Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
P r o va ve l m e n t e e xi s t e m p o u c o s t r a b a lh o s inéditos q u e e xe r c e r a m e fe it o s t ã o
va st o s so b r e a h i s t ó r i a s o c ia l e i n t e l e c t u a l d o s é c u lo X X q u a n t o o Livro Verm elho
d e Ju n g , o u Liher Novus [ Li v r o N o v o ] . A s s i m c h a m a d o p o r Ju n g p o r c o n t e r o
n ú c l e o d e seu s t r a b a lh o s t a r d io s , já fo i r e c o n h e c i d o c o m o a ch a ve p a r a a c o m -
p r e e n s ã o d a g é n e s e d esses t r a b a lh o s . A i n d a a s s i m , a p e sa r d e já t e r m o s t i d o
d e le a lgu n s p o u co s vi s l u m b r e s a t o r m e n t a d o r e s , p e r m a n e c e u a t é a go r a i n d i s -
p o n í ve l p a r a e st u d o .
I O presente ensaio segue, às vezes diretamente, minha reconstrução da formação da psicologia de Jung em
Jung and theMakíngof Modem Psychology. Th e Dream of a Science. Cambridge: Cambridge University Press,
2003. Jung refere-se ao trabalho tanto como Líber Novus quanto como O Livro Vermelho, como ficou mais
universalmente conhecido. Com o há indicações de que o primeiro é o título verdadeiro, refiro-me a ele
como tal ao longo da Introdução por uma questão de coerência. Esse assunto é tratado de maneira mais
completa em meu livro: C.G.Jung: uma biografia em livros (Petrópolis: Vozes, no prelo).
2 LÍ BE R N O V U S
O m om ento cultural
A s p r i m e i r a s d é c a d a s d o sé c u lo X X t e s t e m u n h a r a m u m a b o a d o se d e e xp e r i -
m e n t a ç ã o n a l i t e r a t u r a , n a p sic o lo gia e n a s a r t e s vis u a is . Es c r i t o r e s t e n t a r a m
a b o lir os l i m i t e s d as c o n ve n ç õ e s d a r e p r e s e n t a ç ã o a f i m d e e xp l o r a r e m o s t r a r
t o d o o e sp e ct r o d a e xp e r i ê n c i a i n t e r i o r - so n h o s, vis õ e s e fa n t a sia s. El e s e x-
p e r i m e n t a r a m c o m n o va s fo r m a s e u t i l i z a r a m fo r m a s ve lh a s d e je it o s n o vo s.
D a e s c r it a a u t o m á t i c a d o s su r r e a list a s às fa n t a sia s gó t ic a s d e Gu s t a v M e yr i n k ,
os e scr it o r e s a p r o xi m a r a m - s e e c o l i d i r a m c o m as p e sq u isa s d e p s ic ó lo g o s q u e
e s t a va m e n vo lvid o s e m e xp lo r a ç õ e s se m e lh a n t e s. Ar t i s t a s e e scr it o r e s c o la b o -
r a r a m e m t e n t a t iva s d e n o va s fo r m a s d e ilu st r a çã o e t ip o gr a fia , n o va s c o n fi g u -
r a ç õ e s d e t e xt o e im a g e m . P s ic ó lo go s b u s c a r a m ve n c e r os l i m i t e s d e u m a p s i c o -
lo gia filo só fica , e c o m e ç a r a m a e xp l o r a r o m e s m o t e r r e n o q u e a r t ist a s e e s c r i -
t o r e s. D e m a r c a ç õ e s cla r a s e n t r e l i t e r a t u r a , a r t e e p sico lo gia a i n d a n ã o h a vi a m
sid o e st a b e le cid a s; e scr it o r e s e a r t ist a s e m p r e s t a va m id e ia s d e p s ic ó lo g o s e vic e
ve r sa . I m p o r t a n t e s p s ic ó lo go s , t a is c o m o Al f r e d Bi n e t e Ch a r l e s Ri c h e t , e s-
c r e ve r a m t r a b a lh o s fic c io n a is e d r a m á t i c o s , fr e q u e n t e m e n t e sob p s e u d ó n i m o s ,
cu jo s t e m a s e s p e lh a va m a q u e le s d e seu s t r a b a lh o s "c ie n t ífic o s " 2 . Gu s t a v F e c h -
n er , u m d o s fu n d a d o r e s d a p sico física e d a p sico lo gia e xp e r i m e n t a l , e s c r e ve u
so b r e a v i d a d a a l m a d as p la n t a s e so b r e a T e r r a c o m o u m a n jo a z u l 3 . A o m e s m o
t e m p o , e scr it o r e s t a is c o m o An d r é Br e t o n e P h i l i p p e So u p a u lt c o n s t a n t e m e n t e
l i a m e u t i l i z a va m os t r a b a lh o s d e p e sq u isa d o r e s p s íq u ic o s e p s ic ó lo g o s d a a n o r -
m a lid a d e , t a is c o m o Fr e d e r i c k M ye r s , T h é o d o r e F l o u r n o y e P i e r r e Ja n e t . W B .
Ye a t s u t i l i z o u a e s c r it a a u t o m á t i c a e s p ir it u a lis t a p a r a c o m p o r u m a p s ic o c o s -
m o lo g ia p o é t ic a e m A Vision 4. E m t o d o s os ca n t o s, i n d i ví d u o s p r o c u r a va m n o va s
fo r m a s c o m as q u a is r e p r e s e n t a r as r e a lid a d e s d a e xp e r i ê n c i a i n t e r i o r , n u m a
b u s c a p o r r e n o va ç ã o c u lt u r a l e e s p ir it u a l. E m Be r l i m , H u g o Ba l l n o t o u :
2 Cf. CARRO Y, Jacqueline. Lespersonnalités multiples et doubles: entre science et fiction. Paris: P U F, 1993.
3 Cf. F E C H N E R , Gustav Theodor. The RelígionofaScíentíst. Nova York: Pantheon, 1946 [organizado e
traduzido por Walter Lowrie].
4 Cf. ST AR O BI N SKI , Jean. "Freud, Breton, Myers". In : Lbeuíl vívante lT. La relation critique. Paris:
Gallim ard, 1970. • YEAT S, W B. A Vision. Londres: Werner Laurie, 1925. Jung possuía uma cópia do
último.
I N T RO D U ÇÃO 3
E m m e i o a essa cr ise c u lt u r a l, Ju n g c o n s i d e r o u le va r a d ia n t e u m e xt e n s o p r o -
cesso d e a u t o e xp e r i m e n t a ç ã o , q u e r e s u l t o u n o Líber Novus, u m t r a b a lh o d e p s i -
co lo gia e m fo r m a t o lit e r á r io .
Es t a m o s h o je d o o u t r o la d o d e u m a d ivis ã o e n t r e p sico lo gia e li t e r a t u r a .
Co n s i d e r a r o Líber Novus h o je é e n c a r a r u m t r a b a lh o q u e s o m e n t e p o d e t e r
e m e r gid o a n t e s q u e essa s e p a r a ç ã o h o u ve sse sid o fi r m e m e n t e e st a b e le cid a . Se u
e st u d o a ju d a - n o s a c o m p r e e n d e r c o m o o c o r r e u a d ivisã o . M a s , a n t e s, d e ve m o s
p e r gu n t a r ,
Q u em foi C G . Jung>
Ju n g n a s c e u e m Ke s s w i l , n o lago d e Co n s t a n ç a , e m 1875. Su a fa m ília m u d o u - s e
p a r a La u fe n , ju n t o aos R h i n e Fa lis, q u a n d o ele t i n h a seis m e se s d e vi d a . E l e e r a
o filh o m a is ve lh o e t i n h a u m a ir m ã . Se u p a i e r a u m p a st o r d a I g r e ja Su íç a R e -
fo r m a d a . P e r t o d o f i m d e su a vi d a , Ju n g e sc r e ve u u m a m em oír i n t i t u l a d a "So b r e
as e xp e r iê n c ia s m a is a n t iga s d e m i n h a vi d a ", q u e fo i s u b s e q u e n t e m e n t e in c lu í-
d a e m Mem órias, Sonhos, Reflexões e m fo r m a t o i n t e n s a m e n t e e d it a d o 6 . Ju n g n a r r a va
os e ve n t o s sign ifica t ivo s q u e o l e va r a m à su a vo c a ç ã o p sic o ló gic a . A m em oír, c o m
se u fo co e m so n h o s, vis õ e s e fa n t a sia s sign ifica t ivo s d a in fâ n cia , p o d e se r e n c a -
r a d a c o m o u m a i n t r o d u ç ã o ao Líber Novus.
N o p r i m e i r o so n h o , ele se e n c o n t r a va n u m a c a m p i n a c o m u m b u r a c o d e
p e d r a s a lin h a d a s, n o ch ã o . En c o n t r a n d o u m a escad a, ele d e s c e u p a r a d e n t r o
5 Hugo Ball, FlightoutofTime: A Dada Diary, ed. John Elderfield, Berkeley: University of Califórnia Press,
1996, p. 1 [tradução de A. Raim es].
6 Sobre como o livro erroneamente veio a ser visto como a autobiografia de Jung, cf. meu JungStripped Bare by
bis Biographers, Even. Londres: Karn ac, 2004, cap. I : "'H ow to catch the bird': Jung and his first biographers".
C f tb. ELM S, Alan . "Th e auntification of Jung". In : Uncoveríng Lives: Th e Uneasy Alliance of Biography and
Psychology. Nova York: O xford University Press, 1994.
4 LÍ BER N O V U S
d o b u r a c o e e n c o n t r o u - s e n u m a c â m a r a . A l i h a vi a u m t r o n o d o u r a d o , e o q u e
p a r e c ia u m t r o n c o d e á r vo r e c o m p e le e c a r n e , c o m u m o lh o n o t o p o . E l e e n t ã o
c e r t e z a se su a m ã e q u e r i a d i z e r q u e e st a figu r a d e fat o d e vo r a va cr ia n ça s, o u
e r a id ê n t ic a a Cr i s t o . Isso a fe t o u p r o fu n d a m e n t e su a i m a g e m d e Cr i s t o . An o s
e r a d e fat o u m falo r i t u a l , e q u e o c e n á r io e r a u m t e m p l o s u b t e r r â n e o . E l e ve i o
q u e t a m b é m t i n h a a ca p a cid a d e d e e vo ca r im a ge n s vo l u n t a r i a m e n t e . N u m se -
N u m d i a d e so l, q u a n d o Ju n g t i n h a d o z e a n o s, ele a t r a ve ssa va o M ú n s t e r -
p la t z n a Ba s ile ia , a d m i r a n d o o so l b a t e n d o n o s a z u le jo s r e c é m - r e s t a u r a d o s d o
t e t o d a ca t e d r a l. En t ã o s e n t i u a a p r o xi m a ç ã o d e u m p e n s a m e n t o t e r r íve l e p e -
c a m in o s o , q u e t e n t o u m a n d a r e m b o r a . F i c o u a n gu st ia d o p o r vá r io s d ia s. F i n a l -
m e n t e , a p ó s c o n ve n c e r a s i m e s m o d e q u e e r a D e u s q u e q u e r i a q u e ele p e n sa sse
esse p e n s a m e n t o , a s s im c o m o fo i D e u s q u e q u is q u e Ad ã o e E v a p e ca sse m , p e r -
m i t i u - s e c o n t e m p l á - l o , e v i u D e u s e m se u t r o n o d e sp e ja r u m p o d e r o s o m o n t e
d e e xc r e m e n t o so b r e a ca t e d r a l, a r r a s a n d o s e u n o vo t e lh a d o e e s t r a ç a lh a n d o a
t iu - s e s o z i n h o p e r a n t e D e u s , e s e n t i u q u e s u a r e a l r e sp o n sa b ilid a d e c o m e ç a va
a li. P e r c e b e u q u e fo i p r e c is a m e n t e t a l e xp e r i ê n c i a d i r e t a e i m e d i a t a d o D e u s
o c a s iã o d e su a P r i m e i r a C o m u n h ã o . E l e t i n h a sid o le va d o a a c r e d it a r q u e e st a
s e r ia u m a gr a n d e e xp e r iê n c ia . A o c o n t r á r io , n a d a d isso . C o n c l u i u : "P a r a m i m
fo i u m a a u s ê n c ia d e D e u s e d e r e ligiã o . A I g r e ja t o r n o u - s e u m lu ga r a o n d e e u
n ã o p o d e r i a m a is ir . A l i n ã o h a vi a vi d a , m a s m o r t e . " 10
A vo r a c id a d e d e l e i t u r a d e Ju n g c o m e ç o u n esse p e r í o d o , e ele fi c o u p a r t i -
c u l a r m e n t e i m p r e s s i o n a d o c o m Fausto d e Go e t h e . I m p r e s s i o n o u - o o fat o d e
q u e , c o m M e fis t ó fe le s , Go e t h e l e vo u a figu r a d o d ia b o a sé r io . N a filo so fia ,
i m p r e s s i o n o u - o Sc h o p e n h a u e r , q u e r e c o n h e c i a a e xis t ê n c ia d o m a l e d e u vo z
aos s o fr im e n t o s e m is é r ia s d o m u n d o .
Ju n g t a m b é m t i n h a a i m p r e s s ã o d e vi ve r e m d o is sé cu lo s, e s e n t ia u m a fo r t e
n o st a lgia p e lo sé cu lo X V I I I . Su a s e n s a ç ã o d e d u a lid a d e t o m o u a fo r m a d e d u a s
p e r so n a lid a d e s a lt e r n a d a s, q u e c u n h o u d e n ú m e r o i e n ú m e r o 2. P e r so n a lid a d e
n ú m e r o I e r a o ga r o t o a lu n o d a Ba s i le i a , q u e l i a r o m a n c e s , e p e r s o n a lid a d e
n ú m e r o 2 e r a a q u e s o l i t a r i a m e n t e p e r se gu ia r e fle xõ e s r e ligio sa s, n u m e st a d o
d e c o m u n h ã o c o m a n a t u r e z a e c o m o co sm o . E l a h a b it a va o "m u n d o d e D e u s ".
Es s a p e r s o n a lid a d e lh e p a r e c ia m u i t o r e a l. A p e r s o n a lid a d e n ú m e r o I q u e r i a
se l i vr a r d a m e l a n c o l i a e d o i s o l a m e n t o d a p e r s o n a lid a d e n ú m e r o 2. Q u a n d o
e n t r a va a p e r s o n a lid a d e n ú m e r o 2, p a r e c ia q u e u m e s p ír it o h á m u i t o t e m p o
m o r t o e a i n d a p e r p e t u a m e n t e p r e se n t e e n t r a va n a sala. A n ú m e r o 2 n ã o t i n h a
u m c a r á t e r d e fin id o ; e r a c o n e c t a d a à h ist ó r ia , e s p e c ia lm e n t e c o m a Id a d e M é -
d ia . P a r a a n ú m e r o 2, a n ú m e r o I , c o m seu s fr acassos e i n a p t i d õ e s , e r a a lg u é m
p a r a se agu en t ar . Es s e jo go p e r m a n e c e u d u r a n t e t o d a a v i d a d e Ju n g. D o m o d o
c o m o ele as e n ca r a va , so m o s t o d o s a s s im - u m a p a r t e d e n ó s vi ve n o p r e se n t e
e o u t r a e s t á c o n e c t a d a c o m os sé cu lo s.
Q u a n d o se a p r o xi m o u o m o m e n t o p a r a ele d e e sco lh e r u m a c a r r e i r a , o c o n -
flito e n t r e as d u a s p e r so n a lid a d e s in t e n s ific o u - s e . A n ú m e r o I q u e r i a as c i ê n -
cias, a n ú m e r o 2, as h u m a n i d a d e s . Ju n g t eve e n t ã o d o is so n h o s i m p o r t a n t e s . N o
p r i m e i r o , ele e st a va a n d a n d o n u m b o sq u e e scu r o p e r t o d o Re n o . D e p a r o u - s e
c o m u m t ú m u l o e c o m e ç o u a c a vá - lo , a t é d e s c o b r ir r e st o s d e a n i m a i s p r é - h i s -
t ó r ico s. Es t e s o n h o d e s p e r t o u n e le a vo n t a d e d e sa b e r m a is so b r e a n a t u r e z a .
N o se gu n d o so n h o , ele e st a va n u m b o sq u e , e h a vi a r ia c h o s. E n c o n t r o u e n t ã o
u m lago ce r ca d o d e d e n s a ve g e t a ç ã o r a st e ir a . N o lago, v i u u m a b e la c r ia t u r a , u m
e n o m e r a d io lá r io . Ap ó s esses so n h o s, o p t o u p ela s ciê n cia s. P a r a r e s o lve r a q u e s-
t ã o d e c o m o ga n h a r a vi d a , d e c i d i u e st u d a r m e d i c i n a . En t ã o t e ve o u t r o so n h o .
Es t a va n u m lu ga r d e sco n h e cid o , c o b e r t o d e n e b l i n a , a va n ç a n d o va g a r o s a m e n -
t e c o n t r a o ve n t o . E l e e st a va p r o t e ge n d o u m a p e q u e n a l u z d e a p a ga r -se . V i u
e n t ã o u m a e n o r m e c r i a t u r a p r e t a a m e d r o n t a d o r a m e n t e p r ó xi m a . Ac o r d o u , e
p e r c e b e u q u e a figu r a e r a a s o m b r a q u e a l u z p r o je t a va . P e n s o u q u e , n o so n h o ,
a n ú m e r o I e st a va e la m e s m a le va n d o a lu z , e q u e a n ú m e r o 2 se gu ia c o m o u m a
6 LÍ BE R N O V U S
s o m b r a . En c a r o u isso c o m o u m s i n a l d e q u e ele d e vi a se gu ir c o m a n ú m e r o I , e
n ã o o l h a r p a r a t r á s p a r a o m u n d o d a n ú m e r o 2.
A se gu n d a m e t a d e d o sé c u lo X I X t e s t e m u n h o u a e m e r g ê n c i a d o e s p i r i t u -
a lis m o m o d e r n o , q u e se e s p a lh o u p e la Eu r o p a e Am é r i c a . P o r m e i o d o e s p i r i -
t u a lism o , o c u lt ivo d e t r a n se s — c o m os c o n c o m i t a n t e s fe n ó m e n o s d a fa la d e
t r a n se , d a glo sso la lia , d a e s c r it a a u t o m á t i c a e d a vis ã o d e c r is t a l - t orn ou -se
d is s e m in a d o . O s fe n ó m e n o s e s p ir it u a lis t a s a t r a ír a m o in t e r e sse d e c ie n t is t a s
i m p o r t a n t e s t a is c o m o Cr o o k e s , Zo l l n e r e W a l l a c e . T a m b é m a t r a ír a m o i n t e -
r esse d e p s ic ó lo g o s , i n c l u i n d o Fr e u d , Fe r e n c z i , Ble u le r , Ja m e s, M ye r s , Ja n e t ,
Be r gs o n , St a n le y H a l l , Sc h r e n c k - N o t z i n g , M o l l , D e s s o ir , Ri c h e t e Flo u r n o y.
D u r a n t e seu s d ia s d e u n ive r s it á r io n a Ba s i le i a , Ju n g e seu s colegas p a r t i c i -
p a va m d e se ssõ e s. E m 18 9 6 , eles t i ve r a m u m a lo n ga sé r ie d e e n c o n t r o s c o m
su a p r i m a H é l è n e P r e i s w e r k , q u e p a r e c ia t e r h a b ilid a d e s m e d iú n ic a s . Ju n g
d e s c o b r i u q u e d u r a n t e os t r a n se s e la a s s u m i a p e r so n a lid a d e s d ife r e n t e s e q u e
ele p o d i a c h a m a r essas p e r so n a lid a d e s a t r a vé s d e su ge st ã o . P a r e n t e s m o r t o s
11 Emmanuel Swedenborg (1688-1772) foi um cientista sueco e um místico cristão. Em 1743, ele atravessou
uma crise religiosa, que está descrita em seu Diário de sonhos. Em 1745, ele teve uma visão do Cristo. Ele então
devotou sua vida a relacionar o que tinha visto e ouvido nos céus e na terra e aprendido com os anjos, e
a interpretar os significados internos e simbólicos da Bíblia. Swedenborg argumentava que a Bíblia tinha
dois níveis de sentido: um nível físico e literal, e um outro interno, espiritual. Esses níveis se interligavam
por correspondências. Ele proclamava o advento de uma "nova igreja" que representava uma nova era
espiritual. De acordo com Swedenborg, no nascimento adquirimos males de nossos pais que estão alojados
no homem natural, que está diametricamente em oposição ao homem espiritual. O homem está destinado
para o céu, e lá não pode chegar sem regeneração espiritual e um novo nascimento. Os meios para isso
repousam na caridade e na fé. Cf. T AYLO R , Eugen. "Jung on Swedenborg, redivivus". JM«£ History, 2, 2,
2007, p. 27-31.
12 Mem órias, p. 99.
I N T RO D U ÇÃO 7
a p a r e c ia m , e e la se t r a n s fo r m a va c o m p l e t a m e n t e n essas figuras. E l a r e ve la va
h ist ó r ia s d e su as e n c a r n a ç õ e s a n t e r io r e s e a r t i c u la va u m a c o s m o lo gia m íst ic a ,
r e p r e s e n t a d a n u m m a n d a l a 13 . Su a s r e ve la ç õ e s e s p ir it u a lis t a s c o n t i n u a r a m a t é
e la se r p e ga t e n t a n d o s i m u l a r a p a r iç õ e s físicas, e as se ssõ e s foram e n ce r r a d a s.
s u b l i m i n a r e, p o r t a n t o , d a p s ic o lo gia h u m a n a c o m o u m t o d o . P o r m e i o d e la s,
m é d i u n s t o r n a r a m - s e su je it o s i m p o r t a n t e s d a n o va p sico lo gia . C o m essa v i r a -
d a , o s m é t o d o s u t i li z a d o s p e lo s m é d i u n s , t a is c o m o e s c r it a a u t o m á t ic a , d is c u r s o
d e t r a n se , vis ã o d e c r is t a l, fo r a m a p r o p r ia d o s p e lo s p s ic ó lo g o s e t o r n a r a m - s e
fe r r a m e n t a s p r o e m i n e n t e s d a p e sq u isa e xp e r i m e n t a l . N a p s ic o t e r a p ia , P i e r r e
Ja n e t e M o r t o n P r i n c e u s a r a m a e s c r it a a u t o m á t i c a e a l e i t u r a d e c r is t a is c o m o
m é t o d o s p a r a a r e ve la ç ã o d e m e m ó r i a s o cu lt a s e id e ia s fixa s su b co n scie n t e s. A
e s c r it a a u t o m á t i c a t r o u xe à l u z su b p e r so n a lid a d e s, e p e r m i t i u o e s t a b e le c im e n -
t o d e d iá lo g o c o m e l a s 16 . P a r a Ja n e t e P r i n c e , o o b je t ivo d e se c o n s id e r a r t a is
p r á t ica s e r a a r e in t e g r a ç ã o d a p e r so n a lid a d e .
Ju n g fic a r a t ã o e st u sia sm a d o c o m o l i vr o d e F l o u r n o y q u e se o fe r e c e u p a r a
t r a d u z i - l o p a r a o a le m ã o , m a s F l o u r n o y já t i n h a u m t r a d u t o r . O i m p a c t o d e s-
ses e st u d o s fic a c la r o n a d is s e r t a ç ã o d e Ju n g, n a q u a l s u a a b o r d a ge m a o caso é
p u r a m e n t e p sic o ló gic a . O t r a b a lh o d e Ju n g t e ve c o m o m o d e lo m a is p r ó xi m o
From índia to the Planet Mars, d e Flo u r n o y, t a n t o e m t e r m o s d o a ssu n t o q u a n t o d e
su a i n t e r p r e t a ç ã o d a p s ic o g ê n e s e d o s r o m a n c e s e sp ir it u a líst ic o s d e H é l è n e . A
d is s e r t a ç ã o d e Ju n g t a m b é m i n d i c a a m a n e i r a n a q u a l e le u t i l i z a va a e s c r it a a u -
t o m á t i c a c o m o u m m é t o d o d e in ve s t iga ç ã o p s ic o ló gic a .
E m 19 0 2, e le n o i vo u E m m a Ra u s c h e n b a c h , c o m q u e m se ca so u e c o m q u e m
t eve c i n c o filh o s. A t é esse m o m e n t o , Ju n g m a n t i n h a u m d iá r io . N u m d o s ú l -
t i m o s r e gist r o s, d a t a d o d e m a i o d e 19 0 2, e scr e ve : " N ã o e s t o u m a is s o z i n h o
c o m igo m e s m o , e s ó a r t i fi c i a l m e n t e p o sso r e c o r d a r - m e o s e n t i m e n t o a ssu st a -
d o r e b e lo d a so lid ã o . Es t e é o la d o s o m b r i o d a so r t e d o a m o r " 17 . P a r a Ju n g, s e u
c a s a m e n t o m a r c o u u m m o vi m e n t o p a r a lo n ge d a s o lid ã o c o m a q u a l h a vi a se
a co st u m a d o .
E m s u a ju ve n t u d e , Ju n g fr e q u e n t e m e n t e vi s i t a va o m u s e u d e a r t e d a Ba s i l e i a
e se n t ia - se e s p e c ia lm e n t e a t r a íd o p elas o b r a s d e H o l b e i n e Bõ c k l i n , a s s im c o m o
p e lo s p in t o r e s h o la n d e s e s 18 . P e r t o d o fi n a l d e seu s e st u d o s, d u r a n t e u m a n o ,
e st e ve b a st a n t e o c u p a d o c o m a p i n t u r a . Su a s p i n t u r a s d esse p e r í o d o e r a m p a i -
sagen s n u m e st ilo r e p r e s e n t a c io n a l e m o s t r a m h a b ilid a d e s t é cn ica s a lt a m e n t e
16 JAN ET , Pierre. Névroses et ídéefixes. Paris: Alcan , 1898. • P R I C E , Morton. Clinicai and Experim ental Studíes
inPersonality. Cambridge, Mass.: Sci-Art , 1929. Cf. meu "Automatic writin g and the discovery of the
unconscious". Spring-.JournalofArchetypeandCulture, 54,1993, p. 100-131.
17 Livro Negro 2, p. 1 [todo o conteúdo dos Livros Negros está em AFj].
18 MP, p. 164.
I N T RO D U ÇÃO 9
d e se n vo lvid a s e gr a n d e d e s e n vo lt u r a t é c n i c a 19 . E m 19 0 2- 19 0 3, Ju n g d e i xo u se u
p o st o n o Bu r g h õ lz li e fo i a P a r is p a r a e st u d a r c o m o e m i n e n t e p s ic ó lo g o fr a n -
cê s P i e r r e Ja n e t , q u e e st a va d a n d o au las n o Co l l è g e d e Fr a n c e . D u r a n t e s u a e s-
t a d a , p a ssa va m u i t o t e m p o p i n t a n d o e vi s i t a n d o m u s e u s , i n d o c o n s t a n t e m e n t e
ao Lo u vr e . P r e s t a va m u i t a a t e n ç ã o e s p e c ia lm e n t e e m a r t e a n t iga , a n t igu id a d e s
e gíp cia s, n a s o b r a s d a Re n a s c e n ç a , F r a An g é l i c o , Le o n a r d o d a Vi n c i , Ru b e n s e
Fr a n s H a l s . C o m p r o u q u a d r o s e gr a vu r a s e e n c o m e n d o u c ó p ia s p a r a a d e c o r a -
ç ã o d e se u n o vo lar . P i n t a va t a n t o ó le o s q u a n t o a q u a r e la s. E m ja n e i r o d e 19 0 3,
fo i a Lo n d r e s e vi s i t o u seu s m u s e u s , p a r t i c u l a r m e n t e in t e r e ssa d o n a s c o le ç õ e s
e gíp cia , a st e ca e i n c a d o M u s e u Br i t â n i c o 2 0 .
N a s u a vo lt a , a s s u m i u u m ca r go q u e h a vi a va ga d o n o Bu r g h õ lz li, e d e d i c o u
su a p e s q u is a à a n á lise d as a sso cia çõ e s lin gu íst ica s e m c o la b o r a ç ã o c o m F r a n z
R i k l i n . C o m a a ju d a d e a ssist e n t e s, eles c o n d u z i r a m u m a sé r ie e xt e n s a d e e xp e -
r i m e n t o s , q u e s u b m e t e r a m a a n á lise s e st a t íst ica s. A b ase c o n c e it u a i d o t r a b a lh o
i n i c i a l d e Ju n g e st a va n a s o b r a s d e F l o u r n o y e Ja n e t , q u e ele t e n t a va ju n t a r
c o m a m e t o d o lo gia d e p e sq u isa d e W i l h e l m W u n d t e E m i l Kr a e p e l i n . Ju n g
e R i k l i n u t i l i z a r a m o e xp e r i m e n t o d e a sso cia çõ e s, c r ia d o p o r Fr a n c i s G a l t o n
e d e s e n vo lvid o n a p sic o lo gia e n a p s i q u i a t r i a p o r W u n d t , Kr a e p e l i n e Gu s t a v
As c h a ffe n b u r g . O o b je t ivo d o p r o je t o d e p e sq u isa , e s t im u la d o p o r Ble u le r , e r a
fo r n e c e r u m m o d o r á p i d o e c o n fiá ve l d e d ia g n ó s t ic o d ife r e n c ia l. A e q u ip e d o
Bu r g h õ lz li fa lh o u n isso , m a s fi c a r a m im p r e s s io n a d o s p e lo sign ifica d o d o s d i s -
t ú r b io s d e r e a ç ã o e t e m p o d e r e s p o s t a p r o lo n ga d o s. Ju n g e R i k l i n a r g u m e n -
t a va m q u e essas r e a ç õ e s p e r t u r b a d a s e r a m d e vid a s à p r e s e n ç a d e c o m p le xo s
e m o c i o n a l m e n t e e st r e ssa n t e s, e u s a r a m seu s e xp e r i m e n t o s p a r a d e s e n vo lve r
u m a p s ic o lo gia ge r a l d o s c o m p l e xo s 2 1.
Es s e t r a b a lh o e st a b e le ce u a r e p u t a ç ã o d e Ju n g c o m o u m a d as e st r e la s a s c e n -
d e n t e s d a p s iq u ia t r ia . E m 19 0 6 , ele a p li c o u s u a n o va t e o r ia d o s c o m p le xo s p a r a
e st u d a r a p s ic o g ê n e s e d a dem entía praecox ( p o s t e r i o r m e n t e c h a m a d a d e e s q u iz o -
fr e n ia ) e p a r a d e m o n s t r a r a in t e lig ib ilid a d e d as fo r m a ç õ e s d e l i r a n t e s 2 2 . P a r a
Ju n g d e s e n c a n t o u - s e c a d a ve z m a is c o m as lim it a ç õ e s d o s m é t o d o s e xp e r i -
m e n t a i s e e st a t íst ico s n a p sic o lo gia e n a p s iq u ia t r ia . N o a m b u l a t ó r i o d o Bu r -
gh õ lz li, Ju n g fa z ia d e m o n s t r a ç õ e s d e h ip n o s e . Isso o l e vo u a se in t e r e s s a r p e la
t e r a p ê u t ic a e o u so d o e n c o n t r o c lín ic o c o m o m é t o d o d e p e sq u isa . P o r vo l t a
d e 19 0 4 , Bl e u l e r i n t r o d u z i r a a p s ic a n á lis e n o Bu r g h õ lz li, e c o m e ç o u u m a c o r -
r e s p o n d ê n c i a c o m Fr e u d , p e d i n d o s u a a ju d a p a r a a a n á lise d e seu s p r ó p r i o s
s o n h o s 2 4 . E m 19 0 6 , Ju n g c o m e ç o u a c o m u n i c a r - s e c o m Fr e u d . Es s e r e l a c i o -
n a m e n t o fo i m u i t o m it o lo giz a d o . U m a le giã o "fr e u d o c ê n t r i c a " s u r giu , q u e v i a
F r e u d e a p sica n á lise c o m o a fo n t e p r i n c i p a l d o t r a b a lh o d e Ju n g. Isso l e vo u a
u m a c o m p r e e n s ã o c o m p l e t a m e n t e e q u ivo c a d a d e se u t r a b a lh o n a h is t ó r ia i n t e -
le c t u a l d o sé c u lo X X . E m i n ú m e r a s o c a s iõ e s Ju n g p r o t e s t o u . N u m a r t igo i n é -
d i t o e s c r it o n o s a n o s 19 30 , p o r e xe m p lo , Ju n g e scr e ve u : " D e fo r m a a lgu m a e u
d e s c e n d o e xc lu s iva m e n t e d e Fr e u d . E u t i n h a m i n h a a t it u d e c ie n t ífic a e a t e o r i a
d os c o m p le xo s a n t e s d e e n c o n t r á - l o . O s m e st r e s q u e m a is m e i n fl u e n c i a r a m
a c i m a d e t o d o s sã o Ble u le r , P i e r r e Ja n e t e T h é o d o r e F l o u r n o y " 2 5 . F r e u d e Ju n g
c l a r a m e n t e v i e r a m d e t r a d iç õ e s in t e le c t u a is b e m d ife r e n t e s, e se a p r o xi m a r a m
p o r c o n t a d e in t e r e sse s e m c o m u m n a p s ic o g ê n e s e d as d e so r d e n s m e n t a i s e
n a p s ic o t e r a p ia . Su a i n t e n ç ã o e r a fo r m u l a r u m a p s ic o t e r a p ia cie n t ífica b a se a d a
n a n o va p sico lo gia e, p o r s u a ve z , s u s t e n t a r a p sico lo gia n a in ve s t iga ç ã o clín ica
p r o fu n d a d e vid a s i n d i vi d u a i s .
C o m a li d e r a n ç a d e Bl e u l e r e Ju n g, o Bu r g h õ lz li t o r n o u - s e o c e n t r o d o m o -
v i m e n t o p sica n a lít ico . E m 19 0 8 , o Jahrbuchfurpsychoanalyttsche undpsychopathologísche
Forschungen [ An u á r i o d e P e sq u isa P sica n a lít ica e P s ic o p a t o ló gic a ] fo i cr ia d o , c o m
Bl e u l e r e Ju n g c o m o e d it o r e s. C o m su a d efesa, a p s ic a n á lis e p ô d e se fa z e r n o t a r
n o m u n d o p s iq u iá t r ic o a le m ã o . E m 19 0 9 , Ju n g r e c e b e u u m gr a u h o n o r á r i o d a
U n i ve r s i d a d e C l a r k p o r su as p e sq u isa s c o m a sso cia çã o . N o a n o se gu in t e , u m a
a sso cia çã o p s ic a n a lít ic a i n t e r n a c i o n a l fo i fo r m a d a c o m Ju n g c o m o p r e sid e n t e .
D u r a n t e o p e r í o d o d e s u a c o la b o r a ç ã o c o m Fr e u d , ele e r a u m d o s p r i n c i p a i s
a r q u it e t o s d o m o vi m e n t o p sica n a lít ico . Es s e fo i p a r a ele u m p e r í o d o d e i n t e n s a
a t ivid a d e p o lít ic a e i n s t i t u c i o n a l . O m o vi m e n t o e st a va r a c h a d o p o r d i ve r g ê n -
cias e d e sa co r d o s a m a r go s.
A intoxicação da m itologia
E m 19 0 8 , Ju n g c o m p r o u u m p e d a ç o d e t e r r a à m a r g e m d o La go d e Zu r i q u e ,
e m Kú s n a c h t , e a l i c o n s t r u i u u m a ca sa o n d e vi ve r i a a t é o fin a l d e su a vid a .
c o m o a q u e le q u e m a r c a u m r e t o r n o d e Ju n g a su as r a íz e s in t e le c t u a is e a su as
p r e o c u p a ç õ e s c u lt u r a is e r e ligio sa s. E l e a c h a va o t r a b a lh o m i t o l ó g i c o e s t i m u -
m a n i c ô m i o q u e e u m e s m o t i n h a c o n s t r u íd o . E u a n d a va d e lá p a r a cá c o m t o -
X I X t e s t e m u n h o u u m a e xp l o s ã o d e e st u d o s a c a d é m i c o s n a s r e c é m - fu n d a d a s
c o lh id o s e t r a d u z id o s p e la p r i m e i r a ve z e a p r e se n t a d o s aos e st u d o s h is t ó r ic o s
d e m u n d o cr ist ã .
N e s s e t r a b a lh o , Ju n g s i n t e t i z o u as t e o r ia s d a m e m ó r i a d o sé c u lo X I X , a h e -
r e d it a r ie d a d e e o i n c o n s c i e n t e e p o s t u l o u u m a c a m a d a filo ge n é t ic a n o i n c o n s -
c ie n t e a i n d a p r e se n t e e m c a d a u m d e n ó s , q u e co n sist e d e im a ge n s m it o ló gic a s .
P a r a Ju n g , os m i t o s e r a m s í m b o l o s d a l i b i d o e a p r e s e n t a va m seu s m o vi m e n t o s
t íp ico s. E l e u s o u o m é t o d o c o m p a r a t i vo d a a n t r o p o lo gia p a r a ju n t a r u m a va s t a
p a n ó p l i a d e m i t o s , e e n t ã o os s u je i t o u à i n t e r p r e t a ç ã o a n a lít ica . M a i s t a r d e , ele
c h a m o u se u u so d o m é t o d o c o m p a r a t i vo d e "a m p lific a ç ã o ". E l e d e fe n d ia q u e
h a ve r i a m i t o s t íp ic o s , q u e c o r r e s p o n d e r i a m ao d e s e n vo lvi m e n t o e t n o p s i c o l ó -
gico d o s c o m p le xo s . D e a co r d o c o m Ja co b Bu r c k h a r d t , Ju n g c h a m o u t a is m i t o s
t íp ic o s d e "im a ge n s p r i m o r d i a i s " (Urbilder). A u m m i t o e m p a r t i c u l a r fo i d a d o
u m p a p e l c e n t r a l: o d o h e r ó i. P a r a Ju n g ele r e p r e s e n t a va a v i d a d e u m in d ivíd u o ,
t en t an d o t o r n a r -se in d ep en d en t e e de lib e r t a r -se d a m ãe. El e in t e r p r e t o u o
m o t i vo d o in c e s t o c o m o u m a t e n t a t i va d e r e t o r n o à m ã e p a r a r e n a sce r . M a i s
t a r d e , ele a n u n c i a r i a fo r m a l m e n t e essa o b r a c o m o a d a d e s c o b e r t a d o i n c o n s -
c ie n t e co le t ivo , e m b o r a o t e r m o p r o p r i a m e n t e d it o t e n h a su r gid o d e p o i s 2 9 .
28 W anãungenundSymbole der Libido [Transformações e símbolos da libido]. O C , B, § 36, p. 37. Em sua revisão do
texto em 1952, Jung ampliou isto (Símbolos da transformação. O C , 5, § 29).
29 Address on the occasion of the founding of the C G . Jung Institute, Zurich , 24 Ap ril 1948". O C , 18, §
1.129.
I N T RO D U ÇÃO U
d o d e se jo - u m a fu n ç ã o d e b a la n ç o , o u c o m p e n s a t ó r i a . O s so n h o s e r a m t e n t a -
t iva s d e s o lu c io n a r os c o n flit o s m o r a i s d e u m in d ivíd u o . C o m o t a is, n ã o a p o n -
t a va m m e r a m e n t e p a r a o p assad o, m a s t a m b é m p r e p a r a va m o c a m i n h o p a r a o
fu t u r o . M a e d e r e st a va d e s e n vo lve n d o as p e r sp e ct iva s d e F l o u r n o y a r e s p e it o
d e u m a i m a g i n a ç ã o c r i a t i va s u b c o n s c ie n t e . Ju n g t r a b a lh a va e m lin h a s s e m e -
lh a n t e s , e a d o t o u as p o s iç õ e s d e Ma e d e r . P a r a eles, essa a lt e r a ç ã o n a c o n c e p ç ã o
d o s so n h o s t r o u xe co n sigo u m a a lt e r a ç ã o n a c o n s i d e r a ç ã o d e t o d o s os o u t r o s
fe n ó m e n o s a sso cia d o s ao in c o n s c ie n t e .
d e id a d e : "E s t a é u m a é p o c a cr ít ica , p o is r e p r e s e n t a o in íc io d a se gu n d a m e t a d e
d a v i d a d e u m h o m e m , q u a n d o n ã o r a r o o c o r r e u m a m etanoia, u m a t r a n s fo r m a -
ç ã o m e n t a l " 3 0 . Ac r e s c e n t a va q u e e st a va c o n s c ie n t e d a p e r d a d e su a c o la b o r a ç ã o
c o m Fr e u d , e q u e se s e n t i a e m d í vi d a c o m r e la ç ã o ao a p o io r e c e b id o d e s u a
vi ve r s e m u m m it o . Aq u e l e s e m u m m i t o "é , n a ve r d a d e , u m e r r a d ic a d o , q u e
n ã o t e m c o n t a t o ve r d a d e i r o n e m c o m o p assad o, a v i d a d o s a n ce st r a is ( q u e
r e su lt a d o d isso , ele n o t a q u e:
30 O C , 5 , p - XXVI .
31 I b id .,p .XI X.
32 Ibid.
LÍ BE R N O V U S
O e st u d o d o m i t o r e ve lo u a Ju n g a a u s ê n c ia d e m i t o e m su a vid a . E l e e n t ã o
p r e o c u p o u - s e e m d e s c o b r ir se u m i t o , s u a "e q u a ç ã o p e s s o a l" 33 . A s s i m p e r c e b e -
m o s q u e a a u t o e xp e r i m e n t a ç ã o c o m a q u a l Ju n g se e n vo l ve u fo i e m p a r t e u m a
r e sp o st a d i r e t a a q u e s t õ e s t e ó r ic a s le va n t a d a s p o r s u a p e sq u isa , q u e c u l m i n a -
r a m e m Transform ações e sím bolos da libido.
Ju n g a c h o u esse s o n h o o p r e ssivo e d e s c o n c e r t a n t e , e F r e u d fo i in c a p a z d e i n -
t e r p r e t á - l o 3 5 . M a i s o u m e n o s seis m e se s d e p o is t eve o u t r o so n h o :
q u e , q u a n d o c r ia n ç a , go st a va d e c o n s t r u i r casas e o u t r a s e s t r u t u r a s , e r e t o m o u
e ssa a t ivid a d e .
En q u a n t o e st e ve e n vo lvi d o c o m s u a a t ivid a d e d e a u t o a n á lis e , c o n t i n u o u a
d e s e n vo lve r se u t r a b a lh o t e ó r ico . E m s e t e m b r o d e 1913, n o Co n g r e s s o d e P s i -
ca n á lise d e M u n i q u e , fa lo u so b r e os t ip o s p s ic o ló gic o s . Ar g u m e n t o u q u e h a vi a
d o is m o vi m e n t o s b á sico s d a li b i d o : a e xt r o ve r s ã o , n a q u a l o in t e r e sse d o su je it o
e st á o r ie n t a d o e m d ir e ç ã o ao m u n d o e xt e r n o , e a in t r o ve r s ã o , n a q u a l o i n t e -
r esse d o s u je it o e s t á d ir e c io n a d o p a r a d e n t r o . Se gu in d o essas id e ia s, p o s t u lo u
d o is t ip o s d e ge n t e , ca d a u m c a r a c t e r iz a d o p e la p r e d o m i n â n c i a d e u m a d essas
t e n d ê n c ia s . A s p sico lo gia s d e F r e u d e d e Ad l e r e r a m e xe m p lo s d o fat o d e q u e
as p sico lo gia s c o m fr e q u ê n c ia a s s u m e m o q u e é a ve r d a d e d e se u t ip o c o m o ge-
r a l m e n t e vá lid o . A s s i m o q u e se fa z ia n e c e s s á r io e r a u m a p sico lo gia q u e fizesse
ju s t iç a a a m b o s esses t i p o s 4 0 .
N o s a n o s i m e d i a t a m e n t e p r e ce d e n t e s ao in íc io d a gu e r r a , u m i m a g i n á r i o
a p o c a líp t ic o e st a va d is s e m in a d o n a s a r t e s e n a l i t e r a t u r a e u r o p e ia s. P o r e x e m -
p lo , e m 1912, W a s s i l y Ka n d i n s k y e sc r e ve u so b r e u m a ca t á st r o fe u n i ve r s a l i m i -
n e n t e . D e 1912 a 1914, Lu d w i g M e i d n e r p i n t o u u m sé r ie c o n h e c i d a c o m o p a i -
A p r o fe c ia e st a va n o ar. E m 18 9 9 , Le o n o r a P ip e r , a fa m o sa m é d i u m a m e r i c a n a ,
p r e vi u q u e n o sé cu lo q u e ch e ga va h a ve r i a u m a t e r r íve l g u e r r a e m p a r t e s d ife -
r e n t e s d o m u n d o q u e o l i m p a r i a r e ve la n d o as ve r d a d e s d o e s p ir it u a lis m o . E m
c a r a va isso c o m o p r o fé t i c o 4 7 .
n a d isse q u e o q u e a fa n t a sia m o s t r a va t o r n a r - s e - i a c o m p le t a m e n t e r e a l. I n i -
m o s t r a r a i m i n e n t e d e s t r u iç ã o d e se u m u n d o . Su a r e a ç ã o a essa e xp e r i ê n c i a fo i
i n i c i a r u m a in ve s t iga ç ã o p s ic o ló gic a d e si m e s m o . N e s s a é p o c a , a a u t o e xp e r i -
m e n t a ç ã o e r a h a b i t u a l n a m e d i c i n a e n a p sico lo gia . A i n t r o s p e c ç ã o fo i u m a d as
c o m o e u m e s m o e q u e s u a a n á lis e l e va i n e vi t a ve l m e n t e a u m a a n á lis e d e m e u s
p r ó p r i o s p r o c e sso s i n c o n s c i e n t e s " 4 8 . E l e h a vi a p r o je t a d o s e u m a t e r i a l n a q u e le
d a Sr t a . F r a n k M i l l e r , q u e ele n u n c a c o n h e c e u . At é e st e p o n t o , Ju n g h a vi a sid o
n h o p a r a m i m q u e se ja u m a fo r m a t o t a l m e n t e i m p u r a , u m t i p o d e i n t e r c u r s o
in c e s t u o s o , c o m p l e t a m e n t e i m o r a l d e u m p o n t o d e vi s t a i n t e l e c t u a l " 4 9 . E l e
45 Esboço, p. 8.
46 BR E U E R , Gerda & W AG EM AN , Ines. Ludwig Meidner. Zeichner, Maier, Literat 1884-1966. Vol. 2.
Stuttgart: Verlag Gerd Hatye, 1991, p. 124-149. Cf. W I N T E R , Jay. Sites of Memory, Sites ofMourning: Th e
Great War in European Cultural History. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 147-177.
47 D O YLE , Art h u r Conan. The NewRevelation and the Vital Message. Londres: Psychic Press, 1918, p. 9.
48 Introduction to Jungian Psychology, p. 28.
49 Ibid.
i8 LÍ BE R N O V U S
a go r a vo lt a va - s e p a r a a a n á lis e d e su as fa n t a sia s, a n o t a n d o c u i d a d o s a m e n t e
t u d o , e t i n h a q u e s u p e r a r u m a r e s i s t ê n c i a e n o r m e p a r a fa z ê - lo : "P e r m i t i r a
fa n t a s ia e m m i m m e s m o t e ve o m e s m o e fe it o q u e o p r o d u z i d o e m u m h o m e m
q u e ch e ga sse à s u a o fi c i n a e e n c o n t r a s s e t o d a s as su as fe r r a m e n t a s vo a n d o
p o r t o d a a p a r t e , fa z e n d o co isa s i n d e p e n d e n t e m e n t e d e s u a v o n t a d e " 5 0 . A o
e s t u d a r su as fa n t a sia s, Ju n g p e r c e b e u q u e e s t u d a va a fu n ç ã o c r i a d o r a d e m i t o s
da m en te.
Le m b r o u - s e q u e m a n t i n h a u m d iá r io a t é p o r vo l t a d e 19 0 2, e r e t o m o u
i n t e r i o r e s p o r m e i o d e m e t á fo r a s , t a is c o m o e st a r n u m d e se r t o c o m u m s o l
i n s u p o r t a ve l m e n t e q u e n t e ( i s t o é, a c o n s c i ê n c i a ) 5 1. Ju n g r e c u p e r o u o c a d e r n o
m a r r o m q u e h a vi a d e ixa d o d e la d o e m 19 0 2 e c o m e ç o u n o va m e n t e a e scr e ve r
n e l e 5 2 . N o s e m i n á r i o d e 192$, ele se l e m b r o u q u e h a vi a lh e o c o r r i d o q u e p o d e r i a
c o m as se gu in t e s fr ases:
50 Ibid.
51 MP, p. 23.
$2 No que se segue, referido como Livro Negro 2. O s cadernos subsequentes são pretos, daí Jung referir-se a
eles como Livros Negros.
53 Introduction to Jungian Psychology., p. 448
54 SAN T O A G O S T I N H O . Solilóquios e a imortalidade da alma. Warminster: Aris e Phillips, 1990, p. 23
[organizado e traduzido por Gerard Watson]. Watson observa que Agostinho "havia passado por um
período de grande exaustão, perto de uma crise nervosa, e os Solilóquios são uma forma de terapia, um
esforço para curar-se falando, ou melhor, escrevendo" (p. v.).
I N T RO D U ÇÃO 19
55 Ibid., p. 42. Aqu i no relato de Jung, parece que o diálogo ocorreu no outono de 1913, embora isto não
seja certo, pois o diálogo propriamente não aparece nos Livros Negros, e nenhum outro manuscrito veio a
público. Se seguirmos essa datação, e na ausência de outro material, parece que o material ao qual a voz
está se referindo são os registros de novembro no Livro Negro 2, e não o texto subsequente do Liber Novus ou
as pinturas.
56 Ibid., p. 44.
57 Ibid., p. 46.
58 MP, p. 171.
59 As pinturas de Riklin seguiam em geral o estilo de Augusto Giacometti: obras semiftgurativas e
totalmente abstratas, com cores suaves e instáveis (coleção particular, Peter Riklin ). H á um quadro de
Riklin de 1915/1916, "Verkúndigung" no Kunsthaus de Zurique, uma doação de Maria Moltzer em 1945.
Giacometti lembra: "O conhecimento psicológico de Riklin era extraordinariamente interessante e novo
para m im . Ele era um mágico moderno. Eu tinha a sensação de que ele podia fazer mágica" (Von Stampa bis
Florenz: Blatter der Erinnerung. Zurique: Rascher, 1943, p. 86-87).
20 LÍ BE R N O V U S
A s a n o t a ç õ e s d e n o ve m b r o n o Livro Negro 2 r e g is t r a m a s e n s a ç ã o d e Ju n g e m
s e u r e t o r n o à s u a a lm a . E l e r e c o n t o u os so n h o s q u e o l e va r a m a o p t a r p o r u m a
c a r r e i r a cie n t ífica , e os so n h o s r e ce n t e s q u e o h a vi a m r e t o r n a d o à s u a a lm a .
C o m o l e m b r o u e m 1925, o p r i m e i r o p e r í o d o e scr it o t e r m i n o u e m n o ve m b r o :
sá r ia [...] b o le i u m m é t o d o m u i t o ch a t o fa n t a sia n d o q u e e u e st a va ca va n d o u m
t a is e xp e r i m e n t o s a c o n t e c e u e m 12 d e d e z e m b r o d e 19 136 1.
C o m o in d ic a d o , Ju n g h a vi a t id o u m a e xt e n s a e xp e r i ê n c i a n o e st u d o d e
m é d i u n s e m e st a d o s d e t r a n se , d u r a n t e os q u a is e r a m e n co r a ja d o s a p r o d u z i r
fa n t a sia s d e sp e r t a s e a lu c in a ç õ e s vis u a is , e t i n h a c o n d u z i d o e xp e r i m e n t o s c o m
t r a d iç õ e s r e ligio sa s. P o r e xe m p lo , n o q u i n t o d o s e xe r c íc io s e s p ir it u a is d e Sa n t o
I n á c i o d e Lo yo l a , os i n d i ví d u o s sã o in s t r u íd o s a c o m o "e n xe r ga r c o m os o lh o s
d a i m a g i n a ç ã o o c o m p r i m e n t o , a la r gu r a , a p r o fu n d id a d e d o i n fe r n o ", e a e xp e -
r i m e n t a r isso c o m t o t a l s e n s o r ia lid a d e 6 2 . Sw e d e n b o r g t a m b é m se e n vo l ve u c o m
"e s c r it a e s p i r i t u a l". E m se u d iá r io e s p ir it u a l, le m o s :
E m Vi e n a , a p a r t i r d e 19 0 9 , o p s ic a n a lis t a H e r b e r t Silb e r e r c o n d u z i u e x-
p e r i m e n t o s e m si m e s m o e m e st a d o s h ip n a g ó g ic o s . Si lb e r e r t e n t a va fa z e r i m a -
gen s a p a r e c e r e m . Essa s im a ge n s, m a n t i n h a ele, a p r e s e n t a va m r e p r e s e n t a ç õ e s
s im b ó lic a s d e seu s p e n s a m e n t o s . Si lb e r e r se c o r r e s p o n d e u c o m Ju n g e m a n d a va
a ele c ó p ia s d e seu s a r t i g o s 6 4 .
E m 1912, Lu d w i g St a u d e n m a i e r ( 18 6 5- 19 33) , u m p r o fe sso r d e q u í m i c a e x-
p e r i m e n t a l , p u b l i c o u u m l i vr o i n t i t u l a d o A m agia com o ciência experim ental. St a u d e n -
m a i e r c o m e ç o u a u t o e xp e r i m e n t a ç õ e s e m 19 0 1, i n i c i a n d o c o m e s c r it a a u t o m á -
t ica . U m a sé r ie d e p e r so n a ge n s a p a r e ce u , e ele p e r c e b e u q u e n ã o m a is p r e c is a va
d a e s c r it a p a r a se c o m u n i c a r c o m e le s 6 5 . E l e t a m b é m i n d u z i a a lu c in a ç õ e s a c ú s -
t ica s e vis u a is . O o b je t ivo d essas p r á t ica s e r a u sa r su as a u t o e xp e r i m e n t a ç õ e s
p a r a fo r n e c e r u m a e xp lic a ç ã o c ie n t ífic a p a r a a m a gia . E l e a r g u m e n t a va q u e a
ch a ve p a r a se e n t e n d e r a m a gia e st a va n o s c o n c e it o s d e a lu c in a ç õ e s e d o Um
terbewusstsein, e d e u e sp e cia l i m p o r t â n c i a ao p a p e l d as p e r s o n i fi c a ç õ e s 6 6 . A s s i m
p e r c e b e m o s q u e os p r o c e d i m e n t o s d e Ju n g m u i t o se p a r e c e m c o m u m n ú m e r o
d e p r á t ica s h is t ó r ic a s c o n t e m p o r â n e a s c o m as q u a is ele e st a va fa m ilia r iz a d o .
A p a r t i r d e d e z e m b r o d e 1913, se gu iu c o m o m e s m o p r o c e d i m e n t o : e vo ca r
d e lib e r a d a m e n t e u m a fa n t a sia n o e st a d o a le r t a , e e n t ã o e n t r a r n e l a c o m o e m
u m d r a m a . Essa s fa n t a sia s p o d e m se r e n t e n d id a s c o m o u m t ip o d e p e n s a m e n t o
d r a m a t i z a d o e m fo r m a p ic t ó r ic a . A o l e r m o s su as fa n t a sia s, fica c la r o o i m p a c t o
d e seu s e st u d o s m it o ló g ic o s . Al g u m a s d as figu r a s e d o s c o n c e it o s d e r i va m - s e
d i r e t a m e n t e d e su as le it u r a s , e a fo r m a e o e st ilo t e s t e m u n h a m s e u fa scín io p e lo
m u n d o d o m i t o e d o é p ico . N o s Livros Negros, Ju n g e s c r e ve u su as fa n t a sia s e m
r e gist r o s d a t a d o s, ju n t o a r e fle xõ e s so b r e se u e st a d o m e n t a l e su as d ificu ld a d e s
e m c o m p r e e n d e r as fa n t a sia s. O s Livros Negros n ã o sã o u m d iá r io d e e ve n t o s, e
m u i t o p o u co s so n h o s e s t ã o a li a n o t a d o s. A o in vé s, sã o o r e gist r o d e u m e xp e r i -
m e n t o . E m d e z e m b r o d e 1913, r e fe r iu - s e ao p r i m e i r o d o s l i vr o s n e gr o s c o m o o
"l i vr o d e m e u e xp e r i m e n t o m a is d i fí c i l " 6 7 .
E m r e t r o sp e ct o , l e m b r a q u e s u a q u e s t ã o cie n t ífica e r a ve r o q u e a c o n t e c e r ia
q u a n d o ele d esligasse a c o n s c iê n c ia . O e xe m p l o d o s so n h o s i n d i c a va a e xi s t ê n -
c i a d e u m a a t ivid a d e d e fu n d o , e ele q u e r i a d a r a essa a t ivid a d e u m a p o s s i b i l i d a -
d e d e e m e r gir , a s s im c o m o se faz ao t o m a r m e s c a l i n a 6 8 .
E m u m r e gist r o e m s e u l i vr o d e so n h o s d e 17 d e a b r i l d e 1917 Ju n g n o t a :
69
"d esd e e n t ã o , e xe r c íc io s fr e q u e n t e s d e e sva z ia r a c o n s c i ê n c i a " . Se u p r o c e d i -
m e n t o e r a c l a r a m e n t e i n t e n c i o n a l - ao p a sso q u e se u o b je t ivo e r a p e r m i t i r q u e
c o n t e ú d o s p s íq u ic o s a p a r e ce sse m e s p o n t a n e a m e n t e . E l e l e m b r a q u e p o r b a ixo
d o l i m i a r d a c o n s c iê n c ia , t u d o é a n im a d o . A s ve z e s, e r a c o m o se ele o u visse
co isas. E m o u t r o s m o m e n t o s , p e r c e b ia q u e e st a va s u s s u r r a n d o p a r a si m e s m o 7 0 .
D e n o ve m b r o d e 1913 a t é ju l h o se gu in t e , ele p e r m a n e c e u i n c e r t o so b r e o
q u e c o n t i n u a r a m a se d e se n vo lve r . D u r a n t e esse p e r í o d o , Fi l ê m o n , q u e se t o r -
n a r i a u m a figu r a i m p o r t a n t e e m fa n t a sia s su b se q u e n t e s, a p a r e ce u e m u m s o -
n h o . Ju n g r e le m b r a :
En q u a n t o e st a va p i n t a n d o essa i m a g e m , ele e n c o n t r o u u m m a r t i m - p e s c a -
d o r m o r t o ( q u e m u i t o r a r a m e n t e é e n c o n t r a d o n a s viz in h a n ç a s d e Zu r i q u e )
e m se u j a r d i m n a b o r d a d o la g o 7 2 .
A d a t a d esse s o n h o n ã o é c e r t a . A figu r a d e Fi l ê m o n a p a r e ce p r i m e i r o n o s
69 Sonhos". AFJ, p. 9.
70 MP, p. 145. Jung disse a Margaret Ostrowski-Sachs: "A técnica da imaginação ativa pode mostrar-se
muito importante em situações difíceis - quando há uma visitação, digamos. Só faz sentido quando
temos a sensação de nos encontrarmos num beco sem saída. Vivi isto quando me separei de Freud. Não
sabia o que pensar. Apenas sentia. 'Não é isto 5. Então concebi o 'pensamento simbólico' e depois de dois
anos de imaginação ativa tantas ideias me sobressaltaram que quase não pude me defender. O s mesmos
pensamentos voltaram. Apelei para minhas mãos e comecei a entalhar madeira - e então meu caminhou
se aclarou" (From ConversationswithC.G.Jung. Zurique: Júris Druck Verlag, 1971, p. 18).
71 Mem órias, p. 162.
72 Ibid.
I N T RO D U ÇÃO ^3
Ju n g, F i l ê m o n r e p r e s e n t a v a u m ínsíght s u p e r i o r , e e r a c o m o u m g u r u p a r a
e le . Ju n g c o n v e r s a v a c o m e le n o j a r d i m . L e m b r a q u e F i l ê m o n e m e r g i u d a
E m 2 0 d e a b r il, Ju n g r e n u n c i o u à p r e s i d ê n c i a d a As s o c i a ç ã o I n t e r n a c i o n a l
d e P sica n á lise . E m 30 d e a b r il, d e m i t i u - s e d a Fa c u ld a d e d e M e d i c i n a d a U n i -
ve r s id a d e d e Zu r i q u e . Le m b r a q u e s e n t ia e st a r n u m a p o s iç ã o m u i t o e xp o s t a n a
u n ive r s id a d e e q u e s e n t ia a n e ce ssid a d e d e e n c o n t r a r u m a n o va o r ie n t a ç ã o , e
q u e s e r ia p o r t a n t o i n ju s t o d a r a u la s 7 4 . E m j u n h o e ju lh o , t e ve u m s o n h o q u e se
r e p e t i u p o r t r ê s ve z e s, e m q u e e st a va n u m a t e r r a e s t r a n ge ir a t e n d o q u e r e t o r n a r
r a p i d a m e n t e p a r a ca sa d e n a vio , se gu id o d a ch e ga d a d e u m fr io ge la d o 7 5 .
E m 10 d e ju lh o , a As s o c i a ç ã o P sic a n a lít ic a d e Zu r i q u e vo t o u p o r 15 a I su a
sa íd a d a As s o c i a ç ã o I n t e r n a c i o n a l d e P sica n á lise . N a s at as, a r a z ã o d a d a p a r a a
s e p a r a ç ã o e r a q u e F r e u d t i n h a e st a b e le cid o u m a o r t o d o xi a q u e i m p e d i a a p e s-
q u is a l i vr e e i n d e p e n d e n t e 7 6 . O gr u p o fo i r e n o m e a d o d e As s o c i a ç ã o d e P s i c o l o -
gia An a l í t i c a . Ju n g e st a va a t iva m e n t e e n vo lvi d o n e ssa a sso cia çã o , q u e se e n c o n -
t r a va q u i n z e n a l m e n t e . E l e t a m b é m m a n t i n h a u m a i n t e n s a p r á t ic a t e r a p ê u t ic a .
En t r e 1913 e 1914, ele t i n h a e n t r e u m a e n o ve co n su lt a s p o r d ia , c in c o d ia s p o r
s e m a n a , n u m a m é d i a d e c in c o a s e t e 7 7 .
A s at as d a As s o c i a ç ã o d e P s ic o lo gia An a l í t i c a n ã o d e m o n s t r a m o p r o ce sso
p e lo q u a l e st a va p a ssa n d o Ju n g. E l e n ã o se r e fe r e a su as fa n t a sia s, e c o n t i n u a
d i s c u t i n d o q u e s t õ e s t e ó r ica s d e p sico lo gia . O m e s m o é ve r d a d e p a r a s u a c o r -
73 Ibid., p. 162-163.
74 Ibid., p. 171.
75 Cf. adiante, p. 113.
76 MSZ.
77 Cadernos de anotações de Jung, AFJ.
24 LÍ BER N O V U S
r e s p o n d ê n c i a d u r a n t e esse p e r í o d o 7 8 . A ca d a an o , m a n t i n h a su as o b r iga ç õ e s d e
d a d e s fa m ilia r e s d u r a n t e o d ia , e d e d ic a va su as n o it e s a su as a u t o e xp e r i m e n t a -
d e q u e e u e xi s t i a d e u m a fo r m a n o r m a l e ve r d a d e i r a " 8 1.
A q u e s t ã o d as d ife r e n t e s fo r m a s d e i n t e r p r e t a r t a is fa n t a sia s fo i o t e m a d e
u m a p a le s t r a q u e ele a p r e s e n t o u e m 24 d e ju l h o p a r a a So cie d a d e P s i c o m é d i c a
a n a lí t i c o - r e d u t i vo d e Fr e u d , b a se a d o n a ca u sa lid a d e , c o m o m é t o d o c o n s t r u -
d e vo l t a a e le m e n t o s a n t e ce d e n t e s, o m é t o d o li d a va a p e n a s c o m m e t a d e d o
q u a d r o , e n ã o a lc a n ç a va o s e n t id o vi vo d o s fe n ó m e n o s . Al g u é m q u e q u isesse
c o m p r e e n d e r o Fausto d e Go e t h e d e t a l m a n e i r a s e r ia c o m o a lg u é m q u e t e n -
m e s m o s " 8 3 . N a m e d i d a e m q u e a vi d a é e s s e n c ia lm e n t e n o va , e la n ã o p o d e ser
c o m p r e e n d i d a a p e n a s r e t r o s p e c t iva m e n t e . As s i m , o p o n t o d e vi s t a c o n s t r u t i -
vo p e r gu n t a va , "co m o , a p a r t i r d e st a p siq u e p r e se n t e , p o d e m o s c o n s t r u i r u m a
p o n t e p a r a se u p r ó p r i o fu t u r o ? " 8 4 Es t e a r t igo a p r e se n t a i m p l i c i t a m e n t e a ju s t i -
d e i n t e r p r e t a ç ã o d e Ju n g liga -se ao m é t o d o s i m b ó l i c o d a h e r m e n ê u t i c a e s p i r i -
t u a l d e Swe d e n b o r g.
78 Isto se baseia num estudo extenso sobre a correspondência de Jung no E T H até 1930 e em outros
arquivos e coleções.
79 Estes eram, 1913: 16 dias, 1914:14 dias, 1915: 67 dias, 1916: 34 dias, 1917: 117 dias (registro do serviço
m ilitar de Jung, AFJ).
80 Cf. adiante, p. 136.
81 Mem órias, p. 168.
82 JU N G . "A interpretação psicológica dos processos patológicos". O C , 3, § 396.
83 Ibid., §398.
84 Ibid., §39 9 .
I N T RO D U ÇÃO 25
E m 28 d e ju lh o , Ju n g d e u u m a p a le s t r a so b r e "A i m p o r t â n c i a d o i n c o n s c i e n -
t e n a p s ic o p a t o lo gia " n u m e n c o n t r o d a As s o c i a ç ã o M é d i c a Br i t â n i c a e m Ab e r -
d e e n 8 5 . E l e a r g u m e n t a va q u e , e m casos d e n e u r o se e p sico se , o i n c o n s c i e n t e
t e n t a va c o m p e n s a r a a t it u d e u n i l a t e r a l d a c o n s c iê n c ia . O i n d i ví d u o d e s b a la n -
ç a d o d e fe n d e - se d isso , e os o p o st o s t o r n a m - s e m a is p o la r iz a d o s . O s im p u ls o s
c o r r e t ivo s q u e se a p r e s e n t a m n a lin gu a ge m d o i n c o n s c i e n t e d e ve m se r o in íc io
d e u m p r o ce sso d e c u r a , m a s a fo r m a n a q u a l i r r o m p e m os t o r n a in a c e it á ve is
p a r a a c o n s c iê n c ia .
U m m ê s a n t e s, e m 28 d e ju n h o , o Ar q u i d u q u e F r a n z Fe r d i n a n d , o h e r d e i r o
d o I m p é r i o Au s t r o - h ú n g a r o , fo i a ssa ssin a d o p o r G a v r i l o P r i n c i p , u m e st u d a n t e
o
s é r vio d e d e z e n o ve a n o s d e id a d e . E m I d e ago st o a g u e r r a e s t o u r o u . E m 1925,
Ju n g l e m b r a , "t ive a s e n s a ç ã o d e q u e e u e r a u m a p sico se s u p e r c o m p e n s a d a , e
o
n ã o m e l i b e r t e i d esse s e n t i m e n t o a t é I d e ago st o d e 19 14 "8 6 . An o s m a is t a r d e ,
ele d isse a M i r c e a El i a d e :
N e s s e m o m e n t o , Ju n g c o n s i d e r o u q u e s u a fa n t a sia t i n h a m o s t r a d o n ã o o q u e
a c o n t e c e r ia a ele, m a s à Eu r o p a . E m o u t r a s p a la vr a s, d e q u e e r a u m a p r e c o g n i ç ã o
85 0 C 3 .
86 Introductíon to Jungian Psychology, p. 48.
87 M c GU I RE, W illiam & H U L L , R.F.C. (orgs.). Entrevista Combat, 1952. C.G.JungSpeaking: Interviews and
Encounters. Princeton: Princeton Un iversity Press/ Bollingen Series, 1977, p. 233-234. Cf. adiante, p. 125.
26 LÍ BE R N O V U S
b é m e m r e la çã o às o u t r a s fa n t a sia s q u e ele t i n h a e xp e r im e n t a d o , e c o m p r e n d e r
i r r o m p e r d a g u e r r a c a p a c it o u - o a e n t e n d e r m u i t o d o q u e h a vi a p r e vi a m e n t e
e n lo u q u e c e r e r a u m en gan o . N ã o é u m e xa ge r o d i z e r q u e se a g u e r r a n ã o t ivesse
e n vo l vi m e n t o p a r e ce m u i t o c o m u m a p sico se é q u e o p a c ie n t e e st á in t e gr a n d o
o m e s m o m a t e r i a l d e fa n t a sia n o q u a l c a i ví t i m a a p e sso a i n s a n a p o r q u e n ã o
co n se gu e i n t e g r á - lo e é e n go lid a p o r e l e " 9 °.
E i m p o r t a n t e n o t a r q u e h á p o r vo l t a d e o n z e fa n t a sia s d is t in t a s q u e Ju n g
p o d e t e r e n c a r a d o c o m o p r e co gn it iva s:
I . I e 2 de O U T U B R O D E 1913: Visã o r e p e t id a de in u n d a çã o e m o r t e de m i -
lh ar es, e a vo z qu e d iz ia qu e ist o ir ia se t o r n a r r eal.
3. O U T O N O D E 1913: Visã o d o m a r de san gu e co b r in d o as t er r as d o N o r t e .
4.12 D E D E Z E M B R O D E 1913: Im a ge m d e u m h e r ó i m o r t o e o assassin at o de
Siegfr ied n u m son h o.
5. 25 D E D E Z E M B R O D E 1913: Im a ge m d o p é de u m gigan t e p isan d o n u m a
cid ad e, e im agen s d e assassin at o e de cr u eld ad e san gr en t a.
6. 2 D E J A N E I R O D E 1914: Im a ge m de u m m a r de san gu e e u m a p r o cissã o de
m u lt id ã o de m o r t o s.
7. 22 D E J A N E I R O D E 1914: Su a a lm a em er ge das p r ofu n d ezas e p e r gu n t a -lh e
se ele ir á aceit ar a gu e r r a e a d est r u ição. E l a lh e m o st r a im agen s de d e s t r u i-
ção, ar m as m ilit a r e s, rest os h u m a n o s, n avios afu n d ad os, est ad os d e st r u íd o s,
etc.
8. 21 D E M A I O D E 1914: U m a vo z d iz qu e os sacrificad os ca e m à d ir e it a e à
esq u erd a.
88 C f adiante, p. 113.
89 Cf. adiante, p. 129.
90 Mysteríum Coníunctíonís. O C , 14, § 410. Sobre o mito da loucura de Jung, promovida pela prim eira vez pelos
freudianos, como meio de desqualificar sua obra, cf. meu JungStríppedBare by Hís Biographers, Even.
I N T RO D U ÇÃO 27
Líber Novus
Ju n g c o m e ç o u e n t ã o a e scr e ve r o e s b o ç o d o Líber Novus. E l e t r a n s c r e ve u fi e l -
m e n t e m u i t a s d as fa n t a sia s d o s Livros Negros, e p a r a c a d a u m a d elas a c r e s c e n -
t o u u m a s e ç ã o e xp l i c a n d o o sign ifica d o d e c a d a e p is ó d io , c o m b i n a d o c o m u m a
e la b o r a ç ã o lír ica . U m a c o m p a r a ç ã o p a la vr a a p a la vr a i n d i c a q u e as fa n t a sia s
fo r a m r e p r o d u z id a s fie lm e n t e , a p e n a s c o m u m p o u co d e e d i ç ã o e u m a d ivis ã o
e m c a p ít u lo s . As s i m , a s e q u ê n c ia d as fa n t a sia s e m Líber Novus q u ase s e m p r e c o r -
r e sp o n d e e xa t a m e n t e ao s Livros Negros. Q u a n d o e s t á in d ic a d o q u e u m a fa n t a sia
e m p a r t i c u l a r a c o n t e c e u "n a n o it e se gu in t e ", e t c , é s e m p r e a cu r a d o , e n ã o u m
r e c u r s o e st ilíst ico . A lin gu a ge m e o c o n t e ú d o d o m a t e r i a l n ã o fo r a m a lt e r a d o s.
Ju n g m a n t e ve u m a "fid e lid a d e a o e ve n t o ", e o q u e e st a va e scr e ve n d o n ã o e r a
p a r a se r c o n fu n d i d o c o m ficção . O esboço c o m e ç a c o m u m a c o m u n i c a ç ã o ao s
"M e u s Am i g o s ", e e st a fr ase o c o r r e fr e q u e n t e m e n t e . A p r i n c i p a l d ife r e n ç a e n -
t r e o s Livros Negros e o Líber Novus é q u e o s p r i m e i r o s fo r a m e scr it o s p a r a o u s o
p e sso a l d e Ju n g, e p o d e m se r c o n sid e r a d o s o r e gist r o d e u m e xp e r i m e n t o , e n -
q u a n t o q u e o se gu n d o é e n d e r e ç a d o a o p ú b lic o e a p r e se n t a d o n u m a fo r m a p a r a
ser l i d o p o r o u t r a s p esso as.
E m n o ve m b r o d e 19 14, Ju n g e s t u d o u d e t a lh a d a m e n t e Assim falava Zaratustra,
d e N i e t z s c h e , q u e e le h a vi a l i d o p r i m e i r o e m s u a ju ve n t u d e . Re c o r d o u m a is
t a r d e q u e "e n t ã o , d e r e p e n t e , o e s p ír it o se a p o d e r o u d e m i m e m e c a r r e go u
p a r a u m p a ís d e se r t o n o q u a l l i Za r a t u s t r a " 9 2 . E l e fo r t e m e n t e d e u fo r m a à e s -
m a t e r i a l e m u m a sé r ie d e li vr o s c o m p o s t o s d e c a p ít u lo s cu r t o s. M a s , e n q u a n t o
Za r a t u s t r a p r o c l a m a va a m o r t e d e D e u s , Líber Novus d e s e n h a o r e n a s c i m e n t o d e
n e s t a é p o c a , q u e t a m b é m i n fo r m a a e s t r u t u r a d o t r a b a l h o 9 3 . Líber Novus d e s e n h a
a d e s c id a d e Ju n g ao I n fe r n o . M a s e n q u a n t o D a n t e p ô d e se u t i l i z a r d e u m a
i n d i vi d u a l . O p a p e l d e Fi l ê m o n n o t r a b a lh o d e Ju n g t e m a n a lo gia s c o m a q u e le
d e Za r a t u s t r a n o d e N i e t z s c h e e d e Vi r g i l i o n o d e D a n t e .
N o Esboço, c e r c a d e c i n q u e n t a p o r c e n t o d o m a t e r i a l é r e t ir a d o d i r e t a m e n t e
p r e e n d e r a t é q u e p o n t o os e ve n t o s d e scr it o s n as fa n t a sia s a p r e s e n t a va m , d e
Ju n g h a vi a i n t r o d u z i d o u m a d is t in ç ã o e n t r e i n t e r p r e t a ç ã o n o n íve l o b je t ivo ,
n o q u a l o b je t o s d o s o n h o e r a m t r a t a d o s c o m o r e p r e s e n t a ç õ e s d e o b je t o s r e -
p o d e - se c a r a c t e r iz a r se u p r o c e d i m e n t o a q u i c o m o u m a t e n t a t i va d e i n t e r p r e t a r
t i va m e n t e , m a s as vê d e s c r e ve n d o o fu n c i o n a m e n t o d e p r in c íp io s p s ic o ló gic o s
ger a is n e le ( t a is c o m o a r e la ç ã o e n t r e i n t r o ve r s ã o e e xt r o ve r s ã o , p e n s a m e n -
t o e p r a z e r , e t c ) , e d e s c r e ve n d o e ve n t o s lit e r a is o u s im b ó lic o s q u e e s t ã o p a r a
a co n t e ce r . As s i m , a se gu n d a c a m a d a d o Esboço r e p r e s e n t a a p r i m e i r a e xt e n s a
"se gu n d a c a m a d a " é e m si m e s m a u m e xp e r i m e n t o h e r m e n ê u t i c o . N u m s e n t i -
p r ó p r i a in t e r p r e t a ç ã o .
93 Em Livro Negro 2, Jung citou certos cantos do "Purgatório" em 26 de dezembro de 1913, p. 104. Cf. adiante,
nota 213, p. 177.
94 Em 1913, Maeder referira-se à "excelente expressão" de Jung, "nível objetivo" e "nível subjetivo" (Úber
das Traumproblem". Jahrhuchfurpsychoanalytischeunâpsychopatologische Forschungen, 5,1913, p. 657-658). Jung
discutiu isso na Sociedade Psicanalítica de Zurique em 30 de janeiro de 1914, MSZ.
I N T RO D U ÇÃO 29
j a m n u m e r o s a s . E l e e s c o lh e u c o n s c i e n t e m e n t e d e i xa r d e la d o a c a d e m ic is m o s .
A i n d a a s s im , as fa n t a sia s e as r e fle xõ e s n o Líber Novus sã o as d e u m scholar e, d e
fat o, m u i t o d e s u a a u t o e xp e r i m e n t a ç ã o e d a c o m p o s i ç ã o d e Líber Novus o c o r r e u
e m s u a b ib lio t e c a . É b e m p o s s íve l q u e ele t ive sse a cr e sce n t a d o r e fe r ê n c ia s se
t ive sse d e c id id o p u b l i c a r o t r a b a lh o .
D e p o i s d e c o m p l e t a r o Esboço m a n u s c r i t o , Ju n g m a n d o u d a t ilo gr a fá - lo , e o
e d it o u . N u m m a n u s c r i t o , fez a lt e r a ç õ e s a m ã o ( r e fi r o - m e a est e m a n u s c r i t o
c o m o Esboço Corrigido). A ju lga r p ela s a n o t a ç õ e s , p a r e ce q u e ele o d e u a a lg u é m
p a r a le r ( a l e t r a n ã o é d e E m m a Ju n g , T o n i W o l f f o u M a r i a M o l t z e r ) , q u e e n t ã o
c o m e n t o u a e d iç ã o d e Ju n g, i n d i c a n d o q u e a lgu m a s se çõ e s q u e ele i n t e n c i o n a va
c o r t a r d e ve r i a m p e r m a n e c e r 9 5 . A p r i m e i r a se ç ã o d o t r a b a lh o - s e m t ít u lo , m a s
e fe t iva m e n t e Líber Prím us — fo i c o m p o s t a e m p e r ga m in h o . Ju n g e n t ã o e n c o m e n -
d o u u m gr a n d e fó lio d e m a is d e 6 0 0 p á gin a s , e n c a d e r n a d o e m c o u r o ve r m e l h o ,
aos e n c a d e r n a d o r e s E m i l St ie r li. A l o m b a d a t r a z o t ít u lo , Líber Novus. E l e e n t ã o
i n s e r i u as p á gin a s e m p e r g a m i n h o n o vo l u m e , q u e c o n t i n u a c o m Líber Secundus.
A o b r a e s t á o r ga n iz a d a c o m o u m a i l u m i n u r a m a n u s c r i t a m e d i e va l, ca ligr a fa d a ,
e n c a b e ç a d a p o r u m a t á b u a d e a b r e via ç õ e s . Ju n g d e u ao p r i m e i r o l i vr o o t ít u lo
d e " O C a m i n h o Q u e A i n d a Vi r á ", e c o lo c o u lo go a b a ixo d isso a lgu m a s c it a ç õ e s
d o l i vr o d e Isa ía s e d o Eva n g e lh o Se gu n d o Jo ã o . As s i m , fo i a p r e se n t a d o c o m o
u m t r a b a lh o p r o fé t ic o .
N o vo l u m e caligr afad o , Ju n g p i n t o u e m tem pura ( c a l e c o l a ) , e e scr e ve u c o m
t in t a . O su ave s o m b r e a m e n t o d a e s c r it a n o vo l u m e caligr afad o d e n o t a q u a n d o a
t i n t a e st a va acab an d o . D e m a n e i r a clássica, ele fez fu r o s d e a lfin e t e e t e r i a u sa d o
b a r b a n t e s p a r a d e se n h a r as lin h a s a lá p is p a r a t o r n a r as p á gin a s u n ifo r m e s .
N o Esboço, Ju n g d i vi d i u o m a t e r i a l e m ca p ít u lo s. N o c u r s o d a t r a n s c r iç ã o
p a r a o vo l u m e d e c o u r o ve r m e l h o , ele a lt e r o u a lgu n s t ít u lo s d e c a p ít u lo s , a cr e s-
c e n t o u o u t r o s, e e d i t o u o m a t e r i a l m a is u m a ve z . O s co r t e s e a lt e r a ç õ e s fo r a m
p r e d o m i n a n t e m e n t e à se gu n d a c a m a d a d e i n t e r p r e t a ç ã o e e la b o r a ç ã o , e n ã o
ao p r ó p r i o m a t e r i a l d e fa n t a sia , e c o n s i s t i r a m p r i n c i p a l m e n t e n u m e n c u r t a -
m e n t o d o t e xt o . E e st a se gu n d a c a m a d a q u e Ju n g c o n t i n u a m e n t e r e e la b o r o u .
N a t r a n s c r iç ã o d o t e xt o p a r a e st a e d içã o , essa se gu n d a c a m a d a fo i i n d i c a d a , d e
fo r m a q u e a c r o n o lo gia e a c o m p o s i ç ã o e s t ã o visíve is. C o m o os c o m e n t á r i o s d e
95 Por exemplo, na p. 39 do Esboço corrigido, "Espantoso! Por que cortar?" está escrito à margem. Jung
evidentemente considerou este conselho e reteve as passagens originais. Cf. adiante p. 136.
3o LÍ BER N O V U S
Ju n g n a se gu n d a c a m a d a às ve z e s r e fe r e m - s e i m p l i c i t a m e n t e a fa n t a sia s q u e s ã o
e n c o n t r a d a s m a is a d ia n t e n o t e xt o , é t a m b é m ú t il l e r as fa n t a sia s d i r e t a m e n -
t e e m s u a s e q u ê n c ia c r o n o ló gic a , se gu id o d e u m a c o n t í n u a l e i t u r a d a se gu n d a
cam ad a.
Ju n g e n t ã o i l u s t r o u o t e xt o c o m a lgu m a s p in t u r a s , in ic ia is h is t o r ia d a s , b o r -
d a d u r a s o r n a m e n t a i s , e m a r ge n s. I n i c i a l m e n t e as p i n t u r a s se r e fe r e m d i r e t a -
e m se u p r ó p r i o se n t id o . A c o m b i n a ç ã o d e t e xt o e i m a g e m l e m b r a as i l u m i n u r a s
d e W i l l i a m Bl a k e , c o m c u ja o b r a Ju n g t i n h a c e r t a fa m i l i a r i d a d e 9 6 .
q u e i n d i c a q u e elas fo r a m c u id a d o s a m e n t e co m p o st a s, c o m e ç a n d o c o m r a s c u -
n h o s a lá p is q u e fo r a m d e p o is e la b o r a d o s 9 7 . A c o m p o s i ç ã o d a s o u t r a s im a ge n s
p r o va ve lm e n t e s e gu ir a m p r o c e d i m e n t o s e m e lh a n t e . D a s p i n t u r a s d e Ju n g q u e
s o b r e vive r a m , é s u r p r e e n d e n t e q u e elas d ê e m u m sa lt o t ã o a b r u p t o d a s p a is a -
Ar t e e a Escola de Zurique
H o j e a b i b l i o t e c a d e Ju n g c o n t é m u n s p o u c o s l i vr o s d e a r t e m o d e r n a , e m b o r a
a lgu n s l i vr o s p o s s a m t e r p r o va ve l m e n t e se d is p e r s a d o ao lo n go d o s a n o s. E l e
t i n h a u m c a t á l o g o d o s t r a b a lh o s gr á fic o s d e O d i l o n Re d o n , a s s i m c o m o u m
e s t u d o s e u 9 8 . E l e p r o va ve l m e n t e c o n h e c e u o t r a b a lh o d e R e d o n q u a n d o e s -
t a va e m P a r is . Fo r t e s e co s d o m o v i m e n t o s i m b o l i s t a a p a r e c e m n a s p i n t u r a s
d o Líber Novus.
96 Em 1921, ele citou BLAKE . The Marriage of Heaven and Hell. O C , 6 §, 42211., § 460. • Em Psicologia e alquim ia ele
se refere a duas pinturas de Blake. O C , 12, fig. 14 e 19. • Em 11 de novembro de 1948, ele escreveu a Piloo
Nanavutty: "Acho Blake um estudo estonteante, já que ele conseguiu ajuntar tanto de um conhecimento
não digerido em suas fantasias. Assim como as vejo, elas são uma produção artística em vez de uma
representação autêntica de processos inconscientes" (Cartas, 2, p. 513-514).
97 Cf. adiante, Apêndice A.
98 R E D O N . Oeuvregraphiquecomplet. Paris: Secrétariat, 1913. • M ALLE RI O , André. Odilon Redon: Peintre,
Dessinateur et Graveur. Paris: H en ri Floury, 1923. H á também um livro sobre arte moderna, com uma
posição algo crítica: RAP H AEL, Max. Von Monetzu Picasso: Grundzúge einer Àsthetik und Entwicklung der
Modernen Malerei. Munique: Delphin Verlag, 1913.
I N T RO D U ÇÃO 3i
ram -lh e profun da im pressão. Parece que esses trabalh os t iveram u m im pact o
em suas pin t u ras: o uso de cores fortes, form as de m osaico, e figuras b id im en -
sion ais sem o uso d a p er sp ect iva".
Q u a n d o est ava em N o va Yo r k , e m 19 13, ele p r ovavelm en t e fo i ao A r -
m o r y Sh ow, que foi a p r im e ir a gran d e exib ição in t e r n a cio n a l de art e m o -
d er n a n a Am é r ic a ( a m o st r a foi at é 1$ de m ar ço, e Ju n g p a r t iu p ar a N o va
Yo r k em 4 de m a r ço ) . Ele se r e fe r iu ao qu ad ro Nu descendo um a escadaria, de
Mar eei Du ch a m p s, em seu sem in ár io de 19 2 5, que n a m o st r a cau sou fu -
r o r 10 0 . Nesse sem in ár io, t am b ém r efer iu -se a t er est u d ad o o d esen volvi-
m en t o d a p in t u r a de Picasso. D a d a a falt a de evid ên cia de est u d os ext en sos,
o con h ecim en t o de Ju n g sobre art e m o d er n a p rovavelm en t e d erivava-se
m ais im ed iat am en t e de exp er iên cia d ir et a.
Du r an t e a Pr im eir a Gu e r r a Mu n d ial, houve con tatos en t re os m em bros da
Escola de Zu r iq u e e os art ist as. Am b o s eram part e de m ovim en t os de avant-gar-
de, partes de círculos sociais en t r elaçad os 10 1. Em 19 13, Er ik a Schlegel p rocu rou
Ju n g para an álise. El a e seu m arido, Eu gen Schlegel, eram am igos de To n i W o l -
ff. Er ik a Schlegel era irm ã de Soph ie Taeuber, e t orn ou -se a bibliot ecária do
Clu b e Psicológico. Mem bros do Clu b e Psicológico eram con vidados a alguns
dos even tos do m ovim en t o Dad á. N a celebração da abert u ra da Galer ia Dad á
em 2 9 de m arço de 1917, H u go Ba ll repara em m em bros do Clu b e n a au d iên -
c i a 10 2 . O program a daquela n oit e in cluía dan ças abst raías de Soph ie Taeu ber e
poem as de H u go Ball, H an s Ar p e Tr ist an Tzara. Soph ie Taeuber, que h avia es-
tudado com Lab an , organ izou u m aula de dan ça para m em bros do Clu b e ju n t o
com Ar p . U m baile de m áscaras t am bém acon teceu e ela desen h ou as fan t a-
sia s 10 3 . Em 19 18 , ela apresen t ou u m espet áculo de m arion et es, "Ki n g Deer ",
em Zu riq u e. Passava-se n o bosque ju n t o ao Bu rgh õlzli. Fr eu d An alyt iku s, em
lu t a com Dr . O ed ip u s Com p lex, é t ran sform ado n u m papagaio pela Ur - Lib id o ,
parodicam en t e puxan do temas de Tranformações e símbolos da libido, de Jun g, e seu
9 9 Ju n g vis it o u Ra ve n a n o va m e n t e e m a b r il d e 1914.
10 0 Introductíon to Jungian Psychology, p. 59.
101 Cf. Z U C H , Ra in e r . DíeSurrealisten und C.G.Jung: St u d ie n z u r Re z e p t io n d er a n a lyt isch e n Psych ologie i m
Su r r e a lism u s a m Be isp ie l vo n M a x Er n s t , Vi c t o r Br a u n e r u n d H a n s Ar p . W e im a r : V D G , 2 0 0 4 .
102 Flight out of Tim e, p. 102.
103 S T R O E H , Gr e t a . "Bio gr a p h ie ". I n : Sophie Taeuber: 15 D é c e m b r e 19 8 9 - M a r s 19 9 0 , Mu sé e d a r t m o d e r n e
de la ville d e Par is. Par is: Pa r is-m u sé e s, 19 89 , p. 124. • En t r e vis t a c o m Al i n e Va la n gin , ar q u ivo b io gr á fico de
Ju n g, Co u n t w a y Li b r a r y o f Me d icin e , p. 29 .
32 LI BE R N O VU S
c o n flit o c o m F r e u d 10 4 . En t r e t a n t o , as r e la ç õ e s e n t r e o c ír c u lo de Ju n g e a lgu n s
dos dadaíst as ficaram m ais tensas. E m m aio de 1917, Em m y H en n in gs escreveu
a H u go Ball que o "psicoclu be" t in h a ido e m b o r a 10 5 . E m 19 18 , Ju n g cr it icou o
m ovim en t o Dad á n u m a pu blicação suíça, o que n ão escapou da at en ção dos d a-
d a íst a s 10 6 . O elem en t o crít ico que separou o trabalh o pict órico de Ju n g daquele
dos dadaíst as foi sua ênfase ext rem ad a n o significado, n o sen tido.
As au t oexperim en t ações e os experim en t os criat ivos de Ju n g n ão ocorreram
n u m vácuo. Du r an t e esse períod o, h avia gran de in teresse em art e e n a p in t u r a
em seu círculo. Alp h on se Maeder escreveu u m a m on ografia sobre Fer d in an d
H o d le r 10 7 , e m an t eve u m a correspon d ên cia am igável com e le 10 8 . Por volt a de
19 16 , Maeder teve u m a série de visões ou fantasias acordado, que ele p u blicou
sob pseu d ón im o. Q u an d o com en t ou com Ju n g sobre tais even tos, Ju n g disse:
"O que, você t a m b é m ?" 10 9 H a n s Sch m id t am bém escrevia e p in t ava suas fan -
tasias em algo sem elh an te ao Líber Novus. Molt zer era in t eressada em au m en t ar
as atividades art íst icas da escola de Zu riq u e. Ela sen t ia que n o círculo deles
faltavam art ist as e con siderava Rik lin u m m o d e lo 110 . J.B. Lan g, que t in h a sido
an alisado por Rik lin , com eçou a p in t ar quadros sim bólicos. Molt zer t in h a u m
livro que ela ch am ava de sua Bíblia, n o qual ela desen hava e escrevia. El a reco-
m en dava a sua pacien t e Fan n y Bo wd it ch Ka t z que fizesse o m esm o 111.
Em 19 19 , Rik lin expôs alguns de seus quadros com o parte da "N e w Life"
n o Ku n st h au s em Zu r iq u e, descritos com o u m grupo de expression ist as suíços,
Para Ju n g, Fr an z Rik lin parecia ser algo com o u m doppelganger, cujo dest in o
ele se preocupava em evitar. Essa afirm ação t am bém in d ica a relat ivização que
fazia Ju n g do status da arte e da ciên cia à qual ele chegou por m eio de sua au t o-
experim en t ação.
Assim , o Líber Novus n ão era de form a algum a u m a atividade pecu liar ou
idiossin crát ica, t am pouco o prod u t o de u m a psicose. E m vez disso, ele in d ica as
in t ersecções tão p róxim as en t re a exp erim en t ação art íst ica e a psicológica com
a qual t an t os in d ivíd u os est iveram engajados n aquela época.
O e xp e r im e n t o co le t ivo
Em 19 15, Ju n g m an t eve u m a lon ga corresp on d ên cia com seu colega H a n s
Sch m id sobre a qu est ão do en t en d im en t o de tipos psicológicos. Essa corre-
spon d ên cia n ão d á sin ais diret os da au t oexperim en t ação de Ju n g, e in d ica que
as teorias que ele desen volveu duran t e esse p eríod o n ão em ergiram som en te
de sua at ividade de im agin ação at iva, mas que t am bém , em part e, con sist iram
do t eorizar psicológico con ven cion al 114 . E m m arço de 19 1$, Ju n g escreveu para
Sm it h Elyje liffe :
O r et or n o dos m or t os
Em m eio ao m assacre sem preceden tes que a gu erra t rou xe, o t em a do ret or-
n o dos m ort os estava dissem in ado, com o n o film e de Ab e l Gan ce, faccuse123.
A badalada d a m ort e t am bém levou a u m in teresse ren om ado n o espirit ism o.
Ap ó s aproxim ad am en t e u m ano, Ju n g com eçou a escrever n ovam en t e nos Liv-
ros Negros, em 19 1$, com u m a n ova série de fantasias. Ele já h avia com pletado o
esboço m an u scrit o do Líber Prímus e do Líber Secundus124. N o in ício de 19 16 , Ju n g
exp erim en t ou u m a série im pression an t e de eventos parapsicológicos em su a
casa. E m 19 23, ele n ar r ou esses even tos a Ca r y de An gu lo (depois Bayn es). El a
o regist rou da seguinte form a:
peixes ruin s e n en hum dos bons". Então, depois que seu filho fez este dese-
nho, ele ficou bem contente. Na mesma noite, duas de suas filhas pensaram
ter visto assombrações em seus quartos. No dia seguinte, você escreveu os
"Sete sermões aos m ortos", e você sabia que depois disso nada mais pert ur-
baria sua família, e nada mais de fato aconteceu. É claro que eu sabia que
você era o pescador no desenho de seu filho, e você me disse isso, mas o
m enino não sabia I2S.
125 CFB.
126 Mem órias, p. 169.
127 C f ad ian t e, p. 297.
38 LI BE R N O VU S
t ran sform ação n a im agem d ivin a ocid en t al. Só em 19 52, em Resposta a Jó, Ju n g
elaboraria esse t em a em público.
Ju n g h avia estudado a lit er at u r a do gn ost icism o n o p eríod o de leit u ras p re-
lim in ares para seu Transformações e símbolos da libido. Em jan eiro e ou t u bro de 19 15,
du ran t e o serviço m ilit ar, est udou as obras dos gn óst icos. Dep ois de t er escri-
t o os Septem Serm ones n os Livros Negros, Jung recop iou -os n u m esb oço caligráfi-
M EF I ST Ó F ELES:
U m trípode brilh an te m ost rar-t e-á
que estás no terreno mais profundo, o mais profundo de todos
Por sua luz verás as Mães:
umas estão sentadas, outras estão de pé e andam,
como pode acontecer. Formação, transformação
a recreação etern a da mente eterna.
En voltos em imagens de todas as criaturas,
eles não te veem , pois veem apenas vultos.
Então, cobra ânimo, pois o perigo é grande,
e vai direto até esse trípode,
toca-o com a ch ave!138
137 Cf. Ap ê n d i c e A .
138 Fausto, 2, At o I , 6287S.
139 C a r t a in éd it a , AFJ. Exis t e t a m b é m u m q u ad r o se m d a t a d e M o lt z e r q u e p ar ece ser u m m a n d a la
q u ad r ad a, q u e ela d escr eve e m b r eve n o t a co m o " U m a a p r e se n t a çã o p ict ó r ica d a In d ivid u a çã o o u d o
p r ocesso d e In d ivid u a çã o " ( Bib lio t e ca , Cl u b e Psico ló gico , Zu r i q u e ) .
140 Mem órias, p. 174. As fon t es m a is im ed ia t a s p a r a a in sp ir a çã o d e Ju n g sob r e o co n ce it o d o si- m e sm o
p a r e ce m ser as co n ce p çõ e s d e At m a n / Br a h m a n n o h in d u ísm o , q u e ele d iscu t iu e m seu Tipos psicológicos d e
1921, e e m cer t as p ar t es d e seu Zaratustra d e N ie t z sch t e . Cf. ad ian t e, n o t a 29, p. 421.
I N T RO D U ÇÃO 4i
141 Ib id .
142 N a p. 23 d o m a n u scr it o d e Aprofundam entos, é in d ica d a u m a d at a: "27/ u/ 17", q u e su gere q u e fo r a m escr it os
n o segu n d o sem est r e d e 1917 e, p o r t an t o , ap ó s as e xp e r iê n cia s d o s m an d alas e m Ch a t e a u d ' O e x.
143 Cf. ad ian t e, p. 407S.
144 Cf. ad ian t e, p. 4 26 .
42 LI BE R N O VU S
A tarefa crít ica de Ju n g de "exam in ar em det alh es" suas fantasias era a de
d iferen ciar as vozes e as personagens. Por exem plo, nos Livros Negros é Ju n g que
d it a os Sermones aos m ort os. E m Aprofundamentos n ão é Ju n g, mas Filêm on que
os d iz. Nos Livros Negros a p rin cip al figura com qu em Ju n g t em diálogos é sua
alm a. E m algumas seções do Líber Novus é, por sua vez, a serpen te e o pássaro.
N u m a con versa de jan eiro de 19 16 , sua alm a lh e exp lica que, quan do o Alt o e o
Baixo n ão est ão u n idos ela, se d esped aça em três partes — u m a serpen te, a alm a
h u m an a, e o pássaro ou alm a celest ial, que visit a os deuses. Assim , a revisão de
Ju n g aqui pode ser en carada com o u m reflexo de sua com preen são da n at u reza
t rip art it e de sua a lm a 14 6 .
Du r an t e esse períod o, Ju n g con t in u ou a t rabalh ar em seu m at erial, e h á a l-
guns in dícios de que o d iscu t ia com seus colegas. E m m arço de 19 18 , escreveu a
J.B. Lan g, que lh e h avia en viado algumas de suas próprias fantasias:
Não gostaria de dizer nada mais a não ser en corajá-lo a con t in uar com
essa abordagem pois, como você mesmo tão corretam en te observou, é
m uit o im port an t e que experim en tem os os con teúdos do in con scien te an -
tes de form arm os qualquer opin ião a respeito. Con cord o bastante com
você que temos que abraçar o con h ecim en to da gnose e do neoplatonism o,
já que estes são os sistemas que con têm o m at erial adequado para form ar a
base de um a t eoria do espírito in con scien te. Ven h o trabalhando com isto
há bastante tempo, e tive grandes oportunidades de comparar, ao menos
parcialm en te, m in has experiên cias com as de outros. Est a é a razão de ter
ficado tão satisfeito em escutar praticam en te as mesmas coisas de você.
Est ou contente que você t en h a descoberto por si mesmo essa área de t ra-
balho que está pron t a a ser atacada. At é agora, eu não t in h a trabalhadores.
Est ou feliz que queira ju n t ar forças comigo. Con sid ero m uit o im port an t e
que você ext raia seu próprio m at erial do in con scien te sem influências, tão
cuidadosamente quanto possível. Meu m at erial é bastante volumoso, m u i-
O con t eú d o
O Líber Novus apresen ta assim u m a série de im agin ações ativas ju n t o com a t en -
t at iva de Ju n g de com preen der seu significado. Est e trabalh o de com preen são
abrange m u it os fios en t relaçados: u m a t en t at iva de com preen der-se a si m es-
m o e de in t egrar e desen volver os vários com pon en t es de sua person alidade;
u m a t en t at iva de com preen der a est ru t u ra da person alidade h u m an a em geral;
u m a t en t at iva de com preen der a relação do in d ivíd u o com a sociedade de h oje
e com a com un idade dos m ort os; u m a t en t at iva de com preen der os efeitos p si-
cológicos e h ist óricos do crist ian ism o; e u m a t en t at iva de com preen der a fu t u ra
evolução religiosa do O cid en t e. Ju n g discute m u it os outros tem as n a obra, en -
t re os quais: a n at u reza do aut ocon h ecim en t o, a n at u reza d a alm a, as relações
en t re pen sar e sen t ir e os tipos psicológicos, a relação en t re a m asculin idade e
a fem in ilid ad e in t eriores e ext eriores, a un ião dos opostos, a solidão, o valor do
con h ecim en t o e da in st rução, o status da ciên cia, o sign ificado dos sím bolos e
com o eles devem ser en t en didos, o sen t ido da guerra, a lou cu ra, a lou cu ra d ivi-
n a e a psiqu iat ria, com o a Im it ação de Cr ist o deve ser en t en d id a h oje, a m ort e
de Deu s, a im port ân cia h ist órica de Niet zsch e, e a relação en te m agia e razão.
O t em a geral do livro é com o Ju n g recupera sua alm a e supera o m al-est ar
con t em p orân eo d a alien ação espirit u al. Ist o é fin alm en t e alcan çado p ossib ili-
tan do o ren ascim en t o de u m a n ova im agem de Deu s em sua alm a e d esen vol-
ven do u m a n ova cosm ovisão n a form a de u m a cosm ologia psicológica e t eoló-
gica. O Líber Novus apresen ta o p rot ót ip o da con cepção ju n gu ian a do processo
de in dividuação, que ele con siderava a form a u n iversal do desen volvim en t o
psicológico in d ivid u al. O p róp rio Líber Novus pode ser com preen dido, por u m
lado, com o descreven do o processo de in dividu ação de Ju n g e, por out ro, com o
a elaboração que ele fez deste con ceit o com o u m esquem a psicológico geral.
N o in ício d o livr o , Ju n g reen con t ra sua alm a e depois em barca n u m a sequên cia
de aven turas fan tásticas, que form am u m a n arrat iva con sequen te. Ele percebeu
que, até en t ão, h avia servido ao espírit o da época, caract erizado pelo uso e pelo
valor. Alé m disso, h avia u m espírit o das profun dezas, que levava às coisas da
alm a. D e acordo com a autobiografia post erior de Ju n g, o espírit o da época
correspon de à person alidade n ú m ero i e o espírit o das profun dezas correspon -
de à person alidade n ú m ero 2. Por isso, esse p eríod o pod eria ser con siderado
u m ret orn o aos valores da person alidade n ú m ero 2. O s capít ulos seguem u m
form at o part icu lar: com eçam com a exposição de fantasias visu ais dram át icas.
Nelas, Ju n g en con t ra u m a série de personagens em vários con t ext os e dialoga
com elas. Con fron t a-se com acon t ecim en t os in esperados e afirm ações ch o-
can tes. Dep ois t en t a com preen der o que acon teceu e form u lar o sign ificado
desses eventos e afirm ações em con cepções e m áxim as psicológicas gerais. Ju n g
acredit ava que o sign ificado dessas fantasias devia-se ao fato de p rovirem da
im agin ação m it op oét ica que faltava n a presen te época racion al. A tarefa da i n -
dividu ação está em estabelecer u m diálogo com as personagens da fan t asia — ou
con t eú d os do in con scien t e colet ivo - e in t egrá-las n a con sciên cia, recu p eran -
do assim o valor da im agin ação m it op oét ica que h avia sido p erd id a n a época
m od ern a, recon cilian d o desse m odo o espírit o da época com o espírit o das p r o-
fundezas. Essa tarefa ir ia con st it u ir u m leítmotíf de sua obra eru d it a posterior.
" U m a n o va fo n t e d e vi d a "
Em 19 16 , Ju n g escreveu diversos ensaios e u m pequen o livro nos quais com eçou
a t en t ar t rad u zir alguns dos tem as do Líber Novus em lin guagem psicológica con -
t em p orân ea e a reflet ir sobre o sign ificado e os aspectos gerais de sua at ivi-
dade. Sign ificat ivam en t e, nessas obras ele apresen t ou os p rim eiros esboços das
grandes com pon en t es de sua psicologia m adu ra. U m a descrição cabal desses
ensaios est á fora do h orizon t e desta in t rodu ção. A visão geral que dam os a se-
guir destaca elem en tos que se ligam m ais d iret am en t e ao Líber Novus.
Nas obras escritas en t re 19 11 e 19 14 , Ju n g ocupou-se p rin cip alm en t e em
form u lar u m a explicação est ru t u ral do fu n cion am en t o h u m an o geral e da p si-
copatologia. Além de sua prim eira teoria dos complexos, vemos que ele já havia
formulado concepções de u m inconsciente filogeneticamente ad qu irid o povoa-
I N T RO D U ÇÃO 45
152 Ib id ., § 4 6 8 .
153 Ib id ., § 5 2 1.
I N T RO D U ÇÃO 47
dele da sociedade. Esses novos valores possibilit avam com pen sar o coletivo. A
in d ivid u ação era para poucos. O s in su ficien t em en t e criat ivos d everiam antes
restabelecer a con form idade colet iva com a sociedade. O in d ivíd u o precisava
n ão só criar novos valores, mas t am bém valores socialm en t e recon h ecíveis, já
que a sociedade t in h a "d ireit o a valores utilizáveis'154.
Lid o em t erm os d a situação de Ju n g, isto d á a en t en der que esse r o m p im en -
to com a con form idade social de procu rar sua "in d ivid u ação" levara-o à id eia
de que precisava p rod u zir valores socialm en t e realizáveis com o u m a expiação.
Ist o levou a u m d ilem a: será que a m an eira com o Ju n g en carn ou esses n ovos va -
lores n o Líber Novus seria socialm en t e aceitável e recon h ecível? Esse com p rom is-
so com as exigên cias da sociedade separava Ju n g do an arqu ism o dos dadaíst as.
A segunda palest ra foi sobre "In d ivid u ação e colet ividade". Ju n g afirm a-
va que in d ivid u ação e colet ividade eram u m par de opostos relacion ados pela
culpa. A sociedade exigia im it ação. At ravés do processo de im it ação, o in d i-
víd u o pod ia obter o acesso a valores que são p róp rios dele. N a an álise, "pela
im it ação o pacien te apren de a in dividuação, porque ela reat iva os valores que
são p róp rios d ele"155 . E possível ler ist o com o u m com en t ário sobre o papel da
im it ação nos t rat am en t os an alít icos daqueles pacien tes seus a qu em Ju n g h avia
agora est im ulado a em preen der processos sem elh an tes de desen volvim en t o. A
afirm ação de que esse processo evocava os valores preexist en t es do pacien t e era
u m con tragolpe à acusação de sugestão.
Em n ovem bro, en quan t o prest ava serviço m ilit ar em H er isau , Ju n g escre-
veu u m en saio sobre "A fun ção t ran scen den t e", publicado só em 19 57. Al i Ju n g
descrevia o m ét od o de t razer à t on a e desen volver fantasias que ele m ais tarde
ch am ou de im agin ação at iva, e expu n h a sua fu n d am en t ação t erapêut ica. Esse
en saio pode ser con siderado u m relat o p rovisório dos progressos a respeit o
d a au t oexp erim en t ação de Ju n g e pode ser proveit osam en t e con siderado u m
prefácio ao Líber Novus.
Ju n g observou que a n ova at it ude ad qu irid a com a an álise t orn ava-se ob-
soleta. O s m at eriais in con scien t es eram n ecessários para com plet ar a at it ude
con scien t e e corrigir-lh e a parcialidade. Mas, com o a t en são de en ergia era b ai-
xa n o sonho, os sonhos eram expressões in feriores de con t eú d os in con scien t es.
156 AFJ.
157 O C , 8/ 2, § 155.
158 Ib id ., § 170-171. A p r a n ch e t a é u m a p eq u en a t áb u a d e m a d e ir a n os n avios de cab ot agem u sad a p a r a
facilit ar a e scr it a au t o m át ica .
I N T RO D U ÇÃO 49
Para algumas pessoas, observava Ju n g, era sim ples n ot ar a "ou t ra" voz n a
escrit a e respon der a ela do pon t o de vist a do eu: " E exat am en t e com o se se
travasse u m diálogo en t re duas pessoas com d ireit os igu ais..."159 Esse d iálogo
levou à criação da fun ção t ran scen den t e, o que resu lt ava n u m a am pliação da
con sciên cia. Essa descrição dos diálogos in t eriores e dos m eios usados para
evocar fantasias n u m estado de vigília represen t a a tarefa do p róp rio Ju n g nos
Livros Negros. A in t eração en t re form u lação criat iva e com preen são correspon de
ao trabalh o de Ju n g n o Liber Novus. Ju n g n ão p u blicou esse ensaio. Ele obser-
vou m ais t arde que n u n ca t er m in ou seu trabalh o sobre a fun ção t ran scen den t e,
porque o fizera sem grande e m p e n h o 16 0 .
Em 1917, Ju n g p u blicou u m pequen o livro com u m longo t ít ulo: Psicologia
dos processos inconscientes: um a visão geral da m oderna teoria e m étodo da psicologia analítica. N o
prefácio, datado de dezem bro de 19 16 , Ju n g proclam ava que os processos p si-
cológicos que acom pan h avam a gu erra h aviam t razid o o problem a do in con s-
cien t e caót ico para o p rim eiro plan o da aten ção. N o en t an t o, a psicologia do
in d ivíd u o correspon d ia à psicologia da n ação e apenas a t ran sform ação da a t i-
tude do in d ivíd u o pod ia p rod u zir u m a ren ovação cu lt u r a l 16 1. Ist o art icu lava a
ín t im a in t ercon exão en t re even tos in d ivid u ais e eventos coletivos que ocupava
o cen t ro do Liber Novus. Para Ju n g, a con ju n ção en t re suas visões precogn it ivas e
a eclosão da guerra t orn ara eviden tes as profun das con exões su blim in ais en t re
fantasias in d ivid u ais e acon t ecim en t os m u n d iais — e, port an t o, en t re a psicolo-
gia do in d ivíd u o e a d a nação. O que se fazia n ecessário agora era elaborar essa
con exão m ais detalh adam en te.
Ju n g observou que, depois de t er an alisado e in tegrado os con t eú d os do
in con scien t e pessoal, a pessoa opun h a-se às fantasias m it ológicas que b rot a-
vam da cam ada filogen ét ica do in co n scien t e 16 2 . Psicologia dos processos inconscientes
forn eceu u m a exposição do in con scien t e colet ivo, suprapessoal, absoluto -
sendo estes t erm os usados in t ercam biavelm en t e. Ju n g afirm ava que a pessoa
159 Ib id ., § 18 6 .
160 M P , p. 38 0 .
161 O C, 7, p . XI I I - XI V
162 Ao fazer u m a r evisão d essa o b r a e m 1943, Ju n g acr escen t o u qu e o in co n scie n t e p essoal "cor r esp on d e
à figu r a da som bra, qu e fr eq u en t em en t e ap arece n os so n h o s" ( O C , 7, § 103). E acr escen t ou a segu in t e
d efin ição d est a figu ra: "som bra é p a r a m i m a p ar t e 'n egat iva d a p er son alid ad e, ist o é, a so m a das
p r op r ied ad es ocu lt as e d esfavo r áveis, das fu n çõ es m a l d esen volvid as e d os co n t e ú d o s d o in co n scie n t e
p essoal" ( O C , 7, § I03n .). Po st e r io r m e n t e , essa fase d o p rocesso d e in d ivid u a çã o fo i d escr it a co m o o
e n co n t r o c o m a so m b r a (cf. O C , 9/ 2, § 13-19).
50 LI BE R N O VU S
Em Psicologia dos processos inconscientes, Ju n g desen volveu sua con cepção dos tipos
psicológicos. O b ser vou que era u m fen óm en o com u m as caract eríst icas psico-
lógicas dos t ipos serem levadas a ext rem os. Por aquilo que ele ch am ou de lei
da en an t iod rom ia, ou in versão para o oposto, en t rou a ou t ra função, a saber,
sen t im en t o para o in t rovert id o e pen sam en t o para o ext rovert id o. Essas fu n -
ções secun dárias en con t ravam -se n o in con scien t e. O desen volvim en t o da fu n -
ção con t rária levava à in dividuação. À m ed id a que a fun ção con t rária n ão era
aceit ável ao con scien t e, era n ecessária u m a t écn ica especial para chegar a u m
acordo com ela, a saber, a prod u ção d a fun ção t ran scen den t e. O in con scien t e
era u m perigo quan do n ão se estava em h ar m on ia com ele. Mas, com o est a-
belecim en t o d a fun ção t ran scen den t e, cessava a desarm on ia. Esse reequ ilíbrio
p er m it ia o acesso aos aspectos produ t ivos e ben éficos do in con scien t e. O i n -
con scien t e con t in h a a sabedoria e a experiên cia de in con t áveis eras e, por isso,
con st it u ía u m guia in com parável. O desen volvim en t o da fun ção con t rária apa-
rece n a seção "Myst er iu m " do Líber Novus167. A t en t at iva de alcan çar a sabedoria
arm azen ad a n o in con scien t e é d escrit a ao lon go de todo o livro, n o qual Ju n g
pede à sua alm a que lh e diga o que ela vê e o sen t ido de suas fantasias. O i n -
con scien t e é con siderado aqui u m a fonte de sabedoria superior. Ju n g con clu iu
o en saio in d ican d o a n at u reza pessoal e exp erien cial dessas novas con cepções:
"Nossa época está buscan do u m a n ova fon te de vid a. E u en con t rei u m a e bebi
dela e a água t in h a gosto b o m " 16 8 .
O c a m i n h o p a r a o s i- m e s m o
Em 19 18 , Ju n g escreveu u m en saio in t it u lad o "Sobre o in con scien t e", n o qual
observava que todos n ós estam os en t re dois m un dos: o m u n d o da percepção
ext ern a e o m u n d o da percepção do in con scien t e. Essa dist in ção descreve sua
exp eriên cia nessa época. Ele escreveu que Fr ied r ich Sch iller afirm ara que a
aproxim ação destes dois m un dos se fazia por m eio da arte. E m con t raposição,
argum en t ava Ju n g, "a m eu ver, a u n ião da verdade racion al com a verdade ir r a -
cion al deve ser en con t rad a n ão t an t o n a art e, mas m u it o m ais n o sím bolo, pois
é da essên cia do sím bolo con t er am bos os lados, o racion al e o ir r a cio n a l"16 9 . O s
sím bolos, afirm ava ele, p rovin h am do in con scien t e, e a criação de sím bolos era
a fun ção m ais im p ort an t e do in con scien t e. En qu an t o a fun ção com pen sat ória
do in con scien t e sem pre esteve presen te, a fun ção de criação de sím bolos só
esteve presen te quan do estivem os dispostos a recon h ecê-la. Aq u i, vem os que
Ju n g con t in u a evit an d o con sid erar suas prod u ções com o arte. N ã o foi a art e,
m as os sím bolos que t iveram aqui im port ân cia p r im or d ial. O recon h ecim en t o
e a recuperação desta força de criação de sím bolos são descritos n o Líber No-
vus. O livro ret rat a a t en t at iva de Ju n g de en t en der a n at u reza psicológica do
sim bolism o e de con siderar suas fantasias de u m pon t o de vist a sim bólico. Ele
con clu iu que o que foi in con scien t e em qualquer época d et erm in ad a foi apenas
relat ivo e m u t an t e. O que se fazia n ecessário agora era a "reform u lação de nossa
visão do m un do, em con son ân cia com os con t eú d os ativos do in co n scien t e"170 .
Assim , a tarefa que o con fron t ava era a de t rad u zir as con cepções adquiridas
através de seu con fron t o com o in con scien t e, e expressas de form a lit erária e
sim bólica n o Líber Novus, n u m a lin guagem que fosse com pat ível com a perspec-
t iva con t em porân ea.
N o ano seguinte, Ju n g apresen t ou u m en saio n a In glat erra peran t e a Socie-
dade de Pesquisa Psíquica, d a qual era m em bro h on orário, sobre "O s fu n d a-
m en t os psicológicos da cren ça nos esp ír it o s"171. Dist in gu iu duas situações em
que o in con scien te coletivo se t orn ava atuante. N a prim eira, era ativado por u m a
crise n a vid a do in divíduo e pelo colapso das esperanças e expectativas. N a segun-
da, era ativado em tempos de grande con vulsão social, política e religiosa. Nesses
m om en tos, os fatores reprim idos pelas atitudes predom in an tes acum ulam -se n o
in con scien te coletivo. In divíduos fortem en te in t u it ivos t orn am -se conscientes
deles e procu ram t rad u zi-los em ideias com u n icáveis. Se eram bem -sucedidos
em t rad u zir o in con scien t e n u m a lin guagem com u n icável, ist o t in h a u m efei-
to reden tor. O s con t eú d os do in con scien t e t in h am u m efeito pert urbador. N a
p r im eir a situação, o in con scien t e colet ivo pod eria su bst it u ir a realidade, o que
é pat ológico. N a segunda situação, o in d ivíd u o pode se sen t ir desorien tado, mas
o estado n ão é pat ológico. Essa diferen ciação d á a en t en der que, n a opin ião de
Ju n g, sua própria experiên cia en quadrava-se n a segunda categoria - ou seja, a
ativação do in con scien t e colet ivo devido à con vulsão cu lt u ral geral. Port an t o,
170 Ib id ., § 4 8 .
171 O C , 8/ 2, § 570 - 6 0 0 .
I N T RO D U ÇÃO 53
se u t e m o r i n i c i a l d e i m i n e n t e in s a n id a d e e m 1913 e st a va e m s u a in c a p a c id a d e
d e p e r c e b e r essa d ist in çã o .
E m 1918, Ju n g a p r e s e n t o u ao C l u b e P s i c o ló g i c o u m a sé r ie d e s e m i n á r i o s
so b r e s e u t r a b a lh o a r e s p e it o d e t ip o lo g ia e, n e ssa é p o c a , e m p e n h o u - s e n u m a
va s t a p e s q u is a e r u d i t a so b r e esse t e m a . D e s e n vo l ve u e a m p l i o u os t e m a s a r -
t ic u la d o s n e st e s e n sa io s e m 19 21, e m Tipos psicológicos. N o t o c a n t e aos t e m a s
t r a b a lh a d o s n o Liber Novus, a s e ç ã o m a is i m p o r t a n t e d o l i vr o e r a o c a p í t u lo 5:
" O p r o b l e m a d o t ip o n a p o e sia ". A q u e s t ã o fu n d a m e n t a l d i s c u t i d a a q u i fo i
c o m o o p r o b l e m a d o s o p o st o s p o d e r i a se r r e s o lvid o a t r a vé s d a p r o d u ç ã o d o
s í m b o l o d e u n i ã o o u r e c o n c ilia ç ã o . I s t o c o n s t i t u i u m d o s t e m a s c e n t r a is d o
Liber Novus. Ju n g a p r e s e n t o u u m a a n á lis e d e t a lh a d a d a q u e s t ã o d a s o lu ç ã o d o
p r o b l e m a d o s o p o st o s n o h i n d u í s m o , n o t a o is m o , e m M e s t r e E c k h a r t e, n o s
d ia s d e h o je , n a o b r a d e C a r l Sp it t e le r . Es t e c a p ít u lo p o d e se r l i d o t a m b é m
c o m o u m a m e d i t a ç ã o so b r e a lgu m a s d as fo n t e s h is t ó r ic a s q u e i n f o r m a r a m d i -
r e t a m e n t e su as c o n c e p ç õ e s n o Liber Novus. A n u n c i o u t a m b é m a i n t r o d u ç ã o d e
u m m é t o d o i m p o r t a n t e . E m ve z d e d i s c u t i r d i r e t a m e n t e a q u e s t ã o d a r e c o n -
c ilia ç ã o d o s o p o st o s n o Liber Novus, Ju n g p r o c u r o u a n a lo gia s h is t ó r ic a s e t e c e u
c o m e n t á r i o s so b r e elas.
En q u a n t o o e u for ap en as o ce n t r o d o m e u ca m p o co n scien t e, n ã o é id ê n -
t ico ao t o d o de m i n h a p siq u e, m as apen as u m co m p le xo e n t r e ou t r os c o m -
p lexos. P o r isso d ist in go en t r e e u e si-m e sm o . O e u é o su jeit o apen as d e
m i n h a co n sciên cia, m as o si- m e sm o é o su jeit o d o m e u t od o, t a m b é m d a
p siq u e in co n scie n t e . Ne st e sen t id o o si- m e sm o se r ia u m a gr an d eza ( id e a l)
qu e e n ce r r a r ia d e n t r o d ele o eu . O si- m e sm o gost a de ap ar ecer n a fan t asia
in co n scie n t e co m o p er so n alid ad e su p e r io r o u id e a l com o, p o r exem p lo , o
Fausto, de Go e t h e , e o Zaratustra, de N i e t z s c h e 17 2 .
Ju n g e q u i p a r o u a n o ç ã o h i n d u d e Br a h m a n / At m a n ao s i- m e s m o . A o m e s -
m o t e m p o , p r o vi d e n c i o u u m a d e fin iç ã o d a a lm a . A f i r m o u q u e a a l m a p o s s u ía
q u a lid a d e s q u e e r a m c o m p l e m e n t a r e s à p e r s o n a , c o n t e n d o aq u elas q u a lid a d e s
d e q u e a a t it u d e c o n s c ie n t e ca r e cia . Es t e c a r á t e r c o m p l e m e n t a r d a a l m a a fe t a va
t a m b é m se u c a r á t e r se xu a l, d e m o d o q u e o h o m e m t i n h a u m a a l m a fe m i n i n a ,
o u anim a, e a m u l h e r t i n h a u m a a l m a m a s c u l i n a , o u anim us m . I s t o c o r r e s p o n d i a ao
fat o d e q u e h o m e n s e m u l h e r e s t i n h a m t r a ç o s t a n t o m a s c u lin o s q u a n t o fe m i -
n in o s . O b s e r v o u t a m b é m q u e a a l m a d a va o r i g e m a im a ge n s q u e s u p o s t a m e n t e
n ã o t i n h a m va lo r d o p o n t o d e vi s t a r a c io n a l. H a v i a q u a t r o m a n e i r a s d e u sá - la s:
173 ib id ., § 7 5 9 ( 8 8 4 ) .
174 O C , 6, § 4 6 8 .
I N T RO D U ÇÃO 55
A q u i s u a a l m a p e d i u - l h e i n s i s t e n t e m e n t e q u e p u b lica sse o se u m a t e r i a l , o
se e xp r e ssa vi s i ve l m e n t e n a t r a n s fo r m a ç ã o d as r e la ç õ e s h u m a n a s . A s r e la çõ e s
n ã o se d e i xa m s u b s t i t u i r p e lo m a is p r o fu n d o c o n h e c im e n t o . Al é m d isso , u m a
n u m a r e o r g a n iz a ç ã o d as c o n d i ç õ e s d e v i d a h u m a n a s . P o r isso n ã o e sp e r e m a is
t o d a r e ve la ç ã o q u e vo c ê r e ce b e u , m a s vo c ê a i n d a n ã o vi ve t u d o o q u e d e ve
se r vi vi d o ago r a". O "e u " d e Ju n g r e s p o n d e u : "P o sso e n t e n d e r p e r fe it a m e n t e
e a c e it a r ist o . M a s é o b sc u r o p a r a m i m c o m o o c o n h e c i m e n t o p o ssa se r t r a n s -
fo r m a d o e m vi d a . Vo c ê p r e c is a e n s i n a r - m e is t o ". Su a a l m a lh e d isse: " N ã o h á
m u i t o a d i z e r so b r e ist o . N ã o é t ã o r a c i o n a l c o m o vo c ê e s t á i n c l i n a d o a p en sar .
O c a m i n h o é s i m b ó l i c o " 17 6 .
As s i m , a t a r e fa c o m q u e Ju n g se d e p a r a va e r a c o m o r e a liz a r e e n c a r n a r a q u i -
lo q u e ele a p r e n d e r a a t r a vé s d a in ve s t iga ç ã o d e su a p r ó p r i a vid a . D u r a n t e esse
p e r í o d o , os t e m a s d a p sico lo gia d a r e ligiã o e d a r e la ç ã o e n t r e r e ligiã o e p s ic o lo -
gia fo r a m a d q u i r i n d o d e st a q u e ca d a ve z m a i o r e m s u a o b r a , a c o m e ç a r p o r se u
s e m i n á r i o e m P o lz e a t h , n a C o r n u a l h a , e m 1923. Ju n g t e n t o u d e s e n vo lve r u m a
p s ic o lo gia d o p r o ce sso d e fa z e r r e ligiã o . E m ve z d e p r o c l a m a r u m a n o va r e ve -
la çã o p r o fé t ic a , s e u in t e r e sse e st a va n a p sico lo gia d as e xp e r iê n c ia s r e ligio sa s. A
t a r e fa c o n s is t ia e m d e scr e ve r a t r a d u ç ã o e t r a n s p o s iç ã o d a e xp e r i ê n c i a n u m i n o -
sa d o s i n d i ví d u o s e m s í m b o lo s e fi n a l m e n t e n o s d o gm a s e cr e d o s d as r e ligiõ e s
o r ga n iz a d a s e, p o r fi m , e st u d a r a fu n ç ã o p s ic o ló gic a d esses s ím b o lo s . P a r a essa
p sic o lo gia d o p r o ce sso d e fa z e r r e ligiã o se r b e m - s u c e d i d a , e r a e sse n cia l q u e a
p sic o lo gia a n a lít ica , e n q u a n t o p r o p o r c i o n a va u m a a fir m a ç ã o d a a t it u d e r e lig io -
sa, n ã o s u c u m b is s e à t e n t a ç ã o d e t r a n s fo r m a r - s e n u m c r e d o 17 7 .
E m 19 22, Ju n g e sc r e ve u u m e n sa io so b r e "A r e la çã o d a p sico lo gia a n a lít ica
c o m a o b r a d e a r t e p o é t ic a ". E l e d i s t i n g u i u d o is t ip o s d e o b r as: o p r i m e i r o ,
q u e b r o t a va i n t e i r a m e n t e d a i n t e n ç ã o d o a u t o r , e o segu n d o , q u e se a p o d e r a va
d o a u t o r . Exe m p l o s d essas o b r a s s im b ó lic a s e r a m a se gu n d a p a r t e d o Fausto d e
Go e t h e e o Zaratustra d e N i e t z s c h e . E m s u a o p in iã o , essas o b r a s b r o t a va m d o
i n c o n s c i e n t e co le t ivo . E m casos c o m o esses, o p r o ce sso c r i a t i vo c o n s is t ia n a
a t iva ç ã o i n c o n s c i e n t e d e u m a i m a g e m a r q u e t íp ic a . O s a r q u é t ip o s l i b e r a va m e m
n ó s u m a vo z m a is fo r t e d o q u e a n o ssa p r ó p r ia :
Q u em fala por meio de imagens prim ordiais, fala como se tivesse m il vo-
zes; comove e subjuga..., eleva o destino pessoal ao destino da humanidade
e com isto também solta em nós todas aquelas forças benéficas que desde
sempre possibilitaram à humanidade salvar-se de todos os perigos e t am -
bém sobreviver à mais longa n oit e 178 .
O art ist a que p r od u ziu essas obras educou o espírit o d a época e com p en -
sou a parcialidade do presen te. Ao descrever a gén ese dessas obras sim bólicas,
Ju n g t in h a, ao que parece, suas próprias atividades em m en t e. Assim , en quan t o
Ju n g recusava-se a con sid erar o Líber Novus com o "art e", suas reflexões sobre
sua com posição eram n o en t an t o u m a fon te crít ica de suas subsequentes con -
cepções e teorias da art e. A qu est ão im plícit a que esse en saio levan t ava era se
a psicologia pod ia cu m p r ir agora esta fun ção de educar o espírit o d a época e
com pen sar a parcialidade do presen te. A p ar t ir desse períod o, Ju n g chegou a
con ceber a tarefa de sua psicologia precisam en t e desta m a n e ir a 179 .
D e lib e r a ç õ e s d e p u b lica çã o
A p art ir de 19 22, além dos debates com Em m a Ju n g e To n i W olff, Ju n g teve
longos debates com Ca r y Bayn es e W olfgan g St ockm ayer sobre o que fazer
com o Líber Novus e a respeit o de sua possível publicação. Já que ocorreram en -
quan to ele ain d a estava t rabalh an do neste livro, esses debates t êm im port ân cia
decisiva. Ca r y Fin k n asceu em 18 8 3. Est u d ou n o Vassar College, onde frequ en -
t ou as aulas de Kr ist in e Man n , que se t or n ou u m a das p rim eiras seguidoras
de Ju n g nos Est ados Un id os. E m 19 1 o, ela se casou com Jaim e de An gu lo e
com plet ou sua form ação m éd ica n a Joh n s H o p kin s Un iver sit y em 19 11. E m
19 21, aban don ou-o e foi para Zu r iq u e com Kr ist in e Man n . In icio u a an álise
com Ju n g. Ela n u n ca p rat icou an álise e Ju n g respeit ava-lh e m u it o a in t eligên cia
crítica. E m 19 27, casou-se com Peter Bayn es. Divor ciar am -se m ais t arde, em
19 31. Ju n g ped iu -lh e que fizesse u m a n ova t ran scrição do Líber Novus, porque ele
acrescen t ara m u it o m at erial desde a t ran scrição an t erior. El a em preen d eu essa
2 DE O U T U BRO DE 19 22
Nu m outro livro do "Dom in ican o bran co" de Meyrin k, você disse que ele
usou exatamente o mesmo simbolismo que ocorrera a você n a prim eira vi-
são que apareceu ao seu inconsciente. Além disso você disse que ele falara de
um "Livr o Verm elh o" que con tin h a certos mistérios e o livro que você está
escrevendo sobre o inconsciente você o chamou de "Livr o Ver m elh o"18 0 .
Depois você falou que estava em dúvida sobre o que fazer com esse livro.
Você disse que Meyrin k podia dar um a nova form a ao seu e estava tudo
bem, mas você só podia contar com o m étodo científico e filosófico, e esse
m aterial você não podia lançar nesse molde. Eu disse que você podia usar
a form a do Zarat ust ra e você disse que era verdade, mas você estava farto
disso. Também eu estou. Depois você disse que pensou em fazer dele um a
autobiografia. Isto me parece de longe o melhor, porque então você tende-
ria a escrever como você falava, que era de form a bem pitoresca. Mas, in de-
pendentemente de qualquer dificuldade com a forma, você disse que tem ia
torn á-lo público, porque era como vender sua própria casa. Mas eu crit iquei
você violentam ente e disse que não era nem u m pouco parecido com aquilo,
porque você e o livro representavam um a constelação do universo e que
considerar o livro como puramente pessoal era você identificar-se com ele,
algo que você não pensaria em perm it ir a seus pacientes... Depois nós rim os
por eu ter, por assim dizer, apanhado você em flagrante. Goethe viu-se apa-
nhado n a mesma dificuldade n a parte 11 do Fausto, na qual ele en trara no i n -
consciente e achara tão difícil conseguir a form a correta que afinal m orreu
deixando os manuscritos assim mesmo em sua gaveta. Você disse que gran-
de parte do que você experienciou seria considerada como pura e simples
maluquice que, se fosse publicada, você fracassaria totalmente não só como
cientista, mas também como ser humano; mas eu disse que não, que se você
o abordasse a partir do ângulo de DíchtungundW ahrheít [Poesia e Verdade], as
pessoas poderiam fazer sua própria seleção quanto a distinguir um a coisa da
ou t r a 18 1. Você fez objeções a apresentar qualquer coisa dele como Díchtung
quando era tudo W ahrhett, mas não me parece falsidade fazer uso desse t an -
to de máscara para você mesmo proteger-se do provincianismo - e afinal,
como eu disse, o provincianismo tem seus direitos, em face da escolha de você
como maluco, e eles próprios, enquanto tolos sem experiência, precisam esco-
lher a prim eira alternativa, mas, se puderem colocar você como poeta, salvam
as aparências. Boa parte do seu material, como você disse, chegou-lhe como
runas e a explicação dessas runas soa como o mais arrematado absurdo, mas
isso não im port a se o produto fin al é o sentido. Em seu caso, eu disse, apa-
rentemente você teve consciência de um núm ero m aior de passos da criação
do que qualquer outro antes. Na m aioria dos casos a mente, é claro, aban-
dona automaticamente o m aterial irrelevante e entrega o produto final, ao
passo que você leva consigo todo o negócio, processo m atricial e produto.
Naturalm ente é m uito mais difícil de lidar. Meu tempo term in ou.
JAN E I R O D E I923
O que você me disse algum tempo atrás deixou-m e pensativa e de re-
pente outro dia, enquanto eu lia "Vorspiel auf dem Th eat er" [Prelúdio
no t eat r o ] 18 2 , dei-m e conta de que você também precisava fazer uso desse
princípio que Goethe manejara tão belamente em todo o Fausto, a saber,
contrapor o criativo e eterno ao negativo e transitório. Você pode não ver
imediatamente o que isto tem a ver com o Fívro Vermelho, mas eu vou explicar.
No m eu entender, neste livro você vai desafiar os homens a um a nova form a
de olhar para suas almas, em todo caso vai haver nele m uit a coisa que esta-
rá fora do alcance do homem com um , exatamente como em certo período
de sua vida você dificilm ente deve tê-lo entendido. De certa forma é um a
"joia" que você está dando ao mundo, não é> Min h a opinião é que ele preci-
2 6 D E J A N E I R O D E 19 24
mais sobre sua atitude para com o "Livr o Verm elh o". Você disse que algo
dele feriu terrivelm ente seu senso da conveniência das coisas e que você
evitou registrá-lo por escrito t al qual ele veio a você, mas você dera início
ao prin cípio da "espontaneidade", ou seja, de não fazer nenhum a correção, e
manteve-se fiel a ele. Algun s dos quadros eram absolutamente infantis, mas
tin h am a intenção de o ser. H avia vários personagens falando: Elias, Padre
Filêm on et c, mas todos pareciam ser fases daquilo que você pensava devia
ser ch am ad o "o m est r e". Você t in h a certeza de que este últim o era o mesmo
que in spirou Buda, Man i, Crist o, Maom é - todos aqueles que, podemos d i-
zer, tiveram trato íntim o com Deu s 18 3 . Mas os outros haviam-se identificado
com ele. Você recusou-se term inantem ente. Isso não poderia ser para você,
como você disse, você precisava continuar sendo o psicólogo — a pessoa que
compreendia o processo. Eu disse então que o que se devia fazer era possibi-
lit ar que o mundo também compreendesse o processo, sem que eles tenham
a noção de ter, por assim dizer, seu Mestre preso n um a gaiola à sua in t eira
disposição. Eles deviam im aginá-lo como um a coluna de fogo avançando
continuamente e sempre fora do alcance dos humanos. Sim , você falou que
era algo parecido com isso. Talvez ainda não possa ser feito. À medida que
você falava eu adquiria um a consciência sempre mais nítida da in com en -
surabilidade dos ideais que enchem você. Você dizia que eles tin h am sobre
eles a sombra da eternidade e eu pude sentir a verdade d ist o 18 4 .
Q u e era um a preparação para o Livro Vermelho, porque o Livro Verm elho falava
da batalha entre o mundo da realidade e o mundo do espírito. Você disse
que nessa batalha você estivera bem perto de ser desmantelado, mas con -
seguiu manter os pés no chão e ter influência sobre a realidade. Você disse
que para você isso foi o teste de alguma ideia e que você não tin h a respeito
n en h um por quaisquer ideias, por mais aladas que fossem, que precisavam
exist ir lá fora no espaço e eram incapazes de causar impressão sobre a rea-
lid ad e 18 5.
183 C o m r esp eit o a ist o, cf. a in scr ição d a ilu st r . 154 ad ian t e, n o t a 28 2, p. 364.
184 CFB.
185 Ib id .
62 LI BE R N O VU S
Est ou absolutamente atónita, por exemplo, quando leio o Livro Verm elho e
vejo tudo quanto ali se diz para o Reto Cam inho para nós hoje, de ver como
Ton i deixou isso fora do seu sistema. Ela não t eria um a m ancha in con s-
ciente em sua psique se tivesse digerido tanto do Livro Verm elho quanto eu
li e penso que não foi u m terço nem um quarto. E outra coisa difícil de
entender é por que ela não tem n en h um interesse em fazer com que ele o
publique. H á pessoas em m eu país que o leriam do prin cípio ao fim quase
sem pausa para respirar, pois ele reexam in a e esclarece as coisas de hoje,
fazendo cambalear todos os que estão tentando en con trar a chave para a
vida... Ele pôs nele todo o vigor e o colorido de sua fala, toda a franqueza
e sim plicidade que vêm quando, como n a Corn u alh a, o fogo arde n ele 18 6 .
Eviden tem en te pode ser que, como ele diz, se o publicasse como está,
ele estaria para sempre horsdu com bat no mundo da ciência racional, mas então
deve haver um a m an eira neste caso, um a m an eira de ele proteger-se con tra a
estupidez, a fim de que as pessoas que queiram o livro não fiquem privadas
durante todo o tempo que levar para que a m aioria esteja preparada para
ele. Eu sempre soube que ele devia ser capaz de escrever com a paixão com
que ele é capaz de falar — e aqui está. Seus livros publicados estão adultera-
dos para o mundo em geral, ou antes aqueles saíram da sua cabeça e este do
seu coração 18 7 .
186 Re fe r ê n cia ao se m in á r io de Po lz ea t h .
187 Su sp eit o qu e ist o fo i escr it o a seu e x- m a r id o , Ja im e d e An gu lo . E m 10 d e ju lh o d e 1924, ele escr eveu
a ela: "Su p o n h o qu e vo cê est eve t ão o cu p ad a q u an t o e u , c o m est e m a t e r ia l de Ju n g... L i su a ca r t a , aq u ela
em qu e vo cê a n u n cio u ist o, e vo cê e xo r t o u - m e a n ã o d iz e r a n in gu é m , e acr escen t o u qu e vo cê n ã o d e ve r ia
co n t a r - m e , m as vo cê sab ia qu e e u se n t ir ia t a n t o o r gu lh o de vo c ê " (CFB).
188 M P , p. 169.
I N T RO D U ÇÃO 63
Parece que h ouve algum debate sobre estas quest ões n o círculo de Ju n g. Em
2 9 de m aio de 19 24 , Ca r y Bayn es an ot ou u m a discussão com Peter Bayn es, n a
qual este argum en t ava que o Líber Novus só pod eria ser en t en d id o por alguém
que tivesse con h ecido Ju n g. E m con t rapart id a, ela pen sava que este livr o
H á m ais out ros sin ais de que Ju n g fez circu lar cópias do Líber Novus en t re
am igos m ais ín t im os, e que o m at erial foi d iscu t id o ju n t o com as possibilidades
de sua publicação. U m desses colegas foi W olfgan g Stockm ayer. Ju n g en con -
t rou -se com St ockm ayer em 19 0 7. N o n ecrológio in éd it o dele, Ju n g escreveu
que ele foi o p r im eir o alem ão a in t eressar-se por sua obra. Lem b r o u que St o-
ckm ayer foi u m verd ad eiro amigo. Eles viajaram ju n t os à It ália e à Suíça, e raras
vezes h ouve u m an o em que n ão se en con t raram . Ju n g com en t ou :
Ele distinguiu-se por seu grande interesse e igualmente grande com preen-
são dos processos psíquicos patológicos. En con t rei também nele um a sim -
pática recepção de m eu ponto de vist a mais amplo, que foi im portante para
minhas posteriores obras de psicologia com parad a 19 0 .
Muitas vezes tenho saudades do Livro Verm elho e gostaria de ter um a cópia
daquilo que estiver disponível; deixei de fazê-lo quando eu o tin ha, como
189 CFB.
190 St o ck m a ye r o b it u a r y",JA .
191 I b i d .
64 LI BE R N O VU S
ger alm en t e acon t ece. Re ce n t e m e n t e fan t asiei a r esp eit o de u m a esp écie de
revista de "Docum en t os" sem formato rígido destinada a materiais prove-
nientes da "forja do inconsciente", com palavras e cores 19 2 .
Em 19 2$, Ju n g apresen t ou seu sem in ário sobre psicologia an alít ica ao Clu b e
Psicológico. Aq u i, ele d iscu t iu algumas das fantasias im port an t es do Líber Novus.
Descreveu com o elas se m an ifest aram e m ost rou com o con st it u íram a base das
ideias con t idas em Tipos Psicológicos e a chave para en t en der a gén ese desta obra.
O sem in ário foi t ran scrit o e editado por Ca r y Bayn es. Nesse m esm o ano, Peter
Bayn es preparou u m a t radução in glesa dos Septem Serm ones ad Mortuos, que foi p u -
blicad a p r ivad am en t e 19 6 . Ju n g d eu exem plares a alguns de seus alunos de lín gua
inglesa. N u m a cart a que se presum e ser u m a resposta a u m a cart a de H e n r y
Mu r r ay que lh e agradecia u m exem plar, Ju n g escreveu:
196 Lo n d r e s: St u a r t a n d W a t k in s , 1925.
197 2 de m a io d e 1925, Murraypapers, H o u g h t o n Lib r a r y, H a r va r d Un ive r sit y, o r igin a l e m in glês.
M ic h a e l Fo r d h a m le m b r o u t e r r eceb id o u m e xe m p la r d e Pet er Bayn es q u an d o alcan çar a u m est ágio
co n ve n ie n t e m e n t e "a va n ça d o " e m su a an álise e t er p r est ad o ju r a m e n t o de gu ar d ar segred o a r esp eit o
( co m u n ica çã o p essoal, 19 9 1).
198 C.G.Jung: Hís Life and W ork - A Bio gr a p h ica l Me m o ir , p. 121.
66 LI BE R N O VU S
A t r a n s fo r m a ç ã o d a p sico t e r a p ia
O Léer Novus é de im port ân cia capit al para se com preen der o surgim en t o do
n ovo m odelo de psicot erapia de Jun g. Em 19 12, em Transformação e símbolos da libido,
ele con sid erou que a presen ça de fantasias m it ológicas - com o as presen tes
no Líber Novus — era sin al de u m afrouxam en t o das camadas filogen ét icas do
in con scien t e e in d ício de esquizofren ia. At ravés de sua au t oexperim en t ação,
ele r eviu rad icalm en t e esta posição: o que agora con sid erou essen cial n ão foi
a presen ça de algum con t eú d o det erm in ado, mas a at it ude do in d ivíd u o para
com ele e, em part icu lar, se o in d ivíd u o pod ia acom odar esse m at erial em sua
cosm ovisão. Ist o exp lica por que, em seu posfácio ao Líber Novus, ele com en t ou
que, para o observador su perficial, a obra ir ia parecer lou cu ra e pod eria t er-se
t orn ado lou cu ra se ele n ão tivesse conseguido con t er e com preen der as ex-
p er iên cia s 20 1. N o Líber Secundus, capít u lo 15, ele apresen t a u m a crít ica da p siqu ia-
t r ia con t em p orân ea, destacando a in capacidade desta de d ist in gu ir en t re ex-
periên cia religiosa ou lou cu ra d ivin a e psicopatologia. Se o con t eú d o de u m a
visão ou fan t asia n ão t in h a n en h u m valor diagn ósico, ele achava que, m esm o
assim , era essen cial con sid erá-lo com cu id a d o 20 2 .
A p ar t ir de suas experiên cias, Ju n g desen volveu novas con cepções dos ob-
jet ivos e m ét od os d a psicot erapia. Desd e seu in ício n o fin al do século X I X ,
a m od ern a psicot erapia preocupara-se p rim ariam en t e com o t rat am en t o de
d ist ú rbios n ervosos fun cion ais, ou n euroses, com o vier am a ser con h ecidos.
A p ar t ir da época d a Pr im eir a Gu e r r a Mu n d ial, Ju n g reform u lou a prát ica da
psicot erapia. N ã o m ais preocupada u n icam en t e com o t rat am en t o da psicopa-
tologia, ela t orn ou -se u m a prát ica para possibilit ar o desen volvim en t o u lt erior
do in d ivíd u o pelo fom en t o do processo de in dividuação. Isso ir ia t er con sequ -
ên cias de grande alcance n ão só para o desen volvim en t o da psicologia an alít ica,
mas t am bém para a psicot erapia com o u m todo.
Para d em on st rar a validade das con cepções que t ir ou n o Líber Novus, Jung
t en t ou m ost rar que os processos descritos n o livro n ão eram ú n icos, e que as
con cepções ali desen volvidas eram aplicáveis a outros. Para estudar as p r od u -
ções de seus pacien tes, ele organ izou u m a ext en sa coleção de seus quadros. Para
que seus pacien tes n ão ficassem separados de suas im agens, Ju n g geralm en te
lh es pedia que fizessem cópias para e le 2 0 3 .
