m a r g a d a i n fe r i o r i d a d e , p o is n ã o é s t u a

a lm a . T u a a l m a e s t á j u n t o ao D e u s e m c h a m a s e s u b i u q u e i m a n d o a t é a a b ó -

b ad a d o céu .

As s i m m e s m o co n t in u a r á s ir ascível? Pe r ce b o q u e a r q u it e t a s p la n o s secr et os

d e vin ga n ç a e a r m a s in t r iga s m a lva d a s. M a s és u m b o b a lh ã o , n ã o p o d e s vin ga r - t e

d o d e st in o . Se r á c o m o a ç o it a r i n fa n t i l m e n t e o m a r . C o n s t r ó i a n t e s m e lh o r e s

p o n t e s, n isso p o d e s o c u p a r t u a m e n t e .

Go s t a r i a s d e se r c o m p r e e n d i d o ? E r a só o q u e fa lt a va ! C o m p r e e n d e a t i m e s -

m o , e n t ã o e st á s s u fic ie n t e m e n t e c o m p r e e n d id o . C o m isso t e r á s b a st a n t e t r a -

b a lh o . Fi l h o s p e q u e n o s q u e r e m se r c o m p r e e n d id o s . C o m p r e e n d e a t i m e s m o ;

e st a é a m e l h o r p r o t e ç ã o c o n t r a a i r r i t a b i l i d a d e e e la sa cia r á t e u d e se jo i n fa n t i l

d e se r c o m p r e e n d id o . Q u e r e s n o va m e n t e t r a n s fo r m a r o u t r a s p esso as e m e s-

cr a vo s d e t u a c o b iç a ? M a s sab es q u e e u d e vo vi ve r c o n t igo e q u e n ã o v o u m a is

t o le r a r e m t i s e m e lh a n t e e st a d o d e p l o r á ve l 8 .

{2} D e p o i s q u e fa le i p a r a m e u e u essas e m u i t a s o u t r a s p a la vr a s z a n ga d a s,

p e r c e b i q u e c o m e c e i a s u p o r t a r o e st a r s o z i n h o c o m igo m e s m o . M a s m u i t a s

ve z e s a i n d a in s u r g iu - s e e m m i m a ir a s c ib ilid a d e e t o d a s as ve z e s t ive d e m e

a ç o it a r p o r ca u sa d isso . E e u o fiz p o r t a n t o t e m p o a t é q u e t ive sse d e sa p a r e cid o

t a m b é m a a le gr ia n e s t a a u t o t o r t u r a 9 .

8 Jung descreveu a autocrítica apresentada nesta seção de abertura como confrontação com a sombra. Em
1934, escreveu: "aquele que olha o espelho da água vê em primeiro lugar sua própria imagem. Q uem
caminha em direção a si mesmo corre o risco do encontro consigo mesmo. O espelho não lisonjeia,
mostrando fielmente o que quer que nele se olhe: ou seja, aquela face que nunca mostramos ao mundo,
porque a encobrimos com a persona, a máscara do ator. Mas o espelho está por detrás da máscara e mostra
a face verdadeira. Esta é a primeira prova de coragem no caminho interior, uma prova que basta para
afugentar a maioria, pois o encontro consigo mesmo pertence às coisas desagradáveis que evitamos
enquanto pudermos projetar o negativo à nossa volta. Se formos capazes de ver nossa própria sombra,
suportá-la, sabendo que ela existe, já teríamos resolvido uma pequena parte do problema. Teríamos, pelo
menos trazido à tona o inconsciente pessoal" ("Sobre os arquétipos do inconsciente coletivo". O C , 9 , §
4 3- 4 4 ) -
9 Este parágrafo não ocorre no Livro Negros. Em 30 de abril de 1914, Jung renunciou à cátedra na Faculdade
de Medicina da Universidade de Zurique.
AP RO FU N D AM EN T O S
4U
IO
E s c u t e i e n t ã o n a n o it e u m a vo z q u e v i n h a d e lo n ge , a vo z d e m i n h a a lm a .
E l a fa lo u : " C o m o e st á s lo n ge !"
E u : "É s t u , m i n h a a lm a ? D e q u e a l t u r a e d e q u e d is t â n c ia e st á s fa la n d o ?"
A : " E u e s t o u so b r e t i . M i n h a d is t â n c ia é u m a d is t â n c ia d e m u n d o . F i q u e i
c o m a p r o p r ie d a d e d o so l. Re c e b i a s e m e n t e d o fogo. O n d e est á s? M a l p o sso
d i vi s a r - t e e m t u a n e b l i n a ".
E u : "E s t o u a q u i e m b a ixo , so b r e a t e r r a t e n e b r o sa , e m fu m a c e i r a e scu r a , q u e
n o s d e i xo u o so l, e m e u o lh a r n ã o t e a lca n ça . M a s t u a vo z m e so a m a is p r ó xi m a ".
A : " E u o p e r ce b o . A gr a vid a d e d a t e r r a m e i m p r e g n a , u m a fr e s c u r a ú m i d a
m e e n vo lve , s o u a c o m e t id o p e la l e m b r a n ç a c i n z e n t a d e p a d e c im e n t o s a n t igo s".
E u : " N ã o d e sça s p a r a a fu m a c e i r a e p a r a a e s c u r id ã o d a t e r r a . Go s t a r i a q u e
a lgu m a c o is a d a q u ilo e m q u e a i n d a t o co co n se r va sse a p r o p r ie d a d e d o so l. Ca s o
c o n t r á r i o p e r c o a c o r a ge m d e c o n t i n u a r vi ve n d o cá e m b a i xo n a e s c u r id ã o d a
t e r r a . D e i x a q u e ao m e n o s e scu t e t u a vo z . N u n c a m a is v o u d e se ja r ve r - t e e m
c a r n e . D e i x a - m e u m a p a la vr a ! T i r a - a d a p r o fu n d e z a , d e o n d e t a lve z m e ve n h a
ao e n c o n t r o o m e d o ".
A : "I s t o e u n ã o p o sso , p o is d e lá j o r r a a fo n t e d e t u a p r o d u ç ã o ".

E u : " T u vê s m i n h a in s e gu r a n ç a ".
A : " O c a m i n h o in se gu r o é o c a m i n h o b o m . N e l e e s t ã o as p o ssib ilid a d e s. Sê
fi r m e e p r o d u z e ".

E u e s c u t e i o b a t e r d e asas. E u sa b ia q u e o p á s s a r o e st a va s u b in d o m a is alt o,
p a r a a lé m d as n u ve n s , n o b r i l h o d e fogo d a d i vi n d a d e e xp a n d id a .
n
Vo l t e i - m e p a r a m e u ir m ã o , o e u ; e st a va p a r a d o , m u i t o t r is t e e o lh a va p a r a
o ch ã o , s o lu ç a va e t e r i a p r e fe r id o e st a r m o r t o , p o is o p e so d e t r i s t e z a i m e n s a o
afligia. M a s s a iu d e m i m u m a vo z e d isse as p a la vr a s: "É d u r o — as ví t i m a s c a e m
à d i r e i t a e à e s q u e r d a — e t u e st á s c r u c ific a d o p o r a m o r à vi d a ".

E e u d isse ao m e u e u : " M e u ir m ã o , q u e sa b o r t e m p a r a t i e st a c o n ve r s a ?"

E l e s u s p i r o u fu n d o e l a m e n t o u : " E l a é a m a r ga , e m e s o b r e vê m gr a n d e so -
fr i m e n t o ".

A o q u e r e sp o n d i: " E u se i, m a s n ã o d á p a r a m u d a r ". E u , p o r é m , n ã o sa b ia o
q u e, p o is a i n d a ign o r a va o q u e o fu t u r o r e se r va va ( ist o a co n t e ce u a 21 d e m a i o

10 8 de maio de 1914. H á uma lacuna nos registros do Livro Negro 5, entre 21 de abril e 8 de maio, assim as
discussões mencionadas no parágrafo anterior parece que não foram registradas.
11 21 de maio de 1914.
414 AP RO FU N D AM EN T O S

d e 1914). N o c ú m u l o d a t r ist e z a , o lh e i p a r a as n u ve n s n o alt o, gr it e i p o r m i n h a


a l m a e a in t e r r o gu e i. Es c u t e i p e r fe it a m e n t e s u a vo z a m iga e c la r a q u e r e sp o n d e u :
"So u t o m a d o d e m u i t a a le gr ia . Le v a n t o - m e m a is alt o , m i n h a s asas c r e s c e m ".
A est as p a la vr a s, fu i t o m a d o d e a m a r g u r a e gr it e i: " T u vive s d o sa n gu e d o
c o r a ç ã o h u m a n o ".
O u v i q u e e la r i a - o u n ã o r iu ? "N e n h u m a b e b id a m e é m a is a gr a d á ve l d o
q u e o sa n gu e ve r m e l h o ".
F u i t o m a d o d e r a i va i n c o n t i d a e gr it e i: "Se n ã o fosses m i n h a a l m a q u e se -
g u i u a D e u s p a r a as p a r a ge n s e t e r n a s, e u d i r i a q u e és o m a is t e r r íve l flagelo d o s
ser es h u m a n o s . M a s q u e m t o c a e m t i? E u se i, co isa d i v i n a n ã o é c o is a h u m a n a .
O d i vi n o c o n s o m e o h u m a n o . E u se i, e st a é a d u r e z a , e st a é a a t r o cid a d e , q u e m
t e t o c o u c o m as m ã o s n ã o co n se gu e m a is e l i m i n a r o a r d o r d e su as m ã o s . E u
e s t o u à t u a m e r c ê ".
E l a r e s p o n d e u : " N ã o fiq u e s z a n ga d o , n ã o t e q u e ixe s. N ã o ligu e s p a r a os
sa cr ifício s c r u e n t o s . N ã o se t r a t a d e t u a d u r e z a , d e t u a a t r o cid a d e , m a s d e n e -
ce ssid a d e . O c a m i n h o d a v i d a e s t á se m e a d o d e ge n t e c a íd a e m c o m b a t e ".
E u : "Si m , e u ve jo , é u m c a m p o d e b a t a lh a . M e u ir m ã o , o q u e h á co n t igo ? T u
ge m e s?"
Re s p o n d e u e n t ã o m e u e u : "P o r q u e n ã o d e ve r i a e u g e m e r e so lu ça r ? E u m e
ca r r e go d e m o r t o s e n ã o d o u c o n t a d e a r r a s t a r s e u n ú m e r o ".
M a s n ã o e n t e n d i m e u e u e p o r isso fa le i o se gu in t e : " T u és u m p a gã o , m e u
a m igo ! N ã o o u vist e q u e fo i d it o : d e i xa i q u e os m o r t o s e n t e r r e m seu s m o r t o s ? 12
P o r q u e q u e r e s c a r r e ga r - t e c o m m o r t o s ? T u n ã o os le va r á s m a is lo n ge se os
a r r a st a r e s".
M e u e u fa lo u e n t ã o e m vo z la m u r i o s a : "M a s t e n h o p e n a d o s p o b r e s c a íd o s
e m c o m b a t e , eles n ã o c h e ga m à lu z . T a l ve z se e u os a r r a s t a r — ?"
E u : "Pe n sa s o q u ê ? Su as a lm a s a lc a n ç a r a m o t a n t o q u a n t o p u d e r a m . En t ã o
a t i n g i r a m o d e st in o . Co n o s c o va i a co n t e ce r o m e sm o . T u a c o m p a i xã o é d o e n t ia ".
M a s a m i n h a a l m a g r i t o u d e lo n ge: "D e i x a - l h e a c o m p a i xã o . A c o m p a i xã o
u n e m o r t e e vi d a ".
Es t a s p a la vr a s d e m i n h a a l m a m e s u r p r e e n d e r a m . E l a fa la va d e c o m p a i xã o ,
e la q u e , s e m c o m p a i xã o , s u b i u p a r a o a lt o e m c o m p a n h i a d o D e u s , e e u lh e
p e r gu n t e i:

12 Mt 8,21-22: "E outro de seus discípulos lhe disse: 'Senhor, deixa-me ir primeiro enterrar meu pai'. Jesus,
porém, lhe respondeu: 'Segue-me e deixa que os mortos enterrem seus mortos'".
AP RO FU N D AM EN T O S
4U
13
"P o r q u e fiz e st e isso ?"
P o is m i n h a i r r i t a b i l i d a d e h u m a n a n ã o c o m p r e e n d e u a a t r o c id a d e d a q u e la
h or a. E l a r esp on d eu :
" N ã o t e n h o a o b r i g a ç ã o d e e st a r e m vo sso m u n d o . E u m e su jo n a l a m a d e
vo ssa t e r r a ".
E u : " E e u n ã o s o u t e r r a ? N ã o s o u la m a ? C o m e t i u m e r r o q u e t e o b r i g o u a
se gu ir o D e u s p a r a os p á r a m o s s u p e r io r e s ?"
A : "N ã o ! F o i n e ce ssid a d e in t e r io r . E u p e r t e n ç o ao a lt o ".
E u : "N i n g u é m s e n t i u n esse t e u d e s a p a r e c im e n t o u m a p e r d a ir r e p a r á ve l?"
A : "Ao c o n t r á r io . T u ga n h a st e m u i t o c o m isso ".
E u : "Se e u c o n s i d e r a r m e u s e n t i m e n t o h u m a n o a r e s p e it o d isso , p o d e r i a m
s u r g i r - m e d ú vid a s ".
A : " O q u e p e r ce b e st e ? P o r q u e d e ve ser s e m p r e falso a q u ilo q u e vê s? Es t a é
t u a in ju s t iç a e sp e cífica , q u e n ã o p o d e s d e i xa r d e t e fa z e r s e m p r e d e t o lo . N ã o
p o d e s ao m e n o s u m a ve z p e r m a n e c e r e m t e u c a m i n h o ?"

E u : " T u sab es q u e e u d u vi d o p o r a m o r às p esso as".


A : "N ã o , p o r a m o r à t u a fr a ca vo n t a d e , p o r a m o r à t u a d ú vi d a e d e s c r e n ç a .
P e r m a n e c e e m t e u c a m i n h o e n ã o fu jas d e t i m e s m o . Exi s t e u m a i n t e n ç ã o d i v i -
n a e u m a i n t e n ç ã o h u m a n a . A s d u a s se c r u z a m n a s p esso as t o la s e e sq u e cid a s d e
D e u s , às q u a is p o r ve z e s t u t a m b é m p e r t e n c e s".

C o m o e u n ã o p u d e sse ve r a q u e t u d o isso se r e fe r ia , so b r e o q u e a a l m a fa la -
v a e d e q u e m i n h a a l m a s o fr ia ( p o is ist o a c o n t e c e u d o is m e se s a n t e s d a e c lo s ã o
d a g u e r r a ) , q u e r i a e n t e n d e r t u d o c o m o a c o n t e c i m e n t o p e sso a l m e u , n ã o c o n -
se gu in d o p o r isso c o m p r e e n d e r t u d o n e m a c r e d it a r e m t u d o . P o is m i n h a fé é
fr a ca . E e u a ch o q u e é m e l h o r q u e e m n o sso t e m p o a fé se ja fr a ca . N ó s so m o s
fr u t o s d a q u e la in fâ n c ia e m q u e a fé p u r a e s im p le s e r a o m e i o m a is i n d i c a d o
d e le va r a p e sso a ao b e m e ao r a z o á ve l. P o r t a n t o , se q u i s é s s e m o s t a m b é m h o je
t e r n o va m e n t e u m a fé fo r t e , vo l t a r í a m o s a s s im p a r a a q u e la in fâ n cia p r i m i t i -
va . M a s n ó s t e m o s t a n t a c iê n c ia e t a n t o í m p e t o d e c o n h e c i m e n t o e m n ó s q u e
p r e c is a m o s m a is d o c o n h e c i m e n t o d o q u e d a fé. M a s a fi r m e z a d a fé h a ve r i a
d e p e r t u r b a r n o sso c o n h e c i m e n t o . A fé p o d e se r algo fo r t e , m a s é algo va z i o e
m u i t o p o u c o c o n vi vi d o p e lo ser h u m a n o t o d o , se n o ssa v i d a c o m D e u s se f u n -

13 23 de maio de 1914.
AP RO FU N D AM EN T O S
4i6
d a m e n t a e xc lu s i va m e n t e n a fé. P o d e m o s n ó s d e fat o c r e r p u r a e s im p le s m e n t e ?
P a r e c e - m e m u i t o p o u co . Pessoas q u e t ê m in t e ligê n c ia n ã o p o d e m c r e r p u r a e
s im p le s m e n t e , m a s d e ve m b u s c a r o c o n h e c i m e n t o c o m t o d a s as su as fo r ça s. A
fé n ã o é t u d o , n e m o c o n h e c i m e n t o . A fé n ã o n o s d á a c e r t e z a e a r i q u e z a d o
c o n h e c im e n t o . A vo n t a d e d e c o n h e c e r às ve z e s n o s afast a d e m a is d a fé. A s d u a s
co isas t ê m d e ch e ga r ao e q u ilíb r io .
M a s é t a m b é m p e r igo so c r e r d e m a is , p o r q u e h o je c a d a q u a l t e m d e p r o c u r a r
se u p r ó p r i o c a m i n h o e n e le t r o p e ç a r n u m a lé m c h e io d e co isa s fo r t e s e e s t r a -
n h a s. C o m fé e m d e m a s ia , e u p o d e r i a fa c ilm e n t e t o m a r t u d o l i t e r a l m e n t e e n ã o
s e r ia n a d a m a is q u e u m lo u co . A i n fa n t i li d a d e d a fé fa lh a c o m r e la çã o às n ossas
n e ce ssid a d e s a t u a is. P r e c is a m o s d o c o n h e c i m e n t o d i s c e r n i d o r p a r a e scla r e ce r
a c o n fu s ã o q u e o d e s c o b r i m e n t o d a a l m a ve i o t r a z e r . P o r isso t a lve z se ja p r e fe -
r íve l a gu a r d a r m e lh o r e s c o n h e c i m e n t o s a n t e s d e a ce it a r t u d o c o m m u i t a fé 14 .
A p a r t i r d e ssa r e fle xã o , d isse e u à a lm a : "D e ve - s e a c e it a r t u d o ist o ? Sab es
e m q u e s e n t id o o p e r gu n t o . N ã o é m a n e i r a e s t ú p id a o u in c r é d u la p e r g u n t a r
isso, m a s é u m a d ú vi d a d e ca t e go r ia m a is e le va d a ".
Re s p o n d e u ela: " E u t e e n t e n d o — m a s d e ve ser a ce it o ".
E e u : "As s u s t a - m e o i s o l a m e n t o d e ssa a ce it a çã o . T e n h o h o r r o r d a l o u c u r a
q u e a co m e t e o s o lit á r io ".
E l a r e s p o n d e u : "C o m o b e m sab es, e u já t e p r e d isse h á m u i t o a so lid ã o . N ã o
p r e cisa s t e m e r a lo u c u r a . O q u e e u t e p r e d igo t e m va lid a d e ".
Essa s p a la vr a s m e e n c h e r a m d e i n t r a n q u i l i d a d e , p o is s e n t i q u e n ã o p o d e r i a
a ce it a r o q u e m i n h a a l m a p r e d isse , p o r q u e e u n ã o o e n t e n d i , E u q u e r i a e n t e n -
d ê - l o s e m p r e e m r e la ç ã o a m i m m e s m o . P o r isso fa le i à a lm a :
" Q u e m e d o i n c o m p r e e n s í ve l m e a t o r m e n t a ?"
" E t u a d e s c r e n ç a , t u a d ú vid a . N ã o q u e r e s a c r e d it a r n a m a g n it u d e d o s s a -
cr ifício s q u e sã o e xigid o s. M a s ist o va i a t é o san gu e. Gr a n d e s co isa s e xi g e m
gr a n d e s co isas. T u q u e r e s s e m p r e a i n d a se r p e q u e n o d e m a is . N ã o t e fa le i d e
d e sa m p a r o ? Q u e r e s t e r vi d a m e l h o r q u e os o u t r o s ?"

"N ã o ", r e s p o n d i. " N ã o é est e o caso. M a s e u t e m o fa z e r u m a in ju s t iç a às


p esso as, se gu in d o m e u p r ó p r i o c a m i n h o ".

14 Esses dois últimos parágrafos não ocorrem no Livro Negro 5. Em Transformações e símbolos da libido (19 12), Jung
escreveu: "Eu acho que a fé deveria ser substituída pelo entendimento" ( O C , B, § 356). Em 5 de outubro
de 1845 Jung escreveu a Vict or Wh ite: "Eu comecei minha carreira repudiando tudo o que cheirasse a
fé" ( LAM M ERS, A.C. & C U N N I N G H A M , A. (orgs.). TheJung-W hiteLetters. Londres: Philem on Series/
Routledge, 20 0 7, p. 6 ) .
AP RO FU N D AM EN T O S 417

" D e q u e d eseja s e sca p a r ?", d isse e la ; "n ã o e xis t e e sc a p a t ó r ia . T e n s d e a n d a r


t eu s c a m i n h o s , s e m liga r p a r a os o u t r o s , n ã o i m p o r t a q u e s e ja m b o n s o u m a u s.
T u co lo ca st e t u a m ã o so b r e o d i vi n o , o q u e aq u eles n ã o fizeram".
E u n ã o p o d i a a c e it a r essas p a la vr a s, p o is t e m i a ser ilu d id o . P o r isso t a m b é m
n ã o q u e r i a a ce it a r esse c a m i n h o q u e m e fo r ç a va a u m a c o n ve r s a a m b í g u a c o m
m i n h a a lm a . E u t e r i a p r e fe r id o fa la r c o m p esso as. M a s s e n t i a a c o m p u l s ã o p a r a
o i s o la m e n t o e t e m i a ao m e s m o t e m p o a s o lid ã o d e m e u p e n s a r q u e a b a n d o n o u
t o d o s os t r â m it e s c o s t u m e i r o s 15 . Es t a n d o a p e n s a r a s s im , a a l m a m e fa lo u : " N ã o
t e p r e d isse s o lid ã o t e n e b r o sa ?"
" E u s e i", r e s p o n d i, "m a s n ã o i m a g i n a va q u e v i r i a a ssim . T e m d e se r a s s im ?"
" T u só p o d e s d i z e r s i m . N a d a h á q u e fazer , a n ã o se r t r a t a r d e t e u a ssu n t o .
Q u a n d o algo t e m d e a co n t e ce r , só a c o n t e c e r á d e ssa m a n e i r a ".
"P o r t a n t o n ã o a d i a n t a r e vo lt a r - s e c o n t r a a s o lid ã o ?", gr it e i.
" N ã o a d i a n t a n a d a . D e ve s e st a r fo r ç a d o e m t u a o b r a ."
Q u a n d o m i n h a a l m a fa lo u a s s im , a p r o xim o u - s e d e m i m u m ve lh o d e b a r b a
b r a n c a e r o st o p r e o c u p a d o 16 . P e r gu n t e i- lh e o q u e q u e r ia d e m i m . El e r e sp o n d e u :
"So u u m a n ó n i m o , u m d os m u i t o s q u e v i v e r a m n a s o lid ã o e m o r r e r a m . Is t o
e xige d e n ó s o e s p ír it o d a é p o c a e a ve r d a d e r e c o n h e c id a . O l h a p a r a m i m — ist o
t e n s q u e a p r e n d e r . T i ve s t e u m a v i d a m u i t o b o a " 17 .
"M a s ", r e p l i q u e i e u , "ist o é a i n d a u m a n e ce ssid a d e e m n o sso t e m p o t ã o m u l -
t i p l a m e n t e d ive r s o ?"
" É ve r d a d e i r o h o je c o m o o n t e m . N ã o e s q u e ç a s n u n c a q u e és u m se r h u m a -
n o e p o r isso t e n s q u e sa n gr a r e m p r o l d a h u m a n i d a d e . C u l t i v a c o m d e n o d o a
s o lid ã o e s e m r e sm u n ga r , p a r a q u e t u d o a m a d u r e ç a a s e u t e m p o . D e ve s fica r
sé r io e p o r isso d e sp e d e - t e d a ciê n cia . H á s n e l a i n fa n t i li d a d e d e m a is . T e u c a -
m i n h o va i p a r a a p r o fu n d e z a . A c iê n c ia é p o r d e m a is su p e r ficia lid a d e , s o m e n t e
p a la vr a s, a p e n a s i n s t r u m e n t o . M a s t u p r e cisa s i r à o b r a " 18 .

15 24 de maio de 1914. As linhas iniciais deste parágrafo não ocorrem no Livro Negro 4.
16 O Livro Negro 4, continua: "E como um velho santo, um dos primeiros cristãos que viveram no deserto"
(P 77).
17 No esboço manuscrito de "Aprofundamentos", há aqui uma nota a mão: 27/ 11/ 17, que parece referir-se à
data em que esta parte do manuscrito foi composta.
18 O Livro Negro 5, continua: [Eu ]: "Eu sou escolástico?" [Alm a]: "Isto não, mas científico, a ciência é uma nova
versão da escolástica. Isto deve ser superado"./ [Eu ]: "Ainda não basta? Com isso não contrario demais o
espírito da época, se eu me declarar livre de toda ciência?/ [Alm a]: "Tu não deves separar-te totalmente,
mas imagina que a ciência seja apenas tua linguagem"./ [Eu ]: "Em que profundeza pedes que eu entre?"/
[Alm a]: "Sempre acima de t i e para além do presente"./ [Eu]: "Eu quero, mas o que vai acontecer? Muitas
vezes tenho a impressão de que não posso mais"./ [Alm a]: "Tu deves recuperar o tempo perdido. Abre
espaço. Muitas pessoas consomem o teu tempo"./ [Eu]: "Vem também este sacrifício? Tu deves, t u deves"
(p. 7 9 - 8 o ) .
AP RO FU N D AM EN T O S
4i8
E u n ã o s a b i a a q u a l o b r a . P o i s t u d o e r a e s c u r o . T u d o fi c o u d ifíc il e d u v i -
d o so , u m a t r i s t e z a i n f i n d a se a p o d e r o u d e m i m e p e r m a n e c e u m u i t o s d ia s
s o b r e m i m . E n t ã o o u v i , c e r t a n o i t e , a v o z d o ve l h o . E l e fa la va d e va g a r e
p o n d e r a d a m e n t e , as fr a se s q u e d i z i a m e p a r e c e r a m d e s c o n e xa s e t r e m e n -
d a m e n t e a b s u r d a s , d e m o d o q u e fu i t o m a d o n o v a m e n t e p e l o m e d o d a l o u -
c u r a 19 . D i s s e l i t e r a l m e n t e as s e g u in t e s p a la vr a s :
20
" A i n d a n ã o é n o i t e t o d o s o s d ia s . O p i o r v e m p o r ú l t i m o .
A m ã o qu e bat e p o r p r im e ir o bat e m elh o r .
A t o l i c e b r o t a d o s p o ç o s m a i s p r o fu n d o s e a b u n d a n t e m e n t e c o m o o
Nilo.
A m a n h ã é m a is b e la q u e o an o it ecer .
A flor e xa l a p e r fu m e a t é q u e fe n e ç a .
A g e a d a v e m o m a i s t a r d e p o s s í ve l n a p r i m a v e r a , c a so c o n t r á r i o n ã o e n -
c o n t r a s e u d e s t i n o ".

Es s a s fr a se s q u e o v e l h o d is s e p a r a m i m n a n o i t e d e 25 d e m a i o d e 1914
p a r e c e r a m - m e d e u m a i n c o n g r u ê n c i a t e r r í ve l . Se n t i q u e m e u e u se t r a n s -
f o r m o u e m d o r e s . E l e g e m e u e se q u e i x o u d o p e s o d o s m o r t o s q u e c a ía
s o b r e e le . E r a c o m o se t ive s s e q u e a r r a s t a r m i l h a r e s d e m o r t o s .
E s t a t r i s t e z a n ã o t e r m i n o u a t é 24 d e j u n h o d e 19 14 21. D u r a n t e a n o i t e ,
m i n h a a l m a m e d isse : " O m a i o r t o r n a - s e o m e n o r ". D e p o i s d isso , n a d a m a i s
fo i d i t o . E e n t ã o e s t o u r o u a g u e r r a . A b r i r a m - s e e n t ã o m e u s o l h o s s o b r e
m u i t a co isa q u e e u h a via vivid o an t es, e ist o m e d e u t a m b é m a co r a ge m d e
d i z e r t u d o o q u e e s c r e vi n a s p a r t e s a n t e r i o r e s d e s t e l i vr o .

| 3| A p a r t i r d a í , c a l a r a m - s e as v o z e s d a p r o f u n d e z a d u r a n t e t o d o u m
an o. M a s n o va m e n t e n o ve r ã o , q u a n d o a n d a va s o z in h o d e b a r co p e la s
águ as, v i u m a á gu ia - p e sq u e ir a m e r gu lh a n d o d ia n t e d e m i m ; ela t ir o u d a
á g u a u m p e i x e m u i t o g r a n d e e s u m i u c o m e le n a s a l t u r a s 2 2 . O u v i a v o z

19 Este parágrafo não se encontra nos Livros Negros.


20 25 de maio de 1914.
21 O Livro Negro 5, continua: "Bah , este livro! Novamente eu te tenho - banal e doentio, louco e divino, meu
inconsciente posto por escrito! Tu me forçaste a ficar de joelhos outra vez. Aqu i estou, dize o que tens a
dizer!" (p. 8 2) . Esta é a única referência ao inconsciente nos Livros Negros, 2 a 7.
22 3 de junho de 1915. Nesse meio tempo, Jung escreveu o esboço dos livros anteriores do Liber Novus. No dia
28 de julho de 1914, Jung deu uma palestra sobre "A importância do inconsciente na psicopatologia" num
congresso da British Medicai Association em Aberdeen. De 9 de agosto até 22 de agosto, Jung esteve
no serviço m ilitar em Luzerna por 14 dias. De I o de janeiro de 1915 a 8 de março de 1915, Jung esteve no
AP RO FU N D AM EN T O S 419

d e m i n h a a l m a q u e d iz ia : "I s t o é u m s in a l d e q u e o i n fe r i o r se r á t r a z i d o

p a r a c i m a ".

Lo g o d e p o i s , n u m a n o i t e d e o u t o n o , o u v i a v o z d o v e l h o ( e d e s s a v e z
23 24
p ercebi que er a O I A H M Q N . E l e d is s e : " V o u v i r a r - t e c o m fo r ç a . V o u

d o m i n a r - t e . V o u c u n h a r - t e c o m o u m a m o e d a . V o u c o m e r c i a l i z a r co n t igo .

Que t e c o m p r e m e t e ve n d a m 2 5. D e ve s p assar d e m ã o e m m ã o . N ã o t er ás

v o n t a d e p r ó p r i a . Se r á s v o n t a d e d e t o d o m u n d o . O o u r o n ã o é s e n h o r p o r

vo n t a d e p r ó p r i a e a s s im m e s m o o d o m i n a d o r d a t o t a lid a d e , d e sp r e z a d o e

á vi d o , e xi g e u m s o b e r a n o d o t i p o i m p l a c á v e l : e s t á d e i t a d o e e s p e r a . Q u e m

o vê d e s e ja - o a vid a m e n t e . E l e n ã o c o r r e a t r á s. F i c a q u ie t o , c o m sem b lan t e

o fu s c a n t e , b a s t a n d o a si m e sm o , u m r e i qu e n ã o p r e cisa d e m o n st r a r seu

p o d e r . T o d o s p r o c u r a m is s o , p o u c o s o e n c o n t r a m , m a s t a m b é m o m e n o r

p e d a ç o é a lt a m e n t e va lo r iz a d o . Is t o n ã o p assa, n ã o é d e s p e r d i ç a d o . C a d a

qu al o t o m a on de o en con t rar e cu id a co m m ed o p ara n ão perd er a m e n o r

p a r t e d e le . C a d a q u a l n e ga q u e d e p e n d e d isso , m a s a s s i m m e s m o est en d e

su a m ã o se cr e t a e d e se jo sa m e n t e p a r a e le . O o u r o p r e c i s a d e m o n s t r a r s u a

n ecessid a d e? E l a é d e m o n s t r a d a p e la c o b iç a h u m a n a . E l e p e r gu n t a : q u e m

m e t o m a ? Q u e m o t o m a , est e o t e m . O o u r o n ã o se m e x e . E l e d o r m e e

b r i l h a . Se u b r i l h o p e r t u r b a o s s e n t i d o s . S e m p a l a vr a s , p r o m e t e t u d o o q u e

serviço m ilitar em O lt en por 6 4 dias. En tre 10 e 12 de março trabalhou no transporte dos inválidos (Jun gs
m ilitar service books, AF J) .
23 Esta frase não está no Livro Negro 6.
24 14 de setembro de 1915. No verão e outono de 1915, Jung tratou de sua correspondência com Han s
Schmidt sobre a questão dos tipos psicológicos. Sua última carta a Schmidt, de 6 de novembro, indica uma
mudança que pode ser entendida como um sinal da volta à elaboração de suas fantasias nos Livros Negros.
"O entendimento é um poder terrivelmente prendedor, como que um verdadeiro assassinato da alma,
tão logo elimine diferenças importantes. O cerne do indivíduo é um mistério da vida, que desaparece
quando é entendido'. Por isso, também, é que os símbolos querem conservar seu mistério, não o são assim só porque
aquilo que está em seu fundamento não pode ser entendido claramente... Todo entendimento, que é uma
associação com pontos de vista em geral, tem o elemento diabólico dentro de si e mata... Por isso temos
de ajudar as pessoas num estágio posterior da análise a chegarem àqueles símbolos ocultos e que não
devem ser desvendados, dentro dos quais está guardado o cerne de sua vida, como a tenra semente dentro
da casca dura. Sobre isso não deveria haver, na verdade, entendimento algum, ainda que, de certa forma,
algum fosse possível. Se o entendimento disso for possível em geral e evidente, então o símbolo está
maduro para a destruição, pois não protege mais o cerne que está, por assim dizer, pronto a crescer para
além da casca. Compreendo agora um sonho que tive certa vez e que me deixou muito impressionado: eu
estava no meu jardim e havia cavado uma rica fonte de água e que jorrava com abundância. Tive de cavar
então uma canaleta e um buraco bem fundo para nele armazenar a água e conduzi-la novamente para
o interior da terra. Por isso nos é dada a graça dos símbolos não desvendáveis e indizíveis, pois ela nos
protege contra a possibilidade de o demónio engolir a semente da vida" ( BEEBE, J. & F ALZ E D E R , E.
(orgs.). TheJung-SchmídLetters [Philem on Series - no prelo).
25 O Livro Negro 5, continua: "Herm es é teu dáím on (p. 8 7) .
42 o AP RO FU N D AM EN T O S

p a r e c e d e s e já ve l a o s e r h u m a n o . E l e i n c e n t i v a o d e s t r u i d o r a d e s t r u i r , a o
q u e sob e a ju d a n a s u b i d a 26 .
U m t esou ro r e lu z e n t e é am o n t o ad o , só esp er a q u e m o t o m e. Q u e sa cr i-
fíc io o h o m e m n ã o fa z p o r a m o r a o o u r o ? E l e n ã o a g u a r d a n e m a b r e v i a o
s a c r i fí c i o d o h o m e m — q u a n t o m a i s d e m o r a d o o e s fo r ç o , m a i s va l o r i z a d o .
E l e n a s c e d a s e n t r a n h a s d a t e r r a , d a l a v a fu n d i d a . E e x t r a í d o d e va ga r , o c u l t o
e m ve i o s , e m m e i o a p e d r a s . O h o m e m e m p r e g a t o d a a s u a p e r s p i c á c i a p a r a
d e s e n t e r r á - l o e t e r d e le c a d a v e z m a i s ".

M a s e u g r i t e i , p a s m o : " Q u e c o n v e r s a m a i s d e s c o n e xa , ó O I A H M Q N ! "
27
M a s O I A H M Q N con t in u ou :
" N ã o s ó e n sin a r , m a s t a m b é m n egar , p o is p o r q u e e n s i n e i eu ? Se e u n ã o
e n sin a r , t a m b é m n ã o p r e c iso n egar. M a s se t i ve r e n sin a d o , p r e c iso d e p o is n e -
gar. P o is q u a n d o e n s in o , d o u ao o u t r o o q u e ele d e vi a t o m a r . B o m é o q u e ele
c o n q u is t a , m a u , p o r é m , é o q u e r e ce b e d e p r e se n t e , o q u e n ã o fo i co n q u ist a d o .
D i s s i p a r a si m e s m o sign ifica : q u e r e r o p r i m i r a m u i t o s . Q u e m p r e s e n t e i a t e m
se gu n d a s in t e n ç õ e s , p o r q u e t a m b é m se u p r o p ó s i t o é p e r ve r so . E l e é o b r iga d o a
a n u la r seu s p r e se n t e s e a n e ga r s u a vi r t u d e .

" O p eso d o silê n cio n ã o é m a io r d o q u e o p eso d e m i m m e sm o , q u e e u


g o s t a r i a d e c a r r e g a r s o b r e t e u s o m b r o s . P o r is s o fa lo e e n s i n o . O o u v i n t e
q u e se d e fe n d a c o n t r a m i n h a a s t ú c i a q u e p r e t e n d e i m p o r - l h e m i n h a c a r ga .

" A m e l h o r ve r d a d e t a m b é m é u m e m b u s t e t ã o h a b ilid o so q u e e u m e s m o
m e e n r e d o n e l a e n q u a n t o n ã o p e r c e b e r o v a l o r d e u m a r d i l b e m - s u c e d i d o ".
N o v a m e n t e fi q u e i a s s u s t a d o e g r i t e i : " O F i l ê m o n , as p e s s o a s se e n g a n a m
a t e u r e s p e i t o , p o r is s o t u as e n ga n a s . M a s q u e m t e a d i v i n h a , a d i v i n h a a s i
m e s m o ".
28
M a s O I A H M Q N fi c o u q u i e t o e se r e t i r o u p a r a a n é v o a t r e m e l u z e n t e
d a in co n sciên cia. El e m e a b a n d o n o u a m e u s p r ó p r io s p en sam en t o s. E e u
p e n s e i q u e h a v i a n e c e s s i d a d e d e l e v a n t a r a lt a s p a r e d e s d e s e p a r a ç ã o e n t r e
o s se r e s h u m a n o s , m e n o s p a r a p r o t e g ê - l o s d a s o fe n s a s m ú t u a s d o q u e d a s
vir t u d e s m ú t u a s. P a r e c e u - m e q u e a c h a m a d a m o r a l cr ist ã d o n o sso t e m p o
fa vo r e c i a a i n d a o d e s l u m b r a m e n t o m ú t u o . C o m o p o d e c a d a q u a l c a r r e g a r o

26 Jung discutiu o simbolismo alquímico do ouro em suas obras sobre a psicologia da alquimia. Cf. Mysterium
coníunctionis. OC, 14/ 2, § 5s.
27 15 de setembro de 1915.
28 17 de setembro de 1915.
AP RO FU N D AM EN T O S 421

fa r d o d o o u t r o q u a n d o o m á x i m o q u e se p o d e e s p e r a r d e u m a p e s s o a é q u e
e la m e s m a c a r r e g u e n o m í n i m o s e u p r ó p r i o fa r d o .
M a s n o d e s l u m b r a m e n t o e s t á s e m d ú v i d a o p e c a d o . Se e u a s s u m i r a v i r -
t u d e a b n e ga d a , t o r n o - m e o t i r a n o e g o í s t a d o o u t r o p e l o q u a l s o u fo r ç a d o
a s u b m e t e r - m e u m a o u t r a v e z a m i m m e s m o , p a r a fa z e r d e u m o u t r o o s e -
n h or , o q u e se m p r e m e d e ixa u m a im p r e ssã o r u i m e q u e n ã o t r az n e n h u m
b e n e fí c i o p a r a o o u t r o . At r a v é s d e s s e jo g o d e t r o c a - t r o c a , a s o c i e d a d e v a i se
m a n t e n d o , m a s a a l m a d o in d ivíd u o é p r e ju d ica d a , p o is a p e sso a a p r e n d e
a ssim a vi ve r s e m p r e d o o u t r o , e m ve z d e vi ve r d e si m e s m a . P a r e c e - m e ,
q u a n d o p o s s í ve l , q u e n ó s n ã o d e v e r í a m o s e n t r e g a r - n o s , m a s i n c e n t i v a r e
m e s m o fo r ç a r o o u t r o a fa z e r o m e s m o . M a s o q u e a c o n t e c e se t o d o s se
e n t r e g a m ? Se r i a u m a l o u c u r a !
N ã o é q u e s e ja u m a c o i s a b e l a e a g r a d á v e l v i v e r c o m s e u s i - m e s m o , m a s
s e r ve p a r a a r e d e n ç ã o d o s i - m e s m o . A l é m d o m a i s , é p o s s í v e l a b a n d o n a r -
- se a s i m e s m o ? C o m i s s o n ó s s o m o s d o m i n a d o s p o r n ó s m e s m o s . I s t o é o
co n t r á r io d a aceit ação d e si m e sm o . Q u a n d o n ó s d o m in a m o s p o r n ó s m e s-
m o s - e ist o acon t ece a cad a u m q u e e n t r e ga a si m e s m o - e n t ã o vive m o s
p e lo s i - m e s m o . N ó s n ã o v i v e m o s o s i - m e s m o , e le se v i v e 2 9 .

A vir t u d e ab n egad a é u m a a lie n a çã o a n t in a t u r a l d a p r ó p r ia n a t u r e -


z a q u e , d e s s a f o r m a , se v ê p r i v a d a d o s e u d e s e n v o l v i m e n t o . E u m p e c a d o
a l i e n a r o o u t r o a t r a vé s d e o s t e n t a ç ã o d a v i r t u d e p r ó p r i a , d e s e u s i - m e s m o ,
c o m o , p o r e xe m p l o , t o m a r s o b r e s i a c a r g a d e le . Es s e p e c a d o se v o l t a c o n t r a
n ó s m e s m o s 30 .

29 Em Assim falava Zaratustra, Nietzsche escreveu: "Ele (o Selbsi) se informa também com os olhos dos
sentidos, ele escuta também com os ouvidos do espírito. Sempre está à escuta e assim se informa o
próprio ser: compara, submete, conquista, destrói. Ele reina e é também o soberano do Eu . Detrás de
teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, há um amo mais poderoso, um guia desconhecido, que se
chama 'o próprio Ser'" (Prim eira parte: "Dos que desprezam o corpo", p. 51). A passagem está sublinhada
como no exemplar de Jung. H á também linhas na margem e pontos de exclamação. Ao comentar esta
passagem em 1935, em seu seminário sobre Zaratustra, Jung disse: "Eu já estava muito interessado no
conceito do eu, mas não estava seguro sobre como deveria entendê-lo. Fiz minhas anotações quando topei
com estas passagens e elas me pareceram muito importantes [...]. O conceito do eu continuou a causar-
me boa impressão [...]. Pensei que Nietzsche supunha uma espécie de coisa-em-si por trás do fenómeno
psicológico [...]. Vi também, então, que ele estava produzindo um conceito do eu que era semelhante ao
conceito oriental; é uma ideia de At m an " (Nietzschês Zaratustra. Vol. 1, p. 39 1).
30 Em Assim falava Zaratustra, Nietzsche escreveu: "Vós andais muito solícitos ao redor do próximo e o
manifestais com belas palavras. Mas eu vos digo: vosso amor ao próximo é o vosso mau amor a vós
mesmos./ Fugis de vós em busca do próximo e quereis converter essa fuga numa virtude; mas eu penetro
em vosso 'desinteresse'" ("Do amor ao próximo". Prim eira parte, p. 89. Sublinhado conforme o exemplar
de Jung).
422 AP RO FU N D AM EN T O S

É s u b m is s ã o b a st a n t e , m a is d o q u e b a st a n t e , q u a n d o n o s s u b m e t e m o s ao
n o sso s i- m e s m o . A o b r a d a r e d e n ç ã o t e m d e c o m e ç a r s e m p r e p o r n ó s , se é q u e
se p o d e t e r r e a l m e n t e a o u s a d ia d e p r o n u n c i a r t ã o gr a n d e p a la vr a . Se m a m o r a
n ó s m e s m o s , e st a o b r a n ã o p o d e se r r e a liz a d a . Al i á s , t e m e la d e ser fe it a d e fat o?
C e r t a m e n t e n ã o , q u a n d o n ó s c o n se gu im o s s u p o r t a r a s it u a ç ã o d a d a e q u a n d o
n ó s n ã o n o s s e n t im o s n e ce ssit a d o s d e r e d e n ç ã o . O i n c o m o d o s e n t i m e n t o d e
n e ce ssid a d e d e r e d e n ç ã o p o d e t o r n a r - s e às ve z e s d e m a is a a lgu é m . P r o c u r a m o s
e n t ã o l i vr a r - n o s d e le , m a s a s s im c a í m o s n a o b r a d a r e d e n ç ã o .

P a r e c e - m e q u e n o s é s u m a m e n t e p r o ve it o so , e a t é m e s m o n e ce ssá r io , e l i m i -
n a r t o d o o b e lo b r i l h o d a i d e i a d e r e d e n ç ã o , caso c o n t r á r i o m e n t i m o s d e n o vo a
n ó s m e s m o s , p o r q u e a p a la vr a n o s a gr a d a e p o r q u e a t r a vé s d a gr a n d e p a la vr a se
e sp a lh a u m b e lo c la r ã o e m t o r n o d o a ssu n t o . M a s p o d e -se , n o m í n i m o , t e r d ú -
vi d a se a o b r a d a r e d e n ç ã o é e m s i u m a ssu n t o b o n it o . O s r o m a n o s n ã o a c h a r a m
m u i t o p a la t á ve l o j u d e u c r u c ific a d o , e o s o m b r i o fa n a t is m o d as ca t a cu m b a s,
q u e se c e r c o u d e s í m b o lo s p o b r e s e b á r b a r o s , n ã o t i n h a p a r a eles o fa scin a n t e
e sp le n d o r , a i n d a q u e s u a c u r io s id a d e p e r ve r s a est ivesse d e s p e r t a p a r a t u d o o
qu e er a b ár b ar o e su b t er r ân eo.

E u p e n so q u e é o m a is a ce r t a d o e m a is se n sa t o d i z e r q u e se ca ir á , p o r a s s im
d iz e r , s e m q u e r e r n a o b r a r e d e n t o r a q u a n d o se q u e r fu gir d a n e ce ssid a d e d e
r e d e n ç ã o c o m o u m m a l a p a r e n t e m e n t e in s u p o r t á ve l d e u m s e n t i m e n t o n ã o
s u p e r á ve l. Es t e p asso p a r a a o b r a r e d e n t o r a n ã o é b o n i t o n e m a gr a d á ve l e n e m
d ifu n d e u m b r i l h o c o n vid a t ivo . E o caso é t ã o d ifícil e a n gu st ia n t e q u e a ge n t e
d e ve c o n t a r - s e e n t r e os d o e n t e s e n ã o e n t r e os su p e r sa d io s q u e q u e r e m d o a r a
o u t r o s s u a s u p e r a b u n d â n c ia .

P o r isso n ã o d e ve m o s t a m b é m u sa r o o u t r o p a r a n o ssa r e d e n ç ã o s u p o s t a -
m e n t e p r ó p r ia . O o u t r o n ã o é e sca d a p a r a n o sso s p é s. N ó s d e ve m o s d e p r e fe -
r ê n c ia fic a r fe ch a d o s e m n ó s. A n e ce ssid a d e d e r e d e n ç ã o go st a d e e xp r e ssa r - se
a t r a vé s d e u m a n e ce ssid a d e m a i o r d e a m o r c o m o q u a l ju lga m o s p o d e r t o r n a r
fe liz e s o u t r a s p essoas. M a s p o r isso e st a m o s m e r gu lh a d o s a t é o p e s c o ç o e m
n o ssa c o b i ç a e a m b i ç ã o p a r a m u d a r n o sso est ad o. E p a r a est e f i m a m a m o s o
o u t r o . Se já t ivé s s e m o s co n se gu id o n o sso fi m , o o u t r o n o s d e i xa r i a fr io s. M a s
é ve r d a d e q u e t a m b é m p r e c is a m o s d o o u t r o p a r a n o ssa p r ó p r i a r e d e n ç ã o . T a l -
ve z n o s p r e st e e s p o n t a n e a m e n t e s u a a ju d a , já q u e e st a m o s n u m a sit u a ç ã o d e
d o e n ç a e d e sa m p a r o . N o s s o a m o r a ele n ã o é n e m d e ve se r d e sin t e r e ssa d o . Se -
r i a m e n t i r a . P o is o o b je t ivo é a r e d e n ç ã o p r ó p r ia . O a m o r d e sin t e r e ssa d o só é
AP RO FU N D AM EN T O S 423

ve r d a d e i r o e n q u a n t o a p r e t e n s ã o d o s i - m e s m o p u d e r se r i m p r e n s a d a c o n t r a a
p a r e d e . M a s h a ve r á u m m o m e n t o e m q u e c h e g a r á a ve z d o s i- m e s m o . Q u e m
go st a r ia d e e n t r e ga r -se ao a m o r d e se m e lh a n t e s i- m e s m o ? C o m ce r t e z a , s o m e n -
t e a lgu é m q u e a in d a n ã o sabe o q u a n t o d e ab u so e a m a r gu r a , d e in ju st iça e ve n e -
n o e sco n d e e m si o s i- m e s m o d e u m ser h u m a n o q u e e sq u e ce u se u s i- m e s m o e
fez d e le u m a vi r t u d e .

N o s e n t id o d o s i - m e s m o , o a m o r d e sin t e r e ssa d o é u m ve r d a d e i r o p ecad o .


3I
N ó s p r e c is a m o s i r m u i t a s ve z e s a n ó s m e s m o s p a r a r e c o n s t i t u i r a c o n e xã o
c o m o s i - m e s m o , p o is é r o m p i d a c o m e xt r e m a fa cilid a d e , n ã o só a t r a vé s d e n o s -
sos víc io s , m a s t a m b é m a t r a vé s d e n o ssas vi r t u d e s . P o is t a n t o os víc io s q u a n t o
as vi r t u d e s q u e r e m s e m p r e vi ve r e xt e r n a m e n t e . M a s d e vid o ao c o n s t a n t e vi ve r
fo r a d e n ó s p e r d e m o s o s i - m e s m o e a s s im n o s t o r n a m o s t a m b é m s e c r e t a m e n t e
e go íst a s e m n o sso s m e lh o r e s e s fo r ç o s 3 2 . O q u e d e s p r e z a m o s e m n ó s , m i s t u r a - s e
d e m a n e i r a se cr e t a ao n o sso a gir c o m os o u t r o s.

