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MNEMOSINE REVISTA.

Programa de Pós-graduação em História/UFCG


Vol. 5 – nº 1 Jan/Jun 2014.
Campina Grande: PPGH, 2014.
Semestral.
ISSN: 2237-3217.
Universidade Federal de Campina Grande. Programa de Pós-graduação em História.

Programa de Pós-graduação em História


Endereço: Rua Aprígio Veloso, nº 882 – Bodocongó –
Campina Grande – Paraíba
BRASIL – CEP:58.429-140
Telefone: 2101-1742
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Equipe de Realização:
Edição de Texto: Alisson Pereira Silva
Arte: Lays Anorina Barbosa de Carvalho
MNEMOSINE REVISTA
Número 1 - Volume 5 – Jan/Jun 2014

UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE


Reitor: Prof. Dr. José Edilson de Amorim

DEPARTMENTO DE HISTÓRIA
Coordenadora Administrativa: Profª. Drª. Marinalva Vilar de Lima

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA


Coordenador: Prof. Dr. Iranilson Buriti de Oliveira

COMITÊ EDITORIAL
Prof. Dr. João Marcos Leitão Santos - Editor
Profª. Michelly Pereira de Sousa Cordão

CONSELHO EDITORIAL
Alarcon Agra do Ó (UFCG)
Antônio Clarindo Barbosa de Souza (UFCG)
Elizabeth Christina de Andrade Lima (UFCG)
Gervácio Batista Aranha (UFCG)
Iranilson Buritide Oliveria (UFCG)
João Marcos Leitão Santos - Editor Chefe (UFCG)
Juciene Ricarte Apolinário (UFCG)
Keila Queirós (UFCG)
Luciano Mendonça de Lima (UFCG)
Maria Lucinete Fortunato (UFCG)
Marilda Aparecida de Menezes (UFCG)
Marinalva Vilar de Lima (UFCG)
Osmar Luiz da Silva Filho (UFCG)
Regina Coelli (UFCG)
Roberval da Silva Santiago (UFCG)
Rodrigo Ceballos (UFCG)
Rosilene Dias Montenegro (UFCG)
Severino Cabral Filho (UFCG)
Sumário

Apresentação
André Figueiredo Rodrigues______________________________________________ 05

DOSSIÊ AFRICANIDADES

OS ESCRAVOS NAS PROPRIEDADES DOS INCONFIDENTES DA


COMARCA DO RIO DAS MORTES (MINAS GERAIS, 1789-1791)
André Figueiredo Rodrigues _____________________________________________ 08

COMPORTAMIENTOS SOCIO-DEMOGRÁFICOS DE
ESCLAVOS EN UNA HACIENDA RURAL JESUÍTICO-FRANCISCANA
EN CÓRDOBA, ARGENTINA (1752-1799)
Dora Celton / Mónica Ghirardi / Federico Sartori______________________________ 20

CULTURA, RELAÇÕES DE PODER E FESTAS DEVOCIONAIS


NAS IRMANDADES RELIGIOSAS EM MINAS GERAIS NA ÉPOCA DA COLÔNIA
Alisson Eugênio _______________________________________________________ 34

IMAGENS AMBÍGUAS: A ESCRAVIDÃO E O CIVILIZATÓRIO


NO BRASIL IMPERIAL
Marcelo Eduardo Leite __________________________________________________48

APRENDIZADO DA LIBERDADE: ESTRATÉGIAS DE MULHERES


ESCRAVIZADAS NA LUTA PELA EMANCIPAÇÃO
Lucia Helena Oliveira Silva ____________ __________________________________66

ENTRE POESIAS E CRÔNICAS: FALAS SOBRE ESCRAVIDÃO


E ABOLIÇÃO NO MARANHÃO NA SEGUNDA METADE DO SÉCULO XIX
Régia Agostinho da Silva _______________________________________________ 83

IMAGENS DA ESCRAVIDÃO, TORTURAS E RESISTÊNCIAS NO CONTO


“PAI CONTRA MÃE” DE MACHADO DE ASSIS
Ariosvalber de Souza Oliveira ____________________________________________ 100

JOAQUIM NABUCO, A POLÍTICA ESCRAVISTA E O ABOLICIONISMO


Milton Carlos Costa____________________________________________________ 113

A ABOLIÇÃO NAS AMÉRICAS E A SUPRESSÃO DO


CAPITAL ESCRAVISTA-MERCANTIL
Iraci del Nero da Costa / Julio Manuel Pires__________________________________133

GUINÉ EQUATORIAL NA HISTÓRIA DO ATLÂNTICO:


O TERRITÓRIO BRASILEIRO E A MANUTENÇÃO ESCRAVISTA EM CUBA
Pedro Acosta-Leyva ____________________________________________________ 150
ÉDOUARD GLISSANT: NOVELÍSTICA DE ESCLAVITUD Y ERRANCIA
Margarita Aurora Vargas Canales _________________________________________ 163

VIVÊNCIAS DE AFRO-BRASILEIROS NOS MUNDOS


DO TRABALHO EM CAMPINA GRANDE-PB (1945-1964)
Francisca Pereira Araújo ________________________________________________ 172

ARTIGOS DE FLUXO

A TRANSFORMAÇÃO NA PERCEPÇÃO DO HERÓI


DA ANTIGUIDADE AO SÉCULO XVIII: UMA ANÁLISE CRÍTICA
Francisco Eduardo Alves de Almeida _______________________________________185

UM BISPO AMIGO DOS JESUÍTAS: CONSIDERAÇÕES ACERCA


DO BISPADO DE DOM FREI MANUEL DA CRUZ EM MINAS GERAIS (1749-1763)
Leandro Pena Catão ___________________________________________________ 205

COMISSÁRIOS DO SANTO OFÍCIO NO BRASIL COLONIAL:


CRONOLOGIA, GEOGRAFIA E DINÂMICAS DA FORMAÇÃO
DA REDE (SÉCULO XVIII)
Aldair Carlos Rodrigues _________________________________________________ 224

UMA ANÁLISE SOBRE OS CONCEITOS DE “CULTURA”,


“CULTURA-POPULAR”, “ETNOGRAFIA” E “FOLCLORE”
NA OBRA CIVILIZAÇÃO E CULTURA DE LUÍS DA CÂMARA CASCUDO
Giuseppe Roncalli Ponce Leon de Oliveira ___________________________________242

NAZI-FASCISMO: UMA DOMINAÇÃO BURGUESA


Jorge Miklos _________________________________________________________ 255
Apresentação

A escravidão e seus vestígios

Brasil, julho de 2014. para percebermos que muito ainda


Passados mais de 126 anos temos que avançar rumo a tão
desde o final oficial da escravidão no propalada democracia racial.
Brasil, com a assinatura da Lei Áurea, Mesmo com as marcas visíveis
pela princesa Isabel, em 13 de maio de deixadas pela escravidão e os
1888, ainda sentimos, nos dias de fenômenos relacionados a ela na
hoje, os reflexos de termos sido o formação da sociedade brasileira,
último país das Américas a abrir mão muitas pessoas e pesquisadores das
do trabalho forçado, em que algumas Ciências Humanas fazem seus escritos
pessoas da sociedade detinham o como se no Brasil nunca tivesse
direito de propriedade sobre outras existido escravidão. Dentro da
pessoas. necessidade de se ampliar ou de não se
A abolição da escravidão, por se fazer esconder o passado que nos toca,
celebrar na pompa oficial com um é que este Dossiê – “A escravidão e
feriado nacional, mascara um passado seus vestígios” – foi organizado.
que se quer esconder: o permeado por Em seus pouco mais de “500
histórias de tragédias, preconceitos, anos de história”, o Brasil contou com o
injustiças e violência nas relações sistema escravista nada menos que
econômico-sociais, em que centenas de 388 anos. Neste período, como nos
milhares de negros passaram, da noite ensinou Luiz Felipe de Alencastro, em
para o dia, de um regime de dor, O trato dos viventes, “a escravidão não
exploração e humilhação, para um dizia respeito apenas ao escravo e ao
regime pré-democrático, em que a senhor, mas gangrenava a sociedade
igualdade de direitos e oportunidades toda”, criando um padrão de relações
deveria prevalecer. sociais e de trato político que deixou
A História, infelizmente, conta- marcas graves na sociedade brasileira.
nos outro enredo: aquele em que os Stuart Schwartz, em Segredos
negros e os seus descendentes foram internos, mostrou-nos que em
alijados e/ou não adequadamente decorrência da escravidão, no período
integrados às regras de uma sociedade colonial, a organização social resultou
baseada no trabalho assalariado. em uma sociedade de múltiplas
Com base no Censo de 2010, é- hierarquias de honra e considerações,
nos permitido saber que a população de múltiplas categorias de trabalho, de
negra soma hoje 50,1% dos cidadãos complexa divisão de cor e de formas
brasileiros e que existe – ou melhor, variadas de mobilidade e mudança.
que ainda persiste – um abismo entre Pensando-se na máxima
brancos e negros difícil de ser transmitida por Luiz Felipe de
ultrapassado. Sem ficar nos números, Alencastro, de que o Brasil foi um país
que podem ser consultados no site do criado na concepção de que o trabalho
IBGE (www.ibge.gov.br), basta é escravidão, iniciamos o Dossiê com o
observar o acesso aos serviços básicos artigo de André Figueiredo Rodrigues
de saúde, saneamento e educação, e (Universidade Estadual Paulista –
as informações econômicas UNESP, câmpus de Assis), que
relacionadas à renda e ao emprego, investiga os escravos como força de

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trabalho dominante, nas fazendas e ilustram um Brasil real e um Brasil que
lavras de alguns dos homens mais ricos se pretendia esconder, através de
do final do século XVIII, em Minas discursos civilizatórios propagandeados
Gerais, os proprietários da comarca do pelo Segundo Império.
Rio das Mortes envolvidos na O Segundo Império, no avançar
Inconfidência Mineira (1788-1792). da segunda metade do século XIX, viu
Dora Celton, Mónica Ghirardi e Federico florescer ações de resistência e se
Sartori, todos da Universidad Nacional consolidar autonomias. Revoltas
de Córdoba, desvendam, por meio da pipocavam por todo o país e eram
perspectiva sociodemográfica, o abafadas por ações governamentais.
universo do trabalho escravo em uma Ocorriam fugas em massa e a queima
área rural administrada conjuntamente de fazendas, criando um clima de
por jesuítas e franciscanos, em ansiedade, tanto no campo quanto nas
Córdoba del Tucumán, na Argentina, cidades. A polícia não tinha condições
durante a segunda metade do século para controlar esses movimentos, que
XVIII. não foram poucos e esparsos, e o clima
Esses dois textos iniciais de incerteza rodeava a população.
demonstram que a escravidão, em Neste contexto, Lucia Helena Oliveira
qualquer lugar ou tempo, visava a Silva (Universidade Estadual Paulista –
diversas finalidades, entre as quais as UNESP, câmpus de Assis) nos leva a
econômicas. E, todas exerceram, em conhecer as diversas maneiras de luta
graus diversos, importantes influências. pela liberdade proporcionadas por
Neste cenário, praticamente existente mulheres no período final da
em quase toda a América, onde a escravidão, na região de Campinas, no
escravidão tornou-se a forma Estado de São Paulo. Em semelhança a
predominante de organização do este assunto, Régia Agostinho da Silva
trabalho, o cativo, em sua luta diária, (Universidade Federal do Maranhão –
procurava criar condições para UFMA) apresenta as “falas” sobre
flexibilizar o sistema, com a criação de escravidão e abolição, no Maranhão,
espaços de autonomia. mediadas pelas poesias de Gonçalves
Espaços de autonomia foram Dias (1823-1864) e Trajano Galvão
buscados, por exemplo, nos festejos (1830- 1864).
realizados pelas irmandades de Ariosvalber de Souza Oliveira
escravos, que se utilizavam dessa (mestre pela Universidade Federal de
oportunidade para reforçar laços de Campina Grande – UFCG) vai ao Rio de
identidade e para construir um ideal de Janeiro, na segunda metade do
vida para além do cativeiro, como nos oitocentos, resgatar as ressonâncias
mostra o texto de Alisson Eugênio escravistas traçadas e criticadas por
(Universidade Federal de Alfenas, Machado de Assis no conto “Pai contra
UNIFAL). Reafirmando a existência a mãe”.
desses espaços de autonomia e das Em continuidade às críticas
ambiguidades, que podem ser contra a política escravista imperial, o
observadas na segunda metade do artigo de Milton Carlos Costa
século XIX, Marcelo Eduardo Leite (Universidade Estadual Paulista –
(Universidade Federal do Cariri, UFCA, UNESP, câmpus de Assis) analisa o
câmpus de Juazeiro do Norte) nos movimento pelo fim da escravidão na
apresenta, por intermédio de pena de Joaquim Nabuco (1849-1910),
fotografias, cenas da escravidão que o maior líder abolicionista brasileiro.

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No tocante a abolição, Iraci del escritores do Caribe francês,
Nero da Costa e Julio Manuel Pires, permitindo-nos conhecer a experiência
ambos da Universidade de São Paulo de uma pessoa que buscou nas raízes
(USP) trazem à tona, em caráter africanas os sentimentos de valorização
comparativo, discussão sobre a da cultura nascida nas Antilhas.
supressão do capital-escravista Francisca Pereira Araújo
mercantil e a eclosão de movimentos (mestranda em História na
abolicionistas em diversas partes da Universidade Federal de Campina
América, notadamente Haiti, Canadá, Grande – UFCG), a quem cabe o
Guianas, Antilhas, Bolívia, Argentina, desfecho do Dossiê, mostra as formas
Peru, Equador, Uruguai, México, de sobrevivência de afro-brasileiros na
Paraguai, Estados Unidos, Cuba e o cidade de Campina Grande, entre 1945
Brasil. e 1964, ao recuperar, por meio de
Ainda no cenário internacional relatos orais de idosos negros e não
comparativo, regressamos as relações negros, as modificações observadas na
atlânticas envolvendo o Brasil, a Guiné cidade em relação ao mundo do
Equatorial e Cuba, pela ótica de Pedro trabalho, ou melhor, na recuperação de
Acosta-Leyva (Universidade da vestígios escravistas que marcam
Integração Internacional da Lusofonia profundamente a economia, e por que
Afro-Brasileira – UNILAB, câmpus dos não dizer a cultura e a política
Malês, na Bahia), no que diz respeito nacionais, desde o final da escravidão
às negociações, intercâmbios e no Brasil. Nada mais atual que as
mediações que definiram a palavras, em tom de presságio,
territorialidade brasileira e de Guiné escritas em sermão, na segunda
Equatorial, e a dinamização da metade do século XVII, pelo padre
sociedade cubana em relação ao Antônio Vieira (1608-1697): “A
tráfico, ao desenvolvimento cultural- liberdade é um estado de isenção que,
religioso e a indústria açucareira. uma vez perdido, nunca mais se
Na contemporaneidade, recupera; quem foi cativo uma vez,
vestígios da escravidão serão lidos por sempre ficou cativo, porque ou o
Margarita Aurora Vargas Canales libertam do cativeiro ou não; se o não
(Universidad Nacional Autónoma de libertam, continua a ser cativo do
México – UNAM) em crítica literária que tirano; se o libertam, passa a ser cativo
realiza a cinco romances do do libertador.”
martiniquenho Édouard Glissant (1928-
2011), um dos mais importantes Boa leitura!

André Figueiredo Rodrigues


Professor do Departamento de História
da Faculdade de Ciências e Letras,
da Universidade Estadual Paulo (UNESP),
câmpus de Assis.

7
OS ESCRAVOS NAS a capitania de Minas devia aos cofres 1
Este texto, com
PROPRIEDADES DOS públicos 582 arrobas ou o modificações, se baseia
INCONFIDENTES DA COMARCA equivalente a 8.730 quilos de ouro. em informações
DO RIO DAS MORTES (MINAS extraídas de nossa tese
Este déficit significava que de doutorado Estudo
GERAIS, 1789-1791)1 econômico da
toda a população estava endividada e
Conjuração Mineira:
André Figueiredo Rodrigues2 os revoltosos contavam com o temor análise dos sequestros
contra a cobrança do quinto atrasado de bens dos
inconfidentes da
como artifício para conseguir apoio comarca do Rio das
RESUMO popular. Para os sediciosos, a Mortes, defendida no
Departamento de
Inconfidência representava a
História da Universidade
Este artigo propõe-se a analisar, com
possibilidade de viver livre das de São Paulo (USP), em
base nos sequestro de bens originais 2008, e que contou com
listados nos Autos de Devassa da cobranças dos tributos e impostos
o patrocínio da
Inconfidência Mineira, informações sobre feitas por Portugal, o que lhes Fundação de Amparo à
os escravos apreendidos dos moradores garantiria liberdade comercial. Outro Pesquisa do Estado de
presos da comarca do Rio das Mortes, em São Paulo (FAPESP) –
motivo de revolta era o ódio processo nº
Minas Gerais, entre 1789 e 1791.
generalizado aos apadrinhados, 2004/15892-5. Vale a
ressalva que “As
Palavras chave pessoas que vinham administrar opiniões, hipóteses e
Escravidão; Sequestro; Inconfidência cargos públicos em Minas Gerais, que conclusões ou
Mineira. recomendações
se aproveitavam de sua posição para
expressas neste
ABSTRACT apossar-se de terras e rendas dos material são de
mineiros, em prejuízo de nativos responsabilidade do
This article proposes to analyze, with autor e não
plenamente capacitados e nunca necessariamente
base on the original distresses inflicted
listed in Autos de Devassa da reconhecidos. refletem a visão da
FAPESP”.
Inconfidência Mineira, information about Para diminuir o prejuízo e
the slaves confiscated to the prisoners preservar suas riquezas, os principais 2
Graduado, Mestre e
residents of Rio das Mortes district, in Doutor em História pela
Minas Gerais, between 1789 to 1791. fazendeiros, exploradores de ouro e
Universidade de São
diamantes, criadores de gado, Paulo (USP). Professor
Keywords militares, contratadores, magistrados do Departamento de
Slavery; Distress; Inconfidência Mineira. História da Faculdade
e eclesiásticos resolveram aderir ao de Ciências e Letras da
movimento. Os inconfidentes eram Universidade Estadual
Paulista “Júlio de
quase todos escravistas e Mesquita Filho”
A Inconfidência Mineira foi um constituíam em sua maioria a elite (UNESP), câmpus de
movimento de contestação ao letrada da época. Dentre eles, os
Assis. Membro Titular
da Comissão de História
governo português que administrava poetas Cláudio Manuel da Costa, o do Instituto
a capitania de Minas Gerais. Em abril ouvidor Tomás Antônio Gonzaga e o Panamericano de
Geografía e Historia
de 1789, o coronel Joaquim Silvério ouvidor e proprietário de terras (IPGH) e da Academia
dos Reis entregou ao governador Inácio José de Alvarenga Peixoto. Ao Guarulhense de Letras
visconde de Barbacena denúncia (AGL). E-mail:
lado deles, a devassa condenou cinco andrefr@assis.unesp.br
contra alguns indivíduos que religiosos (o cônego Luís Vieira da
pretendiam organizar um motim Silva e os padres Carlos Correia de
contra a derrama. A derrama era Toledo, José Lopes de Oliveira,
uma cobrança sobre cada cidadão da Manuel Rodrigues da Costa e José da
região para completar a quantia Silva e Oliveira Rolim); os militares
mínima de cem arrobas anuais de tenente-coronel Francisco de Paula
ouro, que se devia de impostos a Freire de Andrada, comandante do
Portugal. Naquele ano e desde 1771, Regimento de Cavalaria e a mais alta
8
patente envolvida na Inconfidência, e residências, os livros e seus
o sargento-mor Luís Vaz de Toledo escravos. (RODRIGUES, 2012)
Piza; o comerciante e contratador Quanto aos escravos, os
Domingos de Abreu Vieira; o inconfidentes mineiros tiveram 496
cirurgião Salvador Carvalho do cativos oficialmente apreendidos pela
Amaral Gurgel; os doutores devassa. Os sediciosos residentes na
Domingos Vidal de Barbosa Lage e comarca do Rio das Mortes (que se
José Álvares Maciel e os latifundiários estendia pelo centro-sul, a sudoeste
José Aires Gomes e Francisco Antônio da capitania de Minas Gerais) –
de Oliveira Lopes, entre outros. Carlos Correia de Toledo, Luís Vaz de
Onze pessoas foram Toledo Piza, Francisco Antônio de
condenadas a morte, e destas, dez Oliveira Lopes, José Aires Gomes,
tiveram a pena comutada para Manuel Rodrigues da Costa, Inácio
degredo na África. Os réus religiosos José de Alvarenga Peixoto e José de
foram enviados para prisões em Resende Costa, personagens centrais
Lisboa. (RODRIGUES, 2002) O deste artigo – tiveram sequestrados
alferes Joaquim José da Silva Xavier, 442 cativos, ou 87,78% do total. Os
conhecido pelo apelido de Tiradentes, demais inconfidentes presos tiveram
foi o único que teve mantida sua 54 escravos confiscados: Cláudio
pena. Considerado líder do Manuel da Costa (31), José da Silva e
movimento, foi enforcado, sua Oliveira Rolim (7), Tiradentes (5),
cabeça decapitada e seu corpo Francisco de Paula Freire de Andrada
esquartejado no Rio de Janeiro, em (5), Domingos de Abreu Vieira (4),
21 de abril de 1792. Luís Vieira da Silva (1) e Vicente
Além destas penas, os Vieira da Mota (1). Os cativos desses
inconfidentes sentenciados tiveram proprietários corresponderam a
os seus bens confiscados e listados 12,22% do total dos escravos
nos Autos de Sequestro, parte listados nos Autos de Sequestro. Os
integrante dos Autos de Devassa da demais presos – Tomás Antônio
Inconfidência Mineira (ADIM). Essas Gonzaga, José Álvares Maciel, José
apreensões, que representavam um de Resende Costa Filho, José de
instantâneo de parte das posses dos Oliveira Lopes, Salvador Carvalho do
conjurados no momento posterior as Amaral Gurgel, Domingos Vidal de
suas prisões, permitem que se Barbosa Lage, João da Costa
vasculhem as fazendas, as dívidas a Rodrigues, João Dias da Mota e
pagar e a receber, os animais de Vitoriano Gonçalves Veloso – não
criação, os equipamentos utilizados tiveram nenhum cativo apreendido
na exploração da terra, os utensílios em seus patrimônios.
domésticos, as roupas, os móveis, as