Du r an t e esse períod o, ele con t in u ou a in st r u ir seus pacien tes sobre com o
in d u zir visões em estado de vigília. E m 19 2 6 , Ch r ist ian a Morgan p rocu rou
Ju n g para subm et er-se a an álise. El a h avia sido at raída para as ideias de Ju n g
ao ler Tipos psicológicos e recorreu a ele em busca de assist ên cia para seus proble-
mas de relacion am en t os e depressões. N u m a sessão em 19 26 , Morgan an ot ou o
con selh o que Ju n g lh e d eu sobre com o p rod u zir visões:
Bem , como você vê, estas são vagas demais para eu poder dizer m uit a coisa
sobre elas. Elas são apenas o começo. Basta você usar a ret in a do olho p r i-
20 1 Cf. ad ian t e, p. 4 8 9 .
2 0 2 Cf. os co m e n t á r io s d e Ju n g ap ó s u m a p alest r a sob re Swe d e n b o r g n o Cl u b e Psico ló gico , d o cu m e n t o s d e
Jaffé, E T H .
20 3 Est e s q u ad r os est ão d isp o n íve is p a r a est u d o n o a r q u ivo de q u ad r os n o In s t it u t o C G . Ju n g, Kú sn a ch t .
68 LI BE R N O VU S
imagem à força, você só precisa olhar para dentro. Agora, quando você vê estas
imagens, você precisa mantê-las e ver para onde elas levam você - como elas
mudam. E você precisa tentar entrar você mesma no quadro - tornar-se um
dos atores. Q uan do comecei pela prim eira vez a fazer isto, eu via paisagens.
Depois aprendi a in serir-m e dentro da paisagem e os personagens falavam
comigo e eu respondia a eles... As pessoas diziam : ele tem um tem peram en-
to artístico. Mas era apenas que m eu inconsciente estava me dominando.
Agora eu aprendo a representar seu dram a como também o dram a da vida
exterior e assim nada pode ferir-m e agora. Escrevi IO O O páginas de m aterial
tirado do inconsciente (Con t ou a visão de um gigante que se transform ou
n um o vo ) 2 0 4 .
Ju n g d escrevia det alh adam en t e seus p róp rios exp erim en t os a seus pacie
tes e os in st ru ía a fazer o m esm o. O papel dele era o de su p ervision á-los
fazer exp erim en t os com sua p róp ria t orren t e de im agen s. Morgan an ot ou que
Ju n g disse:
Agora sinto como se eu devesse dizer alguma coisa a você sobre estas fan-
tasias... As fantasias parecem agora u m tanto diluídas e cheias de repetições
dos mesmos motivos. Não existe nelas suficiente fogo e calor. Elas precisam
ser mais excitantes... Você deve estar mais nelas, ou seja, você deve ser seu
próprio si-mesmo crítico consciente nelas — impondo seus julgamentos e
críticas... Posso explicar o que quero dizer contando-lhe m in ha própria ex-
periência. Eu estava escrevendo em m eu livro e de repente vi um homem
de pé observando por sobre meu ombro. U m dos pontos dourados de m eu
livro saltou fora e atingiu-o no olho. Ele me perguntou se eu iria tirá-lo. Eu
disse que não - não, a menos que ele me dissesse quem ele era. Ele disse que
não diria. Você vê, eu sabia disso. Se eu tivesse feito o que ele pediu, ele teria
mergulhado no inconsciente e eu não teria captado o significado disso, ou
seja: por que ele simplesmente havia aparecido do inconsciente. Finalm ente,
ele me disse que iria dizer-m e o sentido de alguns hieróglifos que eu tivera
alguns dias antes. Ele o fez e eu t irei a coisa do seu olho e ele desapareceu 205.
Ju n g chegou a sugerir que seus pacien tes elaborassem seus p róp rios Livros
Vermelhos. Morgan lem b r ou t ê-lo ouvido dizer:
Eu deveria aconselhá-la a registrar tudo isso da m an eira mais bela que você
puder - em algum livro belamente encadernado. Vai parecer como se você
estivesse banalizando as visões — mas você precisa fazer isso - então você
fica livre do poder delas. Se você fizer isso com este olhar, por exemplo, elas
deixarão de atrair você. Você n un ca deve tentar fazer estas visões volt a-
rem novamente. Pense nisto em sua imaginação e procure pintá-lo. Depois,
quando estas coisas estiverem em algum livro precioso, você poderá ir ao
livro e virar as páginas e para você será sua igreja - sua catedral - os lugares
silenciosos de seu espírito onde você encontrará renovação. Se alguém lhe
disser que isso é m órbido ou neurótico e você lhe der ouvidos, você perderá
sua alm a - porque nesse livro está sua a lm a 20 6 .
O sa n t u á r io d e Fi l ê m o n
Na década de 19 20 , o interesse de Ju n g deslocou-se cada vez m ais da tran scrição
do Líber Novus e da elaboração de sua m it ologia nos Livros Negros para o trabalh o
em sua t orre em Bollin gen . E m 19 2 0 , com p rou u m ped aço de t erra n a m argem
n ort e do Lago de Zu riq u e, em Bollin gen . An t es disso, ele e sua fam ília às vezes
passavam férias acam pados em t orn o do Lago de Zu riqu e. Ju n g sen t ia n eces-
sidade de represen t ar seus pen sam en tos m ais ín t im os em pedra e de con st ru ir
2 0 6 Ib id ., 12 de ju n h o de 1926.
20 7 20 de d e z e m b r o d e 1929, JA ( o r igin a l e m in glê s) .
7o LI BE R N O VU S
tus. No fin al do Líber Secundus, Jung escreveu: "Ten h o de recuperar u m ped aço d a
Idade Méd ia em m im . Ma l t erm in am os a Idade Méd ia - dos outros. Ten h o de
com eçar cedo, naquele tem po em que os erem it as d esap areceram "20 9 . D e form a
sign ificat iva, a t orre foi con st ru íd a proposit alm en t e com o u m a est ru t u ra d a
Idade Méd ia, sem com odidades m odern as. A t orre era u m a obra perm an en t e,
em evolução. Ju n g gravou a seguinte in scrição n a parede da t orre: "Ph ilem on is
sacru m - Fau st i p oen it en t ia" [San t u ário de Filêm on - Ar r ep en d im en t o de
Faust o] ( u m dos m u rais d a t orre é u m ret rat o de Filêm on ). Em 6 de abril de
19 29 , Ju n g escreveu a Rich ar d W ilh e lm : "Por que n ão exist em claustros m u n -
danos para h om en s que d everiam viver fora do t e m p o !"210
Em 9 de jan eiro de 19 23, m or r eu a m ãe de Jun g. E m 2 3/ 2 4 de dezem bro de
19 23, ele teve o seguinte sonho:
Só agora vejo que o sonho de 23/ 24 X I I 19 2 3 significa a m orte da. anim a ( "Ela
não sabe que está m ort a"). Isto coincide com a morte de m in h a mãe... Desde
a m orte de m in h a mãe a A. [anima] silenciou. Sign ificat ivo!212
Algu n s anos depois, Ju n g teve m ais alguns diálogos com sua alm a, mas a
esta alt u ra seu con fron t o com a anim a chegara efet ivam en t e a u m fim . E m 2 de
jan eiro de 19 27, ele teve u m son h o localizado em Liver p ool:
Ju n g acrescen t ou que o suíço era ele m esm o. O "eu " n ão era o si-m esm o,
mas d ali se pod ia ver o m ilagre d ivin o. A pequen a lu z assem elhava-se à gran de
luz. Daí em dian t e ele parou de p in t ar m an dalas. O son h o expressara o p r o-
cesso in con scien t e de desen volvim en t o, que n ão era lin ear, e ele o con sid erou
212 Ib id ., p. 121.
213 Ib id ., p. 124. Pa r a a ilu st r ., cf. o a p ê n d ice A , p. 4 9 5.
214 Ilu st r . 159 d a e d içã o ilu st r a d a d est a ob r a.
215 Mem órias, p. 176.
72 LI BE R N O VU S
in t eiram en t e satisfatório. Sen t ia-se com plet am en t e só nesse tem po, preocu pa-
do com algo grande que outros n ão en t en d iam . N o sonho, só ele viu a árvore.
En qu an t o eles estavam de pé, n a escuridão, a árvore apareceu radian t e. Se ele
n ão tivesse t ido essa visão, sua vid a t eria perdido o se n t id o 216 .
A percepção foi que o si-m esm o é a m et a da in dividuação e que o processo de
in dividuação n ão era linear, mas con sist ia n u m a circum am bulação do si-m esm o.
Est a percepção d eu -lh e força, pois de ou t ra form a a experiên cia t er ia en lou -
quecido a ele ou aos que o cer cavam 217 . Ele sen t iu que os desenhos de m an dalas
m ost ravam -lh e o si-m esm o "em sua fun ção salvadora" e que ist o era sua salva-
ção. A tarefa agora era u m a tarefa de con solidar essas in t uições em sua vid a e
ciên cia.
E m su a revisão de Psicologia dos processos inconscientes, feita em 19 2 6 , Ju n g r eal-
çou a im port ân cia da t ran sição da m eia-idade. Afir m o u que a p r im eir a m etade
da vid a pod ia ser caract erizada com o a fase n at u ral, n a qual o objet ivo p r in ci-
pal er a estabelecer-se n o m un do, gan han do seu salário ou ten do u m a ren d a e
crian d o u m a fam ília. A segunda m etade da vid a pod ia ser caract erizad a com o a
fase cu lt u ral, que en volvia u m a reavaliação de valores an t eriores. Nest e p eríod o
a m et a era a de con servar valores preceden tes ju n t o com o recon h ecim en t o
de seus opostos. Ist o sign ificava que os in d ivíd u os precisavam desen volver os
aspectos n ão desen volvidos e negligenciados de su a p erson alid ad e 218 . O p r o-
cesso de in dividu ação era agora con cebido com o o pad rão geral do d esen volvi-
m en t o h um an o. Ele afirm ou que n a sociedade con t em p orân ea h avia u m a falta
de orien t ação para essa t ran sição e achava que su a psicologia preen ch ia esta
lacun a. For a d a psicologia an alít ica, as form u lações de Ju n g causaram im pact o
n o cam po d a psicologia do d esen volvim en t o dos adultos. Evid en t em en t e, su a
exp eriên cia d a crise con st it u iu o gabarito para essa con cepção dos requisit os
das duas m etades da vid a. O Liber Novus descreve a reavaliação feit a por Ju n g de
seus valores an t eriores e sua t en t at iva de desen volver os aspectos n egligen cia-
dos de sua person alidade. Assim , o livr o con st it u iu a base de sua com preen são
de com o a t ran sição da m eia-id ad e pod ia ser feit a com êxit o.
Em 19 2 8 , Ju n g p u blicou u m pequen o livro, As relações entre o eueo inconsciente,
que era u m a am pliação de seu en saio de 19 16 in t it u lad o "A est ru t u ra do in con s-
cien t e". Aq u i, ele se est en deu sobre o "dram a in t er io r " do processo de t ran sfor-
m ação, acrescen tan do u m a seção que t rat ava det alh adam en t e do processo de
in dividuação. Ele observava que, depois de alguém t er lid ad o com as fantasias
proven ien t es da esfera pessoal, deparava-se com as fantasias proven ien t es da
esfera im pessoal. Est as n ão eram sim plesm en t e arbit rárias, mas con vergiam
para u m a m et a. Por isso, essas fantasias post eriores pod iam ser descritas com o
processos de in iciação, que forn eciam sua an alogia m ais próxim a. Para ocor-
rer este processo, era n ecessária a part icipação ativa: "Q u an d o a con sciên cia
desem pen h a u m a part e at iva e exp erim en t a cada fase do processo... a im agem
seguinte sem pre ascen d erá a u m est ádio superior, con st it u in d o-se assim fin a-
lidade da m e t a " 2 19 .
Ap ó s a assim ilação do in con scien t e pessoal, a diferen ciação da person a e a
superação do estado de sem elh an ça com Deu s, a fase seguinte era a in t egração
da anim a para os h om en s e do anim us para as m u lh eres. Ju n g afirm ou que, assim
com o era essen cial para u m h om em d ist in gu ir en t re o que ele era e com o apa-
recia aos out ros, era igualm en t e essen cial ad qu irir con sciên cia de "seu in visí-
vel sist em a de relações com o in con scien t e" e por isso d ist in gu ir-se da anim a.
Ele observou que, quan do a anim a era in con scien t e, ela era projet ada. Para u m a
crian ça, a p r im eir a port ad ora da im agem da alm a era a m ãe e, depois, as m u lh e-
res que est im u lavam os sen t im en t os do h om em . Er a preciso objet ivar a anim a
e colocar-lh e qu est ões, através do m ét od o do d iálogo in t er ior ou im agin ação
ativa. Tod os, afirm ava Ju n g, t in h am essa capacidade de dialogar consigo m es-
m os. A im agin ação at iva seria assim u m a das form as de d iálogo in t erior, u m a
espécie de pen sar dram at izado. Er a cru cial desiden t ificar-se dos pen sam en tos
que su rgiam e superar a presu n ção de que a p róp ria pessoa os h avia p r od u zi-
d o 2 2 0 . O m ais essen cial n ão era in t erp ret ar ou com preen der as fan tasias, mas
viven ciá-las. Ist o represen t ou u m a m u d an ça n a ênfase que Ju n g d era à for m u -
lação criat iva e à com p reen são em seu en saio sobre a fun ção t ran scen den t e.
Ju n g afirm ou que o in d ivíd u o d evia t rat ar as fantasias in t eiram en t e de form a
lit eral en quan t o estava em pen h ado n elas, mas de form a sim bólica quan do as
in t er p r et ava 221. Ist o era u m a descrição d iret a do proced im en t o de Ju n g nos Li-
219 Ib id ., § 38 6 .
220 Ib id ., § 323.
221 Ib id ., § 353
74 LI BE R N O VU S
vros Negros. A tarefa de tais discussões era objet ivar os efeitos da anim a e t orn ar-se
con scien t e dos con t eú d os em que est ão baseados, assim in t egran do-os à con s-
ciên cia. Dep ois que alguém se h avia fam iliarizad o com os processos in con s-
cien t es refletidos n a anim a, ela se t orn ava en t ão u m a fun ção de relação en t re a
con sciên cia e o in con scien t e, n ão m ais u m com plexo au t ón om o. Novam en t e,
esse processo de in t egração d a anim a foi o t em a do Liber Novus e dos Livros Negros.
(Ist o realça t am bém o fato de que as fantasias con t idas n o Liber Novus d everiam
ser lidas sim bolicam en t e e n ão lit eralm en t e. Tir a r afirm ações delas do con t ex-
to e cit á-las lit eralm en t e represen t aria u m grave m al-en t en d id o). Ju n g n ot ou
que esse processo t in h a três efeitos:
222 I b i d , § 358.
223 I b i d , § 377.
I N T RO D U ÇÃO 75
n o Líber Novus. Sobre o si-m esm o, Ju n g escreveu: "O si-m esm o t am bém pode
ser cham ado c o Deu s em n ós'. O s prim órd ios de toda nossa vid a psíquica pa-
recem surgir in ext ricavelm en t e desse ponto, e as metas m ais altas e derradeiras
parecem d irigir-se para e le "224 . A descrição que Ju n g faz do si-m esm o exp rim e a
im port ân cia de sua percepção após seu sonho de Liverp ool:
O co n fr o n t o c o m o m u n d o
Por que Ju n g parou de t rabalh ar n o Líber Novus? E m seu posfácio, escrit o em
19 59 , escreveu:
224 Ib id ., § 3 9 9 .
225 Ib id ., § 4 0 4 - 4 0 5.
226 Cf. ad ian t e, p. 4 8 9 .
76 LI BE R N O VU S
O sign ificado dessa con firm ação é m ost rado nas lin h as que ele escreveu
em baixo da p in t u r a do Cast elo Am a r e lo 2 2 8 . Ju n g ficou im pression ado com as
correspon d ên cias en t re as im agens e con cepções desse t ext o e seus p róp rios
quadros e fantasias. E m 2$ de m aio de 19 29 , ele escreveu a W ilh e lm : "O dest in o
parece t er-n os at ribu íd o o papel de duas pilast ras que su st en t am a pon t e en t re
O r ien t e e O cid e n t e " 2 2 9 . Só m ais tarde deu-se con t a de que a n at u reza alqu ím i-
ca do t ext o era im p o r t a n t e 230 . Ju n g t rabalh ou em seu com en t ário du ran t e o ano
de 19 2 9 . E m 10 de setem bro de 19 2 9 , escreveu a W ilh e lm : "Vib r e i com este
texto, que está tão p róxim o de nosso in con scien t e"231.
O com en t ário de Ju n g sobre O segredo da Flor de Ouro represen t ou u m a m u -
d an ça decisiva. Fo i sua p r im eir a discussão pú blica sobre o sign ificado do m a n -
dala. Pela p r im eir a vez, Ju n g apresen t ou an on im am en t e t rês de suas p in t u ras
t iradas do Líber Novus com o exem plos de m an dalas europeus e t eceu com en t á-
rios sobre ela s 232 . A W ilh e lm , escreveu em 2 8 de ou t u bro de 19 2 9 a respeit o
dos m an dalas do volu m e: "As im agen s com plet am -se um as às out ras e, ju st a-
m en t e por causa de sua d iversid ad e, d ão u m a excelen t e im agem dos esforços
do esp írit o in con scien t e eu ropeu para com preen d er a escatologia o r ie n t a l"233 .
Essa ligação en t re o "espírit o in con scien t e eu rop eu " e a escatologia or ien t al
t orn ou -se u m dos gran des tem as n a obra de Ju n g n a d écad a de 19 30 , que ele
in vest igou por m eio de outras colaborações com os in d ólogos W ilh e lm H a u e r
e H e in r ich Zim m e r 2 34 . Ao m esm o tem po, a form a d a obra era cru cial: em vez
O e st u d o c o m p a r a t ivo d o p r o ce sso d e
in d ivid u a ç ã o
Ju n g fam iliarizara-se com t ext os alqu ím icos desde 19 10 aproxim adam en t e.
Em 19 12, Th éo d o r e Flou r n oy apresen t ara u m a in t erpret ação psicológica da
alqu im ia em suas preleções n a Un iversid ad e de Gen eb r a e, em 19 14 , H er b er t
Silberer p u blicou u m a ext en sa obra sobre o t e m a 237 . A abordagem de Ju n g
à alqu im ia seguia a obra de Flo u r n o y e Silberer, ao con siderar a alqu im ia a
p art ir de u m a perspect iva psicológica. Su a com p reen são baseava-se em duas
grandes teses: p rim eiram en t e que, ao m ed it ar sobre os t ext os e m at eriais em
seus laborat órios, os alquim ist as estavam realm en t e prat ican d o u m a form a de
im agin ação at iva; e, em segundo lugar, que o sim bolism o nos textos alqu ím icos
235 M P , p. 15.
236 E m 8 d e fever eir o d e 1923, C a r y Bayn es a n o t o u u m a d iscu ssão c o m Ju n g o co r r id a n a p r im a ve r a an t er io r ,
qu e t eve in flu ên cia sob re ist o: "Vo cê [Ju n g] d isse qu e, p o r m ais qu e u m in d ivíd u o p ossa d ist in gu ir -se d a
m u lt id ã o p o r d on s esp eciais, ele n ã o t e r á c u m p r id o co m seu s d ever es, p sico lo gicam en t e falan d o, a n ã o ser
qu e p ossa fu n cio n a r c o m ê xit o n a co let ivid ad e. Po r fu n cio n a r n a co let ivid ad e n ó s am b os e n t e n d ía m o s
aq u ilo qu e co m u m e n t e se ch a m a "m is t u r a r - s e " c o m as pessoas d e fo r m a so cial, n ã o r elações p r o fissio n ais
o u de n e gó cio s. Vo cê in sist ia e m qu e, se u m in d ivíd u o se m a n t i n h a afast ad o d est as r elações colet ivas, ele
p e r d ia algo qu e n ã o p o d ia d a r -se ao lu xo d e p e r d e r " (CFB).
237 Problem ederMystíkunâíhreSym boltk. Vie n a : H e lle r , 1914.
78 LI BE R N O VU S
Ju n g con sid erou seu "con fron t o com o in con scien t e" a fon te de sua obra
posterior. Ele lem b rou que t oda a sua obra e tudo quan t o realizou post erior-
m en t e proveio dessas im agin ações. Ele h avia expressado as coisas da m elh or
form a que podia, em lin guagem tosca, deficien t e. Mu it as vezes sen t ia com o se
"gigantescos blocos estivessem cain do sobre m im . U m a tem pestade desen ca-
deava ou t ra". Ele estava adm irado de que isso n ão o d est ru iu com o d est ru íra a
out ros, com o por exem plo Sch r eb er 239 .
Q u an d o indagado por Ku r t W o lff em 19 57 sobre a relação en t re suas obras
erudit as e suas notas aut obiográficas de sonhos e fantasias, Ju n g respon deu:
Mas en con trei esta corrente de lava e a paixão nascida de seu fogo t ran s-
form ou e coordenou m in h a vida. Tal corrente de lava foi a m atéria-prim a
que se impôs e m in h a obra é u m esforço, mais ou menos bem-sucedido,
de in clu ir essa m atéria ardente n a concepção do mundo de m eu tempo. As
prim eira fantasias e os prim eiros sonhos foram como que u m fluxo de lava
líquida e incandescente; sua cristalização engendrou a pedra em que pude
t rab alh ar 240 .
Silen ciei os resultados desse m étodo por treze anos, a fim de não provocar
qualquer sugestão, pois queria certificar-m e de que essas coisas - sobretudo
os mandalas - surgem espontaneamente e não sugeridas por m in h a própria
fan t asia 245.
Em todos seus estudos h ist óricos, con ven ceu-se de que os m an dalas foram
produzidos em todos os tem pos e lugares. O b ser vou t am bém que eles eram
produ zidos p or pacien tes de psicoterapeutas que n ão eram seus alun os. Ist o
m ost ra t am bém u m a das razões que podem t ê-lo levado a n ão pu blicar o Líber
Novus: con ven cer-se a si m esm o, e a seus crít icos, de que as m an ifest ações de
seus pacien tes e, especialm en te, suas im agens de m an dalas n ão se d eviam sim -
plesm en t e à sugestão. Ele julgava que o m an d ala represen t ava u m dos m elh ores
exem plos d a u n iversalidade de u m arquét ipo. E m 19 36 , Ju n g an ot ou t am bém
que ele p róp rio h avia usado o m ét od o da im agin ação at iva por u m longo p er ío-
do de t em po e observado m u it os sím bolos que con seguiu verificar só anos m ais
tarde em t ext os que lh e eram d escon h ecid os 246 . Con t u d o, de u m pon t o de vist a
com probat ivo, dada a am plit u d e de sua eru dição, o m at erial do p róp rio Ju n g
n ão t eria sido u m exem plo p art icu larm en t e con vin cen t e de sua tese de que as
im agens provin das do in con scien t e colet ivo em ergiam espon tan eam en te sem
con h ecim en t o prévio.
N o Líber Novus, Ju n g art icu lou sua com preen são das t ran sform ações h ist ó-
ricas do crist ian ism o e da h ist oricid ad e das form ações sim bólicas. O cu p ou -se
com esse t em a em seus escritos sobre a psicologia d a alqu im ia e sobre a p si-
cologia dos dogmas crist ãos e, sobretudo, em Resposta a Jó. Co m o vim os, Ju n g
estava con ven cido de que suas visões an t eriores à gu erra eram visões profét icas
que levaram à com posição do Líber Novus. E m 19 52, através de sua colaboração
com o físico W olfgan g Pau li, gan h ador do p rém io Nob el, Ju n g su st en t ou que
24$ Ib id ., § 6 23.
24 6 Asp e ct o s p sico ló gico s d a Co r e ". O C , 9/ 1, § 334.
82 LI BE R N O VU S
exist ia u m prin cípio de ord en am en t o acausal subjacen te a tais "coin cidên cias
sign ificat ivas", p rin cíp io que ele ch am ou de sin cr on icid ad e 24 7 . Afir m o u que, em
certas circun st ân cias, a con st elação de u m arqu ét ipo levava a u m a relat ivização
do t em po e do espaço, o que explicava com o esses even tos pod iam acontecer.
Er a u m a t en t at iva de am pliar a com preen são cien t ífica para acom odar even tos
com o suas visões de 19 13 e 19 14 .
E im p ort an t e observar que a relação do Líber Novus com os escritos er u d i-
tos de Ju n g n ão seguiu u m a t radução e elaboração d iret a pon t o por ponto. Já
em 19 16 , Ju n g p rocu rou t r an sm it ir alguns dos resultados de seus experim en t os
n u m a lin guagem eru d it a, en quan t o con t in u ava com a elaboração de suas fan t a-
sias. Seria m elh or con siderar o Líber Novus e os Livros Negros com o represen t an do
u m opus privado que corria paralelo e ao lado de seu opus eru d it o pú blico; em bo-
r a o ú lt im o se alim en tasse e derivasse do p rim eiro, eles p erm an eciam d ist in t os.
Dep ois de d eixar de t rabalh ar n o Líber Novus, Ju n g con t in u ou a elaborar seu opus
privado — sua p róp ria m it ologia — em seu trabalh o n a t orre, em seus en talh es
em pedra e nos quadros que pin tava. Aq u i, o Líber Novus fun cion ava com o u m
cen t ro gerador e u m bom n ú m ero de seus quadros e gravuras relacion am -se com
ele. N a psicot erapia, Ju n g procu rava t orn ar seus pacien tes capazes de recu perar
u m a con sciên cia do sen t ido n a vid a facilit an d o-lh es e su pervision an d o-lh es a
au t oexperim en t ação e a criação de sím bolos. Ao m esm o tem po, p rocu rou ela-
borar u m a psicologia cien t ífica geral.
fazê-lo duran te anos. Mas n u m a ocasião com o essa poder-se-ia ar r iscar "24 8 . E m
19 4 4 , Ju n g teve u m grave ataque cardíaco e n ão levou a cabo esse plano.
Em 19 52, Lu cy H eyer apresen tou u m projet o para u m a biografia de Jun g. Por
sugestão de O lga Froebe e in sist ên cia de Jun g, Ca r y Bayn es com eçou colaboran -
do com Lu cy H eyer nesse projeto. Ca r y Bayn es pensava escrever u m a biografia
de Ju n g baseando-se n o Líber Novus249. Para decepção de Jun g, ela d esist iu do
p r o je t o . Ap ó s d ive r so s a n o s d e e n t r e vist a s c o m Lu c y H e ye r , Ju n g pôs u m t e r m o
ao projeto biográfico dela em 19 55, porque estava in sat isfeit o com seu progresso.
Em 19 56 , Ku r t W o lff propôs u m out ro projet o biográfico, que se t ran sform ou
em Memórias, Sonhos, Reflexões. E m algum m om en t o, Ju n g d eu a An ie la Jaffé u m a
cópia do esboço do Líber Novus, feita por To n i W olff. Ju n g au t orizou Jaffé a fazer
cit ações do Líber Novus e dos Livros Negros em Mem órias, Sonhos, Reflexões 250. E m suas
ed ição alem ã das Memórias, Jaffé in clu iu o ep ílogo de Ju n g ao Líber Novus com o
253 Po d e-se ob ser var qu e a p u b lica çã o das car t as Fr e u d - Ju n g, d e cisiva e m si m e sm a , e n q u a n t o o Líber Novus
e o grosso das ou t r as co r r e sp o n d ê n cia s de Ju n g p e r m a n e ce r a m in é d it o s, la m e n t a ve lm e n t e agr avou a
eq u ivo cad a visã o fr e u d o cê n t r ica de Ju n g: co m o vem o s, n o Líber Novus, Ju n g est á se m o ve n d o n u m u n ive r so
t ão afast ad o d a p sican álise q u an t o se p ossa im agin ar .
254 MP, p. 169.
255 J U N G & J A F F É . Lrinnerungen, Trãum e, GedankenvonC.G.Jung. O l t e n : W a lt e r Ve r la g, 1988, p. 387. O s ou t r os
co m e n t á r io s d e Jaffé n est e p o n t o são in exat o s.
256 J A F F É . " T h e cr eat ive p h ases i n Ju n g s life". Spring: A n An n u a l o f Ar c h e t yp a l Psych ology a n d Ju n gia n
Th o u g h t , 1972, p. 174.
I N T RO D U ÇÃO 85
in form ações sobre o seu n ú m ero de págin as, a quan t idade relat iva de t ext o e
quadros e o con t eú d o e in t eresse do t e xt o "257 . Nin gu ém d a ed it ora t in h a r eal-
m en t e vist o ou lid o a obra n em sabia m u it o sobre ela. Est e pedido foi negado.
Em 19 75, algumas reprod u ções do volu m e caligráfico do Líber Novus foram
m ostradas n u m a exposição para com em orar o cen t en ário de Ju n g em Zu riq u e.
Em 19 77, n ove quadros do Líber Novus foram publicados por Jaffé em C.G.Jung:
W ord and Im age e, em 19 8 9 , alguns out ros quadros afins foram publicados por
Ge r h a r d W e h r em sua biografia ilu st rad a de Ju n g 258 .
Em 19 8 4 , o Líber Novus foi fotografado profission alm en t e e foram prepara-
das cin co edições fac-sim ilares. Est as foram dadas às cin co fam ílias diret am en t e
descendentes de Jun g. E m 19 9 2 , a fam ília de Ju n g, que h avia apoiado a p u b li-
cação das O b ras Com plet as de Ju n g em alem ão (con cluída em 19 9 5) , in iciou
u m exam e dos m at eriais in édit os de Jun g. Co m o resultado de m in h as pesqui-
sas, descobri u m a tran scrição in t egral e u m a tran scrição parcial do Líber Novus e
apresen tei-as aos h erdeiros de Ju n g em 19 9 7. N a m esm a época, ou t ra t ran scri-
ção foi apresen tada aos h erdeiros por Mar ie-Lou ise von Fran z. Fu i con vidado
a apresen tar in form es sobre o assunto e a con ven iên cia de sua publicação, e fiz
u m a apresen t ação sobre o assunto. Co m base nestes in form es e discussões, os
h erdeiros d ecid iram em m aio de 2 0 0 0 liberar a obra para publicação.
* Em b o r a est as r efer ên cias t r a t e m d a t r ad u ção in glesa, h á o b se r va çõ e s in t er essan t es e ú t eis sob re o est ilo d e
Ju n g n est a o b r a , r azão p o r q u e a m a n t ive m o s ( N o t a d a e d içã o b r a sile ir a )
1 Cf. ad ian t e, p. I I I .
2 Cf. ad ian t e, p. 112.
87
88 LI BE R N O VU S
Esses três registros lin gu íst icos já se apresen t am com o pot en ciais m od e-
los para u m a possível tradução. Nossa prát ica con sist iu em d eixá-los coabit ar
d en t ro das est rut uras explorat órias vigen tes n o tem po do p róp rio Ju n g. A t a -
refa com que ele se deparou foi descobrir u m a lin guagem em vez de usar u m a
lin guagem já d ispon ível. O s p róp rios registros m ân t ico e con ceit u ai podem ser
con siderados t raduções do regist ro descrit ivo. O u seja, estes registros passam
de u m n ível lit eral a n íveis sim bólicos que o am plificam , n u m a an alogia m od er-
n a com os "m od i d iversi" de Dan t e em sua cart a a Ca n Gr an d e d elia Scala 3. E m
sen t ido bem real, o Líber Novus foi com posto através de t radução in t ert ext u al. A
ret órica do livro, sua m an eira de abordar, surge dessa est ru t u ra in t eragen t e de
t radução in t er n a ou tran svaloração. U m a tarefa crít ica para qualquer t radução
da obra, port an t o, é t r an sm it ir in t act a essa t ext u ra com posicion al.
O fato de que quadros pin t ados de t ipo acabado e h íbrid o ilu m in am o for-
m ato m ed ieval de u m fólio em escrit a caligráfica d ificu lt am ain d a m ais qu ais-
quer reflexões sobre a tarefa lin guíst ica. A n ova lin guagem exigia u m a escrit a
an t iga ren ovada. U m est ilo polifôn ico expressa-se à m an eira de m u lt im íd ia
d en t ro de u m m ovin jen t o sim bólico de recu o-avan ço, m ed ieval e an t ecipa-
t ório, para recuperar a realidade psíquica. Im agen s verbais e visu ais in vest em
sobre Ju n g a p art ir do passado e do presen te, en quan t o visam o além : surge
u m in st ru m en t o com post o de cam adas, cujo est ilo polifôn ico reflete em sua
lin guagem aquela m esm a disposição em camadas com postas.
Dia n t e d a t arefa de t rad u zir u m t ext o com post o h á quase cem an os, os
t radut ores t êm geralm en t e a van t agem de d ispor de m odelos an t eriores para
con su lt ar, com o t am b ém de décadas de com en t ários e crít icas de carát er e r u -
dit o. Sem esses m odelos à d isposição, rest ou -n os im agin ar com o a obra pode-
r ia t er sido t rad u zid a em décadas passadas. Nossa t radução, por con seguin t e,
evit a diversos m odelos in éd it os ou h ip ot ét icos para t r ad u zir o Líber Novus para
o in glês. Exist e m os su rpreen d en t em en t e arcaizan t es Septem Serm ones de Pet er
Bayn es de 19 2$, que se in sp ir am fort em en t e n u m a lin guagem vit or ian a. O u a
con ceit u alm en t e racion alizan t e versão que R. F. C. H u l l p od eria t er t en t ado,
se lh e tivesse sido dado t r ad u zi-lo ao lado de seus ou t ros volu m es d a Série
Bollin gen das O b r as Com p let as de Ju n g 4 ; ou a elegante t radu ção lit erária da
m ão de u m R J . H ollin gd ale. Nossa versão ocupa, port an t o, u m a posição real
n u m a sequ ên cia de m u it as possibilidades. A con sid eração sobre esses m odelos
possíveis realçou qu est ões de com o vazar a lin guagem d en t ro de m u d an ças
h ist óricas n a prosa in glesa, com o veicu lar as in u m eráveis con vergên cias e d i -
vergên cias en t re a lin guagem do Líber Novus e as O b r as Com p let as de Ju n g,
e com o t rad u zir p ara o in glês u m a obra que ao m esm o t em po repercu t e o
alem ão de Lu t er o e a p aród ia que Niet zsch e faz do m esm o em Assim falava Zara-
tustra. Já que n ossa versão t om a est a posição, ao cit arm os as O b r as Com p let as
de Ju n g n ós con sequen t em en t e t rad u zim os de m an eir a n ova ou m od ificam os
d iscret am en t e as t rad u ções publicadas.
O Líber Novus foi con t em p orân eo do ferm en t o lit erário que Mikh ail Bakh t in
ch am ou de im agin ação em prosa d ialógica 5. O escrit or e art ist a an glo-galês D a -
vid Jon es, autor de In Parenthesís e The Anathemata, referiu -se à r u p t u r a da Pr im eir a
Gu e r r a Mu n d ial e seus efeitos sobre o senso h ist órico dos escrit ores, art ist as e
pensadores, ch am an d o-a sim plesm en t e "T h e Break" ( A fr at u r a) 6 . Ju n t o com
outros escritos experim en t ais destas décadas, o Líber Novus escava camadas ar-
queológicas da aven t u ra lit erária, servin do-se d a con sciên cia con quist ada a d u -
ras penas com o pá e, ao m esm o tem po, precioso caco. Em b o r a d u ran t e m u it os
anos t en h a pensado efetivam en te em pu blicar o Líber Novus, Ju n g p referiu n ão
t orn ar-se famoso através dessa form a lit erária - t an t o pelo est ilo quan t o pelo
con t eú d o — p erm it in d o sua publicação. Por volt a de 19 21, com Tipos psicológicos,
Jung já. descobrira que seu san t u ário pod ia forn ecer-lh e seus grandes tem as,
através da t radução para u m a lin guagem eru d it a.
Ju n g en u n cia a t en são en t re seus três registros lin gu íst icos, d irigin d o-se já
a u m fut uro pú blico leit or - que, en t re diferen t es camadas do texto, vai de u m
círculo rest rit o de amigos até u m pú blico m ais am plo. Ist o aparece n it id am en t e
nas frequentes m u dan ças p ron om in ais en t re as versões, que m ost ram a m an ei-
ra com o ele estava con st an t em en t e reim agin an do os possíveis leit ores do texto.
Ju n g adot ou coeren t em en t e essa post u ra dialógica — polifôn ica segundo a t er-
m in ologia post erior de Bakh t in - m ais u m a vez aten to a u m h ip ot ét ico fut uro
pú blico e, n o en t an t o, t am bém t ot alm en t e alh eio à quest ão do público, n ão por
orgulh o mas sim plesm en t e em vist a dos objet ivos em jogo. Q u ad ros e fantasias
deste tesouro privado en t raram an on im am en t e com o in t ert ext os cript ografa-
dos n a obra post erior de Jun g, an in h an d o-se com o chaves h erm en êu t icas para
o con ju n t o escon dido de sua obra.
Co m efeito, podem os im agin ar Ju n g r in d o quan do escreveu sobre o "3. Caso
Z" n a ú lt im a seção de seu ensaio sobre "Aspectos psicológicos da Co r e " ( 19 4 1) 7 .
Al i ele resum e com o an ón im os doze episód ios t irados de seus en con t ros com
a p róp ria alm a n o Líber Novus, ch am an do-os "u m a série de son h os". O s com en -
tários que ele lhes acrescen ta im p elem o aven t u reiro que ele fora, e o sujeit o
que ele se t or n ou nessa aven t ura, para o discurso de u m a pret en sa ciên cia. A
com éd ia é ao m esm o t em po am pla e requin t ada: esse respeitoso h ospedeiro da
an im a m an eja t am bém o in d icad or d iagn óst ico com toda a seriedade. Su a li n -
guagem m ovia-se flexivelmente em am bos os con t ext os, mas ao fazê-lo m a n -
t in h a t am bém certos véus. Essa est rat égia lin gu íst ica reflet ia os objetivos m ais
am plos de Ju n g de perm an ecer fecun dam en t e d u al e con t ext u al. Declaran d o
que seus m ist érios eram part icu lares, a n ão serem macaqueados de m an eira
algum a, Ju n g ofereceu-lh es, n ão obstan te, t am bém u m m odelo de p r o cesso
espirit u al form at ivo e, ao fazê-lo, p rocu rou desen volver u m a lin guagem que
pudesse ser ret om ada por outros para art icu lar suas respectivas experiên cias.
Est a é u m a m an eira de parafrasear a con siderável an om alia da lin guagem
que Ju n g teve que en con t rar através de n oites sem d or m ir a p ar t ir de 1913. Essa
lin guagem m udava seus con t orn os, alt erava sua escala e levava em con sideração
caprich os e m odism os. Por isso n ão causa surpresa que, em suas passagens m ais
elevadas, Ju n g se t en h a apoiado n a resson ân cia da Bíblia de Lu t ero, ela m esm a
u m a t radução que alcan çara, n a cu lt u ra alem ã, a estabilidade de u m a roch a. Eín
festerBurg, "u m a cidadela sólida": d aí nos apoiarm os aqui n a Kin g Jam es Ver sion
( KJV ) da Bíblia para ton alidades com paráveis em in glês. No en t an t o, surge
im ed iat am en t e u m paradoxo: aquilo com que Ju n g con t ou nessa resson ân -
cia h avia t ran splan t ado para o Hetmat ou lar germ ân ico u m espírit o diferen t e,
com o se pode igualm en t e d izer d a profun da pen et ração do m esm o im p lan -
te n a cu lt u ra an glo-saxón ica. Fr an z Rosen zweig, ao t rad u zir partes do An t igo
Test am en t o com Ma r t in Bu ber em m eados da década de 19 2 0 , id en t ificou a
Bíblia de Lu t er o com o o grande criad or de espaço n o espírit o germ ân ico, p re-
cisam en t e através dos m ovim en t os de aproxim ação de Lu t er o à sua fonte: "Par a
con solo de nossas alm as, devem os m an t er tais palavras, devem os t olerá-las, e
assim dar ao h ebraico algum espaço n o qual ele se sai m elh or do que o alem ão"8 .
Daí nosso m ét od o de n ão am aciar os diversos estilos de Ju n g ou t orn á-los m ais
fluen tes do que é n ecessário ou m esm o regu larizar sua pon t uação. Pensem os n o
est ilo "desgrenhado" de Dan t e ou em ou t ra m áxim a de Lu t er o cit ad a nas notas
de Rosen zweig: "A lam a gru d ará n a r od a"9 .
No en t an t o, m esm o essas profun das con cessões ao lin gu ajar arcaico e or igi-
n al por sobre abism os de sen t ido n ão consegue ap roxim ar a experiên cia deses-
t abilizad ora, feit a n a e através d a lin guagem , de que Ju n g é t est em un h a. Seus
com en t ários post eriores n a autobiografia publicada, sobre suas reservas quan t o
ao est ilo em p olad o 10 , n a verdade en cobrem suas pegadas n o Líber Novus. A expe-
riên cia origin al lan çou a fala n u m t u rbilh ão que an im a a d im en são in iciát ica do
livro. Tam bém a lin guagem em preen de u m a descida ao in fern o e ao d om ín io
dos m ort os, que p riva o in d ivíd u o da fala precisam en t e com o ren ova a capaci-
dade de expressão.
'O s exem plos seguintes d ão algum a id eia do alcance desse fator, m apean do
as dificuldades de qualquer ven t riloqu ism o sin cero com o aquele a que Ju n g,
com a pen a n a m ão, se aven t u rou ao em preen der u m a sessão con t rolad a con si-
go m esm o e seu chão. As ín fim as dist orções espaciais de H õld er lin e o carvão
arden t e nos lábios de Isaías en t r am am bos n est a liga, ju n t o com Plat ão sobre
a "fúria corre t a ' ou lou cu ra d ivin a: ( i ) "Min h a alm a su ssu rrou -m e in sist en t e e
m edrosam en te: 'Palavras, palavras, n ão faças palavras dem ais. Cala-t e e escuta:
Tu recon heceste t u a lou cu ra e a adm ites? Vist e que todas as tuas profun dezas
est ão cheias de lou cu r a?"11 ( 2 ) Al m a de Jun g: "Exist e m t ram as in fern ais de p a-
lavras, som en te palavras... Sê cauteloso com palavras, escolhe-as bem ... pois t u
és o p rim eiro que n ela se en reda. Pois palavras t êm sign ificados. Nas palavras
puxas para cim a o subm un do. A palavra é o m ais n u lo e m ais forte. N a palavra
correm ju n t os o vazio e o cheio. Por isso, a palavra é u m a im agem de D e u s"12 . (3)
"Mas se a palavra for u m sím bolo, sign ifica tudo. Q u an d o o cam in h o en t ra n a
m ort e, e n ós estam os en voltos em put refação e n ojo, sobe en t ão n a escuridão
o cam in h o e sai da boca, com o o sím bolo salvador, a p alavra"13. ( 4 ) A m u lh er
m ort a: "Con ced e-m e a palavra - pen a que n ão possas ou vir! Co m o é difícil -
d á-m e a p alavr a!"14 El a en t ão se m at erializa n a m ão de Ju n g com o H AP , o falo.
(5) Al m a de Jun g: "Ten s a palavra que n ão pode ficar ocu lt a"15 . ( 6 ) Jun g: "O
que sign ifica m in h a palavra? É o balbucio d a crian ça..." Alm a : "Elas n ão veem
10 Cf. ad ian t e, p. 6 4.
11 Cf. ad ian t e, p. 30 8 .
12 Cf. ad ian t e, p. 312
13 Cf. ad ian t e, p. 344
14 Cf. ad ian t e, p. 4 26 .
15 Cf. ad ian t e, p. 4 4 6 .
N O T A D O S T R A D U T O R E S D A E D I Ç ÃO I N G L E S A 93
gran de força que est á por trás d a t en são m ân t ica ocupou Ju n g n o breve Epilogo
que ele in seriu n o volu m e caligráfico em 19 59 , dois anos antes de sua m ort e.
Percorren d o m ais u m a vez os m ares dessas págin as ilu m in ad as, parece que ele
ju lgou desn ecessário qualquer recapit ulação u lt erior. In t errom p en d o n o m eio
da frase, Ju n g d eixou o livro su bsist ir por con t a própria, com o u m dos filões
de discurso d en t ro de t oda sua obra. Est e con t rapon t o n ão exigiu n en h u m co-
m en t ário, com o tam pouco o exigiram os três registros de lin guagem n o p róp rio
livro. O O r d álio era afin al Comtnedía, que n ão precisa de n en h u m a just ificação
t eórica ret rospect iva. O Líber Novus sobreviveria aos tateam en tos e bom bardeios
da recepção. E m 1957, Ju n g observara a An ie la Jaffé que tan tas asn eiras h aviam
sido dit as a respeit o dele, que algumas a m ais n ão o p e r t u r b a r ia m 20 . Aqu ele ato
de levan t ar a pen a, port an t o, en t regou con fian t em en t e o livro à sua t rajet ória
para as profun dezas, pen et ran do profun dam en t e n a p ed reira em que se h avia
t ran sform ado, t en do suas O b ras Com p let as e a t orre ju n t o ao lago em Bo llin -
gen com o suas lin h agen s fin ais.
Nest a n ot a procuram os t r an sm it ir apenas os prin cípios gerais que or ien t a-
ram n ossa tradução. U m a discussão com plet a das escolhas com que nos con -
fron t am os e u m a just ificação das decisões tom adas en ch eriam u m volu m e tão
ext en so com o este.
20 MP, p. 183.
N o t a e d it o r ia l
S O N U SH AM D ASAN I
O arran jo aqui apresen tado com eça com u m a revisão d a t ran scrição de
Ca r y Bayn es e u m a n ova t ran scrição do m at erial rest an t e con t id o n o volu m e
caligráfico ju n t o com o Esboço datílografado dos Aprofundam entos, com com parações
95
96 LI BE R N O VU S
l i n h a p o r l i n h a c o m t o d a s as ve r s õ e s e xist e n t e s. A s ú lt im a s t r i n t a p á gin a s sã o
com pletadas do Esboço. As variações p rin cip ais en t re os diferen t es m an u scrit os
d izem respeit o à "segunda cam ada' do texto. Est as m udan ças represen t am o
t rabalh o con t ín u o de Ju n g de com preen der o sign ificado psicológico das fan t a-
sias. Co m o Ju n g con siderava o Líber Novus u m a "t en t at iva de u m a elaboração em
t erm os da revelação", estas m udan ças en t re as diferen t es versões apresen t am
esta "t en t at iva de u m a elaboração" e, por isso, são u m a part e im p ort an t e da
p róp ria obra. Por isso as n otas m ost ram m udan ças sign ificativas en t re as d ife-
ren t es versões e apresen t am m at erial que esclarece o sen t ido ou o con t ext o de
u m a seção d et erm in ad a. Ca d a cam ada m an u scrit a é im p ort an t e e in t eressan t e
e u m a publicação de todas elas — que ch egaria a vários m ilh ares de págin as —
seria u m a tarefa para o fu t u ro 1.
O crit ério para in clu ir passagens dos m an u scrit os an t eriores foi sim ples-
m en t e a pergun ta: será que esta in clusão aju da o leit or a com preen der o que
está acontecendo? Além da im p ort ân cia in t rín seca dessas m udan ças, a an o-
tação delas nas n otas de rod apé serve a u m segundo p rop ósit o - m ost ra com
quan t o cuidado Ju n g t rabalh ou em revisar con t in u am en t e o texto.
O Esboço corrigido t em duas camadas de correções feitas por Jun g. O p rim eiro
con ju n t o de correções parece t er sido feito depois que o Esboço foi datilografado
e antes da tran scrição n o volu m e caligráfico, pois parece que foi esse m an u scrit o
que Ju n g t ran screveu 2. O u t r o con ju n t o de correções sobre aproxim adam en t e
2 0 0 págin as do t ext o datilografado parece t er sido feito depois do volu m e cali-
gráfico, e eu calcularia que estas foram feitas em algum m om en t o dos meados da
década de 19 2 0 . Essas correções m od ern izam a lin guagem e relacion am a t er m i-
n ologia com a t erm in ologia de Ju n g do p eríod o dos Tipos Psicológicos. São t am bém
acrescentados esclarecim en tos suplem en tares. Ju n g chegou a corrigir m at erial
do Esboço que foi cancelado n o volu m e caligráfico. Ap resen t ei algumas das m u -
danças im port an t es nas notas de rodapé. A p art ir delas o leit or pode ver com o
Ju n g t eria revisado todo o t ext o se tivesse com pletado essa cam ada de correções.
For am acrescentadas subdivisões n o Líber Secundus, capít u lo 21, "O m ago", e
nos Aprofundam entos para fácil referên cia. Est as são in dicadas por n ú m eros en t re
chaves: { }. O n d e foi possível, a dat a de cada fan t asia foi dada de acordo com
os Livros Negros. A "segun da cam ada" acrescen tada n o esboço é in d icad a por [ 2 ]
e o m an u scrit o ret orn a à sequên cia das fantasias nos Livros Negros n o in ício do
capít ulo seguinte. Nas passagens em que foram acrescentadas su bdivisões, o
ret orn o à sequên cia dos Livros Negros é in dicado por [ 1] .
O s vários m an u scrit os t êm diferen t es sistem as de d ivid ir em parágrafos. No
Lsboço, os parágrafos con sist em m u it as vezes de u m a ou duas frases e o t ext o é
apresen tado com o u m poem a em prosa. N o ou t ro ext rem o, n o volu m e caligrá-
fico, exist em longas passagens de t ext o sem n en h u m a divisão em parágrafos. A
m an eira m ais lógica de divisão em parágrafos é a da t ran scrição de Ca r y Bayn es.
Ela aproveit ou frequen t em en t e a presen ça de in iciais coloridas para d ivid ir em
parágrafos. Co m o é pouco provável que ela t en h a reparagrafado o t ext o sem a
aprovação de Ju n g, seu esquem a foi tom ado com o pon t o de p art id a para esta
edição. E m alguns casos, a divisão em parágrafos foi t orn ad a m ais con form e
ao Lsboço e ao volu m e caligráfico. N a segunda m etade de sua t ran scrição, Ca r y
Bayn es t ran screveu o Esboço, já que o volu m e caligráfico n ão fora com pletado.
Aq u i paragrafei o t ext o d a m esm a form a com o foi estabelecido antes. Acr ed it o
que ist o apresen t a o t ext o n a form a m ais clara e fácil de seguir.
N o volu m e caligráfico, Ju n g ilu st rou certas in iciais e escreveu algumas em
verm elh o e azul, e às vezes au m en t ou o t am an h o do texto. O plan o aqui procu ra
seguir essas con ven ções. Já que as in iciais em quest ão n em sem pre são as m es-
mas em port uguês e em alem ão, a escolha de qual in icial colocar em verm elh o
n a edição portuguesa orien t ou-se por sua correspon den te localização n o texto.
O restan te do texto, além do que Ju n g t ran screveu n o volu m e caligráfico, foi es-
tabelecido seguindo as mesmas con ven ções, para m an t er coerên cia. N o caso dos
Septem Serm ones, a coloração da fonte seguiu a versão im pressa de Ju n g de 19 16 .
A decisão de in clu ir os Aprofundam entos n o fin al e com o parte do Líber Novus
baseia-se nas seguintes razões edit oriais: o m at erial dos Livros Negros com eça em
n ovem bro de 19 13. O Líber Secundus en cerra-se com m at erial de 19 de ab ril de
19 14 e os Aprofundam entos com eçam com m at erial do m esm o dia. O s Livros Ne-
gros prosseguem con secut ivam en t e até 2 1 de ju lh o de 19 14 e recom eçam a 3 de
ju n h o de 191$. Nesse in t ervalo, Ju n g escreveu o Esboço manuscrito. Q u an d o Ca r y
Baynes transcreveu o Líber Novus entre 19 24 e 19 2$, a prim eira metade de sua t ran s-
crição seguiu o próprio Líber Novus até ao ponto a que Jun g chegou em sua p róp ria
98 LI BE R N O VU S
t ran scrição para o volu m e caligráfico. Ele con t in u a seguindo o esboço e depois
avan ça 2 7 págin as nos Aprofundamentos, t erm in an d o n o m eio da frase.
N o fin al do Líber Secundus, a alm a de Ju n g ascen dera ao céu seguindo o Deu s
ren ascido. Ju n g pen sa agora que Filêm on é u m ch arlat ão e aproxim a-se do seu
"eu", com o qu al deve con viver e que ele deve educar. O s Aprofundamentos con -
t in u am d iret am en t e a p ar t ir desse pon t o com u m con fron t o com seu "eu ". A
ascen são do Deu s ren ascido é m en cion ada, e su a alm a ret orn a e exp lica p or
que ela desaparecera. Filêm on reaparece e in st r u i Ju n g sobre com o estabelecer
a relação corret a com sua alm a, com os m ort os, com Deu s e com os d aím on es.
Nos Aprofundamentos, Filêm on aparece in t eiram en t e e assume o sign ificado que
Ju n g lh e at ribu i t an t o n o sem in ário de 19 2$ quan t o nas Memórias. Só nos Apro-
fundam entos cert os ep isód ios do Líber Prím us e do Líber Secundus t or n am -se claros.
D a m esm a form a, a n arrat iva dos Aprofundam entos n ão faz sen t ido se n ão se leu o
Líber Prím us e o Líber Secundus.
Lm dois lugares dos Aprofundam entos, o Líber Prím us e o Líber Secundus são m e n -
cionados de u m a form a que sugere n it id am en t e fazerem parte da m esm a obra:
E então estourou a guerra. Abriram -se então meus olhos sobre m u it a coisa
que eu havia vivido antes, e isso me deu também a coragem de dizer tudo o
que escrevi nas partes anteriores deste livro 3.
Est as referên cias às "partes an t eriores deste livr o " sugerem que tudo ist o
con st it u i n a verdade u m só livro e que os Aprofundamentos foram con siderados
por Ju n g com o part e do Líber Novus.
Est a opin ião é apoiada pelo n ú m ero de con exões in t ern as en t re os textos.
U m exem plo é o fato de que os m an dalas do Líber Novus est ão est reit am en t e
ligados à experiên cia do si-m esm o, e a percepção de sua cen t ralidade é d escrit a
só nos Aprofundamentos. O u t r o exem plo ocorre n o Líber Secundus, capít ulo i$: q u an -
do Ezeq u iel e seus com pan h eiros anabatistas chegam , eles d izem a Ju n g que
estão in d o aos lugares santos de Jeru salém , porque n ão est ão em paz já que n ão
com plet aram plen am en t e a vid a. Nos Aprofundamentos, os m ort os reaparecem ,
dizen do a Ju n g que est iveram em Jeru salém , mas n ão en con t raram o que ali
procu ravam . Nesse m om en t o aparece Filêm on e com eçam os Septem Sermones.
Talvez Ju n g t en h a pret en dido t ran screver os Aprofundamentos n o volu m e caligrá-
fico e ilu st rá-los, já que exist em m u it as págin as em bran co.
A 8 de jan eiro de I9$8, Ca r y Bayn es pergu n t ou a Jun g: "Você se lem b ra que
m e m an d ou copiar u m bom ped aço do p róp rio Livro Vermelho en quan to você
esteve n a Africa? Ch egu ei até ao in ício dos Aprofundamentos. Ist o vai além do
que Fr au Jaffé colocou à disposição de K . W [Ku r t W olff) e ele gost aria de
lê-lo. Est á O K? " 5 Ju n g respon deu a 2 4 de jan eiro: "N ã o t en h o objeções a que
você em preste suas notas do 'Livr o Ver m elh o' a Mr. W o lff"6 . Aq u i parece que
t am bém Ca r y Bayn es con siderava os Aprofundamentos com o part e do Líber Novus.
Nas cit ações feitas nas n otas, as elipses foram in dicadas por três pon tos.
N ã o foram acrescentadas novas ênfases.
5 JA.
6 JA.
N o t a à e d içã o s e m ilu st r a çõ e s
101
Ab r e vi a ç õ e s e n o t a so b r e a p a gin a çã o
[ I H ] - In icial h ist oriad a - u m a let ra in icial preen ch id a com u m a
represen t ação em m in iat u r a de u m a figura in d ivid u al ou de u m a cen a
com plet a.
I L U S T R A Ç Ã O o o o - In d ica o n ú m ero da págin a em que a ilust ração
aparece nos fac-símíles.
McGu ir e , revisado por Son u Sh am dasan i (Pr in cet on : Bollin gen / Ph ilem on
Series, Pr in cet on Un iver sit y Press) 2 0 12 .
CFB - Ca r y Bayn es Papers, Con t em p or ar y Med icai Ar ch ives, W ellcom e
Library, Lon d res.
Cartas - Cartas de C.G.Jung, sei. e ed. por An ie la Jaffé em colaboração com
Ge r h a r d Ad ler, t rad . Edgar O r t h (Pet rópolis: Vozes. 19 9 9 , 2 0 0 2 , 2 0 0 3 ) ,
3 vols.
JA - Coleção de Jun g. Coleções de H ist ória das Ciên cias, Ar q u ivos do
In st it u t o Fed eral de Tecn ologia da Suiça, Zu riq u e.
Memórias, Sonhos e Reflexões, C G . Ju n g/ An iela Jaffé, t rad . D o r a Fer r eir a d a Silva.
Ap resen t ação de Sérgio Br it o. Rio de Jan eiro: Nova Fr on t eir a, 6. ed. 2 0 0 6 .
M P - Prot ocolos das en t revist as de An ie la Jaffé a C G . Ju n g sobre Memórias,
Sonhos, Reflexões, Bib liot eca do Con gresso, W ash in gt on D .C. (origin al em
alem ão).
MPA - Min u t as d a Associação de Psicologia An alít ica, Clu b e Psicológico,
Zu r iq u e (origin al em alem ão).
MSZ - Min u t as d a Sociedade Psican alít ica de Zu riq u e, Clu b e Psicológico,
Zu r iq u e (origin al em alem ão).
103
IO 4 LI BERN O VU S
Liber Primus
[ fo l.i( r ) ]
O c a m i n h o d aq u ele q u e vir á
Isaías díxít: quis credídít audítuí nostro et brachíum Dotníní cuí revelatutn est? Et ascendei sícut vír-
gultum coram eo et sícut radíx de terra sítíentí non est specíes eí neque decor et vídím us eum et non erat
aspectus et desíderavím us eum : despectum et novíssím um vírorum vírum dolorum e scíentem ínfírm í-
tatem et quasi abscondítus vultus eíus et despectus unde nec reputavím us eum . vere languores nostros
ípse tulít et dolores nostros ípseportavít et nosputavím us eum quasi leprosum etpercussum a Deo et
hum ílíatum . cap.lííí/ í-ív.
parvulus ením natus est nobísfílíus datus est nobís etfactus est príncípatus super um erum eíus et vo-
cabítur nom en eíus Adm írabílís consílíaríus Deusfortís Paterfuturísaeculípríncepspacís. caput íx/ ví.
[Isaías disse: Q u e m creu n aqu ilo que ouvim os, e a qu em se revelou o braço de
Javé? Ele cresceu d ian t e dele com o u m reben to, com o raiz que b rot a de u m a
t erra seca; n ão t in h a beleza n em esplen dor que pudesse at rair o nosso olhar,
n em form osu ra capaz de nos deleitar. Er a desprezado e abandonado pelos h o-
m en s, u m h om em su jeit o à dor, fam iliarizad o com a en ferm idade, com o u m a
pessoa de qu em todos escon dem o rost o; desprezado, n ão fazíam os caso n e-
n h u m dele. E, n o en t an t o, eram as nossas en ferm idades que ele levava sobre si,
as nossas dores que ele carregava. Mas n ós o t ín h am os com o vít im a do castigo,
ferido por Deu s e h u m ilh ad o ] 2 .
IO 7
io8 LI BERP RI M U S foi.i(r)/ i(v)
["Porque u m m en in o nos n asceu, u m filh o nos foi dado, ele recebeu o poder
sobre seus om bros, e lh e foi dado este n om e: Con selh eiro-m aravilh oso, Deu s-
fort e, Pai-et ern o, Prín cip e-d a-p az" ( Is 9 ,6 ) 3 .]
Ioannes díxít: et Verbum carofactum est et habítavít in nohís et vídím us gloriam eíus quasi unígenítí a
Patreplenum gratíae etveritatís. Ioann.cap.í/ xíííí
[João disse: E o Verb o se fez carn e e h abit ou en t re n ós, e n ós vim os sua glória,
glória que Ele t em ju n t o ao Pai com o filh o ún ico, ch eio de graça e de verdade
O U4).]
Isaías díxít: laetabítur deserta et ínvia et exultabít solítudo etflorebít quasi lílíum . germ ínans germ ína-
bit et exultabít laetabunda et laudans. tunc aperíentur oculí caecorum et aures sordorum patehunt. tunc
salíet sícut cervus claudus aperta erít língua m utorum : quía scíssae sunt ín deserto aquae et torrentes ín
solítudíne et quae erat árida ín stagnum et sítíens ín fontes aquarum . ín cuhílíbus ín quíbusprius dra-
cones habítabant oríetur víror calam í et íuncí. et erít tíbí sem ita et via sancta vocabítur. non transíbít
per eam pollutus et haec erít vohís directa via íta utstultí non errentper eam . cap. xxxv.
[Isaías disse: Alegrem -se o deserto e a t erra seca, reju bile-se a estepe e floresça;
com o o n arciso, cubra-se de flores, sim , reju bile-se com grande jú bilo e exulte...
En t ão se abrirão os olhos dos cegos, e os ouvidos dos surdos se desobst ruirão.
En t ão o coxo saltará com o o cervo, e a lín gu a do m udo can t ará can ções alegres,
porque a água jorrará do deserto, e rios, da estepe. A t erra seca se t ran sfor-
m ará em brejo, e a t erra árida em m an an ciais de água. O n d e repousavam os
chacais surgirá u m cam po de ju n cos e de papiros. Al i h averá u m a estrada - u m
cam in h o que será ch am ado cam in h o sagrado. O im p u ro n ão passará por ele, ele
m esm o an dará por esse cam in h o, de m odo que até os estultos n ão se desgar-
rarão ( Is 3$,i-8) 4 .]
3 E m 1921, Ju n g cit a essa p assagem , ob ser van d o: "A n a t u r e z a d o sím b o lo r e d e n t o r é a d e u m a cr ian ça, ist o é, a
at it u d e d e cr ian ça o u at it u d e n ã o p r eco n ceb id a faz p ar t e d o sím b o lo e d e su a fu n ção. A at it u d e 'de cr ian ça'
faz c o m qu e a u t o m a t ica m e n t e su r ja n o lu gar d o vo lu n t a r ism o p r ó p r io e d a in t e n cio n a lid a d e r a cio n a l
u m o u t r o p r in cíp io o r ie n t a d o r t ão o n ip o t e n t e q u an t o d ivin o . O p r in cíp io o r ie n t a d o r é d e n a t u r e z a
ir r a cio n a l, r azão p or qu e se m a n ife st a sob a cap a d o m ar avilh o so . Ist o fo i m u it o b e m exp r esso p o r Is 9,5.
Esses a t r ib u t o s in d ic a m as q u alid ad es essen ciais d o sím b o lo red en t or... O cr it é r io d a ação 'd ivin a ' é a for ça
ir r esist ível d o im p u lso in co n scie n t e " ( O C , 6, § 4 9 1- 4 9 2) .
4 E m 1955/ 1956, Ju n g o b se r vo u qu e a u n iã o d os op ost os d os p od er es d est r u t ivo s e co n st r u t ivo s d o
in co n scie n t e fo r m a m u m p ar alelo co m a r ealização d o est ad o m e ssiâ n ico d escr it o p o r Isaías n e st a
p assagem ( O C , 14, § 258 ) .
O C A M I N H O D A Q U E L E Q U E VI RÁ 109
m anu prop[ria] scrípt[utn] a CG.Jung an[n]o Do[tníní] m cm xv ín dom [u] s[ua] Kúsnacht
Turíc[ense>].
O sentido suprem o não é um sentido e não é um absurdo, é im agem eforça ao m esm o tem po, glória
eforçajuntas.
O sentido suprem o é com eço e m eta. É ponte de passagem para o outro lado e realização8.
Os outros deuses m orreram em sua tem poralidade, m as o sentido suprem o não m orre, ele se trans-
form a em sentido e então em absurdo, e do fogo e do sangue da colisão de am bos reergue-se o sentido
suprem o rejuvenescido.
A im agem de Deus tem um a som bra. O sentido suprem o existe realm ente e lança um a som bra. Pois
o que poderia existir real e corporalm ente e não ter nenhum a som bra?
A som bra é a tolice. É desprovida de força e não tem existência em si. Mas a tolice é a irm ã insepa-
rável e im ortal do sentido suprem o.
Com o as plantas, assim tam bém crescem as pessoas, algum as na luz, outras na som bra. São m uitas
as que precisam da som bra e não da luz.
A im agem de Deus lança um a som bra que é tão grande quanto ele próprio.
O sentido suprem o égrande e pequeno, é am plo com o o espaço do céu estrelado e estreito com o a
célula do corpo vivo.
tos, eu m e escon dia deles atrás das estrelas m ais altas e m ais geladas. Mas o es-
pírit o da profun deza m e apan h ou e forçou a bebid a am arga en t re m eus láb io s 10 .
O espírit o dessa época disse-m e em voz baixa: "Est e sen t ido suprem o, esta
im agem de Deu s, esta in t erfusão do quen te e do frio, ist o és t u e som en te t u ".
Mas o espírit o da profun deza falou -m e 11: "T u és u m a im agem do m u n d o in fi-
n it o, todos os últ im os m ist érios do vir a ser e do cessar de ser m oram em t i. Se
n ão possuísses tudo isso, com o poderias con h ecer?"
Em con sideração à m in h a fraqueza h um an a, o espírito da profun deza deu-m e
esta palavra. Tam bém esta palavra é supérflua, pois n ão falo por causa dela, mas
porque eu preciso. Pelo fato de o espírit o m e rou bar a alegria e a vid a se eu n ão
falar, por isso eu falo 12 . Sou o servo que o t raz, e que n ão sabe o que sua m ão
carrega. Q u e im a r ia sua m ão se n ão o colocasse lá on de o sen h or m an d a que o
coloque.
O espírit o de n ossa época falou-m e e disse: "Q u e necessidade pod eria ser
essa que te obriga a falar tudo isso?" Est a t en t ação foi difícil. Q u e r ia reflet ir
qual necessidade in t er n a ou ext ern a pod eria forçar-m e a isso, e porque n ão
en con t rei n en h u m a necessidade com preen sível, estive prestes a im agin ar u m a.
Co m isso, o espírit o dessa época quase con sen t iu que, em vez de falar, eu con -
tin uasse a pen sar em fun dam en t os e explicações. Mas o espírit o da profun deza
m e falou e disse: "En t en d er u m a coisa é pon t e e possibilidade de volt ar ao t r i-
lho. Mas explicar u m a coisa é arbit raried ad e e às vezes até assassinato. Con t ast e
os assassinos en t re os eru d it os?"
Mas o espírit o dessa época aproxim ou -se de m im e colocou à m in h a fren t e
grossos livros que con t in h am todo o m eu saber; suas págin as eram de m et al, e
u m est ilet e de ferro gravara nelas palavras im placáveis; ele apon t ou para aque-
las palavras im placáveis, falou para m im e disse: "Aqu ilo que t u falas, ist o é a
lou cu ra".
E verdade, é verdade, é a d im en são, a em briaguez e a feiu ra da lou cu ra o
que eu falo.
Mas o espírito da profundeza apro xim o u-se de m im e falou: "O que tu falas
é. O tamanho é, a embriaguez é, a trivialidade desprezível, doente, ignorante
é, perco rre todos os cam inho s, m o ra e m todas as casas e rege o dia de toda a
humanidade. Também os astros eternos são banais. El a é a grande senho ra e a
única essência da divindade. Zo m ba-se dela, também a zo m baria é. Acre ditas
tu, ho m e m dessa época, que a zo m baria é menos que a adoração? O n d e estão
tuas medidas, falso m e dido r?13 A soma da vida n a zo m baria e n a adoração é que
decide, não te u julgam ento".
Preciso falar também do ridículo. Vó s , pessoas vindouras! Co n he ce re is o
sentido supremo no fato de ele ser a zo m baria e a adoração, um a zo m baria san -
grenta e um a adoração sangrenta: o sangue sacrificial une os poios. Q u e m sabe
disso zo m ba e adora no mesmo respirar.
Mas depois disso apresentou-se diante de m im m in h a condição de ser h u -
mano e falou: "Q u e solidão, que frieza do abandono colocas sobre m im quando
falas assim! Le m bra-te da destruição do sendo e dos rio s de sangue do sacrifício
m onstruoso que a profundeza e xige "14 .
Mas o espírito da profundeza disse: "Ningué m pode n e m deve im pe dir o
sacrifício. Sacrifício não é destruição. Sacrifício é pedra angular do que virá.
Não tivestes mosteiros? Não foram para o deserto inúmeros m ilhares? De ve is
trazer mosteiros dentro de vós mesmos. O deserto está e m vós. O deserto vos
cham a e vos puxa de volta, e se estivésseis chumbados co m ferro ao m undo de s-
sa época, o chamado do deserto quebra todas as correntes. Verdadeiram ente,
e u vos preparo para a solidão".
De po is disso, calo u-se m e u ser humano. Mas ao m e u ser espiritual aco nte -
ce u algo que preciso cham ar de graça.
Min ha linguagem é im perfeita. Não que e u queira brilhar co m palavras, mas
po r incapacidade de enco ntrar aquelas palavras é que falo e m imagem. Pois não
posso pro nunciar de outro m odo as palavras da profundeza.
A graça que me aconteceu de u-m e fé, esperança, ousadia suficiente para
não co ntinuar resistindo ao espírito da profundeza, mas falar suas palavras.
Mas antes que pudesse cobrar ânimo para assim proceder, precisei de u m sinal
13 Li t . Verm essener. Is s o traz tam bé m a co n o tação d o adje tivo verm essen, ò u se ja, u m a falta o u p e rd a d e m e d id a, e
po r isso i m p l i ca co n fian ça e xce ssiva, pre sunção .
14 U m a re fe rê ncia à visão que se segue.
O C A M I N H O D A Q U E L E Q U E VI RÁ 113
Mas quem sabe disso hoje em dia? Quem conhece o cam inho para o eterno e fértil cam po da alm a?
Procurais o cam inho através de coisas exteriores, ledes livros e ouvis opiniões: de que serve?
20 Vi n h o con gelad o é feit o d e ixa n d o -se as u vas n a vi n h a at é qu e fiq u e m con gelad as. D e p o is são esp r em id as,
e o gelo r et ir ad o, r esu lt a n d o e m u m vin h o d oce, m u it o sab oroso e a lt a m en t e co n cen t r ad o .
21 O esboço co n t in u a : "Es t e fo i m e u son h o. To d o esfo r ço de in t e r p r e t á - lo fo i e m vão. Esfo r ce i- m e d u r a n t e
vá r io s d ias. Mas a im p r e ssã o qu e d e ixo u fo i p o d er o sa" (p . 9 ) . Ju n g t a m b é m co n t a esse so n h o e m Mem órias
(p . 211).
22 Ve r in t r o d u çã o , p. 25.
23 N o e sb o ço ist o é d ir igid o a "m eu s am igo s" (p . 9 ) .
24 Cf. o con t r ast e c o m Jo 14,6: "Jesu s lh e r esp on d eu : E u so u o ca m in h o , a ver d ad e e a vid a . N i n g u é m ve m ao
Pai se n ã o p o r m i m ".
25 O Esboço co n t in u a : "I s t o n ã o é u m a le i, m as u m a n ú n cio d o fat o de qu e h a via p assad o o t e m p o d o e xe m p lo
e d a le i e d a lin h a r e t a p r e via m e n t e t r a ça d a " (p . 10 ) .
26 O esboço co n t in u a : "M i n h a lín gu a sequ e se e u vos ap r esen t ar leis, se vos en gam b elar c o m d o u t r in a s. Q u e m
p r o cu r a isso sairá c o m fom e de m i n h a m e sa " (p io).
O R E E N C O N T R O D A ALM A "5
O r e e n c o n t r o d a a lm a
[ I H ii( r ) ] 3 °
Cap. i }1
por vo lta dos meus quarenta anos de vida, havia alcançado tudo o que eu dese-
jara. Havia conseguido fama, poder, riqueza, saber e toda a felicidade humana.
Ce sso u m inha ambição de aumentar esses bens, a ambição retrocedeu e m m im ,
e o pavor se apoderou de m i m 32 . A visão do dilúvio to m o u co nta de m im , e e u
senti o espírito da profundeza, mas eu não o e n te n dia 33. Mas ele me forçou com
um desejo inte rio r insuportável e e u disse 34 :
32 O esboço do m anuscrit o te m : "Pre z ad o s am igo s !" (p. 1). O esboço te m : "Pre z ad o s am igo s !" (p. 1). Em su a pre le ção
n a E T H a 14 de ju n h o de 1935, Jun g o bse rvo u: "Po r vo lta do trigé sim o qu in to ano , e xiste u m po n to e m
que as co isas co m e çam a m udar, é o p ri m e i ro m o m e n t o do lado s o m brio d a vid a, do de sce r para a m o rte .
E e vide n te que D an t e e n co n t ro u e ste po n to e o s que le ram Zarat ust ra sabe rão que Ni e t z s ch e tam bé m o
de s co briu . Q u a n d o ch e ga e ste m o m e n t o crítico , as pe sso as o e n fre n tam de dive rsas m an e iras: algum as
n ão o ace itam ; o utras m e rgu lh am n e le ; e para o utras ain d a algo im po rtan te aco n te ce a p art ir de fo ra. Se
n ão ve m o s algo, o D e s t i n o n o -l o faz ve r" ( H A N N A H , B. (o rg.). Modem Psychology - Vo l . 1 an d 2: No t e s o n
Le ctu re s give n at th e Eidge n õ ssisch e Te ch n is ch e Ho ch s ch u le , Zi i ri c h , by Pro f. D r. C G . Jun g, O c t o b e r
1933-July 1935, 2. e d. Zu ri qu e : Ed . Privada, 1959, p. 223).
33 A 27 de o u tu bro de 1913, Ju n g e scre ve u a Fre u d ro m pe n d o re laçõ e s co m e le e d e m i t i n d o -s e do cargo de
e d ito r d o JahrbuchjúrPsychoanalyt ischeundPsychopat hologíscheForschungen ( M c G U I R E , W & S A U E R L A N D E R ,
W. (o rgs.). Sigm und Freud C G . JungBriefwechsel. Fran kfu rt am Mai n : Fi s ch e r Ve rlag, 1974, p. 612).
34 Em n o ve m bro de 1913 (n as n o tas a seguir, as datas das fantasias e spe cíficas fo ram tiradas do s Livros Negros).
Ap ó s "de se jo ", o esboço te m : "n o co m e ço do m ê s se guin te to m ar m i n h a can e ta e e scre ve r i s t o " (p. 13).
35 Es t a afirm ação o co rre dive rsas ve ze s n o s e scrito s tardio s de Ju n g - c f, po r e xe m plo , P R A T T , J. "No t e s o n
a talk give n by C G . Jun g: 'Is an alytical psycho lo gy a religion?"'SpringJournal oj Archet ypal Psychology andJungian
Thought , 1972, p. 148.
O RE E N C O N T RO D A ALM A 117
Min h a alma, contigo deve co ntinuar m inha viagem. Co n tigo quero cam inhar e
subir para m inha so lidão "36 .
36 Mais tarde Ju n g de scre ve u s u a tran sfo rm ação pe sso al o co rri d a n e ste te m po co m o u m e xe m plo do in ício
d a se gun da m e tade d a vid a, que frequentem ente assin alo u u m re to rn o à alm a, de po is de alcançadas
as m e tas e as am biçõ e s d a p ri m e i ra m e tade d a vi d a (Sínéobsdat rat isforinação, 1952. O C , 5, p. xxvi ) . Ve ja
tam bé m : "A m udan ça de vi d a", 1930. O C , 8 ) .
37 Ju n g se re fe re aqui à s u a o bra m ais an tiga. El e e scre ve u p o r e xe m plo e m 1905: "O e xpe rim e n to de
asso ciaçõ e s ao m e n o s n o s fo rn e ce os m e io s de traçar o cam i n h o d a pe squisa e xpe rim e n tal para ch e gar aos
se gre do s d a psique d o e n t i a" ( O C , 2, § 8 9 7) .
38 Em Tipos psicológicos ( 19 20 ) , Ju n g o bs e rvo u que n a psico lo gia, as co n ce pçõ e s são "u m pro d u to d a co n ste lação
psico ló gica s u bje tiva d o pe s qu is ad o r" ( O C , 6, § 8 ) . Es t a re fle xão co n s t it u iu t e m a im po rtan te e m s u a o bra
po s te rio r (cf. SHAbADASANI.Jungandt heMakingofModernPsychobgy. Th e D re a m o f a Scie n ce . Cam bri d ge :
Cam b ri d ge Un i ve rs i t y Pre ss, 20 0 3, § 1).
39 O esboço co n tin u a: "u m s is te m a m o rto de e n s in o , po r m i m e xco gitado e m o n tad o co m as ch am adas
e xpe riê n cias e ju lgam e n to s " (p. 16).
4 0 Em 1913, Ju n g ch am a e ste pro ce sso de in tro ve rsão d a libid o ("A que stão do s Ti p o s Psico ló gico s". O C , 6 ) .
n8 L I B E R P R I M U S foi. i ( v) / i i ( r )
atrás de todas as coisas, vai pu xá-las todas para si, mas n ão en con t rará nelas sua
alm a, pois só a en con t rará d en t ro de si m esm o. E óbvio que sua alm a está nas
coisas e nas pessoas, mas o cego agarra as coisas e as pessoas, mas n ão sua alm a
nas coisas e nas pessoas. N ã o sabe n ada a respeit o de sua alm a. Co m o pod eria
d ist in gu i-la das pessoas e das coisas? Ele en con t raria, sim , sua alm a n a própria
cobiça, mas n ão nos objetos da cobiça. Se ele possuísse sua cobiça, e n ão sua
cobiça o possuísse, t eria colocado u m a m ão sobre a alm a, pois sua cobiça é im a -
gem e expressão de sua a lm a 4 1.
Possuin do a im agem de u m a coisa, possu ím os a m etade da coisa.
A im agem do m u n d o é a m etade do m un do. Q u e m possui o m un do, mas
n ão sua im agem , possui só a m etade do m un do, pois sua alm a é pobre e sem
bens. A riqu eza da alm a con siste de im agen s 42 . Q u e m possui a im agem do
m u n d o possui a m etade do m u n d o, m esm o quan do seu h u m an o é pobre e sem
b en s 4 3. Mas a fome t ran sform a a alm a em fera que engole o p reju d icial e com
isso se en ven en a. Meus am igos, é sábio alim en t ar a alm a, sen ão criareis dragões
e d em ón ios em vossos cor ações 4 4 .
41 E m 1912, Ju n g h a via escr it o: "É u m e r r o c o m u m julgar o desejo segundo a qualidade do objeto... A n a t u r e z a só é b ela
d evid o ao d esejo e ao am or , qu e lh e con ced e a pessoa. O s a t r ib u t o s est ét ico s qu e d a q u i e m a n a m a p lica m -
se p r im e ir a m e n t e à lib id o qu e so z in h a co n st it u i a b eleza d a n a t u r e z a " (Transform ações e sím bolos da libido. O C ,
B, § i 4 7 ) .
4 2 E m Tipos psicológicos, Ju n g a r t icu lo u est a p r im a z ia d a im a ge m at r avés de su a n o çã o d e esse in anim a ( O C , 6,
§ 63S., 73s.). E m suas a n o t a çõ e s d iár ias, C a r y Bayn es c o m e n t o u a r esp eit o d est a passagem : " O qu e m e
im p r e ssio n o u esp ecialm en t e fo i o qu e o Sr. falou sobre o fat o de a "Bi l d " ser m et ad e d o m u n d o . Essa é a
co isa qu e t o r n a a h u m a n id a d e t ão est ú p id a. N ã o e n t e n d e r a m essa coisa. O m u n d o , essa é a co isa qu e os
m a n t é m ext asiad os. Ele s n u n c a co n sid e r a r a m "das Bi l d " se r ia m e n t e a n ã o ser qu e t e n h a m sid o p oet as" ( 8
d e fever eir o de 1924, escr it os d e Ba yn e s) .
43 O esboço co n t in u a : "Q u e m a m b icio n a coisas, est e em p o b r ece co m o a u m e n t o d e r iq u ezas e xt e r io r e s, e su a
a lm a su cu m b e a u m a d o e n ça cr ó n ica " (p . 17).
4 4 O esboço co n t in u a : "Es t a alegor ia d o r e e n co n t r o d a a lm a , m eu s am igos, d eve m o st r a r -vo s qu e só m e
vist es co m o m e ia pessoa, p ois e u m e h a via p e r d id o d e m i n h a alm a. C o m cer t eza , n ã o o p erceb est es; p ois
q u an t o s est ão h o je c o m su a alm a? Ma s se m a lm a n ã o h á ca m in h o p a r a a lé m d est e t e m p o " (p . 17). E m suas
a n o t a çõ e s d iár ias, C a r y Bayn es co m e n t o u est a passagem : "8 d e fever eir o [19 24 ]. Ch e gu e i à co n ve r sa çã o d o
Sr. c o m su a alm a. Tu d o qu e o Sr. d iz é d it o d e m a n e ir a co r r e t a e é sin cer o. N ã o é o gr it o d o h o m e m jo ve m
d esp er t an d o p a r a a vid a , m as o d o h o m e m m a d u r o qu e vive u p le n a e r ica m e n t e à m a n e ir a d o m u n d o e n o
en t an t o , qu ase qu e a b r u p t a m e n t e , ce r t a n o it e , ou ve a lgu é m d iz e r qu e ele n ã o a t in giu a essên cia. A visão
ve io n o auge de su a for ça, q u an d o o Sr. p o d e r ia segu ir e m fr en t e e xa t a m e n t e co m o o Sr. er a, c o m p er feit o
su cesso m a t e r ia l. E u n ã o sei co m o o Sr. t eve for ça su ficien t e p a r a p r e st a r -lh e at en ção. Co n c o r d o r e a lm e n t e
c o m t u d o o qu e o Sr. d iz e o en t en d o. To d o s os qu e p e r d e r a m a co n e xã o c o m su a p r ó p r ia a lm a o u qu e
so u b e r a m co m o d a r - lh e vid a p r e cisa m t e r u m a o p o r t u n id a d e de ve r est e livr o . At é agora cad a p a lavr a
p a r a m i m est á viva e fo r t alece-m e ju st a m e n t e on d e m e sin t o fraca. Ma s, co m o o Sr. d iz , h o je o m u n d o
est á m u it o lon ge d e t e r est a d isp o sição . Ist o n ã o t e m m u i t a im p o r t â n cia , u m livr o p od e sacu d ir o m u n d o
in t e ir o se for escr it o c o m fogo e san gu e" ( escr it o s de Ba yn e s ) .
ALM A E D EU S 119
Al m a e Deu s
[ I H ii ( r ) 2 ] 4 5
Cap. ii.
N a segunda n oit e ch am ei m in h a a lm a 4 6 :
"Est o u cansado, m in h a alm a, já d u ra dem ais o m eu cam in h ar, m in h a bu s-
ca por m im fora de m im . Passei através das coisas e fu i en con t rar-t e atrás da
m iscelân ea. Mas em m in h a viagem equivocada através das coisas descobri a
h u m an idad e e o m un do. En co n t r ei pessoas. E reen con t rei a t i, m in h a alm a, p r i-
m eiram en t e em im agem n a pessoa e, depois, a t i m esm a. En con t r ei-t e lá onde
m en os esperava. D e lá subiste para m im de u m poço escuro. T u te an un ciast e
previam en t e em son h os 4 7 ; eles qu eim avam em m eu coração. Eles me im p elir am
para tudo o que era m ais dest em ido e ousado e forçaram -m e a elevar-m e acim a
de m im m esm o. T u m e fizeste ver verdades das quais n ada suspeitava an t i-
gam ente. Fizest e-m e percorrer cam in h os cujo com p rim en t o in t erm in ável m e
t eria assustado se o con h ecim en t o deles n ão estivesse escon dido em t i.
An d e i du ran t e m u it os anos, t an t o que esqueci que possu ía u m a a lm a 4 8 .
O n d e estavas t u neste tem po todo? Q u e além te abrigava e te dava guarida?
O h , que t u ten has de falar através de m im , que m in h a lin guagem e eu sejam os
para t i sím bolo e expressão! Co m o devo decifrar-t e?
Q u e m és t u , crian ça? Co m o crian ça, com o m en in a, m eus sonhos te repre-
sen t ar am 4 9 ; n ada sei de t eu m ist ér io 50 . Perdoa, se falo com o em sonho, com o
u m bêbad o — t u és Deu s? Deu s é u m a crian ça, u m a m oça? 51 Perdoa, se falo
coisas confusas. Nin gu ém me escuta. Eu falo n o silên cio con tigo, e t u sabes que
52 O esboço co n tin u a: "Q u ã o e spe ssa e ra a e scuridão antiga! Q u ão forte e in te re s s e ira e ra m i n h a paixão ,
subjugada po r to do s o s de m ó n io s d a am bição , d a bu s ca de fam a, co biça, e stagnação , avide z de to do tipo ,
e quão ign o ran te e u e ra e n tão ! A vi d a m e arran co u para fo ra e e u co rri co n s cie n te m e n te para lo n ge de ti
e o fiz assim to do s esses an o s. Re co n h e ço que tudo e ra bo m . E e u pe n sava que t u estavas pe rd id a, o u ao
m e n o s m e pare cia que e u e stava pe rdido . Mas n ão estavas pe rdida. Eu an d e i pe lo s cam in h o s do dia.
Tu ias invisíve l co m igo e m e co n du zis te de de grau e m de grau, ju n tan d o pe daço a pe daço " (p. 20 - 21) .
ALM A E D EU S 121
Mas n ão podes fugir de t i m esm o. Ist o está todo o t em po con tigo e exige rea-
lização. Se te colocares cega e surdam en t e esta exigên cia, t u te colocarás cega e
surdam en t e con t ra t i m esm o. En t ão jam ais alcan çarás o saber do coração.
O saber do coração é com o t eu coração é.
De u m coração m au , conheces coisa m á.
De u m coração bom , conheces coisa boa.
Para que vosso con h ecim en t o seja com plet o, con sid erai que vosso coração
é ambos: bom e m au . T u perguntas: "Mas com o? Devo t am bém viver o m al?"
O espírit o da profun deza exige: "A vid a que ain d a poderias viver, deverias
viver. O b em decide, n ão t eu bem , n ão o b em dos out ros, mas o b em ".
O bem está entre mim e os outros, na comunidade. Também eu vivia o que antes não
fazia, e o que ainda podia fazer, eu vivia n a profundeza, e a profundeza começou a falar.
A profundeza me ensinou a outra verdade. Portanto juntou em mim sentido e absurdo.
Tive de reconhecer que sou apenas símbolo e expressão da alma. No sentido do
espírito da profundeza, sou, enquanto estou neste mundo visível, u m símbolo de m i-
nha alma, e sou totalmente servo, submissão, totalmente obediência. O espírito da
profundeza ensinou-me a dizer: "Sou o servo de um a criança". Eu aprendo através
dessa palavra sobretudo a extrem a humildade, como aquilo que me faz mais falta.
O próprio espírito dessa época fez com que eu acreditasse em m in h a razão;
deixou-m e ver u m a imagem de m eu si-mesmo* como u m chefe de ideias maduras.
Mas o espírito da profundeza ensinou-m e que sou u m servidor e servidor de um a
criança. Est a palavra repugnou-me e eu a odiei. Mas tive de reconhecer e adm itir que
m in h a alm a é um a criança e que m eu Deus é u m a criança em m in h a alm a 57.
Na pessoa infantil tu sentes a transitoriedade sem esperança. Eudo o que vês passando, para ela é
Mas a transitoriedade de tuas coisas que estão chegando nunca experim entou ainda um sentido
hum ano.
Tua continuidade de vida é viver para o além . Tu geras e dás à luz o porvir, tu és fecundo, tu vives
para o além .
O infantil é estéril, seu porvir eo já gerado e novam ente m urchado. Não vive para o além 60.
Me u De us é um a criança; não vos adm ireis, pois, que o espírito dessa época
se revolte e m deboche e zom baria. Ninguém vai rir de m im assim com o e u rio
de m im .
Vosso De us não deve ser um ho m e m do deboche, mas vós mesmos sereis
homens do deboche. Vó s deveis caçoar de vós mesmos e vos revoltar co ntra
isso. Se ainda não o aprendestes dos velhos livros sagrados, ide, bebei o sangue
e co m e i o corpo do e scarn e cido 61 e torturado por causa de nossos pecados, para
que vos torneis totalmente sua natureza, negando seu estar-fo ra de vós, deveis
ser ele mesmo, não chrístíaní, mas Christí, caso contrário não servireis para o De us
que virá.
Haverá algum entre vós que acredita poder poupar-se o cam inho? Poder
e xim ir-se astuciosamente do sofrimento de Cristo ? Eu digo: este se ilude para
seu próprio prejuízo. Ele se de ita sobre pregos e fogo. D o cam inho de Cris to
ninguém pode ser poupado, pois este cam inho conduz ao que virá. Vó s todos
deveis to rnar-vo s Cri s t o s 6 2 .
Vó s não superareis a velha do utrina fazendo menos, mas fazendo mais.
Cada passo para mais perto de m in ha alma estim ula o riso de deboche de meus
demónios, aqueles bisbilhoteiros e envenenadores covardes. Para eles e ra fácil
zombar, pois e u tinha coisas estranhas a fazer.
6 0 O esboço co ntínua: "Me u s am igo s, ve de s que a graça e stá c o m o s adulto s, n ão c o m o in fan til. Agrad e ço
a m e u D e u s e sta m e n sage m . N ã o vo s de ixe is ilu d ir pe la d o u t ri n a d o cris tian is m o ! Su a d o u t ri n a é bo a
para o s e spírito s m adu ro s d o te m po antigo . H o je to rn o u -s e bo a para o s e spírito s im aturo s. Para n ó s, o
cris tian is m o já não é u m a m e n sage m po rtad o ra de graça, e as s im m e s m o pre cisam o s d a graça. Is to que vo s
digo é u m cam i n h o d o po rvir, m e u cam i n h o para a graça" (p. 27) .
61 Is to é, Cri s t o . Cf . Jun g, "O sím bo lo d a tran sfo rm ação n a m i s s a" (1942. O C , 11/ 3).
62 Em "Re s p o s t a a Jó ", Jun g o bse rvo u: "Co m a inabitação d a te rce ira pe sso a d ivin a, isto é, d o Espírito San to
n o h o m e m , o pe ra-s e u m a cristifícação d e m u i t o s " (1952. O C , n , § 758) .
S O BR E O SE RVI Ç O D A A L M A 125
So b r e o se r viço d a a lm a
[IH i i ( v) ]
Cap. iii.
63
N a no ite seguinte, tive de escrever, fiel a seu teor original, todos os sonhos
de que me le m brava 64 . O sentido desse procedim ento e ra obscuro para m im .
Por que tudo isso? Perdoa o barulho que se levanta em m im . Tu queres que eu
faça isto. Q u e coisas estranhas me dize m respeito? Sei demais para não ve r que
ando sobre um a ponte oscilante. Para onde levas? Perdoa m e u medo repleto
de saber. Meus pés vacilam e m seguir-te. Para que névoa e escuridão co nduz
tua vereda? Te nho de aprender também a perder o sentido? Se tu o exiges, que
assim seja. Es ta ho ra te pertence. O que existe, onde não há sentido algum? Só
tolice e lo ucura, assim me parece. Será que existe também um sentido supre -
mo? Isto é teu sentido, m inha alma? Eu coxeio atrás de ti, apoiado e m muletas da
razão. Eu sou um ho m e m e tu andas como um De us. Q u e tortura! Preciso voltar
a m im , para minhas coisas mínimas. Eu via como pequenas as coisas de m inha
alma, lamentavelmente pequenas. Tu me obrigas a vê-las grandes, fazê-las gran-
des. É esta tua intenção? Eu vo u atrás, mas tenho pavor. Escuta m in h a dúvida,
caso contrário não posso ir atrás, pois teu sentido é um sentido supremo e teus
passos são passos de u m De us.
Eu entendo, também não devo pensar; também o pensar não deve existir
mais? De vo entregar-m e totalmente em tuas mãos — mas quem és tu? Não
confio e m ti — n e m sequer confiança tenho — é isto m e u amor po r ti, m in ha
alegria e m ti? Co n fio e m qualquer pessoa honrada, mas e m ti não, m in h a alma?
Tua mão pesa sobre m im , mas e u quero, e u quero. Não te nte i amar pessoas e
confiar nelas e não devo fazê-lo contigo? Esquece m in h a dúvida, e u se i, é de -
selegante duvidar de ti. Tu sabes que posso deixar pesadamente o orgulho de
mendigo sobre o próprio pensar. Eu esquecia que também tu pertences a meus
amigos e que tens o prim e iro dire ito à m inha confiança. O que do u àqueles não
deve pertencer a ti? Eu reconheço m in ha injustiça. Eu te desprezava, ao que me
parece. Min h a alegria e m reencontrá-la e ra falsa. Reconheço que também a
zo m baria tin ha razão e m m im .
63 15 d e n o ve m bro d e 1913.
6 4 N o Livro Negro 2, Ju n g e s cre ve u aqu i d o is so n h o s-pivô , qu an d o e le t i n h a 19 an o s de idade , qu e o le varam a
vo lt ar-s e para as ciê n cias n aturais (p. 13S.) e qu e são de scrito s e m Mem órias (p. n $s s . )
126 L I B E R P R I M U S foi. ii( r ) / iii( v)
[ 2] Que dureza de destino! Quando vos dirigis à vossa alm a, ireis sentirfalta logo de im ediato de
sentido. Acreditais que estais aprendendo no sem sentido, no eterno desordenado. Tendes razão! Nada
Vosso Deus é uma criança, na m edida em que nãofordes infantis. A criança é ordem , sentido? Ou
desordem , capricho? Desordem e insensatez são as m ães da ordem e do sentido. Ordem e sentido são
Vós abris aporta da alm apara deixar entrar em vossa ordem e em vosso sentido as torrentes escuras
do caos. Misturai ao ordenado o caos, e gerareis a criança divina, o sentido suprem o além do sentido e
do absurdo.
Vós tem eis abrir aporta? Tam bém eu tenho m edo, pois esquecem os que o Deus é terrível. Cristo
ensinou: Deus é am or66. Mas deveis saber que tam bém o am or é terrível.
Eu falava a uma alm a am orosa e, quando cheguei m ais perto, fui acom etido de pavor e ajuntei um
m onte de dúvidas e não im aginava que quisesse com isso proteger-m e de m inha terrível alm a.
Tendes pavor da profundeza; deve causar-vos pavor, por sobre isso passa o cam inho daquele que
vem . Tu deves resistir à tentação do m edo e da dúvida e nisso reconhecer até o sangue que teu m edo éjus-
foi. ii( r ) tificado e tua dúvida, razoável. Senão, / com o seria uma verdadeira tentação e uma verdadeira vitória?
Cristo venceu a tentação do dem ónio, mas não a tentação de Deus para o bem e o razoável67. Cristo
Isto ainda tendes de aprender: não ficar subm etido a nenhum a tentação, m as fazer tudo voluntaria-
Tive de reconhecer que era obrigado a m e subm eter àquilo que eu tem ia, e m ais, que devo inclusive
am ar aquilo de que tinha pavor. Isto tem os de aprender daquele santo que, ao sentir nojo dos doentes da
peste, tom ava o pus de suas feridas e notava que tinha um odor com o o das rosas. As ações dos santos não
eram em vão69.
Tu és dependente de tua alm a em todas as coisas que se referem à tua salvação e à obtenção da graça.
Por isso nenhum sacrifício pode ser pesado dem ais para ti. Se tuas virtudes te estorvam na salvação,
livra-te delas, pois se tornaram um m al para ti. Tanto o escravo da virtude quanto o escravo do vício não
Se achas que és o senhor de tua alm a, torna-te seu servo; se fores seu servo, assum e o poder sobre ela,
pois então ela precisa de dom ínio. Que estes sejam teus prim eiros passos.
Dor avan t e, d u ran t e seis n oit es, o esp írit o d a p rofu n d eza se calou e m m im ,
esp írit o d a p rofu n d eza m e falou: "O l h a p ara t u a profu n d eza, r eza p ara t u a p r o -
m im e a ú n ica coisa que lá en con t r ei foi a lem b ran ça de an t igos son h os, que
an ot ei fielm en t e, n ão saben do p ara que ist o ser vir ia. E u q u er ia jogar t u d o fora
e volt ar p ara a lu z d o d ia. Mas o esp írit o m e segurou e m e obrigou a volt ar p ara
d en t ro de m im .
de t i'. E seus d iscíp u lo s o u vir a m ist o " (11,12-14). E m !944> Ju n g escr eveu : " O Cr i s t o - m e u Cr i s t o - n ã o
con h ece n e n h u m a fó r m u la d e m ald ição . Ta m b é m n ã o a p r o va a m a ld içã o d a in o ce n t e figu eir a p elo r a b i
Jesu s". "P o r q u e n ã o ad ot o a Ve r d a d e cat ó lica'?" ( O C , 18, § 1.4 6 8 ) .
6 9 O esboço co n t in u a : "Ele s p o d e m se r vir p a r a vossa r e d e n çã o " (p . 34 ) .
70 Em Assim falava Zaratustra, N ie t z sch e escr eveu : " E m e sm o q u e se t ivessem t od as as vir t u d e s, u m a , p elo
m en o s, d e ve r - se - ia d e t er: m a n d a r d o r m ir a t e m p o as p r ó p r ia s vir t u d e s". "D a s cát ed r as d a vir t u d e "
(Pet r ó p o lis: Vo z e s, 20 0 7, p. 4 4 ) . E m 1939, Ju n g co m e n t o u o co n ce it o o r ie n t a l d e lib e r t a çã o d as vir t u d e s e
vício s e m "Co m e n t á r i o ao livr o t ib et an o d a gr an d e lib e r t a çã o " ( O C , I I , § 8 2 6 ) .
71 E m 22 d e n o ve m b r o d e 1913. N o Livro Negro 2 est á escr it o: "d iz u m a vo z " (p . 22) . E m 21 d e n o ve m b r o , Ju n g
h a via feit o u m a a p r e se n t a çã o à Socied ad e Psican alít ica d e Zu r iq u e d e "Fo r m u lie r u n ge n z u r Psych ologie
des U n b e w u s s t e n " ( Fo r m u la çõ e s à p sico lo gia d o in co n scie n t e ) .
128 LI BERP RI M U S foi.ii(r)/ iii(v)
O d e se r t o
[ I H i i i ( r) ] .
Cap . iv.
72
Se xt a noite. Min h a alm a leva-m e ao deserto, ao deserto de m e u próprio
si-m esm o . Não pensava que m e u si-m e sm o fosse um deserto, um deserto seco
e quente, poeirento e sem bebida. A viagem co nduz através da are ia quente,
vadeando lentam ente, sem objetivo visível de esperança. Co m o é horrível este
deserto! Parece-m e que o cam inho leva bem longe das pessoas. An d o m e u ca-
m inho passo a passo e não sei quanto tempo vai durar m inha viagem.
Por que é um deserto m e u si-m e sm o ? Será que vivi po r demais fora de m im ,
nas pessoas e nas coisas? Por que evitei m e u si-m esm o ? Eu não me e ra caro?
Mas e u evitei o lugar de m in h a alma. Eu e ra meus pensamentos, depois que
não e ra mais as coisas e as outras pessoas. Mas e u era o m e u si-m esm o , co lo ca-
do diante de meus pensamentos. Eu devo também elevar-m e acim a de meus
pensamentos ao enco ntro de m e u próprio si-m esm o . Para lá vai m in h a viagem
e, po r isso, ela co nduz para longe das pessoas e das coisas, à solidão. Isto é so li-
dão, estar consigo mesmo? Solidão só quando o si-m e sm o é um de se rto 73. De vo
fazer do deserto um jardim ? De vo povoar um país deserto? De vo abrir o jardim
encantado do deserto? O que me leva para o deserto, e o que devo fazer lá?
Existe um a ilusão de que não posso mais confiar ao m e u pensamento? Ve rdade i-
ra é apenas a vida, e tão só a vida me leva ao deserto, realmente não m e u pensar
que gostaria de voltar para as pessoas, para as coisas, pois lhe é sinistro estar no
deserto. Min ha alma, o que devo fazer aqui? Mas a m inha alma falou-me e disse:
"Espe ra". Eu escuto a terrível palavra. Ao deserto pertence a d o r 74 .
Pelo fato de e u dar à m in ha alm a tudo o que po dia dar, cheguei ao lugar da
alm a e descobri que este lugar era um deserto quente, seco e estéril. Ne n h um a
cultura do espírito é suficiente para fazer de tua alma um jardim . Eu cuide i de
72 28 de n o ve m bro de 1913.
73 Livro Negro 2: "Eu e scuto as palavras: 'U m an aco re ta e m s e u pró prio d e s e rto 5. Vê m - m e à m e n te o s m o n ge s
d o de se rto sírio " (p. 33).
74 Livro Negro 2: "Pe n s o n o cris tian is m o n o de se rto . Aqu e le s an tigo s i am e xte rio rm e n te para o d e s e rt a Ia m
tam bé m para o de se rto de s e u pró prio s i -m e s m o ? O u s e u s i -m e s m o n ão e ra tão se co e árido qu an to o
m e u ? Lá lu tavam co m o de m ó n io . Eu lu to co m o e spe rar. Ac h o qu e n ão é m e n o r m i n h a lu ta, po is e la é n a
ve rdade u m in fe rn o qu e n t e " (p. 35).
O D ESERT O 129
eles o m u n d o ain d a n ão se t orn ara real. Por isso iam para a solidão do deserto,
para en sin ar-n os que o lugar da alm a é deserto solit ário. Lá en con t ravam a
plen it u d e das visões, os frutos do deserto, as flores m aravilh osas e sin gulares da
alm a. Pen sa diligen t em en t e nas im agens que os antigos nos legaram . Elas m os-
t ram o cam in h o daquele que vem . O lh a para trás para a ru ín a dos ricos, para o
crescim en t o e a m ort e, para o deserto e os m ost eiros, são as im agens daquele
que vem . Tu d o está predito. Mas qu em sabe in t erpret á-lo?
Se dizes que o lugar da alm a n ão exist e, en t ão ele n ão existe. Mas se dizes
que ele exist e, en t ão ele existe. O b serva o que d iziam os antigos n a im agem : a
palavra é ato criador. O s antigos d iziam : n o prin cípio era a p alavr a 76 . Con sid er a
ist o e m ed it a n ele.
As palavras que oscilam en t re a t olice e o sen t ido suprem o são as m ais a n -
tigas e as m ais verdadeiras.
Exp e r iê n c ia s n o d e se r t o
[ I H iii( r ) 2 ]
77
Ap ó s duro com bate cheguei a u m ped aço de cam in h o m ais pert o de t i.
Co m o foi d u ra esta batalh a! En t r e i n u m m atagal de dúvida, con fusão e riso
irón ico. Recon h eço que devo ficar sozin h o com m in h a alm a. Eu ven h o de m ãos
vazias a t i, m in h a alm a. O que t u queres ou vir? Mas a alm a m e falou e disse:
"Q u an d o você vem a u m amigo, você vem para t irar?" Eu sei, n ão d evia ser as-
sim, mas parece-m e que sou pobre e vazio. Eu gostaria de sen t ar-m e pert o de
t i e sen t ir ao m en os o h álit o de t u a presen ça vivificad ora. Me u cam in h o é areia
quen te. Du r an t e todos os dias, estradas areen tas, poeiren t as. Min h a paciên cia
é às vezes pouca e u m a vez fiqu ei desesperado comigo, com o t u sabes.
Resp on d eu en t ão a alm a e falou: "T u falas com igo com o se fosses u m a
crian ça que se qu eixa à sua m ãe. N ã o sou t u a m ãe". N ã o quero qu eixar-m e,
mas p erm it e d izer-t e que m in h a est rada é lon ga e ch eia de poeira. T u és para
m im com o u m a árvore que dá som bra n o deserto. Go st ar ia de u su fru ir de t u a
fo i po r isso também que pe nse i que m inhas mãos estavam vazias quan do ho je
cheguei a ti. Não pe nse i que és tu que enches as mãos vazias, se elas apenas q u i -
se re m se estender, mas elas não o que re m . Não sabia que e u e ra te u re cipie nte ,
vazio se m ti, mas transbo rdante contigo.
Quanto m ais esperto fores, m ais tola é tua sim plicidade. Os totalm ente espertos são totalm ente tolos
em sua sim plicidade. Não podem os Ubertar-nos da esperteza do espírito dessa época aum entando nós
m esm os nossa esperteza, m as aceitar aquilo que m ais repugna à nossa esperteza, isto é, a sim plicidade.
Mas tam bém não querem os tornar-nos tolos artificiais sucum bindo à sim plicidade, m as ser tolos esper-
tos. Isto leva ao sentido suprem o. A esperteza em parelha com a intenção. A esperteza fascina o m undo,
a sim plicidade, porém , a alm a. Portanto fazei o voto de pobreza do espírito, para terdes parte na alm a79.
Contra isso levantou-se o riso irónico de m inha esperteza80. Muitos vão rir de m inha tolice. Mas
ninguém vai rir m ais do que eu m esm o já ri. Assim venci o riso irónico. Mas quando o tinha vencido,
estava m ais perto de m inha alm a, e ela podiafalar-m e, e logo pude ver que o deserto reverdeceu.
79 Cri s t o pregava: "Be m -ave n t u rad o s o s po bre s e m e spírito , po rqu e de le s é o re in o do s cé u s " ( Mt 5,3). N u m
ce rto n ú m e ro de co m u n id ad e s cristãs, o s m e m bro s faziam o vo to d a po bre za. Em 1934, Ju n g e scre ve u:
"D a m e s m a fo rm a que o vo to de po bre z a m ate rial, n o cristian ism o , afastava a m e n te do s be n s do m un do ,
a po bre z a e spiritu al re n u n cia às falsas rique zas d o e spírito , a fim de fugir não só do s m íse ro s re squício s de
u m gran de passado , que h o je se ch am a "Ig re ja" pro te stan te , m as tam bé m de to das as se duçõ e s d o pe rfum e
e xó tico , a fim de vo ltar a s i m e sm a, e m que à fria lu z d a co n sciê n cia, a de so lação d o m u n d o se e xpan de
até as e stre las". El e acre sce n ta que a ace itação do e stado de po bre z a e s piritu al e ra a ve rd ad e ira he ran ça do
pro te s tan tis m o ("So bre o s arqué tipo s d o in co n s cie n te co le tivo ". O C , 9/ 1, § 2 9 ) .
8 0 O esboço co n tin u a: "Tam b é m isto é u m a im ge m do s an tigo s de que eles viviam s im bo licam e n te nas co isas:
e le s re n u n ciavam à riqu e z a para, n a po bre z a vo lun tária, t o rn ar-s e participan te s de sua alm a. Po r isso tive
de co n fe ssar à m i n h a alm a m i n h a e xtre m a po bre za e n e ce ssidade . E co n t ra isso le van to u -s e o so rriso
iró n ico de m i n h a e s pe rte z a" (p. 4 7 ) .
D ESC I D A AO I N F E R N O N O F U T U R O 133
D e s c i d a ao in fe r n o n o fu t u r o
[IHiii(v)3
Cap . v.
81
Na no ite seguinte, o ar estava cheio de muitas vozes. U m a vo z forte gritou:
"Eu caio ". Outras gritavam confusas e excitadas: "Para onde? O que tu que -
res?" Eu devo co nfiar-m e a esta confusão? Eu estremeço. Isto é um a profundeza
horrível. Tu queres que eu me entregue ao arbítrio de m e u si-m esm o , à ilusão
da própria escuridão? Para onde? Para onde? Tu cais, quero cair contigo, quem
quer que sejas.
Então o espírito da profundeza abriu meus olhos, e e u observei as coisas
interio res, o m undo de m in ha alma, m ultiform e e mutável. [Im agem iii (v) I ]
81 12 de d e z e m bro de 1913. O esboço corrigido te m : I V O jo go do m isté rio . Pri m e i ra n o ite (p. 34) . Livro Negro 2
co n tin u a: "A lu t a do últim o te m po fo i a lu t a co n t ra o ris o iró nico . U m so n h o , que m e fo i pro po rcio n ad o
po r u m a n o ite de in só n ia e po r trê s dias de so frim e n to , co m p aro u -m e (do co m e ço ao fim ) ao farm acê utico
de Ch am o u n i x, de G. Ke lle r. Eu co n h e ço e re co n h e ço e ste e stilo . Ap re n d i que se de ve dar se u co ração
à pe sso a, o in te le cto , po ré m , ao e spírito d a h u m an id ad e , a D e u s . En tão s u a o bra po de e star alé m d a
vaidade , po is n ão e xiste pro s titu ta m ais h ipó crita do que o in te le cto , qu an do e le su bstitu i o co ração "
(p. 41). Go t t fri e d Ke l l e r ( 1819-1890 ) fo i u m e s crito r suíço . "D e r Ap o t h e k e r vo n Ch am o u n i x: Ei n Bu c h
Ro m a n z e n ". In : K E L L E R , G. Gesam m elt e Gedicht e: Erzãh lun ge n aus d e m Nach las s . Zu ri qu e , Árt e m i s Ve rlag,
1984, p- 351-417
82 O esboço co n tin u a: "D i a n t e de la e stava u m an ão to do de co uro , que guardava a e n t rad a" (p. 4 8 ) .
83 O esboço corrigido co n tin u a: "A pe dra pre cis a se r le van tada, é a pe d ra do to rm e n to , d a l u z ve rm e l h a" (p.
35). O esboço corrigido te m : "E u m cristal h e xago n al, que e m i t i a u m a lu z fria, ave rm e lh ad a" (p. 3$). Al b re ch t
D i e t e ri c h s itu a a apre se n tação d o s u bm u n d o e m As rãs, de Aris tó fan e s (que , n o e n t e n d im e n t o de le , é de
o rige m ó rfica), co m o te n do u m lago gran de e u m lugar co m co bras (Nekpa: Be itráge z u r Erklãrun g d e r
n e u e n td e ckte n Pe trusapo kalypse . Le ip z ig: Te u bn e r, 1983, p. 71). Ju n g s u b li n h o u esses m o tivo s e m s e u
e xe m plar. D i e t e ri c h faz re fe rê ncia à su a de scrição n o vam e n te n a p. 83, que Ju n g assin alo u à m arge m e
s u blin h o u "Fi n s t e rn i s u n d Sch l am m ". D i e t e ri c h tam bé m se re fe re a u m a re pre se n tação ó rfica de u m a
to rre n te de lo do n o s u bm u n d o (p. 81). N a lis ta de re fe rê ncias n o ve rso de se u e xe m plar, Ju n g an o to u "81
Sch l am m ".
134 L I B E R P R I M U S foi. iii(r)/ iii(v)
84 Livro Negro 2: "Es t e b u r aco escu r o - p a r a on d e leva, ist o e u q u er o saber, o qu e ele d iz ? U m o r ácu lo ? É est e
o lu gar d a Pít ia ?" (p . 4 3) .
85 Ju n g n a r r o u est e e p isó d io e m seu se m in á r io d e 1925, r e a lça n d o d iver sos d et alh es. Co m e n t o u qu e:
"Q u a n d o saí d a fan t asia, d e i- m e co n t a de qu e m e u m e ca n ism o h a via fu n cio n ad o às m i l m a r a vilh a s, m as e u
est ava m u it o con fu so q u an t o ao sen t id o d e t od as essas coisas qu e e u vir a . A lu z n a ca ve r n a de cr ist a l er a, a
m e u ver, co m o a p e d r a d a sab ed or ia. O assassin at o secr et o d o h e r ó i e u n ã o p u d e e n t e n d e r ab so lu t am en t e.
O escar avelh o e vid e n t e m e n t e e u r e co n h e ci q u e er a u m an t igo sím b o lo solar, e o sol p oen t e, o d isco
ve r m e lh o lu m in o so , e r a ar q u et íp ico . As ser p en t es p en sei qu e p o d ia m est ar ligad as a m a t e r ia l egíp cio.
N ã o p u d e d a r - m e co n t a e n t ã o de qu e t u d o e r a t ão a r q u e t íp ico qu e e u n ã o p r ecisava p r o cu r a r ligações.
Co n se gu i est ab elecer ligação e n t r e o q u ad r o e o m a r d e san gu e sob re o q u a l e u fan t asiar a a n t e r io r m e n t e . /
Em b o r a e u n ã o p u d esse n a o casião e n t e n d e r o sign ificad o d o h e r ó i assassin ad o, logo d ep ois t ive u m son h o
n o q u a l Siegfr ied e r a assassin ad o p o r m i m . E r a u m caso de d e st r u ir o id e a l d o h e r ó i de m i n h a eficiên cia.
Est e p r e cisa ser sacr ificad o a fim de se p o d er fazer u m a n o va a d a p t a çã o ; n u m a p alavr a, ist o est á ligad o
ao sacr ifício d a fu n ção su p e r io r a fim d e con segu ir a lib id o n ecessár ia p a r a a t iva r as fu n ções in fe r io r e s"
(introductíon to Jungian Psychology, p. 52s.). ( O assassin at o d e Siegfr ied o co r r e m a is ad ian t e, cap. 7) . Ju n g cit o u
t a m b é m a n o n im a m e n t e e d iscu t iu est a fan t asia e m su a p r e le çã o n a ETH a 14 de ju n h o de 1935 (Modem
Psychology. Vo l . 1 e 2, p. 223) .
D ESCI D A AO I N F ERN O N O F U T U R O 135
pan te de t eu sol, se n ão beber a am arga poção son ífera e n ão b eb ê-la até o fim ?
Aju d a-m e a n ão m e afogar n o p róp rio saber. A totalidade de m eu saber am eaça
cair sobre m im . Me u saber t em u m a m u lt id ão de falantes com voz de leão; o ar
t rem e quan do eles falam , e eu sou sua vít im a indefesa. Afast a de m im o esclare-
cim en t o in t eligen t e, a ciên cia 8 6 , aquele carcereiro m au que am arra as alm as e as
t ran ca em celas sem lu z. Mas prot ege-m e sobretudo da serpen te do ju lgam en -
to, que é u m a serpen te t erapêu t ica só d a superfície, mas em t u a profun deza é
ven en o in fer n al e m ort e cru el. Eu gost aria de descer para t u a profun deza com o
puro, com veste bran ca, e n ão chegar apressado com o u m ladrão, rou bar e fu -
gir sem fôlego. Deixa-m e perseverar n o assom bro d ivin o 8 7 , para estar p ron t o a
con t em plar tuas m aravilh as. Deixa-m e d eit ar m in h a cabeça sobre u m a pedra
dian t e de t u a port a, a fim de estar pron t o para receber t u a lu z.
[ 2 ] Q u an d o o deserto com eça a dar frut os, vai p rod u zir u m a veget ação es-
t ran h a. T u te julgarás louco e, em cert o sen tido, serás lo u co 8 8 . N a m ed id a em
que o crist ian ism o deste século sente falta da lou cu ra, sente falt a da vid a d ivin a.
O b servai p or que os antigos n os en sin aram em im agens: a lou cu ra é d ivin a 8 9 .
Mas porque os antigos viveram esta imagem nas coisas, tornou-se u m a ilusão
para nós, pois nós nos tornamos artífices da realidade do mundo. E indubitável:
quando penetras no mundo da alma, ficas como doido, e um médico vai julgar-te
doente. Isto que e u digo aqui pode parecer doentio. Mas ninguém m elho r do
que e u para dize r que é doentio.
As s im ve nci a loucura. Se não sabeis o que é lo ucura divina, re nunciai ao
julgamento e esperai pelos fru to s 90 . Mas se sabeis que existe um a lo ucura divi-
na, que nada mais é do que a vitória sobre o espírito dessa época pelo espírito
da profundeza, falai então de lo ucura doentia, quando o espírito da profundeza
não pode mais retroceder e obriga a pessoa a falar e m línguas e m ve z de falar
num a linguagem hum ana, e a faz cre r que ela m esm a é o espírito da profundeza.
Falai também de lo ucura do e ntia quando o espírito dessa época não abandona
um a pessoa e a obriga a ve r sempre apenas a superfície, a negar o espírito da
profundeza e co nsiderar a s i m esm a o espírito dessa época. O espírito dessa
época é não divino, o espírito da profundeza é não divino, a balança é divina.
Pelo fato de estar preso ao espírito dessa época, teve de me acontecer o que
me aconteceu nesta no ite, isto é, que o espírito da profundeza irro m pe u co m
poder e rem o veu qual o nda vio le n ta o espírito dessa época. Mas o espírito da
profundeza havia conseguido este poder pelo fato de eu, durante 2 5 noites no
deserto, te r falado à m in h a alm a e lhe te r declarado todo o m e u am o r e sub-
missão. Mas durante os 2 $ dias de dique i todo m e u am or e m in h a submissão às
coisas, às pessoas e aos pensam entos dessa época. So m ente à no ite e u ia para
o deserto.
Nisso podeis distinguir a lo ucura do entia da lo ucura divina. Q u e m faz um a
coisa e deixa de fazer a o utra pode ser chamado de doente, pois sua balança está
fora do prumo.
Qu e m , no entanto, po deria resistir ao mundo, quando é acometido pela
embriaguez e lo ucura divinas? Am o r, alma e De us são belos e assustadores. O s
antigos traziam para este lado do m undo algo da beleza de De us e, po r isso, este
m undo ficou tão belo que pareceu perfeito aos olhos do espírito dessa época e
m elho r do que o seio da divindade. O assombroso e o terrível do m undo estava
sob a abertura e na profundeza de nosso coração. Quan do o espírito da pro fun-
deza se apossa de vós, havereis de se ntir a crueldade e gritar de dor. O espírito
da profundeza está grávido de ferro, fogo e homicídio. Co m razão temeis o
espírito da profundeza, pois ele está cheio de horror.
Vó s vistes nesses dias o que o espírito da profundeza abrigou. Vó s não o
acreditáveis, mas o teríeis sabido se o tivésseis perguntado ao vosso m e d o 9 1.
Sangue brilho u para m im da luz ve rm e lha do cristal e, quando o levantei
para descobrir seu segredo, ali estava diante de m im o ho rro r: n a profundeza
daquele que ve m estava o homicídio. O herói louro jazia assassinado. O escara-
velho é a m orte, que é necessária para a renovação; por isso brilhava com o brasa
atrás dele u m novo sol, o sol da profundeza, o sol enigmático, um sol da noite.
E assim co m o o sol nascente da prim avera faz reviver a te rra m o rta, também o
sol da profundeza dá vida ao morto, e surge o terrível combate entre luz e treva.
Aí ve m à to na a fonte poderosa de sangue e de há m uito não esgotada. Es ta era
o que ve m , o que agora experim entais em vosso corpo, e é ainda mais do que
isto (tive esta visão na noite de 12 de dezembro de 1913).
Profundeza e superfície devem m isturar-se para que surja nova vida, mas
a nova vida não nasce fora de nós, e sim dentro de nós. O que acontece fora
de nós nesses dias é a imagem que os povos vive m nas coisas, para deixar estas
imagens a épocas inesquecivelmente distantes, a fim de que delas aprendam
para seu próprio cam inho, assim com o aprendemos para nós das imagens que
os antigos viveram nas coisas.
A vida não ve m das coisas, mas de nós. Tudo o que acontece fora já passou.
9 1 O esboço co n tin u a: "Tã o e s tran h o m e e ra o e spírito d a pro fu n d e z a que pre cis e i de 25 n o ite s para co n se guir
e n te n dê -lo . E m e s m o e n tão m e e ra tão e s tran h o que e u n ão po d ia ve r n e m pe rgun tar. U n h a d e vi r a
m i m co m o e stran h o de lo n ge de u m lado in au dito . Ti n h a de ch am ar-m e . Eu n ão po d ia in te rro gá-lo a
se u re spe ito e de su a n atu re za. El e se an u n ciava e m vo z alta, co m o n o tu m u lto d a gu e rra c o m a gritaria
m últipla das vo ze s de ssa é po ca. O e spírito de ssa é po ca le van to u -s e d e n tro de m i m co n tra o e stran ge iro e
pro vo co u u m a gritaria de batalh a co m se us m u ito s se rvo s. Eu o u via o frago r de ssa batalh a n o s are s. Su rgiu
e n tão o e spírito d a pro fu n de za e m e co n d u z i u ao lugar d o m ais in te rio r. Mas o e spírito de ssa é po ca m e
m o s t ro u s e u ro sto de co uro , isto é: cu rtido , re sse cado e s e m vida. El e n ão po d ia i m p e d i r-m e de pe n e trar
n o s u bm u n d o e scuro do e spírito d a pro fu n de za. Co m s u rpre s a pe rce bi que m e u s pé s afun davam n a água
de l am a pre ta d o rio d a m o rt e " [ O esboço corrigido acre sce n ta: "po is lá h á m o rt e ", p. 41]. O m isté rio d o cris tal
co m b ri lh o ve rm e lh o e ra m e u pró xim o o bje tivo " ( p 54'55)-
138 LI BE R P RI M U S fol.iii(r)/ ív(v)
Por isso, quem observa de fora aquilo que acontece só vê o quejá passou e que sem pre éa m esm a coi-
sa. Mas quem olha de dentro sabe que tudo é novo. As coisas que acontecem são sem pre as m esm as. Mas
a profundeza criadora da pessoa não é sem pre a m esm a. As coisas não significam nada, só significam em
nós. Nós criam os o significado das coisas. O significado é e sem pre foi artificial; nós o criam os.
Por isso procuram os em nós m esm os o significado das coisas, afim de que o cam inho daquele / que
foi. i i i ( r ) vem possa ficar revelado e nossa vida possa continuar fluindo.
Aquilo de que precisais procede de vós m esm os, isto é, o significado das coisas. O significado das coisas
não é o sentido que lhes épróprio. Este sentido encontra-se nos livros eruditos. As coisas não têm sentido.
O significado das coisas é o cam inho da salvação por nós criado. O significado das coisas é a possibi-
lidade da vida neste m undo, criada por vós. Ele é dom ínio sobre este m undo e a afirm ação de vossa alm a
neste m undo.
Este sentido das coisas é o sentido suprem o, que não está nas coisas nem na alm a, m as o Deus que está
entre as coisas e a alm a, o m edianeiro da vida, o cam inho, aponte e a ultrapassagem 91.
Mas quando, eu vos pergun to, as pessoas vão atacar seus irm ãos com a força
das arm as e ações sangrentas? Fazem isso quan do n ão sabem que seus irm ãos
são elas m esm as. Elas m esm as são ofertan tes, mas se prest am m u t u am en t e o
serviço da oferta. Elas todas t êm de ofert ar-se, pois ain d a n ão chegou o t em po
em que a pessoa volt a con t ra si m esm a a faca do sangue para sacrificar aquele
que ele m at a em seu irm ão. Mas qu em as pessoas m atam ? Elas m at am os n o-
bres, os bravos, os h eróis. São a estes que visam , mas n ão sabem que com estes
sign ificam a si próprias. Elas d everiam sacrificar o h erói d en t ro de si m esm as,
m as, com o n ão o sabem , m at am seu bravo irm ão.
O t em po ain d a n ão está m aduro. Mas através desse sacrifício de sangue
deve am adurecer. En q u an t o for possível m at ar o irm ão em vez de a si m esm a, o
tem po n ão est á m aduro. Precisam acon tecer coisas t erríveis até que as pessoas
am ad u reçam . De ou t ro m odo, a pessoa n ão ficará m adu ra. Eis a razão por que
tudo isso, que acontece em nossos dias, deve ser assim , para que a ren ovação
possa vir. Pois a fon te de sangue que segue ao en cobrim en t o do sol é t am bém
a fonte da n ova vid a 9 6 .
Assim com o se apresen t am para vós os destin os dos povos nas coisas, da
m esm a form a acon t ecerá em vossos corações. Se o h erói est iver assassinado
em vós, en t ão nasce para vós o sol da profun deza, brilh an d o de longe e de lugar
in audit o. Mas im ed iat am en t e vai reviver em vós tudo o que parecia m ort o até
agora e se t ran sform ará em serpen tes ven en osas que qu erem en cobrir o sol,
e vós caireis n a n oit e e n a con fusão. Vosso sangue jorrará das m u it as feridas
desse com bate h orrível. Vosso pavor e vosso desespero serão grandes, mas des-
se sofrim en t o n ascerá a n ova vid a. Nascim en t o é sangue e sofrim en t o. Vossa
escuridão que vós n ão pressen tistes, porque estava m ort a, vai reviver e sen t ireis
a pressão do t ot alm en t e m au e con t rário à vid a, que ain d a agora jaz sepulto
n a m at éria de vosso corpo. Mas as serpen tes são pen sam en tos e sen t im en t os
in crivelm en t e m aus.
Pen sáveis que con h ecíeis aquele abism o? Ó vós, in t eligen t es! É ou t ra coisa
vivê-lo experim en t alm en t e. Tu d o virá a vós. Pen sai em todos os h orrores e d ia-
bólicas atrocidades que as pessoas causaram a seus irmãos. Isto deve chegar a
vós e m vossos corações. So fre i-o e m vós mesmos através de vossa própria mão
e sabei que é vossa mão infame e demoníaca que vos causa o sofrimento, mas
não vosso irmão, que luta co m seus próprios de m ó n io s 97.
Eu gostaria que vísseis o que significa o herói assassinado. Aquelas pessoas
anónimas, que m atam príncipes e m nossos dias, são profetas cegos, que re pre -
sentam nas coisas o que só vale para a al m a 9 8 . Através do assassinato de prín-
cipes ficais sabendo que o príncipe, o herói e m nós, está am e açado 99 . Se deve
parecer um bo m o u m au sinal, não nos vamos preocupar co m isso. O que hoje
é ruim , e m cem anos será bo m e e m duzentos, novamente ruim . Mas temos
de reconhecer o que acontece: existem anónimos e m vó s que ameaçam vossos
príncipes, o legítimo soberano.
Mas nosso soberano é o espírito dessa época, que e m nós tudo co m anda e
dirige, é o espírito universal no qual hoje pensamos e agimos. Ele detém u m po -
der extraordinário, pois trouxe a este m undo bens incomensuráveis e cativou as
pessoas co m delícias inacreditáveis. Está adornado co m as mais belas e heróicas
virtudes e gostaria de fazer subir a hum anidade a um a altura brilhante do so l,
num a subida i n au d i t a 10 0 .
O herói quer desdobrar tudo o que pode. Mas o espírito anónimo da pro -
fundeza co nduz para cim a tudo o que a pessoa não pode. O não poder pre judi-
ca a ulte rio r subida. Mais altura exige m aio r virtude. Não a possuímos. Tem os
de prim e iro criá-la, aprendendo a viver co m nosso não poder. A ele temos de
dar vida, pois como po deria evo luir para o po der senão assim?
97 O esboço co n tin u a: "Se i , m e u s am igo s, que e s to u falan do aqu i e m e n igm as. Mas o e spírito d a pro fu n de za
m e fe z ve r m u itas co isas p ara aju dar o m e u e n te n d im e n to . D e s e jo co n t ar-vo s ain d a m ais co isas d e m in h as
visõ e s, a fim de e n te n d e rd e s m e l h o r as co isas que o e spírito d a pro fu n de za go staria que vó s vísse is. Fe l i z d e
qu e m po de ve r essas co isas! Q u e m n ão as vê de ve vivê -las co m o d e s tin o cego, e m i m age m " (p. 61).
9 8 Em "O e u e o i n co n s ci e n t e " ( 1927) , Ju n g se re fe re ao s e le m e n to s in dividu ais que cae m n o in co n s cie n te ,
o n d e ge ralm e n te se tran s fo rm am e m algo de e s s e n cialm e n te pe rn icio s o , de s tru tivo e anárquico . N o
aspe cto so cial, e ste prin cípio n e gativo se m an ife s ta atravé s de crim e s e spe taculare s co m o re gicídio s,
pe rpe trado s p o r in divíduo s de pre dispo sição pro fé tica" ( O C , 7, § 24 0 ) .
9 9 As s as s in ato s po lítico s e ram fre que n te s n o in ício do sé culo X X . O fato e spe cífico a que se alu de aqu i é o
se guin te : a 28 de ju n h o de 1914, o arqu id u qu e Fran z Fe rd i n an d , h e rd e iro d o im pé rio austro -h ún garo , fo i
assassin ado po r Gavri l o Prin cip, u m e studan te sé rvio de 19 an o s. Ma rt i n Gi l b e rt de scre ve e ste fato, que
d e s e m pe n h o u u m pape l de cis ivo n o s aco n te cim e n to s que le varam à e clo são d a Pri m e i ra Gu e rra Mu n d i al ,
co m o "u m m o m e n t o crítico n a histó ria d o sé culo X X ". A Hist oryoft he Twent iet h Cent ury - Vo l u m e O n e :
190 0 -1933. Lo n d re s : Wi l l i a m Mo rro w, p. 30 8.
10 0 O esboço co n tin u a: "Q u a n d o e u aspirava ao m e u m ai o r po d e r n o m u n d o , e n vi o u -m e o e spírito d a
pro fu n d e z a pe n s am e n to s an ó n im o s e visõ e s que apagaram o que t e n d ia para cim a, o que , n o s e n t i r de ssa
é po ca, e ra o h e ró ico e m m i m " (p. 6 2) .
D I VI SÃO D O E SP Í RI T O 141
Não podemos m atar nosso não poder e elevar-no s acim a disto. Mas era
exatamente o que queríamos. O não poder virá sobre nós e vai exigir sua parte
n a vida. Nó s nos perderemos e m nosso poder e haveremos de acreditar no se n -
tido do espírito dessa época de que é um a perda. Mas não é um a perda, e sim
u m ganho, não e m bens exteriores, mas e m capacidade interior.
Q u e m aprende a viver co m seu não poder aprendeu muito. Isto nos levará
a valorizar as menores coisas e a um a sábia limitação, que é exigida pela altura
maior. Quan do todo o heróico estiver apagado, caímos de vo lta n a indigência do
humano e e m coisa ainda pior. Nossos fundamentos mais profundos entram e m
agitação, pois nossa m aio r tensão, que corresponde ao fora de nós, vai excitá-las.
Caire m o s no lodaçal e nosso submundo, no lixo de todos os séculos e m n ó s 10 1.
O heróico e m ti é que és comandado pelo pensamento de que isto o u aquilo
seja o be m , que esta o u aquela o bra seja indispensável, que esta o u aquela co isa
seja rejeitável, que este o u aquele objetivo deva ser alcançado pelo trabalho am -
bicio nado lá adiante, que este o u aquele prazer deva ser re prim ido po r todos os
meios e inexoravelmente. Co m isso pecas co ntra o não poder. Mas o não poder
existe. Ningué m deve negá-lo, criticá-lo o u levantar a vo z co ntra e l e 10 2 .
D ivis ã o d o e sp ír it o
[IH i v( r) ]
Cap. vi.
Mas n a quarta no ite e u gritei: "D e s ce r ao infe rno é o mesmo que to rnar-se
i n fe rn o "10 3. Tudo está terrivelm ente confuso e emaranhado. Ne ste cam inho do
101 O esboço co n tin u a: "Tu d o o que e sque ce m o s se to rn ará n o vam e n te vivo e m n ó s, to d a paixão h u m an a e
d ivin a, as ne gras se rpe n te s e o s o l ave rm e lh ado d a pro fu n d e z a" (p. 6 4 ) .
10 2 A 9 d e ju n h o de 1917 h o u ve u m de bate so bre a psico lo gia d a gu e rra m u n d i al n a As s o ciação de Psico lo gia
An alítica, apó s u m a apre se n tação fe ita p o r Vo d o z so bre "D a s Ro l an d l i e d ". Ju n g argu m e n to u que "p o d e -
se h ipo te ticam e n te co lo car a gu e rra m u n d i al n o níve l d o suje ito . Tam bé m n o s de talh e s o prin cípio
auto ritário ( o agir m o vid o po r prin cípio s) e o prin cípio in s tin tivo e stão e m co ntradição . O in co n s cie n te
co le tivo alia-s e ao in s t in t ivo ". A re spe ito d o h e ró i, e le disse : "O h e ró i — a figura am ada d o po vo , de ve
cair. To d o s o s he ró is s u cu m b e m po r s i, qu an d o d ifu n d e m e m ce rt a m e d i d a a atitu de de h e ró i e c o m isso
fracassam" (MPA, vo l. 2, p. 10 ). A in te rpre tação psico ló gica d a Pri m e i ra Gu e rra Mu n d i al n o níve l subje tivo
de scre ve o qu e é de se n vo lvido n e ste capítulo . A co n e xão e n tre psico lo gia in d ivid u al e co le tiva que e le
articu la aqu i co n s titu i u m do s leit m ot ívs d e s u a o bra po s te rio r (cf. Present eejút uro, 1957. O C , 10 / 1).
103 Em Além do berne do m al, Ni e t z s ch e e scre ve u: "Q u e m lu t a c o m m o n s tro s de ve te r cu idado para n ão se to rn ar
u m m o n stro . E se o lh as d e m o rad am e n te u m abism o , o abism o o lh a para d e n t ro de t i " (Pe tró po lis: Vo z e s ,
20 0 9 , § 146).
142 L I B E R P R I M U S foi. iii(r)/ iv(v)
Eu : "Perd ão, talvez eu ouça m al, t alvez te in t erpret e m al, t alvez eu m e deixe
seduzir por m in h as próprias m en t iras e m acaquices, talvez fazendo u m a caret a
para m im em m eu espelho, talvez u m louco em m eu p róp rio m an icôm io. Talvez
tropeces em m in h a d em ên cia?"
A alm a: "T u te enganas, a m im n ão m en tes. Tuas palavras são m en t iras para
t i, n ão para m im ".
Eu : "Mas pod eria eu revolver-m e n u m a fu riosa t olice, t ram ar o absurdo, a
estupidez perversa?"
A alm a: "Q u e m te d á pen sam en tos e palavra? T u os crias? N ã o és m eu servo,
u m recebedor, que está deitado d ian t e da m in h a p ort a e recolh e m in h a esmola?
E t u ousas pen sar que aquilo que im agin as e falas pod eria ser tolice? N ã o sabes
que ist o p rovém de m im e m e pert en ce?"
Mas eu exclam ei ch eio de raiva: "En t ão t am bém m in h a revolt a deve vir de
t i, en t ão t u te revoltas em m im con t ra t i m esm a". A isso, a alm a falou as palavras
am bíguas: "Ist o é gu erra c i vi l " 10 4 .
Fu i acom etido de dor e raiva, e respon di: "Q u e com éd ia e len ga-len ga! -
mas eu quero. Eu t am bém posso rast ejar pela lam a, o ban al m ais odiado. Posso
t am bém com er p ó, ist o pert en ce ao in fern o. N ã o vou retroceder, eu resisto.
Q u er eis con t in u ar im agin an do t orm en t os, m on st ros com pern as de aran h a,
m on st ros teatrais h orríveis - ridícu los. Para fren t e, est ou preparado. Prep ara-
do, m in h a alm a, que és u m d em ón io, a lu t ar t am b ém contigo. T u colocas u m a
m áscara de Deu s, e eu te ven ero. Dep ois colocas u m a m áscara de d em ón io, ai,
u m a m áscara h orrível, a do ban al, do et ern o m ed íocre. Só u m a van tagem ! Per-
m it e que volt e u m pouco para trás e reflit a! Vale a pen a a lu t a com esta m áscara?
Vale a pen a a ven eração da m áscara de Deu s? Eu n ão posso, arde-m e nas ju n t as
a von t ade de lutar. Nã o , n ão ven cid o posso sair do cam po de batalh a. Q u er o
pegar-te, esm agar-te, palh aço, macaco. Ai , a lu t a é desigual, m in h as m ãos agar-
ram o ar. Mas teus golpes t am bém são ar e eu percebo, são farsas".
105 Ve r n o t a 9 9 , p. 140.
10 6 O esboço co n t in u a : "Me u s am igos, se so u b ésseis a p r o fu n d e z a qu e o fu t u r o car r ega e m vó s! Q u e m d esce
p a r a su a p r ó p r ia p r o fu n d e z a co n t e m p la aq u ilo qu e ve m " (p . 7 0 ) .
107 O esboço co n t in u a : "Ass im co m o Ju d as fo i u m elo n ecessá r io n a co r r e n t e d a o b r a d a salvação, t a m b é m
n ossa t r aição de Ju d as c o m r elação ao h e r ó i é u m a p assagem n ecessár ia p a r a a salvação " ( p . 71). E m
Transform ações esím bolos da libido ( 19 12) , Ju n g d iscu t e o p o n t o d e vist a d o abad e O egger n a h ist ó r ia de An a t o le
Fr a n ce , e m O jardim de Epicuro, qu e su st en t ava qu e D e u s t in h a esco lh id o Ju d as co m o u m in s t r u m e n t o p a r a
co m p le t a r a o b r a r e d e n t o r a de Cr i s t o ( O C , B, § 52) .
108 C f L v 16,7-10: "To m a n d o d ep ois os d ois b od es, ele os a p r e se n t a r á d ia n t e d o Se n h o r à e n t r a d a d a t en d a
d e r eu n ião. D e p o is Aa r ã o la n ça r á as sort es sob re os d ois b od es, u m a p a r a o Se n h o r e o u t r a p a r a Az a z e l.
Aa r ã o o fe r e ce r á o b od e qu e cou be p o r sor t e ao Sen h or , fazen d o u m sacr ifício p elo pecado. Q u a n t o ao
b od e qu e t o co u p o r sor t e a Az a z e l, ser á ap r esen t ad o vivo d ia n t e d o Sen h or , p a r a fazer a e xp ia çã o e m a n d á -
lo ao d esert o, p a r a Az a z e l".
ASSASSI N AT O D O H E R Ó I 145
Tudo o que fica velho dem ais torna-se um m al portanto tam bém o vosso m ais elevado. Aprendei isso
dos sofrim entos de Deus crucificado que épossível tam bém trair e crucificar um Deus, isto é, o Deus do
ano velho. Quando um Deus deixa de ser o cam inho da vida, então precisa dim inuir discretam ente109.
O Deus fica doente quando ultrapassa a altura do zénite. Por isso arrebatou-m e o espírito da pro-
fundeza quando o espírito dessa época m e havia conduzido para a altura110.
Assa ssin a t o d o h e r ó i
[IH iv(v)]m
Cap . vii.
Ve i o e n t ã o ao m e u e n c o n t r o o e s p ír it o d a p r o fu n d e z a e d isse a fr ase:
"A verdade m aior é u m a e a m esm a que o absurdo". Est a frase m e aliviou ,
e com o u m a ch u va após longo t em po de calor veio abaixo com força em m im
tudo o que estava ten so dem ais.
Tive en t ão u m a segunda visã o 116 : V i u m jard im m aravilhoso, nele cam in h avam
figuras vestidas de seda bran ca, todas envoltas em capas brilh an t es e coloridas,
algumas eram avermelhadas, outras azuladas e esverdeadas 117. [Im agem iv( v) ]
Eu sei que passei por cim a e além da profundeza. At ravés da culpa, t orn ei-m e
u m r en ascid o 118 .
O m eio-dia éum instante, a m eia-noite éum instante, a m anhã vem da noite, o anoitecer cam inha
para a noite, m as tam bém o anoitecer vem do dia e a m anhã cam inha para o dia.
Ist o sign ifica Siegfried para os alem ães! O que quer d izer que Siegfried m orre
para o alem ão! Por isso quase preferi m at ar a m im m esm o para pou pá-lo. Mas eu
qu eria con t in u ar viven d o com u m n ovo D e u s 12 3 .
Depois da m orte n a cruz, Cr ist o foi para o rein o dos m ortos, tornou-se inferno.
Assu m iu assim a figura do an ticristo, do dragão. A imagem do anticristo, que os
antigos nos t ran sm it iram , dá n otícia do novo Deu s, cuja vin d a os antigos previram .
Deu ses são in evit áveis. Q u an t o m ais t u foges de Deu s, m ais cert am en t e
cairás em suas m ãos.
A ch u va e a gran de t orren t e de lágrim as que virão sobre os povos, a t orren t e
de lágrim as d a dist en são, depois que a lim it ação d a m ort e sobrecarregou os
povos com u m peso t errível. É o ch oro do m ort o em m im que precede o sep u l-
t am en t o e o ren ascim en t o. A ch u va é a fecun dação d a t erra, ela prod u z o n ovo
trigo, o Deu s que b rot a jo ve m 12 4 .
Co n c e p ç ã o d o D e u s
[IH iv(v)2]
Cap . viii.
N a segunda n oit e depois disso, falei à m in h a alm a e disse: "Fraco e art ificial
parece-m e este m u n d o novo. Ar t ificia l é u m a palavra com plicad a, m as a se-
m en t e de m ost ard a que se desen volveu em árvore, a palavra que foi con cebida
n o seio de u m a virgem , t orn ou -se u m Deu s ao qu al estava subm issa a t e r r a " 12 5 .
m esm o127.
Tam bém eu sei que a liberalidade da graça só é dada àquele que acredita no m ais elevado e trai a si
m esm o deslealm ente por trinta m oedas de prata128.
126 E m M c 16,17, Cr i s t o a fir m o u q u e aqu eles q u e a cr e d it a m falar ão n ovas lín gu as. A q u e st ã o d e falar e m
lín gu as é d iscu t id a e m i C o r 14 e é t e m a ce n t r a l d o m o vim e n t o p en t eco st al.
127 O t e m a d a a u t o ssu p e r a çã o é im p o r t a n t e n a o b r a d e N ie t z sch e . E m Assim falava Zaratustra, N ie t z sch e
escreve: " E u vos e n sin o o a lé m - h o m e m . O h o m e m é algo q u e p r ecisa ser su p erad o. Q u e fizest es p a r a
su p e r á -lo ? At é agora t od os os seres c r ia r a m a lgu m a coisa qu e os u lt r ap assou : e q u er eis ser r eflu xo d essa
gran d e m a r é e r e t o r n a r ao a n im a l e m ve z d e su p er ar o h o m e m ?" ( "Pr ó lo go d e Za r a t u s t r a 3"; su b lin h a d o
co n fo r m e o e xe m p la r d e Ju n g) . Pa r a a d iscu ssão d e Ju n g sob re est e t e m a e m N ie t z sch e , ve r J A R R E T , J.
( o r g.) . Nietzsche s Zaratustra: N o t e s o f t h e se m in a r give n i n 1934-1939. Vo l . 2. P r in ce t o n : P r in c e t o n U n ive r s it y
Pr ess, 19 8 8 , p. 1.502-1.508.
128 Ju d as t r a iu Jesu s p o r t r in t a m oed as d e p r a t a ( M t 26 ,14-16 ) .
L I B E R P R I M U S foi. iv(r)/ v(v)
Os que sujarem suas m ãos lim pas e que trocarem seu m elhor saber pelo erro e tirarem suas virtudes
de um covil de assassinos são convidados para teu grande banquete.
O astro de teu nascim ento é um a estrela falsa e um planeta.
Estes, ófilhodo que virá, são os m ilagres que se tornarão testem unhas de que és um verdadeiro Deus".
Q u an d o o h erói h avia sido assassinado, o sen t ido recon h ecido com o absur-
do, quan do todo o ten so descia ru id osam en t e de n uven s pren h es, quan do tudo
se h avia t orn ado covarde e pen sava n a p róp ria salvação, t om ei con sciên cia e n -
tão do n ascim en t o de D e u s 14 6 . O Deu s in clin ou -se para m im em m eu coração,
quan do eu estava pert u rbado por escárn io e adm iração, por pesar e sorriso, por
sim e não.
D a fun dição dos dois n asceu o ún ico. Ele n asceu com o crian ça de m in h a
p róp ria alm a h u m an a, que com o u m a virgem a con cebeu com m u it o tem or.
Corresp on d e assim à im agem que os antigos nos legaram d ist o 14 7 . Mas quan do
a m ãe, m in h a alm a, estava grávida de Deu s, eu n ão o sabia. Pareceu-m e in clu -
sive com o se m in h a alm a fosse o p róp rio Deu s, ain d a que ele só m orasse em
seu co r p o 14 8 .
E assim cu m p riu -se a im agem dos antigos: eu perseguia m in h a alm a para
m at ar a crian ça d en t ro dela. Pois eu sou t am bém o p ior in im igo de m eu D e u s 14 9 .
Mas recon h ecia que t am bém m in h a h ost ilidade está decret ada em Deu s. Ele é
zom baria, ód io e raiva, pois t am bém ist o é u m cam in h o da vid a.