At r a vé s d a u n i ã o c o m o s i - m e s m o ch e ga m o s ao D e u s 3 3 .
Is t o d e vo d iz ê - lo , n ã o a p e la n d o à o p i n i ã o d o s a n t igo s. N e m d esse o u d a -
q u e le , m a s p o r q u e e u a s s i m o e xp e r i m e n t e i . Ac o n t e c e u - m e a ssim . E a c o n t e c e u
d e u m a fo r m a t a l q u e e u n ã o e sp e r a va n e m d e se ja va . A e xp e r i ê n c i a d e D e u s
n e ssa fo r m a m e fo i in e s p e r a d a e in d e se ja d a . Go s t a r i a d e d i z e r q u e fo r a u m
e n ga n o e t e r i a c o m m u i t a sa t isfa çã o n e ga d o essa e xp e r i ê n c i a M a s n ã o p o sso
n e ga r q u e e la se a p o sso u d e m i m a c i m a d e t o d a s as m e d id a s e d e i m e d i a t o a t u o u
so b r e m i m . Se fo r u m a ilu sã o , e n t ã o a ilu sã o é m e u D e u s . En t ã o m e u D e u s e st á
p a r a m i m n a ilu sã o . E m e s m o q u e ist o fosse a m a i o r a m a r g u r a q u e m e p u d e sse
a co n t e ce r , d e ve r i a a s s im m e s m o co n fe ssa r e st a e xp e r i ê n c i a e r e c o n h e c e r n e l a
o D e u s . N ã o t e n h o n e n h u m a i n t e n ç ã o e n e n h u m a o b je ç ã o s u fic ie n t e m e n t e
fo r t e s q u e e xc e d a m a fo r ç a d e ssa e xp e r iê n c ia . E se o p r ó p r i o D e u s se t ive sse
r e ve la d o e m in c o n c e b íve l a b o m i n a ç ã o , e u n ã o p o d e r i a co n fe ssa r o u t r a c o is a se -
n ã o t e r e xp e r i m e n t a d o n isso o D e u s . Se i i n c l u s i ve q u e n ã o é t ã o d ifícil e st a b e -

31 18 de setembro de 1915.
32 Em 1941, Jung observou: "A integração, ou processo de encarnação do si-mesmo, é preparada, como já
indicamos, pela consciência através da conscientização de pretensões egoístas, ou seja, o indivíduo percebe
os seus motivos e procura formar uma ideia objetiva e a mais completa possível de sua própria natureza"
("O símbolo da transformação na missa". O C , I I , § 4 0 0 ) . Isto corresponde ao processo retratado aqui na
seção de abertura de "Aprofundamentos".
33 O Livro Negro 5 continua: "céu e inferno unidos entre si" (p. 9 2) . Cf. Jung, "O símbolo da transformação na
missa" (1941) : "Então o si-mesmo atua como uma unio opposítorum, constituindo assim a experiência mais
direta do divino que se possa exprim ir em termos psicológicos" ( O C, I I , § 39 6 ) .
424 AP RO FU N D AM EN T O S

le c e r u m a t e o r ia q u e e xp liq u e s u fi c i e n t e m e n t e m i n h a e xp e r i ê n c i a e a a d ic io n e
a co isa s j á c o n h e c id a s. E u m e s m o p o d e r i a e st a b e le ce r essa t e o r i a e d a r - m e i n -
t e le c t u a lm e n t e p o r sa t isfe it o c o m isso, m a s essa t e o r i a n ã o c o n s e gu ir ia e l i m i n a r
a m í n i m a p a r t e d a c e r t e z a d e u m t e r e xp e r i m e n t a d o o D e u s . N e s s a c e r t e z a d a
e xp e r i ê n c i a r e c o n h e c i o D e u s . N ã o p o sso r e c o n h e c e r n isso o u t r a c o is a s e n ã o
ele. N ã o q u e r o c r ê - l o n e m p r e c is o c r ê - lo , e t a m b é m n ã o p o d e r i a c r ê - lo . C o m o
s e r ia p o s s íve l c r e r e m s e m e lh a n t e co isa? M e u e s p ír it o d e ve r i a e st a r t o t a lm e n t e
t r a n s t o r n a d o p a r a c r e r e m t a is co isas. Se gu n d o s u a t o t a l n a t u r e z a , s ã o so b r e -
m a n e i r a i m p r o vá ve i s . N ã o s ó i m p r o vá ve i s , m a s t a m b é m im p o s s íve is à n o ssa
c o m p r e e n s ã o . Só u m c é r e b r o d o e n t e p o d e p r o d u z i r t a is ilu sõ e s. C o m p a r o esses
d o e n t e s ao s q u e fo r a m a c o m e t id o s d e l o u c u r a e a lu cin a çõ e s. M a s d e vo d i z e r
q u e o D e u s n o s fa z d o e n t e s. N a d o e n ç a e u e xp e r i m e n t o o D e u s . U m D e u s vi vo
é a d o e n ç a d e n o ssa r a z ã o . E l e e n c h e a a l m a d e ê xt a se . E l e n o s e n c h e d e caos
o scila n t e . A q u a n t o s D e u s va i q u e b r a r ?
O D e u s n o s a p a r e ce n u m d e t e r m i n a d o e st a d o d a a lm a . P o r isso ch e ga m o s
a D e u s p o r c i m a d o s i - m e s m o 34 . 35
0 si-m esm o n ã o é o D e u s, ain d a q u e ch e-
gu e m o s a D e u s a t r a vé s d o s i - m e s m o . O D e u s e s t á a t r á s d o s i - m e s m o , a c i m a d o
s i - m e s m o , t a m b é m é o p r ó p r i o s i - m e s m o q u a n d o e le a p a r e ce . M a s e le a p a r e -
ce c o m o n o ssa d o e n ç a d a q u a l p r e c is a m o s n o s c u r a r 3 6 . T e m o s d e c u r a r - n o s d e
D e u s , p o is E l e t a m b é m é n o ssa p i o r fe r id a .
D e u s t e m p r im e ir a m e n t e t o d o o p o d e r n o si-m e sm o , p o is o s i- m e s m o est á
t o d o n o D e u s , p o r q u e n ó s n ã o est ivem o s n o si-m e sm o . Te m o s d e p u xa r o si- m e s-
m o p a r a o n o s s o la d o . P o r is s o d e ve m o s l u t a r c o m D e u s p e l o s i - m e s m o . P o i s
o D e u s é u m m o v i m e n t o i n c o n c e b i v e l m e n t e fo r t e q u e a r r a s t a c o n s i g o o
s i - m e s m o p a r a o i l i m i t a d o , p a r a a d isso lu çã o .

34 Em 1921, Jung escreveu a respeito do si-mesmo: "Enquanto o eu for apenas o centro do meu campo
consciente, não é idêntico ao todo de minha psique, mas apenas um complexo entre outros complexos.
Por isso distingo entre eu e si-mesmo. O eu é o sujeito apenas de minha consciência, mas o si-mesmo é o
sujeito do meu todo, também da psique inconsciente" (Tipospsicológicos. O C , 6, § 79 6 ) . Em 1928, Jung
descreveu o processo de individuação como "tornar-se si-mesmo" (Verselbstung) ou "o realizar-se do si-
mesmo" (Selbstverwirklichung) (Estudos sobre psicologia analítica. O C , 7, § 26 6 ) . Jung definiu o si-mesmo como
o arquétipo da ordem e observou que as representações do si-mesmo não se distinguiam das imagens-
de-Deus (cap. I V "O si-mesmo", em Aíon. O C , 9 / 2) . Em 1944, observou que escolhera o termo porque
este conceito é "suficientemente determinado para dar uma ideia da totalidade e insuficientemente
determinado para exprim ir o caráter indescritível e indefinível da totalidade... Na linguagem científica, o
termo si-mesmo não se refere nem a Cristo, nem a Buda, mas à totalidade das formas correspondentes, e
cada uma dessas formas é um sím bolo do si-m esm o" (Psicologia e alquim ia. O C , 12, § 2 0 ) .
35 A seção seguinte é reelaborada do Livro Negro 5, e por isso é difícil separá-la dele.
36 Em 1929, Jung escreveu: "O s deuses tornaram-se doença. Zeus não governa mais o Olim po, mas o plexo
solar, e produz espécimes curiosos que visitam o consultório médico" (Estudos alquímicos. O C , 13, § 54).
AP RO FU N D AM EN T O S 425

P o r isso, q u a n d o D e u s n o s a p a r e ce , fica m o s a p r i n c í p i o i m p o t e n t e s , d e s-
lu m b r a d o s , p a r t id o s , d o e n t e s, e n ve n e n a d o s c o m ve n e n o fo r t ís s im o , m a s n o
ê xt a s e d a m á xi m a sa ú d e .
M a s n e sse e st a d o n ã o h á lu ga r p a r a n e n h u m a d e m o r a , p o is t o d a s as fo r ça s
d e n o sso c o r p o se c o n s o m e m c o m o b a n h a n a c h a m a . P o r isso t e m o s q u e a s p ir a r
a l i b e r t a r o s i - m e s m o d e D e u s , p a r a q u e p o ssa m o s vi ve r 3 7 .
38
É p o s s íve l e i n c l u s i ve fácil p a r a n o ssa r a z ã o n e ga r o D e u s e fa la r só d e d o -
e n ça . A s s i m a s s u m im o s a p a r t e d o e n t i a e p o d e m o s t a m b é m cu r á - la . M a s s e r á
u m a c u r a c o m p e r d a . P e r d e m o s u m a p a r t e d a vi d a . C o n t i n u a m o s s e m d ú vi d a a
vive r , m a s c o m o p a r a lisa d o s p o r D e u s . O n d e a r d e u o fogo, e s t ã o c in z a s m o r t a s .
E u a c r e d it o q u e t e n h a m o s a e sco lh a : e u p r e fe r i as m a r a vi lh a s viva s d o D e u s .
Peso d i a r i a m e n t e o t o d o d e m i n h a v i d a e a i n d a a s s im o b r i l h o in c a n d e s c e n t e
d e D e u s s ign ific a p a r a m i m u m a v i d a m a i o r e m a is p l e n a d o q u e a c i n z a d a
r a c io n a lid a d e . A c i n z a é p a r a m i m su icíd io . E u p o d e r i a t a lve z ap agar o fogo,
m a s n ã o p o sso n e ga r d i a n t e d e m i m m e s m o a e xp e r i ê n c i a d e D e u s . N ã o p o sso
d e s vi n c u l a r - m e d e ssa e xp e r iê n c ia . T a m b é m n ã o q u e r o , p o is q u e r o vive r . M i n h a
v i d a se q u e r e la m e s m a t o d a i n t e i r a .
P o r isso d e vo s e r vi r ao m e u s i- m e s m o . T e n h o d e g a n h á - l o a ssim . M a s d e vo
g a n h á - l o p a r a q u e m i n h a v i d a se t o r n e t o t a l. P o is m e p a r e ce p e ca d o a t r o fia r a
v i d a o n d e e xist e a p o s s ib ilid a d e d e vi vê - l a n a t o t a lid a d e . P o r isso o s e r viç o ao
s i - m e s m o é u m s e r viç o a D e u s e à h u m a n i d a d e . Q u a n d o e u m e s m o m e su p o r t o ,
a livio a h u m a n i d a d e d e m e u p e so e c u r o m e u s i - m e s m o d o D e u s .

E u d e vo l i b e r t a r m e u s i - m e s m o d e D e u s 3 9 , p o is o D e u s q u e e u e xp e r i m e n t e i
é m a is q u e a m o r , ele é t a m b é m ó d i o ; m a is d o q u e b e le z a , ele é t a m b é m h o r r o r ;

37 O Livro Negro 5, continua: "O Deus tem o poder, não o si-mesmo. Não se deve pois lamentar a impotência,
mas ela é o estado de como ele deve estar./ O Deus age por si. Isto se deve deixar a ele. O que fazemos ao
si-mesmo, nós o fazemos a Deus./ Se deturparmos o si-mesmo, deturpamos também a Deus. É um serviço
a Deus servir a si mesmo. Com isso aliviamos a humanidade de nós mesmos. "Q ue cada um carregue o
fardo do outro" tornou-se mera imoralidade. Q ue cada qual carregue seu fardo, isto é o mínimo que se
pode exigir de uma pessoa. Podemos, no máximo, mostrar ao outro como carregar seu próprio fardo./
Dar todos os seus bens aos pobres significa educar os pobres para a preguiça./ Compaixão não é ser o
carregador do fardo dos outros, mas ser um educador enérgico. A solidão conosco mesmos não tem fim.
Ela apenas começou" (p. 9 2- 9 3) .
38 O s quatro parágrafos seguintes não se encontram nos Livros Negros.
39 No exemplar de Jung dos Schriften und Predigten de Eckhart, a frase do vol. I , p. 20 2, "dass die Seele auch
Got t verberem músste" [que a alma deveria também perder a Deus] está sublinhada e há uma tira de papel
onde está escrito: "Seele muss Got t verlieren " [A alma deve perder a Deus] (Meister Eckharts Schriften und
Predigten - Aus dem Mittelhochdeutschen úbersetzt und herausgegeben von Herm an Búttner. 2 vols. [s.l.]:
Eugen Diederichs, 1912, p. 222) .
426 AP RO FU N D AM EN T O S

m a is d o q u e sa b e d o r ia , ele é t a m b é m in se n sa t e z ; m a is d o q u e p o d e r , ele é t a m -
b é m i m p o t ê n c i a ; m a is d o q u e o n ip r e s e n ç a , ele é t a m b é m m i n h a c r i a t u r a .

M a s n a n o it e segu in t e e scu t e i n o va m e n t e a vo z d e O I A H M Q N que


40
d isse :

"Ap r o xi m a - t e , e n t r a n a s e p u lt u r a d o D e u s . O lu ga r d e t e u t r a b a lh o d e ve se r
n o p r ó p r i o jazigo . O D e u s n ã o d e ve m o r a r e m t i , m a s t u n o D e u s ".
4I
E s s a s p a l a vr a s m e p e r t u r b a r a m , p o i s e u h a v i a p e n s a d o a n t e r i o r m e n t e
e m l i v r a r - m e d e D e u s . M a s O I A H M Q N a c o n s e l h o u - m e a e n t r a r m a i s fu n d o
n o Deu s.
D e s d e q u e o D e u s se e l e v o u p a r a o s e s p a ç o s s u p e r i o r e s , t a m b é m O I -
A H M Q N ficou d i fe r e n t e . I n i c i a l m e n t e fo i p a r a m i m u m m a g o q u e v i v i a
n u m p a í s d i s t a n t e , m a s d e p o i s s e n t i s u a p r o x i m i d a d e e, d e s d e q u e o D e u s
se e l e vo u , s e i q u e O I A H M Q N m e e m b r i a g o u e m e i n s p i r o u u m a l i n g u a g e m
e s t r a n h a a m i m m e s m o e u m o u t r o sen t ir . T u d o ist o d e sa p a r e ce u q u a n d o o
D e u s se e l e v o u e s ó O I A H M Q N p o s s u í a a q u e l a l i n g u a g e m . M a s e u s e n t i q u e
e le t r i l h a v a o u t r o s c a m i n h o s e n ã o o m e u . A g r a n d e m a i o r i a d o q u e e s c r e vi
n a s p r i m e i r a s p a r t e s d e s t e l i v r o fo i O I A H M Q N q u e m e i n s p i r o u 4 2 . P o r is s o
fi q u e i c o m o q u e e m b r i a g a d o . M a s a g o r a p e r c e b i q u e O I A H M Q N a s s u m i u
u m a fo r m a sep arad a de m i m .

{4} 4 3 Passad as a lgu m a s se m a n a s, v i e r a m a m i m t r ê s s o m b r a s , m o r t o s , c o m o p e r -


c e b i e m se u h á lit o fr io . A p r i m e i r a figu r a e r a a d e u m a m u lh e r . Ap r o x i m o u - s e
d e m i m e fez so a r u m le ve z u m b i d o , o z u m b i d o d as asas d o e sca r a ve lh o . N i s s o
a r e c o n h e c i. Q u a n d o a i n d a e st a va vi va , g u a r d o u p a r a m i m o m i s t é r i o d o Egit o ,
os ve r m e l h o s d isco s so la r e s e o c a n t o d as asas d o u r a d a s. E l a p e r m a n e c e u q u a l
s o m b r a e s u a vo z so a va c o m o u m e s t e r t o r e s u s p ir o l o n g í n q u o s , e e u m a l c o n -
se gu ia e n t e n d e r su as p a la vr a s. E l a d isse:
" E r a n o it e q u a n d o e u m o r r i - t u a i n d a vive s n o d i a - a i n d a h á d ia s e a n o s
d ia n t e d e t i - o q u e ir á s c o m e ç a r ? - C o n c e d e - m e a p a la vr a - p e n a q u e n ã o
p o ssas o u vir ! C o m o é d ifícil - d á - m e a p a la vr a !"

4 0 No Livro Negro $, a voz não é identificada como a de Filêmon.


41 O s dois parágrafos seguintes não ocorrem nos Livros Negros.
4 2 O esboço manuscrito de "Aprofundamentos" continua: "dito através de m im " (p. 37) .
43 2 de dezembro de 1915.
AP RO FU N D AM EN T O S 427

Re s p o n d i a t ó n it o : " N ã o c o n h e ç o a p a la vr a q u e p r o c u r a s ".

M a s e la gr it o u : " O s ím b o lo , o m e io , p r e c is a m o s d o s ím b o lo , t e m o s sed e

d e le , faze l u z p a r a n ó s ".

" D e o n d e ? C o m o p o sso ? N ã o c o n h e ç o o s í m b o l o q u e d esejas".

E l a ve i o a gr e ssiva m e n t e so b r e m i m : " T u p o d e s, p r o c u r a ".

E n e st e m o m e n t o fo i - m e co lo ca d o n a m ã o o s in a l, e e u o o l h e i c o m e sp a n t o

ilim it a d o . Fa l o u - m e e n t ã o e m vo z a lt a e a m i g á ve l 4 4 :

"E i - l o , est e é H a p , o s í m b o l o q u e n ó s q u e r í a m o s , d e q u e p r e c is á va m o s . E l e

é r e p u g n a n t e m e n t e s im p le s , t o t a lm e n t e p r i m i t i vo , n a t u r a l m e n t e s e m e lh a n t e a

D e u s , o o u t r o p o lo d e D e u s . E e xa t a m e n t e d esse p o lo q u e p r e c is a m o s ".

"P o r q u e p r e cisa is d o H a p ? " 4 5 , r e t r u q u e i .

"El e e s t á n a l u z , o o u t r o D e u s e st á n a n o it e ".

"Ah ", r e s p o n d i, "o q u e d iz e s, a m a d a ? O D e u s d o e s p ír it o e st á n a n o it e ? E o

Fi l h o ? O filh o d o s sap os? A i d e n ó s , se fo r o D e u s d e n o sso d i a !"

M a s a fa le cid a d isse t r iu n fa n t e :

"El e é o D e u s d a c a r n e , o D e u s d o san gu e, ele é o e xt r a t o d e t o d o s os su co s

c o r p o r a is , o e s p ír it o d a s e m e n t e e d as e n t r a n h a s , d as p a r t e s ge n it a is, d a ca b e ça ,

d o s p é s, d as m ã o s , d as ju n t a s , d o s ossos, d o s o lh o s e o u vid o s, d o s n e r vo s e d o

c é r e b r o , ele é o e s p ír it o d a e s c ó r ia e d a s e c r e ç ã o ".

" T u ve n s d a p a r t e d o d e m ó n i o ? ", g r i t e i c h e io d e h o r r o r , "o n d e fic a m i n h a l u z

b r i l h a n t e d o s d e u se s?"

M a s e la d isse: " O c o r p o c o n t i n u a se n d o t e u , a m a d o , t e u c o r p o vivo . D o c o r -

p o v e m o p e n s a m e n t o i l u m i n a d o r ".

" D e q u e p e n s a m e n t o est ás falan d o ? N ã o c o n h e ç o est e p e n sa m e n t o ", d isse eu .

"Ra s t e j a p o r aí, c o m o ve r m e , c o m o se r p e n t e , u m a ve z a q u i, o u t r a lá, u m a

s a l a m a n d r a cega d as ca ve r n a s".

4 4 Em lugar deste parágrafo, o Livro Negro 5, tem: "Um falo?" (p. 9 5) . Não há menção a Hap no Livro Negro 5. As
referências seguintes podem estar relacionadas com isso. Em The EgyptianHeaven and Hell, Wallis Budge observa
que "o falo de seu Pepi é Hap" (vol. I , p. IIo ) . Ele observa que Hap é um filho de Hórus (p. 4 9 1 - nesta
passagem Jung colocou um sinal na margem em seu exemplar). An otou também que "no Livro dos mortos
estes quatro filhos de Hórus desempenham papéis muito destacados e os mortos procuravam conseguir
seu auxílio e proteção a todo custo, tanto por meio de oferendas como por meio de orações [...]. O s
quatro filhos de Hórus distribuíam entre si a proteção dos mortos, e já na V dinastia descobrimos que
eles presidiam à vida dele no mundo inferior" (ibid. - sublinhado como no exemplar de Jung) (Londres:
Kegan Paul/ Trench and Trubner, 19 0 5) .
45 O Livro Negro 5, tem: "desse polo de Deus" (p. 9 $) .
428 AP RO FU N D AM EN T O S

"En t ã o e s t o u c e r t a m e n t e e n t e r r a d o vivo . Q u e n o jo ! Q u e p o d r i d ã o ! T e n h o
d e m e su gar n isso q u a l san gu essu ga?"
"Si m , b e b e r sa n gu e ", d isse e la . "Su gar , e n c h e r - t e n o ca d á ve r , h á su co s n e le ,
n o je n t o s s i m , m a s n u t r i t i vo s . N ã o d eves e n t e n d e r , m a s su ga r '.
"M a l d i t o n o jo ! N ã o , t r ê s ve z e s n ã o ", g r i t e i p a r a c i m a .
M a s e la d isse: "I s t o n ã o d e ve a b o r r e c e r - t e , n ó s p r e c is a m o s d esse a lim e n t o ,
d o su co vi t a l d as p essoas, p o is n ó s q u e r e m o s t e r p a r t e e m vo ssa vi d a . A s s i m
p o d e m o s a p r o xi m a r - n o s d e vó s . N ó s g o s t a r í a m o s d e i n fo r m á - l o s so b r e o q u e
vo s fa r ia fa lt a e m c o n h e c e r ".
"I s t o é l o u c u r a r e fin a d a ! D e q u e e st á s fa la n d o ?"
46
E l a m e l a n ç o u a q u e le o lh a r q u e m e d e u n a q u e le d i a e m q u e a v i p e la ú lt i-
m a ve z e n t r e os vivo s e e m q u e , in s c ie n t e d o sign ifica d o , m e m o s t r o u algo d o
m i s t é r i o q u e os e gíp c io s n o s le ga r a m . E a s s i m m e fa lo u :
"Fa z e - o p o r n ó s . Le m b r a s - t e d e m i n h a d o a ç ã o , d o s d isco s so la r e s v e r m e -
lh o s, d as asas d o u r a d a s e d a c o r o a d a v i d a e d a p e r m a n ê n c i a ? I m o r t a l i d a d e ,
d isso s e r ia n e c e s s á r io sa b e r ".
" O c a m i n h o q u e le va a est e sa b e r é i n fe r n o ".
47
E a est e r e sp e it o m e r g u l h e i e m m e d i t a ç ã o t r is t e , p o is e u p r e s s e n t ia o d i -
fícil e m a l - e n t e n d i d o , a im p r e vis íve l s o lid ã o d esse c a m i n h o . E a p ó s lo n ga l u t a
c o n t r a t o d a s as fr a q u e z a s e co va r d ia s e m m i m , d e c i d i t o m a r so b r e m i m e st a
s o lid ã o d o sagr ad o e r r o e d a ve r d a d e vá lid a p a r a s e m p r e 4 8 .
E t r ê s n o it e s d e p o is, c h a m e i a fa le cid a e lh e p e d i:
"E n s i n a - m e a r e s p e it o d o c o n h e c i m e n t o d o s ve r m e s e d as c r ia t u r a s q u e r a s -
t e ja m , a b r e - m e as t r e va s d o e s p ír it o ".
E l a s u s s u r r o u : " D á - m e san gu e, p a r a q u e e u b e b a e sa ib a falar. M e n t i s t e ao
d i z e r q u e e n t r e ga r ia s o p o d e r ao Fi l h o ? "
"N ã o , n ã o m e n t i . M a s e u d isse algo q u e n ã o e n t e n d i ".
"F e l i z d e t i " , d isse e la , "se p o d e s d i z e r o q u e n ã o e n t e n d e s. Es c u t a , p o is:
H a p 4 9 n ã o é o fu n d a m e n t o , m a s o c e r n e d a igr e ja q u e a i n d a e st á s u b m e r s a . P r e -
c is a m o s d e ssa igr e ja , p o is d e n t r o d e la p o d e m o s vi ve r co n vo sco e p a r t i l h a r d e
vo ssa vi d a . Vó s n o s e xc lu íst e s p a r a vo sso p r ó p r i o p r e ju í z o ".

4 6 Este parágrafo não está no Livro Negro 5.


47 5 de dezembro de 1915.
48 Este parágrafo não está no Livro Negro 5.
4 9 O Livro Negro 5, tem: "O Phallus" (p. 10 0 ) . Cf. o sonho da infância de Jung sobre o rito do falo no templo
subterrâneo, p. 4 acima.
AP RO FU N D AM EN T O S 429

"D i z e - m e : H a p é o s í m b o l o d a igr e ja e m q u e esp er as t e r c o m u n i d a d e c o m


os vivo s? Fa la , p o r q u e d e m o r a s ?"
E l a s u s p i r o u e d isse c o m vo z s u m id a :
" D á - m e san gu e, e u p r e ciso d e s a n gu e " 5 0 .
" T o m a d o san gu e d o m e u c o r a ç ã o ", d is s e - lh e e u .
" E u t e a gr a d e ço . Is t o é vit a lid a d e . O a r d o m u n d o d as so m b r a s é r a lo , p o is
n ó s p a ir a m o s so b r e o o c e a n o d o a r c o m o p á ssa r o s so b r e o m a r . M u i t o s p a ssa -
r a m d o s l i m i t e s , flutuando so b r e c a m i n h o s i n d e t e r m i n a d o s , t o p a n d o p o r acaso
c o m m u n d o s e st r a n h o s. M a s n ó s q u e a i n d a e st a m o s p r ó xi m o s e i n c o m p le t o s ,
g o s t a r í a m o s d e m e r g u l h a r n o m a r d o a r e d e vo l t a p a r a a t e r r a , p a r a o q u e e st á
vivo . N ã o t e n s u m a forma d e a n i m a l e m q u e e u p u d e sse e n t r a r ?"
"C o m o ? ", p e r g u n t e i e sp a n t a d o . "Go s t a r i a s d e ser m e u c a c h o r r o ?"
"Se for p o ssíve l, s i m ", r e s p o n d e u , "e u go st a r ia a t é m e s m o d e ser t e u c a c h o r -
r o. T u és d e va lo r in d iz íve l p a r a m i m , t o d a m i n h a e s p e r a n ç a q u e a i n d a se p r e n -
d e à t e r r a . E u go st a r ia a i n d a d e ve r t e r m i n a d o o q u e a b a n d o n e i ce d o d e m a is .
D á - m e san gu e, m u i t o san gu e".
D e se sp e r a d o , e u fa le i: "En t ã o b e b e , b e b e p a r a q u e se t o r n e o q u e d e ve se r ".
E l a b a l b u c i o u c o m vo z h e s it a n t e : " Br i m o 5 1 - é a s s im q u e a c h a m a is m u i t o
b e m - a ve l h a - c o m isso c o m e ç a - q u e d e u à l u z o filh o - o p o d e r o s o H a p
q u e n a s c e u d e su a v u l v a e a m b i c i o n a va a m u l h e r d o c é u q u e se a b a u la va so b r e a
t e r r a , p o is Br i m o e m c i m a e e m b a i xo e n glo b a o fi l h o 5 2 . E l a o d á à l u z e o p u xa
p a r a c i m a . N a s c i d o d o in fe r io r , fe c u n d a o su p e r io r , p o is a m u l h e r é su a m ã e , e
a m ã e é s u a m u l h e r ".

"M a l d i t o e n s i n a m e n t o ! N ã o b a st a o t e r r íve l m is t é r io ?", g r it e i c h e io d e r e -


vo l t a e a ve r sã o .

"Q u a n d o o c é u e st á g r á vid o e n ã o p o d e m a is r e t e r se u fr u t o , d á à l u z u m a
p e sso a q u e ca r r e ga o p e so d o s p e ca d o s - e st a é a á r vo r e d a v i d a e d a p e r m a n ê n -
c ia s e m fi m . D á - m e t e u san gu e! O u v e ! Te r r íve l é est e e n igm a : q u a n d o Br i m o , a
celest e, e st e ve gr á vid a , d e u à l u z o d r a gã o , a p la c e n t a p r i m e i r o , e d e p o is o filh o ,

50 Cf. acima, nota 223, p. 325.


51 Em 1912, Jung analisou os mistérios de Hécate, que floresceram em Rom a pelo final do século I V Hécate,
a deusa da magia e dos encantamentos, guardava o mundo inferior e era considerada a causadora da
loucura. Era identificada com Brimo, uma deusa da morte (Transform ações e sím bolos da libido. O C , B, § 5 8 6 S S . ) .
52 Em Transformações esímbolos da libido (19 12), Jung referiu-se a Nut, a Deusa do Céu egípcia, que se estendia
como um arco sobre a terra, dando à luz o deus Sol todos os dias ( O C, B, § 36 4 ) .
AP RO FU N D AM EN T O S
43o
H a p , e a q u e le q u e H a p t r a z . H a p é a r e vo l t a d o in fe r io r , m a s d o s u p e r i o r v e m
o p á s s a r o e p o u sa n a c a b e ç a d e H a p . E a p a z . T u és vaso. Fa la , c é u d e r r a m a t u a
c h u va . T u és u m a casca. Ca s c a s va z ia s n ã o d e r r a m a m , elas r e c o l h e m . D e t o d o s
os c a n t o s a flu i e m a b u n d â n c ia . D i g o - t e q u e n o va m e n t e se a p r o xi m a u m a n o it e .
U m d i a , d o is d ia s, m u i t o s d ia s t e r m i n a r a m . A l u z d o d i a d esce e i l u m i n a a s o m -
b r a , m e s m o u m a s o m b r a d o so l. A v i d a se t r a n s fo r m a e m s o m b r a , e a s o m b r a
t o m a vi d a , a s o m b r a q u e é m a i o r d o q u e t u . Pe n sa st e q u e t u a s o m b r a fosse t e u
filh o ? A o m e i o - d i a ele é p e q u e n o , p e la m e i a - n o i t e e n c h e o c é u " 5 3 .

M a s e u e st a va esgo t ad o , d e se sp e r a d o e n ã o co n se gu ia m a is o u vir , p o r isso


fa le i à fa le cid a :
54
"En t ã o t r a z e s p a r a c i m a a t é m i m o filh o a ssu st a d o r q u e m o r a va d e b a ixo
d as á r vo r e s ju n t o à á gu a ? É ele o e s p ír it o q u e os cé u s d e r r a m a m , o u é o ve r m e
s e m a l m a q u e a t e r r a d e u à lu z ? Ó c é u - ó r e ga ç o t e n e b r o so ! Q u e r e i s su gar m e u
san gu e t o d o p o r a m o r à so m b r a ? Se r á q u e o h u m a n o d e ve p e r e c e r t ã o c o m p l e -
t a m e n t e n o d i vi n o ? 5 5 D e v o vi ve r c o m so m b r a s, ao in vé s d e c o m vivo s ? Se r á q u e
t o d o o a n se io p e lo s vivo s d e ve p e r t e n c e r a vó s , m o r t o s ? T i ve s t e s vo sso t e m p o
d e vi ve r ? N ã o o a p r o ve it a st e s? Se r á q u e u m vi vo d e ve d a r s u a v i d a p a r a vó s , já
q u e n ã o vive st e s o e t e r n o ? Fa la i, so m b r a s m u d a s , q u e e st a is d ia n t e d e m i n h a
p o r t a e p e d is m e u sa n gu e !"

En t ã o a s o m b r a d o s m o r t o s l e va n t o u a vo z e d isse: " T u vê s - o u a i n d a n ã o
vê s o q u e os vivo s fa z e m c o m t u a vi d a . El e s a t i r a m d e t i . M a s c o m igo t u t e vive s ,
p o is e u p e r t e n ç o a t i . P e r t e n ç o a t e u s é q u it o e c o m u n i d a d e in visíve is. Ac r e d i t a s
q u e os vivo s t e ve e m ? El e s só v e e m t u a s o m b r a , n ã o a t i — t u se r vo ca r r e ga d o r ,
t u va so —".

"Q u e co n ve r sa é essa? Es t o u e n t r e gu e a vó s ? N ã o m e ilu m in a r á m a is n e n h u m


d ia? T o r n a r - m e - e i s o m b r a c o m c o r p o vivo ? Vó s n ã o t e n d e s fo r m a e n a d a d e p a l -
p á ve l; d e vó s e m a n a u m fr io se p u lcr a l, u m h á lit o d o va z io . D e i x a r - m e e n t e r r a r
vi vo - q u e i d e i a é essa? P a r e c e - m e ce d o d e m a is , p r i m e i r o t e n h o d e m o r r e r .
Te n d e s o m e l q u e a le gr a m e u c o r a ç ã o e o fogo q u e a q u e ce m i n h a s m ã o s ? V ó s
so is o q u ê ? So m b r a s t r ist e s? Vó s , a s s o m b r a ç õ e s d e cr ia n ça s! P o r q u e q u e r e is
m e u san gu e? D e fat o, so is p io r e s d o q u e as p essoas. A s p esso as d ã o p o u co , m a s

53 Este parágrafo foi reelaborado a partir do Livro Negro 5.


54 7 de dezembro de 1915.
55 9 de dezembro de 1915.
AP RO FU N D AM EN T O S 431

o q u e d a is vó s? C r i a i s a q u ilo q u e vive ? O b e lo a co n ch e ga n t e , a alegr ia? O u t u d o

isso d e ve i r p a r a o vo sso H a d e s t e n e b r o so ? O q u e o fe r e ce is p o r isso? M is t é r io s ?

A p e sso a v i v a p o d e vi ve r d isso ? Vo sso s segr ed o s e u os c o n s id e r o u m a fa r sa , se a

p e sso a v i v a n ã o p o d e vi ve r d e le s".

M a s a s o m b r a i n t e r ve i o e gr it o u : "C a l m a , ó im p e t u o s o , t u m e t ir a s o fôlego.

N ó s so m o s so m b r a s, t o r n a - t e s o m b r a e sa b e r á s o q u e n ó s d a m o s ".

" N ã o q u e r o m o r r e r p a r a d e sce r a t é vo ssas e s c u r id õ e s ".

"M a s ", d isse e la , "t u n ã o p r e cisa s m o r r e r . Ba s t a q u e t e d e ixe s e n t e r r a r ".

" N a e s p e r a n ç a d a r e s s u r r e iç ã o ? N ã o façais p ilh é r ia s ".

M a s e la fa lo u se r e n a : " T u p r e sse n t e s o q u e v e m . T r a n c a t r íp lice d ia n t e d e t i e

i n vi s i b i li d a d e - p a r a o i n fe r n o c o m t eu s p r e s s e n t im e n t o s e s e n t im e n t o s ! T u ao

m e n o s n ã o n o s a m a s, p o r t a n t o s a ím o s m e n o s ca r o s e m fica r d o q u e as p esso as

q u e se r e vo l ve m e m t e u a m o r e p a c iê n c ia e fa z e m d e t i u m b o b o ".

"M e u s m o r t o s , p a r e c e - m e q u e falais m i n h a lin gu a ge m ".

Re s p o n d e u - m e e la c o m i r o n i a : "Am a r as p esso as - e t u ! Q u e e n ga n o ! Is t o

sign ific a a p e n a s q u e d esejas fu gir d e t i m e s m o . O q u e ist o a p r o ve it a às p essoas?

T u as se d u z e s e i n c i t a s à m e g a l o m a n i a à q u a l t u s u c u m b e s ".

"M a s s in t o p e n a , m e d ó i, la m e n t o , e u d esejo , t o d a t e r n u r a ge m e , m e u c o r a -

ç ã o t e m a n se io p o r ".

M a s e la , im p a ssíve l: " T e u c o r a ç ã o p e r t e n c e a n ó s . O q u e q u e r e s c o m ele

e n t r e as p essoas? Au t o d e fe s a c o n t r a as p esso as - p a r a q u e a n d e s c o m os p r ó -

p r io s p é s , n ã o c o m as m u le t a s d as p essoas. A s p esso as p r e c i s a m d os d e s p r e t e n -

sio so s, m a s d e s e ja m s e m p r e o a m o r o s o p a r a p o d e r e m fu gir d e si m e s m a s . Is t o

d e ve acab ar . P o r q u e vã o os lo u co s p a r a t e r r a s d ist a n t e s e p r e ga m o e va n ge lh o

aos n e gr o s, q u e eles m e s m o s r i d i c u l a r i z a m e m se u p a ís? C o m o p o d e m esses

clé r igo s h ip ó c r it a s fa la r d e a m o r , a m o r d e D e u s e aos ser es h u m a n o s , q u a n d o

p r o va m c o m o m e s m o e va n ge lh o o d i r e i t o d a g u e r r a e d a in ju s t iç a assassin a?

C o m o p o d e m e n s i n a r os o u t r o s, se eles m e s m o s e s t ã o e n t e r r a d o s a t é o p e s c o ç o

n a l a m a p r e t a d o e m b u s t e e a u t o e n g a n a ç ã o ? Se r á q u e l i m p a r a m s u a p r ó p r i a

casa? Se r á q u e r e c o n h e c e r a m se u p r ó p r i o d e m ó n i o e o e xp u ls a r a m ? Pe lo fat o

d e n ã o fa z e r e m n a d a d isso , p r e ga m o a m o r p a r a p o d e r e m fu gir d e si m e s m o s ,

p a r a fa z e r ao o u t r o o q u e d e ve r i a m fa z e r a s i m e s m o s . M a s o a m o r t ã o e xa lt a d o ,

d i r e c i o n a d o p a r a o p r ó p r i o s i - m e s m o , q u e i m a c o m o fogo. I s t o o p e r c e b e r a m

esses h ip ó c r it a s e m e n t i r o s o s - t a m b é m t u - e p r e fe r i r a m a m a r os o u t r o s. I s t o
432 AP RO FU N D AM EN T O S

é a m o r ? I s t o é h i p o c r i s i a m e n t i r o s a 5 6 . E m t i m e s m o c o m e ç a s e m p r e , e m t o d as

as co isa s e so b r e t u d o c o m o a m o r . Ac r e d i t a s q u e a lg u é m q u e se p r e ju d i c a i m -

p ie d o s a m e n t e a s i m e s m o va i fa z e r o b e m ao o u t r o c o m se u a m o r ? N ã o , c e r -

t a m e n t e n ã o o cr ê s. Sab es i n c l u s i ve q u e c o m isso ele só e n s i n a ao o u t r o c o m o

n ó s d e ve m o s p r e ju d i c a r a n ó s m e s m o s , a f i m d e p o d e r fo r ç a r a m a n ife s t a ç ã o d a

c o m p a i xã o d o s o u t r o s. P o r isso d e ve s ser s o m b r a , p o is é d isso q u e p r e c i s a m as

p essoas. C o m o p o d e m l i b e r t a r - s e d a h i p o c r i s i a e l o u c u r a d e se u a m o r , se t u n ã o

o p o d e s? P o is t u d o c o m e ç a e m t i m e s m o . M a s t e u ca va lo a i n d a n ã o co n se gu e

d e i xa r d e r e lin c h a r . P i o r a in d a , t u a vi r t u d e é u m a b a n a r d e r a b o d e c a c h o r r o ,

u m r e s m u n ga r d e c a c h o r r o , u m l a m b e r d e c a c h o r r o , u m l a t i r d e c a c h o r r o , e ist o

t u c h a m a s d e a m o r às p essoas! M a s a m o r é: ca r r e ga r e s u p o r t a r a si m e s m o . E

a s s im q u e c o m e ç a . T r a t a - s e n a ve r d a d e d e t i ; a i n d a n ã o fo st e c a lc in a d o ; o u t r o s

fogos a i n d a p r e c i s a m s o b r e vir a t i , a t é q u e t e n h a s a p r e n d i d o a a c e it a r e a m a r

t u a so lid ã o .

"P o r q u e p e r gu n t a s p e lo a m o r ? O q u e é o a m o r ? Vi v e r so b r e t u d o , ist o é

m a is q u e a m o r . A g u e r r a é a m o r ? T u a i n d a d e ve s ve r p a r a o q u e o a m o r às p e s-

soas é s u fic ie n t e m e n t e b o m - u m m e i o c o m o t o d o s os o u t r o s m e io s . P o r isso

so b r e t u d o so lid ã o , a t é q u e t o d a a b r a n d u r a co n t igo m e s m o se t e n h a q u e im a d o .

P r e cisa s a p r e n d e r o c o n g e l a m e n t o " 5 7 .

"Só ve jo se p u lt u r a s d ia n t e d e m i m " , r e s p o n d i, "q u e vo n t a d e m a l d i t a e st á

so b r e m i m ? "

"A vo n t a d e d e D e u s , q u e é m a is fo r t e d o q u e t u , se r vo , vaso. Ca í s t e n a s m ã o s

d o m a io r . El e n ã o c o n h e ce c o m p a i xã o . Vo ssa s m á s c a r a s cr ist ã s c a ír a m , os vé u s

q u e ce ga va m vo sso s o lh o s. O D e u s fic o u d e n o vo fo r t e . O ju go d o s h o m e n s é

m a is le ve q u e o ju go d e D e u s , p o r isso c a d a q u a l q u e r i m p o r u m ju go ao o u t r o

p o r c o m p a i xã o . M a s q u e m n ã o c a i n as m ã o s d o s h o m e n s , s u c u m b e ao D e u s .

Fe l i z d e le e a i d ele! N ã o h á sa íd a !"

$6 Jung foi crítico dos missionários cristãos (cf. "O problema psíquico do homem moderno", 1931. O C , 10,
§ 18 5 ) .
57 O Livro Negro 5, continua: [A falecida]: "depois que o demónio te precedeu. Agora não é tempo de amor,
mas de ação"./ / [Eu ]: "O que estás dizendo de ação? Q ue tipo de ação?"/ / [A falecida]: "Tua obra"./ / [Eu ]:
"Como, minha obra? Minha ciência, meu livro?"/ / [A falecida]: "Isto não é teu livro, é o livro. A ciência é
aquilo que fazes. Isto deve ser feito sem tardar. Não há retrocesso, só para frente. Lá pertence teu amor.
Ridículo - teu amor! Tu deves ser capaz de deixar morrer"./ / [Eu ]: "Deixa ao menos mortos ficarem em
torno de m im "./ / [A falecida]: "Mortos o suficiente, t u estás cercado"./ / [Eu ]: "Não estou percebendo nada
disso"./ / [A falecida]: "Tu vais percebê-los"./ / [Eu ]: "Como? Com o posso fazer isso?"/ / [A falecida]: "Vai
em frente. Tudo vai dar certo. Hoje não, mas amanhã" (p. 116-117).
AP RO FU N D AM EN T O S
433
"I s t o é lib e r d a d e ?", gr it e i.
"A m a i o r lib e r d a d e . Só D e u s so b r e t i , a t r a vé s d e t i m e s m o . Co n s o l a - t e c o m
est e e a q u e le o t a n t o q u a n t o p o d e s. O D e u s c o r r e o fe r r o lh o d e t r a n ca s q u e n ã o
p o d e s a b r ir . D e i x a t e u s s e n t i m e n t o s ga n ir c o m o c a c h o r r i n h o s . N o a lt o e s t ã o
o u vid o s su r d o s".

"M a s n ã o e xist e n e n h u m a r e vo l t a p o r a m o r aos h o m e n s ?"


"Re vo l t a ? T e n h o d e r i r d e t u a r e vo lt a . O D e u s só c o n h e ce p o d e r e cr ia çã o .
El e c o m a n d a e t u fazes. Te u s m e d o s sã o r id íc u lo s . Só e xist e u m a e st r a d a , a e s-
t r a d a d o e xé r c i t o d a d ivin d a d e ".
F o r a m essas p a la vr a s im p ie d o s a s q u e a fa l e c i d a 5 8 m e fa lo u . C o m o e u n ã o
q u ise sse o b e d e ce r a n i n g u é m , t ive d e o b e d e ce r a e st a vo z . E e la fa lo u p a la vr a s
im p ie d o s a s a r e sp e it o d o p o d e r d e D e u s . T i v e d e a ce it a r essas p a la vr a s 5 9 . N ó s
t e m o s d e sa u d a r u m a n o va l u z , u m so l ve r m e l h o - san gu e, u m m ila gr e d o l o r o -
so. N i n g u é m m e o b r iga , só a vo n t a d e a lh e ia c o m a n d a e m m i m , e e u n ã o p o sso
fu gir , p o is n ã o e n c o n t r o r a z ã o p a r a isso.
O so l q u e m e a p a r e c e u fl u t u o u n u m m a r d e sa n gu e e la m e n t o s , p o r isso fa le i
à fa le cid a :

"D e v e se r o sa cr ifício d a a le gr ia ?"


M a s a fa le cid a r e s p o n d e u : " O sa cr ifício d e t o d a a le gr ia , n a m e d i d a e m q u e
a fazes p a r a t i . A a le gr ia n ã o d e ve se r fe it a n e m p r o c u r a d a , e la d e ve v i r q u a n d o
p r e c is a vi r . E u e xi jo t e u se r viço . N ã o d e ve s s e r vi r a t e u d e m ó n i o p e sso a l. I s t o
a c a r r e t a s o fr i m e n t o exager ad o . A ve r d a d e i r a a le gr ia é s im p le s , v e m e e xis t e p o r
si, n ã o é p r o c u r a d a c á o u lá. P o r ca u sa d o p e r igo d e ve r n o i t e e s c u r a d ia n t e d e
t i , t e n s d e d e d ic a r t e u s e r viç o a m i m e n ã o p r o c u r a r n e n h u m a a le gr ia . A a le gr ia
n u n c a é p r e p a r a d a d e a n t e m ã o , m a s e xist e p o r s i, o u n ã o e xist e . T u só t e n s a
c u m p r i r t u a o b r iga ç ã o , e n a d a m a is . A a le gr ia v e m d o c u m p r i m e n t o e n ã o d a
a m b iç ã o . E u t e n h o o p o d er . E u o r d e n o , t u o b e d e ce s".

" E u t e m o q u e t u m e p o ssas d e s t r u i r ". M a s e la r e s p o n d e u : " E u s o u a v i d a q u e


só d e s t r ó i o im p r e s t á ve l. T o m a c u id a d o p a r a n ã o ser es u m i n s t r u m e n t o i m p r e s -
t á ve l. T u m e s m o q u e r e s c o m a n d a r ? Va i s le va r t e u n a vio a u m b a n c o d e a r e ia .
C o n s t r ó i t u a p o n t e , p e d r a so b r e p e d r a , m a s n ã o q u e ir a s c o m a n d a r u m n a vio .

58 O esboço manuscrito de "Aprofundamentos" tem "alma" (p. 4 9 ) , e o parceiro do diálogo nesta seção é mudado
da alma para a falecida.
59 20 de dezembro de 1915.
AP RO FU N D AM EN T O S
434
T u t e d e sn o r t e a st e e t e d e sn o r t e ia s se q u ise r e s fu gir d e m e u se r viço . Se m m i m
n ã o h á sa lva çã o . O q u e so n h a s e p o r q u e h e sit a s?"

Re s p o n d i : " T u vê s q u e e s t o u cego e n ã o se i o n d e c o m e ç a r ".