9
3
João Pinto Furtado
informou que foram
apreendidos aos
inconfidentes da
comarca do Rio das
Mortes 404 escravos:
Carlos Correia de Toledo
(32), Luís Vaz de Toledo
Piza (18), Francisco
Antônio de Oliveira
Lopes (69), José Aires
Gomes (123), Manuel
Rodrigues da Costa (2),
Inácio José de
Fonte: UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO JOÃO DEL-REI. Arquivos Históricos da Comarca do Rio das Alvarenga Peixoto (132)
Mortes – Minas Gerais. Disponível em: e José de Resende
<http://www.documenta.ufsj.edu.br/modules/brtchannel/index.php?pagenum=2>. Acesso em: 2 jun. Costa (28). Destes
2014. números para os
encontrados em nossa
pesquisa há uma
Quanto aos 442 escravos escravos que existiam naquelas sete diferença de 38 cativos.
A dessemelhança
listados como pertencentes aos unidades escravistas, no momento numérica pouco alterará
plantéis do proprietários da comarca em que os meirinhos foram realizar a a estrutura de posse
citada por Furtado em
do Rio das Mortes, vale a ressalva de anotação dos bens sequestrados aos relação à estimativa do
sua originalidade, pois se basearam presos. Mediante ações de sonegação patrimônio de cada
inconfidente, mas ajuda
nos Autos originais de Sequestros da e corrupção, algumas das famílias a limitar o conjunto de
Inconfidência Mineira. Estes daqueles presos conseguiram sua amostra. Conferir:
números, aliás, diferem do exposto esconder algum patrimônio da FURTADO, 2002, p.
105; 108-113.
na historiografia. João Pinto Furtado, apreensão metropolitana, entre eles
em sua primorosa pesquisa O manto estavam escravos. (RODRIGUES, 4
Carlos Magno
de Penélope escreveu que os 2010, p. 176-195) Aqui se Guimarães indicou que
sediciosos mineiros da comarca do apresentará, portanto, os números 415 mancípios foram
apreendidos aos
Rio das Mortes tiveram apreendidos dos escravos realmente apreendidos inconfidentes do Rio das
404 mancípios3. Carlos Magno pela devassa da Inconfidência que, Mortes: Carlos Correia
de Toledo (32), Luís Vaz
Guimarães, em seu importante para os sete conjurados da comarca
de Toledo Piza (36),
estudo sobre a estrutura agrária e a do Rio das Mortes compreenderam Francisco Antônio de
escravidão na Inconfidência, apontou 442 escravos apreendidos, sendo 361 Oliveira Lopes (69),
José Aires Gomes
o sequestro de 415 escravos4. Apesar do sexo masculino (81,67%) e 81 do (116), Manuel
de esses números serem sexo feminino (18,33%). Rodrigues da Costa (2),
Inácio José de
discordantes, os 442 escravos Na Tabela 1, indicamos o Alvarenga Peixoto (132)
listados pela devassa naqueles número de mancípios confiscados e José de Resende
Costa (28). Conferir:
plantéis também não condizem pela devassa, tendo por base os GUIMARÃES, 1989, p.
verdadeiramente com o total de Autos originais de Sequestro. 174; 175.
10
TABELA 1
Escravos sequestrados aos inconfidentes da comarca do Rio das Mortes
Homens % Mulheres % Total

Carlos Correia de Toledo 28 90,32 3 9,68 31


(1789)
Luís Vaz de Toledo Piza 33 89,19 4 10,81 37
(1789)
Francisco Antônio de 57 77,03 17 22,97 74
Oliveira Lopes (1789)
José Aires Gomes (1791) 105 78,95 28 21,05 133
Manuel Rodrigues da 2 100,00 0 0 2
Costa (1791)
Inácio José de Alvarenga 112 85,58 22 16,42 134
Peixoto (1789)
José de Resende Costa 24 77,42 7 22,58 31
(1791)

361 81,67 81 18,33 442


Fonte: ANRJ/ADIM-C5, v. 7 – sequestros diversos.

Dos escravos apreendidos pela traficantes de escravos, uma vez que


devassa, 35,98% eram nascidos no a maioria dos cativos presentes em
Brasil e 63,12% eram originários da seus plantéis originava-se da África.
África. Esses números nos permitem O gráfico 1, a seguir,
constatar que esses senhores apresenta a distribuição desses
estavam conectados ao comércio escravos, segundo a sua origem por
negreiro, ou que tinham negócios, inconfidente.
direta ou indiretamente, com

GRÁFICO 1

Fonte: ANRJ/ADIM-C5, v. 7 – sequestros diversos.

11
5
A divisão
geográfica que
Pelos números expostos negócios mais dinâmicos, ou seja, adotamos baseou-se
acima, percebemos a presença que os seus investimentos eram em: LIBBY, 2007, v. 1,
p. 431. Embora ocorra
majoritária de africanos, apesar de menos rotineiros. precisão na indicação
não ser uniforme. Nos plantéis de A Tabela 2 apresenta dados dos cativos nascidos no
José Aires Gomes e Alvarenga sobre a origem genérica dos grupos Brasil e na África, a
análise dos Autos de
Peixoto, encontramos as maiores étnicos e naturalidade dos escravos Sequestro merece
diferenças entre escravos sequestrados pela devassa da cautela. Quanto ao
requisito da origem na
estrangeiros e mancípios nascidos no Inconfidência, divididos pelos África, é difícil saber ao
Brasil. Suas unidades produtivas nascidos no Brasil e pelas grandes certo se a terminologia
utilizada na
eram ligadas à agroexportação e regiões da África ocidental identificação se referia
foram as que receberam os maiores (atualmente de Camarões e da tão somente aos portos
de embarque, às
percentuais de cativos comprados de Nigéria ao oeste e ao norte até
regiões geográficas ou
traficantes ou comerciantes. Por meio Senegal) e África centro-ocidental aos grupos étnicos,
dos dados expostos na Tabela 1 e no (hoje, de Angola, no sul, até Gabão, religiosos, linguísticos
ou territoriais de
Gráfico 1, presume-se que esses dois ao norte, e incluindo o vasto existência efêmera que,
personagens tinham maior capital e Congo)5. hoje, não podemos
identificar. Os notários
da devassa, para
designar a origem dos
TABELA 2 africanos, utilizaram
termos que se referem
Origens dos escravos apreendidos dos inconfidentes pela devassa da ao local de embarque,
como mina, que faz
comarca do Rio das Mortes referência ao castelo de
São Jorge da Mina, de
onde saíram os
CCT LVTP FAOL JAG MRC IJAP JRC Total
escravos da região do
Brasil Golfo do Benin, bem
Crioulo 15 12 30 23 22 8 110 como às traduções
Mulato 1 3 17 10 1 32 fonéticas de termos
Cabra 1 6 3 1 11 africanos, tais como
Pardo 3 3 6 cobu, “adaptação
portuguesa para
África ocidental kovєnú, que se refere
Cabo Verde 1 1 2 ao natural de Cové,
Cobu 2 2 4 região de antiga fala
Mina 3 3 2 10 1 19 mahi”; ou até sua
Sabaru 3 3 localidade específica e
grupo linguístico, como
África centro- o caso de Cabo Verde.
ocidental Mesmo com tais
Angola 7 21 21 24 2 17 2 94 dificuldades e se
Benguela 3 7 36 31 15 92 conhecendo os limites
Congo 2 8 7 1 18 que essas
Cabinda 4 6 1 11 representações
europeias impuseram
Casange 1 1 2
aos grupos africanos,
Ganguela 2 2
uniformizando-os como
Mefumbe 1 3 4
nações geográficas
Monjolo 1 1 1 3
imaginárias, optamos
Mosonso 1 1 por quantificar e tecer
Quissama 1 2 3 considerações sobre
Rebolo 9 8 17 esses cativos segundo a
Xambá 2 2 determinação da
origens dos africanos
Indefinidos 1 1 2 em Minas Gerais,
(África) baseamo-nos em:
FURTADO, 2006, p.
12 246-248.
Não consta 1 3 4

31 37 74 133 2 134 31 442


Fonte: ANRJ/ADIM-C5, v. 7 – sequestros diversos.

Legenda: CCT = Carlos Correia de Toledo; LVTP = Luís Vaz de Toledo Piza; FAOL = Francisco
Antônio de Oliveira Lopes; JAG = José Aires Gomes; MRC = Manuel Rodrigues da Costa; IJAP =
Inácio José de Alvarenga Peixoto; JRC = José de Resende Costa.

Os negros africanos constituíam observa-se que as razões entre os


63,12% do total de escravos listados sexos foram expressivas, chegando,
pela devassa, sendo que, destes, 94 alguns desses plantéis, a ter oito
cativos, ou 21,27% do total, eram homens para cada mulher (grupo de
denominados angolas; ao passo que Luís Vaz). Nas demais, a média
92 ou 20,81% eram benguelas. Estes aproximava-se a três.
dois grupos respondiam a 42,08% de Os grupos de Francisco
todos os mancípios apreendidos aos Antônio e do padre Toledo, de acordo
inconfidentes. com os números expostos nas
Os escravos de origem angola Tabelas 1 e 2 e no Gráfico 1, eram
foram os únicos presentes em todos abastecidos no mercado interno ou
os sequestros de bens. Os benguelas mantinham escravos herdados. Para
foram encontrados nos plantéis do isto basta notar que a relação mais
padre Carlos Correia de Toledo, de equilibrada entre homens e mulheres
Francisco Antônio de Oliveira Lopes, ocorreu no plantel de Francisco
José Aires Gomes, Alvarenga Peixoto Antônio. Nas propriedades deste
e José de Resende Costa. Os fazendeiro, os cativos nascidos na
mancípios do coronel Resende Costa América superavam os originários da
eram originários, em sua maioria, da África por cinco pessoas: 34 negros
África. As propriedades de Luís Vaz africanos (45,95%) e 39 coloniais
de Toledo Piza se abasteciam, (52,70%), sendo o restante, 1,35%,
predominantemente, de escravos referente a um cativo sem qualquer
provenientes do tráfico negreiro. informação de seu local de origem. O
A presença de africanos no grupo com maior proporção de
grupo escravista de Aires Gomes, escravos coloniais em relação ao
Alvarenga Peixoto, Luís Vaz e africano foi o do padre Toledo:
Resende Costa foi diretamente 54,84% contra 45,16% de
proporcional à razão estrangeiros.
homens/mulheres entre escravos. O A menor proporção entre
tráfico para o Brasil foi responsável, “brasileiros” e africanos verificou-se
“pela entrada de grande número de no sequestro de Alvarenga Peixoto:
homens jovens, menor quantidade de 26,87% dos cativos eram oriundos
mulheres e número ainda mais do Brasil, enquanto 70,90% vieram
reduzido de velhos e crianças”. da África e de 2,23% não se conhece
(FARIA, 1998, p. 295) Nas unidades a procedência.
produtoras desses conjurados
13
Entre os escravos nascidos no Com relação aos mulatos, 22 eram
Brasil, os crioulos foram os que homens e dez eram mulheres. Ainda
tiveram o maior percentual, com sobre os mancípios naturais da
69,18% dos mancípios naturais da colônia, no grupo dos cabras têm-se
colônia ou 24,88% de todos os sete homens e quatro mulheres e, no
cativos sequestrados. Os 110 crioulos dos pardos, quatro pessoas eram do
listados pela devassa, identificados sexo masculino e duas do feminino.
na Tabela 2, dividiam-se em 48 Os homens predominavam
mulheres e 62 homens. Destes nos sequestros, em geral,
números, dezenove mulheres e principalmente aqueles ligados à
quatro homens eram casados, sendo faixa etária em idade produtiva (21
estes mesmos quatro homens aos 50 anos). Nesse período,
consorciados com mulheres de sua conforme a Tabela 3, a razão entre
mesma etnia – três casais no plantel os sexos apresentou os maiores
de Francisco Antônio e um no grupo desequilíbrios entre homens e
de Alvarenga Peixoto. Todos estes mulheres.
casais não deixaram descendência.

TABELA 3

Faixa etária e distribuição sexual dos escravos sequestrados aos


inconfidentes da comarca do Rio das Mortes

0- 11- 21- 31- 41- 51- 61- 71- ignorada


10 20 30 40 50 60 70 ...
Masculino 11 31 83 90 65 39 15 5 21
Feminino 12 10 20 17 17 3 1 1 1

23 41 103 107 82 42 16 6 22
Fonte: ANRJ/ADIM-C5, v. 7 – sequestros diversos.

O grupo dos homens em idade mulheres; ao passo que a maior


produtiva somou 66,06% dos desigualdade deu-se no grupo do
cativos, enquanto as crianças e os padre Toledo, com 10,71% de
jovens (dos 0 aos 20 anos) cativos do sexo feminino,
responderam por 14,48% e os que excetuando-se o conjunto do padre
congregaram a fase de Manuel Rodrigues da Costa,
envelhecimento da população (faixa composto por apenas dois escravos
etária superior aos 51 anos) angolas do sexo masculino.
representaram 14,48% do total. A devassa apreendeu do
A menor proporção entre os padre Manuel Rodrigues da Costa
sexos encontrava-se no plantel do dois escravos: ambos de origem
coronel José de Resende Costa, onde angola. Estes negros acompanhavam
29,16% dos mancípios eram o dito padre em suas visitas pastorais

14
nas freguesias de Simão Pereira e mancípios africanos do sexo 6
As discussões
Engenho do Mato, para ministrar o masculino e jovens capazes de historiográficas sobre o
tema da família escrava
sacramento do Crisma. (RODRIGUES, desenvolver atividades minerárias e em Minas Gerais do
2002, p. 168) Já os mancípios da produtivas voltadas ao abastecimento século XVIII são
extensas. Para a
fazenda do Registro Velho, onde ele dos mercados interno e/ou externo comarca do Rio das
residia com sua mãe viúva e irmãos, da capitania de Minas Gerais. Para Mortes, na segunda
metade do setecentos,
não foram listados pela devassa, pois implantar ou ampliar as múltiplas
conferir: FIGUEIREDO,
essa propriedade e os pertences ali atividades agrícolas que se Luciano Raposo de
existentes pertenciam ao patrimônio envolveram, fosse ou não para a Almeida. Barrocas
famílias: vida familiar
de seu pai, coronel Manuel Rodrigues exportação, pressupunha a aquisição em Minas Gerais no
da Costa, falecido, que até aquele de mão de obra escrava de origem século XVIII. São Paulo:
Hucitec, 1997;
momento não havia sido dividido em africana. BRÜGGER, Silvia Maria
herança, não se permitindo precisar O desequilíbrio por sexo dos Jardim. Minas
patriarcal: família e
o que era ou não bem de direito do plantéis, realimentado pelo constante sociedade (São João del
padre inconfidente. Portanto, a ingresso de recém-chegados, não Rei – séculos XVIII e
XIX). São Paulo:
fazenda, ligada à lide agrária, não impossibilitava as relações familiares.
Annablume, 2007;
teve seus pertences anotados pelos No interior desses grupos escravistas TEIXEIRA, Maria Lúcia
representantes da Coroa, quando lá encontramos a existência da família Resende Chaves.
Família escrava e
estiveram para elaborar os cativa6. Dos 442 escravos listados riqueza na Comarca do
sequestros de seus bens. Do padre, pela devassa constatou-se a Rio das Mortes: o
Distrito da Lage e o
listaram-se os dois escravos existência de 53 pessoas casadas ou Quarteirão do Mosquito.
africanos indicados, objetos pessoais com uniões sexuais estáveis, sendo São Paulo: Annablume;
Coronel Xavier Chaves,
e alguns religiosos, um título de 27 homens e 26 mulheres,
MG: Prefeitura Municipal
terras minerais e um sítio distribuídos em quatro sequestros. de Coronel Xavier
denominado Tapera, com casas de Além desses, identificamos uma Chaves, 2006;
BOTELHO, Tarcísio
vivenda e monjolo. Essas terras, ao pessoa viúva, uma mãe com dois Rodrigues. A família
que tudo indica, não eram filhos sem referência ao cônjuge e escrava em Minas
Gerais no século XVIII.
exploradas, constituindo reserva de sem a indicação de ser casada e oito In: RESENDE, Maria
valor da fazenda do Registro Velho, crianças sem menção das mães ou Efigênia Lage de;
VILLALTA, Luiz Carlos
já que eram áreas contíguas. nome do pai nas escravarias (estes (Org.). História de
A preferência dos senhores poderiam ser forros, falecidos ou Minas Gerais: as Minas
setecentistas. Belo
Aires Gomes, Alvarenga Peixoto, pertencerem a outro proprietário).
Horizonte: Autêntica;
Resende Costa e Luís Vaz era por Companhia do Tempo,
2007, v. 1, p. 455-476;
GRAÇA FILHO, Afonso
TABELA 4 de Alencastro; PINTO,
Fábio Carlos Vieira;
Laços familiares entre os escravos sequestrados aos inconfidentes do Rio MALAQUIAS, Carlos de
das Mortes Oliveira. Famílias
escravas em Minas
Casais constituídos
Total Gerais nos inventários e
com filhos sem filhos registros de casamento:
nº % nº % o caso de São José do
Francisco A. de O. Lopes 2 28,57 5 71,43 7 Rio das Mortes, 1743-
José Aires Gomes 3 60,00 2 40,00 5 1850. Varia História,
Alvarenga Peixoto 5 55,56 4 44,44 9 Belo Horizonte: DH-
José de Resende Costa 1 20,00 4 80,00 5 FAFICH/UFMG, v. 23, n.
37, p. 184-207, jan.-
jun. 2007.
26
Fonte: ANRJ/ADIM-C5, v. 7 – sequestros diversos.