Devo d izer que o Deu s n ão pod ia vir a ser antes que o h erói tivesse sido as-
sassinado. O h erói, com o n ós o en t en dem os, t orn ou -se in im igo de Deu s, pois o
h erói é perfeição. O s deuses in vejam a perfeição do ser h um an o, pois o perfeit o
n ão precisa dos deuses. Mas com o n in gu ém é perfeito, precisam os dos deuses.
O s deuses am am o perfeito, pois é o cam in h o t ot al da vid a. Mas os deuses n ão
estão com aquele que gost aria de ser perfeito, pois é u m im it ad or do p er feit o 150 .
A im it ação foi u m cam in h o da vid a, quan do o ser h u m an o ain d a precisava do
exem plo h e r ó ico 151. A m an eira de ser do m acaco é u m cam in h o da vid a para o
macaco, e para o ser h um an o, en quan t o é amacac^çto. O amacacado do ser h u -
152 Jung abordou a questão do conflito entre individuação e coletividade em 1916, em "Individuação e
coletividade". O C , 18, § 1.103.
153 Cf. comentários de Jung em "Individuação e coletividade" de que "o indivíduo precisa agora consolidar-se,
separando-se totalmente da divindade e tornando-se ele mesmo. Com isso e ao mesmo tempo separa-se da
sociedade. Exteriormente mergulha na solidão e, internamente, no inferno, no afastamento de Deus". O C ,
18, § 1.103.
L I B E R P R I M U S fol.v(r)/ v(v)
O h er ói t em de s u c u m b i r p o r ca u sa de n o ssa r e d e n ç ã o , p o is ele é e xe m p l o e
exige im itação. Mas a m ed id a d a im it ação est á ch e ia 154 . N ó s devem os ser salvos
para a solidão em n ós e para Deu s n o fora de n ós. Ao en t rarm os n est a solidão,
com eça a vid a de Deu s. Q u an d o estam os em n ós, o espaço fora de n ós est á
livre, mas replet o de Deu s.
Nosso relacion am en t o com as pessoas passa por este espaço vazio, p or t an -
to através de Deu s. Mas an tigam en te passava pelo egoíst ico, pois est ávam os
fora de n ós. Por isso m e disse previam en t e o espírit o, que a friagem do espaço
cósm ico se d eposit aria sobre a t e r r a 155 . Co m isso, m ost rou -m e em im agem que
Deu s vai colocar-se en t re os seres h um an os com o ch icot e da friagem glacial
e t ocar cada in d ivíd u o para o calor de seu p róp rio reban h o claust ral. Pois as
pessoas vagueavam com o doidas fora de si.
A am bição egoíst a procu ra ao fin al a si m esm a. T u te en con t rarás a t i m esm o
em t u a am bição, port an t o n ão digas que a am bição é fútil. Se t u am bicion as a t i
m esm o, geras n o abraço a t i m esm o o Filh o de Deu s. Tu a am bição é o Deu s-Pai,
t eu si-m esm o a d eu sa-m ãe, mas o Filh o é o n ovo Deu s, t eu senhor.
Q u an d o abraças t eu si-m esm o, parece-te que o m u n d o ficou frio e vazio. E
neste vazio que en t ra o Deu s que virá.
Q u an d o estás em t u a solidão e todo espaço ao t eu redor se t orn ou frio e
in fin it o, en t ão te afastaste das pessoas, mas ao m esm o tem po chegaste pert o
delas com o n u n ca antes. A am bição egoíst a con d u ziu -t e apenas aparen t em en t e
às pessoas, mas n a verdade con d u ziu -t e para longe delas e n o fin al a t i m esm o
n aqu ilo que estava m ais longe para t i e para as outras pessoas. Mas se estiveres
n a solidão, t eu Deu s vai con d u zir-t e ao Deu s das outras pessoas e com isso à
verd ad eira proxim id ad e, à proxim id ad e do si-m esm o n a ou t ra pessoa.
Q u an d o estás em t i m esm o, tom as con sciên cia de t eu n ão poder. H á s de
perceber quão pouco és capaz de im it ar h eróis e t u m esm o seres u m h erói.
Port an t o, n ão m ais obrigarás os outros a serem h eróis. Eles sofrem do n ão p o-
der com o t u . O n ão poder t am bém quer exist ir, mas ele vai pert u rbar vossos
fol.v(r) deuses. [ BP v( r ) ] /
Mv )
154 Um a interpretação do assassinato de Siegfried no Liber Prímus, cap. vii, "Assassinato do herói".
155 Refere-se ao sonho mencionado no prólogo, p. 107.
M YS T E R I U M . E N C O N T R O 157
Myst erium .
En con t ro
[IH v( v) ]
Cap. ix.
156 No Livro Negro 2, Jung observa: "com barba grisalha e veste oriental" (p. 231).
157 Elias foi um dos profetas do Antigo Testamento. Aparece pela primeira vez em iRs 17, trazendo uma
mensagem de Deus a Acab, rei de Israel. Em 1953, o carmelita Père Bruno escreveu a Jung perguntando
como se estabelecia a existência de um arquétipo. Jung respondeu tomando Elias como exemplo,
descrevendo-o como um personagem altamente mítico, o que não o impedia de ter sido provavelmente
uma figura histórica. Aproximando descrições de Elias feitas ao longo da história, Jung descreveu-o
como um "arquétipo vivo", que representava o inconsciente coletivo e o si-mesmo. E observou que esse
arquétipo constelado deu origem a novas formas de assimilação e representava uma compensação por
parte do inconsciente ( O C, 18, § 1.518-1.531).
158 Salomé era filha de Herodíades e enteada do rei Herodes. Em Mt 14 e Mc 6, João Batista havia dito ao
rei Herodes que não lhe era lícito estar casado com a mulher de seu irmão, e Herodes colocou-o na prisão.
Salomé (que não é nomeada, mas simplesmente chamada filha de Herodíades) dançou diante de Herodes
no aniversário deste, e ele prometeu dar-lhe tudo que ela desejasse. Ela pediu a cabeça de João Batista,
que então foi decapitado. No final do século X I X , a figura de Salomé fascinou pintores e escritores, entre
os quais Guillaume Apollinaire, Gustave Flaubert, Stéphane Mallarmé, Gustave Moreau, Oscar W ilde e
Franz von Stuck, recebendo destaque em muitas obras. Cf. D I JKST RA, B. idoísofPerversíty. Fantasies of
Feminine Evil in Fin-de-Siècle Culture. Nova York, O xford Un iversity Press, 1986, p. 379-398.
L I B E R P R I M U S foi. v(r)/ v(v)
159 No Livro Negro 2, Jung observa: "O cristal luzia fracamente. Penso novamente na imagem de Ulisses,
como circunavegou a ilha rochosa das sereias na longa viagem sem rumo. Devo eu, não devo eu?" (p. 74).
160 Isto é, a cabeça de João Batista.
161 No Seminário de 1925, Jung contou novamente: "Usei a mesma técnica da descida, mas desta vez fui
muito mais fundo. A prim eira vez devo dizer que cheguei a uma profundidade de aproximadamente m il
pés, mas desta vez foi uma profundidade cósmica. Foi como ir até à lua, ou como a sensação de pular no
espaço vazio. Primeiro a imagem mental foi de uma cratera, ou de uma cadeia de montanhas, e minha
associação sensível foi a de um morto, como se eu fosse uma vítima. Era o estado de espírito da terra do
além. Pude ver duas pessoas, um velho de barba branca e uma jovem muito bonita. Presumi que eram
reais e prestei atenção ao que estavam dizendo. O velho disse que era Elias e eu fiquei muito chocado,
mas ela era ainda mais perturbadora porque era Salomé. Eu disse para m im mesmo que havia uma
estranha mistura: Salomé e Elias, mas Elias assegurou-me que ele e Salomé estavam juntos desde toda
a eternidade. Também isto perturbou-me. Com eles estava uma serpente negra que tinha simpatia por
mim. Ative-m e a Elias como o mais razoável do grupo, pois parecia ter juízo. Eu estava excessivamente
hesitante quanto a Salomé. Tivemos uma longa conversa, mas eu não entendi. Evidentemente, pensei que
o fato de meu pai ser clérigo era a explicação para o fato de eu ter figuras como esta. O que pensar deste
velho? Salomé não devia ser tocada. Só muito mais tarde é que achei perfeitamente natural a associação
dela com Elias. Sempre que alguém empreende viagens como esta encontra uma jovem e um velho"
i6o LI BERP RI M U S foi.v(r)/ v(v)
l62
[2] Estejogo, que eu vi, é m eu jogo, não o vosso jogo. É m eu segredo, não o vosso. Não podeis
im itar-m e. Meu segredo perm anece virginal e m eus m istérios são invioláveis, pertencem a m im e não
Quem entra no que éseuprecisa tatear pelo próxim o, precisa apalpar seu cam inho pedra por pedra.
Precisa abraçar o inútil e o valioso com o m esm o am or. Um a m ontanha é um nada, e um grão de areia
oculta reinos ou tam bém não. O julgam ento precisa abandonar-te, inclusive o saber, m as sobretudo o
orgulho, ainda que repouse sobre m éritos. Bem pobre, m iserável, hum ilde, ignorante, passa pela porta.
Vira tua raiva contra ti m esm o, pois só tu estorvas a ti m esm o tanto no contem plar com o no viver. O
jogo dos m istérios é delicado com o o ar e fum aça ténue, e tu és m atéria bruta, de peso incóm odo. Mas
tua esperança, que é teu m aior bem e m aior poder, deixa ir em frente e servir-te de guia no m undo da
escuridão, pois ela éda m esm a substância que as conform ações daquele m undo164 [Im a gem v ( v ) ] l 6 5 .
O cen ário do jogo dos m ist érios é u m lugar fundo com o a crat era de u m
vulcão. Meu in t er ior profun do é u m vu lcão que lan ça para fora a lava in can -
descente do que n u n ca se form ou , do in discern ível. Assim m eu ín t im o d á à lu z
(introductíon to Jungian Psychology, p. 68-69). A seguir, Jung refere-se a exemplos deste tipo presentes na obra
de Melville, Meyrink, Rider Haggard e na lenda gnóstica de Simão Mago (cf. adiante, n. 154, p. 487),
Kun dry e Klingsor do Parsifal de Wagner (cf. adiante, n. 221, p. 322S.) e na Hypnerotomachía de Francesco
Colonna. Em Memórias, ele disse a respeito da serpente: "Nos mitos a serpente está frequentemente
associada ao herói. Existem numerosos relatos de sua afinidade... Por isso a presença da serpente era um
indício de um mito do herói" (p. 20 6 ) . A respeito de Salomé, Jung disse: "Salomé é uma figura da anima.
Ela é cega porque não vê o sentido das coisas. Elias é a figura do velho profeta sábio e representa o fator
de inteligência e conhecimento; Salomé representa o elemento erótico. Poder-se-ia dizer que as duas
figuras são personificações de Logos e Eros. Mas esta definição seria excessivamente intelectual. Faz mais
sentido deixar as figuras serem o que elas foram para m im naquele tempo - a saber, acontecimentos
e experiências" (introductíon to Jungian Psychology, p. 96-97). Em 1955/1956, Jung escreveu: "Partindo de
considerações puramente psicológicas, procurei em outro lugar caracterizar a consciência masculina com o
conceito de Logos e a feminina com o de Lros. Assim , por 'Logos' entendi o distinguir, julgar e reconhecer e
por 'Eros' entendi o pôr em relação" (Mysteríum coníunctionís. O C , 14, § 224). Sobre a interpretação que Jung
dá de Elias e Salomé em termos de Logos e Eros respectivamente, cf. apêndice B, "Comentários".
162 O esboço corrigido tem: Reflexão doutrinal (p. 8 6 ) . O esboço e o esboço corrigido têm: "Ist o, meus amigos, é um
jogo de mistérios para o qual o espírito da profundeza me trasladou. Eu havia conhecido o nascimento
do novo Deus [a concepção], e por isso o espírito da profundeza me deixou participar das cerimónias
subterrâneas,que deveriam instruir-me sobre as intenções e obras de Deus. Através desses jogos deveria eu
ser iniciado nos mistérios da salvação" (esboço corrigido p. 86).
163 O esboço continua: "No mundo renovado não podeis possuir nada exteriormente, a não ser que vós
mesmos o crieis a partir de vós. Tu só podes entrar em teus próprios mistérios. O espírito da profundeza
tem outra coisa a te ensinar do que a m im . Eu só devo informar-vos sobre o novo Deus e sobre as
cerimónias e mistérios de seu serviço. Mas este é o caminho. E a porta das trevas" (p. 100).
164 O esboço continua: "O jogo dos mistérios realizou-se no mais profundo de meu ser íntimo, que é
precisamente aquele outro mundo. Tu precisas prestar atenção, é também um mundo e sua realidade
é grande e assustadora. Tu choras e ris, tremes e às vezes poreja de t i o suor do medo da morte. O jogo
dos mistérios representa a m im mesmo e, através de m im , é representado de novo aquele mundo ao qual
pertenço. Portanto, meus amigos, aprendeis daquilo que vos digo aqui muita coisa sobre o mundo e,
através dele, sobre vós. Mas com isso não percebestes nada de vossos mistérios, sim, vosso caminho está
mais escuro do que antes, pois meu exemplo vai ser um estorvo para vós em vosso caminho. Vós podeis
seguir-me, mas não em meu caminho, e sim no vosso" (p. 102).
165 Isto retrata a cena na fantasia.
M YS T E R Í U M . E N C O N T R O
filh os do caos, d a m ãe prim eva. Q u e m en t ra n a crat era vir a m at éria caót ica,
derret e-se. O form ado n ele se dissolve e se un e de form a n ova com os filh os do
caos, os poderes das trevas, os dom in adores e sedutores, os coercit ivos e alicia-
dores, os d em on íacos e d ivin os. Essas forças ult rapassam de todos os lados m eu
d et erm in ad o e lim it ad o e m e u n em com todas as form as e com todos os seres e
coisas dist an t es, pelas quais sou in form ad o sobre seu ser e sua n at ureza.
Pelo fato de eu t er caído n a fon te do caos, n o p rim ord ial, t orn o-m e eu m es-
m o refu n dido n a u n ião com o p r im or d ial que é ao m esm o tem po o que já foi
e o que será. E m p r im eir o lugar, chego ao p r im or d ial em m im . Mas assim , p or
ser part e d a m at éria do m u n d o e da con st it u ição do m un do, chego t am bém ao
p r im or d ial do m u n d o em geral. Co m o ser form ado e d et erm in ad o p art icip ei
da vid a, m as só através de m in h a con sciên cia form ada e d et erm in ad a e p or
m eio disso n o ped aço form ado e d et erm in ad o do todo cósm ico, mas n ão n o
n ão form ado e in d et erm in ad o do m un do, que t am bém m e é dado. Mas só é
dada m in h a profun deza, n ão m in h a superfície, que é con sciên cia form ad a e
d et erm in ad a.
O s poderes de m in h a profun deza são o p red et erm in ar e o p r a z e r 16 6 . O p re-
d et erm in ar e o pen sar p r é vio 16 7 são o Pr o m e t e u 16 8 , que, m esm o sem ideias d e-
t erm in ad as, d á form a e d et erm in ação ao ca ó t ico 16 9 , que cava os can ais e apre-
sen t a o objet o ao prazer. O pen sar prévio t am bém est á antes do pen sar p ro-
priam en t e dito. Mas o prazer é a força que, sem form a e d et erm in ação, deseja
e d est rói form as. Ele am a a form a que ela assume em si, mas d est rói a form a
que ela n ão assume. O que pen sa previam en t e é u m vid en t e, mas o prazer é
cego. Ele n ão prevê, mas deseja aquilo que toca. O pen sar prévio n ão t em força
e p or isso n ão é m oven t e. O pen sar prévio precisa do prazer para alcan çar a
con figuração. O prazer precisa do pen sar prévio para chegar à form a de que
n ecessit a 170 . Q u an d o o prazer n ão t em o form an t e vai d ilu ir -se n o m u lt iform e
e, através de in t erm in ável part ição, ficará d esped açad o e im pot en t e, perdido n o
171 O esboço continua: "O animal de horror mortífero que estava deitado entre Adão e Eva" (p. 105).
172 O esboço corrigido tem: "A serpente não é só um princípio separador, mas também unificador" (p. 91).
173 Ao comentar isto no seminário de 1925, Jung observou que havia na mitologia muitos relatos da relação
entre um herói e uma serpente, de modo que a presença da serpente indicava que "será novamente um
mito do herói" (p. 89). Mostrou um diagrama de uma cruz com Racional/ Pensamento (Elias) no alto,
Sentimento (Salomé) ao pé, Irracional/ Intuição (Superior) à esquerda e Sensação/ Inferior (Serpente) à
direita (p. 9 0 ) . Jung interpretou a serpente negra como a libido introvertida: "A serpente desencaminha
aparentemente o movimento psicológico para o reino de sombras, mortos e imagens falsas, mas também
para a terra, para a concretização... Na medida em que a serpente leva para as sombras, ela desempenha a
função da anima; ela leva você para as profundezas, conecta o superior e o inferior... a serpente é também o
símbolo da sabedoria" (introductíon to Jungian Psychology, p. 102-103).
M YS T E R I U M . E N C O N T R O 163
viven ciar. Perd em assim o pensar. Por isso são joven s e cegos. O s que pen sam
baseiam o m u n d o sobre o pensado, os sen sit ivos, sobre o sen t ido. T u en con t ras
verdade e erro em am bos.
A exem plo da serpen t e, o cam in h o da vid a ziguezagueia da d ir eit a para a
esquerda e d a esquerda para a d ireit a, do pen sar para o prazer e do prazer para
o pensar. Port an t o, a serpen te é u m adversário e sím bolo da in im izad e, con t udo
u m a pon t e sábia que liga d ir eit a e esquerda através do desejo, segundo a n eces-
sidade de n o ssa vid a.
I74
0 lugar onde Elias e Salom é m oram ju n t os é u m espaço escuro e claro. O
espaço escuro é o espaço do pen sar prévio. Ele é escuro, por isso aquele que o
h abit a precisa de visã o 175 . Est e espaço é lim it ad o, por isso o pen sar prévio n ão
con duz a u m a vast a am plidão, mas à profun deza do passado e do futuro. O
crist al é a id eia form ada, que b r ilh a n o passado vin d ou ro.
Eva / e a serpen te m e m ost ram que m eu p róxim o cam in h o m e leva para o foi.v( r )
prazer e d aí ou t ra vez para u m longo cam in h o errado, com o Ulisses. Ele n ave- ^ ^
gou n o erro quan do astuciosam en te sen t iu prazer em Tr ó ia 176 . O jar d im lu m i-
noso é o espaço do prazer. Q u e m o h abit a n ão precisa da visã o 177 ; ele sente o
in fin it o 178 . U m a pessoa que pen sa e que desce para seu pen sar prévio en con t ra
u m p r óxim o cam in h o n o jar d im de Salom é. Por isso a pessoa que pen sa tem e
seu pen sar prévio, apesar de viver com base n ele. A superfície visível é m ais
segura do que os subfun dam en tos. O pen sar protege con t ra o cam in h o errado,
por isso con duz à petrificação.
U m a pessoa que pen sa tem e Salom é, pois ela quer sua cabeça, sobretudo
quan do ele é u m santo. U m a pessoa que pen sa n ão deve ser u m santo, sen ão cai
sua cabeça. N ã o ajuda n ada escon der-se n o pensar. Lá te alcan ça o en t orp eci-
m en t o. Deves volt ar ao t eu pen sar prévio m at ern al para t om ar ren ovação. Mas
o pen sar prévio con duz à Salom é.
174 O esboço continua: "Seguindo Elias e Salomé, sigo os dois princípios em m im e, através de m im , no mundo
do qual sou parte" (p. 106).
175 O esboço corrigido tem: "i . e, do pensar. E sem pensar não se capta nenhuma ideia" (p. 92).
176 O esboço continua: "O que seria de Ulisses sem a viagem errada?" (p. 107). O esboço corrigido acrescenta:
"Não teria havido Odisseia" (p. 92).
177 O esboço corrigido tem: "Bem mais do prazer, a fim de usufruir do jardim " (p. 92).
178 O esboço corrigido tem: "é impressionante que o jardim de Salomé fique tão perto do salão respeitável e
misterioso das ideias. Esvoaça por isso um respeito pensante ou talvez mesmo um temor diante da ideia,
devido à sua proximidade do paraíso?" (p. 92).
164 L I B E R P R I M U S foi. v(r)/ vi(v)
179
Po r q u e fu i u m pen sador e porque avist ei o p rin cíp io h ost il do prazer a
p ar t ir do pen sar prévio, pareceu-m e ele ser Salom é. Se tivesse sido u m sen t i-
m en t al e tivesse tateado para além , para o pen sar prévio, t eria m e parecido a
u m d áim on serpen t iform e, caso o tivesse enxergado. Mas eu t eria sido cego. Só
t eria sen t ido coisas escorregadias, m ort as, perigosas, cren ças ultrapassadas, co i-
sas desin teressan tes, coisas adocicadas e t eria m e afastado com o m esm o h or r or
com o qu al me afastei de Salom é.
O s prazeres d a pessoa que pen sa são m aus, por isso ela n ão t em prazer.
O s pen sam en tos do se n t im e n t a l 18 0 são m aus, por isso n ão t em pen sam en tos.
Q u e m prefere pen sar a se n t ir 18 1 d eixa apodrecer seu se n t ir 18 2 n o escuro. N ã o
am adurece, mas faz brot ar n o m ofo t repadeiras doen t ias que n ão alcan çam a
lu z. Q u e m prefere sen t ir a pensar, este d eixa seu pen sar n o escuro, onde tece
sua t eia em can tos sujos, tram as desoladoras em que ficam presas moscas e
m ariposas. O pen sador sente o repugn an te dos sen t im en t os, pois o sen t im en t o
n ele é sobretudo repugn an te. O sen sit ivo pen sa o repugn an te dos pen sam en -
tos, pois o pen sar n ele é sobretudo repugn an te. Port an t o, a serpen te est á en t re
aquele que pen sa e aquele que sente. São m u t u am en t e ven en o e t erapia.
No jar d im teve que se revelar para m im que eu am o Salom é. Est e con h eci-
m en t o m e at orm en t ou , pois n ão o h avia im agin ado. O que u m pen sador n ão
pen sa, ele acha que n ão exist e e o que u m sen sit ivo n ão sen te, ele ach a que n ão
exist e. T u com eças a vislu m b rar o todo quan do dom in as t eu con t raprin cípio,
pois o todo repousa sobre dois prin cípios que n ascem de u m a só r a iz 18 3 .
Elias d izia: "E m seu am or deves recon h ecê-la". N ã o só t u san tificas o objeto,
m as o objeto san t ifica t am bém a t i. Salom é am ava o profet a, e ist o a san t ificava.
O profet a am ava a Deu s, e ist o o san t ificava. Mas Salom é n ão am ava a Deu s, e
ist o a dessan tificava. O profet a n ão am ava Salom é, e ist o o dessan tificava. Por-
t an t o eram ven en o e m ort e u m para o outro. Q u e o pen sador receba seu prazer
e o sen t im en t al, seu p róp rio pensar. Ist o con d u z ao ca m in h o 18 4 .
179 O esboço continua: "Eu era um pensador. O que poderia causar-me maior admiração do que a união
interna dos princípios hostis do pensar prévio e do prazer?" (p. 108).
180 Em vez disso, o esboço corrigido tem: "que sente prazer" (p. 94).
181 No esboço corrigido está: "prazer" (p. 94).
182 No esboço corrigido está: "prazer" (p. 94).
183 O esboço continua: "como disse um de vossos poetas: 'O poço suporta dois ferros'" (p. l i o ) .
184 Em 1913 Jung apresentou seu ensaio "A questão dos tipos psicológicos", no qual notava que a libido
ou energia psíquica num indivíduo estava dirigida caracteristicamente para o objeto (extroversão) ou
para o sujeito (introversão) ( O C, 6 ). A partir do verão de 1915, ele manteve sobre essa questão uma
I N ST RU ÇÃO 165
In strução
[IH vi( r ) ]
Cap. x.
extensa correspondência com Hans Schmid, em que ele agora caracterizava os introvertidos como
sendo dominados pela função do pensar e os extrovertidos como sendo dominados pela função do
sentir. Caracterizou também os extrovertidos como sendo dominados pelo mecanismo de prazer-dor,
procurando encontrar o amor do objeto, e inconscientemente buscando o poder tirânico. O s introvertidos
buscavam inconscientemente o prazer inferior e precisavam ver que o objeto era também um símbolo de
seu prazer. A 7 de agosto de 1915, Jung escreveu a Schmid: "Os opostos precisam ser equilibrados no próprio indivíduo"
( I SE LI N , H . K. (org.). ZurEntstehungvonC.G.Jungs"PsychologischenTypen", p. 6 6 ). Esta ligação entre pensar
e introversão e entre sentir e extroversão foi mantida em sua análise deste tema em 1917 em "Psicologia
dos processos inconscientes'. Em Tipos Psicológicos, em 1921, este modelo havia-se expandido para englobar dois
grandes tipos de atitude de introvertidos e extrovertidos, ulteriormente subdivididos pela predominância
de uma das quatro funções psicológicas de pensar, sentir, sensação e intuição.
185 22 de dezembro de 1913. Em 19 de dezembro de 1913, Jung deu uma palestra na Associação Psicanalítica
de Zurique sobre "A psicologia do inconsciente".
i66 L I B E R P R I M U S foi. v(r)/ vi(v)
n o b r i l h o a m ã e d e D e u s c o m a cr ia n ça . D i a n t e d e la e s t á P e d r o e m a d o r a ç ã o
188 Jung mencionou esta conversa no seminário de 1925 e comentou: "Só então aprendi a objetividade
psicológica. Só então pude dizer a um paciente: Tiqu e calmo, algo está acontecendo'. Existem coisas
como ratos numa casa. Não se pode dizer que alguém está errado quando tem um pensamento. Para
compreender o inconsciente devemos ver nossos pensamentos como acontecimentos, como fenómenos"
(introductíon to Jungian Psychology, p. 103).
189 Em vez disso, o esboço corrigido tem: "verdade" (p. 100).
i68 LI BERP RI M U S foi.v(r)/ vi(v)
S: "Mar ia".
Eu : "Ist o é u m sonho in fern al? Maria, n ossa m ãe? Q u e lou cu ra se escon -
de n est a t u a palavra? A m ãe do Salvador, n ossa m ãe? Q u an d o ult rapassei h oje
vosso lim iar, pressen t i desgraça. Ai ! Acon t eceu . Perdeste o juízo, Salom é? Elias,
guarda do d ireit o d ivin o, dize: Ist o é u m sort ilégio d em on íaco dos réprobos?
Co m o pode ela d izer sem elh an te coisa? O u ambos estais fora do juízo? Vó s
sois sím bolos, e Ma r ia é u m sím bolo. Eu est ou apenas confuso dem ais para vos
com preen der agora".
E: "T u podes ch am ar-n os de sím bolos com o m esm o d ireit o que podes ch a-
m ar de sím bolos t am bém as outras pessoas iguais a t i. Nad a enfraqueces e n ada
resolves ao nos ch am ar de sím bolos".
Eu : "T u m e lan ças n u m a con fusão t errível. Vó s quereis ser reais?"
E: "Co m cert eza somos aquilo que cham as de real. Aq u i estam os n ós, e t u
tens de nos aceitar. T u tens a escolh a".
Eu m e calei. Salom é afastou-se de m im . O lh e i desconfiado ao redor de m im .
At rás de m im ard ia u m a ch am a am arelo-averm elh ad a n u m alt ar redon do. Em
t orn o da ch am a se d eit ara a serpen te em form a de círculo. Seus olhos faiscavam
o reflexo am arelado. En cam in h ei-m e vacilan t e para a saída. Ao passar pelo sa-
lão, vi an dan do à m in h a fren te u m en orm e leão. For a era n oit e fria e estrelada.
I9
[2] °N ã o é pouca coisa ad m it ir seu desejo. Mu it as pessoas precisam para
isso de u m esforço especial de sua lealdade. Mu it os n ão qu erem saber onde
está seu desejo, pois lh es pareceria im possível ou por dem ais doloroso. E, ape-
190 O esboço corrigido tem: reflexão (p. 103). No esboço e no esboço corrigido ocorre uma passagem longa. O que segue
aqui é uma paráfrase: Eu me pergunto se isto é real, um mundo inferior, ou a outra realidade, e se foi a outra
realidade que me impeliu para cá. Vejo aqui que Salomé, meu prazer, move-se para a esquerda, o lado do
impuro e mau. Este movimento segue a serpente, que representa a resistência e a hostilidade contra este
movimento. O prazer se afasta da porta. O pensar prévio [esboço corrigido: "a ideia", ao longo de toda esta
passagem] está à porta, conhecendo a entrada para os mistérios. Por isso o desejo funde-se nos muitos, se o
pensar prévio não o orienta e não o impele para a sua meta. Se encontramos um homem que apenas deseja,
encontraremos, por trás do desejo, resistência contra o desejo dele. O desejo sem pensar prévio ganha
muito, mas não conserva nada, por isso seu desejo é a fonte de constante decepção. Por isso Elias chama
de volta Salomé. Se o prazer está unido com o pensar prévio, a serpente permanece diante deles. Para ter
sucesso em alguma coisa, é preciso primeiro lidar com a resistência e a dificuldade, caso contrário a alegria
deixa para trás dor e decepção. Por isso aproximei-me mais. Eu precisava primeiro superar a dificuldade e a
resistência para conseguir o que eu desejava. Quando o desejo supera a dificuldade, torna-se visão e segue o
pensar prévio. Por isso vejo que as mãos de Salomé estão puras, sem nenhum vestígio de crime. Meu desejo
é puro se eu primeiro superar a dificuldade e a resistência. Se eu examino cuidadosamente o prazer e o
pensar prévio, sou como um louco, que segue cegamente seus anseios. Se eu sigo meu pensamento, renuncio
ao meu prazer. O s antigos diziam em imagens que o louco encontra o caminho certo. O pensar prévio tem
a primeira palavra, por isso Elias perguntou-me o que eu queria. Sempre se deve perguntar a si mesmo o
que se deseja, já que existem pessoas demais que não sabem o que querem. Eu não sabia o que eu queria.
Você deve confessar a você mesmo seus anseios e aquilo por que você anseia. Assim você satisfaz seu prazer
e alimenta seu pensar prévio ao mesmo tempo (esboço corrigido, p. 103-104).
I N ST RU ÇÃO 169
191 O esboço corrigido tem: "em sua manifestação exterior, na miséria da realidade terrena" (p. 107).
192 Em vez disso, o esboço corrigido tem: "Filh o de Deus" (p. 107).
193 Cf. Mt 18,18: "Tudo que ligardes na terra será ligado nos céus, e tudo que desligardes na terra será
desligado nos céus".
170 L I B E R P R I M U S foi. v(r)/ vi(v)
n o m u n d o, e n i n g u é m p o d e i m p e d i - l o . Mas n ã o a co n t e ce p o r v i a d e m i n h a v o n -
tade, e sim por via de efeito in evit ável. N ã o sou eu que sou sen h or sobre vós,
mas o ser de Deu s em m im . Co m u m a chave t ran co o passado, com a ou t ra abro
o futuro. Ist o acontece en quan t o m e t ran sform o. O m ilagre da t ran sform ação é
que com an da. Eu sou seu servo, igual ao Papa.
Vê s que é m u it o desvairam en t o acredit ar ist o de si m e sm o 19 4 . N ã o se aplica
a m im , mas ao sím bolo. O sím bolo t orn a-se m eu sen h or e soberan o in falível,
vai fir m ar seu d om ín io e se t ran sform ar n u m a im agem rígida e en igm át ica,
cujo sen t ido se volt a t ot alm en t e para d en t ro e cujo prazer relu z para fora com o
fogo ch am ejan t e 19 5 , u m Bu d a n a ch a m a 19 6 . En qu an t o assim m e con cen t rava em
m eu sím bolo, o sím bolo de m eu u m m e t ran sform a em m eu out ro, e aquela
deusa cru el de m eu in t erior, m eu prazer fem in in o, m eu au t ên t ico out ro, o at or-
m en t ad or at orm en t ado, n aqu ilo a ser atorm en tado. In t er p r et ei esta im agem o
m elh or que pude com palavras pobres.
19 7
Segue n o m om en t o de t u a con fusão t eu pen sar prévio, n ão t eu apetite
cego, pois o pen sar prévio te con duz ao difícil, que sem pre deve chegar em
194 O esboço e o esboço corrigido continuam: "O papa em Rom a tornou-se para nós uma imagem c símbolo
de como se realiza a encarnação de Deus e de como ele (Deu s) se torna o senhor visível dos homens.
Portanto, o Deus vindouro torna-se o senhor do mundo. Isto acontece primeiramente (aqui) em mim. O
sentido supremo torna-se meu senhor e soberano infalível, mas não só em m im , talvez também em muitos
outros que eu não conheço" (esboçocorrigido p. 108-109).
195 O esboço corrigido tem: "torno-me então como o Buda sentado no fogo" (p. 109).
196 O esboço corrigido continua: "Onde está a ideia, também está sempre o prazer. Se a ideia está dentro, o
prazer está fora. Por isso me envolve então exteriormente um brilho de prazer pior. Um a divindade lasciva
e ávida de sangue me dá o brilho falso. Isto provém do fato de eu ter de suportar totalmente o vir a ser de
Deus e que por isso não posso separá-lo de m im inicialmente. Mas enquanto não estiver separado de m im ,
sou tomado pela ideia de que eu sou ela, e por isso sou também a mulher, que está ligada desde o começo
à ideia. Ao receber a ideia e a apresentar à maneira de Buda, meu prazer é formado como a Kali indiana,
pois ela é o outro lado de Buda. Mas Kali é Salomé, e Salomé é minha alma" (p. 109).
197 No esboço, ocorre aqui um longa passagem, da qual segue uma paráfrase: O torpor é como uma morte.
Eu preciso de total transformação. Através disto, minha intenção, como a do Buda, dirigiu-se totalmente
para dentro. Então aconteceu a transformação. Mudei então para o prazer, já que eu era um pensador.
Enquanto pensador, rejeitei meu sentimento, mas eu havia rejeitado parte da vida. Então meu sentimento
tornou-se uma planta venenosa e, quando acordei, ele era sensualidade em vez de prazer, a forma mais
inferior e mais comum de prazer. Esta é representada por Kali. Salomé é a imagem do meu prazer, que
sente dor porque foi excluído por muito tempo. Ficou evidente então que Salomé, isto é, meu prazer,
era minha alma. Quando reconheci isto, meu pensamento mudou e subiu à ideia, e então apareceu a
imagem de Elias. Isto me preparou para o jogo do mistério, e mostrou-me antecipadamente o caminho
da transformação pelo qual eu tinha que passar no Mysterium. A convergência do pensar prévio com
o prazer produz o Deus. Reconheci que o Deus em m im queria tornar-se homem, e considerei isto e
respeitei isto, e tornei-me o servo do Deus, mas para nenhum outro senão eu mesmo [esboço corrigido:
seria loucura e presunção supor que fiz isto também para outros, p. 110]. Mergulhei na contemplação da
maravilha da transformação, e primeiro transformei-me no nível inferior do meu prazer, e depois, através
disto, reconheci minha alma. O s sorrisos de Elias e Salomé indicam que estavam contentes com meu
aparecimento, mas eu estrava em profundas trevas. Quando o caminho é escuro, é a ideia que fornece luz.
Quando a ideia, no momento de confusão, possibilita as palavras e não o anseio cego, então as palavras
levam você à dificuldade. Ao passo que a ideia leva você para a direita. E por isso que Elias volta-se para a
esquerda, para o lado do pecaminoso e mau, e Salomé volta-se para o lado do correto e bom. Ela não vai ao
jardim , o lugar do prazer, mas permanece na casa do pai (p. 125-127).
I N ST RU ÇÃO 171
198 No esboço ocorre uma passagem da qual segue uma paráfrase: Se sou forte, também o são minhas
intenções e pressuposições. Meu pensamento enfraquece e muda para a ideia. A ideia se torna forte; ela
é sustentada por sua própria força. Reconheço isto no fato de Elias ser sustentado pelos leões. O leão é
de pedra. Meu prazer está morto e transformado em pedra, porque não amei Salomé. Isto deu ao meu
pensamento a frieza da pedra, e disto a ideia tomou sua solidez, que é necessária para subjugar meu
pensamento. Ele precisava ser subjugado, já que lutava contra Salomé, porque ela lhe pareceu má (p. 128).
199 Em 1921, Jung escreveu: "Devido à realidade específica dos conteúdos inconscientes, podemos chamá-la
de objeto com os mesmos direitos com que chamamos as coisas exteriores de objetos" (Tipospsicológicos. O C ,
6, § 28 0 ) .
172 LI BERP RI M U S foi.vi(r)/ vi(v)
n u m m u n d o p a r c i a l m e n t e d e s o r d e n a d o , t a m b é m n ã o s o u p r e ju d ic a d o se vi ve r
200 O esboço e o esboço corrigido têm: "Deveria considerar me louco ; [esboço corrigido: seria mais que absurdo] se
eu pensasse que tinha gerado os pensamentos do mistério" (esboço corrigido, p. 115).
201 O esboço continua: "...reconheci o Pai, mas porque eu era um pensador, no entanto, não conheci a mãe,
porém vi o amor na forma do prazer, e o chamei de prazer, e por isso ficou sendo Salomé para mim. Agora
percebo que Maria é a mãe, a inocente, e receptora de amor e não de prazer, que em sua natureza fogosa
e sedutora traz o germe do mal. / Se Salomé, o prazer maldoso, é minha irmã, então eu sou um santo
pensador, e meu intelecto está arruinado. Eu preciso sacrificar meu intelecto e devo confessar que aquilo
que vos disse sobre o prazer, de que ele é o princípio diante do pensar prévio, imperfeito e preconcebido.
Eu olhava como um pensador a partir do ponto de vista de meu pensar, senão teria podido reconhecer que
Salomé, como a filha de Elias, é um derivado do pensar e não o próprio princípio. Maria, a mãe virginal e
inocente, aparece como sendo esse princípio" (p. 133).
SO LU Ç ÃO 173
Solução
[ I H vi ( v) ] 2 ° 5
Cap. xi.
206
N a t erceira n oit e seguinte, fu i tom ado por u m desejo profun do de con -
t in u ar viven cian d o o m ist ério. Gr an d e era o con flit o en t re d ú vid a e desejo em
m im . Mas de repen te vi que estava n u m a alcan t ilad a crist a roch osa em região
desért ica. E d ia de claridade ofuscante. Avist ei acim a de m im , n u m plan o m ais
elevado, o profeta. Su a m ão fez u m gesto de afastam ento, e eu d esist i de m in h a
in t en ção de subir. Esp er ei em baixo, olh an do para cim a. O lh o: à d ir eit a para a
n oit e escura, à esquerda para o d ia claro. O roch edo d ivid e d ia e n oit e. N o lado
202 O Evangelho dos Egípcios é um dos evangelhos apócrifos, que expõe um diálogo entre Crist o e
Salomé. Crist o afirma que veio destruir a obra do feminino, a saber, a concupiscência, o nascimento e a
deterioração. A pergunta de Salomé sobre quanto tempo a morte prevalecerá, Crist o respondeu: enquanto
as mulheres gerarem filhos. Aqu i Jung está se referindo à seguinte passagem: "Ela disse: 'Então eu fiz bem
em não parir', imaginando que não é permitido gerar filhos. O Senhor respondeu: 'Com e de todas as
ervas, mas não comas das amargas'". O diálogo continua: "Quando Salomé perguntou quando isto será
tornado público, o Senhor disse: 'Quando você calcar aos pés o manto da vergonha e quando de dois for
feito um, e o masculino com o feminino, nem masculino nem feminino'" (TheApocryphalNewTestament.
Oxford: O xford University Press, 1999, p. 18 [org. por J.K. Elliot ]). Jung cita este lógíon, ao qual teve acesso
através dos Stromateís de Clemente, como exemplo da união dos opostos em Visions, vol. 1, p. 524 (1932), e
como exemplo da coníunctío de masculino e feminino em "A psicologia do arquétipo da criança" (1940).
O C , 9/ 1, § 295) e Mysterium corúunctíonís (1955/ 1956). O C , 14, § 528.
203 O esboço e o esboço corrigido têm: "mas quando o jogo dos mistérios me mostrou isto, não o entendi, mas
pensei que tinha gerado um pensamento desvairado. Sou alienado, se acreditar nisso. E cu acreditei.
Por isso o medo tomou conta de mim, e eu queria esclarecer Elias e Salomé como meus pensamentos
arbitrários e, assim, enfraquecê-los" (esboço corrigido, p. 118).
204 O esboço continua: "A imagem da noite fresca e estrelada, com o vasto céu, abriu-me os olhos para
a infinitude do mundo interior que eu, como pessoa mais ávida, ainda achei muito fria. Não posso
apoderar-me das estrelas, apenas contemplá-las. Por isso m inha impetuosa avidez sente aquele mundo
como escuro e frio" (p. 135).
205 Isto descreve uma cena na fantasia a seguir.
206 25 de dezembro de 1913.
174 LI BE R P RI M U S foi.vi(r)/ vi(v)
207 No seminário de 1925, Jung disse: "Algumas noites mais tarde senti que as coisas deviam continuar,
de modo que novamente procurei seguir o mesmo procedimento, mas a coisa não descia. Permaneci na
superfície. Dei-m e conta então de que eu tinha um conflito dentro de m im a respeito de descer, mas não
pude entender o que era, apenas senti que dois princípios escuros estavam lutando um contra o outro,
duas serpentes" (introductíon to Jungian Psychology, p. 104).
208 No seminário de 1925, Jung acrescentou: "Eu pensei: isto é um lugar sagrado dos druidas" (introductíon to
Jungian Psychology, p. 104).
209 Em O anel do níhelungo, de Wagner, o anão nibelungo Mime é irmão de Alberich e mestre artesão. Alberich
roubou o ouro do Reno das donzelas do Reno; renunciando ao amor, ele conseguiu forjar com ele um anel
que conferia poder ilimitado. No Siegfried, Mime, que mora numa caverna, traz Siegfried para fora, para que
mate o gigante Fafner, que foi transformado num dragão e agora possui o anel. Siegfried mata Fafner com
a espada invencível forjada por Mime, e mata Mime, que queria matá-lo depois de recuperar o ouro.
SO LU Ç ÃO 175
210 No seminário de 192$, Jung interpretou este episódio da seguinte maneira: "A luta das duas serpentes: a
branca significa um movimento para o dia, a negra para o reino das trevas, com aspectos morais também.
Havia dentro de m im um conflito real, uma resistência a descer. Min h a tendência mais forte era subir.
Porque eu ficara tão impressionado no dia anterior com a crueldade do lugar que havia visto, minha
tendência era realmente encontrar um caminho para o consciente subindo, como fiz na montanha... Elias
disse que embaixo ou em cima era exatamente a mesma coisa. Con fira o Inferno de Dante. O s gnósticos
expressam esta mesma ideia com o símbolo dos cones invertidos. Assim , a montanha e a cratera são
semelhantes. Não havia nada de estrutura consciente nestas fantasias, eram apenas fatos ocorridos. Por
isso suponho que Dante tirou suas ideias dos mesmos arquétipos" (introductíon to Jungian Psychology, p. 104-
105). McGuire sugere que Jung está se referindo à concepção de Dante "da forma cónica da cavidade do
Inferno, com seus círculos, espelhando inversamente a forma do Céu, com suas esferas" (Ib id .). Em Aíon,
Jung observou também que as serpentes eram um típico par de opostos e que o conflito entre serpentes
era um motivo encontrado na alquimia medieval (1951. O C , 9/ 2, § 181).
176 LI BERP RI M U S foi.vi(r)/ vi(v)
211 No seminário de 1925, Jung contou isto novamente, após a declaração de Salomé de que ele era
Cristo: "Apesar de minhas objeções, ela manteve isto. Eu disse: 'isso é loucura', e me enchi de resistência
cética" (introductíon to Jungian Psychology, p. 104). Ele interpretou este acontecimento da seguinte maneira:
"A abordagem de Salomé e sua veneração por mim é obviamente esse lado da função inferior que está
cercado por uma aura de mal. O indivíduo é assaltado pelo medo de que talvez isto seja loucura. E assim
que a loucura começa, isto é a loucura... Você não pode tornar-se consciente destes fatos inconscientes
sem entregar-se a eles. Se você puder superar seu medo do inconsciente e deixar-se descer, estes fatos
adquirem uma vida própria. Você pode ser agarrado por estas ideias a tal ponto que você fica realmente
louco, ou quase louco. Estas imagens têm tanta realidade, que se recomendam a si mesmas, e sentido tão
extraordinário que se fica preso. Fazem parte dos antigos mistérios; na verdade, tais fantasias é que fizeram
os mistérios. Comparem-se os mistérios de Isis, narrados em Apuleio, com a iniciação e divinização do
iniciado... Tem-se uma sensação especial ao passar por semelhante iniciação. A parte importante que
levou à divinização foi o ato de a serpente enrolar-se em mim. A performance de Salomé foi a divinização.
O rosto do animal no qual senti que o meu foi transformado era o famoso [Deus] Leontocéfalo dos
mistérios de Mitra, a figura representada com uma serpente enrolada num homem, a cabeça da serpente
encostada na cabeça do homem, e o rosto do homem no de um leão... Neste mistério de divinização você
se transforma no veículo e é o veículo da criação no qual os opostos se conciliam". E acrescentou que
"tudo isto é simbolismo mitraico do início ao fim " (Ibid ., p. 9 8-9 9 ). Em O asno de ouro, Lúcio passa por uma
iniciação aos mistérios de Isis. A importância deste episódio é que ele é a única descrição direta de uma
tal iniciação que chegou até nós. Sobre o acontecimento em si, Lúcio afirma: "Aproxímeí-me dos próprios portões
SO LU Ç ÃO 177
da m orte e pus o pé no lim iar de Perséfone, e no entanto foi-m e perm itido voltar, arrebatado através de todos os elem entos. À m eía-noite vi
o sol brilhando com o se fosse m eío-día-, entrei na presença dos deuses do m undo inferior e dos deuses do m undo superior,fiqueiperto deles
eadorei-os". Em seguida, ele foi apresentado num púlpito no templo diante de uma multidão. Vestia trajes
que tinham desenhos de serpentes e leões alados, segurava uma tocha e trazia uma grinalda de folhas de
palmeira com as pontas voltadas para fora como raios de luz" (The GoldenAss. Harm ondsworth, 1984, p.
241 [Trad. de R. Graves]). O exemplar de Jung de uma tradução desta obra tem uma linha na margem na
altura desta passagem.
212 Em "Aspectos psicológicos da Co r e"(i9 5i), Jung descreveu estas cenas como segue: "Em uma casa
subterrânea, ou melhor, no mundo subterrâneo vive um mago e profeta velhíssimo, com uma 'filha', que
não é sua filha verdadeira. Ela é dançarina, uma criatura muito flexível, mas está em busca de cura, pois
ficou cega" ( O C, 9/ 1, § 360). Esta descrição de Elias levou-o posteriormente à descrição de Filêmon. Jung
observou que isto "esboça a desconhecida como uma figura mítica no além (isto é, no inconsciente). Ela é
soror ou filia mystíca de um hierofante ou 'filósofo', portanto é evidentemente um paralelo em relação àquelas
sizígias místicas tais como as encontramos nas figuras de Simão Mago e Helena, Zósim o sob a Teosebeia,
Comário e Cleópatra, etc. Nossa figura onírica está mais próxima à de Helena" ( O C, 9/ 1, § 372).
213 O esboço corrigido tem: "reflexão" (p. 127). No Livro Negro 2, Jung copiou as seguintes citações da Divina
Comédia, de Dante na tradução alemã (p. 104): "Pensativo, escuto o sopro do amor; aceito como verdade o
que sempre me prediz, e copio tudo, nada inventando eu mesmo" (Dante. Purgatório. 24. Canto 52-54).
"E logo a chama, que ainda se movimenta, para onde quer que a trilha do fogo vá, assim segue a forma
aonde o espírito a carrega" ( D AN T E . Purgatório. 25. Can to 97-99).
214 O esboço tem: "A notícia do desejo reanimado da mãe" (p. 143).
215 O esboço corrigido tem: "Imagem prim ordial" (p. 127).
178 LI BERP RI M U S foi.vi(r)/ vi(v)
216 O esboço corrigido tem: "A ideia ou a imagem prim ordial" (p. 127).
217 O esboço corrigido tem: "vive" (p. 127).
218 Isto é, no capítulo 5, "Descida ao inferno no futuro".
219 O esboço corrigido tem: "o espírito" (p. 127).
220 O esboço continua: "Por isso dizem todos que ele pode lutar pelo bem e pela paz, lá onde não é possível
um duelar mútuo pelo bem. Mas como as pessoas não sabem que a divisão está em seu próprio interior,
acham os alemães que os ingleses e russos não têm razão; os ingleses e russos porém dizem que os alemães
não têm razão. Mas ninguém consegue julgar os rostos segundo ter razão e não ter razão. Quando a
metade da humanidade está sem razão, cada pessoa está pela metade sem razão. Por isso é uma divisão em
sua própria alma. Mas o ser humano é obcecado e sempre só conhece uma de suas metades. O alemão tem
em si o inglês e o russo, que ele combate fora de si mesmo. De igual modo, o inglês e o russo têm em si o
alemão que eles combatem. As pessoas veem a discórdia externa, mas não a interna, que é a única fonte da
grande guerra. Mas antes que o ser humano possa ascender para a luz e o amor, há necessidade da grande
batalha" (p. 145).
221 Em dezembro de 1916, em seu prefácio a A psicologia dos processos inconscientes, Jung escreveu: "Nada
mais apropriado do que os processos psicológicos que acompanham a guerra atual - notadamente a
anarquização inacreditável dos critérios em geral, as difamações recíprocas, os surtos imprevisíveis de
vandalismo e destruição, a maré indizível de mentiras e a incapacidade do homem de deter o demónio
sanguinário para obrigar o homem que pensa a encarar o problema do inconsciente caótico e agitado,
debaixo do mundo ordenado da consciência. Esta Guerra Mundial mostra implacavelmente que o
homem civilizado ainda é um bárbaro. Ao mesmo tempo, prova que um açoite de ferro está à espera, caso
ainda se tenha a veleidade de responsabilizar o vizinho pelos seus próprios defeitos. A psicologia do indivíduo
corresponde à psicologia das nações. As nações fazem exatamente o que cada um faz individualmente; e do m odo com o
o indivíduo age, a nação também agirá. Somente com a transformação da atitude do indivíduo é que começará a
transformar-se a psicologia da nação" (vol. 7, p. xix).
SO LU Ç ÃO 179
n ão saberem que a divisão está d en t ro delas m esm as, t orn am -se desvairadas / e foi.vi( r )
em p u rram a cu lpa u m a para a ou t ra. Se u m a m etade d a h u m an id ade est á sem ^ ^
razão, en t ão cada pessoa está pela m etade sem razão. Mas n ão vê a divisão em
sua alm a, que é a fon te d a desgraça ext ern a. Se estás irr it ad o con t ra t eu irm ão,
pen sa que estás irr it ad o con t ra o irm ão d en t ro de t i, ist o é, con t ra aquilo em t i
que é sem elh an t e a t eu irm ão.
En q u an t o pessoa és parte d a h u m an id ad e e por isso ten s part e n o todo da
h u m an idad e de t al form a com o se fosses a h u m an id ade toda. Se t u ven ces e
m atas o t eu con cid ad ão que se op õe a t i, en t ão m atas aquela pessoa t am bém em
t i e terás m atado u m a part e de t u a vid a. O espírit o desse m ort o vai seguir-te e
n ão p erm it irá que te alegres com t u a vid a. T u precisas de t eu todo para passar
pela vid a.
Se eu m e aban don o ao puro prin cípio, coloco-m e n u m dos lados e m e t orn o
u n ilat eral. Por isso m eu pen sar p révio t orn a-se, n o p r in cíp io 222 da m ãe celeste,
u m an ão repu lsivo que m or a n a cavern a escura com o u m n ão n ascido n o út ero.
Tu n ão o seguirás, m esm o que te diga que poderias beber sabedoria em sua
fonte. O pen sam en t o p r é vio 2 2 3 vai aparecer-t e lá com o esperteza de an ão, falsa
e obscura, assim com o m e apareceu lá em baixo a m ãe do céu com o Salom é. O
que falt a oport u n am en t e n o p rin cíp io pu ro aparece com o serpen te. O h erói
am bicion a ao m áxim o o prin cípio puro e por isso é fin alm en t e ven cid o pela
serpen te. Q u an d o te diriges ao p en sar 224 , leva ju n t o t eu coração. Q u an d o te
diriges ao am or, leva ju n t o t u a cabeça. Vazio é o am or sem pensar, ou o pen sar
sem amor. A serpen te espreit a atrás do prin cípio puro. Por isso fiqu ei sem ân i-
m o até en con t rar a serpen te que m e levou im ed iat am en t e para o ou t ro p rin cí-
pio. N a descida, eu en colh i.
Gran d e é qu em est á n o am or, pois o am or é a obra at u al do grande criador,
do m om en t o at ual do vir a ser e do desaparecer do m un do. Poderoso é qu em
am a. Mas qu em se afasta do am or sen te-se poderoso.
Em t eu pen sar p révio conheces a n u lidade de t eu ser m om en t ân eo com o
u m dos m en ores pon tos en t re o in fin it o do passado e o in fin it o do porvir. Pe-
quen o é o pensador, gran de ele se ju lga quan do se afasta do pensar. Mas quan do
222 O esboço corrigido tem: "o profeta, a personificação da ideia" (p. 131).
223 O esboço corrigido tem: "ideia" (p. 131).
224 O esboço corrigido tem: "ideia" (substituída durante todo o parágrafo) (p. 131).
i8o LI BERP RI M U S fol.vi(r)/ vii(v)
225 O esboço corrigido acrescenta: "consciente". De dentro de si m esm o é suprim ido (p. 133).
226 Em vez disso, o esboço e o esboço corrigido têm: "A força criadora de Deus torna-se (nele), uma, pessoa [uma
consciência pessoal] a partir do (inconsciente) coletivo (p. 133-134).
227 O esboço e o esboço corrigido têm: "mas por que, perguntas tu, aparece-te o pensar prévio [a ideia] na figura
de um velho profeta judeu e teu [o] prazer na figura da pagã Salomé? Mas amigo, não te esqueças de que
eu também sou um pensador volente no espírito dessa época e que estou totalmente sob o feitiço da
serpente. Através da iniciação nos mistérios do espírito da profundeza, estou disposto a não relegar ainda
totalmente todo o arcaico, que falta ao pensador no espírito dessa época, conforme o espírito dessa época
sempre exige, mas reassumi-lo em meu ser pessoa, para tornar plena minha vida. Eu fiquei realmente
pobre e bem afastado de Deus. Preciso assumir ainda em m im o divino e o mundano, pois o espírito dessa
época nada mais tem para me dar e ainda me tirou o pouco que eu possuía da verdadeira vida. Tornou-me
sobretudo imprudente e ganancioso, pois ele é só presente e me obrigou a caçar tudo o que é presente para
satisfazer o momento atual" (p. 134-135).
228 O esboço e o esboço corrigido têm: "Como os antigos profetas [antigos] viveram antes do mistério de Cristo,
assim estou também eu ainda antes do [desse] mistério de Crist o [enquanto reassumo o passado] apesar
de eu viver dois m il anos após ele [mais tarde] e ter acreditado ser um cristão. Mas jamais fui um Crist o"
(P. 136).
SO LU Ç ÃO 181
salvo pelo h erói, mas que ele m esm o se t orn a u m Cr ist o. Ist o nos en sin a sim bo-
licam en t e o exem plo da vid a dos santos.
Vê m al qu em deseja ver. Fo i m in h a von t ade que m e enganou. Fo i m in h a
von t ade que provocou a grande divisão dos d em ón ios. Port an t o, n ão devo m ais
querer? Eu satisfiz m in h a von t ade t ão bem quan t o pude. E assim saciei tudo
o que t in h a am bições d en t ro de m im . Ao fin al con clu í que em tudo isso eu
qu eria a m im m esm o, mas sem procu rar a m im m esm o. Por isso n ão quis m ais
p rocu rar-m e fora de m im , mas d en t ro de m im . Q u is en t ão segurar a m im m es-
m o, e quis de n ovo ir adian t e, sem saber o que qu eria, e assim caí n o m ist ério.
Port an t o, n ão devo m ais querer? Vó s quisestes esta guerra. Ist o é bom . Se
n ão a quisésseis de fato, o m al desta gu erra seria p eq u en o 229 . Mas com vossa
von t ade t orn ais o m al grande. Mas n ão conseguis fazer dessa guerra o m aior
m al, n u n ca apren dereis a ven cer a violên cia e o com bate fora de vó s 23 °. Por
isso é b om que qu eirais de todo o coração este m aior m a l 2 31. Vó s sois crist ãos e
seguidores de h eróis e esperais por salvadores, que devem t om ar sobre si vossos
sofrim en t os e poupar-vos o Gólgot a. Co m isso erigis para vó s 2 3 2 u m m on t e
Calvário, que cobre t od a a Eu rop a. Se vos sucede fazer dessa guerra u m m al
t errível e lan çar n est a fauce escan carada in con t áveis vít im as, isto é b om , pois
t orn a cada u m de vós pron t o para sacrificar a si m esm o. Pois com o eu , assim vós
vos aproxim ais d a realização do m ist ério de Cr ist o.
Logo sen t ireis o pu n h o de ferro n a n uca. Est e é o in ício do cam in h o. Q u a n -
do sangue, fogo, gritos de aflição en ch erem este m un do, en t ão vos recon h ece-
reis em vossos atos: em bebedai-vos n o h or r or san gren to d a guerra, saciai-vos
de m at ar e dest ruir, en t ão vossos olh os se abrirão de que sois vós m esm os que
prod u zis tais fr u t o s 233 . Vó s estais a cam in h o se quereis t udo isso. O querer cria
cegueira, e cegueira con duz ao cam in h o. Devem os querer o erro? N ã o deves,
229 Em Assim falava Zaratustra, escreveu Nietzsche: "Redim ir os homens passados e em vez de dizer "é o
passado", dizer-se então "é o que eu quis" - só isto é redenção para m im " ("Da Redenção", p. 191).
230 Em 11 de fevereiro de 1916, num debate na Associação de Psicologia Analítica, Jung disse: "Abusamos
da vontade quando dizemos que o crescimento natural está submetido à vontade... A guerra nos ensina:
querer não adianta nada - devemos ver como ficará. Nós estamos totalmente sujeitos ao poder absoluto
do vir a ser" (MPA, vol. 1, p. 106).
231 O esboço e o esboço corrigido têm: "Pois vós sois [nós somos] interiormente ainda velhos judeus e pagãos com
deuses abomináveis" (p. 137).
232 O esboço corrigido tem: "para nós" (p. 138).
233 O esboço corrigido tem: "e nós nos chamávamos cristãos, seguidores de Cristo. Sermos nós mesmos Cristo,
este é o verdadeiro seguimento de Crist o" (p. 139).
182 LI BERP RI M U S foi.vi(r)/ vii(v)
mas irás querer aquele erro que t u con sideras a m elh or verdade, assim com o
procederam as pessoas desde sem pre.
O sím bolo do crist al sign ifica a lei im ut ável do acon t ecim en t o que vem por
si m esm o. Nest e n ú cleo vês o que virá. Eu vi algo am edron t ador e in con cebível
(ist o foi n a n oit e de Nat al de 1913). Eu vi o sapato grosseiro, o sin al do h orror
da gu erra dos cam p on eses 234 , dos in cên d ios crim in osos e da atrocidade san gui-
n ária. N ã o sabia in t erp ret ar de ou t ro m odo para m im este sin al a n ão ser de que
estava dian t e de n ós algo san gren to e t errível. V i o pé de u m poderoso que es-
magava u m a cidade in t eira. D e que out ro m odo pod eria in t erp ret ar este sin al?
Vi que aqu i com eçava o cam in h o do autossacrifício. Serão todos arrebatados
pelo t error dos grandes acon t ecim en t os e vão querer en t en d ê-los n a cegueira
com o acon t ecim en t os ext ern os. É u m acon t ecim en t o in t erior, é o cam in h o da
realização do m ist ério de Cr is t o 2 35 , pois os povos apren dem o autossacrifício.
O h or r or pode ser tão grande, que o olh ar das pessoas pode volt ar-se para
den t ro, que seu querer n ão m ais procure o si-m esm o nos out ros, mas em si
m esm as 236 . Eu o vi, eu sei que este é o cam in h o. Eu vi a m ort e de Cr ist o e vi seu
lam en t o, eu sen t i o t orm en t o de sua m ort e, da grande m ort e. Eu vi u m n ovo
Deu s, u m m en in o que d om in a os d em ón ios com sua m ã o 2 37 . Deu s m an t ém em
seu poder os prin cípios separados e os un e. Deu s vem a ser em m im através da
un ião dos prin cípios. Ele é sua un ião.
Se queres u m prin cípio, en t ão estás n o t eu ser u m , mas longe de t eu ser
outro. Se queres os dois prin cípios, u m e outro, en t ão suscitas a d esu n ião dos
prin cípios, pois n ão podes querer os dois ao m esm o tem po. Disso surge a n e-
cessidade em que aparece Deu s, ele t om a n a m ão t eu querer d ivid id o, n a m ão
de u m a crian ça, cu ja von t ade é sim ples e está além da desun ião. N ã o podes
238 No esboço e no esboço corrigido, ocorre aqui uma longa passagem, da qual segue uma paráfrase: O Deus
segura o amor na mão direita, o pensar prévio ["a ideia", substituída do princípio ao fim] na esquerda.
O amor está no nosso lado favorável, o pensar prévio no desfavorável. Isto deveria recomendar a você o
amor, na medida em que você faz parte deste mundo, e especialmente se você é um pensador. O Deus
possui ambos. A unidade deles é Deus. O Deus se desenvolve através da união de ambos os princípios em
você [m im ]. Você [eu] não se torna Deus através disto, ou se torna divino, mas Deus se torna humano.
Ele se torna manifesto em você e através de você, como uma criança. O divino virá a você como infantil
ou imaturo, na medida cm que você c um homem desenvolvido. O homem infantil tem um Deus velho,
o velho Deus que nós conhecemos c cuja morte nós vimos. Sc você c adulto, você só pode tornar se mais
infantil. Você tem a juventude diante de você c todos os mistérios do que está por vir. O infantil tem a
morte diante dele, já que precisa primeiro tornar se adulto. Você se tornará adulto na medida cm que
superar o Deus dos antigos c da sua infância. Você o supera não pondo-o de lado, obedecendo ao espírito
do tempo [: Zeitgeist]. O espírito deste tempo oscila entre o sim e o não como um bêbado ["já que ele é
a incerteza da consciência geral presente"]. Você ["Alguém", do princípio ao fim] só pode superar o velho
Deus transformando-se você mesmo nele e experimentando você mesmo o sofrimento e morte dele. Você
o supera e se torna você mesmo, como alguém que se procura a si mesmo e já não im ita heróis. Você se
liberta a si mesmo quando você se liberta do velho Deus e seu modelo. Quando você se tornou o modelo,
você já não precisa mais do dele. No fato de o Deus segurar em suas mãos o amor c a prudência na forma
da serpente, foi me mostrado que ele se apoderara da vontade humana. ["Deus unifica a oposição entre
o amor e a ideia, e a segura em suas mãos".] O amor e o pensar prévio existiram desde toda a eternidade,
mas não foram queridos. Todos querem sempre o espírito deste tempo, que pensa e deseja. Aquele que
quer o espírito das profundezas, quer o amor e o pensar prévio. Se você quer os dois, você se torna Deus.
Se você faz isto, o Deus nasce e toma posse da vontade dos homens e segura a vontade dele na mão de seu
filho. O espírito das profundezas aparece em você como totalmente infantil. Sc você não quer o espírito
das profundezas, ele é para você um tormento. O querer leva ao caminho. O amor e o pensar prévio
estão no mundo do além, enquanto você não os quer e a vontade de você está entre eles como a serpente
["os mantém separados"]. Se você quer os dois, eclode em você a luta entre querer o amor e querer o
pensar prévio ["o reconhecimento"]. Você verá que você não pode querer os dois ao mesmo tempo. Nesta
necessidade o Deus nascerá, como você experimentou no mystcrium, e ele tomará a vontade dividida
em suas mãos, nas mãos de uma criança, cuja vontade é simples e para além do ser dividida. O que é esta
vontade divino-infantil? Você não consegue aprendê-la através de uma descrição, ela só pode vir a ser em
você. Você tampouco pode querê-la. Você não pode aprendê-la ou ter empatia com ela a partir daquilo
que eu digo. E incrível como os homens são capazes de enganar se a si mesmos c m entir para si mesmos.
Que isto seja uma advertência. O que cu digo é o meu mistério e não o de você, o meu caminho c não o
de você, já que o meu self pertence a m im c não a você. Você não deve aprender o meu caminho, mas o seu
próprio. Meu caminho leva a m im e não a você (p. 142-145).
239 O esboço corrigido tem: "o grande espírito" (p. 146).
184 LI BERP RI M U S foi.vi(r)/ vii(v)
P e lo fat o d e e u q u e r e r t a m b é m m e u se r o u t r o , d e vo t o r n a r - m e u m Cr i s t o .
Eu serei t ran sform ado em Cr ist o, devo su port á-lo. Assim jo r r a o sangue red en -
tor. At ravés do autossacrifício, m eu prazer será t ran sform ado e passa para u m
prin cípio m ais alto. O am or en xerga, mas o prazer é cego. O s dois prin cípios
são u m só n o sím bolo d a ch am a. O s prin cípios despem -se da form a h u m a n a 2 4 0 .
240 A esta altura o esboço corrigido tem uma longa passagem, da qual segue uma paráfrase: Enquanto você via
como o orgulho e a força encheram os homens e a beleza jorrou dos olhos das mulheres quando a guerra
fascinou as pessoas, você sabia que a humanidade estava a caminho. Você sabia que esta guerra não era
apenas aventura, atos criminosos e assassinatos, mas o mistério do autossacrifício. O ["grande", mudado
do início ao fim] espírito das profundezas apoderou-se da humanidade e for^ou-a, através da guerra, ao
autossacrifício. Não procure a culpa aqui ou ali. ["A culpa não está fora"]. - E o espírito das profundezas
que leva as pessoas ao Mystcrium, assim como me levou a mim. Ele leva o povo ao rio de sangue, como me
levou a mim. Experim entei no Mysterium aquilo que as pessoas foram forçadas a fazer na atualidadc ["que
aconteceu fora em grande escala"]. Eu não o sabia, mas o Mystcrium ensinou me como minha vontade
lançou se aos pés do Deus crucificado. Eu experimentei [quis] o autossacrifício de Cristo. O Mysterium
de Crist o completou-se diante dos meus olhos. Meu pensar prévio ["A ideia que estava acima de m im "]
forçava-me a isto, mas eu resisti. Meu desejo mais alto, meus leões, minha paixão mais ardente c mais forte,
eu queria levantar contra a misteriosa vontade de autossacrifício. Assim eu era como um leão envolvido
pela serpente, ["uma imagem do destino renovando-se eternamente"]. Salomé achegou-se a m im vindo
da direita, do lado favorável. O prazer despertou cm mim. Experim entei que meu prazer me vem quando
realizo o autossacrifício. Ouço que Maria, o símbolo do amor, é também a [minha] mãe de Cristo, já que
o amor também gerou a Cristo. O amor traz o autossacrificador e o autossacrifício. O amor é também
a mãe do meu autossacrifício. No fato de ouvir e aceitar isto, experimento que me torno Cristo, já que
reconheço que o amor me transforma em Cristo. Mas ainda duvido, já que é quase impossível o pensador
diferenciar-se de seu pensamento e aceitar que aquilo que acontece em seu pensamento é também algo
fora dele mesmo. Está fora dele no mundo interior. Eu me torno Crist o no Mystcrium; ou melhor, cu vejo
como fui transformado cm Cristo c no entanto ainda sou inteiramente cu mesmo, de modo que cu podia
ainda duvidar quando meu prazer me disse que cu era Cristo. [Salomé,] Meu prazer, disse-me ["que eu sou
Crist o"] porque o amor, que é mais elevado que o prazer, mas que ainda está em m im escondido no prazer,
levara-me ao autossacrifício e transformara-me em Cristo. O prazer aproximou-se de m im , envolveu-
me com anéis e forçou-me a experimentar o tormento de Crist o e a derramar meu sangue pelo mundo.
Minha vontade, que antes servia ao espírito deste tempo ["Zeitgeist", substituído do início ao fim ], desceu
ao espírito das profundezas e, assim como estava anteriormente determinada pelo espírito do tempo, está
agora determinada pelo espírito das profundezas, pelo pensar prévio ["ideia", substituída do início ao fim ]
e o prazer. Determinou-me através da vontade de autossacrifício, e ao derramamento do sangue, a essência
de minha vida. Note-se que é meu prazer mau que me leva ao autossacrifício. Sua parte mais recôndita é
o amor, que será libertado do prazer através do sacrifício. Aqu i aconteceu a maravilha de que meu prazer
anteriormente cego começou a ver. Meu prazer era cego, e era amor. Já que minha vontade mais forte
quis o autossacrifício, meu prazer mudou, entrou num princípio superior, que em Deus é um princípio
com pensar prévio. O amor tem visão, mas o prazer é cego. O prazer quer sempre aquilo que está mais
próximo, e explora a multiplicidade, indo de uma coisa a outra, sem uma meta, apenas buscando e nunca
satisfeito. O amor quer aquilo que está mais afastado, o melhor e o que satisfaz. E vi algo mais, a saber,
que o pensar prévio em m im tinha a forma de um antigo profeta, o que mostrava que era pré-cristão, e
transformou-se num princípio que já não aparecia mais em forma humana, mas na forma absoluta de pura
luz branca. Assim o relativo humano transformou se no absoluto divino através do Mystcrium de Cristo.
O pensar prévio e o prazer uniram-se em m im de uma forma nova e a vontade em mim, que parecia
estranha e perigosa, a vontade do espírito das profundezas, ficou paralisada aos pés da chama cintilante.
Tornei-me uma só coisa com minha vontade. Isto aconteceu em mim, eu apenas o vi no jogo do mistério.
Através disto, tornaram se conhecidas muitas coisas que antes eu não sabia, ["como num jogo"]. Mas
achei tudo duvidoso. Senti como se eu estivesse derretendo no ar, já que a terra do Mysterium [daquele
espírito] ainda me era estranha. O Mystcrium mostrou me as coisas que estavam diante de m im c
precisavam ser levadas a cabo. Mas cu não sabia como nem quando. Mas aquela imagem de Salomé dotada
de visão, ajoelhada em êxtase diante da chama branca, era um forte sentimento que veio para o lado de
minha vontade e guiou-me através de todas as coisas que vieram depois. O que aconteceu foi minha
viagem comigo mesmo, através de cujo sofrimento eu precisava alcançar o que servia para a conclusão do
Mystcrium que cu havia visto ["eu havia visto antes"] (p. 146-150).
SO LU Ç ÃO 185
241 Gilles Q uispel informa que Jung contou ao poeta holandês Roland Horst que ele havia escrito Tipos
psicológicos com base em trin ta páginas do Livro Vermelho. Apu d H O E L L E R , S. The Gnostíc Jung and the Seven
Sermons to the Dead (Wh eaton , 111., Quest, 1985, p. 6 ) . E provável que ele tivesse em mente estes três
capítulos precedentes do "Mysterium ". O que é apresentado aqui desenvolve as noções do conflito entre
funções opostas, da identificação com a função principal e do desenvolvimento do símbolo reconciliador
como uma solução do conflito dos opostos, que são as questões centrais no cap. 5 de Tipos psicológicos ( O C ,
6 ) , o "Problema dos tipos na poesia". No seminário de 1925, Jung disse: "Descobri que o inconsciente está
elaborando enormes fantasias coletivas. Assim como, antes, eu estava apaixonadamente interessado em
elaborar mitos, agora adquiri interesse exatamente igual pelo material do inconsciente. Esta é, na verdade,
a única maneira de chegar à formação de um mito. E por isso o primeiro capítulo de Psicologia do inconsciente
tornou-se exatissimamente verdadeiro. Observei a criação de mitos que acontecem, e adquiri um
conhecimento do inconsciente, formando assim o conceito que desempenha esse papel nos Tipos. Tomei
todo o meu material empírico de meus pacientes, mas a solução do problema tirei-a de dentro, de minhas
observações dos processos inconscientes. Procurei fundir estas duas correntes de experiência exterior e
experiência interior no livro dos Tipos e dei ao processo de fusão das duas correntes o nome de função
transcendente" (introductíon to Jungian Psychology, p. 35).
Lib er Secundus
As imagens do erran t e 1
[IH I JV nolíte audíre verba prophetarum , quí prophetant vobís et decípíunt vos: visionem cordís suí
loquuntur, non de ore Dom íní. audíví quae díxerunt [prophetae] prophetantes ín nom íne m eo m en-
dacíum , atque dícentes: som níaví, som níaví. usquequo ístud est ín corde prophetarum vatícínantíum
m endacíum et prophetantíum seductíonem cordís suí? quí voluntjacere ut oblívíscatur populus m eus
nom ínís m eípropter som nía eorum , quae narra[n]t unusquísque adproxím um suum : sícut oblítí sunt
patres eorum nom ínís m eípropter Baal. propheta, quí hahet som níum , narret som níum et quí hahet
serm onem m eum , loquatur serm onem m eum vere: quídpaleís ad trítícum ? dícít dom ínus.
["Não ou çais as palavras dos profet as que vos p rofet izam ! Eles vos en gan am ,
an u n cian d o visões que provêm de seu coração e n ão d a boca do Sen h or " ( Jr 23,16)].
189
190 L I B E R S E C U N D U S 2/3
O Ve r m e l h o 4
Ca p . i .
7
Ju lgu ei en con t rar-m e n a t orre m ais alt a de u m castelo. Eu o percebo pelo
ar: est ou bem afastado n o tem po. Lon gam en t e vagueia m eu olh ar por sobre
t orres solitárias e on duladas, u m a variação de cam pos e m atas. E u usava u m a
capa verde. Pen d ia de m eu om bro u m a t rom pa. Eu era o guarda da t orre. O lh e i
para fora para o espaço lon gín qu o. V i lá fora u m pon t o verm elh o, vem se apro-
xim an d o por u m a est rada prodigiosa, desaparece às vezes n a m at a e surge de
novo: é u m cavaleiro com rou pa verm elh a, o Cavaleiro Verm elh o. Ve m ao m eu
castelo: já cavalga através do port ão. O u ço passos n a escada, os degraus ran gem ,
bat em à port a: u m m edo est ran h o se apodera de m im . Al i est á o Verm elh o, sua
esbelta figura t oda de verm elh o, até m esm o seu cabelo é verm elh o. Eu penso:
deve ser o d em ón io.
8 Salerno é uma cidade ao sudoeste da Itália, fundada pelos romanos. Jung refere-se provavelmente à
Accademía Segreta, criada nos anos 1540 e que promovia a alquimia.
192 L I B E R S E C U N D U S 3/4
( O Verm elh o parece ficar m ais verm elh o, sua capa resplan dece com o ferro
em brasa).
O V : "N ã o escondo n ada, seu in gén u o cord ial. D ivir t o -m e apenas com t u a
pon derosa seriedade e t u a cóm ica sin ceridade. O que é raro em n ossa época,
sobretudo nas pessoas que d isp õem da razão".
Eu : "E u creio que n ão podes en t en d er-m e de todo. T u m e avalias segundo
aqueles que conheces de pessoas vivas. Mas devo d izer-t e, por am or à verdade,
que eu de fato n ão p ert en ço a esta época e a este lugar. U m feit iceiro m e b an iu
para este lugar e para esta época desde tem pos m u it o antigos. N a realidade n ão
sou aquele que vês dian t e de t i".
O V : "Falas coisas espantosas. Q u e m és en t ão?"
Eu : "Ist o n ão vem ao caso: est ou dian t e de t i com o aquele que sou at u alm en -
te. Por que estou aqui e sou assim , n ão sei. Mas sei que devo estar aqui para te
dar satisfação da m elh or form a possível. Sei t ão pouco qu em t u és, quão pouco
t u sabes qu em eu sou".
O V : "Ist o soa bem estran h o. Es por acaso u m santo? U m filósofo n ão és,
pois a lin guagem eru d it a n ão est á contigo. Mas u m santo? É m ais provável. Tu a
seriedade ch eira a fan atism o. T u ten s u m a at m osfera ét ica e u m a sim plicid ad e
que lem b ram pão e água".
Eu : "N ã o posso d izer sim n em n ão: falas com o u m aprision ado n o espírit o
dessa época. Falt am -t e, ao que m e parece, as m et áforas".
O V : "Por acaso frequen taste t am bém a escola dos pagãos? Respon des
com o u m sofist a 9 . Co m o chegaste en t ão ao pon t o de m e m ed ir com a m ed id a
da religião cristã, se n ão és n en h u m san to?"
Eu : "Parece-m e que isto seria u m a m ed id a a ser u t ilizad a m esm o por quem
n ão é santo. Cr e io t er percebido que n in gu ém pode esquivar-se im pu n em en t e
dos m ist érios da religião cristã. Rep it o que aquele que n u n ca d esped açou seu
coração com o sen h or Jesus Cr ist o arrast a consigo u m pagão, que o im pede de
chegar ao m elh or".
9 O s sofístas eram filósofos gregos do século I V e V a .C, sediados em Atenas, incluindo pessoas como
Protágoras, Górgias e Hípias. Davam aulas e aceitavam alunos, cobrando honorários; dedicavam especial
atenção à retórica. O ataque de Platão a eles em alguns Diálogos, deu uma conotação negativa ao termo,
como alguém que brinca com palavras.
O VERM ELH O 193
10 O esboço continua: "Ninguém pode importar-se com um desenvolvimento psíquico de muitos séculos e
colher o que não semeou" (p. 172).
194 L I B E R S E C U N D U S 3/4
O V : "Ah , já sei, t u queres d izer a vid a. Con h eço este palavrório. Eu t am bém
vivo e ela n ão m e preocupa n em u m pouco. A vid a n ão exige n en h u m a serieda-
de; ao con t rário, é m elh or d an çar pela vid a " 11.
Eu : "Co n h eço a dan ça. Seria b om se t udo se resolvesse com a dan ça! A d an -
ça faz part e do t em po do ardor. Sei que h á pessoas para as quais é sem pre t em -
po de ardor e pessoas que t am bém qu erem d an çar a seu Deu s. O s p rim eiros são
ridículos, os outros b r in cam de tem pos an tigos, em vez de ad m it ir em h on est a-
m en t e sua deficiên cia em possibilidades de expressão".
O V : "Aqu i, m eu caro, t iro m in h a m áscara. Agora t ran sform o-m e em algo
sério, pois ist o se refere a m eu ram o. Seria im agin ável ain d a u m a t erceira coisa
de que a dan ça fosse sím bolo".
O verm elh o do cavaleiro t ran sform ou -se n u m verm elh o delicado, cor de
carn e. E olh ai - ó m aravilh a - de m in h a capa verde b rot am folhas em t oda
parte.
11 Em Assim falava Zaratustra, de Nietzsche, Zaratustra alerta para a superioridade de espírito da seriedade e
adverte: "Homens superiores, o pior que tendes é não haverdes aprendido a dançar como é preciso dançar:
a dançar por cima de vós mesmos" ("Do homem superior", xx, p. 368).
12 Num seminário de 1939, Jung discutiu a transformação histórica da figura do demónio. Disse: "Quando
aparece vermelho, tem fogo, isto é, natureza de paixão: causa luxúria, ódio e amor indomável" ( JU N G , L.
& M EYER- GRASS, M. Kindertràume. Dússeldorf: Walter Verlag, 1987, p. 194. Edição brasileira: Seminários
sobre sonhos de crianças. Petrópolis: Vozes 2011, p. 188).
O VERM ELH O 195
13 O esboço continua: "Já percebestes, através de Fausto, de que espécie incondicional é esta alegria" (p. 175). A
referência é ao Fausto, de Goethe.
14 O esboço tem: "Com o sabeis através de Fausto, não são poucos os que esquecem o que foram, porque
deixam levar tudo pela água" (p. 175).
15 Jung elaborou este ponto em 1928 ao apresentar o método da imaginação ativa: "Con t ra isso, o credo
científico de nossa época desenvolveu uma fobia supersticiosa em relação à fantasia. É verdadeiro aquilo que
atua. Ora, as fantasias do inconsciente atuam sem dúvida alguma" ( O C, 7, § 353).
196 LI BE R SECU N D U S 4/ 5
16 O esboço continua: "Toda pessoa atenta conhece seu inferno, mas não seu demónio. Não existem só
demónios alegres, mas também tristes" (p. 178).
O C AST ELO N A FLO REST A 197
O castelo n a florest a 19
Cap. ii.
20
[ I H 5] N a segunda noite imediatamente a seguir, en trei sozinho n a floresta
escura e n otei que me havia perdido 21. Est ou n um a estrada de terra m uito ru im e vou
tropeçando n a escuridão. Cheguei finalmente a u m a água escura e parada de charne-
ca, no meio da qual havia u m pequeno e velho castelo. Eu pensei que seria bom pedir
aqui pousada para a noite. Bato no portão, espero m uito tempo, começa a chover.
Preciso bater de novo. Agora ouço alguém vindo: a pessoa abre a porta. U m senhor
com vestes antiquadas, u m servo, pergunta o que desejo. Peço hospedagem para a
noite, e ele me faz entrar n u m antessala escura. Depois me leva a subir u m a escada
de madeira, gasta e escura. Em cim a, chego a u m espaço mais amplo e mais alto, em
form a de salão, com paredes brancas, ao longo das quais há arcas e armários pretos.
Sou levado a u m a espécie de sala de recepções. É u m a sala sim ples com ve-
lh os m óveis estofados. A lu z m ort iça de u m lam pião an t iquado ilu m in a a sala
apenas o n ecessário. O servo bate n u m a p ort a lat eral e depois a abre devagar.
O lh o rapidam en t e para lá: é o qu art o de t rabalh o de u m sábio, estantes de l i -
vros nas quat ro paredes, u m a grande m esa de trabalh o à qual está sentado u m
velh o em veste t alar pret a. Acen a-m e para que m e aproxim e. O ar n o quart o
é pesado, e o velh o d á u m a im pressão preocupan te. Ele n ão é sem dign idade,
ist o é, parece pert en cer àqueles que t êm t an t a dign idade quan to a gente lhes
dá. Te m aquela expressão m odest a-t em erosa da pessoa cu lt a que h á m u it o foi
17 O esboço continua: "Com o o demónio conseguiu a seriedade, isto eu experimentei numa aventura
posterior. Através da seriedade, ele se torna certamente mais perigoso para t i, mas, acredita-me, isto lhe
fará m al" (p. 178-179).
18 O esboço continua: "Com a alegria recém-adquirida, saí para a aventura, sem saber para onde o caminho me
levava. Evidentemente eu poderia ter sabido que o demónio sempre nos alicia em primeiro lugar através
das mulheres. Como pensador, eu era sabido em pensamentos, não em matéria de vida. Ali eu era até
mesmo tolo e confuso. Portanto, pronto para cair numa armadilha de pegar raposa" (p. 179).
19 O esboço m anuscrito tem: Segunda aventura (p. 383).
20 28 de dezembro de 1913.
21 O inferno, de Dante, começa com o poeta perdido numa floresta escura. H á uma tira de papel nesta página
do exemplar de Jung.
198 L I B E R S E C U N D U S 5/7
5/6 red u zid a a n ada pela quan t idade de saber. Penso que ele é u m verd ad eiro / sábio
que apren deu a gran de m od ést ia dian t e da in com en su rabilid ad e do saber e que
se d ed icou com plet am en t e ao objeto da ciên cia, pon deran do t ím id a e im p ar -
cialm en t e com o se ele em pessoa tivesse que apresen tar com respon sabilidade
o processo da veracidade cien t ífica.
Cu m p r im en t o u -m e t im id am en t e, com o que ausente e afastan do-m e. N ã o
m e ad m irei, pois eu t in h a a aparên cia de u m h om em com u m . Só com esforço
con seguia desviar os olhos de seu trabalho. Eu repet i m eu pedido de h ospeda-
gem por u m a n oit e. Ap ó s lon ga pausa, o velh o disse: "Be m , t u queres d orm ir,
dorm e em paz". V i que estava absorto e por isso lh e ped i que recom endasse ao
servo para m e m ost rar u m qu art o de d orm ir. Disse: "T u pedes m u it o, espera,
n ão posso m e d ist rair agora". Mergu lh ou de n ovo em seu livro. Esp er ei p acien -
t em en t e. Ap ó s cert o tem po, olh ou -m e adm irado: "O que desejas aqui? — O h ,
desculpa - eu h avia esquecido t ot alm en t e que estavas esperan do aqui. Ch a -
m arei im ed iat am en t e o servo". O servo veio e levou -m e ao m esm o an dar de
antes, para u m pequen o quart o com paredes bran cas nuas e u m a grande cam a.
Desejou -m e boa-n oit e e se ret irou .
Co m o eu estivesse cansado, t ir ei a rou pa e m e d eit ei n a cam a, após t er apa-
gado a lu z de u m a vela de sebo. O s len çóis eram ext rem am en t e ásperos e o t r a-
vesseiro, duro. Meu cam in h o errado levou -m e a u m lugar est ran h o: u m velh o
e pequen o castelo, cujo sábio propriet ário passava eviden t em en t e sozin h o suas
n oit es com seus livros. Parece que n ão h avia m ais n in gu ém n a casa, a n ão ser o
servo, que m orava acolá n a t orre. U m m odo de vid a id eal, mas solit ário o desse
velh o com seus livros, pen sei eu. E n isso se d em oraram por longo t em po m eus
pen sam en tos, até que percebi que u m ou t ro pen sam en t o n ão m e aban don ava,
ist o é, que o velh o m an t in h a escon dida aqui sua bela filh a - id eia rom ân t ica
absurda - u m t em a sem graça e já explorado - mas o rom ân t ico est á em todas
as ju n t as de cada pessoa - u m a id eia gen uin am en t e rom ân t ica - u m castelo
n a floresta - solit ário-crepu scu lar - u m velh o m u m ificad o em seus livros, que
guarda u m tesouro valioso e o esconde ciosam en t e de todo m u n d o — que ideias
ridículas m e sobrevêm ! É in fern o ou pu rgat ório que preciso con ceber em m i -
n h a viagem errad a à sem elh an ça dos sonhos in fan t is? Mas sin t o-m e in capaz
de elevar meus pen sam en tos a algo m ais forte ou m ais bon it o. Devo con sen t ir
nesses pen sam en tos. O que ad ian t aria repeli-los - eles volt am - m elh or en -
golir este gole in sípid o do que m an t ê-lo n a boca. Co m o será que ela se parece,
O C AST ELO N A FLO REST A 199
esta h eroín a aborrecida? Cer t am en t e lou ra, pálida - olh os azuis - an siosa-
m en t e esperan do de cada cam in h an t e ext raviado o salvador de sua prisão p a-
t ern a - ah , eu con h eço este absurdo t rivial - prefiro d or m ir - por que, diabos,
devo at orm en t ar-m e com essas fantasias ocas?
O sono n ão quer n ada. Vir o - m e de u m lado a ou t ro — o sono n ão vem —
devo eu t er em m im m esm o afin al esta alm a n ão resgatada? Será que é ela que
n ão m e d eixa d orm ir? Ter ei eu u m a alm a t ão rom ân t ica? Só faltava ist o — seria
dolorosam en t e ridículo. Será que a m ais in sípid a das bebidas n ão t erá m ais fim ?
Já deve ser m eia-n oit e - e n ada de sono ain da. O que será que n ão m e d eixa
d orm ir? Será algum a coisa neste quarto? A cam a est ará en feit içada? E sim ples-
m en t e m acabro para on de a in són ia pode levar u m a pessoa - in clu sive para as
teorias m ais disparatadas e m ais supersticiosas. Parece fazer frio, eu est ou com
frio - t alvez, e n ão d u r m a por causa disso - aqui é realm en t e sin ist ro - Deu s
sabe o que acontece aqui — n ão escut ei passos h á pouco? Nã o , deve t er sido lá
fora — vir o para o ou t ro lado, fecho os olhos com força, preciso d orm ir. A por-
t a está se abrin do? Me u Deu s, alguém está aí? Est ou ven d o bem ? U m a m oça
esguia, pálid a com o a m ort e, est á à porta? Céu s, o que é isto? El a se aproxim a!
"Ch egast e fin alm en t e?", pergu n t ou b aixin h o. Im p ossível - é u m engano
pavoroso - o rom an ce quer t orn ar-se real - quer t ran sform ar-se em h ist ória
est ú p id a de fantasm as? A que disparat e est ou con den ado? E m in h a alm a que
alberga t ais glórias rom ân t icas? Ist o t am b ém deve acon t ecer com igo? Est o u
realm en t e n o in fern o - o p ior despert ar após a m ort e quan do se ressu scit a
n u m a b ib liot eca pú blica. Desp r ezei as pessoas de m in h a época e seu gosto,
t an t o assim que devo viver e escrever n o in fern o os rom an ces sobre os quais
já cu spi h á m u it o t em po? Será que a m etade in fer ior do gosto m éd io d a h u -
m an id ad e t am bém t em d ireit o à san t idade e in violab ilid ad e, de m odo que n ão
possam os d izer n en h u m a palavra desairosa / sobre isso, sem t erm os de pagar 6/7
o pecado n o in fern o?
El a fala: "Ah , t u t am b ém pensas o t r ivial de m im ? Tam b ém t u te deixas se-
d u zir pela m alfadada ilusão de que eu p ert en ço a u m rom an ce? Tam b ém t u ,
de qu em esperava que tivesse abandonado as aparên cias e se esforçasse para
at in gir a essên cia das coisas?"
Eu : "Perd ão, mas existes realm en t e? E u m a sem elh an ça por dem ais in feliz
com aquelas cenas de rom an ces, desgastadas até a parvoíce, que eu pudesse
aceit ar que n ão fosses apenas u m produ t o de m eu cérebro in son e. Min h a d ú -
200 L I B E R S E C U N D U S 7/8
Ela: "Sê razoável, prezado amigo, e n ão tropeces sobre o fan tástico, pois o
con t o de fadas é só a avó do rom an ce e m ais u n iversalm en t e válid o do que o r o -
m an ce m ais lid o de t u a época. E t u sabes que aquilo que, desde m ilén ios, passa
pela boca de todo o povo é com efeito o m ais m astigado e que m ais se ap roxim a
da verdade h u m an a m ais elevada. Port an t o, n ão deixes que o fan t ást ico se i n -
t erpon h a en t re n ó s"22 .
Eu : "Tu és inteligente e não pareces ter herdado a sabedoria de teu pai. Dize-m e,
o que pensas das verdades divinas, das chamadas verdades últimas? Seria m uito es-
t ran h o para m im procurá-las n a banalidade. D e acordo com sua n at ureza devem
ser bem excepcion ais. Pen sa apenas em nossos grandes filósofos".
Ela: "Q u an t o m ais excepcion ais essas verdades últ im as, t an t o m ais in u m a-
nas t am bém devem ser e t an t o m en os vão d izer-lh e algo de valor e sign ificat ivo
sobre a n at u reza e o ser h um an os. Só o que é h u m an o e que t u in sult as com o
ban al e vulgar, ist o / con t ém a sabedoria que t u procuras. O fan t ást ico n ão fala
con t ra, mas a favor de m im e prova que sou h u m an am en t e u n iversal e que n ão
só preciso da libert ação, mas t am bém a m ereço. Pois consigo viver n o m u n d o
da realidade tão b em ou talvez m elh or do que m u it os de m in h a espécie".
Eu : "Not ável sen h orit a, t u és descon certan te. Q u an d o vi t eu pai, pen sei que
fosse con vid ar-m e para u m a con versa in t elect u al. N ã o o fez, e eu fiqu ei abor-
recido, pois sen t i-m e u lt rajado em m in h a dign idade por seu pouco caso. Mas
ju n t o a t i en con t rei coisa bem m elh or. T u m e dás assunto para pensar. T u és
in com u m ".
Ela: "T u te enganas, sou bem com u m ".
Eu : "N ã o posso acredit ar nisso. Co m o é bela e adorável a expressão de t u a
alm a em teus olhos! Feliz e in vejável o h om em que te lib ert ar!"
Ela: "T u m e am as?"
Eu : "Por Deu s, eu te am o — m as in felizm en t e já sou casado".
Ela: "Port an t o — vês t u : a realidade ban al é in clu sive u m libert ador. Agrad e-
ço-t e, prezado amigo, e m an do por t i u m a saudação a Salom é".
22 Em seu "Satisfação do desejo e simbolismo nos contos de fada" (1908), o colega de Jung, Franz Riklin ,
argumenta que os contos de fadas foram as invenções espontâneas da alma humana prim itiva e a tendência
geral da satisfação do desejo (ThePsychoanalytícReview, 1913, p. 95 [trad. de W A. W h it e]). Em Transformações
e símbolos da libido, Jung considerou tanto os contos de fada quanto os mitos como representando imagens
primordiais. Em sua obra posterior, considerou-os como expressão dos arquétipos, como em "Sobre
os arquétipos do inconsciente coletivo" ( O C, 9/ 1, § 6 ). A discípula de Jung Marie-Louise von Franz
desenvolveu a interpretação psicológica dos contos de fada numa série de obras. Cf. Psychologísche
Mãrchenínterpretatíon - Ein e Einfíihrung. Munique: Kõsel Verlag, 1986.
202 L I B E R S E C U N D U S 8/ 9
24
[2] Q u an d o n ão te acontece n en h u m a aven t u ra ext ern a, t am bém n ão
acontece n en h u m a in t ern a. O ped aço que assumes do d em ón io, ou seja, a ale-
gria, p rovid en cia aven t u ra para t i. Faz falt a para t i con h ecer teus lim it es. Se
n ão os conheces, corres d en t ro das barreiras art ificiais de t u a im agin ação e
da expect at iva de teus sem elh an tes. Mas t u a vid a su port a m al ser con t id a por
barreiras art ificiais. A vid a quer saltar por sobre essas barreiras e t u te torn as
desun ido con tigo m esm o. Essas barreiras n ão são teus verdadeiros lim it es, mas
são lim it ação arbit rária que te im p õe u m a violên cia in út il. Procu ra en t ão e n -
con t rar teus verdadeiros lim it es. N ó s n ão os con hecem os de an t em ão, mas só
os vem os e com preen dem os quan do n ós os alcan çam os. Mas ist o t am bém só te
acontece quan do t u ten s equilíbrio. Sem equilíbrio, cais por cim a e para fora de
teus lim it es, sem perceber o que te acon teceu. Mas só consegues equ ilíbrio se
alim en t ares t eu oposto. Mas ist o te repugn a in t eriorm en t e, pois n ão é h eróico.
Meu espírit o pen sou em tudo o que é raro e in com u m , espreit a possibilid a-
des n ão descobertas, pistas que vão para o oculto, luzes que b r ilh am n a n oit e. E
quan do m eu espírit o fez isto, todo o com u m sofreu dan o em m im , sem que eu o
percebesse, e com eçou a querer vid a, pois eu n ão a vivia. Por isso acon t eceu-m e
esta aven t ura. O rom ân t ico m e atacou. O rom ân t ico é u m passo para trás. Para
chegar ao cam in h o, n ós devem os t am bém dar alguns passos para t r ás 25 .
N a aven t ura, vivo o que vi n o m ist ério. O que lá vi com o Elias e Salom é,
ist o t ran sform ou -se em vid a n o velh o sábio e em sua pálid a e aprision ada filh a.
23 Em "Aspectos psicológicos da Co r e"(i9 5i), Jung descreve este episódio assim: "Um a casa isolada numa
floresta. Nela mora um velho sábio. Aparece de repente sua filha, uma espécie de fantasma, queixando-se
de que as pessoas sempre a consideram como mero fantasma" ( O C, 9/ 1, § 361). Jung comentou (seguindo
suas observações sobre o episódio de Elias e Salomé, acima nota 212, p. 318): "O sonho 3 apresenta o
mesmo tema, porém num plano mais semelhante ao do conto de fadas. Aqu i a anima é caracterizada como
um ser fantasmagórico" (ibid., § 373).
24 O esboço continua: "Meu amigo, não percebes nada de minha vida exteriormente visível. Só ouves de
minha vida interior a contrapartida da vida exterior. Mas se pensas por isso que eu só tenho minha vida
interior e que esta é m inha única vida, estás enganado. Pois precisas saber que tua vida interior não fica
mais rica à custa da vida exterior, mas fica mais pobre. Se não vives exteriormente, não ficarás mais rico
interiormente, apenas mais sobrecarregado. Isto não contribui para teu benefício, e é um começo do
mal. Nem tua vida exterior ficará mais rica e mais bela à custa da vida interior, mas só mais pobre e mais
miserável. O equilíbrio encontra o caminho" (p. 188).
2$ O esboço continua: "Voltei à minha Idade Média, onde ainda fui romântico e lá vivi a aventura" (p. 190).
O C AST E LO N A FLO REST A 203
O que eu vivo é u m ret rat o det urpado do m ist ério. N o cam in h o do rom ân t ico
cheguei à disform idade e m edian idade da vid a, em que m eus pen sam en tos se
apagam e n a qual esqu eço prat icam en t e a m im m esm o. O que am ava antes
disso, devo agora viven ciar com o bagaço e ressequido, e o que desprezava an tes,
t ive que in vejar com o ascendente e desejar desam parado. Eu aceit ei o ridícu lo
dessa aven t ura. Mas acon teceu isto, vi t am bém que a m oça se t ran sform ava e
m ost rava u m sen t ido p róp rio seu. Se pergun t arm os pelo desejo do ridículo, ist o
basta para t ran sform á-lo.
O que se passa com a m asculin idade? Sabes qu an t a fem in ilid ad e falt a ao
h om em para seu aperfeiçoam en t o? Sabes qu an t a m asculin idade falt a à m u lh er
para seu aperfeiçoam en t o? Vó s procu rais o fem in in o n a m u lh er e o m ascu lin o
n o h om em . E assim h á sem pre apenas h om en s e m ulh eres. Mas onde estão
as pessoas? Tu , h om em , n ão deves procu rar o fem in in o n a m ulh er, mas deves
p rocu rá-lo e recon h ecê-lo em t i, pois t u [o] possuis desde o com eço. Mas gos-
tas de desem pen h ar o papel da m ascu lin idade, porque ist o flui pelo cam in h o
desim pedido do t rad icion al. Tu , m ulh er, n ão deves procu rar o m ascu lin o n o
h om em , mas deves aceit ar em t i o m asculin o, pois t u / o possuis desde o com e-
ço. Mas ist o te d ivert e e é fácil fazer o papel de m u lh er zin h a, por isso o h om em
te despreza, pois ele despreza o fem in in o. Mas a pessoa é m ascu lin a e fem in in a,
n ão é só h om em ou só m ulh er. D e t u a alm a n ão sabes d izer de que gén ero ela
é. Mas se prestares b em aten ção, verás que o h om em m ais m ascu lin o t em alm a
fem in in a, e que a m u lh er m ais fem in in a t em alm a m ascu lin a. Q u an t o m ais
h om em és, t an t o m ais afastado est á de t i o que a m u lh er realm en t e é, pois o
fem in in o em t i m esm o te é est ran h o e d esp rezível 26 .
Se tom ares do d em ón io u m ped aço de alegria e com isso saíres para a aven -
t u ra, aceitas para t i t eu prazer. Mas o prazer alicia im ed iat am en t e tudo o que
desejas, e agora depen de de t i se t eu prazer te vai corrom per ou elevar. Se fores
do d em ón io, vais an dar às escuras atrás d a variedade e n ist o te perder. Mas se
ficares con tigo m esm o, com o pessoa que é seu si-m esm o e n ão do d em ón io,
en t ão te recordarás de t u a h um an idade. T u te com port arás para com a m u lh er
26 Em Tipos psicológicos (1921), Jung escreveu: "Mulher muito feminina tem alma masculina; homem muito
masculino tem alma feminina. Deve-se este contraste ao fato de o homem não ser plenamente viril em
todas as coisas, mas possuir, via de regra, certos traços femininos. Quanto mais viril sua atitude externa,
mais suprimidos são os traços femininos; aparecem, então, no in con scien t e"(O C, 6, § 759 [884]). Ele
designa a alma feminina do homem de anima, e a alma masculina da mulher de anímus, e descreve como as
pessoas projetam suas imagens da alma sobre os membros do sexo oposto (ibid.).
204 LI BE R SECU N D U S 9/10
27 Para Jung, a integração da anima para o homem, e do animus para a mulher era necessária para o desenvol-
vimento da personalidade. Em 1928, ele descreveu este processo, que exigiu a retirada das projeções dos
membros do sexo oposto, diferenciando-as e tomando consciência delas em "O eu e o inconsciente" ( O C ,
7, § 29 6S. Cf. tb. Aion, 1951. O C , 9/ 2, § 20s.).
28 Em vez dessa frase, o esboço corrigido tem: "Mas se ele assumir em si mesmo o feminino, ficará livre da es-
cravidão da mulher" (p. 178).
29 Albrecht Dieterich observou: "Muitas vezes, a alma já é de antemão um pássaro na crença popular"
(Ábraxas - Studien zur Religionsgeschichte des spáten Altertum s. Leipzig: [s.e.], 1891, p. 184).
O C AST E LO N A FLO REST A 205
30 O esboço e o esboço corrigido têm: "À medida que eu era este velho, enterrado em livros c árida ciência, justo e
ponderado, arrancando grãos de areia do deserto sem fim , sofre meu [si-mesmo] assim chamado alma, isto
c, meu si mesmo interior, grande necessidade (p. 180).
20 6 LI BE R SECU N D U S IO/ II
alm as fam in t as, que est ão sedentas de recon h ecim en t o, mas que n u n ca con se-
guem m it igar sua sede. A alm a exige t u a t olice, n ão t eu saber.
Pelo fato de n ão m e elevar acim a do sexu al-m ascu lin o e assim n ão u lt rapas-
sar o h um an o, t ran sform a-se o rid ícu lo fem in in o para m im n u m a n at u reza p le-
n a de sen tido. O m ais difícil é estar além do sexual e ficar d en t ro do h um an o.
Se te elevas acim a do sexual, com a ajuda de u m a proposição geral, t u m esm o te
torn as aquela proposição e ultrapassas o h um an o. Ficarás port an t o seco, du ro
e in u m an o.
T u gostarias de ult rapassar o sexual a p ar t ir de fun dam en t os h um an os e
jam ais a p ar t ir de fun dam en tos de u m a proposição geral que con t in u a sendo
sem pre a m esm a nas m ais diversas sit uações e que, por isso, n ão t em valor p le-
n o para cada sit uação em part icu lar. Q u an d o atuas a p ar t ir do h u m an o, atuas a
p art ir da respect iva situação, sem prin cípio geral, só de acordo com a situação.
Assim correspon des à situação, talvez com violação de u m a proposição geral.
Mas ist o n ão deve m olest á-lo dem ais, pois t u n ão és a proposição. Exist e u m
out ro h um an o, u m dem asiado h um an o, e qu em en t rou neste h u m an o, a este
faz bem lem brar-se do ben efício da proposição geral 31. Pois t am bém a propo-
sição geral t em sen t ido e n ão foi colocada por brin cad eira. H á m u it o trabalh o
respeit ável do espírit o h u m an o n ela. Pessoas dessa espécie n ão est ão além da
sexualidade devido a u m p rin cíp io geral, mas devido à sua im agin ação n a qual
se perd eram . Torn aram -se sua p róp ria im agin ação e arbit raried ad e, para seu
p róp rio preju ízo. Faz-lh es falt a lem brar-se do sexual a fim de que acordem de
seus sonhos para a realidade.
É t ão doloroso quan to u m a n oit e em claro sen t ir o além a p ar t ir do aquém ,
isto é, o out ro e o oposto em m im . Ap r oxim a-se cautelosam en te qual febre,
qual n évoa ven en osa. E quan do teus sen tidos est ão excit ados e tensos ao m á-
xim o, en t ão vem o d em on íaco com o algo t ão in sípid o e gasto, t ão m orn o e
sem sabor, que sentes enjoo. Aq u i gostarias m u it o de n ão m ais sen t ir t eu além .
Assu st ad o e enojado, desejas estar de volt a à beleza m u it o alt a de t eu m u n d o
visível. Cospes e am aldiçoas t udo o que está além de t eu belo m un do, pois sabes
que é n áusea, escória, im u n d ície do an im al h um an o, que se alim en t a em casas
31 Humano, demasiado humano é o título de uma obra de Nietzsche, publicada em três fascículos a partir de 1878.
Descreve a observação psicológica como a reflexão sobre o "humano, demasiado humano" (Cambridge:
Cambridge University Press, 1996, p. 31 [trad. de R J. Hollingdale]).
O C AST E LO N A FLO REST A 207
boloren t as, que se arrast a em todas as t rilh as, que m ete o n ariz em todos os
can tos do m u n d o e que, desde o b erço até a m ort e, só desfrut a daquilo que já
an dou n a boca de todos.
Mas n ão gostarias de parar aqui, n ão coloques a n áusea en t re t eu aquém e
t eu além . O cam in h o para t eu além passa pelo in fern o, por t eu in fern o todo es-
pecial, cujo ch ão con sist e de en t u lh o que atinge os joelh os, cujo ar foi respirado
m ilh ares de vezes, cujo fogo é a paixão de an ões e cujo d em ón io são os let reiros
qu im éricos.
Tod o o odiado e t odo o n ojen t o é t eu in fern o todo especial. Pod eria ser
diferen t e? Tod o in fern o diferen t e seria ao m en os dign o de ser vist o ou d iver-
tido. Mas ist o n ão é n u n ca o in fern o. Te u in fern o está con st ru íd o de todas as
coisas que t u atiras com u m a m ald ição e u m p on t ap é para fora de t eu san tuário.
Q u an d o en tras em t eu in fern o, n ão penses jam ais que en t ras com o alguém
que sofre em t erm os de beleza ou com o u m desprezador orgulhoso, mas en tras
com o u m im b ecil cu rioso e adm iras as m igalhas que caíram de t u a m esa 32 . /
T u preferirias tudo bem irrit ad o, mas percebes ao m esm o t em po com o lh e
vai b em a ir a. Te u rid ícu lo in fern al esten de-se por m ilh as. Feliz de t i quan do
consegues praguejar! Vais sen t ir que o praguejar red im e a vid a. Q u an d o passa-
res, port an t o, pelo in fern o, n ão te esqueças de prest ar at en ção em tudo o que
vais en con t ran do. En t en d e-t e calm am en t e com tudo o que quer despert ar t eu
desprezo ou t u a raiva; assim abres cam in h o para a m aravilh a que eu viven ciei
com a m oça pálida. T u dás alm a ao desalm ado e, através disso, pode surgir algu-
m a coisa do pavoroso n ada. Assim t eu out ro será salvo para a vid a. Teus valores
vão p u xá-lo daquilo que és at ualm en t e para fren t e e para além de t i m esm o.
Mas t eu sendo vai p u xar-t e para o ch ão com o ch um bo. N ã o podes viver as duas
coisas ao m esm o tem po. Por isso salva-te o cam in h o. T u n ão podes estar ao
m esm o t em po n a m on t an h a e n o vale, mas t eu cam in h o leva-t e da m on t an h a
para o vale e do vale para a m on t an h a. Mu it a coisa com eça d ivert id o e con duz
para a escuridão. O in fern o t em círcu los 33.
32 Em outubro de 1916, em sua palestra no Clube de Psicologia sobre "Individuação e coletividade", Jung
ponderou que, através da individuação, "o indivíduo precisa agora consolidar-se, separando-se totalmente
da divindade e tornando-se ele mesmo. Com isso separa-se ao mesmo tempo da sociedade. Exteriormente
mergulha na solidão e internamente no inferno, no afastamento de Deu s"(O C, 18/2, § 1.103).
33 Na descrição de Dante, em a Divina Comédia, o inferno tem nove círculos.
208 LI BE R SECU N D U S 11/12
U m dos degradados34
Cap. iii.
34 O esboço m anuscrito tem: Terceira aventura (p. 440 ) . O esboço corrigido tem: "O vagabundo", que vem coberto por
um papel (p. 186).
35 29 de dezembro de 1913
U M D O S D EGRAD AD O S 209
Ele: "À n oit e pode-se ir aos cin em at ógrafos. É form id ável e barato. Lá é
possível ver tudo o que se passa n o m u n d o".
Devo pen sar n o in fern o, lá t am bém exist em cin em at ógrafos para aqueles
que desprezaram este in st it u t o n a t erra e n ele n ão en t raram , porque todos os
outros en con t raram n ele seu gosto.
Eu : "O que lh e in t eressou m ais n o cin em at ógrafo?"
Ele: "A gente vê t odo t ipo de belas h abilidades. H a via u m que cor r ia pelas
casas acim a. U m ou t ro t razia a cabeça debaixo do braço. O u t r o ain d a ficava em
m eio ao fogo sem se queim ar. É realm en t e m aravilh oso o quan to as pessoas
sabem fazer".
E ist o o h om em ch am a de at rações in t elect u ais! D e fato - ist o parece m a -
ravilh oso: os santos t am bém n ão t raziam as cabeças debaixo do b r aço ? 36 São
Fran cisco e San to In ácio t am bém n ão se elevaram do ch ão oran do - os três
h om en s n u m forn o em ch am as? 37 N ã o é u m a id eia blasfem a con siderar a Acta
Sanctorum com o u m cin em at ógrafo h ist órico? 38 Ah , os m ilagres de h oje são sim -
plesm en t e algo m en os m ít ico do que técn ico. O lh o para m eu acom pan h an te
com t er n u r a - ele vive a h ist ória do m u n d o - e eu?
Eu : "D e certo, ist o é m u it o b em feito. Vi u m ais algum a coisa do gén ero?
Ele: "Sim , eu vi com o o r ei da Esp an h a foi assassinado".
Eu : "Mas ele n ão foi assassinado".
Ele: "Be m , isto n ão im port a, en t ão foi u m outro desses m alditos reis capit alis-
tas. U m ao m enos se foi. Pen a que n ão levou a todos, en t ão o povo estaria livre".
N ã o ousei d izer m ais nada: Guilherm e Tell, u m a obra de Fr ied r ich Sch iller - o
h om em est á n o m eio, n a t orren t e d a h ist ória h eróica. Algu ém que dá aos povos
adorm ecidos a n ot ícia do assassinato do t ir a n o 39 .
36 O emblema da cidade de Zurique traz este motivo, mostrando os mártires do final do século terceiro,
Félix, Régula e Exuperâncio.
37 Parece ser uma referência a Sidrac, Misac e Abdénago, em Dan iel 3, aos quais Nabucodonosor mandou
jogar na fornalha por se recusarem a adorar o ídolo de ouro que ele havia erigido. Eles saíram ilesos do
fogo, o que levou Nabucodonosor a decretar que seria decapitado desde então quem falasse contra o Deus
deles.
38 A Acta Sanctorum é uma coletânea da vida e lendas dos santos, ordenada de acordo com seus dias
comemorativos, publicada pelos jesuítas da Bélgica, conhecidos como padres bolandistas. A publicação
começou em 1643 e chegou a 63 fólios.
39 Em Guilherme Tell (1805), Friedrich Schiller dramatizou a revolta dos cantões suíços contra o controle pelo
império dos Hapsburgos da Áustria no começo do século catorze, o que levou à fundação da confederação
suíça. No quarto ato, terceira cena, Guilherm e Tell mata Gessler, o representante imperial. Stussi, o guarda
florestal, anunciou: "O tirano do país está morto. Daqui para frente não teremos mais opressão. Somos
homens livres" ( T E LL, W Chicago: Un iversity of Chicago Press, 1973, p. 119 [Trad. de W Main lan d]).
2IO LI BE R SECU N D U S 12/13
to. Mas de repen t e acordei de n ovo com seus gem idos e gorgolejar lúgubres,
m ist u rados com tosse sem issufocada. Escu t ei com at en ção preocupada - sem
dúvida, era o outro. É com o u m a coisa perigosa. Levan t ei-m e depressa e vest i
apenas o n ecessário. Ab r i a p ort a de seu quarto. O b rilh o d a lu a en t rava de
cheio. O h om em jazia vestido sobre u m colch ão de palha. D e sua boca saía u m
fio escuro de sangue que fez u m a poça no chão. Ele gem ia semissufocado e ex-
pectorava sangue. Q u is levan tar-se, mas caiu de novo para trás. Apressei-m e em
socorrê-lo. Mas vi que a m ort e já h avia colocado a m ão sobre ele. Est á tudo sujo
de sangue. Min h as m ãos est ão ch eias de sangue. Solt a u m suspiro de estertor.
A t en são se desfaz, u m leve est rem ecim en t o perpassa seus m em bros. E en t ão
tudo est á m ort o e quieto.
O n d e estou? Exist e m t am bém falecim en tos n o in fern o para aqueles que
n u n ca pen saram n a m ort e? O lh o para m in h as m ãos cobertas de sangue - com o
se eu fosse u m assassino... N ã o é o sangue de m eu irm ão que se cola em m in h as
m ãos? A lu a desen h a em pret o m in h a som bra n a parede bran ca do quarto. O
que faço aqui? Para que este espet áculo pavoroso? O lh o in t errogat ivam en t e
para a lu a com o t est em un h a. O que in t eressa ist o à lua? El a já n ão viu coisa
pior? Ist o é in d iferen t e para suas m on t an h as an ulares de et ern a duração - u m
pouco m ais ou m en os. A m ort e? N ã o revela ela o em buste t errível d a vida? Por
isso é t ot alm en t e in d iferen t e para a lu a se e com o alguém part e daqui. Som en t e
n ós dam os m u it a im p ort ân cia a isso — com que d ireit o?
O que fez este h om em ? Ele t rabalh ou , passou algum t em po sem fazer n ada,
r iu , bebeu, com eu , d o r m iu , sacrificou seu olh o pela m u lh er e, por am or a ela,
perd eu sua h on r a de cidadão, além disso viveu sofrivelm en t e o m it o h um an o,
ad m irou os autores de coisas m aravilh osas, elogiou o assassinato do t iran o e
son h ou obscuram en t e com a liberdade do povo. E en t ão - en t ão m or r eu la -
m en t avelm en t e - com o todos os outros. Ist o é válid o em geral. Eu m e sen t ei
sobre o fun dam en t o m ais baixo. Q u a n t a som bra sobre a t erra! Todas as luzes
som em n a ú lt im a d esesperan ça e solidão. Ist o é u m a ú lt im a verdade, n ão u m
en igm a. Q u e ilusão p ôd e fazer-n os acredit ar n u m enigm a?
vivia n a facilidade. O vagabundo estava bem longe e esquecido. A vid a torn ara-se
d u ra e m ais som bria. O in vern o n ão t erm in ava m ais, e o vagabundo estava n a
neve e sen t ia frio. Ju n t ei-m e a ele, pois precisava dele. Ele t orn a a vid a fácil e
sim ples. Ele con duz à profun deza, ao fun dam en to, em que eu vejo a alt it ude.
Sem a profun deza, n ão t en h o a alt it ude. Talvez eu esteja n a alt it u de, mas é exa-
t am en t e por isso que n ão me d ou con t a dela. Preciso por isso do n ível profun do
para m in h a ren ovação. Se eu est iver sem pre n a alt it u de, eu a desgasto, e en t ão
o m elh or se t orn a para m im u m h orror.
Mas com o n ão quero que m eu m elh or se t orn e u m h orror, eu m esm o m e
t ran sform o n u m h orror, n u m h or r or para m im , n u m h or r or para os out ros,
n u m t errível espírit o de t ort u ra. Sê h on esto e dize que t eu m elh or t orn ou -se
u m h or r or para t i, assim livrarás a t i e a outros de u m t orm en t o in út il. U m a
pessoa que n ão consegue m ais descer de sua alt it ude é doen te e t orm en t o para
si e para os outros. Q u an d o at in gires t u a profun deza, verás t u a alt it u de b r ilh ar
claram en t e sobre t i, dign a de desejo e longe, com o se fosse in alcan çável, pois n o
m ais ín t im o de t i preferes ain d a n ão alcan çá-la, por isso ela te parece in alcan -
çável. T u gostas de exalt ar t u a alt it u de, m esm o n o tem po de t eu n ível profun do,
e d izer-t e que só a abandonaste com pesar e que n ão vivest e neste t em po todo
em que passaste sem ela. Bon s costum es, que quase se t ran sform aram em ou t ra
n at u reza em t i, fizeram que assim falasses. Mas sabes que bem n o fundo ist o
n ão é verdade.
Em t eu n ível profun do n ão te distin gues em n ada m ais de teus irm ãos h u -
m an os. N ã o te envergonhes e n ão te arrepen das, pois à m ed id a que vives a vid a
de teus irm ãos e desces à sua in feriorid ad e, / em barcas t am bém n a t orren t e
sagrada da vid a em geral, n a qu al n ão és m ais u m in d ivíd u o em alt a m on t an h a,
mas u m peixe en t re peixes, u m a rã en t re rãs.
Tu a alt it ude é t u a p róp ria m on t an h a, que pert en ce a t i e só a t i. Lá estás em
t ua in d ivid u alid ad e e vives t u a vid a part icularíssim a, n ão vives a vid a d a h ist ória
e dos fardos e bens im perd íveis, n u n ca perdidos da h u m an idade. Lá vives o ser
con t ín u o, mas n ão o t orn ar-se. O t orn ar-se pert en ce à alt it ude e é doloroso.
Co m o podes t orn ar-t e, se n u n ca és> Por isso precisas do n ível profun do, pois lá
t u és. Por isso precisas da alt it u d e, pois lá te t orn as.
Q u an d o vives n o t eu n ível profun do a vid a com u m , tom as con sciên cia de
t eu si-m esm o. Q u an d o estás em t u a alt it u de, t u és t eu m elh or e só tom as con s-
ciên cia de t eu m elh or, mas n ão daquilo que és com o sendo n a vid a com u m . O
U M D O S D EGRAD AD O S 213
que n ós somos com o t orn an d o-se n ão se sabe n u n ca. Mas n a alt it u d e, a im agi-
n ação é m ais forte. Im agin am os que sabemos o que somos com o t orn an d o-n os
e t an t o m ais quan t o m en os querem os saber o que somos com o sendo. Por isso
n ão gostamos do n ível profun do, apesar de, ou sobretudo porque som en te lá
at in girem os u m con h ecim en t o claro de n ós m esm os.
Para o t orn an d o-se tudo é en igm át ico, para o sendo não. Q u e m sofre por
causa do en igm át ico pen sa em seu n ível profun do; resolve os enigm as de que
sofrem os, mas n ão aqueles em que nos alegramos.
Ser aquele que t u és é ban h o do ren ascim en t o. O ser do n ível profun do n ão
é u m p ersist ir in con d icion al, mas u m crescim en t o in fin it am en t e vagaroso. T u
pensas estar parado quiet o com o água de cist ern a, mas t u te derram as len t a-
m en t e n o m ar, que cobre em t oda part e a t er r a nos lugares m ais profun dos e é
tão gran de que a t er r a firm e parece apenas u m a ilh a, en caixad a n o seio do m ar
in fin do.
Co m o gota do m ar part icipas das corren t es das m arés altas e baixas. De va -
gar avan ças para a t er r a e devagar ret orn as, n u m respirar de in fin d a duração.
T u viajas longas dist ân cias em corren t ezas im percept íveis, banhas lit orais des-
con h ecidos e n ão sabes com o chegaste lá. Levan t as-t e com as ondas da grande
tem pestade e despencas de n ovo n a profun deza. E n ão sabes com o ist o te acon -
tece. An t es pensavas que t eu m ovim en t o vin h a de t i e que h avia necessidade de
t u a decisão e de t eu esforço para que te m ovim en t asses e saísses do lugar. Mas
com todo o esforço n u n ca terias chegado àquele m ovim en t o e àquelas paragens
a que o m ar e o grande ven t o do m u n d o te levam .
Sobre in fin d as plan ícies azuis afundas em negras profun dezas; peixes lu m i-
nosos passam por t i, ram agem m aravilh osa te en volve. T u te esgueiras através
de fendas e de plan tas en t relaçadas, balou çan t es, de folhas escuras, e o m ar aflui
n ovam en t e para t i em água verd e-clara sobre lit orais de areia bran ca, e u m a
on d a te espum eja para a p raia e te engole ou t ra vez, e u m a grande on d a m an sa
te ergue e te con duz para novas plan ícies e profun dezas, para plan tas en t relaça-
das, peixes de rabos longos e polvos viscosos deslizan do devagar, e água verde,
e areia bran ca, e ondas de arreben t ação.
Mas de longe b r ilh a para t i em lu z dourada t u a alt it u de sobre o m ar, com o a
lu a que em erge d a m aré alta, e t u tom as con sciên cia de longe de t eu si-m esm o.
E o desejo apan h a a t i e a von t ade para seu p róp rio m ovim en t o. T u queres ir do
ser para o t orn ar-se, pois recon heceste que a respiração do m ar exist e e que seu
214 LI BE R SECU N D U S 14/15
fluir e reflu ir que te leva de lá para cá, onde part e n en h u m a te pren de, e onde
suas ondas, que te jogam para lit orais estran h os e te en golem n ovam en t e, te
gorgolejam para baixo e para cim a.
T u vist e que ist o foi a vid a do t odo e a m ort e de cada in d ivíd u o. A l i te
sen t ist e en volvid o pela m ort e geral, p ela m ort e n o lugar m ais profu n d o d a
t erra, pela m ort e em t u a p r óp r ia profu n d eza, resp iran d o e flu in d o est ran h a-
m en t e. O h - t u desejas sair, desespero e m edo m o r t al t om am con t a de t i em
t od a est a m ort e, que resp ira devagar e que flu i et ern am en t e p ara lá e con t ra.
Todas essas águas claras e escuras, quen t es, m orn as e frias. Tod os esses z o ó -
fitos on deados, balou çan t es e oscilan t es, todas essas m aravilh as n ot u rn as vão
t orn ar-se h or r or p ara t i e t u desejas sol, ar lím p id o e seco, roch ed o fir m e, l u -
gar d et erm in ad o e lin h a ret a, o im óvel e seguro, regra e objet ivo prem ed it ad o,
est ar só e in t en ção p róp ria.
D e n oit e veio-m e o con h ecim en t o da m ort e, do m or r er que en globa o m u n -
do todo. V i com o n ós vivem os para d en t ro d a m ort e, com o o cereal dourado
e on du lan t e vem abaixo sob a foice do ceifeiro, / à sem elh an ça de u m a on da
m an sa do m ar n a praia. Q u e m est á posicion ado n a vid a com u m t om ará con sci-
ên cia, assustado, da m ort e. Por isso o m edo da m ort e o em p u rra para a solidão.
Lá ele n ão vive, mas t om a con sciên cia d a vid a e se alegra, pois n a solidão ele é
u m t orn an do-se e ven ceu a m ort e. Ele ven ce a m ort e através da vit ória sobre
a vid a com u m . N a solidão ele n ão vive, pois ele n ão é o que é, mas ele se t orn a.
Algu ém t orn an do-se t om a con sciên cia da vid a, alguém sendo, n u n ca, pois
está n o m eio da vid a. Ele precisa da alt it u de e da solidão para t om ar con sci-
ên cia da vid a. Mas n a vid a t orn a-se con scien t e da m ort e. E é b om que tom es
con sciên cia da m ort e com u m , pois en t ão sabes para que servem t u a solidão e
t ua alt it ude. Tu a alt it u de é com o a lu a, que cam in h a solit ariam en t e ilu m in an d o
e et ern am en t e clara observa as n oit es. As vezes ela se esconde, e en t ão estás
t ot alm en t e n o escuro da t erra, mas sem pre de n ovo com pleta-se até a claridade
plen a. O m orrer da t er r a lh e é estran ho. Ela vê de longe a vid a n a t erra, ela m es-
m a im óvel e clara, sem vapor en volven t e e sem m ar em m ovim en t o. Su a form a
im ut ável está firm e desde a et ern idade. El a é a lu z solit ária e clara d a n oit e, o
ser in d ivid u al e o ped aço p r óxim o da et ern idade.
A p art ir dela t u vês de m odo frio, im óvel e radian t e. Co m u m a lu z prateada
do além e com crepúsculos verdes, soterras o h orror lon gín qu o. T u o vês, mas
t eu olh ar é claro e frio. Tuas m ãos estão verm elh as de sangue vivo, mas o lu ar
O EREMITA 215
de t eu olh ar é im óvel. É o sangue vit al de t eu irm ão; sim , é t eu p róp rio sangue,
mas t eu olh ar perm an ece brilh an d o e abrange o todo do h orror e a rot un didade
d a Ter r a. Te u olh ar repousa sobre m ares prateados, sobre cum es cheios de neve,
sobre vales azuis, e n ão ouves o gem er e u ivar do an im al h um an o.
A lu a est á m ort a. Tu a alm a foi para a lu a, para o guarda das alm as 4 0 . E assim
a alm a en t r ou n a m o r t e 4 1. Eu en t r ei n a m ort e in t er ior e vi que o m orrer ext erior
é m elh or do que a m ort e in t erior. E eu resolvi m orrer fora e viver den t ro. Por
isso eu m e d esviei 4 2 e p rocu rei os lugares d a vid a in t erior.
O erem it a
Cap. iv. Dies I . 4 3
[ I H 15] Novam en t e n a n oit e segu in t e 44 , en con t rei-m e em novos cam in h os;
ar quen te e seco m e circu n d ava, e eu vi: o deserto, areia am arela em t oda a
ext en são, am on t oada em dun as, u m sol caustican te, u m céu azu l com o aço liq -
uefeito, o ar t rem u lan d o sobre a t erra, à m in h a d ir eit a u m vale profun dam en t e
escavado com u m leit o seco de rio, algumas gram ín eas am areladas e algumas
sarças cobertas de poeira. N a areia vejo pegadas de p és descalços que vão do
vale roch oso para o plan alto. Eu os segui ao longo de u m a d u n a elevada. O n d e
ela en t ra em declive, as pegadas m u d am para ou t ra direção, parecem frescas, ao
40 Em Transformações e símbolos da libido (1912) Jung cita crenças de diferentes culturas de que a lua foi o lugar de
reunião das almas que haviam partido ( O C , B, § 49 6). Em Mysterium coniunctíonís (1955/ 1956), Jung comenta
este motivo na alquimia ( O C, 14, § 150).
41 O esboço continua: "Eu aceitei o vagabundo, vivi e m orri com ele. Ao vivê-lo, eu o assassinei, pois a gente
mata o que a gente vive" (p. 217).
42 O esboço corrigido tem: "da m orte" (p. 20 0 ) .
43 (Prim eiro dia.) O esboço m anuscrito tem: "Quarta aventura: prim eiro dia (p. 476 ). O esboço corrigido tem: "Dies I .
Noite" (p. 201).
44 30 de dezembro de 1913, No Livro Negro 3, Jung observou: "Todo tipo de coisas me desviam para longe de
minha ciência à qual eu acreditava estar dedicado firmemente. Através dela, queria servir à humanidade,
e agora, m inha alma, tu me levas para essas coisas novas. Sim , o mundo do meio, intransitável, multiplamente
cintilante. Esqueci que cheguei a um mundo novo, que antes me era estranho. Não vejo caminho nem
trilha. Aqu i deverá tornar-se verdade o que acreditei sobre a alma, que ela sabia melhor seu próprio
caminho e que nenhum desígnio lhe poderia prescrever um caminho melhor. Sinto que é tirado um grande
pedaço da ciência. Deve estar certo, por amor à alma e por amor à sua vida. Dolorosa é apenas a ideia de
que isto só aconteceu para mim e que talvez ninguém consiga tirar alguma luz daquilo que eu produzo. Mas
minha alma exige esta produção. Devo poder dizê-lo também só para mim sem esperança - por amor a
Deus. Deveras um caminho duro. Contudo aqueles eremitas dos primeiros séculos cristãos - o que faziam
de diferente? E eram, por acaso, as piores e mais imprestáveis pessoas que viviam naquele tempo? De modo
nenhum, pois eram aqueles que tiravam a mais inexorável consequência da necessidade psicológica de seu
tempo. Eles deixavam mulher e filhos, riqueza, fama - ciência e se dirigiam ao deserto - por amor a Deus.
Assim seja" (p. 1-2).
2l6 LI BE R SECU N D U S 15/16
45 No capítulo seguinte, o eremita é identificado com Amónio. Numa carta de 31 de dezembro de 1913,
Jung observou que se trata de um eremita do terceiro século d.C. (AFj). H á três personagens históricos de
nome Am ón io em Alexan dria daquela época: Amónio, um filósofo cristão do terceiro século, considerado
por um tempo o responsável pela divisão medieval dos evangelhos; Am ón io Ceto, nascido cristão, mas que
voltou à filosofia grega, e cuja obra apresenta uma transição do platonismo para o neoplatonismo; e um
Am ón io neoplatônico do século quinto, que tentou conciliar Aristóteles e a Bíblia. Em Alexan dria havia
bom entendimento entre neoplatonismo e cristianismo, e alguns dos discípulos deste último Am ón io
converteram-se ao cristianismo.
O EREMITA 217
46 Filo, o judeu, também chamado Fílon de Alexan dria (20 a.C-50 d . C) , foi um filósofo judeu de língua
grega. Suas obras são uma fusão da filosofia grega e do judaísmo. Para Fílon, Deus, a quem se referia pelo
termo platónico "O Un o", era transcendente e incognoscível. Certos poderes desciam de Deus para o
mundo. A faceta de Deus que nos é conhecível através da razão é o Logos divino. Houve muito debate
O EREMITA 219
crân io, mas t rem en d am en t e abstrato, com o cost u m am ser os judeus quan do
cr iam sistem as, e com isso era escravo de suas palavras. En t ão criei m eu p róp rio
sist em a e u r d i u m a t ram a m ed on h a de palavras n a qual sufoquei n ão só m eus
ouvin t es com o t am bém a m im m esm o. Digeríam os m al palavras e con ceit os,
nossas próprias palavras d eploráveis, e lh es at ribu íam os até pot ên cia d ivin a.
Acred it ávam os m esm o em sua realidade e ju lgávam os possuir o d ivin o e t ê-lo
fixado em palavras".
Eu : "Mas Filo , o ju d eu — c e r t a m e n t e t e r e fe r e s a est e —, fo i u m filó so fo sé r io
e grande pensador, e o p róp rio evan gelista João n ão se recu sou a assum ir alguns
pen sam en tos de Filo em seu evan gelho".
E: "Ten s razão. Est e é o m érit o de Filo. Ele cu n h ou u m a lin guagem , com o
tan tos out ros filósofos. Ele pert en ce aos art ist as da lin guagem . Mas as palavras
n ão devem t orn ar-se d eu ses"47.
Eu : "Aqu i n ão te en ten do. N ã o est á d it o n o evangelho de João: Deu s era a
Palavra? Parece-m e estar d it o aí claram en t e o que t u con den aste h á pouco".
E: "Cu id a-t e para n ão te t orn ares u m escravo da palavra. Aq u i está o evan -
gelho. Lê a p ar t ir dessa passagem on de se d iz: n ela estava a vid a. O que d iz João
a li?"4 8
Eu : "' E a vid a era a lu z dos h om en s. A lu z b r ilh a nas trevas, mas as trevas n ão
a com preen deram . H ou ve u m h om em en viado por Deu s, de n om e João. Ele
veio com o t est em un h a, para dar t est em un h o da lu z. Er a est a a lu z verd ad eira
que, vin d o ao m un do, ilu m in a todas as pessoas. El a estava n o m un do, e por ela
o m u n d o foi feito, mas o m u n d o n ão a con h eceu . E ist o que leio aqui. Mas o
que achas disso?"
sobre a exata relação entre o conceito de Logos de Fílon e o do Evangelho de João. Em 23 de junho de
!934» J u n g escreveu a James Kirsch : "A gnose, da qual proveio o Evangelista João, é certamente judia, mas é
helénica na essência, no estilo de Fílon judeu, do qual também se origina a doutrina do Logos" ( JA) .
47 Em 1957, Jung escreveu: 'Até hoje não se percebeu com a necessária clareza e profundidade que a nossa
época, apesar do excesso de irreligiosidade, está consideravelmente sobrecarregada com o que adveio da
era cristã, a saber, com o predomínio da Palavra, daquele Logos que representa a figura central da fé cristã. A
palavra tornou-se, ao pé da letra, o nosso Deus e assim permaneceu" ( O C, 10, § 554).
48 Jo 1,1-10: "No princípio era a Palavra, e a Palavra estava com Deus, e a Palavra era Deus. No princípio
ela estava com Deus. Todas as coisas foram feitas por meio dela, e sem ela nada se fez do que foi feito.
Nela estava a vida, e a vida era a luz dos seres humanos. A luz brilha nas trevas, mas as trevas não a
compreenderam. Houve um homem enviado por Deus, de nome João. Ele veio como testemunha, para
dar testemunho da luz, a fim de que todos cressem por meio dele. Ele não era a luz, mas veio para dar
testemunho da luz. Era esta a luz verdadeira que, vindo ao mundo, ilum ina todas as pessoas. Ela estava no
mundo, e por ela o mundo foi feito, mas o mundo não a conheceu".
220 LI BE R SECU N D U S 17/19
E: "Eu te pergun to, este Àoyoç (logos) era u m con ceito, u m a palavra? Ele era
u m a lu z, até m esm o u m h om em e m orou en t re os h om en s. T u vês, Filo só e m -
prest ou a palavra a João, para que Jo ão tivesse à disposição, além da palavra l u z ' ,
t am bém a palavra Àoyoç, para descrever o Filh o do H o m e m . E m João, o sen t i-
do do Àoyoç foi at ribu íd o ao h om em vivo, mas em Filo foi at ribu íd o ao Àoyoç a
vid a, a vid a d ivin a in clu sive ao con ceit o de m ort o. Co m isso, o m ort o n ão gan h a
n en h u m vid a, e o vivo será m ort o. E ist o t am bém foi m eu erro m on st ru oso".
Eu : "Percebo o que pensas. Est e pen sam en t o é n ovo para m im e parece-m e
8 dign o de con sideração. Sem pre m e pareceu até agora / que era exat am en t e ist o
o m ais sign ificat ivo em João, de que o Filh o do H o m e m é o Àoyoç, erguendo
o m ais ín fim o até o esp irit u al m ais elevado, até o m u n d o do Àoyoç. Mas t u m e
levas a ver a coisa de m odo in vert id o, ou seja, que João t raz para baixo o sen t ido
do Àoyoç ao h om em ".
E: "Ap ren d i a recon h ecer que João t em in clu sive o grande m érit o de t er
elevado o ser h u m an o acim a do sen t ido do Àoyoç".
Eu : "T u tens pon tos de vist a estran h os que despert am ao m áxim o m in h a
curiosidade. Co m o é isto? T u pensas que o h u m an o est á acim a do Àoyoç?"
E: "A esta pergu n t a quero respon der d en t ro do lim it e de t u a com preen são:
se o h u m an o n ão tivesse sido o m ais im p ort an t e para Deu s, ele, com o Filh o,
n ão t eria sido m an ifestado n a carn e, mas n o Àoyoç"49
Eu : "Ist o m e parece eviden t e, mas confesso que esta con cepção é su preen -
den te para m im . E especialm en te adm irável que t u , u m erem it a crist ão, tenhas
chegado a tais ideias. Jam ais esperava ist o de t i".
E: "Co m o já observei, t u fazes u m a id eia t ot alm en t e errad a de m im e de
m in h a n at ureza. T u desejas ver aqui u m pequen o exem plo de m in h a ocupação.
Só com a m u d an ça de apren dizado passei m u it os anos. T u t am bém já m udaste
algum a vez de apren dizado? - En t ão deves saber que é preciso m u it o tem po
para isso. Eu fu i u m professor de sucesso em m in h a profissão. Co m o sabes,
essas pessoas d ificilm en t e ou jam ais m u d am de apren dizado. Eu , por exem plo,
vejo que o sol se pôs. Logo será n oit e t ot al. A n oit e é o t em po do silên cio. Vo u
m ost rar-lh e o lugar de passar a n oit e. A m an h ã eu a preciso para m eu trabalh o,
mas após o m eio-d ia podes vir de novo, se quiseres. Con t in u ar em os en t ão a
n ossa con versa".
49 Jo 1,14: "E a Palavra se fez carne e habitou entre nós, vimos a sua glória, a glória do Filho único do Pai,
cheio de graça e verdade".
O EREM ITA 221
Co n d u ziu -m e para fora da cabana, o vale est á im erso em som bra azul. Já
b r ilh am as p rim eiras estrelas n o céu. Levou -m e ao red or do can t o de u m r o -
chedo. Est am os d ian t e da en t rad a de u m t ú m u lo 50 , que foi escavado n a pedra.
En t ram os: n ão longe da en t rad a h avia u m m on t e de ju n cos, coberto com u m a
esteira. Ao lado, u m a m orin ga de água, e sobre u m a t oalh a bran ca, t âm aras secas
e u m pão preto.
E: "Aqu i está t u a pousada e t u a refeição da n oit e. D o r m e bem e n ão te es-
queças de t u a oração da m an h ã, quan do o sol se levan t ar".
[2] O solit ário m or a n u m deserto im en so, ch eio de beleza adm irável. Ele
observa o todo n o sen t ido in t erior. Para ele é odioso o m u lt iform e quan do lh e
está p róxim o. Ele o observa de lon ge, em seu todo. Por isso est ão para ele acim a
do m u lt iform e, o fulgor prateado, a paz e a beleza. O que lh e está p róxim o p re-
cisa ser sim ples e n at u ral, pois o m u lt iform e e em baraçado, quan do p róxim os,
rasgam e quebram o fulgor prateado. N ã o pode h aver n en h u m a t urvação do
ar, n en h u m a fum arada e n en h u m a n eb lin a ao seu redor, caso con t rário n ão
consegue observar o dist an t e m u lt iform e n o todo. Por isso, o solit ário prefere o
deserto, on de tudo o que está pert o é sim ples, e n en h u m a t urvação e em bara-
lh am en t o h á en t re ele e o lon gín qu o.
A vida do solitário seria fria, nãofosse o grande sol, que aquece o are os rochedos. O sol e seu brilho
eterno substituem no solitário o calor de sua vida.
Seu coração deseja ardentem ente o sol.
Ele viaja para as terras do sol.
Sonha com o brilho trem eluzente do sol, com pedras de calor abrasador, expostas ao sol do m eio-dia,
com reflexos de calor dourado da areia seca. f
O solitário procura o sol, e ninguém está m ais disposto do que ele para abrir seu coração. Por isso
am a m ais que tudo o deserto, porque am a seu profundo sossego.
Precisa de m enos alim ento, pois o sol e seu calor o alim entam . Por isso, o solitário am a sobretudo o
deserto, pois é um a m ãe para ele, que dá no tem po oportuno alim ento e calor vivificantes.
No deserto, o solitário está livre de preocupações, por isso toda sua vida se volta para os pom ares
em florde sua alm a, que só conseguem m edrar sob um sol quente. Em seus pom ares crescem as preciosas
frutas verm elhas, que escondem , sob pele esticada, doçura tum escente.
50 O esboço tem: "egípcio" (p. 227). Nesse contexto, água, tâmaras e pão eram oferendas aos mortos.
222 L I B E R S E C U N D U S 19/21
Tu pensas que o solitário épobre. Não vês que ele cam inha debaixo de árvores carregadas de frutas e
que sua m ão toca em centenas de grãos. Sobfolhas escuras, nasce de um viçoso rebento a for de um ver-
m elho exuberante, e os frutos quase explodem devido ao sum o que pressiona. Resinas cheirosas gotejam
de suas árvores, e sob seus pés desabrocha a sem ente que pressiona.
Quando o sol, com o pássaro cansado, desce sobre a superfície plana do m ar, o solitário se recolhe,
suspende a respiração, não se m exe e ésó expectativa até que a m aravilha da renovação da luz se eleva
no Oriente.
Ele te dá um a pequena e pouco vistosafruta que caiu agora m esm o a seus pés. Parece-te sem valor;
m as quando a observas, vês que esta fruta tom ou um sol que nunca terias sonhado. Exala um arom a que
perturba teu sentido olfativo, que te leva a sonhar com jardins de rosas, com vinhos doces e palm eiras
sussurrantes. E tu seguras sonhando esta fruta na m ão e tu gostarias de ter a árvore na qual ela cresceu,
o pom ar no qual esta árvore está e o sol que fecundou este pom ar.
E tu m esm o queres ser aquele solitário que cam inha com o sol por seus pom ares, cujo olhar repousa
sobre ram agens que pendem floridas,cuja m ão acaricia o grão cêntuplo cuja respiração perm ite beber os
arom as de m ilhares de rosas.
Extenuado pelo sol e em briagado por vinho espum ante, vais deitar-te para repouso em túm ulos
antiquíssim os, cujas paredes ressoam de várias vozes e estão m ulticoloridas por m ilhares de anos solares
do passado.
20/ 21 Ao acordar, vês tudo vivo de novo o que já passou, e quando dorm es, descansas com o tudo que já
passou, e teus sonhos fazem ressoar de novo suaves hinos sacros, vindos de longe.
Tu afundas no sono através dos m ilhares de anos solares e te ergues despertando através dos m ilhares
de anos solares, e teus sonhos, cheios de coisas já sabidas enfeitam as paredes de teu quarto de dorm ir.
51 O esboço continua: "Seguindo rastos e círculos aleatórios, volto a m im mesmo e a ele, o solitário, cuja luz
protegida vive na profundeza, protegida por maciços rochedos, tendo acima deserto escaldante e céu
resplandecente" (p. 229).
O EREM ITA 223
dizes a palavra mágica, e o ilim it ad o est á preso n o fin it o. Por isso as pessoas
p rocu ram e cr iam palavras 54 .
Q u e m rom pe o dique da palavra d erru b a deuses e profan a o tem plo. O
solit ário é u m assassino. Ele m at a o povo, pois com isso pen sa e quebra velh as
m uralh as sagradas. Ele ch am a para d en t ro os d em ón ios do ilim it ad o. Ele fica
sentado, recosta-se e n ão vê n em ouve o gem er da h u m an id ad e, tom ado pela
t errível em briaguez de fogo. Ap esar disso n ão consegues en con t rar as novas
palavras, se n ão quebrares as velh as. Mas n in gu ém deve quebrar velh as palavras,
porque en con t ra a palavra n ova que é u m dique resist en t e con t ra o ilim it ad o e
t raz em si m ais vid a do que a palavra velh a. U m a palavra n ova é u m Deu s n ovo
para a pessoa velh a. A pessoa perm an ece a m esm a, se t u lh e crias t am bém im a -
gens novas de Deu s. El a con t in u a sendo u m a im it ad ora. O que era palavra deve
t orn ar-se pessoa. A palavra cr iou e era antes do m un do. Br ilh o u com o u m a lu z
nas trevas, e as trevas n ão a en t en d eram 55 . Deve port an t o surgir u m a palavra
que en t en d a as trevas, pois para que serve a lu z que n ão en t en de as trevas? Mas
tua lu z deve alcan çar o sign ificado da lu z.
O Deu s da palavra é frio e m ort o e b r ilh a de longe com o a lua, en igm át ica e
21/22 in at in gível. D e ixa que a palavra volt e a seu / criador, precisam en t e ao h om em ,
e assim a palavra é elevada ao h om em . Q u e o h om em seja lu z, lim it e, m edida.
Q u e seja vosso fru t o que an siosam en te t en t ais pegar. As trevas n ão en t en d em
a palavra, mas o h om em ; sim , elas o en t en d em , pois ele m esm o é u m ped aço das
trevas. N ã o descendo da palavra para o h om em , mas subin do da palavra até o
h om em , ist o en t en d em as trevas. As trevas são t u a m ãe, con vém a elas t er res-
peito, pois a m ãe é perigosa. El a t em poder sobre t i, pois é t u a gen it ora. H o n r a
as trevas com o a lu z, assim ilu m in as tuas trevas.
54 Em 1940, Jung comentou sobre a magia protetora da palavra ("O símbolo da transformação na missa".
O C , 11, § 4 4 2) .
55 Cf. nota 48, p. 219..
D IES I I 225
Dies I I . ' 6
Ca p . v.
[ I H 22] 57 , 58 Aco r d e i, o d ia avermelhava o O rien t e. U m a noite, u m a noite m aravil-
hosa ficou para trás, n a profundeza m ais longínqua dos tempos. Em que espaços
distantes estive? Co m que sonhei? Co m u m cavalo branco? Parece-me que vi este
cavalo branco no céu orien t al sobre o sol nascente. O cavalo falou-me: "O que disse
isto?" Ist o falou: "Vivas a quem está n a escuridão, pois para ele o dia já passou".