"I s s o c o m e ç a s e m p r e n o p r ó xi m o . O n d e e s t á a Igr e ja ? O n d e e s t á a c o m u -
n id a d e ?"
" E c l e m ê n c i a p u r a ", g r i t e i i r r i t a d o , "o q u e falas d e u m a Igr e ja . So u p o r acaso
u m p r o fe t a ? C o m o p o d e r i a a r r o g a r - m e s e m e lh a n t e co isa? So u a p e n a s u m se r
h u m a n o q u e n ã o t e m o d i r e i t o d e q u e r e r sa b e r t u d o m e l h o r d o q u e os o u t r o s ".
M a s e la r e t r u c o u : " E u q u e r o a Igr e ja , e la é n e c e s s á r ia p a r a t i e p a r a os o u t r o s.
O q u e m a is q u e r e s fa z e r c o m a q u e le s q u e e u c u r vo a t e u s p é s? O b e lo e o n a t u -
r a l vã o a ch e ga r -se ao h o r r e n d o e e scu r o e vã o m o s t r a r c a m i n h o s . A I g r e ja é algo
n a t u r a l. A c e r i m ó n i a sa gr a d a p r e c is a ser d e sa t a d a e t o r n a r - s e e sp ír it o . A p o n t e
d e ve le va r p a r a a lé m d o h u m a n o 6 0 , in t o c á ve l, d is t a n t e e a r e ja d a . Ex i s t e u m a c o -
m u n i d a d e d o s e s p ír it o s , fu n d a d a so b r e sin a is e xt e r io r e s c o m s e n t id o segu r o ".
"P a r a ", gr it e i, "is t o n ã o é p a r a e n t e n d e r , é in c o n c e b íve l".
M a s e la c o n t i n u o u : "Vó s t e n d e s n e ce ssid a d e d a c o m u n h ã o c o m os m o r t o s e
os m o r t o s t a m b é m . N ã o t e m i s t u r e s c o m n e n h u m m o r t o , m a s a fa st a -t e d eles e
d á a c a d a u m o q u e lh e p e r t e n c e . O s m o r t o s p e d e m vo ssas o r a ç õ e s d e e xp i a ç ã o ".
D e p o i s d e d i z e r essas p a la vr a s, l e va n t o u s u a vo z e c o n c l a m o u os m o r t o s e m
m eu n om e:
"M o r t o s , e u vo s co n vo co .
So m b r a s d o s q u e p a r t i r a m , vó s q u e sa íst e s d o t o r m e n t o d a vi d a , a p r o x i -
m a i - vo s !
M e u san gu e, o su co d e m i n h a vi d a , se ja vo s s a c o m i d a e vo ssa b e b id a .
Al i m e n t a i - v o s d e m i m , p a r a q u e t e n h a is v i d a e fala.
Vi n d e , vó s t e n e b r o so s e s e m p a z , v o u r e a n i m a r - vo s c o m m e u san gu e, o s a n -
gu e d e u m vi ve n t e , p a r a q u e t e n h a is v i d a e fa la e m m i m e a t r a vé s d e m i m .
O D e u s m e o b r iga a d i r i g i r - vo s e st a o r a ç ã o p a r a q u e ga n h e is vi d a . Já vo s
d e i xa m o s só s p o r t e m p o d e m a is.
Va m o s e st a b e le ce r ju n t o s a a lia n ç a d a c o m u n i d a d e p a r a q u e a figu r a v i v a e
m o r t a se t o r n e u m a só e q u e o p a ssa d o c o n t i n u e a vi ve r n o p r e se n t e .
N o s s a a m b i ç ã o n o s a r r e b a t a p a r a o m u n d o d os vivo s , e n ó s e st a m o s p e r d i -
d os e m n o ssa a m b i ç ã o ;

6o Cf. nota 8, p. n o .
AP RO FU N D AM EN T O S
435
Vi n d e b e b e r d o sa n gu e vivo , b e b e i a t é a sa cie d a d e , p a r a q u e fiq u e m o s livr e s

d a fo r ç a in e xt in g u íve l e i m p i e d o s a d e n o ssa a m b i ç ã o v i v a p e lo visíve l, p a lp á ve l

e a t u a lm e n t e e xis t e n t e .

Be b e i d e n o sso sa n gu e d a a m b iç ã o , q u e ge r a m a ld a d e s c o m o gu e r r a , d i s c ó r -

d ia , fe iu r a , vi o lê n c i a e in s a c ia b ilid a d e .

T o m a i e c o m e i , est e é m e u c o r p o q u e vi ve p a r a vó s . T o m a i e b e b e i, est e é

m e u sa n gu e cu jo d e se jo flui p o r vó s .

Ap r o x i m a i - v o s e c e le b r a i u m a c e ia c o m igo p a r a m i n h a e vo ssa r e d e n ç ã o .

E u p r e c is o d a c o m u n i d a d e co n vo sco , p a r a q u e n ã o s u c u m b a à c o m u n i d a d e

d o s vivo s , à m i n h a e vo ssa c o b i ç a q u e d e se ja in s a c ia ve lm e n t e e p o r isso ge r a

m a ld a d e .

Aj u d a i - m e a n u n c a e sq u e ce r q u e m e u d e se jo e fogo s a c r ific ia l é p o r vó s .

Vó s so is m i n h a c o m u n i d a d e . E u vi vo p a r a os vivo s a q u ilo q u e p o sso vive r .

M a s o s u p é r flu o d e m i n h a a m b i ç ã o p e r t e n c e a vó s , so m b r a s. N ó s p r e c is a m o s

d e vo ssa v i d a e m c o m u m .

Se d e - n o s p r o p í c i o s e a b r i n o sso e s p ír it o t r a n ca d o , p a r a q u e n o s t o r n e m o s

p a r t ic ip a n t e s d a l u z r e d e n t o r a . Q u e a s s im se ja !"

Q u a n d o a fa le cid a t e r m i n o u e st a o r a çã o , vo lt o u - s e n o va m e n t e p a r a m i m e

d isse:

"G r a n d e é a n e ce ssid a d e d o s m o r t o s . O D e u s n ã o p r e c is a d e n e n h u m a o fe r -

t a d e o r a çã o . E l e n ã o t e m fa vo r n e m d esfavor . E l e é b o n d o s o e t e m íve l, m a s n ã o

é b o n d o s o e t e m íve l, p o r é m vo s p a r e ce a ssim . M a s os m o r t o s o u ve m vo s s a o r a -

çã o , p o is a i n d a sã o d e n a t u r e z a h u m a n a e n ã o e st ã o livr e s d e fa vo r e d esfavor .

N ã o e n t e n d e s isso ? A h is t ó r ia d a h u m a n i d a d e é m a is ve l h a e m a is sá b ia d o q u e

t u . H o u v e a lgu m a ve z a lg u m t e m p o e m q u e os m o r t o s n ã o e r a m ? Le d o e n ga n o !

Fa z p o u c o t e m p o q u e as p esso as c o m e ç a r a m a e sq u e ce r os m o r t o s e p e n s a va m

q u e h a v i a m c o m e ç a d o s o m e n t e a go r a a ve r d a d e i r a vi d a e e n t r a r a m e m d e lír io ".

{5} D e p o i s q u e a fa le cid a p r o n u n c i o u t o d a s essas p a la vr a s, d e sa p a r e ce u . E u

m e r g u l h e i e m t r i s t e z a e s o m b r i a co n fu sã o . Q u a n d o l e va n t e i n o va m e n t e os

o lh o s, v i m i n h a a l m a n o s e s p a ç o s su p e r io r e s, p a ir a n d o i l u m i n a d a p e lo b r i l h o

d is t a n t e d a d i vi n d a d e 6 1. G r i t e i :

61 8 de janeiro de 1916. Este parágrafo não está no Livro Negro 5.


AP RO FU N D AM EN T O S
436
" T u sab es o q u e a co n t e ce u . Vê s , ist o u lt r a p a ssa a fo r ç a e c o m p r e e n s ã o d e
u m a p essoa. M a s v o u a c e it á - lo p o r a m o r a t i e a m i m . Se r c r u c ific a d o n a á r vo r e
d a vi d a , ó a m a r gu r a ! O silê n cio d o lo r o so ! N ã o fosses t u , m i n h a a lm a , q u e t ocas
o c é u í g n e o e a p l e n i t u d e e t e r n a , o q u e s e r ia d e m i m ?
E u m e la n ç o às fer as h u m a n a s - ó t o r m e n t o m a is i n u m a n o ! T e n h o d e fa -
z e r c o m q u e m i n h a vi r t u d e , m i n h a m e l h o r ca p a cid a d e s e ja m a ç o it a d a s p o r q u e
t a m b é m elas a i n d a sã o e s p in h o n o o lh o d o a n i m a l h u m a n o . N ã o m o r t e c o m a
m a i o r b o a vo n t a d e , m a s s u ja m e n t o e d ila c e r a ç ã o d o m a is b e lo p o r a m o r à vi d a .
Se r á q u e n ã o e xist e e m p a r t e a lgu m a u m a ilu sã o sa lu t a r p a r a p r o t e g e r - m e
d a c e ia c o m o c a d á ve r ? O s m o r t o s q u e r e m vi ve r d e m i m .
P o r q u e m e co n sid e r a st e c o m o a q u e le q u e d e ve b e b e r o e s t r u m e liq u e fe it o
d a h u m a n id a d e qu e esco r r eu d o cr ist ia n ism o ?
Ó m i n h a a lm a , n ã o b a st a p a r a t i a c o n t e m p l a ç ã o d a p le n i t u d e d o fogo?
Q u e r e s a i n d a s u b i r t o t a lm e n t e p a r a a l u z b r a n c a e in c a n d e s c e n t e ? P a r a d e n t r o
d e q u a l s o m b r a d e h o r r o r t u m e e m p u r r a s p a r a b a ixo ? O lo d a ç a l d o d e m ó n i o
n ã o é t ã o p r o fu n d o q u e su a l a m a ch e ga a s u ja r a t é m e s m o t u a r o u p a b r ilh a n t e ?
D o n d e t ir a s o d i r e i t o d e c o m e t e r t a l i n fâ m i a c o m igo ? D e i x a q u e p a sse p o r
m i m o c á lic e d a t e r r í ve l i m u n d í c i e 6 2 . M a s se e st a n ã o fo r t u a vo n t a d e , so b e
a c i m a d o c é u in ca n d e sce n t e e faze t u a q u e ixa e d e r r u b a o assen t o d e D e u s , o
t e r r íve l, a n u n c ia o d ir e it o d os h o m e n s t a m b é m d ia n t e d o s d eu ses e vin ga n eles a
in fâ m ia d a h u m a n id a d e , p o is só os d eu ses co n se gu e m i n c i t a r o h o m e m - v e r m e 6 3
p a r a o a t o giga n t e sco d e h o r r o r . D e i x a q u e e u t e n h a o s u fi c i e n t e c o m m e u
d e s t i n o e d e i xa q u e as p e sso a s a d m i n i s t r e m o d e s t i n o h u m a n o .

Ó m i n h a m ã e h u m a n i d a d e , a fa st a d e t i o h o r r í v e l v e r m e - D e u s , o c a r r a s -
co d a s p e sso a s. N ã o o ve n e r e s p o r c a u s a d e s e u t e r r í ve l v e n e n o - u m a g o t a
b a s t a - e o q u e é u m a go t a p a r a ele? - ele, p a r a q u e m é igu a l t o d a p l e n i t u d e e
t o d o va z i o ?"
M a s q u a n d o p r o n u n c i e i essas p a la vr a s, p e r c e b i q u e O I A H M Q N e st a va a t r á s
d e m i m e q u e m e h a vi a i n s p i r a d o est as p a la vr a s. E l e c o lo c o u - se ao m e u la d o ,
in visíve l, e e u s e n t i a p r e s e n ç a d o b o m e d o b elo . E l e fa lo u - m e c o m vo z m a n s a
e p r o fu n d a :

62 No Getsêmani, Crist o disse: "Pai, se for possível, afasta de m im este cálice, contudo não se faça como eu
quero, mas como tu queres" (Mt 26,39).
63 Cf. Jó 25,6: "quanto menos o homem, esse verme, e o filho de Adão, essa larva?"
AP RO FU N D AM EN T O S
437
64 " T i r a , ó h o m e m , t a m b é m o d i vi n o d e t u a a lm a , t a n t o q u a n t o p o ssíve l.
Q u e fa r sa d e m o n í a c a e la faz co n t igo , a r r o ga n d o - se t e r p o d e r d i vi n o so b r e t i .
E l a é u m a c r ia n ç a m a l c r i a d a e ao m e s m o t e m p o u m d e m ó n i o se d e n t o d e s a n -
gu e, u m a t o r t u r a d o r a s e m igu a l d e p esso as p o r q u e p o s s u i d ivin d a d e . P o r q u ê ?
D e o n d e ? P o r q u e lh e p r e st a s ve n e r a ç ã o . O m e s m o q u e r e m os m o r t o s . P o r q u e
n ã o se c a la m ? P o r q u e n ã o p a s s a r a m p a r a o a lé m . P o r q u e d e s e ja m sa cr ifício s?
P a r a p o d e r e m vive r . M a s p o r q u e a i n d a q u e r e m vi ve r c o m os h o m e n s ? P o r -
q u e q u e r e m d o m i n a r . N ã o se r e a l i z a r a m e m s u a vo r a c id a d e d e p o d e r , u m a ve z
q u e m o r r e r a m c o m o p esso as n a vo n t a d e d e p o d e r . U m a cr ia n ça , u m a n ciã o ,
u m a m u l h e r r u i m , u m e s p ír it o d o s m o r t o s , u m d e m ó n i o sã o ser es q u e q u e r e m
ser m a n t i d o s c o m d is p o s iç ã o . T e m e a a lm a , d e sp r e z a - a , a m a - a , a s s im c o m o aos
d eu ses. O x a l á fi q u e m lo n ge d e n ó s ! M a s p o r t u d o q u e é sa gr a d o n ã o os p e r ca s!
P o is p e r d id o s sã o m a is t r a iç o e ir o s d o q u e as co b r a s, m a is se d e n t o s d e san gu e
d o q u e o t igr e , q u e a t a ca p elas co st a s os in c a u t o s . U m a p e sso a q u e se p e r d e
t o r n a - s e a n i m a l , u m a a l m a p e r d i d a t o r n a - s e d e m ó n i o . Ag a r r a - t e à a l m a c o m
a m o r , c o m t e m o r , c o m d e sp r e z o , c o m ó d io , s e m p e r d ê - l a d e vis t a . E l a é u m
t e so u r o i n fe r n a l - d i vi n o q u e só p o d e ser gu a r d a d o a t r á s d e p a r e d e s d e fe r r o e
n a c o va m a is p r o fu n d a . E l a s e m p r e q u e r sa ir e i r r a d i a r b e le z a r e lu z e n t e . P r e s t a
a t e n çã o , lo go se r á s t r a íd o ! N u n c a e n c o n t r a m o s u m a m u l h e r m a is in fie l, m a is
a r d ilo sa , m a is p e r ve r s a d o q u e t u a a lm a . C o m o lo u va r o m ila gr e d e s u a b e le z a e
p e r fe iç ã o ? N ã o e s t á e la n o e s p le n d o r d a ju ve n t u d e im p e r e c íve l? Se u a m o r n ã o
é v i n h o i n e b r i a n t e e s u a sa b e d o r ia , e s p e r t e z a a n t i q u í s s i m a d e se r p e n t e ?

P r o t e ge as p esso as d e la e a e la d as p essoas. O u v e s e u l a m e n t o n a p r is ã o
e o q u e e la c a n t a , m a s n ã o a d e ixe s fu gir , e la se t o r n a r á i m e d i a t a m e n t e u m a
p r o s t it u t a . C o m o s e u c ô n ju g e , és a b e n ç o a d o a t r a vé s d e la e n e l a a m a ld iç o a d o .
E l a p e r t e n c e ao g é n e r o d e m o n í a c o d o s a n õ e s e giga n t e s e só t e m p a r e n t e s -
co l o n g í n q u o c o m a r a ç a h u m a n a . Se q u ise r e s e n t e n d ê - l a h u m a n a m e n t e , va is
e n lo u q u e ce r . O e xce sso d e t u a r a iva , d e t e u d e se sp e r o e d e t e u a m o r p e r t e n c e
a e la , m a s t a m b é m só o excesso. Se lh e d e r e s est e excesso , a h u m a n i d a d e se r á
l i b e r t a d a d o elfo. P o is q u a n d o n ã o vê s t u a a lm a , e n t ã o a vê s n o t e u p r ó x i m o e
p o r ca u sa d isso fica r á s fu r io so , p o is est e m i s t é r i o d e m o n í a c o e e st e fa n t a s m a d o
i n fe r n o m a l p o d e m se r c o m p r e e n d i d o s .

6 4 10 de janeiro de 1916.
AP RO FU N D AM EN T O S
438
O b s e r v a o ser h u m a n o fr a co e m su a m is é r ia e t o r m e n t o , q u e os d e u se s e s-

c o l h e r a m p a r a s u a ca ça se lva ge m - r asga o vé u c h e io d e sa n gu e q u e a a l m a p e r -

d i d a t e c e u e m t o r n o d o ser h u m a n o , a r e d e h o r r e n d a q u e a p o r t a d o r a d a m o r t e

t r a n ç o u , e t o m a c o n t a d a p r o s t i t u t a d i vi n a q u e a i n d a n ã o p o d e r e c u p e r a r - s e d e

se u p e ca d o o r i g i n a l e q u e b u s c a a vid a m e n t e i m u n d í c i e e p o d e r c o m fa scin a çã o

e n lo u q u e c id a . P r e n d e - a c o m o u m a ca d e la n o cio , q u e go st a r ia d e m i s t u r a r se u

sa n gu e n o b r e c o m q u a lq u e r vi r a - l a t a . C a p t u r a - a , fi n a l m e n t e já é o b a st a n t e .

D e i x a - a p r o va r d e t e u s t o r m e n t o s p a r a q u e e la ch e gu e a s e n t i r o se r h u m a n o e

se u m a r t e l o q u e ele a r r e b a t o u d o s d e u s e s 6 5 .

Q u e n o m u n d o d as p esso as d o m i n e o ser h u m a n o . Su a s le is p r e t e n d e m v a -

ler. N ã o t r a t e s as a lm a s, os d e m ó n i o s e d e u se s se gu n d o s u a m a n e i r a , t r a z e n d o o

e xigid o . M a s n ã o ca r r e gu e s n e n h u m a p e sso a c o m isso, n ã o e xija s e n ã o e sp e r e s

n a d a d e la d a q u ilo c o m q u e t e e n g a n a m t eu s d e m ó n i o s e t e u s d e u se s d a a lm a ,

m a s s u p o r t a , c a la e faze p i a m e n t e o q u e c o r r e s p o n d e à t u a e sp é cie . N ã o d e ve s

agir n o o u t r o , m a s e m t i , a n ã o se r q u e o o u t r o p e ç a a ju d a o u o p in iã o . En t e n d e s

o q u e o o u t r o faz? N u n c a — c o m o o p o d e r ia s? D o n d e t ir a s o d i r e i t o d e o p i n a r

o u a gir so b r e o o u t r o ? T u d e sle ixa st e d e t i m e s m o , t e u j a r d i m e st á c h e io d e e r va

d a n i n h a e t u q u e r e s e n s i n a r o r d e m a t e u v i z i n h o e a p o n t a r - l h e d e fe it o s.

P o r q u e d e ve s ca la r so b r e o o u t r o ? P o r q u e h á o s u fic ie n t e q u e fa la r d e t e u s

p r ó p r i o s d e m ó n i o s . M a s q u a n d o o p in a s e ages so b r e o o u t r o , s e m q u e ele t e n h a

p e d id o o p i n i ã o o u co n se lh o , t u o fazes p o r q u e n ã o co n se gu e s d i fe r e n c i a r - t e d e

t u a a lm a . P o r isso s u c u m b e s à p r e t e n s ã o d e la e a a ju d a s e m s u a p r o s t it u iç ã o .

O u a cr e d it a s q u e d e ve s e m p r e s t a r t u a fo r ç a h u m a n a à t u a a l m a o u aos d eu ses,

o u q u e se ja m e s m o u m a o b r a ú t il e p ie d o sa q u e r e r r e a lç a r n o o u t r o os d eu ses?

Ce go , is t o é p r e t e n s ã o cr ist ã . O s d e u se s n ã o p r e c i s a m d e t u a a ju d a , a d o r a d o r

r id íc u lo d e íd o lo s q u e t e se n t e s a t i m e s m o c o m o u m d e u s e q u e r e s fo r m a r ,

m e lh o r a r , ce n su r a r , e d u ca r e c r i a r p essoas. E s t u m e s m o p e r fe it o ? - P o r isso

fica q u ie t o e faze t u a o b r ig a ç ã o e c o n s i d e r a d i a r i a m e n t e t u a in su ficiê n cia . T u

m e s m o t e n s a m a i o r n e ce ssid a d e d e t u a a ju d a , d e ve s gu a r d a r p r o n t o s p a r a t i

o p i n i ã o e b o m c o n se lh o e n ã o c o r r e r q u a l p r o s t i t u t a p a r a o o u t r o c o m c o m -

p r e e n s ã o e vo n t a d e d e a ju d a r . N ã o p r e cisa s fa z e r o p a p e l d e D e u s . O q u e sã o

os d e m ó n i o s q u e n ã o a t u a m p o r s i p r ó p r io s ? P o r t a n t o , d e i xa q u e a t u e m , m a s

6$ Em PoeticEdda, o gigante Th r ym roubou o martelo do deus Th or.


AP RO FU N D AM EN T O S
439
n ã o a t r a vé s d e t i , s e n ã o és t u m e s m o u m d e m ó n i o n o o u t r o . D e i xa - o s e n t r e -

gu es a s i m e s m o s e n ã o ve n h a s lo go c o m a m o r ca n h e st r o , p r e o c u p a ç ã o , cu id a d o ,

c o n s e lh o e o u t r a s p r e t e n s õ e s . P o is c o m isso fa r ia s o t r a b a lh o d os d e m ó n i o s , t u

m e s m o t e t o r n a r ia s u m d e m ó n i o e, a s s im , fu r io so . M a s os d e m ó n i o s se a le gr a m

c o m a fú r ia d e p esso as d e sa m p a r a d a s q u e q u e r e m a ju d a r os o u t r o s e d a r - lh e s

co n se lh o . P o r t a n t o fica q u ie t o , c o m p l e t a a m a l d i t a o b r a r e d e n t o r a e m t i m e s -

m o , e n t ã o os d e m ó n i o s t ê m d e esfa lfa r -se eles m e s m o s e t a m b é m t o d o s os t e u s

c o n c i d a d ã o s q u e n ã o se d i fe r e n c i a m d e s u a a l m a e se d e i xa m i m i t a r p e lo s d e -

m ó n i o s . É t e r r íve l a b a n d o n a r - s e aos c o n c i d a d ã o s d e s lu m b r a d o s ? Se r i a t e r r íve l

se p u d e sse s a b r ir os seu s o lh o s. M a s t u só p o d e r ia s a b r i r seu s o lh o s se eles t e

p e d is s e m o p i n i ã o e a ju d a . Se n ã o p e d i r e m , é q u e eles n ã o p r e c i s a m d e t u a a ju d a .

Co n t u d o , se im p u s e r e s a eles a t u a o p in iã o , és u m d e m ó n i o p a r a eles e a u m e n -

t as se u d e s lu m b r a m e n t o , d a n d o - lh e s u m m a u e xe m p lo . C o b r e t u a c a b e ç a c o m

o m a n t o d a p a c iê n c ia e d o silê n cio , s e n t a - t e e d e i xa q u e o d e m ó n i o e xe cu t e su a

o b r a . Se ele p r o d u z i r a lgu m a co isa , p r o d u z i r á c o is a m a r a vilh o s a . A s s i m e st á s

se n t a d o d e b a ixo d e u m a á r vo r e fr u t ífe r a .

E b o m sab er es q u e os d e m ó n i o s go s t a r ia m d e in s t igá - lo p a r a s u a o b r a , q u e

n ã o é a t u a . E t u , e s t ú p id o , a cr e d it a s q u e sejas t u m e s m o , e q u e ist o se ja t u a o b r a .

P o r q u ê ? P o r q u e n ã o co n se gu e s d i fe r e n c i a r - t e d e t u a a lm a . M a s t u és d ife r e n t e

d e la , n ã o t e n s d e p r o m o ve r a p r o s t it u iç ã o c o m o u t r a s a lm a s, c o m o se t u m e s m o

fosses u m a a lm a , m a s t u és u m a p e sso a i m p o t e n t e q u e p r e c is a d e t o d a s u a fo r ça

p a r a o a p e r fe i ç o a m e n t o p r ó p r io . P o r q u e o lh a s p a r a os o u t r o s? O q u e vê s n e le s,

e st á n e glige n cia d o e m t i . D e ve s se r o gu a r d a d ia n t e d a p r is ã o d e t u a a lm a . T u és

o e u n u c o d e t u a a l m a , q u e a p r o t e ge d o s d e u se s e d o s h o m e n s , o u q u e p r o t e ge

os d e u se s e os h o m e n s d e la . A o h o m e m fr a co é d a d o o p o d e r , u m ve n e n o q u e

p a r a l i s a a t é m e s m o os d e u se s, a s s i m c o m o à p e q u e n a a b e lh a , m u i t o i n fe r i o r a

t i e m fo r ç a , é d a d o u m fe r r ã o ve n e n o s o e d o lo r o s o . T u a a l m a p o d e r i a a p o d e -

r a r - s e d e sse ve n e n o e a s s im t o r n a r - s e p e r igo sa a t é m e s m o aos d eu ses. P o r t a n t o

c u i d a d a a lm a , d ife r e n c ia - t e d e la , p o is n ã o só t e u s c o n c i d a d ã o s , m a s t a m b é m os

d e u se s p r e c i s a m vi ve r ".

Ap ó s O I A H M Q N t er t e r m in a d o , d ir igi- m e à m i n h a a lm a qu e, d u r a n t e o

d i s c u r s o d e O I A H M Q N , se h a v i a a p r o x i m a d o d o a lt o e l h e fa le i:

"Es c u t a s t e b e m o q u e O I A H M Q N d isse ? Ag r a d a - t e e st e t o m ? G o s t a s d e

se u co n se lh o ?"
AP RO FU N D AM EN T O S
44o
M a s e la d isse: " N ã o z o m b e s , s e n ã o m a c h u c a s a t i m e s m o . N ã o t e e sq u e ç a s
d e m e a m a r ".

"Si n t o d ific u ld a d e e m c o a d u n a r ó d i o e a m o r ", r e s p o n d i. E l a d isse: " E u e n -


t e n d o , m a s t u sab es q u e é a m e s m a co isa , ó d i o e a m o r sã o in d ife r e n t e s p a r a
m i m . C o m o a t o d a m u l h e r d e m i n h a e s p é c ie , i m p o r t a - m e m e n o s a fo r m a e
m u i t o m a is q u e t u d o se ja m e u e d e m a is n i n g u é m . T e n h o i n ve ja t a m b é m d a
le b r e q u e d á s aos o u t r o s. E u q u e r o t u d o , p o is p r e c iso d e t u d o p a r a a gr a n d e v i a -
ge m q u e p r e t e n d o fa z e r d e p o is d e t e u d e sa p a r e c im e n t o . P r e c is o p r o vi d e n c i a r
t u d o a t e m p o . At é lá t e n h o d e e st a r a p a r e lh a d a e a i n d a fa lt a m u i t a co isa ".

" E t u c o n c o r d a s q u e e u t e la n c e n a p r is ã o ?", p e r gu n t e i.
"N a t u r a l m e n t e ", r e s p o n d e u e la , "lá t e n h o sossego e p o sso r e c o l h e r - m e . T e u
m u n d o h u m a n o m e t o r n a é b r ia - t a n t o sa n gu e h u m a n o - e u p o d e r i a e m b r i a -
g a r - m e d e le a t é o d e lír io . P o r t a s d e fe r r o , p a r e d e s d e p e d r a , e s c u r id ã o fr ia e
c o m i d a q u a r e s m a l - ist o é a d e líc ia d a r e d e n ç ã o . N ã o p r e sse n t e s m e u t o r m e n -
t o, q u a n d o a e m b r ia gu e z d e sa n gu e t o m a c o n t a d e m i m , m e la n ç a s e m p r e d e
n o vo n a m a t é r i a vi va a p a r t i r d e u m a t e r r íve l c o m p u l s ã o c r i a t i va q u e o u t r o r a
m e a p r o xi m o u d o i n a n i m a d o e q u e a c e n d e u e m m i m o t e r r íve l d e se jo d e p r o -
cr ia çã o . Afa s t a - m e d o e le m e n t o c o n c e p t ivo , d o fe m i n i n o a r d e n t e d o gr a n d e
va z io . Fo r ç a - m e p a r a a e s t r e it e z a o n d e e n c o n t r o r e s is t ê n c ia e m i n h a p r ó p r i a
le i. O n d e p o ssa p e n s a r n a via g e m , n o n a sce r d o so l d o q u a l a fa le cid a fa lo u e
n a s asas d e o u r o q u e se a g it a m e e c o a m . Re c e b e o a gr a d e c im e n t o — q u e r ia s
a gr a d e ce r - m e ? Est á s d e slu m b r a d o . Exp r e s s o - t e m e u m a i o r a gr a d e c im e n t o ".

En c a n t a d o c o m essas p a la vr a s, e xc la m e i: "C o m o és d i vi n a m e n t e b e la !" M a s


ao m e s m o t e m p o fui t o m a d o d e r a i va 6 6 : " O a m a r gu r a ! T u m e a r r a st a st e a t r a vé s
d e u m i n fe r n o d e ilu sõ e s, m e m a r t i r i z a s t e s i m p le s m e n t e a t é a m o r t e — e e u
e s t o u á vi d o d e t e u a gr a d e cim e n t o . Si m , e s t o u s e n s ib iliz a d o p e lo fat o d e m e
agr ad ecer es. A n a t u r e z a c a n i n a e s t á e m m e u san gu e. P o r isso s o u a m a r go - n o
q u e m e d i z r e sp e it o , p o is - o q u e ist o t e s e n s ib iliz a ! E s d i vi n a e d e m a s ia d a -
m e n t e gr a n d e , c o m o q u e r q u e sejas. E u s o u a p e n a s t e u p o r t e i r o ca st r a d o , n ã o
m e n o s p r e so d o q u e t u . Fa la , c o n c u b i n a d o cé u , m o n s t r o d i vi n o ! N ã o t e p e sq u e i
d o b r e jo ? O q u e t e p a r e ce o b u r a c o e scu r o ? Fa la s e m san gu e, c a n t a c o m fo r ç a
p r ó p r ia , e n go r d a st e o s u fic ie n t e n a s p essoas?

6 6 I I de janeiro de 1916.
AP RO FU N D AM EN T O S 441

M i n h a a l m a se c o n t o r c e u , r e vi r o u - s e q u a l ve r m e p isa d o e gr it o u : M i s e r i c ó r -

d ia , t e m p ie d a d e !"

"C o m p a i x ã o ? Já t ive st e a lg u m a ve z c o m p a i xã o d e m i m ? T u , t o r t u r a d o r a d e

a n im a is ! N u n c a p a ssa st e a lé m d e u m c a p r ic h o co m p a ssivo . Vi ve s t e d e d e vo r a r

p esso as e b e b e st e m e u san gu e. Fic a s t e go r d a c o m isso? Ap r e n d e r á s a t e r r e s p e i-

t o d ia n t e d o s o fr i m e n t o d o a n i m a l h u m a n o ? O q u e d e se ja is vó s , a lm a s e d eu ses,

s e m as p essoas? P o r q u e e xigis s e m p r e m a is d elas? Fa la , p r o s t i t u t a !"

E l a so lu ç o u : "P e r c o a fala. E s t o u h o r r o r i z a d a c o m t u a q u e ixa ".

"D e s e ja r i a s fica r sé r ia ? Q u e r i a s r e fle t ir u m p o u co ? Ap r e n d e r m o d é s t i a o u

a lgu m a o u t r a vi r t u d e h u m a n a ; n a t u r e z a a n í m i c a d e sa lm a d a ? N ã o — t u n ã o t e n s

a lm a , p o r q u e és a p r ó p r i a a lm a , m o n s t r o i n fe r n a l . Go s t a r i a s d e u m a a l m a h u -

m a n a ? D e v o e u p o r acaso t o r n a r - m e t u a a l m a t e r r e n a p a r a q u e r e ce b a s u m a

a lm a ? T u vê s , e u fr e q u e n t e i a t u a e sco la . Ap r e n d i c o m o n ó s n o s c o m p o r t a m o s

c o m o a lm a , e xe m p l a r m e n t e a m b í g u a , m i s t e r i o s a m e n t e m e n t i r o s a e h ip ó c r it a ".

En q u a n t o fa la va essas co isa s à m i n h a a lm a , O I A H M Q N fi c o u p a r a d o a c e r t a

d ist â n cia . M a s a go r a a p r o xi m o u - s e , c o lo c o u a m ã o so b r e m e u o m b r o e fa lo u

em m e u n om e:

"Be n d i t a sejas, vi r g e m a lm a , lo u va d o se ja t e u n o m e . És a e s c o lh id a e n t r e

as m u lh e r e s . E s a g e n i t o r a d e D e u s . Lo u va d a sejas t u ! H o n r a e gló r ia a t i p a r a

sem p r e!

T u m o r a s e m t e m p l o d e o u r o . D e lo n ge v ê m os p o vo s e t e l o u va m . N ó s , t eu s

se r vo s, e sp e r a m o s t u a p a la vr a .

Be b e m o s v i n h o t in t o , o fe r e c e n d o - t e u m sa cr ifício d e b e b i d a e m m e m ó r i a

d a c e ia d e sa n gu e q u e ce le b r a st e co n o sco .

P r e p a r a m o s u m a g a lin h a p r e t a c o m o o fe r t a d e c o m i d a e m m e m ó r i a às p e s-

soas q u e se a p r o xi m a r a m d e t i .

C o n v i d a m o s n o sso s a m igo s p a r a a c e ia sa cr ificia l, t r a z e m o s co r o a s d e l o u -

r o s e r o sa s e m r e c o r d a ç ã o d a d e s p e d id a q u e ce le b r a st e d e t e u s se r vo s e ser va s

d e so la d o s.

Se ja est e d i a u m a fe st a d e a le gr ia e d e vi d a , e m q u e t u , b e n d it a , in ic ia s o

c a m i n h o d e vo l t a d a t e r r a d o s h o m e n s q u e e n sin a st e a ser a lm a s.

T u segu es o Fi l h o q u e fo i p a r a c i m a e p a r a o a lé m .

T u n o s le va s p a r a c i m a c o m o t u a a l m a e t e co lo ca s d ia n t e d o Fi l h o d e D e u s ,

c o n s e r va n d o t e u d i r e i t o i m o r r e d o u r o c o m o ser a n ím ic o .
442 AP RO FU N D AM EN T O S

A a le gr ia e st á co n o sco , o b e m t e a c o m p a n h a . N ó s t e fo r t a le ce m o s. Es t a m o s
n a t e r r a d o s h o m e n s e vi ve m o s ".
D e p o i s q u e O I A H M Q N t e r m i n o u , m i n h a a l m a o l h o u t r is t e e sa t isfe it a , h e s i -
t a n t e , m a s ap r essad a, p r e p a r o u - se p a r a n o s d e i xa r e s u b ir n o va m e n t e , sa t isfe it a
p e la lib e r d a d e a d q u ir id a . M a s e u a d i vi n h e i algo e st r a n h o n e la , algo q u e e la p r o -
c u r a va e sco n d e r d e m i m . P o r isso n ã o d e i xe i q u e p a r t isse e fa l e i 6 7 :
" O q u e a i n d a t e r e t é m ? O q u e e sco n d e s? T a l ve z u m va so d e o u r o , u m a jo i a
q u e r o u b a st e d os h o m e n s ? N ã o fu lgu r a u m a p e d r a p r e cio sa , u m b r i l h o d e o u r o
a t r a vé s d e t e u m a n t o ? Q u a l é a b e le z a q u e r o u b a st e e n q u a n t o b e b ia s o san gu e
d as p esso as e c o m ia s se u sa gr a d o co r p o ? Fa la a ve r d a d e , p o is ve jo a m e n t i r a e m
t e u r o st o ".

" E u n ã o t i r e i n a d a ", r e s p o n d e u e la d e p r o n t o .

" T u m e n t e s , q u e r e s i n c r i m i n a r a m i m o n d e t u co m e t e st e u m e r r o . P a sso u
o t e m p o e m q u e r o u b a va s i m p u n e as p essoas. D e vo l ve t u d o q u e é h e r a n ç a s a -
gr a d a d elas e d e q u e t e ap ossast e. Ro u b a s t e o se r vo e o m e n d igo . D e u s é r i c o e
p o d e r o so , d e le p o d e s t ir a r . Su a r i q u e z a n ã o c o n h e ce p e r d a . M e n t i r o s a in fa m e ,
q u a n d o fi n a lm e n t e va is p a r a r d e a t o r m e n t a r t u a h u m a n i d a d e e d e r o u b a r ?"
E l a m e o l h o u c o m a q u e le o lh a r in o c e n t e d e p o m b a e d isse c o m b r a n d u r a :
" E u n ã o t e i n c r i m i n e i . E u t e q u e r o m u i t o b e m . Re s p e i t o t e u d ir e it o . Va l o -
r i z o t u a h u m a n i d a d e . N ã o t i r o n a d a d e t i . N ã o o c u lt o n a d a d e t i . T u p o ssu is
t u d o e e u n a d a ".

E u fa le i: "M e n t e s d e sa ve r go n h a d a m e n t e . P o ssu is n ã o só a q u e la p e ç a m a g n í -
fica q u e m e cab e, m a s t e n s, a lé m d isso , acesso aos d e u se s e à p le n i t u d e e t e r n a .
P o r isso, d e vo lve , e n ga n a d o r a ".

En t ã o e la fi c o u i r r i t a d a e r e s p o n d e u :
" C o m o t e a t r e ve s? N ã o t e c o n h e ç o m a is . Es t á s c o m p l e t a m e n t e lo u c o e m a is:
e st á s se n d o r id ícu lo , u m filh o t e d e m a ca co q u e e st e n d e s u a m ã o p a r a t u d o o
q u e b r i l h a . M a s e u n ã o d e ixo q u e t i r e m o q u e é m e u ".

C h e i o d e r a iva , gr it e i: "M e n t e s , m e n t e s , e u v i o o u r o , a l u z fu lgu r a n t e d a jo ia ,


e u se i, is t o é m e u . N ã o h a ve r á s d e ca r r e ga r ist o e m b o r a . D e vo l ve !"
E l a d e sa t o u e m c h o r o t e im o s o e d isse: " N ã o v o u d e vo lvê - lo , é m u i t o p r e c i o -
so p a r a m i m . Q u e r e s r o u b a r - m e o ú l t i m o e n fe it e ?"

6 7 13 de janeiro de 1916. O parágrafo precedente não ocorre no Livro Negro 5.


AP RO FU N D AM EN T O S
443
"En fe i t a - t e c o m o o u r o d o s d eu ses, m a s n ã o c o m as r a r a s p r e cio sid a d e s d as
p essoas q u e m o r a m n a t e r r a . D e ve s e xp e r i m e n t a r a p o b r e z a celest e, d e p o is q u e
p r e ga st e p o r t a n t o t e m p o a t e u p o vo a p o b r e z a e a n e ce ssid a d e t e r r e n a s , c o m o
u m a u t ê n t i c o e ve r d a d e i r o c lé r igo m e n t i r o s o , q u e e n c h e s u a b a r r ig a e b o ls a e
fa la d e p o b r e z a ".

" T u m e a t o r m e n t a s h o r r i ve l m e n t e ". La m e n t o u - s e ela . "D e i x a - m e ao m e n o s


est a. Vó s , h u m a n o s , t e n d e s b a st a n t e d isso . N ã o p o sso fic a r s e m e st a , i n c o m p a -
r á ve l, e d e vid o a e la a t é m e s m o os d e u se s i n v e j a m os h o m e n s ".
" N ã o s e r e i i n ju s t o ", r e s p o n d i. "M a s d á - m e o q u e m e p e r t e n c e , e va i e s m o la r
o q u e d is t o p r e cisa s. O q u e é> Fa la !"
" E p e n a q u e n ã o p o ssa r e t e r isso e e s c o n d ê - l o ! E a m o r , a m o r h u m a n o c a lo -
r o so , sa n gu e, o sa n gu e ve r m e l h o e q u e n t e , a fo n t e sa gr a d a d a vi d a , a u n i ã o d e
t o d o o se p a r a d o e d e se ja d o ".
E u d isse: "P o r t a n t o é o a m o r d e q u e vo s a p r o p r ia st e s c o m o d e u m d i r e i t o e
p r o p r ie d a d e n a t u r a is , q u a n d o d e ve r íe is e s m o lá - lo . Vó s vo s e m b r ia ga is d o s a n -
gu e d as p esso as e as d e ixa is secar. O a m o r é m e u . E u q u e r o a m a r e n ã o vó s a t r a -
vé s d e m i m . Vó s r a st e ja r e is p a r a fo r a e p o r isso e s m o la r e is c o m o c a c h o r r o s . P o r
ca u sa d isso le va n t a r e is vo ssas m ã o s , a b a n a r e is o r a b o c o m o c a c h o r r o s fa m in t o s .
E u t e n h o a ch a ve . Se r e i u m a d m i n i s t r a d o r m a i s ju s t o d o q u e vó s , d e u se s í m p i o s .
V ó s vo s a p e r t a r e is e m t o r n o d a fo n t e d e sa n gu e, e m t o r n o d o m ila gr e p r o p íc io ,
e t r a r e is co n vo sco vo sso s d o n s p a r a r e ce b e r a q u ilo d e q u e p r e cisa is. E u t o m o
c o n t a d a fo n t e sa gr a d a p a r a q u e n e n h u m d e u s d e la se ap osse. O s d e u se s n ã o
c o n h e c e m m e d i d a n e m gr a ça . Em b r i a g a m - s e c o m as b e b id a s m a is p r e cio sa s.
Am b r ó s i a e n é c t a r 6 8 sã o a c a r n e e o san gu e d as p essoas, ve r d a d e i r a m e n t e u m
a l i m e n t o n o b r e . D i s s i p a m a b e b i d a e m e m b r ia gu e z , o b e m d o p o b r e , p o is eles
n ã o t ê m d e u s n e m a lm a , q u e s e r i a m seu s ju íz e s. Ar r o g â n c i a e i m o d e r a ç ã o , d u -
r e z a e fa lt a d e a m o r sã o vo ssa n a t u r e z a . C o b i ç a p o r a m o r à co b iça , p o d e r p o r
a m o r ao p o d e r , p r a z e r p o r a m o r ao p r a z e r , i m o d e r a ç ã o e in s a c ia b ilid a d e , é n isso
q u e so is r e c o n h e c íve is , d e m ó n i o s .

Si m , a i n d a t e n d e s q u e a p r e n d e r , d ia b o s e d eu ses, d e m ó n i o s e a lm a s, a r a s -
t e ja r n o p ó p o r a m o r ao a m o r , a f i m d e q u e co n siga is a ga r r a r e m a lg u m lu ga r e
ju n t o a a lg u é m u m p o u q u i n h o d a d o ç u r a d a vi d a . Ap r e n d e i d o s h o m e n s h u m i l -
d a d e e o r gu lh o p o r a m o r ao a m o r .

68 Na mitologia grega, ambrósia e néctar eram a comida e a bebida dos deuses.


444 AP RO FU N D AM EN T O S

D e u s e s , vo sso filho p r i m o g é n i t o é o se r h u m a n o . E l e ge r o u p a r a s i u m filho


d e D e u s a ssu st a d o r a m e n t e b e lo - fe io , q u e é t o d a a vo ssa r e n o va ç ã o . M a s est e
m i s t é r i o r e a liz o u - s e t a m b é m e m vó s ; vó s vo s ger ast es u m filho d o h o m e m , q u e
é m i n h a r e n o va ç ã o , n ã o m e n o s m a g n í fi c o - h o r r o r o s o e s u a s o b e r a n ia v a i s e r vi r
t a m b é m a vó s ".
Ap r o x i m o u - s e O I A H M Q N , l e va n t o u s u a m ã o e d i s s e 6 9 :
"Am b o s , D e u s e h o m e m , sã o e n ga n a d o s, e n ga n a d o r e s, a b e n ç o a d o s q u e
a b e n ç o a m , p o d e r o so s s e m p o d e r . N o va m e n t e o t o d o e t e r n o e r i c o se d ivid e
e m c é u d a t e r r a e c é u d o s d eu ses, e m m u n d o s in fe r io r e s e m u n d o s su p e r io r e s.
N o va m e n t e se se p a r a o q u e fo i d o lo r o s a m e n t e u n ific a d o e c o n s t r a n gid o sob
u m ju go só . M u l t i p l i c i d a d e i n t e r m i n á ve l t o m o u o lu ga r d esse u n o c o m p r i m i d o
n u m c o n ju n t o , p o is só a va r ie d a d e é r iq u e z a , flor, floração, c o lh e it a ".

Pa sso u -se u m a n o i t e e u m d i a , e, q u a n d o ch e go u n o va m e n t e a n o i t e e o lh e i
ao m e u r e d o r , v i q u e m i n h a a l m a h e s it a va e e sp e r a va . P o r isso d isse a e la 7 °:
" O q u e h á? A i n d a e st á s aí? N ã o e n c o n t r a s t e t e u c a m i n h o , o u n ã o e n c o n -
t r a st e as p a la vr a s q u e m e p e r t e n c e m ? C o m o ve n e r a s t u a a l m a t e r r e n a , o ser
h u m a n o ? Le m b r a - t e d o q u e s u p o r t e i e s o fr i p o r t i , c o m o m e d esgast ei, c o m o
e st ive p r o s t r a d o d ia n t e d e t i e m e vi r e i , c o m o t e d e i m e u san gu e! T e n h o u m a
r e c la m a ç ã o a fa z e r - t e : d e ve s a p r e n d e r a r e s p e it a r o se r h u m a n o , p o is e u v i a
t e r r a q u e e st á p r o m e t i d a ao se r h u m a n o , a t e r r a o n d e c o r r e le it e e m e l 7 1.

E u v i a t e r r a d o a m o r p r o m e t id o .
E u v i o b r i l h o d o s o l so b r e a q u e la t e r r a .
E u v i as m a t a s ve r d e s, os vi n h e d o s a m a r e lo s e as a ld e ia s d as p essoas.
E u v i as m o n t a n h a s e le va n d o - se ao c é u c o m os c a m p o s su sp e n so s d o filh o
et ern o.

E u v i a fe r t ilid a d e e a fe licid a d e d a t e r r a .

M a s e m lu ga r n e n h u m v i a fe licid a d e d as p essoas.

M i n h a a lm a , t u o b r iga s o h o m e m m o r t a l a t r a b a lh a r e so fr e r p a r a t e u b e m -
- est ar. E x i j o d e t i q u e faças t u a p a r t e p a r a a fe licid a d e t e r r e n a d o se r h u m a n o .
Le m b r a - t e d isso ! Fa lo e m m e u n o m e e e m n o m e d o s ser es h u m a n o s , p o is t u a
é n o ssa fo r ç a e gló r ia . T e u é o r e i n o e n o ssa t e r r a p r o m e t i d a . P o r t a n t o r e a liz a ,

6 9 Esta frase não está no Livro Negro 5.


70 14 de janeiro de 1916. Este parágrafo não está no Livro Negro 5.
71 Em Ex 3, Deus aparece a Moisés na sarça ardente e promete tirar seu povo do Egito e levá-lo a uma terra
onde corre leite e mel.
AP RO FU N D AM EN T O S
445
e m p r e ga n d o t u a p le n it u d e . E u m e c a la r e i, s i m , e u m e p e r d e r e i d e t i , d e p e n d e

d e t i , p o d e s r e a liz a r o q u e é n e ga d o ao se r h u m a n o fazer . Es t o u e sp e r a n d o .

Es fo r ç a - t e p o r e n c o n t r á - lo . O n d e fic a t u a fe licid a d e , se n ã o c u m p r e s t u a o b r i -

ga ç ã o d e t r a z e r a fe licid a d e ao se r h u m a n o ? P e n s a n isso ! T u t r a b a lh a r á s p a r a

m i m , e e u m e ca lo ".

"P o i s b e m ", d isse e la , "vo u p ô r m ã o s à o b r a . M a s t u d e ve s c o n s t r u i r o lu ga r

d o d e r r e t i m e n t o . C o i s a ve lh a , q u e b r a d a , gast a p e lo u so, im p r e s t á ve l e d e s t r u í d a

jo ga n o t a ch o d o d e r r e t i m e n t o , p a r a q u e se r e n o ve e s i r va p a r a n o vo u so.

E t r a d içã o , c o s t u m e d o s p r i m e i r o s p a is, p r á t ic a d e sd e t e m p o s a n t igo s. É

a d a p t a ç ã o a u so n o vo . E p r á t ic a e in c u b a ç ã o n a fo r n a l h a d e fu n d içã o , u m a r e t o -

m a d a d o in t e r io r , d o r e p r e s a m e n t o q u e n t e , o n d e sã o t ir a d a s fe r r u g e m e fr a gi-

lid a d e a t r a vé s d o c a lo r d o fogo. É c e r i m o n i a sagr ad a, a ju d a p a r a m i m , a f i m d e

q u e m i n h a o b r a t e n h a su cesso.

T o c a a t e r r a , a p e r t a t u a m ã o n a m a t é r ia , m o l d a - a c o m cu id a d o . G r a n d e é o

p o d e r d a m a t é r ia . H a p n ã o ve i o d a m a t é r ia ? A m a t é r i a n ã o é o p r e e n c h i m e n t o

d o va z io ? En q u a n t o m o ld a s a m a t é r ia , e u m o l d o t u a fe licid a d e . N ã o d u vid a s

d o p o d e r d e H a p . C o m o p o d e s d u vi d a r d o p o d e r d e su a m ã e , a m a t é r ia ? A

m a t é r i a é m a is fo r t e d o q u e H a p , p o is H a p é o filh o d a t e r r a . A m a t é r i a m a is

d u r a é a m e lh o r , t u d e ve s m o l d a r a m a t é r i a m a is d u r a d o u r a . Is t o d á fo r ç a ao

p en sam en t o.

{6 } E u fiz , c o m o m i n h a a l m a su ge r iu , e m o l d e i n a m a t é r i a os p e n s a m e n t o s q u e

e la m e d e u . E l a m e fa lo u m u i t a s ve z e s e d e m o r a d a m e n t e d a sa b e d o r ia q u e e st á

p o r t r á s d e n ó s 7 2 . M a s u m a n o i t e e la ch e go u d e r e p e n t e c o m o h á lit o d a i n t r a n -

q u ilid a d e e d o m e d o e g r i t o u 7 3 : " O q u e ve jo ? O q u e e sco n d e o fu t u r o ? Fo go

c h a m e ja n t e ? U m fogo n o s ar es e sp e r a - ele se a p r o xi m a - u m a c h a m a - m u i -

t as c h a m a s - u m a m a r a vi l h a q u e n t e - c o m o se i n fl a m a m m u i t a s lu z e s? M e u

a m a d o , é a gr a ça d o fogo e t e r n o - a e xa la ç ã o d o fogo b a i xa so b r e t i !".