15
Das 26 famílias escravas esposa do inconfidente Inácio José de
escrutinadas pela devassa, conforme Alvarenga Peixoto, deu à luz o
se observa na Tabela 4, em onze terceiro filho – Tristão Antônio de
delas verificou-se a presença de Alvarenga. Coube à escrava Catarina
filhos (42,31%). Os meirinhos tornar-se a ama de leite desse
anotaram 23 crianças (pessoas na menor. (FBN/CT, I-35, 11, 13 nº 4)
faixa etária entre zero e dez anos) Consideração importante a ser
geradas nestas famílias, sendo doze feita sobre os laços matrimoniais
homens e onze mulheres. Além entre cativos diz respeito à presença
dessas, constatou-se a presença de de 23 crianças com até dez anos de
duas crianças, no sequestro de Aires idade nas escravarias sequestradas
Gomes, sem que sua mãe trouxesse pela devassa. Interessa reportar aqui
a indicação de ser casada. A mulata ao caso de Alvarenga Peixoto, que
Engrácia, de trinta anos de idade, não se opunha ao livre
teve informado seus dois filhos estabelecimento de relações
menores (Rita, de seis anos, e o familiares e sexuais entre os seus
ingênuo Epifânio), também mulatos. cativos. Em ação de compra de
Na unidade escravista de Luís Vaz de cativos, ele não viu com “maus
Toledo Piza constatou-se a existência olhos” a reposição de parte da mão
de Francisco, de nove anos de idade, de obra pela natalidade. Alvarenga,
sem indicação de a qual dos casais em carta ao contratador João
sequestrados ele pertencia. Este era Rodrigues de Macedo, na época em
irmão de Manuel, de doze anos. que exercia o ofício de ouvidor da
Na documentação comarca do Rio das Mortes (1779),
encontramos o registro de crianças escreveu que o então sargento-mor
escravas com idade inferior a um José Aires Gomes apareceu em São
ano. Três casais de escravos de João del-Rei com um lote de 57
Alvarenga Peixoto tiveram filhos negros vindos do Rio de Janeiro:
nessa situação. Francisco Carapina
cabinda e Esperança conga eram os
O sargento-mor José Aires Gomes
pais de dois crioulos: Manuel e Maria apareceu aqui com um lote de 57
– ela, com seis meses de idade. negros, na verdade excelente, e me
Lourenço benguela e Marcela crioula, fez presente a honra com que vossa
mercê me tratava, distinguindo-me
de cinquenta e quarenta anos,
para a primeira escolha, e eu que não
respectivamente, eram os genitores carecia de negros por ter bastantes,
de três crioulos, sendo eles Josefa, disse-lhe que tiraria alguns somente
de seis meses, Vicência, de dois por sinal de gratidão à lembrança de
vossa mercê, e quis tirar somente
anos, e Antônia, de nove anos. Ao
seis: mas eles [os negros] me
lado destes casais, Antônio mina e persuadiu [sic] de forma, e a bondade
Catarina crioula eram pais de dos negros me tentou tanto, que tirei
Narciso, de oito meses de idade, vinte e quatro. O preço de 140$000 é
muito alto, e o tempo de seis meses,
nascido em fevereiro de 1789. Em
é muito pouco (...). Eu careço de
setembro deste mesmo ano, Bárbara quarenta, até cinqüenta negras, para
Eliodora Guilhermina da Silveira, casar a flor dos meus negros; estas
devem ser de doze até dezesseis
16
anos; já a vossa mercê tinha pedido No cativeiro, a maior família
em Vila Rica que me remetesse até
sequestrada pertencia a José Aires
vinte: mas suponho não haveria
ocasião até agora: porém sou a dizer Gomes: os mulatos Joaquim, de 35
que a vossa mercê que elas me são anos, e Rosa, de 28, tiveram quatro
muito úteis, porque além da filhos mulatos de seu consórcio:
multiplicação, que podia esperar,
Hipólita (cinco anos), Matilde (quatro
ponho-as no Engenho e na Cata, da
qual o serviço é muito leve e aplico anos), Joaquim (dois anos) e Antônio
todos os negros a meter umas águas, (seis meses). Um terço de todas as
das quais certamente provirá logo, mulatas apreendidas aos sediciosos
não só o meu desempenho com vossa
procedeu dessa família.
mercê, mas toda a minha fortuna.
(FBN/CIM, II-31, 31, 15 nº 5, fls. 4-5) Dos escravos listados na
fazenda Paraopeba, de Alvarenga
Peixoto, localizada em São Brás do
A ampliação da produção Suaçuí, às margens da estrada que
agrícola e minerária nas terras de passa em direção a São João del-Rei,
Alvarenga Peixoto produziu demanda apareceu escrito que o mina José, de
por mão de obra em um ritmo muito cinquenta anos, era “casado”, sem,
mais rápido do que poderia ser contudo, indicar o nome de sua
satisfeito por um crescimento cônjuge7. Sua ausência nos Autos de 7
A fazenda
endógeno. Na carta, reproduzida Sequestro sugere, no mínimo, três Paraopeba, pertencente
a Inácio José de
acima, comprova-se a articulação de hipóteses: erro de anotação do Alvarenga Peixoto, não
Alvarenga com o mercado negreiro, meirinho; sonegação ou atitude foi sequestrada pela
por meio da importação de devassa, pois fora
furtiva da cativa ou, no momento da arrematada por seu
trabalhadores escravos africanos elaboração da lista de escravos, ele sogro José da Silveira e
para o seu plantel, e que Aires não se encontrava no plantel.
Sousa, em seu nome,
no tempo em que foi
Gomes vendia cativos que eram Na fazenda da Borda do ouvidor. Por lei,
trazidos do porto do Rio de Janeiro. Campo, de José Aires Gomes, algo Alvarenga não poderia
participar da compra
Esta informação, a de que Aires semelhante a isto também daquelas terras, pois
Gomes vendia escravos, demonstra aconteceu: o escravo angola Caetano era vedado aos
sua participação em investimentos funcionários reais de
Tumba, que apareceu originalmente alto escalão participar
multifacetados, pois se dedicava ao listado naquele local, estava em de negociatas nos
comércio de gado e de negros e a lugares de sua
posse de seu cunhado José Lopes de jurisdição
práticas agrícolas diversas em suas Oliveira em outro lugar. Os oficiais da administrativa.
propriedades (plantava arroz, milho, devassa não viram este cativo
feijão, trigo, cana-de-açúcar etc.). pessoalmente, mas o anotaram como
(RODRIGUES, 2002; 2008; 2010) pertencente àquele plantel, pois
Outro assunto explicitado no sabiam, por notório conhecimento,
fragmento dessa correspondência é a que o dito cativo pertencia a sua
da família escrava como uma das posse e que estava constantemente
formas de exploração dos senhores em companhia do irmão de sua
para manter e ampliar suas bases esposa. O mancípio só aparecerá
escravistas, não importando os entre os bens de Aires Gomes no
padrões destas uniões, se naturais da processo de avaliação do sítio
América, África ou criados pela Engenho.
vivência no cativeiro. (FARIA, 1998, Mas, informações
p. 300) concernentes à reprodução nos
17
plantéis dos inconfidentes do Rio das foi superior ao número de homens,
Mortes evidenciam que a reposição pois nasceram mais cativos do sexo
da mão de obra consumida nas feminino que do sexo masculino
fazendas e nas áreas minerais e a naquele circunscrito espaço de
ampliação dos plantéis – como se tempo.
observou na citação da carta de Os exemplos discutidos
Alvarenga ao amigo Macedo, sobre a permitiram-nos vasculhar – mesmo
compra de cativos – ocorreram por que superficialmente – a escravaria
meio da importação de mancípios e apreendida aos inconfidentes
da reprodução interna. (GUIMARÃES, residentes na comarca do Rio das
1989, p. 173-175) Mortes, entre 1789 e 1791, período
Dados extraídos dos Autos de em que foram elaborados os Autos
Sequestro comprovam que mancípios de Sequestro de seus patrimônios
do sexo feminino são expressivos apreendidos pela devassa na região.
entre os escravos nascidos no Brasil. Os sete sediciosos apresentados
Isto pode ser explicado por duas eram senhores de escravos e tinham
razões: a preferência pela importação os cativos como força de trabalho
de cativos do sexo masculino e pela dominante em suas fazendas e
impossibilidade de o senhor influir na lavras, independente de eles estarem
determinação do sexo dos mancípios relacionados ao universo agrário ou
nascidos no cativeiro. Das 48 crioulas minerário.
listadas pela devassa, catorze
inseriam-se na estrutura etária de
zero a dez anos de idade. Nesta
faixa, e única, o número de mulheres

Fontes
Fundação Biblioteca Nacional (FBN) – Rio de Janeiro
Divisão de Manuscritos – Coleção Inconfidência Mineira (CIM)
II-31, 31, 15 nº 5 – Carta de Inácio José de Alvarenga a João Rodrigues de
Macedo. 28/05/1779.

Divisão de Manuscritos – Coleção Tiradentes (CT)


I-35, 11, 13 nº 4 – Carta de Bárbara Eliodora Guilhermina da Silveira a João
Rodrigues de Macedo tratando da saúde do Senhor Mathias, roupas para
escravos, etc.. s./d.

Arquivo Nacional (ANRJ) – Rio de Janeiro


Códice 5 – Inconfidência em Minas Gerais – Levante de Tiradentes
(ADIM-C5)
Sequestros diversos. v. 7.

18
Referências
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano
colonial. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.

FURTADO, João Pinto. O manto de Penélope: história, mito e memória da


Inconfidência Mineira de 1788-9. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

FURTADO, Júnia Ferreira. Quem nasce, quem chega: o mundo dos escravos no
Distrito Diamantino e no Arraial do Tejuco. In: LIBBY, Douglas Cole; FURTADO,
Júnia Ferreira (Org.). Trabalho livre, trabalho escravo: Brasil e Europa, séculos
XVIII e XIX. São Paulo: Annablume, 2006, p. 223-250.

GUIMARÃES, Carlos Magno. Inconfidência, estrutura agrária e escravidão. Revista


do Departamento de História, Belo Horizonte: FAFICH/UFMG, n. 9, p. 161-179,
1989.

RODRIGUES, André Figueiredo. O clero e a Conjuração Mineira. São Paulo:


Humanitas FFLCH/USP, 2002.

______ . Estudo econômico da Conjuração Mineira: análise dos sequestros de


bens dos inconfidentes da comarca do Rio das Mortes. São Paulo, 2008. Tese
(Doutorado em História Social) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, Universidade de São Paulo.

______ . A fortuna dos inconfidentes: caminhos e descaminhos dos bens de


conjurados mineiros (1760-1850). São Paulo: Globo, 2010.

______ . Um potentado na Mantiqueira: José Aires Gomes e a ocupação da terra


na Borda do Campo. São Paulo, 2002. Dissertação (Mestrado em História Social) –
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo.

19
COMPORTAMIENTOS SOCIO- região de Córdoba del Tucumán,
1
Argentina, durante a segunda metade do Licenciada e Doutora
DEMOGRÁFICOS DE ESCLAVOS EN
em História pela
UNA HACIENDA RURAL século XVIII, na administração conjunta
Universidad Nacional de
dos jesuítas e Ordens religiosas
JESUÍTICO-FRANCISCANA EN Córdoba (UNC),
franciscanas. A partir de fontes e Argentina. Professora e
CÓRDOBA, ARGENTINA (1752-
abordagens metodológicas de demografia Diretora do curso de
1799) histórica (censo, listas nominais e Pós-Graduação –
Dora Celton1 registros paroquiais), análise com Doutorado em
Mónica Ghirardi2 questões de história social é cruzada. A Demografia da UNC.
Federico Sartori3 estrutura e evolução da população Diretora do Centro de
Investigaciones y
escrava, taxa de natalidade, taxa de
Estudios sobre Cultura y
Resumen mortalidade e crescimento natural, bem
Sociedad da Universidad
El presente trabajo discute aspectos de como as particularidades dos Nacional de Córdoba
los comportamientos socio-demográficos comportamentos emergentes dos (CIECS-UNC/CONICET).
de los esclavos pertenecientes a la certificados de batismos, casamentos e Investigadora Superior
Estancia de Caroya, una hacienda rural óbitos, como uma contribuição para o do Consejo Nacional de
en la región de Córdoba del Tucumán conhecimento das características e estilos Investigaciones
de vida da população, em estado de Científicas y
durante la segunda mitad del siglo XVIII
Tecnológicas
en la coyuntura de la administración de servidão, regido principalmente pela
(CONICET). E-mail:
las órdenes religiosas jesuítica y lógica da produção escrava na região e
dora.celton6@gmail.co
franciscana. A partir de fuentes y período do estudo. m
enfoques metodológicos provenientes de
la demografía histórica (padrones, listas Palavras-Chave 2
Licenciada e Doutora
nominativas y registros parroquiales) se Escravos; História social da população; em História pela
atraviesa el análisis con interrogantes Sociodemografia do trabalho escravo. Universidad Nacional de
Córdoba (UNC),
provenientes de la historia social. Se
Argentina. Pós-Doutora
analiza la estructura y evolución de la
em Sociologia,
población esclava, natalidad, mortalidad y Demografia e
crecimiento vegetativo así como las Abstract Antropologia pela UNC.
particularidades de los comportamientos This paper discusses aspects of the socio- Professora da UNC. E-
emergentes de las partidas de bautismos, demographic behavior of slaves belonging mail:
matrimonios y defunciones procurando to Caroya, a rural explotation in the mariamonicaghirardi@g
contribuir al conocimiento de las region of Córdoba, Argentina during the mail.com
características y formas de vida de la second half of the eighteenth century in
3
Licenciado pela
población en estado de servidumbre the joint administration of the Jesuit and
Universidad Nacional de
regidas fundamentalmente por las lógicas Franciscan religious Orders. From sources Córdoba (UNC) e
de la producción esclavista en la región y and methodological approaches from Becario do Consejo
historical demography (census, nominal Nacional de
período de estudio.
Investigaciones
lists and parish registers) analysis with Científicas y
Palabras-Clave questions from social history is crossed. Tecnológicas
Esclavos; Historia social de la población; The structure and evolution of the slave (CONICET). E-mail:
federicosartori@gmail.c
Socio-demografía de la mano de obra population, birth rate, death rate and
om
esclava. natural growth as well as the
particularities of the emergent behaviors
of the certificates of baptisms, marriages
and deaths as a contribution to the
Resumo knowledge of the characteristics and
Este artigo discute aspectos do lifestyles of the population state is
comportamento sociodemográfico dos analyzed bonded mainly governed by the
escravos pertencentes à Caroya, uma logic of slave production in the region and
área rural de proveito econômico, na study period.
20
esta investigación desde la 4
Entre los estudios
Keywords demografía histórica pero sobre la cuestión de la
Slaves; Social history of population; atravesando su análisis por esclavitud en la región
Socio-demographics of the slave labor. pueden mencionarse:
conceptualizaciones e interrogantes ROSAL, Miguel Ángel.
provenientes de la historia social. Es Africanos y
afrodescendientes en el
decir, estudiar comportamientos Río de la Plata, siglos
demográficos concretos pero XVIII Y XIX. Buenos
INTRODUCCIÓN Aires: Dunken, 2009. La
buscando al mismo tiempo las causas
Los estudios históricos sobre obra aborda oficios,
de permanencias y transformaciones ocupaciones y formas
la esclavitud en el territorio de la de subsistencia así
sociales en el contexto histórico
actual Argentina llevan una larga como aspectos de la
dentro del cual se suceden. religiosidad esclava;
trayectoria (Cf. GOLDBERG, 2005)
Para el estudio de la ANDRÉS GALLEGO, José
sin embargo los esfuerzos han sido (Coord.). Tres grandes
estructura de la población de la cuestiones de la historia
sobretodo parciales desde el punto
estancia de Caroya durante el de Iberoamérica:
de vista geográfico y temporal sin ensayos y monografías.
período de referencia, la
conseguir aún concretar un Madrid: Fundación
enumeración de esclavos realizada Ignacio Larramendi – la
panorama integral de la situación de obra compila
por la Junta de Temporalidades en
las personas en estado de significativos artículos
1769 (AGHUNC, Temporalidades, sobre el tema de la
servidumbre en todo el territorio
1769, Caja N° 11, Legajo 5), así esclavitud entre los
nacional. Respecto de la región cuales se incluyen
como la información a este respecto colaboraciones de
comprendida antiguamente por la
volcada en los Censos de 1778 Argentina de Marta
Gobernación de Córdoba del Goldberg y Silvia Mallo;
(AHPC, Gobierno, Censo 1778, Cajas cfr. también MALLO,
Tucumán, las primeras
18 y 19) y 1795 (AAC, Censo de Silvia; TELESCA,
investigaciones datan de hace más Ignacio (Ed.). Negros de
1795), permiten completar un marco
de medio siglo. (BECERRA, 2008, p. la Patria. Buenos Aires;
de referencia general con respecto a Montevideo; México:
145-163) De este corpus se destacan SB, 2010 – este libro
la población esclava total de la
los trabajos orientados hacia análisis reúne una serie de
hacienda en diferentes períodos. artículos que discuten
de tipo demográfico, económico y de
El registro de bautismos, sobre la participación
la estructura legal sobre la que se de esclavos y “negros
defunciones y casamientos de la libres” en los procesos
basaba este fenómeno, aunque en
Estancia de Caroya (AHCNM, Libro vividos a inicios de las
los últimos años también han república; ver también
9)5, cuyas anotaciones comienzan en GUZMÁN, Florencia. Los
comenzado a abordarse aspectos
1757 y concluyen en los primeros claroscuros del
relativos al universo social y cultural mestizaje, negros,
años del siglo XIX ha permitido
de los esclavos y desde perspectivas indios y castas en la
analizar la dinámica poblacional del Catamarca colonial,
diversas orientadas a un trabajo
grupo. En el caso de los bautismos, Facultad de
interdisciplinar4. Humanidades,
el año y mes de realización del Encuentro Grupo Editor,
En este sentido, el presente
sacramento, el nombre y edad del 2010, tocando aspectos
trabajo intenta ser un aporte a esta vinculados al
bautizado, tipo de bautismo matrimonio, la
historiografía, y cuyo principal
(colectivo, privado por necesidad, consensualidad y la
objetivo es analizar los ilegitimidad; consultar
oleado y crismado, etc.) y estado
comportamientos socio-demográficos también COLANTONIO,
conyugal de los padres; sobre Sonia. Población y
de un grupo específico de esclavos, sociedad en tiempos de
casamientos el nombre de los
pertenecientes a una hacienda rural lucha por la
contrayentes, mes y año de la emancipación, Centro
en la región de Córdoba del Tucumán
ceremonias y estado conyugal de los de de Investigaciones y
durante la segunda mitad del siglo Estudios sobre Cultura y
novios, origen geográfico de los Sociedad
XVIII. De tal manera que abordamos
esposos, tipo de ceremonia (CIECS/CONICET y
21
(casamiento o velación) y, para el los períodos jesuítico y franciscano, UNC), Córdoba 2013,
caso de las defunciones el registro al igual que para las distinciones obra colectiva e
interdisciplinar a partir
abarca el nombre del difunto, sexo, entre bautismos privados y de datos del Censo de
mes y año y, aunque sin indicación solemnes, y la estacionalidad de los 1813 para la provincia
de Córdoba, presenta
de la edad de las difuntos, salvo en el matrimonios registrados. un análisis desde
caso las muertes infantiles o, en su diferentes perspectivas
teórico-metodológicas y
defecto, si eran párvulos. en donde la población
En algunos casos el análisis de CAROYA, LOS JESUITAS Y SUS esclava local es objeto
los comportamientos socio- ESCLAVOS de estudio trasversal en
las investigaciones que
demográficos del plantel de esclavos Todos los establecimientos la componen.
de Caroya se ha realizado tomado el rurales de producción agrícola-
5
Un antecedente en su
período de casi medio siglo (1757 y ganadera pertenecientes a la
utilización para análisis
1800), pero dividiendo éste en dos Compañía de Jesús en la ciudad de demográficos lo
espacios temporales específicos; Córdoba, dentro de las cuales se constituye el trabajo de:
GARZÓN MACEDA;
estos es, desde 1757 hasta la encontraba la Estancia de Caroya, DORFLINGER, 1961.
coyuntura histórica que supone el fueron organizados sobre la base de
traspaso de la hacienda desde la mano de obra esclava. La adquisición
administración jesuítica a la de esclavos en la región fue 6
De manera oficial, la
franciscana en 1767, y desde ese año relativamente accesible si tenemos administración
franciscana concluye en
hasta el fin de siglo, con que en cuenta que, como ha señalado 1800, pero los frailes
concluye esta misma6. Assadourián, la ciudad de Córdoba recién entregan el
El trabajo comienza con una del Tucumán se convirtió a pocos Colegio Máximo, el
Convictorio y la Estancia
contextualización histórica del años de su fundación (1573) en una de Caroya ocho años
espacio, físico e institucional, dentro de las más importantes plazas de después, luego de un
largo conflicto
del cual nacen, viven y mueren estos esclavistas de la región, como parte jurisdiccional con el
esclavos esto es, de la Estancia de integrante de la triangulación clero secular, que
habría de explicar en
Caroya durante la segunda mitad del comercial entre el Alto Perú y el alguna medida el
siglo XVIII. A continuación, se ha puerto de Buenos Aires. faltante del registro de
esclavos posterior a
intentado recomponer la estructura (ASSADOURIAN, 1965)
1800.
demográfica total de esta población, Al radicarse en Córdoba, la
7
con indicadores de su distribución Compañía de Jesús buscó organizar Para el
establecimiento del
absoluta y relativa, su variación instituciones educativas para la Colegio Máximo en
intercensal y la edad poblacional en conformación de su propio recurso 1610, ver: PIANA;
SARTORI, 2012.
los años de 1769, 1778 y 1795. humano7, y en el hinterland rural de
Finalmente y en torno al crecimiento la jurisdicción de la ciudad. No 8
El único intento de
conformación de una
vegetativo, se ha analizado la misiones8, sino por el contrario misión en las región fue
evolución poblacional en términos de haciendas productivas con mano de llevada adelante por los
natalidad para todo el período, así obra casi exclusivamente africana y jesuitas en 1751, con
poco éxito y escasa
como los niveles de mortalidad y de condición esclava9. Pues aun duración. En: GRENÓN,
crecimiento vegetativo para la cuando existen registros de indios 1924.

década intermedia de 1768-1778. Se ‘conchabados’10, es decir


analizan también los porcentajes de contratados, estos representaban
bautismos, matrimonios y una minoría frente al plantel de
defunciones por quinquenio (1750- esclavos de la Compañía de Jesús en
1799), las frecuencias porcentuales Córdoba. Eran los cientos de esclavos
en las ceremonias realizadas entre distribuidos en las seis haciendas
22
cordobesas de la Orden quienes provenían de las más diversas 9
Estas dos excepciones
realizaban los trabajos de agricultura procedencias del Virreinato del Perú. que se insinúan en el
texto corresponden a la
y cría de ganado, manufacturas de Luego de casi un siglo de existencia para la época
obraje y trabajos de construcción y regencia jesuítica sobre el Colegio y tanto de indios
esclavos, cuya pérdida
albañilería, además de ser ocupados su hacienda rural, en 1767 su de la libertad era
también en el servicio doméstico. dirección pasó, junto con todos sus ocasionada por su
derrota en la guerra
(MAYO, 1994)11 bienes inmuebles, muebles, ganado y
antes mencionada entre
La Estancia de Caroya, esclavos, a la órbita de la Orden de indios y españoles,
comprada por la Orden en 1616, San Francisco de la ciudad de como de africanos
manumitidos, es decir,
supuso un verdadero espacio de Córdoba, hecho sucedido libertos.
prueba en el comienzo de esta inmediatamente después la expulsión 10
En el Registro
dinámica productiva, basada en la de los jesuitas del Imperio Español 12. estudiado se observa la
explotación de la tierra para la Este traspaso administrativo, produjo existencia de indios en
condición de
producción de alimentos, ganado de un profundo cambio en cuanto a la ‘conchabados’ por la
uso y exportación intrarregional, y organización económico-productiva Orden para el trabajo
algunas manufacturas, en una de la institución y, en la Estancia, cuyos
individuos generaron
economía que se caracterizó por su consecuentemente, también sobre la estrechas relaciones
diversificación. (MAYO, 1994) situación de sus esclavos. sociales con los esclavos
de dicha hacienda; pero
Los documentos señalan que que, en términos
la compra de esclavos es bien ESTRUCTURA DEMOGRÁFICA demográficos, no son
analizados en el
temprana (1618) (Cf. Carta Anua de En este apartado se analiza la presente trabajo.
la Paraquaria de 1618. Apud. composición y estructura de la
11
Según afirma Carlos
GRACIA, 1940, p. 225), y para población esclava a través de tres
Mayo, el masivo uso de
mediados de siglo la Estancia se relevamientos realizados en los años la mano de obra esclava
encuentra en plena actividad 1769, 1778 y 1795. La primera fecha en las estancias
jesuíticas de Córdoba,
productiva. (AHPC; Protocolos corresponde al Informe de la supusieron el éxito
Notariales, Registro I, 1661, f. 185v) Administración de la Junta de económico de las éstas.