Er am quatro cavalos brancos com asas douradas. Puxavam o carro do sol para cim a,
nele estava de pé H élio, com cabeça ch am ejan t e 59 . Eu estava aqui embaixo n o des-
filadeiro, admirado e assustado. Milh ares de serpentes negras apressavam-se para
seus buracos. H élio con tin uava subindo para as largas trilhas do céu. Ajoelh ei-m e,
levantei m in has m ãos suplicantes para o alto e gritei: "Dá-n os tua luz, sedutor do
fogo, abraçado, crucificado e ressuscitado, tua luz, tua luz". Co m esse clamor, acor-
dei. Nã o disse Am ón io on t em à noite: "Nã o te esqueças de tua oração da manhã,
quando o sol se levantar?" Pensei: talvez ele adore secretamente o sol. /
D o lado de fora soprava u m ven t o fresco d a m an h ã. Ar e ia am arela escorre
em fin os veios pelas rochas abaixo. O verm elh o esten de-se sobre o céu, e eu
vejo os p rim eiros raios se lan çan d o para o firm am en t o. Silên cio e solidão m a -
jestosos ao redor. Lá u m a grande lagart ixa sobre u m a pedra espera o sol. Est ou
com o que paralisado e lem b ro-m e com dificuldade de tudo o que acon teceu
on t em e sobretudo do que disse Am ón io. O que disse afinal? Q u e as sequ ên -
cias de palavras t êm vários sen tidos e que João t rou xe para os h om en s o Àoyoç.
56 O esboço corrigido tem: "( O erem ita). Segundo dia. De manhã" (p. 219).
57 Em "A árvore filosófica" (1945), Jung observou: "Um a pessoa que está enraizada embaixo e no alto
pareceria uma árvore tanto na posição normal, como na inversa. A meta não é o alto, mas o centro" ( O C ,
U> § 333)- Com entou também sobre "a árvore invertida" no § 41OS.
58 I O de janeiro de 1914.
59 Na mitologia grega, Hélio era o deus-sol, que dirigia pelo cosmo uma carruagem puxada por quatro
corcéis.
226 LI BE R SECU N D U S 23/ 24
60 Durante este período, Jung estava ocupado com o estudo dos textos gnósticos, nos quais encontrou
paralelos históricos com suas próprias experiências. Cf. R I BI , A. Die Suche nach den eígenenW urzeln: Die
Bedeutung von Gnosis, Herm etik und Alchem ie fur C G . Jung und Marie-Louise von Franz und deren
Einfluss auf das moderne Verstándnis dieser Disziplin . Berna: Peter Lang, 1999.
61 Em "Síncronícidade: um princípio de conexões acausaís' (1952), Jung escreveu: "O escaravelho é um símbolo clássico
do renascimento. O livro Am-Tuatào Egito descreve a maneira como o deus-sol morto se transforma no
Kheperâ, o escaravelho, na décima estação e, a seguir, na duodécima estação, sobe à barcaça que trará o
deus-sol rejuvenescido de volta ao céu matinal do dia seguinte" ( O C, 13, § 843).
D IES I I 227
Querido escaravelho, m eu pai, eu te venero, bendito seja teu trabalho - eternam ente - am ém .
Q u e absurdo est ou dizen do? Est ou adoran do u m bich o — deve ser efeito do
deserto. Ele parece exigir in con d icion alm en t e oração.
Co m o é bon it o aqui! A cor averm elh ada das pedras é m aravilh osa. Elas r e-
flet em o calor de cem m il sóis passados - esses grãozin h os de areia rolaram
em m ares fan t ast icam en t e p rim it ivos nos quais n adavam m on st ros de form as
jam ais vist as. O n d e estavas t u , ser h um an o, naqueles dias? Nest a areia quen te
est iveram deitados, aconchegados com o crian ças à sua m ãe, teus antepassados
p ré-h ist óricos ain d a em form a an im al.
Ó m ãe pedra, eu te am o, aconchegado a teu corpo quente, estou deitado, teu filho tardio. Bendita
O que digo? Ist o foi o deserto. Co m o tudo me parece t er vida! Est e lugar é
realm en te terrível. Essas pedras - são mesmo pedras? Parece que se ju n t aram
deliberadam ente. Est ão ordenadas com o u m exércit o perfilado. Dispu seram -se
sim et ricam en t e em form ações rochosas, as grandes ficam sós, as pequenas p re-
en ch em as lacun as e se ju n t am n u m grupo que precede o grande. Aq u i as pedras
foram Est ados.
Est o u son h an do ou acordado? Faz calor — o sol já vai alto — com o an d am
depressa as horas! D e fato, a m an h ã já passou — e com o foi m aravilh osa! Será
que é o sol, ou serão essas pedras vivas, ou será o deserto que fazem zu n ir m in h a
cabeça?
Vo u subin do do vale para cim a e logo est ou dian t e da caban a do erem it a.
Est á sen tado em sua est eira, perd id o em profu n d a m edit ação.
Eu : "Me u pai, aqui est ou eu ".
E: "Co m o passaste t u a m an h ã?"
228 L I B E R S E C U N D U S 24/25
Am ón io, está tudo bem contigo?' 'Cert am en t e', respondi, 'vês que sou
letrado e tenho grande êxito'.
Ele: 'Eu quero dizer, estás feliz e completamente vivo?'
D IES I I 229
62 Osíris era o Deus egípcio da vida, morte e fertilidade. Seth era o Deus do deserto. Osíris foi assassinado e
esquartejado por seu irmão Seth. Seu corpo foi recuperado por sua esposa Isis, reajuntado e ressuscitado.
Jung tratou de Osíris e Seth em Transformações e símbolos da libido (1912). O C , B, § 3$8s.
63 Hórus, filho de Osíris, era o Deus egípcio do céu. Ele lutou contra Seth.
230 LI BER SECU N D U S 25/27
Eu : "Mas n ão pensas que o crist ian ism o pod eria ser ao fin al u m a rem od ela-
ção de vossas d ou t rin as egípcias?"
E: "Se dizes que nossas antigas d ou t rin as eram expressões m en os p er t in en -
tes ao crist ian ism o en t ão con cordo de im ed iat o con t igo".
Eu : "Sim , mas aceitas en t ão que a h ist ória das religiões visa a u m objet ivo
ú lt im o?"
E: "Me u pai com p rou cert a vez u m escravo negro n a região das nascentes
do rio Nilo. Vin h a de u m país que n u n ca ou vira falar de O síris ou de q u al-
quer ou t ro de nossos deuses, mas ele m e con t ava coisas que n u m a lin guagem
sim ples d iziam a m esm a coisa que n ós acredit ávam os de O síris e dos outros
deuses. Ap r e n d i a en t en der que aqueles negros in cu lt os já possu íam , sem o sa-
ber, a m aior ia daquilo que as religiões dos povos cultos desen volveram até u m a
d ou t rin a acabada. Q u e m entendesse corret am en t e aquela lin guagem pod eria
recon h ecer n ela n ão só as d ou t rin as pagãs, mas t am bém a d ou t rin a de Jesus. E
é com isso que m e ocupo agora: leio os evangelhos e procu ro seu sen t ido vin -
douro. Con h ecem os seu sign ificado com o est á paten te d ian t e de n ós, mas n ão
con h ecem os seu sen t ido ocult o que apon t a para o futuro. E u m erro acredit ar
que as religiões sejam diferen t es em sua essên cia. No fundo, t rat a-se sem pre d a
m esm a religião. Ca d a form a religiosa subsequente é o sen t ido das an t eriores".
Eu : " E descobriste o sign ificado vin d ou ro?"
E: "Nã o , ain d a n ão, é m u it o difícil, mas t en h o esperan ça de que vou con se-
guir. At é agora quer parecer-m e que preciso do est ím u lo de out ros para isso,
mas são t en t ações de satan ás, eu o sei".
Eu : "N ã o chegas a acredit ar que esta obra pod eria an t ecipar seu êxit o se
estivesses m ais pert o de outras pessoas?"
E: "Talvez ten has razão."
D e repen te ele olh ou para m im com o que em d ú vid a e desconfiado. "Mas",
con t in u ou ele, "eu am o o deserto, com preen des? Est e deserto am arelo, ch eio do
calor do sol. Aq u i t u vês d iariam en t e a face do sol, aqui estás sozin h o, aqui vês
o glorioso H élio — n ão isto é pagão — o que h á com igo? Est ou pert urbado - t u
és satan ás - eu te con h eço - afasta-te de m im , in im igo".
/ Levan t ou -se de repen t e com o en louquecido e quis at irar-se sobre m im .
Mas eu estou b em longe, n o século vin t e 6 4 .
64 O esboço corrigido tem: "e a m im mesmo pareceu tão irreal como um sonho" (p. 228). O s eremitas cristãos
estavam sempre de prontidão contra o aparecimento de satanás. Famoso exemplo de tentações pelo
demónio ocorre na vida de Santo Antão, escrito por Santo Atanásio. Para prevenir seus monges, "ensina
como o diabo se disfarça para levar à queda os santos. O diabo é, evidentemente, a voz do próprio
D IES I I 231
[2] [ I H 26] Quem dorm e no túm ulo dos m ilénios sonha um sonho glorioso. Sonha um sonho
antiquíssim o. Sonha com o sol nascente.
Se tu dorm es este sono nesta época do m undo e sonhas este sonho, sabes que nesta época tam bém
nascerá o sol. Agora ainda estam os na escuridão, m as o dia está acim a de nós.
Quem traz em si as trevas, a este está próxim a a luz. Quem desce para dentro de suas trevas, este
chega ao nascer da luz atuante, do Hélio que atrai o sol.
Seu carro sobe puxado por quatro corcéis brancos; em suas costas não há cruz e em seu lado não há
chaga, m as ele é saudável e sua cabeça arde em fogo.
Não éum hom em , objeto de escárnio, m as um ser glorioso e de poder indiscutível.
Eu não sei o que eu falo, eu falo no sonho. Am para-m e, pois cam baleio em briagado de fogo.
Bebi fogo nesta noite, pois desci pelos m ilénios abaixo e m ergulhei no m ais profundo do sol.
E ergui-m e em briagado de sol, com a face ardente e m inha cabeça em fogo.
Dá-m e tua m ão, um a m ão hum ana, para que m e m antenha preso à terra, pois j rodas girantes de
fogo m e levantam e desejo jubiloso m e arrebata até o zénite.
inconsciente do eremita que se volta contra a repressão violenta da natureza individual" ( O C, 6, § 82). As
experiências de Antão foram elaboradas por Flaubert em seu livro La tentatíon de Saint Antoine, obra familiar a
Jung (Psicologia e alquim ia. O C , 12, § 59).
232 L I B E R S E C U N D U S 27/ 29
dras falam con tigo e fios m ágicos t ecem u m a t ram a de t i para a coisa e d a coisa
para t i. Coisas dist an t es e próxim as at uam em t i e t u ages de m an eira obscura
sobre a coisa p róxim a e dist an t e. E sem pre estás desam parado e és vít im a.
Mas se olh ares bem , verás algo que n u n ca vist e an tes, ist o é, que as coisas v i -
vem t u a vid a, que elas se alim en t am de t i: os rios carregam t u a vid a para o vale,
com t u a força cai u m a pedra sobre a ou t ra, t am bém plan t as e an im ais crescem
através de t i e t u m orres neles. U m a folh a d an çan d o ao ven t o d an ça em t i, o
an im al ir r a cio n a l 6 5 ad ivin h a teus pen sam en tos e te represen t a. A t erra in t eir a
suga sua vid a de t i e t udo se espelh a em t i.
N ã o acontece n ada n aquilo em que n ão estás en redado de m an eira secreta;
pois tudo se ord en ou em t orn o de t i e represen t a t eu m ais ín t im o. Nad a em t i
está ocult o às coisas p or m ais dist an t e, precioso e secreto que seja. As coisas o
possuem . Te u cach orro rou ba t eu pai falecido de h á m u it o e t u o achas parecido
com ele. A vaca n o pasto ad ivin h ou t u a m ãe e, ch eia de t ran qu ilid ad e e cert eza,
ela te fascina. As estrelas in sin u am -se em teus segredos m ais profun dos, e os
vales m acios d a t erra abrigam -t e em seio m at ern o.
Q u a l crian ça sem ru m o estás lam en t avelm en t e en t re os poderosos que se-
gu ram os fios de t u a vid a. T u bradas por socorro e te agarras ao m elh or que
p rim eiro aparece n o cam in h o. Talvez ele saiba acon selh ar-t e, talvez con h eça os
pen sam en tos que n ão tens e que todas as coisas sugaram de t i.
Eu sei que tu gostarias de ouvir notícias daquele que nunca foi vivido pelas coisas, m as que viveu e
realizou a si m esm o. Pois tu és um filho da terra, esgotado pela terra sugadora, que por si nada pode, m as
apenas suga o sol. Por isso gostarias de ter notícias do filho do sol, que brilha e não suga.
I Gostarias de ouvir do Filho de Deus, que brilhou, ofereceu e testem unhou, e do qual foi renascido,
Dele gostarias de ouvir, do salvador reluz ente, que, com ofilho do sol, cortou as teias da terra, que
arrebentou os fios m ágicos e soltou o am arrado, quefoi dono de si m esm o e servo de ninguém , que não
Gostarias de ouvir daquele que não foi obscurecido pela som bra da terra, m as que a ilum inou, que
viu todos os pensam entos e cujos pensam entos ninguém adivinhou, que possuiu em sí o sentido de todas as
O solit ário fugiu do m un do, fech ou os olh os, t am pou os ouvidos e en t er-
rou-se n u m a cavern a d en t ro de si m esm o, mas de n ada adian t ou . O deserto o
exau riu , a pedra falou a seus pen sam en t os, a cavern a ressoa seus sen t im en t os, e
assim t orn ou -se ele m esm o deserto, pedra e cavern a. E tudo era vazio, deserto,
im p ot ên cia e est erilidade, pois ele n ão b rilh ava e con t in u ou sendo u m filh o
d a t erra, que esgotou u m livro e ele m esm o foi esgotado pelo deserto. Ele era
desejo e n ão brilh o, t ot alm en t e t er r a e n ão sol.
Por isso estava n o deserto com o u m san to esperto, pois sabia m u it o bem
que de ou t ro m odo n ão con seguiria d ist in gu ir-se dos out ros filh os da t erra.
Tivesse bebido de si, t eria bebido fogo.
O solit ário foi para o deserto a fim de en con t rar-se. N ã o deseja, p orém ,
en con t rar a si m esm o, mas o sen t ido m ú lt iplo do livro sagrado. T u podes su -
gar para d en t ro de t i a in com en su rabilid ad e do pequen o e do grande, mas t u
ficarás m ais vazio, cada vez m ais vazio, pois plen it u d e in com en su rável e vazio
in com en su rável são a m esm a co isa 6 6 .
Desejava en con t rar n o ext er ior aqu ilo de que precisava. Mas o sen t id o
m ú lt ip lo t u só o en con t ras em t i, n ão nas coisas, pois a m u lt ip licid ad e do sen -
t id o n ão é algo que é dado de u m a só vez, m as é u m en cadeam en t o de sign ifi-
cados. O s sign ificados que se seguem un s aos out ros n ão est ão nas coisas, mas
em t i, que estás su jeit o a m u it as m u d an ças en qu an t o t iveres part e n a vid a.
Tam b ém as coisas m u d am , m as t u n ão o percebes, se t u m esm o n ão m u d a-
res. Mas se m udas, m od ifica-se o aspecto do m un do. O sen t id o m ú lt ip lo das
coisas é t eu sen t id o m ú lt iplo. E in ú t il qu erer fu n d am en t á-lo nas coisas. E é
p rop riam en t e por isso que o solit ário foi p ara o deserto; n ão exam in a p orém
a si m esm o, mas a coisa.
E por isso acon t eceu -lh e o m esm o que a t odo solit ário quan do ele deseja: o
d em ón io veio a ele com fala m an sa e fu n d am en t ação con vin cen t e, sabia d izer
a palavra cer t a n o m om en t o cert o. Ele o alicia para o seu desejo. E u cer t a-
m en t e d everia parecer o d em ón io para ele, pois eu assu m i m in h as t revas. Eu
com ia a t er r a e bebia o sol, e eu era u m a árvore verd e, que est á de pé e cresce
n a so lid ã o 6 7 ./
A m ort e 68
Cap. vi.
[ I H 29 ] N a n oit e segu in t e 6 9 , fu i para a t er r a do Nor t e e en con t rei-m e sob céu
cin zen t o, n u m ar n ebuloso e ú m id o-frio. Dir igi-m e para as plan ícies, onde as
águas em m an so deslizar, lu zin d o em grandes espelhos, aproxim am -se do m ar,
onde m ais e m ais acaba t oda pressa do fluir e onde t oda força e todo esforço
se acasalam com a im en sid ão ilim it ad a do oceano. As árvores rareiam , grandes
ch arn ecas acom pan h am as águas calm as e t urvas, sem fim e solit ário é o h o r i-
zon t e, rodeado por n uven s cin zen t as. Devagar, com a respiração suspensa, com
a gran de e m edrosa expect at iva daquele que espum ej a furiosam en t e e se espar-
ram a pelo in fin it o, sigo m in h a irm ã, a água. Silen cioso e quase im percept ível é
seu fluir e, assim m esm o, aproxim am o-n os sem pre m ais do feliz e m ais elevado
abraço, para en t rar n o seio da origem , n a ext en são sem lim it es e n a p rofu n -
deza in com en su rável. Lá se erguem colin as baixas e am arelas. U m lago grande
e m ort o esten de-se a seu sopé. Cam in h am os silen ciosam en t e ao seu redor, e as
colin as se ab riram para u m h orizon t e crepuscular, in d izivelm en t e lon gín qu o,
onde céu e m ar se fu n d em n u m a in fin it u d e.
Lá em cim a, sobre a últim a dun a está alguém, trazia u m m an to preto e preguea-
do, está de pé, im óvel, e olha para longe. Ap roxim o-m e dele; é magro e pálido e u m a
seriedade absoluta estampa-se em seus traços fisionóm icos. Dirijo-lh e a palavra:
"Posso ficar u m pouco con tigo, Escu ro? Eu te recon h eci de longe. Só u m fica
parado com o t u , t ão só e n o ú lt im o can t o do m u n d o".
Respon d eu : "Est ran h o, podes ficar à von t ade com igo se n ão ficares com
frio. Vê s que sou frio e n u n ca u m coração bat eu em m im ".
"E u sei que és gelo e fim , t u és a quietude fria da pedra, t u és a neve m ais
alt a das m on t an h as e a geada m ais in t en sa n o espaço cósm ico vazio. Ist o preciso
sen t ir e é a razão por que devo ficar pert o de t i".
"O que te t raz a m im , m at éria viva? O s vivos n u n ca são h ósped es aqui. E
verdade que vêm todos passando t rist es em grandes grupos, todos que se des-
O hóspede solitário [estranho] entrou em minha alma. Mas minha vida verdejante me inundou. [Assim
caminhei, seguindo a natureza da água]. A solidão cresceu c estendeu se cm torno de m im . Eu não
conhecia a infinitude da solidão, c cu caminhava, caminhava c olhava. Q u eria sondar as profundezas da
solidão c fui tão longe ate que se extinguiu cada um dos últimos ecos da vida" (p. 235).
68 O esboço m anuscrito tem: Quinta aventura: a m orte (p. 557).
69 2 de janeiro de 1914.
A M O RTE 235
p ed iram / lá em cim a d a lu z do d ia, para n u n ca m ais volt ar. Mas pessoas vivas
n ão vêm n u n ca. O que procuras aqu i?"
"Me u cam in h o est ran h o e in esperado t rou xe-m e até aqui, quan do eu se-
guia, ch eio de esperan ça, o cam in h o das t orren t es da vid a. E assim te en con t rei.
Aq u i estás bem e n o t eu devido lugar?"
"Sim , d aqu i se part e para o in d ist in gu ível, onde n in gu ém é igual ou d iferen -
te do out ro, mas on de todos são u m . Vê s o que vem vin d o lá?"
"Vejo algo com o u m a parede escura de nuvens que vem nadando n a t orren t e".
"O lh a m elh or, o que recon h eces?"
"Vejo tropas incalculáveis e bem cerradas de hom ens, velhos, mulheres e crian -
ças. No meio, vejo cavalos, gado e rebanho m iúdo, u m a n uvem de insetos voa em
volt a da tropa - u m a floresta vem boiando — flores murchas sem conta — u m ve-
rão todo, m ort o. Est ão perto. O olh ar de todos é fixo e frio — seus pés n ão se
m ovem - n en h u m som sai de suas fileiras cerradas. Rígid os, seguram -se pe-
las m ãos e braços, olh am para fren t e e n ão prest am at en ção em n ós - passam
fluindo n a m on st ru osa t orren t e. Escu ro, esta visão é h orrível!"
"T u quiseste ficar com igo, sossega. Prest a at en ção agora!"
Eu vejo: "As p rim eiras filas ch egaram lá onde as ondas d a reben t ação se m is-
t u ram violen t am en t e com a água da t orren t e. E parece com o se u m a on d a de
ar, bat en do con t ra o m ar, estivesse baten do con t ra a m u lt id ão dos m ort os. Be m
alto red em oin h am , esvoaçan d o em pretos farrapos e se desfazendo em n uven s
turvas de n évoa. U m a on d a após ou t ra se ap roxim a e sem pre novas m u lt id ões
som em n o ar negro. Escu ro, d ize-m e, ist o é o fim ?"
"O b ser va!"
O m ar escuro reben t a com fragor - u m a pedra averm elh ada aparece den t ro
disso - é com o sangue - u m m ar de sangue espum eja aos meus pés - a profu n -
deza do m ar fica verm elh a — sin t o-m e estranho — estou dependurado n o ar pelos
pés? Ist o é o m ar ou o céu? U m a bola de sangue e de fogo se m ist u ra - u m a lu z
verm elh a est oura de seu in vólu cro fumegante - u m n ovo sol avan ça para a m ais
ext rem a profu n deza - ele desaparece sob m eus p és 7 °.
O l h o ao m e u red or. Es t o u só. Fic o u n oit e. O que d isse Am ó n io ? A n oit e
é o t em p o d o silên cio.
Mas o que acon teceu com m eu dia? Ar ch ot es foram acesos, cólera san gren t a
e brigas se in flam aram . Assim que a escuridão t om ou con t a do m un do, levan -
tou-se a guerra cru el, e a escu ridão d est ru iu a lu z do m un do, pois ela era i n -
con cebível e n ão prest ava m ais. Port an t o, t ín h am os de exp erim en t ar o in fern o.
Eu vi com o as virt u d es se t ran sform aram nessa época em vício, com o t u a
d oçu ra se t ran sform ou em d u reza, t u a bon dade em ru d eza, t eu am or em ód io e
tua razão em lou cu ra. Por que querias en t en d er a escuridão? Mas t u precisavas
en t en d ê-la, sen ão ela te agarraria. Feliz daquele que se an t ecipa a este agarra-
m en to.
Pensaste alguma vez n o m al em ti? O h , falaste disso, t u o m en cion aste e con -
sentiste sorrin do nele com o u m defeito h um an o em geral ou com o u m m al-en -
ten dido que aparece frequentes vezes. Mas sabias / o que é o m al e que ele está
m u it o pert o, atrás de tuas virt u d es, de t al m odo que ele é in clu sive t u a p róp ria
virt u d e, com o seu con t eú d o in evit ável 71. T u en carceraste satan ás d u ran t e u m
m ilén io n o abism o e, passado este m ilén io, rist e dele, porque se t orn ara u m
con t o de fadas in fa n t il 72 . Mas quan do o t errível Gr an d e levan t a sua cabeça,
71 Em 1940, Jung escreveu: "O mal é relativo; em parte é evitável e em parte é uma fatalidade. Isto se aplica
também à virtude, e muitas vezes não sabemos o que é pior" ("Interpretação psicológica do dogma da
Trindade". O C , 11/2, § 291.
72 No esboço corrigido esta frase é substituída por: "O mal é a metade do mundo, uma das conchas da ostra"
(p. 242).
A M O RTE 237
o m u n d o estrem ece. O frio ext erior pen et ra em t i. Co m pavor vês que estás
indefeso e que a m u lt id ão de tuas virt u d es cai im pot en t e de joelh os. O m al se
agarra com a violên cia de d em ón ios, e tuas virt u d es t ran svazam para ele. Nest a
bat alh a estás t ot alm en t e só, pois teus deuses ficaram surdos. N ã o sabes quais
são os piores d em ón ios, se teus vícios ou tuas virt u d es. Mas de u m a coisa ficarás
cien te: que virt u d e e vício são irm ãos.
73
N ó s precisam os do frio da m ort e para que vejam os claram en t e. A vid a
quer viver e m orrer, com eçar e t er m in a r 74 . T u n ão és forçado a viver et ern a-
m en t e, mas t am bém podes m orrer, pois para ambas as coisas h á u m a von t ade
em t i.
Vid a e m ort e devem m an t er em t u a exist ên cia o eq u ilíb r io 75 . As pessoas de
h oje precisam de u m gran de ped aço de m ort e, pois coisa in corret a dem ais vive
n elas, e coisas correias dem ais m or r em nelas. Co r r et o é o que m an t ém o eq u i-
líbrio, in corret o é o que d est rói o equilíbrio. Mas at in gido o equ ilíbrio, en t ão
é in corret o o que m an t ém o equ ilíbrio e corret o o que o d est rói. Equ ilíbrio é
vid a e m ort e ao m esm o tem po. D a perfeição d a vid a faz part e o equ ilíbrio com
a m ort e. Q u an d o aceito a m ort e, reverdece m in h a árvore, pois a m ort e in t en si-
fica a vid a. Se eu m e con cen t ro n a m ort e global, m eus bot ões se abrem . Q u an t o
n ossa vid a precisa d a m ort e!
A alegria nas m en ores coisas só vem a t i quan do t iveres aceito a m ort e. Mas
se olh ares vorazm en t e para aquilo que ain d a poderias viver, t eu en t ret en im en -
to n ão é gran de o suficien t e para t i, e as coisas m en ores que ain d a te cercam
n ão são m ais alegria para t i. Por isso en caro a m ort e com sim pat ia, pois ela m e
en sin a a viver.
Q u an d o aceitas a m ort e em t i, ist o é com o u m a n oit e de am ad u recim en t o
e u m pressen t im en t o m edroso, mas é u m a n oit e de am ad u recim en t o n u m a vi -
73 O esboço continua: "Nesta batalha sangrenta, a morte se dirigiu a ti, assim como hoje o grande matar e morrer
enche o mundo. O frio da morte te penetra. Quando na solidão eu estava enrijecido até a morte, vi clara-
mente e vi o vindouro tão claramente como as estrelas e as montanhas distantes na noite gelada" (p. 260).
74 Em Transformações e símbolos da libido (1912) Jung afirmou que a libido não era apenas um impulso vital
schopenhaueriano, mas que continha o esforço contrário em direção à morte nela mesma ( O C, B, § 69 6).
75 O esboço continua: "Deixar viver o correto e deixar morrer o incorreto, esta é a arte de viver" (p. 261).
Em 1934, Jung escreveu: "A vida é um processo energético como qualquer outro, mas, em princípio, todo
processo energético é irreversível e, por isso, orientado univocamente para um objetivo. E o objetivo é o
estado de repouso... Do meio da vida em diante, só aquele que se dispõe a morrer conserva a vitalidade,
porque na hora secreta do meio-dia da vida inverte-se a parábola e nasce a morte... Não querer viver é
sinónimo de não querer morrer. A ascensão e o declínio formam uma só curva" ("A alma e a morte". O C ,
8, § 798 e 8 0 0 ) . Cf. meu "'Th e Boundless Expanse': Jungs Reflections on Life and Death". Quadrant:
Journal of the C G . Jung Foundation for Analytical Psychology, 38, 2008, p. 9-32.
238 LI BE R SECU N D U S 31/32
O s restos de templos
an tigos 80
Ca p . v i i .
80 Em vez disso, o esboço manuscrito tem: "Sexta aventura" (p. 586). O esboço corrigido tem: "6. Ideais adulterados"
(P- 247)-
81 A forma de mosaico se parece com os mosaicos de Ravena, que Jung visitou em 1913 e 1914 e que lhe
causaram profunda impressão.
82 5 de janeiro de 1914.
83 "Retira-te, satanás" - expressão comum na Idade Média.
84 Na mitologia grega, os hiperbóreos eram um povo que vivia num país de luz solar, além do vento norte,
adorando Apolo. Nietzsche se refere várias vezes aos espíritos livres como hiperbóreos em O anticristo, § 1.
Frankfurt no Meno: Insel Verlag, 1986.
240 LI BE R SECU N D U S 32/33
85 Um a referência a Gn 2,18: "E o Senhor disse: Não é bom que o homem esteja só; vou fazer-lhe uma
auxiliar que lhe corresponda". H á uma referência a um certo Fileto na Bíblia, 2Tm 2,16-19: "Evit a as
conversas fúteis e mundanas. O s que com elas se ocupam, mais e mais avançam para a impiedade, e
sua palavra alastra-se como gangrena. Him en eu e Fileto são desse grupo. Eles se desviaram da verdade,
dizendo que a ressurreição já se realizou e, assim, subvertem a fé de alguns".
O S REST O S D E T E M P LO S A N T I G O S 241
[2] [ I H 33] Dep ois que vi a m ort e e todo o t errível aparato que a cercava e
depois que eu m esm o m e t or n ei n oit e e gelo, levan t ou-se em m im u m a vid a e
m ovim en t o desagradáveis. Co m eço u m in h a sede pelas águas ruidosas do saber
m ais p rofu n d o 8 7 ; com o t in ir dos copos de vin h o, ou via ao longe grit aria de bê*
33/34 bados, risadas de m u lh eres, baru lh o de ru a. Mú sica de dan ça, / bat id a de pés e
grit os de euforia brot avam de todas as gretas e, em vez do ven t o su l com odor
de rosas, cercava-m e o ch eiro do an im al h um an o. Tagarelice su ja de lu xú ria
de prost it ut as resvalava em risadin h as ao longo das paredes, vapor de vin h o e
fum aça de cozin h a, vozerio est ú pid o d a m u lt id ão vin h am em fum açada. Mãos
quen tes, pegajosas e m acias t en t avam agarrar-m e, cobertas m acias de cam a de
en ferm os m e en rolaram . Fu i gerado para a vid a a p ar t ir de baixo, e cresci com o
crescem os h eróis, t an t o em h oras com o em anos. E, quan do estava crescido,
en con t rei-m e n o m eio da t er r a e vi que era prim avera.
[ I H 34] Mas eu n ão era m ais a pessoa que h avia sido, e sim u m est ran h o
cresceu através de m im . Est e ser era u m en te alegre da floresta, u m m on st ro
de folhas verdes, u m sát iro e travesso, que m ora sozin h o n a floresta e que é u m
87 O esboço corrigido tem "da sabedoria", em vez de "do saber mais profundo" (p. 251).
O S REST O S D E T E M P LO S A N T I G O S 243
ser arbóreo, que n ada m ais am a do que o verd ejan t e e o que cresce, que n ão vai
à p rocu ra n em recebe as pessoas, ch eio de caprich os e acasos, obedecen do a
leis in visíveis, esverdean do e m u rch an d o com as árvores, n em belo e n em feio,
n em b om e n em m au , som en te vivo, velh íssim o e ain d a bem jovem , n u e assim
m esm o vest ido n at u ralm en t e. N ã o é gente, mas n at u reza, assustador, ridículo,
poderoso, in fan t il, fraco, enganador e enganado, ch eio de in con st ân cia e su -
perficialidade e, n o en t an t o, at in gin do a profun didade até o cern e do m un do.
Eu h avia sugado para d en t ro de m im a vid a de m eus dois amigos; sobre as
ruín as do t em plo cresceu u m a árvore verde. Eles n ão se opuseram à vid a, m as,
seduzidos pela vid a, t orn aram -se sua p róp ria farsa. Eles caíram n o esterco, por
isso ch am avam o ser vivo de d em ón io e t raidor. Pelo fato de os dois acred i-
t arem à sua m an eira em si e em sua própria bondade, caíram fin alm en t e n o
esterco, com o lugar de en t erro n at u ral e ú lt im o de todos os ideais sobrevividos.
O m ais belo e o m elh or, com o o m ais feio e o p ior t er m in am a seu t em po n o l u -
gar m ais ridícu lo do m un do, rodeados por m ascarados, con duzidos por loucos,
seguem h orrorizad os para a cova d a pod rid ão.
Depois do am aldiçoar vem o riso, para que a alm a seja liberta dos m ortos.
O s ideais são desejados e pensados segundo sua natureza e n a m edida em que
são, mas tam bém só n a m edida em que são. Con t udo, não se pode negar seu ser
atuante. Q u e m acha que vive realm ente seus ideais, ou que possa vivê-los, t em m a-
n ia de grandeza e se com porta como louco, ao representar para si u m ideal elevado:
o herói, porém , está m orto. O s ideais são m ortais, portanto é preciso preparar-se
para seu fim : pode custar-lhe talvez o pescoço. Mas não vês que foste t u que deste
sentido, valor e força atuante a t eu ideal? Q u an d o te tornaste vít im a do ideal, então
o ideal enlouquece, brin ca carnaval contigo e conduz n a Q u art a-feira de Cin zas
ao inferno. O ideal é u m in strum en to que se pode descartar a qualquer momento,
u m a tocha em cam inhos escuros. Q u e m anda por aí de d ia com u m a tocha é louco.
Q u an t o desceram meus ideais, com que frescor reverdejou m in h a árvore!
88
Q u a n d o eu reverd eci, estavam aí os restos t rist es de t em plos e jard in s de
rosas an tigos, e eu recon h eci com h orror seu paren tesco ín t im o. Ao que m e
88 O esboço e o esboço corrigido têm: "Eu era o holocausto de meus santuários e me tornara belezas, por isso eles
me levaram para a morte no abatimento [por isso me sobreveio a m orte]" (p. 254).
244 LI BE R SECU N D U S 34/35
89 Na Pérsia, as pétalas esmagadas de rosas eram destiladas para se fazer óleo de rosas, do que se faziam
perfumes.
90 Em 1926, Jung escreveu: "A passagem da manhã para a tarde é uma inversão dos antigos valores. E imperiosa
a necessidade de se reconhecer o valor oposto aos antigos ideais, de perceber o engano das convicções
defendidas até então de reconhecer e sentir a inverdade das verdades aceitas até o momento, de
reconhecer e sentir toda a resistência e mesmo a inimizade do que até então julgávamos ser amor" ("O
inconsciente na vida psíquica normal e patológica". O C , 7, § 11$).
91 O esboço corrigido tem: "um ente verde" (p. 255).
O S REST O S D E T E M P LO S A N T I G O S 245
At r á s de m i m e st ã o as fo r ça s q u e r e la n t e s q u e e s t i ve r a m t a n t o t e m p o e n t r e m i m
e m im m esm o.
Agor a estou bem sozin h o. Já n ão posso d izer-t e: "Escu t a!", ou: "t u deves",
ou: "t u poderias", mas agora só falo ain d a com igo. Agora n in gu ém pode fazer
por m im a m en or coisa que seja. N ã o t en h o m ais obrigação contigo, e t u n ão
tens obrigação com igo, pois eu d esapareço e t u desapareces para m im . N ã o
escuto m ais pedido n en h u m e n ão t en h o pedido a te fazer. N ã o brigo n em m e
recon cilio m ais contigo, mas coloco o silên cio en t re m im e t i.
Lon ge perde-se t eu cham ado, e o rasto de m eus passos n ão podes en con t rar.
Pois com o ven t o oeste, que vem da superfície do oceano, viajo sobre a t er r a
verde, passo pelas florestas e vou dobran do a relva n ova. Falo com as árvores e
os an im ais da floresta, e as pedras m e in d icam o cam in h o. Q u an d o sin t o sede, e
a fon te n ão vem a m im , eu m esm o vou à fonte. Q u an d o sin t o fom e, e o pão n ão
vem a m im , procu ro m eu pão e o pego lá onde o en con t ro. N ã o presto ajuda e
n ão preciso de ajuda n en h u m a. Se algum a necessidade m e aflige, n ão olh o ao
redor se h á algum ajudan te por perto, mas aceito a necessidade, eu m e curvo, eu
m e vir o e supero. Eu rio, eu ch oro, eu blasfem o, mas n ão olh o ao redor.
Nest e cam in h o n in gu ém m e segue, e eu n ão cru zo o cam in h o de n in gu ém .
Est ou sozin h o, mas preen ch o m in h a solidão com m in h a vid a. Sou para m im
m esm o pessoa, barulh o, en t ret en im en t o, consolo, aju da suficien t es. E assim
viajo para o dist an t e O r ien t e. N ã o que eu soubesse qual seria o m eu d est i-
n o lon gín qu o. Vejo h orizon t es azuis dian t e de m im : são para m im objet ivo
suficien t e. Ap resso-m e para o O r ien t e, para o m eu com eço. Eu quero o m eu
n ascen te. / [Ilu st ração 36 ] 9 6 /
96 Legenda da ilustração: "Este quadro foi pintado no Natal de 1915. "O quadro de Izdubar parece-se
muito com uma ilustração dele na obra de W ilh elm Roscher, Ausfúhrliches Lexíkon dergríechíschen und rõmíschen
Mythologíe, do qual Jung possuía um exemplar (Leipzig: Teubner, 1884-1937). Izdubar era o nome original
do personagem conhecido agora como Gilgamesh. Isto baseou-se numa transcrição errada. Em 1906,
Peter Jensen observou: "O fato de o principal herói da epopeia chamar-se Gilgamesh, e não por exemplo
Gistchubar ou Izdubar, como se admitia antes, sabemo-lo agora definitivamente" (Das Gilgamesh-Epos in
derW eltliteratur. Strassburgo: Kar l Triibner, 1906, p. 2). Jung tratou da epopeia Gilgamesh em 1912, em
Transformações e símbolos da libido, usando a forma correta e citando várias vezes a obra de Jensen.
P RIM EIRO D I A 247
Prim eiro d ia
Cap. vi i i . 9 7
"Ó Izd u bar, o m ais poderoso, poupa m in h a vid a e perdoa o fato de eu , ver -
m e, t er-m e colocado em t eu cam in h o".
Iz: "N ã o exijo t u a vid a. Don d e ven s?"
Eu : "Ven h o do O cid en t e".
97 Em vez disso, o esboço m anuscrito tem: "Sétim a aventura. Prim eiro dia" (p. 626). Mas o esboço corrigido tem: "7. O
grande encontro. Primeiro dia. O herói do O rien t e" (p. 262).
98 8 de janeiro de 1914.
248 LI BE R SECU N D U S 37/38
99 Na mitologia egípcia, as terras ocidentais (a margem ocidental do Nilo) eram a terra dos mortos.
P RIM EIRO D IA 249
Ele cai e solu ça com o u m a crian ça. Fico im óvel, ch ocado, e m al ouso m e-
xer -m e.
Iz: "Ver m e m iserável, onde sugaste este ven en o?"
Eu : O Izd u bar, poderoso, é a ciên cia que t u cham as de ven en o. E m n os-
sa t er r a somos alim en t ados com isso desde a ju ven t u d e, e ist o pode ser u m
dos m ot ivos de n ão nos desen volverm os t ão b em e perm an ecerm os pequenos
com o an ões. Q u an d o olh o para t i, fico pen san do se n ão estamos todos en ven e-
n a d o s de cer t a f o r m a " 10 0 .
Iz: "Ne n h u m forte jam ais m e d erru bou , n en h u m m on st ro re-sist iu à m in h a
força. Mas t eu ven en o, verm e, que t u puseste em m eu cam in h o, paralisou-m e
n a m edula. Tu a m agia ven en osa é m ais poderosa do que o exércit o de Tia m a t 10 1.
(Jazia com o paralisado, esten dido ao com prido n o ch ão). "Deu ses, ajudai, aqui
está deitado vosso filh o, derrubado pela m ord id a n o calcan h ar da cobra in visí-
vel. Tivesse eu te esmagado quando te vi, e n u n ca tivesse escutado tuas palavras!"
Eu : "Ó Izd u bar, grande, dign o de com paixão, tivesse eu sabido que m in h a
ciên cia te pudesse derrubar, t er ia calado m in h a boca d ian t e de t i. Mas eu qu eria
d izer-t e a verdade".
Iz: "T u cham as o ven en o de verdade? O ven en o é verdade? O u a verdade é
ven en o? N ã o d izem t am bém nossos in t érpret es dos astros e nossos sacerdotes
a verdade? N o en t an t o, ela n ão at ua com o ven en o".
Eu : "Ó Izdu bar, a n oit e desce e aqui n o alto fica frio. N ã o devo buscar ajuda
para t i ju n t o às pessoas?"
Iz: "D e ixa estar, é m elh or que m e respon das".
Eu : "Mas n ão podem os filosofar aqu i. Te u estado last im ável requ er cu i-
dados".
Iz: "E u repit o, d eixa estar. Se eu t iver que m orrer esta n oit e, assim deve ser.
Agora respon de-m e".
Eu : "Tem o que m in h as palavras sejam fracas se t iverem que cu rar".
Iz: "Coisas piores n ão podem causar. A desgraça já acon teceu. Port an t o, dize
o que sabes. Talvez ten has u m a palavra m ágica que t ire o efeito do ven en o".
Eu : "Min h as palavras, pod erosíssim o, são pobres e n ão t êm força m ágica".
100 Em DíefróhlícheW íssenschaji ( A gaia ciência) Nietzsche argumenta que o pensar nasceu do cultivo e da
união de vários impulsos que tinham o efeito de venenos: o impulso de duvidar, de negar, de esperar, de
coletar e dissolver ("A doutrina dos venenos", livro 3, seção 113, Frankfurt no Meno: Insel Verlag, 20 0 0 ) .
101 Na mitologia babilónica, Tiam at, a mãe dos deuses, entrou em guerra contra um exército de demónios.
2 $0 L I B E R S E C U N D U S 38/39
Eu : "N ó s nos acostum am os a ele com o tem po, assim com o o ser h u m an o se
acostum a a tudo. Mas já estam os algo paralisados. Con t u d o, este con h ecim en t o
cien t ífico proporcion a por ou t ro lado u m grande ben efício, com o t u vist e. O
que perdem os em força, n ós o recuperam os m u it as vezes através da d om in ação
sobre as forças da n at u reza".
Iz: "N ã o é lam en t ável ser paralít ico dessa form a? Eu , por m in h a vez, prefiro
m in h a p róp ria força às forças d a n at ureza. De ixo as forças ocultas aos covardes
ilu sion ist as e aos m ágicos efem in ados. Q u an d o red u zi a cabeça de alguém a
u m a pasta só, cessa t am bém sua m agia m iserável".
Eu : "Mas t u vês com o o con t at o com n ossa m agia at u ou sobre t i? Penso -
t errível".
Iz: "In felizm en t e ten s razão".
Eu : "Co m o vês, n ão t ivem os escolha. Tivem os de en golir o ven en o da ciên -
cia. Se n ão acon t eceria a n ós todos o que acon t eceu a t i: est aríam os t ot alm en t e
paralisados se t ivéssem os t ido con t at o com ele in ad vert id a e despreparada-
m en t e. Est e ven en o é t ão in ven civelm en t e fort e, que cada qu al, m esm o o m ais
forte, e m esm o os deuses etern os a ele sucum bem . Se am am os a vid a, sacrifica-
m os de preferên cia u m ped aço de n ossa força vit al, a expor-n os à m ort e cert a".
Iz: "Já n ão penso que ven s da afort un ada t er r a do O cid en t e. Tu a t er r a deve
ser m on ót on a, ch eia de paralisia e ren ún cia. An seio volt ar para o O r ien t e, onde
corre a fon te p u ra de n ossa sabedoria dispen sadora da vid a".
Ficam os sentados em silên cio pert o do fogo crepit an t e. A n oit e é fria. Iz d u -
bar respira com dificuldade e olh a para o céu estrelado.
Iz: "O d ia m ais t errível de m in h a vid a - in t erm in ável - tão com prid o - tão
com prid o — m iseráveis artes m ágicas — nossos sacerdotes n ão sabem n ada, caso
con t rário pod eriam t er-m e protegido con t ra isso — até m esm o os deuses m or -
rem , d iz ele. N ã o tendes m ais deuses en t ão?"
Eu : "Nã o , só tem os ain d a as palavras".
Iz: "Mas essas palavras são poderosas?"
Eu : "Afirm a-se que sim , mas n ão se percebe n ada disso".
Iz: "N ó s t am bém n ão vem os os deuses, mas crem os que exist em . Recon h e-
cem os sua atuação nos acon t ecim en t os n at u rais".
Eu : "A ciên cia t irou -n os a capacidade de c r e r " 10 2 .
102 A questão da relação da ciência com a fé foi crítica na psicologia junguiana da religião. Cf. Psicologia e
Religião (1938). O C , 11.
252 L I B E R S E C U N D U S 39/41
rejeit o vai para a part e de m in h a alm a que descon h eço. O que aceito, eu m esm o
o faço; o que rejeit o, ist o é feit o a m im .
Port an t o, o cam in h o de m in h a vid a con d u ziu -m e apesar de tudo por so-
bre os opostos rejeit ados, que u n idos n u m a estrada por dem ais escorregadia
e — ah — t ão dolorosa estavam dian t e de m im . Pisei neles com os pés, mas eles
qu eim aram e gelaram as plan tas de m eus pés. E assim alcan cei o ou t ro lado.
Mas o ven en o da cobra, cu ja cabeça esmagaste, en t ra em t i através da ferid a n o
calcan har, e assim a cobra fica m ais perigosa para t i agora do que era antes. Pois,
o que rejeit o t am bém est á em m in h a n at ureza. Ach o que estava fora e por isso
acred it ei que pod eria d est ru í-lo. Mas está em m im e só assu m iu form a ext erior
t ran sit ória e veio ao m eu en con t ro. Dest r u í sua form a e acred it ei ser u m ve n -
cedor. Mas eu ain d a n ão m e ven ci.
O oposto ext ern o é u m a im agem de m eu oposto in t erior. Q u an d o reco-
n h eci isto, fico quiet o e penso n o abism o de desu n ião em m in h a alm a. O post os
ext ern os são fáceis de ven cer. Eles exist em de verdade, mas apesar disso podes
estar de acordo con tigo mesmo. Vã o qu eim ar e gelar realm en t e as plan tas de
teus pés, mas som en te as plan tas dos pés. Dó i, mas t u cam in h as e olhas para
objetivos distan tes.
Ap ó s t er alcan çado a m aior alt it ude e querer con t em plar m in h a esperan -
ça pelo O r ien t e, acon teceu algo m aravilh oso: assim com o eu m e d irigia para
o O r ien t e, u m ou t ro vin h a apressado do O r ien t e a m eu en con t ro e alm ejava
a lu z que se apagava. Eu qu eria lu z, ele n oit e. Eu qu eria subir, ele descer. Eu
era n an ico com o crian ça, ele grande com o gigante, u m h erói de força atávica.
Eu vin h a paralisado de saber, ele ofuscado pela plen it u d e da lu z. E assim nos
apressamos u m ao en con t ro do outro, ele vin d o da lu z e eu, da escuridão; ele
forte e eu fraco; ele Deu s, eu cobra; ele m u it íssim o velh o, eu ain d a bem jovem ;
ele ign oran t e, eu con hecedor; ele fabuloso, eu austero; ele corajoso, violen t o, eu
covarde, ardiloso. Mas ambos adm irados por nos verm os n a lin h a d ivisória da
m an h ã e d a n oit e.
Co m o eu era u m a crian ça e crescia com o árvore verd ejan t e e d eixava cal-
m am en t e soprar através de m eus ram os o ven t o, gritos distan tes e a agitação
dos opostos, / com o eu era u m m en in o e caçoava de h eróis m ort os, com o eu era 40/ 41
u m adolescente que afasta de si, t an t o à d ir eit a quan to à esquerda, as am arras,
n ão ligava para o poderoso, o cego e im or t al que se d irigia an siosam en te para o
sol poen te, que qu eria p art ilh ar do oceano até seus fun dam en tos e descer até a
254 L I B E R S E C U N D U S 41/43
fon te da vid a. Pequeno é o que se apressa para o levan t e, grande é o que se volt a
para o poente. Por isso eu era pequeno, pois m al h avia saído da profun deza de
m eu poen te. Eu estive lá, para on de ele quer ir. Aqu ele que vai para o poen te
é grande, e algo fácil para ele seria esm igalh ar-m e. Mas u m Deu s que escolhe
o sol para si n ão dá caça a verm es. O verm e, n o en t an t o, visa ao calcan h ar do
poderoso e vai preparar-lh e o ocaso de que precisa. Su a força é grande e cega. E
form id ável vê-lo e despert a medo. Mas a cobra en con t ra seu lugar. U m pouco
de ven en o, e o grande tom ba. As palavras daquele que nasce n ão t êm resson ân -
cia e são amargas. N ã o se t rat a de u m ven en o doce, m as de u m ven en o m or t al
para todos os deuses.
Ah, ele é m eu am igo m ais helo e preferido, ele que se apressa para cá, que seguindo o sol e sem elhante
ao sol, que deseja casar-se com a m ãe incom ensurável Com o têm parentesco próxim o, sim , com o são
totalm ente unos cobra e Deus! A palavra, que era nosso salvador, tornou-se um a arm a m ortal, tornou-se
um a cobra que m orde traiçoeiram ente.
N ã o são m ais opostos ext ern os que bloqu eiam m eu cam in h o, mas é m in h a
p róp ria oposição que vem a m eu en con t ro; levan t a-se gigantescam ente dian t e
de m im , e n ós nos bloqueam os m u t u am en t e o cam in h o. Co m efeito, a pala-
vr a da cobra ven ce o perigo, mas o m eu cam in h o con t in u a bloqueado, pois n a
con t in u ação de m eu cam in h o devo cair da paralisia para a cegueira, en quan t o
o Poderoso, para escapar de sua cegueira, su cu m biu à paralisia. Eu n ão posso
chegar à força ofuscante do sol, assim com o ele, o Poderoso, n ão pode chegar
ao seio ren ascen te d a escuridão. Parece que a m im foi recusada a força; a ele, o
ren ascim en t o, mas eu evit o a ofuscação n a força, e ele evit a a m ort e n o nada.
Min h a esperan ça n a plen it u d e d a lu z se despedaça, assim com o naufraga seu
desejo por u m a vid a con quist ada sem lim it es. Eu aguardei os m ais fortes, e o
Deu s desce até ao m oribu n do.
Muito m ais m istério, fogo solitário, cavernas, for estas grandes e escuras, pequenas povoações dos
poucos, águas fluindosilenciosam ente, noites silenciosas de inverno e verão, poucos navios e carros, e
escondido nas casas o raro e o precioso.
De longe vêm viajantes por estradas solitárias e olham isto e aquilo.
Im possível a pressa, cresce a paciência. / 41/ 42
Um fogo m uito velho e m isterioso arde entre nós, dando pouca claridade, m as calor abundante.
O fogo antiquíssim o, que dom ina toda e qualquer necessidade, deve incendiar-se de novo, pois a noite
do m undo é im ensa efria, e a necessidade égrande.
O fogo bem cuidado reúne os distantes, os que sofrem frio, que m utuam ente não se podem ver nem
tocar, nem vencer o sofrim ento e despedaçar a necessidade.
As palavras ao fogo são am bíguas e profundas e apontam o cam inho certo da vida.
O cego deve ser paralítico afim de não correr para o abism o, e o paralítico deve ser cego afim de não
olhar ávida e desdenhosam ente para as coisas que não pode alcançar.
Am bos desejam estar conscientes de sua profunda desvalia, afim de venerar novam ente o fogo sagra-
do, as som bras, que estão sentadas ao redor da lareira, e as palavras que gravitam em torno da cham a.
Q u an d o t u vives com o aquele que t u és, ele vai in vest ir com fúria con t ra t i,
t u n ão podes d eixar de en con t rá-lo. Ele te fará violên cia e te forçará a serviços
de escravo, se n ão te lem brares de t u a arm a secreta e t em ível, que sem pre usaste
em t eu serviço con t ra t i m esm o. Ast u t o, cru el e frio deves ser, se puseres m ãos
à obra para d eit ar abaixo o belo e bem -am ado. Con t u d o n ão deves m at á-lo,
m esm o quan do ele sofre e se t orce em dores in su port áveis. Am a r r a São Se-
bast ião n u m a árvore e at ira devagar e sen satam en te flecha após flecha em sua
carn e que est r em ece 10 7 . Lem b r a-t e ao fazer isso de que cada flecha que o atinge
é poupada a u m de teus irm ãos m u it o pequen os e paralít icos. Port an t o queres
at irar m uit as flechas. Mas n um erosos por dem ais e quase in ext irpáveis são os
m al-en t en d id os: as pessoas qu erem sem pre d est ru ir o belo e bem -am ado fora
delas, n u n ca p orém d en t ro delas.
105 Em Tipos psicológicos (1921) Jung considerou o pensar e sentir como funções racionais ( O C, 6, § 731).
106 O esboço continua: "Gostarias de prostrá-lo com um tiro atrevido de funda assim como Davi fez com
Golias! (p. 299). Em Transformações esimbolos da libido ( O C, B, § 383S.) Jung aborda o mito babilónico da
criação, no qual Marduk, deus da primavera, combate com Tiam at, mãe dos deuses, e com todo o exército
dela. Marduk mata Tiam at e disso criou o mundo. Por isso o "caçador poderoso" corresponde a Marduk.
107 São Sebastião foi um mártir cristão, perseguido pelos romanos, que viveu no terceiro século. E
representado muitas vezes amarrado numa árvore e alvejado por flechas. A representação mais antiga
encontra-se na basílica de Santo Apolinário, em Ravena.
P RIM EIRO D I A 257
Ele, o belo e bem -am ado, vem ao m eu en con t ro do O r ien t e, vem daquele
lugar aonde eu m e esforçava por chegar. Ad m irad o, vi sua força e esplendor, e
descobri que ele p rocu ra alcan çar exat am en t e aquilo que eu h avia abandonado,
ist o é, o am on toado popu lacion al n a obscuridade. Percebi a cegueira e ign o-
rân cia de sua aspiração, que se opu n h a ao m eu desejo, e eu lh e abri os olhos e
paralisei com picada ven en osa seus m em bros fortes. Ele ficou deitado ch or an -
do com o crian ça, com o aquilo que era, u m a crian ça, u m a an t iqu íssim a crian ça
grande, n ecessitada do Logos h um an o. Assim jazia dian t e de m im , indefeso,
m eu cego, en xergan do só pela m etade, Deu s paralít ico. Fiq u ei tom ado de com -
paixão, pois percebi com t ot al clareza que n ão pod eria m or r er -m e, ele que m e
veio ao en con t ro desde o n ascen te, daquele lugar onde ele pod eria estar bem ,
mas aonde eu jam ais con seguiria chegar. Eu possu ía agora aquele que eu p r ocu -
rava. O O r ie n t e n ada m ais m e pod eria dar do que ele, o doen te, o sucum bido.
108 Isto se refere a H b 10,31: "É terrível cair nas mãos do Deus vivo".
258 LI BE R SECU N D U S 44/ 46
o o u vid o d a d ivin d a d e . Som en t e t eu grit o de pavor faz com que Deu s pare. E
en t ão vês que t am bém o Deu s t rem e, pois est á dian t e de sua face, de seu olh ar
vid en t e em t i, e ele sente u m a força descon h ecida. O Deu s t em m edo h um an o.
Se m eu Deu s est iver paralít ico, preciso ficar com ele, pois n ão posso aban -
don ar o bem -am ado. Sin t o que ele é o m eu qu in h ão, m eu irm ão, que estava n a
lu z e n ela crescia, en qu an t o eu [estava] n o escuro e m e alim en t ava de ven en o.
E b om saber disso: quan do n ós estam os n a n oit e, nosso irm ão est á n a p len i-
tude d a lu z, realiza suas grandes obras, d esped aça o leão e m at a o dragão. E
ret esa seu arco para alvos cada vez m ais d ist an t es, até que descobre o sol que
viaja p ara o alto e ao qu al gost aria de caçar. Mas quan do d escobriu seu despojo
m ais valioso, cresce t am b ém em t i o desejo pela lu z. T u arran cas as am arras e
te diriges para o lugar da lu z n ascen te. E assim cam in h ais apressados u m ao
en con t ro do outro. Ele julgava poder capt u rar o sol e se d efron t ou com o ver -
m e d a som bra. T u im agin avas que n o O r ie n t e poderias beber da fon te de lu z
e capt uras para t i o gigante de ch ifres, d ian t e do qu al t u cais de joelh os. Su a
n at u reza é cega de cobiça desm edida e de força im pied osa; m in h a n at u reza é
lim it ação que vê e a in capacidade do esperto. Ele possui em abu n d ân cia o que
m e falt a. Por isso t am b ém n ão quero aban d on á-lo, o deu s-t ou ro, que ou t rora
paralisou a coxa de Jacó e o qu al eu p aralisei agora para m i m 10 9 . Go st ar ia de
apossar-m e de sua força.
É por isso u m esforço cuidadoso m an t er com vid a alguém gravem en te fe-
rido, para que sua força m e seja con servada. D e n ada sen t im os m ais falta do
que da força d ivin a. Dizem os: "Sim , sim , assim d everia ou pod eria ser. Ist o ou
aquilo d everia ser alcan çado". Falam os assim , ficam os parados assim e olh am os
con stran gidos ao nosso redor se em algum lugar algum a coisa vai acontecer. E
quan do algum a coisa está para acontecer, observam os e dizem os: "Sim , sim ,
en t en dem os, é ist o ou aquilo, é sem elh an t e a ist o ou àqu ilo". Assim falam os,
ficam os parados e olh am os ao nosso redor para ver se algo m ais vai acon t e-
109 Isto refere-se à luta de Jacó contra o anjo, em Gn 32,24-29: "Quando Jacó ficou sozinho, um homem
se pôs a lutar com ele até o romper da aurora. Vendo que não podia vencê-lo, atingiu-lhe a articulação da
coxa de modo que o tendão da coxa de Jacó se deslocou enquanto lutava com ele. O homem disse a Jacó:
'Solta-me, pois já surge a aurora'. Mas Jacó respondeu: 'Não te soltarei se não me abençoares'. E o homem
lhe perguntou: 'Q u al é teu nome?' 'Jacó', respondeu. E ele lhe disse: 'De ora em diante já não te chamarás
Jacó, mas Israel, pois lutaste com Deus e com homens e venceste. E Jacó lhe pediu: 'Dize-m e por favor teu
nome'. Mas ele respondeu: 'Para que perguntas por meu nome? E ali mesmo o abençoou".
SEGU N D O D I A 259
cer em algum lugar. Sem pre acontece algum a coisa, mas n ós n ão acon tecem os,
pois nosso Deu s est á doen te. D e t an t o ver e en ten der, n ós o m atam os com u m
olh ar ven en oso de basilisco. N ó s tem os de pen sar em su a cura. E eu o sen t i
n ovam en t e com o cert eza de que m in h a vid a seria p art id a ao m eio se n ão con -
seguisse cu rar m eu Deu s. Por isso fiqu ei com ele du ran t e a lon ga n oit e fria.
[Ilust ração 4 4 ] / [Ilust ração 4 5 ] 110 / 44/ 46
Segundo dia
Cap . ix.
110 Legenda da ilustração: "Atharva-veda 4,14". Atharva-veda 4,1,4 é um encantamento para estimular a
virilidade: "A t i, planta que Gandharva desenterrou para Varuna, quando sua virilidade decaiu, a t i que
causas força, nós te desenterramos. / Ushas (Aurora), Surya (o sol) e este encantamento meu; o touro
Pragâpati (o senhor das criaturas) irá despertá-lo com seu fogo poderoso! / Esta erva encher-te-á de tanta
força poderosa que, quando estiveres excitado, exalarás calor como uma coisa incandescente! / O fogo das
plantas e a essência dos touros despertá-lo-ão! Tu , ó Indra, controlador dos corpos, põe a força poderosa
dos homens nesta pessoa! / Tu (ó erva) és a seiva primogénita das águas e também das plantas. Ademais,
tu és o irmão de Soma e a força poderosa do antílope macho! / Por favor, ó Agn i, por favor, ó Savitar, por
favor, ó deusa Sarasvatí, por favor, ó Brahmanaspati, retesa o pasas como um arco! Eu reteso teu pasas
como uma corda de arco no arco. Abraça (as mulheres) como o antílope macho abraça a gazela com
(força) sempre inesgotável! / Concede-lhe a força do cavalo, do jumento, do bode e do carneiro, e também
a força do touro, ó controlador dos corpos (In d ra)!" (SacredBooksoftheEast, 42, p. 31-32). E uma referência à
cura do deus-touro ferido, Izdubar, mencionado no texto.
111 Em vez disso, o esboço manuscrito tem: "Dorm i pouco; sonhos confusos me perturbaram mais do que me
inspiravam a palavra salvadora" (p. 686).
112 9 de janeiro de 1914.
26o LI BE R SECU N D U S 46/ 47
113 O esboço continua: "(assim falou outra voz em m im como um eco)" (p. 309).
SEGU N D O D I A 261
Eu : "Me u prín cipe, poderoso, ouve: t ive u m a id eia que talvez traga a salva-
ção. Est ou pen san do que t u n ão és real, mas apenas u m a fan t asia".
Iz: "Sin t o arrepios por causa desses teus pen sam en tos. Eles são m ort íferos.
Q u eres d eclarar-m e ir r eal / - depois que m e paralisaste m iseravelm en t e?" 46/ 47
Eu : "Talvez m e t en h a expressado de form a equivocada, por dem ais n a lin -
guagem da razão. N ã o preciso n at u ralm en t e que sejas t ot alm en t e irreal, mas
apenas t ão real quan t o u m a fan tasia. Se pudesses aceit ar ist o, m u it a coisa est a-
r ia gan h a".
Iz: "O que se gan h aria com isso? T u és u m d em ón io at orm en t ad or".
Eu : "Dign o de com paixão, eu n ão quero at orm en t ar. A m ão do m éd ico n ão
quer at orm en t ar, m esm o quan do ela faz doer. N ã o poderias aceit ar o fato que
és u m a fan tasia?"
Iz: "Ai de m im ! E m que m agia queres sufocar-m e? Ist o ajudará se eu m e
con siderar u m a fan tasia?"
Eu : "T u sabes que o n om e que trazem os sign ifica m u it o. Sabes t am bém que
m uit as vezes se dá ou t ro n om e aos doentes para cu rá-los, pois com o n ovo
n om e recebem u m a n ova n at u reza. Te u n om e é t u a n at u reza".
Iz: "Ten s razão. Ist o o d izem t am bém nossos sacerdotes".
Eu : "Port an t o, queres ad m it ir que és u m a fan tasia?"
Iz: "Se ist o ajuda - sim !"
A voz in t er ior falou-m e en t ão da seguinte m an eira: Agor a ele é u m a fan -
tasia, mas apesar disso a situação está ext rem am en t e en rolada. Mesm o u m a
fan tasia n ão se d eixa sim plesm en t e negar e m an ip u lar com resign ação. Algu -
m a coisa precisa acon tecer con com it an t em en t e. Em b o r a seja u m a fan t asia -
port an t o n ot avelm en t e volát il — acho que vejo u m a possibilidade: agora posso
t om á-lo sobre os om bros. Ap r o xim ei-m e en t ão de Izd u bar e disse:
"Fo i en con t rado u m cam in h o. T u ficaste leve, m ais leve que u m a pen a. Ago-
ra posso carregar-t e". Eu o peguei e levan t ei do ch ão; é m ais leve que o ar, e
t en h o até dificuldade em m an t er m eus pés n o ch ão, pois m in h a carga m e faz
flutuar.
Iz: "Ist o foi u m golpe de m estre. Para on de m e levas?"
Eu : "Vo u levá-lo para a t erra do O cid en t e. Meus com patriotas vão alegrar-se
em poder receber u m a tão grande fan tasia. Q u an d o t iverm os deixado para trás
as m on t an h as e chegado às cabanas h ospit aleiras das pessoas, posso procu rar
com calm a u m rem éd io que o fará recuperar-se com plet am en t e".
262 L I B E R S E C U N D U S 47/ 48
Co m ele às co st a s, d e sci c u id a d o s a m e n t e o e s t r e it o c a m i n h o d e p e d r a s, t e -
m en do m ais ser arrebatado aos ares pelo ven t o do que ser arrastado ao abism o
por m in h a carga. Est o u preso à m in h a carga superleve. Fin alm en t e chegamos
ao vale, e aí está t am bém o cam in h o das dores quen t e-frio. Mas dessa vez u m
ven t o orien t al bem forte, sopran do através d a garganta de pedras, levou -m e
por cim a dos cam pos para lugares h abitados. O cam in h o doloroso n ão at in giu
as plan t as de m eus pés. Alad o, passo apressado por t er r a bon it a. Dian t e de m im
an d am dois n a estrada. São Am ó n io e o Verm elh o. Q u an d o nos aproxim am os
deles por trás, eles se vir ar am e correram com gritos pavorosos pelos cam pos
afora. Port an t o, m eu aspecto d evia ser est ran h íssim o.
Iz: "Q u e figuras disform es são essas? São teus com pat riot as?"
Eu : "N ã o são pessoas, são as cham adas relíquias do passado que en con -
t ram os m uit as vezes n o O cid en t e. An t igam en t e t in h am grande im port ân cia.
Agora são em pregados sobretudo com o pastores de ovelh as".
Iz: "Q u e t er r a esquisit a! Mas olh a, n ão est á ali u m a cidade? N ã o queres ir
para lá?"
Eu : "Nã o , Deu s m e livre, n ão quero provocar u m m o t im , lá m or am os escla-
recidos. T u n ão percebes seu ch eiro? Eles são deveras perigosos, pois cozin h am
os ven en os m ais fortes, dos quais até eu t en h o de m e precaver. As pessoas de
lá são t ot alm en t e paralít icas, en volvidas n u m vapor m ar r om de ven en o, rod ea-
das por m áquin as baru lh en t as que m at raqu eiam e só conseguem m over-se por
m eios art ificiais. / Mas n ão te preocupes. Já est á tão escuro agora, que n in gu ém
nos vê. Alé m disso, n in gu ém afirm aria t er-m e vist o. Con h eço aqui u m a casa
solit ária. Lá t en h o amigos con fiáveis que nos darão hospedagem por esta n oit e.
Ch egu ei com Izd u b ar a u m jar d im escuro e quieto, n o qual h avia u m a casa
silen ciosa. Escon d i Izd u bar debaixo dos galhos frondosos e bem baixos de u m a
árvore e fu i em d ireção à p ort a da casa para bater. O lh e i pen sat ivam en t e para
a port a: é pequen a dem ais. Nu n ca con seguirei fazer passar n ela Izdu bar. Mas
u m a fan tasia n ão precisa de espaço! Por que n ão cheguei antes a esta id eia ex-
celen te? Volt ei ao jar d im , apert ei sem esforço algum Izd u b ar até o t am an h o de
u m ovo e o coloquei n o bolso. En t r e i assim n a casa h ospit aleira, on de Izd u b ar
h averia de en con t rar a cura.
SEGU N D O D I A 263
114 Isto se refere à cena do texto que descreve como Jung reduziu Izdubar ao tamanho de um ovo para
possibilitar-lhe entrar na casa a fim de poder ser curado. Jung disse a An iela Jaffé, a respeito destas seções,
que algumas das fantasias foram acionadas pelo medo, como o capítulo sobre o demónio e o capítulo
sobre Gilgamesh- Izdubar. De certo ponto de vista era uma estupidez ele precisar encontrar uma forma
de ajudar o gigante, mas ele achava que, se não o fizesse, ele teria fracassado. Pagou pela ridícula solução
percebendo que havia capturado um Deus. Muitas destas fantasias eram uma combinação diabólica de
sublime e ridículo (MP, p. 147-148).
115 No esboço a frase soa assim: "Quantos deuses e quantas vezes foi o Deus interpretado como fantasia, e
assim se acredita ter acabado com ele" (p. 314).
116 O esboço continua: "Nós, humanos, pensamos que uma fantasia não existe, e quando dizemos que algo
é fantasia, então está completamente aniquilada" (p. 314). Em 1932, Jung comentou sobre o descrédito
contemporâneo da fantasia ("Da formação da personalidade". O C , 17, § 302).
117 Isto parece referir-se ao capítulo seguinte.
118 São Cristóvão (em grego "carregador de Crist o") foi um mártir do século I I I . Segundo a lenda, teria
ele procurado um eremita e perguntado como poderia servir a Jesus. O eremita sugeriu-lhe que ajudasse
as pessoas a atravessarem um rio perigoso. E ele assim o fez. Cert a ocasião, uma criança pediu-lhe que
a levasse para o outro lado. Ele achou a criança mais pesada do que qualquer outra pessoa; e a criança
revelou-lhe que ela era Cristo, carregando os pecados do mundo.
264 LI BE R SECU N D U S 4849
devem os ser crist os, en t ão nosso ju go é suave e nosso peso, leve. Est e m u n d o
palpável e visível é u m a das realidades, mas a fan tasia é a ou t ra das realidades.
En qu an t o d eixarm os o Deu s visível e palpável fora de n ós, ele é in carregável e
sem esperan ça. Mas se t ran sform arm os o Deu s n u m a fan tasia, est ará em n ós e
leve de se carregar. Deu s fora de n ós au m en t a o fardo com tudo o que é pesado,
Deu s em n ós t orn a leve todo o pesado. Por isso todos os crist óforos t êm costas
en curvadas e fôlego ofegante, pois o m u n d o é pesado.
[ I H 48/ 2] H a m u it os que gost ariam de buscar aju da para seu Deu s doen te
e que foram engolidos pelas cobras e dragões que est ão de t ocaia n o cam in h o
para a t er r a do sol. Eles su bm ergiram n o d ia superclaro e se t orn aram h om en s
da escuridão, pois seus olhos foram cegados. Agora vagueiam por aí com o som -
bras, falam da lu z e n ão en xergam n ada. Mas seu Deu s está em tudo o que eles
n ão veem : ele está n a t erra escura do O cid en t e e aguça olhos que en xergam ,
ajuda a cozin h ar o ven en o e d irecion a as cobras para os calcan h ares dos cegos
que p rat icam a violên cia. Por isso, se fores in t eligen t e, levas o Deu s ju n t o, en t ão
sabes on de ele está. Se n ão o t iveres con tigo n a t erra do O cid en t e, ele virá sobre
t i em atropelo d u ran t e a n oit e, com couraça t ilin t an t e e m achado esm agador
de lu t a 12 0 . Se n ão o t iveres con tigo n a t erra do O r ien t e, pisarás sem querer n o
verm e d ivin o, que espreit a t eu calcan h ar despreven ido. /
119 Mt 11,30.
120 Isto é, como Izdubar veio a Jung.
SEGU N D O D I A 265
[Ilu st ração 5 0 ] 12 2
0 Natal chegou. O Deus está no ovo.
Estendi para m eu Deus um tapete, um tapete verm elho e m uito valioso do Oriente.
Que esteja cercado pelo brilho da m agnificência de sua terra oriental.
Sou a m ãe, a serva pura que concebeu e não soube com o.
Eu sou o pai cuidadoso que protege a serva.
Eu sou o pastor que recebeu a m ensagem , quando apascentava seu rebanho durante a noite em pastos
escuros 125.
121 O título foi omitido no volume caligráfico, e foi mantido aqui com base no esboço.
122 As ilustrações 50-64 representam simbolicamente a regeneração de Izdubar.
123 Lc 2,8-U: "Naquela mesma região havia uns pastores no campo, vigiando à noite o rebanho. Um anjo do
Senhor apresentou-se diante deles, e a glória do Senhor os envolveu de luz, ficando eles muito assustados.
O anjo lhes disse: Não temais, pois vos anuncio uma grande alegria, que é para todo o povo. Nasceu-vos
hoje, na cidade de Davi, um Salvador, que é Cristo Senhor".
124 Mt 2,1-2: "Tendo nascido Jesus em Belém da Judeia no tempo do rei Herodes, alguns magos do O rien te
chegaram a Jerusalém e perguntaram: Onde está o rei dos judeus, que acaba de nascer? Vim os sua estrela
no O rien te e viemos adorá-lo".
125 O s atributos do Deus são elaborados nesta seção como os atributos de Abraxas, no segundo sermão em
"Aprofundamentos". Cf. adiante, p. 456.
AS E N C AN T AÇ Õ E S 267
126 Em "Dream s", Jung anotou a 3 de janeiro de 1917: "I n Lib. nov. snake image I I I incent." [estímulo à
imagem da serpente em Líber Novus] (p. 1). Isto parece referir-se a esta imagem.
127 Legenda da ilustração: "Brahmanaspati". Julius Eggling nota que "Brihaspati ou Brahmanaspati, o senhor
da oração ou do culto, toma o lugar de Agn i como representante da dignidade sacerdotal... No Rig-Veda
X, 68,9... diz-se que Brihaspati descobriu (avindat) a aurora, o céu e o fogo (agni) e expulsou as trevas com
sua luz (arka, sol); parece representar antes o elemento da luz e do fogo em geral" (SacredBooksoftheEast 12,
p. xvi.) Cf. tb. nota da ilustração 45, nota l i o , p. 259.
268 LI BE R SECU N D U S 54/59
12 8
54/ 55 / [ Ilu s t r a ç ã o 55]
Um a palavra que nunca foi pronunciada.
Um a luz que jam ais brilhou.
Um a confusão sem igual.
E um a estrada sem fim .
128 O barco solar é um motivo comum no Antigo Egito. O barco era considerado o meio típico de
locomoção do sol. Na mitologia egípcia o deus sol lutou contra o monstro Aphophis, que tentou engolir
o barco solar quando este atravessava o céu cada dia. Em Transformações e símbolos da libido, Jung analisou o
"disco solar vivo" egípcio ( O C , B, § 153) e o motivo do monstro marinho (§ 549s.). Na revisão que fez
deste texto em 1952, observou que a batalha com o monstro marinho representava a tentativa de libertar
a consciência do ego do controle do inconsciente (Símbolos da transformação. O C , Y § 539). O barco solar
assemelha-se a algumas das ilustrações contidas no Livro egípcio dos mortos ( W ALLI S BU D G E , E.A. (org.).
Londres: Arkan a, 1899/ 1985) (isto é, as vinhetas nas p. 390, 4 0 0 e 404). O remador é geralmente um
Hórus com cabeça de falcão. A viagem noturna do Deus Sol através do mundo inferior é descrita no
Amduat, e foi considerada um processo simbólico de transformação. Cf. ABT, T. & H O R N U N G , E.
Knowledgefor the Afierlífe - Th e Egyptian Am duat - A Quest for Immortality. Zurique: Livin g Hum an
Heritage, 2003.
AS E N C AN T AÇ Õ E S 269
/ [Ilu st ração 58 ] 12 9
Nós som os m iseráveis sem ti e esgotam os nossos cantos.
Nós te dissem os todas as palavras que nosso coração nos deu.
O que queres m ais?
O que devem os realizar para ti?
Abrim os para ti todas as portas.
Dobram os nossos joelhos aonde tu quiseres.
Vam os a todas as direções do céu, segundo teu desejo.
Trazem os o que está em baixo para cim a, e o que está em cim a, nós o tornam os o inferior, conform e
m andares.
129 Em "Sonhos", Jung escreveu: "17 I 1917: Hoje de noite: avalanches assustadoras e terríveis despencam
das montanhas, como nuvens colossais vão encher o vale, em cuja extremidade, no lado oposto, eu me
encontrava. Eu sei que preciso fugir para o alto, diante da terrível catástrofe. Este sonho foi bem explicado
na mesma data no Livro Negro. Em 17.01.1917 surgiu também o desenho vermelho da mancha na p. 58, do
Lib. Nov. Em 18.01.1917, li no jornal sobre a grandiosa formação atual das manchas do sol". O que segue
é uma paráfrase do apontamento de 17 de janeiro de 1917 no Livro Negro 6: Jung pergunta o que é que o
enche de ansiedade e pavor, o que está caindo da alta montanha. Sua alma lhe diz que ajude os deuses e
lhes ofereça sacrifícios. Ela lhe diz que o verme rasteja até o céu, começa a cobrir as estrelas e com uma
língua de fogo devora a mansão dos sete céus azuis. Ela lhe diz que também ele será devorado e que ele
deve rastejar para dentro da pedra e aguardar no estreito abrigo até que a torrente de fogo passe. Das
montanhas cai neve, porque o hálito ígneo cai de cima das nuvens. O deus está chegando, Jung deve
preparar-se para recebê-lo. Jung deve esconder-se na pedra, já que o deus é um fogo terrível. Precisa
permanecer quieto e olhar para dentro, de modo que o deus não o consuma nas chamas (p. i$2s.).
270 L I B E R S E C U N D U S 59/62
[Ilu st ração 5 9 ] 13 0 /
Perguntam os à terra.
Perguntam os ao céu.
Perguntam os ao m ar.
Perguntam os ao vento.
Perguntam os ao fogo.
Nós te procuram os em todos os povos.
Nós te procuram os junto a todos os reis.
Nós te procuram os junto a todos os sábios.
Nós te procuram os na nossa própria cabeça e coração.
E nós te encontram os no ovo. [Ilu st ração 6 0 ] /
130 Legenda da ilustração: "hiranyagarbha". No Rig-Veda, hiranyagarbha era a semente primordial da qual
nasceu Brahma. No exemplar de Jung do vol. 32 dos Livros Sagrados do Oriente (H in os védicos), a única seção
que está destacada é a seção inicial, que começa com um hino "Ao Deus Desconhecido". Este começa: "No
início surgiu a Criança Dourada (Hiranyagarbha); logo que nasceu, foi o único senhor de tudo que existe.
Estabeleceu a terra e este céu: - Q uem é o Deus ao qual devemos oferecer sacrifício?" (p. 1). No exemplar
de Jung dos Upanishads, nos Livros sagrados do Oriente, há um pedaço de papel na p. 311 do Maitrâyana-
Brâhmana-Upanishad, e uma passagem que descreve o Si-mesmo, que começa: "E o próprio Si-mesmo é
também chamado... Hiranyagarbha" (SacredBooksoftheEast. Vol. 15, parte 2).
AS E N C AN T AÇ Õ E S 271
Meu Deus, eu te amo, com o um a m ãe am a o não nascido que ela carrega debaixo de seu coração.
Cresce no ovo do Oriente, alim enta-te de seu am or, bebe as seivas de m inha vida, para que te tornes um
Deus brilhante. Precisam os de tua luz, ó criança. Um a vez que andam os na escuridão, ilum ina nosso
cam inho. Tua luz brilhe diante de nós, teu fogo esquente o frio de nossa vida. Não precisam os de tua
força, mas da vida.
62/ 63 I De que nos aproveit a a força? N ã o querem os dom in ar. Q u erem os viver,
querem os a lu z e o calor, e por isso precisam os de t i. Assim com o a t er r a e a l-
guns corpos vivos precisam do sol, precisam os n ós com o espírit os de t u a lu z e
calor. U m espírit o sem sol t orn a-se u m parasit a do corpo. Mas o Deu s alim en t a
63/ 64 o espírit o. [Ilust ração 63] / [Ilu st ração 64] I 3 U 3 3 /
64/ 65
132 Em "Sonhos", Jung anotou a 4 de fevereiro de 1917: "Começado o trabalho sobre a Abertura do O vo
(ilust r.)" (p. 5). Isto mostra que a ilustração retrata a regeneração de Izdubar do ovo. A respeito do barco
solar nesta ilustração, cf. ilustração 55.
133 Legenda da ilustração: "çatapatha-brâhmana 2,2,4". Çatapatha-brâhmana 2,2,4 (SacredBooksoftheEast.
Vol. 12) apresenta a justificação cosmológica que está por trás do Agnihotra. Começa descrevendo como
Prajapati, desejando ser reproduzido, produziu Agn i de sua boca. Prajapati ofereceu-se a Agn i e salvou-o
da Morte, porque estava prestes a ser devorado. O Agnihotra (lit. cura pelo fogo) é um ritual védico
realizado ao nascer do sol e ao pôr do sol. Aquele que o executa purifica-se, acende um fogo sagrado, recita
versos e uma oração a Agn i.
A ABERT U RA D O O VO 273
Qual fum aça isto saiu de dentro, e de repente está Iz dubar de pé diante de m im , enorm e com o um gigan-
te, transform ado eperfeito. Seus m em bros estão sadios, e eu não encontro neles vestígio do dano sofrido.
"Onde estou? Com o é apertado aqui - com o está escuro - com o está frio - estou no túm ulo? Onde
estive? Pareceu-m e que estive lá fora no universo - acim a e abaixo de m im um céu escuro e sem fim ,
cintilante de estrelas
Caindo do m ais alto para o m ais baixo e do m ais baixo para o m ais alto agitado luz ente para cim a -
"Curado? Estive algum a vez doente? Quem está falando de doença? Eu era sol, todo sol Eu sou
o sor.
[2] [ I H 6 6 ] Acon t eceu que eu abri o ovo e que o Deu s saiu do ovo. Est ava per-
feit am en t e bem e b rilh ava em con st it u ição t ran sform ada; eu m e ajoelh ei com o
crian ça e n ão con segui en t en der o m ilagre. Ele que jazia com p rim id o n o casulo
do prin cípio, levan t ou -se e n ão se en con t rou n ele n en h u m vest ígio de doen ça.
E quan do eu im agin ei que h avia pren d id o o Fort e e segurado n o côn cavo d a
mão, era o p róp rio sol.
Eu viajei para o O r ien t e, para o n ascen te do sol. Eu m esm o qu eria nascer
com o se fosse o sol. E u qu eria agarrar o sol e com ele su bir para o d ia resp lan -
136 Roscher observa que, "como Deus, Izdubar está associado ao deus-sol" (Ausfuhrlíches Lexikon dergríechíschen
und rõmíschen Mythologíe. Vol. 2, p. 774). A incubação e renascimento de Izdubar segue o padrão clássico dos
mitos solares. Em Das Zeítalter des Sonnengottes, Leo Frobenius salienta o difundido motivo de uma mulher
engravidando através de um processo de concepção imaculada e dando à luz o deus-sol, que se desenvolve
num período de tempo notoriamente curto. Em algumas formas, fica incubado num ovo. Frobenius
relaciona isto ao nascer e ao pôr do sol no mar (Berlim : G. Reimer, 1904, p. 223-263). Jung cita esta obra
em diversas passagens em Transformações e símbolos da libido (1912).
137 Em Tipos psicológicos (1921) Jung comentou o motivo do Deus renovado: "O Deus renovado significa uma
atitude renovada de vida intensa, uma nova consecução de vida, porque psicologicamente Deus significa
sempre o valor maior, a maior quantidade de libido, a maior intensidade de vida, o ótimo da vitalidade
psicológica" ( O C, 6, § 301).
A ABERT U RA D O O VO 275
decen te. Mas ele veio ao m eu en con t ro e in d icou -m e o cam in h o. Tive de ou vir
dele que m e h avia sido t irad a t oda possibilidade de chegar ao n ascen te. Mas, ele
qu eria apressar-se para o poen te, para descer com o sol ao seio da n oit e, foi p a-
ralisado por m im e foi-lhe t irad a t oda esperan ça de chegar ao bem -aven t u rad o
O cid en t e.
Mas observa! Eu ap rision ei o sol sem o saber e o carreguei em m in h a m ão.
Ele, que qu eria p ôr -se com o sol, en con t rou por m eu in t erm éd io o seu ocaso.
Eu m esm o t orn ei-m e sua m ãe n ot u rn a, que ch ocou o ovo do prin cípio. E ele
n asceu ren ovado, ren ascido para m aior glória.
Mas en quan t o ele nasce, eu chego ao ocaso. En q u an t o eu su jeit ava o Deu s,
sua força fluía para m im . Mas en quan t o o Deu s descansava n o ovo e esperava
seu com eço, m in h a força passou para ele. E en quan t o se erguia relu zen t e, eu
estava prost rado sobre m eu rosto. Ele t om ou m in h a vid a consigo. Tod a m in h a
força estava com ele. Min h a alm a n adava com o peixe em seus m ares de fogo.
Meu h u m an o, p orém , estava deit ado n a h orrip ilan t e frialdade d a som bra d a
t erra e afundava cada vez m ais n a escuridão m ais in ferior. Tod a lu z se ret irara
de m im . O Deu s ergueu-se n a t er r a do O r ien t e, e m eu eu caiu n o h or r or do
m u n d o in ferior. Co m o u m a p art u rien t e t errivelm en t e dilacerada e sangrando
sopra sua vid a sobre o recém -n ascid o, e n o olh ar m oribu n d o u n ifica m ort e e
vid a, assim jazia eu , a m ãe do d ia, u m a presa da n oit e. Me u Deu s m e d ilacerou
h orrivelm en t e, bebeu a seiva de m in h a vid a, bebeu para d en t ro de si a m áxim a
força de m eu am or e t orn ou -se m agn ífico e fort e com o o sol, u m Deu s curado
em que n ão h á m an ch a n em falta. Tir o u - m e a asa, rou bou -m e a in t u m escên cia
de m eus m úsculos, o poder de m in h a von t ade desapareceu com ele. A m im
d eixou -m e im p ot ên cia e lam úrias.
/ Eu n ão sabia com o m e acon t eceu que agora m esm o desapareceu de m eu
seio m at ern al tudo o que era poderoso, belo, ch eio de alegria, sobre-h um an o;
n ada m e rest ou do ouro brilh an t e. Terrível e in grat am en t e, o pássaro do sol
abriu suas asas e levan t ou voo para o espaço in com en su rável. Rest aram -m e
cascas quebradas, casulo d eplorável de seu prin cípio, e o vazio d a profun deza
abriu-se em baixo de m im .
Ai da m ãe que dá à luz u m Deus! Se der à luz u m Deus ferido e cheio de dores,
u m a espada traspassará sua alma. Mas se der à luz u m Deus curado, abrir-se-á para
ela o in fern o do qu al sairão m on st ros serpen t ários, que sufocarão a m ãe com
bafo pest ilen t o. O n ascim en t o é difícil, mas m il vezes m ais difícil é o p ós-p art o
276 L I B E R S E C U N D U S 67/ 68
i n fe r n a l 13 8 . At r á s do filh o d i vi n o v ê m t o d o s os d r a g õ e s e m o n s t r o s s e r p e n t á r io s
do vazio etern o.
O que rest a da n at u reza h u m an a, quan do o Deu s se t or n ou m aduro e u su r-
pou t oda a força para si. Tu d o o que é in capaz, tudo o que é sem força, todo
o et ern am en t e t rivial, todo o vazio, todo o desfavorável e p reju d icial, todo o
repugn an te, avilt an t e, dest ruidor, todo o absurdo, tudo o que en cerra em si a
in son dável n oit e da m at éria, ist o é o p ós-p art o do Deu s e a deform idade h or -
rip ilan t e de seu irm ão in fern al.
O Deu s sofre quan do o ser h u m an o n ão assume suas trevas. Por isso as pes-
soas t iveram que t er u m Deu s sofredor, en quan t o elas sofriam do m al. Sofrer
do m al sign ifica que t u ain d a amas o m al e n o en t an t o n ão o amas m ais. T u te
prom etes ain d a algo disso, m as n ão queres ad m it ir, por m edo, que podes desco-
b r ir que apesar disso ain d a amas o m al. Por isso sofre o Deu s, porque t u , ain d a
am an do o m al, sofres disso. T u n ão sofres disso porque tens de recon h ecer o
m al, mas porque ele ain d a te p rop orcion a u m a diversão secreta e porque ele
parece p rom et er-lh e algum prazer em algum a ocasião descon h ecida.
En q u an t o t eu Deu s sofre, tens pen a dele e de t i. Co m isso poupas t eu in fer-
n o e prolongas seu sofrim en t o. Se t u , sem pen a secreta de t i, quiseres cu rá-lo, o
m al te cairá nos braços, cu ja exist ên cia t u reconheces em geral, mas cu ja força
in fern al em t i m esm o t u n ão conheces. Tu a ign orân cia do m al provém da in o -
cên cia prévia de t u a vid a, do sossego da con ju n t u ra e da ausên cia do Deu s. Mas
quan do o Deu s se aproxim a, t u a n at u reza se agita, e o lado negro da profun deza
vem à t on a.
O ser h u m an o est á en t re o ch eio e o vazio. Q u an d o sua força se un e ao
cheio, ele atua n o ch eio m oldan do. Est a m od elação é sem pre de qualquer m odo
boa. Q u an d o sua força se un e ao vazio, ela at ua dissolven do e dest ruin do, n ão
poden do o vazio ser m odelado jam ais, mas só am bicion a saciar-se à cu st a do
cheio. Assim u n id a, a força h u m an a faz do vazio o m al. Q u an d o t u a força m o -
dela o ch eio, ela assim procede devido à sua u n ião com o cheio. Mas para que
tua m odelagem perdu re, é n ecessário que t u a força fique ligada a ela. At ravés
da con st an t e m odelagem perdes aos poucos t u a força, quan do fin alm en t e t oda
a força fica u n id a ao m odelado. Ao fin al, quan do julgas estar rico, ficaste pobre
de t i m esm o, ain d a que a serviço d a m elh or causa, t u vais com eçar a od iá-lo
secret am en t e, m esm o con t r a t eu p r óp r io desejo. Ao b om , que com p rom et eu
sua força, t o r n ar -se-á in felizm en t e fácil dem ais en con t r ar escravos p ara seu
serviço, pois exist em m u it os que n ão d esejam ou t ra coisa do que alien ar-se
de si sob u m b om pret ext o.
T u sofres com o m al porque n ão o amas con scien t em en t e n o ocu lt o n em
para t i m esm o. Gost arias de evit á-lo e com eçar a od iar o m al. E ou t ra vez es-
tás ligado ao m al at ravés de t eu ód io, pois se o amas ou odeias, ist o con t in u a
sendo o m esm o para t i: estás ligado ao m al. Deve-se aceit ar o m al. O que n ós
querem os perm an ece em n ossa m ão. O que n ão querem os, e assim m esm o
é m ais fort e do que n ós, arrast a-n os ju n t o e n ão podem os d et ê-lo sem n os
p reju d icar a n ós m esm os. Pois n ossa força perm an ece en t ão n o m al. Port an t o
devem os aceit ar nosso m al, sem am or e sem ód io, recon h ecen do que ele est á
aí e que precisa t er sua part e n a vid a. Dessa m an eir a t iram os dele a força para
nos ven cerm os.
m at éria, que está despida da força do b rilh o d ivin o, é vazia e ten ebrosa. Q u a n -
do o Deu s sai da m at éria, sen t im os o vazio d a m at éria com o part e do espaço
in fin it am en t e vazio.
At ravés da pressa, da von t ade e do agir m u lt iplicad os querem os escapar do
vazio e, port an t o, do m al. Mas o cam in h o cert o é aceit ar o vazio, d est ru ir a im a -
gem da con figuração em n ós, u n ir o Deu s e descer ao in son d ável e abom in ável
da m at éria. O Deu s com o obra n ossa está fora de n ós e já n ão precisa de n ossa
ajuda. Ele est á criado e perm an ece entregue a si m esm o. U m a obra criad a que
desaparece tão logo nos afastemos dela n ão prest a, m esm o que / fosse u m Deu s. 68/ 69
A natureza é brincalhona e assustadora. Uns veem o lado brincalhão,riem com ele e deixam que bri-
lhe. Outros veem o horror, cobrem a cabeça e estão m ais m ortos do que vivos. O cam inho não está entre
28o LI BER SECU N D U S 69/ 74
69/ 73 os dois, abrange os dois em si. Éjogo divertido e horrorfrio139. [Ilu st ração 6 9 ] 14 0 / [Ilu st ração
O in fern o
Cap. xii.
139 Em "Sonhos" Jung escreveu em 15 de fevereiro de 1917: "A cena da abertura completamente transcrita.
/ O mais belo sentimento de renovação. Hoje de manhã novamente ao trabalho científico. / Tipos!" (p.
5). E uma referência à conclusão da transcrição desta seção para o volume caligráfico e à continuação dos
trabalhos sobre os tipos psicológicos.
140 O s círculos azuis e amarelos são semelhantes aos da ilustração 60, na edição ilustrada.
141 Esta ilustração pode ser aquela a que se refere Tin a Keller na seguinte afirmação numa entrevista em que
lembra a discussão de Jung de suas relações com Em m a Jung e Ton i Wolff: "Jung mostrou-me certa vez
uma ilustração no livro que estava pintando e me disse: 'Veja que estas três cobras estão entrelaçadas. Esta
é a maneira como nós três lutamos com este problema'. Só posso dizer que me pareceu muito importante
que, mesmo como fenómeno passageiro, aqui estavam três pessoas aceitando um destino que não correu
muito bem para satisfação pessoal delas" (En trevista com Gene Nameche, 1969, R.D. Laing papers,
University of Glasgow, p. 27).
142 12 de janeiro de 1914.
t
O IN FERN O 281
/ Nad a é m ais valioso para o m align o do que seu olho, pois só por causa de
seu olh o pode o vazio captar o ch eio brilh an t e. Pelo fato de o vazio sen t ir a falta
143 Nota marginal ao volume caligráfico: "çatapatha-brâhmanam 2,2,4". A mesma inscrição é dada à ilustr.
64. Cf. notas 132 e 133 acima.
144 Em Assim falava Zaratustra, Nietzsche escreveu: "E preciso ter um caos dentro de si, para poder gerar uma
estrela dançante ("Prólogo de Zaratustra", § 5). ( O itálico está^ublinhado no exemplar de Jung).
282 L I B E R S E C U N D U S 74/75
do ch eio, am bicion a o ch eio e sua força relu zen t e. E ele o bebe através de seu
olho, que consegue captar a beleza e o b rilh o sem m an ch a do cheio. O vazio é
pobre e, se n ão tivesse o olho, seria sem esperan ça. Ele vê o m ais belo e quer
en goli-lo para d est ru í-lo. O d em ón io sabe o que é belo, por isso ele é a som -
bra do belo e o segue por t oda part e, esperan do o m om en t o em que a beleza,
revolven do-se em dores, gost aria de dar a vid a a Deu s.
Q u an d o t u a beleza cresce, arrast a-se para cim a t am bém o m on st ru oso ver -
m e, esperan do sua presa. Para ele n ada é sagrado sen ão seu olho, com o qual
observa o m ais belo. Jam ais aban d on ará seu olho. Ele é in vu ln erável, mas n ada
protege seu olh o; ele é t ern o e claro, perit o em beber a lu z et ern a. Ele quer a t i,
a lu z verm elh o-clara de t u a vid a.
Eu con h eço a n at u reza h u m an a t rem en d am en t e diabólica. Cu b r o dian t e
dela m eus olhos. Est en d o m in h a m ão recusan te quan do alguém deseja apro-
xim ar-se de m im , por m edo que m in h a som bra possa cair sobre ele, ou sua
som bra cair sobre m im , pois eu vejo t am bém o d iabólico n ele, o com pan h eiro
in ofen sivo de sua som bra.
Q u e n in gu ém m e toque; assassinato e in fâm ia espreit am a t i e a m im . T u
sorris in ocen t em en t e, m eu amigo? N ã o vês que u m leve pest an ejar de t eu olh o
revela o t errível, cujo m en sageiro t u és sem suspeitar? Te u tigre sedento de san -
gue rosn a baixin h o, t u a cobra p eçon h en t a sibila fu rt ivam en t e, en quan t o t u , só
con scien t e de t u a bondade, estendes t u a m ão para o cu m prim en t o. Eu con h eço
t ua e m in h a som bra, que an da atrás de n ós e que nos acom pan h a, só esperando
a h ora do crepúsculo, onde ela, com todos os d em ón ios da n oit e, vai estran gular
a t i e a m im .
I45
Q u a n d o m i n h a a l m a c a i u n as m ã o s d o m a l , e st a va in d e fe sa a t é q u e su a
fraca var a de pescar pudesse t irar n ovam en t e o peixe de sua força do m ar do
vazio. O olh o do m al sugou t oda a força de m in h a alm a, só lh e restan do sua
von t ade, que é precisam en t e aquele pequen o an zol. Eu qu eria o m al, pois eu vi
que n ão con seguiria fugir dele. E pelo fato de eu querer o m al, m in h a alm a se-
gu rou n a m ão o precioso an zol com o qual eu qu eria pren d er o lugar vu ln erável
do m al. Q u e m n ão quer o m al, a este falta a possibilidade de salvar sua alm a do
in fern o. Ap esar de ele m esm o perm an ecer n a lu z do m u n d o de cim a, t orn a-se
a som bra de seu si-m esm o. Mas sua alm a d efin h a n o cárcere dos d em ón ios.
Co m isso lh e é criado u m con trapeso que o lim it a para sem pre. O s círculos
m ais elevados do m u n d o in t er ior perm an ecem -lh e in at in gíveis. Ele fica onde
estava, sim , ele retrocede. T u conheces essas pessoas e conheces o m odo esban -
jador com o a n at u reza das pessoas espalh a / vid a e força em desertos áridos. 74/75
N ã o deves lam en t á-lo, caso con t rário te t orn as u m profet a e queres salvar o
que n ão deve ser salvo. N ã o sabes que a n at u reza t am bém aduba seus cam pos
com pessoas? Recebe aquele que procu ra, mas n ão vás à procu ra seguindo os
que erram . O que sabes de seu erro? Talvez seja sagrado. N ã o deves p ert u rbar
145 Nota marginal ao volume caligráfico: "khândayoga-upanishad 1,2,1-7". O Chânâayoga Upantshaâ assim reza:
"O utrora, quando os deuses e demónios, ambos filhos de Prajapati, dispuseram-se em ordem de batalha
uns contra os outros, os deuses apoderaram-se do Grande Canto. 'Com isto os derrotaremos', pensaram
eles. / Por isso veneraram o Grande Canto como o sopro nas narinas. O s demónios cobriram-no de
mal. / Em consequência, cheira-se com ele tanto os odores agradáveis quanto os desagradáveis, pois está
coberto de mal. / Depois veneraram o Grande Canto como fala. O s demónios cobriram-no de mal. Em
consequência, fala-se com ele tanto o que é verdadeiro quanto o que é falso, pois está coberto de mal. /
Depois veneraram o Grande Canto como visão. O s demónios cobriram-no de mal. Em consequência,
vê-se com ele tanto o que é bom quanto o que não é bom, pois está coberto de mal. / Depois veneraram o
Grande Canto como audição. O s demónios cobriram-no de mal. Em consequência, ouve-se com ele tanto
o que é bom de ouvir quanto o que não é, pois está coberto de mal. / Depois veneraram o Grande Canto
como a mente. O s demónios cobriram-no de mal. Em consequência, pensa-se com ele tanto o que é bom
de pensar quanto o que não é, pois está coberto de mal. / Finalmente veneraram o Grande Canto como
simplesmente este sopro aqui dentro da boca. E quando os demónios se precipitaram contra ele, foram
reduzidos a pedacinhos como um torrão de terra jogado contra um alvo que é uma rocha" (Upaníshads.
O xford University Press, 1996 [Trad. de P. O livelle]). O "Grande Can t o" é O M .
284 LI BE R SECU N D U S 75/ 77
O vazio n ão pode oferecer n ad a em sacrifício, pois est á sem pre em pen úria.
Só o ch eio pode oferecer sacrifício, pois t em a plen it u d e. O vazio n ão pode
oferecer em sacrifício sua fome do cheio, pois n ão pode negar sua p róp ria n a-
t ureza. Por isso n ós t am bém precisam os do diabo. Mas, pelo fato de h aver rece-
bido an t eriorm en t e a plen it u d e, posso sacrificar ao diabo m in h a von t ade. Tod a
a força flui de n ovo para m im , u m a vez que o diabo d est ru iu m in h a im agem da
figura de Deu s. Mas a im agem d a figura de Deu s ain d a n ão estava d est ru íd a em
m im . Cau sa-m e h or r or esta dest ruição, pois ela é t errível, u m a profan ação sem
igual do tem plo. Tu d o se arrep ia em m im con t ra a m on st ruosidade sem par.
75/76 Pois eu ain d a n ão sabia o que sign ificava dar à lu z u m Deu s. [Ilu st ração 75] /
[ I H 76] Mas est a foi a visão que eu n ão qu eria ver, o t er r or que eu n ão qu eria
viver. U m a sen sação d oen t ia de n ojo m e su rpreen d eu , cobras repugn an tes e
t raiçoeiras serpeiam devagar e estalan do pelos bosques, ficam depen duradas
p regu içosam en t e e ch eias de sono asqueroso, en roscadas n u m en ovelado h or -
roroso nos galhos. Fico arrepiad o em pisar n este vale de figuras en fadon has
e feias, on de os bosques ficam em en costas pedregosas. O vale parece t ão
vulgar, seu ar ch eir a a crim e, a t od a ação covarde e r u im . Sou acom et ido de
n ojo e h orror. An d o h esit an t e sobre pedras de cascalho, evit an d o aquele lugar
146 Em vez disso, o esboço m anuscrito tem: "Oitava aventura" (p. 793).
O ASSASSI N AT O S A C R I F I C I A L 285
escuro, por medo de pisar n u m a cobra. O sol b rilh a fracam ente n u m céu distan te
e cin zen t o, e toda a relva está seca. D e repente, vejo dian te de m im , n o m eio das
pedras, u m a boneca com a cabeça quebrada - m ais alguns passos, u m pequeno
aven tal - e lá, atrás de u m a m oit a, o corpo de u m a m en in a - cheio de h orríveis
ferim en tos — ensanguentado — u m pé está com m eia e sapato, o outro, ch eio de
sangue e esmagado — a cabeça — onde está a cabeça? — A cabeça é u m a sopa de
sangue m ist urada com cabelo, con ten do ain da pedaços esbran quiçados de ossos
- em volt a estão as pedras respingadas de massa encefálica e sangue. Min h a visão
é tom ada de h orror - do lado da crian ça está u m a figura en coberta, com o a de
u m a m ulh er, quieta, o rosto coberto por u m véu im pen etrável. Ela m e perguntou:
Met o a m ão n o ven t re aberto - sin t o que ain d a est á quen te - o fígado está
preso - pego d a m in h a faca e cort o nos lugares que o pren d em . Ret ir o -o e
apresen t o-o com m ãos cheias de sangue à figura.
286 LI BE R SECU N D U S 77/ 78
Ajoelh ei-m e nas pedras, separo u m pedaço do fígado e o enfio n a boca. Min h as
entranhas trazem o vóm it o até a garganta - lágrimas saem de meus olhos - suor
frio sobre m in h a testa - u m gosto in sipid am en t e adocicado de sangue - en -
gulo com esforço desesperado - n ão vai - m ais u m a vez e m ais ou t ra - quase
desm aio - deu certo. O repugn an te se co n su m o u 14 8 .
Ela: "E u te agrad eço".
Ela afasta seu véu para trás - u m a bela m ocin h a de cabelo ruivo.
Ela: "T u m e con h eces?"
147 Em Memórias, ao comentar o sonho de Liverpool (cf. adiante, p. 369, n. 296), Jung observou: "O fígado,
segundo concepção antiga, é a sede da vida" (p. 236).
148 Em 1940, Jung discutiu a antropofagia ritual, sacrifício e antissacrifício em "O símbolo da transformação
na missa" ( O C, n ) .
O AS S AS S I N AT O S A C R I F I C I A L 287
149 No Livro Negro 3, Jung observa: "A cortina cai. Q ue peça horrível foi representada aqui? Eu percebo:
Nil humanum a me alienum esse puto [julgo que nada de humano é alheio a m im ]" (p. 91). A frase é do
teatrólogo romano Terêncio, de Heauton Tímorumenos. Em 2 de setembro de 1960, Jung escreveu a Herbert
Read: "Na qualidade de psicólogo e médico, não só acho, mas estou plenamente convencido de que nil am e
alienum esse é inclusive meu dever" (Cartas, vol. I I , p. 284).
150 Em vez dessa frase, o esboço tem: "Nessa experiência consumou-se aquilo de que eu precisava. Aconteceu
de maneira horrível. O mal, que eu queria, realizou a ação ignominiosa, aparentemente sem m im , mas
assim mesmo comigo, pois eu senti que tinha parte em toda a natureza assustadoramente humana. Eu
mesmo destruí a criança divina, a imagem de minha figura de Deus, com o mais horrendo dos crimes
de que a natureza humana é capaz. Houve necessidade dessa ação pavorosa, a fim de destruir em m im a
imagem de Deus, que bebera todas as seivas de minha vida, e assim puder recuperar minha vida" (p. 355).
288 LI BE R SECU N D U S 78/ 90
con d ição d ivin a que ult rapassa sua con d ição h u m an a. Por isso, o com er d a car-
ne sacrificial con t rib u i para seu bem . Ist o t am bém nos m ost raram os an tigos,
quan do nos en sin aram a beber o sangue e a com er a carn e do Salvador. O s
antigos acredit avam que ist o con t ribu ía para o bem da a lm a 151.
N ã o exist em m u it as verdades, mas poucas. Seu sen t ido é profun do dem ais
para que as possam os en ten der, a n ão ser com o sím b o lo s 152 .
A força origin ária é b rilh o solar, que os filh os do sol t razem em si desde
os éon s e legam a seus filh os. Mas quan do a alm a m ergu lh a n o brilh o, ela se
t orn ará im placável com o o p róp rio Deu s, pois a vid a da crian ça d ivin a, que t u
comeste, estará em t i com o brasas incandescentes. É com o u m fogo espantoso,
que jam ais se apaga. Mas, apesar de todo o torm en to, n ão podes sair dessa sit u a-
ção, pois ele n ão te larga. Recon h ecerás n isso que t eu Deu s vive e que t u a alm a
com eçou a an dar por cam in h os im piedosos. T u sentes que o fogo do sol está
ext in t o. Foi-t e acrescen tado algo novo, u m a d oen ça sagrada.
Por vezes t u m esm o n ão te reconheces m ais. T u queres ven cer isso, mas é
ele que te ven ce. T u queres im p or-lh e lim it es, mas ele te m an t ém cercado. T u
queres fugir dele, mas ele vem contigo. T u queres u sá-lo, mas t u és seu in st r u -
m en t o; t u queres t irá-lo do pen sam en to, mas teus pen sam en tos pert en cem a
ele. Fin alm en t e és tom ado de pân ico por causa do in evit ável, pois devagar e
in ven civelm en t e ele se achega a t i.
N ã o h á escapat ória. Recon h ecerás n isso o que é u m verd ad eiro Deu s. T u
im agin as todo t ipo de palavras sábias, m edidas de precaução, saídas secretas,
subt erfúgios, beberagens de esquecim en t o de todo tipo, mas tudo in út il. O
fogo te perpassa com seu calor. Aq u ilo que guia obriga-te a seguir o cam in h o.
[Ilu st r ação 79 ] [Ilu st r ação 8 0 ] [Ilu st r ação 81] [Ilu st r ação 8 2] [Ilu st r a çã o
83] [Ilu st r ação 8 4 ] 15 4 [Ilu st r ação 85] [Ilu st r a çã o 8 6 ] [Ilu st r ação 8 7] [ I l u s -
t r ação 8 8 ] [Ilu st r ação 8 9 ] 15 5 [Ilu st r ação 9 0 ] [Ilu st r a çã o 91] [Ilustração 92]
153 Em 1909, ficou pronta a casa de Jung em Kúsnacht, que trazia gravada sobre a porta o seguinte mote do
oráculo de Delfos: "Vocatus atque non vocatus deus aderit" [chamado ou não, deus estará presente]. A
fonte da citação foi a Collectaneaadagiorum, de Erasmo. Jung explicou o mote da maneira seguinte: "Ele quer
dizer: sim, o deus estará no local, mas sob que forma e para qual finalidade? Coloquei esta inscrição lá para
lembrar a m im e a meus pacientes que o 'Timor dei initium sapientiae (Sl I I I . I O ) . Aqui começa um outro e não
menos importante caminho, não o acesso ao cristianismo', mas a Deus mesmo, e esta parece ser a questão
definitiva" (carta a Eugene Rolfe, 19/ 11/ 1960, em Cartas, vol. I I I , p. 304).
154 H á uma nota ao pé da página: "21.VIII.1917. fect. 14.X.17" [possivelmente uma abreviação de "fecit", i.e,
"fez"].
15$ No Livro Negro 7, na fantasia de Jung, de 7 de outubro de 1917, aparece uma figura, H a, que diz que é o pai
de Filêmon. A alma de Jung o descreve como um homem da magia negra. Seu segredo são as runas, que a
alma de Jung quer conhecer. Ele se recusa a ensiná-las, mas mostra alguns exemplos, que a alma de Jung
pede para lhe explicar. Algumas dessas runas aparecem mais tarde nessas pinturas. Sobre as runas nesta
pintura, H a explicou: "O lh a os dois com pés diferentes, um pé terreno e um pé solar - eles estendem a
mão para o cone superior e têm dentro o sol, mas eu tracei uma linha torta para um outro sol. Por isso
um deles precisa descer. Entretanto, o sol superior sai do cone, e o cone olha para ele, preocupado em
saber para onde ele vai. E preciso pegá-lo de volta com o arpão e encerrá-lo na pequena prisão. Então
precisam 3 ficar juntos, unir-se e enrodilhar-se juntos no alto (... [?]). Assim recebem o sol de volta da
prisão. Agora fazei um chão firme e um telhado onde o sol esteja seguro no alto. Mas no interior da casa,
também o outro sol se levantou. Por isso estais enrodilhados também no alto e fizestes embaixo de novo
um telhado sobre a prisão, para que o sol superior ali não penetre. Pois ambos os sóis querem sempre
encontrar-se - eu bem que o disse - os dois cones - cada qual tem um sol. Vós quereis que eles se
encontrem, porque então pensais que poderíeis ser assim um só. Trouxestes agora para fora os dois sóis e
os fizestes se encontrar e estais em posição oblíqua ao outro lado - isto é importante (=)> m ^ s então há
simplesmente dois sóis embaixo, por isso pensais em ir para o cone inferior. Lá juntareis os sóis, mas no
meio, não em cima nem embaixo, por isso não há 4, e sim 2, mas o cone superior está embaixo e em cima
há um telhado grosso e se quereis ir adiante, vós desejais com ambos os braços retroceder. Mas embaixo
tendes uma prisão para dois, para vós dois. Por isso fazeis uma prisão para o sol inferior e caís para o outro
lado, para tirar da prisão o sol inferior. Em seguida sentis saudades, e o cone superior vem e faz uma ponte
para a parte inferior, toma de novo dentro de si seu sol, que anteriormente lhe havia fugido e já aparecem
no cone inferior as nuvens da manhã, mas seu sol tornou-se invisível após a linha (horizonte). Agora sois
um e alegres por terdes o sol em cima e desejais ir ao alto até ele. Mas vós estais presos na prisão do sol
inferior que acaba de nascer. H á uma parada. Agora fazeis em cima algo quadrado, que chamais de ideia,
uma prisão sem porta com grossas paredes, para que o sol do alto não avance, mas o cone já sumiu. Vós vos
deitais para o outro lado, desejais o inferior e vos enrodilhais embaixo. Então sois um e fazeis o caminho
das cobras entre os sóis - isto é divertido! (~) e importante (=). Mas porque estava alegre embaixo, em
cima há um telhado e vós deveis levantar para o alto o arpão com ambos os braços, para que atravesse o
telhado, Então o sol é livre embaixo e há uma prisão em cima. Vós olhais para baixo, mas o sol superior
olha para vós. Mas vós estais precisamente a dois e afastastes de vós a cobra - isto vos faz pena. Por isso
fazeis uma prisão para o inferior. Agora a cobra anda por si através do céu sobre a terra. Vós vos afastais
totalmente, a cobra se enrosca através do céu em volta de todas as estrelas longe sobre a terra. / Embaixo
29o LI BE R SECU N D U S 90/ 98
está: esta sabedoria me deu a mãe. / Ficai satisfeitos" (p. 9-10). Para An iela Jaffé, Jung contou que tivera
uma visão de uma tabuleta de argila vermelha com hieróglifos na parede de seu quarto, que ele transcreveu
no dia seguinte. Ele achava que continha uma mensagem importante, mas que ele não entendia (MP, p.
172). Em cartas de 13 de setembro e 10 de outubro de 1917, Jung escreveu a Sabina Spielrein, comentando
o significado de alguns hieróglifos num sonho que ela lhe havia mandado. Em 10 de outubro, escreveu-lhe
que "com seus hieróglifos estamos lidando com engramas filogenéticos de natureza histórico-simbólica".
Comentando o menosprezo manifestado pelos freudianos em relação a Transformações e símbolos da libido,
descreveu a si mesmo como "aderindo às runas", que não passaria àqueles que não as queriam entender
("Th e Letters of Jung to Sabine Spielrein". Journal of Analytícal Psychology, 41, 2001, p. 187-188).
156 As runas neste quadro aparecem no Livro Negro 7, no inciso de 7 de outubro de 1917. Jung colocou
nelas a data de 10 de outubro de 1917. H a explicou: "Se tiverdes recebido o dorso para frente, fazei
abaixo uma ponte e ide a partir do meio para cima e para baixo, ou separareis em cima embaixo, dividi
novamente o sol e rastejai como a cobra sobre o superior e recebei o inferior. Vós levais junto aquilo que
experimentastes e ides para frente em direção a algo novo" (p. 11).
157 As runas deste quadro aparecem no Livro Negro 7, no inciso de 7 de outubro de 1917. Jung acrescenta a
elas a data de 11 de setembro de 1917. H a explicou: "Agora fazeis uma ponte entre vós, e uma das coisas
deseja o superior. Mas então a cobra rasteja em cima e pega para si o sol. Então andais ambos em cima e
quereis ir para cima ( ) , mas o sol está embaixo e procura puxar-vos para baixo. Vós, porém, fazeis um
risco sobre o inferior e desejais o alto e sois totalmente um aí dentro. Chega então a cobra e quer beber
do recipiente embaixo. Mas vem o cone superior e para. Mas novamente avança a visão igual à da cobra
e, depois, desejais muito ( - ) voltar. Mas o sol inferior puxa e assim chegais novamente ao equilíbrio. Mas
logo tombais para trás, pois uma coisa pesquisou o sol superior. A outra não quer, e assim vos desfazeis,
precisais por isso amarrar-vos juntos três vezes. Então estais novamente em posição correta e segurais
ambos os sóis diante de vós, como se fossem vossos olhos, vós a luz do em cima e do embaixo diante de
vós e vós estendeis os braços para isso, e vós vos reunis num só e precisais separar os dois sóis e suspirais
um pouco pelo inferior e agarrais para diante pelo superior. Mas, pelo fato de os sóis estarem tão perto, o
cone inferior engoliu o cone superior. Por isso empurrais de novo para cima o cone superior e, pelo fato
de o inferior não estar mais aí, quereis trazê-lo novamente para cima e tendes grande saudade do cone
inferior, enquanto em cima está vazio, porque o sol por cima do risco é invisível. Porque tivestes tanta
saudade do que passou e do inferior, o cone superior desce e tenta prender dentro de si o sol superior
e invisível. Ali vai o caminho da cobra bem no alto, vós estais divididos, e todo o inferior está debaixo
do chão. Vós continuais desejando o alto, mas logo vem o desejo inferior qual cobra e vós fazeis uma
prisão sobre ela. Mas surge então o cone inferior, vós desejais o bem baixo e de repente aí estão de novo
os dois sóis, próximos um do outro. Vós sentis saudades e sois encerrados na prisão. Um teima, o outro
deseja o inferior. A prisão se abre, o um deseja ainda mais o inferior, o que teima deseja em cima e não
está mais teimoso, mas exige aquilo que virá. Aí vem ele: embaixo o sol nasce, mas está aprisionado e em
cima foram feitos 3 ninheiros para vós dois e o sol superior que esperais, porque aprisionastes o inferior.
Desce então com grande poder o cone superior e vos parte em dois e engole o cone inferior. Isto não
funciona. Por isso colocais os cones ponta contra ponta e vos enrodilhais para frente no meio. Pois assim
não o podeis deixar. Portanto, tem que ser diferente. O um procura embaixo, o outro em cima; isto lhes
deve causar esforço, pois, quando os cones se encontram na ponta, então quase não se pode mais separá-
los - por isso introduzi no meio o cerne duro. Ponta contra ponta - isto seria belo demais normalmente.
Isto agrada a pai e mãe, mas onde fico eu? E meu cerne? Por isso rapidamente outra coisa! Nós fazemos
ponte entre vós dois, encarceramos novamente o sol inferior, o um tem saudade do superior e embaixo,
o outro especialmente forte para frente, em cima e embaixo. Assim o futuro pode tornar-se - vê como já
posso falar bem agora - sim, eu sou inteligente - mais inteligente do que vós - agora que tomastes tudo
tão belamente na mão, conseguis colocar também tudo tão belamente sob o telhado e dentro da casa, a
cobra e os dois sóis. Isto é sempre o mais divertido. Mas vós estais separados e porque fizestes o risco em
cima, a cobra está por demais embaixo com os sóis. Isto provém do fato de vos terdes enrodilhado antes
a partir de baixo. Mas chegais juntos e de acordo e estais direito, porque é bom, alegre e bem sucedido e
dizeis: assim ficará. Mas já vem descendo o cone superior, porque se sentiu insatisfeito, uma vez que vós
fizestes antecipadamente os limites. O cone superior estende logo sua mão para seu sol - mas não há mais
sol em lugar nenhum e a cobra também salta para fora para pegar o sol. Vós tombais, e um de vós será
devorado pelo cone inferior. Com a ajuda do cone superior, vós o tirais para fora e dais em vez disso ao
cone inferior seu sol e ao cone superior também. Vós vos deitais em cima como o Polifemo, que vagueia
pelo céu, e mantendes o cone embaixo de vós - mas no fim a coisa vai mal. Vós deixais que os cones e os
sóis vão embora e ficais juntos, mas não quereis a mesma coisa. No final chegais a um acordo, amarrar-
vos triplamente ao cone superior que vem descendo neste instante. / Eu me chamo H a, H a, H a - um
nome alegre - eu sou inteligente - vede meu último sinal, esta é a magia do homem branco, que mora nas
grandes casas da magia, a magia que vós chamais de cristianismo. Vosso curandeiro o disse pessoalmente:
A D I VI N A LO U CU RA 291
"Eu e o Pai somos um. Ninguém vem ao Pai senão por m im ". Eu vo-lo havia dito, o cone superior é o Pai.
Ele se ligou triplamente a ele e está entre os outros e o Pai. Por isso, o outro precisa passar por ele se quiser
ir ao cone" (p. 13-14).
158 Em vez disso, o esboço manuscrito tem: "Non a aventura. Noite I " (p. 814).
159 14 de janeiro de 1914.
160 A imitação de Cristo é uma obra de ensino devocional que apareceu no início do século X V e que se tornou
extremamente popular. Sua autoria ainda é discutida, mesmo que geralmente seja atribuída a Tomás
de Kempis (por volta de 1380-1471), cónego regular agostiniano, do mosteiro de Agnetenberg, um dos
primeiros representantes da devotio moderna, um movimento que enfatizava a meditação e a vida interior.
Numa linguagem clara e simples, A imitação de Cristo exorta as pessoas a ocupar-se com a vida interior, como
oposta às coisas exteriores, dá conselhos de como esta deve ser vivida e indica o conforto e recompensa
final de uma vida vivida em Cristo. O título provém da prim eira lin ha do primeiro capítulo em que
também se afirma que "quem quiser compreender e saborear plenamente as palavras de Cristo, é-lhe
preciso que procure conformar à dele toda a sua vida" (A imitação de Cristo. Petrópolis: Vozes, 1969, p. 22
[Trad. de Fr. T. Borgm eier]). O tema da imitação de Crist o é de data bem anterior. Houve discussão na
Idade Média sobre como ela podia ser entendida (sobre a história desse conceito, cf. C O N ST ABLE,
G. "Th e Ideal of the Im it at ion of Ch rist ". In : Three Studies in Medieval Religious and Social Thought. Cam bridge,
Cambridge University Press, 1955, p. 143-248). Com o mostra Constable, podem ser distintas duas grandes
abordagens, dependendo de como a imitação era entendida: a primeira, a imitação da divindade de Cristo,
salientava a doutrina da deificação, pela qual "Crist o mostrou a maneira de tornar-se Deus através dele"
(p. 218). A segunda, a imitação da humanidade e corpo de Cristo, salientava a imitação de sua vida na
terra. A forma mais extremada disso estava na tradição dos estigmáticos, indivíduos que traziam as chagas
de Crist o em seus corpos.
292 LI BE R SECU N D U S 98/ 99
"Ist o é corret o em cert o sen tido. Mas sobretudo a verdade de Niet zsch e é
para m im por dem ais in qu iet a e provocat iva - boa para aqueles que ain d a de-
vem ser libert ados. Mas por isso sua verdade t am bém só é boa para eles. Acr e -
d it o t er descoberto u lt im am en t e que precisam os t am bém de u m a verdade para
aqueles que t êm de cam in h ar n a est reit eza. Para eles é u m a verdade depressiva
aquela que d im in u i e in t er ior iza a pessoa, talvez m ais por necessidade".
"Mas, por favor, Niet zsch e in t er ior iza a pessoa de m odo t ot alm en t e in co-
m u m ".
"Talvez o sen h or t en h a razão a p art ir de seu pon t o de vist a, mas n ão posso
fugir da im pressão de que Niet zsch e fala por si m esm o àqueles a qu em m ais
falta faria a liberdade, mas n ão àqueles que colid iram du ram en t e com a vid a e
san gram de suas feridas, que se p ren d eram às coisas da realidade".
"Mas t am bém a essas pessoas at rib u i Niet zsch e u m valioso sen t im en t o de
superioridade".
"N ã o posso n egá-lo. Mas con h eço pessoas que n ão precisam da su p eriori-
dade, e sim da in feriorid ad e".
"O sen h or se expressa m u it o paradoxalm en t e. N ã o consigo en t en d ê-lo. A
in feriorid ad e pod eria n o m áxim o ser u m desíderatum\
"Talvez m e en t en d a m elh or se, em vez de in feriorid ad e, eu disser su bm is-
são, u m a palavra que se ou via m u it o an t igam en t e, mas raras vezes h oje em d ia".
"Ist o t am bém soa m u it o crist ão".
"Co m o ficou dit o, n o crist ian ism o parece h aver de tudo que talvez ain d a t e-
n h am os de t om ar para n ós. Niet zsch e é por dem ais con t radição. In felizm en t e
a verdade se m an t ém , com o todo o saudável e duradouro, mas n o cam in h o do
m eio, que n ós abom in am os in ju st am en t e".
"Eu n ão sabia realm en t e que o sen h or ocupava u m a posição t ão con cilia-
dora".
"N e m eu - m in h a posição n ão é m u it o clara para m im . Se eu con cilio, faço-o
de u m a m an eira b em específica".
162 Na Imitação de Cristo, Tomás de Kempis escreveu: "Não há salvação da alma nem esperança de vida senão
na cruz. Toma, pois, tua cruz, segue a Jesus e entrarás na vida eterna. O Senhor foi adiante, com a cruz às
costas, e nela morreu por teu amor, para que tu também leves a tua cruz e nela desejes morrer. Porquanto,
se com ele morreres, também com ele viverás" (Livro segundo, cap. 12, p. 121).
163 O esboço continua: "Sabemos que os antigos nos falaram em imagem. Por isso sugeriu-me meu
pensamento que tomasse o Crist o como modelo, não imitá-lo por causa dele, mas porque ele é o
caminho. Quando sigo por um caminho, não o imito. Mas quando sigo Cristo, então ele é meu objetivo,
não meu caminho. Mas quando ele é meu caminho, então eu vou ao seu objetivo, como me foi mostrado
anteriormente no mistério. Assim falou-me meu pensamento em linguagem confusa e ambígua, quando
me aconselhou a seguir Crist o" (p. 366).
164 O esboço continua: "Este seu caminho próprio levou-o à cruz, pois o caminho próprio da humanidade
leva à cruz. Também o meu caminho me leva à cruz, mas não à cruz de Cristo, e sim à m inha cruz, que é
a imagem do sacrifício e da vida. Mas como eu ainda estava obcecado, in clin ei-m e a condescender com a
enorme tentação da imitação e olhar para o Crist o como se Ele fosse um objetivo, e não meu caminho"
(P- 367).
N O X SECU N D A 295
se in su r gir iam con t ra o jugo que o passado nos im pôs. E eu n ão fiii capaz de
sin t on izar o Cr ist o com o profet a desse tem po. U m exige suportar, o ou t ro
derrubar, u m recom en d a subm issão, o out ro vo n t ad e 16 5 . Co m o d everia eu con -
ceber esta con t radição, sem fazer in ju st iça a este ou àquele? O que n ão posso
pen sar en quan t o est ou ju n t o, posso vivê-lo u m após outro.
Resolvi, pois, passar ao out ro lado, para a vid a m ais h u m ild e e com u m , para
a m in h a vid a, e lá em baixo com eçar onde eu estava realm en t e.
Q u an d o o pen sar leva ao im pen sável, é t em po de volt ar à vid a sim ples. O
que o pen sar n ão solu cion a, ist o a vid a solucion a, e aquilo que o fazer n u n ca de-
cide est á reservado ao pensar. Se eu , de u m lado, t iver subido ao m ais elevado e
m ais difícil, mas quiser at in gir u m a ascen são para m ais alto ain da, o verd ad eiro
cam in h o n ão vai para o alto, mas para o fundo, pois só m eu ou t ro m e con duz
para além de m im m esm o. Mas aceit ar o ou t ro sign ifica u m a descida para o
con t rad it ório, do sério para o ridículo, do t rist e para o alegre, do belo para o
feio, do pu ro para o im p u r o 16 6 .
169 O propósito dos justos mais se firma na graça de Deus, que em sua própria sabedoria, nela confiam
sempre, em qualquer empreendimento. Porque o homem propõe, mas Deus dispõe, e não está na mão do homem
o seu cam inho" (im itação de Cristo, livro prim eiro, cap. 19, p. $9).
170 Em vez dessa frase, o Livro Negro 4 tem: "Pois bem, H en ri Bergson, penso eu, aqui acertaste em cheio - este
é o autêntico e verdadeiro método intuitivo" (p. 9). Em março de 1914, Ad olf Keller deu uma palestra sobre
"Bergson und die Libidotheorie" à Sociedade Psicanalítica de Zurique. Na discussão, Jung disse: "Bergson
já deveria ter sido discutido aqui há muito tempo. Ele diz tudo o que nós não dissemos ( MSZ, vol. 1, p.
57). Em 24 de julho de 1914, Jung deu uma conferência em Londres em que observou que seu "m éto-
do construtivo" correspondia ao "método intuitivo" de Bergson ( LO N G, C. (org.). "O n Psychological
Understanding". Collected Papers on Analytícal Psychology. Londres: Ballière/ Tindall and Cox, 1917, p. 399). A obra
que Jung leu foi Vévolutíon créatrice. Paris: Alcan , 1907. Jung possuía a tradução alemã, de 1912.
N O X SECU N D A 297
Est ou n ovam en t e m ergulh ado em m eus pen sam en tos: penso que se pode ir
t am bém atrás do p róp rio n ariz. Tam bém ist o seria m ét od o in t u it ivo 171. Mas a
bela form a em que o faz o crist ão pod eria ser de valor bem especial. Eu gost aria
de im it ar os crist ãos — U m a in qu iet u d e in t er ior m e en volve — o que deve acon -
tecer? U m est ran h o r u m or e zu m bid o ecoam - e de repen t e ouve-se n o salão
u m baru lh o com o o de u m ban do de grandes pássaros — com estron doso bat er
de asas — com o som bras, vejo m u it as figuras de pessoas passando por m im e
ou ço do repet ido vozerio as palavras "adorem os n o t em plo".
"Par a on de vão com t an t a pressa?", pergu n t ei em voz alta. U m h om em bar-
budo, de cabelos desgrenhados e de olh ar som brio parou e se volt ou para m im :
"Est am os in d o a Jeru salém para rezar n o t ú m u lo m ais sagrado".
"Levai-m e con vosco".
17 2
"N ã o podes vir ju n t o, t u ten s u m corpo. N ó s, p orém , estam os m ort os".
"Q u e m és?"
"Meu n om e é Ezeq u iel e sou u m an ab at ist a"173.
"Q u e m são esses com os quais viajas?"
"São m eus irm ãos n a fé".
"Por que viajais en t ão?"
"N ã o podem os parar, tem os que peregrin ar para todos os lugares sagrados".
"O que vos im pele a isso?"
"N ã o sei. Mas parece que ain d a n ão tem os descanso, m esm o que ten h am os
m orrid o n a verd ad eira fé".
"Por que n ão ten des descanso se m orrest es n a verd ad eira fé?"
"Parece-m e sem pre com o se n ão t ivéssem os chegado a u m fim corret o com
a vid a".
174 Em 1918, Jung afirmou que o cristianismo suprimiu o elemento animal ("Sobre o inconsciente", in
Civilização em transição. O C , 10/3, § 31). Desenvolveu este tema em seus seminários, de 1923, em Polzeath,
Corn wall. Em 1939, disse que o "pecado psicológico" que Crist o cometeu foi de "não ter vivido o lado
animal de si mesmo" (Modem Psychology, 4, p. 230).
175 O cap. 13 do livro primeiro da Imitação de Cristo começa assim: "Enquanto vivemos neste mundo, não
podemos estar sem trabalhos e tentações. Por isso lemos no Livro de Jó: É um combate a vida do homem
sobre a terra. Cada qual, pois, deve estar acautelado contra as tentações, mediante a vigilância e a oração,
para não dar azo às ilusões do demónio, que nunca dorme, mas anda por toda parte em busca de quem
possa devorar. Ninguém há tão perfeito e santo que não tenha, às vezes, tentações, e não podemos ser
delas totalmente isentos" (p. 44). Con tin ua enfatizando os benefícios da tentação, como meios através dos
quais o homem é "humilhado, purificado e disciplinado".
176 A citação é tirada de Cícero, Cato Maior de Senectute [Catão Maior sobre a velhice]. O texto é um elogio
à velhice. As linhas que Jung cita vêm em itálico na passagem a seguir: "76. O m n in o, ut m ih i quidem
N O X SECU N D A 299
sentado aí bem qu iet o", disse o ou t ro severam en te. Port an t o: a viagem seguirá
cert am en t e para o m an icôm io. Ist o é u m desperdício. Mas parece que este ca-
m in h o t am bém deve ser percorrido. Ele n ão é t ão in com u m , pois m ilh ares de
nossos sem elh an tes o p ercorrem .
videtur, rerum omnium satietas vitaefacit satíetatem. Sunt pueritiae studia certa; num igitur ea desiderant
adulescentes? Sunt ineuntis adulescentiae: num ea constans iam requirit aetas quae media dicitur? Sunt
etiam eius aetatis; ne ea quidem quaeruntur in senectute. Sunt extrema quaedam studia senectutis: ergo,
ut superiorum aetatum studia occidunt, sic occidunt etiam senectutis; quod cum evenit, satietas vitae tempus
m aturum m ortis afferf. [Sem dúvida, como ao menos me parece, a saciedade de todas as coisas causa a saciedade da vida.
A infância tem certas atividades; será que os adolescentes também as desejam? A juventude tem seus
interesses: será que as pessoas maduras ou de meia-idade precisam deles? A maturidade também possui
interesses que não são procurados na velhice e, finalmente, existem os interesses próprios da velhice. Por
isso, assim como os prazeres e interesses das idades anteriores perdem sua atração, isto também acontecerá
com os da velhice; e quando isto acontece, a pessoa está saciada da vida, e o tempo está maduro para a
m orte"]. CÍ CERO . De Senectute, DeAmicitia, DeDivinatione. Londres: W illiam Heinem ann, 1927, p. 86-88.
177 O Livro Negro 4 tem: "forma paranoide de dementia praecox" (p. 16).
300 L I B E R S E C U N D U S 102/ 103
[2] [ I H 102] A p lan t a que cresce faz brot ar u m reben t o à d ireit a, e quan do
este est á plen am en t e desen volvido, o im pu lso n at u ral de crescim en t o n ão quer
con t in u ar crescen do para além do brot o fin al, mas flu i de volt a ao t ron co, à m ãe
do galho e abre para si n o escuro e m ergulh ado n o t ron co u m cam in h o in cert o
e en con t ra fin alm en t e o lugar cert o à esquerda e faz brot ar lá u m n ovo reben to.
Mas esta n ova d ireção do crescim en t o é t ot alm en t e con t rária à an tiga. E assim
m esm o a p lan t a cresce sim et ricam en t e, sem t en são exagerada e sem p ert u rb a-
ção do equilíbrio.
À d ir eit a est á m eu pensar, à esquerda, m eu sen tir. Eu en t ro n o recin t o do
m eu sen t ir, que antes disso m e era descon hecido, e vejo com surpresa a d ife-
178 No esboço ocorre uma passagem da qual é uma paráfrase o que segue: Sendo eu um pensador, meu
sentimento era o mais ínfimo, o mais antiquado e menos desenvolvido. Quando eu fui instruído contra
o impensável através de meu poder de pensar, então só podia pressionar para frente de uma maneira
forçada. Mas eu sobrecarreguei de um lado, e o outro lado submergiu mais fundo. Sobrecarregar não é
crescimento, que é o de que precisamos (p. 376).
N O X SECU N D A 301
h esit ação e m áxim o d ispên d io de esperan ça, de que tudo sairá a con t en t o.
Já n ão posso dizer: é preciso alcan çar este ou aquele objetivo, vale esta ou
aquela razão porque deve ser boa, mas vou tatean do através de n évoa e n oit e.
N ã o se prod u z u m a lin h a, n en h u m a le i se estabelece, tudo é t ot al e con vin cen -
t em en t e fort u it o, at é assustadoram en te fort u it o. Mas u m a coisa fica pavorosa-
m en t e clara: em relação a m eus cam in h os antigos e a todas as suas in t en ções e
in t u ições, t udo é descam in h o a p ar t ir de agora. Fica sem pre m ais claro que n ada
con duz, com o m in h a esperan ça m e quis in sin u ar, mas que tudo seduz.
E de repen te t e fica claro, para t eu h orrível espanto, que caíste n o desm e-
dido, n o desordenado, n a estupidez do caos etern o. Ap r oxim a-se velozm en t e
com o nas asas ruidosas do t em poral, com o n a on d a avassaladora do m ar.
Ca d a pessoa t em em sua alm a u m lugar sossegado, on de tudo é óbvio e facil-
m en t e explicável, u m lugar n o qu al gosta de refugiar-se con t ra as possibilidades
pert urbadoras da vid a, porque lá t udo é sim ples e claro, de fin alidade m an ifest a
e rest rit a. Para n ada n o m u n d o pode a pessoa d izer com igual con vicção do que
para este lugar: "T u n ada m ais és do que...", e ele t am bém o disse.
E m esm o este lugar é u m a superfície lisa, u m an teparo de todo d ia, n ada
m ais do que u m a crost a bem prot egida e m u it as vezes p olid a sobre o m ist ério
do caos. Se quebrares o m ais cot id ian o de todos os an teparos, jo r r a para d en t ro
em t orren t e in con t rolável o caos. O caos n ão é u m m ú lt iplo sim ples, mas in t er -
m in ável. N ã o é in form e, caso con t rário seria sim ples, mas est á repleto de figu -
ras que, por am or à sua plen it u d e, at uam de m odo pert u rbad or e t r iu n fa n t e 179 .
179 Nota marginal ao volume caligráfico: "26.1.1919". Parece que a data se refere ao tempo em que a seção
foi transcrita.
302 LI BE R SECU N D U S 103/104
Essas figuras são os m ort os, n ão só os teus m ort os, ist o é, todas as im agens
de t u a con form ação passada, que d eixou para trás de si t u a vid a progressiva,
mas as massas dos m ort os da h ist ória h u m an a, o cort ejo de fantasm as do pas-
sado, que é u m m ar em vist a da gota de t u a p róp ria du ração de vid a. Vejo atrás
de t i, atrás do espelho de t eu olh o a aglom eração de perigosas som bras, dos
m ort os que olh am avidam en t e através de buracos vazios dos olh os, que gem em
e esperam realizar através de t i o in dissolúvel de todos os tem pos que neles
suspira. Tu a ign orân cia n ão prova nada. Co la t eu ouvido n a parede e perceberás
o baru lh o de seu cort ejo.
Agor a sabes por que colocas naquele lugar o m ais sim ples e o m ais esclare-
cedor, por que louvas aquele lugar sossegado com o o m ais seguro: para que n in -
gu ém , e m u it o m en os t u , desen t erre lá o m ist ério. Pois este é o lugar on de d ia e
n oit e se m ist u r am dolorosam en t e. O que t u exclu is de t u a vid a, o que t u abjuras
e am aldiçoas, tudo que foi e pod eria t er sido desvio para t i, ist o te espera atrás
daquele an teparo em fren t e ao qu al estás sen tado calm am en t e.
Q u an d o lês os livros de h ist ória, en con t ras relatos sobre pessoas que que-
r iam o extravagan te e in au dit o, que arm avam ciladas para si m esm as e que fo-
ram capturadas por outros em arm adilh as para lobos, que qu eriam o m ais alto
e m ais profun do e que foram apagadas, im perfeit as, do quadro dos sobrevi-
ven tes. Poucos dos vivos sabem delas, e esses poucos n ão sabem valorizar n ada
nelas, mas sacodem a cabeça devido à sua lou cu ra.
En qu an t o t u zom bas delas, u m a está atrás de t i, bufan do de raiva e desespe-
ro para que t u a estupidez n ão a contagie. El a te oprim e com n oites sem d orm ir,
às vezes te pren de n u m a d oen ça e às vezes fru st ra tuas in t en ções. El a te t orn a
alt ivo e ávido, ela in cit a teus desejos por tudo que n ão te aproveit a, ela afoga
teus êxit os em in satisfação. El a te acom pan h a com o t eu espírit o ao qu al n ão
concedeste n en h u m a salvação.
O u vist e algo daqueles escuros que acor r iam in cógn it os ao lado dos que
d om in avam o d ia e que con ju rados causavam a in t ran qu ilid ad e? Q u e excogi-
t avam ousadias e n ão recu avam t em erosos d ian t e de n en h u m d elit o em h on r a
de seu Deu s?
En t r e esses coloca o Cr ist o, que foi o m aior deles. Mas para ele foi m u it o
pouco p ar t ir o m u n d o e por isso p ar t iu a si m esm o. E assim ficou sendo o m aior
deles todos, e os poderes deste m u n d o n ão o at in giram . Mas eu falo dos m ort os
N O X SECU N D A 303
que caíram vít im as do poder, part idos pela violên cia e n ão por si m esm os. Seus
bandos povoam o t erren o da alm a. Se t u os aceitas, / eles te en ch em com delírio 103/ 104
180 Em 1930, Jung disse num seminário: "Nós temos preconceitos em relação ao animal. As pessoas não
entendem quando digo que elas se devem familiarizar com seus animais ou assimilar seus animais. Elas
pensam que o animal está sempre pulando sobre paredes e fazendo barulheira infernal em toda a cidade.
Mas, por natureza, o animal é um cidadão bem comportado. Ele é leal, segue o caminho com grande
regularidade, nada faz de extravagante. Somente o ser humano é extravagante. Se você assimilar o caráter
do animal, você se tornará um cidadão respeitador da lei e da ordem, você irá com muita cautela e se
tornará muito sensato em seus caminhos, na medida em que conseguir assimilá-lo" (Vísíons I , p. 168).
304 LI BE R SECU N D U S 104/ 106
se in su r ge c o n t r a a r e c o n d u ç ã o d o c r ia d o e m a is t a r d e s u b m e t i d o e p e r d i d o 18 1.
181 O esboço manuscrito tem na margem: "Rm 8,19" (p. 863). O que se segue é uma citação de Rm 8,19-22.
182 E uma citação de Is 66,24.
N O X SECU N D A
183 O esboço continua: "Um profeta caminhou à frente de nós, a quem a proximidade de Deus deixou furioso.
Ele esbravejava cegamente em sua pregação contra o cristianismo, mas era o advogado dos mortos que
o escolheram para porta-voz e trombeta sonante. Ele gritava com voz fortíssima de modo que muitos o
ouviam, e o poder de sua fala queimava também os adversários dos mortos. Ele ensinava a luta contra o
cristianismo. Também isso era bom" (p. 387). A referência é a Nietzsche.
184 O esboço continua: "cujo advogado tu és" (p. 388).
185 O esboço continua: "como aquele profeta furioso que não sabia de quem era a causa que estava
defendendo, mas acreditava que falava a partir de si mesmo, e se considerava a vontade da destruição" (p.
388). A referência é a Nietzsche.
186 Em 1930, Jung reproduziu de forma anónima esta ilustração no "Com entário ao Segredo da Flor de ouro"
como um mandala desenhado por um paciente durante o tratamento. Ele o descreveu assim: "No centro
a luz branca, brilhando no espaço sideral; na primeira circunferência, germes protoplasmáticos de vida; na
segunda: princípios cósmicos girando que contêm as quatro cores básicas; na terceira e na quarta: forças
criadoras atuando para dentro e para fora. Nos pontos cardeais: as almas feminina e masculina, ambas
separadas novamente segundo claro e escuro" ( O C, 13). Ele o reproduziu novamente em 1952, em "O
simbolismo do mandala", e escreveu: "Trata-se do quadro de um homem de meia idade. No centro há uma
estrela. O céu é azul com nuvens douradas. Nos quatro pontos cardeais vemos figuras humanas: em cima,
um velho em atitude contemplativa e embaixo Loki ou Hefesto, com cabelo ruivo chamejante, segurando
um templo na mão. A direita e à esquerda há duas figuras femininas, uma escura e outra clara. São
indicados desse modo quatro aspectos da personalidade, isto é, quatro figuras arquetípicas que pertencem
por assim dizer à periferia do si-mesmo. As duas figuras femininas podem ser logo reconhecidas como os
dois aspectos da anima. O velho corresponde ao arquétipo do sentido, ou seja, do espírito, e a figura ctônica
escura no plano inferior, ao oposto do sábio, isto é, ao elemento luciferiano, mágico (e às vezes destrutivo).
Na alquimia trata-se de Hermes Trismegisto versus Mercúrio como o 'trickster' evasivo. O primeiro círculo
ao redor do céu contém estruturas vivas semelhantes a protozoários. As dezesseis esferas de quatro
cores no círculo contíguo provêm de um tema originário de olhos e representam portanto a consciência
observadora e diferenciadora. Assim também os ornamentos que se abrem para dentro do círculo seguinte
significam aparentemente receptáculos, cujo conteúdo é despejado em direção ao centro [nota de rodapé:
Ideia semelhante encontra-se na alquimia, isto é, no assim chamado Manuscrito Ripley e suas variantes
(cf. Psicologia e alquimia, p. 524, fig. 257). Nela os deuses planetários misturam suas qualidades ao banho do
renascimento]. O s ornamentos do círculo mais externo abrem-se inversamente para fora, a fim de receber
algo do exterior. No processo de individuação, as projeções originárias refluem para dentro, isto é, são
novamente integradas na personalidade. Em contraste com a ilustração 25, o em cima' e o embaixo', bem
como o 'masculino' e o 'feminino', aqui são integrados, como no hermaphroditus alquímico ( O C, 9/ 1, § 682).
Em 21 de março de 1950, Jung escreveu a Raymond Piper a respeito da mesma ilustração: "A outra figura é
a de um homem bastante culto, com aproximadamente 40 anos de idade. Também ele fez o desenho como
uma tentativa, a princípio inconsciente, de restaurar a ordem no estado emocional em que se encontrava,
provocado pela invasão de conteúdos inconscientes" (Cartas I I , p. 157).
3o6 LI BE R SECU N D U S 104/ 106
h á p r o fe t a s q u e n o fi n a l se a p e d r e ja m a s i m e s m o s . M a s n ó s p r o c u r a m o s a s a l-
vação e por isso precisam os t er respeit o dian t e do que se t orn ou e da aceit ação
dos m ort os, que desde tem pos im em oriais voam através dos ares e, com o m or -
cegos, m oram sob nosso teto. O n ovo se con st ru irá sobre o velh o, e m ú lt iplo
será o sen t ido do que se t orn ou . Port an t o salvaguardarás t u a pobreza n o que se
t orn ou para a riqu eza do que virá.
O que gost aria de afastar-te do crist ian ism o e de seu bem -su cedido m a n -
dam en t o do am or são os m ort os que n ão pu d eram en con t rar a paz n o Sen h or,
pois suas obras inacabadas os seguiam . U m a n ova salvação é sem pre u m a repo-
sição do perdido an t eriorm en t e. N ã o foi o p róp rio Cr ist o que t rou xe de volt a
o sacrifício h u m an o cru en t o que desde tem pos antigos h avia sido elim in ad o
do rit u al sagrado por costum es m elh ores? N ã o foi ele que r ein t r od u ziu o rit u al
sagrado de com er o sacrifício h um an o? E m t eu rit u al sagrado será n ovam en t e
in clu íd o o que u m a le i an t erior h avia condenado.