72 Cf. Apêndice C, 16 de janeiro de 1916. É um esboço preliminar da cosmologia dos Septem Sermones. A
referência de Jung à elaboração de seus conceitos de alma na matéria parece referir-se à composição do
Systema Munditotius (cf. Apêndice A) . Para um estudo sobre isto, cf. JERO M SO N , B. "Systema Munditotius and
SevenSermons: symbolic collaborators in Jungs confrontation wit h the dead". JungHístory, 1/2, 2 0 0 5- 2 0 0 6 , p.
6-10. • "Th e sources of Systema Munditotius: mandalas, myths and a misinterpretation". JungHistory, 2/ 2,
20 0 7, p. 20 - 22.
73 18 de janeiro de 1916.
AP RO FU N D AM EN T O S
446
M a s e u g r it e i h o r r o r i z a d o : "T e m o c o is a a ssu st a d o r a e t e r r íve l, o m e d o t o m a
c o n t a d e m i m , p o is t e m íve is fo r a m as co isas q u e m e a n u n c ia s t e a n t e s - tudo
d e ve se r q u e b r a d o , q u e im a d o , d e s t r u í d o ?"
"P a c iê n c ia ", d isse e la , e o l h o u fr i a m e n t e p a r a fo r a , "h á fogo so b r e t i , u m m a r
d e c a lo r d e s m e d id o ".
" N ã o m e t o r t u r e s — q u e se gr e d o s h o r r íve is p o ssu is? Fa la , e u t e p e ço . O u
m e n t e s d e n o vo , m a l d i t o e s p ír it o t o r t u r a d o r , m o n s t r o e n ga n a d o r ? O q u e s i g n i -
fi c a m t e u s fa n t a sm a s fr a u d u le n t o s ?"

M a s e la r e s p o n d e u se r e n a : " E u q u e r o t a m b é m t e u m e d o ".
"P a r a q u ê ? P a r a m e t o r t u r a r ?"
M a s e la c o n t i n u o u : "P a r a a p r e s e n t á - l o ao s e n h o r d e st e m u n d o 7 4 . E l e e xige
o sa cr ifício d e t e u m e d o . E l e t e ju lga d ign o d esse sa cr ifício . E l e 7 5 t e é p r o p í c i o ".
"P r o p í c i o a m i m ? O q u e s ign ific a isso? E u go st a r ia d e e s c o n d e r - m e d ele.
M i n h a face t e m e o s e n h o r d esse m u n d o , p o is e la e st á m a r c a d a , t r a z u m s in a l,
e la v i u o p r o ib id o . P o r isso t e m o o s e n h o r d esse m u n d o ".

"M a s t u d e ve s i r à su a p r e s e n ç a ; ele p e r c e b e u o t e u m e d o ".


" T u m e p r o vo ca st e est e m e d o . P o r q u e m e t r a íst e ?"

"Fo s t e c h a m a d o a se u s e r viç o ".


M a s e u r e c l a m e i e d isse: "D e s t i n o t r ê s ve z e s m a ld it o ! P o r q u e n ã o p o d e s
d e i xa r - m e o cu lt o ? P o r q u e ele m e e s c o lh e u p a r a o sa cr ifício ? M i l h a r e s se p r o n -
t i fi c a r a m a ele d e b o a vo n t a d e . P o r q u e ju s t a m e n t e eu ? E u n ã o p osso, e u n ã o
q u e r o ".

M a s a a l m a fa lo u : "T e n s a p a la vr a q u e n ã o p o d e fica r o c u lt a ".


" O q u e sign ifica m i n h a p a la vr a ? É o b a lb u c io d a cr ia n ça , é m i n h a p o b r e z a e
i m p o t ê n c i a , m e u n ã o p o d e r d e o u t r a fo r m a . E é ist o q u e d e se ja s a r r a s t a r p a r a
d ia n t e d o s e n h o r d esse m u n d o ? "

M a s e la o l h o u fi xa m e n t e p a r a lo n ge e d isse: " E u ve jo a su p e r fíc ie d a t e r r a e


fu m a ç a se e st e n d e so b r e e la - u m m a r d e fogo v e m r o la n d o d o n o r t e , i n c e n -
d i a n d o cid a d e s e a ld e ia s, la n ç a - s e so b r e as m o n t a n h a s , a t r a ve ssa o va le , q u e i -
m a as m a t a s - as p esso as d e l i r a m - t u c a m i n h a s d ia n t e d o fogo c o m a r o u p a
q u e i m a d a e o ca b e lo ch a m u sca d o , t eu s o lh o s c o n t e m p l a m t u d o p e r d i d a m e n t e ,

74 O quadro Systema munditotius tem uma legenda ao pé: "Abraxas dominus m undi" [Abraxas o senhor do
mundo].
75 O Livro Negro $, tem: "Abraxas" (p. l 8 l ) .
AP RO FU N D AM EN T O S
447
t u a lín g u a e st á seca, t u a vo z e s t á r o u c a e d is s o n a n t e — c a m i n h a s a p r e ssa d o p a r a
fr e n t e , a n u n c ia s a q u ilo q u e se a p r o xi m a , so b es as m o n t a n h a s , va is a t o d o va le ,
m u r m u r a s p a la vr a s d e p a vo r e a n u n c ia s o t o r m e n t o d o fogo. Ca r r e g a s a m a r c a
d o fogo, e as p esso as fi c a m h o r r o r i z a d a s d ia n t e d e t i . El a s n ã o v e e m o fogo,
n ã o a c r e d i t a m e m t u a s p a la vr a s, m a s ve e m t u a m a r c a e p r e s s e n t e m e m t i , s e m
sab er, o m e n s a ge ir o d o t o r m e n t o q u e a r d e . Q u e fogo? P e r g u n t a m , q u e fogo?
T u gagu ejas, b a lb u cia s, o q u e sab es so b r e o fogo? E u o l h e i as b r asas, v i a c h a m a
in c a n d e s c e n t e . Q u e D e u s n o s salve p a r a o a lé m ".
" M i n h a a l m a ", g r i t e i d e se sp e r a d a m e n t e , "fa la , e xp l i c a - m e o q u e d e vo a n u n -
cia r : o fogo? Q u e fo go ?"
" O l h a p a r a c i m a , vê a c h a m a q u e a r d e so b r e t u a c a b e ç a - o l h a p a r a c i m a , os
cé u s fi c a m ve r m e l h o s ".
C o m essas p a la vr a s, m i n h a a l m a d e sa p a r e ce u .
M a s e u fiq u e i d u r a n t e m u i t o s d ia s n a i n t r a n q u i l i d a d e e co n fu sã o . M i n h a
a l m a se c a lo u e n ã o se p o d i a v ê - l a 7 6 M a s u m a n o it e , u m b a n d o s o m b r i o b a t e u à
m i n h a p o r t a e e u t r e m i d e m e d o . Ap a r e c e u , e n t ã o , m i n h a a l m a e d isse a p r e ssa -
d a m e n t e : "El e s e s t ã o a í e vã o a r r o m b a r t u a p o r t a ".
"Se r á q u e e st a m a n a d a r u i m va i i n va d i r o m e u ja r d i m ? Se r e i sa q u e a d o e
a t ir a d o n a r u a ? T u fazes d e m i m u m m a ca co e b r i n q u e d o d e cr ia n ça s. P o r q u e ,
m e u D e u s , d e vo se r lib e r t a d o d esse i n fe r n o d e lo u co s? M a s e u v o u a ca b a r c o m
vo ssas t r a m a s m a ld it a s , id e p a r a o in fe r n o , m a lu c o s . O q u e q u e r e is c o m igo ?"

M a s e la m e i n t e r r o m p e u e d isse: " O q u e e st á s fa la n d o ? C e d e a p a la vr a à
e s c u r id ã o ".
E u r e t r u q u e i : " C o m o p o sso c o n fia r e m t i? Tr a b a lh a s p a r a t i , n ã o p a r a m i m .
P a r a q u e se r ve s, se n ã o co n se gu e s p r o t e g e r - m e c o n t r a essa c o n fu s ã o d o d ia b o ?"
"F i c a q u ie t o ", d isse e la , "s e n ã o d e s t r ó is a o b r a ".

Q u a n d o d isse essas p a la vr a s, O I A H M Q N a p r o xi m o u - s e d e m i m c o m ve st e
b r a n c a d e sa ce r d o t e e c o lo c o u a m ã o so b r e m e u o m b r o 7 7 . Fa l e i e n t ã o à e s c u r i -
d ã o : "Fa l a i , vó s m o r t o s ". E lo go g r i t a r a m e m u n í s s o n o 7 8 : " N ó s vo l t a m o s d e Je -

76 29 de janeiro de 1916.
77 30 de janeiro de 1916. A frase precedente não ocorre no Livro Negro 5.
78 Sobre o significado dos Sermones que seguem, Jung disse a An iela Jaffé que as discussões com os mortos
formavam o prelúdio àquilo que ele iria posteriormente comunicar ao mundo e que o conteúdo deles
antecipava seus livros posteriores. "Então e a partir de então os mortos vieram a ser para mim, cada vez
mais claramente, as vozes do não respondido, do não dissolvido e não redimido". As perguntas que ele era
solicitado a responder não provinham do mundo circundante, mas dos mortos. Um dos elementos que
AP RO FU N D AM EN T O S
448
r u s a lé m , o n d e n ã o e n c o n t r a m o s o q u e p r o c u r á va m o s 7 9 . P e d im o s e n t r a d a j u n t o
a t i . T u a n sia st e p o r n ó s . N ã o t e u sa n gu e , t u a l u z . É is t o ".
En t ã o O I A H M Q N l e va n t o u su a vo z , d e u - lh e s u m a liçã o e d i s s e 8 0 ( e e st a é a
p r i m e i r a in s t r u ç ã o d o s m o r t o s ) 8 1:

o surpreendeu foi o fato de que os mortos pareciam não saber mais do que sabiam quando morreram.
Seria de presumir que eles haviam alcançado um conhecimento maior. Isto explicava a tendência dos
mortos a invadir a vida e por que, na Ch in a, eventos familiares importantes precisam ser comunicados aos
ancestrais. Ele sentia que os mortos estão esperando as respostas dos vivos (MP, p. 258-259; Memórias, p.
228 ) . Cf. acima nota 135 (p. 151) sobre Crist o pregando aos mortos nos infernos.
79 Cf. acima, p. 297, em que os anabatistas mortos guiados por Ezequiel estavam dirigindo-se a Jerusalém
para rezar nos lugares santos.
8 0 Esta frase não ocorre no Livro Negro 5. Quanto à relação de Filêmon com os Sermones, Jung contou a An iela
Jaffé que ele compreendeu Filêmon nos Sermones. Foi aqui que Filêmon perdeu sua autonomia (MP, p. 25).
81 A versão caligráfica e a versão impressa dos Sermones, feitas por Jung, trazem o subtítulo: "As sete
instruções dos mortos. Escritas por Basilides em Alexan dria, cidade onde o O rien t e toca o Ocidente.
Traduzidas do texto original grego para a língua alemã". Basilides foi um filósofo cristão de Alexan dria,
na prim eira metade do século I I . Pouco se sabe sobre sua vida e de seus ensinamentos subsistiram
apenas fragmentos (e nenhum de seu próprio pun ho), que apresentam um mito cosmogônico. Para os
fragmentos existentes e comentário, cf. LAYT O N , B. (org.). The GnosticScriptures. Nova York: Doubleday,
1987, p. 417-444. De acordo com Ch arles Kin g, Basilides era egípcio de nascimento. An t es de sua
conversão ao cristianismo, "seguiu as doutrinas da gnose orien tal e procurou [...] combinar as doutrinas
da religião cristã com a filosofia gnóstica. [...] Para isso escolheu expressões inventadas por ele e
símbolos criativos" (TheGnosticsandtheirRemains. Londres: Bell and Daldy 1864, p. 33-34). De acordo com
Layton , o mito gnóstico clássico tem a seguinte estrutura: "Ato I . A expansão de um prim eiro princípio
solitário (deus) para um pleno universo (espiritual) não físico. At o I I . Criação do universo m aterial,
incluindo as estrelas, os planetas, a terra e o inferno. At o I I I . Criação de Adão, Eva e seus filhos. At o
IV. História subsequente da raça humana" (ibid., p. 13). Assim , em seu esboço mais amplo, os Sermones
de Jung são apresentados em forma análoga a um m ito gnóstico. Jung trata de Basilides em Aíon (1951).
Cred it a aos gnósticos o mérito de ter encontrado expressões simbólicas adequadas do Self e observa
que Basilides e Valen tim "foram fortemente influenciados pela experiência natural íntima. Por isso eles
são, como os alquimistas, uma verdadeira m in a daqueles símbolos resultantes da evolução posterior
da ação do Evangelho. Mas suas ideias constituem igualmente compensações para a assimetria divin a
introduzida pela doutrina da 'privatio boní', inteiramente na lin h a das conhecidas tendências modernas
do inconsciente de fabricar símbolos de totalidade para transpor a brecha entre a consciência e o
inconsciente [...]" ( O C , 9 / 2, § 4 28 ) . Em 1915, ele escreveu uma carta a um amigo dos seus tempos de
estudante, Ru d olf Lich ten h an , que escrevera um livro intitulado Die Offenbarung ím Gnostícísmus ( 19 0 1) .
Da resposta de Lich ten h an , datada de 11 de novembro, aparece que Jung pedira informações sobre a
concepção de diversos personagens humanos no gnosticismo e sua possível correlação com a distinção
feita por W illiam James entre personagens insensíveis e personagens compassivos ( JA) . Em Memórias,
Jung disse: "De 1918 até 19 26, aproximadamente, eu me ocupara seriamente com os gnósticos, pois
também eles haviam topado com o mundo prim itivo do inconsciente. Haviam -se ocupado com seu
conteúdo e imagens, que notoriamente foram contaminados com o mundo dos in stin tos" (p. 239 ) .
Jung já estava lendo literatura gnóstica no decorrer das leituras preparatórias para Transformações e símbolos
da libido. Houve um extenso corpo de comentários sobre os Septem Sermones, o que proporciona alguma
análise valiosa. No entanto, esses comentários devem ser tratados com cautela, já que abordaram os
Sermones sem a vantagem do Líber Novus e dos Livros Negros e, não menos importante, dos comentários de
Filêmon, que, juntos, proporcionam um esclarecimento contextual crítico. O s estudiosos discutiram
a relação de Jung com o gnosticismo e o Basilides histórico, outras possíveis fontes e paralelos para os
Sermones e a relação dos Sermones com as obras posteriores de Jung. Cf. especialmente M AI LLAR D , C.
Les Septem Sermones aux Morts de Carl Gustav Jung. Nancy: Presses Un iversitaires de Nancy, 1993. Cf. tb. R I BI ,
A. Die Suche nach den eígenen W urzeln: Die Bedeutung von Gn osis, Herm et ik und Alchem ie fúr C G . Jung
und Marie-Louise von Fran z und deren Einfluss auf das moderne Verstãndnis dieser Disziplin . Berna:
AP RO FU N D AM EN T O S 449

"O u vi, pois: Eu com eço n o n ada. O n ada é o m esm o que a plen it u d e. N a
in fin it u d e h á t an t o o ch eio quan t o o vazio. O n ad a é ch eio e vazio. Vó s podeis
t am bém d izer ou t ra coisa do n ada com o, por exem plo, que é bran co ou preto,
que n ão exist e, ou que exist e. U m a coisa et ern a e sem fim n ão t em qualidades,
porque possui todas as qualidades.
"N ó s ch am am os o n ada ou a plen it u d e de Plerom a82. Nele cessam pen sar e ser,
pois o et ern o e sem fim n ão t em qualidades. Nele n ão h á n in gu ém , pois en t ão
seria d ist in t o do Pler om a e t eria qualidades que o d ist in gu em com o algum a
coisa do Plerom a.
"N o Pler om a n ão h á n ada e t udo; n ão vale a pen a reflet ir o Plerom a, pois
ist o sign ificaria: dissolver a si m esm o.
"A criatura n ão est á n o Plerom a, mas em si. O Pler om a é o com eço e o fim
d a cr iat u r a 8 3 : ele os im pregn a com o a lu z do sol im pregn a o ar por t oda part e.

Peter Lang, 1991. • SEGAL, R. TheGnostíc Jung. Princeton: Prin ceton Un iversit y Press, 1992. • Q U I SP E L,
G. "C.G. Jung und die Gn osis". Franos-Jahrhuch, 37,1968 [reimpresso em SEGAL] . • BR E N N E R , E.M .
"Gn ost icism and Psychology: Jung's Septem Sermones ad Mortuos". Journal of Analytícal Psychology, 3$,
1990. • H U BBA C K, J. " V I I Sermones ad mortuos". Journalof Analytícal Psychology, 11,1966. • H E I S I G , J.
"Th e V I I Sermones: Play and Th eory". Spríng, 1972. • O LN EY, J. The Rhízome and the Flower: Th e Perennial
Philosophy Yeats and Jung. Berkeley: University of Califórnia Press, 1980. • H O E LLE R , S. TheGnostíc Jung
andtheSevenSermonstotheDead. Wheaton , 111.: Quest, 1982.
82 Pleroma, ou plenitude, é um termo tirado do gnosticismo. Desempenhou um papel central no sistema
valentiniano. Han s Jonas observa que "Plerom a é o termo corrente para designar a multiplicidade
plenamente explicada das características divinas, cujo número padrão é trin ta, formando uma hierarquia
e constituindo, juntas, o domínio divin o" (TheGnostíc Religion: Th e Message of the Alien God and the
Beginnings of Christianity. Londres: Routledge, 1992, p. 180). Em 1929, Jung disse: "O s gnósticos [...]
expressaram isto como Plerom a, um estado de plenitude no qual os pares de opostos, sim e não, dia e
noite, estão unidos; depois, quando eles Vêm a ser', é ou dia ou noite. No estado de 'promessa' antes de
virem a ser, eles são não existentes, não há nem branco nem preto, nem bom nem mau" ( M c G U I RE,
W (org.). Dream Analysis: Notes of the Seminar given in 1928-1930. Princeton/ Londres: Prin ceton
Un iversity Press/ Routledge, 1984, p. 131 [Bollin gen Series]. Em seus escritos posteriores, Jung usou
o termo para designar um estado de preexistência e potencialidade, identificando-o com o bardo
tibetano: "Por isso ele deve acostumar-se com a ideia de que o tempo é um conceito relativo que, a
rigor, deveria ser completado pela noção da existência 'simultânea' de bardo ou pleromática de todos
os processos históricos. Aquilo que existiu como 'processo' eterno no Plerom a surge, no tempo, como
sequência aperiódica, ou seja, numa repetição muitas vezes irregular" [Resposta a Jó (1952). O C , 11/4, §
629. Cf. tb. § 620, 624, 67$, 686, 727, 733, 748]. A distinção que Jung estabelece entre o Plerom a e a
criação tem alguns pontos de contato com a diferenciação feita por Mestre Eckh art entre a divindade e
Deus. Jung teceu comentários sobre isto em Tipos psicológicos (OC, 6, § 429S.). A relação entre o Plerom a
de Jung e Eckh art é discutida por Maillard. O p. cit., p. 118-120. Em 1954 Jung equiparou o Plerom a à
noção do "unus mundus" [o mundo uno] do alquimista Gerard Dor n (Mysterium coniunctionis. OC, 14/ 2,
§ 325). Jung adotou esta expressão para designar o postulado transcendental da unidade subjacente à
multiplicidade do mundo empírico (ibid., § 413S.).
83 Em Tipos psicológicos (1921, Jung descreveu o "Tao" como "o ser criador, que fecunda como o pai e dá à luz
como a mãe. E o princípio e o fim de todos os seres" ( O C, 6, § 412). A relação do Pleroma de Jung com
o Tao chinês é analisada por Maillard, op. cit., p. 75. Cf. TheVísio Dorotheí: Desert Context, Im perial Setting. Later
Alignments, pp. 179-180.
45o AP RO FU N D AM EN T O S

Ain d a que o P l e r o m a p er p asse tudo, a criat u ra n ão p art icip a disso, assim com o
u m corpo t ot alm en t e t ran sparen t e n ão fica claro n em escuro por causa da lu z
que o im pregn a.
"Mas n ós m esm os somos o Plerom a, pois somos u m a part e do et ern o e i n -
fin it o. Mas n ão tem os part e n isso; estam os m u it o distan tes do Plerom a, n ão n o
espaço ou n o tem po, mas n a essência, en quan t o nos dist in gu im os n a essên cia do
Pler om a com o criat u ra lim it ad a n o tem po e n o espaço.
"Mas en quan t o partes do Plerom a, ele t am bém está em n ós. Mesm o n o
m ín im o pon to, o Plerom a é in fin d o, et ern o e t ot al, pois pequen o e grande são
qualidades nele con tidas. E o n ada que é t ot al em t oda part e e in in t erru p t o.
Por isso falo só sim bolicam en t e da criat u ra com o de u m a parte do Plerom a,
pois n a verdade o Plerom a n ão é d ivid id o em part e n en h u m a, pois ele é o nada.
N ó s somos t am bém o Plerom a todo, pois sim bolicam en t e o Plerom a é o m e-
n or pon to, apenas aceito, n ão exist en t e em n ós e n o firm am en t o ilim it ad o em
t orn o de n ós. Mas en t ão por que falamos do Plerom a, se ele é tudo e n ada ao
m esm o tem po?
"Falo disso para com eçar em algum lugar e para t irar-vos a ilusão de que
em algum lugar fora ou d en t ro h aja de an t em ão algo firm e ou de algum a form a
det erm in ado. Tod o o ch am ado firm e ou d et erm in ad o é apenas relat ivo. Só é
firm e e d et erm in ad o o que é possível de ser m odificado.
"Mas o m odificável é a criat u ra, port an t o ela é a ú n ica coisa firm e e d et er m i-
n ada, pois ela t em qualidades, sim , ela m esm a é u m a qualidade.
"N ó s levan t am os a q u est ão: com o su r giu a cr iat u r a? As cr iat u r as o r igin a-
r am -se, m as n ão a cr iat u r a, pois ela é a qu alid ad e do p r ó p r io Ple r o m a , assim
com o a n ão criação, a m or t e et ern a. A cr ia t u r a é sem pre e em t od a p art e,
a m or t e é sem pre e em t od a p art e. O Ple r o m a t em t u d o, d ifer en ciação e
in d ifer en ciação.
"A d ifer en ciação 8 4 é a criat u ra. Ela é d ist in t a. Diferen ciação é sua n at u reza,
por isso ela t am bém diferen cia. Por isso o ser h u m an o d iferen cia, pois sua n a -
t u reza é diferen ciação. Por isso dist in gue t am bém as qualidades do Plerom a,
que n ão exist em . Ele as dist in gue a p art ir de sua n at ureza. Por isso o ser h u m a-
n o precisa falar das qualidades do Plerom a, que n ão exist em .

84 Lit . Unterschíedenheít. C f Tipos psicológicos (1921). O C , 6, § 778, "Diferenciação" (Differenzierung).


AP RO FU N D AM EN T O S 451

"Vó s d izeis: o que ad ian t a falar disso? T u m esm o disseste que n ão ad ian t a
reflet ir sobre o Plerom a.
"Eu vos disse ist o para vos lib ert ar d a ilusão de que se pode reflet ir sobre o
Plerom a. Q u an d o d ist in gu im os as qualidades do Plerom a, falamos en t ão a par-
t ir de n ossa diferen ciação e sobre n ossa diferen ciação, e n ada dissem os sobre o
Plerom a. Mas é n ecessário falar sobre nossa diferen ciação, para que possam os
d iferen ciar-n os o bastan te. Nossa n at u reza é diferen ciação. Se n ão form os fiéis
a esta n at u reza, n ão nos diferen ciarem os o bastan te, por isso tem os de d iferen -
ciar as qualidades.
"Vó s pergun tais: 'qual é o m al de a gente n ão se d iferen ciar?' Se n ão d i -
feren ciarm os, passamos para além de n ossa n at u reza, para além d a criat u ra e
caím os n a in dist in ção, que é a ou t ra qualidade do Plerom a. Caím os d en t ro do
p róp rio Plerom a e ren u n ciam os a ser criat u ra. Su cu m bim os à dissolução n o
n ada. Ist o é a m ort e d a criat u ra. Port an t o, m orrem os n a m ed id a em que n ão
d ist in gu irm os. Por isso o em pen h o n at u ral da criat u ra dirige-se à dist in ção, lu t a
con t ra a igualdade p r im or d ial, perigosa. Ist o se ch am a príncípíum índívíduatíonís85.
Est e p rin cíp io é a essên cia da criat u ra. Nisso podeis ver por que a in d ist in ção e
o n ão d iferen ciar são u m gran de perigo para a criat u ra.

"Por isso precisam os d ist in gu ir as qualidades do Plerom a. As qualidades são


os pares de opostos com o

"o operan te e o in operan t e,


o ch eio e o vazio,

8$ O príncípíum índívíduatíonís é uma noção tomada da filosofia de Ar t h u r Schopenhauer. Este definiu


o espaço e o tempo como o príncípíum índívíduatíonís, observando que havia tomado a expressão da
escolástica. O príncípíum índívíduatíonís era a possibilidade da m ultiplicidade (The W orld as W íll and
Representation [1819]. 2 vols. Nova York: Dover, p. 145-146 [trad. de E J . Payn e]). O termo foi usado
por Eduard von H art m an n , que viu sua origem no inconsciente. Designava a "Ein zigkeit " [unicidade]
de cada indivíduo contraposta ao "All-Ein iges Unbewusste [inconsciente ú n ico]" (Phílosophíe des
Unhewussten: Versuch einer Weltanschauung. Berlim : C. Dun ker, 1869, p. 519). Em 1912, Jung escreveu:
'A diversidade nasce através da individuação. Este fato dá uma profunda justificação psicológica a boa
parte da filosofia de Schopenhauer e de H art m an n " (Transformações e símbolos da libido. O C , B, 289). Num a
série de ensaios e apresentações posteriores em 1916, Jung desenvolveu seu conceito de individuação
("A estrutura do inconsciente". O C , 7: "Individuação e coletividade". O C , 18/ 2). Em 1921, Jung
definiu-a da seguinte maneira: "O conceito de individuação desempenha papel não pequeno em nossa
psicologia. A individuação, em geral, é o processo de formação e particularização do ser in dividual e,
em especial, é o desenvolvimento do indivíduo psicológico como ser distinto do conjunto, da psicologia
coletiva. E portanto um processo de diferenciação que objetiva o desenvolvimento da personalidade
in dividual" (Tipospsicológicos. O C , 6, § 853).
452 AP RO FU N D AM EN T O S

o vivo e o m ort o,
o diferen t e e o igual,
o claro e o escuro,
o quen te e o frio,
a força e a m at éria,
o b em e o m al,
o belo e o feio,
o u n o e o m ú lt iplo, etc.
"O s pares de opostos são as qualidades do Pler om a que n ão exist em , porque
se an u lam . Já que n ós m esm os somos o Plerom a, tem os t am bém em n ós todas
essas qualidades; já que o fun dam en t o de n ossa n at u reza é a dist in ção, tem os as
qualidades em n om e e em sin al da dist in ção, ist o sign ifica:
"Pr im eir o: as qualidades estão em n ós d ist in t as en t re si e separadas, por isso
n ão se an u lam , mas são operan tes. Por isso somos a vít im a dos pares de opos-
tos. Em n ós o Pler om a está desun ido.
"Segu n d o: as qu alid ad es p er t en cem ao Ple r o m a e n ós só p od em os p os-
su í-las ou vivê-las em n om e e em sin al d a d ist in ção. Mas d evem os d ist in -
gu ir -n os das qu alid ad es. N o Plerom a elas se an u lam , em n ós não. A d iferen -
ciação delas lib ert a.
"Q u an d o lut am os pelo bem e pelo belo, esquecem os nossa n at u reza, a d is-
t in ção exist e e n ós sucum bim os às qualidades do Pler om a com o aquelas que
form am os pares de opostos. N ó s nos esforçam os para alcan çar o b om e o belo,
mas abrangem os ao m esm o t em po o m au e o feio, pois eles são u m n o Plerom a
com o b em e o belo. Mas quan do ficam os fiéis à n ossa n at u reza, ou seja, à d is-
t in ção, en t ão nos diferen ciam os do b om e do belo e, por isso, t am bém do m au e
do feio, e n ão caím os n o Plerom a, ou seja, n o n ada e n a d issolu ção 8 6 .
"Vó s objetais: t u disseste que o diferen t e e o id ên t ico são t am bém qu alid a-
des do Plerom a. O que acontece quan do lu t am os pela diferen ciação? Som os
en t ão fiéis à n ossa n atureza? E devem os su cu m bir en t ão t am bém à igualdade,
quan do lut am os pela diferen ciação?

86 A noção de vida e de natureza sendo constituída por opostos e polaridades ocupou um lugar central na
Naturphilosophie de Schelling. A noção de que o conflito psíquico assumia a forma de um conflito de opostos
e a cura representava a solução dos mesmos ocupou um lugar eminente na obra posterior de Jung (cf. Tipos
psicológicos. O C , 6, cap. V [1921]. • Mysteriumconiunctionis [1955/ 1956]. O C , 14).
AP RO FU N D AM EN T O S 453

"N ã o deveis esquecer que o Pler om a n ão possui qualidades. N ó s as criam os


através do pensar. Se, port an t o, lut ardes pela diferen ciação, igualdade ou outras
propriedades quaisquer, lu t ais por pen sam en tos que vos p rovêm do Plerom a,
ou seja, pen sam en tos sobre as qualidades n ão exist en t es do Plerom a. Ao correr
atrás desses pen sam en tos, caís n ovam en t e n o Pler om a e chegais à diferen ciação
e à igualdade ao m esm o tem po. N ã o vosso pen sam en to, mas vossa n at u reza é
distin ção. Por isso n ão deveis lu t ar pela diferen ciação com o vós a pen sais, mas
por vossa natureza. Por isso só exist e basicam en te u m a lu t a, ist o é, a lu t a pela p r ó -
p r ia n at u reza. Se t ivésseis esta lu t a, n ão precisaríeis saber n ad a sobre o Pler om a
e suas qualidades e ch egaríeis ao objet ivo cert o graças à vossa n at ureza. Mas
com o o pen sar se afasta da n at u reza, t en h o de en sin ar-vos o con h ecim en t o
com o qual podeis refrear vosso pen sar".
87
O s m ort os desapareceram m u rm u ran d o e reclam an do, e sua grit aria
ecoou n a dist ân cia.

88
M a s eu m e volt ei para O I AH M Q N e disse: "Me u pai, deste u m en sin a-
m en t o m aravilh oso. O s antigos n ão apren d eram coisa sem elh an te? E n ão foi
u m a h eresia con d en ável, igualm en t e longe do am or e da verdade? Por que e n -
sinas sem elh an t e d ou t r in a a este ban do que o ven t o da n oit e arrebat ou dos
cam pos escuros de sangue do O cid en t e?"
"Me u filh o", respon deu O I AH M Q N , "esses m ort os t er m in ar am sua vid a
cedo dem ais. São aqueles que procu ravam e por isso ain d a p airam sobre suas
sepulturas. Su a vid a ficou in com plet a, pois n ão con h eciam o cam in h o para
além daquilo que a fé lh es d est in ou . Mas com o n in gu ém os in st ruía, devo eu
fazê-lo. Ist o é o m an d am en t o do am or, pois qu eriam ouvir, ain d a que m u r m u -
rem . Mas por que lh es en sin o a d ou t rin a dos antigos? En sin o-lh es dessa form a
porque sua fé crist ã ren egou e perseguiu cert a vez precisam en t e essa d ou t rin a.
Mas eles m esm os ren egaram a fé crist ã e por isso t orn aram -se aqueles que a fé
crist ã t am bém ren egou. Ist o eles n ão sabem , e por isso devo en sin ar-lh es, para
que sua vid a se com plet e e eles possam en t rar n a m ort e".

87 O s parágrafos seguintes até o fim desta seção não ocorrem no Livro Negro 6.
88 Na versão publicada dos Sermones, estes comentários que seguem cada sermão não aparecem, nem aparece
Filêmon: tem-se suposto que a pessoa que profere os sermões seja Basilides. Estes comentários foram
acrescentados em Aprofundamentos.
454 AP RO FU N D AM EN T O S

"Mas, sábio O I AH M Q N , acreditas n o que en sin as?"


"Me u filh o", respon deu O I AH M Q N , "por que fazes esta pergunta? Co m o
pod eria eu en sin ar aquilo em que acredito? Q u e m m e d aria o d ireit o de t er se-
m elh an t e fé? Trat a-se do que sei dizer, n ão porque o creio, mas porque o sei. Se
soubesse coisa m elh or, en sin aria coisa m elh or. Mas devo en sin ar u m a fé àqueles
que ren egaram a fé? E eu te pergun to: é b om acredit ar em coisa m elh or quan do
n ão se sabe coisa m elh o r ?"8 9
Resp on d i: "Mas ten s cert eza de que as coisas se com p ort am exat am en t e
assim com o dizes?"
A ist o O I AH M Q N respon deu: "N ã o sei se é m elh or o que n ós conseguim os
saber. Mas eu n ão sei coisa m elh or e por isso est ou cert o de que essas coisas se
com p ort am assim com o eu digo. Se elas se com port assem de ou t ra m an eira,
eu d ir ia ou t ra coisa, pois eu as con h eceria de ou t ro m odo. Mas essas coisas se
com p ort am assim com o eu as con h eço, pois m eu con h ecim en t o é precisam en t e
estas próprias coisas".
"Me u pai, estás absolut am en t e cert o de que n ão erras?"
"N ã o h á erro nessas coisas", respon deu O I AH M Q N , "h á apenas diferen t es
graus de con h ecim en t o. As coisas são assim com o as conheces. Só em t eu m u n -
do as coisas são sem pre diferen tes de com o as conheces, por isso só exist em
erros em t eu m u n d o".
Ap ó s estas palavras, O I AH M Q N in clin ou -se, t ocou a t erra com a m ão e
desapareceu.

{7} N a n oit e seguinte estava O I AH M Q N com igo e os m ort os se ap roxim aram ;


ficaram ao longo das paredes e gr it a r a m 9 0 : "Q u erem os saber sobre Deu s. O n d e
está Deu s? Deu s est á m o r t o ?"9 1

89 Em sua entrevista à T V BBC de 1919, John Freeman perguntou a Jung: "Você agora acredita em Deus>"
Jung respondeu: "Agora?' [Pausa.] Difícil de responder. Eu sei. Eu não preciso acreditar. Eu sei". M c GU I RE,
W & H U LL, R.F.C. CG. JungSpeaking: Interviews and Encounters. Princeton: Princeton University, 1977,
p. 428 [Bollingen Series]. A afirmação de Filêmon aqui parece constituir o pano de fundo para esta muito
citada e discutida afirmação. Esta ênfase na experiência direta está também de acordo com o gnosticismo
clássico.
90 13 de janeiro de 1916. Esta frase não está no Livro Negro 6.
91 Para a discussão de Nietzsche sobre a morte de Deus, cf. A gaia ciência ( i 8 8 2 , § i o 8 e i 2 5) e Assim falava
Zaratustra (Q u art a parte: "Em disponibilidade", p. 325SS.). Para a discussão de Jung sobre isso, cf.
"Psicologia e religião" (1938), § 142S. Jung comentou: "Ao dizer 'Deus está morto', Nietzsche enunciou
uma verdade válida para a maior parte da Europa" (ibid., § 145). A esta afirmação de Nietzsche, Jung
AP RO FU N D AM EN T O S 455

Mas O I AH M Q N falou (e esta é a segunda in st ru ção dos m or t os):

"Deu s n ão est á m ort o, está vivo com o sem pre. Deu s é criat u ra, pois é algo
d et erm in ad o e por isso d ist in t o do Plerom a. Deu s é qualidade do Pler om a e
tudo o que eu disse da criat u ra vale t am bém para ele.
"Mas ele se dist in gue da criat u ra pelo fato de ser b em m ais in d ist in t o e i n -
d et erm in ável do que a criat u ra. É m en os diferen ciado do que a criat u ra, pois
o fun dam en t o de sua n at u reza é a plen it u d e operan te, e só n a m ed id a em que
é d et erm in ad o e diferen ciado é ele criat u ra e, n est a m edida, é a explicação da
plen it u d e atuan te do Plerom a.
"Tu d o o que n ão d ist in gu im os cai n o Pler om a e se an u la com seu oposto.
Por isso quan do n ão d iferen ciam os Deu s, a plen it u d e at uan t e fica an u lada
para n ós.
"Deu s é t am bém o p róp rio Plerom a, assim com o qualquer out ro m in ú scu lo
pon t o n o criado e n o in criad o é o p róp rio Plerom a.
"O vazio operan te é a n at u reza do d em ón io. Deu s e d em ón io n ão são as
p rim eiras m an ifest ações do n ada, que ch am am os de Plerom a. É in d iferen t e
se o Pler om a existe ou n ão exist e, pois ele m esm o se an u la em tudo. N ã o é
assim com a criat u ra. N a m ed id a em que Deu s e d em ón io são criat u ras, n ão
se an u lam , m as perm an ecem u m con t ra o ou t ro com o opostos operan tes. N ã o
precisam os de n en h u m a prova de sua exist ên cia, basta que ten h am os de falar
deles con st an t em en t e. Mesm o que os dois n ão exist issem , a criat u ra, por causa
de sua n at u reza d a dist in ção, sem pre os d ist in gu iria a p ar t ir do Plerom a.
"Tu d o o que a d ist in ção t ir a do Plerom a é par de opostos, por isso sem pre
pert en ce a Deu s t am bém o d e m ó n io 9 2 .
"Est a p ert en ça é t ão ín t im a e, com o o experim en t ast es, t ão in dissolúvel em
vossa vid a com o o p róp rio Plerom a. Ist o vem do fato de am bos est arem bem
p róxim os do Plerom a, n o qual se an u lam todos os opostos e se t orn am u m .
"De u s e o d em ón io se d ist in gu em pelo ch eio e vazio, geração e d est ru ição.
O operante lh es é com u m . O operan t e os u n e. Por isso o operan t e est á acim a

observou: "Mas seria mais correto dizer: 'Ele tirou nossa imagem e onde vamos encontrá-la de novo'?"
(ibid.). Passa então a discutir o motivo da morte e desaparecimento de Deus em conexão com a
crucifixão e ressurreição de Cristo.
92 Cf. "Interpretação psicológica do Dogma da Trindade" (1940). O C , 11/2, § 284S.
456 AP RO FU N D AM EN T O S

dos d ois e é u m D e u s acim a, d e D e u s , p o is u n e a p l e n i t u d e e o vazio em s u a


at uação.
"Est e é u m Deu s que n ão con h ecíeis, pois os h om en s o esqueceram . N ó s o
ch am am os com o seu n om e ABRAXAS9 3. Ele é ain d a m ais in d et erm in ad o do que
Deu s e o d em ón io.
"Par a d ist in gu ir Deu s dele, ch am am os Deu s de HELIOS ou So l 9 4 . Ab raxas
é atuação, n ada se lh e opõe a n ão ser o irreal; p or isso sua n at u reza atuan te se
desen volve livrem en t e. O ir r eal n ão exist e e n ão faz resist ên cia. Ab raxas está
acim a do sol e acim a do d em ón io. Ele é o provável im provável, o irrealm en t e
atuan te. Se o Plerom a tivesse u m a n at u reza, Ab raxas seria sua m an ifestação.
"Ele é a própria atuação, mas n en h u m a atuação d et erm in ad a, mas atuação
em geral.
"Ele é irrealm en t e atuan te, porque n ão t em n en h u m a atuação d et erm in ad a.
"Ele é t am bém criat u ra, u m a vez que é d ist in t o do Plerom a.
"O sol t em u m a atuação d et erm in ad a, bem com o o d em ón io, p or isso n os
parecem bem m ais atuantes do que o in d et erm in ad o Ab raxas.
"Ele é força, duração, m u dan ça".

95
Aq u i os m ort os levan t aram gran de t u m u lt o, pois eram cristãos.

93 Em 1932, Jung comentou sobre Abraxas: "O símbolo gnóstico Abraxas, um nome inventado que significa
trezentos e sessenta e cinco [...]. os gnósticos o usavam como nome de sua divindade suprema. Era um
deus do tempo. A filosofia de Bergson, a durée créatrice, é uma expressão da mesma ideia". Jung descreveu-o
de uma maneira que ecoa sua descrição aqui: "Assim como este mundo arquetípico do inconsciente
coletivo é extremamente paradoxal, sempre sim e não, essa figura de Abraxas significa o início e o fim, ela
é vida e morte, e por isso é representada por uma figura monstruosa. Ela é um monstro porque é a vida
da vegetação no decurso de um ano, a primavera e o outono, o verão e o inverno, o sim e não da natureza.
Por isso Abraxas é realmente idêntico ao Demiurgo, o criador do mundo. E como tal é certamente
idêntico ao Purusha ou a Shiva" (16 de novembro. Vísíons Seminar. Vol. 2, p. 806-807). Jung acrescentou
que "Abraxas é geralmente representado com a cabeça de um pássaro, o corpo de um homem e a cauda
de uma serpente, mas existe também o símbolo da cabeça de leão com corpo de dragão, a cabeça coroada
com os doze raios, numa alusão ao número dos meses" (ibid. 7 de junho de 1933, p. 1.041-1.042). De
acordo com Santo Ireneu, Basilides afirmava que "o monarca deles chama-se Abrasaks e é por isso que
este (monarca) traz em si o número 365" ( LAYT O N (org.). The GnostícScríptures, p. 425). Abraxas ocupou
um lugar proeminente na obra de D I E T E R I C H , A. Abraxas - Studien zur Religionsgeschichte des spãten
Altertum s. Leipzig, 1891. Jung estudou esta obra com atenção no início de 1913 e seu exemplar contém
anotações. Jung possuía também um exemplar de The Gnostícs and their Retnains de Charles Kin g (Londres:
Bell and Daldy, 1864) e encontram-se anotações marginais ao lado desta passagem à p. 37, discutindo a
etimologia de Abraxas.
94 Na mitologia grega, Helios é o Deus Sol. Jung analisou as mitologias solares em Transformações e símbolos da
libido (1912. O C , B, § 177SS.) e também em sua palestra conclusiva inédita sobre Opicinus de Canistris, na
conferência de Eranos em Ascona em 1943 ( JA) .
95 O s parágrafos seguintes até o fim desta seção não ocorrem no Livro Negro 6.
AP RO FU N D AM EN T O S 457

Mas com o O I AH M Q N tivesse acabado seu discurso, os m ort os volt aram


t am bém u m após ou t ro para a escuridão, e o baru lh o de sua revolt a foi su -
m in d o aos poucos ao longe. Co m o tudo estivesse quieto agora, d irigi-m e a
O I AH M Q N e exclam ei:
"Te m piedade de n ós, ó m ais sábio! T u t iras das pessoas os deuses aos quais
elas p od iam rezar. Tir a s do m en digo a esm ola, do fam in t o o pão, do frioren t o
o fogo".
O I AH M Q N respon deu e disse: "Me u filh o, esses m ort os t iveram de rejeit ar
a fé dos crist ãos e por isso n ão adoravam m ais a n en h u m Deu s. Devo en t ão
en sin ar-lh es u m Deu s n o qual possam crer e ao qual possam rezar? Eles já r e-
pu d iaram isso. Por que o repu diaram ? Tive r a m de rep u d iá-lo porque n ão po-
d iam fazer ou t ra coisa. E por que n ão con seguiram fazer ou t ra coisa? Porque
o m un do, sem que as pessoas o soubessem , en t rou naquele m ês do grande ano
em que só se pode acred it ar n aqu ilo que se con h ece 9 6 . Ist o é bastan te duro, mas
u m rem éd io para a lon ga d oen ça que resu lt ou do fato de se acredit ar n o que
n ão se sabia. Eu lh es en sin o o Deu s que con h eço e que eles con h ecem , sem dele
estar con scien t es, u m Deu s em que n ão acred it am e ao qual n ão rezam , mas que
eles con h ecem . Est e Deu s eu en sin o aos m ort os, pois eles solicit aram en t rad a
e en sin am en t o. Mas n ão o en sin ei às pessoas vivas, pois n ão solicit aram m eu
en sin am en t o. Por que h averia en t ão de en sin ar-lh es? Por isso t am bém n ão t ir ei
delas n en h u m ou vin t e bon doso de orações, n en h u m pai do céu. O que im p or t a
aos vivos a m in h a loucura? O s m ort os precisam da reden ção, pois m u it os deles
esperam pairan do sobre suas sepulturas e desejam o con h ecim en t o que a fé e a
rejeição d a fé sufocaram . Mas qu em ficou doen te e se ap roxim a da m ort e, este
quer o con h ecim en t o e apresen ta o pedido".
Resp on d i: "Parece-m e que en sin aste às massas u m Deu s assustador e t errí-
vel, ao qual n ão im p or t am o b em e o m al, o sofrim en t o e a alegria das pessoas".
"Me u filh o", disse O I AH M Q N , "n ão vist e que esses m ort os t iveram u m
Deu s de am or e o rejeit aram ? Devo eu en sin ar-lh es u m Deu s de am or? Eles t i -
ver am de rejeit á-lo após t erem rejeit ado h á m u it o o Deu s do m al, que ch am am
de d em ón io. Por isso precisam con h ecer u m Deu s para o qual todo o criado n ão
é n ada, porque ele m esm o é o criad or e todo criado e t am bém a dest ruição de

96 A referência é aos meses platónicos. Cf. nota 273, p. 358.


4$8 AP RO FU N D AM EN T O S

t o d o o cr ia d o . El e s n ã o r e je i t a r a m u m D e u s q u e é u m p a i, u m a m a n t e , b o n d o s o
e belo? U m Deu s ao qu al at ribu íram det erm in adas qualidades e u m d et erm in a-
do ser? Por isso preciso en sin ar-lh es u m Deu s ao qual n ada pode ser at ribuído,
que t em todas as qualidades e, com isso, n en h u m a, porque eu e eles só podem os
con h ecer u m Deu s assim ".
"Mas com o, ó m eu pai, pod em as pessoas en t rar em acordo com u m Deu s
assim ? O con h ecim en t o de t al Deu s n ão é o rom p im en t o do vín cu lo h u m an o e
de t oda com un idade que se baseia no b em e n o belo?"
O I AH M Q N respon deu: "Esses m ort os rejeit aram o Deu s do am or, do bem
e do belo, eles t iver am de rejeit á-lo e assim rejeit aram a u n ião e com un idade
n o am or, n o bom e n o belo. E assim m at aram -se m u t u am en t e e d issolveram a
com un idade das pessoas. Devo eu en sin ar-lh es o Deu s que os u n iu n o am or e
que eles rejeit aram ? Por isso en sin o-lh es o Deu s que dissolve a un ião, que des-
ped aça todo o h u m an o, que cr ia poderosam en te e d est rói com força. A qu em o
am or n ão un e, a este força o m edo".
Ten d o O I AH M Q N d it o estas palavras, cu rvou -se rapidam en t e para o chão,
t ocou-o com a m ão e desapareceu.

{8} N a n oit e segu in t e 9 7 aproxim aram -se n ovam en t e os m ort os com o n évoa
dos pân t an os e grit aram :
"Fala-n os m ais a respeit o do Deu s su prem o".
E O I AH M Q N aproxim ou -se, ficou de pé e disse (e esta é a t erceira in st r u -
ção dos m o r t o s) 9 8 :

"Abraxas é u m Deu s difícil de se conhecer. Seu poder é m aior, pois o ser


h u m an o n ão o vê. D o sol t ir a o sum m um bonum "; do d em ón io t ir a o ínfímum m alum ,
mas de Ab raxas, a VIDA in d et erm in ad a sob todos os aspectos, que é a m ãe do
b em e do m a l 10 0 .

97 I o de fevereiro de 1916.
98 Esta frase não está no Livro Negro 6.
99 Aristóteles definiu a felicidade como o bem supremo (Summum Bonum). Em sua Summa Theologica, Tomás
de Aquino identificou-a com Deus. Jung considerava a doutrina do Summum Bonum a fonte do conceito da
privatio boni, que, em sua opinião, havia levado à negação da realidade do mal. Cf. Aíon (1951) ( O C, 9/ 2, §
80, 94). Por isso ela é contrabalançada aqui com o Infimum Malum.
100 No Livro Negro 6 (cf. Apêndice C ) , Jung observa que Abraxas é o Deus das rãs e que "o Deus das rãs
ou dos sapos, o anencéfalo, é a fusão do Deus cristão com satanás" (cf. abaixo, p. 367). Em seus escritos
posteriores, Jung sustentou que a imagem do Deus cristão era unilateral por deixar fora o fator do mal.
AP RO FU N D AM EN T O S 459

A vid a parece ser m en or e m ais fraca do que o sum m um bonum , razão por que
é difícil t am bém pen sar que Ab raxas supere até m esm o o sol em poder, que é a
fon te rad iosa de t oda força vit al.
"Abraxas é o sol e ao m esm o t em po a garganta et ern am en t e sugadora do
vazio, do d im in u id or, do fragm entado, do d em ón io.
O poder de Ab raxas é duplo. Mas vós n ão o vedes, pois aos vossos olhos
levan t a-se o volt ar-se u m con t ra o ou t ro desse poder.
"O que o Deu s-So l fala é vid a, o que o d em ón io fala é m ort e.
"Mas Ab raxas fala a palavra dign a de ven eração e m ald it a, a vid a e a m ort e
ao m esm o tem po.
"Abraxas gera verdade e m en t ir a, o m al e o bem , lu z e trevas n a m esm a p a-
lavra e n o m esm o ato. Por isso ele é t errível.
"E m agn ífico com o o leão n o m om en t o em que abate sua vít im a. E belo
com o u m d ia p rim averil.
"Sim , ele é o p róp rio grande Pã e o pequeno.
"Ele é Príapo.
"Ele é o m on st ro do subm un do, u m p ólip o com m il braços, en rod ilh am en t o
de cobra, fúria.
"Ele é o h erm afrod it a dos tem pos im em oriais.
"Ele é o sen h or dos sapos e rãs que m or am n a água e sobem à t erra, que
can t am em coro ao m eio-d ia e à m eia-n oit e.
"Ele é o ch eio que se un e ao vazio.
"Ele é o coit o sagrado.
"Ele é o am or e seu assassino.
"Ele é o santo e seu t raidor.
"Ele é a lu z m ais b rilh an t e do d ia e a n oit e m ais profu n da d a lou cu ra.