Sin embargo de lo cual es vendida en Temporalidades realizada una vez 12


Los franciscanos
1661 al Presbítero Ignacio Duarte y consumada la expulsión de la dirigieron el Colegio
Convictorio hasta 1808,
Quirós. Esta transacción parece Compañía de Jesús. Las otras dos momento en el cual fue
esconder una venta ficticia de la surgen, respectivamente, del Censo cedido al Clero Secular
propiedad como parte de una general de Población de 1778 y el de la ciudad, bajo cuya
administración
estrategia de los jesuitas en pos de Censo eclesiástico ordenado por el permanecería hasta
formar la figura de un necesario Obispado de Tucumán en 1795. De 1820.

fundador para el Real Colegio, quien acuerdo a los resultados observados,


precisamente dos décadas después la estancia de Caroya contaba en
devolverá la Estancia a la órbita 1769 con 161 esclavos (89 varones y
jesuítica a modo de donación 72 mujeres); para 1778 la población
enmarcada en su acción legal de alcanzaba a 181 esclavos (96
fundación. Es decir que desde su varones y 85 mujeres) y en 1795
establecimiento, Caroya tuvo como Caroya contaba con 99 esclavos (57
principal función abastecer varones y 42 mujeres). La
económicamente al Real Colegio distribución absoluta y relativa de la
Convictorio, en el cual se alojaban población de esos años se presenta
estudiantes del Colegio Máximo de en el siguiente Cuadro:
los jesuitas en Córdoba y que
23
CUADRO 1
Estancia de Caroya. Población esclava
Distribución absoluta y relativa en 1769, 1778 y 1795

Año Varones VA% Mujeres VA% TOTAL VA%

1769 89 56 72 45 161 100


1778 96 53 85 47 181 100
1795 57 60 39 40 96 100
Fuente: AGHUNC – Libro de Temporalidades 1769; AHPC – Censo de 1778; AAC – Censo de 1795.

La mayor incidencia del sexo Las oscilaciones observadas


masculino en los tres períodos estaría en el número total del plantel de
relacionada a las características de esclavos en las fechas señaladas,
las tareas a realizar. Ello se explica permiten inferir cambios en las
en la principal actividad de la políticas de empleo de los mismos
hacienda, orientada hacia labores por parte de las dos Órdenes
destinadas mayoritariamente a los religiosas responsables de la
hombres en la producción agrícola y administración de la estancia. En el
de producción mular; sí como gran Cuadro Nº 2 se muestran las
parte de las tareas desarrolladas en variaciones anuales habidas entre los
el obraje, el batán, el molino y la relevamientos.
construcción.

CUADRO 2
Estancia de Caroya. Esclavos según sexo
Variación intercensal entre 1769, 1778 y 1795

1769 1778 1795


VA Variacion VA Variacion VA
intercensal intercensal

Varones 89 7,87 96 -40,63 57


Mujeres 72 18,06 85 -54,12 39
TOTAL 161 12,42 181 -46,96 96
Fuente: AGHUNC – Libro de Temporalidades 1769; AHPC – Censo de 1778; AAC – Censo de 1795.

A partir del relevamiento enumeración. En el primer cambio, el


realizada por la Junta de aumento del número de esclavos
Temporalidades el plantel dirigido por puede encontrar explicación en el
los Jesuitas tuvo un aumento en sus traspaso administrativo de la
efectivos de ambos sexos como se hacienda a la órbita franciscana, en
observa en 1778 para luego caer cuyos primeros años se observa el
bruscamente en la última aumento de efectivos, en el marco de
24
la desintegración del complejo de la hacienda, que acabaría por ser 13
La mala situación del
sistema que articulaba a Caroya con cedida pocos años después al clero Colegio Convictorio de
Monserrat y su hacienda
las demás haciendas jesuíticas de la secular de Córdoba13. de Caroya es expuesta
región. De tal manera que el sistema Sin embargo, en todos los por el testimonio
efectuado por su rector
de trabajo propio de esta hacienda se casos se trata de una población franciscano, fray Joseph
vio claramente modificado hacia una joven, en pleno desarrollo de su de Parras en 1781, en
razón del traslado del
centralización de tareas hasta ese actividad productiva y reproductiva, Convictorio al edificio
momento compartidas con las otras producto de las compras selectivas14, del Colegio Máximo por
unidades productivas. Mientras que alta natalidad y mortalidad. En el falta de fondo. En:
AHCNM, Tomo 5, Legajo
dos décadas después, la brusca caída cuadro siguiente se presenta la edad 27.
de su población esclava es el reflejo media de la población en los tres 14
Desde 1707 se
de la paulatina decadencia productiva relevamientos señalados: registra una constante
compra de esclavos con
un decrecimiento de las
CUADRO 3 mismas hacia mediados
Estancia de Caroya del siglo. Cf. AHCNM,
Tomo V. Legajo 7.
Edad media de la Población esclava en 1769, 1778 y 1795

Año Varones Mujeres Ambos sexos

1769
1778 21,3 21,5 21,4
1795 22,6 23,8 23,6
Fuente: AGHUNC – Libro de Temporalidades 1769; AHPC – Censo de 1778; AAC – Censo de 1795.

Según estudios sobre el criaturas que salían con mezcla de


comercio de esclavos en la época y español, mulato o indio”. (AGN, Sala
en el mercado local (CELTON, 2000), IX, Hacienda, Bienes de
la edad media de la compra de los Temporalidades 1772-1786, Legajo
varones esclavos era de 23,5 años y 7, Exp. 127)
de 23 años para las mujeres.
Evidentemente, han pesado en la
juventud del plantel de esclavos de CRECIMIENTO VEGETATIVO
Caroya la alta natalidad de los De los libros de registros de
mismos. Las 42 familias esclavas bautismos de la administración
enumeradas en el Censo de 1778 jesuita continuada por los
registran un promedio de 2,3 hijos franciscanos, se destaca la caída de
por familia, con dos casos extremos la tasa de natalidad entre los
de familias con 7 hijos cada una. Se esclavos luego de la expulsión de
advierte asimismo el celo puesto por aquéllos. Así la tasa bruta de
ambas Órdenes de mantener a la natalidad desciende de 55.6 por mil a
familia esclava sin mezcla racial ya 48.4 por mil entre 1767-70 y 1777-
que, en el caso de los Jesuitas, los 79.
regulares “vendían todas aquellas

25
CUADRO 4
Estancia de Caroya
Evolución de la población esclava, natalidad, mortalidad y crecimiento
vegetativo 1768 y 1778

Años Población Tasa bruta Tasa bruta de Crecimiento


de natalidad mortalidad vegetativo

1768 162 55.6 18.5 37.1


1778 186 48.4 13.4 35.0
Fuente: AGHUNC – Libro de Temporalidades 1769; AHPC – Censo de 1778.

La evolución de los promedios crecimiento vegetativo. En el caso de


ponderados de las tasas de natalidad, la tasa bruta de mortalidad su nivel
mortalidad y crecimiento vegetativo está dado principalmente por la alta
muestran el alto nivel alcanzado por mortalidad de los niños, que alcanzan
la natalidad de las poblaciones, lo el 25% del total de las defunciones.
que genera también un alto

GRÁFICO 1
Estancia de Caroya
Bautismos, matrimonios y defunciones por quinquenio 1750-1799

90
80
70
60
50
40
30
20
10
0
4

9
75

75

76

76

77

77

78

78

79

79
-1

-1

-1

-1

-1

-1

-1

-1

-1

-1
50

55

60

65

70

75

80

85

90

95
17

17

17

17

17

17

17

17

17

17

Bautismos Matrimonios Defunciones

Fuente: AHCNOM – Libro de Bautismos, Matrimonios y Defunciones 1754-1799.

En el Gráfico anterior se de los registros de bautismos,


analizan las tendencias de matrimonios y defunciones
crecimiento de la población, a través registrados por los Jesuitas dentro de

26
la estancia entre 1754 y 1767 y por Iglesia Católica, a la cual
los franciscanos a partir de esa fecha pertenecían. De esta manera el
ya hasta 1794. Agrupadas las series bautismo, primer sacramento y uno
medias anuales por períodos de los tres principales de iniciación
quinquenales permiten divisar la cristiana – junto a la eucaristía y la
tendencia a largo plazo de las confirmación –, podía ser ejecutado
mismas sin los riesgos de las sobre un recién nacido no sólo por
fluctuaciones bruscas anuales. Esto diáconos, presbíteros y prelados sino
es claro en la falta de registros de también por cualquier católico, más
bautismos, matrimonios y aún en caso de necesidad15. Mientras 15
La necesidad se
defunciones entre 1773 y 1781, que la unción de los óleos sagrados refiere al bautismo
aparentemente ocasionada por la podía ser sólo efectuada por efectuado por riesgo de
muerte del recién
falta de párroco o la posibilidad de sacerdotes o frailes, pudiendo ser nacido.
que registrasen los acontecimientos hecha junto al bautismo. De este rito
en otra parroquia; hecho ocasionado se distinguen dos partes, la unción
por la mencionada desarticulación del óleo, aceite bendecido por un
administrativa del sistema productivo sacerdote, y la del crisma, aceite
jesuítico y sus consecuencias en mezclado con bálsamo, consagrado
Caroya. Lo cierto es que en la por los prelados.
estancia la última partida firmada en En el período jesuítico se
1772 es de Fray Joseph Parra; le distingue: bautizado, oleado y
suceden con alternancia Fray Manuel crismado; oleado habiendo bautizado
Antonio Amarilla y Fray Atanacio antes; bautizado y tiene oleos;
Sánchez. bautizado y tiene óleos confirmados;
y bautizado y oleado. Mientras que
Bautismos en el período franciscano las
El 82% de los bautismos distinciones son: bautizados y
durante todo el período estudiado se oleados incluye a bautizado:
realizaron durante el primer mes de bautizado y tiene óleos; bautizado y
nacido. Con respecto al tipo de oleado; oleado habiendo bautizado
ceremonia realizada en las dos antes; oleado y crismado habiendo
administraciones religiosas se bautizado antes; bautizado y
distinguen entre sí los momentos de crismado; bautizado y velado.
bautizo y óleo. Es decir que el propio Bautizados incluye a bautizado
registro de individuos se encontraba subconditione; oleados incluye a
supeditado y condicionado en sus oleado y oleado y crismado.
formas y tiempos al ritual de la

27
CUADRO 5
Estancia de Caroya
Frecuencias y porcentajes de las ceremonias realizadas en los períodos
jesuítico (1752-jun 1767) y franciscano (jul 1767-1794)

Período jesuítico Período franciscano


N % N %
Ceremonia
bautizados y oleados 110 67,90 128 60,09
Bautizados 43 26,54 58 27,23
Oleados 9 5,56 27 12,68
Total 162 100,00 213 100,00
Fuente: Elaboración propia a partir de datos del Registro de Bautismos, Matrimonios y Defunciones de
esclavos. AHCNOM – Estancia de Caroya, 1750-1799.

En ambos períodos puede “privadamente por necesidad”,


observarse que en más del 60% de “privadamente por enfermedad”,
los casos el bautismo ha sido “privadamente por ausencia del
efectuado junto con la unción de los cura”. Mientras que entre los
aceites, mientras que más del 26$ el bautismos solemnes se
bautismo se indica previo a los óleos. indican:“bautizó solemnemente”,
El documento consigna además las “bautizó solemnemente y oleó”,
formas culturales del fenómeno, cuyo “bautizó solemnemente”, “oleó y
efecto es consecuentemente un crismó” y “bautizó solemnemente y
registro poblacional pre-estadístico. tiene óleos”. Hubo también en ambos
Los bautismos privados podían períodos, aunque en menor
ser realizados, como se ha indicado, porcentaje, de bautismos colectivos,
incluso por los padres del recién efectuados en la iglesia de la
nacido. De tal manera que la Estancia.
información volcada en el documento
incluye: “bautizó privadamente”, “en
su rancho”, “en su casa”,

28
CUADRO 6
Estancia de Caroya
Bautismo colectivos, privados y solemnes de bautismos para los períodos
jesuítico (1752-jun 1767) y franciscano (jul 1767-1794)

120

100

80 colectivos
solemnes
privados
60

40

20

0
perí odo 1 perí odo 2

Fuente: Elaboración propia a partir de datos del Registro de Bautismos, Matrimonios y Defunciones de
esclavos. AHCNOM – Estancia de Caroya, 1750-1799.

Nupcialidad los esclavos al momento de ser


Se destaca una elevada tasa comprados en Córdoba. De tal
de nupcialidad entre el plantel de manera que en el caso de Monserrat
esclavos, un 16.4 por mil al final de y Caroya marca su compra por parte
la administración jesuita más elevada de la administración del Colegio su
que para la registrada en la ciudad hacienda.
de Córdoba, de un 7,8 por mil para La estricta observancia de la
blancos y de 8.8 por mil para las liturgia católica, sujeta a restricciones
castas. (CELTON, 1993) Todos los de carácter religioso fue ejercida
casamientos se celebraban en la tanto por jesuitas como por
parroquia de la estancia, mientras franciscanos. Era obligatorio el
que la mayoría de los mismos se casamiento y velación al mismo
contraían entre los propios esclavos, tiempo, bajo pena de excomunión
registrándose sólo dos casos de mayor a los curas que infringiesen tal
esclavo casando con mujer libre en disposición. A la ceremonia de
1782 y 1792, ya en administración casamiento, le sucedía la velación
franciscana. que consistía en cubrir con un velo a
Los apellidos más frecuentes los cónyuges, en una misa nupcial y
de los esposos eran Monserrat, que simbolizaba tácitamente la
Caroya, Crispín, Reina, Angola y abstinencia sexual que debían
Díaz. Estos reflejaban el apellido de cumplir los cónyuges durante la
los amos tanto civiles como primera noche de bodas. Los
institucionales que habían recibido registros de matrimonios informan
29
sobre un 75% de parejas casados y estancia de Caroya registra períodos
veladas y un 25% de parejas sólo óptimos en los meses de mayo y
casadas ya que no se podían celebrar julio, fechas asociadas a la
enlaces en épocas que estuvieses observancia de las restricciones
prohibidas las relaciones sexuales, religiosas; el primero a finales de la
esto es, durante la Cuaresma y el Cuaresma y en julio oportunidad de
Adviento, La distribución estacional la Fiesta de San Ignacio, Patrono de
de los matrimonios registrados en la la Compañía de Jesús.

GRÁFICO 2
Estancia de Caroya
Estacionalidad de los matrimonios registrados entre 1750 y 1799

20
18
16
14
12
10
8
6
4
2
0
o
ro

e
eo

e
to
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br
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ju

m
m

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fe

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cie
pt

no

di
se

Fuente: Elaboración propia a partir de datos del Registro de Bautismos, Matrimonios y Defunciones de
esclavos. AHCNOM – Estancia de Caroya, 1750-1799.

Durante el verano las La fuente registra además casos en


ceremonias disminuían, que los futuros cónyuges solicitan
particularmente entre diciembre y dispensas por consanguinidad para
abril, posiblemente asociado a las contraer matrimonio, esto es, un
actividades comerciales como el permiso especial para la unión de
comercio de mulas cuyas ventas se “individuos con estrecha vinculación
iniciaban en noviembre – al comienzo biológica”. (COLANTONIO; CELTON,
de la parición – hasta junio, mes de 2005, p. 238) El impedimento en
la yerra para el día de San Juan o al grado de consanguinidad aceptado
corte y recolección de los cereales, con dispensa alcanzaba el tercer
en particular el trigo acaecida en los grado, el cual debía ser probado a
meses estivales. través de informaciones con testigos.
Como fue el caso del casamiento de

30
Pablo, soltero hijo de Juan Otañez y El 40% de las defunciones de
de Leonarda de Monserrate con María niños correspondían a menores de un
de los Dolores, hija de Francisco año Para todos los casos, las causas
Javier y de Rosa Díaz, dispensados de muertes no están en general
por el Obispo debido a este especificadas, mientras que el 85%
impedimento y casados el 18 de de las mismas se refieren a “muerte
agosto de 1782 por fray Atanacio repentina”. Una excepción constituye
Sánchez; al igual que la dispensa el curioso caso de muerte por
obtenida por los primos hermanos “hipocondría” de la esclava Clara,
Hermengildo de Monserrate y hija de Jorge Monserrate y Juana
Antonia, casados luego del permiso Díaz, quién falleció el 12 de octubre
del Obispo en julio de ese mismo de 1772 a causa de “las malas
año. (AHCNM; Registro de bautismos, lenguas de cuatro parientas suyas, y
f. 50v-51) El registro de estas esto le causó locura, y al principio
dispensas matrimoniales refleja la fuerte apoplejía”. (Cf. AHCNM;
observancia de los principios Registro…, f. 64.)
tridentinos (GHIRARDI; IRIGOYEN Los entierros se hacían en el
LÓPEZ, 2009, p. 241-271) en torno a lugar asignado a los esclavos en la
los sacramentos para todo el período. misma iglesia de la Estancia, dando
detalles el cura del lugar exacto como
Defunciones “sepultado frente al confesionario” o
Como se observa en el Gráfico “sepultado debajo de las barandillas”.
Nº 1 hay un descenso del total de Se consigna asimismo como lugar de
defunciones en el período, enterramiento el costado de la iglesia
seguramente relacionada con la de la estancia, lo que estaría
declinación de la mortalidad indicando la existencia de un
epidémica y a un mejor camposanto aledaño al templo.
abastecimiento de granos en la
segunda mitad del siglo XVIII.
En el inicio del período se A MODO DE CONCLUSIÓN
registraba una mortalidad elevada Se estima que las oscilaciones
provocada por epidemias de viruela, de los planteles de población esclava
sarampión, catarro y peste que registradas en el período en estudio
coincidieron con escasez y carestías obedecerían a una política deliberada
provocadas por las sequías. de compra y venta de esclavos por
(CELTON, 1998, p. 277-299) A la parte de la administración
paulatina erradicación de la peste, franciscana, los que fueron
sucedió la generalización de ciertas reemplazados paulatinamente por
epidemias mucho más localizadas agregados libres. Esta decisión,
que afectaban generalmente a la contraria a los efectos de una época
población infantil (viruela, de expansión del comercio
sarampión) o cuya letalidad (cólera, especialmente hacia el Alto Perú, se
difteria, tuberculosis) era inferior a debió a la desarticulación de la red
las grandes pandemias anteriores, productiva que constituían todas las
aunque circunstancialmente pudieran haciendas jesuíticas entre sí. Pues al
alcanzar gran vigor. momento de la expulsión de la
31
Orden, Caroya fue la única en ser tiempo que ambas administraciones
traspasada a los franciscanos, rigen la organización social de esta
mientras que las demás fueron población esclava en observancia a
vendidas a particulares, lo que los mandatos tridentinos en la
generó un paulatino decrecimiento en estricta aplicación de los sacramentos
su producción agrícola-ganadera y, de bautismo y matrimonio. De tal
consecuentemente, una disminución manera que aunque la población total
en la población esclava afectada a la baja entre un período y otro, el
hacienda. funcionamiento orgánico de su
Sin embargo, se observa el comportamiento socio-demográfico
interés por ambas Órdenes de se mantiene relativamente estable
mantener un plantel joven, con alta hasta por lo menos fines del siglo
natalidad, y con expresa prohibición XIX.
de unirse a libres y españoles. Al

Fuentes

Archivo del Arzobispado de Córdoba (AAC)


Censo de 1795

Archivo General e Histórico de la Universidad Nacional de Córdoba


(AGHUNC)
Temporalidades, 1769, Caja N° 11, Legajo 5

Archivo Histórico de la Provincia de Córdoba (AHPC)


Gobierno,Censo 1778, Cajas 18 y 19
Protocolos Notariales, Registro I, año 1661

Archivo Histórico del Colegio Nacional de Monserrat (AHCNM)


Libro 9
Tomo 5, Legajos 7 y 27
Registro de bautismos
Archivo General de la Nación (AGN)
Sala IX, Hacienda, Bienes de Temporalidades 1772-1786, Legajo 7, Exp. 127

Referencias

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según Actas de Protocolos del Archivo Histórico de Córdoba. Cuadernos de
Historia, Córdoba: Universidad Nacional de Córdoba, v. 22, 1965.

BECERRA, María José. Estudios sobre esclavitud en Córdoba: análisis y


perspectivas. In: LECHINI, Gladys (Comp.); BUFFA, Diego; BECERRA, M. J. (Ed.).

32
Los estudios afroamericanos y africanos en América Latina: herencia, presencia y
visiones del otro. Córdoba: CLACSO; Buenos Aires: CEA-UNC, 2008, p. 145-163.

CELTON, Dora. Enfermedad y crisis de mortalidad en Córdoba, Argentina entre los


siglos XVI y XX. CAMBIOS demográficos en América Latina: la experiencia de
cinco siglos. Córdoba: IUSSP; CEA, 1998, p. 277-299.

______ . La población de la Provincia de Córdoba a fines del siglo XVIII. Buenos


Aires: Academia Nacional de la Historia, 1993.

______ . La venta de esclavos en Córdoba entre 1750 y 1850. Cuadernos de


Historia, Córdoba: Universidad Nacional de Córdoba, n. 2, 2000. Serie Población.

COLANTONIO, Sonia. Población y sociedad en tiempos de lucha por la


emancipación: Córdoba, Argentina, en 1813. Córdoba: CIECS; CONICET, 2013.

______ ; CELTON, Dora. Las dispensas como fuente de estudio de la


consanguinidad y de las pautas matrimoniales. In: GHIRARDI, Mónica (Comp.).
Cuestiones de familia a través de las fuentes. Córdoba: Universidad Nacional de
Córdoba, 2005.

GARZÓN MACEDA, C.; DORFLINGER, José. Esclavos y mulatos en un dominio rural


del siglo XVIII en Córdoba (R. A.). Revista de la Universidad Nacional de Córdoba,
Córdoba: UNC, 1961.

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Jesús en Córdoba – la construcción de un falso histórico. Córdoba: EDUCC, 1612.