Co m o foi o p róp rio Cr ist o que t rou xe n ovam en t e o sacrifício h u m an o e o
com er do sacrifício, acon teceu tudo n ele e n ão n o irm ão, pois o Cr ist o colocou
por cim a disso o m aior m an d am en t o do am or, ist o é, que n in gu ém pudesse
preju d icar n isso o irm ão, mas que todos pudessem alegrar-se com a reposição.
O m esm o acon teceu com o an t igam en t e, mas sob a lei do a m o r 18 7 . Port an t o, se
n ão ten s respeit o pelo que se t orn ou , dest ruirás a le i do a m o r 18 8 . O que acon -
t ecerá en t ão con tigo? Serás forçad o a t razer de volt a o que exist ia em tem pos
passados, ist o é, violên cia, assassinato, in ju st iça e desprezo de t eu irm ão. U m
será est ran h o ao out ro, e rein ará a con fusão.
Por isso deves t er respeit o pelo que se t orn ou , para que a le i do am or se
t ran sform e em salvação através da recon d u ção do in ferior e do passado e n ão
187 O esboço continua: "Nenhum título da lei cristã foi abolido, mas nós acrescentamos outro: a aceitação do
lamento dos mortos" (p. 390).
188 O esboço continua: "Não é mais que prazer costumeiro e mau, nada mais que tentação cotidiana,
enquanto não sabes que é a exigência dos mortos. Mas assim que sabes a respeito dos mortos, entendes
tua tentação. Enquanto não for mais que prazer mau, o que podes fazer com ela? Trapacear, arrepender-
te e levantar de novo, para tropeçar de novo, ridicularizar-te e odiar-te, mas com certeza desprezar
interiormente e ter compaixão. Mas se souberes da exigência dos mortos, a tentação vai transformar-
se para t i em fonte de tua melhor criação, da obra salvadora em geral: quando Crist o ressuscitou após
completar sua obra, levou para o alto consigo os que haviam morrido prematura e imperfeitamente sob a
lei da dureza, da alienação e da mais crua violência. Naquele tempo os ares estavam tão cheios de lamentos
dos mortos e seu queixume tornou-se tão forte que até mesmo os vivos ficaram tristes, cansados e fartos
da vida, desejando morrer para este mundo já em seu corpo vivo. Assim conduzes também tu em tua obra
salvadora os mortos à sua perfeição" (p. 390-391).
N O X SECU N D A 307
Nox t er t ia 19 0
Cap . xvi.
189 O esboço continua: "Tu empregas velhas palavras mágicas para proteger-te supersticiosamente, pois ainda
és uma criança indefesa da antiga floresta. Mas nós vemos por trás de tua palavra mágica, e ela está sem
força, e nada te protege do caos a não ser a aceitação" (p. 398).
190 Terceira noite.
191 18 de janeiro de 1914.
NO X TERTIA 309
d e s c o n h e c id a . O q u e t u c h a m a s d e c o n h e c i m e n t o é u m a t e n t a t i va d e i m p o r à
v i d a algo c o m p r e e n s í ve l ".
E u : "I s t o so a b e m d e sco n so la d o r , m a s d e s p e r t a m i n h a d is c o r d â n c ia ".
A : " T u n ã o t e n s n a d a q u e d isco r d a r . Est á s n u m m a n i c ô m i o ".
A l i e s t á o go r d o p r o fe sso r - fo i ele q u e a s s i m falo u ? E e u p e n s e i q u e fosse
m i n h a a lm a .
P r o f : "Si m , m e u ca r o , o s e n h o r e s t á lo u co . O s e n h o r fa la d e m o d o t o t a l m e n -
t e in c o e r e n t e ".
E u : " E u t a m b é m c r e io q u e m e p e r d i c o m p le t a m e n t e . E s t o u r e a l m e n t e l o u -
co? Es t á t u d o t ã o co n fu so ".
P r o f : "T e n h a p a c iê n c ia , t u d o va i se a r r a n ja r . D u r m a b e m !"
E u : "O b r i g a d o , m a s t e n h o m e d o ".
E u : "N a d a - ist o é - e u a ch o q u e e s t o u fo r a d e m i m - o c h ã o r o d o p i a -
t u d o g i r a —".
Al g u é m : "M a s n ó s t e r e m o s e st a n o it e u n i c a m e n t e o m a r a git a d o - b e b a u m
gr o gu e q u e n t e - o s e n h o r e st á c o m e n jo o ".
E u : " O s e n h o r t e m r a z ã o , e s t o u e n jo a d o , m a s d e u m m o d o e sp e cia l - e u
e s t o u n a ve r d a d e n o m a n i c ô m i o ".
Al g u é m : "Lá v e m o s e n h o r o u t r a ve z c o m p ia d a s, a v i d a vo l t a d e n o vo ".
Pe r ce b o , é m e u v i z i n h o d e c a m a q u e e vi d e n t e m e n t e a c o r d o u d e su a a p a -
t i a e q u e a go r a se s e n t o u n a m i n h a c a m a . E l e c o n t i n u a fa la n d o c o m fi r m e z a e
c o n vic ç ã o : " E u s o u N i e t z s c h e , m a s o r e b a t iz a d o , t a m b é m s o u Cr i s t o , o sa lva d o r
d e sign a d o p a r a sa lva r o m u n d o , m a s eles n ã o m e d e i xa m ".
E u : " Q u e m n ã o d e ixa ?"
O lo u co : " O d ia b o . A q u i n ó s e st a m o s n o in fe r n o . O s e n h o r n a t u r a l m e n t e
n ã o p e r c e b e u n a d a d isso. E u t a m b é m só p e r c e b i n o se gu n d o a n o d e m i n h a e s-
t a d a a q u i q u e o d i r e t o r e r a o d ia b o ".
E u : " O s e n h o r q u e r d i z e r o p r o fe sso r ? P a r e ce in a c r e d it á ve l".
O lo u co : " O s e n h o r é u m ign o r a n t e . E u já d e ve r i a t e r - m e ca sa d o h á m u i t o
t e m p o c o m a m ã e d e D e u s 19 2 . M a s o p r o fesso r , o d ia b o , é s e n h o r d e la . T o d a n o i -
t e ao p ô r d o so l ele ge r a u m filh o c o m e la . D e m a n h ã ced o, ao n a sce r d o so l, e la
108/ n o o d á à lu z . En t ã o v ê m t o d o s os d ia b o s e m a t a m a c r ia n ç a d e / [Ilu s t r a ç ã o 10 9 ] 19 3
/ fo r m a c r u e l. O u ç o p e r fe it a m e n t e seu s gr it o s".
D e i t o u - s e n a c a m a e s u c u m b i u à su a a p a t ia a n t e r io r . E u a ga r r o as b e ir a d a s
d a m i n h a c a m a p a r a p r o t e ge r - m e c o n t r a o t e r r íve l b a lo u ça r . O l h o fi xa m e n t e
p a r a a p a r e d e a f i m d e p r e n d e r - m e ao m e n o s c o m m e u s o lh a r e s. N a p a r e d e h á
192 Em OEueo Inconsciente ( 19 28 ) Jung se refere a um caso de um homem com demência paranoide que ele
encontrou ao tempo de Burghõlzli, que estava em contato telefónico com a Mãe de Deus ( O C, 7, § 229 ) .
193 Legenda da ilustração: "Est a pessoa feita de matéria subiu demais para dentro do mundo do espírito, mas
lá o espírito perfurou-lhe o coração com o raio de ouro. Ela entrou em êxtase e se desagregou. A serpente,
que é o mal, não podia permanecer no mundo do espírito".
NO X TERTIA 311
u m a l i n h a h o r i z o n t a l , a b a ixo d e la a p a r e d e é p i n t a d a d e c o r m a is e scu r a . E m
fr e n t e e st á u m a q u e ce d o r - é u m c o r r i m ã o , m a is a d ia n t e ve jo o m a r . A l i n h a é
o h o r i z o n t e . E lá n a sce a go r a o s o l e m a u r a ve r m e l h a , só e m a je st o so — d e n t r o
h á u m a c r u z e n e l a e st á p e n d u r a d a u m a c o b r a — o u é u m t o u r o , e sq u a r t e ja d o
c o m o n o a ç o u g u e — o u é u m b u r r o ? E s e m d ú vi d a u m c a r n e i r o c o m a c o r o a d e
e sp in h o s — o u é o Crucífíxus, e u m e s m o ? O s o l d o m a r t í r i o n a s c e u e d e r r a m a
r a io s sa n gr e n t o s so b r e o m a r . D u r a m u i t o est e e sp e t á cu lo , o so l so b e m a is , seu s
r a io s fi c a m m a is b r i l h a n t e s 19 4 e m a is q u e n t e s e o so l a r d e b r a n c o cá p a r a b a ixo
so b r e u m m a r a z u l. O b a lo u ç a r t e r m i n o u . U m a c a l m a b e n fa z e ja d a m a n h ã d e
ve r ã o r e p o u s a so b r e o m a r t r e m e lu z e n t e . Er g u e - s e u m va p o r salgad o d e á gu a .
U m a o n d a fr a ca e e xt e n s a q u e b r a n a a r e ia c o m s o m ab afad o e s e m p r e d e n o vo
ela vo lt a , d o z e ve z e s, as b a d a la d a s d o r e ló gio d o m u n d o 19 5 - a d é c i m a se gu n d a
h o r a se c o m p le t o u . E a go r a se faz c a lm a . N e n h u m b a r u lh o , n e n h u m a r e s p i r a -
ção. T u d o e st á i n e r t e , e m q u ie t u d e m o r t a l . E u e sp e r o i n t i m a m e n t e a n gu st ia d o .
Ve jo s u r gir d o m a r u m a á r vo r e . Se u s galh o s a lc a n ç a m o c é u e su as r a íz e s d e s c e m
a t é o in fe r n o . Es t o u c o m p l e t a m e n t e só e a t a r a n t a d o e o lh o d e lo n ge. E c o m o
se t o d a a v i d a t ive sse fu gid o d e m i m , t o t a lm e n t e e n t r e gu e ao in c o n c e b íve l e
e sp a n t o so . Es t o u m u i t o fr a co e i m p o t e n t e . "Sa lva ç ã o ", s u s s u r r o e u . U m a vo z
e s t r a n h a fala: "Aq u i n ã o h á s a l va ç ã o " 19 6 , m a s o s e n h o r t e m d e fa z e r silê n cio , caso
c o n t r á r io v a i p e r t u r b a r os o u t r o s. E n o it e , e as o u t r a s p esso as q u e r e m d o r m i r ".
E u ve jo , é o gu a r d a . O sa lã o e st á fr a c a m e n t e i l u m i n a d o p o r u m p e q u e n o l a m -
p iã o , e t r i s t e z a p e sa so b r e o a m b ie n t e .
E u : " E u n ã o e n c o n t r e i o c a m i n h o ".
El e d iz : " O s e n h o r n ã o p r e c is a p r o c u r a r a go r a n e n h u m c a m i n h o ".
El e d i z a ve r d a d e . O c a m i n h o , o u se ja lá o q u e fo r so b r e o q u a l c a m i n h a m o s ,
é n o sso c a m i n h o , o c a m i n h o ce r t o . N ã o h á n e n h u m c a m i n h o t r a ç a d o p a r a o
fu t u r o . N ó s d i z e m o s q u e é est e c a m i n h o , e ele o é. N ó s c o n s t r u í m o s as e st r a d a s
e n q u a n t o c a m i n h a m o s . N o s s a v i d a é a ve r d a d e q u e p r o c u r a m o s . Só m i n h a v i d a
é a ve r d a d e , a ve r d a d e e m ge r a l. N ó s c r i a m o s a ve r d a d e e n q u a n t o a vive m o s .
194 Nota marginal de Jung no volume caligráfico: "22.3.1919", Isto parece referir-se à época em que esta
passagem foi transcrita no volume caligráfico.
195 Em Psicologia e religião (19 38) Jung comenta o simbolismo do relógio do mundo ( O C , 11, § n o s.).
196 Na Divina Comédia, de Dante, as seguintes linhas estão gravadas acima do portão de entrada do inferno:
"Lasciate ogni speranza voi ch'intrate" [Abandonai toda esperança vós que entrais] (Can t o 3, linha 9 ) . The
Divine CommedyofDante Aleghierí. Vol, I . Nova York: O xford University Press, 1997, p. 55 [org. e trad. de R.
Durlin g].
312 L I B E R S E C U N D U S no/ 112
[2] Es t a é a n o i t e e m q u e t o d o s os d iq u e s se r o m p e r a m , e m q u e se m o ve o
q u e a n t e s e st a va fi r m e , e m q u e as p e d r a s se t r a n s fo r m a r a m e m co b r a s e t o d o
se r vi vo fi c o u p a r a lisa d o . E u m a t r a m a d e p a la vr a s? En t ã o a t r a m a d e p a la vr a s é
i n fe r n o p a r a a q u e le q u e n e l a e s t á p r eso .
Ex i s t e m t r a m a s in fe r n a is d e p alavr as, so m e n t e p alavr as, m a s o q u e sã o p a la -
vr as? Sê cau t elo so c o m p alavr as, esco lh e-as b e m , t o m a p alavr as p r ecisas, p alavr as
s e m a r m a d ilh a s, n ã o as e n t r e la ce s p a r a q u e n ã o s u r ja n e n h u m a t r a m a , p o is t u és o
p r i m e i r o q u e n e la se e n r e d a 19 7 . P o is p alavr as t ê m sign ificad o s. N a s p alavr as p u xa s
p a r a c i m a o su b m u n d o . A p a la vr a é o m a is n u lo e o m a is fo r t e. N a p a la vr a c o r r e m
ju n t o s o va z i o e o ch e io . P o r isso, a p a la vr a é u m a i m a g e m d e D e u s . A p a la vr a
é o m á x i m o e o m í n i m o q u e o se r h u m a n o c r i o u , a s s im c o m o a q u ilo q u e a t u a
a t r a vé s d o ser h u m a n o é o m a i o r e o m e n o r .
P o r isso, q u a n d o s u c u m b o à t r a m a d a p a la vr a , s u c u m b i ao m a i o r e ao m e n o r .
Es t o u e n t r e gu e ao m a r , à o n d a i n d e fi n i d a , q u e in c a n s a ve lm e n t e a lt e r a o lu gar .
Su a n a t u r e z a é m o vi m e n t o , e m o v i m e n t o é s u a o r d e m . Q u e m r e sist e à o n d a
e st á a b a n d o n a d o ao acaso. O c o n t í n u o é o b r a d o se r h u m a n o , m a s ist o b o ia
so b r e o caos. Q u e m v e m d o m a r , a est e p a r e ce l o u c u r a a a t ivid a d e d as p essoas.
M a s as p esso as o c o n s i d e r a m u m l o u c o 19 8 . Q u e m v e m d o m a r é d o e n t e . M a l
co n se gu e s u p o r t a r o o lh a r d as p essoas. P o is elas lh e p a r e c e m t o d a s b ê b a d a s e
a lu cin a d a s p o r ca u sa d o s ve n e n o s s o n ífe r o s . El a s q u e r e m v i r e m t e u so co r r o ,
m a s t u go st a r ia s d e a ce it a r m e n o s a ju d a d o q u e i l u d i r - t e m a is e m s u a c o m p a -
n h i a e se r c o m p le t o , c o m o a l g u é m q u e n u n c a v i u o cao s, m a s q u e só fa la d ele.
M a s a s s im c o m o C r i s t o sa b ia q u e ele e r a o c a m in h o , a ve r d a d e e a vid a , e n -
q u a n t o a t r a vé s d e le ch e go u ao m u n d o o n o vo t o r m e n t o e sa lva çã o r e n o va d a ,
197 O esboço continua: "Pois palavras não são meras palavras, mas têm significados para quem foram
compostas. Elas atraem os significados como sombras demoníacas. Pelas palavras puxas para cima o
submundo" (p. 4 0 3) .
198 O esboço continua: "Depois de teres visto o caos, olha uma vez para teu rosto: tu viste mais que morte e
sepultura, t u viste o outro lado, e teu rosto está marcado como o rosto de alguém que viu o caos e assim
mesmo era um ser humano. Muitos passam para o outro lado, mas não veem o caos; o caos porém os vê,
olha fixamente em seu rosto e lhes imprime uma marca. Ficam então assinalados para sempre. Chame
alguém assim de louco, pois ele o é; tornou-se onda e perdeu seu humano, seu permanente" (p. 4 0 4 ) .
199 A frase anterior está riscada no esboço corrigido e tem escrito na margem "identificação OIAHMÊ2N" (p. 4 0 5) .
NOX TERTIA 313
t a m b é m e u s e i q u e o ca o s d e ve v i r so b r e os se r e s h u m a n o s e q u e as m ã o s d a q u e -
d o m a r , e s t ã o o cu p a d a s. P o is e st e é o n o sso c a m i n h o , n o s s a ve r d a d e e n o s s a vi d a .
A s s i m c o m o o s d i s c í p u l o s d e C r i s t o r e c o n h e c e r a m q u e o D e u s se t o r n a r a
c a r n e e q u e m o r a v a e n t r e e le s c o m o u m a p e s s o a h u m a n a , t a m b é m n ó s r e c o n h e -
c e m o s a go r a q u e o U n g i d o d e s s a é p o c a é u m D e u s q u e n ã o a p a r e ce n a c a r n e ,
n ã o é p essoa h u m a n a , e a ssim m e s m o é u m Fi lh o d o H o m e m , n ã o n a ca r n e ,
m a s n o e s p í r i t o , e p o r isso s ó p o d e n a s c e r a t r a vé s d o e s p í r i t o d o se r h u m a n o n a
c o n d i ç ã o d e ú t e r o c o n c e b e d o r d e D e u s 2 0 0 . A e st e D e u s é fe it o o q u e t u fa z e s ao
m e n o r e m t i m e s m o , so b a l e i d o a m o r , d a q u a l n a d a p o d e se r s u b t r a í d o . P o is
q u e m o fa z p o r o r g u lh o , e g o í s m o o u c o b i ç a , e n ã o p o r a m o r , e s t á c o n d e n a d o .
Ta m b é m n a con d en ação n ad a é su b t r a íd o 20 2.
2 0 0 Jung desenvolveu este assunto muitos anos depois em Resposta a Jó ( 19 52) , onde estudou a transformação
histórica das imagens judeu-cristãs de Deus. Um tema importante nesse contexto foi a encarnação
continuada de Deus depois de Cristo. Tecendo um comentário sobre o Apocalipse, Jung argumentou
que "desde o momento em que João, autor do Apocalipse, sentiu pela prim eira vez (talvez de modo
inconsciente) o conflito no qual o cristianismo introduz diretamente, a humanidade está debaixo de seu
peso: Deus quis e quer tornar-se homem" ( O C, n , § 739 ) . Na concepção de Jung, havia uma vinculação
direta entre os pontos de vista de João e os de Eckhart: "Est a irrupção perturbadora gerou dentro dele
a figura da companheira divina, cuja imagem habita em cada homem, da criança que também Mestre
Eckhart contemplou em sua visão. Ele foi aquele que sabia que Deus não é feliz sozinho em sua divindade,
mas deve nascer na alma do ser humano. A encarnação em Crist o é o protótipo que será transposto
progressivamente para a criatura através do Espírito Santo" (ibid., § 741). Em tempos mais recentes,
Jung deu grande importância à Bula papal da Assunção de Maria. Ele afirmou que ela: "aponta para a
realização do hierósgamos no pleroma, e este hierósgamos, por sua vez, refere-se, como já foi dito, ao
futuro nascimento da criança divina que, em virtude da tendência divina de encarnar-se, escolherá o
homem empírico para lugar de nascimento. Este acontecimento metafísico é conhecido pela psicologia do
inconsciente com o processo de individuação" (ibid., § 755). O processo de individuação encontrou seu sentido
último através de sua identificação com a encarnação continuada de Deus na alma. Em 3 de maio de 1958,
Jung escreveu a Morton Kelsey: "A verdadeira história do mundo parece ser a encarnação progressiva da
deidade" (Cartas I I I , p. 151).
20 1 Legenda da ilustração: "A serpente tombou morta sobre a terra. E este foi o cordão umbilical de seu
novo nascimento". A serpente é semelhante à da ilustração 109 . No Livro Negro 7, em 27 de janeiro de
1922, a alma de Jung se refere retrospectivamente às ilustr. 10 9 e 111. Sua alma diz: "Terrível é a nuvem
gigante da noite eterna. Vejo sobre esta nuvem da esquerda para cima um risco de brilho amarelo na
forma de um raio irregular, por trás luz vermelha indeterminada na nuvem. Não se movimenta. Debaixo
da nuvem vejo deitada uma cobra preta morta, e o raio está cravado em sua cabeça como uma lança. Um a
mão, grande como a de um Deus, atirou a lança e tudo ficou rijo qual imagem de brilho sombrio. Seja qual
for seu significado! Lembras-te daquele quadro que pintaste há anos em que o homem vermelho-escuro
com a cobra branco-preta foi atingido pelo raio de Deus? Lá está dependurado aquele quadro, pois mais
tarde pintaste também a cobra morta, e não é que hoje de manhã apareceu-te diante dos olhos um quadro
lúgubre, aquele homem com veste branca e rosto negro como uma múmia?" " I " de Jung: "O que é isso?"
Alm a: "Um a imagem de teu si-mesmo" (p. 57) .
20 2 O esboço continua: "Mas quem o faz sob a lei do amor, a este sucederá para além do sofrimento, sentar-se
à mesa com o Ungido e contemplar a glória de Deus" (p. 4 0 6 ) .
314 LI BE R SECU N D U S 110/ 112
I n e vi t á ve l é o s o fr i m e n t o q u a n d o t u a s s u m e s o m a i s í n fi m o e m t i , p o is t u
fazes o a b je t o e e r gu e s o q u e e s t a va d e s t r u í d o . H á m u i t o s e p u lc r o e c a d á ve r p u -
t r e fa t o e m n ó s , u m m a u c h e i r o d e d e c o m p o s i ç ã o 2 0 3 . A s s i m c o m o C r i s t o s u b j u -
go u a c a r n e a t r a vé s d o s o fr i m e n t o d a s a n t ific a ç ã o , t a m b é m o D e u s d e ssa é p o c a
m a r t i r i z a r á o e s p í r i t o a t r a vé s d a c a r n e . P o is n o s s o e s p í r i t o t o r n o u - s e p r o s t i t u t a
i n s o l e n t e , u m e s c r a vo d as p a la vr a s c r ia d a s p e lo s se r e s h u m a n o s e n ã o m a i s a
p r ó p r i a p a l a vr a d i v i n a 2 0 4 .
O í n fi m o e m t i é a fo n t e d a gr a ç a . N ó s a s s u m i m o s e s t a d o e n ç a , a fa lt a d e p a z ,
a i n s i g n i fi c â n c i a e b a i xe z a , p a r a q u e o D e u s fiq u e c u r a d o e se l e va n t e l u m i n o s o ,
p u r i fi c a d o d a d e c o m p o s i ç ã o d a m o r t e e d a l a m a d o s u b m u n d o . Fu l g u r a n t e e
t o d o c u r a d o se e r g u e r á p a r a s u a l i b e r t a ç ã o o ve r g o n h o s a m e n t e a p r is io n a d o 20 5.
20 3 O esboço continua: "Mas quem toma sobre si seu sofrimento sob a lei do amor, a este virá o Deus e fará
com ele uma nova aliança. Pois está predeterminado que o Ungido deve retornar, não mais em carne, mas
em espírito. Assim como o Crist o levou a carne a curar-se através do padecimento, também o Ungido
dessa época levou o espírito a curar-se através do padecimento" (p. 4 0 7) .
20 4 O esboço continua: "O ínfimo em t i é a pedra que os construtores rejeitaram. Ela se tornará a pedra
angular. O ínfimo em t i vai brotar, erguer-se e ficar bem alto como um rebento em solo árido, em areia
do deserto mais seco. Do rejeitado vem para t i a felicidade. De brejos lamacentos nasce teu sol. Tu te
aborreces, como todos os outros, com o ínfimo em t i porque sua forma é mais feia do que a imagem que
tu amas em t i mesmo. O ínfimo em t i é o universalmente desprezado e desvalorizado, cheio de dores e
doença. Ele é tão desprezado que a gente esconde o rosto diante dele, que a gente o considera um nada,
que até se diz que ele não existe, pois a gente se envergonharia e se desprezaria a si mesmo por causa
dele. Na verdade, ele suporta nossa doença e está carregado de nossas dores. Nós o consideramos como
aquele que foi atormentado e castigado por causa de sua feiúra desprezível. Mas ele foi ferido e entregue à
loucura por causa de nossa própria justiça, por causa de nossa própria beleza foi torturado e oprimido. Nós
deixamos o castigo e a tortura para ele, para que nós pudéssemos ter paz. Mas tomaremos sobre nós sua
doença e, através de nossas feridas, virá a nós a felicidade" (p. 4 0 7 - 4 0 8 ) . As primeiras linhas se referem ao
Sl 108,22; A passagem é um eco de Is $3, que Jung cita acima, p. 229 .
20 5 O esboço continua: "Por que nosso espírito não deve tomar sobre si tormento e falta de paz para a
santificação? Mas tudo isso virá sobre vós, pois já ouço os passos daqueles que receberam a chave para
abrir os portões da profundeza. O barulho das lutas que ressoa por vales e montanhas, o lamento dorido
que se ergue de inúmeros lugares habitados é prenúncio do que virá. Minhas visões são verdade, pois eu
vi o que virá. Mas não deveis acreditar em m im , caso contrário vos desviareis de vosso caminho certo que
vos conduz por via segura exatamente para vosso sofrimento, que eu prevejo. Nenhuma crença vos leve ao
erro, assumi vossa descrença máxima e conduzi-vos ao caminho. Assum i vossa traição e deslealdade, vosso
orgulho e vossa pretensão e chegareis à estrada correta que vos levará ao vosso ínfimo; e o que fazeis ao
vosso ínfimo em vós, isto o fazeis para o Ungido. Não vos esqueçais de uma coisa: nada é abolido da lei do
amor, mas muita coisa lhe é acrescentada. Mas amaldiçoado é aquele que mata por si ou em si aquele que
ama, pois incontável é o número de mortos que morreram por causa do amor, e o mais poderoso entre
esses mortos é o Senhor, o Cristo. Veneração diante desses mortos é sabedoria. O fogo do inferno espera
por aquele que mata dentro de si o que ama. Vós lamentareis e odiareis a impossibilidade de unir em
vós o ínfimo com a lei do amor. Eu vos digo: como Crist o submeteu a natureza do corporal ao espiritual
sob a lei da Palavra do Pai, assim deverá ser submetida a natureza do espiritual ao corporal sob a lei da
lei, completada por Cristo, da obra da salvação através do amor. Vós tendes medo da periculosidade; mas
sabei que onde Deus está mais próximo, aí o perigo é maior. Com o podeis reconhecer o Ungido sem
perigo? Pode-se adquirir uma valiosa pedra preciosa por uma moeda de cobre? O ínfimo em vós é também
vosso perigo. O medo e o perigo são os guardas da porta de vosso caminho. O ínfimo em vós é ilimitado,
pois não o vedes. Portanto, dai-lhe forma e contemplai-o. Com isso abris as comportas do caos. Do mais
escuro, molhado e frio nasce o sol. As pessoas ignorantes dessa época só veem o um; nunca percebem
a aproximação do outro. Mas se existe o um, também existe um outro" (p. 4 0 9 - 4 10 ) . Jung cita aqui
NO X TERTIA 315
Exi s t e u m s o fr i m e n t o q u e se ja gr a n d e d e m a is p o r a m o r a n o sso D e u s ? T u
só vê s u m a c o is a e n ã o p e r ce b e s a o u t r a . M a s se e xist e u m a co isa , e n t ã o e xis t e
t a m b é m u m a o u t r a , e e st a é o í n fi m o e m t i . M a s o í n fi m o e m t i é t a m b é m o
o lh o d o m a l , q u e t e e n c a r a fi xa m e n t e e c o m fr ie z a , e q u e su ga t u a l u z p a r a
d e n t r o d o a b is m o e scu r o . Be n d i z e i a m ã o q u e vo s m a n t é m n o alt o , n o m í n i m o
h u m a n o , n o í n fi m o c o m vid a . N ã o p o u co s v ã o p r e fe r ir a m o r t e . P o is c o m o o
C r i s t o i m p ô s à h u m a n i d a d e o sa cr ifício c r u e n t o , t a m b é m o D e u s r e n o va d o n ã o
p o u p a r á o san gu e.
P o r q u e t e u m a n t o e s t á t ã o ve r m e l h o e t u a r o u p a c o m o a d e q u e m p i s a o
lagar ? E u p iso s o z in h o o lagar e n i n g u é m e st á co m igo . E u m e e s p r e m i e m m i n h a
i r a e p isa d o fu i e m m e u fu r o r . P o r isso m e u sa n gu e b o r r i fo u m i n h a s ve st e s, e e u
s u je i m e u m a n t o p o r in t e ir o . P o is e u m e p r o p u s u m d i a d e vin g a n ç a , ch e go u o
d i a d e m e lib e r t a r . O l h e i e m t o r n o d e m i m , e n ã o h a vi a q u e m m e aju d asse; e u
m e a d m i r e i , e n i n g u é m m e s o c o r r e u , m a s m e u b r a ç o t eve d e m e a ju d a r , e m i n h a
i r a ve i o e m m e u a u xílio . E e u p is e i e m c i m a d e m i m e m m i n h a i r a , e u m e e m -
b r ia gu e i e m m e u fu r o r , e d e r r a m e i m e u sa n gu e so b r e a t e r r a 2 0 6 . P o is e u t o m e i
so b r e m i m m e u d e lit o p a r a q u e D e u s ficasse cu r a d o .
C o m o o C r i s t o d isse q u e n ã o t r o u xe r a a p a z , m a s a e s p a d a 2 0 7 , a s s im a q u e le
q u e a p e r fe iç o a o C r i s t o d e n t r o d e s i n ã o se d a r á a p a z , m a s u m a esp ad a. E l e se
le va n t a r á c o n t r a s i m e s m o , e u m a c o is a e s t a r á d i r i g i d a c o n t r a a o u t r a d e n t r o
d ele. E l e t a m b é m o d i a r á a q u ilo q u e a m a e m s i m e s m o . E l e se r á e m s i m e s m o
flagelad o, e s c a r n e c id o e e n t r e gu e ao t o r m e n t o d a c r u z , e n i n g u é m e s t a r á a s e u
la d o p a r a a b r a n d a r se u t o r m e n t o .
As s i m c o m o o C r i s t o fo i c r u c ific a d o e n t r e o s d o is m a lfe it o r e s , t a m b é m n o s -
so í n fi m o e s t á e m a m b o s os la d o s d e n o sso c a m i n h o . E c o m o u m d o s m a l fe i t o -
r es fo i p a r a o i n fe r n o e o o u t r o s u b i u ao cé u , t a m b é m n o sso í n fi m o e m n ó s se
d ivid ir á e m d u as m e t a d e s n o d i a d e n o sso ju íz o . U m a , d e s t in a d a à c o n d e n a ç ã o
e à m o r t e , a o u t r a , a q u e m ca b e s u b ir p a r a o a l t o 2 0 8 . M a s d e m o r a r á m u i t o a t é
implicitamente as primeiras linhas de Patthos, de Friedrich Hõlderlin, que era um de seus poemas favoritos:
"Perto está / o Deus, e difícil de entender./ Mas onde há perigo, / a salvação também cresce". Jung tratou
disso em Transform ações e sím bolos da libido (1912. O C , B, § 6$is.).
20 6 Essas linhas citam realmente Is 63,2-6.
20 7 Mateus 10,34: "Não penseis que vim trazer paz à terra. Não vim trazer a paz, e sim a espada".
20 8 Em Resposta a Jó (19 52) Jung escreveu sobre o Crist o na cruz: "Este quadro é completado pela presença
de dois malfeitores, um dos quais desce ao inferno e o outro sobe ao paraíso. Não se poderia representar
melhor a antinomia do símbolo central do cristianismo" ( O C , I I , § 6 59 ) .
3i6 LI BE R SECU N D U S 112/ 114
e n t e n d e r e s o q u e e s t á d e s t in a d o à m o r t e e o q u e , à vi d a , p o is o í n fi m o e m t i
a i n d a e s t á i n d i vi s o e m t i , é u m a c o is a só e e m p r o fu n d o son o.
Q u a n d o a ce it o e m m i m o ín fim o , e n t e r r o u m ge r m e n o c h ã o d o in fe r n o .
O ge r m e é i n vi s i ve l m e n t e p e q u e n o , m a s d e le n a sce e cr e sce a á r vo r e d e m i n h a
v i d a q u e liga o i n fe r i o r ao su p e r io r . E m a m b a s as e xt r e m i d a d e s h á fogo e c a lo r
m á xi m o . O s u p e r io r e st á e m fogo e o i n fe r i o r e s t á e m fogo. En t r e os fogos
in s u p o r t á ve is cr e sce t u a vi d a . En t r e esses d o is p o io s e st á s d e p e n d u r a d o . N u m
m o v i m e n t o a t e r r a d o r s e m l i m i t e s o s c ila p a r a c i m a e p a r a b a ixo o p e n d e n t e
d ist e n d id o 20 9 .
P a r a sa lva r as p esso as d e s u a é p o c a d o p e n d e n t e d is t e n d id o , o C r i s t o t o m o u
r e a lm e n t e so b r e si est e t o r m e n t o e e n s i n o u : "Se d e e sp e r t o s c o m o as co b r a s e
s e m fa lsid a d e c o m o as p o m b a s " 2 10 . P o is a e s p e r t e z a a c o n s e lh a c o n t r a o caos, e
a in ge n u id a d e o c u l t a se u a sp e ct o h o r r íve l. P o r t a n t o , as p esso as p o d i a m a n d a r
p e lo se gu r o c a m i n h o d o m e io , c o m l i m i t e p a r a c i m a e p a r a b a ixo .
M a s q u e m e n t r a n o u m e n ã o ao m e s m o t e m p o n o o u t r o , e n q u a n t o a c e it a
a q u ele q u e lh e v e m ao e n c o n t r o , só e n s i n a r á e vi ve r á o u m , e d isso fa r á u m a
r e a lid a d e . P o is ele se t o r n a r á ví t i m a d o u m . Se t u e n t r a s n o u m e p o r isso c o n -
sid e r a s c o m o i n i m i g o o o u t r o q u e lh e v e m ao e n c o n t r o , c o m b a t e r á s o o u t r o .
P o is n ã o vê s q u e o o u t r o t a m b é m e s t á e m t i . T u ach as q u e ele v e m d e q u a lq u e r
20 9 Dieterich observa que no Górgias, de Platão, há o motivo de que os transgressores ficam dependurados
no Hades (Nekyía, p. 117). Na lista de referências de Jung no verso de seu exemplar de Nekyía, escreveu: "117
estão dependurados".
210 Mateus 10,16: "Eu vos envio como ovelhas no meio de lobos; sede, pois, prudentes como as serpentes e
simples como as pombas".
NO X TERTIA 317
m o d o d e fo r a e t u ach as q u e o vê s t a m b é m n a s o p i n i õ e s c o n t r á r ia s a t i e n as
a çõ e s d e t e u s c o n c id a d ã o s . Lá o co m b a t e s e e st á s t o t a lm e n t e cego. M a s q u e m
a c e it a o o u t r o q u e lh e v e m ao e n c o n t r o , p o r q u e t a m b é m já e st á n e le , est e já n ã o
c o m b a t e , m a s o l h a p a r a d e n t r o d e s i e se ca la . / [ Ilu s t r a ç ã o 113] 211 / 112/ 114
211 Legenda da ilustração: "Est a é a imagem da criança divina. Significa a plenitude de uma longa trajetória.
Justo quando a ilustração estava pronta, em abril de 1919, e a próxima estava sendo iniciada, veio aquele
que trouxe o 0 conforme OIAHMÊ2N [Filêmon] me havia predito. Eu o chamei O AN H 2 [Fanes], porque
ele é o Deus recém-aparecendo". 0 pode ser o sinal astrológico para o sol. Na teogonia órfica, Et e r e Ca o s
nasceram de Crono. Cron o fez um ovo em Eter. O ovo se partiu em dois e apareceu Fanes, o primeiro dos
deuses. Guth rie escreve que "ele é imaginado como extraordinariamente belo, uma figura de luz brilhante,
com asas de ouro às costas, quatro olhos e as cabeças de vários animais. Tem os dois sexos, pois deve criar
sozinho a raça dos deuses" ( G U T H R I E . Orpheus and Greek Religíon: A Study of the O rph ic Movement.
Londres: Methuen, 193$, p. 8 0 ) . Em Transformações e símbolos da libido (19 12), ao discutir as concepções
mitológicas da força criativa, Jung chamou a atenção para "a figura órfica de Fanes, o 'brilhante', o
princípio da criação, o 'pai de Eros'. Fanes tem também o significado (órfico) de Priapo, é um Deus do
amor, bissexual e equiparado ao tebano Dioniso Lísio. O sentido órfico de Fanes é igual ao do Kâma
hindu, o Deus do amor que é também um princípio cosmogênico" ( O C , B, § 223). Fanes aparece no Livro
Negro 6, no outono de 1916. Seus atributos condizem com as descrições clássicas, e é descrito como o
brilhante, um Deus de beleza e luz. O exemplar que Jung possuía do livro de Isaac Cory Ancient Lragments of
the Phoenician, Chaldean, Lgyptian, Tyrian, Carthaginian, Indian, Persian, andOtherW ríters; W ith an Introductory Dissertation;
And an Inquíry into the Philosophy and Tríníty of the Ancíents, traz partes sublinhadas na seção sobre a teogonia órfica
e uma tira de papel com a seguinte frase: "Imaginam o Deus como um ovo concebente e concebido, ou
uma veste branca, ou uma nuvem, porque Fanes nasce deles" (Londres: W illiam Pickering, 1832, p. 310 ) .
Fanes é o Deus de Jung. Em 20 de fevereiro de 1917, Fanes é descrito como um pássaro de ouro (Livro Negro
6, p. 119). Em 20 de fevereiro de 1917, Jung se refere a Fanes como o mensageiro de Abraxas (ibid., p. 167).
Em 20 de maio de 1917, Filêmon diz que deseja tornar-se Fanes (ibid., p. 19$). Em 11 de setembro,
Filêmon o descreve assim: "Fanes é o Deus que sobe brilhante das águas. / Fanes é o sorriso da aurora. /
Fanes é o dia luzente. / Ele é o rumorejar das torrentes. / E o galopar dos ventos. / E fome e saciedade. / E
amor e prazer. / E tristeza e consolo. / E promessa e cumprimento. / E a luz que ilum ina toda escuridão. /
É o eterno dia. / E a luz prateada da lua. / E o cintilar das estrelas. / E a estrela cadente que brilha, passa e
se apaga. / E a chuva de estrelas cadentes que se repete a cada ano. / E o sol e a lua que retornam. / E o
cometa que traz guerras e vinho nobre. / E o bem e a plenitude do ano. / Ele enche as horas de encantos de
vida. / E o abraço e o balbucio do amor. / E o calor da amizade. / E a esperança que vivifica o vazio. / E o
esplendor de todos os sóis renovados. / E a alegria por todo nascimento. / E o resplendor das flores. / E o
aveludado das asas das borboletas. / E o aroma dos jardins floridos que enche as noites. / E o canto da
alegria. / E a árvore da luz. / Ele é toda a perfeição, cada aperfeiçoamento. / Ele é tudo que soa bem. / E a
harmonia. / E o número sagrado. / E a promessa de vida. / E o contrato e o sagrado juramento. / E a
multiplicidade de tons e cores. / E a santificação da manhã, do meio-dia e da noite. / E a bondade e a
mansidão. / Ele é a salvação... / Realmente, Fanes é o dia feliz... / Realmente, Fanes é o trabalho, sua
realização e sua paga. / Ele é o labutar cansativo e o repouso noturno. / E o passo no caminho do meio, é
seu começo, sua metade e seu fim. / Ele é a previsão. / E o fim do medo. / E a semente germinativa, o botão
que se abre. / E a porta da recepção, o acolhimento e a hospedagem. / E a fonte e o deserto. / E o porto
seguro e a noite tempestuosa. / E a certeza e a dúvida. / E a segurança na dissolução. / E a libertação do
cativeiro. / E o conselho e a força no caminhar para frente. / E o amigo dos seres humanos, a luz que dele
emana, a luz clara que observa a pessoa em seu caminho. / E a grandeza do ser humano, seu valor e sua
força" (Livro Negro 7, p. 16-19). Em 31 de julho de 1918, o próprio Fanes diz: "O mistério da manhã de verão,
o dia feliz, a realização do momento atual, a plenitude do possível, nascido de sofrimento e alegria, a joia
da eterna beleza, a meta dos 4 caminhos, a fonte e o mar dos 4 caudais, a realização dos 4 sofrimentos e
das 4 alegrias, pai e mãe dos deuses dos 4 ventos, crucifixão, sepultamento, ressurreição e elevação dos
homens a Deus, a máxima ação e o ser nada, mundo e grão, eternidade e momento atual, pobreza e
abastança, desdobramento, morte e renascimento de Deus, suportado por força criativa eterna, brilhando
em toda atividade, amado pelas duas mães e esposas-irmãs, encanto indizivelmente importuno,
incognoscível, impensável, uma ponta de agulha entre a morte e a vida, uma torrente de universos
cobrindo o céu - eu lhe dou o amor humano, o cântaro de opala; ele derrama água, vinho, leite e sangue,
alimento dos homens e dos deuses. / Eu lhe dou a alegria do sofrimento e o sofrimento da alegria. / Eu lhe
dou o encontrado: a duração na mudança e a mudança na duração. / A talha de pedra, o vaso do
3i8 L I B E R S E C U N D U S 112/114
El e v ê a á r vo r e d a vi d a , c u ja s r a íz e s c h e g a m a t é o i n fe r n o e c u ja c o p a t o c a
o c é u . T a m b é m n ã o c o n h e c e s m a i s as d i f e r e n ç a s 2 12 : Q u e m t e m r a z ã o ? Q u e m é
s a n t o ? O q u e é ve r d a d e ? O q u e é b o m ? O q u e e s t á c e r t o ? E l e s ó c o n h e c e u m a
d i fe r e n ç a : a d i fe r e n ç a e n t r e o e m b a i xo e o e m c i m a . P o is e le vê q u e a á r vo r e d a
v i d a c r e s c e d e b a i xo p a r a c i m a , e q u e e m c i m a t e m u m a c o p a n i t i d a m e n t e d i fe -
r e n t e d a s r a íz e s . I s t o é ó b vi o p a r a e le . A s s i m c o n h e c e e le o c a m i n h o d a s a lva ç ã o .
Fa z p a r t e d e t u a s a lva ç ã o q u e d e s a p r e n d a s as d i fe r e n ç a s , e xc e t o e s t a d a d i -
P o r q u e se p a r a st e , d e a c o r d o c o m t u a m e l h o r o p i n i ã o , o b e m d o m a l e s ó a t e n -
t a st e p a r a o b e m e r e n e ga s t e o m a l , q u e a p e s a r d is s o p r a t i c a s t e e n ã o o t o m a s t e
so b r e t i , t u a s r a íz e s n ã o m a i s s u g a r a m a e s c u r a n u t r i ç ã o d a p r o fu n d e z a , e t u a
á r vo r e fi c o u d o e n t e e se c o u .
P o r isso d i z i a m o s a n t igo s q u e , a p ó s A d ã o t e r c o m i d o a m a ç ã , a á r vo r e d o
p a r a í s o s e c o u 2 13 . T u p r e c is a s d o e s c u r o p a r a t u a vi d a . M a s q u a n d o sa b e s q u e é
o m a l , n ã o m a i s o p o d e s a ce it a r , p a ssa s p o r n e c e s s id a d e s e n ã o sa b e s p o r q u ê .
M a s t a m b é m n ã o o p o d e s a c e i t a r c o m o o m a l , ca so c o n t r á r i o t e u b e m t e r e je i t a .
aperfeiçoamento. A água correu para dentro, o vinho correu para dentro, o leite correu para dentro, o
sangue correu para dentro. / O s quatro ventos precipitaram-se para dentro do vaso precioso. / O s deuses
dos quatro cantos do céu conservam sua rotundidade, as duas mães e os dois pais observam-na. O fogo do
Norte queima sobre sua boca, a cobra do Sul rodeia seu chão, o espírito do O rien t e mantém seu lado, e o
espírito do Ocidente mantém seu outro lado. / Eternamente negado, permanece por toda a eternidade.
Retornando sob todas as formas, eternamente o mesmo, o único vaso precioso, apertado pelo círculo dos
animais, nepando-se a si mesmo, e brilhando de modo novo por sua negação. / O coração de Deus e do ser
humano. / E um só e muita coisa. Um caminho que leva através de montanhas e vales, uma estrela-guia no
mar em t i e sempre adiante de ti. / Perfeito, sim , perfeito é aquele que sabe disso. / Perfeição é pobreza.
Mas pobreza significa gratidão. Gratidão é amor ( 2 de agosto). Na verdade, perfeição é o sacrifício. /
Perfeição é alegria e previsão da sombra. / Perfeição é fim . Fim significa começo, por isso perfeição é
pequenez e começo no menor. / Tudo é imperfeito, por isso perfeição é solidão. / Mas a solidão procura
por comunidade. Por isso, perfeição significa comunidade. / Eu sou a perfeição, mas só é perfeito quem
alcançou seus limites. / Eu sou a luz que jamais se apaga, mas é perfeito quem está entre o dia e a noite. Eu
sou o amor que dura para sempre, mas perfeito é quem colocou a faca sacrificial ao lado de seu amor. / Eu
sou a beleza, mas perfeito é quem está sentado perto do muro do templo e remenda sapatos em troca de
pagamento. / O perfeito é simples, solitário e concorde. Por isso procura o variado, a comunidade, o
discordante. Por sobre o variado, o comum, o contestado ele avança para a simplicidade, para a solidão e
para a conformidade. / O perfeito conhece o sofrimento e a alegria, mas eu sou o encanto para além da
alegria do sofrimento. / O perfeito conhece o claro e o escuro, mas eu sou a luz para além do dia e das
trevas. / O perfeito conhece o em cima e o embaixo, mas eu sou a altura para além do alto e do baixo. / O
perfeito é o que cria e o criado, mas eu sou a imagem geradora para além da criação e do criado. / O
perfeito conhece o amar e o ser amado, mas eu sou o amor para além do abraço e da tristeza. / O perfeito
conhece o homem e a mulher, mas eu sou a pessoa, seu pai e seu filho para além da masculinidade e da
feminilidade, para além da criança e do ancião. / O perfeito conhece nascer e ocaso, mas eu sou o ponto
intermédio para além da aurora e do pôr do sol. / O perfeito me conhece e por isso é diferente de m im "
(livro Negro 7, p. 76 - 8 0 ) .
T a m b é m n ã o p o d e s n e ga r q u e co n h e ce s o b e m e o m a l . P o r isso o c o n h e c i m e n -
t o d o b e m e d o m a l fo i u m a m a l d i ç ã o in s u p e r á ve l.
M a s se vo lt a r e s p a r a o caos p r i m i t i vo , se se n t ir e s e co n h e ce r e s o p e n d e n -
t e d i s t e n d i d o e n t r e os p o io s in s u p o r t á ve is d o fogo, p e r c e b e r á s q u e n ã o p o d e s
m a is se p a r a r d e fi n i t i va m e n t e o b e m e o m a l , n e m p e lo s e n t i m e n t o e n e m p e lo
c o n h e c i m e n t o , m a s q u e só t e é d a d o d i s t i n g u i r a d ir e ç ã o d o c r e s c im e n t o , q u e
va i d e b a i xo p a r a c i m a . As s i m d e sa p r e n d e s a d ife r e n ç a e n t r e o b e m e o m a l e
n ã o a sab es m a is e n q u a n t o t u a á r vo r e cr e sce d e b a i xo p a r a c i m a . M a s lo go q u e
co n h e ce s n o va m e n t e o b e m e o m a l .
Ja m a is p o d e s n e ga r d ia n t e d e t i m e s m o o c o n h e c i m e n t o d o b e m e d o m a l ,
d e fo r m a q u e p u d esses e n ga n a r t e u b e m p a r a vi ve r o m a l . T ã o lo go sep a r a s b e m
e m a l , t u os co n h e ce s. Só n o c r e s c i m e n t o e s t ã o a m b o s u n ific a d o s . M a s t u c r e s -
d ú vi d a é u m a ve r d a d e i r a flor d a vid a .
Q u e m n ã o s u p o r t a a d ú vi d a n ã o s u p o r t a a si m e s m o . Es t a p e sso a é in d e c is a ,
fr a co e st á p r ó x i m o d o m a is fo r t e e q u a n d o p o d e d i z e r p a r a s u a d ú vi d a " E u t e
p o d e m d i z e r t u d o , r e p a r a c o m o v i v e m . O q u e u m d i z p o d e sign ifica r m u i t o o u
b e m p o u co . P e sq u isa p o r isso s u a vi d a .
M e u d is c u r s o n ã o é c la r o n e m e scu r o , p o is é o d is c u r s o d e a lg u é m e m c r e s -
c im e n t o .
214 O esboço continua: "Por isso ensinou o Cristo: Felizes sois vós, os pobres, porque vosso é o Reino de
Deus" (p. 4 16 ) . Texto referente a Lc 6,20.
320 LI BE R SECU N D U S 114/ 116
A n o i t e fo i su p e r a d a , u m a ve z q u e t o d a m i n h a v i d a fo i sa cr ifica d a e su fo ca d a n o
e t e r n o co n fu so e p e n d i a d i s t e n d i d a e n t r e os p o io s d e fogo.
p a r a h a ve r u m a p a ssa ge m l i vr e e n t r e a q u i e lá, e n t r e s i m e n ã o , e n t r e e m c i m a
e e m b a ixo , e n t r e d i r e i t a e e sq u e r d a . D e v e m se r c o n s t r u íd a s p assagen s a r e ja d a s
e n t r e t o d a s as co isa s o p o st a s, e st r a d a s p la n a s e fá ce is d e ve m le va r d e u m p o lo
u m a c h a m a q u e n ã o se ja a p a ga d a p e lo ve n t o . U m a t o r r e n t e d e ve c o r r e r p a r a s u a
m e t a m a is p r o fu n d a . O s b a n d o s d e a n i m a i s selvagen s d e ve m v i r a seu s lu ga r e s
d e p a st a ge n s n a s u a t r a d i c i o n a l m igr a ç ã o . A v i d a segu e d a q u i e m d ia n t e s e u
c a m i n h o , d o n a s c i m e n t o à m o r t e , d a m o r t e ao n a s c im e n t o , i n i n t e r r u p t a m e n t e
c o m o o c a m i n h o d o so l. Q u e t u d o fa ça est e c a m i n h o ".
As s i m fa la m i n h a a lm a . M a s e u b r i n c o n e glige n t e e i n s e n s i ve l m e n t e c o m igo
m e s m o . E d i a o u n o it e ? Es t o u d o r m i n d o o u a co r d a d o ? E s t o u vi vo o u já m o r r i ?
T r e va s esp essas m e c e r c a m — u m gr a n d e m u r o — u m ve r m e c i n z e n t o d o
c r e p ú s c u lo se a r r a s t a ao lo n go d ele. E l e t e m u m a c a r a r e d o n d a e r i . A r is a d a é
e n t e r n e c e d o r a e r e a l m e n t e lib e r t a d o r a . A b r o os o lh o s: d ia n t e d e m i m e st á a
go r d a c o z i n h e i r a : " O s e n h o r t e m u m so n o d e ve r a s b o m . O s e n h o r d o r m i u p o r
m a is d e u m a h o r a ".
E u : " E ve r d a d e ? E u d o r m i ? T i v e u m so n h o , u m e s p e t á c u lo h o r r íve l! Pe gu e i
"Be b a u m c o p o d e á gu a , o s e n h o r a i n d a e s t á t o n t o d e so n o ".
E u : "Si m , est e s o n o p o d e d e i xa r a lg u é m t o n t o . O n d e e st á m e u To m á s ? A l i
e st á , a b e r t o n o c a p ít u lo 21: ' O m i n h a a lm a , e m t u d o e a c i m a d e t u d o d e sca n sa
s e m p r e n o Se n h o r , p o r q u e ele é o e t e r n o r e p o u s o d o s s a n t o s "' 2 18 .
L i e st a p a ssa ge m e m vo z a lt a . N ã o e st á d e p o is d e ca d a p a la vr a u m p o n t o d e
in t e r r o ga ç ã o ?
"Se o s e n h o r p e go u n o so n o c o m e st a fr ase, e n t ã o d e ve t e r t id o u m b e lo
so n h o ".
E u : " E u s o n h e i s e m d ú vi d a — p e n s a r e i n o so n h o . M a s , d iga - m e , p a r a q u e m
a s e n h o r a c o z i n h a ?"
"So u c o z i n h e i r a d o s e n h o r b ib lio t e c á r io . E l e go st a d e u m a b o a c o z i n h a , e e u
já e st o u n e st e s e r viç o h á m u i t o s a n o s". / [Ilu s t r a ç ã o 115] 219 / 114/ 116
B: "Si m , p a r a a c o z i n h e i r a ".
E u : "P e r m i t a - m e u m a p e r g u n t a in d is c r e t a : o s e n h o r t a m b é m já t i r o u u m
so n o d e in c u b a ç ã o e m su a c o z i n h a ?"
A c e n a m u d a : p a r e ce q u e o p ú b lic o , n e st e caso e u , p a r t i c i p a d a r e p r e s e n -
t a çã o d o ú l t i m o at o. T e m o s d e a jo e lh a r , p o is o s u p líc io d a Se xt a - fe i r a Sa n t a
c o m e ç a : P a r sifa l e n t r a - c o m p asso s va ga r o so s, a c a b e ç a c o b e r t a c o m u m e l m o
n e gr o ; t r a z so b r e os o m b r o s a p e le d o le ã o d e H é r a c l e s e n a m ã o , a cla va , a lé m
d isso u s a m o d e r n o s ca lçõ e s p r e t o s, p o r ca u sa d o gr a n d e fe r ia d o r e ligio so . E u m e
a r r e p i e i e e s t e n d i as m ã o s e m gest o d e r e p u lsa , m a s a p e ç a c o n t i n u a . P a r s ifa l t i r a
o e l m o d a ca b e ça . M a s n ã o e st á p r e se n t e n e n h u m G u r n e m a n z p a r a a b s o lvê - lo e
u n gi- lo . Ku n d r y e st á lo n ge , e sco n d e a c a b e ç a e r i . O p ú b lic o e st á d e s lu m b r a d o e
se r e c o n h e c e a s i m e s m o e m P a r sifa l. El e é e u . E u m e d is p o d e m i n h a a r m a d u r a
h is t ó r ic o - fa c t u a l, d e m e u o r n a m e n t o q u i m é r i c o e m e d i r i jo e m m i n h a c a m i s o la
d e p e n i t ê n c i a à fo n t e , la vo s e m a ju d a e s t r a n h a m e u s p é s e m ã o s . T i r o e n t ã o
m i n h a c a m is o la e s p i r i t u a l e vi s t o m e u s t r a je s civis. Sa í d e c e n a e a p r o xi m e i - m e
d e m i m m e s m o , p o is e u c o m o p ú b l i c o a i n d a e st a va p ie d o s a m e n t e d e jo e lh o s.
Le va n t e i a m i m m e s m o d o c h ã o e t o r n e i - m e u m c o m igo m e s m o 2 2 1.
221 No Parsifal, Wagner apresentou sua reelaboração da lenda do Graal. O enredo é o seguinte: Tit u rel e
seus cavaleiros cristãos têm o santo Graal sob sua proteção em seu castelo, com uma lança sagrada para
protegê-lo. Klingsor é um feiticeiro que procura o Graal. Ele seduziu os guardas do Graal atraindo-os para
seu jardim mágico, onde existem donzelas-flores e a feiticeira Kundry. Amfortas, filho de Tit u rel, entra no
N O X Q U ART A 323
[2] O q u e s e r i a z o m b a r i a , se n ã o fo sse ve r d a d e i r a z o m b a r i a ? O q u e s e r i a
d ú vi d a , se n ã o fo sse ve r d a d e i r a d ú vi d a ? O q u e s e r i a o p o s i ç ã o , se n ã o fo sse v e r -
d a d e i r a o p o s i ç ã o ? Q u e m q u i s e r a c e i t a r a s i m e s m o d e ve t a m b é m a c e i t a r v e r -
d a d e i r a m e n t e s e u o u t r o . P o is n o s i m , t o d o n ã o é n ã o ve r d a d e i r o , e n o n ã o t o d o
s i m é m e n t i r a . M a s c o m o h o je p o s s o e s t a r n o s i m e a m a n h ã n o n ã o , t a n t o s i m
e n ã o s ã o ve r d a d e i r o s . S i m e n ã o n ã o p o d e m ce d e r , p o is s ã o n o sso s c o n c e i t o s
d e ve r d a d e e d e e r r o .
T u go s t a r ia s d e t e r c e r t e z a s o b r e ve r d a d e e e r r o ? C e r t e z a d e n t r o d o u m
o u d o o u t r o n ã o s ó é p o s s í ve l , m a s t a m b é m n e c e s s á r i o , m a s a c e r t e z a n o u m é
e x c l u i o o u t r o . M a s e n t ã o c o m o p o d e s c h e ga r a o o u t r o ? E p o r q u e o u m n u n -
c a c o n s e gu e b a s t a r - n o s ? O u m n ã o n o s p o d e b a s t a r p o r q u e t a m b é m o o u t r o
e s t á e m n ó s . E se n ó s n o s c o n t e n t á s s e m o s c o m o o u t r o , o o u t r o p a s s a r i a n e -
c e s s id a d e e n o s a t a c a r i a c o m s u a fo m e . M a s n ó s n ã o e n t e n d e m o s e ssa fo m e e
a c r e d i t a m o s t e r s e m p r e m a i s fo m e d o u m e p o r isso n o s a fe r r a m o s m a i s a i n d a
e m n o s s a l u t a p e lo u m .
Ev i d e n t e m e n t e l e va m o s c o m isso a q u e o o u t r o fa ça va l e r e m n ó s c o m m a i s
fo r ç a s u a e xi g ê n c i a . Se e s t i ve r m o s d is p o s t o s e n t ã o a r e c o n h e c e r e m n ó s a e x i -
g ê n c i a d o o u t r o , p o d e m o s p a ssa r p a r a d e n t r o d o o u t r o a f i m d e s a c iá - lo . M a s
s ó p o d e m o s ch e ga r lá p o r q u e o o u t r o fi c o u c o n s c i e n t e p a r a n ó s . M a s se n o s s a
c e g u e ir a a t r a vé s d o u m fo r fo r t e , a fa s t a m o - n o s a i n d a m a i s d o o u t r o , e a b r e - s e
castelo para destruir Klingsor, mas é enfeitiçado por Kun dry e deixa cair a lança sagrada, e Klingsor o fere
com ela. Amfortas precisa do toque da lança para curar a ferida. Gurnemanz, o mais velho dos cavaleiros,
procura Kundry, não sabendo do papel dela no ferimento de Amfortas. Um a voz vinda do santuário do
Graal profetiza que só um jovem sem malícia e inocente pode recuperar a lança. Parsifal entra, depois de
matar um cisne. Não sabendo o seu nome nem o de seu pai, os cavaleiros esperam que seja ele esse jovem.
Gurnemanz leva-o ao castelo de Klingsor. Klingsor manda Kun dry seduzir Parsifal. Parsifal derrota os
cavaleiros de Klingsor. Kun dry é transformada numa linda mulher. Ela o beija. A partir daí, ele percebe
que Kun dry seduziu Amfortas, e a repele. Klingsor arremessa a lança contra ele e Parsifal a agarra. O
castelo e o jardim de Klingsor desaparecem. Depois de muito perambular, Parsifal encontra Gurnem anz,
agora vivendo como eremita. Parsifal está revestido com uma armadura negra e Gurnemanz fica
escandalizado por ele estar armado na Sexta-feira Santa. Parsifal põe a lança diante dele e tira o capacete
e depõe as armas. Gurnemanz reconhece-o e unge-o rei dos cavaleiros do Graal. Parsifal batiza Kundry.
Eles vão ao castelo e pedem a Amfortas que descubra o Graal. Amfortas pede-lhes que o matem. Parsifal
entra e toca-lhe a ferida com a lança. Amfortas é transfigurado e Parsifal, radiante, ergue o Graal. A 16
de maio de 1913, Mensendieck fez uma apresentação à Sociedade Psicanalítica de Zurique sobre "A saga
Graal-Parsival". No debate, Jung disse: "Para o tratamento exaustivo da Saga Graal-Parsifal em Wagner
dever-se-ia acrescentar ainda a consideração sintética de que às diversas personagens correspondem no
artista diversas aspirações. - O fato de a sedução de Kun dry ter malogrado talvez não deva ser explicado
com a proibição do incesto, mas pela medida psíquica da tendência superior do anseio humano" (Atas da
Sociedade Psicanalítica de Zurique, p. 20 . Zurique: Archives of the Psychological Clu b). Em Tipos psicológicos
(1921), Jung apresentou uma interpretação psicológica do Parsifal ( O C, 6, § 4 21-4 22) .
3^4 LI BE R SECU N D U S 116/ 118
u m c a la m it o s o a b is m o e m n ó s e n t r e o u m e o o u t r o . O u m fica su p e r sa cia d o
e o o u t r o s u p e r fa m in t o . O sa cia d o fica p o d r e e o fa m i n t o fica fr aco. E a s s im
a fo ga m o - n o s n a go r d u r a , c o n s u m i d o s p e la escassez.
I s t o é d o e n t io , m a s d esse t ip o vê s m u i t o s . D e v e se r a s s im , m a s t a m b é m n ã o
d e ve se r a ssim . H á r a z õ e s e cau sas su ficie n t e s p a r a se r a s s im , m a s n ó s q u e r e m o s
116/ 117 q u e t a m b é m n ã o / se ja a ssim . F o i d a d a ao se r h u m a n o a lib e r d a d e d e s u p e r a r
t a m b é m as cau sas, p o is ele é c r i a d o r e m si e p o r si m e s m o . Q u a n d o c o n q u is t a s -
t e a t r a vé s d o s o fr i m e n t o d e t e u e s p ír it o a q u e la lib e r d a d e , a p esa r d e t u a m á xi m a
c r e n ç a n o u m , d e a ce it a r t a m b é m o o u t r o p o r q u e t a m b é m o é s, e n t ã o c o m e ç a
t e u c r e s c im e n t o .
Q u a n d o os o u t r o s z o m b a m d e m i m , sã o s e m p r e os o u t r o s q u e o fa z e m ,
e e u p o sso a t r i b u i r - l h e s c u l p a p o r ca u sa d isso e e s q u e c e r - m e d e z o m b a r d e
m i m m e s m o . M a s q u e m n ã o co n se gu e z o m b a r d e s i m e s m o t o r n a - s e o b je t o d e
z o m b a r i a d os o u t r o s. P o r t a n t o , a c e it a t a m b é m t u a a u t o z o m b a r i a , a f i m d e q u e
d e sca ia d e t i o c a r á t e r d e ser es d e u s e h e r ó i e t e t o r n e s t ã o s o m e n t e h u m a n o .
T e u c a r á t e r d e ser es d e u s e h e r ó i é p a r a o o u t r o u m a z o m b a r i a e m t i . P o r a m o r
ao o u t r o e m t i , a b a n d o n a t e u p a p e l m i r a b o l a n t e q u e d e s e m p e n h a s t e a t é a go r a
e t o r n a - t e o q u e és.
Q u e m p o s s u i a ve n t u r a e d e s ve n t u r a d e u m d o m e sp e cia l, s u c u m b e à ilu sã o
d e a c r e d it a r se r ele m e s m o esse d o m . P o r isso ele é t a m b é m m u i t a s ve z e s se u
p r ó p r i o b u fã o . U m d o m e sp e cia l é algo fo r a d e m i m . N ã o s o u a m e s m a co isa
q u e ele. A n a t u r e z a d o d o m n ã o t e m n a d a a ve r c o m a n a t u r e z a d a p esso a, q u e é
se u p o r t a d o r . E l e vi ve in c lu s ive m u i t a s ve z e s à c u s t a d o c a r á t e r d e se u p o r t a d o r .
Su a p e r s o n a lid a d e é m a r c a d a p elas d e sva n t a ge n s d e se u d o m , a t é m e s m o p e la
o p o s i ç ã o a ele. P o r isso, n u n c a e s t á à a l t u r a d e se u d o m , m a s s e m p r e a b a ixo .
Q u a n d o a c e it a s e u o u t r o , t o r n a - s e a p t o a s u p o r t a r se u d o m s e m p r e ju íz o s . M a s
se q u is e r vi ve r a p e n a s e m se u d o m e p o r isso r e je i t a o o u t r o , p e r d e a m e d i d a ,
p o is a n a t u r e z a d e se u d o m é e xt r a - h u m a n a e u m fe n ó m e n o d a n a t u r e z a , o q u e
ele n a ve r d a d e n ã o é. T o d o m u n d o vê s e u e r r o , e ele é ví t i m a d e s u a z o m b a r i a .
D i z ele e n t ã o q u e sã o os o u t r o s q u e d e le z o m b a m , e n q u a n t o é a p e n a s a n e g li -
g ê n c ia d e se u o u t r o q u e o t o r n a r id ícu lo .
Q u a n d o o D e u s e n t r a n a m i n h a vi d a , vo lt o p a r a m i n h a p e q u e n e z p o r a m o r
a D e u s . E u t o m o so b r e m i m o p e so d a p e q u e n e z e ca r r e go t o d a m i n h a fe iu r a
e r id íc u lo e t a m b é m t o d o o d e s p r e z íve l e m m i m . D e s s a m a n e i r a a livio o p e so
d o D e u s d e t u d o o q u e ca u sa c o n fu s ã o e d e t o d a t o lic e q u e so b r e ele c a i r i a m
N O X Q U ART A 325
se e u n ã o o a s s u m is s e . A s s i m p r e p a r o o c a m i n h o p a r a o a gir d e D e u s . A i n d a é
n o i t e , u m a l o n g a n o i t e c h e i a d e i n q u i e t a ç ã o . O q u e v a i a c o n t e c e r ? O s a b is m o s
a m e a ç a d o r e c o m b r i l h o ve r m e l h o ? [ I l u s t r a ç ã o 117] 2 2 2
/ Q u e fo go n ã o fo i a p a ga d o e q u e b r a sa s a i n d a a r d e m ? N ó s s a c r i fi c a m o s 117/ 118
i n ú m e r a s ví t i m a s à p r o fu n d e z a e s c u r a , m a s e l a c o n t i n u a e xi g i n d o m a i s . O q u e
é o d e s e jo a b s u r d o q u e q u e r se r sa t isfe it o ? Q u e m é q u e l e va n t a a g r i t a r i a t r e s -
lo u c a d a ? Q u e m so fr e a s s i m e n t r e os m o r t o s ? Ap r o x i m a - t e e b e b e sa n gu e a f i m
d e q u e p o ssa s fa l a r 2 2 3 . P o r q u e r e cu sa s o sa n gu e ? Q u e r e s le it e ? O u o s u c o v e r -
m e l h o d a vi d e i r a ? Q u e r e s t a lve z a m o r ? A m o r aos m o r t o s ? E n a m o r a m e n t o d o s
m o r t o s ? Exi g e s s e m e n t e d a v i d a p a r a o c o r p o m o r t o h á m i l h a r e s d e a n o s d o
s u b m u n d o ? U m a l i b e r t i n a g e m i m p u r a e i n c e s t u o s a p e lo s m o r t o s . Al g o q u e faz
o sa n gu e e n r e ge la r . T u q u e r e s u m a p r o m i s c u i d a d e l a s c i va c o m o c a d á ve r ? E u
222 Texto na ilustração: "(At m avict u); (iuvenis adiutor) [um jovem ajudante]; ( T EAESO 0 P 0 E)
[ T E LÉS F O RO ] ; Spiritus malus in hominibus quibusdam) (espírito mau em alguns homens)". Legenda
da ilustração: "O dragão quer comer o sol, o jovem implora que não o faça. Apesar disto ele o come".
Atm aviktu (como é grafado aqui) aparece pela primeira vez no Livro Negro 6 em 1917. Eis uma paráfrase
da fantasia de 25 de abril de 1917: A serpente diz que Atm aviktu foi seu companheiro durante milhares
de anos. Era primeiro um velho, depois morreu e tornou-se um urso. Depois morreu e tornou-se uma
lontra. Depois morreu e tornou-se uma salamandra. Depois morreu novamente e tornou-se a serpente. A
serpente é Atm aviktu. Antes disso, ele cometeu um erro e tornou-se um homem, enquanto era ainda uma
serpente terrestre. A alma de Jung diz que Atm aviktu é um duende, um encantador de serpentes, uma
serpente. A serpente diz que ela é o núcleo do eu. De serpente, Atm aviktu transformou-se em Filêmon
(p. 179S.). Existe uma escultura dele no jardim de Jung em Kúsnacht. Em "Das primeiras experiências de
minha vida", Jung escreveu: "Quando eu estive na Inglaterra em 19 20 , esculpi duas figuras semelhantes
de ramo fino sem ter a mais leve lembrança dessa experiência de infância. Um a delas eu reproduzira
em tamanho maior em pedra e esta figura está agora em meu jardim em Kuesnacht. Só nessa época é
que o inconsciente forneceu-me um nome. Ch am ei a figura de Atm avictu - o 'sopro da vida'. É um
desenvolvimento ulterior desse objeto quase-sexual de minha infância, que veio a ser o 'sopro da vida',
o impulso criativo. Basicamente, o homúnculo é um kabir" (JA, p. 29 - 30 . Cf. Memórias, p. 52-53). A figura
de Telésforo é como Fanes na ilustr. 113. Telésforo é um dos cabiros, e o daimon de Asclépio (cf. fig. 77
de Psicologia e alquimia. O C , 12). Foi também considerado um Deus da cura e tinha um templo em Pérgamo
na Ásia Menor. Em 1950, Jung cinzelou uma imagem dele em sua pedra em Bollingen, junto com uma
dedicatória a ele em grego, combinando versos de Heráclito, da Liturgia mitraica e de Homero (Memórias,
p. 26 7) .
223 No livro I I da Odisseia, Ulisses faz uma libação aos mortos para habilitá-los a falar. Walter Burkert
observa: "O s mortos bebem as libações e até o sangue - eles são convidados a vir ao banquete, a saciar-se
com sangue; assim como os líquidos derramados penetram na terra, assim os mortos enviarão coisas boas
para cim a" (Greek Religion. O xford: Basil Blackwell, 1987, p. 194-195 [trad. de J. Raffar]). Jung havia usado
este motivo em sentido metafórico em 1912 em Transformações e símbolos da libido: "esforcei-me, como outrora
Ulisses, por fazer esta sombra [Miss Frank Miller] beber apenas a quantidade suficiente de sangue para
fazê-la falar, a fim de que ela nos revelasse alguns segredos do mundo in ferior" ( O C, B, § 57n .). Por volta
de 1910, Jung empreendeu uma viagem de barco a vela com seus amigos, Albert O eri e Andreas Vischer,
durante a qual O eri leu em voz alta os capítulos da Odisseia que tratam de Circe e a nekyía. Jung observou
que, pouco depois disto, ele "como Ulisses foi presenteado pelo destino com uma nekyía, a descida ao
sombrio Hades" ( JU N G & JAFFÉ. Memórias, sonhos, reflexões, p. 130 ). A passagem que segue, descrevendo
a reanimação da criança pelo profeta, parafraseia a reanimação do filho da viúva sunamita por Eliseu em
2Rs 4,32-36.
326 LI BE R SECU N D U S 116/ 118
T e u í n fi m o e st á n u m so n o s e m e lh a n t e à m o r t e e p r e c is a d o c a lo r d a vi d a ,
q u e c o n t é m o b e m e o m a l i n d i s t i n t o s e in d is t in gu íve is . Es t e é o c a m i n h o d a
vi d a , t u n ã o p o d e s c h a m á - l o d e m a u o u b o m , d e p u r o o u i m p u r o . M a s ist o n ã o
é o b je t ivo e s i m c a m i n h o e p a ssa gem . E t a m b é m d o e n ç a e c o m e ç o d a c u r a . E
a m ã e d e t o d as as in fâ m ia s e d e t o d o s os s í m b o lo s sa lu t a r e s. E a fo r m a m a is
p r i m i t i v a d a cr ia çã o , o p r i m e i r í s s i m o i m p u l s o e scu r o , q u e , n o m a is a b s c ô n d it o ,
a t r a ve ssa os r e ca n t o s se cr e t o s e p assagen s t e n e b r o sa s, c o m a r e gu la r id a d e n ã o
i n t e n c i o n a l d a á gu a , e fe r t i l i z a os lu ga r e s in e sp e r a d o s d e so lo d e scu id a d o , d e
gr et as m in ú s c u la s b r o t a n d o t e r r a seca. E o p r i m e i r o e se cr e t o m e s t r e d a n a t u -
r e z a , q u e e n s i n o u às p la n t a s e a n i m a i s as a st ú cia s e a r t e s a d m ir á ve is e su p e r e s-
p e r t a s, q u e n o ssa r a z ã o m a l co n se gu e e n t e n d e r . É o gr a n d e sá b io , q u e c o n h e c e
o s o b r e - h u m a n o , q u e t e m o d o m í n i o d e t o d a s as ciê n cia s, q u e d a c o n fu s ã o c r i a
a o r d e m e o lh a n d o p a r a a d ia n t e d a p le n i t u d e in c o n c e b íve l p r e d iz co isa s fu t u -
r as. É o c a r á t e r s e r p e n t á r io , o p e r n ic io s o e sa lu t a r , o d e m o n í a c o a t e r r a d o r e
r id ícu lo . É a se t a q u e s e m p r e a t in ge o p o n t o fr aco , a m a n d r á g o r a q u e a b r e as
t e so u r a r ia s t r a n ca d a s.
N ã o p o d e s c h a m á - l o d e e sp e r t o n e m d e b o b o , n e m d e b o m e n e m d e m a u ,
p o is é t o t a lm e n t e d e n a t u r e z a i n u m a n a 2 2 4 . E o filh o d a t e r r a , o e scu r o , q u e t u
d e ve s d e sp e r t a r . E h o m e m e m u l h e r ao m e s m o t e m p o e d e se xo i m a t u r o , r i c o
d e i n t e r p r e t a ç ã o e d e m á in t e r p r e t a ç ã o , t ã o p o b r e e m s e n t id o e a s s im m e s m o
t ã o r ico . Es t e é o q u e e s t á m o r t o , q u e g r i t o u m a is a lt o , q u e e st a va n o p la n o m a is
b a ixo e e sp e r a va , q u e s o fr e u m a is q u e t o d o s. N ã o q u e r san gu e, n e m le it e e n e m
vi n h o p a r a o sa cr ifício aos m o r t o s , m a s a b o a vo n t a d e d e n o ssa c a r n e . Se u d e se -
jo n ã o liga va p a r a os s o fr im e n t o s d e n o sso e sp ír it o , q u e se e s fo r ç a va e m a r t i r i -
z a va p a r a e n t e n d e r o q u e n ã o e r a p a r a se e n t e n d e r , q u e a s i m e s m o se fla gela va
e se e n t r e ga va c o m o o fe r e n d a . Q u a n d o n o sso e s p ír it o ja z i a e sq u a r t e ja d o so b r e
o a lt a r , só e n t ã o o u vi a vo z d o filh o d a t e r r a , só e n t ã o v i q u e ele e r a o gr a n d e
so fr e d o r q u e p r e c is a va d a r e d e n ç ã o . E l e é o e sco lh id o , p o is fo i o m a is r e je it a d o .
E d u r o d i z e r ist o ; t a lve z e u o u ç a m a l , t a lve z e n t e n d a e r r a d o o q u e a p r o fu n d e z a
d iz . É t r is t e d i z e r ist o , m a s p r e c iso d iz ê - lo .
A p r o fu n d e z a se ca la . E l e se e r gu e u , o b s e r va a l u z d o so l e d e m o r a - s e e n t r e
os vivo s . I n q u i e t a ç ã o e d i s c ó r d i a l e va n t a m - s e c o m ele, d ú vi d a e a p l e n i t u d e d a
vid a .
As s i m , e s t á t e r m i n a d o . Re a l é o q u e e r a i r r e a l ; i r r e a l , o q u e e r a r e a l. M a s e u
n ã o d esejo, e u n ã o q u er o , e u n ã o p osso. O m is é r ia h u m a n a ! O fa lt a d e vo n t a d e
e m n ó s! O d ú vid a e d esesp er o! Es t a é r e a lm e n t e a Se xt a - fe ir a Sa n t a e m q u e o
Se n h o r m o r r e u , d e sce u aos in fe r n o s e c o n c l u i u o m i s t é r i o 2 2 5 . Es t a é a Se xt a - fe ir a
Sa n t a e m q u e a p e r fe i ç o a m o s o C r i s t o e m n ó s e e m q u e n ó s m e s m o s d e sce m o s
aos in fe r n o s . Es t a é a Se xt a - fe i r a Sa n t a e m q u e l a m e n t a m o s e c h o r a m o s p o r
ca u sa d o a p e r fe i ç o a m e n t o d e C r i s t o , p o is a p ó s se u a p e r fe i ç o a m e n t o n ó s d e s-
ce m o s aos in fe r n o s . T ã o p o d e r o s o fo i o C r i s t o , q u e s e u r e i n o c o b r i u o m u n d o
t o d o , só d e i xa n d o fo r a d e si o in fe r n o .
Q u e m co n se gu e c o m b o a s r a z õ e s c o n s c iê n c ia p u r a e o b e d e c e n d o à l e i d o
a m o r u lt r a p a ssa r os l i m i t e s d esse r e in o ? Q u e m é, e n t r e os vivo s , o C r i s t o q u e
d esce aos in fe r n o s e m c a r n e viva ? Q u e m é q u e a m p l i a o r e i n o d o C r i s t o p o r
ca u sa d o in fe r n o ? Q u e m é q u e , só b r io , e st á c h e io d e e m b r ia gu e z ? Q u e m é q u e
d o ser u n o d e sce u p a r a o se r d u p lo ? Q u e m é q u e r a sgo u se u p r ó p r i o c o r a ç ã o
p a r a u n i r o se p a r a d o ?
E u o so u , o s e m - n o m e , q u e n ã o se c o n h e c e a si m e s m o e c u jo n o m e e st á
o c u lt o d ia n t e d e le m e s m o . E u n ã o t e n h o n o m e , p o is a i n d a n ã o e r a , m a s só m e
t o r n e i h á p o u co . So u p a r a m i m u m r e b a t iz a d o , e s t r a n h o p a r a m i m . E u , o e u q u e
e u so u , n ã o o so u . M a s e u , o e u a n t e s d e m i m e o e u d e p o is d e m i m , q u e se r á , e u
o s o u c o m ce r t e z a . A o m e r e b a ixa r , e le ve i- m e c o m o u m o u t r o . A o m e a ssu m ir ,
d i v i d i - m e e m d o is, e a o m e c o n c i l i a r c o m igo m e s m o , t o r n e i - m e u m a p e q u e n a
p a r t e d e m e u s i- m e s m o . I s t o e u s o u e m m i n h a c o n s c iê n c ia . N o e n t a n t o , s o u
e m m i n h a c o n s c iê n c ia a s s im c o m o se t a m b é m est ivesse se p a r a d o d isso . E u n ã o
118/ 120 e s t o u / [Ilu s t r a ç ã o 119 ] 2 2 6 / e m m e u se gu n d o e m a io r , c o m o se e u m e s m o fosse
est e se gu n d o e m a io r , m a s e s t o u s e m p r e e m m i n h a c o n s c iê n c ia c o m u m , m a s
t ã o se p a r a d o e d i s t i n t o d isso , c o m o se est ivesse e m m e u se gu n d o e m a io r , m a s
s e m o e st a r r e a lm e n t e d e a co r d o c o m m i n h a c o n s c iê n c ia . E u fiq u e i a t é m e s m o
m e n o r e m a is p o b r e , m a s p r e c is a m e n t e p o r ca u sa d e m i n h a p e q u e n e z p o sso
t o r n a r - m e c o n s c ie n t e d a p r o xi m i d a d e d a gr a n d e z a ,.
Eufuí batízado com água im pura para o renascim ento. Um a cham a de fogo do inferno m e esperava
sobre a pia batísm al. Banheí-m e com im pureza, e com sujeira m e purifiquei. Eu o recolhi, eu o aceitei, o
irm ão divino, ofilhoda terra, o bissexual e im aturo, e durante a noite tornou-se púbere. Nasceram -lhe
dois dentes incisivos, e penugem de barbajuvenil cobriu seu queixo. Eu o segurei, eu o venci, eu o envolvi.
Ele exigiu m uito de m im e assim m esm o contribuiu com tudo. Pois ele éríco; a ele pertence a terra. Mas
seu cavalo preto está separado dele.
226 Legenda da ilustração: "O maldito dragão devorou o sol, abriram-lhe a barriga com uma faca e agora
precisa entregar o ouro do sol, juntamente com seu sangue. Esta é a volta de Atmavictus, o velho. O senhor
que destruía as colinas verdes e vicejantes é o jovem que me ajudou a matar Siegfried". A referência é ao
Líber Prímus, cap. 7, "Assassinato do herói".
227 O esboço continua: "Deixei de lado muitas pessoas, livros e pensamentos por amor a ele, mas muito mais
tirei do mundo presente e fiz o trivial e simples, o mais imediato para seu serviço secreto. Enquanto eu
fazia isso para a escuridão, aproximou-se de m im um outro no caminho da graça. Se me atormentam
intenções e desejos, penso, sinto e ajo dentro do mais próximo. Assim me atinge o mais distante" (p. 434).
N O X Q U ART A 329
228 Em 1944, em Psicologia e alquimia, Jung se refere a uma representação alquímica de um círculo enquadrado
por quatro "rios" no contexto de uma discussão sobre o simbolismo do mandala ( O C, 12, § l6 7n . ) . Jung
comentou sobre os quatro rios do paraíso em diversas ocasiões - cf, por exemplo, Aíon. O C , 9/ 2, § 311,
353, 358, 372.
229 Legenda da ilustração: "XI . M C M XI X. [11.1919: A data parece referir-se ao tempo em que esta ilustração
foi feita]. Esta pedra, de aspecto fascinante, é certamente o Lápis Phílosophorum. Lia é mais dura que o
diamante. Mas estende-se no espaço sob quatro propriedades, quais sejam, largura, altura, profundidade
e tempo. Por isso é invisível e tu podes passar através dela, sem o perceber. Da pedra fluem as quatro
t or r en t es d e aq u ário. Es t a é a sem en t e in co r r u p t ível, colocad a en t r e p a i e m ã e , qu e im p e d e qu e as p on t as
dos dois cones se toquem, a mônada que contrabalança o pleroma". Sobre o pleroma, cf. abaixo, p. 347. Com
referência à semente incorruptível, ver o diálogo com H a, na nota da ilustr. 9 4, p. 29 2, nota 157 acima.
230 Em 3 de junho de 1918, a alma de Jung descreve Filêmon como a alegria da terra: "O s demónios se
reconciliam no ser humano, que se encontrou a si mesmo, que é a fonte das quatro torrentes, ele mesmo
a terra que gera as fontes. De seu cerne jorram águas para os quatro ventos. Ele é o mar que dá à luz o sol,
ele é a montanha que carrega o sol, ele é o pai das quatro grandes torrentes, ele é a cruz que amarra os
quatro grandes demónios. Ele é a semente incorruptível do nada, que por acaso cai através dos espaços.
Esta semente é começo, mais novo do que todos os começos, mais velho que qualquer fim " (Livro Negro 7, p.
61). Alguns motivos dessa afirmação podem ter alguma conexão com esta ilustração. H á uma lacuna entre
julho de 1919 e fevereiro de 19 20 no Livro Negro, 7 quando Jung estava, presumivelmente, escrevendo os Tipos
psicológicos. No dia 23 de fevereiro, há o seguinte parágrafo: "O que há no entremeio, disso se fala no livro dos
sonhos, mais ainda porém se encontra nas ilustrações do Livro Vermelho" (p. 8 8 ) . Em "Sonhos", Jung menciona
em torno de oito sonhos durante este período e a visão, numa noite de agosto de 1919, de dois anjos,
uma massa escura e transparente e uma jovem mulher. Isto sugere que o processo simbólico continua nas
ilustrações do Liber Novus, que não parecem ter referência direta nem ao Liber Novus e nem aos Livros Negros. Em
193$, Jung apresentou uma interpretação psicológica do simbolismo da alquimia medieval, considerando a
pedra filosofal - a meta do opus alquímico - como um símbolo do si-mesmo (Psicologia e alquimia. O C , 12).
231 Legenda da ilustração: "4 . D e c . M CM XI X [1919: A data parece referir-se ao tempo da pintura da
ilustração]. Esta é a parte de trás da joia. Q uem está na pedra tem esta sombra. Este é Atmavictus, o velho,
depois que se retirou da criação. Ele voltou para a interminável história, donde tirou seu começo. Torn ou-
se novamente pedra e resíduo depois que term inou sua criação. Em Izdubar superou em crescimento o ser
humano e a partir dele libertou OIAHMÍ2N (Filêmon) e Ka. <Ê>IAHMQON deu a pedra, Ka deu o 0 ". Este
sinal parece ser um símbolo astrológico para o sol.
232 Sobre Atmavictus, cf. nota à ilustr. 117. Em 20 de maio de 1917, Filêmon disse: "Com o Atmavictus cometi
o erro e me tornei ser humano. Meu nome era Izdubar. E como tal fui a seu encontro. Ele me paralisou.
Sim , o ser humano me paralisou e me transformou numa serpente-dragão. Aconteceu-me a salvação, pois
reconheci meu erro, e o fogo devorou a serpente. E assim se fez Filêmon. Min h a figura é aparência. An tes
disso, m inha aparência era a figura" (Livro Negro 7, p. 195). Em Memórias, disse Jung: "Mais tarde, Filêmon
foi relativizado pela aparição de outro personagem que denominei Ka. No antigo Egito, o ' Ka do Rei'
era considerado sua forma terrestre, sua alma encarnada. Na minha fantasia, a alm a-Ka vinha de sob a
terra como que de um poço profundo. Pin t ei-a em sua forma terrestre como um Hermes, cujo pedestal
era de pedra e a parte superior de bronze. Bem no alto da imagem aparece uma asa de martim-pescador;
entre esta última e a cabeça do Ka paira uma nebulosa redonda e luminosa. A expressão do Ka tem algo
de demoníaco, e mesmo de mefistofélico. Segura numa das mãos uma forma semelhante a um pagode
colorido ou a um cofre de relíquias; na outra segura um estilete e com este trabalha aquele objeto. O Ka
diz sobre si mesmo: 'Eu sou aquele que enterra os deuses no ouro e nas pedras preciosas'./ Filêmon tem
um pé paralisado, mas é um espírito alado, enquanto o Ka é uma espécie de demónio da terra ou dos
metais. Filêmon encarna o aspecto espiritual, o 'sentido'. O Ka, pelo contrário, é um génio da natureza
como o anthroparion da alquimia grega, que eu desconhecia nessa época. O Ka é aquele que torna tudo
real, mas que vela o espírito do martim-pescador, o sentido, ou que o substitui pela beleza, pelo 'eterno
reflexo'./ Com o tempo integrei essas duas figuras. O estudo da alquimia ajudou-me a consegui-lo" (p.
220 - 221) . Wallace Budge observa que "O Ka era uma individualidade abstraía que possuía a forma e
atributos do homem a que pertencia e, ainda que seu lugar normal de moradia fosse no túmulo com o
corpo, podia peregrinar à vontade; era independente da pessoa e podia ir e morar em qualquer estátua
dela" (LgyptíanBookoftheDead, p. lxv). Em 1928, Jung comentou: "Nu m estádio superior de desenvolvimento,
quando já existem representações da alma, nem todas as imagens continuam projetadas... mas um ou outro
complexo podem aproximar-se da consciência, a ponto de não serem percebidos como algo estranho, mas
sim como algo próprio... Tal sentimento fica de certo modo entre o consciente e o inconsciente, numa
zona crepuscular: por um lado pertence ao sujeito da consciência, mas por outro lhe é estranho, mantendo
uma existência autónoma que o opõe ao consciente. De qualquer forma, não obedece necessariamente à
intenção subjetiva, mas é superior a esta, podendo constituir um manancial de inspiração, de advertência,
33o LI BE R SECU N D U S 123/ 124
233
123/ 124 [ I l u s t r a ç ã o 123] /
As três profecias
Ca p . xvi i i .
234
[ I H 124] C o i s a s a d m ir á ve is se a p r o xi m a m . E u c h a m e i m i n h a a l m a e lh e p e d i
q u e m e r gu lh a sse n o a la ga d o u r o , c u jo b a r u l h o e u p e r ce b e r a . I s t o a c o n t e c e u n o
d ia 22 d e ja n e i r o d e 1914, c o m o v e m r e la t a d o e m m e u Livro Negro. M e r g u l h o u
n o e scu r o , c o m a r a p id e z d e u m a flecha, e lá d o fu n d o e la gr it o u : " T u a ce it a r á s
o q u e v o u t r a z e r ?"
ou de informação 'sobrenatural'. Psicologicamente, tal conteúdo poderá ser explicado como sendo um
complexo parcialmente autónomo e não totalmente integrado à consciência. Esses complexos são as
almas primitivas, as ba e ka egípcias" ( O C, 7, § 29 5) . Em 1956, Jung descreveu o anthroparion na alquimia
como "uma espécie de duende que, na qualidade de 7tV8l)| Lia mxpeôpov (espírito devotado) ou sptrítus
famílíarís, assiste o adepto no opus e ajuda o médico a ajudar os outros" ( O C, 14, § 29 8 ) . O anthroparion
representava os metais alquímicos ( O C, 9/ 1, § 26 8 ) e aparecia nas visões de Zósim o ( O C, 13, p. 6is.). O
desenho do Ka, a que Jung se refere não veio à luz. Ka apareceu a Jung numa fantasia de 22 de outubro de
1917, na qual ele mesmo se apresenta como o outro lado de H a, sua alma. Foi Ka que deu a H a as runas e a
sabedoria inferior (veja nota 155, pp. 28 9 - 29 0 ) . Seus olhos eram de ouro puro e seu corpo, de ferro preto.
Ele diz a Jung e à sua alma que eles precisam de seu segredo, que é a essência de toda a magia. Isto é amor.
Filêmon diz que Ka é a sombra de Filêmon (Livro Negro 7, p. 25S.). Em 20 de novembro, Ka chama Filêmon
de sua sombra e seu mensageiro. Ka diz que é eterno e permanece, ao passo que Filêmon é efémero e
passageiro (p. 34). Em 10 de fevereiro de 1918, Ka diz que construiu um templo como prisão e sepultura
para os deuses (p. 39 ) . Ka sobressai no Livro Negro 7 até 1923. Durante este período, Jung tenta entender
a conexão entre Ka, Filêmon e as outras figuras, e estabelecer a correta relação a eles. A 15 de outubro de
1920, Jung discutiu um quadro não identificado com Constance Long, que estava fazendo análise com
ele. Alguns comentários anotados por ela, lançavam luz sobre a compreensão que ele tinha da relação
entre Filêmon e Ka: "As duas figuras em cada lado são personificações dos 'pais' dominadores. Um a é
o pai criativo, Ka; a outra, Filêmon, aquele que dá forma e vida (o instinto formativo). Ka equivaleria a
Diôniso e F = Apolo. Filêmon dá formulação às coisas presentes nos elementos do inconsciente coletivo...
Filêmon dá a ideia (talvez de um deus), mas esta permanece flutuante, distante e indistinta, porque todas
as coisas que ele inventa são aladas. Mas Ka dá substância e é chamado aquele que sepulta os deuses em
ouro e mármore. Ele tem tendência a desprezá-los na matéria, e por isso eles correm o perigo de perder
seu sentido espiritual e de ficar sepultados na pedra. Assim o templo pode tornar-se o túmulo de Deus,
assim como a Igreja tornou-se o túmulo de Cristo. Quanto mais a Igreja se expande, tanto mais Crist o
morre. Não se deve perm itir a K produzir demais - você não deve depender da substanciação; mas
se for produzida muito pouca substância a criatura flutua. A função transcendente é o todo. Não este
quadro, nem minha racionalização dele, mas o novo e vivificante espírito criativo que é o resultado da
comunicação entre a inteligência consciente e o lado criativo. Ka é sensação, F é intuição, ele é também
supra-humano (ele é Zaratustra, extravagantemente superior no que ele diz e frio. C G J não im prim iu as
perguntas que dirigiu a F nem as respostas deste)... Ka e Filêmon são maiores do que o homem, eles são
supra-humanos (Desintegrado neles, o indivíduo está no Inconsciente Colet ivo)" (Diário, Countway
Library of Medicine, p. 32-33).
233 Legenda da ilustração: " I V Ja n .M CM XX [4 de janeiro de 19 20: A data parece referir-se ao tempo em
que a ilustração foi feita]. Este é o sagrado regador. Das flores que brotaram do corpo do dragão crescem
os cabiros. Em cima está o templo".
234 No Livro Negro 4, Jung observou: "Depois disso, prossigo com a tensão de uma pessoa que espera algo
novo, que antes nunca lhe havia ocorrido. Advertido, instruído e ouvindo corajosamente a profundeza,
esforçado em viver para fora uma vida plenamente humana" (p. 4 2) .
AS T RÊS P R O F E C I A S 331
A : "En t ã o e scu t a : e xi s t e m a q u i e m b a i xo ve lh a s a r m a d u r a s , fe r r a m e n t a s d e
n o sso s p a is, c a r c o m id a s p e la fe r r u g e m , c o r r e ia s d e c o u r o e m b o lo r a d a s e s t ã o
q u e b r a d a s, e scu d o s a p o d r e cid o s, ca ve ir a s, p e r n a s d e h o m e n s e d e ca va lo s m o r -
t o s, ve lh o s c a n h õ e s , ca t a p u lt a s, a r c h o t e s d e co m p o st o s, s in a liz a d o r e s d e s t r o ç a -
p a r a flechas - t u d o o q u e as gu e r r a s d e o u t r o r a a b a n d o n a va m n o c a m p o d e
b a t a lh a . Q u e r e s a ce it a r t u d o isso ?"
d e n t e s, d e ca b e lo s e u n h a s h u m a n o s , p a u s a m a r r a d o s , b o la s p r e t a s, p eles d e a n i -
m a is a b a t id o s - t o d a s as s u p e r s t iç õ e s t r a m a d a s p e lo s a t r o s t e m p o s d o p assad o.
Q u e r e s t u d o isso ?"
sa cr ifício d e cr ia n ça s - e xt e r m í n i o d e p o vo s i n t e i r o s - i n c ê n d i o - t r a iç ã o -
g u e r r a - r e vo lu ç ã o - q u e r e s t a m b é m isso ?"
A : "En c o n t r o e p id e m ia s - ca t á st r o fe s d a n a t u r e z a - n a vio s a fu n d a d o s - c i -
d a d e s d e s t r u íd a s - se lva ge r ia t e r r i ve l m e n t e a n i m a l - fo m e - fa lt a d e a m o r d as
p esso as — e m e d o — m o n t a n h a s i n t e i r a s d e m e d o ".
A : "En c o n t r o os t e so u r o s d e t o d a s as c u lt u r a s p assad as - im a ge n s m a g n í -
ficas d e d e u se s - t e m p lo s e n o r m e s - p in t u r a s - r o lo s d e p a p ir o - fo lh a s d e
p e r g a m i n h o c o m a e s c r it a d e lín gu a s m o r t a s — livr o s ch e io s d e s a b e d o r ia e x-
t i n t a - c a n t o s e h i n o s d e a n t igo s sa ce r d o t e s - as h is t ó r ia s q u e fo r a m co n t a d a s
d u r a n t e m i l h a r e s d e ge r a ç õ e s ".
A : " N ã o q u e r ia s a ce it a r t u d o ? N ã o co n h e ce s t eu s li m i t e s . N ã o co n se gu e s
r e s t r i n g i r - t e ?"
E u : "T e n h o d e r e s t r i n g i r - m e . Q u e m p o d e r i a a b a r ca r e st a r iq u e z a ?"
332 LI BE R SECU N D U S 124/ 126
A . "Sê m o d e s t o e c o n s t r ó i t e u j a r d i m c o m s o b r ie d a d e " 2 35 .
E u : "Q u e r o fa z ê - lo . Ve j o q u e n ã o a d i a n t a c o n q u is t a r u m p e d a ç o m a i o r d a
i n c o m e n s u r a b i l i d a d e e m ve z d e u m m e n o r . U m p e q u e n o j a r d i m b e m c u id a d o é
m e l h o r q u e u m j a r d i m gr a n d e e m a l cu id a d o . E m vi s t a d a i n c o m e n s u r a b i li d a d e ,
a m b o s os ja r d i n s sã o igu a lm e n t e p e q u e n o s, m a s cu id a d o s d e sigu a lm e n t e ".
A : "P e ga u m a t e so u r a e p o d a t u as á r vo r e s ".
[2] A p a r t i r d a e s c u r id ã o i n u n d a n t e q u e o filh o d a t e r r a h a vi a t r a z id o , a a l m a
d e u - m e co isas ve lh a s, q u e s ign ific a m o fu t u r o . D e u - m e t r ê s coisas: a c a l a m i d a -
d e d a gu e r r a , as t r e va s d a fe it iça r ia , a d á d i va d a r e ligiã o .
Se fo r es in t e lige n t e , e n t e n d e r á s q u e essas t r ês co isa s e s t ã o i n t e r - r e l a c i o -
n a d a s. Essa s t r ê s s ign ific a m a lib e r t a ç ã o d o caos e d e su as fo r ça s, m a s as t r ê s
sã o igu a lm e n t e o a p r i s i o n a m e n t o d o caos. A g u e r r a é m a n ife s t a e c a d a q u a l a
vê . A fe it iça r ia é e s c u r a e n i n g u é m a vê . A r e ligiã o a i n d a n ã o é m a n ife s t a , m a s
se r á . Pe n sa st e q u e os h o r r o r e s d e s e m e lh a n t e a t r o cid a d e b é lic a v i r i a m so b r e
n ó s? Pe n sa st e q u e e xist isse fe it iça r ia ? Pe n sa st e n u m a n o va r e ligiã o ? E u fiq u e i
se n t a d o p o r lo n ga s n o it e s, o lh a va p a r a o vi n d o u r o e fica va h o r r o r i z a d o . N ã o
m e a cr e d it a s? N ã o m e i m p o r t a . O q u e é a c r e d it a r ? O q u e é n ã o a c r e d it a r ? E u
o b s e r va va e m e h o r r o r i z a va .
M a s o m e u e s p ír it o n ã o co n se gu ia c a p t a r o m o n s t r u o s o , i m a g i n a r a a b r a n -
gê n c ia d o vi n d o u r o . A fo r ça d e se u d e se jo se esgo t ava, e s e m fo r ça s c a e m as
m ã o s q u e c o lh e m . E u s e n t ia o p e so d o t r a b a lh o m a is t e r r íve l d o s t e m p o s v i n -
d o u r o s. E u v i a o n d e e co m o , m a s n e n h u m a p a la vr a co n se gu ia d e fin i- lo , n e n h u -
m a vo n t a d e p o d e fo r çá - lo . N ã o p u d e fa z e r o u t r a co isa , d e i xe i - o c a ir d e n o vo
n a p r o fu n d e z a .
N ã o p o sso d á - l o a t i , só p o sso fa la r d o c a m i n h o d o vi n d o u r o . P o u c a c o is a
d e b o m vi r á a vó s d e fo r a . O q u e cab e a vó s e st á d e n t r o d e vó s . M a s o q u e e st á
lá! Go s t a r i a d e d e svia r os m e u s o lh o s, fe ch a r m e u s o u vid o s e r e n e ga r t o d o s os
m e u s se n t id o s, go st a r ia d e se r u m e n t r e vó s , q u e n a d a sab e e q u e n u n c a v i u
n a d a . E d e m a is e p o r d e m a is in e sp e r a d o . M a s e u o v i e m i n h a l e m b r a n ç a n ã o
235 Estas são as últimas linhas de Candide, de Voltaire: "Tout cela est bien dit - mais il faut cultiver notre
jardin " [Tudo isto está bem dito - mas é preciso cultivar nosso jardim ], Candide and Other Stories (O xford:
O xford University Press, 1759/ 1998, p. 392-393 [Trad. de R. Pearson]). Jung guardava um busto de
Voltaire em seu gabinete.
AS T RÊS P R O F E C I A S 333
m e a b a n d o n a 2 3 6 . M a s m e u d e se jo q u e go st a r ia d e e st e n d e r - se p a r a o fu t u r o , e u
o c o r t o e vo l t o p a r a m e u p e q u e n o j a r d i m q u e e st á a t u a lm e n t e e m flor e c u ja
d i m e n s ã o e u p o sso ca lcu la r . E l e d e ve ser cu id a d o .
O fu t u r o d e ve s e r d e ixa d o p a r a o s fu t u r o s. E u r e t o r n o a o p e q u e n o e r e a l,
p o is est e é o gr a n d e c a m i n h o , o c a m i n h o d a q u e le q u e vir á . E u r e t o r n o p a r a
m i n h a s im p le s r e a lid a d e , p a r a m i n h a in c o n t e s t á ve l p e d r a m e n o r . E e u t o m o
d e u m a fa ca e co lo co so b ju lg a m e n t o t u d o o q u e c r e s c e u s e m m e d i d a e s e m
o b je t ivo . Re a l m e n t e , m a t a s c r e s c e r a m a m e u r e d o r , p la n t a s t r e p a d e ir a s s o b e m
e m m i m , s o u t o t a lm e n t e c o b e r t o p o r co isas q u e vi c e j a m s e m fi m . A p r o fu n d e z a
é in e s go t á ve l, e la d á d e t u d o . T u d o é t ã o b o m c o m o n a d a . F i c a c o m u m p o u c o
e t e r á s a lg u m a co isa . E s e m m e d i d a c o n h e c e r e r e c o n h e c e r t u a c o b i ç a e t u a
237
a m b i ç ã o ; r e u n ir , / [ Ilu s t r a ç ã o 125] / m o n t a r , ab r an ger , t o r n a r ú t il, in flu e n c ia r , 124/ 126
d o m i n a r , o r d e n a r , d a r s e n t id o e i n t e r p r e t a ç ã o a t e u vício .
É d e sva r io , c o m o t u d o q u e u lt r a p a ssa seu s lim it e s . C o m o p o d e s r e t e r o q u e
n ã o és? T u go st a r ia s d e s u b m e t e r o t o d o , q u e t u n ã o é s, a o ju go d e t e u m i s e -
r á ve l sa b e r e c o n h e c e r ? P e n s a b e m , t u p o d e s c o n h e c e r a t i , e c o m isso sab es o
su ficie n t e . M a s t u n ã o p o d e s c o n h e c e r o o u t r o e t o d o o o u t r o . C u i d a p a r a n ã o
sab er es a lé m d e t i , s e n ã o afogas c o m a p r e s u n ç ã o d e t e u sa b e r a v i d a d o o u t r o ,
q u e se co n h e ce a s i m e sm o . U m co gn o sce n t e p o d e c o n h e c e r a s i m e s m o . Es t e
é se u l i m i t e .
C o m u m go lp e d o lo r o so , c o r t o o q u e p r e t e n d i sa b e r so b r e o a lé m d e m i m .
E u m e a m p u t o d o e m a r a n h a d o a r d ilo s o d o s sign ifica d o s q u e e u d e i a o a lé m d e
m i m . E m i n h a fa ca c o r t a a i n d a m a is fu n d o e m e se p a r a d o s sign ifica d o s q u e d e i
a m i m m e s m o . Ap r o fu n d o o c o r t e a t é a m e d u l a , a t é q u e t o d o o sign ifica t ivo se
d e s p r e n d a d e m i m , a t é n ã o s e r m a is n a d a d o q u e p o d e r i a p a r e c e r a m i m , a t é
sa b e r a p e n a s a i n d a q u e so u , s e m sa b e r o q u e so u . Q u e r o se r p o b r e e s im p le s ,
q u e r o e st a r n u d ia n t e d o Im p la c á ve l. Q u e r o s e r m e u c o r p o e su a in d igê n c ia .
Q u e r o s e r d e t e r r a e vi ve r s u a l e i . Q u e r o s e r m e u a n i m a l h u m a n o e a ce it a r
t o d o s o s seu s t e m o r e s e p r a z e r e s. Q u e r o p a ssa r p e lo l a m e n t o e fe licid a d e d a -
236 O esboço continua: "Com o posso abarcar dentro de m im aquilo que os 8 0 0 anos vindouros vão preencher,
até aquele tempo em que o um [mostrará] seu domínio? Só falo do caminho daquele que vem " (p. 4 4 0 ) .
237 A cena na paisagem representa de perto a cena que ocorre em uma das fantasias de Jung em estado
de vigília durante a infância, relatada em Memórias, em que a Alsácia é submersa pela água, Basileia é
transformada num porto, existe um navio a vela e um navio a vapor, uma cidade medieval, um castelo com
canhões e soldados e habitantes da cidade, e um canal (p. 111-112).
334 LI BE R SECU N D U S 124/ 126
q u e le q u e fica va c o m c o r p o p o b r e e d e s a r m a d o so b r e t e r r a e n so la r a d a , s o z in h o ,
u m a p r e s a d e se u i n s t i n t o e d o s a n i m a i s selvagen s à e s p r e it a , d a q u e le q u e fo r a
a ssu st a d o p o r fa n t a sm a s e s o n h a va c o m d e u se s d ist a n t e s, d a q u e le q u e p o s s u ía a
p r o xi m i d a d e e ao q u a l e r a h o s t i l a d is t â n c ia d a q u e le q u e t i r a va fogo d e p e d r a s e
d o q u a l fo r ça s ir r e c o n h e c íve is r o u b a va m os r e b a n h o s e d e s t r u í a m a s e m e n t e i r a
d e se u ca m p o , d a q u e le q u e n ã o sa b ia e n ã o c o n h e c ia , m a s vi vi a se gu n d o o p r ó -
xi m o , e ao q u a l co u b e p o r gr a ç a o r e m o t o .
E r a u m a c r ia n ç a e in se gu r a , e n o e n t a n t o c h e i a d e se gu r a n ç a , fr a ca e c o n t u -
d o d e t e n t o r a d e fo r ç a i n a u d i t a . Q u a n d o s e u D e u s n ã o a ju d o u , t o m o u u m o u -
t r o. E q u a n d o est e t a m b é m n ã o a ju d o u , e la o ca st igo u . E e n t ã o : n u m a p r ó xi m a
r e sp o n sa b ilid a d e , a r r a st á - lo s cu id a d o sa m e n t e co m igo , c o n t á - lo s e d a r - lh e s n o m e
e c o m fé p r o t e g ê - l o s d a d e s c r e n ç a e d a d ú vid a .
U m h o m e m l i vr e só co n h e c e d e u se s e d e m ó n i o s livr e s , q u e s u b s is t e m p o r s i
e a t u a m c o m fo r ç a p r ó p r ia . Se n ã o a t u a m , é p r o b l e m a d e le s, e e u p o sso a l i vi a r -
- m e d esse far d o. M a s se a t u a m , n ã o p r e c i s a m d e m i n h a p r o t e ç ã o , n e m d e m e u s
c u id a d o s e n e m d e m i n h a fé. P o r isso p o d e s e sp e r a r t r a n q u i l a m e n t e p a r a ve r se
a t u a m . E q u a n d o a t u a m , sê e sp e r t o , p o is o t igr e é m a is fo r t e q u e t u . T u d e ve s
d e u m D e u s . A v i d a é l i vr e e e sco lh e se u c a m i n h o . Es t á l i m i t a d a o b a st a n t e , p o r
isso n ã o a u m e n t e s as b a r r e ir a s . P o r isso c o r t e i t u d o o q u e l i m i t a va . A q u i e st a va
e u , e lá ja z i a o m u l t i fo r m e e n i g m á t i c o d o m u n d o .
E u m p a vo r m e i n va d i u . N ã o s o u e u o l i m i t a d o ? E o m u n d o d e lá n ã o é o
i l i m i t a d o ? E m i n h a fr a q u e z a se t o r n o u c o n s c ie n t e p a r a m i m . O q u e s e r ia p o -
b r e z a , n u d e z , d e s a r m a m e n t o s e m a c o n s c iê n c ia d a fr a q u e z a e s e m o h o r r o r d a
i m p o t ê n c i a ? Fi q u e i p a r a d o e m e h o r r o r i z e i . En t ã o m i n h a a l m a m e s u s s u r r o u :
O D O M D A M AGI A 335
O dom da magia
Ca p . x i x .
238
[ I H 126] " N ã o o u ve s a lgu m a co isa ?"
E u : "N a d a d e q u e t e n h a c o n s c iê n c ia , o q u e d e vo e scu t a r ?"
A : " U m s o m ".
E u : " U m so m ? D e o n d e ? N ã o e scu t o n a d a ".
A : "En t ã o e scu t a m e l h o r ".
E u : "T a l ve z c o m o o u vid o e sq u e r d o . O q u e sign ifica ?"
A : "D e s g r a ç a ".
E u : "Ac e it o o q u e d iz e s. T e r e i so r t e e d e s gr a ç a ".
A : "Es t e n d e p o is t u a s m ã o s p a r a c i m a e r e ce b e o q u e t e cab e".
E u : " O q u e é? U m a va r a . U m a c o b r a p r e t a ? U m a va r a p r e t a , d a fo r m a d e
u m a c o b r a — d u as p é r o la s c o m o o lh o s - u m a c o r r e n t i n h a d e o u r o ao p e s c o ç o .
N ã o se p a r e ce c o m u m a v a r i n h a d e c o n d ã o ?"
A : "I s t o é u m a v a r i n h a d e c o n d ã o ".
E u : " O q u e s ign ific a m a gia p a r a m i m ? A v a r i n h a d e c o n d ã o é u m a d e sgr a ça ?
A m a g ia é u m a d e s gr a ç a ?"
E u : "C u s t a e la o sa cr ifício d o a m o r ? D a h u m a n i d a d e ? En t ã o t o m a a va r a d e
vo lt a ".
A : " N ã o sejas p r e c ip it a d o . A m a g ia n ã o e xige est e sa cr ifício . E l a e xige o u t r o
sa cr ifício ".
E u : " Q u a l é o sa cr ifício ?"
Eu : "Co n s o l o ? E s t o u e n t e n d e n d o b e m ? É i n c r i ve l m e n t e d ifícil e n t e n d e r - t e .
D i z e o q u e ist o sign ifica ".
A : " O co n so lo é p a r a ser o fe r e cid o e m sa cr ifício ".
Eu : "C o m o im a gin a s isso ? O co n so lo q u e e u d o u o u q u e r e ce b o d e ve se r
o fe r e cid o e m sa cr ifício ?"
A : "As d u a s co isa s".
Eu : "E s t o u co n fu so . E m u i t o o b sc u r o ".
A : "P o r a m o r à v a r a p r e t a t e n s d e sa cr ifica r o co n so lo , o c o n so lo q u e d á s e o
c o n so lo q u e r e ce b e s".
E u : " N ã o d e vo r e ce b e r o c o n s o lo p o r p a r t e d a q u e le q u e e u a m o ? E n ã o d e vo
d a r n e n h u m c o n so lo à q u e le s q u e e u a m o ? I s t o s ign ific a a p e r d a d e u m p e d a ç o
d a h u m a n i d a d e e e m se u lu ga r e n t r a a q u ilo q u e c h a m a m o s d e d u r e z a c o n t r a s i
m e s m o e c o n t r a os o u t r o s " 2 3 9 .
A . "As s i m é".
E u : "A va r a e xige est e sa cr ifício ?"
A : " E l a e xige est e sa cr ifício ".
E u : "P o sso e u , d e vo e u fa z e r est e sa cr ifício p o r a m o r à va r a ? P r e c is o a ce it a r
a va r a ?"
A : "Q u e r e s o u n ã o q u e r e s?"
E u : " N ã o se i d iz e r . O q u e se i a r e s p e it o d a va r a p r e t a ? Q u e m a d á p a r a
m im ?"
A : "A e s c u r id ã o q u e e st á d e it a d a d ia n t e d e t i . E a p r ó xi m a co isa q u e t e cab e.
Q u e r e s a c e it á - la e o fe r e c e r - lh e t e u sa cr ifício ?"
239 Em Eccehomo, Nietzsche escreveu: "Toda aquisição, todo passo adiante no conhecimento é o resultado de
coragem, de severidade consigo mesmo, de limpeza com relação a si mesmo" (Harm ondsworth: Penguin,
1979, prefácio 3, p. 34 [Trad. de R J. Hollin gdale]).
24 0 Inscrição ao alto: "Amor triumphat". Inscrição ao pé: "Este quadro foi terminado em 9 de janeiro de
1921, após ter esperado, inacabado, por 9 meses. Ele expressa, não sei, que espécie de tristeza, um sacrifício
quádruplo. Quase não consegui decidir-me a acabá-lo. E a roda inexorável das quatro funções, a natureza
cheia de sacrifícios de tudo o que vive". Em 23 de fevereiro de 19 20 , Jung observou no Livro Negro 7: "O
O D O M D A M AGI A 337
c o m t o r n iq u e t e s d e b r o n z e ? E u m e alegr ei c o m o ca lo r d a vid a . D e v o p e r d ê - lo ? -
p o r a m o r à m a gia ? O q u e é m a gia ?"
A : "E s t a ú l t i m a p a r e ce se r a h i p ó t e s e vá lid a . Ab a n d o n a t eu s p r e c o n c e it o s
cegos e a t it u d e s cr ít ica s, caso c o n t r á r i o n u n c a ir á s e n t e n d e r n a d a . Q u e r e s a i n d a
d e s p e r d i ç a r m u i t o s a n o s e sp e r a n d o ?"
E u : " T e m p a c iê n c ia , m i n h a c iê n c ia a i n d a n ã o fo i ve n c i d a ".
A : "Es t á m a is q u e n a h o r a d e a ve n c e r e s ".
E u : " T u exiges m u i t o , q u ase m u i t o d e m a is. E m ú l t i m a a n á lise — a c iê n c ia é
in d is p e n s á ve l à vid a ? A c iê n c ia é vid a ? H á p esso as q u e v i v e m s e m ciê n cia . M a s
su b ju ga r a c iê n c ia p o r a m o r à m a gia ? I s t o é s i n i s t r o e a m e a ç a d o r ".
E u : " T u d e ixa s t u d o t ã o s o m b r i o e co n fu so p a r a m i m . N ã o t e n s u m a p a la vr a
de lu z p ar a m im ?"
A : " O h - p e d e s co n so lo ? Q u e r e s a va r a o u n ã o ?"
E u : " T u d ila ce r a s m e u co r a çã o . E u q u e r o s u b m e t e r - m e á v i d a - p o r m a is p e -
n o so q u e seja! E u q u e r o a va r a p r e t a , p o r q u e é a p r i m e i r a c o is a q u e a e s c u r id ã o
m e d á . N ã o se i o q u e e st a va r a s ign ific a n e m o q u e e la d á — e u só s in t o o q u e e la
t ir a . V o u a jo e l h a r - m e e r e ce b e r a va r a p r e t a e a segu r o, a e n igm á t ic a , e m m i n h a
m ã o - é fr i a e p e sa d a c o m o fe r r o . O s o lh o s p e r o lífe r o s d a c o b r a m e e n c a r a m
cega e c i n t i l a n t e m e n t e . O q u e q u e r e s, d á d i va m is t e r io s a ? T o d a a e s c u r id ã o ,
t o d o o m u n d o p r i m e vo se c o m p a c t a m e m t i , a ç o d u r o e p r e t o ! E s t u t e m p o e
que acontece entre o amante e o amado é toda a plenitude da divindade. Por isso eles são os dois enigmas
insondáveis. Pois quem entende a divindade? / Mas Deus é gerado na solidão, a partir do mistério do
indivíduo. / A separação entre vida e amor é a contradição entre ser um só e ser dois" (p. 88). A próxima
anotação no Livro Negro 7 acontece em 5 de setembro de 1921. Em março de 19 20 , Jung foi para o norte da
Africa com Herm an n Sigg, voltando em 17 de abril.
338 LI BE R SECU N D U S 128/ 130
d e st in o ? Es s ê n c ia d a n a t u r e z a , d u r a e e t e r n a m e n t e d e sco n so la d o r a , m a s s o m a
d e t o d a fo r ça m i s t e r i o s a d a cr ia çã o ? An t i q u í s s i m a s fó r m u la s m á gic a s p a r e c e m
b r o t a r d e t i - e fe it o m i s t e r i o s o t ece e m t o r n o d e t i - q u e a r t e s p o d e r o sa s d o r -
m i t a m e m t i? T u m e t r a n sp a ssa s c o m t e n s ã o i n s u p o r t á ve l - q u e t r a ve ssu r a s va is
a p r o n t a r ? Q u e m i s t é r i o a ssu st a d o r va is c r ia r ? Va i s t r a z e r t e m p o r a is , ve n t a n ia s ,
fr io e r a io s o u t o r n a r á s p r o d u t i vo s os c a m p o s e a b e n ç o a r á s o ve n t r e d a gr á vid a ?
Q u a l é a c a r a c t e r ís t ic a d e t e u ser ? O u n ã o p r e cisa s d e la , fi lh a d o se io t e n e b r o so ?
T u t e sat isfazes c o m a e s c u r id ã o n e b u lo sa , c u ja c o n c r e t iz a ç ã o e cr ist a liz a çã o t u
és? O n d e t e a lo ja r e i e m m i n h a a lm a ? E m m e u c o r a ç ã o ? A i , m e u c o r a ç ã o d e ve
ser t e u cla m o r , t e u s a n t u á r io ? En t ã o e sco lh e t e u lu gar . E u t e a ce it e i. Q u e t e n s ã o
p e n o s a t r a z e s co n t igo ! N ã o se p a r t e o fe ixe d e m e u s n e r vo s? E u d e i p o u sa d a ao
m e n s a ge ir o d a n o it e ".
p r e t o e m m e u c o r a ç ã o m e d á u m a fo r ça m is t e r io s a . É c o m o d e sp e it o e - d e s-
p r e z o d as p e s s o a s " 2 4 1.
241 No Livro Negro 4, Jung anotou o seguinte diálogo: [alma]: "Con t rola tua impaciência. Aqui só adianta
esperar". [ I] : Esperar - eu conheço esta palavra. Também Héracles, ao sustentar a abóbada celeste, achou
fatigante esperar sob o peso de sua carga, [alma]: "Por amor às maçãs, ele teve de esperar até que Atlas
voltasse e segurasse novamente a abóbada celeste" (p. 6 0 ) . A referência é ao décimo primeiro trabalho de
Hércules, no qual tinha de pegar as maçãs de ouro, que conferiam a imortalidade. Atlas ofereceu-se para
pegar as maçãs para ele, caso ele segurasse o mundo nesse meio tempo.
O D O M D A M AGI A 339
t u as m ã o s p a r a a e s c u r id ã o a c i m a d e t i , r e z a , d e se sp e r a , t o r ce as m ã o s , a jo e lh a ,
a p e r t a t u a t e st a c o n t r a o p ó , gr it a , m a s n ã o o m e n c i o n e s , n ã o o lh e s p a r a ele.
D e i x a - o s e m n o m e e s e m fo r m a . O q u e s ign ific a fo r m a p a r a q u e m n ã o t e m
fo r m a ? N o m e , p a r a q u e m n ã o t e m n o m e ? P i s a n o gr a n d e c a m i n h o e p e ga o
p r ó xi m o . N ã o p r o c u r e s c o m os o lh o s, n ã o q u e ir a s, m a s se gu r a as m ã o s p a r a
o alt o. Sã o ch e io s d e e n igm a s os d o n s d a e scu r id ã o . Q u e m co n se gu e p r o sse -
gu ir n o s e n igm a s, a est e e st á a b e r t o u m c a m i n h o . Su b m e t e - t e aos e n igm a s e ao
t o t a lm e n t e i n c o m p r e e n s í ve l . Sã o e n ga n o sa s / [Ilu s t r a ç ã o 129] / p o n t e s so b r e
a b ism o s d e p r o fu n d id a d e e t e r n a . M a s segu e os e n igm a s.
Su p o r t a - o s , os t e r r íve is. A i n d a e s t á e scu r o , a i n d a cr e sce o h o r r e n d o . M e r g u -
lh a d o s, e n go lid o s p elas t o r r e n t e s d e v i d a ge r a d o r a , a p r o xi m a m o - n o s d as fo r ça s
su p e r p o d e r o sa s e s o b r e - h u m a n a s q u e e s t ã o a t iva m e n t e t r a b a lh a n d o p a r a c r i a r
os t e m p o s vi n d o u r o s . Q u a n t a c o is a fu t u r a e sco n d e a p r o fu n d e z a ! N ã o se t e c e m
n e l a os fio s so b r e m i l é n i o s ? 2 4 2 C u i d a d o s e n igm a s, gu a r d a - o s e m t e u c o r a ç ã o ,
e sq u e n t a - o s, a n d a p r e n h e d eles. A s s i m ca r r e ga s fu t u r o .
I n s u p o r t á ve l é e m n ó s a t e n s ã o d o fu t u r o . P r e c i s a r o m p e r a t r a vé s d e fe n d a s
e st r e it a s, p r e c is a fo r ç a r n o vo s c a m i n h o s . T u go st a r ia s d e a lija r a car ga. G o s t a -
r ia s d e e sca p a r d o in e sc a p á ve l. M a s fu gir é ilu sã o e d e svio . Fe c h a os o lh o s p a r a
n ã o ve r e s o m u l t i fo r m e , o e xt e r n a m e n t e m ú lt ip lo , o a r r e b a t a n t e e a lic ia n t e . Só
e xist e u m c a m i n h o , e est e é o t e u c a m i n h o , só u m a sa lva çã o , e e st a é t u a sa lva çã o .
P o r q u e o lh a s ao r e d o r c o m o q u e m e st á p r o c u r a n d o a ju d a ? Ac r e d i t a s q u e v e m
a ju d a d e fo r a ? O vi n d o u r o s e r á c r ia d o e m t i e fo r a d e t i . P o r isso o l h a p a r a d e n -
t r o d e t i m e s m o . N ã o c o m p a r e s , n ã o m e ç a s . N e n h u m o u t r o c a m i n h o se p a r e ce
ao t e u . T o d o s os o u t r o s c a m i n h o s sã o p a r a t i ilu sã o e d e s c a m in h o . T u p r e cisa s
a p e r fe iç o a r o c a m i n h o d e n t r o d e t i .
O h , se t o d a s as p essoas e t o d o s os seu s c a m i n h o s p u d e s s e m t o r n a r - s e e s t r a -
n h o s p a r a t i . A s s i m p o d e r ia s r e e n c o n t r a r as p esso as fo r a d e t i e c o n h e c e r seu s
c a m i n h o s . M a s q u e fr a q u e z a ! Q u e d e se sp e r o ! Q u e m e d o ! T u n ã o s u p o r t a r á s
a n d a r t e u c a m i n h o . Te r á s s e m p r e ao m e n o s u m p é e m c a m i n h o e st r a n h o , p a r a
q u e n ã o t e s o b r e ve n h a a gr a n d e s o lid ã o ! P a r a q u e a m ã e - c o n s o l o e st e ja s e m p r e
p e r t o d e t i ! P a r a q u e sejas a p r o va d o , r e c o n h e c id o , la m e n t a d o , co n so la d o e e s t i -
242 Na mitologia grega as Moiras, ou três destinos, Cloto, Láquesis e Átropos, teciam e controlavam os fios
da vida humana. Na Mitologia Nórdica, as Nornas teciam os fios do destino aos pés de Vggdrasil, a árvore
do mundo.
34o LI BE R SECU N D U S 130/ 134
m u la d o ! P a r a q u e a lg u é m t e a r r a st e p a r a c a m i n h o s d e sco n h e cid o s o n d e t e e x-
t r a via s d e t i m e s m o e o n d e , a livia d o , t e p o ssas p ô r d e lad o . C o m o se n ã o fosses
t u m e s m o ! Q u e m d e ve p r a t ic a r t u a s a çõ e s? Q u e m d e ve ca r r e ga r t u a s vi r t u d e s
e t e u s far d o s? N ã o t e a r r a n ja r á s c o m t u a vi d a , e os m o r t o s vã o p e r t u r b a r - t e
t e r r i ve l m e n t e p o r ca u sa d e t u a v i d a n ã o vi vi d a . T u d o , t u d o m e s m o d e ve se r
c u m p r i d o . O t e m p o u r ge , p o r q u e q u e r e s a ju n t a r u m a c o is a aos m o n t e s e d e i xa r
a o u t r a se d e t e r io r a r ?
G r a n d e é o p o d e r d o c a m i n h o 2 4 3 . N e l e c r e s c e m ju n t o s c é u e in fe r n o , n e le
se u n e m as fo r ça s d e b a ixo e as fo r ça s d e c i m a . M á g i c a é a n a t u r e z a d o c a m i -
n h o , m á g i c o s sã o os p e d id o s e o a p e l o 2 4 4 , m á gic a s sã o m a l d i ç ã o e a çã o q u a n d o
a c o n t e c e m so b r e o gr a n d e c a m i n h o . É m a gia o e fe it o d as p esso as u m a s so b r e as
o u t r a s, m a s n ã o [é] a s s im q u e t u a a ç ã o va i a t in gir o p r ó xi m o , m a s e la t e a t in ge
p r i m e i r o a t i , e s ó q u a n d o lh e r e sist e s, a co n t e ce u m e fe it o in visíve l d e t i so b r e o
p r ó xi m o . H á m a is d isso n o a r d o q u e ja m a is im a g in e i. N o e n t a n t o , n ã o se p o d e
c a p t á - lo . O u v e :
243 O esboço continua: "Tão grande é o poder do caminho que ele arrasta consigo outros e os incendeia. Tu
não sabes como isto acontece, por isso é melhor que chames de mágico este efeito" (p. 453).
244 O esboço continua: "que precisamente devido à sua natureza especial, é representado pela cobra" (p. 453).
245 Isto parece referir-se ao círculo mágico em que são realizados os atos rituais.
O D O M D A M AGI A 34i
Flores brotam ao redor dele e um novo prazer prim averil beija todos os seus m em bros.
Pássaros vêm voando, e os anim ais ariscos daflorestaolham para ele.
Está longe das pessoas, e m esm o assim ofio de seu destino passa por sua m ão.
Credítai-lhe vossas preces, afim de que sua poção fique boa e forte e que traga a cura das feridas
m ais profundas.
É solitário por am or a vós, e sozinho espera entre céu e terra para que a terra suba e o céu desça até [ele].
Todos os povos ainda estão longe e atrás da parede da escuridão. Mas eu escuto suas palavras que
chegam até m im de longe.
Ele escolheu para si um escrevente ruim , com dificuldade de audição e que tam bém gagueja quando
escreve.
Não conheço o solitário. O que ele diz? Ele diz: "Tenho m edo e sofro necessidades por am or às
pessoas".
Eu desenterrei velhas runas efórm ulas m ágicas, pois as palavras não atingem nunca as pessoas. As
palavras tornaram -se som bra.
Por isso peguei utensílios velhos de m agia e cozinhei poções quentes, m isturei nelas coisas m isteriosas
e coisas fortes de tem pos im em oriais, coisas que nem o m ais inteligente adivinha.
Eu cozinhei as raízes de todos os pensam entos e ações hum anas. Durante m uitas noites estreladas
vigiei a caldeira. Muito lentam ente vai efervescendo a poção. Preciso de vossas preces, de vossa genufle-
xão, de vosso desespero e de vossa paciência. Preciso de vosso últim o e m aior desejo, de vossa vontade m ais
pura, de vossa subm issão m ais hum ilde.
Solitário, por quem esperas? A ajuda de quem aguardas? Não há ninguém que te possa socorrer,
pois todos olham para ti e esperam ansiosos por tua arte curativa.
Todos nós som os totalm ente im potentes e m ais necessitados de ajuda do que tu. Concede-nos tua
ajuda, para que te retribuam os ajuda.
O solitário fala: "Ninguém m e ajudará nesta necessidade? Devo abandonar o que estou fazendo
para ajudar-vos afim de que vós possais ajudar-m e em retribuição? Mas com o posso ajudar-vos se m inha
poção não fica pronta eforte? Eu teria de ajudar-vos. O que esperais de m im ?"
Vem a nós! Por que suportas e cozinhas coisas m aravilhosas? Que significam para nós tuas poções
m ágicas e curativas? Acreditas em poções terapêuticas? Encara a vida, evêo quanto ela precisa de ti! / 132/ 134
[Ilu s t r a ç ã o 133] /
O solitário fala: idiotas, não podeis ficar acordados um a hora com igo246, até que o difícil e dem orado
dê certo e que o cozim ento fique bom ?
24 6 Em Mt 24 ,4 0 , Crist o repreende seus discípulos por terem sido incapazes de vigiar uma hora enquanto
ele orava no Jardim do Getsêmani.
342 LI BE R SECU N D U S 134/ 136
Mais um pouco e a efervescência está pronta. Por que não podeis esperar? Por que deveria vossa
im paciênciafrustrar a obra m áxim a?"
O que é a obra m áxim a? Nós não vivem os;frio e entorpecim ento nos apanharam . Tua obra, soli-
tário, não vai term inar nem em éons, m esm o que prossiga dia após dia.
Interm inável éa obra da salvação. Por que desejas esperar o fim dessa obra? E m esm o que tua espera
te petrifique por tem pos ilim itados, não conseguirias durar até o fim . E se tua salvação tivesse chegado a
seu fim , deverias ser de novo salvo de tua salvação.
O solitário fala: "Que lam úria com ovente chega a m eus ouvidos! Que choradeira! Que sois vós,
céticos ignaros, crianças rebeldes! Esperai, ainda esta noite estará term inada".
Não esperarem os m ais noite nenhum a, chega de esperar. És um Deus, para o qual m il noites são
com o um a noite? Mesm o esta um a noite seria para nós, que som os seres hum anos, com o m il noites.
Desiste da obra da salvação ejá estarem os salvos. Por quanto tem po nos queres salvar?
O solitário fala: "Lam entável povo hum ano, tolo bastardo de Deus e anim al, falta ainda um pedaço
de tua carne preciosa na m istura de m inha caldeira. Sou porventura o pedaço m ais valioso de teu assado?
Vale a pena que eu m e deixe cozinhar por vós? Um se deixou pregar na cruz por am or a vós. Nele foi
sem dúvida o suficiente. Ele m e im pede o cam inho. Por isso não ando em seus cam inhos, preparo-vos um
cozim ento terapêutico, nenhum a poção im ortal247 de sangue eu vos deixo, m as deixo a poção e a caldeira
e o efeito secreto por am or a vós, pois não conseguis esperar e experim entar em detalhes a plenitude. Eu
dispenso vossas preces, vossas genuflexões, vossas invocações. Vós pretendeis salvar a vós m esm os de vossa
im possibilidade de salvação e de vossa possibilidade de salvação. Vosso valor subiu alto o bastante para
que um m orresse por vós. Mostrai agora vosso valor pelo fato de cada um viver para si. Meu Deus, com o
é difícil deixar incom pleta um a obra por am or aos seres hum anos! Mas por am or ao ser hum ano renun-
ciei a ser um salvador. Agora m inha poção com pletou sua efervescência. Eu não m isturei a m im m esm o
à poção, m as cortei um pedaço de hum anidade, e vede, ele clareou a poção de espum a turva.
247 Nota marginal ao volume caligráfico: "29/ 11/ 1922"'. Parece referir-se à data em que esta passagem foi
transcrita.
248 Inscrição: "Terminado em 25 de novembro de 1922. De Muspilli vem o fogo e engloba a árvore da
vida. Um a rotação está concluída, mas é a rotação no ovo do mundo. Um Deus estranho, que não dá para
chamar de Deus do solitário, foi o que chocou. Novos seres vitais formam-se a partir de fumaça e cinza".
Na mitologia nórdica, Muspilli (ou Muspelheim) é a morada dos Deuses do Fogo.
O CAM I N H O DA CRU Z 343
C o i s a in e xp lic á ve l a co n t e ce . T u go st a r ia s d e a b a n d o n a r a t i m e s m o e c o r r e r
p a r a a q u e le p o s s íve l m u lt íp lic e . T u go st a r ia s d e o u sa r t o d o t ip o d e c r i m e a f i m
d e r o u b a r e s p a r a t i o se gr e d o d o va r ie ga d o . M a s s e m f i m é a e st r a d a .
O cam in h o da cruz
Ca p . x x . 2 4 9
250
[ I H 136] E u v i c o m o a s e r p e n t e n e g r a 2 5 1 se e n r o s c o u n o a lt o d o l e n h o d a
c r u z . E l a e n t r o u n o c o r p o d o c r u c ific a d o e n o va m e n t e sa iu , t r a n s fo r m a d a , d a
b o c a d e le . H a v i a fica d o b r a n c a . E l a se e n r o l o u e m t o r n o d a c a b e ç a d o m o r -
t o c o m o u m d ia d e m a , e u m a l u z b r i l h o u so b r e a ca b e ça , e n o O r i e n t e s u r g iu
e sp le n d o r o so o sol. Fiq u e i est át ico e o lh e i d esor ien t ad o, e car ga p esad a o p r i m i u
m i n h a a lm a . M a s o p á ssa r o b r a n co q u e est ava p o u sad o e m m e u o m b r o d is s e - m e 2 5 2 :
249 Nota à margem no volume caligráfico: "25 de fevereiro de 1923. A transformação da magia negra em
branca".
250 27 de janeiro de 1914.
251 O esboço continua: "a cobra de meu caminho" (p. 4 6 0 ) .
252 No Livro Negro 4, quem diz isto é sua alma. Neste capítulo e nos Aprofundamentos encontramos uma mudança
na atribuição de algumas afirmações contidas nos Livros Negros: em vez de atribuídas à alma, passam a ser
atribuídas aos outros personagens. Pode-se considerar que esta revisão textual marca um importante
processo psicológico de diferenciação dos personagens, separando-os uns dos outros, e desidentificando-se
deles. Jung analisou este processo em geral em 1928, em Oeueo inconsciente, cap. 7: "A técnica de diferenciação
entre o eu e as figuras do inconsciente" ( O C, 7) . No Livro Negro 6, a alma de Jung explica-lhe em 1916: "Se eu
não me mantiver unido pela unificação do inferior e do superior, desintegro-me nas três partes: a Serpente,
344 LI BE R SECU N D U S 136/137
3 . 2 5 3 Q u e m va i ao e n c o n t r o d e s i m e s m o d esce. A o gr a n d e p r o fe t a , q u e p r e -
c e d e u e st a n o ssa é p o c a , a p a r e c e r a m figu r as la m e n t á ve i s e r id ícu la s; elas e r a m as
figu r as d e s e u p r ó p r i o ser. E l e n ã o as a c e it o u , e r e m e t e u - a s a o u t r o . M a s fi n a l -
m e n t e vi u - s e o b r iga d o a fa z e r u m a c e ia c o m s u a p r ó p r i a p o b r e z a e a ce it a r p o r
c o m p a i xã o aq u elas figu r a s d e s e u p r ó p r i o ser, c o m p a i xã o essa q u e é a a c e it a ç ã o
d o í n fi m o e m n ó s 2 5 4 . M a s e n t ã o e n fu r e ce u - se o le ã o d e s e u p o d e r e a fu ge n t o u
e enquanto tal ou em outra forma animal vagueio por aí, vivendo fatidicamente a natureza, infundindo
medo e anseio. A alma humana, aquilo que vive sempre contigo. A alma celeste, e como tal eu permaneço então
junto aos deuses, longe de t i e desconhecida a t i, aparecendo em forma de pássaro" (Apêndice C, p. 511).
As mudanças textuais que Jung faz entre a alma, a serpente e o pássaro dos Livros Negros neste capítulo e nas
Provações podem ser consideradas como o reconhecimento e diferenciação da tríplice natureza da alma. A
noção de Jung da unidade e multiplicidade da alma tem semelhanças com Eckhart. No Sermão 52 Eckhart
escreveu: "A alma com seus poderes superiores toca a eternidade, que é Deus, enquanto seus poderes
inferiores, estando em contato com o tempo, a tornam sujeita à mudança e inclinada a coisas corporais, que
a degradam" (Sermons efTreatises. Vol. 2. Londres: Watkins, 1981, p. 55 [Trad. de O .C. Washe]). No Sermão 85
escreveu: "Três coisas impedem a alma de unir-se com Deus. A primeira é que ela é por demais dispersa, e
não é unitária: porque, quando a alma está inclinada a criaturas, ela não é unitária. A segunda é quando ela
está envolvida com coisas temporais. A terceira é quando ela está voltada para o corpo, pois então ela não
consegue unir-se com Deus" (ibid., p. 264).
253 O esboço continua: "To r que', perguntas, 'o ser humano não quer ir a seu próprio encontro?' O profeta
delirante, que precedeu este tempo, escreveu um livro que enfeitou com um título imponente. Neste livro
podes ler como e por que o ser humano não quer ir ao encontro de si mesmo" (p. 461). A referência é ao
livro Assim falava Zaratustra, de Nietzsche.
254 C f "A ceia", em Assim falava Zaratustra, p. 355S.
O CAM I N H O DA CRU Z 345
o p e r d i d o e d e vo lvid o p a r a a e s c u r id ã o d a p r o fu n d e z a 2 5 5 . E , c o m o u m p o d e r o -
so, q u is a q u e le c o m o gr a n d e n o m e i r r o m p e r à s e m e l h a n ç a d o so l, d o se io d as
m o n t a n h a s 2 5 6 . M a s o q u e lh e a co n t e ce u ? Se u c a m i n h o o l e vo u p a r a d ia n t e d o
c r u c ific a d o , e ele c o m e ç o u a e sb r a ve ja r . E l e e n fu r e c e u - se c o n t r a o h o m e m d o
e s c á r n io e d as d o r e s, p o r q u e a fo r ç a d o se u p r ó p r i o se r o o b r igo u a se gu ir est e
c a m i n h o , a s s im c o m o o fez o C r i s t o a n t e s d e n ó s . M a s ele a n u n c i o u e m vo z a lt a
se u p o d e r e su a gr a n d e z a . N i n g u é m fa la va m a is a lt o d e s e u p o d e r d o q u e a q u ele
d e q u e m fu gia o c h ã o sob os p é s. Fi n a l m e n t e fo i a t in gid o p e lo í n fi m o n e le , a
i m p o t ê n c i a , e e st a c r u c i fi c o u se u e sp ír it o , p o r t a n t o , c o m o ele m e s m o p r e d isse ,
qu e su a a lm a m o r r e r ia an t es qu e seu c o r p o 257.
4. N i n g u é m so b e a c i m a d e si m e s m o q u e n ã o t e n h a e m p r e ga d o as a r m a s
m a is p e r igo sa s c o n t r a si m e s m o . Al g u é m q u e d e se ja s u b ir a c i m a d e s i m e s m o
d e sça , ca r r e gu e - se c o m o p e so d e si m e s m o e a r r a st e a s i m e s m o p a r a o lu ga r d o
sa cr ifício . M a s q u a n t a c o is a p r e c is a a c o n t e c e r à p e sso a a t é p e r c e b e r q u e o ê xit o
e xt e r n o e visíve l, q u e se d e i xa p e ga r c o m as m ã o s , / é u m c a m i n h o e r r a d o . P o r 136/ 137
q u a n t o s o fr i m e n t o d e ve p a ssa r a h u m a n i d a d e a t é q u e o se r h u m a n o p a r e d e
sa cia r s u a a m b i ç ã o d e p o d e r e m seu s s e m e lh a n t e s e d e q u e r ê - l o i m p o r s e m p r e
aos o u t r o s . Q u a n t o sa n gu e a i n d a d e ve c o r r e r a t é q u e se a b r a m os o lh o s d o se r
h u m a n o e ele ve ja s e u c a m i n h o e s e u p r ó p r i o i n i m i g o e a t é q u e se d ê c o n t a d e
seu s ve r d a d e ir o s ê xit o s . T u d e ve s p o d e r vi ve r co n t igo m e s m o e n ã o à c u s t a d e
t e u vi z i n h o . O a n i m a l d e r e b a n h o n ã o é o p a r a s it a e e s p ír it o a t o r m e n t a d o r d e
se u ir m ã o . Se r h u m a n o , t u e sq u e ce st e a t é m e s m o q u e t a m b é m és u m a n i m a l .
T u c o n t in u a s a c r e d it a n d o q u e é m e l h o r e st a r lá o n d e n ã o e st á s. A i d e t i se t e u
v i z i n h o t a m b é m p e n s a r a ssim . M a s p o d e s e st a r c e r t o d e q u e ele t a m b é m p e n s a
a ssim . Al g u é m d e ve c o m e ç a r a n ã o ser m a is i n fa n t i l .
5. T e u d e se jo se sa cia e m t i . N ã o p o d e s le va r a t e u D e u s a l i m e n t o s s a c r i -
ficia is m a i s va lio so s d o q u e a t i m e s m o . Q u e t u a vo r a c id a d e t e e n gu la , e n t ã o
255 No último capítulo de Assim falava Zaratustra, "O sinal", quando o homem superior veio para encontrar-
se com Zaratustra em sua caverna, "o leão afastou-se rapidamente de Zaratustra e precipitou-se para a
caverna, rugindo furiosamente" (p. 39 7) . Em 1926, Jung observou: "Rugindo, o leão zaratustriano fazia
com que todos os homens 'superiores', que clamavam pela participação vital, regressassem à caverna do
inconsciente. Logo, sua vida não demonstra seu ensinamento" ( O C, 7, § 37).
256 Nietzsche termina Assimfalava Zaratustra com as palavras: "Assim falou Zaratustra e afastou-se da caverna,
ardente e vigoroso como o sol matinal, que surge dos sombrios montes" (p. 39 7) .
257 No prólogo de Zaratustra, um malabarista caiu da corda bamba. Zaratustra disse ao malabarista da corda
bamba: "Tua alma vai morrer mais depressa ainda que teu corpo. Não temas mais" (Zaratustra, § 6, p. 30.
Sublinhado como no exemplar de Jung, p. 22) . Em 1926, Jung falou que isto foi uma visão profética do
próprio destino de Nietzsche (cf. O C , 7, § 36 - 4 4 ) .
346 LI BER SECU N D U S 137/ 138
e la ficará ca n sa d a e q u ie t a , e t u d o r m i r á s b e m e o lh a r á s o so l d e c a d a d i a c o m o
u m p r e se n t e . Se t u d e vo r a s o u t r o e m a is o u t r o e m ve z d e t i , t u a vo r a c id a d e
p e r m a n e c e e t e r n a m e n t e in s a t is fe it a , p o is e la e xige m a is , e xige o m a is va lio so ,
exige a t i . E a s s im fo r ça s t u a a m b i ç ã o so b r e t e u p r ó p r i o c a m in h o . T u go st a r ia s
d e i m p l o r a r a o u t r o s , à m e d i d a q u e p r e cisa s d e c o n s e lh o e a ju d a . M a s e xigir
n ã o d e ve s d e n i n g u é m , a m b i c i o n a r n ã o d e ve s d e n i n g u é m , e sp e r a r n ã o d e ve s
d e n i n g u é m , a n ã o se r d e t i m e s m o . P o is t e u d e se jo só se sa cia e m t i m e s m o . T u
t e m e s q u e i m a r - t e e m t e u p r ó p r i o fogo. D i s s o n a d a t e p o d e im p e d ir , n e m c o m -
p a ixã o e s t r a n h a e n e m c o m p a i xã o p e r igo sa d e t i m e s m o . P o is co n t igo m e s m o
d e ve s vi ve r e m o r r e r .
6. Q u a n d o a c h a m a d a t u a vo r a c id a d e t e d e vo r a e n a d a s o b r a d e t i a n ã o
ser c in z a s , e n t ã o n a d a h a vi a e m t i q u e su b sist isse . M a s a c h a m a n a q u a l t e c o n -
s u m is t e i l u m i n o u a m u it o s . M a s se t u , c h e io d e m e d o , foges d e t e u fogo, c h a -
m u sca s t e u s se m e lh a n t e s, e o t o r m e n t o a r d e n t e d e t u a vo r a c id a d e n ã o p o d e
a p a ga r -se e n q u a n t o n ã o d e se ja r e s a t i m e sm o .
7. D a b o c a sai a p a la vr a , o s in a l e o s ím b o lo . Se a p a la vr a fo r u m s in a l, e n t ã o
n ã o s ign ific a n a d a . M a s se a p a la vr a fo r u m s ím b o lo , s ign ific a t u d o 2 5 8 . Q u a n d o
o c a m i n h o e n t r a n a m o r t e , e n ó s e st a m o s e n vo lt o s e m p u t r e fa ç ã o e n o jo , so b e
e n t ã o n a e s c u r id ã o o c a m i n h o e sa i d a b o ca , c o m o o s í m b o l o salvad o r , a p a la vr a .