Estudando as transformações históricas das imagens de Deus, ele tentou corrigir isto (especialmente Aíon e
Resposta a Jó). Em sua nota sobre como Resposta a Jó foi escrito, Jung escreveu que em Aíon ele havia "criticado
a ideia àaprívatío honí, [...] pois essa ideia não se coaduna com os conhecimentos psicológicos. A experiência
psicológica mostra-nos que aquilo que chamamos de 'bem' se contrapõe a um 'm al' igualmente substancial.
Se o 'm al' não existe, então tudo o que existe seria forçosamente 'bom'. Segundo o dogma, nem o 'bem '
nem o 'm al' têm sua origem no homem, pois 'o maligno' existiu antes do homem, como um dos 'filhos de
Deus'. A ideia àaprivatío honí só começou a desempenhar um certo papel na Igreja depois do aparecimento
de Manes. Antes do maniqueísmo, Clemente de Rom a ensinava que Deus governava o mundo com uma
mão direita e com uma mão esquerda; pela mão direita ele entendia Crist o e pela mão esquerda, satanás.
A concepção de Clemente é evidentemente monoteísta, pois une os contrários em um só Deus. Mais tarde,
porém, o cristianismo se torna dualista, na medida em que a parte dos opostos personificada em satanás é
separada [...}. Se o cristianismo reivindica para si a condição de religião monoteísta, a hipótese dos opostos
presentes em Deus se faz necessária" (1956. O C , 11/4, p. 474-475).
46o AP RO FU N D AM EN T O S

"O lh a r para ele sign ifica cegueira.


"Con h ecê-lo sign ifica doen ça.
"Ad orá-lo sign ifica m ort e.
"Tem ê-lo sign ifica sabedoria.
"N ã o se opor a ele sign ifica reden ção.
"Deu s m ora atrás do sol, o d em ón io m or a atrás da n oit e. O que Deu s t raz
à lu z, o d em ón io o p u xa para d en t ro da n oit e. Mas Ab raxas é o m u n do, seu
p róp rio t orn ar-se e cessar. Para cada d om do Deu s-So l, o d em ón io coloca u m a
m aldição.
"Tu d o o que pedis do Deu s-So l gera u m ato do d em ón io. Tu d o o que criais
com o Deu s-So l dá ao d em ón io a força da ação.
"Est e é o t errível Abraxas.
"Ele é a criat u ra m ais forte e n ele se assusta a criat u ra de si m esm a.
"Ele é a m an ifest a con t rad ição da criat u ra con t ra o Plerom a e seu n ada.
"Ele é o pavor do filh o dian t e da m ãe.
"Ele é o am or da m ãe pelo filh o.
"Ele é o en can t o da t erra e a atrocidade do céu.
"O ser h u m an o fica im óvel em sua presen ça.
"D ia n t e dele n ão h á pergun t a n em resposta.
"Ele é o ato de am or da criat u ra.
"Ele é a m an ifest ação d a diferen ciação.
"Ele é o am or do ser h um an o.
"Ele é a lin guagem do ser h um an o.
"Ele é o b rilh o e a som bra do ser h um an o.
"Ele é a realidade ilu só r ia"10 1.

10 2
Aq u i u ivaram e se en fureceram os m ort os, pois eles eram im perfeit os.

Mas quan do sua grit aria cessou, eu disse a O I AH M Q N : "Me u pai, com o
devo en t en der esse Deu s?"

I O 1 Em 1942, Jung observou: "O conceito de um Deus que tudo abarca tem de incluir necessariamente o seu
oposto. A coincidência, no entanto, não pode ser muito radical, porque então Deus se anularia. A ideia
da coincidência dos opostos tem que ser completada ainda por seu contrário, a fim de alcançar o pleno
paradoxo e, consequentemente, a validade psicológica" ("O espírito Mercurius". O C , 13, § 256).
102 O s parágrafos seguintes até o fim desta seção não ocorrem no Livro Negro 6.
AP RO FU N D AM EN T O S 461

O I AH M Q N respon deu dizen do:


"Me u filho, por que queres en t en der? Est e Deu s é para ser con h ecido, n ão
para ser en t en dido. Q u an d o o en t en deres, en t ão podes d izer que ele é ist o ou
aquilo, ou n ão ist o e n ão aquilo. Assim o seguras n o côn cavo d a m ão e por isso
t u a m ão t em de rejeit á-lo. O Deu s que eu con h eço é ist o e aquilo, mas t am bém
este ou t ro e aquele outro. Por isso n in gu ém pode en t en d er este Deu s, e sim
con h ecê-lo, e é por isso que falo dele e o en sin o".
"Mas", respon d i, "este Deu s n ão t raz con fusão desesperadora à m en t e das
pessoas?"
O I AH M Q N falou: "Esses m ort os rejeit aram a ord em da un idade e d a co-
m u n id ad e, pois rejeit aram a fé n o pai do céu que julga com m ed id a ju st a. Eles
t iveram de rejeit á-lo. Por isso en sin o-lh es o caos que n ão t em subst ân cia e é
t ot alm en t e sem lim it es, mas que t em afin idade com a ju st iça e in just iça, m an si-
dão e d u reza, paciên cia e raiva, am or e ódio. Pois com o posso en sin ar d iferen t e-
m en t e do que o Deu s que eu con h eço e que eles con h ecem , sem t er con sciên cia
dele?"
Pergun t ei: "Por que, ó su blim e, cham as de Deu s o et ern am en t e in com p re-
en sível, o t errível con t rad it ório da n at u reza?"
O I AH M Q N respon deu: "Q u e ou t ro n om e lh e daria? Se fosse lei a n at u reza
su perior do que acontece n o todo e n o coração das pessoas, eu o ch am aria sem
d ú vid a de lei. Mas ist o t am bém n ão é n en h u m a lei e sim acaso, an om alia, pe-
cado, erro, t olice, n egligên cia, lou cu ra, ilegalidade. Por isso n ão posso ch am á-lo
de lei. Vó s sabeis que ist o deve ser assim e sabeis ao m esm o tem po que n ão
d evia ser assim e n u m a ou t ra vez t am bém n ão é assim . Ist o é superpoderoso e
acontece com o u m a lei et ern a e, n u m a ou t ra vez, u m ven t o atravessado sopra
u m a p oeirin h a n a en gren agem e este n ada é u m superpoder, m ais pesado do
que u m a m on t an h a de ferro. Por isso sabeis que a lei et ern a t am bém n ão é
n en h u m a lei. Port an t o n ão posso ch am á-la de lei. Mas com o d en om in á-la de
ou t ra form a? Eu sei que a lin guagem h u m an a n u n ca ch am ou de ou t ro m odo o
ven t re m at ern o da in com preen são sen ão de Deu s. N a verdade, este Deu s é e
n ão é, pois do ser e do n ão ser procede tudo que foi, que é e que será". Dep ois
que O I AH M Q N disse a ú lt im a palavra, t ocou com a m ão a t er r a e se dissolveu.

{9 } N a n oit e seguinte os m ort os acorreram cedo, en ch eram com resm ungos


o recin t o e disseram :
462 AP RO FU N D AM EN T O S

"Fala-n os de deuses e d em ón ios, m ald it o".


O I AH M Q N apareceu, ficou de pé e falou (e esta é a qu art a in st ru ção dos
m o r t o s) 10 3 :

"O Deu s-So l é o bem suprem o; o d em ón io, o oposto. Assim tendes dois
deuses. Mas h á m u it as coisas suprem as e boas e m u it os m ales en orm es. En t r e
estes h á dois d eu ses-d em ôn ios, u m é o Ardente, o ou t ro é o Crescente.
"O arden te é ERO S n a form a de ch am a. A ch am a dá lu z porque se con so-
10 4
me .
"O crescen te é a ÁRVORE DA VIDA. Ge r m in a e, o crescer, se acu m u la de
coisas viva s 10 5 .
"Er o s se in flam a e m orre. Mas a árvore da vid a cresce len t a e con st an t em en -
te, por tem po in com en su rável.
"O bem e o m al estão u n idos n a ch am a.
"O bem e o m al est ão u n idos n o crescim en t o da árvore, em suas divin dades,
vid a e am or se op õem .
"In con t ável com o a m u lt id ão das estrelas é o n ú m ero de deuses e d em ón ios.
"Ca d a est rela é u m Deu s e cada espaço que u m a est rela ocupa é u m d em ó -
nio. Mas o vazio do todo é o Plerom a.
"A m an ifest ação do todo é Ab raxas, só o irreal se opõe a ele.
"Q u a t r o é o n ú m ero dos deuses p rin cip ais, pois quat ro é o n ú m ero das m e-
didas do m un do.

103 3 de fevereiro de 1916. Esta frase não está no Livro Negro 6.


104 Em 1917, Jung escreveu um capítulo sobre "A teoria sexual" em A psicologia dos processos inconscientes, que
apresentou uma crítica da compreensão psicanalítica do erótico. Em sua revisão deste capítulo em 1928,
reintitulado "A Teoria do Eros", acrescentou: "O erotismo [...], por um lado, pertence à natureza prim itiva
e animal do bomem. [...] Por outro lado, está ligado às mais altas formas do espírito. Só floresce quando
espírito e instinto estão em perfeita harmonia. [...] 'Eros é um grande demónio', declara a sábia Diot im a
a Sócrates. [...] Eros não é a totalidade da natureza em nós, mas é pelo menos um dos seus aspectos mais
importantes" ( O C, 7, § 32-33). No Banquete, Diot im a instrui Sócrates sobre a natureza de Eros. Ela lhe
diz: '"Ele é um grande espírito, Sócrates. Todas as coisas classificadas como espírito situam-se entre deus
e ser humano'. 'Q ue função eles têm?', perguntei. 'Eles interpretam e levam mensagens dos humanos aos
deuses e dos deuses aos humanos. Eles transportam preces e sacrifícios da parte dos humanos e, da parte
dos deuses, ordens e dons em retribuição pelos sacrifícios. Sendo intermediários entre os outros dois, os
espíritos preenchem a lacuna entre eles e possibilitam ao mundo formar um todo interconectado. Servem
de intermediários para toda adivinhação, para os conhecimentos sacerdotais no sacrifício, nos ritos e nas
fórmulas mágicas, e para toda profecia e feitiçaria. O s deuses não fazem contato direto com os humanos;
eles se comunicam e conversam com os humanos (seja na vigília ou no sono) totalmente por intermédio
dos espíritos" (Londres: Penguin, 1999, 202e-203a [trad. de C. Gill]) . Em Memórias, Jung refletiu sobre
a natureza de Eros, descrevendo-o como "um kosmogonos, um criador e pai-mãe de toda consciência" (p.
4 0 6 ) . Esta caracterização cosmogónica de Eros precisa ser distinta do uso que Jung faz do termo para
caracterizar a consciência das mulheres. Cf. nota de rodapé n. 161, p. 159.
105 Em 1954, Jung escreveu um longo estudo sobre o arquétipo da árvore: "A árvore filosófica" ( O C , 13).
AP RO FU N D AM EN T O S 463

"U m é o com eço, o Deu s-So l.


"D o is é o Er os, pois ele un e dois e se expan de em lu z.
"Três é a árvore d a vid a, pois ela en che o espaço de formas corpóreas.
"Q u at r o é o d em ón io, pois ele abre todo o t ran cado; desfaz todo o form ado
e corporal; ele é o d est ru id or que t udo reduz ao n ada.
"Feliz de m im , a qu em foi dado con h ecer a m u lt ip licid ad e e diversidade dos
deuses. A i de vós que subst it uís esta in com pat ível m u lt ip licid ad e pelo Deu s
ún ico. Assim criais o t orm en t o d a n ão com p reen são e a m u t ilação d a criat u ra,
cu ja n at u reza e m et a é a diferen ciação. Co m o podeis ser fiéis à vossa n at u reza
se quereis fazer do m ú lt iplo u m só? O que vós fazeis com os deuses t am bém
acontece a vós. Vó s todos sereis t orn ados iguais e assim fica m u t ilad a vossa
n a t u r e z a 10 6 .
"A igualdade prevalece por causa do ser h u m an o e n ão por causa de Deu s,
pois os deuses são m u it os, ao passo que poucos são os seres h um an os. O s d eu -
ses são poderosos e su port am sua diversidade, pois com o as estrelas est ão n a
solidão e n u m a dist ân cia colossal u n s dos out ros. O s seres h um an os são fracos
e n ão su p ort am sua diversidade, pois m or am p róxim os un s dos outros e n eces-
sit am d a com un idade para pod erem su port ar sua sin gu lar id ad e 10 7 . Por am or à
reden ção, en sin o-vos o que é rejeit ad o e, por causa dele, fu i rejeit ado.
"A m u lt ip licid ad e dos deuses correspon de à m u lt ip licid ad e dos seres h u -
m an os.
"In ú m er os deuses aguardam a con d ição h u m an a.
In ú m eros deuses já foram seres h um an os. O ser h u m an o p ar t ilh a d a n at u -
reza dos deuses. Ele vem dos deuses e vai p ara Deu s.
"Assim com o n ão ad ian t a reflet ir sobre o Plerom a, n ão ad ian t a ven erar a
m u lt ip licid ad e dos deuses. E m en os ain d a ven erar o p r im eir o Deu s, a p len i-
tude operan t e e o sum m um bonum . At ravés de n ossa oração, n ão conseguim os
acrescen tar n ada a isso, n em dele t irar, pois o vazio operan t e engole t u d o 10 8 .
O s deuses brilh an t es form am o m u n d o celeste, que é m ú lt iplo e in fin it am en t e
disperso e crescen te. Seu sen h or suprem o é o Deu s-Sol.

106 O Livro Negro 6, continua: "O s mortos: 'Tu és um pagão, um politeísta"' (p. 30).
107 5 de fevereiro de 1916.
108 No Livro Negro 6, o hóspede escuro (cf. adiante, p. 473) entra aqui.
464 AP RO FU N D AM EN T O S

"O s d e u se s e scu r o s fo r m a m o m u n d o t e r r e st r e . Sã o s im p le s e i n fi n i t a m e n t e
decrescentes e m in guan t es. Seu sen h or m ais ín fim o é o d em ón io, o espírit o
lun ar, satélite da t erra, m en or, m ais frio e m ais m ort o do que a t erra.
"N ã o h á d iferen ça en t re o poder dos deuses celestes e t errest res. O s celestes
au m en t am de t am an h o, os t errest res d im in u em . In com en su rável é a or ien t a-
ção de am bos".
10 9
Aq u i os m ort os in t errom p eram a fala de O I AH M Q N com risadas fu rio-
sas e gritos sarcásticos e, ao se afastarem aos poucos, sua discórdia, zom b aria e
risadas su m iram n a dist ân cia. Volt ei-m e para O I AH M Q N e disse:
"Ó O I AH M Q N , t en h o a im pressão de que te enganas. Parece-m e que en si-
nas u m a cru a superst ição, que os nossos pais su peraram de m odo feliz e glorio-
so, aquela m u lt ip licid ad e de deuses que só u m espírit o que n ão consegue lib er -
t ar seu olh ar das am arras dos apetites presos às coisas sensuais pode p rod u zir".
"Me u filh o", respon deu O I AH M Q N , "esses m ort os rejeit aram o ú n ico Deu s
altíssim o. Co m o posso en sin ar-lh es o ú n ico e n ão m ú lt iplo Deu s? Eles deve-
r iam acredit ar em m im . Mas rejeit aram a fé. Port an t o, en sin o-lh es o Deu s que
eu con h eço, o m ú lt iplo, o expan dido, que é o objeto e ao m esm o t em po o seu
reflexo, e eles t am bém o con h ecem , m esm o que dele n ão t en h am con sciên cia.
"Esses m ort os d eram n om e a todos os seres, aos seres n o ar, n a t er r a e n a
água. Eles pesaram e con t aram os objetos. Eles con t aram tan tos e t an t os cava-
los, vacas, ovelhas, árvores, t er r a plan a, fontes; d izem que ist o é b om para este
objet ivo e que aquilo é bom para aquele objetivo. O que fizeram com a árvore
dign a de ven eração? O que acon teceu com a rã sagrada? Vir a m eles seus olhos
dourados? O n d e est á a expiação pelas 7.777 reses cujo sangue d erram aram , cu ja
carn e devoraram ? Fizer am pen it ên cia pelo m et al sagrado que cavaram do ve n -
t re da terra? Não , eles d eram n om e, pesaram , con t aram e rep art iram todas as
coisas. Fizer am disso o que qu iseram . E o que fizeram ! T u vist e aquilo que
t em a força - mas exat am en t e assim d eram às coisas poder e n ão o sabiam .
Mas o tem po chegou em que as coisas falam . O ped aço de carn e pergun ta:
quan tas pessoas? O ped aço de m et al pergun ta: quan tas pessoas? O n avio p er-
gun ta: quantas pessoas? O carvão pergun ta: quantas pessoas? A casa pergun ta:
quan tas pessoas? E as coisas se levan t am , con t am , pesam , rep art em e d evoram
m ilh ões de pessoas.

109 O s parágrafos seguintes até o fim não constam no Livro Negro 6.


AP RO FU N D AM EN T O S 465

"Vossa m ão esten deu-se sobre a t er r a e t ir ou o sagrado brilh o, pesou e con -


t ou os ossos das coisas. N ã o é o Deu s un o, ú n ico e sim ples, o relegado, jogado
n u m m on t u ro, b rilh o con glom erado, a ún ica coisa dos m ort os e dos vivos? Sim ,
este Deu s nos en sin ou a con t ar e pesar ossos. Mas o m ês desse Deu s cam in h a
para seu fim . U m n ovo m ês est á d ian t e da port a. Por isso tudo teve de ser assim
e por isso tudo precisa m udar.
"N ã o u m a m u lt ip licid ad e de deuses que eu t en h a in ven t ado! Mas vários
deuses que erguem sua voz forte e rasgam a h u m an idade em pedaços san gren -
tos. Tan t as pessoas pesadas, con tadas, separadas, part idas e devoradas. Por isso
falo de m u it os deuses, assim com o falo de m u it as coisas, pois eu os con h eço.
Por que os ch am o de deuses? Por causa de seu superpoder. Sabeis algum a coisa
desse superpoder? H o je é o t em po em que pod eríeis con h ecer algo a respeito.
"O s m ort os r iem de m in h a lou cu ra. Mas t eriam levan t ado a m ão assassina
con t ra seus irm ãos, se t ivessem feit o expiação pela rês de olhos aveludados? Se
t ivessem feit o pen it ên cia pelo m et al reluzen t e? Se t ivessem prestado h om en a-
gem à árvore sagrad a? 110 Se t ivessem recon ciliad o a alm a da rã de olhos d ou ra-
dos? O que falam os m ort os e as coisas vivas? Q u e m é m aior, o ser h u m an o ou
os deuses? Realm en t e, este sol t orn ou -se u m a lu a e ain d a n ão se form ou u m
n ovo sol a p art ir das dores de part o d a ú lt im a h ora da n oit e".
Term in ad as estas palavras, O I AH M Q N curvou-se sobre a t erra, b eijou -a
e disse: "Mã e , que t eu filh o seja fort e". Ergu eu -se a seguir, olh ou para o céu e
disse: "Co m o é escura t u a sede da n ova lu z". Dep ois desapareceu.

{10} N a n oit e seguinte vier am os m ort os com baru lh o e em aglom eração,


zom baram e grit aram : "En sin a-n os, doido, a respeito da Igreja e da com u n id a-
de sagrada".
O I AH M Q N apresen tou-se d ian t e deles, ficou de pé e fa lo u 111 (e esta é a
qu in t a in st ru ção dos m or t os):
"O m u n d o dos deuses se m an ifest a n a espirit u alidade e n a sexualidade. O s
celestiais aparecem n a espirit u alidade, os t erren os n a sexu alid ad e 112 .

110 Isto pode referir-se à chegada do cristianismo à Germânia, no século V I I I , quando as árvores sagradas
eram derrubadas.
111 A frase não está no Livro Negro 6.
112 No seminário de 1925, Jung disse: "A sexualidade e a espiritualidade são pares de opostos que precisam
uma da outra" (introductíon to Jungian Psychology, p. 30).
466 AP RO FU N D AM EN T O S

"A e s p ir it u a lid a d e co n ce b e e a ca le n t a . E l a é fe m i n i n a e p o r isso a c h a m a -


m os de MATER COELESTIS, a m ãe celest ial 113. A sexualidade gera e cria. El a é
m ascu lin a e por isso a ch am am os de PHALLOS114, o pai t er r en o 115 . A sexualidade
do h om em é m ais t erren a, a d a m u lh er é m ais espirit u al. A espirit u alidade do
h om em é m ais celeste, ela visa ao m aior.
"A espirit u alidade d a m u lh er é m ais t erren a, visa ao m en or.
"Men t ir osa e d em on íaca é a espirit u alidade do h om em , que visa ao m en or.
"Men t ir osa e d em on íaca é a espirit u alidade d a m u lh er, que visa ao m aior.
"Ca d a u m a deve ir para o seu lugar.
"H o m e m e m u lh er t orn am -se d em ón io u m para o ou t ro quan do n ão se-
param seus cam in h os espirit u ais, pois a n at u reza d a criat u ra é a diferen ciação.
"A sexualidade do h om em va i para o t erren o, a sexualidade d a m u lh er va i
para o espirit u al. O h om em e a m u lh er t orn am -se d em ón io u m para o out ro
quan do n ão separam sua sexualidade.
"O h om em con h ecerá o m en or, a m u lh er o m aior.
"O ser h u m an o deve d ist in gu ir-se d a espirit u alidade e d a sexualidade. Q u e
ch am e a espirit u alidade de m ãe e a coloque en t re o céu e a t erra. Q u e ch am e
a sexualidade de Ph allos e o coloque en t re si m esm o e a t erra, pois a m ãe e o
Ph allos são d em ón ios su pra-h u m an os que revelam o m u n d o dos deuses. São
m ais eficien tes para n ós que os deuses porque t êm m aior afin idade com a n ossa
n at u r eza 116 . Se n ão vos diferen ciardes d a sexualidade e d a espirit u alidade e n ão
as con siderardes com o en tidades acim a de vós, su cu m bireis a elas com o q u ali-
dades do Plerom a. A espirit u alidade e a sexualidade n ão são qualidades vossas,
n ão são coisas que possuís e abrangeis, m as elas vos possuem e vos abran gem ,
pois são d em ón ios poderosos, form as de m an ifest ação dos deuses, e p or isso
coisas que vos ult rapassam e subsisten tes em si. Nin gu ém t em u m a esp irit u ali-
dade para si ou u m a sexualidade para si, m as est á sob a lei d a espirit ualidade e
da sexualidade. Por isso n in gu ém escapa desses d em ón ios. Vó s deveis con sid e-

113 O Fausto de Goethe term ina com uma visão da Mater Gloriosa. Em sua conferência, "Faust und die
Alchem ie", Jung falou o seguinte: "Por Mater coelestís não precisamos entender Maria ou a Igreja católica.
Seria bem mais uma Afrodite urânia, como em Agostinho e Pico de Mirandola é a Beatíssima mater". In :
GERBER- M Ú N CH , I . GoethesFaust: Ein e tiefenpsychologische Studié úber den Mythos des modernen
Menschen. Mit dem Vortrag von C.G. Jung, Faust und die Alchemie. Kúsnacht: Verlag Stiftung fur
Jungsche Psychologie, 1997, p. 37.
114 O Livro Negro 6, tem "Phallus" (p. 41), assim como está na versão manuscrita dos Septem Sermones (p. 21).
115 Em Transformações e símbolos da libido (1912), Jung observou: "O falo é um ser que se movimenta sem
membros, que vê sem olhos, que conhece o futuro; e, como representante simbólico da força criadora
espalhada por toda parte, reivindica a imortalidade" ( O C, B, § 209 ). Prossegue discutindo deuses fálicos.
116 O Livro Negro 6, continua: "A mãe é o vaso. O falo é a espada" (p. 43).
AP RO FU N D AM EN T O S 467

rá-los com o d em ón ios e com o coisa e perigo com u n s, com o peso com u m , que a
vid a vos im pôs. E assim a vid a t am bém é para vós coisa e perigo com u n s, com o
t am bém os deuses e, em p rim eiro lugar, o t errível Ab raxas.
"O ser h u m an o é fraco, por isso é in dispen sável a com un idade; se a com u -
n idade n ão est iver sob o signo d a Mãe, est ará n o signo de Ph allos. Nen h u m a
com un idade é sofrim en t o e doen ça. Com u n id ad e é em cada u m d esm em bra-
m en t o e dissolução.
"A diferen ciação leva à vid a solitária. A vid a solit ária se op õe à com un idade.
Mas por causa da fraqueza das pessoas em relação aos deuses e d em ón ios e à sua
lei in su perável, a com un idade é n ecessária. Por isso ten de t an t a com un idade
quan to for preciso, n ão por causa das pessoas, mas por causa dos deuses. O s
deuses vos obrigam à com un idade. O t an t o que vos obrigam , o t an t o de com u -
n idade é preciso haver, m ais do que isso vem do m al.
"N a com un idade cada u m se su bord in a ao out ro, para que a com un idade se
m an t en h a, pois vós precisais dela.
"N a vid a solit ária cada u m se sobrepõe ao out ro, a fim de que cada qu al se
en con t re e evit e a escravidão.
"N a com un idade deve vigorar ren ún cia, n a vid a solit ária, a prodigalidade.
"A com un idade é profun deza, a vid a solit ária é elevação.
"A m ed id a ju st a n a com un idade p u rifica e con serva.
"A m ed id a ju st a n a vid a solit ária p u rifica e aum en t a.
"A com un idade nos d á calor, a vid a solit ária nos dá lu z "" 7 .

{11} Q u an d o Filêm on t erm in ou , os m ort os ficaram em silên cio e n ão saíram


do lugar, m as olh aram para Filêm on com o qu em espera algum a coisa. Q u an d o
Filêm on viu que os m ort os ficaram calados e esperavam , levan t ou-se n ovam en -
te e falou (e esta é a sext a in st ru ção dos m o r t o s) "8 :

"O d áim on da sexualidade aproxim ou -se de n ossa alm a com o serpen te. El a
é m etade alm a h u m an a e se ch am a pen sam en to-desejo.

117 O Livro Negro 6, continua: "Na comunidade vamos à origem, que é a mãe./ Na solidão vamos ao futuro,
que é o falo gerador" (p. 46 ). Em outubro de 1916, Jung deu duas palestras no Clube de Psicologia sobre
a relação da individuação com a adaptação coletiva ( O C, 18). Este tema dominou as discussões no Clube
naquele ano.
118 Este parágrafo não está no livro Negro 6.
468 AP RO FU N D AM EN T O S

"O d áim on da espirit u alidade baixou para d en t ro de n ossa alm a com o o


pássaro bran co. Ele é m etade alm a h u m an a e se ch am a desejo-pen sam en to.
"A serpen te é u m a alm a t erren a, sem id em on íaca, u m espírit o e aparen tada
com os espírit os dos m ort os. Co m o esses, t am bém ela vagueia pelas coisas da
t erra e faz com que ten h am os m edo dela ou que elas despert em n ossa cobiça.
A serpen te é de n at u reza fem in in a e procu ra sem pre a com pan h ia dos m ort os,
que est ão presos à t erra, que n ão en con t raram o cam in h o m ais além , ou seja,
da vid a solitária. A serpen te é u m a p rost it u t a que faz orgias com o d em ón io e
os m aus espírit os, u m t iran o cru el e espírit o t ort urador, sem pre seduzin do a
p ior com pan h ia. O pássaro bran co é u m a alm a sem iceleste do ser h um an o. Fica
ju n t o à Mã e e às vezes desce. O pássaro é m ascu lin o e pen sam en t o operan te. E
puro e solit ário, u m m en sageiro da Mãe. Ele voa alto sobre a t erra. Co m an d a
a vid a solitária. Tr az n ot ícias dos dist an t es, que viveram antes e já est ão con -
sum ados. Leva n ossa palavra à Mã e lá em cim a. Ela in t ercede, adm oesta, mas
n ão t em poder con t ra os deuses. El a é u m recipien t e do sol. A serpen te desce e
paralisa com astúcia o d áim on fálico ou lh e dá u m a picada. Ela leva para cim a os
pen sam en tos superastutos do t erren o, que rast ejam através de todos os buracos
e se p ren d em sugantes em t oda part e com avidez. Ap esar de ela n ão querer,
t em de ser útil a n ós. El a escapa de nosso con t role e nos m ost ra assim o cam i-
n h o que n ão en con t raríam os só com nossa in t eligên cia".

II9
Te n d o O I AH M Q N t erm in ad o, os m ort os olh aram com desprezo e disse-
ram : "Ch ega de falar de deuses, d áim on es e alm as. N o fundo, já sabíam os disso
h á m u it o".
Mas O I AH M Q N sor r iu e respon deu: "Vó s, pobres n a carn e, ricos n o esp í-
rit o, a carn e era bem gorda, o espírit o bem magro. Mas com o conseguis algo da
lu z etern a? Vó s zom bais da m in h a lou cu ra que t am bém vós possuís: zom bais
de vós m esm os. O con h ecim en t o livr a do perigo. Mas a zom baria é o reverso
de vossa fé. O pret o é m en os que o bran co? Vó s rejeit ast es a fé e conservastes a
zom baria. Fostes port an t o libert ados da fé? Nã o , vós vos pren destes à zom baria
e assim n ovam en t e à fé. E por isso sois m iseráveis".
Mas os m ort os se revolt aram e grit aram : "N ã o somos m iseráveis, somos i n -
teligen tes, nosso pen sar e sen t ir são puros com o água crist alin a. N ó s prezam os

119 O s parágrafos seguintes até o final da seção não se encontram no Livro Negro 6.
AP RO FU N D AM EN T O S 469

n ossa razão. N ó s zom bam os da superst ição. Acred it as que tuas velh as loucuras
nos at in giram ? Velh o, t u foste acom etido por u m d elírio in fan t il; de que nos
serve?"
O I AH M Q N respon deu: "O que ain d a serve a vós? Eu vos libert o daquilo
que ain d a vos pren de à som bra d a vid a. Levai esse con h ecim en t o convosco,
acrescen t ai esta lou cu ra à vossa in t eligên cia, esta irracion alid ad e à vossa r a -
zão e en con t rareis a vós m esm os. Se fôsseis h u m an os, t eríeis com eçad o vossa
vid a e vosso cam in h o da vid a en t re a razão e a irracion alid ad e e viveríeis a lu z
et ern a, cu ja som bra vivestes an t ecipadam en t e. Mas com o sois m ort os, este co-
n h ecim en t o vos lib er t a d a vid a, t ir a de vós a ân sia pelo ser h u m an o e lib er t a
vosso si-m esm o dos en volt órios que colocavam lu z e som bra em t orn o de vós.
A com p aixão pelo ser h u m an o se apossará de vós e saireis d a t orren t e para a
t erra firm e. Saireis da et ern a reviravolt a para o roch edo estável do descanso. O
círculo da duração fluente se rom pe, a ch am a sucum be sobre si m esm a.
"Eu acen d i u m fogo violen t o, eu d ei ao assassino u m a faca, eu ab ri feridas
cicat rizadas, eu acelerei todo m ovim en t o, d ei ao dem en t e m ais u m a bebida
in ebrian t e, t orn ei o frio superfrio, o calor superquen t e, a falsidade m ais falsa, o
bem ain d a m elh or, a fraqueza ain d a m ais fraca.
"Est e con h ecim en t o é a m ach ad in h a do sacrifican t e".
Mas os m ort os grit aram : "Te u con h ecim en t o é u m a lou cu ra e u m a m aldição.
T u queres tocar a rod a para trás? Ela vai est raçalh á-lo, m ist ificad or!"
O I AH M Q N respon deu: "Assim acon teceu. A t er r a ficou n ovam en t e verde
e fecun da com o sangue do sacrifício, flores desabroch aram , a on d a m u r m u r a
n a areia, u m a n évoa prat eada est á parada n o sopé da serra, u m pássaro d a alm a
aproxim ou -se do ser h um an o, a en xad a ret in e n o cam po e o m achado, n o m ato,
u m ven t o sopra através das árvores, e o sol b r ilh a n o orvalh o d a gran diosa m a-
n hã, os plan etas con t em p lam o n ascim en t o, da t er r a em ergiu o que t em m u it os
braços, as pedras falam e o cap im m u r m u r a. O ser h u m an o en con t rou -se, e os
deuses viajam pelos céus, a plen it u d e gera a gota de ouro, o feito de ouro que
paira alado".
En t ão os m ort os se calaram , olh aram fixam en t e para O I AH M Q N e se afas-
t aram sem fazer barulh o. Mas O I AH M Q N curvou-se até o ch ão e disse: "Fo i
bem -sucedido, mas n ão com pletado. Fr u t o da t erra, brot a, eleva-t e, e t u , céu,
d erram a a água da vid a".
Dep ois disso, O I AH M Q N desapareceu.
47o AP RO FU N D AM EN T O S

I2
°E u e st a va b e m co n fu so , q u a n d o , n a n o i t e se gu in t e , O I A H M Q N ap ro-
xim ou -se de m im , pois eu o h avia cham ado, e lh e disse: "O que fizeste, O I -
AH M Q N ? Q u e fogo ateaste? O que despedaçast e? A rod a das criações está
parada?"

Ele respon deu: "Tu d o est á an dan do seu cam in h o cost um eiro. Nad a acon -
teceu e, n o en t an t o, acon teceu u m doce e in dizível m ist ério: saí do círculo gi-
rat ório".
"O que dizes? Tuas palavras m ovem m eus lábios, em m eus ouvidos soa t u a
voz, m eus olhos te veem a p ar t ir de m im . Realm en t e, t u és u m mago. T u saíste
do círcu lo girat ório? - Q u e con fusão! T u és eu , eu sou tu? N ã o o sen t i com o
se a rod a das criações tivesse parado, e t u dizes que saíste do círculo girat ório?
Est ou b em en t ran çad o sobre a rod a — eu sin t o o girar veloz — e m esm o assim a
rod a das criações est á parada para m im . O que fizeste, pai? En sin a-m e!"
O I AH M Q N en t ão falou: "E u su bi para o lugar firm e e o levei com igo e sal-
vei do m ovim en t o da on da, da circulação dos n ascim en t os e da rod a girat ória
do et ern o acontecer. Ele está seguro. O s m ort os receberam a lou cu ra do en sin o,
foram cegados pela verdade e en xergam através do erro. Eles o con h eceram e
sen t iram e se arrepen d eram , volt arão e vão im p lorar com h u m ild ad e. Pois o
que rejeit aram vai t orn ar-se para eles o m ais precioso".
Eu qu eria fazer ain d a u m a pergun t a a O I AH M Q N , pois o en igm a m e afli-
gia. Mas ele já h avia tocado o solo e desaparecido. A escu ridão da n oit e esteve
m u d a e n ão m e respon deu. Min h a alm a ficou em silên cio, m en eou a cabeça e
n ão sabia d izer n ada sobre o m ist ério que O I AH M Q N h avia in sin u ado, mas
n ão revelado.

{12} Passou-se ou t ro d ia e veio a sét im a n oit e.


O s m ort os vier am de n ovo, dessa vez com aspecto d eplorável e falaram :
"Mais algo; esquecem os de m en cion ar isso, en sin a-n os sobre o ser h u m an o".
O I AH M Q N apresen tou-se a m im , ficou de pé e fa lo u 121 (e esta é a sét im a
in st ru ção dos m o r t o s) 12 2 :

120 Esta seção não consta no Livro Negro 6.


121 8 de fevereiro de 1916. Esta frase não está no Livro Negro 6.
122 Esta frase não consta no Livro Negro 6.
AP RO FU N D AM EN T O S 47i

"O ser h u m an o é u m a p ort a através d a qual en t rais do m u n d o dos deuses,


d em ón ios e alm as para d en t ro do m u n d o in t erior, do m u n d o m aior para d en -
t ro do m u n d o m en or. Pequeno e n u lo é o ser h u m an o, já se en con t ra atrás de
vós e n ovam en t e estais n o espaço in fin it o, n a in fin it u d e m en or ou in t erior.
"N u m a dist ân cia in com en su rável est á u m a est rela solit ária n o zén it e.
"Est e é o ú n ico Deu s desse ser h u m an o, este é seu m un do, seu Plerom a, sua
divin dade.
"Nest e m un do, o ser h u m an o é o Ab raxas que gera seu m u n d o e o engole.
"Est a est rela é seu Deu s e sua fin alidade.
"E seu Deu s que o guia.
"Nele o ser h u m an o vai para o descanso.
"Par a ele se dirige a lon ga viagem da alm a após a m ort e, n ele b r ilh a com o lu z
tudo o que o ser h u m an o ret ira do m u n d o m aior.
"A este ú n ico reza o ser h um an o.
"A oração au m en t a a lu z da est rela,
"lan ça u m a pon te sobre a m ort e,
"prepara a vid a para o m u n d o m en or e aplaca o desejo sem esperan ça do
m u n d o m aior.
"Q u an d o o m u n d o m aior fica frio, a est rela arde.
"Nad a h á en t re o ser h u m an o e seu ú n ico Deu s, en quan t o o ser h u m an o
consegue desviar seus olh os do espet áculo flamejante de Ab raxas.
"O ser h u m an o aqu i, e Deu s lá.
"Fraqu eza e n ulidade aqui, et ern a força criad ora lá.
"Aqu i escu ridão t ot al e frio ú m id o,
lá plen o so l" 12 3 .

123 Em 29 de fevereiro de 1919, Jung escreveu uma carta a Joan Corrie e comentou sobre os Sermones, com
especial referência ao último: "O criador primordial do mundo, a cega libido criadora, vê-se transformada
em homem através da individuação; e deste processo, que se assemelha à gravidez, surge uma criança
divina, um Deus renascido, já não mais disperso nos milhões de criaturas, mas sendo um só e este
indivíduo e ao mesmo tempo todos os indivíduos, o mesmo em você e em m im . A Dra. L[on g] tem um
livrinho: V I I Sermones ad mortuos. Ali você encontra a descrição do Criador disperso em suas criaturas e,
no último sermão, você encontra o início da individuação, da qual surge a criança divina. [...] A criança
é um novo Deus, nascido concretamente em muitos indivíduos, mas estes não o sabem. Ele é um Deus
espiritual'. Um espírito em muitas pessoas, e no entanto um só e o mesmo em toda parte. Mantenha-
se fiel ao tempo de você e você experimentará suas qualidades" (reproduzido no diário de LO N G , C.
Countway Library of Medicine, p. 21-22).
472 AP RO FU N D AM EN T O S

I24
Q u a n d o Filêm on t er m in o u , os m o r t o s s i l e n c i a r a m . O p e so c a i u d eles e
su biram com o fum aça sobre o fogo do pastor que du ran t e a n oit e vigiou seu
rebanho.

Mas eu m e volt ei para O I AH M Q N e disse: "Magn ífico, t u en sin aste que o


ser h u m an o é u m a porta? U m a p ort a através d a qual passa a t ropa dos deuses?
At ravés da qu al flu i a t orren t e da vida? At ravés da qual flu i para d en t ro todo
fut uro e vai para o in fin d o do passado?"
O I AH M Q N respon deu: "Esses m ort os acredit avam n a t ran sform ação e
evolu ção do ser h um an o. Est avam con ven cidos de sua n ulidade e t ran sit orie-
dade. A n u lidade lh es era m ais plausível do que isto, e m esm o assim sabiam que
o ser h u m an o cr ia até seus deuses e por isso sabiam que os deuses n ão valiam
nada. Por isso precisam apren der o que n ão sabiam , de que o ser h u m an o é
u m a p ort a pela qu al se esprem e para passar o com boio dos deuses e o vir a ser e
desaparecer de todos os tem pos. Ele n ão o faz, ele n ão o cria, ele n ão o su port a,
pois ele é o ser, o ú n ico ser, pois ele é o m om en t o do m un do, o m om en t o et er-
no. Q u e m conhece ist o está sobre brasas, t orn a-se fum aça e cin za. Ele perd u ra,
e sua t ran sit oriedade cessou. Torn ou -se u m sendo. Vó s sonhastes com a ch am a,
com o se ela fosse a vid a. Mas a vid a é perm an ên cia, a ch am a se apaga. Ist o levei
para o além , ist o salvei do fogo. Ist o é o filh o d a flor do fogo. Vist e em m im que
eu m esm o sou feito do fogo et ern o da lu z. Mas eu sou qu em salvou para t i os
grãos pretos e dourados e sua lu z azu l das estrelas.
Tu , ser et ern o — o que é com p rim en t o e curteza? O que é m om en t o e d u -
ração etern a? Tu , ser, és et ern o em cada m om en t o. O que é tem po? Tem p o é o
fogo que arde, con som e e se apaga. Eu salvei o sendo do tem po, livr ei-o do fogo
do t em po e da escu ridão t em poral, dos deuses e d em ón ios".
Mas eu lh e disse: "Magn ífico, quan do m e darás de presen te o tesouro pret o
e dourado e sua lu z azu l de est rela?"
O I AH M Q N respon deu: "Q u an d o t iveres entregue à sagrada ch am a tudo o
que pode q u e im a r "125 .

124 O s parágrafos seguintes até o final não se encontram no Livro Negro 6.


125 Em setembro de 1916, Jung manteve conversas com sua alma que fornecem ulterior elaboração e
esclarecimento sobre a cosmologia dos Sermones. 25 de setembro: [Alm a]: "Quantas luzes queres ter, três ou
sete? Três é o íntimo e moderado, sete é o geral e abrangente". [Eu ]: "Q ue pergunta! E que decisão! Devo
ser honesto: minha tendência é para as sete luzes". [Alm a]: "Portanto queres as sete? Isto eu imaginava.
Isto leva para a amplidão - luzes frias". [Eu ]: "E disso que preciso: refrescamento, ar fresco. Basta de calor
AP RO FU N D AM EN T O S 473

{13} Q u an d o O I AH M Q N disse estas palavras, saiu da som bra d a n oit e u m a


figura pret a com olhos d ou r ad os 126 . Levei u m susto e grit ei: "Es u m in im igo?
Q u e m és tu? Don d e ven s? Nu n ca te vi antes! D iz e o que queres".
O pret o respon deu: "Ven h o de longe. Ven h o do O r ien t e e sigo o fogo b r i-
lh an t e que m e precede, O I AH M Q N . N ã o sou t eu in im igo, sou t eu amigo. M i -
n h a pele é negra e m eu olh o ir r ad ia ou ro".
"O que trazes?", pergu n t ei com medo.
"Trago ren ú n cia - ren ú n cia d a alegria e com paixão do ser h um an o. Par t ici-
pação cr ia in diferen ça. Com p aixão, mas n ão part icipação - Com p aixão com o
m u n d o e u m querer sossegado em relação ao outro.
"A com paixão perm an ece in com preen sível, por isso fun cion a.
"Lon ge da cobiça, n ão conhece medo.
"Lon ge do am or, am a o todo".

sufocante. Medo demais e liberdade de menos da respiração. Dá-m e as sete luzes". [Alm a]: ' A prim eira
luz significa o Pleroma. / A segunda luz significa o Abraxas. / A terceira, o sol. / A quarta, a lua./ A quinta,
a terra. / A sexta, o falo. / A sétima luz, a estrela". [Eu ]: "Por que faltam o pássaro, a mãe celeste e o céu?"
[Alm a]: "Eles estão todos incluídos na estrela. Quando olhas para a estrela, olhas através deles. Eles são as
pontes para a estrela. Eles formam a única sétima luz, a mais nobre, a que paira, que com um ruidoso bater
de asas se levanta, liberta do abraço do feitiço da luz, com 6 galhos e 1 flor, em que jazia cochilando o Deus
estelar./ As seis luzes estão sós e formam a multiplicidade, a outra luz é única e constitui a unidade, ela é a
flor do alto da árvore, o ovo sagrado, o embrião do mundo, a quem foram dadas asas para que possa chegar
a seu lugar. Do uno procede sempre de novo o múltiplo e do múltiplo, o uno" (livro Negro 6, p. 104-106).
28 de setembro: [Alm a]: "Então vamos tentar: há algo a respeito do pássaro dourado. Não é o pássaro
branco, mas o dourado. Ele está em outro lugar. O branco é um bom daimon, mas o pássaro dourado está
acima de t i e abaixo de teu Deus. Ele voa adiante de t i. Eu o vejo no éter azul, voando atrás da estrela. Ele é
algo de t i. Ele é ao mesmo tempo seu próprio ovo que te contém. Se percebes o que digo, então pergunta".
[Eu ]: "Explica-m e mais. Ele me dá uma sensação ruim ". [Alm a]: "O pássaro dourado não é nenhuma
alma, é todo o teu ser. O s seres humanos também são pássaros dourados, não todos, outros são vermes e
apodrecem na terra. Mas alguns são pássaros dourados". [Eu ]: "Con tin ua, eu temo meu nojo. Deixa sair
o que acumulaste". [Alm a]: "O pássaro dourado está pousado na árvore das 6 luzes. A árvore nasce da
cabeça do Abraxas, e Abraxas nasce do Pleroma. Tudo de onde nasce a árvore acaba por florir como uma
luz, transformado como um útero da flor do ponto mais alto do pássaro dourado do ovo. A árvore da luz
é em primeiro lugar uma planta, ela se chama indivíduo; este nasce da cabeça do Abraxas, sua ideia, uma
ideia entre inúmeras. O indivíduo é mera planta sem flores, nem frutos, uma passagem para a árvore das 7
luzes. O indivíduo é o primeiro degrau da árvore da luz. Brilhante, dele floresce o próprio Fanes, Agn i, um
fogo novo, um pássaro dourado. Isto vem depois do indivíduo, ou seja, quando ele está novamente unido
ao mundo, então o mundo floresce a partir dele. Abraxas é o impulso, indivíduo distinto dele, a árvore das
7 luzes, mas o símbolo do indivíduo unido ao Abraxas. Nisto aparece Fanes que voa à frente, ele, o pássaro
dourado./ Tu te unes a Abraxas através de m im . Primeiramente tu me dás teu coração, pois vives através de
m im . Eu sou a ponte até Abraxas. Assim a árvore da luz se torna em t i e tu mesmo na árvore da luz e Fanes
sai de ti. Isto previste, mas não entendeste. Naquele tempo também tu tiveste que separar-te de Abraxas
para tornar-te indivíduo, contraposto ao impulso. Agora vem a união com o Abraxas. Isto passa por m im .
Isto não podes fazer. Por isso deves ficar comigo. A união com o Abraxas físico passa pela mulher humana,
mas a união com o Abr. espiritual passa por m im , por isso deves estar comigo" (livro Negro, 6 p. 114-120).
126 No Livro Negro 6, esta figura entra em 5 de fevereiro, no meio dos Sermones (p. 35s.). Cf. nota 108, p. 463
acima.
474 AP RO FU N D AM EN T O S

O l h e i p ara ele c o m m e d o e d isse: "P o r q u e és e scu r o c o m o t e r r a d o s c a m p o s


e negro com o o ferro? Eu t en h o m edo de t i; estou m u it o magoado, o que m e
fizeste?"
"T u podes ch am ar-m e de m ort e - a m ort e que su rgiu com o sol. E u ven h o
com sofrim en t o silen cioso e longo descanso. Eu coloco o in vólu cro d a ar m ad u -
ra sobre t i. No m eio d a vid a com eça a m ort e. Coloco ao redor de t i in vólu cro
sobre in vólucro, de form a que t eu calor jam ais se apague".
"T u trazes t rist eza e desalen t o", respon d i, "eu qu eria estar en t re os seres
h u m an os".
Mas ele falou: "Co m o u m en volvid o vais até o ser h um an o. Tu a lu z b r ilh a
n a n oit e. Tu a n at u reza solar separa-se de t i e com eça t u a n at u reza de est rela".
"T u és cru el", su spirei.
"O sim ples é cru el, ele n ão se con cilia com o m ú lt iplo".
Co m essas palavras, desapareceu o en igm át ico negro. Mas Filêm on olh ou
sério para m im e com olh ar carregado. "T u o vist e d ireit o, m eu filh o? T u ain d a
ouvirás falar dele. Agor a vem , para que eu realize o que o negro te pred iz".
Assim falando, t ocou m eus olh os, ab riu m in h a visão e m e m ost rou o m ist é-
rio in com en su rável. Eu olh ei por m u it o t em po até poder com p reen d ê-lo: mas
o que foi que eu vi? V i a n oit e, vi a t erra escura e acim a estava o céu relu zin d o
com o b rilh o de in ú m eras estrelas. E vi que o céu t in h a a form a de u m a m ulh er,
seu m an t o de estrelas era sépt u plo e a cobria t ot alm en t e.
E assim que acabei de vê-lo, O I AH M Q N falou:
12 7
"Mã e , que estás n o círcu lo m ais elevado, sem n om e, que en volves a m im e
a ele e que salvas a m im e a ele dos deuses: ele quer t orn ar-se t eu filh o.
"Q u eir as aceit ar seu n ascim en t o.
"Faze com que se ren ove. Eu m e separo d e le 128 . O frio cresce e sua est rela
b r ilh a com m aior claridade.
"Ele precisa de filiação.
"T u deste à lu z a serpen te d ivin a, t u a libert ast e pelas dores do part o, eleva
este ser h u m an o à con d ição de filh o, ele precisa da m ãe".
Veio en t ão u m a voz de lo n ge 129 e era com o u m a est rela cadente:

127 17 de fevereiro de 1916. No Livro Negro 6, este discurso é proferido pelo próprio Jung (p. 52).
128 O Livro Negro 6, tem aqui: "Eu precisava de uma nova sombra, pois conhecia o tremendo Abraxas e me
afastei dele" (p. 52).
129 No Livro Negro 6, esta voz é identificada como "mãe" (p. 53).
AP RO FU N D AM EN T O S 475

"N ã o posso aceit á-lo com o filh o. Q u e se pu rifiqu e an tes".