33
CULTURA, RELAÇÕES DE PODER E formed their associated frames, since 1
Graduado em História
FESTAS DEVOCIONAIS NAS the identities (re) constructed under it pela Universidade
IRMANDADES RELIGIOSAS EM had as one of its bases the composition Federal de Ouro Preto
of royalty, which exercised some power (UFOP). Mestre em
MINAS GERAIS NA ÉPOCA DA História Social pela
in sororities and sometimes even
COLÔNIA beyond. To do so, use the proposal by Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ).
Michael de Certeau (1996) approach,
Alisson Eugênio1 Doutor em História
which is, to think the possibility of Econômica pela
appropriating the dominated and the Universidade de São
dominant culture give another meaning Paulo (USP). Pós-Doutor
Resumo to it in another context: the context of em História pela
life in captivity. In the case of this study, Universidade Federal de
Nesse artigo serão abordados os festejos the appropriate cultural elements are the Minas Gerais (UFMG).
feitos pelas irmandades de escravos, fellowship and celebration dedicated to Professor de História da
Universidade Federal de
partindo do seguinte problema: como os Catholic devotions.
Alfenas (UNIFAL). E-
escravos se aproveitavam da ocasião mail:
festiva para reforçar seus laços de Keywords alissoneugenio@yahoo.c
identidade, reafirmar as suas relações Slavery; Religious brotherhoods; om.br
de poder e construir um ideal de vida Religious festivals.
contrário à existência que levavam no
cativeiro? Ao apresentar elementos para
responder a essas questões, objetiva-se O primeiro objetivo da criação de
mostrar que em torno da escolha dos irmandades religiosas no mundo
reis e rainhas das irmandades havia católico foi, naturalmente, propagar a
conflitos entre as etnias que integravam vida espiritual e a educação religiosa.
os seus quadros de associados, uma vez Em Minas Gerais, embora
conservando esta finalidade inicial, as
que as identidades (re)construídas ao
confrarias se projetaram em atividade
seu abrigo tinha como uma de suas muito mais ampla, quase
bases a composição da realeza, que transformando a corporação religiosa
exercia certo poder nas irmandades e às em estrutura formal ou orgânica, cujo
vezes até fora dela. Para tanto, uso a conteúdo principal se expressa na
abordagem proposta por Michael de formulação da assistência social e
Certeau (1996), qual seja, a de pensar a securitária adequada ao meio e à
possibilidade de os dominados se época. (SALES, 1963, p. 73)
apropriarem da cultura dominante e dar
outro sentido a ela em outro contexto: o As irmandades religiosas
contexto da vida em cativeiro. No caso (também conhecidas como confrarias
desse estudo, os elementos culturais ou ordens terceiras), uma criação
apropriados são a irmandade e a festa cultural medieval, foram introduzidas
dedicada às devoções católicas. no Brasil pelos portugueses na época
da colonização. Organizadas e
Palavras chave
Escravidão; Irmandades religiosas;
mantidas por leigos, elas tinham
Festas religiosas. como missão primordial a
sustentação material do culto de uma
Abstract devoção católica. Além disso,
também atuavam como uma espécie
In this article, we will focus on festival de entidade assistencialista aos seus
made by brotherhoods of slaves, leaving associados (os quais para receberem
the following problem: how slaves took seus auxílios – em caso de doença,
advantage of the festive occasion to
de prisão, de penúria, de mote, etc.
strengthen their bonds of identity,
reaffirm their power relations and build
– deveriam estar em dia com as
an ideal contrast to the existence of life anuidades a elas devidas). Essa
leading in captivity? In presenting função lhes garantira grande
evidence to answer these questions, we popularidade, devido ao fato de o
aim to show that around the choice of Estado nas sociedades do antigo
kings and queens of the brotherhoods regime, de um modo geral, não
had conflicts between ethnicities that prestarem serviços assistenciais,
34
porque estes estavam submetidos à dedicadas a Nossa Senhora do
concepção de caridade (ajuda ao Rosário, devoção predileta dos
próximo para minimizar seus escravos. (BOSCHI, 1986)
sofrimentos em nome de Deus e com Sabe-se que quando as
base no princípio da reciprocidade). confrarias negras eram
Os indivíduos que a elas se majoritariamente ocupadas por
associavam, normalmente, africanos, o culto às devoções
identificavam-se uns com os outros católicas era muitas vezes sincrético.
pela etnia, devoção, atuação Em outras palavras, ao se
profissional, vizinhança, parentesco, apropriarem de uma entidade
entre outros fatores. Esses religiosa criada pelo conquistador,
elementos de identidade seus associados não abandonavam,
proporcionavam a coesão social necessariamente, os elementos da
necessária para os seus associados sua religiosidade original, quer dizer,
praticarem o culto às suas devoções de matriz africana. A imagem abaixo,
e a solidariedade mútua. reproduzida de um compromisso
As irmandades religiosas dos (estatuto que determinava os direitos
negros, em particular as dos e deveres dos confrades em relação
escravizados, estavam sustentadas as suas confrarias) de uma
nestes mesmos princípios. Elas irmandade de Barbacena, mostra o
proliferaram no Brasil colonial à detalhe de um rosário de uma
medida que a escravidão e o tráfico imagem de Nossa Senhora. (AEAM.
que a alimentava foram trazendo Folha de rosto do Compromisso da
milhões de africanos para cá. Em Irmandade de Nossa Senhora do
Minas Gerais, no mesmo período Rosário de Barbacena, 1809, cód.
histórico, tais associações foram 35).
muito populares, principalmente as

IMAGEM 1 – Nossa Senhora

35
Nessa imagem, o crucifixo, na No caso dos negros, havia um
ponta do rosário, foi substituído por elemento diferencial no conjunto
um búzio. Tal elemento é usado na desses cargos: a eleição de uma
cultura religiosa dos orixás para que corte composta por rei, rainha,
se possa consultar o destino. No príncipe e princesa (SOUZA, 2002),
mundo da escravidão, um mundo de que aqui será chamado de realeza
incertezas para os negros confrarial.
desenraizados das suas terras A importância desse cargo era
ancestrais, o futuro poderia ter sido tão grande que ele era
uma nuvem cinzenta na qual tais disputadíssimo, como revela o
indivíduos possivelmente tiveram compromisso da Irmandade de Nossa
grandes dificuldades para se Senhora do Rosário de Santa
orientarem inicialmente. Dessa Bárbara:
maneira, mais do que peça
decorativa, a presença daquele No dia que se festejar o Rosário
Santíssimo da Mãe de Deus se fará a
elemento da cultura religiosa africana
eleição do Rei e Rainha; e para que
no rosário cristão poderia significar esta eleição seja feita com
uma tentativa de os escravos recém imparcialidade e com o devido acerto,
trazidos do além-mar iluminarem os se guardará a seguinte forma: se
ajuntará no consistório das
obscuros caminhos de sua existência
Irmandades os Oficiais e Irmãos de
na sociedade escravista. Além disso, Mesa que usualmente com a
trata-se de uma herança africana assistência do nosso Protetor, e
recriada, ou seja, uma vivência Capelão, depois de se proporem três
Irmãos pretos para Rei, e três Irmãs
cultural reconstruída com a
pretas para Rainha, sem ódio, ou
incorporação de alguns novos valores afeição se escolherão por voto os que
(neste caso, a devoção a Nossa forem mais idôneos para os ditos
Senhora). empregos entre os seis Irmãos, sem
reserva de serem Crioulos, Angolas,
Essa imagem indica que as
ou Minas. Nesta mesma ocasião serão
irmandades dos negros foram muito eleitos os juízes e juízas, e os Irmãos
mais do que um espaço de devoção de Mesa, e para evitarem suspeitas
cristã e de assistência mútua. Ela nos de dolo, ou suborno, se proporão
crioulos e pretos, sem distinção de
convida a penetrar no interior das
nações. (AEAM, cód. X-16, 1809, f. 6-
associações religiosas dos escravos 8)
para conhecermos o mundo por eles
criado ao seu abrigo. E quando se Esse compromisso, lançado
investiga a documentação, percebe- em 1809, apresenta vários indícios
se que nelas aqueles indivíduos da importância do rei e da rainha
organizaram um mundo próprio, com para analisar alguns aspectos da
hierarquia, relação de poder, complexa relação de poder e
organização econômica e festas. identidades, vivenciada pelos negros
As festas dedicadas às em suas irmandades. Em primeiro
devoções foram fundamentais na lugar, percebe-se que os postos da
vida dessas associações. (Cf. realeza confrarial eram disputados de
EUGÊNIO, 2010) Durante elas, seus forma tensa. Em segundo lugar,
associados reforçavam suas verifica-se que, para almejá-los, os
identidades, reformavam as igrejas candidatos àqueles postos poderiam
ou capelas (quando conseguiam lançar mão de subterfúgios; em
construir uma) onde funcionavam, terceiro lugar constata-se que o
arrecadavam as anuidades e elegiam processo de escolha de seus
os novos membros que ocupariam os integrantes era aberto a todos os
cargos de confiança da irmandade.
36
membros da associação, casa e acompanhá-los à Igreja, mais
que de sorte, não sirva tal
independentemente da condição acompanhamento de estorvo. (AMI,
jurídica e do grupo de procedência 1952, p. 188)
étnica deles. Tudo isso, em conjunto,
poderia proporcionar atritos entre os Ao se comparar essas duas
membros daquela confraria. Quase fontes, produzidas em tempos e
um século antes, diante do mesmo espaços diferentes da Capitania de
problema, os irmãos do Rosário de Minas Gerais, pode-se perceber que,
Vila Rica, em 1715, após decidirem no processo de escolha dos
que a sua associação teria “um rei e integrantes da realeza confrarial,
uma rainha de qualquer nação que ocorriam conflitos entre os negros
sejam”, advertiam que por causa das disputas em torno
desse cargo de grande prestígio. A
não serão obrigados os juízes, nem
propósito, Rugendas, durante sua
juízas de Nossa Senhora, e demais
santos, a irem buscá-los em suas viagem do Rio de Janeiro à Minas
casas e recebê-los à porta da Igreja, Gerais, entre 1823 e 1825, retratou
para evitarem distúrbios que poderão esse prestígio da seguinte maneira:
suceder; porém se entre todos houver
boa união, os poderão buscá-los em

IMAGEM 2
Fonte: RUGENDAS, Johann Moritz. Voyage pittoresque dans Brésil. Paris: Engelmann et Cie, 1835.

No entanto, mais que (re)construção do intricado nó das


constatar uma eleição conflituosa relações de identidades vivenciadas
para preenchimento dos cargos de por seus associados.
prestígio das confrarias negras, Quando a mesa diretora
principalmente os de rei e de rainha, daquela irmandade prescreveu que a
é necessário interpretar o documento escolha anual do seu rei e de sua
acima, tendo em vista a rainha seria feita “sem distinção de

37
nações”, o que parece estar em jogo a regra geral era cada etnia ter sua
não são necessariamente os cargos própria irmandade. Se aceitassem
da realeza confrarial, e sim uma das outras em seu espaço de
tantas faces das identidades dos solidariedade e de devoção, assim
confrades negros daquela associação, faziam desde que essa outra tivesse
o que também estava acontecendo alguns acessos restritos, como os
em outras. cargos de prestígio inerentes às suas
Nas Minas Gerais, as hierarquias administrativas. (REIS,
irmandades negras caracterizavam- 1997)
se, de modo geral, por um perfil Ao analisar a lista dos eleitos
diversificado, com predominância de que exerceram os postos da realeza
escravos e, entre esses, em muitas da Irmandade de Nossa Senhora do
delas, os de origem africana. Rosário de Guarapiranga, durante a
(EUGÊNIO, 2010, cap. 2) Assim, segunda metade do século XVIII,
parece ter sido de fundamental constata-se que o perfil dos negros
importância para a manutenção que ocupavam cargos de rei e de
delas, o controle das rivalidades rainha variou étnica e
étnicas entre os pretos e entre esses juridicamente. Tal fato reforça a
e os crioulos. Caso contrário, tais hipótese de que os cargos de
rivalidades poderiam estimular a prestígio da hierarquia das
fragmentação da associação em associações religiosas negras
outras menores. estavam ao alcance de seus
Esse problema aconteceu nas membros, independentemente de
Minas Gerais, embora de forma bem suas diferenças étnicas e jurídicas,
menos ampla do que na Bahia, onde como é possível perceber a seguir:

Composição dos grupos de procedência da realeza confrarial


Cargo Condição
Origem
Jurídica
Escravos 16 África 10 Brasil 6
Rei
Forros 18 África 6 Brasil 12
Escravas 8 África 2 Brasil 6
Rainha
Forras 28 África 6 Brasil 22
Total 70 24 46
Fonte: AEAM, Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Guarapiranga, Atas e Termos de Eleição,
1758-1803, cod. Y.12.

Entre os africanos, destacavam não só no Rosário de


independentemente de seu sexo e de Guarapiranga, mas em outras
sua condição jurídica, foram associações religiosas negras, como
apurados os seguintes grupos de a marianense.
procedência: oito Minas, sete Após se constatar que os
Benguelas, três Congos, um Cabo cargos de rei e de rainha eram
Verde, um Angola e quatro “pretos” imbuídos de status e prestígio, que
sem especificação étnica. Também se as disputas por tais cargos poderiam
verifica que ex-escravos, com propiciar conflitos entre os confrades
destaque para as mulheres nascidas e a escolha para seu preenchimento
na Colônia (crioulas-forras), era aberta a todos os associados
predominavam na realeza confrarial negros que quisessem e pudessem
e, entre os “pretos” (isto é, os disputá-los, pode-se concluir que a
nascidos na África), os minas se convivência entre os negros no

38
espaço de suas associações religiosas ou se fazia passar por um Rei Congo
poderia ser caracterizada não só pela (sendo verdade ou não, só o fato de
solidariedade mútua, mas também se atribuir como tal já demonstrava a
pela tensão, sobretudo quando os importância do título para reunir
cargos de grande relevância em sua outros negros) que, supostamente,
hierarquia interna eram renovados liderava um plano de revolta para
durante a festa. Eis outra dimensão conquistar a liberdade dos escravos
dessa devoção lúdica: as rivalidades no contexto da Independência.
vivenciadas em função do processo
de eleição dos postos que conferiam Recebi o ofício de Vossas Excelências
em data de 25 do mês passado, pelo
certo poder a quem os ocupava, o
qual, em resposta ao juiz Ordinário da
que tornava mais complexo a Vila de Barbacena, me incumbiu do
(re)construção das identidades exame de umas patentes, que
daqueles indivíduos. naquela Vila apareceram passadas
estas por um negro que é, ou se
O poder desses reis não se intitula ser, Rei dos Congos; e me
restringia às irmandades, pois há encarregam de dar todas as
indícios de que sua autoridade providências que julgar convenientes
ultrapassava os limites das capelas sobre o exposto naquele ofício. Já em
26 de janeiro eu havia oficiado a este,
que abrigavam as devoções dos comunicando-lhe as minhas idéias
negros e, até mesmo, que eles sobre tal objeto e como a matéria é
poderiam estar envolvidos em sobre maneira melindrosa, permitam-
revoltas, como é possível observar a me V. Excelências que lhes exponha
com toda a submissão o modo de
partir do exemplo de dois casos pensar a semelhante respeito.
ocorridos em Barbacena no contexto Convêm os melhores Publicistas, que
da Independência: as leis não devem mencionar crimes,
que não é de recear se cometam,
Sendo presente ao Governo Provisório porque a simples menção deles pode
o ofício que foi dirigido pelo Juiz suscitar a idéia de os perpetrar. Assim
Ordinário de Barbacena com os papéis vimos que perguntado Sólon, porque
que acompanham; determina o razão não havia estabelecido penas
mesmo governo que o Doutor Ouvidor contra os parricidas, respondeu que
da Comarca do Rio das Mortes haja não julgava que houvesse alguém
de dar todas as providências que capaz de cometer um crime tão
julgar conveniente sobre o exposto no enorme. A revolução dos negros
dito ofício, fazendo exibir outros profetizada no Brasil por Escritores
quaisquer papéis semelhantes que se ganhou, é verdade, muita força tanto
acham, declarando que o dito Rei do da Constituição que eles interpretam
Rosário como tal não tem inspeção ser sua alforria, como da demasiada
alguma sobre os negros das outras filantropia com que os Deputados
freguesias. (APM, SP 2, 1822, f. 60v) anunciavam no Congresso as suas
idéias acerca da liberdade, idéias
estas que os fingidos humanistas, ou
Se tal fato chegou aos antes os inimigos do Brasil se
tribunais, significa que algum conflito apressavam em espalhar. Eles
levou o juiz à decisão acima esperavam que no dia de Natal, ou
muito tardar no dia de Reis
determinada. O que estava na
despontasse sua liberdade, e essas
disputa pelo visto eram os limites notícias que chegavam aos meus
geográficos da autoridade do “Rei do ouvidos me levariam a tomar aquelas
Rosário” que, pelo julgamento dado, medidas de Polícia que entendi
necessárias, sem contudo demonstrar
teria o direito da inspeção sobre o motivo verdadeiro que dirigia os
somente os negros de sua freguesia. meus movimentos. Felizmente
Assim, não se podem mais entender cessaram logo os murmúrios que
tais figuras como uma brincadeira assustavam, e eu conheci que eles
não mais a expressavam de desejos
carnavalizada da inversão dos papéis
do que a transpiração de Planos. Esta
sociais da sociedade escravista. crise passou, e eu me persuado que
O segundo, um tanto mais agora será prejudicial trazer-lhes por
grave, refere-se a um negro que era, qualquer modo à lembrança uma

39
coisa de que eles já estão O BANQUETE
desvanecidos por lhes faltar ocasião,
que a expressavam. Antes entendo
que o juiz Ordinário, bem como as Para que a comilança e a
demais autoridades constituídas, bebedeira pudessem acontecer, os
menos medrosos, e mais acaltelado associados se organizavam para
deve prosseguir sem estrepido,
recolher doações de casa em casa,
evitando a união dos Negros,
proibindo seus ajuntamentos, tirando ou na capela às vésperas da festa. O
as suas armas e punindo os que resultado da coleta era normalmente
merecem castigo. Do contrário, sem leiloado durante o dia da
publicar o receio, que eles podem
comemoração de suas devoções,
atribuir à nossa fraqueza, ou julgarem
o resultado da sua força superior, como forma de ajudar no orçamento
animando-os assim para um do evento e, o que sobrasse era
desacato, que de certo ainda não tem consumido durante o banquete.
concebido. É o que se me oferece a
Costumavam-se ofertar
Vossa Excelência. (APM, JGP. 1/6, SP,
1822, cx. 1) alimentos, artesanato de uso
doméstico, ícones religiosos que
O documento revela questões representavam suas devoções e
extremamente complexas, pois animais, como porcos e galinhas
parece que uma rebelião de escravos (alguns eram selecionados meses
estava sendo planejada para antes da festa, para que fossem
acontecer em uma data em que o engordados e consumidos na
mundo dos brancos estivesse em ocasião). A engorda era feita à base
festa (entre o Natal e o dia de Reis). de restos de comida que se
Isso seria feito em torno da liderança conseguia, também, pela procura nas
de um rei. Seja como for, o fato é casas, onde havia uma lata
que a liderança desse personagem e reservada para acomodá-las. Quando
sua importância como referência de cheia, mandava-se avisar aos
poder, dentro e fora das irmandades, “engordadores” que a apanhassem
não pode mais ser ignorada pelos para levá-la a suas casas e servir às
estudiosos das relações de poder e criações. Tal costume não existia em 2
De acordo com
da identidade entre os escravos e os função da festa (constituía uma das indícios das fontes
forros. No mundo que esses práticas de solidariedade vivenciadas manuscritas e
por grande parte da população impressas utilizadas
indivíduos criaram, nos fragmentos nesta pesquisa e em
de liberdade negociadas e colonial como forma dos indivíduos e relatos coletados por
conquistadas ao cativeiro, a corte das famílias se ajudarem na mim em várias festas
negra gozava de prestígio e de subsistência cotidiana), mas os que pude observar no
devotos se utilizavam dele para as interior de Minas Gerais,
autoridade que a tornavam mais que é possível indicar que
um elo entre os escravos e os forros: festividades2. havia nas festividades
transformavam tal corte em alvo de Essa prática demandava e, ao devocionais de negros
disputas, que também mesmo tempo, reforçava as relações um momento em que os
de proximidade entre os membros da devotos se fartavam
proporcionavam a vivência de com bastante comida.
rivalidades em meio a solidariedade associação religiosa, pois ela só
tensa e improvisada que tinham que poderia ocorrer a partir do
reforçar o tempo todo, sentimento de pertença que impeliam
principalmente no tempo das festas. tais indivíduos à conjunção de forças
Após a consagração dos para a sua realização. Nesse sentido,
novos integrantes da realeza tal prática pode ser entendida como
confrarial, os negros iam festejar os uma das manifestações da
eleitos. solidariedade mútua que, ao ser
vivenciada por aqueles confrades,
proporcionava-lhes um contexto
favorável para que eles reforçassem
uma das faces da complexa relação
40
de poder e identidades tecidas ao realidade de várias formas, de acordo
abrigo de suas irmandades. com a vivência cotidiana e as
A data em que ocorriam as maneiras que os indivíduos
festas devocionais de algumas interpretam essa vivência, sendo
associações religiosas de escravos e uma delas a que funciona a partir de
libertos é sugestiva em relação aos contrastes de imagens opostas.
significados que elas poderiam ter (GINZBURG, 1990, p. 97) Nesse
para seus membros. sentido, a expressão “Domingo
Em Sumidouro, onde as gordo” contrapõe-se à quaresma, isto
Irmandades do Rosário, de São é, ao tempo de recolhimento,
Benedito e de Santa Efigênia penitência, confissão e jejum (pelo
compartilhavam a mesma capela, menos, na sexta-feira da paixão),
durante o período de 1750 até 1815, que nem toda a população praticava.
os negros costumavam fazer suas Entre os negros, cujas vidas eram,
festas devocionais no tempo da em parte, consumidas pelas duras
Páscoa. Naquele período, eles jornadas de trabalho, o dia da Páscoa
anunciavam seus festejos da poderia significar o desejo de uma
seguinte forma: existência idealizada pelo banquete
como uma imagem invertida das
Aos dois dias do mês de fevereiro, condições de vida inerentes à ordem
nesta matriz de Nossa Senhora do
Rosário do Sumidouro, estando em
escravista, as quais eram pautadas,
mesa os juízes e demais oficiais do em grande parte, pelos ritmos das
Glorioso São Benedito e de Santa jornadas de trabalho.
Efigênia, concordaram todos No período colonial, a comida
uniformemente em fazer uma festa a
era revestida de significados
São Benedito na oitava da Páscoa,
com Sermão, Missa Cantada, diversos. Nas horas do trabalho
Luminárias, Trombetas, Vozes e Coro. escravo, era apenas alimentação;
(AEAM, Irmandade de Nossa Senhora nas horas de folga, como nas festas,
do Rosário de Sumidouro, 1750-1815)
poderia ser fator de animação;
quando solicitada por socorro aos
A Irmandade de Nossa necessitados, constituía-se em
Senhora do Rosário da Casa Branca, prática de caridade; no contexto da
em compromisso lançado em 1726, doença, servia como remédio. Em
determinou que em “todos os anos alguns Registros de Receitas e
se fará a festa de Nossa Senhora na Despesas das associações religiosas
oitava da Ressurreição, em que de escravos e libertos, encontram-se
haverá música, procissão solene e informações do tipo “pelo que se
missa no Domingo que chamam
despendeu com galinhas na cura de
gordo.”. (AEAM, Irmandade de Nossa um negro”. De acordo com Julita
Senhora do Rosário de Casa Branca, Scarano,
1726, cód. J. 37, f. 30)
Esse documento permite o alimento dado ao preto nas Minas
perceber que a festa devocional era Gerais, sobretudo aquele que se
mesmo vivenciada de forma lúdica encontrava nas listas das entidades
governamentais ou que era fornecido
pelos escravos e libertos, pois o particularmente, quase sempre por
adjetivo conferido ao dia sagrado dos ações de irmandades e confrarias,
cristãos, “Domingo gordo”, revela notamos ser diferente daquilo que se
que eles não só usavam a ocasião julgava próprio para comida de
doente. Aliás, na Europa, tal era o
para celebrar suas devoções, mas
sistema usado pelos médicos
também para se divertir. medievais, a alimentação do enfermo
O imaginário (sistema de merecia considerações à parte. Ao
representações) e a cultura (valores examinar as condições de vida do
homem de cor nessas terras mineiras
compartilhados) representam a
no século XVIII, chega-se à conclusão