El e c o n d u z p a r a c i m a o so l, p o is n o s í m b o l o e st á a sa lva çã o d o s co a gid o s e a fo r -
ça h u m a n a q u e l u t a c o m a e scu r id ã o . N o s s a lib e r d a d e n ã o e st á fo r a d e n ó s , m a s
d e n t r o d e n ó s . Ext e r n a m e n t e , p o d e m o s e st a r a m a r r a d o s , e a s s im m e s m o n o s
s e n t i r m o s livr e s, p o r q u e a r r e b e n t a m o s as a m a r r a s in t e r io r e s . P o d e m o s c o n -
q u is t a r a lib e r d a d e e xt e r i o r a t r a vé s d e u m a gir vigo r o so , c o n t u d o a lib e r d a d e
i n t e r i o r só a c r ia m o s a t r a vé s d o s ím b o lo .
8. O s í m b o l o é a p a la vr a q u e sa i d a b o ca , q u e a ge n t e n ã o fala, m a s q u e so b e
d a p r o fu n d e z a d o s i - m e s m o c o m o u m a p a la vr a d a fo r ça e d a n e ce ssid a d e e q u e
in e s p e r a d a m e n t e se c o lo c a so b r e a lín gu a . E u m a p a la vr a s u r p r e e n d e n t e e q u e
a p a r e ce a le a t o r ia m e n t e , m a s a ge n t e a r e c o n h e c e c o m o s í m b o l o n o fat o d e ser
e s t r a n h a ao a sp e ct o c o n sc ie n t e . Q u a n d o a ge n t e a c e it a o s í m b o l o é c o m o se
u m a p o r t a se a b r isse p a r a u m n o vo e s p a ç o d e c u ja e xis t ê n c ia n a d a s a b ía m o s
a n t e r i o r m e n t e . M a s q u a n d o n ã o se a c e it a o s ím b o lo , é c o m o se p a s s á s s e m o s
258 Para a diferenciação que Jung faz de sinais e símbolos, cf. Tipos psicológicos (1921) ( O C, 6, § 903S.).
O CAM I N H O DA CRU Z 347
d e sa t e n t o s p o r e st a p o r t a ; e p e lo fat o d e se r a ú n i c a p o r t a q u e l e va aos a p o -
se n t o s i n t e r i o r e s , é p r e c iso p e ga r n o va m e n t e a e st r a d a e p r o sse gu ir e m t o d a s
as e xt e r io r id a d e s . M a s a a l m a so fr e n e ce ssid a d e , p o is a lib e r d a d e e xt e r i o r n ã o
lh e se r ve . A sa lva çã o é u m a lo n ga e st r a d a q u e l e va a t r a vé s d e m u i t a s p o r t a s.
A s p o r t a s sã o os s ím b o lo s . C a d a n o va p o r t a é a p r i n c í p i o in visíve l; é c o m o se
e sca va m o s a m a n d r á g o r a , o s ím b o lo .
P a r a e n c o n t r a r a m a n d r á g o r a , p r e c is a - s e d o c a c h o r r o p r e t o 2 5 9 , p o is é a s-
d e ve se r cr ia d o . O s í m b o l o n ã o p o d e se r id e a d o n e m i n ve n t a d o : ele se t o r n a .
Se u t o r n a r - s e é c o m o o t o r n a r - s e d o ser h u m a n o n o ve n t r e d a m ã e . A g r a vi -
d e z p o d e se r p r o vo c a d a p o r a c a s a la m e n t o fo r t u it o . M a s q u a n d o a p r o fu n d e -
z a c o n c e b e u , o s í m b o l o cr e sce p o r s i e n a sce d a c a b e ç a , c o m o c o n v é m a u m
D e u s . M a s lo go a m ã e go s t a r ia d e l a n ç a r - s e so b r e a c r i a n ç a c o m o u m m o n s t r o
e e n g o l i - l a n o va m e n t e .
D e m a n h ã , q u a n d o o n o vo s o l se le va n t a , sa i a p a la vr a d e m i n h a b o ca , m a s é
ça r e c é m - n a s c i d a cr e sce d e p r e ssa q u a n d o e u a a ce it o . E lo go t o r n o u - s e m e u
co ch e ir o . A p a la vr a é a c o n d u t o r a , o c a m i n h o d o m e io , q u e o s c ila le ve m e n t e
c o m o o fie l d a b a la n ç a . A p a la vr a é o D e u s q u e t o d a m a n h ã e m e r ge d as á gu a s e
a n u n c i a às n u ve n s a l e i o r ie n t a d o r a . L e i e xt e r n a e sa b e d o r ia e xt e r n a sã o e t e r -
l e i d e t o d o d ia , m i n h a sa b e d o r ia d e t o d o d ia . E m c a d a n o i t e r e n o va - s e o D e u s .
e m s i algo d o c a r á t e r d a n o it e e d as á gu a s n o t u r n a s e m q u e c o c h i l o u e e m q u e
l u t o u n as ú lt im a s h o r a s d a n o i t e p o r s u a r e n o va ç ã o . P o r isso s u a m a n ife s t a ç ã o é
d is c r e p a n t e e e q u ívo c a ; e la é i n c l u s i ve d ila c e r a n t e p a r a o c o r a ç ã o e a r a z ã o . E m
su a a p a r iç ã o , o D e u s m e c h a m a p a r a a d i r e i t a e a e sq u e r d a , d e a m b o s os la d o s
so a p a r a m i m se u ch a m a d o . M a s o D e u s n ã o q u e r n e m o u m e n e m o o u t r o . E l e
q u e r o c a m i n h o d o m e io . O m e i o é o c o m e ç o d o lo n go t r a je t o.
259 A mandrágora é uma planta cujas raízes têm alguma semelhança com a figura humana, e por isso tem
sido usada em ritos mágicos. Segundo a lenda, ela solta gritos agudos quando é arrancada do solo. Em "Der
philosophische Baum " (19 45), Jung observou, a respeito da mandrágora, que ela "lança o primeiro grito
quando, amarrada à cauda de um cão preto, é arrancada da terra" ( O C, 13, § 4 10 ) .
348 LI BE R SECU N D U S 138/ 139
u m o u o o u t r o , o u o u m e o o u t r o , m a s n u n c a a q u ilo q u e o u m b e m c o m o o o u -
t r o e n c e r r a m e m s i. O p o n t o d o c o m e ç o é a i m o b i l i d a d e d a r a z ã o e d a vo n t a d e ,
u m e st a d o d e s u s p e n s ã o , q u e c h a m a p a r a fo r a m i n h a in s u b o r d in a ç ã o , m i n h a
t e i m o s i a e fi n a l m e n t e m e u gr a n d e p avo r . P o is n ã o ve jo m a is n a d a e n ã o p o sso
q u e r e r m a is n a d a . A o m e n o s é ist o q u e m e p a r e ce . O c a m i n h o é u m a e s t r a n h a
fo r m a d o , é n o vo . G e r a r algo a n t i q u í s s i m o p a r a d e n t r o d e u m t e m p o é cr ia çã o .
E c r ia ç ã o d o n o vo , e est e m e li b e r t a . Li b e r t a ç ã o é d e so b r iga r d a t a r e fa . Ta r e fa
é ge r a r p a r a d e n t r o d o n o vo t e m p o algo ve lh o . A a l m a d a h u m a n i d a d e é c o m o
a gr a n d e r o d a d o z o d í a c o q u e g ir a so b r e o c a m i n h o . T u d o o q u e, e m c o n s t a n t e
p a r t e d a r o d a q u e n ã o vo lt a r i a . P o r isso flui o u t r a ve z p a r a c i m a o q u e já fo i, e
o q u e já fo i se r á n o va m e n t e . P o is sã o t o d as co isas cu ja s p r o p r ie d a d e s in a t a s sã o
d a n a t u r e z a h u m a n a . P e r t e n c e à n a t u r e z a d o m o vi m e n t o p a r a fr e n t e q u e a q u ilo
q u e já fo i r e t o r n e 2 6 0 . Só u m ign o r a n t e p o d e a d m i r a r - s e d isso . N o e t e r n o r e t o r -
n o d o id ê n t ic o n ã o e st á o s e n t i d o 2 6 1, m a s n o m o d o d e s u a r e c r ia ç ã o n o t e m p o .
26 0 O esboço continua: "Tudo é sempre a mesma coisa e, no entanto, não é a mesma coisa, pois a roda vai
girando sobre a longa estrada. Mas o caminho leva por vales e montes. O movimento da roda e a idêntica
volta de suas partes individuais é indispensável ao carro, mas o sentido está no caminho. O sentido só é
alcançado pelo constante girar e movimento para frente. Faz parte da natureza do movimento para frente
que aquilo que já foi retorne. Disso só um ignorante pode admirar-se. Por ignorância, revoltamo-nos
contra o retorno necessário do idêntico e, por avidez, nós nos deixamos lançar pela roda para cima e para
frente no movimento ascensional, porque achamos que com essa parte da roda chegaremos sempre mais
alto. Mas não chegamos mais alto e sim mais fundo e finalmente estaremos bem embaixo. Exalte, portanto,
a imobilidade, pois ela lhe mostra que não estás amarrado aos raios da roda como íxion , mas que estás
sentado ao lado do cocheiro que te explicará o sentido do caminho" (p. 4 6 9 - 4 7 0 ) . Na mitologia grega,
íxion era o filho de Ares. Ele tentou seduzir Hera, e Zeus o castigou amarrando-o a uma roda de fogo que
girava sem parar.
261 A noção de que todas as coisas retornam encontra-se em várias tradições, como o estoicismo e o
pitagorismo, e figura em lugar de destaque na obra de Nietzsche. Tem-se discutido muito, nos estudos
nietzschianos, se deve ser entendida primariamente como um imperativo ético de afirmação da vida
ou como uma doutrina cosmológica. C f LÕ W I T H , K. NíetzschêsDoctríneofthe Eternal Recurrenceofthe Same.
Berkeley: University of Califórnia Press, 1977 [Trad. de J. Lom ax]. Jung discute isto em 1934, em Níetzschês
Zaratustra. Vol. 1, p. 191-192.
O M AGO 349
O s e n t id o e s t á n o m o d o e n a o r i e n t a ç ã o d a r e cr ia çã o . M a s c o m o c r i o p a r a
m i m o c o c h e ir o ? O u go st a r ia d e se r e u m e u p r ó p r i o c o c h e ir o ? E u s ó p o sso
g u i a r - m e p e la vo n t a d e e p e la in t e n ç ã o . M a s vo n t a d e e i n t e n ç ã o sã o a p e n a s p a r -
t es d e m e u s i- m e s m o . P o r isso n ã o b a s t a m p a r a e xp r e ssa r m e u t o d o . I n t e n ç ã o é
d o n d e t i r o o o b je t ivo ? T i r o - o d a q u ilo q u e m e é c o n h e c id o a t u a lm e n t e . P o r t a n -
t o, co lo co o p r e se n t e n o lu ga r d o fu t u r o . D e s s a / fo r m a n ã o p o sso a lc a n ç a r o f u -
t u r o , m a s e u ge r o a r t i fi c i a l m e n t e u m c o n s t a n t e p r e se n t e . T u d o o q u e p r e t e n d e
i n t e r fe r i r n e st e p r e se n t e , e u o t o m o c o m o d i s t ú r b i o e p r o c u r o a fa st á - lo , a f i m
d e q u e m i n h a i n t e n ç ã o p e r m a n e ç a i n c ó l u m e . E a s s im e l i m i n o o p r o gr e sso d a
vid a . M a s c o m q u e p o sso se r c o c h e ir o a n ã o se r c o m a vo n t a d e e a in t e n ç ã o ? E
p o r isso t a m b é m q u e u m sá b io n ã o d e se ja se r c o c h e ir o , p o is sab e q u e a vo n t a d e
e a i n t e n ç ã o a lc a n ç a m o b je t ivo s, m a s i m p e d e m o v i r a se r d o fu t u r o .
O fu t u r o se p r o d u z fo r a d e m i m , e u n ã o o co n st r u o , m a s a s s im m e s m o e u o
co n st r u o , n ã o c o m in t e n ç ã o e vo n t a d e , m a s t a m b é m c o n t r a a in t e n ç ã o e a vo n t a -
d e. Se e u q u ise r c o n s t r u i r o fu t u r o , t r a b a lh o c o n t r a o m e u fu t u r o . E se n ã o q u ise r
c o n s t r u í- lo , n ã o t o m o p a r t e su ficie n t e n a c o n s t r u ç ã o d o fu t u r o , e t u d o a c o n t e -
c e r á se gu n d o le is in e vit á ve is d as q u a is se r e i vít im a . P a r a co n st r a n ge r o d e st in o ,
os a n t igo s i n ve n t a r a m a m a gia . P r e c is a va m d e la p a r a d e t e r m i n a r o d e st in o e x-
t e r n o . N ó s p r e cisa m o s d e la p a r a d e t e r m i n a r o d e st in o i n t e r n o e e n c o n t r a r o
c a m i n h o q u e n ã o p o d e m o s im a gin a r . P e n s e i lo n ga m e n t e so b r e o m o d o c o m o
a a lgu m a c o n c lu s ã o p o r si m e s m o d e ve p r o c u r a r e n s in a m e n t o ; e n t ã o fu i p a r a u m
O m ago 26 2
Ca p . x x i .
263
[ I H : 139] {i }[ i ] A p ó s lo n ga p r o c u r a , e n c o n t r e i a p e q u e n a casa, n o ca m p o ,
d ia n t e d a q u a l se e s t e n d ia u m c a n t e ir o d e t u lip a s e m flo r e o n d e m o r a va m o
m a go O I A H M Q N ( Fi l ê m o n ) e B A Y K I S ( Bá u c i s ) . O I AH M É 2 N é u m m a go q u e
a i n d a n ã o c o n s e gu iu e xo r c i z a r a ve lh ic e , m a s q u e a vi ve c o m d ign id a d e , e su a
m u l h e r n a d a m a is p o d e d o q u e fa z e r o m e s m o 2 6 4 . Se u s in t e r e sse s n a v i d a p a r e -
c e m t e r fica d o r e s t r it o s , a t é m e s m o in fa n t is . El e s r e ga m se u c a n t e ir o d e t u lip a s
e fa la m e n t r e si d as flores q u e r e c é m - d e s a b r o c h a r a m . Se u s d ia s vã o se a p a ga n d o
n u m lu sco - fu sco p á li d o e o scila n t e , i l u m i n a d o p elas lu z e s d o p assad o, p o u c o
t e m e r o s o d a e s c u r id ã o d a q u e le q u e vir á .
P o r q u e O I A H M Q N é u m m a g o ? 2 6 5 C o m s u a m á gic a , ele e st á a r r a n ja n d o a
i m o r t a l i d a d e , u m a v i d a n o a lé m ? E l e só fo i m a go p o r vo c a ç ã o , m a s a go r a p a r e ce
u m m a go a p o se n t a d o , q u e se r e t i r o u d o n e gó c io . Ext i n g u i r a m - s e n e le o d e se jo
26 4 Nas Metamorfoses, Ovídio conta a história de Filêmon e Báucis. Júpiter e Mercúrio vão andando,
disfarçados de mortais, na região montanhosa da Frigia. Procuravam um lugar para descansar e foram
barrados em m il lares. Um casal de velhos os acolheu. Haviam casado em sua cabana quando jovens e
envelheceram juntos e aceitavam contentes sua pobreza. Prepararam uma refeição para os hóspedes.
Durante a refeição, viram como a jarra, logo que era esvaziada, enchia-se de novo automaticamente. Em
honra de seus hóspedes, prontificaram-se a matar o único ganso que tinham. O ganso refugiou-se junto
aos deuses, que disseram que ele não deveria ser morto. O s deuses revelaram-se e disseram ao casal que
a vizinhança seria castigada, mas eles dois seriam poupados, e pediram-lhes que subissem à montanha
com eles. Quando chegaram ao topo, viram que a região ao redor de sua cabana havia sido inundada
pela água, e apenas a cabana permanecia, transformada num templo com colunas de mármore e teto
de ouro. O s deuses perguntaram-lhes qual era o seu desejo, e Filêmon respondeu que gostariam de ser
seus sacerdotes e servir no seu templo e também que pudessem morrer juntos. Seu desejo foi acolhido e,
quando morreram, transformaram-se em árvores uma ao lado da outra. No Fausto 2, ato V, de Goethe, um
andarilho, que anteriormente fora salvo por eles, visita Filêmon e Báucis. Fausto estava construindo uma
cidade em terra recuperada ao mar. Fausto passa a dizer a Mefistófeles que ele quer que Filêmon e Báucis
sejam removidos. Mefistófeles e três homens fortes foram e incendiaram a cabana, com Filêmon e Báucis
dentro. Fausto respondeu que ele apenas queria mudar a moradia deles. A Eckermann, Goethe contou que
"meu Filêmon e Báucis [...] nada têm a ver com aquele antigo casal famoso ou com a tradição ligada a eles.
Dei a este casal os nomes apenas para exaltar seus personagens. As pessoas e as relações são semelhantes e
daí o uso dos nomes causa um bom efeito" ( 6 de junho de 1831, apud G O E T H E . Faust. Nova York: Norton
Crit icai Editions, 1976, p. 4 28 [trad. de W Ar n d t ]). A 7 de junho de 1955, Jung escreveu a Alice Raphael
uma carta em que faz referência aos comentários de Goethe a Eckermann: "Quanto a Filêmon e Báucis: uma
típica resposta goethiana a Eckermann! tentando ocultar seus vestígios. Filêmon (OlA,T| pa [philema] =
beijo), o carinhoso, o casal simples e carinhoso de velhinhos, apegados à terra e conscientes dos Deuses, o
oposto total do super-homem Fausto, produto do demónio. A propósito: em minha torre em Bollingen
há uma inscrição escondida: Phílemonís sacrum Faustípoenitentía [Santuário de Filêmon, Arrependimento de
Fausto]. Quando encontrei pela primeira vez o arquétipo do velho sábio, ele se chamava a si mesmo
Filêmon. / Na alquimia F. e B. representavam o artifex ou vir sapiens e a soror mystica (Zosimos-Theosebeia,
Nicolas Flamel-Péronelle, Mr. South e sua filha no século X I X ) e o par no mutus liber (por volta de
1677)". Beineke Fibrary, Yale University. Sobre a inscrição de Jung, cf. também sua carta a Herm an n
Keyserling, de 2 de janeiro de 1928 (Cartas, l, p. 6 5) . A 5 de janeiro de 1942, Jung escreveu a Paul Schmitt:
"[constatei que eu] havia assumido Fausto como herança, e isso como advogado e vingador de Filêmon e Báucis
que, diferentemente do super-homem Fausto, são os hospedeiros dos deuses numa época de infâmia e
esquecimento de Deus" (Cartas, l, p. 316).
265 Em Tipos psicológicos (19 21), no contexto da discussão sobre Fausto, Jung escreveu: "O feiticeiro preservou
um pedaço do paganismo antigo; ele mesmo possui em si uma natureza que não foi atingida pela
dilaceração cristã; isto é, tem acesso ao inconsciente que ainda é pagão onde os opostos ainda estão lado
a lado em ingenuidade original, e que está além de toda pecaminosidade, mas, quando assumido na vida
consciente, está apto a produzir com a mesma força original e, portanto, demoníaca, tanto o mal quanto
o bem... Por isso é um destruidor e também um salvador. Esta figura é, portanto, a mais indicada para se
tornar a imagem simbólica de uma tentativa de união" ( O C, 6, § 314).
O M AGO 351
ve e m e n t e e o d i n a m i s m o e, p o r m e r a i m p o t ê n c i a , go z a d o b e m m e r e c i d o d e s-
ca n so , c o m o t o d a p e sso a id o sa , q u e n a d a m a is p o d e fa z e r d o q u e p l a n t a r t u lip a s
e r ega r s e u p e q u e n o j a r d i m . A v a r i n h a d e c o n d ã o e st á gu a r d a d a n o a r m á r i o
d e p a r e d e ju n t a m e n t e c o m o se xt o e s é t i m o livr o s d e M o i s é s 2 6 6 e d o Li v r o d a
Sa b e d o r ia d e E P M H E T P I S M E r i X T O i : [ H e r m e s T r i s m e g i s t o ] 2 6 7 . O I A H M Q N
fic o u ve lh o e u m p o u c o d e m e n t e ; p o r u m b o m d o n a t ivo e m m o e d a s so n a n t e s
o u p a r a a c o z i n h a , a i n d a m u r m u r a a lgu m a s fó r m u la s m á gic a s e m p r o l d o ga d o
e n fe it iç a d o . M a s é i n c e r t o se a i n d a sã o as fó r m u la s co r r e t a s e se ele e n t e n d e
se u se n t id o . T a m b é m e st á c la r o q u e n ã o i m p o r t a o q u e ele m u r m u r a , / t a lve z o 139/ 140
ga d o fiq u e b o m p o r s i m e s m o . Lá va i o ve lh o O I A H M Í 2 N p e lo j a r d i m , e n c u r va -
d o, c o m o r e ga d o r n a s m ã o s t r é m u la s . B A Y K I E e st á à ja n e l a d a c o z i n h a e o l h a
p a r a ele c o m i n d i fe r e n ç a a p á t ica . E l a já v i u e st a c e n a m i l h a r e s d e ve z e s - ca d a
ve z algo m a i s d e c r e p it a m e n t e , m a is fr a c a m e n t e , c a d a ve z e n xe r ga m e n o s , p o is
a fo r ç a d e seu s o lh o s e st á d i m i n u i n d o aos p o u c o s 2 6 8 .
E u e st o u p a r a d o n o p o r t ã o d o ja r d i m . Ele s n ã o n o t a r a m a p r e s e n ç a d o e st r a -
n h o . "Fi l ê m o n , ve lh o fe it ice ir o , c o m o est ás p assan d o ?", falo e m vo z alt a. El e n ã o
m e o u ve, p ar ece c o m p le t a m e n t e su r d o . E u v o u at r ás d ele e o segu r o p e la m a n ga
d a ca m isa . El e se v i r a e m e c u m p r i m e n t a s e m je it o e t r é m u lo . T e m u m a b a r b a
b r a n ca , cab elos b r a n co s e r alo s e u m r o st o en r u gad o , m a s n est e r o st o p ar ece h a ve r
algo. Seu s o lh o s sã o b a ç o s e ve lh o s, m a s n eles u m a co isa é e st r a n h a , p o d e r - s e - ia
d iz e r , viva . "Vo u b e m , e st r a n h o ", r e sp o n d e u , "m a s o q u e q u er es d e m i m ? "
E u : "D i s s e r a m - m e q u e t u és e n t e n d i d o e m m a gia n e gr a . I n t e r e s s o - m e p e lo
a ssu n t o . P o d e r ia s c o n t a r - m e algo so b r e e la ?"
O : " O q u e d e vo c o n t a r ? N ã o h á n a d a p a r a c o n t a r ".
E u : " N ã o fiq u e s z a n ga d o , ve lh o , e u go st a r ia d e a p r e n d e r a lgu m a co isa ".
O : " T u és c e r t a m e n t e m a is in s t r u íd o d o q u e e u . O q u e p o d e r ia e u e n s in a r - t e ?"
26 6 O sexto e sétimo livros de Moisés (isto é, em aditamento aos cinco contidos na Torá) foram publicados
em 1849 por Johann Schiebel, que afirmou que eles provinham de antigas fontes talmúdicas. A obra é um
compêndio de fórmulas mágicas cabalísticas que haviam gozado de uma popularidade permanente.
26 7 A figura de Hermes Trismegisto foi formada por amálgama de Hermes com o Deus egípcio Toth. Foi
atribuído a ele o Corpus Hermetícum, coleção de textos majoritariamente alquímicos e mágicos, datados do
início da era cristã, mas inicialmente considerados muito mais antigos.
26 8 No Fausto, de Goethe, Filêmon fala do declínio de suas forças: "Mais velho, eu não estava à disposição
/ Não era útil como de costume / E à medida que minhas forças diminuíam / Também a onda já havia
passado" ( F. I 110 8 7-9 ) .
352 LI BE R SECU N D U S 140/ 141
E u : " D i t o a b e r t a m e n t e : n a d a , o u m u i t o p o u co . P a r e c e - m e q u e a m a gia é
u m d o s r e cu r so s im a g in á r io s d a p e sso a i n fe r i o r i z a d a p e r a n t e a n a t u r e z a . Al é m
d isso , n ã o p o sso d e s c o b r ir o u t r o sign ifica d o c o m p r e e n s í ve l d a m a gia ".
O M AGO 353
E u : "M u i t o b e m - e u ve jo , o u m e lh o r , p a r e ce q u e és u m so fist a b e m e sp e r -
t o, q u e m e c o n d u z h a b i li d o s a m e n t e e m vo l t a d e ca sa e m e l e va n o va m e n t e ao
p o r t ã o ".
O : "I s t o t e p a r e ce a s s im p o r q u e ju lga s t u d o d o p o n t o d e vi s t a d e t e u i n t e -
le ct o . Se q u ise r e s d e s is t ir p o r u m m o m e n t o d e t u a r a z ã o , t a m b é m t u a c o n s e q u -
ê n c ia d e sist ir á ".
E u : "I s t o é u m a p r o va d e a p r e n d iz a g e m b e m d ifícil. M a s se e u q u is e r ser
a d ep t o , e n t ã o ist o t a m b é m d e ve ser, p a r a q u e se c u m p r a a e xigê n c ia . E u s o u
t o d o o u vid o s ".
O : " O q u e q u e r e s o u vi r ?"
E u : " T u n ã o m e se d u z e s. E u só e sp e r o p e lo q u e va is d i z e r ".
O : " E se e u n ã o d isse r n a d a ?"
E u : " B e m - e n t ã o e u m e r e t i r o u m p o u c o d e c e p c io n a d o e p e n so q u e F i -
l ê m o n é n o m í n i m o u m a r a p o sa e sp e r t a , d a q u a l se p o d e r i a a p r e n d e r a lgu m a
co isa ".
O : " T u vê s q u e t e n h o r a z ã o ".
E u : "M a s e n t ã o as p e r sp e ct iva s d o a d e p t o sã o r u in s . E l e t e m d e e sp e r a r a
O : "Se ele r e n u n c i a r m a is ce d o à s u a r a z ã o , t a m b é m m a i s ce d o p o d e r á c h e -
E u : "I s t o m e p a r e ce u m a e xp e r i ê n c i a p e r igo sa . N ã o se p o d e r e n u n c i a r s e m
m a is à r a z ã o ".
E u : " T u t e n s a r m a d i l h a s d a n a d a s".
O : " V ê só : u m j o v e m q u e go s t a r ia d e se r u m a n c iã o ! E p o r q u ê ? Go s t a r i a d e
a p r e n d e r a m a gia , m a s n ã o o o u sa p o r ca u sa d e s u a ju ve n t u d e ".
ca b e lo s se t e n h a m t o r n a d o gr isa lh o s e t e u ju í z o t e n h a d i m i n u í d o p o r s i ".
E u : "Go s t a r i a d e n ã o o u vi r t e u d e b o ch e . E u m e d e i xe i a p a n h a r c o m o u m
b o b o n a t u a a r m a d i l h a . N ã o p o sso a p r e n d e r n a d a d e t i ".
E u : "I s t o t a m b é m fa z e m o u t r o s id o so s".
E u : "Si m , e n ã o fo i u m a vis ã o a gr a d á ve l. M a s e m t i t a m b é m o t e m p o d e i xo u
su as m a r c a s ".
O : "I s t o e u se i".
E u : "P o r t a n t o , o n d e e s t ã o t u a s va n t a ge n s?"
E u : " O q u e sã o va n t a ge n s q u e a ge n t e n ã o vê ?"
O : "Es t á s ve n d o ? I s t o t a m b é m é u m a va n t a g e m d a m a gia : n e n h u m a ve z o
d ia b o m e a ju d a . T u fazes p r o gr e sso s n o c o n h e c i m e n t o d a m a gia d e t a l fo r m a
q u e d e vo a c r e d it a r q u e t e n s b o m t a le n t o p a r a isso ".
E u : " E u t e a gr a d e ç o , O I A H M Í 2 N , b a st a , e s t o u z o n z o . Ad e u s !"
Sa io d o j a r d i m e sigo p e la e s t r a d a a b a ixo . H á p esso as p a r a d a s e m gr u p o s p o r
a li q u e m e o l h a m fu r t i va m e n t e . O u ç o m u r m u r a r e m às m i n h a s cost as: "Ve d e , a l i
va i ele, o d is c íp u lo d o ve lh o O I A H M Q N . C o n v e r s o u lo n ga m e n t e c o m o ve lh o .
El e a p r e n d e u a lgu m a co isa . E l e c o n h e ce os m is t é r io s . Se e u so u b esse ao m e n o s
o q u e ele sab e ago r a". "Ca l a i - vo s , lo u co s m a ld i t o s ", go s t a r ia d e g r i t a r - lh e s , m a s
n ã o p o sso , p o is n ã o se i se r e a l m e n t e n ã o a p r e n d i a lgu m a co isa . E p e lo fat o d e
e u calar , a c r e d i t a m fi r m e m e n t e d e sd e e n t ã o q u e e u r e c e b i d e O I A H M Q N a
m a gia n e gr a .
26 9
[ 2 ] [ I H 142 ] É um erro acreditar que existem p r á t ica s m á gic a s q u e p o d e m se r
a p r e n d id a s. N ã o se p o d e e n t e n d e r a m a gia . En t e n d e r só se p o d e o r a c io n a l.
M a s a m a gia é o i r r a c i o n a l q u e n ã o se p o d e e n t e n d e r . O m u n d o n ã o é só r a -
c io n a l, m a s t a m b é m i r r a c i o n a l . A s s i m c o m o se p o d e a b r i r o r a c i o n a l d o m u n d o
c o m a r a z ã o à m e d i d a q u e o r a c i o n a l d o m u n d o v e m ao e n c o n t r o d a c o m p r e e n -
142/ 143 são , a s s im t a m b é m se e n c o n t r a o i n c o m p r e e n s í ve l e o i r r a c i o n a l . /
Es t e e n c o n t r o é m á g i c o e a b s o lu t a m e n t e i n c o m p r e e n s í ve l . A c o m p r e e n s ã o
m á g i c a é a q u ilo q u e se c h a m a n ã o c o m p r e e n s ã o . T u d o o q u e t e m e fe it o m á -
gico é i n c o m p r e e n s í ve l , e o i n c o m p r e e n s í ve l t e m m u i t a s ve z e s e fe it o m á gico .
O e fe it o i n c o m p r e e n s í ve l , n ó s o c h a m a m o s d e m á gic o . O m á g i c o s e m p r e m e
e n glo b a , s e m p r e m e e n vo lve , a b r e e s p a ç o s q u e n ã o t ê m p o r t a s e c o n d u z p a r a
o n d e n ã o h á n e n h u m a sa íd a . O m á g i c o é b o m e m a u , e n ã o é b o m n e m m a u .
A m a g ia é p e r igo sa , p o is o i r r a c i o n a l c o n fu n d e , a t r a i e p r o d u z efeit o , e e u s o u
s e m p r e s u a p r i m e i r a vít im a .
26 9 Nota marginal do volume caligráfico: "Jan. 1924". Isto parece referir-se à data em que esta passagem foi
transcrita para o volume caligráfico. Neste ponto, o texto escrito fica em tamanho maior, com mais espaço.
Neste tempo, Cary Baynes começou sua transcrição.
O M AGO 357
r io r a d o s . P o r isso a q u e le s i r r a c i o n a i s s u c u m b e m c o m r a z ã o ao s u p é r flu o e ao
d e sp r e z o . P o r isso t a m b é m u m a p e sso a r a c i o n a l d e n o s s a é p o c a ja m a i s se se r -
vi r á d a m a g i a 2 7 0 .
M a s é o u t r a c o is a q u e a b r i u e m si o caos. N ó s p r e c is a m o s d a m a gia p a r a
p o d e r m o s r e ce b e r o u c h a m a r o m e n sa ge ir o e a c o m u n i c a ç ã o d o n ã o c o m p r e -
e n síve l. N ó s r e c o n h e c e m o s q u e o m u n d o c o n s i s t i a d e r a z ã o e in se n sa t e z , e n ó s
e n t e n d e m o s q u e n o sso c a m i n h o p r e c is a va n ã o só d a r a z ã o , m a s t a m b é m d a
in se n sa t e z . Es t a s e p a r a ç ã o é a le a t ó r ia e d e p e n d e d o n íve l d a c o m p r e e n s ã o . M a s
p o d e - se t e r c e r t e z a d e q u e s e m p r e a m a i o r p a r t e d o m u n d o a i n d a n o s é i n c o m -
p r e e n s íve l. I n c o m p r e e n s í ve l e i r r a c i o n a l d e ve m ser id ê n t ic o s p a r a n ó s , a i n d a
q u e n ã o o s e ja m n e c e s s a r ia m e n t e e m s i, p o is u m a p a r t e d o i n c o m p r e e n s í ve l
só é a t u a lm e n t e i n c o m p r e e n s í ve l , p o d e n d o a m a n h ã ser t a lve z r a c io n a l. M a s
en q u an t o n ã o o en t en d em os, é t a m b é m ir r a cio n a l. À m e d id a que o n ão c o m -
p r e e n s íve l e m si é r a c i o n a l , p o d e - se t e n t a r i m a g i n á - l o c o m ê xit o , m a s à m e d i d a
q u e é i r r a c i o n a l e m s i, / p r e cisa - se d a p r á t ic a m á g i c a p a r a e xp lo r á - lo .
A p r á t ic a m á g ic a co n sist e e m t o r n a r c o m p r e e n s í ve l o i n c o m p r e e n s í ve l d e
c e r t a fo r m a n ã o c o m p r e e n s í ve l . A m a n e i r a m á g ic a n ã o é a r b it r á r ia , p o is ist o
s e r ia c o m p r e e n s í ve l , m a s é r e s u lt a d o d e r a z õ e s i n c o m p r e e n s í ve i s . Fa la r d e r a -
z õ e s t a m b é m n ã o e st á ce r t o , p o is as r a z õ e s sã o r a c io n a is . E t a m b é m n ã o se p o d e
fa la r d e d e s t it u íd o d e r a z õ e s, p o is d isso n a d a m a is se p o d e r i a a fir m a r : a m a n e i r a
m á g i c a se r e n d e . Q u a n d o a b r im o s o caos, t a m b é m a m a gia se r e n d e .
P o d e - se e n s in a r o c a m i n h o q u e le va ao caos, m a s n ã o se p o d e e n s in a r a m a -
gia. A r e sp e it o d e la só se p o d e calar , q u e p a r e ce ser o m e l h o r e n s in a m e n t o . Es t e
p o n t o d e vi s t a é d e sco n ce r t a n t e , m a s a ssim é a m a gia . A r a z ã o c r i a d e s o r d e m e
o b s c u r i d a d e 2 7 1. N a t r a d u ç ã o m á g ic a d o in c o m p r e e n s íve l p r e cisa -se in c lu s ive d a
r a z ã o , p o is só a t r a vé s d a r a z ã o p o d e ser cr ia d o o c o m p r e e n s íve l. M a s c o m o é p r e -
ciso e m p r e ga r n isso a r a z ã o , n i n g u é m p o d e d i z e r q u e o fat o já se r e a l i z o u q u a n d o
n ó s a p e n a s t e n t a m o s e xp r e ssa r o q u e sign ifica p a r a n ó s a a b e r t u r a d o c a o s 2 7 2 .
270 Em Tipos psicológicos (1921) Jung escreveu: ' A razão só pode fornecer o equilíbrio àquele cuja razão já é
um órgão de equilíbrio... O homem, via de regra, precisa ter também o oposto de um de seus estados para
então posicionar-se necessariamente no meio" ( O C, 6, § 435).
271 O esboço continua: "A prática mágica desagrega-se portanto em duas partes: a prim eira é a exploração do
caos, a segunda é a tradução da essência no compreensível" (p. 484).
272 O esboço continua: ' A participação da razão na magia é muito pequena. Isto vai aborrecê-lo. Idade e
experiência são necessárias. A incontrolável sofreguidão e medo da juventude, bem como sua virtude, tão
necessária a ela, impedem a atração conjunta e secreta de Deus e do demónio. Com demasiada facilidade
serás puxado para um ou outro lado, cegado ou paralisado" (p. 484).
358 LI BE R SECU N D U S 144/146
Q u a n d o h a vi a t e r m i n a d o o m ê s d o s G é m e o s , as p esso as fa la va m p a r a su a
s o m b r a : " T u és e u ", p o is h a vi a m c o n s id e r a d o a n t e s s e u e s p ír it o c o m o u m a se -
g u n d a p e sso a e m t o r n o d elas. A s s i m as d u a s se t o r n a va m u m a só e d esse e n -
c o n t r o s u r g i u algo p o d e r o so , ist o é, a p r i m a ve r a d a c o n s c iê n c ia , q u e c h a m a m o s
d e c u l t u r a e q u e d u r o u a t é o t e m p o d o C r i s t o 2 7 3 . O p e ixe d e sign a va , p o r é m , o
m o m e n t o e m q u e o u n i d o se se p a r o u , se gu n d o a l e i e t e r n a d o m o v i m e n t o c o n -
t r á r io , n u m m u n d o i n fe r i o r e m u n d o su p e r io r . Q u a n d o a fo r ç a d o c r e s c i m e n t o
c o m e ç a a d e sa p a r e ce r , o u n i d o se d i vi d e e m seu s o p o st o s. O C r i s t o l a n ç o u o
i n fe r i o r n o in fe r n o , p o is ele l u t a c o n t r a o b e m . I s t o t e ve q u e se r a s s im . M a s o
273 É uma referência à concepção astrológica do mês, ou éon, platónico de Peixes, que se baseia na precessão
dos equinócios. Cada mês platónico consiste de um signo zodiacal e dura aproximadamente 2.300 anos.
Jung discute o simbolismo ligado a isto em Aíon ( O C , 9/ 2), capítulo 6. Observa ele que, por volta de
7 a .C, houve uma conjunção de Saturno e Júpiter, que representava uma união de opostos extremos,
o que colocaria o nascimento de Cristo em Peixes. O signo de Peixes (em latim Písces) é muitas vezes
representado por dois peixes nadando em direções opostas. Sobre os meses platónicos, cf. H O W E LL, A.
Jungian Synchronicíty in Astrological Signs and Ages. Wheaton: Quest Books, 19 9 0 , p. 125S. Jung começou a estudar
astrologia em 1911, durante seus estudos de mitologia, e aprendeu a fazer horóscopos (Jung a Freud, 8 de
maio de 1911, Sígm und Freud - C.G.JungBríejwechsel, p. 465) [ed. inglesa, p. 421]. Quanto às fontes de Jung para
a história da astrologia, ele citou nove vezes, em sua obra posterior, o livro L'Astrologíegrecque, de Auguste
Bouché-Feclerq (Paris: Ernest Feroux, 18 9 9 ) .
O M AGO 359
se p a r a d o n ã o p o d e fi c a r s e p a r a d o p a r a s e m p r e . V a i u n i r - s e d e n o vo , e e m b r e ve
o m ê s d e P e ixe s e s t a r á t e r m i n a d o 2 7 4 . N ó s p r e s s e n t i m o s e e n t e n d e m o s q u e o
c r e s c i m e n t o p r e c i s a d e a m b o s , p o r isso m a n t e m o s b e m ju n t o s o b e m e o m a l .
C o m o s a b e m o s q u e a d e n t r a r d e m a i s n o b e m s i g n i fi c a t a m b é m a d e n t r a r p o r
d e m a is n o m a l, m a n t e m o s u n id o s os d o i s 275.
M a s a ssim p e r d e m o s a d ir e çã o , e o cu r so n ã o é m a is d a m o n t a n h a p a r a o
va le , m a s cr e sce t r a n q u i l a m e n t e d o va le p a r a a m o n t a n h a . Aq u i l o q u e n ã o p o -
d e m o s m a i s i m p e d i r o u e s c o n d e r é n o sso fr u t o . A t o r r e n t e q u e fl u i t o r n a - s e
la go e m a r / q u e n ã o t ê m e s c o a d o u r o , o u se ja , su a s á gu a s s o b e m p a r a o c é u 145/ 146
c o m o va p o r e c a e m d a s n u ve n s c o m o c h u va . O m a r é u m a m o r t e , m a s t a m b é m
o lu ga r d a a s c e n s ã o . I s t o é O I A H M Í 2 N , q u e r e ga s e u j a r d i m . N o s s a s m ã o s fo r a m
a m a r r a d a s , e c a d a q u a l d e ve fic a r s e n t a d o c a l m a m e n t e e m s e u lu ga r . E l e so b e
in vis íve l e c a i c o m o c h u v a so b r e t e r r a s d i s t a n t e s 2 7 6 . A á g u a so b r e a t e r r a n ã o é
n e n h u m a n u v e m q u e d e ve sse c h o ve r . Só g r á vi d a s p o d e m d a r à l u z , n ã o a q u e la s
q u e a in d a d e ve m c o n c e b e r 277.
é s r e a l m e n t e o a m o r o s o q u e c e r t a ve z a c o l h e u os d e u se s p e r e g r i n a n t e s p e l a
t e r r a , q u a n d o t o d a s as o u t r a s p e sso a s lh e s n e g a r a m p o u s a d a . T u é s a q u e le q u e ,
s e m o sa b e r , d e st e a c o l h i d a ao s d e u se s q u e , e m a g r a d e c im e n t o , t r a n s fo r m a r a m
274 Isto se refere ao fim do mês platónico de Peixes e ao começo do mês platónico de Aquário. A data
precisa é incerta. Em Aíon (1951), Jung observou: "Astrologicamente falando, o início do próximo éon
deverá situar-se entre 2 0 0 0 e 220 0 , dependendo do ponto de vista que se escolher" ( O C, 9/ 2, § 149,
nota 8 8 ) .
275 Em Aion (1951), Jung escreveu: "Se o éon de Peixes foi governado, ao que tudo indica, principalmente
pelo tema arquetípico do 'irmãos inimigos', por coincidência, com a aproximação do mês platónico
imediato, isto é, de Aquário, coloca-se o problema da união dos opostos. Já não se trata mais de volatilizar
o mal como mera 'privatio boni', mas de reconhecer sua existência real" ( O C, 9/ 2, § 142).
276 O esboço continua: "O tempo invernal das chuvas começou com Cristo. Ele ensinou às pessoas o cam i-
nho do céu. Nós aprendemos o caminho da terra. Por isso, nada é tirado do evangelho, mas acrescentado"
(p- 4 8 6 ) .
277 O esboço continua: "Nosso esforço era dirigido para a inteligência e supremacia espiritual, por isso
cultivamos em nós tudo o que é inteligente. Mas a quantidade extraordinária de estupidez, que está em
toda pessoa, caiu no desprezo e na renegação. Mas se aceitarmos em nós o outro, levaremos também para
cima a estupidez típica de nosso ser. A estupidez é uma cavalgadura das pessoas. Ela tem algo de divino
em si, algo da idiotice gigantesca do mundo. Por isso a estupidez é realmente grande. Ela mantém afastado
de nós tudo o que nos pudesse induzir à inteligência. Faz com que fique incompreendido tudo o que não
precisaria normalmente de compreensão. Esta estupidez típica manifesta-se no pensamento e na vida.
Algo surdo, algo cego, isto traz para perto de nós os destinos necessários e mantém longe de nós a virtude
irmanada com a sensatez. E a estupidez que divide e separa os germes misturados da vida, de modo a
vermos claramente demais o que é bom e mau, o que é racional e irracional. Mas muitas pessoas são
também lógicas em sua irracionalidade" (p. 4 8 7) .
36o LI BE R SECU N D U S 146/ 149
t u a c h o u p a n a n u m t e m p l o d e o u r o , e n q u a n t o o d ilú vio i a t r a ga n d o p o r t o d a
p a r t e . T u vivia s p a r a a lé m q u a n d o o caos i r r o m p e u . T u t e t o r n a st e o s e r vid o r
d o s a n t u á r io , q u a n d o o s d eu ses e r a m in vo c a d o s e m v ã o p o r seu s p o vo s. D e
fat o, o a m o r o s o vi ve p a r a a lé m . P o r q u e n ã o ví a m o s ist o ? E m q u e m o m e n t o se
r e ve l a r a m o s d eu ses? Q u a n d o B A Y K I E q u is s e r vi r ao s h o n r a d o s h ó s p e d e s s e u
ú n i c o gan so, a e s t u p id e z a b e n ç o a d a , a ave se r e fu gio u ju n t o ao s d eu ses, e n t ã o os
d eu ses se d e r a m a c o n h e c e r a seu s p o b r e s h o sp e d e ir o s q u e o fe r e c ia m a ú l t i m a
c o is a q u e t i n h a m . P o r t a n t o e u v i q u e o a m o r o s o vi ve p a r a a lé m , e q u e é e le q u e
d á p o u s a d a aos d eu ses s e m sa b e r q u e e r a m d e u s e s 2 7 8 .
Ve r d a d e ir a m e n t e , ó O I A H M Q N , n ã o v i q u e t u a c h o u p a n a é u m t e m p lo e
T u e st á s d e it a d o ao so l, ó O I A H M Q N , c o m o u m a c o b r a q u e se e n go le a s i
m e s m a . T u a sa b e d o r ia é sa b e d o r ia d e se r p e n t e , fr ia , c o m u m a p i t a d a d e ve n e n o ,
t e r a p ê u t ic a e m p e q u e n a d ose. T u a m a gia p a r a lis a e, p o r isso, faz p esso as fo r t e s,
q u e se a r r e b e n t a m a s i m e sm a s. M a s elas t e a m a m , elas s ã o gr at as a t i , a m a n t e
d a p r ó p r i a a lm a ? O u elas t e a m a l d i ç o a m p o r ca u sa d e t e u ve n e n o m á g i c o d e
se r p e n t e ? El a s fi c a m a o lo n ge , s a c o d e m a c a b e ç a e c o c h i c h a m e n t r e s i.
147/ 148 T u é s a i n d a u m a p esso a, O I A H M Q N , o u / é an t es u m a p essoa aq u ele q u e é
u m a m a n t e d e su a p r ó p r i a alm a? T u és h o sp it a le ir o , O I A H M Q N , t u r eceb est e e m
t u a c h o u p a n a os p e r e gr in o s su jo s s e m sab er q u e m e r a m . T u a ca sa t o r n o u - s e u m
278 Neste parágrafo, Jung apresenta o clássico relato de Filêmon e Báucis, tirado das Metamorfoses.
O M AGO 361
t e m p l o d e o u r o , e e u sa í d e t u a m e s a r e a lm e n t e in sa cia d o ? O q u e t u m e d est e?
T u m e c o n vid a s t e p a r a u m a r e fe içã o ? T u r e lu z is t e m u l t i c o l o r i d o e e m a r a n h a d o
e, e m p a r t e n e n h u m a , t u t e d e st e a m i m c o m o ví t i m a . T u esca p a st e d e m e u a r d i l
p a r a t e p egar. N ã o t e e n c o n t r e i e m p a r t e a lgu m a . A i n d a és u m a p esso a? T u és
b e m m a is d a e s p é c ie d as se r p e n t e s.
E u q u is p e ga r - t e e a r r a n c á - l o d e t i , p o is os cr ist ã o s a p r e n d e r a m a c o m e r
t a m b é m o se u D e u s . E o q u e a co n t e ce c o m D e u s , n ã o v a i a co n t e ce r t a m b é m
m u i t o m a is às p esso as h u m a n a s ? E u o lh o p a r a a va s t i d ã o d a t e r r a e n ã o o u ç o
m a is d o q u e la m ú r ia s e n ã o ve jo o u t r a c o is a a n ã o ser p esso as q u e se d e vo r a m
m utuam en te.
Ó O I A H M Q N , t u n ã o és cr ist ã o . T u n ã o t e d e ixa st e d e vo r a r e n ã o m e d e -
vo r a st e . P o r isso n ã o t e n s salas d e a u la , n e n h u m p ó r t i c o e n e n h u m a lu n o q u e
fica e m r o d a s fa la n d o d o m e s t r e e so r ve su as p a la vr a s c o m o a á gu a d a vi d a . T u
n ã o és c r is t ã o n e m p a gã o , u m n ã o h o s p e d e ir o h o s p it a le ir o , u m h o s p e d e ir o d o s
d eu ses, u m q u e vi ve p a r a a lé m , u m e t e r n o , o p a i d e t o d a s as ve r d a d e s e t e r n a s.
M a s s e r á q u e e u sa í r e a l m e n t e in s a c ia d o d e ju n t o d e t i? N ã o , e u m e a fa st e i
d e t i p o r q u e e st a va r e a l m e n t e saciad o . M a s o q u e fo i q u e c o m i ? T u a s p a la vr a s
n ã o m e d e r a m n a d a . T u a s p a la vr a s m e a b a n d o n a r a m a m i m m e s m o e à m i n h a
d ú vid a . E a s s im e u m e c o m i . E p o r isso, ó O I A H M Q N , n ã o és u m cr ist ã o , p o is t e
a lim e n t a s d e t i m e s m o e o b r iga s as p esso as a fa z e r e m o m e s m o . I s t o é p a r a elas a
c o is a m a is d e s a gr a d á ve l, p o r q u a n t o d e n a d a t ê m m a is n o jo os a n i m a i s h u m a n o s
d o q u e d e s i m e s m o s . P o r isso p r e fe r e m d e vo r a r t o d a s as c r ia t u r a s q u e r a s t e ja m ,
q u e s a lt a m , q u e n a d a m e q u e vo a m , e a t é m e s m o s u a p r ó p r i a e s p é c ie , a n t e s d e
se r o e r e m a s i m e s m o s . M a s est e a l i m e n t o é e fica z , e lo go t o r n a a p e sso a sa cia d a .
P o r isso, ó O I A H M Q N , n ó s n o s le va n t a m o s saciad o s d e t u a m e sa .
T u a m a n e i r a , ó O I A H M Q N , é i n s t r u t i va . T u m e d e ixa s n u m a e s c u r id ã o s a -
lu t a r , o n d e n a d a p r e c is o e n xe r ga r n e m p r o c u r a r . T u n ã o és n e n h u m a l u z q u e
b r i l h a n a s t r e va s 2 7 9 , n e n h u m r e d e n t o r q u e est ab elece u m a ve r d a d e e t e r n a e a s-
s i m ap aga a / l u z n o t u r n a d o in t e le c t o h u m a n o . T u d e ixa s e s p a ç o p a r a a e s t u - 148/ 149
p id e z e gr a ce jo d o o u t r o . T u q u e r e s, ó a b e n ç o a d o , r e ga r o j a r d i m d o o u t r o , m a s
r egas as flores d e t e u p r ó p r i o j a r d i m . Q u e m p r e c is a d e t i p e r gu n t a - t e e, ó s á b io
Fi l ê m o n , e u s u p o n h o q u e t a m b é m t u p e r gu n t a s à q u e le d e q u e m p r e cisa s, e t u
p agas a q u ilo q u e r eceb es. O C r i s t o t o r n o u as p esso as á vid a s, p o is d e sd e e n t ã o
279 Comparar com Jo 1,5, onde Cristo é descrito como "a luz que brilha nas trevas, mas as trevas não a
compreenderam".
362 L I B E R S E C U N D U S 149/ 152
e s p e r a m d e se u r e d e n t o r d á d iva s s e m c o n t r a p r e s t a ç ã o . O d a r p r e se n t e s é t ã o
i n fa n t i l q u a n t o o p o d e r . Q u e m p r e s e n t e ia a r r o ga - se p o d e r . A vi r t u d e d o d a r d e
p r e se n t e é o m a n t o c e r ú le o d o t ir a n o . T u és sá b io , ó O I A H M Q N , t u n ã o p r e -
se n t e ia s. T u q u e r e s as flores d e t e u j a r d i m e q u e ca d a c o is a cr e sça p o r s i m e s m a .
E u lo u vo , ó O I A H M Q N , t u a a u s ê n c ia d a d i m e n s ã o d e sa lva d o r ; t u n ã o és
n e n h u m p a st o r q u e v a i a t r á s d a o ve lh a p e r d i d a , p o is a cr e d it a s n a d ign id a d e d a
p esso a, q u e n ã o é n e c e s s a r ia m e n t e u m a o ve lh a . M a s se e la fo r u m a o ve lh a , t u
lh e d e ixa s o d i r e i t o e a d ign id a d e d a o ve lh a , p o is p o r q u e d e ve r i a m o ve lh a s se r
t r a n s fo r m a d a s e m p essoas? N a ve r d a d e , e xi s t e m p esso as e m n ú m e r o su ficie n t e .
T u co n h e ce s, ó O I A H M Q N , a sa b e d o r ia d as co isas vi n d o u r a s , p o r isso és
ve lh o , m u i t í s s i m o ve lh o , e a s s im c o m o m e so b r e p u ja s e m a n o s, t a m b é m so b r e -
p u ja s e m fu t u r o o p r e se n t e , e o t e m p o d e t e u p a ssa d o é i n c o m e n s u r á ve l . T u és
le g e n d á r i o e in a t in gíve l. T u fost e e se r á s, r e t o r n a n d o p e r io d ic a m e n t e . In visíve l
é t u a sa b e d o r ia , in s c ie n t e t u a ve r d a d e , in ve r íd ic a e m q u a lq u e r t e m p o , e a s s im
m e s m o ve r í d i c a e m t o d a a e t e r n id a d e , m a s t u r egas c o m á gu a vi va , m e d i a n t e
a q u a l se a b r e m as flores d e t e u j a r d i m , u m a á gu a est elar , u m o r va lh o d a n o it e .
D e q u e m p r e cisa s, ó O I A H M Q N ? T u p r e cisa s d as p esso as p o r ca u sa d as
p e q u e n a s co isas, p o is t u d o o q u e é m a i o r e o m á x i m o e s t ã o e m t i . O C r i s t o
m i m o u as p esso as, p o is e n s i n o u - lh e s q u e só s e r i a m salvas e m U m , ist o é, N e l e ,
o Fi l h o d e D e u s , e d e sd e e n t ã o as p esso as e xi g e m s e m p r e m a is as co isas m a io r e s
d o o u t r o , p r i n c i p a l m e n t e su a sa lva çã o , e q u a n d o e m a lg u m lu ga r u m a o ve lh a se
149/ 150 t r a n s vi o u , / e la a cu sa o p ast or . Ó O I A H M Q N , t u és u m a p e sso a h u m a n a e p r o -
va s q u e as p essoas n ã o sã o o ve lh a s, p o is t u gu a r d a s o m a i o r e m t i , p o r isso flui
p a r a t e u j a r d i m á gu a fe c u n d a d e c â n t a r o in e s go t á ve l.
[ I H 150] Tu és solitário, ó O I A H M Q N , n ã o ve jo n e n h u m d is c íp u lo e n e n h u m a
a sso c ia ç ã o e m t o r n o d e t i , a p r ó p r i a B A Y K I E é ap en as t u a o u t r a m e t a d e . T u
vive s c o m as flores, á r vo r e s e p á ssa r o s, m a s n ã o c o m p esso as. N ã o d e ve r ia s t u
vi ve r c o m p essoas? A i n d a és u m a p e sso a h u m a n a ? N ã o q u e r e s sa b e r n a d a d as
p essoas? N ã o vê s c o m o fo r m a m r o d in h a s , i n v e n t a m b o a t o s e c o n t a m fá b u la s
in fa n t is a t e u r e sp e it o ? N ã o q u e r e s i r a t é elas e d i z e r - l h e s q u e és u m a p e sso a e
u m se r m o r t a l c o m o elas e q u e go st a r ia s d e a m á - la s ?
Ó O I A H M Q N , t u r is? E u t e e n t e n d o . Fa z p o u c o a i n d a q u e e n t r e i e m t e u
j a r d i m e q u e r i a a r r a n c a r d e t i o q u e e u t i n h a d e e n t e n d e r p o r m i m m e sm o . O
O I A H M Q N , e u e n t e n d o : e u fiz d e t i i m e d i a t a m e n t e u m sa lva d o r q u e se d e i xa
c o m e r e q u e p r e n d e p o r m e i o d e p r e se n t e s. As s i m sã o as p esso as, p e n sa s t u ;
O M AGO 363
a m a s t u a a l m a p o r a m o r às p essoas; elas p r e c i s a m d e u m r e i q u e vi ve p o r s i e
q u e n ã o d e ve s u a v i d a a n i n g u é m . É a s s im q u e t e q u e r e m . T u sat isfazes o d e se jo
d o p o vo e d e sa p a r e ce s. És u m r e c i p i e n t e d as fá b u la s. T u t e su ja r ia s se fosses a t é
as p esso as c o m o u m se r h u m a n o , p o is t o d a s elas h a ve r i a m d e r i r e c h a m a r - t e d e
m e n t i r o s o , p o r q u e O I A H M Q N n ã o é u m se r h u m a n o .
E u v i , ó O I A H M Q N , a q u e la r u ga e m t e u r o st o : h o u ve u m t e m p o e m q u e
er as j o v e m e q u e r ia s se r u m a p e sso a e n t r e as d e m a is p essoas. M a s os a n i m a i s
cr ist ã o s n ã o go s t a r a m d e t u a h u m a n i d a d e p a gã , p o is s e n t i r a m e m t i a q u e le d e
q u e m p r e c is a va m . El a s p r o c u r a m s e m p r e o As s in a la d o , e, q u a n d o o p e ga m
a lh u r e s e m lib e r d a d e , elas o p r e n d e m n u m a ga io la d e o u r o e lh e t i r a m a fo r ç a
d e s u a m a s c u lin id a d e , d e m o d o q u e fica se n t a d o p a r a lít ic o e calad o . En t ã o o
l o u va m e i n v e n t a m fá b u la s so b r e ele. E u se i q u e c h a m a m ist o d e ve n e r a ç ã o .
E q u a n d o n ã o e n c o n t r a m o Ve r d a d e i r o , t ê m ao m e n o s u m P a p a , c u jo o fíc io é
r e p r e s e n t a r a d i vi n a c o m é d i a . M a s o Ve r d a d e i r o s e m p r e d e s m e n t e a s i m e s m o ,
p o is n ã o co n h e c e n a d a m a i o r d o q u e se r u m a p e sso a h u m a n a .
T u r i s , ó O I A H M Q N ? E u t e c o m p r e e n d o : p a sso u o t e m p o d e ser es u m a
p e sso a c o m o as o u t r a s. E p o r q u e t u a m a va s d e fat o o se r h u m a n o , d e c id is t e l i -
vr e m e n t e se r ao m e n o s a p e sso a q u e os o u t r o s q u e r i a m d e t i . P o r isso e u t e ve jo ,
ó O I A H M Q N , c o m n e n h u m a p esso a , m a s c o m flores, á r vo r e s , p á s s a r o s e c o m
t o d a s as á gu a s c o r r e n t e s e p a r a d a s q u e n ã o s u ja m t e u e st a d o d e ser h u m a n o .
P o is p a r a as flores, as á r vo r e s , os p á s s a r o s e as á gu a s n ã o és O I A H M Q N , m a s
u m a p esso a. M a s q u e so lid ã o , q u e e st a d o d e i n u m a n i d a d e ! / 151/ 152
[ I H 152] Por que ris, ó O I A H M Q N , não consigo entender. Contudo, não vejo o ar azul de teu
jardim ? As som bras m aravilhosas que te rodeiam ? O sol que choca em torno de tifantasm as azuis do
m eio dia?
T u r i s , ó O I A H M Q N ? A h , e u t e e n t e n d o : fu giu - t e a h u m a n i d a d e , m a s s u a
s o m b r a s u r g i u p a r a t i . É b e m m a i o r e m a is glo r io s a a s o m b r a d a h u m a n i d a d e d o
q u e a p r ó p r i a h u m a n i d a d e . A s s o m b r a s a z u is d o m e i o - d i a d o s m o r t o s ! Si m , lá
364 LI BE R SECU N D U S 152/ 155
e st á t u a h u m a n i d a d e , ó O I A H M Q N , t u és u m m e s t r e e a m igo d o s m o r t o s . El e s
ficam s u s p ir a n d o à s o m b r a d e t u a casa, eles m o r a m so b os galh o s d e t u a s á r vo -
res. El e s b e b e m o o r va lh o d e t u as lá gr im a s , eles se a q u e n t a m n a b o n d a d e d e t e u
co r a çã o , eles t ê m fome d as p a la vr a s d e t u a sa b e d o r ia , q u e lh e s so a c h e ia , c h e i a
d e r e s s o n â n c ia vi t a l . E u t e v i , ó O I A H M Q N , n a h o r a d o m e i o - d i a , c o m s o l alt o,
t u est avas d e p é e falavas c o m u m a s o m b r a a z u l, h a vi a sa n gu e p isa d o e m t u a t e s-
t a e t o r m e n t o gr a n d io s o a a b scu r e cia . E u p o sso a d ivin h a r , ó O I A H M Q N , q u e m
e r a t e u h o sp e d e d a r e fe iç ã o d o m e i o - d i a 2 8 0 . C o m o fu i t ã o cego, e u d e m e n t e !
A q u i e st á s, ó O I A H M Q N ! M a s o n d e e s t o u eu ? V o u se gu in d o m e u c a m i n h o ,
m e n e a n d o a ca b e ça , e as p esso a s o l h a m p a r a m i m e e u calo. O silê n c io d e se s-
fi53 p e r a d o r !/ [ I H 153]
O senhor do jardim ! Eu vejo tuas árvores escuras de longe num sol escaldante. Minha estrada leva
aos vales onde m oram os seres hum anos. Eu sou um pedinte andarilho. E eu me calo.
M a t a r p r o fe t a s in fe r io r e s t r a z lu c r o ao p o vo . Se q u ise r assassin ar , go st a r ia
d e m a t a r seu s p r o fet a s. Q u a n d o a b o c a d o s d eu ses se ca la , ca d a q u a l p o d e o u vi r
su a p r ó p r i a fala. Q u e m a m a o p o vo se cala. Q u a n d o só m a is os m e st r e s d o e r r o
e n s i n a m , o p o vo m a t a r á os m e st r e s d o e r r o e a ssim , n o c a m i n h o d e seu s p ecad o s,
in c id ir á a t é m e s m o n a ve r d a d e . Só d e p o is d a n o it e m a is e scu r a faz-se d ia . E n c o -
b r i, p o r t a n t o , as lu z e s e ca la i, p a r a q u e a n o it e fiq u e e scu r a e sile n cio sa . O so l se
le va n t a s e m n o ssa a ju d a . Só q u e m co n h e ce o e r r o m a is n e gr o sab e o q u e é lu z .
Ó senhor do jardim ! De longe brilha para m im teu arvoredo m ágico. Eu venero teu envoltório
281
154 enganador. Tu, pai de todas as luzes e ilum inador do erro. / [Ilu s t r a ç ã o 154 ] 2 8 2
28 0 Cf. a fantasia de Jung, de I o de junho de 1916, em que o hóspede de Filêmon era Cristo (cf. abaixo, p. 359).
281 Nota marginal do volume caligráfico: "O Bhagavadgita diz: sempre que há um declínio da lei e um
aumento da iniquidade, eu apareço. Para salvar os piedosos e destruir os malfeitores, para estabelecer a lei
eu nasço em cada época". A citação é do cap. 4, versos 7-8 do BhagavadGíta. Krish n a está instruindo Arju n a
a respeito da natureza da verdade.
282 Inscrição na ilustração "IIP O O H TQ N I I AT H P n O AYO IAO Z O IAHMÍ2N" [Pai dos profetas, amável
Filêmon]. Mais tarde Jung pintou outra versão deste quadro como mural num dos quartos de sua torre
em Bollingen. Em particular, acrescentou a seguinte inscrição em latim no lado direito da ilustração:
"[Herm es: Compreendei, filhos da sabedoria, que esta Pedra preciosa clama dizendo:] Protege-me, e eu te
protegerei. Dá-m e o que é meu, a fim de que eu te ajude. Pois Sol é meu e seus raios estão no mais íntimo
de mim; mas Funa me pertence e minha luz supera toda luz e minhas virtudes são superiores a todas as
virtudes. Dou muitas riquezas e prazeres aos homens que os desejam e, quando procuro alguma coisa,
eles a reconhecem. Fevo-os a compreender e faço com que possuam a força divina. Eu gero a luz, mas a
escuridão também pertence à minha natureza. Embora meu metal seja seco, todos os corpos precisam de
O M AGO 365
P r o ssigo e m m e u c a m i n h o . U m a ç o b e m fin o , e n d u r e c i d o e m d e z fo go s,
e s c o n d i d o d e b a i xo d a t ú n i c a , é m e u c o m p a n h e i r o . T r a g o n o p e i t o u m a c o t a d e
m a l h a , d i s fa r ç a d a so b o m a n t o . D e n o i t e c o n q u i s t e i o a m o r d a s c o b r a s , a d i v i -
n h e i s e u e n i g m a . Se n t o - m e a s e u la d o so b r e as p e d r a s q u e n t e s d o c a m i n h o . Sã o
a st u t a s e t e r r í ve i s , m a s s e i c o m o c a t i vá - la s , a q u e le s d ia b o s fr io s q u e p i c a m n o
d e s o m su a ve . M a s m i n h a c a ve r n a e u a e n fe i t o c o m su a s p e le s l u z i d i a s . P r o s -
s e gu in d o e m m e u c a m i n h o , c h e g u e i a u m r o c h e d o a ve r m e l h a d o so b r e o q u a l
e s t a va d e i t a d a u m a c o b r a m u l t i c o l o r i d a . C o m o j á t ive sse a p r e n d i d o d o g r a n d e
F i l ê m o n a m a g ia , t o m e i m i n h a flauta e t o q u e i p a r a e l a u m a c a n ç ã o m á g i c a , q u e
a fe z a c r e d i t a r se r e l a a m i n h a a l m a . Q u a n d o e s t a va s u fi c i e n t e m e n t e e n fe i t i ç a -
d iz e s t u ? M a s e la fa lo u , l i s o n je a d a , e p o r isso c o m p a c iê n c ia : " E u fa ç o c r e s c e r
c a p i m s o b r e t u d o o q u e fa z e s".
E u : "I s t o s o a c o n fo r t a d o r e p a r e c e n ã o s i g n i fi c a r m u i t a c o is a ".
m im , porque eu os umedeço. Removo sua ferrugem e extraio sua substância. Por isso nada há no mundo
de melhor e mais digno de veneração do que minha união com meu Filho". O texto é tirado de um texto
alquímico, o Rosaríum Phílosophorum, e Jung citou algumas destas linhas em Psicologia e Alquimia ( O C, 12, §
99,140,155). O Rosaríum, publicado pela prim eira vez em 1550, foi um dos mais importantes textos da
alquimia europeia e trata dos meios de produzir a pedra filosofal. Con t in h a uma série de xilogravuras
de figuras simbólicas, que Jung usou em 1946 para elucidar a psicologia da transferência: A psicologia da
transferência. Com entários baseados em um a série defiguras alquím icos (1946. O C , 16).
283 Em "Aspectos psicológicos da Core" (1951) Jung descreveu anonimamente este quadro como "11. Ela
[a anima] aparece numa igreja, no lugar em que havia antes um altar, de estatura acima do comum, mas
com a face velada". Ele comentou: "O sonho 11 restaura a anima na igreja cristã, não porém como um
ícone, mas como o próprio altar. Este é o lugar do sacrifício e, ao mesmo tempo, receptáculo das relíquias
consagradas" ( O C, 9/ 1, § 369, 380). No lado esquerdo está a palavra árabe para "filhas". Inscrição na orla
da ilustração: "De i sapientia in mysterio quae abscondita est quam praedestinavit ante secula in gloriam
nostram quam nemo principum huius seculi cognovit. Spiritus enim omnia scrutatur etiam profunda dei".
Esta é uma citação de iCo r (2,7-10) (Jung om itiu "Deus" antes de "ante secula"). As partes citadas são
marcadas aqui em itálico: "Mas nós falamos a sabedoria de Deus em m istério, sabedoria escondida, que Deuspreordenou antes
dos séculos para nossa glória: a qual nenhum dos príncipes deste mundo conheceu; pois, se a tivessem conhecido,
não teriam crucificado o Senhor da glória. Mas, como está escrito: o olho não viu nem o ouvido ouviu,
nem penetraram no coração do homem as coisas que Deus preparou para aqueles que o amam. Mas Deus
revelou-as a nós por seu Espírito: pois o Espírito perscruta todas as coisas, até m esm o as profundezas de Deus". Inscrição
em cada lado do arco: "Spiritus et sponsa dicunt ven i et qui audit dicat veni et qui sitit veniat et qui vult
accipiat acquam vitae grátis". O texto é do Ap 22,17: "O Espírito e a esposa dizem: Vem. E aquele que ouve
diga: Vem . E aquele que tem sede venha. E quem quiser receba de graça a água da vida". Inscrição acima
do arco: "ave virgo virginum"(Salve, virgem das virgens!). Este é o título de um hino medieval.
284 29 de janeiro de 1914.
366 L I B E R S E C U N D U S 155/157
155/156 c o n e xã o c o m t o d o o a lé m / 2 8 s , c o m o m á x i m o e o m a is i n c o m u m . P o r isso p e n -
se i q u e b a n a lid a d e lh e s e r ia c o is a e s t r a n h a ".
d e i r o r e p o u so p a r a m i m . Ac h o q u e se n t e s q u e h o je n ã o p r e c iso a t o r m e n t a r -
- m e ".
E u : "Si n t o - o e e s t o u p r e o c u p a d o q u e t u a á r vo r e ao fi n a l n ã o p r o d u z a m a is
n e n h u m fr u t o p a r a m i m ".
C : " T u t e t o r n a s i n c o n ve n i e n t e . T e m o q u e t e u r e s p e it o e s t e ja d e s a p a r e -
c e n d o ".
E u : "Es t á s c o m m e d o ? C r e i o q u e s e r ia su p é r flu o . Es t o u b a st a n t e i n fo r m a d o
C : "P e r ce b e st e p o r t a n t o a l i n h a s e r p e n t i fo r m e d o t o r n a r - s e a n í m i c o ? Vi s t e
q u e t o d o c o n vu ls ivo é p r e ju d i c i a l ?"
t e m p o . T a l ve z o so l m e ch o q u e ".
M a s a c o b r a a p r o xi m o u - s e d evagar , e n vo l ve u h a b i li d o s a e s i n i s t r a m e n t e
m e u s p é s 2 8 6 . An o i t e c e u e a n o i t e ch e go u . E u fa le i c o m a c o b r a e lh e d isse: " N ã o
se i o q u e d iz e r . C o z i n h a - s e e m t o d a s as p a n e la s".
28?
C : " U m a r e fe iç ã o e st á se n d o p r e p a r a d a ".
E u : " U m ja n t a r ?"
C . U m a c o n fr a t e r n iz a ç ã o c o m t o d a a h u m a n i d a d e ".
285 A partir deste ponto, no volume caligráfico, tornou-se menos coerente a coloração, por parte de Jung,
das iniciais em vermelho e azul. Algumas foram acrescentadas aqui por questão de coerência.
286 Esta linha não está no Livro Negro 4, onde a voz não é identificada como a cobra.
287 31 de janeiro de 1914.
O M AGO 367
Eu : " U m a h o r r i p i l a n t e e d o ce i d e i a d e se r ao m e s m o t e m p o c o m e n s a l e
c o m i d a d esse j a n t a r " 2 8 8 .
C : "I s t o foi t a m b é m o m a i o r p r a z e r d o C r i s t o !"
Eu : " C o m o t u d o flui d e m o d o sa n t o e p e ca d o r , q u e n t e e fr io p a r a d e n t r o
u m d o o u t r o ! Lo u c u r a e r a z ã o q u e r e m ca sa r -se , c o r d e i r o e lo b o p a s t a m ju n t o s
p a c i fi c a m e n t e 2 8 9 . T u d o é s i m e n ã o . O s o p o st o s se a b r a ç a m . O l h a m - s e m u t u -
a m e n t e n o s o lh o s e se a l t e r n a m . Re c o n h e c e m n u m p r a z e r t o r t u r a n t e s e u se r
u n o . M e u c o r a ç ã o e s t á r e p le t o d e l u t a fu r io sa . A s o n d a s d e u m a t o r r e n t e c la r a
e e s c u r a a p r e ssa m - se e m p r e c ip it a ç ã o u m a s c o n t r a as o u t r a s. Se m e lh a n t e c o is a
n u n c a s e n t i a n t e s".
C : "I s t o é n o vo , m e u ca r o , ao m e n o s p a r a t i ".
E u : " T u ca ço a s. M a s lá gr im a s e s o r r is o sã o u m a c o is a s ó 2 9 ° / Am b a s as co isa s 156/157
se p a s s a r a m co m igo e e u e s t o u e m r ígid a t e n sã o . O a m o r o s o ch e ga a t é o c é u e
igu a lm e n t e a lt o ch e ga a q u ilo q u e se o p õ e . O s d o is se m a n t ê m e n la ç a d o s e n ã o
d e s e ja m se p a r a r - se , p o is o e xce sso d e s u a t e n s ã o p a r e ce sign ifica r o ú l t i m o e
m á x i m o d e p o s s ib ilid a d e s e n t i m e n t a l ".
C : " T u t e e xp r e ssa s d e m o d o p a t é t ic o e filo só fico . Sab es q u e t u d o isso t a m -
b é m p o d e se r d it o d e m a n e i r a b e m m a is sim p le s. P o d e r - s e - i a d iz e r , p o r e x e m -
p lo , q u e és a m a d o p e lo s ca r a có is a t é ch e ga r Tr is t ã o e I s o l d a " 2 9 1.
E u : "Si m , e u se i, m a s ap esar d isso - "
C : "Se r á q u e a r e ligiã o a i n d a t e a t o r m e n t a ? D e q u a n t o s e scu d o s a i n d a p r e -
cisas? D i z e - o c o m t o d a fr a n q u e z a ".
E u : " T u n ã o m e a t in ge s".
C : "P o i s e n t ã o , o q u e a co n t e ce c o m a m o r a l? M o r a l e i m o r a l t o r n a r a m - s e
h o je t a m b é m u m a c o is a s ó ?"
E u : " T u ca ço a s, m i n h a i r m ã e d e m ó n i o c t ô n ic o . M a s d e vo d i z e r - t e q u e
aq u eles d o is q u e se m a n t ê m e n la ç a d o s e q u e c h e ga m a t é o c é u sã o t a m b é m o
288 Em Mysterium Coniunctionis (1955/ 1956), Jung observa: "Se o conflito projetado deve ser sanado, precisa
ele retornar à alma do indivíduo, onde ele se originou de modo inconsciente. Q uem quiser dominar esta
ruína, deve celebrar uma ceia consigo mesmo, comendo sua própria carne e bebendo seu próprio sangue,
isto é, deve reconhecer e aceitar o outro dentro de si" ( O C, 14/2, § 176).
289 C f Is I I ,6 : "Então o lobo será hóspede do cordeiro, e o leopardo se deitará com o cabrito; o bezerro, o
leãozinho e o animal cevado estarão juntos, e um menino os conduzirá".
290 Nota marginal: " X I V AU G . 1925". Isto parece referir-se à data em que esta passagem foi transcrita
no volume caligráfico. No outono de 1925, Jung foi para a Africa com Peter Baynes e George Beckwith.
Saíram da Inglaterra em 15 de outubro e chegaram de volta em Zurique no dia 14 de março de 1926.
291 A narrativa, datada do século X I I , do romance adulterino entre o cavaleiro cornualhês, Tristão, e a
princesa irlandesa, Isolda, foi recontada em muitas versões, até a ópera de Wagner, à qual Jung se refere
como um exemplo da forma visionária de criação artística ("Psicologia e poesia", 1930. O C , 15, § 142).
368 L I B E R S E C U N D U S 157/160
b e m e o m a l . N ã o e s t o u b r i n c a n d o , m a s ge m o p o r q u e a le gr ia e d o r s o a m e s t r i -
d e n t e m e n t e e m c o n s o n â n c ia ".
C : M a s o n d e e s t á a t u a in t e ligê n c ia ? Fic a s t e c o m p l e t a m e n t e t o lo . P o d e r ia s
r e s o lve r t u d o e m p e n s a m e n t o ".
E u : " M i n h a in t e ligê n cia ? M e u p e n sa r ? Já n ã o t e n h o in t e ligê n cia . T o r n o u - s e
in s u fic ie n t e p a r a m i m ".
C: " T u r e n e ga s t u d o e m q u e a cr e d it a s. Esq u e ce s c o m p l e t a m e n t e q u e m és.
Re n e ga s a t é m e s m o o Fa u st o , q u e p a sso u p e la m a r c h a s ile n c io s a d o s fa n t a s-
m a s ".
Eu : "E s t a d e s gr a ç a va i a le gr a r - m e ".
N e s t e m o m e n t o , a c o b r a fi c o u r a ivo s a e d e u u m b o t e n a d ir e ç ã o d o m e u
co r a çã o , m a s q u e b r o u su as p r e sa s ve n e n o sa s n a m i n h a a r m a d u r a e s c o n d i d a 2 9 2 .
D e c e p c i o n a d a , r e c o lh e u - s e e d isse s ib ila n d o : " T u t e c o m p o r t a s r e a l m e n t e c o m o
se fosses in a t in gíve l".
Eu : "I s t o v e m d o fat o d e e u t e r a p r e n d i d o a p is a r c o m o p é e sq u e r d o so b r e
o d i r e i t o e vic e - ve r s a , o q u e o u t r a s p esso as fi z e r a m i n c o n s c i e n t e m e n t e d e sd e
s e m p r e ".
En t ã o a c o b r a se e n d i r e i t o u d e n o vo , c o lo c o u a p a r t e d a c a u d a c o m o p o r
58 acaso / d ia n t e d a b o ca , p a r a q u e e u n ã o p u d e sse ve r as p r e sa s ve n e n o sa s q u e b r a -
d as, e d isse o r gu lh o s a e c a l m a m e n t e 2 9 3 : "P o r t a n t o , t u fi n a l m e n t e o p e r ce b e st e ?"
M a s s o r r i n d o e u lh e d isse: "A l i n h a s e r p e n t ifo r m e d a v i d a n ã o p o d i a e sca p a r -
- m e p o r m u i t o t e m p o ".
O p r ó p r i o C r i s t o c o m p a r o u - s e a u m a s e r p e n t e 2 9 4 , e s e u i r m ã o i n fe r n a l , o A n t i -
cr ist o , é o p r ó p r i o ve l h o d r a g ã o 2 9 5 . O e xt r a - h u m a n o q u e se m a n i fe s t a n o a m o r
é d a n a t u r e z a d a c o b r a e d o p á ssa r o , e m u i t a s ve z e s a c o b r a e n fe it iç a o p á s s a r o
e r a r a s ve z e s o p á s s a r o le va a m e l h o r so b r e a co b r a . A p e sso a e st á n e st e i n t e r -
m é d io . O q u e t e p a r e ce p á ssa r o , p a r a o o u t r o é co b r a , e o q u e t e p a r e ce c o b r a
é p á s s a r o p a r a o o u t r o . P o r isso só t e id e n t ific a r á s c o m o o u t r o n o h u m a n o .
Se q u e r e s t o r n a r - t e , h á u m a l u t a e n t r e p á s s a r o s e co b r a s. E s ó q u a n d o q u e r e s
ser, se r á s p e sso a p a r a t i m e s m o e p a r a os o u t r o s. Aq u e l e q u e e st á e m p r o ce sso
d e t o r n a r - s e p e r t e n c e ao d e se r t o o u a u m a p r isã o , p o is e s t á n o e xt r a - h u m a n o .
Q u a n d o as p esso as q u e r e m t o r n a r - s e , c o m p o r t a m - s e c o m o a n im a is . N i n g u é m
n o s sa lva d o m a l d o t o r n a r - s e , a n ã o ser q u e p a sse m o s l i vr e m e n t e p e lo in fe r n o .
M a s p o r q u e agi a s s im c o m o se a q u e la c o b r a fosse m i n h a a lm a ? C e r t a m e n t e
p o r q u e m i n h a a l m a e r a u m a co b r a . Es t e c o n h e c i m e n t o d e u à m i n h a a l m a n o va
a p a r ê n c ia , e e u d e c i d i q u e d o r a va n t e e u a e n fe it iç a r ia e a s u b m e t e r i a ao m e u
p o d e r . A s co b r a s sã o e sp e r t a s, e e u q u e r i a q u e m i n h a c o b r a a n í m i c a d i vi d i s -
se c o m igo s u a e sp e r t e z a . N u n c a a v i d a fo i t ã o p r o b l e m á t i c a c o m o agor a, u m a
n o it e d e t e n s ã o s e m o b je t ivo , u m se r u n o n o se r d i r e c i o n a d o u m c o n t r a o o u -
t r o . N a d a se m o vi m e n t a , n e m D e u s , n e m o d e m ó n i o . D i r i g i - m e e n t ã o à c o b r a
q u e e st a va d e it a d a ao so l, c o m o se e m n a d a p e n sa sse . N ã o se v i a m seu s o lh o s,
29 6
p o is p e st a n e ja va n a b r i l h a n t e l u z d o so l, e / [Ilu s t r a ç ã o 159 ] / {3} [1] e u lh e 158/ 160
29 4 Jung comentou a comparação de Crist o com a serpente em Transformações e símbolos da libido. O C , B, § 585 e
em Aíon (19 51). O C , 9/ 2, § 29 1) .
29 5 C f Transform ações e sím bolos da libido. O C , B, § 585.
29 6 Legenda da ilustração: "D. I X januarii obiit Hermannus Sigg aet.s. 52 amicus meus" [9 de janeiro de
1927, morreu meu amigo Herm an n Sigg, aos 52 anos de idade]. Jung descreveu esta ilustração como "uma
flor luminosa no centro, com estrelas girando ao seu redor. Em volta da flor, paredes com oito portões.
O todo concebido como uma janela transparente". Esse mandala se baseia num sonho registrado em 2
de janeiro de 1927 (cf. acima, p. 76 ) . Ele também desenhou o "mapa da cidade", onde fica clara a relação
entre o sonho e a pintura (cf. Apêndice A) . Ele reproduziu anonimamente isto em 1930, no "Com entário
a 'O segredo da flor de ouro'", do qual é tomada esta descrição. Reproduziu-a novamente em 1952, e
acrescentou o seguinte comentário: "A rosa no centro é representada como um rubi, cuja circunferência
foi concebida como uma roda ou um muro circundante com pórticos (a fim de que o que está dentro
não saia e o nada de fora possa entrar). O mandala é um produto espontâneo da análise de um paciente".
Depois de contar o sonho, Jung acrescentou: "O sonhador diz: 'Tentei pintar este sonho, mas, como de
costume, saiu algo bem diferente. A magnólia tornou-se um tipo de rosa de vidro e sua cor era de um rubi
claro. Ela brilha como uma estrela de quatro raios. O quadrado representa o muro que cerca o parque e
ao mesmo tempo uma rua que circunda o parque quadrado. Neste começam quatro ruas principais e de
cada uma saem oito ruas secundárias, as quais se encontram num ponto central de brilho avermelhado, à
semelhança da Etoile de Paris. O conhecido mencionado no sonho mora em uma casa de esquina, numa
dessas Etoiles'. O mandala reúne, pois, os temas clássicos: flor, estrela, círculo, praça cercada (temenos),
planta de bairro de uma cidade com uma cidadela. 'O todo me parece uma janela que se abre para a
eternidade', escreve o sonhador" ("O simbolismo do mandala". O C , 9/ 1, § 655). Em 1955/ 1956, usou esta
mesma expressão para designar a ilustração do si-mesmo (Mysterium coniunctionis. O C , 14, § 4 18 ) . No dia 7 de
37o LI BE R SECU N D U S 160/ 161
fa l e i 2 9 7 : "C o m o s e r á agor a, já q u e D e u s c o d e m ó n i o se t o r n a r a m u m só ? El e s
c o n c o r d a r a m e m p a r a lis a r a vid a ? A l u t a d o s o p o st o s p e r t e n c e às c o n d i ç õ e s
in d is p e n s á ve is d a vid a ? E fica p a r a d o q u e m c o n h e ce e vi ve o ser u n o d o s o p o s -
t os? E l e t o m o u t o t a lm e n t e o p a r t i d o d a ve r d a d e i r a v i d a e n ã o age m a is c o m o se
p e r t e n ce sse a u m p a r t i d o e d e ve sse c o m b a t e r os o u t r o s, m a s ele é a m b o s e p ô s
u m f i m à s u a c o n t e n d a . E p e lo fat o d e h a ve r t ir a d o est e p e so d a vi d a , t i r o u - l h e
t a m b é m o i m p u l s o ? "2 9 8
outubro de 1932, Jung mostrou este mandala num seminário e o comentou no dia seguinte. Neste relato,
afirma que o desenho do mandala precedeu o sonho: "Vocês se lembram provavelmente do quadro que lhes
mostrei ontem à noite, a pedra central e as pequenas jóias ao seu redor. Talvez seja interessante que lhes
fale sobre o sonho em conexão com o quadro. Eu fui o perpetrador desse mandala num tempo em que
não tinha a mínima ideia do que era um mandala, e em minha extrema modéstia pensei que eu era a joia
no centro e que aquelas pequenas luzes eram certamente pessoas muito simpáticas que acreditavam que
elas também eram jóias, só que menores... Eu tinha um bom conceito de m im , pensando que era capaz
de expressar a m im mesmo assim: meu centro maravilhoso aqui e eu estando bem em meu coração". Ele
acrescentou que não reconhecia de imediato que o parque era a mesma coisa que o mandala que havia
desenhado e comentou: "Agora Liverpool é o centro da vida - liver (fígado) é o centro da vida - e eu não
sou o centro, eu sou o louco que vive em algum lugar escuro, sou uma daquelas pequenas luzes laterais.
Desta forma, meu preconceito ocidental de eu ser o centro do mandala foi corrigido - de que sou tudo,
sou o espetáculo todo, o rei, o deus" (The Psychology of Kundalíní Yoga, p. 10 0 ) . Em Memórias, Jung acrescenta
outros detalhes (p. 235-236).
29 7 I o de fevereiro de 1914.
29 8 No Livro Negro 4, também consta: "Eu te faço hoje esta pergunta, minha alma" (p. 9 1). Aqu i a cobra é
substituída pela alma.
O M AGO 37i
2
C: " " T u p o d e r ia s t e r r e cu sa d o a m a ç a ' .
E u : " D e i x a d e b r i n c a d e i r a . T u co n h e ce s a q u e la h is t ó r ia m e l h o r d o q u e e u .
P a r a m i m e la é sé r ia . E p r e ciso q u e h a ja ar. P õ e - t e a c a m i n h o e p e ga o fogo. Já
faz t e m p o d e m a is q u e e st á e scu r o ao m e u r e d o r . És p r e g u i ç o s a o u c o va r d e ?"
C : "E s t o u i n d o à o b r a . Va i p e ga n d o o q u e e u t r o u xe lá d e b a i x o " 3 0 0 .
[ I H 160] D e va ga r le va n t a - s e n o r e c i n t o va z i o o t r o n o d e D e u s , e m se gu id a
v e m a Sa n t í s s i m a T r i n d a d e , o c é u in t e ir o , d e p o is t o d o o i n fe r n o e, ao fin a l, o
p r ó p r i o sa t a n á s. E l e r e sist e e se a fe r r a ao s e u a lé m . N ã o q u e r / a b a n d o n á - l o . O 160/ 161
m u n d o s u p e r io r é p a r a ele m u i t o fr esco.
C : "Co n s e g u e s s e g u r á - lo b e m ? " 3 0 1
E u : "Be m - v i n d o , h a b it a n t e q u e n t e d as t r e va s! M i n h a a l m a t e t r o u xe c o m
vi o lê n c i a p a r a c i m a ?"
302
S: "0 q u e s ign ific a est e b a r u lh o ? P r o t e s t o c o n t r a est e a r r a n c a r vi o l e n t o ".
Eu : "F i c a ca lm o . E u n ã o t e e sp e r a va . Vi e s t e p o r ú lt im o . Pa r e ce s se r a p a r t e
m a is p e sa d a ".
E u : "D e s c u l p e , m a s is t o n ã o fo i t ã o e s t ú p id o . A u n i ã o é u m p r i n c í p i o i m p o r -
t a n t e . N ó s c o lo c a m o s u m f i m n e s t a d i s p u t a i n t e r m i n á ve l, a f i m d e fi n a l m e n t e
t e r m o s as m ã o s livr e s p a r a a ve r d a d e i r a vi d a ".
E u : " T u t e e n ga n a s. Co n o s c o as co isa s n ã o a c o n t e c e m t ã o r a c i o n a lm e n t e .
T a m b é m n ã o t e m o s n e n h u m a ve r d a d e d e fi n i t i v a 3 0 5 . T r a t a - s e a n t e s d e u m fat o
n o t á ve l e e s t r a n h o : d e p o is d a u n i ã o d o s o p o st o s a c o n t e c e u - o q u e é i n e s p e r a -
d o e i n c o m p r e e n s í ve l , q u e n a d a m a is a co n t e ce u . T u d o fi c o u e m p a z u m c o m o
o u t r o , m a s t o t a lm e n t e i m ó ve l, e a v i d a t r a n s fo r m o u - s e n u m a p a r a lis a ç ã o ".
E u : "P e r ce b e s, p o r t a n t o , q u e se t r a t a d e c o is a sé r ia . Q u e r o u m a r e sp o st a à
m i n h a p e r g u n t a so b r e o q u e d e ve a co n t e ce r a go r a n e s t a sit u a çã o . N ã o sa b e m o s
m a is n a d a d a q u i p a r a fr e n t e ".
S: "Aq u i u m b o m c o n s e lh o fica ca r o , m e s m o q u a n d o se go st a r ia d e d á - lo .
V ó s so is lo u co s d e s lu m b r a d o s , u m a ge n t e d e sca r a d a . P o r q u e fost es m e t e r as
m ã o s n isso ? C o m o q u e r e is e n t e n d e r a o r d e m d o m u n d o ? "
E u : "Ag r a d e ç o - t e o c o n s e lh o b e m - i n t e n c i o n a d o . M a s p a r e ce s in t e r e s s a d o .
N ó s p o d e r í a m o s e s p e r a r d e t u a p r o ve r b i a l i n t e l i g ê n c i a u m ju l g a m e n t o i m -
p a r c i a l ".
E u : "C o m o ? T u e st á s d o m e u la d o ? I s t o é e s t r a n h o ".
S: " N ã o h á n a d a d e e s t r a n h o n isso . O a b so lu t o s e m p r e fo i d e s fa vo r á ve l ao
ser vivo . E u , n o e n t a n t o , s o u o ve r d a d e i r o m e s t r e d a vi d a ".
305 Em vez dessa frase, o Livro Negro 4, tem: "Conosco não transcorre tudo tão intelectualmente e eticamente
em geral como no monismo" (p. 9 6 ) . A referência é ao sistema monista de Ern st Haeckel, que Jung
criticava.
30 6 Cf. JU N G . "Tentativa de uma interpretação psicológica do dogma da Trindade" ( 19 4 0 ) . O C , I I .
O M AGO
373
E u : "I s t o é su sp e it o . T u r e a ge s d e m o d o m u i t o p e sso a l".
a p r e ssa d a . N u n c a e s t o u sa t isfe it o , n u n c a se r e n o . E u d e r r u b o t u d o e r e c o n s t r u o
r a p i d a m e n t e . So u e g o í s m o , a vid e z d e fa m a , p r a z e r d e r e a li z a ç õ e s , s o u a fo n t e d e
n o va s id e ia s e a ç õ e s . O a b s o lu t o é e n fa d o n h o e ve ge t a t ivo ".
E u : " E u q u e r o a c r e d i t a r e m t i . P o r t a n t o , o q u e a c o n s e lh a s ?"
S: " O m e l h o r q u e t e p o sso a c o n s e lh a r é: fa z e c o m q u e t o d a t u a i n o va ç ã o
p r e j u d i c i a l vo l t e à p o s i ç ã o a n t e r i o r o q u a n t o a n t e s p o s s í ve l ".
E u : " O q u e se g a n h a r á c o m isso ? T e r í a m o s d e r e c o m e ç a r d e sd e o i n í c i o e
c h e g a r í a m o s i m p r e t e r i v e l m e n t e u m a s e gu n d a ve z à m e s m a c o n c lu s ã o . O que
se a p r e n d e u u m a ve z n ã o p o d e se r i n t e n c i o n a l m e n t e n ã o s a b id o e fa z ê - l o n ã o
a c o n t e c id o . T e u c o n s e l h o n ã o é c o n s e l h o n e n h u m ".
S: "M a s n ã o p o d e is e xis t ir s e m b ip a r t iç ã o e s e m co n t e n d a . D e ve i s in q u ie t a r - vo s
p o r a l g u m a c o is a , t o m a r u m p a r t i d o , ve n c e r o p o s i ç õ e s , se q u is e r d e s v i v e r ".
E u : "I s t o n ã o a ju d a e m n a d a . N ó s n o s ve m o s t a m b é m n a o p o s i ç ã o . Es t a m o s
fa r t o s d e s t e jo go ".
E u : "P a r e c e - m e q u e se t r a t a d a q u i l o q u e c h a m a s d e vi d a . T e u c o n c e i t o d e
v i d a t e m a lgo d e e s c a la d a e a lgo d e d e r r o c a d a , d e a fi r m a ç ã o e d ú vi d a , d e u m
d e a m b u l a r in c e s s a n t e , / [ I l u s t r a ç ã o 16 3] 30 7 / d e d e s e jo i r r e fl e t i d o . Fa l t a - t e o 162/ 164
a b s o lu t o e s u a p a c i ê n c i a l o n g â n i m e ".
30 7 Legenda da ilustração: "1928. Ao pintar este quadro, que mostra o castelo de ouro bem armado,
mandou-me Rich ard W ilh elm de Frankfurt o texto chinês, com m il anos de idade, sobre o castelo
amarelo, o germe do corpo imortal, Ecclesia catholica et protestantes et seclusi in secreto. Aeon finitus"
[A Igreja Católica e os protestantes envoltos em segredo. O fim de um éon]. Jung descreve a ilustração
como "uma flor luminosa no centro, com estrelas girando a seu redor. Em volta da flor, paredes com oito
pórticos. O todo concebido como uma janela transparente". Jung reproduziu isso anonimamente em 1930
no "Com entário ao 'Segredo da flor de ouro'", do qual é tirada esta descrição. Reproduziu-o novamente
em 1952, em "O simbolismo do mandala" e acrescentou o seguinte comentário: "Representação de uma
cidade medieval, com fossos de água, ornamentos e igrejas numa disposição de quatro raios. A cidade
interna também é cercada de muros e fossos, semelhante à cidade imperial em Pequim. Toda a construção
abre-se aqui em direção ao centro, representado por um castelo com teto de ouro. Este também é
cercado por um fosso de água. O chão em torno do castelo é coberto de ladrilhos pretos e brancos. Eles
representam os opostos que assim se reúnem. Este mandala foi feito por um homem de idade madura...
Tal imagem não é estranha à simbologia cristã. A Jerusalém celeste do Apocalipse de São João é conhecida
de todos. No mundo das ideias indianas encontramos a cidade de Brahma no Monte Meru, montanha do
mundo. Podemos ler na Flor de ouro: 'O livro do Castelo Am arelo diz: No campo de uma polegada quadrada
da casa de um pé quadrado podemos ordenar a vida. A casa de um pé quadrado é a face. Na face, o campo
da polegada quadrada, o que poderia ser senão o coração celeste? No meio da polegada quadrada mora a
glória. Na sala púrpura da cidade de jade mora o deus do vazio supremo e da vida'. O s taoístas chamam
este centro de 'terra dos antepassados ou Castelo Am arelo'" ( O C, 9/ 1, § 6 9 1) . Sobre este mandala, cf.
P EC K, J. TheVisio Dorothei: Desert Con text, Im perial Setting, Later Alignments. Zurique: C G . Jung
Institute, Zurique 1992, p. 183-185. [Tese de diplomação].
LI BE R SECU N D U S 164/ 166
374
S: "Co r r e t o , m i n h a vi d a b o r b u l h a , e s p u m e ja e le va n t a o n d a s agit ad as, é p u -
xa r p a r a si e jo ga r fo r a , d e se jo ve e m e n t e e d esassossego. I s t o p o r acaso é vi d a ?"
E u : "M a s o a b so lu t o t a m b é m vi ve ".
S: "I s t o n ã o é vi d a . E p a r a lis a ç ã o o u , m e l h o r d it o , e q u iva le n t e à p a r a lisa çã o :
vi ve i n fi n i t a m e n t e d e va ga r e d e s p e r d i ç a m i l é n i o s , e xa t a m e n t e c o m o o e st a d o
m is e r á ve l q u e vó s cr ia st e s".
E u : " T u m e a ce n d e s u m a lu z . T u és v i d a p e sso a l, m a s a p a r a lis a ç ã o a p a r e n t e é
á v i d a l o n g â n i m e d a e t e r n id a d e , á v i d a d a d ivin d a d e . D e s t a ve z m e a co n se lh a st e
b e m . E u t e d e ixo livr e . Bo a vi a g e m !"
[ I H 164] Sa t a n á s d e s l i z o u r a p i d a m e n t e c o m o u m a t o u p e i r a p a r a d e n t r o d e
se u b u r a co . O s s í m b o l o s d a T r i n d a d e e s e u s é q u it o e r gu e m - s e c a l m a e s e r e n a -
m e n t e ao cé u . E u t e a gr a d e ç o , c o b r a , t u t r o u xe s t e à t o n a p a r a m i m o ju st o . Su a
lin gu a ge m é c o m p r e e n d i d a u n i ve r s a l m e n t e , p o is e la é p e sso a l. P o d e m o s n o va -
m e n t e vive r , u m a lo n ga vid a . P o d e m o s d e s p e r d i ç a r m i lé n i o s .
d o s, s in is t r o s , i n i c i a n t e s e t e r r e n o s . N ã o e n t e n d e m o s vo ssa n a t u r e z a , gn o m o s,
a lm a s o b je t iva s. T e n d e s vo sso c o m e ç o n o m a is in fe r io r . Q u e r e i s ser gigan t es,
p e q u e n o s p o le ga r e s? Fa z e is p a r t e d o s é q u it o d o filh o d a t e r r a ? So is os p é s t e r -
r e n o s d a d ivin d a d e ?
O q u e q u e r e is? F a l a i ! 3 10
310 O s cabiros eram divindades celebradas nos mistérios da Samotrácia. Eram considerados os promotores
da fertilidade e os protetores dos marinheiros. Creuzer (SymbolikundMythologiederaltenVòlker, 1810-1823) e
Schelling (uberdieGottheitenvonSamothrake, 1815) acham que eles são as primeiras divindades da mitologia
grega, das quais todas as demais se derivam. Jung tinha exemplares de ambos os livros. Eles aparecem no
Fausto, de Goethe, parte 2, At . 2. Jung discutiu os cabiros em Transformações e Símbolos da libido (1912. O C , B,
§ 20 9 -211) . Em 19 40 , Jung escreveu: "O s cabiros são verdadeiramente as forças secretas da imaginação
criadora, os duendes que trabalham subterraneamente na região subliminar de nossa psique, para
prover-nos de 'ideias súbitas', e que, à maneira dos coboldes, pregam todos os tipos de peças, roubando
de nossa memória e inutilizando datas e nomes que 'tínhamos na ponta da língua'. Eles se encarregam
de tudo quanto a consciência e as funções de que ela dispõe não dispensaram... Um a consideração mais
atenta permitirá que descubramos precisamente nos motivos primitivos e arcaicos da função inferior
determinadas significações e relações simbólicas significativas, sem que zombemos dos cabiros como
se fossem ridículos Pequenos Polegares sem importância; pelo contrário, devemos suspeitar que eles
encerram um tesouro de sabedoria escondida ("Tentativa de uma interpretação psicológica do Dogma da
Trindade", 19 40 . O C , 11, § 24 4 ) . Jung comentou a cena dos cabiros em Fausto, em Psicologia e alquimia ( 19 44)
LI BER SECU N D U S 166/ 168
376
O s ca b ir o s: " N ó s vi e m o s s a u d á - l o c o m o o s e n h o r d a n a t u r e z a i n fe r i o r ".
E u : "Es t a i s fa la n d o co m igo ? So u vo sso s e n h o r ?"
O s ca b ir o s: " T u n ã o o e r a s, m a s o és ago r a".
E u : "Vó s o d iz e is . Es t á p r e ssu p o st o . M a s o q u e sign ific a vo ssa c o m i t i va ?"
O s ca b ir o s: " N ó s n ã o le va m o s is t o p a r a p o r t a d o r e s d e b a i xo p a r a c i m a . N ó s
so m o s os su co s q u e s o b e m d e m a n e i r a se cr e t a , n ã o p o r fo r ça , m a s su ga d o s e q u e
p o r i n d o l ê n c i a n o s g r u d a n a q u ilo q u e cr e sce . N ó s c o n h e c e m o s os c a m i n h o s
d e sco n h e cid o s e as le is i n s o n d á ve i s d a m a t é r i a viva . N ó s t r a z e m o s n e l a p a r a
c i m a a q u ilo q u e d o r m i t a n o t e r r o so , q u e e s t á m o r t o e m e s m o a s s im p e n e t r a n o
q u e e s t á vivo . N ó s fa z e m o s d e va ga r e fa c ilm e n t e o q u e t u t e e sfo r ça s e m vã o p o r
fa z e r à t u a m a n e i r a h u m a n a . N ó s r e a liz a m o s a q u ilo q u e p a r a t i é im p o s s íve l".
E u : " O q u e d e vo d e i xa r p a r a vó s ? Q u e e s fo r ç o p o sso p o u p a r - vo s ? O q u e n ã o
3 11
[ I H 166] "P a r e c e - m e q u e vo s d e i u m lo n go p r a z o . N ã o d e sci a t é vó s , n ã o
O s ca b ir o s: " N ó s ca r r e ga m o s p a r a c i m a , n ó s c o n s t r u í m o s . Co l o c a m o s p e d r a
so b r e p e d r a . A s s i m e st á s se gu r o ".
E u : " E u s in t o c h ã o fi r m e . E u m e e st ico p a r a c i m a ".
166/ 167 O s ca b ir o s: " N ó s t e fo r ja m o s u m a e sp a d a / r e lu z e n t e , c o m a q u a l p o d e s
c o r t a r o n ó q u e e s t á t e p r e n d e n d o ".
E u : " E u se gu r o c o m fi r m e z a a e sp a d a e m m i n h a m ã o . Le va n t o o b r a ç o p a r a
o go lp e ".
O s ca b ir o s: " N ó s t a m b é m c o lo c a m o s d ia n t e d e t i o n ó e n t r e la ç a d o c o m o
a r t e d ia b ó lic a , p e lo q u a l e st á s fe ch a d o e la cr a d o . D á u m go lp e , só u m a l â m i n a
p o d e p a r t i - l o ".
( O C, 12, § 203S.). O diálogo com os cabiros, que tem lugar aqui, não se encontra no Livro Negro 4, mas está
no esboço manuscrito. Pode ter sido escrito separadamente; e, neste caso, teria sido escrito antes do verão
de 1915.
311 Nota marginal no volume caligráfico: "Depois disso, deixei o assunto em banho-maria por três semanas".
O M AGO
377
E u : "D e i x a i - m e ve r o n ó , o m u l t i p l a m e n t e e n t r e la ç a d o ! É r e a lm e n t e u m a
o b r a - p r i m a d e n a t u r e z a i m p e n e t r á ve l , u m r a i z a m e e n ge n h o so e n a t u r a l m e n t e
e m a r a n h a d o e m s e u c r e s c im e n t o ! Só a m ã e n a t u r e z a , a t e ce lã cega, p o d e p r o -
d u z i r t a l e m a r a n h a d o . U m gr a n d e n o ve lo e m i l h a r e s d e p e q u e n o s n ó s , t u d o
a r t i s t i c a m e n t e e n o ve la d o , e n r o la d o , e n r a iz a d o , r e a lm e n t e u m c é r e b r o h u m a n o !
Es t o u ve n d o c la r a m e n t e ? O q u e fizest es? Es t a i s c o lo c a n d o d ia n t e d e m i m o
m e u c é r e b r o ! D e s t e s - m e u m a e sp a d a n a m ã o p a r a q u e su a l â m i n a b r i l h a n t e
d i vi d a m e u p r ó p r i o c é r e b r o ? O q u e est ais p e n s a n d o ?" 3 12
O s ca b ir o s: " O se io d a n a t u r e z a t e c e u o c é r e b r o , o se io d a t e r r a d e u o fe r r o .
E a s s im a m ã e n a t u r e z a t e d e u as d u a s coisas: e n t r e l a ç a m e n t o e s e p a r a ç ã o ".
E u : "M i s t e r i o s o ! V ó s q u e r e is fa z e r - m e ca r r a sco d e m e u c é r e b r o ?"
O s ca b ir o s: "I s t o t e é p r ó p r i o c o m o o s e n h o r d a n a t u r e z a in fe r io r . O ser
h u m a n o e s t á e n t r e la ç a d o e m se u c é r e b r o e a ele t a m b é m fo i d a d a a e sp a d a p a r a
c o r t a r o e m a r a n h a d o ".
E u : " O q u e é o e m a r a n h a d o d e q u e fa la is? O q u e é a e sp a d a q u e d e ve se -
p a r a r ?"
O s ca b ir o s: " O e m a r a n h a d o é t u a lo u c u r a , a e sp a d a é a s u p e r a ç ã o d a
l o u c u r a " 3 13 .
E u : "Fr u t o s d o d e m ó n i o , q u e m vo s d i z q u e e s t o u lo u co ? Fa n t a s m a s d a t e r r a ,
r a íz e s d e b a r r o e l a m a , n ã o so is vó s os fila m e n t o s d e m e u c é r e b r o ? Tr e p a d e ir a s
d e t e n t á c u lo s d e p o lvo , ca n a is d e su co s d e s o r d e n a d a m e n t e m is t u r a d o s , p a r a -
s it a e m c i m a d e p a r a sit a , su gad o s p a r a c i m a e e n ga n a d o s p a r a c i m a , t r e p a d o s
u n s so b r e os o u t r o s s e c r e t a m e n t e d e n o it e , p a r a vó s se r ve a l â m i n a r e lu z e n t e
d e m i n h a esp ad a. V ó s q u e r e is c o n ve n c e r - m e a vo s a b a t e r ? Pe n sa is e m a u t o -
d e s t r u iç ã o ? C o m o p o d e ser q u e a n a t u r e z a ger e p a r a s i c r ia t u r a s q u e q u e r e m
d e s t r u i r a s i m e s m a s ?"
O s ca b ir o s: " N ã o va cile s. N ó s p r e c is a m o s d a d e s t r u iç ã o , p o is n ó s m e s m o s
so m o s o e m a r a n h a d o . Q u e m q u is e r c o n q u is t a r a n o va t e r r a , / d e s t r ó i as p o n t e s 167/ 168
a t r á s d e s i. N ã o n o s d e ixe s s o b r e vive r p o r m a is t e m p o . So m o s m i lh a r e s d e c a -
n a is n o s q u a is t u d o c o r r e o u t r a ve z d e vo l t a p a r a seu s c o m e ç o s ".
312 Em "O símbolo da transformação na missa" (19 41), Jung observou que o motivo da espada desempenhou
papel importante na alquimia e discutiu seu significado como instrumento de sacrifício, suas funções
divisivas e separativas. Observou que "A espada alquimista opera a solutío ou separatío elementorum, pela qual
o estado inicial caótico é novamente estabelecido, de forma que, por meio de uma nova ímpresstoformae ou
imagínatio, é produzido um corpo novo, mais perfeito" ( O C , 11/3, § 357s.).
313 Aqu i a ideia de superar a loucura se aproxima da distinção de Schelling entre a pessoa que é vencida pela
loucura e a pessoa que tudo faz para governar a loucura (cf. nota 8 9 , p. 238 ) .
LI BE R SECU N D U S 168/ 173
378
E u : "D e v o c o r t a r m i n h a s p r ó p r ia s r a íz e s? M a t a r m e u p r ó p r i o p o vo c u jo r e i
s o u eu ? D e v o fa z e r se ca r m i n h a p r ó p r i a á r vo r e ? Vó s so is r e a l m e n t e filh o s d o
d ia b o ".
O s ca b ir o s: " D á o go lp e, n ó s so m o s se r vo s q u e q u e r e m m o r r e r p e lo se u
s e n h o r ".
E u : " O q u e va i a c o n t e c e r se e u d e r o go lp e ?"
O s c a b ir o s : "En t ã o n ã o és m a i s t e u c é r e b r o , m a s e st á s a l é m d e t u a l o u c u r a .
N ã o vê s q u e t u a l o u c u r a é t e u c é r e b r o , o t e r r í ve l e m a r a n h a d o e e n l a ç a m e n t o
n a s ju n ç õ e s d as r a íz e s , n a s r e d e s d e c a n a is , a e m b r u l h a d a d e fio s. A c o n c e n -
t r a ç ã o n o c é r e b r o t e t o r n a lo u c o . D á o go lp e ! Q u e m e n c o n t r o u o c a m i n h o
so b e p a r a a lé m d e s e u c é r e b r o . N o c é r e b r o és a n ã o ; p a r a a l é m d o c é r e b r o ,
ga n h a s e s t a t u r a d e giga n t e . So m o s r e a l m e n t e filh o s d o d ia b o , m a s n ã o fo st e
t u q u e n o s fo r ja st e n o c a lo r e n a e s c u r i d ã o ? A s s i m t e m o s algo d e s u a e d e
t u a n a t u r e z a . O d ia b o d i z q u e t u d o o q u e su b sist e t a m b é m m e r e c e p e r e ce r .
C o m o filh o s d o d ia b o q u e r e m o s d e s t r u i ç ã o , m a s c o m o t u a s c r i a t u r a s q u e -
r e m o s n o s s a p r ó p r i a d e s t r u i ç ã o . P e la m o r t e q u e r e m o s r e s s u r g ir e m t i . N ó s
s o m o s r a íz e s q u e s u g a m d e t o d a s as p a r t e s , e n t ã o t e n s t u d o d e q u e p r e c is a s ,
p o r isso c o r t a - n o s , a r r a n c a - n o s ".
O s ca b ir o s: " O s e n h o r se r ve a s i m e s m o ".
M i n h a e sp a d a vo s fi r a e q u e est e go lp e p r o d u z a e fe it o p a r a s e m p r e ".
O s ca b ir o s: " A i , a i! Ac o n t e c e u o q u e t e m í a m o s , o q u e d e s e já va m o s ".
d o q u e fo i le va d o p a r a c i m a d e ve flu ir d e vo lt a . N i n g u é m d e ve d e s t r u i r o q u e
c o n s t r u í. M i n h a t o r r e é d e fe r r o e s e m b r e c h a . O d ia b o e st á e n ga st a d o n o fu n -
d a m e n t o . O s ca b ir o s o c o n s t r u í r a m e so b r e o p in á c u lo d a t o r r e fo r a m s a c r ifi-
cad o s p e la e sp a d a os m e st r e s d e o b r a . As s i m c o m o u m a t o r r e s o b r e p u ja o c u m e
d a m o n t a n h a so b r e a q u a l e st á , a s s im e s t o u a c i m a d e m e u c é r e b r o d o q u a l e u
d e vo lt a . So u o s e n h o r d e m i m m e s m o . A d m i r o m i n h a gló r ia . So u fo r t e , b e lo
e r ico . A s va st a s t e r r a s e o c é u a z u l se e s t e n d e r a m ao m e u r e d o r e se c u r va m à
O M AGO
379
m i n h a gló r ia . N ã o s ir vo a n i n g u é m e n i n g u é m m e se r ve . E u s ir vo a m i m m e s m o
e m e s ir vo a m i m . P o r isso t e n h o a q u ilo d e q u e p r e c i s o 3 14 .
M i n h a t o r r e c r e s c e u i m p e r d í ve l p e lo s m ilé n io s . M a s e la p o d e t o r n a r - s e u n i -
ve r s a l e s e r á u n ive r s a l. Po u co s e n t e n d e m m i n h a t o r r e , p o is e la e st á n u m a lt o
1
m o n t e . M a s m u i t o s a ve r ã o / e n ã o a e n t e n d e r ã o . P o r isso m i n h a t o r r e p e r - W
m a n e c e r á s e m u so. N i n g u é m s u b ir á e m su as p a r e d e s lisa s. N i n g u é m t e n t a r á
vo a r d e se u t e lh a d o p o n t ia gu d o . Só q u e m e n c o n t r a a e n t r a d a e s c o n d id a p a r a a
m o n t a n h a e sob e a t r a vé s d o s c a m i n h o s e r r a d o s d a s e n t r a n h a s co n se gu e e n t r a r
n a t o r r e e a lc a n ç a r a gló r ia d o e sp e ct a d o r e d a q u e le q u e vi ve p o r s i m e s m o .
Is t o fo i co n se gu id o e r e a liz a d o . N ã o se t o r n o u p o r r e m e n d o s d o p e n s a m e n t o
h u m a n o , m a s fo i fo r ja d o a p a r t i r d o ca lo r a b r a sa d o r d as e n t r a n h a s , os p r ó p r i o s
ca b ir o s l e va r a m a m a t é r i a p a r a a m o n t a n h a e c o n s a gr a r a m a c o n s t r u ç ã o c o m
se u san gu e, c o m o o s ú n ic o s q u e c o n h e c i a m o m is t é r io d e se u s u r gim e n t o . E u a
c r i e i a p a r t i r d o a lé m i n fe r i o r e s u p e r io r e n ã o a p a r t i r d a su p e r fície d o m u n d o .
P o r isso é n o va e e s t r a n h a e u lt r a p a ssa a p la n íc ie h a b it a d a p e lo ser h u m a n o . Es t a
é a fo r t a le z a e o c o m e ç o 3 15 .
[ I H 172] E u m e r e c o n c i l i e i c o m a c o b r a d o a lé m . Ac e i t e i e m m i m t o d o o a lé m . A
p a r t i r d isso c o n s t r u í m e u c o m e ç o . Q u a n d o e st a o b r a h a vi a t e r m i n a d o , a le gr e i-
m e e a c o m e t e u - m e u m a c u r io s id a d e d e sa b e r o q u e a i n d a p o d e r i a h a ve r n o m e u
a lé m . P o r isso, d i r i g i - m e à m i n h a c o b r a e lh e p e r g u n t e i / a m iga ve lm e n t e se e la 172/ 1
n ã o q u e r i a r a st e ja r p a r a c i m a e t r a z e r - m e n o t íc ia s d o q u e a c o n t e c ia n o a lé m .
M a s a c o b r a e st a va e sgo t a d a e d isse q u e n ã o t i n h a vo n t a d e n e n h u m a p a r a t a n t o .
314 Nota marginal no volume caligráfico: "accipe quod tecum est. in collect. Mangeti in ultimis paginis"
[recebe o que está contigo. Nas últimas páginas da colet. Mangeti]. Isto parece referir-se a Bíblíotheca
chem íca curiosa, seu rerum adalchem iam pertinentíum thesaurus instructissim us, de JJ. Manget ( 170 2) , uma coletânea de
textos alquimistas. Jung possuía um exemplar dessa obra, que tinha algumas tiras de papel dentro e alguns
sublinhados. A observação de Jung refere-se provavelmente à última xilogravura do Mutus Liber, que conclui
o volume um de Bibliotheca chemica curiosa, uma representação do término do opus alquímico, com um homem
sendo levado ao alto pelos anjos, enquanto outro jaz prostrado no chão.
315 Em Tipos psicológicos Jung comentou o simbolismo da torre em sua abordagem da visão da torre no Pastor de
Hermas ( O C, 6, § 439 s.). Em 19 20 , Jung começou a planejar sua torre em Bollingen.
316 2 de fevereiro de 1914.
L I B E R S E C U N D U S 173/ 176
38o
n o . A q u i h á u m e n fo r ca d o ". U m h o m e m fe io e m su a a p a r ê n c ia e c o m o r o st o
d e fo r m a d o e st á d ia n t e d e m i m . T e m o r e lh a s d e a b a n o e u m a c o r c u n d a . E l e d iz :
"So u u m e n ve n e n a d o r q u e fo i c o n d e n a d o a m o r r e r n a fo r ca ".
E u : " O q u e fiz e st e , p o is ?"
El e : " E u e n ve n e n e i m e u s p a is e m i n h a m u l h e r ".
E u : "P o r q u e fiz e st e is t o ?"
El e : " E m l o u vo r a D e u s ".
E u : "C o m o ? E m l o u vo r a D e u s ? O q u e q u e r e s d i z e r c o m ist o ?
El e : "P r i m e i r a m e n t e t u d o a co n t e ce , d a q u ilo q u e a co n t e ce , p a r a a gló r ia d e
D e u s , e, e m se gu n d o lu gar , e u t ive m i n h a s p r ó p r ia s id e ia s".
E u : " O q u e a p r o n t a st e e n t ã o ?"
El e : " E u a a m a va e q u e r i a t ir á - la d e u m a v i d a m is e r á ve l e le vá - la r a p i d a m e n -
t e p a r a a b e m - a ve n t u r a n ç a e t e r n a . E u lh e d e i u m s o n ífe r o fo r t e , fo r t e d e m a is ".
E u : " N ã o visa st e n isso t a m b é m t e u p r ó p r i o b e n e fí c i o ?"
El e : " E u fiq u e i s o z i n h o e foi m u i t o in fe liz . Q u e r i a c o n t i n u a r vi ve n d o p o r
a m o r a m e u s d o is filh o s, p a r a os q u a is e u p r e vi a u m foturo m e lh o r . C o r p o r a l -
173/ 174 m e n t e , e u e r a m a is sa u d á ve l q u e m i n h a m u lh e r , p o r isso / e u q u e r i a c o n t i n u a r
vi ve n d o ".
El e : "I s t o é u m a h is t ó r ia e s t r a n h a m e n t e i n c e r t a . E u s u p u n h a c o m r a z ã o q u e
e st a va n o in fe r n o . D e ve z e m q u a n d o m e p a r e c ia q u e m i n h a m u l h e r t a m b é m
e st a va a q u i, às ve z e s t a m b é m n ã o o sa b ia ao ce r t o , a s s im c o m o n ã o e st a va c e r t o
de m i m m esm o.
C : "N a t u r a l m e n t e , ele é o e t e r n o a d ve r sá r io , p o is n u n c a co n se gu e h a r m o n i -
z a r v i d a p e sso a l c o m v i d a a b so lu t a ".
E u : " N ã o é p o s s íve l e n t ã o u n i r esses o p o st o s?"
C : "El e s n ã o sã o o p o st o s, a p e n a s d ife r e n ç a s . T u t a m b é m n ã o c h a m a r á s o d i a
d e o p o st o a o an o , o u o a lq u e ir e d e o p o st o ao c ô va d o ".
E u : "I s t o é e vid e n t e , m a s algo e n fa d o n h o ".
C : " C o m o s e m p r e , q u a n d o a ge n t e fa la d o a lé m . E s e r á ca d a ve z m a is , s o -
b r e t u d o d e sd e q u e n i ve la m o s o s o p o st o s e n o s ca sa m o s. E u a ch o q u e o s m o r t o s
e s t ã o p r e st e s a d e sa p a r e ce r ".
A s s i m fi z u m a c o n s t r u ç ã o só lid a . P o r m e i o d isso co n se gu i e u m e s m o fi r -
m e z a e d u r a b ilid a d e e p u d e r e s is t ir às o sc ila ç õ e s d o p e sso a l. D e s t a m a n e i r a
fo i sa lvo e m m i m o i m o r t a l . À m e d i d a q u e e u p u xa va p a r a fo r a d e m e u a lé m a
e s c u r id ã o p a r a d e n t r o d o d ia , e s va z ie i m e u a lé m . A s s i m d e s a p a r e c e r a m as r e i -
vin d ic a ç õ e s d o s m o r t o s , p o is fi c a r a m saciad o s.
318 No Fausto, de Goethe, Mefistófeles faz um pacto com Fausto de que ele o serviria na vida sob a condição
de que Fausto o servisse no além (1. 1655).
319 No esboço corrigido consta: "de m im com a cobra" (p. 251).
O M AGO
383
e xce sso d e s e u e s fo r ç o p e sso a l, r e c o n h e c e u a r e ivin d ic a ç ã o d o s m o r t o s e p r o -
c u r o u sa t isfa z ê - la .
Se n t e p e r fe it a m e n t e e n t ã o c o m o se u m ve n e n o se cr e t o t ivesse p a r a lisa d o a
vit a lid a d e d e su as r e la ç õ e s p esso a is, m a s d o o u t r o la d o , e m s e u a lé m , ca la -se a
vo z d o s m o r t o s ; a a m e a ç a , o m e d o e a a git a ç ã o t e r m i n a m . P o is t u d o o q u e a n t e s
a gu a r d a va fa m e lic a m e n t e n e le , vi ve a go r a c o m e le e m se u d ia . Su a v i d a é b e la e
r ic a , p o is e le é e le m e s m o .
Re p u g n a n t e , p o r é m , é a q u e le q u e s e m p r e d e se ja a p e n a s a fe licid a d e d o o u -
t r o , p o is ele / a t r o fia a si m e s m o . As s a s s i n o é a q u e le q u e d e se ja fo r ç a r o o u t r o à 178/ 179
b e m - a ve n t u r a n ç a , p o is e le m a t a s e u p r ó p r i o c r e s c im e n t o . Lo u c o é a q u e le q u e
e l i m i n a p o r a m o r s e u a m o r . Es t e e s t á p e sso a lm e n t e n o o u t r o . Se u a lé m é c i n -
z e n t o e im p e s s o a l. E l e se i m p õ e a o u t r o s, p o r isso t e m a s i n a d e i m p o r - s e a s i
m e s m o n u m fr io n a d a . Aq u e l e q u e a c e it o u as r e ivin d ic a ç õ e s d o s m o r t o s d e s-
t e r r o u s u a r e p u g n â n c i a p a r a o a lé m . N ã o m a is se i m p õ e a vid a m e n t e ao s o u t r o s,
vive so lit á r io , e m b e le z a , e fa la c o m o s m o r t o s . M a s u m a ve z t a m b é m a r e i v i n d i -
ca çã o d o s m o r t o s é sa t isfe it a . Q u a n d o e n t ã o a i n d a se p e r sist e n a so lid ã o , o b e lo
d e sa p a r e ce n o a lé m e o d e so la d o r e n t r a n o a q u é m . D e p o i s d e u m a fase b r a n c a
ve m u m a p r et a, sem p r e est ão a í céu e i n fe r n o 320 .
m o s a lc a n ç a d o u m o b je t ivo , a i n d a q u e p r o vis ó r io . Se a t é o s m o r t o s e s t ã o t e r m i -
n an d o, o q u e a in d a r est a p o r vir ?"
320 Nota marginal no volume caligráfico: "Ainda não havia percebido que eu mesmo era este assassino".
321 9 de fevereiro de 1914. O Livro Negro 4, tem "alma" (p. 114).
384 LI BE R SECU N D U S 180/ 183
E u : " O q u e t u e n t e n d e s p o r vi d a ?"
C : " E u d igo, a v i d a a i n d a t e m d e c o m e ç a r . T u n ã o t e se n t ist e va z i o h o je ?
C h a m a s ist o d e vi d a ?"
E u : "É ve r d a d e o q u e d iz e s. M a s e u m e e s fo r ç o p o r a ch a r t u d o t ã o b o m
q u a n t o p o s s íve l e d a r - m e fa c ilm e n t e p o r sa t isfe it o ".
C : "I s t o t a m b é m p o d e r i a se r b a st a n t e c ó m o d o . M a s t u p r e cisa s e d e ve s t e r
m a io r e s p r e t e n s õ e s ".
C : "I s t o n ã o p r o va n a d a . Só n ã o p e n se s q u e p o d e r ia s e n vo l ve r - m e d e a lgu -
m a fo r m a e i n c o r p o r a r - m e a t i ".
E u : "En t ã o , c o m o va i ser ? E s t o u p r o n t o ".
180/ 181 C : " T u t e n s d i r e i t o a u m p a ga m e n t o p e lo / q u e se t e r m i n o u a t é ago r a".
E u : "D o c e p e n s a m e n t o q u e d e ve h a ve r u m p a ga m e n t o p o r isso ".
C : " E u t e d o u o p a ga m e n t o n a ilu st r a çã o . Vê ".
[ I H 181] El i a s e Sa lo m é ! A r o t a ç ã o c o m p le t o u - s e , e os p o r t õ e s d o m i s t é r i o
a b r i r a m - s e d e n o vo . El i a s c o n d u z Sa l o m é , a vi d e n t e , p e la m ã o . E l a b a i xa os
o lh o s r u b o r i z a d a e a m o r o s a .
E : "Aq u i t e d o u Sa lo m é . Q u e se ja t u a ".
E u : "P o r a m o r d e D e u s - o q u e fa r e i c o m Sa lo m é ? E u já so u casad o, e n ó s
n ã o vi ve m o s e n t r e os t u r c o s " 3 2 2 .
E: " Ó h o m e m s e m e xp e d ie n t e , c o m o és t a r d o . N ã o é e la u m b e lo p r e se n t e ?
A c u r a d e la n ã o é o b r a t u a? N ã o q u e r e s a ce it a r se u a m o r c o m o p a ga m e n t o b e m
m e r e c i d o p o r t e u e s fo r ç o ?"
E u : "P a r e c e - m e q u e é u m p r e se n t e e st r a n h o , a n t e s u m p e so d o q u e u m a a le -
gr ia . E s t o u fe liz p e lo fat o d e Sa l o m é m e se r a gr a d e cid a e m e a m a r . E u t a m b é m
a a m o - d e c e r t a fo r m a . A l é m d o m a is , o t r a b a lh o q u e e la m e d e u fo i - l i t e -
322 A poligamia é prática comum na Turquia. Foi oficialmente abolida por Ataturk em 1926.
O M AGO
385
r a l m e n t e fa la n d o - m a is a r r a n c a d o d e m i m d o q u e se e u o t ive sse p r e st a d o d e
u m r e su lt a d o t ã o b o m , já e s t o u m u i t o sa t isfe it o ".
Sa l o m é p a r a El i a s : "D e i x a - o , é u m h o m e m e sq u isit o . Sa b e D e u s q u a is sã o
n ã o s o u fe ia e s o u c o m c e r t e z a d e s e já ve l p a r a m u i t o s ". D i r i g i n d o - s e a m i m :
e d a n ç a r e m t u a p r e s e n ç a , q u e r o t o c a r a la ú d e p a r a t i , v o u c o n s o la r - t e q u a n t o
r a ç ã o os t e u s p e n s a m e n t o s . V o u b e i ja r as p a la vr a s q u e d isse r e s p a r a m i m . T o d o
d i a v o u c o lh e r r o sa s p a r a t i , e t o d o s os m e u s p e n s a m e n t o s vã o e sp e r a r s e m p r e
p o r t i e e st a r co n t igo ".
Eu : "Ag r a d e ç o t e u a m o r . É b e lo o u vi r fa la r d e a m o r . E m ú s ic a , a sa u d a d e
d is t a n t e e a n t iga . T u vê s q u e m i n h a s lá gr im a s c a e m so b r e t u a s b o a s p a la vr a s.
Go s t a r i a d e a jo e l h a r - m e d ia n t e d e t i e b e ija r c e m ve z e s t u a m ã o , p o r q u e e la m e
q u is d a r a m o r . T u falast e c o m t a n t a b e le z a so b r e o a m o r . N ó s n ã o n o s c a n s a m o s
ja m a is d e o u vi r fa la r d e a m o r .
Sa l: "P o r q u e só fa la r ? Q u e r o se r t u a , p e r t e n c e r t o d a a t i ".
E u : " N ã o vê s q u e n e ce ssid a d e i n e xo r á ve l m e p r e go u n a c r u z ? É a i m p o s s i -
a s s im c h a m a s ? 3 2 4
E u : "Es c u t a , e u d u vi d o q u e se ja t e u d e s t in o p e r t e n c e r a m i m . N ã o q u e r o
i m i s c u i r - m e n a v i d a q u e t e p e r t e n c e , p o is n u n c a p o d e r e i a ju d a r - t e a l e vá - l a a t é
o fi m . E o q u e ga n h a s se e u t i ve r q u e r e le ga r - t e c o m o u m a r o u p a u sa d a ?"
323 Nota marginal no volume caligráfico: "No cap. X I do jogo do mistério" (cf. acima, p. 251).
324 O Livro Negro 4, continua: [Eu ]: "Meus princípios - soa estúpido - perdoai-me - , mas eu tenho princí-
pios. Não penseis que são princípios insípidos de moral, mas são conhecimentos que a vida me impôs".
[Alm a]: "Q ue princípios?" (p. 121-122).
386 LI BE R SECU N D U S 183/ 187
E u : "Se i q u e s e r ia p a r a m i m o m a i o r t o r m e n t o d e i xá - l a p a r t i r a s s im . M a s
se t u p o d e s fa z ê - lo p o r m i m , t a m b é m e u o p o sso p o r t i . E u p r o s s e gu ir ia s e m
q u e ixa , p o is n ã o e s q u e ç o a q u e le s o n h o o n d e v i m e u c o r p o d e it a d o so b r e p r e go s
p o n t ia gu d o s e m e u p e it o se n d o t r i t u r a d o p o r u m a r o d a d e b r o n z e . T e n h o d e
p e n s a r n e st e s o n h o s e m p r e q u e p e n so n o a m o r . Se fo r p r e ciso , e s t o u p r o n t o ".
Sal: " N ã o q u e r o s e m e lh a n t e sa cr ifício . Q u e r i a t r a z e r - t e a le gr ia . N ã o p o sso
se r a le gr ia p a r a t i ?"
183/ 184 E u : " E u n ã o se i — t a lve z — / t a lve z t a m b é m n ã o ".
Sal: "T e n t a ao m e n o s ".
E u : "A t e n t a t i va e q u iva le à ação . P o is t e n t a t iva s sã o ca r a s".
Sal: " N ã o q u e r e s p a ga r p o r m i m ? "
E u : "E s t o u u m p o u c o fr aco , s e m fo r ça s, d e p o is d o q u e so fr i p o r t i , p a r a e st a r
e m c o n d i ç õ e s d e r e a li z a r o u t r a s t ar efas p o r t i . N ã o p o d e r i a s u p o r t á - l o ".
Sa l: "Se n ã o m e q u ise r e s t o m a r , e n t ã o n e m e u t e p o sso t o m a r ?"
E u : " N ã o se t r a t a d o t o m a r , m a s se se t r a t a r d e a lgu m a co isa , e n t ã o é d o d a r ".
Sal: " E u m e d o u a t i . Só m e a ce it a ".
E u : "Se só d e p e n d e sse d isso ! M a s o e n vo l vi m e n t o c o m o a m o r ! Só p e n s a r
n isso é h o r r íve l".
Sal: " T u exiges q u e e u se ja e ao m e s m o t e m p o n ã o seja. I s t o é im p o s s íve l. O
q u e t e fa lt a ?"
E u : "Fa l t a - m e fo r ç a p a r a t o m a r n o s o m b r o s m a is u m d e st in o . Já t e n h o o
s u fic ie n t e p a r a ca r r e ga r ".
Sal: "M a s , se e u t e a ju d a r a ca r r e ga r est e p e so ?"
E u : "C o m o p o d es? T e r i a s q u e ca r r e ga r a m i m , u m p e so r e b e ld e . N ã o d e vo
e u m e s m o c a r r e g á - l o ?"
E : " T u d iz e s a ve r d a d e . C a d a q u a l ca r r e ga se u p eso. Q u e m i m p õ e aos o u t r o s
su a ca r ga é se u e s c r a vo 3 2 5 . A n i n g u é m se ja t ã o p e sa d o ca r r e ga r a s i p r ó p r i o ".
Sal: "M a s , P a i, n ã o p o d e r i a e u a ju d á - l o a ca r r e ga r se u p e so ao m e n o s p o r u m
t r e c h o ?"
184/ 185 E : "En t ã o ele s e r ia t e u e scr a vo ". /
Sal: " O u m e u s e n h o r e d o n o ".
E u : "I s t o n ã o q u e r o ser. T u d e ve r á s se r u m a p e sso a livr e . N ã o co n sigo s u p o r -
t a r e scr a vo s n e m se n h o r e s. E u go st o d e p essoas".
325 O tema da moral de senhor e escravo aparece com destaque no primeiro ensaio da obra de Nietzsche: A
genealogia da moral. Petrópolis: Vozes, 2 0 0 9 [Trad. de Mário Ferreira dos Santos].
O M AGO
387
Sa l: " E e u n ã o s o u u m a p esso a?"
E u : "Sê t e u p r ó p r i o s e n h o r e t e u p r ó p r i o e scr a vo , n ã o p e r t e n ç a s a m i m , m a s
h u m a n a , u m a c o is a q u e p a r a m i m t e m m a is va lo r d o q u e o d i r e i t o d e p r o p r i e -
d a d e so b r e u m a p esso a".
Eu : " N ã o e s t o u t e m a n d a n d o e m b o r a . T u n ã o go st a r ia s d e fica r lo n ge d e
t u a p o b r e z a , a s s im c o m o n ã o p o d e s a c a lm a r m e u d esejo. Se t ive r e s u m a a b u n -
d o c h ifr e t r a n s b o r d a n t e d e t u a a le gr ia . E u s e i q u e s e r á u m a lívio p a r a m i m . E u
E u n ã o r o u b a r e i d e m i m o m e u sa lá r io . T u n ã o p o ssu is n a d a , c o m o p o d e s d a r ?
a t i r a r - l h e ao s p é s su as m o e d a s c in t ila n t e s . Sa l o m é , a g r a d e ç o t e u a m o r . Se m e
t u a b e le z a e t u a a r t e . E se t ive r e s fe it o r i c a c o lh e it a , a t i r a - m e u m a d e t u a s r o sas
p e la ja n e la , e se a fo n t e d e t u a a le gr ia t r a n s b o r d a , d a n ç a e c a n t a t a m b é m p a r a
e n ã o s u a in d igê n c ia ".
Sa l: " Q u e h o m e m d u r o e i n c o m p r e e n s í ve l é s t u !"
E: " T u m u d a s t e m u i t o d e sd e a ú l t i m a ve z q u e t e v i . Fa la s o u t r a lín g u a q u e ,
p a r a m i m , so a e s t r a n h a ".
Eu : " M e u p r e z a d o a n ciã o , a c r e d it o r e a lm e n t e q u e m e a ch es m u d a d o , m a s
E: " E l a se p e r d e u . Ac h o q u e fo i r o u b a d a d e m i m . D e s d e e n t ã o as co isa s a n -
a ce it o m i n h a filh a ".
Eu : " E u se i o n d e e st á t u a co b r a . E l a e st á co m igo . N ó s a t ir a m o s d o s u b m u n d o .
su p e r io r , caso c o n t r á r io o s u b m u n d o t e r ia t id o a va n t a ge m d e p r e ju d ic a r - n o s ".
[ 2] 3 2 6 Q u a n d o t u d o h a vi a t e r m i n a d o e m m i m , vo l t e i in e s p e r a d a m e n t e p a r a
o m is t é r io , p a r a a q u e le p r i m e i r o a sp ect o d o s p o d e r e s d o a lé m d o e s p ír it o e d a
co b iça . A s s i m c o m o e u a lc a n c e i o p r a z e r e m m i m e o p o d e r so b r e m i m , a s s im
Sa l o m é p e r d e u o p r a z e r n e l a m e s m a , m a s a p r e n d e u o a m o r ao p r ó xi m o , e El i a s
p e r d e u o p o d e r d e su a sa b e d o r ia , m a s a p r e n d e u a r e c o n h e c e r o e s p ír it o d o p r ó -
187/ 188 xi m o . As s i m , Sa l o m é p e r d e u o p o d e r d a s e d u ç ã o e / t o r n o u - s e a m o r . U m a ve z
q u e ga n h e i o p r a z e r e m m i m , q u e r o t a m b é m o a m o r a m i m . I s t o s e r ia d e m a is
e c o lo c a r ia u m a n e l d e fe r r o e m t o r n o d e m i m , q u e m e su fo ca. C o m o p r a z e r ,
a ce it o Sa lo m é ; c o m o a m o r , e u a r e je it o . M a s e la q u e r v i r a m i m . C o m o - d e vo
t a m b é m t e r a m o r a m i m m e s m o ? O a m o r , a c r e d it o e u , p e r t e n c e ao p r ó xi m o .
M a s m e u a m o r q u e r v i r a m i m T e n h o m e d o d ele. O p o d e r d e m e u p e n s a m e n t o
go st a r ia d e a fa st á - lo d e m i m p a r a o m u n d o , p a r a as co isa s, p a r a as p essoas. P o is
q u a n d o a t é m e s m o m e u a m o r q u e r v i r a m i m ! M is t é r io , a b r e t u a c o r t i n a p a r a o
n o vo ! E u q u e r o le va r a t e r m o est e co m b a t e . So b e, se r p e n t e , d o a b is m o e scu r o !
| 6 }3 2 7 [1] O u ç o Sa l o m é c o n t i n u a r c h o r a n d o . O q u e e la q u e r a in d a , o u o q u e
e u q u e r o a in d a ? I s t o é u m p a ga m e n t o m a l d i t o q u e m e d e st in a st e , u m p a g a m e n -
q u a n d o se t o c o u n e le .
C o b r a 3 2 8 : "Q u e r e s e n t ã o vi ve r s e m sa cr ifício ? A v i d a n ã o t e d e ve cu st a r a l -
g u m a co isa ?"
326 No Volume Caligráfico há um espaço em branco para uma in icial com base histórica.
327 11 de fevereiro de 1914.
328 No Livro Negro 4, esta figura é identificada como "alma" (p. 131).
O M AGO
389
E u : " T u q u e r e s d i z e r c e r t a m e n t e c o m t u a m a l d i t a ló gica : e xige n t e n o sa cr ifí-
cio ? N ã o o e n t e n d i / a s s im . E u m e e n ga n e i e m m i n h a va n t a g e m . D i z e - m e : n ã o 188/ 189
é s u fic ie n t e q u e e u e m p u r r e m e u s e n t i m e n t o p a r a o p la n o d e fu n d o ?"
C : " T u n ã o e m p u r r a s t e u s e n t i m e n t o p a r a o p la n o d e fu n d o , m a s é b e m m e -
l h o r p a r a t i n ã o t e r q u e c o n t i n u a r q u e b r a n d o a c a b e ç a p o r Sa l o m é ".
E u : " E c o m p li c a d o q u a n d o se d i z a ve r d a d e . E e st a a r a z ã o d e Sa l o m é e st a r
a i n d a c h o r a n d o ?"
C : "Si m . E e st a a r a z ã o ".
E u : " E o q u e se p o d e fa z e r ?"
C : " O h , t u q u e r e s fa z er ? P o d e - s e t a m b é m p e n s a r ".
E u : "C e r t o , o q u e se d e ve p e n sa r ? Co n fe s s o q u e n ã o s e i p e n s a r n a d a n e st e
caso. T a l ve z t e n h a s a lg u m a su ge st ã o . T e n h o a i m p r e s s ã o d e q u e e u d e ve r i a s u b ir
p a r a a lé m d e m i n h a ca b e ça . I s t o n ã o o p osso. O q u e a ch a s?"
C : " N ã o a ch o n a d a , n e m t e n h o s u ge s t ã o ".
E u : "En t ã o p e r g u n t a aos d o a lé m , v a i ao i n fe r n o o u ao cé u , t a lve z lá e xi s t a
a lgu m a s u ge s t ã o ".
C : "So u p u xa d o p a r a c i m a ".
En t ã o a c o b r a t r a n s fo r m o u - s e n u m p e q u e n o p á s s a r o b r a n c o q u e se e le vo u
p a r a as n u ve n s o n d e d e sa p a r e ce u . E u o a c o m p a n h e i p o r lo n go t e m p o c o m o
o l h a r 329 .
n a e s t ã o gr a va d a s le t r a s, o q u e d i z e m ?
" O a m o r n ã o a ca b a j a m a i s " 3 3 1.
U m p r e se n t e d o cé u ! M a s o q u e sign ifica ?
P: " E u e s t o u a q u i, e st á s sa t isfe it o ?"
E u m e ca lo e e s t o u d e p e n d u r a d o b e m a lt o a c i m a d o c h ã o e m ga lh o b a l o u -
ç a n t e d a á r vo r e d i vi n a , p a r a q u e a s s i m já os a n t e p a ssa d o s n ã o p u d e s s e m a b a n -
d o n a r o p e c a m in o s o . M i n h a s m ã o s e s t ã o a m a r r a d a s e e u e s t o u c o m p l e t a m e n t e
d e sa m p a r a d o . Es t o u d e p e n d u r a d o h á t r ê s d ia s e t r ê s n o it e s.
D o n d e p o d e r i a v i r a ju d a ? A l i e s t á p o u sa d o m e u p á ssa r o , a c o b r a q u e ve s t i u
su a r o u p a b r a n c a d e p e n a s.
335 Falta uma página no Livro Negro 4, cobrindo o fim desse diálogo e o parágrafo seguinte.
392 LI BE R SECU N D U S ESBO ÇO
P á s s a r o : " N ó s va m o s b u s c a r a ju d a d as n u ve n s q u e p a ssa m p o r so b r e a t u a
ca b e ça , se n ã o c o n s e gu ir m o s a ju d a d e o u t r o m o d o ".
E u : "Q u e r e s b u s c a r a ju d a d as n u ve n s ? C o m o é p o s s íve l?"
P: " E u v o u t e n t a r ".
O p á s s a r o v o o u q u a l c o t o via , fo i fic a n d o c a d a ve z m e n o r a t é d e sa p a r e ce r
n as d e n sa s n u ve n s c in z e n t a s q u e c o b r i a m o cé u . E u o a c o m p a n h e i c o m o lh a r
sa u d o so e n ã o v i m a is n a d a d o q u e o c é u i n fi n d o , c o b e r t o d e n u ve n s c in z e n t a s
so b r e m i m , i m p e n e t r a ve l m e n t e c in z e n t o , u n i fo r m e m e n t e c i n z e n t o e ile gíve l.
M a s a in s c r iç ã o n a c o r o a - e la é le gíve l. " O a m o r n ã o a ca b a ja m a i s " — sign ific a o
e t e r n o e n fo r c a m e n t o ? N ã o fo i à t o a q u e fiq u e i d e sco n fia d o q u a n d o m e u p á s s a -
r o t r o u xe a co r o a , a c o r o a d a v i d a e t e r n a , a c o r o a d o m a r t í r i o - co isa s o m in o s a s
q u e sã o p e r igo s a m e n t e a m b íg u a s .
Es t o u ca n sa d o , n ã o só ca n sa d o d e e st a r d e p e n d u r a d o , m a s d a l u t a p elas
im e n s id a d e s . Lá lo n ge , d e b a ixo d o s m e u s p é s , n o c h ã o d a t e r r a , e s t á a c o r o a
e n igm á t ic a , r e l u z i n d o e m fu lgo r es d e o u r o . E u n ã o e s t o u p a ir a n d o , n ã o , e s t o u
d e p e n d u r a d o , o u , p io r , e s t o u su sp e n so e n t r e c é u e t e r r a — e n ã o p o sso fica r
sa cia d o d o e st a r d e p e n d u r a d o —, p u d e sse e u ao m e n o s s a c i a r - m e d isso p a r a
s e m p r e , m a s o a m o r n ã o a ca b a ja m a is . E r e a l m e n t e ve r d a d e q u e o a m o r n ã o
d e ve a ca b a r ja m a is ? O q u e fo i b o a - n o va p a r a aq u eles, é o q u e p a r a m i m ?
"I s t o d e p e n d e d o c o n c e it o ", d isse d e r e p e n t e u m ve l h o c o r vo q u e , n ã o lo n ge
d e m i m , e sp e r a n d o o b a n q u e t e fú n e b r e , e s t á p o u sa d o n u m galh o, filo s o fic a -
m e n t e m e r g u lh a d o e m si m e s m o .
E u : "C o m o d e p e n d e d o c o n c e it o ?"
C o r v o : " D e t e u c o n c e it o e d a q u e le c o n c e it o d e a m o r ".
E u : " E u se i, ve l h a ave a go u r e n t a , t u p e n sa s e m a m o r ce le st ia l e t e r r e n o 3 3 6 . O
a m o r ce le st ia l s e r ia b e m b o n it o , m a s n ó s so m o s ser es h u m a n o s , e e u m e d e c i d i ,
já q u e so m o s ser es h u m a n o s , se r u m a p e sso a ín t e gr a e c o r r e t a .
C o r v o : " T u és u m i d e ó l o g o ".
E u : "Ra ç a e s t ú p i d a d e co r vo s, a fa st a -t e d e m i m ".
Be m p e r t o d o m e u r o st o m o vi m e n t a - s e u m galh o , u m a c o b r a p r e t a e n r o -
lo u - s e n e le e m e o l h a c o m o o p a co b r i l h o p e r o lí fe r o d e seu s o lh o s. N ã o é a
m i n h a co b r a ?