O I AH M Q N p er gu n t o u 130 : "Q u a l é sua im pu reza?"
A voz respon deu: " E a m ist u ra: que se abst en h a do sofrim en t o e d a alegria
h u m an os. Q u e persevere n a separação at é que a ren ú n cia seja com plet a e ele
est eja livr e d a m ist u r a com os seres h u m an os. En t ão p od er á ser aceit o com o
filh o".
Nest e m om en t o apagou-se m in h a visão. O I AH M Q N foi em bora e eu fiqu ei
sozin h o. O b ed ien t e, persist i n a separação. Mas n a qu art a n oit e vi u m a figura
est ran h a, u m h om em com m an t o com prido, t u rban t e e olh o de vid ro, sor r iu in -
teligen te e bon dosam en t e com o a figura de u m m éd ico sá b io 131. Ap r oxim ou -se
de m im e disse: "Eu ven h o falar-t e de alegria". Mas eu disse: "Q u er es falar-m e
de alegria? Est o u sangrando das m ilen árias feridas da h u m an idade".
Ele respon deu: "E u trago a cu ra. Mu lh eres m e en sin aram esta art e. Elas sa-
bem cu rar crian ças doen tes. A ferid a dói? A cu ra está próxim a. O u ve u m bom
con selh o e n ão te revolt es".
Pergun t ei: "O que queres? t en t ar-m e? zom bar de m im ?"
"O que te parece?", in t errom p eu -m e. "E u te trago a delícia do paraíso, o
fogo curador, o am or das m u lh er es"132 .
Pergun t ei: "Pen sas n a descida ao brejo dos sap os? 133 A dissolução n o m ú lt i-
plo, a dispersão, a dilaceração?"
En q u an t o eu assim falava, o velh o t ran sform ou -se em O I AH M Q N , e eu vi
que era o mago que m e t en t ava. Mas O I AH M Q N con t in u ou falando com igo 134 :
"T u ain d a n ão vivest e a dilaceração. T u deves ser part ido, rasgado em pe-
daços e espalhado por todos os ven t os. As pessoas se preparam para a Últ im a
Ce ia con t igo".
"O que sobrará en t ão de m im ", grit ei.

130 No Livro Negro 6, isto é dito por Jung (p. 53).


131 21 de fevereiro de 1916. Em vez disso, o Livro Negro 6, tem: [Eu ]: "Um turco? Donde vens? És um adepto
do Islã? Q ue mensagem me trazes de Maomé?"/ / [Visitante]: "Falo-te de poligamia, das howris e do
paraíso. Disso deves ouvir"./ / [Eu ]: "Fala e termina logo com este tormento" (p. 54).
132 A versão deste diálogo no Livro Negro 6, inclui o seguinte intercâmbio: [Eu]: O que há com essa poligamia,
as howris e o paraíso?" [Visitan te]: "Muitas mulheres são muitos livros. Cada mulher é um livro, cada livro
é uma mulher. A howri é uma ideia, e a ideia, uma howri. O mundo das ideias é o paraíso, e o paraíso é
o mundo das ideias. Maomé ensina que o fiel é recebido no paraíso pelas howris. O s germânicos diziam
coisa semelhante" (p. 56) (cf. o Corão, 56,12-39). Na mitologia nórdica, as valquírias escoltavam o herói
morto na guerra ao Valhalla e lá cuidavam dele.
133 24 de fevereiro de 1916.
134 Esta declaração não está no Livro Negro 6.
476 AP RO FU N D AM EN T O S

"Nad a que n ão t u a som bra. T u serás u m curso de água que se d erram a sobre
as t erras. Ele procu ra todos os vales e corre para a profun deza".
Pergu n t ei en t ão m u it o t rist e: "Mas onde fica m in h a in d ivid u alid ad e?"
"T u a roubarás de t i m esm o", respon deu File m o n 135 , "t u segurarás em m ãos
t rem ulas o rein o in visível, ele lan ça suas raízes para baixo, para d en t ro das trevas
som brias e m ist érios d a t erra, galhos folhosos m an d a ele para os ares dourados.
"An im ais m or am em seus galhos.
"Pessoas descan sam à sua som bra.
"Seu m u rm ú rio força de baixo para cim a.
"U m a desilusão de m il m ilh as de com p rim en t o é a seiva da árvore.
"El a vai ficar verde por longo tem po.
"O silên cio est á em sua copa.
"Silên cio em suas raízes profun das".
136
De ssa s palavras de O I AH M Q N en t en d i que ele t in h a de ficar fiel ao am or
para acabar com a m ist u ra que nasce do am or n ão vivid o. En t e n d i que a m ist u r a
é u m a coação que en t ra no lugar d a dedicação espon t ân ea. At ravés da dedicação
espon t ân ea surge, com o en sin ou O I AH M Q N , a ru p t u ra ou dilaceração. Est a é
a supressão da m ist u ra. At ravés d a dedicação espon t ân ea desfaz-se, port an t o, a
coação. Por isso devo ficar fiel ao am or, e pela dedicação espon t ân ea a ele sofro
dilaceração e obt en h o assim a filiação da gran de m ãe, ist o é, a n at u reza estelar,
a libert ação da su bord in ação a pessoas e coisas. Se est iver subordin ado a pes-
soas e coisas, m in h a vid a n ão pode progredir para alcan çar seus objet ivos, e eu
m esm o n ão posso chegar à m in h a p róp ria e m ais profun da n at ureza. Tam bém a
m ort e n ão pode com eçar em m im com o n ova vid a, mas só consigo sen t ir m edo
d ian t e da m ort e. Eu t en h o de ficar fiel ao am or, pois com o pod eria chegar de
out ro m odo à ru p t u ra e dissolução da coação? Co m o pod eria exp erim en t ar
de ou t ro m odo a m ort e, do que através do fato de ficar fiel ao am or e assum ir
sobre m im livrem en t e a d or e todo o sofrim en t o do am or? En qu an t o n ão m e
en tregar livrem en t e à dilaceração, ficam partes de m eu si-m esm o secretam en te
com pessoas e coisas que m e ligam a elas e assim sou obrigado, quer qu eira quer
não, a t er parte n elas, estar com elas m ist u rad o e ligado a elas. Só a fidelidade ao
am or e a en trega espon t ân ea ao am or podem desfazer esta vin cu lação e m ist u r a

135 28 de fevereiro de 1916.


136 O s dois parágrafos seguintes não constam no Livro Negro 6.
AP RO FU N D AM EN T O S 477

e trazer de volt a a m im aquelas partes de m eu si-m esm o que estavam secret a-


m en t e com as pessoas e coisas. Só assim cresce a lu z d a est rela, só assim chego
à m in h a n at u reza estelar, ao m eu si-m esm o m ais au t ên t ico e m ais ín t im o, que
é sim ples e ún ico.
E difícil ficar fiel ao am or, pois ele est á acim a de qualquer pecado. Q u e m
quiser ficar fiel ao am or deve ven cer t am bém o pecado. N ã o é m u it o fácil ver
que se com ete u m pecado, que se caiu n u m pecado. Mas por causa d a fidelidade
ao am or ven cer o pecado t am bém é difícil, t ão difícil, que m eu pé h esit ou em
prosseguir.
Q u an d o chegou a n oit e, O I AH M Q N aproxim ou -se de m im com rou pa
m ar r om e segurando n a m ão u m peixe prateado. Ele disse: "Vê , m eu filh o, eu
fisguei e peguei este peixe e o t rou xe para t i, para te con solar". Q u an d o olh ei
para ele surpreso e in qu irid or, vi que estava parada n o escuro, à port a, u m a
som bra, t rajan do rou pa de n o b r e 137 . Seu rost o estava pálid o e sangue h avia cor-
rid o nas rugas da testa. Mas O I AH M Q N ajoelh ou-se, t ocou o ch ão e disse à
so m b r a 138 : "Me u sen h or e m eu irm ão, aben çoad o seja t eu n om e. T u fizeste o
m áxim o conosco: t u criast e h om en s e an im ais, t u deste t u a vid a pelos h om en s,
para que recebam a salvação. Te u espírit o esteve conosco por longo tem po. E
ain d a agora os h om en s olh am para t i e im p lor am t u a com paixão, su plicam a
graça de Deu s e o p erd ão dos pecados através de t i. T u n ão te cansas de at en -
der os h om en s. Lou vo t u a paciên cia d ivin a. O s h om en s n ão são in gratos? Sua
avidez n ão t em lim it es? Q u e r e m ain d a m ais de t i? Já receberam m u it o, mas
con t in u am pedin do.
Vê , m eu sen h or e m eu irm ão, eles n ão m e am am , mas cobiçam a t i com
avidez, assim com o cobiçam os os ben s do p róxim o. Eles n ão am am o p róxim o,
mas o cobiçam . Se fossem fiéis a seu am or, n ão cobiçariam . Mas qu em dá est i-
m u la a cobiça. Eles n ão qu eriam apren der o am or? A fidelidade ao am or? a es-
pon t an eidade da dedicação? Mas eles exigem , cobiçam , esm olam de t i e n ão t i -
raram n en h u m exem plo de t u a vid a su blim e. Eles bem que a im it ar am , mas n ão
viveram sua própria vid a assim com o t u vivest e a tua. T u m ostraste através de
t u a vid a su blim e com o cada qu al t in h a de t om ar sobre si sua própria vid a, fiel à

137 I.e., Cristo.


138 12 de abril de 1916. No Livro Negro 6, esta fala não é atribuída a Filêmon.
478 AP RO FU N D AM EN T O S

su a p r ó p r i a n a t u r e z a e a se u p r ó p r i o a m o r . N ã o p e r d o a st e a a d ú l t e r a ? 13 9 N ã o t e
sentaste com prost it u t as e cobradores de im p o st o s? 14 0 N ã o in frin gist e a le i do
sáb ad o ? 14 1 T u vivest e t u a p róp ria vid a, mas as pessoas n ão o fazem ; elas só rezam
a t i, pedem a t i e te lem b ram que t u a obra est á in acabada. Mas t u a obra est aria
acabada se o ser h u m an o carregasse sua p róp ria vid a sem im it ação. As pessoas
ain d a são in fan t is e esquecem de agradecer, pois ain d a n ão conseguem dizer:
"Grat os, nosso Sen h or, pela salvação que nos t rouxest e. N ó s a assum im os, n ós
lh e dem os u m lugar em nosso coração e apren dem os a con t in u ar t u a obra em
n ós por n ós m esm os. Am ad u recem os através de t u a ajuda, para levar adian te a
obra d a salvação em n ós. Grat os, t u a obra est á assum ida em n ós, en t en dem os
t eu en sin am en t o reden tor, n ós com plet am os em n ós o que com eçast e por n ós
com esforços de sangue. N ã o somos filh os in gratos que cobiçam os bens dos
pais. Grat os, nosso senhor, vam os negociar com t eu t alen t o e n ão en t errá-lo n a
t erra, esten der sem pre de n ovo nossas m ãos desam paradas e lem b rar-t e para
com plet ar t u a obra em n ós. N ó s querem os t om ar sobre n ós teus esforços e
t ua obra, para que t u a obra se com plet e e possas repousar tuas m ãos cansadas,
com o u m t rabalh ador após u m longo d ia de d u ra jorn ad a. Bem -aven t u rad o o
m ort o que descansa ao t érm in o de sua obra.
"Eu gost aria que as pessoas falassem assim contigo. Mas elas n ão t êm n e-
n h u m am or a t i, m eu sen h or e m eu irm ão. Elas n ão te con cedem o p rém io do
descanso. D e ixa m t u a obra in com plet a, et ern am en t e necessitadas de t u a com -
paixão e de t u a solicit u de.
"Mas eu , m eu sen h or e m eu irm ão, acredit o que t u com pletaste t u a obra,
pois qu em en t regou sua vid a, t oda sua verdade, todo seu am or, t oda sua alm a,
este com plet ou sua obra. O que alguém pode fazer pelos h om en s, t u o fizeste
e com pletaste. Agor a chega o t em po em que cada u m t em de fazer sua p róp ria
obra da reden ção. A h u m ild ad e en velh ece, e u m n ovo m ês co m e ço u "14 2 .
I43
Q u a n d o O I AH M Q N t er m in ou , levan t ei os olhos e vi que o lugar, onde a
som bra h avia estado, estava vazio. Vir e i- m e para O I AH M Q N e disse: "Me u pai,
t u falaste dos seres h um an os. Eu sou u m ser h um an o, perd oa-m e!"

139 Cf. Jo 8,1-11.


140 Cf. Mt 21,31-32.
141 Cf. Jo9,i3s.
142 A referência é aos meses platónicos. Cf. acima, nota 273, p. 358
143 O s próximos seis parágrafos não ocorrem no Livro Negro 6.
AP RO FU N D AM EN T O S 479

Mas O I AH M Q N se dissolveu n a escuridão, e eu resolvi fazer o que t in h a


obrigação de fazer. Assu m i t od a a alegria e todo o sofrim en t o de m in h a n at u -
reza e fiqu ei fiel ao m eu am or para sofrer aquilo que sobrevem a cada u m a seu
modo. Fiq u ei sozin h o e com medo.

{14} Nu m a n oit e, quan do tudo estava quieto, escut ei u m m u rm ú rio com o que
de sete vozes e, algo m ais n it id am en t e, d ist in gu i a voz de O I AH M Q N , com o se
estivesse fazendo u m discurso. Prest an do m ais aten ção, en t en d i suas palavras:
14 4
"Dep ois que eu t in h a en gravidado o ven t re do subm un do e a serpen te d i-
vin a n asceu, fu i até os seres h u m an os e vi todas as suas lam en t ações e loucuras.
Eu vi que se m at avam e procu ravam razões para seu agir. Faziam isso porque
n ão sabiam fazer ou t ra coisa ou coisa m elh or. Pelo fato de est arem acost u m a-
dos a n ão fazer n ad a a que n ão pudessem at rib u ir algum a razão, in ven t aram
razões que os obrigavam a con t in u ar m atan do. "Parai, vós n ão tendes ju ízo",
disse o sábio. "En t ão parai e verificai os preju ízos que causais", disse o in t eli-
gente. Mas o louco r iu , pois d u ran t e a n oit e recebeu h on ras. Por que as pessoas
n ão veem sua loucura? A lou cu ra é u m a filh a do Deu s. Por isso as pessoas n ão
conseguem parar de m atar, pois assim servem à serpen te d ivin a sem saber. Por
am or ao serviço à serpen te d ivin a vale a pen a en tregar sua vid a. Por causa disso
desejais ser recon ciliados. Mas seria bem m elh or viver apenas do Deu s. Mas
a serpen te d ivin a quer sangue h u m an o. Ist o a alim en t a e a t orn a lu zid ia. N ã o
m at ar e n ão querer m or r er é u m engano a Deu s. Assim o ser viven t e t orn ou -se
u m en gan ador de Deu s. O viven t e consegue sua vid a através d a m en t ira. Mas a
serpen te quer ser enganada, pela esperan ça de t er sangue: quan t o m ais pessoas
rou baram dos deuses sua vid a, t an t o m ais floresceu o cam po sem eado de san -
gue d a serpen te para a colh eit a. O Deu s fica fort e pelo assassinato de pessoas.
A serpen te fica quen te e fogosa pelo excesso de satisfação. Su a gordura qu eim a
em ch am a arden te. A ch am a t orn a-se a lu z das pessoas, o p r im eir o raio de u m
sol ren ovado, ele, a lu z que por p r im eir o apareceu".
O que O I AH M Q N ain d a falou, eu n ão o con segui en ten der. Reflet i lon ga-
m en t e em suas palavras, que ele falou eviden t em en t e aos m ort os, mas fiqu ei
apavorado com os h orrores que acom pan h am u m ren ascim en t o de Deu s.

144 As duas próximas passagens também ocorrem em "Sonhos", segundo registros de meados de julho de
1917, introduzidas pelas palavras "Partes do próximo livro" (p. 18).
48o AP RO FU N D AM EN T O S

I45
E logo a seguir vi e m so n h o s Elias e Sa lo m é . Elias parecia preocupado e
assustado. Por isso, quan do n a n oit e seguinte t oda a lu z se h avia apagado e todo
ru íd o vivo se calado, ch am ei Elias e Salom é para m e prest arem con tas. Elias
adian t ou-se e falou:
"Fiq u ei fraco, est ou pobre, u m exceden te de m eu poder passou para t i, m eu
filho. Tir ast e dem ais de m im . T u te afastaste dem ais de m im . Eu escut ei coisas
estran h as e in com preen síveis, e a t ran qu ilid ad e de m in h a profun deza foi des-
t ru ída".
Pergu n t ei en t ão: "O que t u ouvias? que vozes escutavas?"
Elias respon deu: "Escu t ava u m a voz ch eia de con fusão, u m a voz apavoran te,
ch eia de advert ên cias e coisas in com preen síveis".
"O que d izia", pergu n t ei, "ouvist e as palavras?"
"Con fu sam en t e, era em baraçad a e descon cert an t e. A voz falou p r im eir a-
m en t e de u m a faca, que cort a algo ou talvez ceife, talvez as uvas que vão para a
adega. Talvez t en h a sido aquele da rou pa verm elh a que pisou o lagar on de jor r a
o san gu e 14 6 . D e repen t e era u m a voz do ouro que jaz em baixo e que m at a o
que ele toca. En t ão foi a voz do fogo que qu eim a assustadoram en te e que deve
in flam ar-se neste tem po. E en t ão era u m a palavra blasfem a, que eu n ão gost aria
de p ron u n ciar".
"U m a palavra blasfema? Q u a l foi?", pergu n t ei.
Respon d eu : "U m a palavra sobre a m ort e de Deu s. Só exist e u m Deu s, e
Deu s n ão pode m o r r e r " 14 7 .
Eu falei: "Est o u surpreso, Elias. N ã o sabes o que aconteceu? N ã o sabes que
o m u n d o vest iu rou pa nova? Q u e o Deu s ú n ico m or r eu e que m u it os deuses e
m u it os d em ón ios t orn aram -se n ovam en t e seres h um an os? Realm en t e, eu m e
ad m iro; ad m iro-m e ao ext rem o! Co m o é possível que t u n ão o soubesses? N ã o
sabes n ada do que acon teceu de novo? T u conheces o futuro. T u tens o d om
da previsão. O u n ão deverias saber o que acontece? Negas afin al aquilo que
e xist e ?"14 8

145 3 de maio de 1916.


146 Cf. acima, p. 315.
147 Cf. acima, p. 455.
148 Em Memórias, sonhos, reflexões, Jung afirmou: "As figuras do inconsciente são também 'ininformadas' e têm
necessidade do homem ou do contato com a consciência para adquirir o saber. Quando comecei a me
ocupar com o inconsciente, as 'figuras imaginárias' de Salomé e de Elias desempenharam um grande
papel. Em seguida passaram a um segundo plano para reaparecer cerca de dois anos mais tarde. Para meu
AP RO FU N D AM EN T O S 481

En t ão Salom é m e t om ou a palavra: "O que exist e n ão d á n en h u m prazer.


O prazer só vem do novo. Tam bém t u a alm a gostaria de u m n ovo h om em -
h a — h a — ela gosta de variação. T u n ão lh e dás prazer suficien t e. Nist o ela é
in corrigível e por isso t u a con sideras m aluca. N ó s só am am os o vin d ou ro, n ão
o sendo. So o n ovo nos d á prazer. Elias n ão pen sa n o sendo, só n o vin d ou ro. Por
isso ele o con h ece."
Resp on d i: "O que ele conhece? Q u e fale!"
Elias falou: "Eu já disse as palavras: a figura que vi estava ch eia de sangue, era
verm elh a, da cor do fogo, cin t ilan t e com o ouro. A voz que ou vi era com o t rovão
dist an t e, com o o soprar im pet uoso do ven t o n a floresta, com o u m t errem ot o.
N ã o era a voz de u m Deu s, mas com o u m ru íd o pagão, u m ch am ado que m eus
p rim it ivos pais con h eciam b em , mas que eu n u n ca h avia escutado. Soava an t e-
d ilu vian o, com o sain do de u m a floresta para u m lit or al dist an t e; n ela ressoavam
todas as vozes da selva. Est e ru íd o era apavoran te, mas h arm ón ico".
In t er r om p i: "Me u bom velh o, t u ouviste b em com o eu pen sei. Q u e m a-
ravilh a! Q u eres que te con te a respeito disso? Eu te disse que o m u n d o t in h a
recebido u m a n ova face. U m a cobert u ra n ova foi lan çada sobre ele. Est ran h o é
que t u n ão o saibas!
"Velh os deuses ficaram novos. O Deu s ú n ico est á m ort o - sim , realm en t e,
ele m orreu . Ele se p ar t iu n a diversidade e assim o m u n d o ficou rico d a n oit e
para o d ia. E t am bém acon teceu algo à alm a in d ivid u al — qu em gost aria de
d escrevê-lo! Mas assim t am bém os h om en s ficaram ricos da n oit e para o dia.
Co m o é possível que n ão soubesses disso?
"D o Deu s ú n ico fizeram -se dois, u m m ú lt iplo, cujo corpo con siste de m u i-
tos deuses, e u m ún ico, cujo corpo é u m ser h um an o, e assim m esm o é m ais
brilh an t e e m ais forte do que o sol.
"O que devo d izer-t e da alm a? N ã o percebeste que ela se t orn ou m últipla?
Ela t orn ou -se a m ais próxim a, m ais p róxim a, próxim a, dist an t e, m ais dist an t e,
a m ais d ist an t e, e m esm o assim é u m a com o era antes. In icialm en t e d ivid iu -se

grande espanto, elas não tinham sofrido a menor mudança; falavam e se comportavam como se nesse
ínterim absolutamente nada tivesse ocorrido. Entretanto os acontecimentos mais inauditos tinham -
se desenrolado em minha vida. Foi-me necessário, por assim dizer, recomeçar desde o início para lhes
explicar e narrar tudo o que se passara. De início fiquei bastante espantado. Só mais tarde compreendi o
que tinha acontecido: as figuras de Salomé e Elias haviam nesse meio tempo soçobrado no inconsciente
e em si próprias - poder-se-ia também dizer, fora do tempo. Elas ficaram sem contato com o eu e suas
circunstâncias variáveis e 'ignoravam' por essa razão o que se passara no mundo da consciência" (p. 355).
482 AP RO FU N D AM EN T O S

n u m a serpente e n u m pássaro, en t ão em pai e m ãe e depois em Elias e Salom é —


O que h á contigo, m eu bem? Ist o te abalou? Sim , t u precisas en ten der que já estás
bem afastada de m im , de t al form a que n ão te posso t er com o m in h a alm a; pois
se pertencesses à m in h a alm a, deverias saber o que acontece. Por isso preciso
separar-t e a t i e Sabin e de m in h a alm a e colocar-vos en t re os d em ón ios. Vó s
estais am arrados ao an t iqu íssim o e sem pre con st an t e, por isso t am bém n ada
sabeis a respeit o do ser das pessoas, mas apenas do passado e do futuro.
"Mas apesar disso foi bom que atendestes ao m eu cham ado. To m ai part e
n aqu ilo que exist e. Pois aquilo que exist e deve ser assim , para que possais t er
parte n ele".
Mas Elias in t erveio de m au h u m or: "Est a m u lt ip licid ad e n ão m e agrada.
N ã o é fácil assim ilar essa id eia".
E Salom é disse: "Só o sim ples é prazeroso. N ã o h á n ada que pen sar".
Resp on d i: "Elias, n ão precisas pen sar nisso. N ã o se t rat a de pensar, mas de
con t em plar. E u m quadro".
E para Salom é eu disse: "Salom é, n ão é verdade que só o sim ples é p razero-
so, com o tem po se t or n a até m on ót on o. N a verdade, en can t a-t e a variedade".
Mas Salom é volt ou -se para Elias e disse: "Pa i, parece-m e que os seres h u -
m an os nos su peraram . Ele t em razão. A variedade é m ais prazerosa. O u n o é
sim ples dem ais e sem pre o m e sm o "14 9 .
Elias olh ou -a t rist e e disse: "O que será do uno? Exist e ain d a o u n o quan do
está ao lado da m u lt ip licid ad e?"
Resp on d i: "Est e é t eu erro, que se t orn ou velh o e grisalh o, de que o u n o ex-
clu i o m últ iplo. Exist e m m u it as coisas ún icas. A m u lt ip licid ad e das coisas ú n i-
cas é o ú n ico Deu s m ú lt iplo, cujo corpo con siste de m u it os deuses. A solicit u de
da coisa ún ica, p orém , é o ou t ro Deu s, cujo corpo é u m ser h um an o, mas cujo
espírit o é grande com o o m u n d o".
Mas Elias sacu diu a cabeça e disse: "Ist o é novo, m eu filh o. O n ovo é bom ?
E b om o que foi, e o que foi será. N ã o é esta a verdade? Já exist iu algo novo? E
o que ch am ais de n ovo foi bom algum a vez? Tu d o con t in u a sem pre idên t ico,
m esm o que lh e deis n om e novo. N ã o exist e o n ovo; n ão pode h aver n ada de
n ovo; com o pod eria en t ão prever? Eu olh o para o passado e vejo n ele o fut uro

149 O resto deste diálogo não consta no Livro Negro 6.


AP RO FU N D AM EN T O S 483

com o n u m espelho. E eu vejo que n ão acontece n ada de n ovo; é t udo m er a r e-


pet ição do que foi desde os tem pos de o u t r o r a 150 . O que é vosso ser? U m a apa-
rên cia, u m a lu z que cresce, mas que am an h ã n ão exist e m ais. Ter m in o u com o se
n u n ca tivesse exist ido. Ve m , Salom é, vam os. N ó s nos desn orteam os n o m u n d o
dos seres h u m an os".
Mas Salom é olh ou para trás e m e su ssu rrou ao ir em bora: "O ser e a m u lt i-
plicidade m e agradam , m esm o que n ão sejam novos e n ão d u rem para sem pre".
Assim desapareceram os dois n a escuridão d a n oit e, e eu volt ei ao peso
daquilo que sign ificava m eu ser. E eu t en t ei fazer corret am en t e t udo que me
parecia ser tarefa e t r ilh ar t odo cam in h o que parecia ser n ecessário para m im .
Mas os m eus sonhos se t orn aram pesados e carregados de medo, e eu n ão sabia
por quê. Ce r t a n oit e aproxim ou -se de m im m in h a alm a, parecia assustada, e
d isse 151: "Escu t a-m e: est ou em gran de aflição, o filh o do ven t re ten ebroso m e
oprim e. Por isso teus sonhos são pesados, pois t u sentes o t orm en t o da p rofu n -
deza, a d or de t u a alm a e o sofrim en t o dos deuses".
Resp on d i: "Posso ajudar? O u é desn ecessário que u m a pessoa h u m an a se
apresente com o in t erm ed iária dos deuses? E presu n ção ou deve u m ser h u -
m an o t orn ar-se o salvador dos deuses, depois que os h om en s foram red im id os
pelo in t erm ed iário d ivin o?"
"T u falas a verdade", disse m in h a alm a, "os deuses precisam do in t erm ed iá-
rio e salvador h um an o. Co m isso, o ser h u m an o prepara seu cam in h o da passa-
gem para o além e para a divin dade. Eu te d ei u m sonho h orrível para que t eu
rosto se voltasse para os deuses. Eu fiz que saíssem deles t orm en t os, para que te
lem brasses dos deuses sofredores. T u fazes dem ais pelos seres h um an os; d eixa
para lá os seres h u m an os e volt a-t e para os deuses, pois eles são os regentes do
t eu m un do. N a verdade t u só podes ajudar os seres h u m an os através dos deuses,
n ão d iret am en t e. Ab r a n d a o t orm en t o arden t e dos deuses".
Pergu n t ei-lh e: "Mas d ize, on de devo com eçar? Eu sin t o seu t orm en t o, igual
ao m eu , e n o en t an t o n ão é o m eu , real e ir r eal ao m esm o t em po".
"Nist o est á a qu est ão a ser d ist in gu id a", respon deu m in h a alm a.
"Mas com o? Me u espírit o falha. T u deves sabê-lo".

150 C f acima, nota 261, p. 348.


151 31 de maio de 1916.
484 AP RO FU N D AM EN T O S

"Te u espírit o falh a ráp id o", disse ela, "m as é exat am en t e de t eu espírit o h u -
m an o que os deuses precisam ".
"E eu do espírit o dos deuses", ret ru qu ei, "estamos em m aus len çóis".
"Nã o , t u és m u it o im pacien t e; só com paração pacien t e t raz a salvação, n ão a
decisão apressada para u m lado. É preciso t rabalh o".
Pergu n t ei-lh e en t ão: "D e que sofrem os deuses?"
Respon deu : "É que t u deixast e para eles o t orm en t o, e desde en t ão vêm
sofren do".
"Bem -feit o!", exclam ei. "Ju d iaram bastan te do ser h um an o. Agor a devem
pagar por isso".
El a respon deu: "Mas se o t orm en t o t am bém te at in gir? O que ganhaste en -
tão? N ã o podes d eixar aos deuses todo o sofrim en t o, sen ão eles te p u xam para
d en t ro dele. Pois, apesar de tudo, eles possuem o poder. Mas devo confessar
que t am bém o ser h u m an o possui u m est ran h o poder sobre os deuses através
de seu espírit o".
A isso respon di: "Recon h eço que o t orm en t o dos deuses m e at in giu ; e por
isso recon h eço t am bém que t en h o de m e cu rvar dian t e dos deuses. Q u a l é o
desejo deles?"
"Eles qu erem obed iên cia", disse ela.
"Seja!", respon d i, "m as t en h o m edo de seu desejo; por isso eu digo: eu quero
o que posso. N ã o quero absolutam en te ret om ar sobre m im todo o t orm en t o
que t ive de d eixar aos deuses. N e m m esm o Cr ist o t ir ou o t orm en t o de seus se-
guidores, mas até o au m en t ou . Reservo-m e algumas con d ições. Ist o os deuses
devem recon h ecer e orien t ar seu desejo por elas. N ã o exist e m ais obed iên cia
in con d icion al, pois o ser h u m an o d eixou de ser u m escravo dos deuses. Ele
t em dign idade d ian t e dos deuses. Ele é u m m em bro tão im p ort an t e que n em
os deuses o podem perder. N ã o exist e m ais su cu m bên cia aos deuses. Port an t o,
que façam ou vir seu desejo. A com paração fará en t ão o resto, para que cada qual
t en h a a parte que lh e cabe".
Respon d eu en t ão m in h a alm a: "O s deuses qu erem que t u faças, por am or a
eles, aquilo que sabes que n ão queres fazer".
"Ist o eu im agin ava", grit ei, "n at u ralm en t e é ist o que qu erem os deuses. Mas
fazem os deuses t am bém aquilo que eu quero? Eu quero os frutos do m eu t r a-
balho. O que fazem os deuses por m im ? Q u e r e m que seus objet ivos se r eali-
zem , mas onde fica a realização de m eu objet ivo?"
AP RO FU N D AM EN T O S 485

Levan t ou -se en t ão u m a voz que disse: "T u és in crivelm en t e teim oso e reb el-
de. Lem b r a-t e de que os deuses são fortes".
Resp on d i: "E u sei disso, mas já n ão exist e obed iên cia in con d icion al. Q u a n -
do em pregarão sua força em m eu favor? Eles qu erem t am bém que eu coloque
m in h as forças a seu serviço. O n d e est á seu serviço? N o fato de serem at or m en -
tados? O ser h u m an o sofreu dores in fern ais, mas os deuses n ão estavam sat is-
feitos e, in saciáveis, im agin avam n ovos t orm en t os. Deixa r a m que o ser h u m a-
n o ficasse t ão obcecado que acred it ou que n ão exist iam deuses e que só exist ia
u m ú n ico Deu s, que era u m pai am oroso, de m odo que h oje, quan do alguém
lu t a com os deuses, é ch am ado de m aluco. E assim prepararam t am bém esta
vergon h a para aquele que os recon h ece a p ar t ir de sua sede ilim it ad a de poder,
pois guiar cegos n ão é n en h u m a art e. Eles p ervert em até m esm o seus escravos".
"T u n ão queres obedecer aos deuses", grit ou m in h a alm a h orrorizad a.
Resp on d i: "Acred it o que já t en h a acon tecido m ais do que o suficien t e. Exa -
t am en t e por isso os deuses são in saciáveis, porque recebem oferendas dem ais:
os altares d a h u m an id ade ofuscada exalam vapores de sangue. Escassez t raz
satisfação, n ão a su perabu n dân cia. Gost ar iam de apren der ju n t o ao ser h u m an o
a escassez. Q u e m faz para m im ? Est a é a pergu n t a que t en h o a form ular. D e
form a n en h u m a faço aquilo que os deuses d everiam fazer. Pergun t a aos deuses
o que eles ach am de m in h a proposta?"
Divid iu -se en t ão m in h a alm a, com o pássaro levan t ou voo para os deuses
superiores e com o serpen te desceu rast ejan do para os deuses in feriores. Passa-
do pouco tem po, veio ela n ovam en t e e disse aflita: "O s deuses est ão revoltados
pelo fato de que n ão queres obedecer".
"Ist o pouco m e im p or t a", respon d i. "E u fiz tudo para apaziguar os deuses.
Eles d everiam fazer t am bém a part e deles. D iz e ist o a eles. Eu posso esperar.
N ã o vo u m ais p er m it ir que m an d em sobre m im . O s deuses d everiam pen sar
n u m a con t raprest ação, t u podes ir. Am a n h ã vo u ch am ar-t e para que m e con tes
o que os deuses resolveram ".
Q u an d o m in h a alm a foi em bora, percebi que ela estava assustada e preo-
cupada, pois ela pert en ce ao gén ero dos deuses e d em ón ios e gost aria de m e
con vert er sem pre para sua espécie, assim com o m in h a h u m an id ade gost aria de
m e con ven cer de que eu p ert en ço à sua est irpe e que d everia servi-la. Q u a n -
do ad orm eci, m in h a alm a veio n ovam en t e e desen h ou-m e astuciosam en te n o
son ho com o u m ch ifru d o n a parede, t en t an do am ed ron t ar-m e dian t e de m im
486 AP RO FU N D AM EN T O S

m e s m o . N a n o it e se gu in t e , p o r é m , c h a m e i m i n h a a l m a e lh e d isse: "Tu a ast ú cia

foi descoberta. El a foi em vão. T u n ão m e m etes medo. Agor a fala e apresen t a


t u a m en sagem ".
El a falou: "O s deuses cederam . T u quebraste a obrigatoriedade da lei. Por
isso eu te desen h ei com o u m diabo, pois ele é o ú n ico en t re os deuses que n ão se
cu rva a n en h u m a coação. Ele é o revoltoso con t ra a le i et ern a, da qu al t am bém
exist em exceções, graças a seu procedim en t o. Por isso t am bém é possível d eixar
de fazer algum a coisa. Para t an t o ajuda o d em ón io. Mas ist o n ão deve acon tecer
sem que se t en h a pedido antes o con selh o dos deuses. Est e desvio de cam in h o é
n ecessário, caso con t rário sucum bes à sua le i apesar do d em ón io".
En t ão a alm a se ap roxim ou de m eu ouvido e sussurrou: "O s deuses est ão até
m esm o con t en t es por pod erem às vezes fech ar u m olho, pois n o fun do sabem
m u it o b em que ficaria difícil para a vid a se n ão houvesse n en h u m a exceção da
lei et ern a. Por isso a t olerân cia para com o d em ón io".
Em seguida levan t ou a voz e grit ou : "O s deuses te são propícios e aceit aram
t u a oferen da".
Aju d ou -m e en t ão o d em ón io a m e p u rificar da m ist u r a n a coação, e a dor da
u n ilat eralid ad e perpassou m eu coração e a ferid a da dilaceração m e qu eim ou .

I52
{15} Fo i n u m d ia quen te de verão, por volt a do m eio-d ia; passeava pelo
jar d im e quan do cheguei à som bra da árvore alt a, en con t rei Filêm on an dan do
feliz n o odor do capim . Q u an d o eu quis ap roxim ar-m e dele, saiu do ou t ro lado
u m a som bra a z u l 153 , e quan do O I AH M Q N a viu , falou assim : "Eu te en con t ro n o
jar d im , amado. O pecado do m u n d o d eu beleza a t eu rosto.
"O sofrim en t o do m u n d o en d ireit ou t u a figura.
"T u és realm en t e u m r ei.
"Tu a pú rpu ra é sangue.
"Te u arm in h o é neve do gelo dos poios.
"Tu a coroa, que carregas n a cabeça, é o astro solar.
"Bem -vin d o ao jar d im , m eu senhor, m eu amado, m eu irm ão!"

152 I o de junho de 1916.


153 No Livro Negro 6, esta figura é identificada como Crist o (p. 85).
AP RO FU N D AM EN T O S 487

Pergun t ou a som bra: "Ó Sim ão Mago ou ou t ro n om e que ten h as, t u estás n o
m eu jar d im , ou eu est ou n o t e u ?"154
O I AH M Q N respon deu: "T u estás, ó senhor, em m eu jar d im . H elen a, ou o u -
t ro n om e que lh e queiras dar, e eu somos teus servos. T u pod erás ficar conosco.
Sim ão e H elen a t orn aram -se O I AH M Q N e B A YK I E e assim somos agora h os-
pedeiros dos deuses. N ó s dem os hospedagem a t eu verm e assustador. E com o
viest e, n ós te acolhem os. Nosso ja r d im é o que te r o d eia"155 .
A som bra disse: "Est e jar d im n ão é m eu? O m u n d o dos céus e dos espírit os
n ão é m eu ?"
O I AH M Q N respon deu: "T u estás, m eu senhor, aqui n o m u n d o dos seres
h um an os. O s seres h um an os est ão m udados. N ã o são m ais os escravos e n ão
m ais os enganadores dos deuses e n ão m ais os en lutados em t eu n om e, m as eles
oferecem hospedagem aos deuses. An t es de t i veio o verm e h o r r íve l 156 , que t u
conheces m u it o bem , t eu irm ão en quan t o és de n at u reza d ivin a, t eu pai e n -
quan to foste de n at u reza h u m a n a 157 . T u o afastaste de t i quan do ele te d eu con -
selho in t eligen t e n o deserto. T u aceitaste o con selh o, mas o verm e t u o afastaste
de t i: ele en con t rou u m lugar conosco. Mas on de ele está, t am bém t u est ar ás 158 .
Q u an d o eu era Sim ão, t en t ei fugir dele com a astúcia da m agia e assim fugi de
t i. Agora que d ei u m lugar ao verm e n o m eu jar d im , ven s t u a m im ".
A som bra disse: "Ca io n o poder de t u a astúcia? T u m e pren deste secret a-
m en te? N ã o foi t rapaça e m en t ir a t u a arte desde sem pre?"

154 Simão Mago (i° século) era um mago. Nos Atos dos Apóstolos (8,9-24), após tornar-se cristão, quis
comprar de Pedro e Paulo o poder de transmitir o Espírito Santo (Jung considerava este relato uma
caricatura). O utros relatos sobre ele encontram-se no livro apócrifo A tos de Pedro e em escritos dos Padres
da Igreja. E tido como um dos fundadores do gnosticismo, e no século 11 surgiu uma seita simoniana. D iz -
se que viajava sempre com uma mulher, reencarnação de Helena de Tróia, que ele encontrou num bordel
de Tiro. Jung cita isto como exemplo da figura da anima ("Alma e terra". O C , 10, § 75). Cf. Q U I SP E L,
G. Gnosis alsW eltreligion. Zurique: Origo Verlag, 1951, p. 51-70. • M EAD , G.R.S. SimonMagus: An Essay on
the Founder of Simonianism Based on the An cien t Sources wit h a Reevaluation of H is Phisosophy and
Teachings. Londres: Th e Theosophical Publishing House, 1892.
155 Em Memórias Jung comentou: "Ao longo das peregrinações oníricas encontra-se mesmo muitas vezes um
velho acompanhado por uma moça; e em numerosos relatos míticos encontram-se exemplos desse mesmo
par. Assim , segundo a tradição gnóstica, Simão, o Mago, peregrinava com uma jovem que tirara de um
bordel. Ela se chamava Helena e era tida como uma reencarnação de Helena de Tróia. Kingsor e Kundry,
Lao-tse e a dançarina são exemplos do mesmo caso" (p. 217).
156 I.e., satanás.
157 No Livro Negro 6, esta frase soa assim: "Antes de t i veio teu irmão, ó senhor, o verme horrível, que t u
afastaste de t i quando ele no deserto te dava conselho inteligente com voz sedutora" (p. 86).
158 O Livro Negro 6, continua: "pois ele é teu irmão im ortal" (p. 86).
488 AP RO FU N D AM EN T O S

M a s O I A H M Q N r e s p o n d e u : "Re c o n h e c e , ó s e n h o r e a m a d o , q u e t u a n a t u -
reza é t am bém a d a ser p en t e 159 . N ã o foste t am bém levan t ado n o len h o com o a
serpen te? N ã o entregaste t eu corpo, com o a serpen te sua pele? N ã o exerceste a
art e da cu ra com o a serpen te? An t es de t u a subida, n ão desceste ao in fern o? E
n ão vist e lá t eu irm ão t ran cado n o a b ism o ?"16 0
Fa lo u en t ão a som b ra: " T u d izes a verd ad e. N ã o m en t es. Mas , - sabes o
que te t rago?"
"N ã o sei", r esp on d eu O I AH M Q N , "só sei de u m a coisa: aqu ele que é o
h osp ed eir o d o ve r m e p r ecisa t a m b é m de seu ir m ão. O que m e t razes, m e u
belo h ósp ed e? La m e n t o e h o r r o r foi o p resen t e d o ver m e. O que n os d arás
t u ?"
Re sp o n d e u a som b ra: " E u te t rago a b eleza d o sofrim en t o. É d isso que
p r ecisa q u em é h osp ed eiro d o ver m e".

159 Jung comentou a serpente como alegoria de Crist o em Aion (1952, O C , 9/ 2, § 369, 385 e 390).
160 Cf. acima, p. 149.
Epílo go
1959
Trabalh ei neste livr o por 16 anos. O con h ecim en t o da alqu im ia, em 1930, af-
ast ou-m e dele. O com eço do fim veio em 1928, quan do W ilh e lm m e en viou o
t ext o da "Flo r de O u r o ", u m tratado alqu im ist a. En t ão o con t eú d o deste livr o
en con t rou o cam in h o da realidade e eu n ão con segui m ais con t in u ar o trabalho.
Ao observador su perficial ist o parecerá u m a lou cu ra. E t er ia se t orn ado isso
m esm o, se eu n ão tivesse conseguido deter a força d om in ad ora das exp eriên -
cias origin ais. Co m a aju da da alqu im ia pude fin alm en t e ord en á-las d en t ro de
u m todo. Soube sem pre que essas experiên cias con t in h am algo precioso e por
isso n ão sabia fazer coisa m elh or do que lan çá-las n u m livr o "precioso", ist o é,
valioso, e desen h ar as im agens que m e apareciam n a revivescên cia - t ão bem
quan t o possível. Sei que foi t rem en dam en t e inadequado este em preen dim en to,
mas apesar do m u it o trabalho e desvios, fiquei fiel, m esm o que n u n ca ou t ra / 190 A91
possibilidade...

Isto aparece na p. 190 da versão caligráfica do Liber Novus. A transcrição caligráfica foi abruptamente
interrompida no meio de uma frase na p. 189. Isto aparece depois, na página seguinte, no manuscrito
normal de Jung. Isto por sua vez foi interrompido abruptamente no meio da frase.

489
Apên d ice A

Esboço de mandala 1 parece ser o prim eiro da série, datado de 2 de agosto de 1917. É a base da
ilustração 80. A legenda no alto da ilustração é "<X>ANH2 [Ph an es]" (cf. n ota 211, p. 317).
Legenda n a parte in ferior: "Stoffwechsel in In d ivid u u m " [metabolismo no in divíduo]
(i9,4cm x I4,3cm).

491
AP Ê N D I C E S
492

Esboço de m andala 2 é o reverso do esboço de m andala 1 ( i9 ,4 cm x I4 3c m ) .


AP Ê N D I C E S 493

Esboço de m andatas é datado de 4 de agosto de 1917 e 8 de agosto d e i 9 i 7e é a base da


ilustração 82 (14.90111 x I2,4cm ).
494 AP Ê N D I C E S
AP Ê N D I C E S 495

O plano da cidade é tirado do Livro Negro 7, p. 124b, e ret rat a a cena do sonho de "Liverp ool".
Est e esboço é a base da ilustração 159, ligando o sonho ao mandala. Text o n a ilustração, a
part ir da esquerda: "Residên cia do suíço"; em cima "Casas"; em baixo "Casas", "Ilh a"; (em baixo)
"Lago", "Arvore", "Ru as", "Casas" (13,3011x I9 ,icm ) .