41
de que, escravo ou livre, a doença festa, transitando por tais momentos
fazia com que ele fosse encarado de
maneira diferente daquela que
distintos da existência escrava na
pautava o relacionamento entre Colônia, ora assumindo o significado
pessoas de diversas categorias de proteção contra o frio, ora o de
socioeconômicas que compunham a catalisador da diversão.
população mineira. Quando a doença
Enquanto os negros se
chegava, havia significativa
modificação no modo de tratar os saciavam com seus banquetes, eles
pretos e os escravos, tão duramente dançavam e cantavam aos sons de
explorados na lida cotidiana. seus instrumentos musicais, entre os
(SCARANO, 1994, p. 79)
quais se destacavam os tambores,
cujos ecos inundavam a atmosfera
Durante o banquete das festas colonial e levavam sossego para uns
devocionais, a comida era servida e infortúnio para outros.
como “alimento para a alma”. Nesse
contexto, ela poderia ser
compreendida como uma das O BATUQUE
expressões da solidariedade
vivenciada pelos negros, no seio de Os sons dos negros
suas irmandades, bem como uma
marcavam, do início ao fim, os rituais
referência de aproximação entre eles, que compunham suas festas
já que a sua obtenção e seu preparo devocionais. Desde a chegada ao
demandavam certo esforço e espírito cenário, no alvorecer do dia, quando
de união entre aqueles indivíduos. os sinos anunciavam o começo do
Além de comer, bebia-se
evento, passando pelo erguimento do
muito naquelas festas. A aguardente mastro, pela missa especial dedicada
(bebida extraída da cana-de-açúcar) à devoção homenageada, pela
acompanhava a “comilança”. Para
procissão que reinventava
obtê-la, os negros utilizavam várias (momentaneamente) as ruas
formas, sendo a maioria delas coloniais, pela coroação da realeza
clandestinas, como sugere Julita
confrarial, pelo banquete, até os
Scarano: instantes finais do festejo (já em sua
fase mais profana), eles tocavam
Alguns vendedores de cachaça vêm à
noite e, com tiros, avisam os pretos seus instrumentos, dançavam e
de sua presença e assim efetuam cantavam, vivenciando um breve
suas vendas. A bebida era escondida tempo (totalmente deles) de devoção
para então ser consumida em ocasião
lúdica.
oportuna, geralmente em uma festa
que reunia as pessoas de cor, mesmo No entanto, alguns senhores
nas festas das irmandades e em procuravam ocupar seus escravos
outras de teor semelhante. para que não se entregassem à
(SCARANO, 1994, p. 79)
bebida, à dança e ao batuque, pois
dali poderiam surgir motivos de
Essa bebida foi, e ainda é, brigas entre os negros, ou mesmo
muito apreciada pela população algum distúrbio mais grave com o
mineira (e brasileira) de modo geral.
qual se preocupava a elite colonial,
No cotidiano do trabalho, servia para pelo que se pode perceber por meio
esquentar o corpo durante as baixas de vários editais e alvarás produzidos
temperaturas do inverno daquela pelo Estado, ou pelas visitações dos
região montanhosa, sobretudo os agentes da Igreja. Um deles foi
trabalhadores ocupados na expedido por Gomes Freire de
mineração, os quais ficavam com as Andrade, “a respeito da inquietação e
canelas imersas nos ribeirões. desassossego que causa aos
Nesse sentido, a cachaça
moradores desta vila a variedade de
servia como elo entre o cotidiano e a negros em tantas partes com seus
42
folguedos”. (FIGUEIREDO, 1993, p. visitadores registraram os discursos
173) repressivos contra as danças e os
Outros, porém, preferiam os batuques dos negros. Dois deles
sons dos batuques ao silêncio da chamam a atenção pela forma como
noite, pois esse “seria muito mais descrevem tais manifestações
angustiante e misterioso do que o lúdicas. Em uma de suas visitas nas
barulho desses divertimentos”. regiões de Sabará, Serro Frio e
(MATTOSO, 1982, p. 135) Essa Pitangui, Manuel Ribeiro da Costa
atitude demonstra que alguns determinou
senhores usavam a festa para
negociar com seus escravos uma aos Párocos e Capelões de suas
freguesias que constando-lhes que
certa paz, de forma que estes algumas pessoas fazem ou concorram
pudessem cumprir suas tarefas. É para os batuques, aos quais chamam
bom lembrar que isso não foi fruto de calundunses, os repreendem
uma articulação maquiavélica rigorosamente, e sendo pessoas
forras as condenem em dez oitavas
senhorial, e sim de uma relação de
em ouro, invariavelmente, e a todas
negociação com seus escravos, cuja as pessoas de um ou outro sexo que
dominação não se fazia sem assistam ou concorrem para
contrapartidas. semelhantes funções, pena de
excomunhão maior, para se absterem
Nesse sentido, portanto,
de bailes tão supersticiosos, em que o
deve-se compreender que a presença Demônio como sagaz Inimigo de
de escravos em irmandades foi nossas Almas costuma Laborar.
possível, principalmente, pela (AEAM, Disposições Pastorais, 1753,
cód. F. 22 e W-3, f. 16)
negociação entre eles e seus
senhores. Isso porque, ao se
tornarem confrades, mantendo Esse visitador, como se pode
observar, identifica o batuque com as
associação própria aceita pela ordem,
em alguns momentos os negros se obras do Diabo. Daí a necessidade de
colocavam fora do alcance senhorial, repreendê-lo “vigorosamente”, de
acordo com suas próprias palavras.
uma vez que suas obrigações de
compromisso (comparecimento em Já o visitador Doutor Theodoro
enterros, presença nas missas Pereira Lacome, em visita ao Curral
dominicais e nas festas devocionais) Del Rey (atual Belo Horizonte),
não podiam ser obstruídas pelos seus antiga freguesia pertencente à
donos, sob pena de admoestação Sabará, apurou que
eclesiástica. Para a Igreja, a
como o Demônio não cessa de andar
presença dos negros em atos sempre em um contínuo giro neste
religiosos era sinal de sua conversão Bispado, lançando as perniciosas
ao cristianismo. (SCARANO, 1978, p. redes de suas danças que chamam
batuques, nas quais redes tem havido
82) tantas almas continuamente, e para
Todavia, aqueles indivíduos se que tudo se extinga, estas e
aproveitavam da ocasião também semelhantes danças, mando com
para brincar, e essas brincadeiras pena de excomunhão maior que
pessoa de qualquer qualidade,
não eram bem vistas pelas condição e estado que seja não
autoridades. Ao longo do século XVIII admitam em suas casas ou fazendas,
mineiro, bem como em outros nem as façam nem a elas assistam.
tempos e espaços do Brasil (AEAM, Disposições Pastorais, 1756,
cód. F. 22 e W-3, f. 18v)
escravista, uma série de documentos
foram produzidos testemunhando a
intolerância em relação aos Tanto um agente eclesiástico
batuques. quanto outro, como é possível
perceber em seus discursos,
Na década de cinqüenta do
período em questão, vários pretendiam “extinguir” os batuques,

43
por verem neles manifestações a mesma pena terá o dono ou dona
da casa em que fizerem as ditas
diabólicas e atitudes supersticiosas. danças (Apud. CAMPOLINA, 1978, p.
Porém, de acordo com suas próprias 73)
constatações, tais eventos tinham
poder de seduzir as pessoas, a ponto Durante as primeiras décadas
de participarem deles “tantas almas do século XIX, o batuque ainda se
continuamente” em todo o Bispado, fazia presente na paisagem colonial,
de forma que extingui-los não seria ecoando os sons de seus tambores
tarefa fácil, pelo fato de a Colônia como um brilho fugaz no escuro da
estar abarrotada de escravos noite, dessa vez chamando também
(sobretudo nas Minas Gerais) e por a atenção dos viajantes, em cujos
causa do caráter improvisado discursos sua essência (lazer e
daquelas manifestações, que exaltação da festa) não encontrou
poderiam ocorrer em diversos ressonância favorável. Auguste de
lugares onde a ordem nem sempre Saint Hilaire, em sua Viagem pelas
podia se fazer presente. Províncias do Rio de Janeiro e Minas
Além desses agentes, alguns Gerais, por exemplo, após ter
altos funcionários da Coroa observado vários batuques, concluiu
portuguesa também procuraram que uma significativa parcela
coibir aquelas reuniões que os negros daquelas populações “sem nenhum
organizavam para dançar e tocar inconveniente se entregam a essa
seus instrumentos. No tempo do indolência tão natural nas regiões
Governador José Antônio Freire de situadas entre os trópicos, (...) não
Andrade, “as pequenas festas que os conhecem outra espécie de
negros, mulatos e carijós realizavam divertimento além da dança que a
nos domingos e dias santos deveriam decência mal permite mencionar, e
ser dispensadas por rondas de seis que, no entanto, se tornou quase
homens e um sargento, os quais nacional”. (Apud. FIGUEIREDO,
deveriam apreender seus tambores”. 1993, p. 173)
(SOUZA, 1982, p. 161) Tais discursos, ainda que
Ao julgar pela organização das produzidos por agentes sociais
fontes, que permitem conhecer um diferentes, convergem para o mesmo
pouco os discursos do Estado em ponto: a reprovação aos batuques,
relação aos batuques, elaborada pelo do ponto de vista da moral religiosa
Arquivo Público Mineiro, percebe-se o (discurso da Igreja), da segurança
quanto foi recorrente a preocupação pública (discurso do Estado) e do
em vigiar tais eventos da população julgamento cultural (discurso dos
pobre da Capitania do ouro e dos viajantes). Isso ocorreu apesar de
diamantes ao longo do século XVIII. alguns senhores, e mesmo alguns
(APM, 1992) Ainda no final dessa jesuítas (como Antonil), terem
centúria, a Câmara de Vila de São entendido ser necessário tolerar
José, em edital lançado em 1799, aquelas manifestações para o bem da
determinou que própria ordem, pois a dominação
sobre os seus subordinados não se
são tão bem proibidas as infames e
fazia sem negociar com eles algumas
perniciosas danças que chamam
batuques, feitas em público ou em contrapartidas.
particular, de dia ou de noite, como Não obstante à intolerância
opostos que são aos dogmas de das autoridades coloniais, fossem
Nossa Santa Religião e moral pública,
e pelas terríveis conseqüências que
elas eclesiásticas ou governamentais,
repetidas vezes têm acontecido com o batuque produziu suas marcas na
tão desonesto brinquedo: toda a cultura brasileira e hoje é uma de
pessoa de qualquer sexo, qualidade suas principais características, tanto
ou condição será presa por dez dias;
na dança quanto na música. O fato
44
de tal manifestação não ter Brincar o cuncumbi. (Apud. BASTIDE,
1971 p. 172)
sucumbido aos discursos da ordem
pode estar relacionado à importância O Divino Espírito Santo
que o folguedo tem na vida humana, É um grande folião
de forma que nem no cativeiro (nos Amigo de muita carne
Muito vinho e muito pão. (Apud.
períodos de pausa de suas jornadas)
REIS, 1991, p. 67)
os negros abriram mão de vivenciá-
lo, fazendo dele um breve, mas Pode-se concluir que as festas
fecundo momento de reinvenção da devocionais das associações
própria existência naquela sociedade religiosas de escravos e libertos eram
que deles havia furtado a liberdade.
vivenciadas de várias maneiras:
Essa exaltação do desejo de devoção, reforço das relações de
viver, mesmo que em boa parte do solidariedade, disputa por cargos de
tempo as atividades fossem prestígio das irmandades,
dedicadas às obrigações do cativeiro, (re)construção de identidades e
pode também ser percebida nas diversão. Essa última vivência
cantigas que os negros entoavam ocorria, sobretudo, após as
durante suas festas. Várias delas são cerimônias oficiais da festividade
vivenciadas ainda hoje nas ocasiões (mastro, missa e procissão), quando
de homenagens lúdicas às devoções a sua face mais profana (a
do Rosário, de São Benedito e do comilança, a bebedeira e a batucada)
Divino praticadas em várias partes do
varava a boca da noite.
Brasil, como apuraram alguns Enfim, as irmandades
folcloristas: religiosas possibilitaram aos negros a
elas associados um espaço
Virgem do Rosário, Senhora do
mundo... privilegiado de sociabilidade, que lhes
Dê-me um côco d’água, senão vou ao permitiram construir um mundo
fundo! próprio, com certa autonomia, no
Virgem do Rosário, Senhora do
qual puderam, mesmo sob a
norte...
Dê-me um côco d’água, senão vou ao condição de escravo ou de liberto,
pote! (Apud. BASTIDE, 1971 p. 172) reinventar sua existência e, mesmo
dentro da ordem e sob a vigilância da
Meu São Benedito
Igreja, vivenciar alguns fragmentos
Venho te pedir de liberdade, cuja maior expressão
Pelo Amor de Deus foram as suas festas devocionais.

Fontes
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- Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Barbacena, 1809,
cod. 35.
- Compromisso da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Santa Bárbara,
cód. X-16, 1809.
- Disposições Pastorais, 1753, cód. F. 22 e W-3.
- Disposições Pastorais, 1756, cód. F. 22 e W-3.
- Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Casa Branca, 1726, cód. J. 37.

45
- Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Guarapiranga, Atas e Termos de
Eleição, 1758-1803, cód. Y.12.
- Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de Sumidouro, 1750-1815.

Arquivo Público Mineiro (APM) – Minas Gerais


- Livro de Portarias do 1º Governo Provisório, SP 2, 1822.
- Registros Judiciários do 1º Governo Provisório, JGP. 1/6, SP, 1822, cx. 1.
- Repertório de fontes sobre a escravidão, 1992.

Referências
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BASTIDE, Roger. As religiões negras no Brasil. São Paulo: Pioneira; Edusp, 1971.

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CAMPOLINA, Alda Palhares. A escravidão em Minas Gerais. Belo Horizonte:


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EUGÊNIO, Alisson. Fragmentos de liberdade: as festas religiosas das irmandades


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46
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SOUZA, Marina de Mello e. Reis negros no Brasil escravista. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 2002.

47
IMAGENS AMBÍGUAS: A scenes. In that sense, the photographic
ESCRAVIDÃO E O CIVILIZATÓRIO speech directed to foreigners was a
NO BRASIL IMPERIAL reflection of our own contradictions.
1
Keywords Graduado em Ciências
Slavery; Second Empire; Photography. Sociais pela
Marcelo Eduardo Leite1 Universidade Estadual
Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, câmpus
de Araraquara (UNESP).
Resumo Mestre em Sociologia
INTRODUÇÃO
pela UNESP. Doutor em
O presente artigo tem como objetivo Multimeios pela
discutir aspectos da expansão da No dia 23 de dezembro de Universidade Estadual
fotografia no Brasil, sobretudo a 1839, ancorou no Rio de Janeiro o de Campinas
influência que exerceram sobre a navio-escola L’Orientale e, com ele, (UNICAMP). Professor
da Universidade Federal
mensagem civilizatória pretendida pelo chegou às terras brasileiras uma do Cariri (UFCA), em
Segundo Império. A necessidade de missão que tinha como objetivo Juazeiro do Norte, no
afirmação da viabilidade econômica difundir os conhecimentos e as Ceará. E-mail:
encontrou na fotografia uma ferramenta marceloeduardoleite@g
técnicas conquistadas. (KOSSOY,
indispensável para sua propagação. mail.com
Inicialmente, as paisagens
2002, p. 110) Por conta disso, o
predominavam, enfatizando vistas das daguerreótipo2, suporte fotográfico 2
Inventado por Louis
cidades, ferrovias e grandes obras, sob o pioneiro, foi exibido publicamente na Daguerre e apresentado
cidade no dia 17 de janeiro, sob a publicamente em 1839,
intuito de construir um discurso que
o daguerreótipo
incluía o país no contexto da tutela do abade Louis Compte. consistia numa fina
modernidade. Contudo, a difusão da (FERNANDES JUNIOR; LAGO, 2000, placa metálica coberta
imagem fotográfica culminou na p. 17) Esse acontecimento, por sais de prata, e que
exploração de outros aspectos da cultura considerado pelos estudiosos como davam origem a uma
brasileira, tais como nosso lado única fotografia.
sendo o primeiro registro fotográfico
‘selvagem’ e até mesmo cenas da
escravidão. Nesse sentido, o discurso
da América do Sul, ocorreu em três
fotográfico voltado aos estrangeiros era pontos da capital imperial, sempre
um reflexo de nossas próprias com a presença de D. Pedro II, então
contradições. com 13 anos de idade. (KOSSOY,
1980, p. 17) Poucos meses depois,
Palavras chave ele foi aclamado por uma multidão de
Escravidão; Segundo Império; 8.000 pessoas, assumindo o trono
Fotografia. após o ‘golpe da maioridade’. Ao
novo imperador cabia a missão
Abstract
primordial de criar uma identidade
This article has the objective of política e cultural para o país.
discussing expansion aspects of Assim, essa demonstração
photography in Brazil, mainly the pública oficializou o início da história
influence that they had on the civilizing da fotografia no Brasil e fez parte de
message intended by Second Empire. um projeto político e ideológico no
The necessity of asserting economic qual a imagem teve papel
practicability had found on photography fundamental. Aqui, o daguerreótipo
an essential implement to its spread.
encontrou um ambiente com
Initially, the landscapes were prevalent,
emphasizing views of cities, railroads
características bem diferentes das
and large works, in order to build a europeias. Na inauguração do
speech that included the country in Segundo Império, o país tinha uma
modernity context. However, the sociedade dividida basicamente entre
diffusion of photographic image o aparato imperial, a aristocracia
culminated on exploration of other rural e a mão de obra escrava. Se,
aspects from Brazilian culture, as such por um lado, observava-se uma
as our ‘wild’ side and even slavery
48
estrutura agrária tradicional, que uma conexão ágil e constante,
herdou da época colonial uma permitindo a assimilação de
estrutura socioeconômica particular; informações acerca do
por outro, novos valores e modismos desenvolvimento da fotografia.
se difundiram no país, sobretudo, Segundo levantamento de
através das elites que viajavam Boris Kossoy (2002, p. 26), no Brasil
frequentemente para o continente da década de 1850, o número de
europeu. profissionais já havia triplicado,
Os primeiros profissionais a se somando cerca de noventa em
radicarem eram oriundos, atividade (sendo de nacionalidade
principalmente, da Europa: Hoffmann brasileira apenas um terço deles). O
& Keller, Henry Schmidt, o suíço país, neste período, encontrava-se
Abraham Louis Buvelot e o dividido entre as cidades portuárias –
estadunidense Augustus Morant, como Salvador, Recife, Belém,
estão entre os pioneiros. (KOSSOY, Maceió, São Luiz e, é claro, Rio de
2002, p. 335) Acomodados nos Janeiro – e o interior em que, mesmo
principais hotéis da cidade, eles nas zonas urbanas, preponderavam
prestavam serviços à família estruturas coloniais. Porém, quase
imperial, inicialmente. Estes metade dos fotógrafos estava na
fotógrafos, na sua maioria, vieram ao capital imperial.
Brasil fugindo da saturação do Devemos considerar que,
mercado fotográfico nos seus países nessa época, a população brasileira
de origem, e, muitos deles era inferior a 7 milhões de habitantes
retornaram à terra natal após e, deste total, aproximadamente 2,5
ganharem aqui algum dinheiro. milhões eram escravos. As áreas de
(FERREZ, 1953, p. 8) maior concentração populacional
Torna-se conveniente eram as da costa brasileira. Em um
assinalarmos que, principalmente por primeiro momento, o
questões econômicas, é incomparável desenvolvimento do uso do
o desenvolvimento da fotografia no daguerreótipo ocorreu nas áreas
Brasil com aquele experimentado na portuárias, refletindo a realidade de
Europa, pois não ocorreram de forma um país colonizado e inteiramente
simultânea. Contudo, outro fato a ser voltado para um modelo exportador
enfatizado vincula-se à inegável de produção, cujas origens estão no
qualidade da produção feita no Brasil passado colonial.
durante a segunda metade do século
XIX. Além disso, a literatura mostra
que a incorporação das inovações na IMAGENS DO PROGRESSO NOS
área foi bastante rápida, quando se TRÓPICOS
deu a chegada de materiais,
procedimentos e novas técnicas. Ao se desenvolver, a
Alguns fatores contribuíram fotografia manteve relação estreita
para esta rapidez da difusão dos com o aparato imperial. O primeiro
processos fotográficos em nosso país. cliente dos fotógrafos que aqui se
Primeiramente, o fato de que a instalaram foi D. Pedro; ele era
maioria dos fotógrafos pioneiros apaixonado pela imagem fotográfica,
atuantes no país era europeia. Uma ao contrário das aristocracias
vez instalados, os profissionais europeias que a consideravam como
tinham contato direto com seus uma ‘imagem burguesa’ e ainda viam
pares, indo ao velho continente ou a pintura como ‘verdadeira’ forma de
mantendo correspondência com seus registro. Deste modo, o imperador
países de origem. Isso proporcionava
49
aliou a sua imagem ao significado vocação museologizante dos
moderno da fotografia. símbolos de nossa identidade. Dentre
Os registros fotográficos os materiais expostos nos estandes
tornaram-se responsáveis pelo montados pelo Brasil nas exposições,
reconhecimento do Brasil mundo ganharam destaque os que
afora, atingindo os locais mais mostravam a diversidade do Império:
distantes. Em variadas regiões, os vistas das principais cidades,
profissionais se colocaram a serviço imagens de índios e escravos,
de um Império preocupado em imagens da família imperial e de seus
mostrar ao mundo sua almejada palácios.
solidez. Sistematicamente, a família A via predominante por onde
Imperial foi retratada pelos a fotografia era expressa nas
fotógrafos da cidade do Rio de exposições universais apontava “para
Janeiro, de Petrópolis e também por a via do exótico, do pitoresco e de
aqueles dos locais por onde o suas variadas representações
imperador passou. simbólicas: natureza exuberante,
A maior parte do material povos indígenas, costumes
disponível mostra registros que extravagantes, cenários bucólicos,
tiveram preocupação de projetar a riquezas inexploradas, estágios pré e
ideia de civilização nos trópicos. pós-civilizatórios de convívio social”.
Essas fotografias, em geral, foram (TURAZZI, 1995, p. 119)
exibidas em grandes exposições na As imagens do Brasil, dos
Europa: as Exposições Universais, primórdios do Segundo Império,
onde o Brasil marcava presença fixadas pelas litografias, pinturas e
expondo suas características daguerreótipos tiveram a
particulares. Tais eventos eram preocupação de projetar a magnitude
fundamentais para a troca de das obras aqui desenvolvidas, como
informações a respeito das mais ferrovias e construções
distantes localidades e para a arquitetônicas. Na segunda metade
solidificação da nossa imagem na da década de 1850, novos suportes
Europa. são difundidos em nosso país, como
Maria Inez Turazzi (1995), ao o uso do negativo de colódio úmido e
discutir os ‘produtos’ expostos nos do papel albuminado, permitindo,
estandes brasileiros das Exposições enfim, a confecção de cópias e de
Universais, salienta a existência de ampliações fotográficas. Tais
um descompasso das imagens imagens se caracterizaram pelo
egressas do Brasil se comparadas desenvolvimento de um olhar mais
com as de outras nações mais ligado ao futuro do império do que ao
desenvolvidas. A autora observa que passado colonial. Por conta disso, são
os artigos brasileiros pareciam comuns os registros de obras de
enviados a um museu, e não a um diversas áreas, como na Figura 1,
local cujo objetivo principal era feita no ano de 1868, de autoria de
promover futuras trocas comerciais. Augusto Riedel e que retrata uma
O fato é que as imagens e jazida de diamantes em Minas
produtos do Brasil não estavam, na Gerais. Esta imagem denota a
verdade, em sintonia com a lógica do capacidade do Império em lidar com
mercado internacional, mas, sim, a as potencialidades locais, elemento
serviço da lógica política da básico de transformação de um lugar
construção da nacionalidade que tinha nos recursos naturais seu
brasileira, na qual se manifesta uma maior patrimônio.