336 Swedenborg descreveu o amor celestial como consistindo em "amar os usos por causa dos usos, ou os
bens por causa dos bens, que um homem realiza pela Igreja, por sua pátria, pela sociedade humana e por
um concidadão", diferenciando-o do amor a si mesmo e do amor ao mundo (Heaven and ítsW onders and Hell.
FromThingsHeardandSeen. Londres: Swedenborg Society, 19 20 , § 554S. [Trad. de J. Ren dell]).
O M AGO
393
E u : "I r m ã e va r a p r e t a d e c o n d ã o , d e o n d e ve n s ? P e n s e i q u e t ivesses vo a d o
c o m o p á s s a r o p a r a o cé u , e a go r a e st á s a q u i? T r a z e s a ju d a ?"
Co b r a : " E u s o u a p e n a s u m a m i n h a m e t a d e . N ã o s o u u m a , m a s d u a s, s o u o
u m e o o u t r o . Es t o u a q u i a p e n a s c o m o o s e r p e n t in o , o m á gic o . M a s a m a gia n ã o
a ju d a a q u i e m n a d a . E u m e e n r o l e i n e st e ga lh o s e m n a d a q u e fazer , e sp e r a n d o
o d e s e n r o la r d as co isa s. T u p o d e s p r e c is a r d e m i m e m vi d a , m a s n ã o n o e n fo r -
c a m e n t o . N o p i o r d o s casos, e s t o u d is p o s t a a l e vá - l o p a r a o H a d e s . C o n h e ç o o
c a m i n h o p a r a lá".
N o ar, d ia n t e d e m i m , c o n d e n s o u - s e u m a figu r a n e gr a , sa t a n á s, c o m u m
s o r r is o sa r cá st ico . G r i t o u - m e : "I s t o p r o vé m d a c o n c ilia ç ã o d o s o p o st o s! Re n e g a
e i m e d i a t a m e n t e e st a r á s c á e m b a i xo so b r e a t e r r a ve r d e ja n t e ".
E u : "P a r a ! O q u e se i e u d o q u e é lu ga r c e r t o e e r r a d o ?"
Sa t a n á s: " Q u e m l i d a t ã o s o b e r a n a m e n t e c o m os o p o st o s sab e o q u e é e s-
q u e r d o e d i r e i t o ".
E u : "C a l a a b o ca , i n t r o m e t i d o ! Se p e lo m e n o s vie sse m e u p á s s a r o b r a n c o e
m e t r o u xe sse a ju d a , e s t o u c o m m e d o , e s t o u fic a n d o fr a co ".
C : " N ã o sejas b o b o , a fr a q u e z a t a m b é m é u m c a m i n h o , a m a gia v a i à d e s-
fo r r a ".
Sa t a n á s: " O q u ê ? N ã o t e n s c o r a ge m p a r a e n fr e n t a r a fr a q u e z a ? Q u e r e s ser
p e sso a h u m a n a c o m p le t a , e as p esso as n ã o sã o fo r t e s?"
E u : " M e u p á s s a r o b r a n c o , n ã o e n c o n t r a s o c a m i n h o d e vo lt a ? Fo s t e e m b o r a
p o r q u e c o m igo n ã o d á p a r a vi ve r ? O h , Sa lo m é ! Lá v e m e la . V e m a t é m i m , Sa -
l o m é ! O u t r a n o it e se p a sso u . N ã o t e o u vi ch o r a r , m a s e st ive e n fo r c a d o e a i n d a
e st o u ".
a ju d a . N ã o se i se t u d o e st á d e s m o r o n a n d o , o u se t u d o e s t á q u ie t o . M i n h a e s-
p e r a n ç a e st á e m m e u p á s s a r o b r a n co . A h , n ã o é p o s s íve l q u e ser p á s s a r o é o
m e s m o q u e e st a r e n fo r ca d o ".
Sa t a n á s: "Co n c i l i a ç ã o d o s o p o st o s! I g u a l d i r e i t o p a r a t o d o s e p a r a t u d o !
D o i d i c e s !"
P á s s a r o : "Se a m a s a t e r r a , e st á s e n fo r ca d o ; se a m a s o cé u , e st á s p a ir a n d o ".
E u : " O q u e é t e r r a ? O q u e é c é u ?"
P: "T u d o e m b a i xo d e t i é t e r r a , t u d o a c i m a d e t i é cé u . Vo a s q u a n d o a sp ir a s
ao q u e e s t á a c i m a d e t i , e st á s e n fo r ca d o se a sp ir a s ao q u e e s t á e m b a i xo d e t i ".
E u : " O q u e h á a c i m a d e m i m ? O q u e h á e m b a i xo d e m i m ? "
P: "Ac i m a d e t i , o q u e e st á a d ia n t e d e t i ; e m b a i xo d e t i , o q u e e s t á p a r a t r á s
d e t i ".
E u : " E a co r o a ? D e s ve n d a - m e o e n i g m a d a c o r o a ".
P: "A c o r o a e a c o b r a sã o o p o st o s e u m . N ã o vis t e a c o b r a c o r o a n d o a c a b e ç a
d o c r u c ific a d o ?"
E u : "I n fe l i z m e n t e n ã o t e e n t e n d o ".
est e é o m i s t é r i o d a c o r o a e d a c o b r a ".
E u : " E Sa lo m é ? O q u e va i a c o n t e c e r c o m Sa l o m é ?"
A s n u ve n s se d i vi d e m , o c é u e s t á c h e io d e a r r e b o l d o t e r c e ir o d i a q u e t e r m i -
n o u 3 3 7 . O s o l m e r g u l h a n o m a r , e c o m ele d e s liz o d o c i m o d a á r vo r e p a r a a t e r r a .
Si l e n c i o s a e p a c ific a m e n t e c a i a n o it e .
[2] O m e d o t o m a c o n t a d e m i m . A q u e m le va st e s p a r a a m o n t a n h a , ca b ir o s?
E a q u e m o fe r e ci sa cr ifício e m vó s ? V ó s elevast es a m i m m e s m o q u a l t o r r e ,
m e s m o e s o u ju lga d o . E m m i m s o u m e u p r ó p r i o sa ce r d o t e e c o m u n i d a d e , ju i z
e se n t e n cia d o , D e u s e sa cr ifício h u m a n o .
337 Segundo o relato bíblico da criação, o mar e a terra foram separados no terceiro dia.
O M AGO
395
A i , ca b ir o s, q u e o b r a r e a liz a st e s! Fiz e st e s n a sce r d o cao s u m a l e i t e r r íve l q u e
n ã o p o d e m a is ser a b o lid a . F o i e n t e n d i d a e a ce it a .
O t é r m i n o d o q u e foi p r o d u z i d o e m se gr e d o se a p r o xi m a . O q u e e u v i , e u o
d e s c r e vi e m p a la vr a s d a m e l h o r m a n e i r a q u e p u d e . A s p a la vr a s sã o p o b r e s e n ã o
foram e m b e le z a d a s. M a s , a ve r d a d e é b e la e a b e le z a é ve r d a d e i r a ? 3 3 8
N ã o é o p o d e r d a c a r n e q u e d e ve se r q u e b r a d o , m a s o d o a m o r , p o r ca u sa d a
vi d a , p o is a v i d a e st á a c i m a d o a m o r . U m a p e sso a p r e c is a d e s u a m ã e a t é q u e su a
vi d a se t e n h a t o r n a d o . En t ã o se s e p a r a r á d e la . A s s i m t a m b é m a v i d a p r e c is a d o
a m o r , a t é q u e se t e n h a t o r n a d o , e n t ã o va i se p a r a r - se d ele. D u r a é a s e p a r a ç ã o d a
c r ia n ç a d e s u a m ã e , m a s a i n d a m a is d u r a é a s e p a r a ç ã o d a v i d a d o a m o r . O a m o r
p r o c u r a o t er , m a s a v i d a go st a r ia d o m a is a lé m .
O c o m e ç o d e t o d a s as co isas é o a m o r , m a s o se r d as co isa s é a v i d a 3 4 0 Es t a
d is t in ç ã o é t e r r íve l. P o r q u e , e s p ír it o d a p r o fu n d e z a e scu r a , m e o b r iga s a d iz e r :
338 O poema de John Keat "Ode to a Grecian Ur n " termina assim: "Beauty is truth, truth beauty, - that is
ali / Ye know on earth, and ali ye need to know".
339 Em Transformações e símbolos da libido (1912. O C , B) , Jung argumenta que no decorrer do desenvolvimento
psicológico, o indivíduo tem de libertar a si mesmo da figura da mãe, como representada nos mitos
heróicos (cf. cap. V I , "A luta pela libertação da m ãe").
34 0 Em Transformações e símbolos da libido (19 12), ao discutir seu conceito de libido, Jung se refere ao significado
cosmogônico de Eros na Teogonia de Hesíodo, que ele vincula à figura de Fanes no orfismo e a Kam a, o
Deus hindu do amor ( O C, B, § 223).
LI BE R SECU N D U S ESBO ÇO
396
q u e m a m a n ã o vive , e q u e m vi ve n ã o a m a ? E u d isse s e m p r e o c o n t r á r io ! Se r á
q u e t u d o d e ve ser t r a n s fo r m a d o e m se u o p o s t o ? 3 4 1 Se r á m a r o n d e e s t á o t e m p l o
d e O I A H M Q N ? Su a i l h a s o m b r e a d a a fu n d a r á n o so lo m a is p r o fu n d o ? N o r e -
d e m o i n h o d o d ilú vio e m r e cu o , q u e a n t e s e n go lia t o d a s as t e r r a s e p o vo s? Se r á
so lo m a r i n h o o n d e se e r gu e o A r a r a t ? 3 4 2
Q u e p a la vr a s a b o m i n á ve i s m u r m u r a s , filh o m u d o d a t e r r a ? Q u e r e s d e sfa z e r
o a b r a ç o d e m i n h a a lm a ? T u , m e u filh o , t e i m i s c u i s n isso ? Q u e m és? E q u e m
t e d á a fo r ça ? T u d o o q u e a m b i c i o n e i , t u d o o q u e a r r a n q u e i d e m i m m e s m o t u
q u e r e s n o va m e n t e i n ve r t e r e a n u la r ? T u és o filh o d o d ia b o p a r a q u e m t o d o o
sa gr a d o é o d io so . Su r ges avassalad or . T u m e in c u t e s m e d o . D e i x a a le gr a r - m e
c o m o a b r a ç o d e m i n h a a l m a e n ã o p e r t u r b e s o sossego d o t e m p lo .
A i , t u m e p e n e t r a s c o m fo r ç a p a r a lis a n t e . M a s e u n ã o q u e r o t e u c a m i n h o .
D e v o c a ir i m p o t e n t e a t eu s p é s? D i a b o e filh o d o d ia b o , fala! T u a m u d e z é i n -
s u p o r t á ve l e d e b u r r i c e a ssu st a d o r a .
E u ga n h e i m i n h a a lm a , e o q u e fo i q u e e la m e ge r o u ? A t i , m o n s t r o , u m filh o ,
a h — u m t e r r íve l p r o d u t o a b o r t ivo , u m t a r t a m u d o , u m c a b e ç a d e b a gr e, u m s á u -
r i o p r i m i t i vo . Q u e r e s ser o r e i d o m u n d o ? Q u e r e s c a t iva r os h o m e n s o r g u lh o -
sos e livr e s , e n fe it iç a r as b elas m u l h e r e s , a r r a s a r os ca st e lo s, a b r i r vi o l e n t a m e n t e
as n a ve s d as a n t iga s ca t e d r a is? U m m u d o , u m a r ã d e o lh o s a r r e ga la d o s e p r e g u i -
ç o s o s q u e ca r r e ga e sp ir o q u e t a s so b r e a s u p e r fíc ie d e s u a la s t im á ve l ca b e ça . E t u
q u e r e s c h a m a r - t e m e u filh o ? N ã o és m e u filh o , m a s o filh o d o d ia b o . O p a i d o
d ia b o e n t r o u n o se io d e m i n h a a l m a e t o r n o u - s e c a r n e e m t i .
E u t e r e c o n h e ç o , O I A H M Q N , t u , o m a is a st u t o d e t o d o s os e n ga n a d o r e s! T u
m e lo gr a st e. M i n h a vi r g e m a l m a ge r o u p a r a t i o ve r m e asq u er o so . O I A H M Q N ,
m a l d i t o ch a r la t ã o , t u s im u la s t e m i s t é r i o p a r a m i m , co lo ca st e e m vo l t a d e m e u s
o m b r o s o m a n t o d e e st r e la s, r e p r e se n t a st e c o m igo u m a c o m é d i a a m a lu c a d a d e
Cr i s t o , t u m e d e p e n d u r a s t e , c o m p ie d a d e r id ícu la , n a á r vo r e c o m o O d i n 3 4 3 , t u
m e fiz e st e i m a g i n a r r u n a s p a r a d e s e n fe it iç a r Sa l o m é , e e n q u a n t o isso ge r a st e
c o m m i n h a a l m a o ve r m e n a s c id o d o p ó . Em b u s t e a t r á s d e e m b u st e ! C h a r l a t a -
n ic e d e m o n í a c a in c o n c e b íve l!
341 Em sua obra posterior, Jung deu importância à "enantiodromia", o princípio de que todas as coisas se
transformam em seus opostos, que ele atribuiu a Heráclito. Cf. Tipos psicológicos (19 21). O C , 6, § 793s.
342 No relato bíblico do dilúvio, a arca acabou pousando sobre o Monte Ararat ( Gn 8 ,4) . Ararat é uma
elevação vulcânica inativa na Arm ênia (atual Turquia).
343 Na mitologia nórdica, O d in foi traspassado por uma lança e dependurado na árvore do
mundo, Yggdrasill, onde ficou por nove noites, até que encontrou as runas, que lhe deram força.
O M AGO
397
T u m e d e st e p o d e r m á gic o , m e co r o a st e , m e co r o a st e c o m o b r i l h o d o p o d e r ,
p a r a q u e e u , q u a l Jo s é , fosse u m p a i fict ício d e t e u filh o . Co lo c a s t e u m o vo d e
b a silisco n o n i n h o d a p o m b a .
M i n h a a lm a , p r o s t i t u t a a d ú lt e r a , t u fica st e p r e n h e d esse b a st a r d o ! Es t o u
d e so n r a d o , e u , p a i c a r ic a t o d o a n t ic r is t o ! C o m o d e s c o n fie i d e t i ! E q u ã o m i -
se r á ve l fo i m i n h a d e s c o n fia n ç a q u e n ã o c o n s e gu iu i m a g i n a r a m a gn it u d e d e ssa
in fâ m ia !
O q u e p a r t is t e e m d o is? P a r t is t e e m d o is o a m o r e a vi d a . D e s s a p a r t iç ã o e
t e r r íve l s e p a r a ç ã o n a s c e u a r ã e o filh o d a r ã. Vi s ã o r id íc u la e a b o m in á ve l! A p a -
r e c i m e n t o in e vit á ve l!
El e s e s t a r ã o se n t a d o s n a b e i r a d a á gu a d o ce e e sc u t a n d o o c a n t o n o t u r n o
d as r ã s, p o is s e u D e u s n a s c e u c o m o u m filh o d a r ã.
O n d e e s t á Sa lo m é ? O n d e a p e r g u n t a i r r e s p o n d í ve l d o a m o r ? N e n h u m a
p e r g u n t a m a is , m e u o lh a r se vo l t a p a r a a lé m , p a r a as co isas q u e vir ã o , e Sa l o m é
e st á o n d e e u e st o u . A m u l h e r segu e s e u m a is fo r t e , n ã o a t i. A s s i m e la ge r a p a r a
t i filh o s, n o b e m e n o m a l .
344 23 de fevereiro de 1914. No Livro Negro 4, o diálogo é com a alma e esta seção começa com Jung
perguntando-lhe o que a está impedindo de voltar ao seu trabalho, e ela lhe diz que é sua ambição. Ele
pensava que a havia superado, mas a alma disse que ele simplesmente a havia negado, e por isso lhe conta
a história que segue (p. 171). A 13 de fevereiro de 1914, Jung deu uma conferência "Zu r Traumsymbolik"
para a Sociedade Psicanalítica de Zurique. De 30 de março a 13 de abril, Jung partiu de férias para a Itália.
LI BE R SECU N D U S ESBO ÇO
398
m i l h a d o d ia n t e d a b r u xa n a floresta. M a s o b e d e ce u à in s t r u ç ã o d e la , c a vo u d e
n o i t e u m b u r a c o n o j a r d i m e c o lo c o u d e n t r o d e le u m p o t e d e b a n h a d e l o n t r a ,
q u e h a vi a co n se gu id o a m u i t o cu st o .
D e i x o u p a ssa r n o ve m e se s. D e c o r r i d o est e t e m p o , fo i n o va m e n t e d e n o it e
ao m e s m o lu gar , o n d e e st a va e n t e r r a d o o p o t e , e o d e s e n t e r r o u . P a r a s e u m a i o r
e sp a n t o , e n c o n t r o u d e n t r o d e le u m a c r ia n ç a d o r m i n d o ; m a s a b a n h a h a vi a
d e sa p a r e cid o . T i r o u a c r ia n ç a e l e vo u - a sa t isfe it o p a r a s u a esp osa. E l a a l e vo u
i m e d i a t a m e n t e ao p e it o e ve ja - se u le it e ve i o e m a b u n d â n c ia . A c r ia n ç a i a
cr e sce n d o , t o r n o u - s e gr a n d e e fo r t e . D e s e n vo l ve u - s e n u m h o m e m m a is a lt o e
m a is fo r t e d o q u e t o d o s os o u t r o s .
Q u a n d o ch e go u a id a d e d e vi n t e a n o s, a p r e se n t o u - se d ia n t e d o p a i e d isse:
' E u se i q u e t u m e ge r a st e a t r a vé s d e m a gia e e u n ã o n a s c i c o m o os d e m a is h o -
m e n s . T u m e cr ia st e p e lo a r r e p e n d i m e n t o d e t eu s p e ca d o s, e ist o m e t o r n o u
fo r t e . N ã o n a s c i d e m u lh e r , e is t o m e fez in t e lige n t e . So u fo r t e e in t e lige n t e
e p o r isso e xi jo d e t i a c o r o a d o r e in o ' . O r e i ficou a ssu st a d o c o m a sa b e d o r ia
d e se u filh o e a i n d a m a is c o m a e xi g ê n c i a i m p e t u o s a d o p o d e r r e a l. Ca l o u - s e e
p e n so u : ' O q u e fo i q u e t e ge r o u ? Ba n h a d e l o n t r a . Q u e m t e ca r r e go u ? O ve n t r e
d a t e r r a . E u t e t i r e i d e u m p o t e , u m a b r u xa m e h u m i l h o u ' . D e c i d i u e n t ã o fa z e r
c o m q u e se u filh o fosse m o r t o .
M a s c o m o se u filh o e r a m a i s fo r t e d o q u e t o d o s os o u t r o s, ele o t e m i a e p o r
isso p e n s o u e m r e c o r r e r a u m a r d i l . F o i n o va m e n t e p r o c u r a r a b r u xa n a floresta
e lh e p e d i u co n se lh o . E l a d isse: ' Se n h o r r e i , d e ssa ve z o s e n h o r n ã o m e co n fe s-
s o u n e n h u m p ecad o , p o r q u e d e se ja c o m e t e r u m p ecad o . Ac o n s e l h o q u e e n t e r r e
n o va m e n t e u m p o t e c o m b a n h a d e l o n t r a e d e ixe ist o n a t e r r a d u r a n t e n o ve
m e se s. D e p o i s , d e s e n t e r r e - o e ve ja o q u e a co n t e ce u '. O r e i fez e xa t a m e n t e o
q u e a b r u x a lh e r e c o m e n d o u . A p a r t i r d a í se u filho fo i fic a n d o c a d a ve z m a is
fr a co e, q u a n d o o r e i , a p ó s n o ve m e se s, fo i ao lu ga r o n d e e st a va e n t e r r a d o o
p o t e , p ô d e t a m b é m a b r i r a s e p u lt u r a p a r a se u filho. C o l o c o u o d e fu n t o n a c o va
ju n t o d o p o t e va z io .
M a s o r e i fi c o u d e so la d o e, c o m o n ã o c o n s e gu iu d o m i n a r s u a d e s o la ç ã o ,
fo i d e n o i t e n o va m e n t e a t é a b r u x a e lh e p e d i u co n se lh o . E l a d isse: ' Se n h o r
r e i, o s e n h o r q u is u m filh o , m a s q u a n d o o filh o q u is ser o r e i e t i n h a a fo r ça e
in t e ligê n c ia p a r a t a n t o , o s e n h o r n ã o q u is m a is filho n e n h u m . P o r isso p e r d e u
se u filho. P o r q u e se q u e ixa ? O s e n h o r t e ve t u d o q u e q u e r ia ' . O r e i fa lo u : ' T e n s
r a z ã o . E u o q u is a ssim . M a s n ã o q u e r i a e st a d e so la ç ã o . N ã o co n h e ce s u m r e -
O M AGO
399
m é d i o p a r a o r e m o r s o ?' Fa l o u a b r u xa : ' Se n h o r r e i , vá à s e p u lt u r a d e se u filh o ,
e n c h a n o va m e n t e o p o t e c o m b a n h a d e l o n t r a e, a p ó s n o ve m e se s, vá ve r o q u e
e n c o n t r a r á n o p o t e '. O r e i fez t u d o d e a co r d o c o m a in s t r u ç ã o e, d e sd e e n t ã o ,
fi c o u alegr e e n ã o sa b ia p o r q u ê .
Passad o s os n o ve m e se s, d e s e n t e r r o u o p o t e ; o c a d á ve r h a vi a s u m i d o e, n o
p o t e , ja z i a u m m e n i n i n h o a d o r m i r , e ele r e c o n h e c e u q u e a c r ia n ç a e r a s e u filh o
fa lecid o . E l e t o m o u o m e n i n i n h o co n sigo , e a p a r t i r d esse m o m e n t o ele c r e s -
c e u n u m a s e m a n a t a n t o q u a n t o as cr ia n ça s c r e s c e m n u m an o . Passad as vi n t e
se m a n a s, o filh o ve i o n o va m e n t e p e r a n t e o p a i e e xi g i u se u r e in o . M a s o p a i
já sa b ia p o r e xp e r i ê n c i a e h á m u i t o t e m p o c o m o t u d o a c o n t e c e r ia . M a l o filh o
a ca b a r a d e e xp r e ssa r s e u d esejo , o ve l h o r e i le va n t o u - s e d e s e u t r o n o , a b r a ç o u
c o m lá gr im a s d e a le gr ia s e u filh o e ele m e s m o o c o r o o u r e i . E o filh o , fe it o r e i ,
m o s t r o u - s e gr a t o a s e u p a i e o h o n r o u s u m a m e n t e e n q u a n t o a i n d a vi ve u ".
M a s e u d isse à m i n h a co b r a : "Re a l m e n t e , m i n h a c o b r a , e u n ã o sa b ia q u e
t a m b é m és u m a c o n t a d o r a d e c o n t o s d e fad as. M a s d i z e - m e : c o m o d e vo i n t e r -
p r e t a r t e u c o n t o d e fad as?".
C : "I m a g i n a q u e és o ve l h o r e i e t e n s u m filh o ".
Eu : " Q u e m é o fi l h o ?"
C : " O r a , e u p e n s e i q u e t ivesses falad o a go r a m e s m o d e u m filh o q u e t e d á
p o u c a a le gr ia ".
Eu : "C o m o ? T u n ã o e st á s p e n s a n d o - d e vo c o r o a r a e le ?"
C : "Si m , q u e m m a is se r ia ?"
Eu : "I s t o é sin ist r o . O q u e se p a ssa c o m a b r u xa ?"
C : "A b r u x a é u m a m u l h e r m a t e r n a l d a q u a l d e ve r ia s ser filh o , p o is t u és e m
t i m e s m o u m a c r ia n ç a q u e se r e n o va ".
Eu : " A i d e m i m , s e r á im p o s s íve l t o r n a r - m e h o m e m a lg u m d ia ?"
C : "Se r h o m e m o b a st a n t e , p a r a m a is a lé m se r cr ia n ça , a p le n it u d e . P o r isso
p r e cisa s d a m ã e ".
Eu : "T e n h o ve r g o n h a d e ser c r ia n ç a ".
E u : "A i d e i a d e t e r d e p e r m a n e c e r c r ia n ç a é in s u p o r t á ve l".
E u : " A i d e i a d e t e r d e p e r m a n e c e r c r ia n ç a é h u m i l h a n t e e d e s t r u id o r a ".
C : " U m a n t í d o t o e fica z c o n t r a o p o d e r ! 3 4 5 N ã o t e i r r i t e s c o n t r a o p e r m a n e -
ce r cr ia n ça , s e n ã o t e i r r i t a s c o n t r a o f i l h o 3 4 6 , q u e é o q u e m a is d esejas".
E u : " E ve r d a d e , e u q u e r o o filh o e vi ve r p a r a m a is a lé m . M a s o p r e ç o é a lt o ".
C : "M a i s a lt o e s t á o filh o . T u és m e n o r e m a is fr a co d o q u e o filh o . E u m a
ve r d a d e a m a r ga , m a s n ã o se p o d e p o u p á - l a . N ã o fiq u e s a m u a d o , as cr ia n ça s
t ê m d e se r b e m - c o m p o r t a d a s ".
E u : "M a l d i t a z o m b a r i a !"
C : " H o m e m d a z o m b a r i a ! E u t e n h o p a c iê n c ia co n t igo ! Q u e m i n h a s fo n t e s
j o r r e m p a r a t i e t e fo r n e ç a m a b e b id a d a sa lva çã o , q u a n d o a se ca e xa u r i r t o d a a
t e r r a e t o d o s v i e r e m a t i p a r a i m p l o r a r - t e a á gu a d a vi d a . P o r t a n t o , s u b m e t e - t e
ao fi lh o ".
E u : "O n d e d e vo p e ga r a im e n s id a d e ? M e u sab er e p o d e r sã o l i m i t a d o s , m i -
n h a fo r ç a n ã o b a st a ".
En t ã o a c o b r a m o vi m e n t o u - s e , e n r o lo u - s e c o m o u m n ó e fa lo u : "N u n c a
p e r gu n t e s p e lo a m a n h ã , o h o je d e ve b a st a r - t e . N ã o p r e cisa s p r e o c u p a r - t e c o m
os m e io s . D e i x a t u d o cr escer , d e i xa t u d o b r o t a r ; o filh o cr e sce p o r si m e s m o ".
[2] O m i t o e n t o a só p a r a a vi d a , n ã o p a r a o ca n t o , ele c a n t a p a r a si m e s m o .
E u m e s u b m e t o ao filh o , ao ge r a d o m a gic a m e n t e , ao i r r e a l m e n t e n a scid o , ao
filh o d a r ã, ao filh o q u e e st á n a b e i r a d a á gu a , fa la n d o c o m seu s p a is e e s c u t a n -
d o se u c a n t o n o t u r n o . E l e é d e ve r a s m i s t e r i o s o e s u p e r i o r e m fo r ç a a t o d o s os
h o m e n s . N e n h u m h o m e m o ge r o u , n e n h u m a m u l h e r o p a r i u .
O a b su r d o p e n e t r o u n a m ã e p r i m i t i va , e e m so lo p r o fu n d o c r e s c e u o filh o .
El e d e s a b r o c h o u e fo i m o r t o . E l e r e s s u s c it o u , ge r a d o n o va m e n t e d e m o d o m á -
gico e c r e s c e u m a is a go r a d o q u e a n t e s. E u lh e d e i a c o r o a q u e u n i fi c a o s e p a r a -
d o. E a s s i m ele u n i fi c a p a r a m i m o sep ar ad o . E u lh e d e i o p o d e r , e e n t ã o p a sso u
ele a c o m a n d a r , p o is s u p e r a a t o d o s os o u t r o s e m fo r ç a e in t e ligê n c ia .
N ã o o q u e r o p o r vo n t a d e l i vr e m i n h a , m a s p o r d e d u ç ã o ló gica . N e n h u m a
p e sso a u n e o i n fe r i o r e o su p e r io r . M a s ele, q u e n ã o se t o r n o u c o m o u m se r
h u m a n o e, n o e n t a n t o , t e m a figu r a d e u m se r h u m a n o , c o n s e gu iu u n i - l o . M e u
p o d e r e s t á p a r a lisa d o , m a s e u c o n t i n u o a vi ve r e m m e u filh o . E u d e ixo d e la d o
a p r e o c u p a ç ã o , ele d e se ja go ve r n a r os p o vo s. E u e s t o u só , os p o vo s o a c l a m a m .
E u e r a p o d e r o so , a go r a s o u i m p o t e n t e . E u e r a fo r t e , a go r a e s t o u fr aco. P o is ele
r e c o l h e u e m s i t o d a a fo r ç a T u d o se i n ve r t e u .
E u a m a va a b e le z a d o s b e lo s, a in t e ligê n c ia d o s in t e lige n t e s , a fo r ç a d o s fo r -
t es; e u r i a d a t o lic e d o s t o lo s, e u d e sp r e z a va a fr a q u e z a d o s fr a co s, a a va r e z a d o s
a va r e n t o s e o d ia va a r u i n d a d e d o s m a u s. M a s a go r a t e n h o d e a m a r a b e le z a d o s
feio s, a a va r e z a d os t o lo s e a fo r t a le z a d o s fr a co s. T e n h o d e a d m i r a r a i g n o r â n -
c i a d o s in t e lige n t e s , t e n h o d e r e s p e it a r a fr a q u e z a d o s fo r t e s e a a va r e z a d o s
ge n e r o so s, t e n h o d e p r e z a r a b o n d a d e d o s m a u s. O n d e fi c a m z o m b a r i a , d e s-
p r e z o , ó d i o ? El e s se t r a n s fe r e m p a r a o filh o c o m sin a is d o p o d e r . Su a z o m b a r i a
é sa n gr e n t a , c o m o b r i l h a se u o lh o q u e d e sp r e z a ! Se u ó d i o é fogo e m ch a m a s!
In ve já ve l filh o d os d e u se s, q u e m o u s a r i a n ã o t e o b e d e ce r ?
E a s s i m e n t r e i c o m o l h a r s o m b r i o n a so lid ã o , c h e io d e r a n c o r e r e vo l t a c o n -
t r a o p o d e r d o filh o . C o m o p ô d e m e u filh o u s u r p a r m e u p o d e r ? F u i a t é m e u s
ja r d i n s e m e s e n t e i n u m lu ga r s o lit á r io so b r e as p e d r a s, à b e i r a d a á gu a e p e n s e i
co isa s n egr as. C h a m e i a co b r a , m i n h a c o m p a n h e i r a n o t u r n a , q u e e st a va d e it a d a
c o m igo so b r e as p e d r a s e m a lg u m lu sco - fu sco e m e fa la va c o m s a b e d o r ia d e
co b r a . M a s e m e r g i u e n t ã o d a á gu a m e u filh o , gr a n d e e p o d e r o so , c o m a c o r o a
n a c a b e ç a e ju b a d e le ã o , p e le l u z i d i a d e c o b r a e n vo l vi a se u c o r p o e ele fa lo u
a s s im c o m i g o 3 4 7 :
El e : "D e i x a - m e p a r t ir . Vo l t a r e i e m fo r m a r e n o va d a . Vê s o so l c o m o ele d e -
sap ar ece ve r m e l h o n a s m o n t a n h a s ? A o b r a d e st e d i a e s t á t e r m i n a d a , e n o vo so l
va i vo lt a r . P o r q u e t e la m e n t a s p e lo s o l d e h o je ?"
E u : "A n o it e d e ve c o m e ç a r ?"
El e : " E l a n ã o é a m ã e d o d ia ?"
E u : " E u d e s e ja r ia d e se sp e r a r p o r ca u sa d e ssa n o it e ".
El e : " O q u e la m e n t a s ? É o d e st in o . D e i x a - m e p a r t ir , m i n h a s asas e s t ã o c r e s -
ce n d o , e o d e se jo d a l u z e t e r n a cr e sce p o d e r o s a m e n t e e m m i m p a r a o alt o. N ã o
p o d e s p r e n d e r - m e p o r m a is t e m p o . Se gu r a t u a s lá gr im a s e d e i xa - m e s u b i r c o m
a le gr ia . T u és u m a gr icu lt o r , p e n s a e m t u a p la n t a ç ã o . Es t o u fic a n d o le ve , c o m o
u m p á s s a r o l e va n t a vo o n o c é u d a m a n h ã . N ã o m e p r e n d a s , n ã o la m e n t e s , já
e s t o u p a ir a n d o , o gr it o d e v i d a b r o t a e m m i m , n ã o p o sso r e t a r d a r p o r m a is
t e m p o m e u p r a z e r m á xi m o . D e v o i r p a r a c i m a — r e a liz o u - s e , e st á r o m p i d o o
ú l t i m o la ço , m i n h a s asas m e l e va m p a r a c i m a . E u m e r g u lh o n o m a r d a lu z . T u
q u e e st á s e m b a ixo , s e m p r e m a is d is t a n t e , m a is c r e p u s c u la r - t u d e sa p a r e ce s d e
m i n h a vi s t a ".
O n d e e st á o D e u s ?
O q u e a co n t e ce u ?
Q u e va z io , q u e va z i o a b issa l! D e v o e u c o m u n i c a r às p esso as c o m o t u d e sa -
p a r e ce st e ? D e v o p r e ga r o e va n ge lh o d a s o lid ã o a b a n d o n a d a p o r D e u s ?
D e v e r í a m o s t o d o s i r p a r a o d e se r t o e c o b r i r n o ssa c a b e ç a d e c in z a s , u m a ve z
que Deu s n os aban don ou?
Fe c h a i - vo s , m o n t a n h a s vo s s o t e r r e m , m a r e s vo s a fo g u e m 35 1.
E u ch e gu e i ao m e u s i - m e s m o 3 5 2 , u m a figu r a in s e gu r a e la st im á ve l. M e u e u !
E u n ã o d e se je i est e s u je it o p a r a m e u c o m p a n h e i r o . E u m e e n c o n t r e i c o m ele.
E p r e fe r íve l u m a m u l h e r m á o u u m cã o fe r o z , m a s o p r ó p r i o e u — fiq u e i h o r -
r o r iz a d o !
353
U m a o b r a é n e c e s s á r ia so b r e a q u a l se p o d e d e s p e r d i ç a r d e z e n a s d e a n o s,
n e c e s s a r ia m e n t e se d e ve d e s p e r d iç a r . E u t e n h o d e r e c u p e r a r u m p e d a ç o d e I d a -
d e M é d i a e m m i m . T e r m i n a m o s m a l e m a l a Id a d e M é d i a n o o u t r o . T e n h o d e
c o m e ç a r ced o, n a q u e le t e m p o e m q u e os e r e m it a s d e s a p a r e c e r a m 3 5 4 . As c e s e ,
in q u isiç ã o , t o r t u r a e s t ã o à m ã o e se i m p õ e m . O b á r b a r o p r e c is a d e m e io s b á r -
b a r o s d e e d u ca çã o . M e u e u , t u és u m b á r b a r o . Q u e r o vi ve r co n t igo , p o r isso v o u
a r r a s t á - lo a t r a vé s d e t o d o u m i n fe r n o m e d i e va l, a t é q u e sejas ca p a z d e t o r n a r
s u p o r t á ve l a v i d a co n t igo . D e ve s se r r e c ip ie n t e e m ã e ge r a d o r a d a vi d a , p o r t a n -
t o v o u p u r i fi c a r - t e .
A p e d r a - d e - t o q u e é o e st a r só co n sigo m e s m o .
Es t e é o c a m i n h o 3 5 5 , [p . 190]
q u e é m e u eu ? E u se m p r e p r e ssu p o n h o m e u e u . Ag o r a ele e st á d ia n t e d e m i m -
e u d ia n t e d o m e u e u . Fa lo a go r a co n t igo , m e u e u :
p o r e xe m p lo , e u p o d e r i a e d u c a r - t e . C o m e c e m o s c o m t e u d e fe it o p r i n c i p a l q u e
m e o c o r r e d e im e d ia t o : t u n ã o t e n s ve r d a d e i r o a p r e ç o p o r t i m e s m o . N ã o t e n s
a r t e p a r a ist o . M a s a r t e s a ge n t e t a m b é m p o d e a p r e n d e r d e a lgu m a fo r m a . P o r
m e lh o r . T u d u vid a s? I s t o n a d a a d ia n t a . D e ve s p o d ê - l o , ca so c o n t r á r i o n ã o p o -
d e r e i vi ve r co n t igo . D e s d e q u e o D e u s r e s s u s c it o u e n ã o se i e m q u e c é u d e fogo
ele se e xp a n d e p a r a fa z e r n ã o se i o q u e , d e p e n d e m o s u m d o o u t r o . P o r isso p r e -
cisas p e n s a r e m m e lh o r a r , s e n ã o n o ssa v i d a c o m u m va i t o r n a r - s e in s u p o r t á ve l.
P o r t a n t o , c o b r a â n i m o e va l o r i z a - t e ! N ã o q u e r e s?
Fi g u r a la m e n t á ve l! V o u a t o r m e n t a r - t e u m b o c a d o se n ã o t e e sfo r ça r e s. P o r
q u e t e q u e ixa s? T a l ve z t e fosse b e n é fi c a a ch ib a t a ?
Is t o p e n e t r a n a p r ó p r i a ca r n e ? M a s a i n d a u m — e m a is u m . Q u e go st o t e m ?
O u q u e r e s a m o r , o u q u e o u t r o n o m e se lh e d ê ? P o d e - s e t a m b é m e d u ca r
c o m a m o r q u a n d o su r r a s n a d a co n se gu e m . D e vo , p o is, a m a r - t e ? Ap e r t a r - t e
ca r in h o sa m en t e co n t r a m im ?
C r e i o r e a lm e n t e q u e b o ce ja s.
C o m o , t u q u e r e s fa la r ? M a s n ã o v o u p e r m i t i r q u e fales, s e n ã o va is a fi r m a r
c o m o filh o d e r ã q u e v o o u p a r a o s o b r e c é u , p a r a as fo n t e s su p e r io r e s. Se i e u o
est e ser a n t ip á t ic o , ao q u a l n e m m e s m o se p o d e n e ga r o d i r e i t o d e n ã o d a r va lo r
a si m e s m o .
1 19 de abril de 1914.
2 Todos os começos são difíceis", provérbio do Talmud.
3 Para a maior glória de Deus". Lem a dos jesuítas de então.
40 7
AP RO FU N D AM EN T O S
4o8
C o m vo c ê é p o s s íve l i r ao d e se sp e r o : t e u s m e l i n d r e s e t u a c o b iç a u lt r a p a s -
s a m q u a lq u e r m e d i d a r a z o á ve l. E co n t igo é q u e d e vo vi ve r ? D e v o s i m , d e sd e
q u e a c o n t e c e u a m a r a vi l h o s a d e s gr a ç a q u e m e d e u u m filho e o t o m o u .
La m e n t o t e r d e d i z e r - t e u m a ve r d a d e c o m o est a. Si m , t u és r i d i c u l a m e n t e
m e lin d r o s o , t e im o so , r e b e ld e , d e sco n fia d o , p e s s im is t a , co va r d e , d e sle a l co n t igo
m e s m o , ve n e n o so , vin ga t ivo ; so b r e t e u o r gu lh o i n fa n t i l , t u a a m b i ç ã o d e p o d e r ,
t e u d e se jo d e d o m i n a r , t u a a m b i ç ã o r id ícu la , sed e d e gló r ia q u a se n ã o se p o d e
fa la r s e m s e n t ir - s e m a l .
Fi c a m a l p a r a t i t o d o fin g im e n t o e p r e s u n ç ã o , m a s ab u sas d eles a p le n o va p o r .
C r ê s q u e é u m a d ive r s ã o e n ã o a n t e s u m n o jo vi ve r co n t igo ? N ã o , t r ê s ve z e s
n ã o ! M a s e u p r o m e t o e s t ic a r - t e n o t o r n iq u e t e e t i r a r - t e o c o u r o aos p o u co s. E u
t e d a r e i o p o r t u n i d a d e d e m u d a r d e p ele.
T u , e xa t a m e n t e t u , q u ise st e c o r t a r o m e s m o n a ca sa ca d e o u t r a s p essoas?
V e m cá, v o u c o s t u r a r - t e u m r e m e n d o n a p e le p a r a q u e sin t a s c o m o é b o m .
Q u e r e s q u e i xa r - t e d e q u e os o u t r o s t e fi z e r a m in ju st iça , n ã o t e e n t e n d e r a m ,
t e i n t e r p r e t a r a m m a l , t e o fe n d e r a m , t e p r e t e r i r a m , n ã o t e d e r a m o d e vid o v a -
lo r , t e a c u s a r a m i n ju s t a m e n t e e o q u e m a is? Vê s n isso t u a va id a d e , t u a va id a d e
e t e r n a m e n t e r id ícu la ?
T u t e q u e ixa s d e q u e o t o r m e n t o a i n d a n ã o t e n h a ch e ga d o ao fim ?
D i g o - t e q u e ele m a l c o m e ç o u . N ã o t e n s p a c iê n c ia n e m se r ie d a d e . Só o n d e
se t r a t a d e t u a d ive r s ã o , elogias t u a p a ciê n cia . P r o lo n g a r e i p o r isso ao d o b r o o
t o r m e n t o p a r a q u e a p r e n d a s a t e r p a c iê n c ia .
Ac h a s a d o r in s u p o r t á ve l, m a s e xi s t e m co isa s q u e d o e m m a is a i n d a e p o d e s
ca u sá - la s a o u t r o s c o m a m a i o r sin ge le z a e t e escu sas c o m o se n d o d e s c o n h e c i -
m en t o.
M a s t u a p r e n d e r á s a calar . P a r a t a n t o v o u a r r a n c a r - t e a lín gu a c o m a q u a l
z o m b a st e , b la sfe m a st e e - p i o r a i n d a - e n ga n a st e . Q u e r o e sp e cifica r t o d a s as
t u as p a la vr a s in ju s t a s e b la sfe m a s e c o s t u r á - la s a t e u c o r p o p a r a se n t ir e s c o m o
m a c h u c a m as p a la vr a s m á s .
Ad m i t e s q u e t a m b é m ach as d i ve r t i d o est e t o r m e n t o ? V o u a u m e n t a r e st a
d ive r s ã o a t é q u e vo m i t e s d e p r a z e r , p a r a q u e saib as o q u e é t e r d ive r s ã o n o
t o r m e n t o p r ó p r io .
T u t e r e vo lt a s c o n t r a m i m ? V o u a p e r t a r m a is o t o r n iq u e t e . V o u e sm iga lh a r
os t eu s ossos a t é q u e n ã o so b r e r e s is t ê n c ia n e le s.
P o is e u v o u m e vi r a r c o n t igo — s i m , e u p r e c iso — c u id a - t e , d ia b o — t u és
m e u e u c o m o q u a l t e n h o d e m e a r r a s t a r a t é a s e p u lt u r a . Pe n sa s q u e e u q u e r o
AP RO FU N D AM EN T O S 409
6
T u t e sen t es h o je q u e b r a d o , r e b a ixa d o , in fe r io r ? Q u e r e s q u e t e d iga p o r q u ê ?
T u a a m b i ç ã o n ã o t e m li m i t e s . T u a s r a z õ e s n ã o sã o o b je t iva s, m a s p a r a sa -
t isfa z e r t u a r e p u t a ç ã o . N ã o t r a b a lh a s e m p r o l d a h u m a n i d a d e , m a s p a r a t e u
M a s t u és d e sca r a d o e m t u d o q u a n d o n i n g u é m t e vê . Se a lgu m o u t r o t e d i s -
sesse ist o , fica r ia s m o r t a l m e n t e o fe n d id o , m e s m o sa b e n d o q u e é ve r d a d e . Q u e -
r es c e n s u r a r os e r r o s d o s o u t r o s? P a r a q u e m e l h o r e m ? M a s co n fe ssa , t u m e l h o -
r ast e? D o n d e t ir a s o d i r e i t o d e ju lga r os o u t r o s? O n d e e st á t e u a u t o ju lga m e n t o ?
E o n d e e s t ã o os b o n s fu n d a m e n t o s q u e s u s t e n t a m ist o ? Te u s fu n d a m e n t o s sã o
t eias m e n t ir o s a s q u e e n c o b r e m u m c a n t o su jo . Ju lga s os o u t r o s e lh e s m o s t r a s
o q u e d e ve r i a m fazer . Is t o o fazes p o r q u e n ã o t e n s n e n h u m a o r d e m co n t igo
m e s m o , m a s p o r q u e n ã o és l i m p o .
E e n t ã o - c o m o p e n sa s n a ve r d a d e ? P a r e c e - m e q u e p e n sa s a t é m e s m o e m
p esso as, s e m c o n s id e r a r su a d ign id a d e h u m a n a ; ou sas p e n s a r n e la s e u t iliz á - la s
c o m o p e ç a s e m t e u t a b u le ir o , c o m o se fo sse m a q u ilo q u e p e n sa s q u e são ? Já
t e p a sso u u m a ve z p e la c a b e ç a q u e c o m isso p r a t ica s u m a t o i g n o m i n i o s o d e
AP RO FU N D AM EN T O S 411
vio lê n c ia , t ã o p e r ve r s o q u a n t o a q u e le q u e c o n d e n a s n o s o u t r o s , o u seja, d e q u e
a m a m os s e m e lh a n t e s c o m o d i z e m , m a s q u e n a r e a lid a d e os e xp l o r a m e m se u
p r o ve it o ? T e u p e ca d o cr e sce n o e sco n d id o , m a s n ã o é m e n o r n e m m e n o s c r u e l
e co r r iq u eir o .
M a s v o u t r a z e r à l u z o t e u o cu lt o , d e sa ve r go n h a d o ! V o u e s p e z in h a r t u a s u -
p e r io r id a d e .
N ã o m e fales d e t e u am o r . O q u e ch a m a s d e a m o r e st á e n ch a r ca d o d e e go ís -
m o e c o b iç a . P o r é m falas d ele c o m p a la vr a s a lt isso n a n t e s, m a s q u a n t o m a is e n -
fá t ica s as p a la vr a s, m a is l a m e n t á ve l é o t e u c h a m a d o a m o r . N ã o m e fales n u n c a
d e t e u a m o r . M a n t é m t u a b o c a fe ch a d a . E l a m e n t e .
Q u e r o q u e fales d e t u a ve r g o n h a e q u e , ao in vé s d e p a la vr a s a lt isso n a n t e s,
p r o vo q u e s u m r u í d o d is s o n a n t e d ia n t e d a q u e le s c u ja c o n s i d e r a ç ã o q u ise st e
c o n q u is t a r à fo r ça . T u m e r e ce s d e sp r e z o , n ã o c o n s id e r a ç ã o .
Q u e r o e xt i n g u i r d e t i t e u c o n t e ú d o d o q u a l t e o r gu lh a va s, p a r a q u e fiq u e s
va z i o c o m o u m va so d e r r a m a d o . N ã o d e ve s m a is t e r o r gu lh o d e n a d a a n ã o
ser d e t e u va z i o e m is e r a b ilid a d e . D e vi a s se r va so d a vi d a , p o r t a n t o i m o l a t eu s
íd o lo s.
A t i n ã o p e r t e n c e a lib e r d a d e , m a s a fo r m a lid a d e , n ã o a fo r ça , m a s o s u p o r -
t a r e r eceb er .
D e ve s fa z e r d o m e n o s p r e z o d e t i m e s m o u m a vi r t u d e q u e e u e s t e n d e r e i
d ia n t e d as p esso as c o m o u m t a p e t e . El a s p is a r ã o n e le c o m p é s su jo s e ve r á s q u e
és m a is su jo d o q u e t o d o s os p é s q u e p i s a m so b r e t i .
7
Q u a n d o e u t e d o m a r , b e st a , d a r e i o p o r t u n i d a d e a o u t r o s p a r a t a m b é m eles
d o m a r e m su as b est as. O d o m a r c o m e ç a e m t i , m e u e u , e m n e n h u m o u t r o lu gar .
N ã o q u e t u , i r m ã o e s t ú p i d o e u , t ive sse s sid o e s p e c ia lm e n t e se lva ge m . H á q u e m
se ja m a is selvagem . M a s e u p r e ciso a ç o it a r - t e a t é q u e su p o r t e s a selvager ia d os
o u t r o s. En t ã o p osso vi ve r con t igo. Q u a n d o a lgu é m t e faz in ju st iça , v o u ju d i a r - t e
a t é o san gu e, a t é q u e t e n h a s p e r d o a d o a in ju s t iç a so fr id a , e n ã o só c o m os lá b io s,
m a s t a m b é m e m t e u c o r a ç ã o m a u c o m su a i r r i t a b i l i d a d e p e r ve r sa . T u a i r r i t a b i -
lid a d e é t u a fo r m a e sp e cífica d e vio lê n c ia .
7 21 de abril de 1914.
412 AP RO FU N D AM EN T O S
s u p o r t a r q u e c h a m e m t u a l i m p e z a d e s u je i r a e q u e a m b i c i o n e m t u a i m u n d í -
cie , q u e c o n s i d e r e m ge n e r o sid a d e t e u e s b a n ja m e n t o e l o u ve m t u a c o b i ç a c o m o
vi r t u d e .
E n c h e t u a t a ç a c o m a b e b i d a a m a r g a d a i n fe r i o r i d a d e , p o is n ã o é s t u a
a lm a . T u a a l m a e s t á j u n t o ao D e u s e m c h a m a s e s u b i u q u e i m a n d o a t é a a b ó -
b ad a d o céu .
As s i m m e s m o co n t in u a r á s ir ascível? Pe r ce b o q u e a r q u it e t a s p la n o s secr et os
d o d e st in o . Se r á c o m o a ç o it a r i n fa n t i l m e n t e o m a r . C o n s t r ó i a n t e s m e lh o r e s
p o n t e s, n isso p o d e s o c u p a r t u a m e n t e .
Go s t a r i a s d e se r c o m p r e e n d i d o ? E r a só o q u e fa lt a va ! C o m p r e e n d e a t i m e s -
m o , e n t ã o e st á s s u fic ie n t e m e n t e c o m p r e e n d id o . C o m isso t e r á s b a st a n t e t r a -
b a lh o . Fi l h o s p e q u e n o s q u e r e m se r c o m p r e e n d id o s . C o m p r e e n d e a t i m e s m o ;
e st a é a m e l h o r p r o t e ç ã o c o n t r a a i r r i t a b i l i d a d e e e la sa cia r á t e u d e se jo i n fa n t i l
d e se r c o m p r e e n d id o . Q u e r e s n o va m e n t e t r a n s fo r m a r o u t r a s p esso as e m e s-
cr a vo s d e t u a c o b iç a ? M a s sab es q u e e u d e vo vi ve r c o n t igo e q u e n ã o v o u m a is
t o le r a r e m t i s e m e lh a n t e e st a d o d e p l o r á ve l 8 .
{2} D e p o i s q u e fa le i p a r a m e u e u essas e m u i t a s o u t r a s p a la vr a s z a n ga d a s,
p e r c e b i q u e c o m e c e i a s u p o r t a r o e st a r s o z i n h o c o m igo m e s m o . M a s m u i t a s
ve z e s a i n d a in s u r g iu - s e e m m i m a ir a s c ib ilid a d e e t o d a s as ve z e s t ive d e m e
t a m b é m a a le gr ia n e s t a a u t o t o r t u r a 9 .
8 Jung descreveu a autocrítica apresentada nesta seção de abertura como confrontação com a sombra. Em
1934, escreveu: "aquele que olha o espelho da água vê em primeiro lugar sua própria imagem. Q uem
caminha em direção a si mesmo corre o risco do encontro consigo mesmo. O espelho não lisonjeia,
mostrando fielmente o que quer que nele se olhe: ou seja, aquela face que nunca mostramos ao mundo,
porque a encobrimos com a persona, a máscara do ator. Mas o espelho está por detrás da máscara e mostra
a face verdadeira. Esta é a primeira prova de coragem no caminho interior, uma prova que basta para
afugentar a maioria, pois o encontro consigo mesmo pertence às coisas desagradáveis que evitamos
enquanto pudermos projetar o negativo à nossa volta. Se formos capazes de ver nossa própria sombra,
suportá-la, sabendo que ela existe, já teríamos resolvido uma pequena parte do problema. Teríamos, pelo
menos trazido à tona o inconsciente pessoal" ("Sobre os arquétipos do inconsciente coletivo". O C , 9 , §
4 3- 4 4 ) -
9 Este parágrafo não ocorre no Livro Negros. Em 30 de abril de 1914, Jung renunciou à cátedra na Faculdade
de Medicina da Universidade de Zurique.
AP RO FU N D AM EN T O S
4U
IO
E s c u t e i e n t ã o n a n o it e u m a vo z q u e v i n h a d e lo n ge , a vo z d e m i n h a a lm a .
E l a fa lo u : " C o m o e st á s lo n ge !"
E u : "É s t u , m i n h a a lm a ? D e q u e a l t u r a e d e q u e d is t â n c ia e st á s fa la n d o ?"
A : " E u e s t o u so b r e t i . M i n h a d is t â n c ia é u m a d is t â n c ia d e m u n d o . F i q u e i
c o m a p r o p r ie d a d e d o so l. Re c e b i a s e m e n t e d o fogo. O n d e est á s? M a l p o sso
d i vi s a r - t e e m t u a n e b l i n a ".
E u : "E s t o u a q u i e m b a ixo , so b r e a t e r r a t e n e b r o sa , e m fu m a c e i r a e scu r a , q u e
n o s d e i xo u o so l, e m e u o lh a r n ã o t e a lca n ça . M a s t u a vo z m e so a m a is p r ó xi m a ".
A : " E u o p e r ce b o . A gr a vid a d e d a t e r r a m e i m p r e g n a , u m a fr e s c u r a ú m i d a
m e e n vo lve , s o u a c o m e t id o p e la l e m b r a n ç a c i n z e n t a d e p a d e c im e n t o s a n t igo s".
E u : " N ã o d e sça s p a r a a fu m a c e i r a e p a r a a e s c u r id ã o d a t e r r a . Go s t a r i a q u e
a lgu m a c o is a d a q u ilo e m q u e a i n d a t o co co n se r va sse a p r o p r ie d a d e d o so l. Ca s o
c o n t r á r i o p e r c o a c o r a ge m d e c o n t i n u a r vi ve n d o cá e m b a i xo n a e s c u r id ã o d a
t e r r a . D e i x a q u e ao m e n o s e scu t e t u a vo z . N u n c a m a is v o u d e se ja r ve r - t e e m
c a r n e . D e i x a - m e u m a p a la vr a ! T i r a - a d a p r o fu n d e z a , d e o n d e t a lve z m e ve n h a
ao e n c o n t r o o m e d o ".
A : "I s t o e u n ã o p o sso , p o is d e lá j o r r a a fo n t e d e t u a p r o d u ç ã o ".
E u : " T u vê s m i n h a in s e gu r a n ç a ".
A : " O c a m i n h o in se gu r o é o c a m i n h o b o m . N e l e e s t ã o as p o ssib ilid a d e s. Sê
fi r m e e p r o d u z e ".
E u e s c u t e i o b a t e r d e asas. E u sa b ia q u e o p á s s a r o e st a va s u b in d o m a is alt o,
p a r a a lé m d as n u ve n s , n o b r i l h o d e fogo d a d i vi n d a d e e xp a n d id a .
n
Vo l t e i - m e p a r a m e u ir m ã o , o e u ; e st a va p a r a d o , m u i t o t r is t e e o lh a va p a r a
o ch ã o , s o lu ç a va e t e r i a p r e fe r id o e st a r m o r t o , p o is o p e so d e t r i s t e z a i m e n s a o
afligia. M a s s a iu d e m i m u m a vo z e d isse as p a la vr a s: "É d u r o — as ví t i m a s c a e m
à d i r e i t a e à e s q u e r d a — e t u e st á s c r u c ific a d o p o r a m o r à vi d a ".
E l e s u s p i r o u fu n d o e l a m e n t o u : " E l a é a m a r ga , e m e s o b r e vê m gr a n d e so -
fr i m e n t o ".
A o q u e r e sp o n d i: " E u se i, m a s n ã o d á p a r a m u d a r ". E u , p o r é m , n ã o sa b ia o
q u e, p o is a i n d a ign o r a va o q u e o fu t u r o r e se r va va ( ist o a co n t e ce u a 21 d e m a i o
10 8 de maio de 1914. H á uma lacuna nos registros do Livro Negro 5, entre 21 de abril e 8 de maio, assim as
discussões mencionadas no parágrafo anterior parece que não foram registradas.
11 21 de maio de 1914.
414 AP RO FU N D AM EN T O S
12 Mt 8,21-22: "E outro de seus discípulos lhe disse: 'Senhor, deixa-me ir primeiro enterrar meu pai'. Jesus,
porém, lhe respondeu: 'Segue-me e deixa que os mortos enterrem seus mortos'".
AP RO FU N D AM EN T O S
4U
13
"P o r q u e fiz e st e isso ?"
P o is m i n h a i r r i t a b i l i d a d e h u m a n a n ã o c o m p r e e n d e u a a t r o c id a d e d a q u e la
h or a. E l a r esp on d eu :
" N ã o t e n h o a o b r i g a ç ã o d e e st a r e m vo sso m u n d o . E u m e su jo n a l a m a d e
vo ssa t e r r a ".
E u : " E e u n ã o s o u t e r r a ? N ã o s o u la m a ? C o m e t i u m e r r o q u e t e o b r i g o u a
se gu ir o D e u s p a r a os p á r a m o s s u p e r io r e s ?"
A : "N ã o ! F o i n e ce ssid a d e in t e r io r . E u p e r t e n ç o ao a lt o ".
E u : "N i n g u é m s e n t i u n esse t e u d e s a p a r e c im e n t o u m a p e r d a ir r e p a r á ve l?"
A : "Ao c o n t r á r io . T u ga n h a st e m u i t o c o m isso ".
E u : "Se e u c o n s i d e r a r m e u s e n t i m e n t o h u m a n o a r e s p e it o d isso , p o d e r i a m
s u r g i r - m e d ú vid a s ".
A : " O q u e p e r ce b e st e ? P o r q u e d e ve ser s e m p r e falso a q u ilo q u e vê s? Es t a é
t u a in ju s t iç a e sp e cífica , q u e n ã o p o d e s d e i xa r d e t e fa z e r s e m p r e d e t o lo . N ã o
p o d e s ao m e n o s u m a ve z p e r m a n e c e r e m t e u c a m i n h o ?"
C o m o e u n ã o p u d e sse ve r a q u e t u d o isso se r e fe r ia , so b r e o q u e a a l m a fa la -
v a e d e q u e m i n h a a l m a s o fr ia ( p o is ist o a c o n t e c e u d o is m e se s a n t e s d a e c lo s ã o
d a g u e r r a ) , q u e r i a e n t e n d e r t u d o c o m o a c o n t e c i m e n t o p e sso a l m e u , n ã o c o n -
se gu in d o p o r isso c o m p r e e n d e r t u d o n e m a c r e d it a r e m t u d o . P o is m i n h a fé é
fr a ca . E e u a ch o q u e é m e l h o r q u e e m n o sso t e m p o a fé se ja fr a ca . N ó s so m o s
fr u t o s d a q u e la in fâ n c ia e m q u e a fé p u r a e s im p le s e r a o m e i o m a is i n d i c a d o
d e le va r a p e sso a ao b e m e ao r a z o á ve l. P o r t a n t o , se q u i s é s s e m o s t a m b é m h o je
t e r n o va m e n t e u m a fé fo r t e , vo l t a r í a m o s a s s im p a r a a q u e la in fâ n cia p r i m i t i -
va . M a s n ó s t e m o s t a n t a c iê n c ia e t a n t o í m p e t o d e c o n h e c i m e n t o e m n ó s q u e
p r e c is a m o s m a is d o c o n h e c i m e n t o d o q u e d a fé. M a s a fi r m e z a d a fé h a ve r i a
d e p e r t u r b a r n o sso c o n h e c i m e n t o . A fé p o d e se r algo fo r t e , m a s é algo va z i o e
m u i t o p o u c o c o n vi vi d o p e lo ser h u m a n o t o d o , se n o ssa v i d a c o m D e u s se f u n -
13 23 de maio de 1914.
AP RO FU N D AM EN T O S
4i6
d a m e n t a e xc lu s i va m e n t e n a fé. P o d e m o s n ó s d e fat o c r e r p u r a e s im p le s m e n t e ?
P a r e c e - m e m u i t o p o u co . Pessoas q u e t ê m in t e ligê n c ia n ã o p o d e m c r e r p u r a e
s im p le s m e n t e , m a s d e ve m b u s c a r o c o n h e c i m e n t o c o m t o d a s as su as fo r ça s. A
fé n ã o é t u d o , n e m o c o n h e c i m e n t o . A fé n ã o n o s d á a c e r t e z a e a r i q u e z a d o
c o n h e c im e n t o . A vo n t a d e d e c o n h e c e r às ve z e s n o s afast a d e m a is d a fé. A s d u a s
co isas t ê m d e ch e ga r ao e q u ilíb r io .
M a s é t a m b é m p e r igo so c r e r d e m a is , p o r q u e h o je c a d a q u a l t e m d e p r o c u r a r
se u p r ó p r i o c a m i n h o e n e le t r o p e ç a r n u m a lé m c h e io d e co isa s fo r t e s e e s t r a -
n h a s. C o m fé e m d e m a s ia , e u p o d e r i a fa c ilm e n t e t o m a r t u d o l i t e r a l m e n t e e n ã o
s e r ia n a d a m a is q u e u m lo u co . A i n fa n t i li d a d e d a fé fa lh a c o m r e la çã o às n ossas
n e ce ssid a d e s a t u a is. P r e c is a m o s d o c o n h e c i m e n t o d i s c e r n i d o r p a r a e scla r e ce r
a c o n fu s ã o q u e o d e s c o b r i m e n t o d a a l m a ve i o t r a z e r . P o r isso t a lve z se ja p r e fe -
r íve l a gu a r d a r m e lh o r e s c o n h e c i m e n t o s a n t e s d e a ce it a r t u d o c o m m u i t a fé 14 .
A p a r t i r d e ssa r e fle xã o , d isse e u à a lm a : "D e ve - s e a c e it a r t u d o ist o ? Sab es
e m q u e s e n t id o o p e r gu n t o . N ã o é m a n e i r a e s t ú p id a o u in c r é d u la p e r g u n t a r
isso, m a s é u m a d ú vi d a d e ca t e go r ia m a is e le va d a ".
Re s p o n d e u ela: " E u t e e n t e n d o — m a s d e ve ser a ce it o ".
E e u : "As s u s t a - m e o i s o l a m e n t o d e ssa a ce it a çã o . T e n h o h o r r o r d a l o u c u r a
q u e a co m e t e o s o lit á r io ".
E l a r e s p o n d e u : "C o m o b e m sab es, e u já t e p r e d isse h á m u i t o a so lid ã o . N ã o
p r e cisa s t e m e r a lo u c u r a . O q u e e u t e p r e d igo t e m va lid a d e ".
Essa s p a la vr a s m e e n c h e r a m d e i n t r a n q u i l i d a d e , p o is s e n t i q u e n ã o p o d e r i a
a ce it a r o q u e m i n h a a l m a p r e d isse , p o r q u e e u n ã o o e n t e n d i , E u q u e r i a e n t e n -
d ê - l o s e m p r e e m r e la ç ã o a m i m m e s m o . P o r isso fa le i à a lm a :
" Q u e m e d o i n c o m p r e e n s í ve l m e a t o r m e n t a ?"
" E t u a d e s c r e n ç a , t u a d ú vid a . N ã o q u e r e s a c r e d it a r n a m a g n it u d e d o s s a -
cr ifício s q u e sã o e xigid o s. M a s ist o va i a t é o san gu e. Gr a n d e s co isa s e xi g e m
gr a n d e s co isas. T u q u e r e s s e m p r e a i n d a se r p e q u e n o d e m a is . N ã o t e fa le i d e
d e sa m p a r o ? Q u e r e s t e r vi d a m e l h o r q u e os o u t r o s ?"
14 Esses dois últimos parágrafos não ocorrem no Livro Negro 5. Em Transformações e símbolos da libido (19 12), Jung
escreveu: "Eu acho que a fé deveria ser substituída pelo entendimento" ( O C , B, § 356). Em 5 de outubro
de 1845 Jung escreveu a Vict or Wh ite: "Eu comecei minha carreira repudiando tudo o que cheirasse a
fé" ( LAM M ERS, A.C. & C U N N I N G H A M , A. (orgs.). TheJung-W hiteLetters. Londres: Philem on Series/
Routledge, 20 0 7, p. 6 ) .
AP RO FU N D AM EN T O S 417
15 24 de maio de 1914. As linhas iniciais deste parágrafo não ocorrem no Livro Negro 4.
16 O Livro Negro 4, continua: "E como um velho santo, um dos primeiros cristãos que viveram no deserto"
(P 77).
17 No esboço manuscrito de "Aprofundamentos", há aqui uma nota a mão: 27/ 11/ 17, que parece referir-se à
data em que esta parte do manuscrito foi composta.
18 O Livro Negro 5, continua: [Eu ]: "Eu sou escolástico?" [Alm a]: "Isto não, mas científico, a ciência é uma nova
versão da escolástica. Isto deve ser superado"./ [Eu ]: "Ainda não basta? Com isso não contrario demais o
espírito da época, se eu me declarar livre de toda ciência?/ [Alm a]: "Tu não deves separar-te totalmente,
mas imagina que a ciência seja apenas tua linguagem"./ [Eu ]: "Em que profundeza pedes que eu entre?"/
[Alm a]: "Sempre acima de t i e para além do presente"./ [Eu]: "Eu quero, mas o que vai acontecer? Muitas
vezes tenho a impressão de que não posso mais"./ [Alm a]: "Tu deves recuperar o tempo perdido. Abre
espaço. Muitas pessoas consomem o teu tempo"./ [Eu]: "Vem também este sacrifício? Tu deves, t u deves"
(p. 7 9 - 8 o ) .
AP RO FU N D AM EN T O S
4i8
E u n ã o s a b i a a q u a l o b r a . P o i s t u d o e r a e s c u r o . T u d o fi c o u d ifíc il e d u v i -
d o so , u m a t r i s t e z a i n f i n d a se a p o d e r o u d e m i m e p e r m a n e c e u m u i t o s d ia s
s o b r e m i m . E n t ã o o u v i , c e r t a n o i t e , a v o z d o ve l h o . E l e fa la va d e va g a r e
p o n d e r a d a m e n t e , as fr a se s q u e d i z i a m e p a r e c e r a m d e s c o n e xa s e t r e m e n -
d a m e n t e a b s u r d a s , d e m o d o q u e fu i t o m a d o n o v a m e n t e p e l o m e d o d a l o u -
c u r a 19 . D i s s e l i t e r a l m e n t e as s e g u in t e s p a la vr a s :
20
" A i n d a n ã o é n o i t e t o d o s o s d ia s . O p i o r v e m p o r ú l t i m o .
A m ã o qu e bat e p o r p r im e ir o bat e m elh o r .
A t o l i c e b r o t a d o s p o ç o s m a i s p r o fu n d o s e a b u n d a n t e m e n t e c o m o o
Nilo.
A m a n h ã é m a is b e la q u e o an o it ecer .
A flor e xa l a p e r fu m e a t é q u e fe n e ç a .
A g e a d a v e m o m a i s t a r d e p o s s í ve l n a p r i m a v e r a , c a so c o n t r á r i o n ã o e n -
c o n t r a s e u d e s t i n o ".
Es s a s fr a se s q u e o v e l h o d is s e p a r a m i m n a n o i t e d e 25 d e m a i o d e 1914
p a r e c e r a m - m e d e u m a i n c o n g r u ê n c i a t e r r í ve l . Se n t i q u e m e u e u se t r a n s -
f o r m o u e m d o r e s . E l e g e m e u e se q u e i x o u d o p e s o d o s m o r t o s q u e c a ía
s o b r e e le . E r a c o m o se t ive s s e q u e a r r a s t a r m i l h a r e s d e m o r t o s .
E s t a t r i s t e z a n ã o t e r m i n o u a t é 24 d e j u n h o d e 19 14 21. D u r a n t e a n o i t e ,
m i n h a a l m a m e d isse : " O m a i o r t o r n a - s e o m e n o r ". D e p o i s d isso , n a d a m a i s
fo i d i t o . E e n t ã o e s t o u r o u a g u e r r a . A b r i r a m - s e e n t ã o m e u s o l h o s s o b r e
m u i t a co isa q u e e u h a via vivid o an t es, e ist o m e d e u t a m b é m a co r a ge m d e
d i z e r t u d o o q u e e s c r e vi n a s p a r t e s a n t e r i o r e s d e s t e l i vr o .
| 3| A p a r t i r d a í , c a l a r a m - s e as v o z e s d a p r o f u n d e z a d u r a n t e t o d o u m
an o. M a s n o va m e n t e n o ve r ã o , q u a n d o a n d a va s o z in h o d e b a r co p e la s
águ as, v i u m a á gu ia - p e sq u e ir a m e r gu lh a n d o d ia n t e d e m i m ; ela t ir o u d a
á g u a u m p e i x e m u i t o g r a n d e e s u m i u c o m e le n a s a l t u r a s 2 2 . O u v i a v o z
d e m i n h a a l m a q u e d iz ia : "I s t o é u m s in a l d e q u e o i n fe r i o r se r á t r a z i d o
p a r a c i m a ".
Lo g o d e p o i s , n u m a n o i t e d e o u t o n o , o u v i a v o z d o v e l h o ( e d e s s a v e z
23 24
p ercebi que er a O I A H M Q N . E l e d is s e : " V o u v i r a r - t e c o m fo r ç a . V o u
d o m i n a r - t e . V o u c u n h a r - t e c o m o u m a m o e d a . V o u c o m e r c i a l i z a r co n t igo .
Que t e c o m p r e m e t e ve n d a m 2 5. D e ve s p assar d e m ã o e m m ã o . N ã o t er ás
v o n t a d e p r ó p r i a . Se r á s v o n t a d e d e t o d o m u n d o . O o u r o n ã o é s e n h o r p o r
vo n t a d e p r ó p r i a e a s s im m e s m o o d o m i n a d o r d a t o t a lid a d e , d e sp r e z a d o e
á vi d o , e xi g e u m s o b e r a n o d o t i p o i m p l a c á v e l : e s t á d e i t a d o e e s p e r a . Q u e m
o fu s c a n t e , b a s t a n d o a si m e sm o , u m r e i qu e n ã o p r e cisa d e m o n st r a r seu
p o d e r . T o d o s p r o c u r a m is s o , p o u c o s o e n c o n t r a m , m a s t a m b é m o m e n o r
p e d a ç o é a lt a m e n t e va lo r iz a d o . Is t o n ã o p assa, n ã o é d e s p e r d i ç a d o . C a d a
p a r t e d e le . C a d a q u a l n e ga q u e d e p e n d e d isso , m a s a s s i m m e s m o est en d e
su a m ã o se cr e t a e d e se jo sa m e n t e p a r a e le . O o u r o p r e c i s a d e m o n s t r a r s u a
n ecessid a d e? E l a é d e m o n s t r a d a p e la c o b iç a h u m a n a . E l e p e r gu n t a : q u e m
m e t o m a ? Q u e m o t o m a , est e o t e m . O o u r o n ã o se m e x e . E l e d o r m e e
b r i l h a . Se u b r i l h o p e r t u r b a o s s e n t i d o s . S e m p a l a vr a s , p r o m e t e t u d o o q u e
serviço m ilitar em O lt en por 6 4 dias. En tre 10 e 12 de março trabalhou no transporte dos inválidos (Jun gs
m ilitar service books, AF J) .
23 Esta frase não está no Livro Negro 6.
24 14 de setembro de 1915. No verão e outono de 1915, Jung tratou de sua correspondência com Han s
Schmidt sobre a questão dos tipos psicológicos. Sua última carta a Schmidt, de 6 de novembro, indica uma
mudança que pode ser entendida como um sinal da volta à elaboração de suas fantasias nos Livros Negros.
"O entendimento é um poder terrivelmente prendedor, como que um verdadeiro assassinato da alma,
tão logo elimine diferenças importantes. O cerne do indivíduo é um mistério da vida, que desaparece
quando é entendido'. Por isso, também, é que os símbolos querem conservar seu mistério, não o são assim só porque
aquilo que está em seu fundamento não pode ser entendido claramente... Todo entendimento, que é uma
associação com pontos de vista em geral, tem o elemento diabólico dentro de si e mata... Por isso temos
de ajudar as pessoas num estágio posterior da análise a chegarem àqueles símbolos ocultos e que não
devem ser desvendados, dentro dos quais está guardado o cerne de sua vida, como a tenra semente dentro
da casca dura. Sobre isso não deveria haver, na verdade, entendimento algum, ainda que, de certa forma,
algum fosse possível. Se o entendimento disso for possível em geral e evidente, então o símbolo está
maduro para a destruição, pois não protege mais o cerne que está, por assim dizer, pronto a crescer para
além da casca. Compreendo agora um sonho que tive certa vez e que me deixou muito impressionado: eu
estava no meu jardim e havia cavado uma rica fonte de água e que jorrava com abundância. Tive de cavar
então uma canaleta e um buraco bem fundo para nele armazenar a água e conduzi-la novamente para
o interior da terra. Por isso nos é dada a graça dos símbolos não desvendáveis e indizíveis, pois ela nos
protege contra a possibilidade de o demónio engolir a semente da vida" ( BEEBE, J. & F ALZ E D E R , E.
(orgs.). TheJung-SchmídLetters [Philem on Series - no prelo).
25 O Livro Negro 5, continua: "Herm es é teu dáím on (p. 8 7) .
42 o AP RO FU N D AM EN T O S
p a r e c e d e s e já ve l a o s e r h u m a n o . E l e i n c e n t i v a o d e s t r u i d o r a d e s t r u i r , a o
q u e sob e a ju d a n a s u b i d a 26 .
U m t esou ro r e lu z e n t e é am o n t o ad o , só esp er a q u e m o t o m e. Q u e sa cr i-
fíc io o h o m e m n ã o fa z p o r a m o r a o o u r o ? E l e n ã o a g u a r d a n e m a b r e v i a o
s a c r i fí c i o d o h o m e m — q u a n t o m a i s d e m o r a d o o e s fo r ç o , m a i s va l o r i z a d o .
E l e n a s c e d a s e n t r a n h a s d a t e r r a , d a l a v a fu n d i d a . E e x t r a í d o d e va ga r , o c u l t o
e m ve i o s , e m m e i o a p e d r a s . O h o m e m e m p r e g a t o d a a s u a p e r s p i c á c i a p a r a
d e s e n t e r r á - l o e t e r d e le c a d a v e z m a i s ".
M a s e u g r i t e i , p a s m o : " Q u e c o n v e r s a m a i s d e s c o n e xa , ó O I A H M Q N ! "
27
M a s O I A H M Q N con t in u ou :
" N ã o s ó e n sin a r , m a s t a m b é m n egar , p o is p o r q u e e n s i n e i eu ? Se e u n ã o
e n sin a r , t a m b é m n ã o p r e c iso n egar. M a s se t i ve r e n sin a d o , p r e c iso d e p o is n e -
gar. P o is q u a n d o e n s in o , d o u ao o u t r o o q u e ele d e vi a t o m a r . B o m é o q u e ele
c o n q u is t a , m a u , p o r é m , é o q u e r e ce b e d e p r e se n t e , o q u e n ã o fo i co n q u ist a d o .
D i s s i p a r a si m e s m o sign ifica : q u e r e r o p r i m i r a m u i t o s . Q u e m p r e s e n t e i a t e m
se gu n d a s in t e n ç õ e s , p o r q u e t a m b é m se u p r o p ó s i t o é p e r ve r so . E l e é o b r iga d o a
a n u la r seu s p r e se n t e s e a n e ga r s u a vi r t u d e .
" A m e l h o r ve r d a d e t a m b é m é u m e m b u s t e t ã o h a b ilid o so q u e e u m e s m o
m e e n r e d o n e l a e n q u a n t o n ã o p e r c e b e r o v a l o r d e u m a r d i l b e m - s u c e d i d o ".
N o v a m e n t e fi q u e i a s s u s t a d o e g r i t e i : " O F i l ê m o n , as p e s s o a s se e n g a n a m
a t e u r e s p e i t o , p o r is s o t u as e n ga n a s . M a s q u e m t e a d i v i n h a , a d i v i n h a a s i
m e s m o ".
28
M a s O I A H M Q N fi c o u q u i e t o e se r e t i r o u p a r a a n é v o a t r e m e l u z e n t e
d a in co n sciên cia. El e m e a b a n d o n o u a m e u s p r ó p r io s p en sam en t o s. E e u
p e n s e i q u e h a v i a n e c e s s i d a d e d e l e v a n t a r a lt a s p a r e d e s d e s e p a r a ç ã o e n t r e
o s se r e s h u m a n o s , m e n o s p a r a p r o t e g ê - l o s d a s o fe n s a s m ú t u a s d o q u e d a s
vir t u d e s m ú t u a s. P a r e c e u - m e q u e a c h a m a d a m o r a l cr ist ã d o n o sso t e m p o
fa vo r e c i a a i n d a o d e s l u m b r a m e n t o m ú t u o . C o m o p o d e c a d a q u a l c a r r e g a r o
26 Jung discutiu o simbolismo alquímico do ouro em suas obras sobre a psicologia da alquimia. Cf. Mysterium
coníunctionis. OC, 14/ 2, § 5s.
27 15 de setembro de 1915.
28 17 de setembro de 1915.
AP RO FU N D AM EN T O S 421
fa r d o d o o u t r o q u a n d o o m á x i m o q u e se p o d e e s p e r a r d e u m a p e s s o a é q u e
e la m e s m a c a r r e g u e n o m í n i m o s e u p r ó p r i o fa r d o .
M a s n o d e s l u m b r a m e n t o e s t á s e m d ú v i d a o p e c a d o . Se e u a s s u m i r a v i r -
t u d e a b n e ga d a , t o r n o - m e o t i r a n o e g o í s t a d o o u t r o p e l o q u a l s o u fo r ç a d o
a s u b m e t e r - m e u m a o u t r a v e z a m i m m e s m o , p a r a fa z e r d e u m o u t r o o s e -
n h or , o q u e se m p r e m e d e ixa u m a im p r e ssã o r u i m e q u e n ã o t r az n e n h u m
b e n e fí c i o p a r a o o u t r o . At r a v é s d e s s e jo g o d e t r o c a - t r o c a , a s o c i e d a d e v a i se
m a n t e n d o , m a s a a l m a d o in d ivíd u o é p r e ju d ica d a , p o is a p e sso a a p r e n d e
a ssim a vi ve r s e m p r e d o o u t r o , e m ve z d e vi ve r d e si m e s m a . P a r e c e - m e ,
q u a n d o p o s s í ve l , q u e n ó s n ã o d e v e r í a m o s e n t r e g a r - n o s , m a s i n c e n t i v a r e
m e s m o fo r ç a r o o u t r o a fa z e r o m e s m o . M a s o q u e a c o n t e c e se t o d o s se
e n t r e g a m ? Se r i a u m a l o u c u r a !
N ã o é q u e s e ja u m a c o i s a b e l a e a g r a d á v e l v i v e r c o m s e u s i - m e s m o , m a s
s e r ve p a r a a r e d e n ç ã o d o s i - m e s m o . A l é m d o m a i s , é p o s s í v e l a b a n d o n a r -
- se a s i m e s m o ? C o m i s s o n ó s s o m o s d o m i n a d o s p o r n ó s m e s m o s . I s t o é o
co n t r á r io d a aceit ação d e si m e sm o . Q u a n d o n ó s d o m in a m o s p o r n ó s m e s-
m o s - e ist o acon t ece a cad a u m q u e e n t r e ga a si m e s m o - e n t ã o vive m o s
p e lo s i - m e s m o . N ó s n ã o v i v e m o s o s i - m e s m o , e le se v i v e 2 9 .
29 Em Assim falava Zaratustra, Nietzsche escreveu: "Ele (o Selbsi) se informa também com os olhos dos
sentidos, ele escuta também com os ouvidos do espírito. Sempre está à escuta e assim se informa o
próprio ser: compara, submete, conquista, destrói. Ele reina e é também o soberano do Eu . Detrás de
teus pensamentos e sentimentos, meu irmão, há um amo mais poderoso, um guia desconhecido, que se
chama 'o próprio Ser'" (Prim eira parte: "Dos que desprezam o corpo", p. 51). A passagem está sublinhada
como no exemplar de Jung. H á também linhas na margem e pontos de exclamação. Ao comentar esta
passagem em 1935, em seu seminário sobre Zaratustra, Jung disse: "Eu já estava muito interessado no
conceito do eu, mas não estava seguro sobre como deveria entendê-lo. Fiz minhas anotações quando topei
com estas passagens e elas me pareceram muito importantes [...]. O conceito do eu continuou a causar-
me boa impressão [...]. Pensei que Nietzsche supunha uma espécie de coisa-em-si por trás do fenómeno
psicológico [...]. Vi também, então, que ele estava produzindo um conceito do eu que era semelhante ao
conceito oriental; é uma ideia de At m an " (Nietzschês Zaratustra. Vol. 1, p. 39 1).
30 Em Assim falava Zaratustra, Nietzsche escreveu: "Vós andais muito solícitos ao redor do próximo e o
manifestais com belas palavras. Mas eu vos digo: vosso amor ao próximo é o vosso mau amor a vós
mesmos./ Fugis de vós em busca do próximo e quereis converter essa fuga numa virtude; mas eu penetro
em vosso 'desinteresse'" ("Do amor ao próximo". Prim eira parte, p. 89. Sublinhado conforme o exemplar
de Jung).
422 AP RO FU N D AM EN T O S
É s u b m is s ã o b a st a n t e , m a is d o q u e b a st a n t e , q u a n d o n o s s u b m e t e m o s ao
n o sso s i- m e s m o . A o b r a d a r e d e n ç ã o t e m d e c o m e ç a r s e m p r e p o r n ó s , se é q u e
se p o d e t e r r e a l m e n t e a o u s a d ia d e p r o n u n c i a r t ã o gr a n d e p a la vr a . Se m a m o r a
n ó s m e s m o s , e st a o b r a n ã o p o d e se r r e a liz a d a . Al i á s , t e m e la d e ser fe it a d e fat o?
C e r t a m e n t e n ã o , q u a n d o n ó s c o n se gu im o s s u p o r t a r a s it u a ç ã o d a d a e q u a n d o
n ó s n ã o n o s s e n t im o s n e ce ssit a d o s d e r e d e n ç ã o . O i n c o m o d o s e n t i m e n t o d e
n e ce ssid a d e d e r e d e n ç ã o p o d e t o r n a r - s e às ve z e s d e m a is a a lgu é m . P r o c u r a m o s
e n t ã o l i vr a r - n o s d e le , m a s a s s im c a í m o s n a o b r a d a r e d e n ç ã o .
P a r e c e - m e q u e n o s é s u m a m e n t e p r o ve it o so , e a t é m e s m o n e ce ssá r io , e l i m i -
n a r t o d o o b e lo b r i l h o d a i d e i a d e r e d e n ç ã o , caso c o n t r á r i o m e n t i m o s d e n o vo a
n ó s m e s m o s , p o r q u e a p a la vr a n o s a gr a d a e p o r q u e a t r a vé s d a gr a n d e p a la vr a se
e sp a lh a u m b e lo c la r ã o e m t o r n o d o a ssu n t o . M a s p o d e -se , n o m í n i m o , t e r d ú -
vi d a se a o b r a d a r e d e n ç ã o é e m s i u m a ssu n t o b o n it o . O s r o m a n o s n ã o a c h a r a m
m u i t o p a la t á ve l o j u d e u c r u c ific a d o , e o s o m b r i o fa n a t is m o d as ca t a cu m b a s,
q u e se c e r c o u d e s í m b o lo s p o b r e s e b á r b a r o s , n ã o t i n h a p a r a eles o fa scin a n t e
e sp le n d o r , a i n d a q u e s u a c u r io s id a d e p e r ve r s a est ivesse d e s p e r t a p a r a t u d o o
qu e er a b ár b ar o e su b t er r ân eo.
E u p e n so q u e é o m a is a ce r t a d o e m a is se n sa t o d i z e r q u e se ca ir á , p o r a s s im
d iz e r , s e m q u e r e r n a o b r a r e d e n t o r a q u a n d o se q u e r fu gir d a n e ce ssid a d e d e
r e d e n ç ã o c o m o u m m a l a p a r e n t e m e n t e in s u p o r t á ve l d e u m s e n t i m e n t o n ã o
s u p e r á ve l. Es t e p asso p a r a a o b r a r e d e n t o r a n ã o é b o n i t o n e m a gr a d á ve l e n e m
d ifu n d e u m b r i l h o c o n vid a t ivo . E o caso é t ã o d ifícil e a n gu st ia n t e q u e a ge n t e
d e ve c o n t a r - s e e n t r e os d o e n t e s e n ã o e n t r e os su p e r sa d io s q u e q u e r e m d o a r a
o u t r o s s u a s u p e r a b u n d â n c ia .
P o r isso n ã o d e ve m o s t a m b é m u sa r o o u t r o p a r a n o ssa r e d e n ç ã o s u p o s t a -
m e n t e p r ó p r ia . O o u t r o n ã o é e sca d a p a r a n o sso s p é s. N ó s d e ve m o s d e p r e fe -
r ê n c ia fic a r fe ch a d o s e m n ó s. A n e ce ssid a d e d e r e d e n ç ã o go st a d e e xp r e ssa r - se
a t r a vé s d e u m a n e ce ssid a d e m a i o r d e a m o r c o m o q u a l ju lga m o s p o d e r t o r n a r
fe liz e s o u t r a s p essoas. M a s p o r isso e st a m o s m e r gu lh a d o s a t é o p e s c o ç o e m
n o ssa c o b i ç a e a m b i ç ã o p a r a m u d a r n o sso est ad o. E p a r a est e f i m a m a m o s o
o u t r o . Se já t ivé s s e m o s co n se gu id o n o sso fi m , o o u t r o n o s d e i xa r i a fr io s. M a s
é ve r d a d e q u e t a m b é m p r e c is a m o s d o o u t r o p a r a n o ssa p r ó p r i a r e d e n ç ã o . T a l -
ve z n o s p r e st e e s p o n t a n e a m e n t e s u a a ju d a , já q u e e st a m o s n u m a sit u a ç ã o d e
d o e n ç a e d e sa m p a r o . N o s s o a m o r a ele n ã o é n e m d e ve se r d e sin t e r e ssa d o . Se -
r i a m e n t i r a . P o is o o b je t ivo é a r e d e n ç ã o p r ó p r ia . O a m o r d e sin t e r e ssa d o só é
AP RO FU N D AM EN T O S 423
ve r d a d e i r o e n q u a n t o a p r e t e n s ã o d o s i - m e s m o p u d e r se r i m p r e n s a d a c o n t r a a
p a r e d e . M a s h a ve r á u m m o m e n t o e m q u e c h e g a r á a ve z d o s i- m e s m o . Q u e m
go st a r ia d e e n t r e ga r -se ao a m o r d e se m e lh a n t e s i- m e s m o ? C o m ce r t e z a , s o m e n -
t e a lgu é m q u e a in d a n ã o sabe o q u a n t o d e ab u so e a m a r gu r a , d e in ju st iça e ve n e -
n o e sco n d e e m si o s i- m e s m o d e u m ser h u m a n o q u e e sq u e ce u se u s i- m e s m o e
fez d e le u m a vi r t u d e .
At r a vé s d a u n i ã o c o m o s i - m e s m o ch e ga m o s ao D e u s 3 3 .
Is t o d e vo d iz ê - lo , n ã o a p e la n d o à o p i n i ã o d o s a n t igo s. N e m d esse o u d a -
q u e le , m a s p o r q u e e u a s s i m o e xp e r i m e n t e i . Ac o n t e c e u - m e a ssim . E a c o n t e c e u
d e u m a fo r m a t a l q u e e u n ã o e sp e r a va n e m d e se ja va . A e xp e r i ê n c i a d e D e u s
n e ssa fo r m a m e fo i in e s p e r a d a e in d e se ja d a . Go s t a r i a d e d i z e r q u e fo r a u m
e n ga n o e t e r i a c o m m u i t a sa t isfa çã o n e ga d o essa e xp e r i ê n c i a M a s n ã o p o sso
n e ga r q u e e la se a p o sso u d e m i m a c i m a d e t o d a s as m e d id a s e d e i m e d i a t o a t u o u
so b r e m i m . Se fo r u m a ilu sã o , e n t ã o a ilu sã o é m e u D e u s . En t ã o m e u D e u s e st á
p a r a m i m n a ilu sã o . E m e s m o q u e ist o fosse a m a i o r a m a r g u r a q u e m e p u d e sse
a co n t e ce r , d e ve r i a a s s im m e s m o co n fe ssa r e st a e xp e r i ê n c i a e r e c o n h e c e r n e l a
o D e u s . N ã o t e n h o n e n h u m a i n t e n ç ã o e n e n h u m a o b je ç ã o s u fic ie n t e m e n t e
fo r t e s q u e e xc e d a m a fo r ç a d e ssa e xp e r iê n c ia . E se o p r ó p r i o D e u s se t ive sse
r e ve la d o e m in c o n c e b íve l a b o m i n a ç ã o , e u n ã o p o d e r i a co n fe ssa r o u t r a c o is a se -
n ã o t e r e xp e r i m e n t a d o n isso o D e u s . Se i i n c l u s i ve q u e n ã o é t ã o d ifícil e st a b e -
31 18 de setembro de 1915.
32 Em 1941, Jung observou: "A integração, ou processo de encarnação do si-mesmo, é preparada, como já
indicamos, pela consciência através da conscientização de pretensões egoístas, ou seja, o indivíduo percebe
os seus motivos e procura formar uma ideia objetiva e a mais completa possível de sua própria natureza"
("O símbolo da transformação na missa". O C , I I , § 4 0 0 ) . Isto corresponde ao processo retratado aqui na
seção de abertura de "Aprofundamentos".
33 O Livro Negro 5 continua: "céu e inferno unidos entre si" (p. 9 2) . Cf. Jung, "O símbolo da transformação na
missa" (1941) : "Então o si-mesmo atua como uma unio opposítorum, constituindo assim a experiência mais
direta do divino que se possa exprim ir em termos psicológicos" ( O C, I I , § 39 6 ) .
424 AP RO FU N D AM EN T O S
le c e r u m a t e o r ia q u e e xp liq u e s u fi c i e n t e m e n t e m i n h a e xp e r i ê n c i a e a a d ic io n e
a co isa s j á c o n h e c id a s. E u m e s m o p o d e r i a e st a b e le ce r essa t e o r i a e d a r - m e i n -
t e le c t u a lm e n t e p o r sa t isfe it o c o m isso, m a s essa t e o r i a n ã o c o n s e gu ir ia e l i m i n a r
a m í n i m a p a r t e d a c e r t e z a d e u m t e r e xp e r i m e n t a d o o D e u s . N e s s a c e r t e z a d a
e xp e r i ê n c i a r e c o n h e c i o D e u s . N ã o p o sso r e c o n h e c e r n isso o u t r a c o is a s e n ã o
ele. N ã o q u e r o c r ê - l o n e m p r e c is o c r ê - lo , e t a m b é m n ã o p o d e r i a c r ê - lo . C o m o
s e r ia p o s s íve l c r e r e m s e m e lh a n t e co isa? M e u e s p ír it o d e ve r i a e st a r t o t a lm e n t e
t r a n s t o r n a d o p a r a c r e r e m t a is co isas. Se gu n d o s u a t o t a l n a t u r e z a , s ã o so b r e -
m a n e i r a i m p r o vá ve i s . N ã o s ó i m p r o vá ve i s , m a s t a m b é m im p o s s íve is à n o ssa
c o m p r e e n s ã o . Só u m c é r e b r o d o e n t e p o d e p r o d u z i r t a is ilu sõ e s. C o m p a r o esses
d o e n t e s ao s q u e fo r a m a c o m e t id o s d e l o u c u r a e a lu cin a çõ e s. M a s d e vo d i z e r
q u e o D e u s n o s fa z d o e n t e s. N a d o e n ç a e u e xp e r i m e n t o o D e u s . U m D e u s vi vo
é a d o e n ç a d e n o ssa r a z ã o . E l e e n c h e a a l m a d e ê xt a se . E l e n o s e n c h e d e caos
o scila n t e . A q u a n t o s D e u s va i q u e b r a r ?
O D e u s n o s a p a r e ce n u m d e t e r m i n a d o e st a d o d a a lm a . P o r isso ch e ga m o s
a D e u s p o r c i m a d o s i - m e s m o 34 . 35
0 si-m esm o n ã o é o D e u s, ain d a q u e ch e-
gu e m o s a D e u s a t r a vé s d o s i - m e s m o . O D e u s e s t á a t r á s d o s i - m e s m o , a c i m a d o
s i - m e s m o , t a m b é m é o p r ó p r i o s i - m e s m o q u a n d o e le a p a r e ce . M a s e le a p a r e -
ce c o m o n o ssa d o e n ç a d a q u a l p r e c is a m o s n o s c u r a r 3 6 . T e m o s d e c u r a r - n o s d e
D e u s , p o is E l e t a m b é m é n o ssa p i o r fe r id a .
D e u s t e m p r im e ir a m e n t e t o d o o p o d e r n o si-m e sm o , p o is o s i- m e s m o est á
t o d o n o D e u s , p o r q u e n ó s n ã o est ivem o s n o si-m e sm o . Te m o s d e p u xa r o si- m e s-
m o p a r a o n o s s o la d o . P o r is s o d e ve m o s l u t a r c o m D e u s p e l o s i - m e s m o . P o i s
o D e u s é u m m o v i m e n t o i n c o n c e b i v e l m e n t e fo r t e q u e a r r a s t a c o n s i g o o
s i - m e s m o p a r a o i l i m i t a d o , p a r a a d isso lu çã o .
34 Em 1921, Jung escreveu a respeito do si-mesmo: "Enquanto o eu for apenas o centro do meu campo
consciente, não é idêntico ao todo de minha psique, mas apenas um complexo entre outros complexos.
Por isso distingo entre eu e si-mesmo. O eu é o sujeito apenas de minha consciência, mas o si-mesmo é o
sujeito do meu todo, também da psique inconsciente" (Tipospsicológicos. O C , 6, § 79 6 ) . Em 1928, Jung
descreveu o processo de individuação como "tornar-se si-mesmo" (Verselbstung) ou "o realizar-se do si-
mesmo" (Selbstverwirklichung) (Estudos sobre psicologia analítica. O C , 7, § 26 6 ) . Jung definiu o si-mesmo como
o arquétipo da ordem e observou que as representações do si-mesmo não se distinguiam das imagens-
de-Deus (cap. I V "O si-mesmo", em Aíon. O C , 9 / 2) . Em 1944, observou que escolhera o termo porque
este conceito é "suficientemente determinado para dar uma ideia da totalidade e insuficientemente
determinado para exprim ir o caráter indescritível e indefinível da totalidade... Na linguagem científica, o
termo si-mesmo não se refere nem a Cristo, nem a Buda, mas à totalidade das formas correspondentes, e
cada uma dessas formas é um sím bolo do si-m esm o" (Psicologia e alquim ia. O C , 12, § 2 0 ) .
35 A seção seguinte é reelaborada do Livro Negro 5, e por isso é difícil separá-la dele.
36 Em 1929, Jung escreveu: "O s deuses tornaram-se doença. Zeus não governa mais o Olim po, mas o plexo
solar, e produz espécimes curiosos que visitam o consultório médico" (Estudos alquímicos. O C , 13, § 54).
AP RO FU N D AM EN T O S 425
P o r isso, q u a n d o D e u s n o s a p a r e ce , fica m o s a p r i n c í p i o i m p o t e n t e s , d e s-
lu m b r a d o s , p a r t id o s , d o e n t e s, e n ve n e n a d o s c o m ve n e n o fo r t ís s im o , m a s n o
ê xt a s e d a m á xi m a sa ú d e .
M a s n e sse e st a d o n ã o h á lu ga r p a r a n e n h u m a d e m o r a , p o is t o d a s as fo r ça s
d e n o sso c o r p o se c o n s o m e m c o m o b a n h a n a c h a m a . P o r isso t e m o s q u e a s p ir a r
a l i b e r t a r o s i - m e s m o d e D e u s , p a r a q u e p o ssa m o s vi ve r 3 7 .
38
É p o s s íve l e i n c l u s i ve fácil p a r a n o ssa r a z ã o n e ga r o D e u s e fa la r só d e d o -
e n ça . A s s i m a s s u m im o s a p a r t e d o e n t i a e p o d e m o s t a m b é m cu r á - la . M a s s e r á
u m a c u r a c o m p e r d a . P e r d e m o s u m a p a r t e d a vi d a . C o n t i n u a m o s s e m d ú vi d a a
vive r , m a s c o m o p a r a lisa d o s p o r D e u s . O n d e a r d e u o fogo, e s t ã o c in z a s m o r t a s .
E u a c r e d it o q u e t e n h a m o s a e sco lh a : e u p r e fe r i as m a r a vi lh a s viva s d o D e u s .
Peso d i a r i a m e n t e o t o d o d e m i n h a v i d a e a i n d a a s s im o b r i l h o in c a n d e s c e n t e
d e D e u s s ign ific a p a r a m i m u m a v i d a m a i o r e m a is p l e n a d o q u e a c i n z a d a
r a c io n a lid a d e . A c i n z a é p a r a m i m su icíd io . E u p o d e r i a t a lve z ap agar o fogo,
m a s n ã o p o sso n e ga r d i a n t e d e m i m m e s m o a e xp e r i ê n c i a d e D e u s . N ã o p o sso
d e s vi n c u l a r - m e d e ssa e xp e r iê n c ia . T a m b é m n ã o q u e r o , p o is q u e r o vive r . M i n h a
v i d a se q u e r e la m e s m a t o d a i n t e i r a .
P o r isso d e vo s e r vi r ao m e u s i- m e s m o . T e n h o d e g a n h á - l o a ssim . M a s d e vo
g a n h á - l o p a r a q u e m i n h a v i d a se t o r n e t o t a l. P o is m e p a r e ce p e ca d o a t r o fia r a
v i d a o n d e e xist e a p o s s ib ilid a d e d e vi vê - l a n a t o t a lid a d e . P o r isso o s e r viç o ao
s i - m e s m o é u m s e r viç o a D e u s e à h u m a n i d a d e . Q u a n d o e u m e s m o m e su p o r t o ,
a livio a h u m a n i d a d e d e m e u p e so e c u r o m e u s i - m e s m o d o D e u s .
E u d e vo l i b e r t a r m e u s i - m e s m o d e D e u s 3 9 , p o is o D e u s q u e e u e xp e r i m e n t e i
é m a is q u e a m o r , ele é t a m b é m ó d i o ; m a is d o q u e b e le z a , ele é t a m b é m h o r r o r ;
37 O Livro Negro 5, continua: "O Deus tem o poder, não o si-mesmo. Não se deve pois lamentar a impotência,
mas ela é o estado de como ele deve estar./ O Deus age por si. Isto se deve deixar a ele. O que fazemos ao
si-mesmo, nós o fazemos a Deus./ Se deturparmos o si-mesmo, deturpamos também a Deus. É um serviço
a Deus servir a si mesmo. Com isso aliviamos a humanidade de nós mesmos. "Q ue cada um carregue o
fardo do outro" tornou-se mera imoralidade. Q ue cada qual carregue seu fardo, isto é o mínimo que se
pode exigir de uma pessoa. Podemos, no máximo, mostrar ao outro como carregar seu próprio fardo./
Dar todos os seus bens aos pobres significa educar os pobres para a preguiça./ Compaixão não é ser o
carregador do fardo dos outros, mas ser um educador enérgico. A solidão conosco mesmos não tem fim.
Ela apenas começou" (p. 9 2- 9 3) .
38 O s quatro parágrafos seguintes não se encontram nos Livros Negros.
39 No exemplar de Jung dos Schriften und Predigten de Eckhart, a frase do vol. I , p. 20 2, "dass die Seele auch
Got t verberem músste" [que a alma deveria também perder a Deus] está sublinhada e há uma tira de papel
onde está escrito: "Seele muss Got t verlieren " [A alma deve perder a Deus] (Meister Eckharts Schriften und
Predigten - Aus dem Mittelhochdeutschen úbersetzt und herausgegeben von Herm an Búttner. 2 vols. [s.l.]:
Eugen Diederichs, 1912, p. 222) .
426 AP RO FU N D AM EN T O S
m a is d o q u e sa b e d o r ia , ele é t a m b é m in se n sa t e z ; m a is d o q u e p o d e r , ele é t a m -
b é m i m p o t ê n c i a ; m a is d o q u e o n ip r e s e n ç a , ele é t a m b é m m i n h a c r i a t u r a .
"Ap r o xi m a - t e , e n t r a n a s e p u lt u r a d o D e u s . O lu ga r d e t e u t r a b a lh o d e ve se r
n o p r ó p r i o jazigo . O D e u s n ã o d e ve m o r a r e m t i , m a s t u n o D e u s ".
4I
E s s a s p a l a vr a s m e p e r t u r b a r a m , p o i s e u h a v i a p e n s a d o a n t e r i o r m e n t e
e m l i v r a r - m e d e D e u s . M a s O I A H M Q N a c o n s e l h o u - m e a e n t r a r m a i s fu n d o
n o Deu s.
D e s d e q u e o D e u s se e l e v o u p a r a o s e s p a ç o s s u p e r i o r e s , t a m b é m O I -
A H M Q N ficou d i fe r e n t e . I n i c i a l m e n t e fo i p a r a m i m u m m a g o q u e v i v i a
n u m p a í s d i s t a n t e , m a s d e p o i s s e n t i s u a p r o x i m i d a d e e, d e s d e q u e o D e u s
se e l e vo u , s e i q u e O I A H M Q N m e e m b r i a g o u e m e i n s p i r o u u m a l i n g u a g e m
e s t r a n h a a m i m m e s m o e u m o u t r o sen t ir . T u d o ist o d e sa p a r e ce u q u a n d o o
D e u s se e l e v o u e s ó O I A H M Q N p o s s u í a a q u e l a l i n g u a g e m . M a s e u s e n t i q u e
e le t r i l h a v a o u t r o s c a m i n h o s e n ã o o m e u . A g r a n d e m a i o r i a d o q u e e s c r e vi
n a s p r i m e i r a s p a r t e s d e s t e l i v r o fo i O I A H M Q N q u e m e i n s p i r o u 4 2 . P o r is s o
fi q u e i c o m o q u e e m b r i a g a d o . M a s a g o r a p e r c e b i q u e O I A H M Q N a s s u m i u
u m a fo r m a sep arad a de m i m .
Re s p o n d i a t ó n it o : " N ã o c o n h e ç o a p a la vr a q u e p r o c u r a s ".
M a s e la gr it o u : " O s ím b o lo , o m e io , p r e c is a m o s d o s ím b o lo , t e m o s sed e
d e le , faze l u z p a r a n ó s ".
E n e st e m o m e n t o fo i - m e co lo ca d o n a m ã o o s in a l, e e u o o l h e i c o m e sp a n t o
ilim it a d o . Fa l o u - m e e n t ã o e m vo z a lt a e a m i g á ve l 4 4 :
"E i - l o , est e é H a p , o s í m b o l o q u e n ó s q u e r í a m o s , d e q u e p r e c is á va m o s . E l e
é r e p u g n a n t e m e n t e s im p le s , t o t a lm e n t e p r i m i t i vo , n a t u r a l m e n t e s e m e lh a n t e a
D e u s , o o u t r o p o lo d e D e u s . E e xa t a m e n t e d esse p o lo q u e p r e c is a m o s ".
"El e e s t á n a l u z , o o u t r o D e u s e st á n a n o it e ".
M a s a fa le cid a d isse t r iu n fa n t e :
c o r p o r a is , o e s p ír it o d a s e m e n t e e d as e n t r a n h a s , d as p a r t e s ge n it a is, d a ca b e ça ,
d o s p é s, d as m ã o s , d as ju n t a s , d o s ossos, d o s o lh o s e o u vid o s, d o s n e r vo s e d o
c é r e b r o , ele é o e s p ír it o d a e s c ó r ia e d a s e c r e ç ã o ".
b r i l h a n t e d o s d e u se s?"
p o v e m o p e n s a m e n t o i l u m i n a d o r ".
s a l a m a n d r a cega d as ca ve r n a s".
4 4 Em lugar deste parágrafo, o Livro Negro 5, tem: "Um falo?" (p. 9 5) . Não há menção a Hap no Livro Negro 5. As
referências seguintes podem estar relacionadas com isso. Em The EgyptianHeaven and Hell, Wallis Budge observa
que "o falo de seu Pepi é Hap" (vol. I , p. IIo ) . Ele observa que Hap é um filho de Hórus (p. 4 9 1 - nesta
passagem Jung colocou um sinal na margem em seu exemplar). An otou também que "no Livro dos mortos
estes quatro filhos de Hórus desempenham papéis muito destacados e os mortos procuravam conseguir
seu auxílio e proteção a todo custo, tanto por meio de oferendas como por meio de orações [...]. O s
quatro filhos de Hórus distribuíam entre si a proteção dos mortos, e já na V dinastia descobrimos que
eles presidiam à vida dele no mundo inferior" (ibid. - sublinhado como no exemplar de Jung) (Londres:
Kegan Paul/ Trench and Trubner, 19 0 5) .
45 O Livro Negro 5, tem: "desse polo de Deus" (p. 9 $) .
428 AP RO FU N D AM EN T O S
"En t ã o e s t o u c e r t a m e n t e e n t e r r a d o vivo . Q u e n o jo ! Q u e p o d r i d ã o ! T e n h o
d e m e su gar n isso q u a l san gu essu ga?"
"Si m , b e b e r sa n gu e ", d isse e la . "Su gar , e n c h e r - t e n o ca d á ve r , h á su co s n e le ,
n o je n t o s s i m , m a s n u t r i t i vo s . N ã o d eves e n t e n d e r , m a s su ga r '.
"M a l d i t o n o jo ! N ã o , t r ê s ve z e s n ã o ", g r i t e i p a r a c i m a .
M a s e la d isse: "I s t o n ã o d e ve a b o r r e c e r - t e , n ó s p r e c is a m o s d esse a lim e n t o ,
d o su co vi t a l d as p essoas, p o is n ó s q u e r e m o s t e r p a r t e e m vo ssa vi d a . A s s i m
p o d e m o s a p r o xi m a r - n o s d e vó s . N ó s g o s t a r í a m o s d e i n fo r m á - l o s so b r e o q u e
vo s fa r ia fa lt a e m c o n h e c e r ".
"I s t o é l o u c u r a r e fin a d a ! D e q u e e st á s fa la n d o ?"
46
E l a m e l a n ç o u a q u e le o lh a r q u e m e d e u n a q u e le d i a e m q u e a v i p e la ú lt i-
m a ve z e n t r e os vivo s e e m q u e , in s c ie n t e d o sign ifica d o , m e m o s t r o u algo d o
m i s t é r i o q u e os e gíp c io s n o s le ga r a m . E a s s i m m e fa lo u :
"Fa z e - o p o r n ó s . Le m b r a s - t e d e m i n h a d o a ç ã o , d o s d isco s so la r e s v e r m e -
lh o s, d as asas d o u r a d a s e d a c o r o a d a v i d a e d a p e r m a n ê n c i a ? I m o r t a l i d a d e ,
d isso s e r ia n e c e s s á r io sa b e r ".
" O c a m i n h o q u e le va a est e sa b e r é i n fe r n o ".
47
E a est e r e sp e it o m e r g u l h e i e m m e d i t a ç ã o t r is t e , p o is e u p r e s s e n t ia o d i -
fícil e m a l - e n t e n d i d o , a im p r e vis íve l s o lid ã o d esse c a m i n h o . E a p ó s lo n ga l u t a
c o n t r a t o d a s as fr a q u e z a s e co va r d ia s e m m i m , d e c i d i t o m a r so b r e m i m e st a
s o lid ã o d o sagr ad o e r r o e d a ve r d a d e vá lid a p a r a s e m p r e 4 8 .
E t r ê s n o it e s d e p o is, c h a m e i a fa le cid a e lh e p e d i:
"E n s i n a - m e a r e s p e it o d o c o n h e c i m e n t o d o s ve r m e s e d as c r ia t u r a s q u e r a s -
t e ja m , a b r e - m e as t r e va s d o e s p ír it o ".
E l a s u s s u r r o u : " D á - m e san gu e, p a r a q u e e u b e b a e sa ib a falar. M e n t i s t e ao
d i z e r q u e e n t r e ga r ia s o p o d e r ao Fi l h o ? "
"N ã o , n ã o m e n t i . M a s e u d isse algo q u e n ã o e n t e n d i ".
"F e l i z d e t i " , d isse e la , "se p o d e s d i z e r o q u e n ã o e n t e n d e s. Es c u t a , p o is:
H a p 4 9 n ã o é o fu n d a m e n t o , m a s o c e r n e d a igr e ja q u e a i n d a e st á s u b m e r s a . P r e -
c is a m o s d e ssa igr e ja , p o is d e n t r o d e la p o d e m o s vi ve r co n vo sco e p a r t i l h a r d e
vo ssa vi d a . Vó s n o s e xc lu íst e s p a r a vo sso p r ó p r i o p r e ju í z o ".
"Q u a n d o o c é u e st á g r á vid o e n ã o p o d e m a is r e t e r se u fr u t o , d á à l u z u m a
p e sso a q u e ca r r e ga o p e so d o s p e ca d o s - e st a é a á r vo r e d a v i d a e d a p e r m a n ê n -
c ia s e m fi m . D á - m e t e u san gu e! O u v e ! Te r r íve l é est e e n igm a : q u a n d o Br i m o , a
celest e, e st e ve gr á vid a , d e u à l u z o d r a gã o , a p la c e n t a p r i m e i r o , e d e p o is o filh o ,
En t ã o a s o m b r a d o s m o r t o s l e va n t o u a vo z e d isse: " T u vê s - o u a i n d a n ã o
vê s o q u e os vivo s fa z e m c o m t u a vi d a . El e s a t i r a m d e t i . M a s c o m igo t u t e vive s ,
p o is e u p e r t e n ç o a t i . P e r t e n ç o a t e u s é q u it o e c o m u n i d a d e in visíve is. Ac r e d i t a s
q u e os vivo s t e ve e m ? El e s só v e e m t u a s o m b r a , n ã o a t i — t u se r vo ca r r e ga d o r ,
t u va so —".
p e sso a v i v a n ã o p o d e vi ve r d e le s".
M a s a s o m b r a i n t e r ve i o e gr it o u : "C a l m a , ó im p e t u o s o , t u m e t ir a s o fôlego.
N ó s so m o s so m b r a s, t o r n a - t e s o m b r a e sa b e r á s o q u e n ó s d a m o s ".
i n vi s i b i li d a d e - p a r a o i n fe r n o c o m t eu s p r e s s e n t im e n t o s e s e n t im e n t o s ! T u ao
m e n o s n ã o n o s a m a s, p o r t a n t o s a ím o s m e n o s ca r o s e m fica r d o q u e as p esso as
q u e se r e vo l ve m e m t e u a m o r e p a c iê n c ia e fa z e m d e t i u m b o b o ".
Re s p o n d e u - m e e la c o m i r o n i a : "Am a r as p esso as - e t u ! Q u e e n ga n o ! Is t o
T u as se d u z e s e i n c i t a s à m e g a l o m a n i a à q u a l t u s u c u m b e s ".
"M a s s in t o p e n a , m e d ó i, la m e n t o , e u d esejo , t o d a t e r n u r a ge m e , m e u c o r a -
ç ã o t e m a n se io p o r ".
e n t r e as p essoas? Au t o d e fe s a c o n t r a as p esso as - p a r a q u e a n d e s c o m os p r ó -
p r io s p é s , n ã o c o m as m u le t a s d as p essoas. A s p esso as p r e c i s a m d os d e s p r e t e n -
sio so s, m a s d e s e ja m s e m p r e o a m o r o s o p a r a p o d e r e m fu gir d e si m e s m a s . Is t o
d e ve acab ar . P o r q u e vã o os lo u co s p a r a t e r r a s d ist a n t e s e p r e ga m o e va n ge lh o
p r o va m c o m o m e s m o e va n ge lh o o d i r e i t o d a g u e r r a e d a in ju s t iç a assassin a?
C o m o p o d e m e n s i n a r os o u t r o s, se eles m e s m o s e s t ã o e n t e r r a d o s a t é o p e s c o ç o
n a l a m a p r e t a d o e m b u s t e e a u t o e n g a n a ç ã o ? Se r á q u e l i m p a r a m s u a p r ó p r i a
casa? Se r á q u e r e c o n h e c e r a m se u p r ó p r i o d e m ó n i o e o e xp u ls a r a m ? Pe lo fat o
d e n ã o fa z e r e m n a d a d isso , p r e ga m o a m o r p a r a p o d e r e m fu gir d e si m e s m o s ,
p a r a fa z e r ao o u t r o o q u e d e ve r i a m fa z e r a s i m e s m o s . M a s o a m o r t ã o e xa lt a d o ,
d i r e c i o n a d o p a r a o p r ó p r i o s i - m e s m o , q u e i m a c o m o fogo. I s t o o p e r c e b e r a m
esses h ip ó c r it a s e m e n t i r o s o s - t a m b é m t u - e p r e fe r i r a m a m a r os o u t r o s. I s t o
432 AP RO FU N D AM EN T O S
é a m o r ? I s t o é h i p o c r i s i a m e n t i r o s a 5 6 . E m t i m e s m o c o m e ç a s e m p r e , e m t o d as
as co isa s e so b r e t u d o c o m o a m o r . Ac r e d i t a s q u e a lg u é m q u e se p r e ju d i c a i m -
p ie d o s a m e n t e a s i m e s m o va i fa z e r o b e m ao o u t r o c o m se u a m o r ? N ã o , c e r -
n ó s d e ve m o s p r e ju d i c a r a n ó s m e s m o s , a f i m d e p o d e r fo r ç a r a m a n ife s t a ç ã o d a
p essoas. C o m o p o d e m l i b e r t a r - s e d a h i p o c r i s i a e l o u c u r a d e se u a m o r , se t u n ã o
o p o d e s? P o is t u d o c o m e ç a e m t i m e s m o . M a s t e u ca va lo a i n d a n ã o co n se gu e
d e i xa r d e r e lin c h a r . P i o r a in d a , t u a vi r t u d e é u m a b a n a r d e r a b o d e c a c h o r r o ,
u m r e s m u n ga r d e c a c h o r r o , u m l a m b e r d e c a c h o r r o , u m l a t i r d e c a c h o r r o , e ist o
t u c h a m a s d e a m o r às p essoas! M a s a m o r é: ca r r e ga r e s u p o r t a r a si m e s m o . E
a s s im q u e c o m e ç a . T r a t a - s e n a ve r d a d e d e t i ; a i n d a n ã o fo st e c a lc in a d o ; o u t r o s
fogos a i n d a p r e c i s a m s o b r e vir a t i , a t é q u e t e n h a s a p r e n d i d o a a c e it a r e a m a r
t u a so lid ã o .
"P o r q u e p e r gu n t a s p e lo a m o r ? O q u e é o a m o r ? Vi v e r so b r e t u d o , ist o é
m a is q u e a m o r . A g u e r r a é a m o r ? T u a i n d a d e ve s ve r p a r a o q u e o a m o r às p e s-
so b r e t u d o so lid ã o , a t é q u e t o d a a b r a n d u r a co n t igo m e s m o se t e n h a q u e im a d o .
P r e cisa s a p r e n d e r o c o n g e l a m e n t o " 5 7 .
so b r e m i m ? "
"A vo n t a d e d e D e u s , q u e é m a is fo r t e d o q u e t u , se r vo , vaso. Ca í s t e n a s m ã o s
d o m a io r . El e n ã o c o n h e ce c o m p a i xã o . Vo ssa s m á s c a r a s cr ist ã s c a ír a m , os vé u s
q u e ce ga va m vo sso s o lh o s. O D e u s fic o u d e n o vo fo r t e . O ju go d o s h o m e n s é
m a is le ve q u e o ju go d e D e u s , p o r isso c a d a q u a l q u e r i m p o r u m ju go ao o u t r o
p o r c o m p a i xã o . M a s q u e m n ã o c a i n as m ã o s d o s h o m e n s , s u c u m b e ao D e u s .
Fe l i z d e le e a i d ele! N ã o h á sa íd a !"
$6 Jung foi crítico dos missionários cristãos (cf. "O problema psíquico do homem moderno", 1931. O C , 10,
§ 18 5 ) .
57 O Livro Negro 5, continua: [A falecida]: "depois que o demónio te precedeu. Agora não é tempo de amor,
mas de ação"./ / [Eu ]: "O que estás dizendo de ação? Q ue tipo de ação?"/ / [A falecida]: "Tua obra"./ / [Eu ]:
"Como, minha obra? Minha ciência, meu livro?"/ / [A falecida]: "Isto não é teu livro, é o livro. A ciência é
aquilo que fazes. Isto deve ser feito sem tardar. Não há retrocesso, só para frente. Lá pertence teu amor.
Ridículo - teu amor! Tu deves ser capaz de deixar morrer"./ / [Eu ]: "Deixa ao menos mortos ficarem em
torno de m im "./ / [A falecida]: "Mortos o suficiente, t u estás cercado"./ / [Eu ]: "Não estou percebendo nada
disso"./ / [A falecida]: "Tu vais percebê-los"./ / [Eu ]: "Como? Com o posso fazer isso?"/ / [A falecida]: "Vai
em frente. Tudo vai dar certo. Hoje não, mas amanhã" (p. 116-117).
AP RO FU N D AM EN T O S
433
"I s t o é lib e r d a d e ?", gr it e i.
"A m a i o r lib e r d a d e . Só D e u s so b r e t i , a t r a vé s d e t i m e s m o . Co n s o l a - t e c o m
est e e a q u e le o t a n t o q u a n t o p o d e s. O D e u s c o r r e o fe r r o lh o d e t r a n ca s q u e n ã o
p o d e s a b r ir . D e i x a t e u s s e n t i m e n t o s ga n ir c o m o c a c h o r r i n h o s . N o a lt o e s t ã o
o u vid o s su r d o s".
58 O esboço manuscrito de "Aprofundamentos" tem "alma" (p. 4 9 ) , e o parceiro do diálogo nesta seção é mudado
da alma para a falecida.
59 20 de dezembro de 1915.
AP RO FU N D AM EN T O S
434
T u t e d e sn o r t e a st e e t e d e sn o r t e ia s se q u ise r e s fu gir d e m e u se r viço . Se m m i m
n ã o h á sa lva çã o . O q u e so n h a s e p o r q u e h e sit a s?"
6o Cf. nota 8, p. n o .
AP RO FU N D AM EN T O S
435
Vi n d e b e b e r d o sa n gu e vivo , b e b e i a t é a sa cie d a d e , p a r a q u e fiq u e m o s livr e s
e a t u a lm e n t e e xis t e n t e .
Be b e i d e n o sso sa n gu e d a a m b iç ã o , q u e ge r a m a ld a d e s c o m o gu e r r a , d i s c ó r -
d ia , fe iu r a , vi o lê n c i a e in s a c ia b ilid a d e .
T o m a i e c o m e i , est e é m e u c o r p o q u e vi ve p a r a vó s . T o m a i e b e b e i, est e é
m e u sa n gu e cu jo d e se jo flui p o r vó s .
Ap r o x i m a i - v o s e c e le b r a i u m a c e ia c o m igo p a r a m i n h a e vo ssa r e d e n ç ã o .
E u p r e c is o d a c o m u n i d a d e co n vo sco , p a r a q u e n ã o s u c u m b a à c o m u n i d a d e
m a ld a d e .
Aj u d a i - m e a n u n c a e sq u e ce r q u e m e u d e se jo e fogo s a c r ific ia l é p o r vó s .
M a s o s u p é r flu o d e m i n h a a m b i ç ã o p e r t e n c e a vó s , so m b r a s. N ó s p r e c is a m o s
d e vo ssa v i d a e m c o m u m .
Se d e - n o s p r o p í c i o s e a b r i n o sso e s p ír it o t r a n ca d o , p a r a q u e n o s t o r n e m o s
p a r t ic ip a n t e s d a l u z r e d e n t o r a . Q u e a s s im se ja !"
Q u a n d o a fa le cid a t e r m i n o u e st a o r a çã o , vo lt o u - s e n o va m e n t e p a r a m i m e
d isse:
"G r a n d e é a n e ce ssid a d e d o s m o r t o s . O D e u s n ã o p r e c is a d e n e n h u m a o fe r -
t a d e o r a çã o . E l e n ã o t e m fa vo r n e m d esfavor . E l e é b o n d o s o e t e m íve l, m a s n ã o
é b o n d o s o e t e m íve l, p o r é m vo s p a r e ce a ssim . M a s os m o r t o s o u ve m vo s s a o r a -
çã o , p o is a i n d a sã o d e n a t u r e z a h u m a n a e n ã o e st ã o livr e s d e fa vo r e d esfavor .
N ã o e n t e n d e s isso ? A h is t ó r ia d a h u m a n i d a d e é m a is ve l h a e m a is sá b ia d o q u e
t u . H o u v e a lgu m a ve z a lg u m t e m p o e m q u e os m o r t o s n ã o e r a m ? Le d o e n ga n o !
Fa z p o u c o t e m p o q u e as p esso as c o m e ç a r a m a e sq u e ce r os m o r t o s e p e n s a va m
q u e h a v i a m c o m e ç a d o s o m e n t e a go r a a ve r d a d e i r a vi d a e e n t r a r a m e m d e lír io ".
m e r g u l h e i e m t r i s t e z a e s o m b r i a co n fu sã o . Q u a n d o l e va n t e i n o va m e n t e os
o lh o s, v i m i n h a a l m a n o s e s p a ç o s su p e r io r e s, p a ir a n d o i l u m i n a d a p e lo b r i l h o
d is t a n t e d a d i vi n d a d e 6 1. G r i t e i :
Ó m i n h a m ã e h u m a n i d a d e , a fa st a d e t i o h o r r í v e l v e r m e - D e u s , o c a r r a s -
co d a s p e sso a s. N ã o o ve n e r e s p o r c a u s a d e s e u t e r r í ve l v e n e n o - u m a g o t a
b a s t a - e o q u e é u m a go t a p a r a ele? - ele, p a r a q u e m é igu a l t o d a p l e n i t u d e e
t o d o va z i o ?"
M a s q u a n d o p r o n u n c i e i essas p a la vr a s, p e r c e b i q u e O I A H M Q N e st a va a t r á s
d e m i m e q u e m e h a vi a i n s p i r a d o est as p a la vr a s. E l e c o lo c o u - se ao m e u la d o ,
in visíve l, e e u s e n t i a p r e s e n ç a d o b o m e d o b elo . E l e fa lo u - m e c o m vo z m a n s a
e p r o fu n d a :
62 No Getsêmani, Crist o disse: "Pai, se for possível, afasta de m im este cálice, contudo não se faça como eu
quero, mas como tu queres" (Mt 26,39).
63 Cf. Jó 25,6: "quanto menos o homem, esse verme, e o filho de Adão, essa larva?"
AP RO FU N D AM EN T O S
437
64 " T i r a , ó h o m e m , t a m b é m o d i vi n o d e t u a a lm a , t a n t o q u a n t o p o ssíve l.
Q u e fa r sa d e m o n í a c a e la faz co n t igo , a r r o ga n d o - se t e r p o d e r d i vi n o so b r e t i .
E l a é u m a c r ia n ç a m a l c r i a d a e ao m e s m o t e m p o u m d e m ó n i o se d e n t o d e s a n -
gu e, u m a t o r t u r a d o r a s e m igu a l d e p esso as p o r q u e p o s s u i d ivin d a d e . P o r q u ê ?
D e o n d e ? P o r q u e lh e p r e st a s ve n e r a ç ã o . O m e s m o q u e r e m os m o r t o s . P o r q u e
n ã o se c a la m ? P o r q u e n ã o p a s s a r a m p a r a o a lé m . P o r q u e d e s e ja m sa cr ifício s?
P a r a p o d e r e m vive r . M a s p o r q u e a i n d a q u e r e m vi ve r c o m os h o m e n s ? P o r -
q u e q u e r e m d o m i n a r . N ã o se r e a l i z a r a m e m s u a vo r a c id a d e d e p o d e r , u m a ve z
q u e m o r r e r a m c o m o p esso as n a vo n t a d e d e p o d e r . U m a cr ia n ça , u m a n ciã o ,
u m a m u l h e r r u i m , u m e s p ír it o d o s m o r t o s , u m d e m ó n i o sã o ser es q u e q u e r e m
ser m a n t i d o s c o m d is p o s iç ã o . T e m e a a lm a , d e sp r e z a - a , a m a - a , a s s im c o m o aos
d eu ses. O x a l á fi q u e m lo n ge d e n ó s ! M a s p o r t u d o q u e é sa gr a d o n ã o os p e r ca s!
P o is p e r d id o s sã o m a is t r a iç o e ir o s d o q u e as co b r a s, m a is se d e n t o s d e san gu e
d o q u e o t igr e , q u e a t a ca p elas co st a s os in c a u t o s . U m a p e sso a q u e se p e r d e
t o r n a - s e a n i m a l , u m a a l m a p e r d i d a t o r n a - s e d e m ó n i o . Ag a r r a - t e à a l m a c o m
a m o r , c o m t e m o r , c o m d e sp r e z o , c o m ó d io , s e m p e r d ê - l a d e vis t a . E l a é u m
t e so u r o i n fe r n a l - d i vi n o q u e só p o d e ser gu a r d a d o a t r á s d e p a r e d e s d e fe r r o e
n a c o va m a is p r o fu n d a . E l a s e m p r e q u e r sa ir e i r r a d i a r b e le z a r e lu z e n t e . P r e s t a
a t e n çã o , lo go se r á s t r a íd o ! N u n c a e n c o n t r a m o s u m a m u l h e r m a is in fie l, m a is
a r d ilo sa , m a is p e r ve r s a d o q u e t u a a lm a . C o m o lo u va r o m ila gr e d e s u a b e le z a e
p e r fe iç ã o ? N ã o e s t á e la n o e s p le n d o r d a ju ve n t u d e im p e r e c íve l? Se u a m o r n ã o
é v i n h o i n e b r i a n t e e s u a sa b e d o r ia , e s p e r t e z a a n t i q u í s s i m a d e se r p e n t e ?
P r o t e ge as p esso as d e la e a e la d as p essoas. O u v e s e u l a m e n t o n a p r is ã o
e o q u e e la c a n t a , m a s n ã o a d e ixe s fu gir , e la se t o r n a r á i m e d i a t a m e n t e u m a
p r o s t it u t a . C o m o s e u c ô n ju g e , és a b e n ç o a d o a t r a vé s d e la e n e l a a m a ld iç o a d o .
E l a p e r t e n c e ao g é n e r o d e m o n í a c o d o s a n õ e s e giga n t e s e só t e m p a r e n t e s -
co l o n g í n q u o c o m a r a ç a h u m a n a . Se q u ise r e s e n t e n d ê - l a h u m a n a m e n t e , va is
e n lo u q u e ce r . O e xce sso d e t u a r a iva , d e t e u d e se sp e r o e d e t e u a m o r p e r t e n c e
a e la , m a s t a m b é m só o excesso. Se lh e d e r e s est e excesso , a h u m a n i d a d e se r á
l i b e r t a d a d o elfo. P o is q u a n d o n ã o vê s t u a a lm a , e n t ã o a vê s n o t e u p r ó x i m o e
p o r ca u sa d isso fica r á s fu r io so , p o is est e m i s t é r i o d e m o n í a c o e e st e fa n t a s m a d o
i n fe r n o m a l p o d e m se r c o m p r e e n d i d o s .
6 4 10 de janeiro de 1916.
AP RO FU N D AM EN T O S
438
O b s e r v a o ser h u m a n o fr a co e m su a m is é r ia e t o r m e n t o , q u e os d e u se s e s-
c o l h e r a m p a r a s u a ca ça se lva ge m - r asga o vé u c h e io d e sa n gu e q u e a a l m a p e r -
d i d a t e c e u e m t o r n o d o ser h u m a n o , a r e d e h o r r e n d a q u e a p o r t a d o r a d a m o r t e
t r a n ç o u , e t o m a c o n t a d a p r o s t i t u t a d i vi n a q u e a i n d a n ã o p o d e r e c u p e r a r - s e d e
se u p e ca d o o r i g i n a l e q u e b u s c a a vid a m e n t e i m u n d í c i e e p o d e r c o m fa scin a çã o
e n lo u q u e c id a . P r e n d e - a c o m o u m a ca d e la n o cio , q u e go st a r ia d e m i s t u r a r se u
sa n gu e n o b r e c o m q u a lq u e r vi r a - l a t a . C a p t u r a - a , fi n a l m e n t e já é o b a st a n t e .
D e i x a - a p r o va r d e t e u s t o r m e n t o s p a r a q u e e la ch e gu e a s e n t i r o se r h u m a n o e
se u m a r t e l o q u e ele a r r e b a t o u d o s d e u s e s 6 5 .
Q u e n o m u n d o d as p esso as d o m i n e o ser h u m a n o . Su a s le is p r e t e n d e m v a -
ler. N ã o t r a t e s as a lm a s, os d e m ó n i o s e d e u se s se gu n d o s u a m a n e i r a , t r a z e n d o o
n a d a d e la d a q u ilo c o m q u e t e e n g a n a m t eu s d e m ó n i o s e t e u s d e u se s d a a lm a ,
m a s s u p o r t a , c a la e faze p i a m e n t e o q u e c o r r e s p o n d e à t u a e sp é cie . N ã o d e ve s
agir n o o u t r o , m a s e m t i , a n ã o se r q u e o o u t r o p e ç a a ju d a o u o p in iã o . En t e n d e s
o q u e o o u t r o faz? N u n c a — c o m o o p o d e r ia s? D o n d e t ir a s o d i r e i t o d e o p i n a r
d a n i n h a e t u q u e r e s e n s i n a r o r d e m a t e u v i z i n h o e a p o n t a r - l h e d e fe it o s.
P o r q u e d e ve s ca la r so b r e o o u t r o ? P o r q u e h á o s u fic ie n t e q u e fa la r d e t e u s
p r ó p r i o s d e m ó n i o s . M a s q u a n d o o p in a s e ages so b r e o o u t r o , s e m q u e ele t e n h a
p e d id o o p i n i ã o o u co n se lh o , t u o fazes p o r q u e n ã o co n se gu e s d i fe r e n c i a r - t e d e
t u a a lm a . P o r isso s u c u m b e s à p r e t e n s ã o d e la e a a ju d a s e m s u a p r o s t it u iç ã o .
O u a cr e d it a s q u e d e ve s e m p r e s t a r t u a fo r ç a h u m a n a à t u a a l m a o u aos d eu ses,
o u q u e se ja m e s m o u m a o b r a ú t il e p ie d o sa q u e r e r r e a lç a r n o o u t r o os d eu ses?
Ce go , is t o é p r e t e n s ã o cr ist ã . O s d e u se s n ã o p r e c i s a m d e t u a a ju d a , a d o r a d o r
r id íc u lo d e íd o lo s q u e t e se n t e s a t i m e s m o c o m o u m d e u s e q u e r e s fo r m a r ,
m e lh o r a r , ce n su r a r , e d u ca r e c r i a r p essoas. E s t u m e s m o p e r fe it o ? - P o r isso
m e s m o t e n s a m a i o r n e ce ssid a d e d e t u a a ju d a , d e ve s gu a r d a r p r o n t o s p a r a t i
o p i n i ã o e b o m c o n se lh o e n ã o c o r r e r q u a l p r o s t i t u t a p a r a o o u t r o c o m c o m -
p r e e n s ã o e vo n t a d e d e a ju d a r . N ã o p r e cisa s fa z e r o p a p e l d e D e u s . O q u e sã o
os d e m ó n i o s q u e n ã o a t u a m p o r s i p r ó p r io s ? P o r t a n t o , d e i xa q u e a t u e m , m a s
gu es a s i m e s m o s e n ã o ve n h a s lo go c o m a m o r ca n h e st r o , p r e o c u p a ç ã o , cu id a d o ,
c o n s e lh o e o u t r a s p r e t e n s õ e s . P o is c o m isso fa r ia s o t r a b a lh o d os d e m ó n i o s , t u
m e s m o t e t o r n a r ia s u m d e m ó n i o e, a s s im , fu r io so . M a s os d e m ó n i o s se a le gr a m
c o m a fú r ia d e p esso as d e sa m p a r a d a s q u e q u e r e m a ju d a r os o u t r o s e d a r - lh e s
co n se lh o . P o r t a n t o fica q u ie t o , c o m p l e t a a m a l d i t a o b r a r e d e n t o r a e m t i m e s -
c o n c i d a d ã o s q u e n ã o se d i fe r e n c i a m d e s u a a l m a e se d e i xa m i m i t a r p e lo s d e -
p e d is s e m o p i n i ã o e a ju d a . Se n ã o p e d i r e m , é q u e eles n ã o p r e c i s a m d e t u a a ju d a .
Co n t u d o , se im p u s e r e s a eles a t u a o p in iã o , és u m d e m ó n i o p a r a eles e a u m e n -
t as se u d e s lu m b r a m e n t o , d a n d o - lh e s u m m a u e xe m p lo . C o b r e t u a c a b e ç a c o m
o m a n t o d a p a c iê n c ia e d o silê n cio , s e n t a - t e e d e i xa q u e o d e m ó n i o e xe cu t e su a
se n t a d o d e b a ixo d e u m a á r vo r e fr u t ífe r a .
E b o m sab er es q u e os d e m ó n i o s go s t a r ia m d e in s t igá - lo p a r a s u a o b r a , q u e
n ã o é a t u a . E t u , e s t ú p id o , a cr e d it a s q u e sejas t u m e s m o , e q u e ist o se ja t u a o b r a .
P o r q u ê ? P o r q u e n ã o co n se gu e s d i fe r e n c i a r - t e d e t u a a lm a . M a s t u és d ife r e n t e
d e la , n ã o t e n s d e p r o m o ve r a p r o s t it u iç ã o c o m o u t r a s a lm a s, c o m o se t u m e s m o
fosses u m a a lm a , m a s t u és u m a p e sso a i m p o t e n t e q u e p r e c is a d e t o d a s u a fo r ça
p a r a o a p e r fe i ç o a m e n t o p r ó p r io . P o r q u e o lh a s p a r a os o u t r o s? O q u e vê s n e le s,
e st á n e glige n cia d o e m t i . D e ve s se r o gu a r d a d ia n t e d a p r is ã o d e t u a a lm a . T u és
o e u n u c o d e t u a a l m a , q u e a p r o t e ge d o s d e u se s e d o s h o m e n s , o u q u e p r o t e ge
os d e u se s e os h o m e n s d e la . A o h o m e m fr a co é d a d o o p o d e r , u m ve n e n o q u e
p a r a l i s a a t é m e s m o os d e u se s, a s s i m c o m o à p e q u e n a a b e lh a , m u i t o i n fe r i o r a
t i e m fo r ç a , é d a d o u m fe r r ã o ve n e n o s o e d o lo r o s o . T u a a l m a p o d e r i a a p o d e -
c u i d a d a a lm a , d ife r e n c ia - t e d e la , p o is n ã o só t e u s c o n c i d a d ã o s , m a s t a m b é m os
d e u se s p r e c i s a m vi ve r ".
Ap ó s O I A H M Q N t er t e r m in a d o , d ir igi- m e à m i n h a a lm a qu e, d u r a n t e o
d i s c u r s o d e O I A H M Q N , se h a v i a a p r o x i m a d o d o a lt o e l h e fa le i:
"Es c u t a s t e b e m o q u e O I A H M Q N d isse ? Ag r a d a - t e e st e t o m ? G o s t a s d e
se u co n se lh o ?"
AP RO FU N D AM EN T O S
44o
M a s e la d isse: " N ã o z o m b e s , s e n ã o m a c h u c a s a t i m e s m o . N ã o t e e sq u e ç a s
d e m e a m a r ".
" E t u c o n c o r d a s q u e e u t e la n c e n a p r is ã o ?", p e r gu n t e i.
"N a t u r a l m e n t e ", r e s p o n d e u e la , "lá t e n h o sossego e p o sso r e c o l h e r - m e . T e u
m u n d o h u m a n o m e t o r n a é b r ia - t a n t o sa n gu e h u m a n o - e u p o d e r i a e m b r i a -
g a r - m e d e le a t é o d e lír io . P o r t a s d e fe r r o , p a r e d e s d e p e d r a , e s c u r id ã o fr ia e
c o m i d a q u a r e s m a l - ist o é a d e líc ia d a r e d e n ç ã o . N ã o p r e sse n t e s m e u t o r m e n -
t o, q u a n d o a e m b r ia gu e z d e sa n gu e t o m a c o n t a d e m i m , m e la n ç a s e m p r e d e
n o vo n a m a t é r i a vi va a p a r t i r d e u m a t e r r íve l c o m p u l s ã o c r i a t i va q u e o u t r o r a
m e a p r o xi m o u d o i n a n i m a d o e q u e a c e n d e u e m m i m o t e r r íve l d e se jo d e p r o -
cr ia çã o . Afa s t a - m e d o e le m e n t o c o n c e p t ivo , d o fe m i n i n o a r d e n t e d o gr a n d e
va z io . Fo r ç a - m e p a r a a e s t r e it e z a o n d e e n c o n t r o r e s is t ê n c ia e m i n h a p r ó p r i a
le i. O n d e p o ssa p e n s a r n a via g e m , n o n a sce r d o so l d o q u a l a fa le cid a fa lo u e
n a s asas d e o u r o q u e se a g it a m e e c o a m . Re c e b e o a gr a d e c im e n t o — q u e r ia s
a gr a d e ce r - m e ? Est á s d e slu m b r a d o . Exp r e s s o - t e m e u m a i o r a gr a d e c im e n t o ".
6 6 I I de janeiro de 1916.
AP RO FU N D AM EN T O S 441
M i n h a a l m a se c o n t o r c e u , r e vi r o u - s e q u a l ve r m e p isa d o e gr it o u : M i s e r i c ó r -
d ia , t e m p ie d a d e !"
"C o m p a i x ã o ? Já t ive st e a lg u m a ve z c o m p a i xã o d e m i m ? T u , t o r t u r a d o r a d e
a n im a is ! N u n c a p a ssa st e a lé m d e u m c a p r ic h o co m p a ssivo . Vi ve s t e d e d e vo r a r
t o d ia n t e d o s o fr i m e n t o d o a n i m a l h u m a n o ? O q u e d e se ja is vó s , a lm a s e d eu ses,
a lgu m a o u t r a vi r t u d e h u m a n a ; n a t u r e z a a n í m i c a d e sa lm a d a ? N ã o — t u n ã o t e n s
a lm a , p o r q u e és a p r ó p r i a a lm a , m o n s t r o i n fe r n a l . Go s t a r i a s d e u m a a l m a h u -
m a n a ? D e v o e u p o r acaso t o r n a r - m e t u a a l m a t e r r e n a p a r a q u e r e ce b a s u m a
a lm a ? T u vê s , e u fr e q u e n t e i a t u a e sco la . Ap r e n d i c o m o n ó s n o s c o m p o r t a m o s
c o m o a lm a , e xe m p l a r m e n t e a m b í g u a , m i s t e r i o s a m e n t e m e n t i r o s a e h ip ó c r it a ".
En q u a n t o fa la va essas co isa s à m i n h a a lm a , O I A H M Q N fi c o u p a r a d o a c e r t a
d ist â n cia . M a s a go r a a p r o xi m o u - s e , c o lo c o u a m ã o so b r e m e u o m b r o e fa lo u
em m e u n om e:
"Be n d i t a sejas, vi r g e m a lm a , lo u va d o se ja t e u n o m e . És a e s c o lh id a e n t r e
as m u lh e r e s . E s a g e n i t o r a d e D e u s . Lo u va d a sejas t u ! H o n r a e gló r ia a t i p a r a
sem p r e!
T u m o r a s e m t e m p l o d e o u r o . D e lo n ge v ê m os p o vo s e t e l o u va m . N ó s , t eu s
se r vo s, e sp e r a m o s t u a p a la vr a .
Be b e m o s v i n h o t in t o , o fe r e c e n d o - t e u m sa cr ifício d e b e b i d a e m m e m ó r i a
d a c e ia d e sa n gu e q u e ce le b r a st e co n o sco .
P r e p a r a m o s u m a g a lin h a p r e t a c o m o o fe r t a d e c o m i d a e m m e m ó r i a às p e s-
soas q u e se a p r o xi m a r a m d e t i .
r o s e r o sa s e m r e c o r d a ç ã o d a d e s p e d id a q u e ce le b r a st e d e t e u s se r vo s e ser va s
d e so la d o s.
Se ja est e d i a u m a fe st a d e a le gr ia e d e vi d a , e m q u e t u , b e n d it a , in ic ia s o
c a m i n h o d e vo l t a d a t e r r a d o s h o m e n s q u e e n sin a st e a ser a lm a s.
T u segu es o Fi l h o q u e fo i p a r a c i m a e p a r a o a lé m .
T u n o s le va s p a r a c i m a c o m o t u a a l m a e t e co lo ca s d ia n t e d o Fi l h o d e D e u s ,
c o n s e r va n d o t e u d i r e i t o i m o r r e d o u r o c o m o ser a n ím ic o .
442 AP RO FU N D AM EN T O S
A a le gr ia e st á co n o sco , o b e m t e a c o m p a n h a . N ó s t e fo r t a le ce m o s. Es t a m o s
n a t e r r a d o s h o m e n s e vi ve m o s ".
D e p o i s q u e O I A H M Q N t e r m i n o u , m i n h a a l m a o l h o u t r is t e e sa t isfe it a , h e s i -
t a n t e , m a s ap r essad a, p r e p a r o u - se p a r a n o s d e i xa r e s u b ir n o va m e n t e , sa t isfe it a
p e la lib e r d a d e a d q u ir id a . M a s e u a d i vi n h e i algo e st r a n h o n e la , algo q u e e la p r o -
c u r a va e sco n d e r d e m i m . P o r isso n ã o d e i xe i q u e p a r t isse e fa l e i 6 7 :
" O q u e a i n d a t e r e t é m ? O q u e e sco n d e s? T a l ve z u m va so d e o u r o , u m a jo i a
q u e r o u b a st e d os h o m e n s ? N ã o fu lgu r a u m a p e d r a p r e cio sa , u m b r i l h o d e o u r o
a t r a vé s d e t e u m a n t o ? Q u a l é a b e le z a q u e r o u b a st e e n q u a n t o b e b ia s o san gu e
d as p esso as e c o m ia s se u sa gr a d o co r p o ? Fa la a ve r d a d e , p o is ve jo a m e n t i r a e m
t e u r o st o ".
" E u n ã o t i r e i n a d a ", r e s p o n d e u e la d e p r o n t o .
" T u m e n t e s , q u e r e s i n c r i m i n a r a m i m o n d e t u co m e t e st e u m e r r o . P a sso u
o t e m p o e m q u e r o u b a va s i m p u n e as p essoas. D e vo l ve t u d o q u e é h e r a n ç a s a -
gr a d a d elas e d e q u e t e ap ossast e. Ro u b a s t e o se r vo e o m e n d igo . D e u s é r i c o e
p o d e r o so , d e le p o d e s t ir a r . Su a r i q u e z a n ã o c o n h e ce p e r d a . M e n t i r o s a in fa m e ,
q u a n d o fi n a lm e n t e va is p a r a r d e a t o r m e n t a r t u a h u m a n i d a d e e d e r o u b a r ?"
E l a m e o l h o u c o m a q u e le o lh a r in o c e n t e d e p o m b a e d isse c o m b r a n d u r a :
" E u n ã o t e i n c r i m i n e i . E u t e q u e r o m u i t o b e m . Re s p e i t o t e u d ir e it o . Va l o -
r i z o t u a h u m a n i d a d e . N ã o t i r o n a d a d e t i . N ã o o c u lt o n a d a d e t i . T u p o ssu is
t u d o e e u n a d a ".
E u fa le i: "M e n t e s d e sa ve r go n h a d a m e n t e . P o ssu is n ã o só a q u e la p e ç a m a g n í -
fica q u e m e cab e, m a s t e n s, a lé m d isso , acesso aos d e u se s e à p le n i t u d e e t e r n a .
P o r isso, d e vo lve , e n ga n a d o r a ".
En t ã o e la fi c o u i r r i t a d a e r e s p o n d e u :
" C o m o t e a t r e ve s? N ã o t e c o n h e ç o m a is . Es t á s c o m p l e t a m e n t e lo u c o e m a is:
e st á s se n d o r id ícu lo , u m filh o t e d e m a ca co q u e e st e n d e s u a m ã o p a r a t u d o o
q u e b r i l h a . M a s e u n ã o d e ixo q u e t i r e m o q u e é m e u ".