N a página seguinte: Systema Munditotius. (30cm x 34cm). Em 195$ o Systema Munditotius de Jun g
foi publicado anonim am ente n u m fascículo especial de Du dedicado às conferências de
Eran os. Nu m a carta de I I de fevereiro de 1955 a W alt er Co r t i, Jun g afirm ou explicitam en te
que não quis que seu nome aparecesse com ele ( JA) . E acrescentou os seguintes
com entários: "Ele descreve as antinom ias do m icrocosm o den tro do m undo m acrocósm ico
com suas an tin om ias. No ponto mais alto, a figura do jovem rapaz den tro do ovo alado,
chamado Erikapaios ou Phanes e lem bran do assim u m a figura espiritual dos deuses/
Deuses órficos. Sua antítese escura nas profundezas é designada aqui como Abraxas.
Ele representa o domínus mundi, o senhor do mundo físico, e é u m criador-do-m un do de
n atureza ambivalente. Brot an do dele vemos a árvore da vida, chamada vita ("vid a"),
enquanto sua contraparte superior é um a árvore da luz n a form a de u m candelabro de sete
braços chamado ignís ("fogo)") e Eros ("am or"). Sua luz aponta para o m undo espirit ual da
criança divin a. Tam bém a arte e a ciência perten cem a esta esfera espiritual, a prim eira
representada como um a serpente alada e a segunda como u m rato alado (com o atividade
de cavar buracos!). - O candelabro baseia-se no prin cípio do n úm ero espirit ual três (duas-
vezes-três chamas com u m a grande cham a no m eio), ao passo que o m undo in ferior de
Abraxas é caracterizado pelo cinco, o n úm ero do h om em n at ural (ps duas-vezes-cinco
raios de sua estrela). O s anim ais do m undo n atural que o acompanham são um m on stro
dem on íaco e u m a larva. Ist o significa m orte e renascimento. Um a outra divisão do
m andala é h orizon t al. A esquerda vemos u m círculo in dican do o corpo ou o sangue, e dele
surge u m a serpente, que se enrosca no falo, enquanto prin cípio generativo. A serpente
49 6 AP Ê N D I C E S

é escura e clara, significando a região escura da t erra, a lua e o vazio (por isso chamada
Satan ás). A parte clara de rica plenitude está à direit a, onde do círculo brilh an te frígus sive
am or dei [frio ou o amor de Deu s] a pomba do Espírito Santo alça voo, e a sabedoria (Sophid)
derram a água de um a dupla taça para a esquerda e para a direit a. — Est a esfera fem in in a é
a do céu. - A grande esfera caracterizada por lin h as ou raios em ziguezague representa u m
sol in t erior; dentro desta esfera está repetido o macrocosmo, mas com a região superior e a
região in ferior in vertidas como n u m espelho. Estas repetições devem ser imaginadas como
in fin itas em núm ero, tornando-se cada vez menores até chegar ao núcleo mais profundo, o
m icrocosm o atual". Copyrigh t © Fundação para as O bras de C G . Jun g reproduzido com a
perm issão da Fundação e de Robert o Hin sh aw.
Ap ên d ice B
Com en t ários
p. 8&89 1

Per ío d o d a vid a
Mascu lin o
En a n t io d r o m ia d o t ip o de vid a

É difícil forçar esta ilust ração a u m a declaração. Mas seu t ipo é de t al form a
alegórico, que d everia falar. Dist in gu e-se das vivên cias an t eriores pelo fato de
ser m u it o m en os vivid a do que con t em plada. Todos os quadros que r eu n i sob
o t ít ulo "Jogo dos m ist érios" são b em m ais do t ipo alegórico do que p r op r ia-
m en t e vivên cias. Con t u d o, n ão são alegorias in t en cion ais, n ão foram provoca-
das in t en cion alm en t e para apresen t ar n u m a p in t u r a algo velado ou fan tástico,
mas apareceram com o visão. Só m ais t arde, n a revisão, t ive a im pressão sem pre
m ais fort e de que n ão se pod ia com pará-las com as vivên cias relatadas em ou t -
ros capít ulos. Essas im agens são eviden t em en t e con cepções person ificadas de
ideias in con scien t es. Ist o provém de seu carát er de im agem . Elas t am bém m e
in cen t ivaram m ais à reflexão e in t erpret ação do que as outras vivên cias às quais
eu n ão pod ia fazer ju st iça com o pensar, porque são sim plesm en t e coisa vivid a.
As im agens do "Jogo dos m ist érios", p orém , person ificam prin cípios que são
acessíveis ao pen sar e à com preen são in t elect u al e, correspon den do a seu t ipo
alegórico, t am bém est im u lam a sem elh an t e t en t at iva de explicação.
O lugar d a ação é u m a escura profun deza d a t erra, eviden t em en t e u m a r e-
presen t ação d a profun deza in t er ior sob a d im en são do espaço con scien t e ou
do cam po de visão psíquica. O m ergu lh ar n u m a t al profun deza correspon de ao
desvio do olh ar esp irit u al das coisas ext ern as e sua con cen t ração n a profun deza
escura in t erior. At ravés do olh ar para o escuro surge, de cert a form a, u m a vivi-
ficação do pan o de fun do an t eriorm en t e escuro. U m a vez que a con t em plação
da escu ridão acontece sem expect at iva con scien t e, o pan o de fundo psíqu ico

1 O s números das páginas referem-se ao esboço corrigido. Correspondem às pp. 157-164 acima.

497
498 AP Ê N D I C E S

n ão vivid o t em u m a oport un idade de d eixar aparecer seus con t eú d os, n ão i m -


port an do os pressupostos con scien tes.
As vivên cias precedentes in d icam que estavam d ispon íveis fortes m o vi-
m en t os psíquicos que a con sciên cia n ão con seguiu abranger. Du as figuras en -
t ram n o cam po visu al, n ão esperadas pela con sciên cia, em com pen sação são
características do espírit o m it ológico que est á n a base da con sciên cia: o velh o
sábio e a jovem . Est a com bin ação é u m a im agem que volt a et ern am en t e ao
espírit o hum ano. O velh o represen ta u m prin cípio espirit ual, que poderíam os
ch am ar de Logos, e a jovem , u m prin cípio sensual não espirit ual, que poderíam os
ch am ar de Eros. U m reben to do Logos é o Nou s, o in t elect o, que desfez a m is-
t u ra através do sen t im en t o, do pressen t im en t o e da sensação. Em com pen sa-
ção, o Logos con t ém esta m ist u ra. Mas ele n ão é o prod u t o dessa m ist u ra, caso
con t rário seria u m a atividade psíqu ica in ferior e an im al, mas ele com an da a
m ist u ra de t al form a que as quat ro atividades básicas da psique se su bord in am
a seu prin cípio. E u m prin cípio au t ón om o da form a, que sign ifica com preen são,
in t uição, previsão, legislação e sabedoria. Por isso a figura de u m velh o profet a
é u m a alegoria adequada para este prin cípio, pois o espírit o profét ico reú n e em
si todas essas propriedades. Por ou t ro lado, o Er os é u m prin cípio que con t ém
igualm en t e u m a m ist u r a de todas as atividades básicas da alm a e as com an da
t am bém , con t udo sua fin alidade é bem ou t ra. Ele n ão é doador da form a, mas
preen ch edor da form a, ele é o vin h o que se despeja n o recipien t e; ele n ão é o
leit o e o ru m o da t orren t e, mas o ím p et o das águas que n ela correm . O Eros é
cobiça, desejo, força, exaltação, prazer, paixão. O Logos é ord em e perseveran -
ça, o Er os é solt u ra e m ovim en t o. São dois poderes básicos da alm a que form am
u m par de opostos e que se con d icion am m u t u am en t e.
N a velh ice do profet a est á expressa a perseveran ça, mas o m ovim en t o se
t raduz n a ju ven t u de da m oça. Su a essên cia suprapessoal est á expressa n o fato
de serem figuras que fazem part e da h ist ória geral da h um an idade; n ão p er t en -
cem a u m a pessoa, mas são u m con t eú d o esp irit u al dos povos desde tem pos
rem ot os. Cad a qual as possui, por isso as en con t ram os sem pre de n ovo em
pensadores e poetas.
Essas im agens p rim ord iais t êm u m poder secreto, que at ua t an t o sobre a r a -
zão quan to sobre a em oção da pessoa h u m an a. O n d e quer que su rjam m exem
com algum a coisa n a pessoa que está ligada ao m ist erioso, passado h á m u it o
tem po e ch eio de pressen t im en t os. U m a cord a soa, cu ja vibração repercute em
AP Ê N D I C E S 499

cada peit o h u m an o; pois em cada u m m oram essas im agens p rim ord iais porque
fazem b em a todas as pessoas 2. Est e poder secreto é com o u m feitiço, com o m a-
gia, que causa t an t o elevação quan to sedução. Est a é a caract eríst ica p róp ria das
im agens p rim ord iais: elas agarram as pessoas lá onde ela é apenas ser h u m an o
e u m a força se apodera dela com o se a aglom eração do povo a em purrasse. E
ist o acontece, m esm o quando a razão e o sen t im en t o se levan t am con t ra isso.
O que é a força do in d ivíd u o con t ra a voz de t odo o povo d en t ro dele? Ele está
e n fe it iça d o , ca p t u r a d o , d evo r a d o . N i n g u é m exp rim e m elh or este estado de coi-
sas do que a cobra. El a sign ifica t udo o que é perigoso e m au , n ot u rn o e sin ist ro,
que está ligado t an t o ao Logos quan to ao Er os, en quan t o pod em atuar com o os
prin cípios escuros e in cógn it os do espírit o in con scien t e.
A casa expressa m orad a fixa, fican do en t en d id o o fato de que Logos e Eros
m oram perm an en t em en t e em n ós.
Salom é é apresen t ada com o filh a de Elias. Exp r im e-se com isso o proce-
d im en t o d a sucessão. O profet a é seu gen itor, ela procede dele. Sen d o-lh e
at ribu íd a com o filh a, in d ica-se assim u m a su bord in ação do Er os ao Logos.
Ain d a que esta relação, assim com o aparece n a persist ên cia dessa im agem p r i-
m ord ial, seja m u it o frequen t e, ela é assim m esm o u m caso pecu liar que n ão
possui validade geral. Pois quan do se t rat a de dois p rin cíp ios que se en con -
t r am n u m a relação de oposição, u m n ão pode p rovir do ou t ro e desse m odo
ser depen den t e do p rim eiro. Por isso Salom é n ão é evid en t em en t e u m a en car-
n ação (t ot alm en t e) perfeit a do Er os, mas u m a bast arda do m esm o. ( Est a su -
posição se con firm a m ais t ard e.) Q u e ela é realm en t e u m a alegoria im p erfeit a
do Er os m an ifest a-se t am b ém n o fato de ser cega. O Er os n ão é cego, pois ele
d isp õe, assim com o o Logos, de todas as at ividades básicas da alm a. A cegueira
sign ifica sua im perfeição e a falt a de u m a qualidade essen cial. Devid o à sua
deficiên cia, depen de do pai.
As paredes que b r ilh am de m odo confuso in d icam algo desconhecido, t al-
vez valioso, que despert a a curiosidade e at rai sobre si a aten ção. Dessa m an ei-
ra, a part icipação criad ora fica ain d a m ais sufocada n a im agem , pela qual se
t orn a possível u m a vivificação ain d a m aior do pan o de fundo escuro. Devid o
ao aum en t o d a aten ção, form a-se a im agem de u m objeto que expressa m u it o

2 Jung emprega aqui uma metáfora usada por Jacob Burkhardt para descrever as imagens primordiais de
Fausto e Édipo, que ele citou em Transformações e símbolos da libido (1912. O C , B, § 56n.).
5oo AP Ê N D I C E S

b e m a con cen t ração, ist o é, a im agem de u m crist al que é usado desde tem pos
antigos para a geração de visões. As figuras in icialm en t e in com preen síveis ao
observador prod u zem acon t ecim en t os obscuros em sua alm a, que de cert a m a-
n eira est ão ain d a m ais fundas (sem elh an t em en t e à visão do sangue) e para cu ja
percepção h á necessidade de u m m eio au xiliar com o o crist al. Mas com isso,
com o ficou dit o, n ão se exp rim e n ada além de u m a con cen t ração m ais fort e d a
at en ção criad ora.
U m a figura, com plet a e tran sparen te em si, com o a do profeta, desperta m e-
nos curiosidade do que a figura inesperada de u m a cega Salom é, poden do-se es-
perar en t ão que o processo criad or se volt e em p r im eir o lugar para o problem a
do Eros. Est a é a razão por que aparece p rim eiram en t e u m a im agem de Eva,
bem com o da árvore e da serpen te. Ist o sign ifica obviam en t e a sedução, cujo
elem en t o já está claro n a figura de Salom é. A sedução produ z u m m ovim en t o
u lt erior para o lado do Eros. Disso surge o pressen t im en t o de m u it as possibi-
lidades aven t ureiras, do qu al é im agem perfeit a a viagem sem ru m o de Ulisses.
Est a im agem é est ím u lo e con vit e para o prazer em preen dedor; é com o se u m a
p ort a se abrisse para u m a n ova possibilidade e que conseguisse lib ert ar o olh ar
da est reit eza e profun deza escuras em que estava preso. Ab re-se por isso a v i -
são para u m jar d im ensolarado, cujas árvores de flores verm elh as represen t am
am pliação do sen t im en t o erót ico e cujo p oço sign ifica u m a fonte peren e. A
um idade refrescan te do poço, que n ão causa em briaguez, apon t a para o Logos.
(Por isso Salom é fala t am bém m ais tarde dos "p oços" profun dos do Profet a.)
In d ica-se com isso que a am pliação do Er os sign ifica t am bém u m a fonte do
con h ecim en t o. E en t ão Elias com eça a falar.

O Logos t em sem d ú vid a o poder neste m eu caso, pois Elias d iz que ele e
sua filh a são u m desde sem pre. Mas Logos e Er os n ão são u m , e sim dois. Mas
neste caso o Logos ofuscou o Er os e o subm et eu a si. Se for assim , surgirá a
necessidade de lib ert ar o Er os do sufoco do Logos, para que o p r im eir o con -
siga de n ovo sua face. Por isso Salom é volt ou -se para m im , porque o Er os est á
n ecessitado de ajuda e porque eu t am bém fu i tran sposto para a con t em plação
dessa im agem . A alm a do h om em está m ais in clin ad a para o Logos do que para
o Eros; este caract eriza m ais a n at u reza da m ulh er. A opressão do Er os pelo
Logos exp lica n ão só a cegueira do Eros, mas t am bém o fato est ran h o em si de
AP Ê N D I C E S 501

que o Er os é represen tado pela figura pouco sim pát ica de Salom é. Salom é sig-
n ifica m ás qualidades. El a lem b ra n ão só o assassinato do San to, mas t am bém a
com placên cia in cest uosa do pai.
U m prin cípio t em sem pre a dign idade d a in d epen d ên cia. Mas quan do se
lh e t ir a est a dign idade, fica rebaixado e assume u m a form a r u im . Sabemos que
as atividades e qualidades psíquicas que são ret iradas pela opressão do desen -
volvim en t o degen eram e se t ran sform am em vícios. No lugar de u m a at ivi-
dade cort ês en t ra u m vício m an ifest o ou secreto e assim nasce u m a d esu n ião
da person alidade consigo m esm a, que sign ifica u m sofrim en t o m oral ou u m a
verd ad eira doen ça. Para qu em quer libert ar-se desse sofrim en t o só h á u m ca-
m in h o: precisa assu m ir a part e op r im id a de sua psique, precisa até am ar sua
in feriorid ad e e seu vício, para que o degenerado volt e a en con t rar o cam in h o
do desen volvim en t o. Mas isto é ext rem am en t e difícil e duvidoso.
O n d e o Logos d om in a, lá exist e ord em , mas t eim osia dem ais. A alegoria
do paraíso, onde n ão h á n en h u m a lu t a e, por isso, t am bém n en h u m d esen vol-
vim en t o, é bem adequada aqui. Nest e estado o m ovim en t o rep rim id o degene-
ra, seu valor se perde. Est e é o assassinato do San to, e o assassinato acontece
porque, com o H erod es, o Logos n ão consegue proteger o San t o por fraqueza
própria, porque n ão sabe fazer ou t ra coisa do que agarrar-se em si m esm o, ges-
to pelo qu al provoca o Eros para sua degen eração. Só a d esobed iên cia a este
prin cípio d om in ad or leva para fora desse estado de t eim osia n ão evolu t iva. A
h ist ória do paraíso se repete e por isso t am bém a serpen te se en rosca n o alto da
árvore, porque Ad ã o deve ser t en t ado para a desobediên cia.
Tod o desen volvim en t o passa por cim a do n ão desen volvido, mas capaz de
desen volvim en t o. N o seu estado n ão desen volvido ele quase n ão t em valor, ao
passo que o desen volvido represen t a u m valor m u it o elevado, que é in d iscu t í-
vel. Deve-se ren u n ciar a este valor, ao m en os aparen t em en t e, para que se possa
assum ir o n ão desen volvido. Mas este está n a m ais fran ca oposição ao d esen vol-
vido, que talvez represen te n ossa m elh or e m ais elevada con t ribuição. Por isso,
o assu m ir do n ão desen volvido é com o u m pecado, com o u m passo em falso,
u m a degen eração, u m a descida para u m degrau m ais baixo, mas n a verdade u m
feito m aior do que a perseveran ça n u m estado orden ado à cust a do ou t ro lado
de n ossa n at u reza, que desta m an eira está expost a à corru pção.
502 AP Ê N D I C E S

p. 103-119 3

O lugar d a ação é o m esm o da p r im eir a ilustração. A in dicação de que 'u m a


crat era fortalece a im pressão de u m a grande profun deza que alcan ça de cert a
forma o in t er ior da t erra, que n ão é in at iva, mas que expele violen t am en t e u m
con t eúdo.
U m a vez que o Er os é em prin cípio o p roblem át ico n a m aioria dos casos,
surge Salom é cega, tatean do para a esquerda seu cam in h o. Tam bém aparen tes m i -
n úcias são de im port ân cia em tais im agens vision árias. Esqu erd o é o lado do
desfavorável. In d ica-se assim que o Eros t em a t en d ên cia de n ão ir para a d ir ei-
ta, que é o lado da con sciên cia, da von t ade con scien t e e da escolh a con scien t e,
mas para aquele lado em que est á o coração que t am bém est á m en os subm et ido
à n ossa von t ade con scien t e. Est e m ovim en t o para a esquerda é sublin h ado pelo
fato de vós t am bém seguirdes a serpen te. A serpen te é o poder m ágico, cujo
aparecim en t o se dá sem pre on de in st in t os an im alescos são despertados em n ós
de m an eira in com preen sível. Eles d ão ao m ovim en t o do Er os a fatídica en ergia
que n ós sen t im os com o m ágica. A at ividade m ágica é u m feit iço e en fat ização
de nosso pen sar e sen t ir através de obscuros m ovim en t os in st in t ivos de n at u -
reza an im al.
O m ovim en t o para a esquerda é cego, ist o é, sem objet ivo e sem p r op ó-
sito. Precisa por isso de orien t ação, mas n ão da in t en ção con scien t e e sim da
orien t ação do Logos. Elias ch am a Salom é de volt a. Su a cegueira é u m a doen ça,
e d oen ça requer cu ra. O precon ceit o con t ra ela é en fraquecido ao m en os em
part e por u m a observação m ais at en t a dela. El a parece in ocen t e, por isso talvez
se deva at rib u ir sua m aldade à sua cegueira.
Pelo ch am am en t o de volt a de Salom é, o Logos proclam a seu poder sobre
o Eros. Tam bém a serpen te lh e obedece. El a está d eit ad a dian t e do Logos e
do Eros, para reforçar o poder e o sign ificado dessa ilustração. Con sequ ên cia
n at u ral desse espet ácu lo m ágico e poderoso d a u n ião do Logos e do Er os é a
pequenez e in sign ificân cia fort em en t e sen tidas do eu e que se m an ifest a n a
sen sação da in fan t ilid ad e.

3 Isto corresponde às pp. 165-173 acima.


AP Ê N D I C E S 503

Parece que o m ovim en t o para a esquerda, seguindo o cego Eros, n ão é pos-


sível e de cert a forma n ão p erm it id o sem a in t erferên cia do Logos. Seguir cega-
m en t e u m m ovim en t o é, do pon t o de vist a do Logos, u m pecado, porque é u m a
u n ilat eralid ad e e, além do m ais, vai con t ra a le i de que o ser h u m an o deve sem -
pre lu t ar pelo m aior grau de con sciên cia. Pois n isso con siste sua h u m an idade.
A ou t ra coisa ele a t em em com u m com o an im al. Tam bém Jesus d iz: "Q u an d o
sabes o que fazes, és bem -aven t urado, mas quan do n ão sabes o que fazes, és
am ald içoad o 4 . Est e m ovim en t o para a esquerda só seria possível e p erm it id o
se disso resultasse u m a con cepção con scien t e, visível Sem a in t erferên cia do
Logos, p orém , é im possível o estabelecim en t o de sem elh an t e con cepção.
O p r im eir o passo para a form ação da con cepção é a con scien t ização do ob-
jet ivo ou da in t en ção do m ovim en t o. Por isso pergun t a Elias pela in t en ção do
eu. E este t em de recon h ecer a cegueira, ist o é, a ign orân cia a respeit o da in t en -
ção. A ú n ica coisa recon h ecível é u m a ânsia, u m desejo de resolver a con fusão
m an ifest ada n a p r im eir a ilustração.
Est a con scien t ização causa u m leve toque de felicidade em Salom é. E co m -
preen sível porque con scien t ização e t orn ar visível sign ifica a cu ra de sua ce-
gueira. Co m isso se d á u m passo à fren te n a d ireção do objet ivo do Eros.
O eu persiste a prin cípio em seu lugar in ferior, pois devido à sua ign orân -
cia n ão vê o desen volvim en t o u lt er ior de seu problem a. Tam bém n ão saberia
in d icar a d ireção a seguir, pois até agora n u n ca d irigiu seu olh ar para d en t ro da
profun deza de seu substrato psíquico, mas só para o ext erior e con scien t e, e só
recon h eceu com o gran deza at iva a força da con sciên cia e do m u n d o con scien t e,
negando assim de m odo sem icon scien t e os m ovim en t os de seu in t erior. Co lo -
cado d ian t e de sua p róp ria profun deza, sem elh an t e eu só pode exp erim en t ar
sofrim en t o. Fo i t ão firm e sua fé em seu m u n d o su perior con scien t e, que u m a
descida para d en t ro da profun deza do si-m esm o seria u m delit o, u m a in fid eli-
dade aos ideais con scien tes.
Mas com o aquele desejo de resolver a con fusão é m aior do que as r elu -
tân cias con t ra a p róp ria in feriorid ad e, o eu con fiou-se à orien t ação do Logos.
Co m o n ão se vê n ada que possa dar u m a resposta à qu est ão form ulada, m aior

4 Esta frase é uma inserção apócrifa no Evangelho de Lucas 6,5, do Codex Bezae: "Hom em , quando sabes
realmente o que fazes, bem-aventurado és tu; mas se não, és amaldiçoado e um transgressor da lei".
E LLI O T , K J . (org.). TheApocryphalNewTestament, p. 68. Em 1952, Jung citou isto em Respostaajó ( O C, 11/4,
§696).
$04 AP Ê N D I C E S

profun deza d everá ser aberta. Ist o acontece n o va m e n t e com a ajuda do crist al,
ist o é, através da m áxim a con cen t ração d a at en ção que aguarda. A p r im eir a
im agem que aparece n o crist al é a m ãe de Deu s com o filho.
Est a im agem est á eviden t em en t e em con exão com e em oposição à visão da
Eva n a p r im eir a ilustração. Assim com o Eva represen t a a t en t ação da carn e e a
m at ern idade carn al, a m ãe de Deu s en carn a a virgin dade carn al e a m at ern id a-
de espirit u al. A p r im eir a direção seria u m m ovim en t o do Er os para a carn e, a
ú lt im a direção seria u m m ovim en t o para o espírit o. Eva é a expressão do lado
carn al, en quan t o Ma r ia a expressão do lado esp irit u al do Eros. En qu an t o o eu
só via Eva, era cego. Mas a con scien t ização ab riu u m aspecto esp irit u al do Eros.
No p rim eiro caso, o eu t orn ou -se u m Ulisses em sua rot a perdida, que en con t ra
seu desfecho n a volt a do h om em en velh ecido ao ven t re m at ern o, Pen élope.
No ú lt im o caso, o eu é apresentado com o Pedro com o a pedra escolh ida
sobre a qu al d everia ser con st ru íd a a Igreja. Est a id eia é apoiada pelas chaves
com o sím bolo do poder de ligar e desligar e t ran sferido para a figura do papa
com o o represen t an t e de Deu s n a Ter r a, com a t ríplice coroa.
Sem dúvida, o eu en t ra aqui n u m m ovim en t o em d ireção ao poder esp ir it u -
al. Ist o se exp lica pela u n ilat eralid ad e do m ovim en t o. O aspecto de Eva con duz
à aven t u reira viagem erran t e, à Igreja e a Calipso. O aspecto da m ãe de Deu s,
n o en t an t o, desvia o desejo da carn e e o dirige para a ven eração h u m ild e do es-
pírit o. N a carn e, o Er os está subordin ado ao erro, mas n o espírit o ele se levan t a
acim a da carn e e sobre a in feriorid ad e do erro carn al. Torn a-se por isso quase
im percept ível n a form a de am or ao espírit o do poder sobre a carn e e assim sai
da casca do amor. O poder espirit u al, que acredit a am ar o espírit o, mas que de
fato e n a verdade é u m d om ín io da carn e. Q u an t o m ais for poder, t an t o m en os
é amor. Q u an t o m en os for am or ao espírit o, t an t o m ais é poder carn al. E as-
sim o am or ao espírit o t orn a-se, devido a seu poder sobre a carn e, u m in st in t o
m u n d an o de poder em form a espirit u al.
O Cr ist o ven ceu o m u n d o ao t om ar sobre si o sofrim en t o do m un do. Mas
Bu d a ven ceu as duas coisas: o prazer e o sofrim en t o do m un do, afastando de si
prazer e sofrim en t o. E assim en t rou n u m n ão ser, n o estado em que n ão h á vo l-
ta. Bu d a é u m poder espirit u al ain d a m aior, que t am bém n ão se regozija m ais
com o d om ín io da carn e, t ão profun dam en t e m ergu lh aram atrás dele prazer
e dor. A paixão, que em sua aut ossuperação ain d a é t ão poderosa em Cr ist o e
que precisa de si m esm a sem pre de n ovo e sem pre em m aior quan tidade para
AP Ê N D I C E S 505

o t riu n fo da superação própria, m igrou para fora do Bu d a e qu eim a a seu redor


com o fogo ch am ejan t e. Ele está in t ocado e é in t ocável.
Q u an d o o eu vivo se ap roxim a desse estado, sua paixão vai d eixá-lo, mas
n ão vai m orrer. Algu ém por acaso n ão é sua paixão? E o que acontece com sua
paixão quan do ela aban don a o eu? O eu é a con sciên cia, e a con sciên cia só t em
olhos d ian t eiros. Nu n ca vê o que está às suas costas. Mas lá con cen t ra-se n a
paixão que ele ven ceu n a fren te. N ã o con du zido pelo olh o da razão, n ão at e-
n uado pela h u m an idade, t ran sform a-se o fogo n a Ka li devastadora e seden ta
de sangue, que con som e a vid a do h om em de den t ro, com o d iz o m an t ra de
seu serviço sacrificial: "Salve, Ka li, deusa de três olh os, figura h orrível, em cujo
pescoço est á pen durada u m a corren t e de crân ios h um an os. Saudada sejas t u
com este sangue".
Cer t am en t e Salom é t em de desesperar com este desfecho de que o Eros
gostaria de t ran sform ar-se em espírit o, pois o Er os n ão pode p rescin d ir d a car-
n e. Se o eu se revolt a con t ra a in feriorid ad e n a carn e, t am bém se revolt a sua
alm a fem in in a, que corporifica tudo o que a con sciên cia gostaria de r ep r im ir
con t ra o espírit o. Assim t am bém este cam in h o leva a u m desfecho n a oposição.
Por isso o eu volt a de sua con t em plação das figuras que corporificam sua de-
sun ião.
Novam en t e Logos e Er os est ão ju n t os, com o se t ivessem superado o con fli-
to en t re espírit o e carn e. Parece que con h ecem a solução. O m ovim en t o para
a esquerda, que n o com eço d a ilust ração saía do Eros, procede agora do fogo.
Ele acolhe o m ovim en t o para a esquerda, a fim de t er m in ar com olhos que
en xergam aquilo que com eçou com cegueira. A prin cípio ele con duz para u m a
escuridão m aior, mas que de algum a form a é ilu m in ad a pela lu z averm elh ada.
A cor verm elh a in d ica o Eros que n ão dá n en h u m a lu z clara, mas ao m en os u m a
possibilidade de recon h ecer algo, talvez só porque leva a pessoa a u m a situação
em que possa con h ecer algum a coisa se o Logos a socorrer.
Elias en costa-se n o leão de m árm ore. O leão com o an im al régio sign ifica
poder. A roch a sign ifica firm eza in abalável. Assim são expressos o poder e a
firm eza do Logos. Novam en t e com eça em p rim eir o lugar a con scien t ização, e
dessa vez em m aior profun didade e ren ovado en volvim en t o. O eu sente t an t o
m ais sua pequenez, pelo fato de estar aqui ain d a m ais longe de seu m u n d o
con h ecido, onde t em con sciên cia de seu valor e de sua im port ân cia. Aq u i n ão
h á n ada que lh e lem bre sua im port ân cia. Por isso está n at u ralm en t e dom in ado
5o6 AP Ê N D I C E S

por t an t o ser diferen t e, que fica t ot alm en t e privado de seu arbít rio. A figura de
Elias assume o processo da con scien t ização.
Co m o in d icam as visões do crist al, a id eia que devia levar à con sciên cia é u m a
ideia com poder espirit ual, isto é, o eu caiu n a ten tação de querer arrogar-se o
ser profeta. Mas esta id eia en con t rou t ão grande recusa, que n ão con seguiu
im p or-se con t ra a con sciên cia. Ficou por isso atrás da cort in a. Co m o o eu n ão
pudesse seguir cegam ente o Er os, qu eria ao m en os t rocar esta perd a pela pos-
se do poder esp irit u al - u m proced im en t o que podem os observar com m u it a
frequên cia n a vid a das form as! Mas t am bém é quase in evit ável que tão grande
perda, com o a do Eros, force as pessoas, ao m en os n o cam po do poder, a buscar
u m sucedân eo. Ist o acontece de m an eira tão su t il e esperta, que o eu n em m es-
m o percebe o t ruque. Por isso, m esm o seguindo as regras da posse do poder,
sem elh an te eu n ão pode ficar feliz, porque n ão é ele que possui o poder, mas é
o poder d em on íaco que o possui. Ter ia sido fácil para o eu apossar-se neste caso
da realidade com que a figura de Elias se im pôs com t an t a plast icidade e t om ar
para si esta figura com o m erecedora de person alidade. Mas a con scien t ização
im p ed iu esta fraude.
O surgim en t o de figuras vivas n ão deve ser tom ado em sen t ido pessoal,
ain d a que se esteja n at u ralm en t e in clin ad o a assu m ir de cert a form a a respon -
sabilidade sobre elas. Mas elas pert en cem n a verdade t an t o com o tam pouco à
n ossa person alidade, com o a posse das m ãos e dos pés. O sim ples fato de que
m ãos e pés est ão d ispon íveis n ão é d et erm in an t e da person alidade. Se exist e
algo de d et erm in an t e n eles, é apenas sua con d ição in d ivid u al. Assim é det er-
m in an t e para o eu que o velh o e a jovem sejam designados precisam en t e com o
Elias e Salom é; pod eriam t am bém ch am ar-se Sim ão Mago e H elen a. Mas é sig-
n ificat ivo que t en h am aspecto bíblico. Ist o faz part e, com o ficará dem on st rado
m ais t arde, das caract eríst icas da con fusão psíqu ica d om in an t e neste m om en t o.
Co m a con scien t ização da id eia sedut ora do poder esp irit u al vem à baila de
n ovo a qu est ão do Eros, de n ovo n u m a form a n ova: a possibilidade in d icad a
por Eva, bem com o a corporificad a por Mar ia, fica excluída. Perm an ece en t ão
a t erceira possibilidade, que evit a o ext rem o d a carn e assim com o o do espírit o,
ist o é, a relação filial: Elias, o pai; Salom é, a irm ã; o eu , o filh o e irm ão. Est a so-
lução correspon de à id eia crist ã de filiação. A m ãe que ain d a falta é com plet ada
de m an eira t errivelm en t e ard ilosa por Salom é com o Mar ia. O efeito sobre o
eu t am bém está de con form idade com isso. A solução crist ã através da filiação
AP Ê N D I C E S 507

t em in egavelm en te algo de libert ador, porque parece t er algum a coisa de bem


possível. Em cada pessoa ain d a est á vivo o filial; n a pessoa idosa é in clu sive a
ú lt im a coisa que ain d a está viva. Devid o à sua in esgot ável vit alid ad e e im p er -
dibilidade é possível recorrer a todo t em po ao filial. Pode-se t orn ar in ofen sivo
tudo, m esm o a coisa m ais perigosa, através da ret roversão para o filial. N ó s já
o fazemos m uit as vezes n a vid a com u m . Con segue-se até m esm o dom est icar
u m a paixão recon d u zin d o-a ao filial, e talvez m ais frequen t em en t e a ch am a
d a p a ixã o s u c u m b a a u m la m e n t o filial. Port an t o h á m u it as ocasiões em que o
filial pode aparecer com o solução satisfatória, in clu sive n o efeito profun do de
nossa educação cristã, que grava em n ós a id eia de filiação através de cen ten as
de fórm ulas de oração e de h in os.
Tan t o m ais d est ru id ora deve ser a observação de que Ma r ia era a m ãe co-
m u m . Pois assim a solução filial fica preju d icad a já n o surgim en to, e despertada
d iret am en t e a ideia: se Mar ia é a m ãe, então o eu deve ser inevitavelm ente Cristo. A solu -
ção filial t eria u m retrocesso fom en tado por todo t ipo de especulação: Salom é
já n ão seria perigosa, pois seria a irm ãzin h a. Elias seria o pai fiel e preocupado
cu ja sabedoria e pru d ên cia pod eriam d eixar o eu entregue a si m esm o com
con fian ça filial.
Mas esta é a m alfadada desvantagem da solução através da filiação: cada
filh o gost aria de crescer. Faz part e do ser in fan t il o desejo veem en t e e a im p a-
ciên cia pelo futuro de adulto. Se volt arm os ao ser crian ça por m edo dos perigos
do Er os, a crian ça d esejará desen volver-se segundo o poder espirit u al. Mas se
fugirm os para a in fân cia por m edo dos perigos do espírit o, sucum birem os à
prepot ên cia erót ica do poder.
O estado da filiação esp irit u al é u m a passagem n o qual n em todos con se-
guem persist ir. E com preen sível que neste caso é o Er os que m ost ra ao eu a
im possibilidade de con t in u ar crian ça. Pod er-se-ia pen sar que n ão seria m u it o
difícil t er de ren u n ciar ao estado de filiação. Mas só pen sa assim aquele que
n ão t em clareza sobre as con sequên cias da ren ú n cia à filiação. N ã o é apenas a
perda das con cepções cristãs de an t igam en t e e das possibilidades religiosas que
elas p rop orcion am - esta perda é suport ada facilm en t e por m u it os - , mas a
ren ú n cia se refere àquela at it ude que vai m ais fun do e que ultrapassa em m u it o
a con cepção cristã, que dá ao in d ivíd u o u m a direção cert a e experim en t ad a
de sua vid a e pen sam en to. Mesm o que alguém se tenha afastado há m uit o da
prática religiosa cristã e já não pense em arrepender-se dessa perda, com porta-se
5o8 AP Ê N D I C E S

in t u it iva m e n t e c o m o se as prem issas origin ais ain d a valessem . N ã o pen sa que


u m a cosm ovisão pret erid a deva ser subst it uída por ou t ra e sobretudo n ão t em
clareza de que n ossa m oral de h oje é m in ad a pelo aban don o d a con cepção cr is-
tã. A ren ú n cia à filiação sign ifica que n ão h á m ais apoio in t u it ivo e h abit u al aos
pon tos de vist a m orais vigen tes até agora. Pois o pon t o de vist a válid o até agora
proveio do espírit o d a cosm ovisão cristã.
Nossa at it ude para com o Er os, por exem plo, é, apesar de t oda a liberdade
de espírit o, ain d a o pon t o de vist a crist ão antigo. Nele n ão podem os p erm a-
n ecer sossegadamente sem quest ion am en t os e dúvidas, caso con t rário p erm a-
n ecerem os n o estado de filiação. Se rejeit arm os apenas o aspecto dogm át ico, a
libert ação do t rad icion al é apenas in t elect u al, en quan t o nosso sen t im en t o m ais
profun do segue o velh o cam in h o com o até agora. A m aioria n ão percebe o est a-
do de bipart ição em que en t ram através desse procedim en t o. Mas as futuras ge-
rações vão sen t ir isso m ais e m ais. Mas qu em o percebe descobre com espanto
que, aban don an do a filiação, cai para fora do t em po at ual e que n ão pode m ais
seguir n en h u m dos cam in h os t rad icion ais. Ele fica em t erra n ova que n ão t em
parâm et ro n em lim it es. Falt a-lh e aquela orien t ação, u m a vez que aban don ou
t oda e qualquer orien t ação t rad icion al. Mas este recon h ecim en t o preocupa só
un s poucos, pois a grande m aioria consegue con t en t ar-se com sua im perfeição,
e a im becilidade de seu estado esp irit u al n ão os pert u rba. Mas a in d iferen ça
e a in at ivid ad e n ão são caract eríst icas de todos. H aver á sem pre alguém que
preferirá procu rar am paro n a coragem do desespero do que perm an ecer n o
estado de u m a cosm ovisão que n ada t em a ver com seu proced im en t o h abit u al
de agora. Vai preferir aven t u rar-se em t erra escura e sem cam in h o, corren d o
o risco de n ela sucum bir, m esm o que t oda sua covard ia se revolt e con t ra isso.
Q u an d o Salom é diz que a m ãe com um é Maria e assim dá a entender que o eu
é Crist o, fica expresso precisa e claramente que o eu abandonou o estado da filiação
cristã e se colocou no lugar de Crist o. Naturalm en te nada seria mais absurdo do
que adm it ir que com isso o eu se arroga u m a im portân cia exagerada; ao contrário,
ele se coloca n u m a posição sobrem aneira inferior. An t es ele t in h a o privilégio de
estar com toda a humanidade no séquito de u m poderoso, mas agora trocou isto
pela solidão e desaparecimento. Ele é estranho e solitário em seu mundo, como
Jesus em sua época, mas sem possuir as altas qualidades daquele grande hom em .
A oposição ao m un do exige grandeza, mas o eu sente sua pequenez quase ridícula.
Daí se explica o espanto do eu ao ouvir as revelações de Salom é.
AP Ê N D I C E S 509

Q u e m se alien a da con cepção cristã, e se alien a t ot alm en t e, en t ra n o que


parece n ão ter ch ão firm e, n u m a solidão ext rem a, sobre a qual n ão é possível
en gan ar-se. Cer t am en t e gost aríam os de con ven cer-n os de que n em tudo é tão
difícil assim . Mas é difícil, sim . A solidão é a p ior coisa que pode acon tecer ao
in st in t o gregário do ser h um an o, sem falar do t errível ón us que coloca sobre si.
Dest r u ir é fácil, mas recon st ru ir é difícil.
Te r m in a assim esta im agem com u m sen t im en t o de t rist eza, mas que está
em con t radição com a ch am a alt a, queim an do sossegadam ente, en laçada pela
serpen te. Est e quadro sign ifica d evoção ju n t o com coação m ágica, expressa
pela serpen te. At ravés disso é apresen tada, ao in qu iet o sen t im en t o de dú vida
e de m edo, u m a con t rap art id a eficaz, com o se alguém dissesse: "Cer t am en t e
t eu eu está ch eio de in qu iet ação e dúvida, mas em t i qu eim a m ais forte ain d a
a ch am a perm an en t e d a devoção, e m ais poderosa é a coação de t eu d est in o".

p. 127-150 5

O s pressen t im en t os de forte im pact o da segunda ilust ração p recip it aram o eu


n u m caos de dúvidas. Por isso n asceu u m desejo com preen sível de elevar-se
por sobre a con fusão para u m a clareza m aior. Isso está expresso n a ilust ração
pela crist a de pedra que se eleva alcan t ilada. O Logos parece con cordar. O que
acontece em p rim eiro lugar é a im agem de dois opostos, expressos n a figura de
serpen tes, b em com o n a separação de d ia e n oit e. A claridade do d ia sign ifica
o bem , a escuridão sign ifica o m al. Co m o poderes im posit ivos, ambas t êm a
form a de serpen te. Nisso está ocu lt a u m a id eia que adquire grande im port ân cia
n o que se segue: n ão causaria m en os espanto a alguém en con t rar u m a serpen te
bran ca ou negra. A cor n ão in t erfere n o medo. In d ica-se com isso que, sob de-
t erm in adas circun st ân cias, o poder perigoso e en can t ador é im p ort an t e t an t o
ao bem quan t o ao m al. Por con seguin te n ão seria de con siderar aqui o bem
com o u m prin cípio que fica essen cialm en te atrás em periculosidade do m al.
Em qualquer caso, o eu n ão pod eria tam pouco t om ar a decisão de ap roxim ar-
se da serpen te bran ca ou negra, apesar de acredit ar que sob todas as cir cu n -
stân cias, pod eria ou d everia con fiar-se m ais ao b em do que ao m al. Mas aqui

5 Refere-se às pp. 173-185.


AP Ê N D I C E S

o eu fica parado n o m eio, com o que fascin ado, e con t em p la a lu t a dos dois
p rin cíp ios — d en t ro dele.
N a verdade, o fato de o eu con servar a posição in t erm éd ia já sign ifica u m
avan ço do m al, pois é u m a r u p t u r a com o bem , quan do a gente n ão se en trega
in con d icion alm en t e a ele. Ist o est á expresso n o ataque da serpen te negra. Mas
n a verdade, o fato de o eu n ão t om ar part e n o m al é u m a vit ória do bem . Ist o
está expresso n o fato de a serpen te negra receber u m a cabeça bran ca.
O desaparecim en to da serpen te sign ifica que a oposição de b em e m al t or-
n ou-se in at iva, ist o é, que ao m en os perd eu sua im port ân cia im ed iat a. Para
o eu, ist o sign ifica u m a libert ação do poder in con d icion al do pon t o de vist a
m oral cost u m eiro em p rol de u m a posição in t erm éd ia, livre dos opostos. Mas
com isso n ada se gan h a ain d a em clareza e vist a geral; por isso a ascen são é
con t in u ad a até u m a ú lt im a alt u ra, que talvez proporcion e a desejada vist a geral.
Apên d ice C

O que se segue é u m excert o do Livro Negro, 5, que dá u m a id eia p r elim in ar da


cosm ologia dos Septem Serm ones.

16. 1.16

Trem en d o é o poder de Deu s.


"De le ain d a terás de exp erim en t ar m ais. T u estás n o segundo tem po. O p r i-
m eiro t em po já passou. Est e é o t em po do im p ério do filh o, que t u cham as de
Deus-sapo. U m t erceiro t em po vai seguir, o tem po da repart ição e do poder
equ ilibrad o".
Min h a alm a, para on de vais? T u vais aos an im ais?
"Eu ligo o de cim a com o de baixo. Eu ligo Deu s com o an im al. Algo em m im
é an im al, algo é Deu s, e u m a t erceira part e é h u m an a. Ab aixo de t i, serpen te;
em t i, ser h u m an o; acim a de t i, Deu s. Alé m d a serpen te vem o falo, m ais além a
t erra, e m ais além ain d a a lu a, e en t ão o frio e o vazio do espaço celeste.
Por cim a de t i vem a pom ba ou a alm a do céu, n a qu al se u n em am or e
previsão, assim com o se reú n em n a serpen te ven en o e astúcia. A astúcia é i n -
t eligên cia d em on íaca que sem pre percebe o m en or e en con t ra buracos onde
jam ais se im agin aria.
Se eu n ão est iver com posto através da u n ião do em baixo com o de cim a,
d ivid o-m e em três pedaços: a serpente, e com o t al ou em ou t ra form a an im al
vagueio à toa, viven d o dem on iacam en t e a n at u reza, in sp iran d o pavor e an sie-
dade. A alm a hum ana, o sem pre viven t e contigo. A alm a celestial, que com o t al posso
ficar ju n t o aos deuses, longe de t i e descon h ecida de t i, aparecendo n a form a de
pássaro. Ca d a u m desses três pedaços é au t ón om o.
Para além de m im est á a m ãe celest ial. Seu oposto é o falo. Su a m ãe é a t erra,
seu objetivo, a m ãe do céu.
A m ãe do céu é a filh a do m u n d o sideral. Seu oposto é a t erra.
O m u n d o sid eral é ilu m in ad o pelo sol espirit u al. Seu oposto é a lu a. E assim
com o a lu a é a passagem para a m ort e do espaço, o sol esp irit u al é a passagem
para o Plerom a, o m u n d o su perior da plen it u d e. A lu a é o olh o d ivin o do vazio,
assim com o o sol é o olh o d ivin o do cheio. A lu a que t u vês é o sím bolo, com o

Sn
512 AP Ê N D I C E S

t am bém o sol que t u vês. Sol e lu a, ist o é, seus sím bolos, são deuses. Exist em
ain d a out ros deuses, cujos sím bolos são os plan etas.
A m ãe do céu é u m d áim on , abaixo da categoria dos deuses, u m a h abit an t e
do m u n d o sid eral.
O s deuses são favoráveis e desfavoráveis, im pessoais, alm as siderais, in flu -
ên cias, forças, avós das alm as, soberanos do m u n d o celeste. Tan t o n o espaço
com o n a força. N ã o são perigosos n em bon dosos, fortes, mas flexíveis, exp lica-
ções do Pler om a e do et ern o vazio, form ações das qualidades etern as.
Seu n ú m ero é in fin it am en t e grande e con duz para m ais além , para d en t ro
do u n o sobren at ural, que con t ém em si t oda qualidade, mas que n ão t em ele
m esm o n en h u m a qualidade, u m n ada e u m tudo, a t ot al d ecom posição do ser
h um an o, m ort e e vid a et ern a.
O ser h u m an o t orn a-se através do príncípíum índívíduatíonís. Ele lu t a pelo ú n ico
absoluto, pelo qu al con den sa sem pre m ais o absolutam en te dissolvido do Ple-
rom a. Co m isso faz do Pler om a u m pon t o in fin it am en t e pequeno, que con t ém
a m aior t en são, sendo ele m esm o u m a est rela brilh an t e, assim com o o Pler om a
é in fin it am en t e grande. Q u an t o m ais o Pler om a é condensado, t an t o m ais for-
te se t orn a a est rela do solit ário. Est á rodeado de n uven s brilh an t es, u m a est rela
em form ação, com parável a u m pequen o sol. Ele lan ça fogo. Por isso se d iz:
eyo) [e ip i] auimrÀavoç u p i v aaxrip1. Assim com o o sol, t am bém u m a est rela
sem elh an t e, é u m Deu s e avô das alm as, t am bém a est rela do solit ário é igual ao
sol, u m deus e avô das alm as. Às vezes ela é visível, exat am en t e com o a descrevi.
Sua lu z é azu l com o a de u m a est rela dist an t e. El a est á lá longe n o espaço, fria
e solit ária, pois est á além da m ort e. Para chegar ao ser solit ário precisam os de
u m gran de pedaço de m ort e. Por isso est á d it o 0801 eaxe2, pois assim com o é
in con t ável o n ú m ero dos govern an tes do m un do, assim é o n ú m ero das estrelas,
dos deuses, com o govern an tes do m u n d o celeste.

Est e Deu s é sem d ú vid a aquele que sobrevive à m ort e do ser h um an o. Para
qu em a solidão é o céu , este vai para o céu; para qu em é u m in fern o, este vai

1 Sou uma estrela perambulando contigo por a í"- Um a citação da Liturgia de Mit ra ( D I E D E R I C H , A. Etne
Míthraslíturgíe. Leipzig: B.G. Teubner, 1903, p. 8,1.5). Jung gravou a continuação dessa frase em sua pedra de
Bollingen.
2 Vós sois deuses". Um a citação de Jo 1033S.: "O s judeus responderam: Por nenhuma obra boa te
apedrejamos, mas sim pela blasfémia, pois sendo homem te fazes Deus. Jesus respondeu: Não está escrito
em vossa Lei: Eu disse: Vós sois deuses?'"
AP Ê N D I C E S 513

para o in fern o. Q u e m n ão leva at é o fim o príncípíum índívíduatíonís n ão se t orn a


Deu s, pois n ão consegue suport ar o estar só.
O s m ort os que n os at orm en t am são alm as que n ão sat isfizeram o príncípíum
índívíduatíonís, caso con t rário t er iam se t ran sform ado em estrelas dist an t es. E n -
quan to n ós n ão o sat isfizerm os, os m ort os t êm d ireit o sobre n ós e n os at or-
m en t am , e n ós n ão escapamos deles. [Ilu st ração] 3.
O Deu s das rãs ou dos sapos, o in sen sato, é a un ião do Deu s crist ão com sa-
tan ás. Su a n at u reza é sem elh an te à d a ch am a, ele é sem elh an te a Eros, con t udo
u m Deu s. Eros, só u m d áim on .
O Deu s único, a qu em é devida a ven eração, est á n o m eio.
Tu deves adorar um único Deus. O s ou t ros deuses são in d iferen t es. O Abraxas deve ser
temido. Por isso foi libert ação quan do ele se afastou de m im . T u n ão precisas p r o-
curá-lo. Ele te en con t rará, igualm en t e com o o Eros. Ele é o Deu s do un iverso,
ext rem am en t e poderoso e t errível. Ele é o im pu lso criador, é form a e form ação,
t an t o m at éria com o força, port an t o sobre todos os deuses claros e escuros. Ele
arrebat a a alm a e a lan ça n a procriação. Ele é criad or e criado. Ele é o Deu s que
se ren ova sem pre, n o d ia, n o m ês, n o ano, n a vid a h u m an a, n a época, nos povos,
n o viven t e, nas estrelas. Ele é força, é im placável. Se o ven erares, fort alecerás
seu poder sobre t i. E assim o poder dele se t or n a in su port ável. Terás grande d i-
ficuldade para te livrares dele. Q u an t o m ais te livras dele, t an t o m ais te ap r oxi-
mas da m ort e, pois ele é a vid a de tudo. Mas ele é t am bém a m ort e em geral. Por
isso sucum bes a ele n ovam en t e, n ão n a vid a, mas n a m ort e. Port an t o lem bra-t e
dele, n ão o ven eres, mas n ão penses que podes fugir dele, pois ele est á em volt a
de t i. T u deves estar n o m eio d a vid a, cercado pela m ort e. Dist en d id o com o u m
crucificado, estás depen durado d en t ro dele, o t errível, o suprapoderoso.
Mas t u tens d en t ro de t i o Deu s único, o fabulosam en te belo e b om , o soli-
tário, sem elh an te às estrelas, o im ot o, aquele que é m ais velh o e m ais sábio do
que o pai, aquele que t em u m a m ão firm e que te guia em todas as escuridões e
em todos os tem ores m ort ais do t errível Abraxas. Ele d á alegria e paz, pois está
além d a m ort e e além do m ut ável. Ele n ão é servid or n em amigo de Abraxas.
Sim , ele p róp rio é u m Ab raxas, m as n ão para t i, e sim em si e em seu m u n d o
dist an t e, pois t u m esm o és u m Deu s que h abit a em espaços lon gín qu os e que se

3 Esboço do Systema Munditotius; cf. Apêndice A.


$14 AP Ê N D I C E S

ren ova em suas épocas, criação e povos, t ão poderoso para eles quan to Ab raxas
para t i.
T u p róp rio és criad or do m u n d o e criat u ra.
T u t en s o Deu s único, t u te t orn as p ara t eu Deu s único u m dos in ú m eros
deuses.
Tu , com o Deu s, és o gran de Ab raxas de t eu m un do. Mas com o ser h u m an o
és o coração do Deu s ún ico, que se m an ifest a a seu m odo com o o gran de Ab r a -
xas, o t em ido, o poderoso, que espalh a lou cu ra, o d ist rib u id or da água da vid a, o
espírit o da árvore d a vid a, o d áim on do sangue, o port ad or da m ort e.
T u és o coração sofredor de t eu ú n ico Deu s das estrelas, que é o Ab raxas de
seu m un do.
Pelo fato de seres o coração de t eu Deu s, cu id a dele, am a-o, vive para ele.
Tem e o Ab raxas que govern a o m u n d o h um an o. Ace it a aquilo a que te obriga,
pois ele é o sen h or da vid a deste m u n d o e n in gu ém escapa dele. Se n ão acei-
tares, ele te t ort u rará até a m ort e e o coração de t eu Deu s sofre, assim com o o
Deu s único de Cr ist o em cu ja m ort e su port ou o pior.
O sofrim en t o da h u m an id ade n ão t em fim , porque sua vid a n ão t em fim .
Pois n ão h á fim on de n in gu ém vê que h á u m fim . Q u an d o a h u m an id ade está
n o fim , n ão h averá m ais n in gu ém para ver seu fim e n in gu ém est ará ali para
d izer que a h u m an id ad e t em u m fim . Port an t o, ela n ão t em fim para si m esm a,
mas para os deuses.
A m o r t e do Cr is t o n ão r e t ir o u do m u n d o n e n h u m sofrim en t o, m as su a
vid a n os en sin o u m u it a coisa com o, p or exem p lo, que agrada ao Deu s único
qu an d o o solit ár io vive su a p r ó p r ia vid a co n t r a o p od er do Ab r a xa s. E assim
o Deu s único se livr a do sofr im en t o d a t e r r a em que seu Er o s o p r ecip it o u ;
pois qu an d o o De u s ú n ico vi u a t er r a, d esejou -a p ar a a geração e esqu eceu
que já h avia receb id o u m m u n d o, n o q u al ele er a o Ab r a xa s. Dessa for m a,
o Deu s único t or n ou -se ser h u m an o. Por isso, o ú n ico p u xa p ara cim a n o va-
m en t e o ser h u m an o p ara si e em si, a fim de que o ú n ico fiqu e o u t r a vez
com p let o.
Mas a libert ação do ser h u m an o do poder de Ab raxas n ão se processa pelo
fato de ele su bt rair-se ao poder de Ab raxas - n in gu ém pode su bt rair-se a ele, a
n ão ser subm et en do-se a seu poder. O p róp rio Cr ist o teve de subm et er-se ao
poder de Ab raxas, e Ab raxas o m at ou de form a cru el.
AP Ê N D I C E S 515

T u só te libert as d a vid a viven d o-a. Port an t o vive-a n a m ed id a que te cabe.