50
FIGURA 1

Fonte: Foto reproduzida de: LAGO, Bia Corrêa do; LAGO, Pedro Corrêa do. Os fotógrafos do Império.
Rio de Janeiro: Capivara, 2005, p. 166.

É notório que as paisagens tais imagens em concordância com


ganharam um papel muito as vontades políticas. Um dos
importante no contexto imperial, o profissionais que se destacaram,
pesquisador Pedro Vasquez alerta sobretudo pelo pioneirismo em vistas
para a carência de imagens desse urbanas, foi George Leuzinger. Ele
tipo no período colonial, pois tal fez grande quantidade de vistas do
modalidade era proibida devido ao Rio de Janeiro que foram divulgadas
temor dos portugueses em despertar nas exposições internacionais.
cobiça de outros povos por nossas Vejamos o exemplo da Figura 2, feita
riquezas naturais. (VASQUEZ, 2002, em 1865.
p. 12)
Mas no período do Segundo
Império a situação foi outra, estando

51
FIGURA 2

Fonte: Foto reproduzida de: LAGO, Bia Corrêa do; LAGO, Pedro Corrêa do. Os fotógrafos do Império.
Rio de Janeiro: Capivara, 2005, p. 104.

As imagens de Leuzinger em relação aos sistemas que as


causaram grande impacto e precederam, além de não
receberam prêmios, em especial por necessitarem de preparo na hora de
mostrar uma urbanidade do Brasil serem usadas, como seu antecessor,
pouco conhecida, enfatizando aquilo o colódio úmido.
que seria o projeto civilizatório nos Podemos dizer que elas
trópicos. Assim, ao apresentar as transformaram a fotografia de
obras em realização ou realizadas, os paisagem. Ao aumentarem a rapidez
sinais de progresso e a evolução, na obtenção do instantâneo
demarcava-se e se vendia uma fotográfico, liberaram o profissional
imagem específica do Brasil. Tornou- de transportar, junto com as pesadas
se usual a apresentação de registros câmeras e tripés, a parafernália de
que divulgavam estradas, ferrovias, produtos químicos, tendas e outros
minas e plantações. Se no início materiais necessários ao emprego
existia alguma dificuldade para fazê- dos negativos de vidro pelo processo
los, principalmente por questões de colódio úmido. Com a entrada das
técnicas, isso foi suplantado depois placas secas no mercado, o fotógrafo
que, no final da década de 1870, de paisagens ou de arquitetura
desenvolveu-se a chapa seca à base livrava-se da necessidade de manter
de gelatina. A chegada das chapas uma carroça-laboratório, a fim de
secas foi revolucionária para a época, captar imagens externas. Segundo
já que eram 40 vezes mais sensíveis Turazzi (1995) no ano de 1882 o
52
fotógrafo Alberto Henschel, no Rio de título de ‘Fotógrafo da Casa Imperial’
Janeiro, já usava as chapas secas à com o qual foram agraciados Buvelot
base de gelatina. Elas também se & Prat, Insley Pacheco, Joaquim
diferenciaram por tornarem possível Vilela, Augusto Stahl, entre outros.
o congelamento dos objetos em (SCHWARCZ, 1998, p. 353)
movimento na cena fotografada. Com relação a essa
Assim, as paisagens ganhavam seu proximidade existente entre D. Pedro
espaço como categoria fotográfica. II e a fotografia, devemos ressaltar
Devemos salientar que os que, além de aficionado, ou
retratos permaneciam como o grande justamente por isso, ele tomou
produto e, com relação a D. Pedro, medidas efetivas que levaram ao seu
cremos existir duas motivações para desenvolvimento. Exemplo desse fato
seu uso massivo: a necessidade de é a inclusão de daguerreótipos na
vender uma mensagem pessoal ao ‘Exposição Geral da Academia
estrangeiro somada à sua paixão Imperial de Belas-Artes’, no ano de
pela fotografia. Nos anos 1842. Essa atitude elevou os
subsequentes, foi introduzido no daguerreótipos a uma posição
mercado mais um avanço, o papel de privilegiada em face da pintura, e,
gelatina, que propiciou uma em termos mundiais, constitui-se
significativa simplificação do trabalho num acontecimento inovador, que
de laboratório fotográfico. corroborou com o processo de
D. Pedro II foi alvo de uma aceitação da imagem fotográfica
série de representações como legítima expressão artística.
iconográficas, sendo que muitos Estabelecendo uma
artistas oficiais, como fotógrafos e comparação, convém observarmos
pintores, tinham a incumbência de que, nas Exposições Universais, a
registrá-lo exaustivamente. Sua fotografia era inserida como ‘Material
imagem e a do Império foram e Aplicações das Artes Liberais’,
retratadas com maestria. A figura segundo patenteado pela ‘Exposição
pública do imperador, captada pelas Universal de Paris’ (1867); e
imagens, traduzia a ideia de juntamente com as ‘Artes Gráficas e
estabilidade política e social; sua Desenho Industrial’, como na
estampa, de certa maneira, ‘Exposição Universal de Viena’
metaforizava as transformações (1873). (TURAZZI, 1995, p. 237)
sociais nas quais as ciências e as Sempre vista como algo relacionado
artes tiveram lugar de destaque. A à indústria e ao comércio, e como
monarquia incipiente buscou forjar, uma aplicação prática dos
talvez, um universo de conhecimentos da física e da
representações, cujo centro radica na química, numa sociedade que se
figura do imperador. Como indicam superava a cada instante, a
diversos autores, os fotógrafos fotografia raramente era exposta
pioneiros foram de imediato entre as Belas Artes.
‘acoplados’ ao aparelho Ainda, com sobre a imagem
governamental do Segundo Império. idealizada do imperador, em algumas
Com relação à fotografia foi criado o oportunidades vê-se o empenho em
53
trabalhá-la relacionando-a, por entre escravidão, miscigenação, um
exemplo, à selva tropical. Assim, projeto civilizador de sentido
construções cênicas utilizando europeizante, personagens tropicais,
plantas conferiam a D. Pedro II uma cenário urbano emergente, elites
característica única: a de monarca agrárias, índios, etc., não parece
dos trópicos. Ao mesmo tempo, descabido que todos os elementos da
muitas composições o apresentam nação façam parte do processo de
postando livros, sinalizando sua ‘construção imagética’, do jogo de
conhecida erudição. representações que a fotografia
O imperador e seus familiares permite explorar. Observamos, passo
consumiam fotografias de todo tipo, a passo, a escolha dos fotógrafos
desde as mais caras, feitas em pioneiros por componentes não
tamanho natural e fotopinturas, até diretamente ligados ao projeto
as mais baratas, como a carte de modernizador e civilizador da
visite e a carte cabinet, que vinham monarquia; tal opção implica na
coladas sobre cartões e mediam 5 x exposição das contradições do país
9 centímetros e 9 x 15 centímetros, nesta trama de representações, pois
respectivamente3. as imagens divulgaram tanto as 3
Criadas em 1854 pelo
É importante lembrar que, obras modernizadoras, quanto o francês André Disderi,
as cartes de visite
nesse período inicial, embora a perfil selvagem de um país tropical. É foram revolucionárias
fotografia tivesse ampliado o caso das imagens que vendem a por permitirem, por
meio de um sistema de
gradativamente seus espaços, o escravidão enquanto algo exótico, lentes múltiplas,
acesso aos profissionais ainda como veremos a seguir. retratos feitos em
grande quantidade, em
limitava-se aos grandes produtores lotes de doze ou mais
rurais das áreas próximas à capital e imagens iguais. As
à elite imperial, que podiam contratar FOTOGRAFIAS DE UM BRASIL cartes cabinets também
são fotografias sobre
os serviços dos fotógrafos pioneiros. PITORESCO cartão, porém são
Havia casos nos quais as imagens maiores e tiveram uma
popularização muito
eram feitas por meio da peregrinação A vertente ligada à menor.
de alguns fotógrafos, que se modernidade na fotografia brasileira,
deslocavam em busca de clientela, com registros de ferrovias, vistas
indo às fazendas oferecer os seus urbanas e paisagens, contribuiu
serviços. Assim, é possível encontrar profundamente para a formação de
um grande número de registros que um discurso sobre o Brasil. Mas é
mostram estas famílias e suas fundamental reconhecer que outro
respectivas propriedades, exaltando tipo de mensagem também teve
as potencialidades das lavouras, importância na construção imagética
sobretudo as cafeeiras. Entretanto, da nação: são aquelas que
com as cartes de visite, alguns apresentam características tidas
seguimentos urbanos entraram nesse como pitorescas ou exóticas. Tais
jogo de representação. imagens mostravam aspectos de um
A fotografia, paulatinamente, país selvagem, especialmente seus
vai registrando as múltiplas facetas índios, evidenciando um perfil nada
da nação. Assinalamos que numa moderno; além disso, lançavam luz
monarquia marcada pelo convívio
54
sobre a maior das nossas que contempla em seu trabalho
contradições, a escravidão. várias vertentes, ora retratando
Esses temas eram abordados edifícios e obras, ora registrando
pelos mesmos profissionais que índios e negros; em alguns casos
realizavam retratos da clientela juntando ambos em uma
urbana, que faziam vistas ou, até composição, colocando as imagens
mesmo, fotografias da família num cartão, como na Figura 3,
imperial. Marc Ferrez é um exemplo datada de 1885.

FIGURA 3

Fonte: Foto reproduzida de: FERNANDES JUNIOR, Rubens; LAGO, Pedro Corrêa do. O século XIX na
fotografia brasileira. Rio de Janeiro: Editora Corrêa do Lago, 2001, p. 49.

Possivelmente, esta Se tais aspectos já tinham


montagem foi realizada por meio da poder de projeção da imagem
utilização de material que Ferrez já nacional, por meio das Exposições
tinha em seu acervo, parte dele Universais, agora elas também
advindo de uma expedição à Bahia, ganhavam importância ao circular
feita em 1876. Aqui, ao compor o pelas mãos dos viajantes que nos
exotismo nacional num mesmo visitavam e que levavam em suas
produto, o fotógrafo coloca o índio e bagagens representações capazes de
o negro lado a lado. Assim, Marc inferir uma interpretação acerca do
Ferrez evoca os elementos tomados nosso país. Ao analisar os trabalhos
como peculiares do país em seu dos primeiros fotógrafos atuantes no
conjunto, ofertando aquilo que tanto Brasil, Gilberto Ferrez menciona que,
interessa aos estrangeiros. paralelamente à prestação de

55
serviços ao imperador e à elite contemplada por meio de um olhar
cafeicultora, os fotógrafos buscam sintonizado com o pensamento
novos temas, participando, inclusive, eurocêntrico; a junção entre os índios
de importantes expedições e os negros evidencia, deste modo,
etnográficas pelo interior do território um pacote de preciosidades locais.
brasileiro. (FERREZ, 1953, p. 100) O Demonstrativos não só da presença
autor reproduz em seu livro uma do ‘selvagem’ em terras brasileiras,
passagem do Jornal do Comércio, mas também de um universo no qual
datada de 1876, que reitera este aquele que é visto como inferior está
fato: “De volta de uma expedição da submetido a um processo
costa da parte sul da província da civilizatório.
Bahia chegaram ante-ontem de Como vimos, nas décadas de
Caravelas, os ajudantes desta 1860, 1870 e 1880, as
comissão, os Srs. Rathburn e Ferrez, transformações técnicas foram
trazendo coleções muito importantes constantes, mediaram de forma
e uma rica série de fotografias, entre gradativa a abertura na produção
as quais há grande número de fotográfica, favorecendo que se
retratos Botocudos”. (FERREZ, 1953, registrassem alguns aspectos da
p. 99) diversidade social do Brasil. Assim,
Na citação, vemos o quanto percebemos que a atmosfera na qual
era importante para aquela sociedade a carte de visite se projeta é peculiar.
a chegada de profissionais oriundos Esse processo da difusão da
das mais distantes províncias do fotografia para um número maior de
Império, e traziam uma parte do indivíduos vincula-se, principalmente,
Brasil ‘selvagem’. Segundo Pedro à instalação de ateliês fotográficos
Vasquez, outro fato relevante que se em locais nos quais eles não
refere a essa incursão imagética existiam. Portanto, instaura-se um
remete à presença, pela primeira fenômeno que cria outro contexto,
vez, de um fotógrafo na ‘Comissão onde diferentes percepções acerca de
Geológica do Império’. (VASQUEZ, nossa sociedade fluem.
2002, p. 12) Essa circunstância A partir da produção de café
configura-se, também, como a vemos um momento de maior
primeira oportunidade para crescimento econômico que conduz a
fotografar os índios botocudos. novas relações sociais. Segundo Boris
Nesse sentido, pontuamos que Kossoy, na década de 1860, o país
os trabalhos desses fotógrafos passou a ter aproximadamente 200
permitem que a população dos profissionais em atividade; pouco
centros urbanos tenha contato com menos da metade deles, se
as ‘entranhas’ da nação. A fotografia instalaram na capital imperial.
assume, então, um papel importante (KOSSOY, 2002, p. 28) Já o Almanak
na condensação do espaço geográfico Laemmert divulga que, no ano de
de um país continental. Por um lado, 1867, atuava no Rio de Janeiro um
facilitando que ele se dê a conhecer total de 28 fotógrafos, sendo que, 10
através dessas imagens. Por outro, anos depois, o número já era de 37
formalizando uma imagem a ser profissionais. Além do Rio de Janeiro
56
e da província de São Paulo, as Com o espaço dos ateliês
cidades litorâneas, como Recife, disponíveis, a sociedade brasileira se
Salvador, Fortaleza, Belém e São insere numa lógica de produção de
Luis, concentravam a maior parte dos imagens que reflete suas próprias
ateliês. contradições. Notamos que o advento
As regiões mais distantes ou da modernidade está colocado ao
cidades de menor porte eram lado dos resquícios do período
visitadas por alguns fotógrafos colonial. Tecnologias avançadas, tais
itinerantes que, esporadicamente, como a ferrovia, o navio a vapor e a
partiam em busca da clientela. Essa própria fotografia, se chocam com a
prestação de serviço se dava de duas retrógrada prática escravista. Diante
maneiras: visitando as fazendas ou das câmeras, tal realidade é
instalando-se temporariamente nas representada, explicitada ou
vilas, por ocasião de festividades. camuflada pelo ato fotográfico.
Aos poucos, a fotografia vai A concorrência entre os
ganhando espaço e vários fotógrafos aumenta e, sem dúvida, a
profissionais adéquam-se ao ritmo do busca por novos produtos é uma
crescimento econômico. oportunidade de viabilização
Essa procura pela econômica. Assim, o mercado de
autorrepresentação encontra na sala imagens relativas à nação brasileira,
de poses, a exemplo do ocorrido na sobretudo aquelas voltadas ao
Europa, o local para afirmação da público estrangeiro, fez com que
nova realidade social. Nela são muitos deles viessem a produzir
retratados, entre outros, o jovem fotografias que difundiam a imagem
cafeicultor, o profissional liberal, o dos negros que aqui viviam, são as
militar, o indivíduo oriundo da elite imagens de tipos populares. Foram
agrária, todos inseridos em um novo realizadas séries que deram atenção
universo que simboliza o progresso à diversidade étnica e aos aspectos
tecnológico ou variadas formas de da vida desta população em cidades
demonstração de status. No campo, como Belém, Recife, Salvador e Rio
a diferenciação entre as oligarquias de Janeiro.
rurais e os trabalhadores da Havia também as fotografias
produção agrícola, livres ou não, está de busto, que tinham ainda a função
menos demarcada: nota-se aí outro de mostrar diferenciações relativas
tipo de permeabilidade entre as aos negros retratados. O objetivo era
classes sociais. Isso pode ser claro, vender a imagem pitoresca ou
creditado, em parte, ao isolamento exótica para aqueles que tinham esse
geográfico das regiões interioranas, tipo de interesse. Tradição imagética
que acabam por congregar anterior à fotografia, já que vários
segmentos variados da população em artistas fizeram pinturas e desenhos
eventos e espaços sociais comuns. com tal finalidade, como Thomas
Os que residem no interior buscam Ender, Jean-Baptiste Debret e Johann
parecer com aqueles que residem na Moritz Rugendas. (BRIZUELA, 2012,
capital, e os da capital, com os que p. 136).
vivem na Europa.
57
Vejamos os exemplos das Benque, foram realizadas,
Figuras 4, 5 e 6. As duas primeiras respectivamente, nas cidades de
são de autoria de Alberto Henschel, e Salvador, Recife e Rio de Janeiro,
a terceira do ateliê de Henschel & todas na década de 1870.

FIGURA 4

Fonte: Foto reproduzida de: ERMAKOFF, George. O negro na fotografia brasileira do século XIX. Rio
de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial, 2004, p. 178.

FIGURA 5

Fonte: Foto reproduzida de: ERMAKOFF, George. O negro na fotografia brasileira do século XIX. Rio
de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial, 2004, p. 181.
58
FIGURA 6

Fonte: Foto reproduzida de: ERMAKOFF, George. O negro na fotografia brasileira do século XIX. Rio
de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial, 2004, p. 190.