Si m , a i n d a t e n d e s q u e a p r e n d e r , d ia b o s e d eu ses, d e m ó n i o s e a lm a s, a r a s -
t e ja r n o p ó p o r a m o r ao a m o r , a f i m d e q u e co n siga is a ga r r a r e m a lg u m lu ga r e
ju n t o a a lg u é m u m p o u q u i n h o d a d o ç u r a d a vi d a . Ap r e n d e i d o s h o m e n s h u m i l -
d a d e e o r gu lh o p o r a m o r ao a m o r .
Pa sso u -se u m a n o i t e e u m d i a , e, q u a n d o ch e go u n o va m e n t e a n o i t e e o lh e i
ao m e u r e d o r , v i q u e m i n h a a l m a h e s it a va e e sp e r a va . P o r isso d isse a e la 7 °:
" O q u e h á? A i n d a e st á s aí? N ã o e n c o n t r a s t e t e u c a m i n h o , o u n ã o e n c o n -
t r a st e as p a la vr a s q u e m e p e r t e n c e m ? C o m o ve n e r a s t u a a l m a t e r r e n a , o ser
h u m a n o ? Le m b r a - t e d o q u e s u p o r t e i e s o fr i p o r t i , c o m o m e d esgast ei, c o m o
e st ive p r o s t r a d o d ia n t e d e t i e m e vi r e i , c o m o t e d e i m e u san gu e! T e n h o u m a
r e c la m a ç ã o a fa z e r - t e : d e ve s a p r e n d e r a r e s p e it a r o se r h u m a n o , p o is e u v i a
t e r r a q u e e st á p r o m e t i d a ao se r h u m a n o , a t e r r a o n d e c o r r e le it e e m e l 7 1.
E u v i a t e r r a d o a m o r p r o m e t id o .
E u v i o b r i l h o d o s o l so b r e a q u e la t e r r a .
E u v i as m a t a s ve r d e s, os vi n h e d o s a m a r e lo s e as a ld e ia s d as p essoas.
E u v i as m o n t a n h a s e le va n d o - se ao c é u c o m os c a m p o s su sp e n so s d o filh o
et ern o.
E u v i a fe r t ilid a d e e a fe licid a d e d a t e r r a .
M a s e m lu ga r n e n h u m v i a fe licid a d e d as p essoas.
M i n h a a lm a , t u o b r iga s o h o m e m m o r t a l a t r a b a lh a r e so fr e r p a r a t e u b e m -
- est ar. E x i j o d e t i q u e faças t u a p a r t e p a r a a fe licid a d e t e r r e n a d o se r h u m a n o .
Le m b r a - t e d isso ! Fa lo e m m e u n o m e e e m n o m e d o s ser es h u m a n o s , p o is t u a
é n o ssa fo r ç a e gló r ia . T e u é o r e i n o e n o ssa t e r r a p r o m e t i d a . P o r t a n t o r e a liz a ,
d e t i , p o d e s r e a liz a r o q u e é n e ga d o ao se r h u m a n o fazer . Es t o u e sp e r a n d o .
Es fo r ç a - t e p o r e n c o n t r á - lo . O n d e fic a t u a fe licid a d e , se n ã o c u m p r e s t u a o b r i -
ga ç ã o d e t r a z e r a fe licid a d e ao se r h u m a n o ? P e n s a n isso ! T u t r a b a lh a r á s p a r a
m i m , e e u m e ca lo ".
d o d e r r e t i m e n t o . C o i s a ve lh a , q u e b r a d a , gast a p e lo u so, im p r e s t á ve l e d e s t r u í d a
jo ga n o t a ch o d o d e r r e t i m e n t o , p a r a q u e se r e n o ve e s i r va p a r a n o vo u so.
a d a p t a ç ã o a u so n o vo . E p r á t ic a e in c u b a ç ã o n a fo r n a l h a d e fu n d içã o , u m a r e t o -
m a d a d o in t e r io r , d o r e p r e s a m e n t o q u e n t e , o n d e sã o t ir a d a s fe r r u g e m e fr a gi-
q u e m i n h a o b r a t e n h a su cesso.
T o c a a t e r r a , a p e r t a t u a m ã o n a m a t é r ia , m o l d a - a c o m cu id a d o . G r a n d e é o
p o d e r d a m a t é r ia . H a p n ã o ve i o d a m a t é r ia ? A m a t é r i a n ã o é o p r e e n c h i m e n t o
d o va z io ? En q u a n t o m o ld a s a m a t é r ia , e u m o l d o t u a fe licid a d e . N ã o d u vid a s
d o p o d e r d e H a p . C o m o p o d e s d u vi d a r d o p o d e r d e su a m ã e , a m a t é r ia ? A
m a t é r i a é m a is fo r t e d o q u e H a p , p o is H a p é o filh o d a t e r r a . A m a t é r i a m a is
d u r a é a m e lh o r , t u d e ve s m o l d a r a m a t é r i a m a is d u r a d o u r a . Is t o d á fo r ç a ao
p en sam en t o.
{6 } E u fiz , c o m o m i n h a a l m a su ge r iu , e m o l d e i n a m a t é r i a os p e n s a m e n t o s q u e
e la m e d e u . E l a m e fa lo u m u i t a s ve z e s e d e m o r a d a m e n t e d a sa b e d o r ia q u e e st á
p o r t r á s d e n ó s 7 2 . M a s u m a n o i t e e la ch e go u d e r e p e n t e c o m o h á lit o d a i n t r a n -
c h a m e ja n t e ? U m fogo n o s ar es e sp e r a - ele se a p r o xi m a - u m a c h a m a - m u i -
t as c h a m a s - u m a m a r a vi l h a q u e n t e - c o m o se i n fl a m a m m u i t a s lu z e s? M e u
72 Cf. Apêndice C, 16 de janeiro de 1916. É um esboço preliminar da cosmologia dos Septem Sermones. A
referência de Jung à elaboração de seus conceitos de alma na matéria parece referir-se à composição do
Systema Munditotius (cf. Apêndice A) . Para um estudo sobre isto, cf. JERO M SO N , B. "Systema Munditotius and
SevenSermons: symbolic collaborators in Jungs confrontation wit h the dead". JungHístory, 1/2, 2 0 0 5- 2 0 0 6 , p.
6-10. • "Th e sources of Systema Munditotius: mandalas, myths and a misinterpretation". JungHistory, 2/ 2,
20 0 7, p. 20 - 22.
73 18 de janeiro de 1916.
AP RO FU N D AM EN T O S
446
M a s e u g r it e i h o r r o r i z a d o : "T e m o c o is a a ssu st a d o r a e t e r r íve l, o m e d o t o m a
c o n t a d e m i m , p o is t e m íve is fo r a m as co isas q u e m e a n u n c ia s t e a n t e s - tudo
d e ve se r q u e b r a d o , q u e im a d o , d e s t r u í d o ?"
"P a c iê n c ia ", d isse e la , e o l h o u fr i a m e n t e p a r a fo r a , "h á fogo so b r e t i , u m m a r
d e c a lo r d e s m e d id o ".
" N ã o m e t o r t u r e s — q u e se gr e d o s h o r r íve is p o ssu is? Fa la , e u t e p e ço . O u
m e n t e s d e n o vo , m a l d i t o e s p ír it o t o r t u r a d o r , m o n s t r o e n ga n a d o r ? O q u e s i g n i -
fi c a m t e u s fa n t a sm a s fr a u d u le n t o s ?"
M a s e la r e s p o n d e u se r e n a : " E u q u e r o t a m b é m t e u m e d o ".
"P a r a q u ê ? P a r a m e t o r t u r a r ?"
M a s e la c o n t i n u o u : "P a r a a p r e s e n t á - l o ao s e n h o r d e st e m u n d o 7 4 . E l e e xige
o sa cr ifício d e t e u m e d o . E l e t e ju lga d ign o d esse sa cr ifício . E l e 7 5 t e é p r o p í c i o ".
"P r o p í c i o a m i m ? O q u e s ign ific a isso? E u go st a r ia d e e s c o n d e r - m e d ele.
M i n h a face t e m e o s e n h o r d esse m u n d o , p o is e la e st á m a r c a d a , t r a z u m s in a l,
e la v i u o p r o ib id o . P o r isso t e m o o s e n h o r d esse m u n d o ".
74 O quadro Systema munditotius tem uma legenda ao pé: "Abraxas dominus m undi" [Abraxas o senhor do
mundo].
75 O Livro Negro $, tem: "Abraxas" (p. l 8 l ) .
AP RO FU N D AM EN T O S
447
t u a lín g u a e st á seca, t u a vo z e s t á r o u c a e d is s o n a n t e — c a m i n h a s a p r e ssa d o p a r a
fr e n t e , a n u n c ia s a q u ilo q u e se a p r o xi m a , so b es as m o n t a n h a s , va is a t o d o va le ,
m u r m u r a s p a la vr a s d e p a vo r e a n u n c ia s o t o r m e n t o d o fogo. Ca r r e g a s a m a r c a
d o fogo, e as p esso as fi c a m h o r r o r i z a d a s d ia n t e d e t i . El a s n ã o v e e m o fogo,
n ã o a c r e d i t a m e m t u a s p a la vr a s, m a s ve e m t u a m a r c a e p r e s s e n t e m e m t i , s e m
sab er, o m e n s a ge ir o d o t o r m e n t o q u e a r d e . Q u e fogo? P e r g u n t a m , q u e fogo?
T u gagu ejas, b a lb u cia s, o q u e sab es so b r e o fogo? E u o l h e i as b r asas, v i a c h a m a
in c a n d e s c e n t e . Q u e D e u s n o s salve p a r a o a lé m ".
" M i n h a a l m a ", g r i t e i d e se sp e r a d a m e n t e , "fa la , e xp l i c a - m e o q u e d e vo a n u n -
cia r : o fogo? Q u e fo go ?"
" O l h a p a r a c i m a , vê a c h a m a q u e a r d e so b r e t u a c a b e ç a - o l h a p a r a c i m a , os
cé u s fi c a m ve r m e l h o s ".
C o m essas p a la vr a s, m i n h a a l m a d e sa p a r e ce u .
M a s e u fiq u e i d u r a n t e m u i t o s d ia s n a i n t r a n q u i l i d a d e e co n fu sã o . M i n h a
a l m a se c a lo u e n ã o se p o d i a v ê - l a 7 6 M a s u m a n o it e , u m b a n d o s o m b r i o b a t e u à
m i n h a p o r t a e e u t r e m i d e m e d o . Ap a r e c e u , e n t ã o , m i n h a a l m a e d isse a p r e ssa -
d a m e n t e : "El e s e s t ã o a í e vã o a r r o m b a r t u a p o r t a ".
"Se r á q u e e st a m a n a d a r u i m va i i n va d i r o m e u ja r d i m ? Se r e i sa q u e a d o e
a t ir a d o n a r u a ? T u fazes d e m i m u m m a ca co e b r i n q u e d o d e cr ia n ça s. P o r q u e ,
m e u D e u s , d e vo se r lib e r t a d o d esse i n fe r n o d e lo u co s? M a s e u v o u a ca b a r c o m
vo ssas t r a m a s m a ld it a s , id e p a r a o in fe r n o , m a lu c o s . O q u e q u e r e is c o m igo ?"
M a s e la m e i n t e r r o m p e u e d isse: " O q u e e st á s fa la n d o ? C e d e a p a la vr a à
e s c u r id ã o ".
E u r e t r u q u e i : " C o m o p o sso c o n fia r e m t i? Tr a b a lh a s p a r a t i , n ã o p a r a m i m .
P a r a q u e se r ve s, se n ã o co n se gu e s p r o t e g e r - m e c o n t r a essa c o n fu s ã o d o d ia b o ?"
"F i c a q u ie t o ", d isse e la , "s e n ã o d e s t r ó is a o b r a ".
Q u a n d o d isse essas p a la vr a s, O I A H M Q N a p r o xi m o u - s e d e m i m c o m ve st e
b r a n c a d e sa ce r d o t e e c o lo c o u a m ã o so b r e m e u o m b r o 7 7 . Fa l e i e n t ã o à e s c u r i -
d ã o : "Fa l a i , vó s m o r t o s ". E lo go g r i t a r a m e m u n í s s o n o 7 8 : " N ó s vo l t a m o s d e Je -
76 29 de janeiro de 1916.
77 30 de janeiro de 1916. A frase precedente não ocorre no Livro Negro 5.
78 Sobre o significado dos Sermones que seguem, Jung disse a An iela Jaffé que as discussões com os mortos
formavam o prelúdio àquilo que ele iria posteriormente comunicar ao mundo e que o conteúdo deles
antecipava seus livros posteriores. "Então e a partir de então os mortos vieram a ser para mim, cada vez
mais claramente, as vozes do não respondido, do não dissolvido e não redimido". As perguntas que ele era
solicitado a responder não provinham do mundo circundante, mas dos mortos. Um dos elementos que
AP RO FU N D AM EN T O S
448
r u s a lé m , o n d e n ã o e n c o n t r a m o s o q u e p r o c u r á va m o s 7 9 . P e d im o s e n t r a d a j u n t o
a t i . T u a n sia st e p o r n ó s . N ã o t e u sa n gu e , t u a l u z . É is t o ".
En t ã o O I A H M Q N l e va n t o u su a vo z , d e u - lh e s u m a liçã o e d i s s e 8 0 ( e e st a é a
p r i m e i r a in s t r u ç ã o d o s m o r t o s ) 8 1:
o surpreendeu foi o fato de que os mortos pareciam não saber mais do que sabiam quando morreram.
Seria de presumir que eles haviam alcançado um conhecimento maior. Isto explicava a tendência dos
mortos a invadir a vida e por que, na Ch in a, eventos familiares importantes precisam ser comunicados aos
ancestrais. Ele sentia que os mortos estão esperando as respostas dos vivos (MP, p. 258-259; Memórias, p.
228 ) . Cf. acima nota 135 (p. 151) sobre Crist o pregando aos mortos nos infernos.
79 Cf. acima, p. 297, em que os anabatistas mortos guiados por Ezequiel estavam dirigindo-se a Jerusalém
para rezar nos lugares santos.
8 0 Esta frase não ocorre no Livro Negro 5. Quanto à relação de Filêmon com os Sermones, Jung contou a An iela
Jaffé que ele compreendeu Filêmon nos Sermones. Foi aqui que Filêmon perdeu sua autonomia (MP, p. 25).
81 A versão caligráfica e a versão impressa dos Sermones, feitas por Jung, trazem o subtítulo: "As sete
instruções dos mortos. Escritas por Basilides em Alexan dria, cidade onde o O rien t e toca o Ocidente.
Traduzidas do texto original grego para a língua alemã". Basilides foi um filósofo cristão de Alexan dria,
na prim eira metade do século I I . Pouco se sabe sobre sua vida e de seus ensinamentos subsistiram
apenas fragmentos (e nenhum de seu próprio pun ho), que apresentam um mito cosmogônico. Para os
fragmentos existentes e comentário, cf. LAYT O N , B. (org.). The GnosticScriptures. Nova York: Doubleday,
1987, p. 417-444. De acordo com Ch arles Kin g, Basilides era egípcio de nascimento. An t es de sua
conversão ao cristianismo, "seguiu as doutrinas da gnose orien tal e procurou [...] combinar as doutrinas
da religião cristã com a filosofia gnóstica. [...] Para isso escolheu expressões inventadas por ele e
símbolos criativos" (TheGnosticsandtheirRemains. Londres: Bell and Daldy 1864, p. 33-34). De acordo com
Layton , o mito gnóstico clássico tem a seguinte estrutura: "Ato I . A expansão de um prim eiro princípio
solitário (deus) para um pleno universo (espiritual) não físico. At o I I . Criação do universo m aterial,
incluindo as estrelas, os planetas, a terra e o inferno. At o I I I . Criação de Adão, Eva e seus filhos. At o
IV. História subsequente da raça humana" (ibid., p. 13). Assim , em seu esboço mais amplo, os Sermones
de Jung são apresentados em forma análoga a um m ito gnóstico. Jung trata de Basilides em Aíon (1951).
Cred it a aos gnósticos o mérito de ter encontrado expressões simbólicas adequadas do Self e observa
que Basilides e Valen tim "foram fortemente influenciados pela experiência natural íntima. Por isso eles
são, como os alquimistas, uma verdadeira m in a daqueles símbolos resultantes da evolução posterior
da ação do Evangelho. Mas suas ideias constituem igualmente compensações para a assimetria divin a
introduzida pela doutrina da 'privatio boní', inteiramente na lin h a das conhecidas tendências modernas
do inconsciente de fabricar símbolos de totalidade para transpor a brecha entre a consciência e o
inconsciente [...]" ( O C , 9 / 2, § 4 28 ) . Em 1915, ele escreveu uma carta a um amigo dos seus tempos de
estudante, Ru d olf Lich ten h an , que escrevera um livro intitulado Die Offenbarung ím Gnostícísmus ( 19 0 1) .
Da resposta de Lich ten h an , datada de 11 de novembro, aparece que Jung pedira informações sobre a
concepção de diversos personagens humanos no gnosticismo e sua possível correlação com a distinção
feita por W illiam James entre personagens insensíveis e personagens compassivos ( JA) . Em Memórias,
Jung disse: "De 1918 até 19 26, aproximadamente, eu me ocupara seriamente com os gnósticos, pois
também eles haviam topado com o mundo prim itivo do inconsciente. Haviam -se ocupado com seu
conteúdo e imagens, que notoriamente foram contaminados com o mundo dos in stin tos" (p. 239 ) .
Jung já estava lendo literatura gnóstica no decorrer das leituras preparatórias para Transformações e símbolos
da libido. Houve um extenso corpo de comentários sobre os Septem Sermones, o que proporciona alguma
análise valiosa. No entanto, esses comentários devem ser tratados com cautela, já que abordaram os
Sermones sem a vantagem do Líber Novus e dos Livros Negros e, não menos importante, dos comentários de
Filêmon, que, juntos, proporcionam um esclarecimento contextual crítico. O s estudiosos discutiram
a relação de Jung com o gnosticismo e o Basilides histórico, outras possíveis fontes e paralelos para os
Sermones e a relação dos Sermones com as obras posteriores de Jung. Cf. especialmente M AI LLAR D , C.
Les Septem Sermones aux Morts de Carl Gustav Jung. Nancy: Presses Un iversitaires de Nancy, 1993. Cf. tb. R I BI ,
A. Die Suche nach den eígenen W urzeln: Die Bedeutung von Gn osis, Herm et ik und Alchem ie fúr C G . Jung
und Marie-Louise von Fran z und deren Einfluss auf das moderne Verstãndnis dieser Disziplin . Berna:
AP RO FU N D AM EN T O S 449
"O u vi, pois: Eu com eço n o n ada. O n ada é o m esm o que a plen it u d e. N a
in fin it u d e h á t an t o o ch eio quan t o o vazio. O n ad a é ch eio e vazio. Vó s podeis
t am bém d izer ou t ra coisa do n ada com o, por exem plo, que é bran co ou preto,
que n ão exist e, ou que exist e. U m a coisa et ern a e sem fim n ão t em qualidades,
porque possui todas as qualidades.
"N ó s ch am am os o n ada ou a plen it u d e de Plerom a82. Nele cessam pen sar e ser,
pois o et ern o e sem fim n ão t em qualidades. Nele n ão h á n in gu ém , pois en t ão
seria d ist in t o do Pler om a e t eria qualidades que o d ist in gu em com o algum a
coisa do Plerom a.
"N o Pler om a n ão h á n ada e t udo; n ão vale a pen a reflet ir o Plerom a, pois
ist o sign ificaria: dissolver a si m esm o.
"A criatura n ão est á n o Plerom a, mas em si. O Pler om a é o com eço e o fim
d a cr iat u r a 8 3 : ele os im pregn a com o a lu z do sol im pregn a o ar por t oda part e.
Peter Lang, 1991. • SEGAL, R. TheGnostíc Jung. Princeton: Prin ceton Un iversit y Press, 1992. • Q U I SP E L,
G. "C.G. Jung und die Gn osis". Franos-Jahrhuch, 37,1968 [reimpresso em SEGAL] . • BR E N N E R , E.M .
"Gn ost icism and Psychology: Jung's Septem Sermones ad Mortuos". Journal of Analytícal Psychology, 3$,
1990. • H U BBA C K, J. " V I I Sermones ad mortuos". Journalof Analytícal Psychology, 11,1966. • H E I S I G , J.
"Th e V I I Sermones: Play and Th eory". Spríng, 1972. • O LN EY, J. The Rhízome and the Flower: Th e Perennial
Philosophy Yeats and Jung. Berkeley: University of Califórnia Press, 1980. • H O E LLE R , S. TheGnostíc Jung
andtheSevenSermonstotheDead. Wheaton , 111.: Quest, 1982.
82 Pleroma, ou plenitude, é um termo tirado do gnosticismo. Desempenhou um papel central no sistema
valentiniano. Han s Jonas observa que "Plerom a é o termo corrente para designar a multiplicidade
plenamente explicada das características divinas, cujo número padrão é trin ta, formando uma hierarquia
e constituindo, juntas, o domínio divin o" (TheGnostíc Religion: Th e Message of the Alien God and the
Beginnings of Christianity. Londres: Routledge, 1992, p. 180). Em 1929, Jung disse: "O s gnósticos [...]
expressaram isto como Plerom a, um estado de plenitude no qual os pares de opostos, sim e não, dia e
noite, estão unidos; depois, quando eles Vêm a ser', é ou dia ou noite. No estado de 'promessa' antes de
virem a ser, eles são não existentes, não há nem branco nem preto, nem bom nem mau" ( M c G U I RE,
W (org.). Dream Analysis: Notes of the Seminar given in 1928-1930. Princeton/ Londres: Prin ceton
Un iversity Press/ Routledge, 1984, p. 131 [Bollin gen Series]. Em seus escritos posteriores, Jung usou
o termo para designar um estado de preexistência e potencialidade, identificando-o com o bardo
tibetano: "Por isso ele deve acostumar-se com a ideia de que o tempo é um conceito relativo que, a
rigor, deveria ser completado pela noção da existência 'simultânea' de bardo ou pleromática de todos
os processos históricos. Aquilo que existiu como 'processo' eterno no Plerom a surge, no tempo, como
sequência aperiódica, ou seja, numa repetição muitas vezes irregular" [Resposta a Jó (1952). O C , 11/4, §
629. Cf. tb. § 620, 624, 67$, 686, 727, 733, 748]. A distinção que Jung estabelece entre o Plerom a e a
criação tem alguns pontos de contato com a diferenciação feita por Mestre Eckh art entre a divindade e
Deus. Jung teceu comentários sobre isto em Tipos psicológicos (OC, 6, § 429S.). A relação entre o Plerom a
de Jung e Eckh art é discutida por Maillard. O p. cit., p. 118-120. Em 1954 Jung equiparou o Plerom a à
noção do "unus mundus" [o mundo uno] do alquimista Gerard Dor n (Mysterium coniunctionis. OC, 14/ 2,
§ 325). Jung adotou esta expressão para designar o postulado transcendental da unidade subjacente à
multiplicidade do mundo empírico (ibid., § 413S.).
83 Em Tipos psicológicos (1921, Jung descreveu o "Tao" como "o ser criador, que fecunda como o pai e dá à luz
como a mãe. E o princípio e o fim de todos os seres" ( O C, 6, § 412). A relação do Pleroma de Jung com
o Tao chinês é analisada por Maillard, op. cit., p. 75. Cf. TheVísio Dorotheí: Desert Context, Im perial Setting. Later
Alignments, pp. 179-180.
45o AP RO FU N D AM EN T O S
Ain d a que o P l e r o m a p er p asse tudo, a criat u ra n ão p art icip a disso, assim com o
u m corpo t ot alm en t e t ran sparen t e n ão fica claro n em escuro por causa da lu z
que o im pregn a.
"Mas n ós m esm os somos o Plerom a, pois somos u m a part e do et ern o e i n -
fin it o. Mas n ão tem os part e n isso; estam os m u it o distan tes do Plerom a, n ão n o
espaço ou n o tem po, mas n a essência, en quan t o nos dist in gu im os n a essên cia do
Pler om a com o criat u ra lim it ad a n o tem po e n o espaço.
"Mas en quan t o partes do Plerom a, ele t am bém está em n ós. Mesm o n o
m ín im o pon to, o Plerom a é in fin d o, et ern o e t ot al, pois pequen o e grande são
qualidades nele con tidas. E o n ada que é t ot al em t oda part e e in in t erru p t o.
Por isso falo só sim bolicam en t e da criat u ra com o de u m a parte do Plerom a,
pois n a verdade o Plerom a n ão é d ivid id o em part e n en h u m a, pois ele é o nada.
N ó s somos t am bém o Plerom a todo, pois sim bolicam en t e o Plerom a é o m e-
n or pon to, apenas aceito, n ão exist en t e em n ós e n o firm am en t o ilim it ad o em
t orn o de n ós. Mas en t ão por que falamos do Plerom a, se ele é tudo e n ada ao
m esm o tem po?
"Falo disso para com eçar em algum lugar e para t irar-vos a ilusão de que
em algum lugar fora ou d en t ro h aja de an t em ão algo firm e ou de algum a form a
det erm in ado. Tod o o ch am ado firm e ou d et erm in ad o é apenas relat ivo. Só é
firm e e d et erm in ad o o que é possível de ser m odificado.
"Mas o m odificável é a criat u ra, port an t o ela é a ú n ica coisa firm e e d et er m i-
n ada, pois ela t em qualidades, sim , ela m esm a é u m a qualidade.
"N ó s levan t am os a q u est ão: com o su r giu a cr iat u r a? As cr iat u r as o r igin a-
r am -se, m as n ão a cr iat u r a, pois ela é a qu alid ad e do p r ó p r io Ple r o m a , assim
com o a n ão criação, a m or t e et ern a. A cr ia t u r a é sem pre e em t od a p art e,
a m or t e é sem pre e em t od a p art e. O Ple r o m a t em t u d o, d ifer en ciação e
in d ifer en ciação.
"A d ifer en ciação 8 4 é a criat u ra. Ela é d ist in t a. Diferen ciação é sua n at u reza,
por isso ela t am bém diferen cia. Por isso o ser h u m an o d iferen cia, pois sua n a -
t u reza é diferen ciação. Por isso dist in gue t am bém as qualidades do Plerom a,
que n ão exist em . Ele as dist in gue a p art ir de sua n at ureza. Por isso o ser h u m a-
n o precisa falar das qualidades do Plerom a, que n ão exist em .
"Vó s d izeis: o que ad ian t a falar disso? T u m esm o disseste que n ão ad ian t a
reflet ir sobre o Plerom a.
"Eu vos disse ist o para vos lib ert ar d a ilusão de que se pode reflet ir sobre o
Plerom a. Q u an d o d ist in gu im os as qualidades do Plerom a, falamos en t ão a par-
t ir de n ossa diferen ciação e sobre n ossa diferen ciação, e n ada dissem os sobre o
Plerom a. Mas é n ecessário falar sobre nossa diferen ciação, para que possam os
d iferen ciar-n os o bastan te. Nossa n at u reza é diferen ciação. Se n ão form os fiéis
a esta n at u reza, n ão nos diferen ciarem os o bastan te, por isso tem os de d iferen -
ciar as qualidades.
"Vó s pergun tais: 'qual é o m al de a gente n ão se d iferen ciar?' Se n ão d i -
feren ciarm os, passamos para além de n ossa n at u reza, para além d a criat u ra e
caím os n a in dist in ção, que é a ou t ra qualidade do Plerom a. Caím os d en t ro do
p róp rio Plerom a e ren u n ciam os a ser criat u ra. Su cu m bim os à dissolução n o
n ada. Ist o é a m ort e d a criat u ra. Port an t o, m orrem os n a m ed id a em que n ão
d ist in gu irm os. Por isso o em pen h o n at u ral da criat u ra dirige-se à dist in ção, lu t a
con t ra a igualdade p r im or d ial, perigosa. Ist o se ch am a príncípíum índívíduatíonís85.
Est e p rin cíp io é a essên cia da criat u ra. Nisso podeis ver por que a in d ist in ção e
o n ão d iferen ciar são u m gran de perigo para a criat u ra.
o vivo e o m ort o,
o diferen t e e o igual,
o claro e o escuro,
o quen te e o frio,
a força e a m at éria,
o b em e o m al,
o belo e o feio,
o u n o e o m ú lt iplo, etc.
"O s pares de opostos são as qualidades do Pler om a que n ão exist em , porque
se an u lam . Já que n ós m esm os somos o Plerom a, tem os t am bém em n ós todas
essas qualidades; já que o fun dam en t o de n ossa n at u reza é a dist in ção, tem os as
qualidades em n om e e em sin al da dist in ção, ist o sign ifica:
"Pr im eir o: as qualidades estão em n ós d ist in t as en t re si e separadas, por isso
n ão se an u lam , mas são operan tes. Por isso somos a vít im a dos pares de opos-
tos. Em n ós o Pler om a está desun ido.
"Segu n d o: as qu alid ad es p er t en cem ao Ple r o m a e n ós só p od em os p os-
su í-las ou vivê-las em n om e e em sin al d a d ist in ção. Mas d evem os d ist in -
gu ir -n os das qu alid ad es. N o Plerom a elas se an u lam , em n ós não. A d iferen -
ciação delas lib ert a.
"Q u an d o lut am os pelo bem e pelo belo, esquecem os nossa n at u reza, a d is-
t in ção exist e e n ós sucum bim os às qualidades do Pler om a com o aquelas que
form am os pares de opostos. N ó s nos esforçam os para alcan çar o b om e o belo,
mas abrangem os ao m esm o t em po o m au e o feio, pois eles são u m n o Plerom a
com o b em e o belo. Mas quan do ficam os fiéis à n ossa n at u reza, ou seja, à d is-
t in ção, en t ão nos diferen ciam os do b om e do belo e, por isso, t am bém do m au e
do feio, e n ão caím os n o Plerom a, ou seja, n o n ada e n a d issolu ção 8 6 .
"Vó s objetais: t u disseste que o diferen t e e o id ên t ico são t am bém qu alid a-
des do Plerom a. O que acontece quan do lu t am os pela diferen ciação? Som os
en t ão fiéis à n ossa n atureza? E devem os su cu m bir en t ão t am bém à igualdade,
quan do lut am os pela diferen ciação?
86 A noção de vida e de natureza sendo constituída por opostos e polaridades ocupou um lugar central na
Naturphilosophie de Schelling. A noção de que o conflito psíquico assumia a forma de um conflito de opostos
e a cura representava a solução dos mesmos ocupou um lugar eminente na obra posterior de Jung (cf. Tipos
psicológicos. O C , 6, cap. V [1921]. • Mysteriumconiunctionis [1955/ 1956]. O C , 14).
AP RO FU N D AM EN T O S 453
88
M a s eu m e volt ei para O I AH M Q N e disse: "Me u pai, deste u m en sin a-
m en t o m aravilh oso. O s antigos n ão apren d eram coisa sem elh an te? E n ão foi
u m a h eresia con d en ável, igualm en t e longe do am or e da verdade? Por que e n -
sinas sem elh an t e d ou t r in a a este ban do que o ven t o da n oit e arrebat ou dos
cam pos escuros de sangue do O cid en t e?"
"Me u filh o", respon deu O I AH M Q N , "esses m ort os t er m in ar am sua vid a
cedo dem ais. São aqueles que procu ravam e por isso ain d a p airam sobre suas
sepulturas. Su a vid a ficou in com plet a, pois n ão con h eciam o cam in h o para
além daquilo que a fé lh es d est in ou . Mas com o n in gu ém os in st ruía, devo eu
fazê-lo. Ist o é o m an d am en t o do am or, pois qu eriam ouvir, ain d a que m u r m u -
rem . Mas por que lh es en sin o a d ou t rin a dos antigos? En sin o-lh es dessa form a
porque sua fé crist ã ren egou e perseguiu cert a vez precisam en t e essa d ou t rin a.
Mas eles m esm os ren egaram a fé crist ã e por isso t orn aram -se aqueles que a fé
crist ã t am bém ren egou. Ist o eles n ão sabem , e por isso devo en sin ar-lh es, para
que sua vid a se com plet e e eles possam en t rar n a m ort e".
87 O s parágrafos seguintes até o fim desta seção não ocorrem no Livro Negro 6.
88 Na versão publicada dos Sermones, estes comentários que seguem cada sermão não aparecem, nem aparece
Filêmon: tem-se suposto que a pessoa que profere os sermões seja Basilides. Estes comentários foram
acrescentados em Aprofundamentos.
454 AP RO FU N D AM EN T O S
89 Em sua entrevista à T V BBC de 1919, John Freeman perguntou a Jung: "Você agora acredita em Deus>"
Jung respondeu: "Agora?' [Pausa.] Difícil de responder. Eu sei. Eu não preciso acreditar. Eu sei". M c GU I RE,
W & H U LL, R.F.C. CG. JungSpeaking: Interviews and Encounters. Princeton: Princeton University, 1977,
p. 428 [Bollingen Series]. A afirmação de Filêmon aqui parece constituir o pano de fundo para esta muito
citada e discutida afirmação. Esta ênfase na experiência direta está também de acordo com o gnosticismo
clássico.
90 13 de janeiro de 1916. Esta frase não está no Livro Negro 6.
91 Para a discussão de Nietzsche sobre a morte de Deus, cf. A gaia ciência ( i 8 8 2 , § i o 8 e i 2 5) e Assim falava
Zaratustra (Q u art a parte: "Em disponibilidade", p. 325SS.). Para a discussão de Jung sobre isso, cf.
"Psicologia e religião" (1938), § 142S. Jung comentou: "Ao dizer 'Deus está morto', Nietzsche enunciou
uma verdade válida para a maior parte da Europa" (ibid., § 145). A esta afirmação de Nietzsche, Jung
AP RO FU N D AM EN T O S 455
"Deu s n ão est á m ort o, está vivo com o sem pre. Deu s é criat u ra, pois é algo
d et erm in ad o e por isso d ist in t o do Plerom a. Deu s é qualidade do Pler om a e
tudo o que eu disse da criat u ra vale t am bém para ele.
"Mas ele se dist in gue da criat u ra pelo fato de ser b em m ais in d ist in t o e i n -
d et erm in ável do que a criat u ra. É m en os diferen ciado do que a criat u ra, pois
o fun dam en t o de sua n at u reza é a plen it u d e operan te, e só n a m ed id a em que
é d et erm in ad o e diferen ciado é ele criat u ra e, n est a m edida, é a explicação da
plen it u d e atuan te do Plerom a.
"Tu d o o que n ão d ist in gu im os cai n o Pler om a e se an u la com seu oposto.
Por isso quan do n ão d iferen ciam os Deu s, a plen it u d e at uan t e fica an u lada
para n ós.
"Deu s é t am bém o p róp rio Plerom a, assim com o qualquer out ro m in ú scu lo
pon t o n o criado e n o in criad o é o p róp rio Plerom a.
"O vazio operan te é a n at u reza do d em ón io. Deu s e d em ón io n ão são as
p rim eiras m an ifest ações do n ada, que ch am am os de Plerom a. É in d iferen t e
se o Pler om a existe ou n ão exist e, pois ele m esm o se an u la em tudo. N ã o é
assim com a criat u ra. N a m ed id a em que Deu s e d em ón io são criat u ras, n ão
se an u lam , m as perm an ecem u m con t ra o ou t ro com o opostos operan tes. N ã o
precisam os de n en h u m a prova de sua exist ên cia, basta que ten h am os de falar
deles con st an t em en t e. Mesm o que os dois n ão exist issem , a criat u ra, por causa
de sua n at u reza d a dist in ção, sem pre os d ist in gu iria a p ar t ir do Plerom a.
"Tu d o o que a d ist in ção t ir a do Plerom a é par de opostos, por isso sem pre
pert en ce a Deu s t am bém o d e m ó n io 9 2 .
"Est a p ert en ça é t ão ín t im a e, com o o experim en t ast es, t ão in dissolúvel em
vossa vid a com o o p róp rio Plerom a. Ist o vem do fato de am bos est arem bem
p róxim os do Plerom a, n o qual se an u lam todos os opostos e se t orn am u m .
"De u s e o d em ón io se d ist in gu em pelo ch eio e vazio, geração e d est ru ição.
O operante lh es é com u m . O operan t e os u n e. Por isso o operan t e est á acim a
observou: "Mas seria mais correto dizer: 'Ele tirou nossa imagem e onde vamos encontrá-la de novo'?"
(ibid.). Passa então a discutir o motivo da morte e desaparecimento de Deus em conexão com a
crucifixão e ressurreição de Cristo.
92 Cf. "Interpretação psicológica do Dogma da Trindade" (1940). O C , 11/2, § 284S.
456 AP RO FU N D AM EN T O S
95
Aq u i os m ort os levan t aram gran de t u m u lt o, pois eram cristãos.
93 Em 1932, Jung comentou sobre Abraxas: "O símbolo gnóstico Abraxas, um nome inventado que significa
trezentos e sessenta e cinco [...]. os gnósticos o usavam como nome de sua divindade suprema. Era um
deus do tempo. A filosofia de Bergson, a durée créatrice, é uma expressão da mesma ideia". Jung descreveu-o
de uma maneira que ecoa sua descrição aqui: "Assim como este mundo arquetípico do inconsciente
coletivo é extremamente paradoxal, sempre sim e não, essa figura de Abraxas significa o início e o fim, ela
é vida e morte, e por isso é representada por uma figura monstruosa. Ela é um monstro porque é a vida
da vegetação no decurso de um ano, a primavera e o outono, o verão e o inverno, o sim e não da natureza.
Por isso Abraxas é realmente idêntico ao Demiurgo, o criador do mundo. E como tal é certamente
idêntico ao Purusha ou a Shiva" (16 de novembro. Vísíons Seminar. Vol. 2, p. 806-807). Jung acrescentou
que "Abraxas é geralmente representado com a cabeça de um pássaro, o corpo de um homem e a cauda
de uma serpente, mas existe também o símbolo da cabeça de leão com corpo de dragão, a cabeça coroada
com os doze raios, numa alusão ao número dos meses" (ibid. 7 de junho de 1933, p. 1.041-1.042). De
acordo com Santo Ireneu, Basilides afirmava que "o monarca deles chama-se Abrasaks e é por isso que
este (monarca) traz em si o número 365" ( LAYT O N (org.). The GnostícScríptures, p. 425). Abraxas ocupou
um lugar proeminente na obra de D I E T E R I C H , A. Abraxas - Studien zur Religionsgeschichte des spãten
Altertum s. Leipzig, 1891. Jung estudou esta obra com atenção no início de 1913 e seu exemplar contém
anotações. Jung possuía também um exemplar de The Gnostícs and their Retnains de Charles Kin g (Londres:
Bell and Daldy, 1864) e encontram-se anotações marginais ao lado desta passagem à p. 37, discutindo a
etimologia de Abraxas.
94 Na mitologia grega, Helios é o Deus Sol. Jung analisou as mitologias solares em Transformações e símbolos da
libido (1912. O C , B, § 177SS.) e também em sua palestra conclusiva inédita sobre Opicinus de Canistris, na
conferência de Eranos em Ascona em 1943 ( JA) .
95 O s parágrafos seguintes até o fim desta seção não ocorrem no Livro Negro 6.
AP RO FU N D AM EN T O S 457
t o d o o cr ia d o . El e s n ã o r e je i t a r a m u m D e u s q u e é u m p a i, u m a m a n t e , b o n d o s o
e belo? U m Deu s ao qu al at ribu íram det erm in adas qualidades e u m d et erm in a-
do ser? Por isso preciso en sin ar-lh es u m Deu s ao qual n ada pode ser at ribuído,
que t em todas as qualidades e, com isso, n en h u m a, porque eu e eles só podem os
con h ecer u m Deu s assim ".
"Mas com o, ó m eu pai, pod em as pessoas en t rar em acordo com u m Deu s
assim ? O con h ecim en t o de t al Deu s n ão é o rom p im en t o do vín cu lo h u m an o e
de t oda com un idade que se baseia no b em e n o belo?"
O I AH M Q N respon deu: "Esses m ort os rejeit aram o Deu s do am or, do bem
e do belo, eles t iver am de rejeit á-lo e assim rejeit aram a u n ião e com un idade
n o am or, n o bom e n o belo. E assim m at aram -se m u t u am en t e e d issolveram a
com un idade das pessoas. Devo eu en sin ar-lh es o Deu s que os u n iu n o am or e
que eles rejeit aram ? Por isso en sin o-lh es o Deu s que dissolve a un ião, que des-
ped aça todo o h u m an o, que cr ia poderosam en te e d est rói com força. A qu em o
am or n ão un e, a este força o m edo".
Ten d o O I AH M Q N d it o estas palavras, cu rvou -se rapidam en t e para o chão,
t ocou-o com a m ão e desapareceu.
{8} N a n oit e segu in t e 9 7 aproxim aram -se n ovam en t e os m ort os com o n évoa
dos pân t an os e grit aram :
"Fala-n os m ais a respeit o do Deu s su prem o".
E O I AH M Q N aproxim ou -se, ficou de pé e disse (e esta é a t erceira in st r u -
ção dos m o r t o s) 9 8 :
97 I o de fevereiro de 1916.
98 Esta frase não está no Livro Negro 6.
99 Aristóteles definiu a felicidade como o bem supremo (Summum Bonum). Em sua Summa Theologica, Tomás
de Aquino identificou-a com Deus. Jung considerava a doutrina do Summum Bonum a fonte do conceito da
privatio boni, que, em sua opinião, havia levado à negação da realidade do mal. Cf. Aíon (1951) ( O C, 9/ 2, §
80, 94). Por isso ela é contrabalançada aqui com o Infimum Malum.
100 No Livro Negro 6 (cf. Apêndice C ) , Jung observa que Abraxas é o Deus das rãs e que "o Deus das rãs
ou dos sapos, o anencéfalo, é a fusão do Deus cristão com satanás" (cf. abaixo, p. 367). Em seus escritos
posteriores, Jung sustentou que a imagem do Deus cristão era unilateral por deixar fora o fator do mal.
AP RO FU N D AM EN T O S 459
A vid a parece ser m en or e m ais fraca do que o sum m um bonum , razão por que
é difícil t am bém pen sar que Ab raxas supere até m esm o o sol em poder, que é a
fon te rad iosa de t oda força vit al.
"Abraxas é o sol e ao m esm o t em po a garganta et ern am en t e sugadora do
vazio, do d im in u id or, do fragm entado, do d em ón io.
O poder de Ab raxas é duplo. Mas vós n ão o vedes, pois aos vossos olhos
levan t a-se o volt ar-se u m con t ra o ou t ro desse poder.
"O que o Deu s-So l fala é vid a, o que o d em ón io fala é m ort e.
"Mas Ab raxas fala a palavra dign a de ven eração e m ald it a, a vid a e a m ort e
ao m esm o tem po.
"Abraxas gera verdade e m en t ir a, o m al e o bem , lu z e trevas n a m esm a p a-
lavra e n o m esm o ato. Por isso ele é t errível.
"E m agn ífico com o o leão n o m om en t o em que abate sua vít im a. E belo
com o u m d ia p rim averil.
"Sim , ele é o p róp rio grande Pã e o pequeno.
"Ele é Príapo.
"Ele é o m on st ro do subm un do, u m p ólip o com m il braços, en rod ilh am en t o
de cobra, fúria.
"Ele é o h erm afrod it a dos tem pos im em oriais.
"Ele é o sen h or dos sapos e rãs que m or am n a água e sobem à t erra, que
can t am em coro ao m eio-d ia e à m eia-n oit e.
"Ele é o ch eio que se un e ao vazio.
"Ele é o coit o sagrado.
"Ele é o am or e seu assassino.
"Ele é o santo e seu t raidor.
"Ele é a lu z m ais b rilh an t e do d ia e a n oit e m ais profu n da d a lou cu ra.
Estudando as transformações históricas das imagens de Deus, ele tentou corrigir isto (especialmente Aíon e
Resposta a Jó). Em sua nota sobre como Resposta a Jó foi escrito, Jung escreveu que em Aíon ele havia "criticado
a ideia àaprívatío honí, [...] pois essa ideia não se coaduna com os conhecimentos psicológicos. A experiência
psicológica mostra-nos que aquilo que chamamos de 'bem' se contrapõe a um 'm al' igualmente substancial.
Se o 'm al' não existe, então tudo o que existe seria forçosamente 'bom'. Segundo o dogma, nem o 'bem '
nem o 'm al' têm sua origem no homem, pois 'o maligno' existiu antes do homem, como um dos 'filhos de
Deus'. A ideia àaprivatío honí só começou a desempenhar um certo papel na Igreja depois do aparecimento
de Manes. Antes do maniqueísmo, Clemente de Rom a ensinava que Deus governava o mundo com uma
mão direita e com uma mão esquerda; pela mão direita ele entendia Crist o e pela mão esquerda, satanás.
A concepção de Clemente é evidentemente monoteísta, pois une os contrários em um só Deus. Mais tarde,
porém, o cristianismo se torna dualista, na medida em que a parte dos opostos personificada em satanás é
separada [...}. Se o cristianismo reivindica para si a condição de religião monoteísta, a hipótese dos opostos
presentes em Deus se faz necessária" (1956. O C , 11/4, p. 474-475).
46o AP RO FU N D AM EN T O S
10 2
Aq u i u ivaram e se en fureceram os m ort os, pois eles eram im perfeit os.
Mas quan do sua grit aria cessou, eu disse a O I AH M Q N : "Me u pai, com o
devo en t en der esse Deu s?"
I O 1 Em 1942, Jung observou: "O conceito de um Deus que tudo abarca tem de incluir necessariamente o seu
oposto. A coincidência, no entanto, não pode ser muito radical, porque então Deus se anularia. A ideia
da coincidência dos opostos tem que ser completada ainda por seu contrário, a fim de alcançar o pleno
paradoxo e, consequentemente, a validade psicológica" ("O espírito Mercurius". O C , 13, § 256).
102 O s parágrafos seguintes até o fim desta seção não ocorrem no Livro Negro 6.
AP RO FU N D AM EN T O S 461
"O Deu s-So l é o bem suprem o; o d em ón io, o oposto. Assim tendes dois
deuses. Mas h á m u it as coisas suprem as e boas e m u it os m ales en orm es. En t r e
estes h á dois d eu ses-d em ôn ios, u m é o Ardente, o ou t ro é o Crescente.
"O arden te é ERO S n a form a de ch am a. A ch am a dá lu z porque se con so-
10 4
me .
"O crescen te é a ÁRVORE DA VIDA. Ge r m in a e, o crescer, se acu m u la de
coisas viva s 10 5 .
"Er o s se in flam a e m orre. Mas a árvore da vid a cresce len t a e con st an t em en -
te, por tem po in com en su rável.
"O bem e o m al estão u n idos n a ch am a.
"O bem e o m al est ão u n idos n o crescim en t o da árvore, em suas divin dades,
vid a e am or se op õem .
"In con t ável com o a m u lt id ão das estrelas é o n ú m ero de deuses e d em ón ios.
"Ca d a est rela é u m Deu s e cada espaço que u m a est rela ocupa é u m d em ó -
nio. Mas o vazio do todo é o Plerom a.
"A m an ifest ação do todo é Ab raxas, só o irreal se opõe a ele.
"Q u a t r o é o n ú m ero dos deuses p rin cip ais, pois quat ro é o n ú m ero das m e-
didas do m un do.
106 O Livro Negro 6, continua: "O s mortos: 'Tu és um pagão, um politeísta"' (p. 30).
107 5 de fevereiro de 1916.
108 No Livro Negro 6, o hóspede escuro (cf. adiante, p. 473) entra aqui.
464 AP RO FU N D AM EN T O S
"O s d e u se s e scu r o s fo r m a m o m u n d o t e r r e st r e . Sã o s im p le s e i n fi n i t a m e n t e
decrescentes e m in guan t es. Seu sen h or m ais ín fim o é o d em ón io, o espírit o
lun ar, satélite da t erra, m en or, m ais frio e m ais m ort o do que a t erra.
"N ã o h á d iferen ça en t re o poder dos deuses celestes e t errest res. O s celestes
au m en t am de t am an h o, os t errest res d im in u em . In com en su rável é a or ien t a-
ção de am bos".
10 9
Aq u i os m ort os in t errom p eram a fala de O I AH M Q N com risadas fu rio-
sas e gritos sarcásticos e, ao se afastarem aos poucos, sua discórdia, zom b aria e
risadas su m iram n a dist ân cia. Volt ei-m e para O I AH M Q N e disse:
"Ó O I AH M Q N , t en h o a im pressão de que te enganas. Parece-m e que en si-
nas u m a cru a superst ição, que os nossos pais su peraram de m odo feliz e glorio-
so, aquela m u lt ip licid ad e de deuses que só u m espírit o que n ão consegue lib er -
t ar seu olh ar das am arras dos apetites presos às coisas sensuais pode p rod u zir".
"Me u filh o", respon deu O I AH M Q N , "esses m ort os rejeit aram o ú n ico Deu s
altíssim o. Co m o posso en sin ar-lh es o ú n ico e n ão m ú lt iplo Deu s? Eles deve-
r iam acredit ar em m im . Mas rejeit aram a fé. Port an t o, en sin o-lh es o Deu s que
eu con h eço, o m ú lt iplo, o expan dido, que é o objeto e ao m esm o t em po o seu
reflexo, e eles t am bém o con h ecem , m esm o que dele n ão t en h am con sciên cia.
"Esses m ort os d eram n om e a todos os seres, aos seres n o ar, n a t er r a e n a
água. Eles pesaram e con t aram os objetos. Eles con t aram tan tos e t an t os cava-
los, vacas, ovelhas, árvores, t er r a plan a, fontes; d izem que ist o é b om para este
objet ivo e que aquilo é bom para aquele objetivo. O que fizeram com a árvore
dign a de ven eração? O que acon teceu com a rã sagrada? Vir a m eles seus olhos
dourados? O n d e est á a expiação pelas 7.777 reses cujo sangue d erram aram , cu ja
carn e devoraram ? Fizer am pen it ên cia pelo m et al sagrado que cavaram do ve n -
t re da terra? Não , eles d eram n om e, pesaram , con t aram e rep art iram todas as
coisas. Fizer am disso o que qu iseram . E o que fizeram ! T u vist e aquilo que
t em a força - mas exat am en t e assim d eram às coisas poder e n ão o sabiam .
Mas o tem po chegou em que as coisas falam . O ped aço de carn e pergun ta:
quan tas pessoas? O ped aço de m et al pergun ta: quan tas pessoas? O n avio p er-
gun ta: quantas pessoas? O carvão pergun ta: quantas pessoas? A casa pergun ta:
quan tas pessoas? E as coisas se levan t am , con t am , pesam , rep art em e d evoram
m ilh ões de pessoas.
110 Isto pode referir-se à chegada do cristianismo à Germânia, no século V I I I , quando as árvores sagradas
eram derrubadas.
111 A frase não está no Livro Negro 6.
112 No seminário de 1925, Jung disse: "A sexualidade e a espiritualidade são pares de opostos que precisam
uma da outra" (introductíon to Jungian Psychology, p. 30).
466 AP RO FU N D AM EN T O S
113 O Fausto de Goethe term ina com uma visão da Mater Gloriosa. Em sua conferência, "Faust und die
Alchem ie", Jung falou o seguinte: "Por Mater coelestís não precisamos entender Maria ou a Igreja católica.
Seria bem mais uma Afrodite urânia, como em Agostinho e Pico de Mirandola é a Beatíssima mater". In :
GERBER- M Ú N CH , I . GoethesFaust: Ein e tiefenpsychologische Studié úber den Mythos des modernen
Menschen. Mit dem Vortrag von C.G. Jung, Faust und die Alchemie. Kúsnacht: Verlag Stiftung fur
Jungsche Psychologie, 1997, p. 37.
114 O Livro Negro 6, tem "Phallus" (p. 41), assim como está na versão manuscrita dos Septem Sermones (p. 21).
115 Em Transformações e símbolos da libido (1912), Jung observou: "O falo é um ser que se movimenta sem
membros, que vê sem olhos, que conhece o futuro; e, como representante simbólico da força criadora
espalhada por toda parte, reivindica a imortalidade" ( O C, B, § 209 ). Prossegue discutindo deuses fálicos.
116 O Livro Negro 6, continua: "A mãe é o vaso. O falo é a espada" (p. 43).
AP RO FU N D AM EN T O S 467
rá-los com o d em ón ios e com o coisa e perigo com u n s, com o peso com u m , que a
vid a vos im pôs. E assim a vid a t am bém é para vós coisa e perigo com u n s, com o
t am bém os deuses e, em p rim eiro lugar, o t errível Ab raxas.
"O ser h u m an o é fraco, por isso é in dispen sável a com un idade; se a com u -
n idade n ão est iver sob o signo d a Mãe, est ará n o signo de Ph allos. Nen h u m a
com un idade é sofrim en t o e doen ça. Com u n id ad e é em cada u m d esm em bra-
m en t o e dissolução.
"A diferen ciação leva à vid a solitária. A vid a solit ária se op õe à com un idade.
Mas por causa da fraqueza das pessoas em relação aos deuses e d em ón ios e à sua
lei in su perável, a com un idade é n ecessária. Por isso ten de t an t a com un idade
quan to for preciso, n ão por causa das pessoas, mas por causa dos deuses. O s
deuses vos obrigam à com un idade. O t an t o que vos obrigam , o t an t o de com u -
n idade é preciso haver, m ais do que isso vem do m al.
"N a com un idade cada u m se su bord in a ao out ro, para que a com un idade se
m an t en h a, pois vós precisais dela.
"N a vid a solit ária cada u m se sobrepõe ao out ro, a fim de que cada qu al se
en con t re e evit e a escravidão.
"N a com un idade deve vigorar ren ún cia, n a vid a solit ária, a prodigalidade.
"A com un idade é profun deza, a vid a solit ária é elevação.
"A m ed id a ju st a n a com un idade p u rifica e con serva.
"A m ed id a ju st a n a vid a solit ária p u rifica e aum en t a.
"A com un idade nos d á calor, a vid a solit ária nos dá lu z "" 7 .
"O d áim on da sexualidade aproxim ou -se de n ossa alm a com o serpen te. El a
é m etade alm a h u m an a e se ch am a pen sam en to-desejo.
117 O Livro Negro 6, continua: "Na comunidade vamos à origem, que é a mãe./ Na solidão vamos ao futuro,
que é o falo gerador" (p. 46 ). Em outubro de 1916, Jung deu duas palestras no Clube de Psicologia sobre
a relação da individuação com a adaptação coletiva ( O C, 18). Este tema dominou as discussões no Clube
naquele ano.
118 Este parágrafo não está no livro Negro 6.
468 AP RO FU N D AM EN T O S
II9
Te n d o O I AH M Q N t erm in ad o, os m ort os olh aram com desprezo e disse-
ram : "Ch ega de falar de deuses, d áim on es e alm as. N o fundo, já sabíam os disso
h á m u it o".
Mas O I AH M Q N sor r iu e respon deu: "Vó s, pobres n a carn e, ricos n o esp í-
rit o, a carn e era bem gorda, o espírit o bem magro. Mas com o conseguis algo da
lu z etern a? Vó s zom bais da m in h a lou cu ra que t am bém vós possuís: zom bais
de vós m esm os. O con h ecim en t o livr a do perigo. Mas a zom baria é o reverso
de vossa fé. O pret o é m en os que o bran co? Vó s rejeit ast es a fé e conservastes a
zom baria. Fostes port an t o libert ados da fé? Nã o , vós vos pren destes à zom baria
e assim n ovam en t e à fé. E por isso sois m iseráveis".
Mas os m ort os se revolt aram e grit aram : "N ã o somos m iseráveis, somos i n -
teligen tes, nosso pen sar e sen t ir são puros com o água crist alin a. N ó s prezam os
119 O s parágrafos seguintes até o final da seção não se encontram no Livro Negro 6.
AP RO FU N D AM EN T O S 469
n ossa razão. N ó s zom bam os da superst ição. Acred it as que tuas velh as loucuras
nos at in giram ? Velh o, t u foste acom etido por u m d elírio in fan t il; de que nos
serve?"
O I AH M Q N respon deu: "O que ain d a serve a vós? Eu vos libert o daquilo
que ain d a vos pren de à som bra d a vid a. Levai esse con h ecim en t o convosco,
acrescen t ai esta lou cu ra à vossa in t eligên cia, esta irracion alid ad e à vossa r a -
zão e en con t rareis a vós m esm os. Se fôsseis h u m an os, t eríeis com eçad o vossa
vid a e vosso cam in h o da vid a en t re a razão e a irracion alid ad e e viveríeis a lu z
et ern a, cu ja som bra vivestes an t ecipadam en t e. Mas com o sois m ort os, este co-
n h ecim en t o vos lib er t a d a vid a, t ir a de vós a ân sia pelo ser h u m an o e lib er t a
vosso si-m esm o dos en volt órios que colocavam lu z e som bra em t orn o de vós.
A com p aixão pelo ser h u m an o se apossará de vós e saireis d a t orren t e para a
t erra firm e. Saireis da et ern a reviravolt a para o roch edo estável do descanso. O
círculo da duração fluente se rom pe, a ch am a sucum be sobre si m esm a.
"Eu acen d i u m fogo violen t o, eu d ei ao assassino u m a faca, eu ab ri feridas
cicat rizadas, eu acelerei todo m ovim en t o, d ei ao dem en t e m ais u m a bebida
in ebrian t e, t orn ei o frio superfrio, o calor superquen t e, a falsidade m ais falsa, o
bem ain d a m elh or, a fraqueza ain d a m ais fraca.
"Est e con h ecim en t o é a m ach ad in h a do sacrifican t e".
Mas os m ort os grit aram : "Te u con h ecim en t o é u m a lou cu ra e u m a m aldição.
T u queres tocar a rod a para trás? Ela vai est raçalh á-lo, m ist ificad or!"
O I AH M Q N respon deu: "Assim acon teceu. A t er r a ficou n ovam en t e verde
e fecun da com o sangue do sacrifício, flores desabroch aram , a on d a m u r m u r a
n a areia, u m a n évoa prat eada est á parada n o sopé da serra, u m pássaro d a alm a
aproxim ou -se do ser h um an o, a en xad a ret in e n o cam po e o m achado, n o m ato,
u m ven t o sopra através das árvores, e o sol b r ilh a n o orvalh o d a gran diosa m a-
n hã, os plan etas con t em p lam o n ascim en t o, da t er r a em ergiu o que t em m u it os
braços, as pedras falam e o cap im m u r m u r a. O ser h u m an o en con t rou -se, e os
deuses viajam pelos céus, a plen it u d e gera a gota de ouro, o feito de ouro que
paira alado".
En t ão os m ort os se calaram , olh aram fixam en t e para O I AH M Q N e se afas-
t aram sem fazer barulh o. Mas O I AH M Q N curvou-se até o ch ão e disse: "Fo i
bem -sucedido, mas n ão com pletado. Fr u t o da t erra, brot a, eleva-t e, e t u , céu,
d erram a a água da vid a".
Dep ois disso, O I AH M Q N desapareceu.
47o AP RO FU N D AM EN T O S
I2
°E u e st a va b e m co n fu so , q u a n d o , n a n o i t e se gu in t e , O I A H M Q N ap ro-
xim ou -se de m im , pois eu o h avia cham ado, e lh e disse: "O que fizeste, O I -
AH M Q N ? Q u e fogo ateaste? O que despedaçast e? A rod a das criações está
parada?"
Ele respon deu: "Tu d o est á an dan do seu cam in h o cost um eiro. Nad a acon -
teceu e, n o en t an t o, acon teceu u m doce e in dizível m ist ério: saí do círculo gi-
rat ório".
"O que dizes? Tuas palavras m ovem m eus lábios, em m eus ouvidos soa t u a
voz, m eus olhos te veem a p ar t ir de m im . Realm en t e, t u és u m mago. T u saíste
do círcu lo girat ório? - Q u e con fusão! T u és eu , eu sou tu? N ã o o sen t i com o
se a rod a das criações tivesse parado, e t u dizes que saíste do círculo girat ório?
Est ou b em en t ran çad o sobre a rod a — eu sin t o o girar veloz — e m esm o assim a
rod a das criações est á parada para m im . O que fizeste, pai? En sin a-m e!"
O I AH M Q N en t ão falou: "E u su bi para o lugar firm e e o levei com igo e sal-
vei do m ovim en t o da on da, da circulação dos n ascim en t os e da rod a girat ória
do et ern o acontecer. Ele está seguro. O s m ort os receberam a lou cu ra do en sin o,
foram cegados pela verdade e en xergam através do erro. Eles o con h eceram e
sen t iram e se arrepen d eram , volt arão e vão im p lorar com h u m ild ad e. Pois o
que rejeit aram vai t orn ar-se para eles o m ais precioso".
Eu qu eria fazer ain d a u m a pergun t a a O I AH M Q N , pois o en igm a m e afli-
gia. Mas ele já h avia tocado o solo e desaparecido. A escu ridão da n oit e esteve
m u d a e n ão m e respon deu. Min h a alm a ficou em silên cio, m en eou a cabeça e
n ão sabia d izer n ada sobre o m ist ério que O I AH M Q N h avia in sin u ado, mas
n ão revelado.
123 Em 29 de fevereiro de 1919, Jung escreveu uma carta a Joan Corrie e comentou sobre os Sermones, com
especial referência ao último: "O criador primordial do mundo, a cega libido criadora, vê-se transformada
em homem através da individuação; e deste processo, que se assemelha à gravidez, surge uma criança
divina, um Deus renascido, já não mais disperso nos milhões de criaturas, mas sendo um só e este
indivíduo e ao mesmo tempo todos os indivíduos, o mesmo em você e em m im . A Dra. L[on g] tem um
livrinho: V I I Sermones ad mortuos. Ali você encontra a descrição do Criador disperso em suas criaturas e,
no último sermão, você encontra o início da individuação, da qual surge a criança divina. [...] A criança
é um novo Deus, nascido concretamente em muitos indivíduos, mas estes não o sabem. Ele é um Deus
espiritual'. Um espírito em muitas pessoas, e no entanto um só e o mesmo em toda parte. Mantenha-
se fiel ao tempo de você e você experimentará suas qualidades" (reproduzido no diário de LO N G , C.
Countway Library of Medicine, p. 21-22).
472 AP RO FU N D AM EN T O S
I24
Q u a n d o Filêm on t er m in o u , os m o r t o s s i l e n c i a r a m . O p e so c a i u d eles e
su biram com o fum aça sobre o fogo do pastor que du ran t e a n oit e vigiou seu
rebanho.
sufocante. Medo demais e liberdade de menos da respiração. Dá-m e as sete luzes". [Alm a]: ' A prim eira
luz significa o Pleroma. / A segunda luz significa o Abraxas. / A terceira, o sol. / A quarta, a lua./ A quinta,
a terra. / A sexta, o falo. / A sétima luz, a estrela". [Eu ]: "Por que faltam o pássaro, a mãe celeste e o céu?"
[Alm a]: "Eles estão todos incluídos na estrela. Quando olhas para a estrela, olhas através deles. Eles são as
pontes para a estrela. Eles formam a única sétima luz, a mais nobre, a que paira, que com um ruidoso bater
de asas se levanta, liberta do abraço do feitiço da luz, com 6 galhos e 1 flor, em que jazia cochilando o Deus
estelar./ As seis luzes estão sós e formam a multiplicidade, a outra luz é única e constitui a unidade, ela é a
flor do alto da árvore, o ovo sagrado, o embrião do mundo, a quem foram dadas asas para que possa chegar
a seu lugar. Do uno procede sempre de novo o múltiplo e do múltiplo, o uno" (livro Negro 6, p. 104-106).
28 de setembro: [Alm a]: "Então vamos tentar: há algo a respeito do pássaro dourado. Não é o pássaro
branco, mas o dourado. Ele está em outro lugar. O branco é um bom daimon, mas o pássaro dourado está
acima de t i e abaixo de teu Deus. Ele voa adiante de t i. Eu o vejo no éter azul, voando atrás da estrela. Ele é
algo de t i. Ele é ao mesmo tempo seu próprio ovo que te contém. Se percebes o que digo, então pergunta".
[Eu ]: "Explica-m e mais. Ele me dá uma sensação ruim ". [Alm a]: "O pássaro dourado não é nenhuma
alma, é todo o teu ser. O s seres humanos também são pássaros dourados, não todos, outros são vermes e
apodrecem na terra. Mas alguns são pássaros dourados". [Eu ]: "Con tin ua, eu temo meu nojo. Deixa sair
o que acumulaste". [Alm a]: "O pássaro dourado está pousado na árvore das 6 luzes. A árvore nasce da
cabeça do Abraxas, e Abraxas nasce do Pleroma. Tudo de onde nasce a árvore acaba por florir como uma
luz, transformado como um útero da flor do ponto mais alto do pássaro dourado do ovo. A árvore da luz
é em primeiro lugar uma planta, ela se chama indivíduo; este nasce da cabeça do Abraxas, sua ideia, uma
ideia entre inúmeras. O indivíduo é mera planta sem flores, nem frutos, uma passagem para a árvore das 7
luzes. O indivíduo é o primeiro degrau da árvore da luz. Brilhante, dele floresce o próprio Fanes, Agn i, um
fogo novo, um pássaro dourado. Isto vem depois do indivíduo, ou seja, quando ele está novamente unido
ao mundo, então o mundo floresce a partir dele. Abraxas é o impulso, indivíduo distinto dele, a árvore das
7 luzes, mas o símbolo do indivíduo unido ao Abraxas. Nisto aparece Fanes que voa à frente, ele, o pássaro
dourado./ Tu te unes a Abraxas através de m im . Primeiramente tu me dás teu coração, pois vives através de
m im . Eu sou a ponte até Abraxas. Assim a árvore da luz se torna em t i e tu mesmo na árvore da luz e Fanes
sai de ti. Isto previste, mas não entendeste. Naquele tempo também tu tiveste que separar-te de Abraxas
para tornar-te indivíduo, contraposto ao impulso. Agora vem a união com o Abraxas. Isto passa por m im .
Isto não podes fazer. Por isso deves ficar comigo. A união com o Abraxas físico passa pela mulher humana,
mas a união com o Abr. espiritual passa por m im , por isso deves estar comigo" (livro Negro, 6 p. 114-120).
126 No Livro Negro 6, esta figura entra em 5 de fevereiro, no meio dos Sermones (p. 35s.). Cf. nota 108, p. 463
acima.
474 AP RO FU N D AM EN T O S
127 17 de fevereiro de 1916. No Livro Negro 6, este discurso é proferido pelo próprio Jung (p. 52).
128 O Livro Negro 6, tem aqui: "Eu precisava de uma nova sombra, pois conhecia o tremendo Abraxas e me
afastei dele" (p. 52).
129 No Livro Negro 6, esta voz é identificada como "mãe" (p. 53).
AP RO FU N D AM EN T O S 475
"Nad a que n ão t u a som bra. T u serás u m curso de água que se d erram a sobre
as t erras. Ele procu ra todos os vales e corre para a profun deza".
Pergu n t ei en t ão m u it o t rist e: "Mas onde fica m in h a in d ivid u alid ad e?"
"T u a roubarás de t i m esm o", respon deu File m o n 135 , "t u segurarás em m ãos
t rem ulas o rein o in visível, ele lan ça suas raízes para baixo, para d en t ro das trevas
som brias e m ist érios d a t erra, galhos folhosos m an d a ele para os ares dourados.
"An im ais m or am em seus galhos.
"Pessoas descan sam à sua som bra.
"Seu m u rm ú rio força de baixo para cim a.
"U m a desilusão de m il m ilh as de com p rim en t o é a seiva da árvore.
"El a vai ficar verde por longo tem po.
"O silên cio est á em sua copa.
"Silên cio em suas raízes profun das".
136
De ssa s palavras de O I AH M Q N en t en d i que ele t in h a de ficar fiel ao am or
para acabar com a m ist u ra que nasce do am or n ão vivid o. En t e n d i que a m ist u r a
é u m a coação que en t ra no lugar d a dedicação espon t ân ea. At ravés da dedicação
espon t ân ea surge, com o en sin ou O I AH M Q N , a ru p t u ra ou dilaceração. Est a é
a supressão da m ist u ra. At ravés d a dedicação espon t ân ea desfaz-se, port an t o, a
coação. Por isso devo ficar fiel ao am or, e pela dedicação espon t ân ea a ele sofro
dilaceração e obt en h o assim a filiação da gran de m ãe, ist o é, a n at u reza estelar,
a libert ação da su bord in ação a pessoas e coisas. Se est iver subordin ado a pes-
soas e coisas, m in h a vid a n ão pode progredir para alcan çar seus objet ivos, e eu
m esm o n ão posso chegar à m in h a p róp ria e m ais profun da n at ureza. Tam bém a
m ort e n ão pode com eçar em m im com o n ova vid a, mas só consigo sen t ir m edo
d ian t e da m ort e. Eu t en h o de ficar fiel ao am or, pois com o pod eria chegar de
out ro m odo à ru p t u ra e dissolução da coação? Co m o pod eria exp erim en t ar
de ou t ro m odo a m ort e, do que através do fato de ficar fiel ao am or e assum ir
sobre m im livrem en t e a d or e todo o sofrim en t o do am or? En qu an t o n ão m e
en tregar livrem en t e à dilaceração, ficam partes de m eu si-m esm o secretam en te
com pessoas e coisas que m e ligam a elas e assim sou obrigado, quer qu eira quer
não, a t er parte n elas, estar com elas m ist u rad o e ligado a elas. Só a fidelidade ao
am or e a en trega espon t ân ea ao am or podem desfazer esta vin cu lação e m ist u r a
su a p r ó p r i a n a t u r e z a e a se u p r ó p r i o a m o r . N ã o p e r d o a st e a a d ú l t e r a ? 13 9 N ã o t e
sentaste com prost it u t as e cobradores de im p o st o s? 14 0 N ã o in frin gist e a le i do
sáb ad o ? 14 1 T u vivest e t u a p róp ria vid a, mas as pessoas n ão o fazem ; elas só rezam
a t i, pedem a t i e te lem b ram que t u a obra est á in acabada. Mas t u a obra est aria
acabada se o ser h u m an o carregasse sua p róp ria vid a sem im it ação. As pessoas
ain d a são in fan t is e esquecem de agradecer, pois ain d a n ão conseguem dizer:
"Grat os, nosso Sen h or, pela salvação que nos t rouxest e. N ó s a assum im os, n ós
lh e dem os u m lugar em nosso coração e apren dem os a con t in u ar t u a obra em
n ós por n ós m esm os. Am ad u recem os através de t u a ajuda, para levar adian te a
obra d a salvação em n ós. Grat os, t u a obra est á assum ida em n ós, en t en dem os
t eu en sin am en t o reden tor, n ós com plet am os em n ós o que com eçast e por n ós
com esforços de sangue. N ã o somos filh os in gratos que cobiçam os bens dos
pais. Grat os, nosso senhor, vam os negociar com t eu t alen t o e n ão en t errá-lo n a
t erra, esten der sem pre de n ovo nossas m ãos desam paradas e lem b rar-t e para
com plet ar t u a obra em n ós. N ó s querem os t om ar sobre n ós teus esforços e
t ua obra, para que t u a obra se com plet e e possas repousar tuas m ãos cansadas,
com o u m t rabalh ador após u m longo d ia de d u ra jorn ad a. Bem -aven t u rad o o
m ort o que descansa ao t érm in o de sua obra.
"Eu gost aria que as pessoas falassem assim contigo. Mas elas n ão t êm n e-
n h u m am or a t i, m eu sen h or e m eu irm ão. Elas n ão te con cedem o p rém io do
descanso. D e ixa m t u a obra in com plet a, et ern am en t e necessitadas de t u a com -
paixão e de t u a solicit u de.
"Mas eu , m eu sen h or e m eu irm ão, acredit o que t u com pletaste t u a obra,
pois qu em en t regou sua vid a, t oda sua verdade, todo seu am or, t oda sua alm a,
este com plet ou sua obra. O que alguém pode fazer pelos h om en s, t u o fizeste
e com pletaste. Agor a chega o t em po em que cada u m t em de fazer sua p róp ria
obra da reden ção. A h u m ild ad e en velh ece, e u m n ovo m ês co m e ço u "14 2 .
I43
Q u a n d o O I AH M Q N t er m in ou , levan t ei os olhos e vi que o lugar, onde a
som bra h avia estado, estava vazio. Vir e i- m e para O I AH M Q N e disse: "Me u pai,
t u falaste dos seres h um an os. Eu sou u m ser h um an o, perd oa-m e!"
{14} Nu m a n oit e, quan do tudo estava quieto, escut ei u m m u rm ú rio com o que
de sete vozes e, algo m ais n it id am en t e, d ist in gu i a voz de O I AH M Q N , com o se
estivesse fazendo u m discurso. Prest an do m ais aten ção, en t en d i suas palavras:
14 4
"Dep ois que eu t in h a en gravidado o ven t re do subm un do e a serpen te d i-
vin a n asceu, fu i até os seres h u m an os e vi todas as suas lam en t ações e loucuras.
Eu vi que se m at avam e procu ravam razões para seu agir. Faziam isso porque
n ão sabiam fazer ou t ra coisa ou coisa m elh or. Pelo fato de est arem acost u m a-
dos a n ão fazer n ad a a que n ão pudessem at rib u ir algum a razão, in ven t aram
razões que os obrigavam a con t in u ar m atan do. "Parai, vós n ão tendes ju ízo",
disse o sábio. "En t ão parai e verificai os preju ízos que causais", disse o in t eli-
gente. Mas o louco r iu , pois d u ran t e a n oit e recebeu h on ras. Por que as pessoas
n ão veem sua loucura? A lou cu ra é u m a filh a do Deu s. Por isso as pessoas n ão
conseguem parar de m atar, pois assim servem à serpen te d ivin a sem saber. Por
am or ao serviço à serpen te d ivin a vale a pen a en tregar sua vid a. Por causa disso
desejais ser recon ciliados. Mas seria bem m elh or viver apenas do Deu s. Mas
a serpen te d ivin a quer sangue h u m an o. Ist o a alim en t a e a t orn a lu zid ia. N ã o
m at ar e n ão querer m or r er é u m engano a Deu s. Assim o ser viven t e t orn ou -se
u m en gan ador de Deu s. O viven t e consegue sua vid a através d a m en t ira. Mas a
serpen te quer ser enganada, pela esperan ça de t er sangue: quan t o m ais pessoas
rou baram dos deuses sua vid a, t an t o m ais floresceu o cam po sem eado de san -
gue d a serpen te para a colh eit a. O Deu s fica fort e pelo assassinato de pessoas.
A serpen te fica quen te e fogosa pelo excesso de satisfação. Su a gordura qu eim a
em ch am a arden te. A ch am a t orn a-se a lu z das pessoas, o p r im eir o raio de u m
sol ren ovado, ele, a lu z que por p r im eir o apareceu".
O que O I AH M Q N ain d a falou, eu n ão o con segui en ten der. Reflet i lon ga-
m en t e em suas palavras, que ele falou eviden t em en t e aos m ort os, mas fiqu ei
apavorado com os h orrores que acom pan h am u m ren ascim en t o de Deu s.
144 As duas próximas passagens também ocorrem em "Sonhos", segundo registros de meados de julho de
1917, introduzidas pelas palavras "Partes do próximo livro" (p. 18).
48o AP RO FU N D AM EN T O S
I45
E logo a seguir vi e m so n h o s Elias e Sa lo m é . Elias parecia preocupado e
assustado. Por isso, quan do n a n oit e seguinte t oda a lu z se h avia apagado e todo
ru íd o vivo se calado, ch am ei Elias e Salom é para m e prest arem con tas. Elias
adian t ou-se e falou:
"Fiq u ei fraco, est ou pobre, u m exceden te de m eu poder passou para t i, m eu
filho. Tir ast e dem ais de m im . T u te afastaste dem ais de m im . Eu escut ei coisas
estran h as e in com preen síveis, e a t ran qu ilid ad e de m in h a profun deza foi des-
t ru ída".
Pergu n t ei en t ão: "O que t u ouvias? que vozes escutavas?"
Elias respon deu: "Escu t ava u m a voz ch eia de con fusão, u m a voz apavoran te,
ch eia de advert ên cias e coisas in com preen síveis".
"O que d izia", pergu n t ei, "ouvist e as palavras?"
"Con fu sam en t e, era em baraçad a e descon cert an t e. A voz falou p r im eir a-
m en t e de u m a faca, que cort a algo ou talvez ceife, talvez as uvas que vão para a
adega. Talvez t en h a sido aquele da rou pa verm elh a que pisou o lagar on de jor r a
o san gu e 14 6 . D e repen t e era u m a voz do ouro que jaz em baixo e que m at a o
que ele toca. En t ão foi a voz do fogo que qu eim a assustadoram en te e que deve
in flam ar-se neste tem po. E en t ão era u m a palavra blasfem a, que eu n ão gost aria
de p ron u n ciar".
"U m a palavra blasfema? Q u a l foi?", pergu n t ei.
Respon d eu : "U m a palavra sobre a m ort e de Deu s. Só exist e u m Deu s, e
Deu s n ão pode m o r r e r " 14 7 .
Eu falei: "Est o u surpreso, Elias. N ã o sabes o que aconteceu? N ã o sabes que
o m u n d o vest iu rou pa nova? Q u e o Deu s ú n ico m or r eu e que m u it os deuses e
m u it os d em ón ios t orn aram -se n ovam en t e seres h um an os? Realm en t e, eu m e
ad m iro; ad m iro-m e ao ext rem o! Co m o é possível que t u n ão o soubesses? N ã o
sabes n ada do que acon teceu de novo? T u conheces o futuro. T u tens o d om
da previsão. O u n ão deverias saber o que acontece? Negas afin al aquilo que
e xist e ?"14 8
grande espanto, elas não tinham sofrido a menor mudança; falavam e se comportavam como se nesse
ínterim absolutamente nada tivesse ocorrido. Entretanto os acontecimentos mais inauditos tinham -
se desenrolado em minha vida. Foi-me necessário, por assim dizer, recomeçar desde o início para lhes
explicar e narrar tudo o que se passara. De início fiquei bastante espantado. Só mais tarde compreendi o
que tinha acontecido: as figuras de Salomé e Elias haviam nesse meio tempo soçobrado no inconsciente
e em si próprias - poder-se-ia também dizer, fora do tempo. Elas ficaram sem contato com o eu e suas
circunstâncias variáveis e 'ignoravam' por essa razão o que se passara no mundo da consciência" (p. 355).
482 AP RO FU N D AM EN T O S
"Te u espírit o falh a ráp id o", disse ela, "m as é exat am en t e de t eu espírit o h u -
m an o que os deuses precisam ".
"E eu do espírit o dos deuses", ret ru qu ei, "estamos em m aus len çóis".
"Nã o , t u és m u it o im pacien t e; só com paração pacien t e t raz a salvação, n ão a
decisão apressada para u m lado. É preciso t rabalh o".
Pergu n t ei-lh e en t ão: "D e que sofrem os deuses?"
Respon deu : "É que t u deixast e para eles o t orm en t o, e desde en t ão vêm
sofren do".
"Bem -feit o!", exclam ei. "Ju d iaram bastan te do ser h um an o. Agor a devem
pagar por isso".
El a respon deu: "Mas se o t orm en t o t am bém te at in gir? O que ganhaste en -
tão? N ã o podes d eixar aos deuses todo o sofrim en t o, sen ão eles te p u xam para
d en t ro dele. Pois, apesar de tudo, eles possuem o poder. Mas devo confessar
que t am bém o ser h u m an o possui u m est ran h o poder sobre os deuses através
de seu espírit o".
A isso respon di: "Recon h eço que o t orm en t o dos deuses m e at in giu ; e por
isso recon h eço t am bém que t en h o de m e cu rvar dian t e dos deuses. Q u a l é o
desejo deles?"
"Eles qu erem obed iên cia", disse ela.
"Seja!", respon d i, "m as t en h o m edo de seu desejo; por isso eu digo: eu quero
o que posso. N ã o quero absolutam en te ret om ar sobre m im todo o t orm en t o
que t ive de d eixar aos deuses. N e m m esm o Cr ist o t ir ou o t orm en t o de seus se-
guidores, mas até o au m en t ou . Reservo-m e algumas con d ições. Ist o os deuses
devem recon h ecer e orien t ar seu desejo por elas. N ã o exist e m ais obed iên cia
in con d icion al, pois o ser h u m an o d eixou de ser u m escravo dos deuses. Ele
t em dign idade d ian t e dos deuses. Ele é u m m em bro tão im p ort an t e que n em
os deuses o podem perder. N ã o exist e m ais su cu m bên cia aos deuses. Port an t o,
que façam ou vir seu desejo. A com paração fará en t ão o resto, para que cada qual
t en h a a parte que lh e cabe".
Respon d eu en t ão m in h a alm a: "O s deuses qu erem que t u faças, por am or a
eles, aquilo que sabes que n ão queres fazer".
"Ist o eu im agin ava", grit ei, "n at u ralm en t e é ist o que qu erem os deuses. Mas
fazem os deuses t am bém aquilo que eu quero? Eu quero os frutos do m eu t r a-
balho. O que fazem os deuses por m im ? Q u e r e m que seus objet ivos se r eali-
zem , mas onde fica a realização de m eu objet ivo?"
AP RO FU N D AM EN T O S 485
Levan t ou -se en t ão u m a voz que disse: "T u és in crivelm en t e teim oso e reb el-
de. Lem b r a-t e de que os deuses são fortes".
Resp on d i: "E u sei disso, mas já n ão exist e obed iên cia in con d icion al. Q u a n -
do em pregarão sua força em m eu favor? Eles qu erem t am bém que eu coloque
m in h as forças a seu serviço. O n d e est á seu serviço? N o fato de serem at or m en -
tados? O ser h u m an o sofreu dores in fern ais, mas os deuses n ão estavam sat is-
feitos e, in saciáveis, im agin avam n ovos t orm en t os. Deixa r a m que o ser h u m a-
n o ficasse t ão obcecado que acred it ou que n ão exist iam deuses e que só exist ia
u m ú n ico Deu s, que era u m pai am oroso, de m odo que h oje, quan do alguém
lu t a com os deuses, é ch am ado de m aluco. E assim prepararam t am bém esta
vergon h a para aquele que os recon h ece a p ar t ir de sua sede ilim it ad a de poder,
pois guiar cegos n ão é n en h u m a art e. Eles p ervert em até m esm o seus escravos".
"T u n ão queres obedecer aos deuses", grit ou m in h a alm a h orrorizad a.
Resp on d i: "Acred it o que já t en h a acon tecido m ais do que o suficien t e. Exa -
t am en t e por isso os deuses são in saciáveis, porque recebem oferendas dem ais:
os altares d a h u m an id ade ofuscada exalam vapores de sangue. Escassez t raz
satisfação, n ão a su perabu n dân cia. Gost ar iam de apren der ju n t o ao ser h u m an o
a escassez. Q u e m faz para m im ? Est a é a pergu n t a que t en h o a form ular. D e
form a n en h u m a faço aquilo que os deuses d everiam fazer. Pergun t a aos deuses
o que eles ach am de m in h a proposta?"
Divid iu -se en t ão m in h a alm a, com o pássaro levan t ou voo para os deuses
superiores e com o serpen te desceu rast ejan do para os deuses in feriores. Passa-
do pouco tem po, veio ela n ovam en t e e disse aflita: "O s deuses est ão revoltados
pelo fato de que n ão queres obedecer".
"Ist o pouco m e im p or t a", respon d i. "E u fiz tudo para apaziguar os deuses.
Eles d everiam fazer t am bém a part e deles. D iz e ist o a eles. Eu posso esperar.
N ã o vo u m ais p er m it ir que m an d em sobre m im . O s deuses d everiam pen sar
n u m a con t raprest ação, t u podes ir. Am a n h ã vo u ch am ar-t e para que m e con tes
o que os deuses resolveram ".
Q u an d o m in h a alm a foi em bora, percebi que ela estava assustada e preo-
cupada, pois ela pert en ce ao gén ero dos deuses e d em ón ios e gost aria de m e
con vert er sem pre para sua espécie, assim com o m in h a h u m an id ade gost aria de
m e con ven cer de que eu p ert en ço à sua est irpe e que d everia servi-la. Q u a n -
do ad orm eci, m in h a alm a veio n ovam en t e e desen h ou-m e astuciosam en te n o
son ho com o u m ch ifru d o n a parede, t en t an do am ed ron t ar-m e dian t e de m im
486 AP RO FU N D AM EN T O S
I52
{15} Fo i n u m d ia quen te de verão, por volt a do m eio-d ia; passeava pelo
jar d im e quan do cheguei à som bra da árvore alt a, en con t rei Filêm on an dan do
feliz n o odor do capim . Q u an d o eu quis ap roxim ar-m e dele, saiu do ou t ro lado
u m a som bra a z u l 153 , e quan do O I AH M Q N a viu , falou assim : "Eu te en con t ro n o
jar d im , amado. O pecado do m u n d o d eu beleza a t eu rosto.
"O sofrim en t o do m u n d o en d ireit ou t u a figura.
"T u és realm en t e u m r ei.
"Tu a pú rpu ra é sangue.
"Te u arm in h o é neve do gelo dos poios.
"Tu a coroa, que carregas n a cabeça, é o astro solar.
"Bem -vin d o ao jar d im , m eu senhor, m eu amado, m eu irm ão!"
Pergun t ou a som bra: "Ó Sim ão Mago ou ou t ro n om e que ten h as, t u estás n o
m eu jar d im , ou eu est ou n o t e u ?"154
O I AH M Q N respon deu: "T u estás, ó senhor, em m eu jar d im . H elen a, ou o u -
t ro n om e que lh e queiras dar, e eu somos teus servos. T u pod erás ficar conosco.
Sim ão e H elen a t orn aram -se O I AH M Q N e B A YK I E e assim somos agora h os-
pedeiros dos deuses. N ó s dem os hospedagem a t eu verm e assustador. E com o
viest e, n ós te acolhem os. Nosso ja r d im é o que te r o d eia"155 .
A som bra disse: "Est e jar d im n ão é m eu? O m u n d o dos céus e dos espírit os
n ão é m eu ?"
O I AH M Q N respon deu: "T u estás, m eu senhor, aqui n o m u n d o dos seres
h um an os. O s seres h um an os est ão m udados. N ã o são m ais os escravos e n ão
m ais os enganadores dos deuses e n ão m ais os en lutados em t eu n om e, m as eles
oferecem hospedagem aos deuses. An t es de t i veio o verm e h o r r íve l 156 , que t u
conheces m u it o bem , t eu irm ão en quan t o és de n at u reza d ivin a, t eu pai e n -
quan to foste de n at u reza h u m a n a 157 . T u o afastaste de t i quan do ele te d eu con -
selho in t eligen t e n o deserto. T u aceitaste o con selh o, mas o verm e t u o afastaste
de t i: ele en con t rou u m lugar conosco. Mas on de ele está, t am bém t u est ar ás 158 .
Q u an d o eu era Sim ão, t en t ei fugir dele com a astúcia da m agia e assim fugi de
t i. Agora que d ei u m lugar ao verm e n o m eu jar d im , ven s t u a m im ".
A som bra disse: "Ca io n o poder de t u a astúcia? T u m e pren deste secret a-
m en te? N ã o foi t rapaça e m en t ir a t u a arte desde sem pre?"
154 Simão Mago (i° século) era um mago. Nos Atos dos Apóstolos (8,9-24), após tornar-se cristão, quis
comprar de Pedro e Paulo o poder de transmitir o Espírito Santo (Jung considerava este relato uma
caricatura). O utros relatos sobre ele encontram-se no livro apócrifo A tos de Pedro e em escritos dos Padres
da Igreja. E tido como um dos fundadores do gnosticismo, e no século 11 surgiu uma seita simoniana. D iz -
se que viajava sempre com uma mulher, reencarnação de Helena de Tróia, que ele encontrou num bordel
de Tiro. Jung cita isto como exemplo da figura da anima ("Alma e terra". O C , 10, § 75). Cf. Q U I SP E L,
G. Gnosis alsW eltreligion. Zurique: Origo Verlag, 1951, p. 51-70. • M EAD , G.R.S. SimonMagus: An Essay on
the Founder of Simonianism Based on the An cien t Sources wit h a Reevaluation of H is Phisosophy and
Teachings. Londres: Th e Theosophical Publishing House, 1892.
155 Em Memórias Jung comentou: "Ao longo das peregrinações oníricas encontra-se mesmo muitas vezes um
velho acompanhado por uma moça; e em numerosos relatos míticos encontram-se exemplos desse mesmo
par. Assim , segundo a tradição gnóstica, Simão, o Mago, peregrinava com uma jovem que tirara de um
bordel. Ela se chamava Helena e era tida como uma reencarnação de Helena de Tróia. Kingsor e Kundry,
Lao-tse e a dançarina são exemplos do mesmo caso" (p. 217).
156 I.e., satanás.
157 No Livro Negro 6, esta frase soa assim: "Antes de t i veio teu irmão, ó senhor, o verme horrível, que t u
afastaste de t i quando ele no deserto te dava conselho inteligente com voz sedutora" (p. 86).
158 O Livro Negro 6, continua: "pois ele é teu irmão im ortal" (p. 86).
488 AP RO FU N D AM EN T O S
M a s O I A H M Q N r e s p o n d e u : "Re c o n h e c e , ó s e n h o r e a m a d o , q u e t u a n a t u -
reza é t am bém a d a ser p en t e 159 . N ã o foste t am bém levan t ado n o len h o com o a
serpen te? N ã o entregaste t eu corpo, com o a serpen te sua pele? N ã o exerceste a
art e da cu ra com o a serpen te? An t es de t u a subida, n ão desceste ao in fern o? E
n ão vist e lá t eu irm ão t ran cado n o a b ism o ?"16 0
Fa lo u en t ão a som b ra: " T u d izes a verd ad e. N ã o m en t es. Mas , - sabes o
que te t rago?"
"N ã o sei", r esp on d eu O I AH M Q N , "só sei de u m a coisa: aqu ele que é o
h osp ed eir o d o ve r m e p r ecisa t a m b é m de seu ir m ão. O que m e t razes, m e u
belo h ósp ed e? La m e n t o e h o r r o r foi o p resen t e d o ver m e. O que n os d arás
t u ?"
Re sp o n d e u a som b ra: " E u te t rago a b eleza d o sofrim en t o. É d isso que
p r ecisa q u em é h osp ed eiro d o ver m e".
159 Jung comentou a serpente como alegoria de Crist o em Aion (1952, O C , 9/ 2, § 369, 385 e 390).
160 Cf. acima, p. 149.
Epílo go
1959
Trabalh ei neste livr o por 16 anos. O con h ecim en t o da alqu im ia, em 1930, af-
ast ou-m e dele. O com eço do fim veio em 1928, quan do W ilh e lm m e en viou o
t ext o da "Flo r de O u r o ", u m tratado alqu im ist a. En t ão o con t eú d o deste livr o
en con t rou o cam in h o da realidade e eu n ão con segui m ais con t in u ar o trabalho.
Ao observador su perficial ist o parecerá u m a lou cu ra. E t er ia se t orn ado isso
m esm o, se eu n ão tivesse conseguido deter a força d om in ad ora das exp eriên -
cias origin ais. Co m a aju da da alqu im ia pude fin alm en t e ord en á-las d en t ro de
u m todo. Soube sem pre que essas experiên cias con t in h am algo precioso e por
isso n ão sabia fazer coisa m elh or do que lan çá-las n u m livr o "precioso", ist o é,
valioso, e desen h ar as im agens que m e apareciam n a revivescên cia - t ão bem
quan t o possível. Sei que foi t rem en dam en t e inadequado este em preen dim en to,
mas apesar do m u it o trabalho e desvios, fiquei fiel, m esm o que n u n ca ou t ra / 190 A91
possibilidade...
Isto aparece na p. 190 da versão caligráfica do Liber Novus. A transcrição caligráfica foi abruptamente
interrompida no meio de uma frase na p. 189. Isto aparece depois, na página seguinte, no manuscrito
normal de Jung. Isto por sua vez foi interrompido abruptamente no meio da frase.
489
Apên d ice A
Esboço de mandala 1 parece ser o prim eiro da série, datado de 2 de agosto de 1917. É a base da
ilustração 80. A legenda no alto da ilustração é "<X>ANH2 [Ph an es]" (cf. n ota 211, p. 317).
Legenda n a parte in ferior: "Stoffwechsel in In d ivid u u m " [metabolismo no in divíduo]
(i9,4cm x I4,3cm).
491
AP Ê N D I C E S
492
O plano da cidade é tirado do Livro Negro 7, p. 124b, e ret rat a a cena do sonho de "Liverp ool".
Est e esboço é a base da ilustração 159, ligando o sonho ao mandala. Text o n a ilustração, a
part ir da esquerda: "Residên cia do suíço"; em cima "Casas"; em baixo "Casas", "Ilh a"; (em baixo)
"Lago", "Arvore", "Ru as", "Casas" (13,3011x I9 ,icm ) .
N a página seguinte: Systema Munditotius. (30cm x 34cm). Em 195$ o Systema Munditotius de Jun g
foi publicado anonim am ente n u m fascículo especial de Du dedicado às conferências de
Eran os. Nu m a carta de I I de fevereiro de 1955 a W alt er Co r t i, Jun g afirm ou explicitam en te
que não quis que seu nome aparecesse com ele ( JA) . E acrescentou os seguintes
com entários: "Ele descreve as antinom ias do m icrocosm o den tro do m undo m acrocósm ico
com suas an tin om ias. No ponto mais alto, a figura do jovem rapaz den tro do ovo alado,
chamado Erikapaios ou Phanes e lem bran do assim u m a figura espiritual dos deuses/
Deuses órficos. Sua antítese escura nas profundezas é designada aqui como Abraxas.
Ele representa o domínus mundi, o senhor do mundo físico, e é u m criador-do-m un do de
n atureza ambivalente. Brot an do dele vemos a árvore da vida, chamada vita ("vid a"),
enquanto sua contraparte superior é um a árvore da luz n a form a de u m candelabro de sete
braços chamado ignís ("fogo)") e Eros ("am or"). Sua luz aponta para o m undo espirit ual da
criança divin a. Tam bém a arte e a ciência perten cem a esta esfera espiritual, a prim eira
representada como um a serpente alada e a segunda como u m rato alado (com o atividade
de cavar buracos!). - O candelabro baseia-se no prin cípio do n úm ero espirit ual três (duas-
vezes-três chamas com u m a grande cham a no m eio), ao passo que o m undo in ferior de
Abraxas é caracterizado pelo cinco, o n úm ero do h om em n at ural (ps duas-vezes-cinco
raios de sua estrela). O s anim ais do m undo n atural que o acompanham são um m on stro
dem on íaco e u m a larva. Ist o significa m orte e renascimento. Um a outra divisão do
m andala é h orizon t al. A esquerda vemos u m círculo in dican do o corpo ou o sangue, e dele
surge u m a serpente, que se enrosca no falo, enquanto prin cípio generativo. A serpente
49 6 AP Ê N D I C E S
é escura e clara, significando a região escura da t erra, a lua e o vazio (por isso chamada
Satan ás). A parte clara de rica plenitude está à direit a, onde do círculo brilh an te frígus sive
am or dei [frio ou o amor de Deu s] a pomba do Espírito Santo alça voo, e a sabedoria (Sophid)
derram a água de um a dupla taça para a esquerda e para a direit a. — Est a esfera fem in in a é
a do céu. - A grande esfera caracterizada por lin h as ou raios em ziguezague representa u m
sol in t erior; dentro desta esfera está repetido o macrocosmo, mas com a região superior e a
região in ferior in vertidas como n u m espelho. Estas repetições devem ser imaginadas como
in fin itas em núm ero, tornando-se cada vez menores até chegar ao núcleo mais profundo, o
m icrocosm o atual". Copyrigh t © Fundação para as O bras de C G . Jun g reproduzido com a
perm issão da Fundação e de Robert o Hin sh aw.
Ap ên d ice B
Com en t ários
p. 8&89 1
Per ío d o d a vid a
Mascu lin o
En a n t io d r o m ia d o t ip o de vid a
É difícil forçar esta ilust ração a u m a declaração. Mas seu t ipo é de t al form a
alegórico, que d everia falar. Dist in gu e-se das vivên cias an t eriores pelo fato de
ser m u it o m en os vivid a do que con t em plada. Todos os quadros que r eu n i sob
o t ít ulo "Jogo dos m ist érios" são b em m ais do t ipo alegórico do que p r op r ia-
m en t e vivên cias. Con t u d o, n ão são alegorias in t en cion ais, n ão foram provoca-
das in t en cion alm en t e para apresen t ar n u m a p in t u r a algo velado ou fan tástico,
mas apareceram com o visão. Só m ais t arde, n a revisão, t ive a im pressão sem pre
m ais fort e de que n ão se pod ia com pará-las com as vivên cias relatadas em ou t -
ros capít ulos. Essas im agens são eviden t em en t e con cepções person ificadas de
ideias in con scien t es. Ist o provém de seu carát er de im agem . Elas t am bém m e
in cen t ivaram m ais à reflexão e in t erpret ação do que as outras vivên cias às quais
eu n ão pod ia fazer ju st iça com o pensar, porque são sim plesm en t e coisa vivid a.
As im agens do "Jogo dos m ist érios", p orém , person ificam prin cípios que são
acessíveis ao pen sar e à com preen são in t elect u al e, correspon den do a seu t ipo
alegórico, t am bém est im u lam a sem elh an t e t en t at iva de explicação.
O lugar d a ação é u m a escura profun deza d a t erra, eviden t em en t e u m a r e-
presen t ação d a profun deza in t er ior sob a d im en são do espaço con scien t e ou
do cam po de visão psíquica. O m ergu lh ar n u m a t al profun deza correspon de ao
desvio do olh ar esp irit u al das coisas ext ern as e sua con cen t ração n a profun deza
escura in t erior. At ravés do olh ar para o escuro surge, de cert a form a, u m a vivi-
ficação do pan o de fun do an t eriorm en t e escuro. U m a vez que a con t em plação
da escu ridão acontece sem expect at iva con scien t e, o pan o de fundo psíqu ico
1 O s números das páginas referem-se ao esboço corrigido. Correspondem às pp. 157-164 acima.
497
498 AP Ê N D I C E S
cada peit o h u m an o; pois em cada u m m oram essas im agens p rim ord iais porque
fazem b em a todas as pessoas 2. Est e poder secreto é com o u m feitiço, com o m a-
gia, que causa t an t o elevação quan to sedução. Est a é a caract eríst ica p róp ria das
im agens p rim ord iais: elas agarram as pessoas lá onde ela é apenas ser h u m an o
e u m a força se apodera dela com o se a aglom eração do povo a em purrasse. E
ist o acontece, m esm o quando a razão e o sen t im en t o se levan t am con t ra isso.
O que é a força do in d ivíd u o con t ra a voz de t odo o povo d en t ro dele? Ele está
e n fe it iça d o , ca p t u r a d o , d evo r a d o . N i n g u é m exp rim e m elh or este estado de coi-
sas do que a cobra. El a sign ifica t udo o que é perigoso e m au , n ot u rn o e sin ist ro,
que está ligado t an t o ao Logos quan to ao Er os, en quan t o pod em atuar com o os
prin cípios escuros e in cógn it os do espírit o in con scien t e.
A casa expressa m orad a fixa, fican do en t en d id o o fato de que Logos e Eros
m oram perm an en t em en t e em n ós.
Salom é é apresen t ada com o filh a de Elias. Exp r im e-se com isso o proce-
d im en t o d a sucessão. O profet a é seu gen itor, ela procede dele. Sen d o-lh e
at ribu íd a com o filh a, in d ica-se assim u m a su bord in ação do Er os ao Logos.
Ain d a que esta relação, assim com o aparece n a persist ên cia dessa im agem p r i-
m ord ial, seja m u it o frequen t e, ela é assim m esm o u m caso pecu liar que n ão
possui validade geral. Pois quan do se t rat a de dois p rin cíp ios que se en con -
t r am n u m a relação de oposição, u m n ão pode p rovir do ou t ro e desse m odo
ser depen den t e do p rim eiro. Por isso Salom é n ão é evid en t em en t e u m a en car-
n ação (t ot alm en t e) perfeit a do Er os, mas u m a bast arda do m esm o. ( Est a su -
posição se con firm a m ais t ard e.) Q u e ela é realm en t e u m a alegoria im p erfeit a
do Er os m an ifest a-se t am b ém n o fato de ser cega. O Er os n ão é cego, pois ele
d isp õe, assim com o o Logos, de todas as at ividades básicas da alm a. A cegueira
sign ifica sua im perfeição e a falt a de u m a qualidade essen cial. Devid o à sua
deficiên cia, depen de do pai.
As paredes que b r ilh am de m odo confuso in d icam algo desconhecido, t al-
vez valioso, que despert a a curiosidade e at rai sobre si a aten ção. Dessa m an ei-
ra, a part icipação criad ora fica ain d a m ais sufocada n a im agem , pela qual se
t orn a possível u m a vivificação ain d a m aior do pan o de fundo escuro. Devid o
ao aum en t o d a aten ção, form a-se a im agem de u m objeto que expressa m u it o
2 Jung emprega aqui uma metáfora usada por Jacob Burkhardt para descrever as imagens primordiais de
Fausto e Édipo, que ele citou em Transformações e símbolos da libido (1912. O C , B, § 56n.).
5oo AP Ê N D I C E S
b e m a con cen t ração, ist o é, a im agem de u m crist al que é usado desde tem pos
antigos para a geração de visões. As figuras in icialm en t e in com preen síveis ao
observador prod u zem acon t ecim en t os obscuros em sua alm a, que de cert a m a-
n eira est ão ain d a m ais fundas (sem elh an t em en t e à visão do sangue) e para cu ja
percepção h á necessidade de u m m eio au xiliar com o o crist al. Mas com isso,
com o ficou dit o, n ão se exp rim e n ada além de u m a con cen t ração m ais fort e d a
at en ção criad ora.
U m a figura, com plet a e tran sparen te em si, com o a do profeta, desperta m e-
nos curiosidade do que a figura inesperada de u m a cega Salom é, poden do-se es-
perar en t ão que o processo criad or se volt e em p r im eir o lugar para o problem a
do Eros. Est a é a razão por que aparece p rim eiram en t e u m a im agem de Eva,
bem com o da árvore e da serpen te. Ist o sign ifica obviam en t e a sedução, cujo
elem en t o já está claro n a figura de Salom é. A sedução produ z u m m ovim en t o
u lt erior para o lado do Eros. Disso surge o pressen t im en t o de m u it as possibi-
lidades aven t ureiras, do qu al é im agem perfeit a a viagem sem ru m o de Ulisses.
Est a im agem é est ím u lo e con vit e para o prazer em preen dedor; é com o se u m a
p ort a se abrisse para u m a n ova possibilidade e que conseguisse lib ert ar o olh ar
da est reit eza e profun deza escuras em que estava preso. Ab re-se por isso a v i -
são para u m jar d im ensolarado, cujas árvores de flores verm elh as represen t am
am pliação do sen t im en t o erót ico e cujo p oço sign ifica u m a fonte peren e. A
um idade refrescan te do poço, que n ão causa em briaguez, apon t a para o Logos.
(Por isso Salom é fala t am bém m ais tarde dos "p oços" profun dos do Profet a.)
In d ica-se com isso que a am pliação do Er os sign ifica t am bém u m a fonte do
con h ecim en t o. E en t ão Elias com eça a falar.
O Logos t em sem d ú vid a o poder neste m eu caso, pois Elias d iz que ele e
sua filh a são u m desde sem pre. Mas Logos e Er os n ão são u m , e sim dois. Mas
neste caso o Logos ofuscou o Er os e o subm et eu a si. Se for assim , surgirá a
necessidade de lib ert ar o Er os do sufoco do Logos, para que o p r im eir o con -
siga de n ovo sua face. Por isso Salom é volt ou -se para m im , porque o Er os est á
n ecessitado de ajuda e porque eu t am bém fu i tran sposto para a con t em plação
dessa im agem . A alm a do h om em está m ais in clin ad a para o Logos do que para
o Eros; este caract eriza m ais a n at u reza da m ulh er. A opressão do Er os pelo
Logos exp lica n ão só a cegueira do Eros, mas t am bém o fato est ran h o em si de
AP Ê N D I C E S 501
que o Er os é represen tado pela figura pouco sim pát ica de Salom é. Salom é sig-
n ifica m ás qualidades. El a lem b ra n ão só o assassinato do San to, mas t am bém a
com placên cia in cest uosa do pai.
U m prin cípio t em sem pre a dign idade d a in d epen d ên cia. Mas quan do se
lh e t ir a est a dign idade, fica rebaixado e assume u m a form a r u im . Sabemos que
as atividades e qualidades psíquicas que são ret iradas pela opressão do desen -
volvim en t o degen eram e se t ran sform am em vícios. No lugar de u m a at ivi-
dade cort ês en t ra u m vício m an ifest o ou secreto e assim nasce u m a d esu n ião
da person alidade consigo m esm a, que sign ifica u m sofrim en t o m oral ou u m a
verd ad eira doen ça. Para qu em quer libert ar-se desse sofrim en t o só h á u m ca-
m in h o: precisa assu m ir a part e op r im id a de sua psique, precisa até am ar sua
in feriorid ad e e seu vício, para que o degenerado volt e a en con t rar o cam in h o
do desen volvim en t o. Mas isto é ext rem am en t e difícil e duvidoso.
O n d e o Logos d om in a, lá exist e ord em , mas t eim osia dem ais. A alegoria
do paraíso, onde n ão h á n en h u m a lu t a e, por isso, t am bém n en h u m d esen vol-
vim en t o, é bem adequada aqui. Nest e estado o m ovim en t o rep rim id o degene-
ra, seu valor se perde. Est e é o assassinato do San to, e o assassinato acontece
porque, com o H erod es, o Logos n ão consegue proteger o San t o por fraqueza
própria, porque n ão sabe fazer ou t ra coisa do que agarrar-se em si m esm o, ges-
to pelo qu al provoca o Eros para sua degen eração. Só a d esobed iên cia a este
prin cípio d om in ad or leva para fora desse estado de t eim osia n ão evolu t iva. A
h ist ória do paraíso se repete e por isso t am bém a serpen te se en rosca n o alto da
árvore, porque Ad ã o deve ser t en t ado para a desobediên cia.
Tod o desen volvim en t o passa por cim a do n ão desen volvido, mas capaz de
desen volvim en t o. N o seu estado n ão desen volvido ele quase n ão t em valor, ao
passo que o desen volvido represen t a u m valor m u it o elevado, que é in d iscu t í-
vel. Deve-se ren u n ciar a este valor, ao m en os aparen t em en t e, para que se possa
assum ir o n ão desen volvido. Mas este está n a m ais fran ca oposição ao d esen vol-
vido, que talvez represen te n ossa m elh or e m ais elevada con t ribuição. Por isso,
o assu m ir do n ão desen volvido é com o u m pecado, com o u m passo em falso,
u m a degen eração, u m a descida para u m degrau m ais baixo, mas n a verdade u m
feito m aior do que a perseveran ça n u m estado orden ado à cust a do ou t ro lado
de n ossa n at u reza, que desta m an eira está expost a à corru pção.
502 AP Ê N D I C E S
p. 103-119 3
4 Esta frase é uma inserção apócrifa no Evangelho de Lucas 6,5, do Codex Bezae: "Hom em , quando sabes
realmente o que fazes, bem-aventurado és tu; mas se não, és amaldiçoado e um transgressor da lei".
E LLI O T , K J . (org.). TheApocryphalNewTestament, p. 68. Em 1952, Jung citou isto em Respostaajó ( O C, 11/4,
§696).
$04 AP Ê N D I C E S
profun deza d everá ser aberta. Ist o acontece n o va m e n t e com a ajuda do crist al,
ist o é, através da m áxim a con cen t ração d a at en ção que aguarda. A p r im eir a
im agem que aparece n o crist al é a m ãe de Deu s com o filho.
Est a im agem est á eviden t em en t e em con exão com e em oposição à visão da
Eva n a p r im eir a ilustração. Assim com o Eva represen t a a t en t ação da carn e e a
m at ern idade carn al, a m ãe de Deu s en carn a a virgin dade carn al e a m at ern id a-
de espirit u al. A p r im eir a direção seria u m m ovim en t o do Er os para a carn e, a
ú lt im a direção seria u m m ovim en t o para o espírit o. Eva é a expressão do lado
carn al, en quan t o Ma r ia a expressão do lado esp irit u al do Eros. En qu an t o o eu
só via Eva, era cego. Mas a con scien t ização ab riu u m aspecto esp irit u al do Eros.
No p rim eiro caso, o eu t orn ou -se u m Ulisses em sua rot a perdida, que en con t ra
seu desfecho n a volt a do h om em en velh ecido ao ven t re m at ern o, Pen élope.
No ú lt im o caso, o eu é apresentado com o Pedro com o a pedra escolh ida
sobre a qu al d everia ser con st ru íd a a Igreja. Est a id eia é apoiada pelas chaves
com o sím bolo do poder de ligar e desligar e t ran sferido para a figura do papa
com o o represen t an t e de Deu s n a Ter r a, com a t ríplice coroa.
Sem dúvida, o eu en t ra aqui n u m m ovim en t o em d ireção ao poder esp ir it u -
al. Ist o se exp lica pela u n ilat eralid ad e do m ovim en t o. O aspecto de Eva con duz
à aven t u reira viagem erran t e, à Igreja e a Calipso. O aspecto da m ãe de Deu s,
n o en t an t o, desvia o desejo da carn e e o dirige para a ven eração h u m ild e do es-
pírit o. N a carn e, o Er os está subordin ado ao erro, mas n o espírit o ele se levan t a
acim a da carn e e sobre a in feriorid ad e do erro carn al. Torn a-se por isso quase
im percept ível n a form a de am or ao espírit o do poder sobre a carn e e assim sai
da casca do amor. O poder espirit u al, que acredit a am ar o espírit o, mas que de
fato e n a verdade é u m d om ín io da carn e. Q u an t o m ais for poder, t an t o m en os
é amor. Q u an t o m en os for am or ao espírit o, t an t o m ais é poder carn al. E as-
sim o am or ao espírit o t orn a-se, devido a seu poder sobre a carn e, u m in st in t o
m u n d an o de poder em form a espirit u al.
O Cr ist o ven ceu o m u n d o ao t om ar sobre si o sofrim en t o do m un do. Mas
Bu d a ven ceu as duas coisas: o prazer e o sofrim en t o do m un do, afastando de si
prazer e sofrim en t o. E assim en t rou n u m n ão ser, n o estado em que n ão h á vo l-
ta. Bu d a é u m poder espirit u al ain d a m aior, que t am bém n ão se regozija m ais
com o d om ín io da carn e, t ão profun dam en t e m ergu lh aram atrás dele prazer
e dor. A paixão, que em sua aut ossuperação ain d a é t ão poderosa em Cr ist o e
que precisa de si m esm a sem pre de n ovo e sem pre em m aior quan tidade para
AP Ê N D I C E S 505
por t an t o ser diferen t e, que fica t ot alm en t e privado de seu arbít rio. A figura de
Elias assume o processo da con scien t ização.
Co m o in d icam as visões do crist al, a id eia que devia levar à con sciên cia é u m a
ideia com poder espirit ual, isto é, o eu caiu n a ten tação de querer arrogar-se o
ser profeta. Mas esta id eia en con t rou t ão grande recusa, que n ão con seguiu
im p or-se con t ra a con sciên cia. Ficou por isso atrás da cort in a. Co m o o eu n ão
pudesse seguir cegam ente o Er os, qu eria ao m en os t rocar esta perd a pela pos-
se do poder esp irit u al - u m proced im en t o que podem os observar com m u it a
frequên cia n a vid a das form as! Mas t am bém é quase in evit ável que tão grande
perda, com o a do Eros, force as pessoas, ao m en os n o cam po do poder, a buscar
u m sucedân eo. Ist o acontece de m an eira tão su t il e esperta, que o eu n em m es-
m o percebe o t ruque. Por isso, m esm o seguindo as regras da posse do poder,
sem elh an te eu n ão pode ficar feliz, porque n ão é ele que possui o poder, mas é
o poder d em on íaco que o possui. Ter ia sido fácil para o eu apossar-se neste caso
da realidade com que a figura de Elias se im pôs com t an t a plast icidade e t om ar
para si esta figura com o m erecedora de person alidade. Mas a con scien t ização
im p ed iu esta fraude.
O surgim en t o de figuras vivas n ão deve ser tom ado em sen t ido pessoal,
ain d a que se esteja n at u ralm en t e in clin ad o a assu m ir de cert a form a a respon -
sabilidade sobre elas. Mas elas pert en cem n a verdade t an t o com o tam pouco à
n ossa person alidade, com o a posse das m ãos e dos pés. O sim ples fato de que
m ãos e pés est ão d ispon íveis n ão é d et erm in an t e da person alidade. Se exist e
algo de d et erm in an t e n eles, é apenas sua con d ição in d ivid u al. Assim é det er-
m in an t e para o eu que o velh o e a jovem sejam designados precisam en t e com o
Elias e Salom é; pod eriam t am bém ch am ar-se Sim ão Mago e H elen a. Mas é sig-
n ificat ivo que t en h am aspecto bíblico. Ist o faz part e, com o ficará dem on st rado
m ais t arde, das caract eríst icas da con fusão psíqu ica d om in an t e neste m om en t o.
Co m a con scien t ização da id eia sedut ora do poder esp irit u al vem à baila de
n ovo a qu est ão do Eros, de n ovo n u m a form a n ova: a possibilidade in d icad a
por Eva, bem com o a corporificad a por Mar ia, fica excluída. Perm an ece en t ão
a t erceira possibilidade, que evit a o ext rem o d a carn e assim com o o do espírit o,
ist o é, a relação filial: Elias, o pai; Salom é, a irm ã; o eu , o filh o e irm ão. Est a so-
lução correspon de à id eia crist ã de filiação. A m ãe que ain d a falta é com plet ada
de m an eira t errivelm en t e ard ilosa por Salom é com o Mar ia. O efeito sobre o
eu t am bém está de con form idade com isso. A solução crist ã através da filiação
AP Ê N D I C E S 507
p. 127-150 5
o eu fica parado n o m eio, com o que fascin ado, e con t em p la a lu t a dos dois
p rin cíp ios — d en t ro dele.
N a verdade, o fato de o eu con servar a posição in t erm éd ia já sign ifica u m
avan ço do m al, pois é u m a r u p t u r a com o bem , quan do a gente n ão se en trega
in con d icion alm en t e a ele. Ist o est á expresso n o ataque da serpen te negra. Mas
n a verdade, o fato de o eu n ão t om ar part e n o m al é u m a vit ória do bem . Ist o
está expresso n o fato de a serpen te negra receber u m a cabeça bran ca.
O desaparecim en to da serpen te sign ifica que a oposição de b em e m al t or-
n ou-se in at iva, ist o é, que ao m en os perd eu sua im port ân cia im ed iat a. Para
o eu, ist o sign ifica u m a libert ação do poder in con d icion al do pon t o de vist a
m oral cost u m eiro em p rol de u m a posição in t erm éd ia, livre dos opostos. Mas
com isso n ada se gan h a ain d a em clareza e vist a geral; por isso a ascen são é
con t in u ad a até u m a ú lt im a alt u ra, que talvez proporcion e a desejada vist a geral.
Apên d ice C
16. 1.16
Sn
512 AP Ê N D I C E S
t am bém o sol que t u vês. Sol e lu a, ist o é, seus sím bolos, são deuses. Exist em
ain d a out ros deuses, cujos sím bolos são os plan etas.
A m ãe do céu é u m d áim on , abaixo da categoria dos deuses, u m a h abit an t e
do m u n d o sid eral.
O s deuses são favoráveis e desfavoráveis, im pessoais, alm as siderais, in flu -
ên cias, forças, avós das alm as, soberanos do m u n d o celeste. Tan t o n o espaço
com o n a força. N ã o são perigosos n em bon dosos, fortes, mas flexíveis, exp lica-
ções do Pler om a e do et ern o vazio, form ações das qualidades etern as.
Seu n ú m ero é in fin it am en t e grande e con duz para m ais além , para d en t ro
do u n o sobren at ural, que con t ém em si t oda qualidade, mas que n ão t em ele
m esm o n en h u m a qualidade, u m n ada e u m tudo, a t ot al d ecom posição do ser
h um an o, m ort e e vid a et ern a.
O ser h u m an o t orn a-se através do príncípíum índívíduatíonís. Ele lu t a pelo ú n ico
absoluto, pelo qu al con den sa sem pre m ais o absolutam en te dissolvido do Ple-
rom a. Co m isso faz do Pler om a u m pon t o in fin it am en t e pequeno, que con t ém
a m aior t en são, sendo ele m esm o u m a est rela brilh an t e, assim com o o Pler om a
é in fin it am en t e grande. Q u an t o m ais o Pler om a é condensado, t an t o m ais for-
te se t orn a a est rela do solit ário. Est á rodeado de n uven s brilh an t es, u m a est rela
em form ação, com parável a u m pequen o sol. Ele lan ça fogo. Por isso se d iz:
eyo) [e ip i] auimrÀavoç u p i v aaxrip1. Assim com o o sol, t am bém u m a est rela
sem elh an t e, é u m Deu s e avô das alm as, t am bém a est rela do solit ário é igual ao
sol, u m deus e avô das alm as. Às vezes ela é visível, exat am en t e com o a descrevi.
Sua lu z é azu l com o a de u m a est rela dist an t e. El a est á lá longe n o espaço, fria
e solit ária, pois est á além da m ort e. Para chegar ao ser solit ário precisam os de
u m gran de pedaço de m ort e. Por isso est á d it o 0801 eaxe2, pois assim com o é
in con t ável o n ú m ero dos govern an tes do m un do, assim é o n ú m ero das estrelas,
dos deuses, com o govern an tes do m u n d o celeste.
Est e Deu s é sem d ú vid a aquele que sobrevive à m ort e do ser h um an o. Para
qu em a solidão é o céu , este vai para o céu; para qu em é u m in fern o, este vai
1 Sou uma estrela perambulando contigo por a í"- Um a citação da Liturgia de Mit ra ( D I E D E R I C H , A. Etne
Míthraslíturgíe. Leipzig: B.G. Teubner, 1903, p. 8,1.5). Jung gravou a continuação dessa frase em sua pedra de
Bollingen.
2 Vós sois deuses". Um a citação de Jo 1033S.: "O s judeus responderam: Por nenhuma obra boa te
apedrejamos, mas sim pela blasfémia, pois sendo homem te fazes Deus. Jesus respondeu: Não está escrito
em vossa Lei: Eu disse: Vós sois deuses?'"
AP Ê N D I C E S 513
ren ova em suas épocas, criação e povos, t ão poderoso para eles quan to Ab raxas
para t i.
T u p róp rio és criad or do m u n d o e criat u ra.
T u t en s o Deu s único, t u te t orn as p ara t eu Deu s único u m dos in ú m eros
deuses.
Tu , com o Deu s, és o gran de Ab raxas de t eu m un do. Mas com o ser h u m an o
és o coração do Deu s ún ico, que se m an ifest a a seu m odo com o o gran de Ab r a -
xas, o t em ido, o poderoso, que espalh a lou cu ra, o d ist rib u id or da água da vid a, o
espírit o da árvore d a vid a, o d áim on do sangue, o port ad or da m ort e.
T u és o coração sofredor de t eu ú n ico Deu s das estrelas, que é o Ab raxas de
seu m un do.
Pelo fato de seres o coração de t eu Deu s, cu id a dele, am a-o, vive para ele.
Tem e o Ab raxas que govern a o m u n d o h um an o. Ace it a aquilo a que te obriga,
pois ele é o sen h or da vid a deste m u n d o e n in gu ém escapa dele. Se n ão acei-
tares, ele te t ort u rará até a m ort e e o coração de t eu Deu s sofre, assim com o o
Deu s único de Cr ist o em cu ja m ort e su port ou o pior.
O sofrim en t o da h u m an id ade n ão t em fim , porque sua vid a n ão t em fim .
Pois n ão h á fim on de n in gu ém vê que h á u m fim . Q u an d o a h u m an id ade está
n o fim , n ão h averá m ais n in gu ém para ver seu fim e n in gu ém est ará ali para
d izer que a h u m an id ad e t em u m fim . Port an t o, ela n ão t em fim para si m esm a,
mas para os deuses.
A m o r t e do Cr is t o n ão r e t ir o u do m u n d o n e n h u m sofrim en t o, m as su a
vid a n os en sin o u m u it a coisa com o, p or exem p lo, que agrada ao Deu s único
qu an d o o solit ár io vive su a p r ó p r ia vid a co n t r a o p od er do Ab r a xa s. E assim
o Deu s único se livr a do sofr im en t o d a t e r r a em que seu Er o s o p r ecip it o u ;
pois qu an d o o De u s ú n ico vi u a t er r a, d esejou -a p ar a a geração e esqu eceu
que já h avia receb id o u m m u n d o, n o q u al ele er a o Ab r a xa s. Dessa for m a,
o Deu s único t or n ou -se ser h u m an o. Por isso, o ú n ico p u xa p ara cim a n o va-
m en t e o ser h u m an o p ara si e em si, a fim de que o ú n ico fiqu e o u t r a vez
com p let o.
Mas a libert ação do ser h u m an o do poder de Ab raxas n ão se processa pelo
fato de ele su bt rair-se ao poder de Ab raxas - n in gu ém pode su bt rair-se a ele, a
n ão ser subm et en do-se a seu poder. O p róp rio Cr ist o teve de subm et er-se ao
poder de Ab raxas, e Ab raxas o m at ou de form a cru el.
AP Ê N D I C E S 515
10-00037 CDD-150.1954
C G . JUNG
Ed ição e In t r od u ção de
S O N U SH AM D ASAN I
Prefácio de U l r i c h H o e r n i
Trad u ção:
Ll BE R N O VU S: E D G A R O R T H
I N T R O D U Ç Ã O : G E N T I L A . T I T T O N E G U S T AVO B A R CELLO S
® P H I LEM Q N S ER I ES
& è EDITORA
• VOZES
Pet rópolis
Co p yr i g h t © 2009 b y t h e Fo u n d a t i o n o f t h e W o r k s o f C G . Ju n g
Copyrigh t da tradução © 2009 by Mark Kybu rz, Joh n Peck e Son u Shamdasani
Introdução e notas © 2009 by Son u Shamdasani
Tít u lo origin al inglês: The Red Book: A Readers Edítíon, publicado pela W W Nort on &
Com p an y New York & Lon d on
Todos os direitos reservados. Nen h u m a parte desta obra poderá ser reproduzida ou
t ran sm it ida por qualquer form a e/ ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, in cluin do
fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistem a ou banco de dados sem
perm issão escrita da editora.
Dire to r editorial
Frei An t ôn io Moser
Editores
Alin e do Santos Carn eiro
José Maria da Silva
Lídio Peret t i
Marilac Lorain e O len iki
Secretário executivo
João Bat ist a Kr eu ch
® P H I LEM Q N S ER I ES
O Livro Verm elho: edição sem ilustrações é u m a publicação dos h erdeiros de C G . Ju n g e u m dos
Lib er Prim us
O
C G . J U N G , 1957
Prefácio à edição sem ilustrações
Fu n d a çã o das O b r a s de C . G . Ju n g
Ju lh o de 2012
Prefácio
D e s d e 1962, a e xis t ê n c ia d o Livro Verm elho d e Ju n g e r a a m p l a m e n t e c o n h e -
cid a . Co n t u d o , só a p a r t i r d a p r e se n t e p u b lic a ç ã o ele e s t á fi n a lm e n t e a ce ssíve l
a u m p ú b l i c o a m p lo . Su a gé n e s e é d e s c r it a e m Mem órias, Sonhos, Reflexões de Jung
e e st e ve s u je i t a a n u m e r o s a s d is c u s s õ e s n a l i t e r a t u r a s e c u n d á r ia . P o r isso, a q u i
ir e i apen as e sb o çá -la su cin t a m e n t e .
O a n o d e 1913 fo i d e cisivo n a v i d a d e Ju n g. E l e c o m e ç o u u m a u t o e xp e r i -
m e n t o q u e ve io a ser c o n h e c id o c o m o se u "c o n fr o n t o c o m o in c o n s c ie n t e " e
d u r o u a t é 1930. D u r a n t e esse e xp e r im e n t o , Ju n g d e s e n vo lve u u m a t é cn ica p a r a
"ch egar ao fu n d o d o [se u ] p r o ce sso i n t e r i o r ", "t r a d u z i r as e m o ç õ e s e m im a ge n s"
e "c o m p r e e n d e r as fan t asias q u e e st a va m se agit an d o... ' s u b t e r r a n e a m e n t e ' ".
M a i s t a r d e ele d e u a esse m é t o d o o n o m e d e "im a g in a ç ã o a t iva ". Ju n g r e gis t r o u
p r i m e i r a m e n t e essas fan t asias e m seu s Livros Negros. D e p o i s r e vis o u esses t e xt o s,
a c r e s c e n t o u r e fle xõ e s so b r e eles e c o p io u - o s e m e s c r it a ca ligr á fica n u m l i vr o
in t it u la d o Liber Novus e n c a d e r n a d o e m c o u r o ve r m e lh o , a c o m p a n h a d o p o r q u a -
d r o s p in t a d o s p o r ele m e sm o . Se m p r e fo i c o n h e c id o c o m o Livro Verm elho.
Jung c o m p a r t i l h a va su as e xp e r iê n c ia s i n t e r i o r e s c o m a m u l h e r e c o m p a -
n h e ir o s m a is p r ó xi m o s . E m 1925, fez u m r e la t ó r io d e s e u d e s e n vo lvi m e n t o
p r o fis s io n a l e p e sso a l n u m a sé r ie d e s e m i n á r i o s n o C l u b e P s ic o ló gic o d e
Zu r i q u e , n o s q u a is m e n c i o n o u t a m b é m se u m é t o d o d a i m a g i n a ç ã o a t iva . F o r a
d isso , Ju n g e r a ca u t e lo so . Seu s filh o s, p o r e xe m p lo , n ã o e s t a va m i n fo r m a d o s
d e se u a u t o e xp e r i m e n t o e n ã o n o t a r a m n a d a d e a n o r m a l . Evi d e n t e m e n t e ,
t e r i a sid o d ifícil p a r a ele e xp l i c a r o q u e e st a va o c o r r e n d o . Já e r a u m s in a l d e
c o n d e s c e n d ê n c i a se p e r m i t i a q u e u m d e seu s filh o s o o b se r va sse e sc r e ve n d o
o u p in t a n d o . As s i m , p a r a os d e sce n d e n t e s d e Ju n g , o Livro Verm elho s e m p r e fo r a
ce r ca d o p o r u m a a u r a d e m is t é r io . E m 1930, Ju n g t e r m i n o u o e xp e r i m e n t o e
p ô s d e la d o o Livro Verm elho - in a ca b a d o . E m b o r a t ivesse se u lu ga r d e h o n r a e m
se u e st u d o , d e i xo u o l i vr o d e sca n sa r p o r d é c a d a s . En q u a n t o isso, as in t u iç õ e s e
c o n h e c i m e n t o s q u e o b t i ve r a a t r a vé s d e le i n fo r m a r a m d i r e t a m e n t e seu s e s c r i -
t o s su b se q u e n t e s. E m 1959, c o m a a ju d a d o a n t igo e s b o ç o , ele t e n t o u c o m p le t a r
a t r a n s c r iç ã o d o t e xt o p a r a o Livro Verm elho e t e r m i n a r u m q u a d r o in c o m p le t o .
I n i c i o u t a m b é m u m e p ílo go , m a s, p o r r a z õ e s d e sco n h e cid a s, t a n t o o t e xt o c a l i -
gr á fico c o m o o e p ílo g o t e r m i n a m a b r u p t a m e n t e n o m e i o d a fr ase.
xii P R E F ÁCI O
Q u a n d o , d e p o is d e 1990, a e d iç ã o a l e m ã d as O b r a s Co m p l e t a s — u m a sele-
ção de o b r a s — e st a va ch e ga n d o ao fi m , o c o m i t é e xe c u t ivo d e c i d i u c o m e ç a r a
e xa m i n a r t o d o o m a t e r i a l i n é d i t o a ce ssíve l c o m vist a s a fu t u r a s p u b lic a ç õ e s .
As s u m i essa t a r e fa p o r q u e , e m 1994, a So cie d a d e d o s H e r d e i r o s c o lo c o u so b r e
m e u s o m b r o s a r e sp o n sa b ilid a d e p elas q u e s t õ e s a r q u ivíst ica s e e d it o r ia is .
Ve r i fi c o u - s e q u e h a vi a t o d o u m corpus d e e s b o ç o s e va r ia n t e s r e la t ivo s ao Livro
Verm elho. Daí ve io à t o n a q u e a p a r t e q u e fa lt a va d o t e xt o ca ligr á fico e xi s t i a
n a fo r m a d e e s b o ç o e q u e h a vi a u m m a n u s c r i t o i n t i t u l a d o Aprofundam entos, q u e
c o n t i n u a va o n d e o e s b o ç o t e r m i n a va , c o n t e n d o os Sete serm ões. N o e n t a n t o , se
e c o m o est e m a t e r i a l e sse n cia l p o d e r i a ser p u b lic a d o p e r m a n e c i a u m a q u e s t ã o
a b e r t a . A p r i m e i r a vis t a , o e st ilo e o c o n t e ú d o p a r e c i a m t e r p o u co e m c o m u m
c o m as o u t r a s o b r a s d e Ju n g. M u i t a co isa e r a o b s c u r a e, e m m e a d o s d a d é c a d a
d e 1990, n ã o h a vi a so b r a d o n i n g u é m q u e p u d e sse p r o p o r c i o n a r i n fo r m a ç ã o d e
p r i m e i r a m ã o so b r e esses p o n t o s.
M a s , d e sd e o t e m p o d e Ju n g, a história d a p sico lo gia vi e r a a d q u i r i n d o se m p r e
m a i o r i m p o r t â n c i a e p o d i a ago r a p r o p o r c i o n a r u m a n o va a b o r d a ge m . E n q u a n -
t o t r a b a lh a va e m o u t r o s p r o je t o s e u e n t r e i e m c o n t a t o c o m So n u Sh a m d a s a n i.
E m lo n ga s co n ve r sa s d i s c u t i m o s a p o ssib ilid a d e d e u lt e r io r e s p u b lic a ç õ e s d e
Ju n g, t a n t o e m t e r m o s ger ais c o m o n o q u e d i z r e sp e it o ao Livro Verm elho. O
l i vr o s u r g iu n u m c o n t e xt o e sp e cífico c o m o q u a l u m l e i t o r d o sé cu lo X X I já
n ã o e st á m a is fa m ilia r iz a d o . M a s u m h i s t o r i a d o r d a p sico lo gia s e r ia ca p a z d e
a p r e s e n t á - l o ao l e i t o r m o d e r n o c o m o u m d o c u m e n t o h ist ó r ico . C o m a a ju d a
d e fo n t e s p r im á r ia s , ele p o d e r i a e n c a i xá - l o n o c o n t e xt o c u l t u r a l d e su a gé n e s e ,
s it u á - lo n a h is t ó r ia d a c iê n c ia e r e la c io n á - lo c o m a vi d a e as o b r a s d e Ju n g. E m
1999, So n u Sh a m d a s a n i e la b o r o u u m a p r o p o s t a d e p u b lic a ç ã o se gu in d o esses
p r in c íp io s o r ie n t a d o r e s . C o m b ase n e s t a p r o p o st a , a So cie d a d e d o s H e r d e i r o s
d e c i d i u n a p r i m a ve r a d e 2 0 0 0 — n ã o s e m d is c u s s ã o - l i b e r a r o Livro Verm elho
p a r a p u b lic a ç ã o e c o n fia r a So n u Sh a m d a s a n i a t a r e fa d e e d it á - lo .
n ã o r e so lvid a . A l é m d isso , o p r ó p r i o Ju n g a fi r m o u q u e t i r o u t o d o o m a t e r i a l
p a r a su as o b r a s p o st e r io r e s d e se u c o n fr o n t o c o m o in c o n s c ie n t e . C o m o r e gis-
t r o d esse c o n fr o n t o o Livro Verm elho o cu p a , a s s im , p a r a a lé m d a esfera privada, u m
lu ga r c e n t r a l n as obras d e Ju n g. Es s a m a n e i r a d e ve r p e r m i t i u à g e r a ç ã o d os
netos de Ju n g o lh a r p a r a a sit u a ç ã o sob u m a n o va lu z . O p r o ce sso d e t o m a d a d e
d e c is ã o l e vo u t e m p o . Exc e r t o s e xe m p la r e s , c o n c e it o s e i n fo r m a ç ã o a ju d o u - o s a
l i d a r d e fo r m a m a is r a c i o n a l c o m u m a ssu n t o e m o c i o n a l m e n t e ca r r e ga d o . P o r
fi m , a So cie d a d e d o s H e r d e i r o s d e c i d i u d e m o c r a t i c a m e n t e q u e o Livro Verm elho
podia se r p u b lica d o . F o i u m a lo n ga jo r n a d a d e sd e essa d e c is ã o a t é a p r e se n t e
p u b lica çã o . O r e s u lt a d o é im p r e s s io n a n t e . Es t a e d iç ã o n ã o t e r i a sid o p o ssíve l
s e m a c o o p e r a ç ã o d e m u i t a s p esso as q u e d e d i c a r a m s u a h a b ilid a d e e e n e r gia a
u m o b je t ivo c o m u m . E m n o m e d o s d e sce n d e n t e s d e C G . Ju n g e u go st a r ia d e
e xp r e ssa r m e u s s in c e r o s a gr a d e cim e n t o s a t o d o s os co la b o r a d o r e s.
Ab r i l de 20 0 9
Ulrich H oern i
Fu n d a ç ã o p a r a as O b r a s d e C . G . Ju n g
Agradecim en tos
d e c i d i u , n a p r i m a ve r a d e 2 0 0 0 , a p ó s in t e n s o s d eb at es, li b e r a r a o b r a p a r a
p u b lica çã o . E m n o m e d a So cie d a d e d e H e r d e i r o s , U l r i c h H o e r n i , a n t e s s e u
a d m i n i s t r a d o r e p r e s id e n t e e, a t u a lm e n t e , p r e s id e n t e d e s u a su ce sso r a , a
Fu n d a ç ã o p a r a as O b r a s d e C . G . Ju n g, p l a n e jo u o p r o je t o c o m o a p o io d o
c o m i t é e xe cu t ivo . W o l fg a n g Ba u m a n n , p r e s id e n t e d e 2 0 0 0 a 20 0 4 , a ssin o u ,
n o o u t o n o d e 2 0 0 0 , o a co r d o q u e t o r n o u p o s s íve l d a r in íc io aos t r a b a lh o s
e q u e c o m p r o m e t e u a So cie d a d e d e H e r d e i r o s a a s s u m ir u m a gr a n d e p a r t e
d os cu st o s. A Fu n d a ç ã o p a r a as O b r a s d e C . G . Ju n g go st a r ia d e a gr a d e ce r a
H e i n r i c h Zw e i fe l , e d it o r , d e Zu r i q u e , p e lo s co n se lh o s so b r e q u e s t õ e s t é cn ica s
n a fase d e p la n e ja m e n t o ; ao F u n d o D o n a l d Co o p e r , d o I n s t i t u t o Fe d e r a l Su íç o
n e go c ia ç õ e s c o n t r a t u a is .
N u m m o m e n t o c r ít ic o e m 20 0 3, o t r a b a lh o e d i t o r i a l r e c e b e u a p o io d a
Fu n d a ç ã o Bo ge t t e e d e u m d o a d o r a n ó n i m o . A p a r t i r d a 20 0 4 , o t r a b a lh o
e d i t o r i a l fo i a p o ia d o p e la Fu n d a ç ã o Fi l ê m o n , o r g a n iz a ç ã o c r i a d a c o m a ú n ic a
q u a is fo r e m as im p e r fe iç õ e s d e st a e d içã o , o a p a r a t o e d i t o r i a l e a t r a d u ç ã o n ã o
p o d e r i a m t e r ch e ga d o ao p r e se n t e n íve l s e m o a p o io d o C o r p o d e D i r e t o r e s
d a Fu n d a ç ã o Fi lê m o n : T o m C h a r l e s w o r t h , G i l d a Fr a n t z , Ju d i t h H a r r i s , Ja m e s
H o l l i s , St e p h e n M a r t i n e Eu ge n e Ta ylo r . A Fu n d a ç ã o Fi l ê m o n go st a r ia d e
a gr a d e ce r o a p o io d e seu s d o a d o r e s, p a r t i c u l a r m e n t e a Fu n d a ç ã o M S ST ,
N a n c y F u r l o t t i e La u r e n c e d e Ro s e n p a r a a t r a d u ç ã o in gle sa .
xvi AGR AD E CI M E N TOS
Ba r o n e X i m e n a Ro e l l i d e An g u l o a t r a vé s d e i n ú m e r a s t r ib u la ç õ e s. O t r a b a lh o
20 0 1. A o lo n go d e t o d o o p r o je t o , o W e l l c o m e T r u s t C e n t r e fo r t h e H i s t o r y
o f M e d i c i n e d a U n i v e r s i t y Co lle g e Lo n d o n ( a n t igo W e l l c o m e I n s t i t u t e fo r
t h e H i s t o r y o f M e d i c i n e ) t e m sid o u m a m b i e n t e id e a l p a r a m i n h a p e sq u isa .
Ac o r d o s d e c o n fid e n c ia lid a d e i m p e d i r a m - m e d e d i s c u t i r m e u t r a b a lh o n e st e
p r o je t o c o m m e u s a m igo s e colegas: a g r a d e ç o - lh e s a p a c iê n c ia ao lo n go d o s
ú lt im o s t r e z e a n o s.
En t r e o f i m d e 2 0 0 0 e o in ício d e 20 0 3, a So cie d a d e d e H e r d e i r o s d e C . G .
Ju n g a p o io u o t r a b a lh o e d it o r ia l q u e i n i c i o u o p r o je t o . U l r i c h H o e r n i co la b o r o u
fo r a m H e l e n e H o e r n i Ju n g (1999, 20 0 1) e An d r e a s e Vr e n i Ju n g ( 20 0 3) . Pe t e r
Ju n g fo r n e ce u a co n se lh a m e n t o d u r a n t e as d e lib e r a çõ e s so b r e a p u b lica çã o e as
p r im e ir a s fases d o t r a b a lh o e d it o r ia l. An d r e a s e Vr e n i Ju n g a ju d a r a m d u r a n t e
lia Ju n g.
A e d i ç ã o d a N o r t o n r e a liz o u - s e gr a ça s a N a n c y Fu r l o t t i , La r r y e Sa n d r a
Vi g o n , q u e l e va r a m a Ji m M a i r s d a N o r t o n , r e sp o n sá ve l p e la e d iç ã o fa c - s im ila r
se n t a r a m n u m e r o s o s d e sa - fio s r e s o lvid o s p r i m o r o s a m e n t e p o r E r i c Ba k e r ,
La r r y Vi g o n e A m y W u . C a r o l Ro s e fo i in c a n s á ve l e s e m p r e vi g i la n t e a o
c o p i a r - e d i t a r o t e xt o . A u s t i n 0 ' D r i s c o l l p r e s t o u a ju d a c o n s t a n t e . O vo l u m e
O c u id a d o e p r e c i s ã o d e s e u t r a b a lh o ( fo c a n d o v i a s o n a r ) e n fr e n t o u e ig u a lo u
e o m o d e r n o . D e n n i s Sa vi n i p ô s s e u e s t ú d i o fo t o gr á fic o à d i s p o s i ç ã o p a r a o
e s c a n e a m e n t o . N a M o n d a d o r i P r i n t i n g , Se r gio Br u n e l l i , N a n c y F r e e m a n e
AGR AD E CI M E N TOS XVl l
E r i k H o r n u n g fo r n e c e u co n se lh o s a r e sp e it o d e r e fe r ê n c ia s e gip t o ló gic a s .
Fe l i x W a l d e r p r e s t o u a ju d a c o m u m close-up d igit a l d a ilu st r a çã o 155, Ulrich
H o e r n i d e c i fr o u su as m in ú s c u la s in sc r iç õ e s e G u y At t e w e l l r e c o n h e c e u a
in s c r iç ã o á r a b e . U l r i c h H o e r n i t r o u xe r e fe r ê n c ia s à Li t u r g i a m i t r a i c a ( n o t a I ,
p. 578). D a v i d O s w a l d a p o n t o u o Mutus Líber c o m o p o s s íve l r e fe r e n t e d e Ju n g
n a n o t a 314 ( p . 4 29 ) . T h o m a s Fe i t k n e c h t c h a m o u m i n h a a t e n ç ã o p a r a os
d o c u m e n t o s d e J. B. La n g e a u xi l i o u - m e n o u so d o s m e s m o s . St e p h e n M a r t i n
r e c u p e r o u as ca r t a s d e Ju n g a J. B. La n g . P a u l Bi s h o p , W e n d y D o n i g e r , Ra c h e l
M c D e r m o t t r e s p o n d e r a m a p e r gu n t a s e d ú vid a s .
Go s t a r i a d e a gr a d e ce r a E r n s t Fa lz e d e r p e la r e fe r ê n c ia n a n o t a 145 n a p. 46
p e la t r a n s c r iç ã o d as ca r t a s d e St o c k m a ye r p a r a Ju n g e p o r c o r r i g i r e xt e n s i va -
m e n t e a t r a d u ç ã o d a i n t r o d u ç ã o e d as n o t a s d a e d iç ã o a le m ã . E u go st a r ia d e
a gr a d e ce r à Fu n d a ç ã o p a r a as O b r a s d e C . G . Ju n g e à a gê n c ia lit e r á r ia P a u l a n d
P e t e r F r i t z p e la p e r m i s s ã o d e c i t a r m a n u s c r i t o s e c o r r e s p o n d ê n c i a s in é d it o s d e
Ju n g, e a X i m e n a Ro e l l i d e An g u l o p e la p e r m i s s ã o d e c i t a r a c o r r e s p o n d ê n c i a
e os d iá r io s d e C a r y Ba yn e s .
A r e sp o n sa b ilid a d e p e la e d iç ã o d o t e xt o , p e la i n t r o d u ç ã o e a p a r a t o c r ít ic o
c o n t i n u a m i n h a . C o m o o b u r r o d a p á g in a 126 ( n o t a 29 ) , e s t o u c o n t e n t e p o r
p o d e r fi n a l m e n t e d e sca r r e ga r e st a car ga.
So n u Sh a m d a s a n i
A ED ITO RA
CATEQUÉTICO PASTORAL
CULTURAL
Administração
Antropologia
Biografias
Comunicação
1 Catequese
Geral
Crisma
Primeira Eucaristia
Dinâmicas e Jogos
Ecologia e Meio Ambiente Pastoral
Educação e Pedagogia Geral
Filosofia Sacramental
História Familiar
Letras e Literatura Social
Obras de referência
1
Política
Psicologia TEOLÓGICO ESPIRITUAL
Saúde e Nutrição
Serviço Social e Trabalho
Biografias
Devocionários
Espiritualidade e Mística
Espiritualidade Mariana
Franciscanismo
Autocon heci mento
Liturgia
Obras de referência
Sagrada Escritura e Livros Apócrifos
Teologia
VOZES NOBILIS
Bíblica
REVISTAS I Histórica
I Prática Uma linha editorial especial, com
importantes autores, alto valor
Concilium agregado e qualidade superior.
Estudos Bíblicos
Grande Sinal
R E B (Revista Eclesiástica Brasileira)
SEDOC (Serviço de Documentação)
PRODUTOS SAZONAIS
Folhint
Calendário de Mesa do Sagrado Coração de Jesus
1 Obras clássicas de Ciências Humanas
em formato de bolso.
G U ST A V O B A R C E L L O S é mestre em Psicologia
Clín ica pela New Sch ool for Social Research de Nova
Yor k, analista didata da Associação Jun guian a do Brasil-
A JB e membro da Associação In tern acion al de
Psicologia An alítica-Iaap. Au t or de Jung, pela Edit or a
Át ica, e de O irm ão: psicologia do arquétipo fraterno,
pela Edit or a Vozes. E editor da revista Cadernos
Junguianos, pu blicação anual da A JB. Trabalh a como
analista jun guian o em São Paulo.
W A L T E R B O E C H A T é m édico e analista
jun guian o. Fez sua for m ação de analista no In st it ut o
C G . Jun g,de Zu r iqu e, Su íça. E membro-fundador da
Associação Jun guian a do Brasil. Te m doutorado pelo
In st it ut o de Medicin a Social da Uer j. Te m diversas
publicações n o Brasil e n o exterior. E autor do livro
Mitopoese da Psique: mito e individuação, Edit or a Vozes,
2008. W alter Boech at exerce seu con sult ór io particular
n o Rio de Jan eiro.
OS ANO S D U R A N T E OS Q UAIS
'OZES.
pelo bom livro