N a m ed id a em que a vives, sucum bes t am bém ao poder de Ab raxas e de suas
t erríveis ilusões. Mas n est a m esm a m edida, o Deu s estelar em t i gan ha em de-
sejo e força, en quan t o lh e cabe o frut o da ilusão e da frust ração do ser h um an o.
Sofrim en t o e frustração en ch em o m u n d o do Ab raxas com frio; todo t eu calor
vit al m ergu lh a devagar n a profun deza de t u a alm a, n o pon t o cen t ral do ser h u -
m an o, on de b r ilh a a lu z estelar dist an t e e azu l de t eu Deu s único.
Se por medo fugires de Abraxas, foges da dor e da frustração, e assim ficas de-
pendendo com medo, isto é, com teu am or inconsciente de Abraxas, e teu Deus
único não pode arder em chamas. Mas através da dor e da frustração t u te soltas, pois
então teu desejo cai por si, como fruta madura, n a profundeza, seguindo a gravida-
de, tentando alcançar o centro no qual nasce precisamente a luz do Deus estelar.
Port an t o, n ão fujas do Ab raxas, n ão o procures. T u sentes sua opressão, n ão
lh e resistas, para que vivas e assim pagues t eu resgate.
As obras de Ab raxas devem ser realizadas, pois con sid era que em t eu m u n -
do t u m esm o és Ab raxas e obrigas t u a criação a realizar t u a obra. Aq u i on de és
criat u ra su jeit a ao Ab raxas, deves apren der a realizar as obras d a vid a. Lá onde
és Ab raxas obrigas tuas criat uras.
T u perguntas por que tudo é assim ? Eu en t en do que ist o te pareça ques-
t ion ável. O m u n d o é quest ion ável. Ele é a grande e in fin it a t olice dos deuses,
dos quais sabes que são in fin it am en t e sábios. Cert am en t e ele é t am bém u m a
in júria, u m pecado im perd oável e por isso t am bém o m ais alto am or e virt u d e.
Port an t o vive a vid a, n ão fujas do Ab raxas en quan t o ele te obriga e t u con -
segues recon h ecer sua necessidade. Digo em cert o sen tido: n ão o tem as, n ão
o ames. Em out ro sen t ido digo: tem e-o, am a-o. Ele é a vida da terra, e ist o já é o
bastan te para t i.
Precisas t er con h ecim en t o d a m u lt ip licid ad e dos deuses. T u n ão consegues
m ais tudo n u m a só n at ureza. Tam pou co com o t u és u m com a m u lt iplicid ad e
das pessoas h um an as, tam pouco é o Deu s ú n ico u m com a m u lt iplicid ad e dos
deuses. Est e Deu s único é o bondoso, o am oroso, o guia, o terapeuta. A ele é d e-
vid o todo t eu am or e ven eração. A ele deves orar, com ele és u m , ele est á pert o
de t i, m ais pert o que t u a alm a.
Eu , t u a alm a, sou t u a m ãe, en volven do-t e com carin h o e medo. Tu a n u t r i-
d ora e d est ru id ora, prepara-t e coisa boa e ven en o. Sou t u a in t ercessora ju n t o a
AP Ê N D I C E S

Abraxas. Eu te en sin o os art ifícios que te protegem con t ra o Ab raxas. Eu estou


en t re t i e o Ab raxas que tudo en volve. Eu sou t eu corpo, t eu represen t an t e
no m u n d o dos deuses, t eu b rilh o, t u a respiração, t eu ch eiro, t u a força m ágica.
A m im deves in vocar se quiseres viver com os h u m an os, mas o Deu s único, se
quiseres elevar-t e acim a do m u n d o dos h um an os até a solidão d ivin a e et ern a
da estrela.
o
LI VRO VERM ELH O
L I B E R N O VU S
Edição sem ilustrações
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( CI P )
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Jung, C.G., 1875-1961.


O Livro Verm elh o : edição sem ilustrações / C G .
Jun g ; Edição e Introdução de Sonu Sh am d asan i; prefácio
de Ulr ich H o e r n i;
tradução: Lib er Novus, Edgar O r t h ; introdução, Gen t il A.
Tit t o n e Gustavo Barcellos ; revisão da tradução,
W alt er Boechat. 3. ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2013.

Tít u lo origin al: T h e Red Book : Lib er Novus


a reader's edit ion
Bibliografia
I S BN 978-85-326-4490-9

I . Jung, Ca r l Gustav, 1875-1961 2. Psicanalistas -


Suíça - Biografia 3. Psicologia jun guian a
I . Shamdasani, Sonu. I I . H oer n i, Ulr ich . I I I . Tit t on , Gen t il
A. I V Barcellos, Gustavo.
V Tít ulo.

10-00037 CDD-150.1954

ín dices para catálogo sistemático:


1. Jung, Ca r l Gust av : Psicologia analítica 150.1954
2. Psicologia analítica junguiana 150.1954
o
LI VRO VERM ELH O
LI BE R N O VU S

Edição sem ilustrações

C G . JUNG

Ed ição e In t r od u ção de
S O N U SH AM D ASAN I

Prefácio de U l r i c h H o e r n i

Trad u ção:
Ll BE R N O VU S: E D G A R O R T H

I N T R O D U Ç Ã O : G E N T I L A . T I T T O N E G U S T AVO B A R CELLO S

Revisão d a t rad u ção: D R . W ALT ER B O ECH AT

® P H I LEM Q N S ER I ES

U m a p u b licação au t orizad a pela Fu n d ação das O b ras


de C. G. Ju n g, de Zu r iq u e.

& è EDITORA
• VOZES
Pet rópolis
Co p yr i g h t © 2009 b y t h e Fo u n d a t i o n o f t h e W o r k s o f C G . Ju n g
Copyrigh t da tradução © 2009 by Mark Kybu rz, Joh n Peck e Son u Shamdasani
Introdução e notas © 2009 by Son u Shamdasani

Tít u lo origin al inglês: The Red Book: A Readers Edítíon, publicado pela W W Nort on &
Com p an y New York & Lon d on

Direit os de publicação em língua portuguesa - Brasil:


2013, Ed it ora Vozes Lt d a.
Ru a Frei Luís, 100
25689-900 Petrópolis, RJ
In t ern et : http:/ / www.vozes.com.br
Brasil

Todos os direitos reservados. Nen h u m a parte desta obra poderá ser reproduzida ou
t ran sm it ida por qualquer form a e/ ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, in cluin do
fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistem a ou banco de dados sem
perm issão escrita da editora.

Dire to r editorial
Frei An t ôn io Moser

Editores
Alin e do Santos Carn eiro
José Maria da Silva
Lídio Peret t i
Marilac Lorain e O len iki

Secretário executivo
João Bat ist a Kr eu ch

Direção de arte: Lar r y Vigon


Adaptação/ composição: Lau ra Lin d gren a part ir do projeto gráfico da
edição ilustrada de Er ic Baker Design Associates
Editoração: Dor a Beat riz V Noron h a
Diagramação: Sheilandre Desenv. Gráfico

I S BN 978-85-326-4490-9 (edição brasileira)


I S BN 978-0-393-08908-0 (edição n orte-am erican a)

® P H I LEM Q N S ER I ES

O Livro Verm elho: edição sem ilustrações é u m a publicação dos h erdeiros de C G . Ju n g e u m dos

volumes da Série Ph ilem on , m an t ida pela Fundação Ph ilem on

Edit ado conforme o novo acordo ortográfico.

Este livro foi composto e impresso pela Ed it ora Vozes Lt d a.


Sum ário

ix Prefácio à edição sem ilust rações


xi Prefácio
XV Agrad ecim en t os

I Líber Novus: O "Livr o Ver m elh o" de C G . Ju n g, por Son u


Sh am dasan i
87 No t a dos t radut ores d a edição in glesa
95 No t a ed it orial
IOI No t a à edição sem ilustrações
103 Ab reviações e n ot a sobre a pagin ação

Lib er Prim us
O

I07 Prólogo O cam in h o daquele que virá foi. i ( r )


US Cap ít u lo I O reen con t ro d a alm a foi. i i ( r )
119 Cap ít u lo I I Al m a e Deu s foi. i i ( r )
12$ Cap ít u lo I I I Sobre 0 serviço da alm a foi. ii( v)
128 Cap ít u lo I V O deserto foi. iii ( r )
I30 Experiên cias n o deserto foi. iii ( r )
133 Cap ít u lo V Descid a ao in fern o n o fut uro foi. i i i (
141 Cap ít u lo V I Divisão do espírit o foi. i v( r )
145 Cap ít u lo V I I Assassin at o do h erói foi. iv( v)
148 Cap ít u lo V I I I Con cep ção do Deu s foi. iv( v)
157 Cap ít u lo I X Myst eriu m . En con t r o foi. v( v)
165 Cap ít u lo X In st ru ção foi. vi ( r )
173 Cap ít u lo X I Solução foi. vi( v)

Nota: O s números em preto se referem à tradução.

O s números em vermelho se referem aos fac-símiles da edição ilustrada


i87 Lib er Secundus
189 As im agen s do erran t e 1
190 Cap ít u lo I O Verm elh o 2
197 Cap ít u lo I I O castelo n a floresta 5
20 8 Cap ít u lo I I I U m dos degradados 11
215 Cap ít u lo I V O erem it a. Dies I ( D i a 1) 15
225 Cap ít u lo V Dies I I ( D i a 2) 22
234 Cap ít u lo V I A m ort e 29
239 Cap ít u lo V I I O s restos de tem plos antigos 32
247 Cap ít u lo V I I I Pr im eir o d ia 37
259 Cap ít u lo I X Segundo d ia 46
266 Cap ít u lo X As en can t ações 50
273 Cap ít u lo X I A abert u ra do ovo 65
28 0 Cap ít u lo X I I O in fern o 73
284 Cap ít u lo X I I I O assassinato sacrificial 76
291 Cap ít u lo X I V A d ivin a lou cu ra 98
295 Cap ít u lo X V No x secun da (Segun da n oit e) 100
308 Cap ít u lo X V I No x t ert ia (Ter ceir a n oit e) 108
320 Cap ít u lo X V I I No x qu art a ( Q u a r t a n oit e) 114
330 Cap ít u lo X V I I I As três profecias 124
335 Cap ít u lo X I X O d om da m agia 126
343 Cap ít u lo X X O cam in h o da cru z 136
349 Cap ít u lo X X I O mago 139

405 Aprofun dam en tos


48 9 Ep ílogo
491 Ap ên d ice A: Man dalas
49 7 Ap ên d ice B: Com en t ár ios
511 Ap ên d ice C: Excer t o de 16 de jan eiro de 1916 do Livro Negro 5.
O S AN O S D U R AN T E O S Q U AI S

m e detive nessas imagens in teriores con stituíram a

época m ais im port an t e da m in h a vida.

Neles todas as coisas essenciais se decidiram .

Foi en t ão que tudo teve início, e os detalhes posteriores

foram apenas com plem entos e elucidações.

To d a m in h a at ividade u lt er ior con sist iu em elaborar

o que jor r ava do in con scien t e n aqueles anos

e que in icialm en t e m e in u n d ara: era a

m at ér ia-p r im a p ara a obra de u m a vid a in t eir a.

C G . J U N G , 1957
Prefácio à edição sem ilustrações

Passou -se m ais de u m a d é ca d a d esd e a m e m o r á ve l d ecisão d a an t iga


socied ad e de h er d eir o s de C G . Ju n g de a u t o r iz a r a p u b licação d o Livr o Ve r m e lh o .
Co n sid e r o u - se m u it o a qu e t ip o d e p ú b lico d evia ser d ir igid a est a o b r a de várias
cam ad as: Le it o r e s p r ofission ais de ob ras sob re a h ist ó r ia d a p sicologia? O le it o r
e m geral? Pessoas visu a lm e n t e recep t ivas, or ien t ad as p ar a as im agen s? Am a n t e s
d a caligrafia? Co le cio n a d o r e s de b elos livr os? Q u a i s aspect os o fo r m a t o e o p r o -
jet o d a p u b licação d e via m p ô r e m p r im e ir o p lan o? N ã o foi fácil r esp on d er a est as
q u est õ es, p or q u e at é a ap ar ên cia física d o p r ecioso o r igin al p ar ecia co n t e r u m a
m en sagem . Mu it a s p r op ost as fo r a m exam in ad as e d escart ad as. Fo i a e d it o r a W W
N o r t o n q u e m fin a lm e n t e e n co n t r o u a solu ção ap r op r iad a: u m a ed ição fa c-sim ila r
co m p let a, qu e foi ap r esen t ad a e m seu fo r m a t o o r igin al e m 2 0 0 9 . O est r on d oso
su cesso co m p r o vo u qu e o ed it o r est ava cert o. O livr o d ifu n d iu -se r ap id am en t e p elo
m u n d o in t e ir o e já est á d isp o n ível e m n ove lín gu as. Evid e n t e m e n t e , er a p ossível
p lan ejar u m a ed ição qu e fizesse ju st iça n ão só às m ú lt ip las facet as d a o b r a, m as
t a m b é m aos d ifer en t es t ip os de p ú b lico. A list a de pessoas às qu ais se d eve o m é r it o
d est e su cesso é h oje co n sid er a velm en t e ext en sa. N o en t an t o, d ois n om es esp ecial-
m e n t e m e r e ce m ser m en cio n ad o s, Jim Ma ir s ( W W N o r t o n ) e So n u Sh a m d a sa n i
( Fu n d a çã o P h ile m o n ) .
A p resen t e e d içã o sem ilu st r ações co n t é m o t ext o co m p le t o d o o r igin a l. E
d ir igid a esp ecificam en t e àq u eles qu e go st ar iam de ocu p ar -se p r o fu n d a m e n t e co m
a d o cu m e n t a çã o lit er ár ia d a evo lu ção in t e r io r de Ju n g. Est ar á sem d ú vid a de acor d o
co m a in t e n çã o de Ju n g se est a e d içã o aju d ar os leit or es a t o r n a r su a le it u r a m ais
p r o veit o sa p a r a seu p r ó p r io d esen vo lvim en t o .

Ulr ich H oern i

Fu n d a çã o das O b r a s de C . G . Ju n g
Ju lh o de 2012
Prefácio
D e s d e 1962, a e xis t ê n c ia d o Livro Verm elho d e Ju n g e r a a m p l a m e n t e c o n h e -
cid a . Co n t u d o , só a p a r t i r d a p r e se n t e p u b lic a ç ã o ele e s t á fi n a lm e n t e a ce ssíve l
a u m p ú b l i c o a m p lo . Su a gé n e s e é d e s c r it a e m Mem órias, Sonhos, Reflexões de Jung
e e st e ve s u je i t a a n u m e r o s a s d is c u s s õ e s n a l i t e r a t u r a s e c u n d á r ia . P o r isso, a q u i
ir e i apen as e sb o çá -la su cin t a m e n t e .
O a n o d e 1913 fo i d e cisivo n a v i d a d e Ju n g. E l e c o m e ç o u u m a u t o e xp e r i -
m e n t o q u e ve io a ser c o n h e c id o c o m o se u "c o n fr o n t o c o m o in c o n s c ie n t e " e
d u r o u a t é 1930. D u r a n t e esse e xp e r im e n t o , Ju n g d e s e n vo lve u u m a t é cn ica p a r a
"ch egar ao fu n d o d o [se u ] p r o ce sso i n t e r i o r ", "t r a d u z i r as e m o ç õ e s e m im a ge n s"
e "c o m p r e e n d e r as fan t asias q u e e st a va m se agit an d o... ' s u b t e r r a n e a m e n t e ' ".
M a i s t a r d e ele d e u a esse m é t o d o o n o m e d e "im a g in a ç ã o a t iva ". Ju n g r e gis t r o u
p r i m e i r a m e n t e essas fan t asias e m seu s Livros Negros. D e p o i s r e vis o u esses t e xt o s,
a c r e s c e n t o u r e fle xõ e s so b r e eles e c o p io u - o s e m e s c r it a ca ligr á fica n u m l i vr o
in t it u la d o Liber Novus e n c a d e r n a d o e m c o u r o ve r m e lh o , a c o m p a n h a d o p o r q u a -
d r o s p in t a d o s p o r ele m e sm o . Se m p r e fo i c o n h e c id o c o m o Livro Verm elho.
Jung c o m p a r t i l h a va su as e xp e r iê n c ia s i n t e r i o r e s c o m a m u l h e r e c o m p a -
n h e ir o s m a is p r ó xi m o s . E m 1925, fez u m r e la t ó r io d e s e u d e s e n vo lvi m e n t o
p r o fis s io n a l e p e sso a l n u m a sé r ie d e s e m i n á r i o s n o C l u b e P s ic o ló gic o d e
Zu r i q u e , n o s q u a is m e n c i o n o u t a m b é m se u m é t o d o d a i m a g i n a ç ã o a t iva . F o r a
d isso , Ju n g e r a ca u t e lo so . Seu s filh o s, p o r e xe m p lo , n ã o e s t a va m i n fo r m a d o s
d e se u a u t o e xp e r i m e n t o e n ã o n o t a r a m n a d a d e a n o r m a l . Evi d e n t e m e n t e ,
t e r i a sid o d ifícil p a r a ele e xp l i c a r o q u e e st a va o c o r r e n d o . Já e r a u m s in a l d e
c o n d e s c e n d ê n c i a se p e r m i t i a q u e u m d e seu s filh o s o o b se r va sse e sc r e ve n d o
o u p in t a n d o . As s i m , p a r a os d e sce n d e n t e s d e Ju n g , o Livro Verm elho s e m p r e fo r a
ce r ca d o p o r u m a a u r a d e m is t é r io . E m 1930, Ju n g t e r m i n o u o e xp e r i m e n t o e
p ô s d e la d o o Livro Verm elho - in a ca b a d o . E m b o r a t ivesse se u lu ga r d e h o n r a e m
se u e st u d o , d e i xo u o l i vr o d e sca n sa r p o r d é c a d a s . En q u a n t o isso, as in t u iç õ e s e
c o n h e c i m e n t o s q u e o b t i ve r a a t r a vé s d e le i n fo r m a r a m d i r e t a m e n t e seu s e s c r i -
t o s su b se q u e n t e s. E m 1959, c o m a a ju d a d o a n t igo e s b o ç o , ele t e n t o u c o m p le t a r
a t r a n s c r iç ã o d o t e xt o p a r a o Livro Verm elho e t e r m i n a r u m q u a d r o in c o m p le t o .
I n i c i o u t a m b é m u m e p ílo go , m a s, p o r r a z õ e s d e sco n h e cid a s, t a n t o o t e xt o c a l i -
gr á fico c o m o o e p ílo g o t e r m i n a m a b r u p t a m e n t e n o m e i o d a fr ase.
xii P R E F ÁCI O

E m b o r a Ju n g t e n h a p e n s a d o e fe t iva m e n t e e m p u b l i c a r o Livro Verm elho,


n u n c a d e u os p asso s n e ce ssá r io s. E m 1916 p u b l i c o u p o r p r ó p r i a c o n t a os Septem
Serm ones ad Mortuos ( Se t e s e r m õ e s aos m o r t o s ) , u m a p e q u e n a o b r a q u e n a s c e u
d e se u c o n fr o n t o c o m o in c o n s c ie n t e . M e s m o se u e n sa io d e 1916 in t it u la d o
"A fu n ç ã o t r a n s c e n d e n t e ", e m q u e d e s c r e via a t é c n ic a d a i m a g i n a ç ã o a t iva , n ã o
fo i p u b lic a d o a n t e s d e 1958. E x i s t e m d ive r sa s r a z õ e s p a r a o fat o d e ele n ã o
t e r p u b lic a d o o Livro Verm elho. C o m o ele p r ó p r i o a fi r m o u , o l i vr o e st a va i n a -
cab ad o. Se u cr e sce n t e in t e r e sse p e la a l q u i m i a c o m o t e m a d e p e sq u isa d e s vio u
su a a t e n çã o . N u m o l h a r r e t r o sp e ct ivo , ele d e s c r e ve u a e xp o s i ç ã o d e t a lh a d a d e
su as fa n t a sia s n o Livro Verm elho c o m o u m a n e c e s s á r ia m a s e n fa d o n h a "e la b o r a -
ç ã o e st e t iz a n t e ". A i n d a e m 1957, d e c la r o u q u e os Livros Negros e o Livro Verm elho
e r a m r e gist r o s a u t o b io gr á fic o s q u e ele n ã o q u e r i a p u b lic a d o s e m su as O b r a s
Co m p l e t a s , p o r q u e n ã o t i n h a m c a r á t e r e r u d it o . C o m o c o n c e s s ã o , p e r m i t i u
q u e An i e l a Ja ffé cit a sse e xc e r t o s d o Livro Verm elho e d o s Livros Negros e m Mem órias,
Sonhos, Reflexões — p o s s ib ilid a d e d e q u e e la fez p o u co u so.

Ju n g m o r r e u e m 1961. Se u e s p ó lio lit e r á r io t o r n o u - s e p r o p r ie d a d e d e seu s


d e sce n d e n t e s, q u e fu n d a r a m a So cie d a d e d o s H e r d e i r o s d e C G . Ju n g. A
h e r a n ç a d o s d ir e it o s lit e r á r io s d e Ju n g t r o u xe u m a o b r ig a ç ã o e u m d esafio aos
h e r d e ir o s : le va r a ca b o a p u b lic a ç ã o d a e d i ç ã o a l e m ã d as O b r a s Co m p l e t a s . E m
se u t e s t a m e n t o Ju n g e xp r e s s a r a o d e se jo d e q u e o Livro Verm elho e os Livros Negros
p e r m a n e c e s s e m c o m s u a fa m ília , s e m , c o n t u d o , d a r in s t r u ç õ e s m a is d e t a lh a d a s.
Já q u e o Livro Verm elho n ã o se d e s t in a va a se r p u b lic a d o n a s O b r a s Co m p l e t a s ,
a So cie d a d e d o s H e r d e i r o s c o n c l u i u q u e est e e r a o d e se jo fin a l d e Ju n g a r e s -
p e it o d a o b r a , e q u e ist o e r a u m a q u e s t ã o i n t e i r a m e n t e p r iva d a . A So cie d a d e
d os H e r d e i r o s g u a r d o u os e scr it o s in é d it o s d e Ju n g c o m o u m t e so u r o ; n ã o se
p e n s o u e m p u b lic a ç õ e s u lt e r io r e s . O Livro Verm elho p e r m a n e c e u n o ga b in e t e d e
t r a b a lh o d e Ju n g p o r m a is d e vi n t e a n o s, co n fia d o aos cu id a d o s d e F r a n z Ju n g,
q u e a s s u m i u a ca sa d o p a i.

E m 1983, a So cie d a d e d os H e r d e i r o s c o lo c o u o Livro Verm elho n u m a c a ixa - fo r -


t e, sa b e n d o q u e e r a u m d o c u m e n t o in s u b s t it u íve l. E m 1984, o r e c é m - n o m e a d o
c o m i t é e xe c u t ivo m a n d o u fa z e r c in c o r e p r o d u ç õ e s fo t o gr á fica s p a r a u so d a
fa m ília . P e la p r i m e i r a ve z , os d e sce n d e n t e s d e Ju n g t i n h a m a o p o r t u n id a d e d e
o lh a r o l i vr o m a is d e p e r t o . Es t e m a n u s e i o cu id a d o so t e ve seu s b e n e fíc io s . O
b o m e st a d o d e c o n s e r va ç ã o d o Livro Verm elho d e ve -se , e n t r e o u t r a s co isa s, ao
fat o d e q u e , d u r a n t e d é c a d a s , só r a r a m e n t e fo i a b e r t o .
P R E F ÁCI O xiii

Q u a n d o , d e p o is d e 1990, a e d iç ã o a l e m ã d as O b r a s Co m p l e t a s — u m a sele-
ção de o b r a s — e st a va ch e ga n d o ao fi m , o c o m i t é e xe c u t ivo d e c i d i u c o m e ç a r a
e xa m i n a r t o d o o m a t e r i a l i n é d i t o a ce ssíve l c o m vist a s a fu t u r a s p u b lic a ç õ e s .
As s u m i essa t a r e fa p o r q u e , e m 1994, a So cie d a d e d o s H e r d e i r o s c o lo c o u so b r e
m e u s o m b r o s a r e sp o n sa b ilid a d e p elas q u e s t õ e s a r q u ivíst ica s e e d it o r ia is .
Ve r i fi c o u - s e q u e h a vi a t o d o u m corpus d e e s b o ç o s e va r ia n t e s r e la t ivo s ao Livro
Verm elho. Daí ve io à t o n a q u e a p a r t e q u e fa lt a va d o t e xt o ca ligr á fico e xi s t i a
n a fo r m a d e e s b o ç o e q u e h a vi a u m m a n u s c r i t o i n t i t u l a d o Aprofundam entos, q u e
c o n t i n u a va o n d e o e s b o ç o t e r m i n a va , c o n t e n d o os Sete serm ões. N o e n t a n t o , se
e c o m o est e m a t e r i a l e sse n cia l p o d e r i a ser p u b lic a d o p e r m a n e c i a u m a q u e s t ã o
a b e r t a . A p r i m e i r a vis t a , o e st ilo e o c o n t e ú d o p a r e c i a m t e r p o u co e m c o m u m
c o m as o u t r a s o b r a s d e Ju n g. M u i t a co isa e r a o b s c u r a e, e m m e a d o s d a d é c a d a
d e 1990, n ã o h a vi a so b r a d o n i n g u é m q u e p u d e sse p r o p o r c i o n a r i n fo r m a ç ã o d e
p r i m e i r a m ã o so b r e esses p o n t o s.
M a s , d e sd e o t e m p o d e Ju n g, a história d a p sico lo gia vi e r a a d q u i r i n d o se m p r e
m a i o r i m p o r t â n c i a e p o d i a ago r a p r o p o r c i o n a r u m a n o va a b o r d a ge m . E n q u a n -
t o t r a b a lh a va e m o u t r o s p r o je t o s e u e n t r e i e m c o n t a t o c o m So n u Sh a m d a s a n i.
E m lo n ga s co n ve r sa s d i s c u t i m o s a p o ssib ilid a d e d e u lt e r io r e s p u b lic a ç õ e s d e
Ju n g, t a n t o e m t e r m o s ger ais c o m o n o q u e d i z r e sp e it o ao Livro Verm elho. O
l i vr o s u r g iu n u m c o n t e xt o e sp e cífico c o m o q u a l u m l e i t o r d o sé cu lo X X I já
n ã o e st á m a is fa m ilia r iz a d o . M a s u m h i s t o r i a d o r d a p sico lo gia s e r ia ca p a z d e
a p r e s e n t á - l o ao l e i t o r m o d e r n o c o m o u m d o c u m e n t o h ist ó r ico . C o m a a ju d a
d e fo n t e s p r im á r ia s , ele p o d e r i a e n c a i xá - l o n o c o n t e xt o c u l t u r a l d e su a gé n e s e ,
s it u á - lo n a h is t ó r ia d a c iê n c ia e r e la c io n á - lo c o m a vi d a e as o b r a s d e Ju n g. E m
1999, So n u Sh a m d a s a n i e la b o r o u u m a p r o p o s t a d e p u b lic a ç ã o se gu in d o esses
p r in c íp io s o r ie n t a d o r e s . C o m b ase n e s t a p r o p o st a , a So cie d a d e d o s H e r d e i r o s
d e c i d i u n a p r i m a ve r a d e 2 0 0 0 — n ã o s e m d is c u s s ã o - l i b e r a r o Livro Verm elho
p a r a p u b lic a ç ã o e c o n fia r a So n u Sh a m d a s a n i a t a r e fa d e e d it á - lo .

P e r gu n t a r a m - m e m u it a s vezes p o r q u e, a p ó s t a n t o s an o s, o Livro Verm elho e st á


sen d o ago r a p u b lica d o . Al g u n s n o vo s cr it é r io s d e n o ssa p a r t e d e s e m p e n h a r a m
u m p a p e l im p o r t a n t e : o p r ó p r io Ju n g n ã o c o n s id e r o u - c o m o p a r e ce r a - o Livro
Verm elho u m segr ed o. E m d ive r sa s o c a s iõ e s o t e xt o c o n t é m a fo r m a d e t r a t a m e n -
t o "q u e r id o s a m igo s"; e m o u t r a s p a la vr a s, é d ir ig id o a u m p ú b lic o . D e fat o, Ju n g
d e i xo u a m igo s p r ó xi m o s t e r e m c ó p ia s d e t r a n s c r iç õ e s e d is c u t iu - a s c o m eles.
N ã o r e je i t o u ca t e go r ica m e n t e u m a p u b lic a ç ã o ; s i m p le s m e n t e d e i xo u a q u e s t ã o
xiv P R E F ÁCI O

n ã o r e so lvid a . A l é m d isso , o p r ó p r i o Ju n g a fi r m o u q u e t i r o u t o d o o m a t e r i a l
p a r a su as o b r a s p o st e r io r e s d e se u c o n fr o n t o c o m o in c o n s c ie n t e . C o m o r e gis-
t r o d esse c o n fr o n t o o Livro Verm elho o cu p a , a s s im , p a r a a lé m d a esfera privada, u m
lu ga r c e n t r a l n as obras d e Ju n g. Es s a m a n e i r a d e ve r p e r m i t i u à g e r a ç ã o d os
netos de Ju n g o lh a r p a r a a sit u a ç ã o sob u m a n o va lu z . O p r o ce sso d e t o m a d a d e
d e c is ã o l e vo u t e m p o . Exc e r t o s e xe m p la r e s , c o n c e it o s e i n fo r m a ç ã o a ju d o u - o s a
l i d a r d e fo r m a m a is r a c i o n a l c o m u m a ssu n t o e m o c i o n a l m e n t e ca r r e ga d o . P o r
fi m , a So cie d a d e d o s H e r d e i r o s d e c i d i u d e m o c r a t i c a m e n t e q u e o Livro Verm elho
podia se r p u b lica d o . F o i u m a lo n ga jo r n a d a d e sd e essa d e c is ã o a t é a p r e se n t e
p u b lica çã o . O r e s u lt a d o é im p r e s s io n a n t e . Es t a e d iç ã o n ã o t e r i a sid o p o ssíve l
s e m a c o o p e r a ç ã o d e m u i t a s p esso as q u e d e d i c a r a m s u a h a b ilid a d e e e n e r gia a
u m o b je t ivo c o m u m . E m n o m e d o s d e sce n d e n t e s d e C G . Ju n g e u go st a r ia d e
e xp r e ssa r m e u s s in c e r o s a gr a d e cim e n t o s a t o d o s os co la b o r a d o r e s.

Ab r i l de 20 0 9
Ulrich H oern i
Fu n d a ç ã o p a r a as O b r a s d e C . G . Ju n g
Agradecim en tos

D a d o o gr a n d e n ú m e r o d e e xe m p la r e s in é d it o s e m cir cu la çã o , o Livro Verm elho

acabaria, com t o d a p r o b a b ilid a d e , se n d o t r a z i d o a p ú b lic o e m a lgu m m o m e n t o ,

d e a lgu m a fo r m a . A segu ir , e u go s t a r ia d e a gr a d e ce r aos q u e t o r n a r a m p o ssíve l

r e a liz a r a p r e se n t e e d iç ã o h ist ó r ica . M u i t a s p esso as c o la b o r a r a m p a r a t o r n á - l a

p o ssíve l, e ca d a u m a d elas c o n t r i b u i u , a s e u m o d o , p a r a s u a r e a liz a çã o .

A a n t iga So cie d a d e d e H e r d e i r o s d e C . G . Ju n g ( d is s o lvid a e m 2 0 0 8 )

d e c i d i u , n a p r i m a ve r a d e 2 0 0 0 , a p ó s in t e n s o s d eb at es, li b e r a r a o b r a p a r a

p u b lica çã o . E m n o m e d a So cie d a d e d e H e r d e i r o s , U l r i c h H o e r n i , a n t e s s e u

a d m i n i s t r a d o r e p r e s id e n t e e, a t u a lm e n t e , p r e s id e n t e d e s u a su ce sso r a , a

Fu n d a ç ã o p a r a as O b r a s d e C . G . Ju n g, p l a n e jo u o p r o je t o c o m o a p o io d o

c o m i t é e xe cu t ivo . W o l fg a n g Ba u m a n n , p r e s id e n t e d e 2 0 0 0 a 20 0 4 , a ssin o u ,

n o o u t o n o d e 2 0 0 0 , o a co r d o q u e t o r n o u p o s s íve l d a r in íc io aos t r a b a lh o s

e q u e c o m p r o m e t e u a So cie d a d e d e H e r d e i r o s a a s s u m ir u m a gr a n d e p a r t e

d os cu st o s. A Fu n d a ç ã o p a r a as O b r a s d e C . G . Ju n g go st a r ia d e a gr a d e ce r a

H e i n r i c h Zw e i fe l , e d it o r , d e Zu r i q u e , p e lo s co n se lh o s so b r e q u e s t õ e s t é cn ica s

n a fase d e p la n e ja m e n t o ; ao F u n d o D o n a l d Co o p e r , d o I n s t i t u t o Fe d e r a l Su íç o

p a r a Te c n o lo gia , p o r u m a d o a ç ã o sign ifica t iva ; a R o l f A u f d e r M a u r p e lo a c o n -

s e lh a m e n t o ju r íd ic o e a ssist ê n cia c o n t r a t u a l; a Le o L a Ro s a e P e t e r F r i t z p elas

n e go c ia ç õ e s c o n t r a t u a is .

N u m m o m e n t o c r ít ic o e m 20 0 3, o t r a b a lh o e d i t o r i a l r e c e b e u a p o io d a

Fu n d a ç ã o Bo ge t t e e d e u m d o a d o r a n ó n i m o . A p a r t i r d a 20 0 4 , o t r a b a lh o

e d i t o r i a l fo i a p o ia d o p e la Fu n d a ç ã o Fi l ê m o n , o r g a n iz a ç ã o c r i a d a c o m a ú n ic a

fin a lid a d e d e le va n t a r fu n d o s p a r a p o s s ib ilit a r q u e as o b r a s in é d it a s d e Ju n g

v e j a m a l u z d o d ia . So b esse asp ect o , s o u m u i t o gr a t o a St e p h e n M a r t i n . Se ja m

q u a is fo r e m as im p e r fe iç õ e s d e st a e d içã o , o a p a r a t o e d i t o r i a l e a t r a d u ç ã o n ã o

p o d e r i a m t e r ch e ga d o ao p r e se n t e n íve l s e m o a p o io d o C o r p o d e D i r e t o r e s

d a Fu n d a ç ã o Fi lê m o n : T o m C h a r l e s w o r t h , G i l d a Fr a n t z , Ju d i t h H a r r i s , Ja m e s

H o l l i s , St e p h e n M a r t i n e Eu ge n e Ta ylo r . A Fu n d a ç ã o Fi l ê m o n go st a r ia d e

a gr a d e ce r o a p o io d e seu s d o a d o r e s, p a r t i c u l a r m e n t e a Fu n d a ç ã o M S ST ,

C a r o l y n G r a n t F a y Ju d i t h H a r r i s e T o n y W o o l fs o n , e d o a ç õ e s sign ifica t iva s d e

N a n c y F u r l o t t i e La u r e n c e d e Ro s e n p a r a a t r a d u ç ã o in gle sa .
xvi AGR AD E CI M E N TOS

M e u t r a b a lh o n e st e p r o je t o n ã o t e r i a sid o p o s s íve l s e m o a p o io d e Ma ggie

Ba r o n e X i m e n a Ro e l l i d e An g u l o a t r a vé s d e i n ú m e r a s t r ib u la ç õ e s. O t r a b a lh o

c o m e ç o u e fo i p o s s ib ilit a d o p elas p e sq u isa s so b r e a h is t ó r ia i n t e le c t u a l d a o b r a

d e Ju n g , p a t r o c in a d a s p e la W e l l c o m e T r u s t e n t r e 1993 e 1998, p e lo I n s t i t u t ftir

Gr e n z g e b i e t e d e r P sych o lo gie e m 1999 e p e la Só l o n Fo u n d a t i o n e n t r e 1998 e

20 0 1. A o lo n go d e t o d o o p r o je t o , o W e l l c o m e T r u s t C e n t r e fo r t h e H i s t o r y

o f M e d i c i n e d a U n i v e r s i t y Co lle g e Lo n d o n ( a n t igo W e l l c o m e I n s t i t u t e fo r

t h e H i s t o r y o f M e d i c i n e ) t e m sid o u m a m b i e n t e id e a l p a r a m i n h a p e sq u isa .

Ac o r d o s d e c o n fid e n c ia lid a d e i m p e d i r a m - m e d e d i s c u t i r m e u t r a b a lh o n e st e

p r o je t o c o m m e u s a m igo s e colegas: a g r a d e ç o - lh e s a p a c iê n c ia ao lo n go d o s

ú lt im o s t r e z e a n o s.

En t r e o f i m d e 2 0 0 0 e o in ício d e 20 0 3, a So cie d a d e d e H e r d e i r o s d e C . G .

Ju n g a p o io u o t r a b a lh o e d it o r ia l q u e i n i c i o u o p r o je t o . U l r i c h H o e r n i co la b o r o u

e m algu n s asp ect os d a p e sq u isa e fez u m a t r a n scr içã o c o r r igid a d o vo l u m e c a li -

gr áfico. Su sa n n e H o e r n i t r a n sc r e ve u os Livros Negros de Ju n g. F o r a m feit as a p r e -

se n t a çõ e s aos m e m b r o s d a fa m ília Ju n g e m 1999, 20 0 1 e 20 0 3, cu jo s a n fit r iõ e s

fo r a m H e l e n e H o e r n i Ju n g (1999, 20 0 1) e An d r e a s e Vr e n i Ju n g ( 20 0 3) . Pe t e r

Ju n g fo r n e ce u a co n se lh a m e n t o d u r a n t e as d e lib e r a çõ e s so b r e a p u b lica çã o e as

p r im e ir a s fases d o t r a b a lh o e d it o r ia l. An d r e a s e Vr e n i Ju n g a ju d a r a m d u r a n t e

in co n t á ve is visit a s p a r a co n su lt a r livr o s e m a n u s c r it o s n a b ib lio t e ca d e Ju n g, e

An d r e a s Ju n g fo r n e c e u va lio síssim a s in fo r m a ç õ e s a p a r t i r d o s a r q u ivo s d a fa m í-

lia Ju n g.

A e d i ç ã o d a N o r t o n r e a liz o u - s e gr a ça s a N a n c y Fu r l o t t i , La r r y e Sa n d r a

Vi g o n , q u e l e va r a m a Ji m M a i r s d a N o r t o n , r e sp o n sá ve l p e la e d iç ã o fa c - s im ila r

d o m o d e r n o Liber Novus, Dream p o r La r r y Vi g o n . E m Ji m M a i r s , a o b r a n ã o p o d ia

t er e n co n t r a d o u m e d it o r m elh o r . A p r o gr a m a çã o visu a l e o íayout da o b r a a p r e -

se n t a r a m n u m e r o s o s d e sa - fio s r e s o lvid o s p r i m o r o s a m e n t e p o r E r i c Ba k e r ,

La r r y Vi g o n e A m y W u . C a r o l Ro s e fo i in c a n s á ve l e s e m p r e vi g i la n t e a o

c o p i a r - e d i t a r o t e xt o . A u s t i n 0 ' D r i s c o l l p r e s t o u a ju d a c o n s t a n t e . O vo l u m e

c a ligr á fic o fo i e sca n e a d o p o r H u g h M i l s t e i n e Jo h n Su p r a d a D i g i t a l Fu s i o n .

O c u id a d o e p r e c i s ã o d e s e u t r a b a lh o ( fo c a n d o v i a s o n a r ) e n fr e n t o u e ig u a lo u

o c u id a d o d e p r e c i s ã o d a c a ligr a fia d e Ju n g n u m a n o t á ve l fu sã o e n t r e o a n t igo

e o m o d e r n o . D e n n i s Sa vi n i p ô s s e u e s t ú d i o fo t o gr á fic o à d i s p o s i ç ã o p a r a o

e s c a n e a m e n t o . N a M o n d a d o r i P r i n t i n g , Se r gio Br u n e l l i , N a n c y F r e e m a n e
AGR AD E CI M E N TOS XVl l

seu s co le ga s p u s e r a m t o d o o c u i d a d o p a r a a sse gu r a r q u e a o b r a fosse i m p r e s s a


se gu n d o os m a is a lt o s p a d r õ e s t é c n ic o s p o s s íve is .
A p a r t i r d e 20 0 6 , ju n t a r a m - s e a m i m n o t r a b a lh o d e t r a d u ç ã o M a r k Ky b u r z
e Jo h n P e c k — u m a c o la b o r a ç ã o q u e fo i u m e n s i n o p r ivile gia d o n a a r t e d a t r a -
d u çã o . N o s s a s r e gu la r e s r e u n i õ e s d e c o n s u l t a p r o p o r c i o n a r a m a gr a t a o p o r t u -
n id a d e d e p o d e r d i s c u t i r o t e xt o n u m n íve l m i c r o s c ó p i c o , e o h u m o r t r o u xe a
t ã o n e c e s s á r ia d e s c o n t r a ç ã o à c o n s t a n t e i m e r s ã o n o e s p ír it o d as p r o fu n d e z a s.
Su as c o n t r i b u i ç õ e s às et a p a s p o s t e r io r e s d o t r a b a lh o e d i t o r i a l t ê m sid o i n e s -
t im á ve is . Jo h n P e c k d e s c o b r iu d ive r sa s a lu sõ e s i m p o r t a n t e s q u e e s t a va m a lé m
dos m eu s co n h ecim en t o s.
X i m e n a Ro e l l i d e An g u l o , H e l e n e H o e r n i Ju n g , P i e r r e Ke l l e r e o fa le cid o
Le o n h a r d Sch le ge l t r o u xe r a m r e m in is c ê n c ia s d e cisiva s d a a t m o s fe r a r e i n a n -
t e n o c ír c u lo d e Ju n g n a d é c a d a d e 1920 e d e p e r so n a ge n s n e la e n vo lvid o s .
Le o n h a r d Sch le ge l a p r e s e n t o u o p i n i õ e s e a va lia çõ e s cr ít ica s so b r e o m o v i m e n -
t o D a d á e os c o n flit o s e n t r e a r t e e p sico lo gia n a q u e le p e r í o d o .

E r i k H o r n u n g fo r n e c e u co n se lh o s a r e sp e it o d e r e fe r ê n c ia s e gip t o ló gic a s .
Fe l i x W a l d e r p r e s t o u a ju d a c o m u m close-up d igit a l d a ilu st r a çã o 155, Ulrich
H o e r n i d e c i fr o u su as m in ú s c u la s in sc r iç õ e s e G u y At t e w e l l r e c o n h e c e u a
in s c r iç ã o á r a b e . U l r i c h H o e r n i t r o u xe r e fe r ê n c ia s à Li t u r g i a m i t r a i c a ( n o t a I ,
p. 578). D a v i d O s w a l d a p o n t o u o Mutus Líber c o m o p o s s íve l r e fe r e n t e d e Ju n g
n a n o t a 314 ( p . 4 29 ) . T h o m a s Fe i t k n e c h t c h a m o u m i n h a a t e n ç ã o p a r a os
d o c u m e n t o s d e J. B. La n g e a u xi l i o u - m e n o u so d o s m e s m o s . St e p h e n M a r t i n
r e c u p e r o u as ca r t a s d e Ju n g a J. B. La n g . P a u l Bi s h o p , W e n d y D o n i g e r , Ra c h e l
M c D e r m o t t r e s p o n d e r a m a p e r gu n t a s e d ú vid a s .

Go s t a r i a d e a gr a d e ce r a E r n s t Fa lz e d e r p e la r e fe r ê n c ia n a n o t a 145 n a p. 46
p e la t r a n s c r iç ã o d as ca r t a s d e St o c k m a ye r p a r a Ju n g e p o r c o r r i g i r e xt e n s i va -
m e n t e a t r a d u ç ã o d a i n t r o d u ç ã o e d as n o t a s d a e d iç ã o a le m ã . E u go st a r ia d e
a gr a d e ce r à Fu n d a ç ã o p a r a as O b r a s d e C . G . Ju n g e à a gê n c ia lit e r á r ia P a u l a n d
P e t e r F r i t z p e la p e r m i s s ã o d e c i t a r m a n u s c r i t o s e c o r r e s p o n d ê n c i a s in é d it o s d e
Ju n g, e a X i m e n a Ro e l l i d e An g u l o p e la p e r m i s s ã o d e c i t a r a c o r r e s p o n d ê n c i a
e os d iá r io s d e C a r y Ba yn e s .

A r e sp o n sa b ilid a d e p e la e d iç ã o d o t e xt o , p e la i n t r o d u ç ã o e a p a r a t o c r ít ic o
c o n t i n u a m i n h a . C o m o o b u r r o d a p á g in a 126 ( n o t a 29 ) , e s t o u c o n t e n t e p o r
p o d e r fi n a l m e n t e d e sca r r e ga r e st a car ga.

So n u Sh a m d a s a n i
A ED ITO RA

CATEQUÉTICO PASTORAL
CULTURAL
Administração
Antropologia
Biografias
Comunicação
1 Catequese
Geral
Crisma
Primeira Eucaristia
Dinâmicas e Jogos
Ecologia e Meio Ambiente Pastoral
Educação e Pedagogia Geral
Filosofia Sacramental
História Familiar
Letras e Literatura Social
Obras de referência

1
Política
Psicologia TEOLÓGICO ESPIRITUAL
Saúde e Nutrição
Serviço Social e Trabalho
Biografias
Devocionários
Espiritualidade e Mística
Espiritualidade Mariana
Franciscanismo
Autocon heci mento
Liturgia
Obras de referência
Sagrada Escritura e Livros Apócrifos

Teologia
VOZES NOBILIS
Bíblica
REVISTAS I Histórica
I Prática Uma linha editorial especial, com
importantes autores, alto valor
Concilium agregado e qualidade superior.
Estudos Bíblicos
Grande Sinal
R E B (Revista Eclesiástica Brasileira)
SEDOC (Serviço de Documentação)

PRODUTOS SAZONAIS
Folhint
Calendário de Mesa do Sagrado Coração de Jesus
1 Obras clássicas de Ciências Humanas
em formato de bolso.

Agenda do Sagrado Coração de Jesus


Almanaque Santo Antônio
Agendinha
Diário Vozes
Meditações para o dia a dia
Guia Litúrgico C AD AST RE- SE
w w w . vo zes. co m .br

EDITORA VOZES LTDA.


Rua Frei Luís, 100 - Centro - Cep 25689-900 - Petrópolis, R J
Tel.: (24) 2233-9000 - Fax: (24) 2231-4676 - E-mail: vendas@vozes.com.br

UNIDADES NO BRASIL: Belo Horizonte, MG - Brasília, DF - Campinas, SP - Cuiabá, MT


Curitiba, PR - Florianópolis, SC - Fortaleza, CE - Goiânia, GO - Juiz de Fora, MG
Manaus, AM - Petrópolis, RJ - Porto Alegre, RS - Recife, PE - Rio de Janeiro, RJ
Salvador, BA - São Paulo, SP
UNIDADE NO EXTERIO R: Lisboa - Portugal
Passou-se m ais de u m a d é cad a desde a m e m or áve l
d ecisão da an tiga sociedade de h erdeiros de C G . Ju n g
de aut or izar a p u b licação do Li v r o Ven n elh o.
Con sider ou-se muit o a que tipo de p ú b lico devia ser
dir igida esta obra de vár ias camadas: Leit or es
pr ofission ais de obras sobre a h ist ór ia da p si co l o gi á? O
leitor em ger al? Pessoas visualm en t e r ecept ivas,
orien tadas par a as imagen s? Am an t es da caligr afia?
Colecion ador es de belos livr os? Quais aspectos o
formato e o projeto da p u b licação deviam p ôr em
pr im eir o plan o? N ã o foi fácil respon der a estas
qu est ões, porque at é a ap ar ên cia física do precioso
or igin al par ecia con ter u m a men sagem. Mu it as
propostas for am examin adas e descartadas. Fo i a
editora W .W . Nor t on quem fin almen t e en con trou a
solu ção apropriada: u m a ed ição fac- sim ilar complet a,
que foi apresen tada em seu formato or igin al em 2009.
O estrondoso sucesso com pr ovou que o editor est ava
certo. O livr o difun diu-se rapidamen te pelo mun do
in teiro e j á est á d isp on ível em n ove lín gu as.
Eviden t em en t e, er a p ossí ve l plan ejar u m a ed ição que
fizesse ju st i ça n ão só às m ú lt iplas facetas da obra, mas
t am b é m aos diferen tes tipos de pú b lico.

A presente ed ição sem ilu st r ações con t ém o texto


completo do or igin al. É dir igida especificamen t e
àqu eles que gost ariam de ocupar-se profun damen te com
a d ocu m en t ação lit er ár ia da e volu ção in t erior de Ju n g.
Est ar á sem d ú vid a de acordo com a in t en ção de Ju n g se
esta e d ição ajudar os leitores a torn ar sua leit u r a m ais
pr oveit osa par a seu pr ópr io desen volvim en t o.

(do P r efácio de U l r i c h H oer n i)


SO N U SH A M D A SA N I é u m h istoriador da
psicologia e da psiquiatria e professor de Hist ór ia de
Ju n g n o W ellcome Tr u st Cen t re for the H ist or y of
Medicin e n o Un iversity College Lon d on e editor-geral
da Fu n d ação Filem on . Au t or de diversos livros, entre os
quais Jung and the Making of Modem Psyehology: The
Dream of a Science. Vive em Lon dr es.

E D G A R O R T H , licenciado em Filosofia e Teologia,


bacharel em Dir eit o ( O A B- R J) , possui cursos de
ext en são universitária em Pedagogia e Psicologia da
Ed u cação Sexual e h abilit ação para lecionar Psicologia.
De 1982 a 2002 coorden ou a t r adu ção e pu blicação em
Lín gu a Portuguesa das Obras Completas de C G . Ju n g,
além de traduzir pessoalmente alguns volumes e as
Cartas de C G . Ju n g.

G E N T I L A . T I T T O N tem estudos de Filosofia e


Teologia, e doutorado em Hist ór ia Eclesiástica pela
Pon tifícia Un iversidade Gregorian a (Rom a). Desde
1972 é tradutor e revisor para a Edit or a Vozes.

G U ST A V O B A R C E L L O S é mestre em Psicologia
Clín ica pela New Sch ool for Social Research de Nova
Yor k, analista didata da Associação Jun guian a do Brasil-
A JB e membro da Associação In tern acion al de
Psicologia An alítica-Iaap. Au t or de Jung, pela Edit or a
Át ica, e de O irm ão: psicologia do arquétipo fraterno,
pela Edit or a Vozes. E editor da revista Cadernos
Junguianos, pu blicação anual da A JB. Trabalh a como
analista jun guian o em São Paulo.

W A L T E R B O E C H A T é m édico e analista
jun guian o. Fez sua for m ação de analista no In st it ut o
C G . Jun g,de Zu r iqu e, Su íça. E membro-fundador da
Associação Jun guian a do Brasil. Te m doutorado pelo
In st it ut o de Medicin a Social da Uer j. Te m diversas
publicações n o Brasil e n o exterior. E autor do livro
Mitopoese da Psique: mito e individuação, Edit or a Vozes,
2008. W alter Boech at exerce seu con sult ór io particular
n o Rio de Jan eiro.
OS ANO S D U R A N T E OS Q UAIS

me detive nessas imagens interiores constituíram a época


mais importante da minha vida.
Neles todas as coisas essenciais se decidiram.
Foi então que tudo teve início e os detalhes posteriores
foram apenas complementos e elucidações.
Toda minha atividade ulterior consistiu em elaborar o que
jorrava do inconsciente naqueles anos e que inicialmente me inundara:
era a matéria-prima para a obra de uma vida inteira.

'OZES.
pelo bom livro

Você também pode gostar