As fotografias de busto, nas imagem do ‘escravo’ e não


quais fica evidenciado o traço físico necessariamente do brasileiro negro
do retratado, foram feitas por vários ou do africano no Brasil. Devemos
fotógrafos como, por exemplo, considerar que alguns dos retratados
Augusto Stahl, Alberto Henschel e possam ser alforriados, porém, essa
Christiano Júnior. Coladas sobre associação do liberto com o escravo
cartões, elas “eram fartamente não é uma mera questão de
consumidas por colecionadores, identificação daquilo que está contido
estudiosos ou turistas, que as na imagem. É fundamental observar
adquiriam como lembranças curiosas que o negro alforriado não tinha uma
ou como cartões postais a serem liberdade plena, ficando de forma
enviados a amigos e parentes”. sistemática submetido a uma série
(KOUTSOUKOS, 2010, p. 119) Sua de condições.
pequena dimensão e o fato de serem Essa dualidade das imagens
dispostas sobre um cartão permitiam em questão dialoga com o marcante
o fácil envio pelos correios. quadro da escravidão negra até fins
Ao ver tais imagens, em um do século XIX e, também, com a
primeiro momento, o observador as tênue diferença entre cativos e forros
associa à escravidão, mesmo nesse período. Segundo Mattoso, a
desconhecendo a real condição dos linha divisória entre aqueles que
retratados. Evidentemente que esse ainda eram escravos e os que já
é o objetivo do fotógrafo, que busca tinham conquistado liberdade era
uma representação sustentada pela muito pequena. (MATTOSO, 2003, p.

59
206) A gama de condições impostas (MATTOSO, 2003, p. 207) Isto posto,
nos casos de emancipação era vasta, devemos reconhecer que, assim
sendo comum a existência de como que o liberto se posiciona
cláusulas que, em muitos casos, acima daqueles que permanecem
geravam até dívidas e escravos, ele, mesmo forro, se
desembocavam, por exemplo, na mantém abaixo do senhor, que sobre
prestação de serviços ao senhor por ele conserva variadas formas de
vários anos, condicionando-os à dominação.
obrigatoriedade de obediência ao seu Outras imagens feitas na
antigo proprietário. época e que vendiam aspectos da
Da mesma maneira, para sociedade brasileira são as que
aqueles que obtinham tal liberdade, apresentam os escravos ‘de ganho’,
desvincularem-se dessas garantias ou seja, aqueles que faziam das ruas
de moradia, alimentação e trabalho, das cidades seu espaço de trabalho.
significava uma situação de total Esse foi, sem dúvida, um dos
insegurança. Nos termos de Mattoso, aspectos que mais chamaram a
é notório “que o escravo liberto tem atenção dos visitantes estrangeiros.
geralmente plena consciência das Vejamos os exemplos das Figuras 7,
armadilhas que a nova identidade lhe 8 e 9, respectivamente de autoria de
prepara. Sabe o risco de morrer livre Marc Ferrez, Rio de Janeiro, 1875; de
e pobre, de viver livre mas indefeso, Felipe Augusto Fidanza, Belém do
porém preferiu esse tipo de liberdade Pará, 1870 e de Christiano Júnior, Rio
à escravidão bem protegida”. de Janeiro, 1860.

FIGURA 7
Fonte: Foto reproduzida de: ERMAKOFF, George. O negro na fotografia brasileira do século XIX. Rio
de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial, 2004, p. 139.

60
FIGURA 8

Fonte: Foto reproduzida de: ERMAKOFF, George. O negro na fotografia brasileira do século XIX. Rio
de Janeiro: G. Ermakoff Casa Editorial, 2004, p. 147.

FIGURA 9

Fonte: Foto reproduzida de: AZEVEDO, Paulo Cesar de; LISSOVSKY, Mauricio (Org.). Escravos
brasileiros do século XIX na fotografia de Christiano Jr. São Paulo: Ex Libris, 1988, p. 66.

61
O mergulho nesse universo foi nas ruas. Assim, as imagens
feito por vários fotógrafos, além “tentavam seguir o ideal de uma
destes aqui apresentados, podemos Corte que se pretendia modernizada,
citar outros profissionais como João civilizada”. (KOUTSOUKOS, 2010, p.
Goston e Rodolpho Lindemann, na 122)
Bahia e Revert Klumb e George Segundo Reis (2000) na
Leuzinguer, no Rio de Janeiro. Tais segunda metade do século XIX,
trabalhos evidenciam algo que se via surgem algumas atividades mais
nas ruas, a presença marcante de especializadas entre os escravos
uma multidão de negros executando como carpinteiros, ferreiros,
os mais variados ofícios. Atentos a barbeiros, marceneiros, padeiros,
isso, os fotógrafos usavam seus entre outros. Destes, alguns tinham
artifícios técnicos com a preocupação um espaço fixo no qual ficavam,
de montar a cena da mesma forma outros eram obrigados a passar o dia
como faziam com as fotografias em busca de clientela. Por outro lado,
tiradas dos homens livres. Inclusive, essa aparente ‘liberdade’ estava
acreditamos que contavam com a condicionada à entrega do ganho que
colaboração dos escravos na nada mais era que a quantidade de
ordenação dos elementos cênicos, dinheiro que devia ao seu senhor.
embora a realidade transposta fosse “Acordos, conveniências, concessões
muito conhecida dos fotógrafos, que e pactos faziam parte do cotidiano de
conviviam com ela cotidianamente, senhores e cativos nas cidades”.
pois a mesma era fundamental para Porém, no caso do escravo não
o funcionamento da cidade. Sobre cumprir sua parte do acordo, este
isso escreve Soares, “Os escravos seria incriminado, tornando-se um
que vendiam verduras, frutas, procurado pela polícia. (ARAÚJO et
legumes e ovos, também chamados alii, 2006, p. 79)
quitandeiros, levavam suas A maior parte das localidades
mercadorias em grandes cestos tinha em suas ruas os escravos
abertos e carregados à cabeça, executando diversos trabalhos,
enquanto os vendedores de aves assim, as realidades representadas
preferiam carregá-las à cabeça com nessas imagens mostram algo muito
cestos com tampa.” (SOARES, 1988, ligado à realidade da sociedade
p. 113) brasileira do século XIX. Nelas, os
Estes produtos eram escravos “desenvolviam as mais
propriedade de indivíduos que tinham diversas modalidades de comércio
chácaras e sítios nos arredores do ambulante, carregando suas
centro, e que com o uso da força mercadorias em cestos e tabuleiros à
escrava faziam o abastecimento da cabeça, ou transportavam, sozinhos
cidade. ou em grupos, os mais variados tipos
As fotografias, todas de carga”. (SOARES, 1988, p. 108)
realizadas em estúdio, permitem uma Uma vez retratadas em fotografias
organização dos objetos e, de certo sobre cartões, eram um atrativo para
modo, uma limpeza cênica que os visitantes estrangeiros, que as
provavelmente não era encontrada
62
reconheciam como extremamente processo civilizatório. As paisagens
pitorescas e as socializavam. podiam ser mais bem ordenadas,
possibilitando que o enquadramento
compusesse uma cena que
CONSIDERAÇÕES FINAIS apresentava um ângulo de visão mais
amplo, e, posicionando o recorte de
As fotografias que projetavam acordo com os anseios implícitos no
a imagem do Brasil para o público de projeto vigente. O advento dos
outras nações do século XIX retratos de tipos populares ou
transitavam entre aquelas que exóticos, ao atender uma demanda
buscam evidenciar a viabilidade do comercial universal, acaba por
Império nos trópicos, e as que, por produzir um conjunto de fotografias
uma série de questões, exibem relativas ao período que aponta para
algumas das contradições deste uma profundidade que, a nosso ver,
mesmo projeto. A existência de um transcende as pretensões da classe
monarca ligado diretamente à dirigente da época.
produção de imagens e, ao mesmo Nesse sentido, as imagens
tempo, conhecedor das capacidades brasileiras do século XIX devem ser
que elas têm de produzir um vistas e revistas como fontes de um
discurso, permitiu que tal projeção discurso ambíguo, o qual permite
fosse incentivada de maneira pensar não só aquela imagem
enfática. Por outro lado, a expansão proposta ou imaginada oficialmente
da fotografia no país trouxe um pelas elites, mas, também, a que
número grande de profissionais que, escapa ao controle, provocando um
por sua vez, necessitaram buscar a entendimento maior que o previsto.
diversificação dos produtos por eles
oferecidos.
Nesse campo, as imagens
mostrando nossa realidade
escravocrata foram reveladas, elas se
opunham às fotografias paisagísticas
e destacavam os contrastes do

Referências

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espaços urbanos no Brasil escravista do século XIX. São Paulo: Alameda, 2006.

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VASQUEZ, Pedro Karp. A fotografia no Império. Rio de Janeiro: J. Zahar, 2002.

65
APRENDIZADO DA LIBERDADE: utilizarem uma linguagem jurídica e 1
Este texto, com
ESTRATÉGIAS DE MULHERES burocrática, seu acesso era indireto. modificações, se baseia
ESCRAVIZADAS NA LUTA PELA As leis que regiam as questões em informações
extraídas de nossa
EMANCIPAÇÃO1 escravas eram baseadas no Direito dissertação de
Romano e entendiam o escravo como mestrado As estratégias
um objeto pertencente ao seu senhor da sedução: mulheres
ou, como no latim, um Instrumentum escravas apre(e)ndendo
Lucia Helena Oliveira Silva2
a liberdade, defendida
vocale (um objeto que falava). Desse no Departamento de
modo, eles não podiam participar Educação da
Resumo diretamente das ações de liberdade e Universidade Estadual
tinham que ser representados por de Campinas
Neste texto discutimos as diversas (UNICAMP), em 1993, e
pessoas livres. A despeito disso, as que contou com o
maneiras de luta por liberdade escravas adentraram no meio jurídico patrocínio da
desenvolvidas, principalmente, pelas
e nele traçaram estratégias e lutas. Coordenação de
mulheres durante o período final da Aperfeiçoamento de
escravidão na região de Campinas, no
Muitas obtiveram a liberdade,
Pessoal de Nível
Estado de São Paulo. alcançando melhores condições de Superior (CAPES).
vida; entretanto, outras perderam
Palavras chave batalhas – jurídicas –, sendo
2
Escravidão; Gênero; Educação informal. repreendidas e/ou ameaçadas em Graduada em História
pela Pontifícia
sua integridade física. Universidade Católica
Abstract Cada espaço normatizado de Campinas (PUC-
pelas leis abolicionistas foi visto pelos Campinas). Mestre em
In this paper we discuss the various Educação pela
escravizados como uma possibilidade
ways of fighting for freedom developed Universidade Estadual
mainly by women during the final period
a mais para concretizar a sua de Campinas
of slavery in the region of Campinas, liberdade, como se pode aferir nos (UNICAMP). Doutora em
State of Sao Paulo. 150 processos que tramitaram no História Social pela
Tribunal de Justiça da cidade de UNICAMP e Pós-Doutora
em História pela New
Keywords Campinas, no Estado de São Paulo, York University (Estados
Slavery; Gender; Informal Education. na fase final do sistema escravista no Unidos). Professora do
Brasil. A cidade, enriquecida pelos Departamento de
lucros do café, na segunda metade História da Faculdade
de Ciências e Letras da
do século XIX, tornou-se importante Universidade Estadual
No Brasil, as discussões da núcleo econômico e, também, político Paulista “Júlio de
historiografia da área da história do interior paulista, com intensa Mesquita Filho”
social têm se dedicado a apontar participação na campanha (UNESP), câmpus de
Assis. E-mail:
uma variedade de lutas que abolicionista, que se desenvolvia em luciasilva@assis.unesp.b
ampliaram a tradicional noção de paralelo àqueles dinamismos. Ao r
resistência por parte dos escravos. mesmo tempo, a cidade também
Sabemos hoje que o escravo reagia tinha a péssima fama de que seus
não somente matando, fugindo ou escravos não eram bem tratados.
dando fim a própria vida, como forma Nos autos ou ações de
de resistência; mas que cada um liberdade é que observamos, com
vivenciava experiências diversificadas clareza, como as escravas
dentro do próprio cativeiro e, enfrentavam esse universo,
também, dentro do próprio sistema demonstrando aprendizagem e
sociojurídico que envolvia a destreza jurídica para burlar
escravidão. (Cf. REIS; SILVA, 1989; limitações e certas situações ao seu
MATTOSO, 1982; CHALHOUB, 1990). favor, levando-as a conseguir
As mulheres escravas liberdade. Muitas vezes, a liberdade
passaram a figurar neste universo foi comprada, depois de elas
lutando com grandes dificuldades, ingressarem na justiça, independente
pois em decorrência de os tribunais de não dominarem códigos de escrita
66
e nem poderem falar por si só, pois, muitos pesquisadores brasileiros e
por lei, não eram reconhecidas como brasilianistas norte-americanos,
pessoas jurídicas. A compra da como Frank Tannenbaum, que
alforria (carta de liberdade) foi publicou Slave and Citizen (1946), e
estabelecida em 1871, quando a Lei Donald Pierson, com Negroes in
do Ventre Livre passou a libertar as Brazil (1942), que olharam
crianças escravas nascidas a partir reflexivamente exemplos freyreanos.
daquela data e, também, criar os Além disso, sua obra tornou-se um
mecanismos para que os escravos dos livros mais reeditados no Brasil.
pudessem comprar a sua liberdade. Um de seus críticos mais
Já a Lei Saraiva Cotegipe, ou dos acirrados foi Fernando Henrique
Sexagenários, estabeleceu preços Cardoso. Cardoso publicou, nos anos
máximos para homens e mulheres de 1960, Capitalismo e escravidão no
escravizados. Na realidade, tais leis Brasil meridional, opondo-se à tese
reconheceram uma prática da “escravidão branda” e da
costumeira que existia a muito no “convivência harmoniosa das raças”,
Brasil. (CUNHA, 1986) A compra da propagadas por Gilberto Freyre.
própria liberdade, por parte do Segundo Cardoso, a escravidão
escravo, indicava que, embora no brasileira foi caracterizada pelo uso
terreno da informalidade, as de grande violência e ausência de
estratégias empreendidas tinham um tratamento mais humano como
sentido educativo importante, que afirmava Freyre. (CARDOSO, 1977,
vem sendo descortinado por p. 289) Se para Freyre a mulher
trabalhos como os desenvolvidos por escrava exercia uma inerente atração
Sônia Giacomini (1988), Silvia sobre seus senhores, sobretudo a
Hunold Lara (1988), Sidney Chalhoub mulata (temática fortemente
(1995), Eduardo França Paiva explorada pela literatura3), Cardoso 3
A ênfase das
(1995), Júnia Ferreira Furtado entendia que a miscigenação só tradições culturais das
(2001), Sheila de Castro Faria ocorria “à falta de um elemento mulheres negras e
mulatas criou um
(2001), entre outros. Mas, para que escatológico que justificasse a estereótipo muito
a historiografia pudesse reconhecer repugnância. A escrava não integrava difundido pela literatura
as estratégias e a sedução que a o bojo das relações sociais e sua de Jorge Amado. A
liberdade exerceu na vida de interação excepcional dava-se ao exploração do
estereótipo da mulata
mulheres escravizadas, foi necessário nível do físico”. (CARDOSO, 1977, p. foi estudada por:
um longo caminho. Embora houvesse 240) QUEIROZ JÚNIOR,
milhares de escravos, as pessoas Um dos pontos de 1975.
submetidas a esta condição viviam- convergência entre Freyre e Cardoso
na diferentemente, porque as era o elemento mestiço. Para o
condições de vida variavam de primeiro, o mestiço era a prova da
acordo com as condições político- convivência sem conflitos, uma vez
econômicas e das pessoas a quem que tinha melhor tratamento que os
estavam submetidas. demais e representava o elo entre a
Gilberto Freyre foi um dos casa-grande e a senzala. Para
primeiros a refletir sobre mulheres na Fernando Henrique Cardoso, a
escravidão, dedicando dois capítulos mestiçagem era um aspecto positivo,
de sua obra Casa-grande & senzala já que representava intercursos
ao assunto. Na obra discorreu sobre sexuais entre senhores e escravas e
a influência africana na vida familiar moderamento no tratamento, pois as
e sexual do brasileiro. Pioneiro nas “qualidades de pessoa humana” eram
análises sociais e usando fontes mais perceptíveis nos escravos
pouco usuais na época, como diários descendentes de senhores. Segundo
e documentos de fazenda, influenciou ele, a mulher escrava era
67
considerada coisa, mas o filho da escravas, Giacomini aponta que elas
união com o senhor, já teria seriam “sujeitos passivos”, devido à
características humanas. (CARDOSO, estrutura escravista que lhes
1977) impossibilitavam ações que não
Na década de 1970, June E. estivessem dentro da lógica daquela
Hahner desenvolveu um estudo sociedade. Assim, ao contrapor-se à
dedicado exclusivamente às mulheres ideia de escravidão “branda” e
escravas. Ela buscou entender o “benevolente”, parte do
duplo padrão da moralidade para entendimento de que houve
homens e mulheres no século XIX, e introjeção da condição de “coisa”, e
procurou aprofundar as questões da que a mulher escrava, de fato, se
mobilidade e dependência tornava uma mercadoria, agindo
econômica, identificando os grupos como tal, não esboçando nenhuma
delimitados por Freyre, ou seja, as reação, a não ser reagir dentro das
senhoras da casa-grande e a possibilidades elencadas. O trabalho
escrava. Hahner chegou a reproduzir de Sonia Giacomini faz um
algumas de suas argumentações levantamento da atuação de
citando como exemplo a escrava escravas, sobretudo no âmbito
Chica da Silva e as mulatas. doméstico, mas semelhante à leitura
(HAHNER 1976, p. 29-31) de Gilberto Freyre, que apontava o
Se historicamente as décadas campo das relações somente dentro
de 1960 e 1970 caracterizaram-se do terreno das relações patriarcais,
pela denúncia de uma situação de usando-se dos laços de compadrio,
opressão e ações de resistência, na ou da licenciosidade sexual; as ações
década de 1980 a principal por ela observadas só foram
característica foi o advento da possíveis como negação aos valores
história social com novas humanos, à submissão completa.
abordagens, trazendo à tona novos Neste mesmo período, a
grupos a serem estudados. Um dos pesquisa de Maria Lúcia B. Mott
trabalhos pioneiros que procurou destacou o papel social das escravas
pesquisar sob novo ângulo as e procurou trabalhar as ações de
mulheres escravas foi o de Sônia resistência da mulher contra a
Maria Giacomini, que buscou escravidão, centrando não só na
esmiuçar questões inerentes aos escrava, mas nas mulheres brancas,
papéis sexuais e sociais da mulher libertas, pobres e ricas. Mott
escrava no Brasil e contrapor as procurou fazer um estudo do
imagens “ideologicamente cotidiano, identificando as ações
construídas sobre a escravidão possíveis por parte delas. (MOTT,
idílica” e as “privações inerentes à 1981) Ela observou que a penetração
situação da mulher escrava”. da “ideologia senhorial” podia dividir
(GIACOMINI, 1988) as mulheres sob condição de
Giacomini identificou as escravas diferenciando a escravidão
imagens femininas mais conhecidas: doméstica da escravidão do eito.
a de vítima passiva e a de vítima Mott introduziu análises da história
provocante. Para ela, a relação social, recuperando aspectos
dominado-dominante negava cotidianos, sobretudo da
qualquer possibilidade de ganhos na escravização urbana, resgatando
vida cotidiana das escravas e tal ações até então impensadas como
situação ocorria desde sua definição forma de rebeldia.
jurídica, como de objeto, até sua Anterior ao trabalho de
autointrojeção. Ao salientar as Giacomini, a pesquisa de Mott traz
condições adversas sofridas pelas uma maior abertura nas análises
68
ligadas à história social, sendo escravizada com possibilidades de
possível observar escravas tentando barganha e negociação singulares,
agenciar sua própria vida, dentro da esfera doméstica. Para ela,
desenvolvendo ações e estratégias a vivência dessas mulheres levava a
para conseguir a liberdade. O criação de laços afetivos que
trabalho ampliou o leque de geravam modalidades de
discussões, mas se reportou a relacionamento, onde o concubinato
trabalhos historiográficos sem base e o assédio sexual ocorriam com raro
empírica. uso de violência, sendo um “caminho
Em Quotidiano e poder, Maria para aliviar a condição de escrava”,
Odila Leite da Silva Dias fez um caso não fosse possível conseguir a
estudo voltado para as mulheres liberdade. Hünefeldt demonstrou que
livres, escravas e forras na havia vantagens para os senhores
articulação de seus papéis sociais neste tipo de relação por ser
femininos e sua integração ao inclusive mais econômica. A
processo histórico. (DIAS, 1984) explicação estaria no fato da mulher
Essas mulheres estavam presentes escrava obter facilmente emprego no
no mercado de trabalho, meio urbano, embora seus dados
desenvolvendo a economia informal computem tais situações para parte
e eram identificadas como 40% da da população escrava. Em 1994,
população de São Paulo colonial, Cecília Soares defendeu dissertação
sendo em sua maioria pobres. Ainda sobre a mulher negra na Bahia do
segundo ela, boa parte dessas século XIX, onde estudou
mulheres constitui-se como chefes detidamente as atividades das
de família e eram mães solteiras, que escravas nas ruas de Salvador e as
muitas vezes não possuíam possibilidades de vida autônoma.
condições adequadas de Baseando- se em documentação
sobrevivência, permanecendo no processual e estudos clássicos como
anonimato com outros nomes. O os de Nina Rodrigues, Manuel
trabalho de Dias contribuiu para Querino e os dedicados à história
desmistificar a estrutura patriarcal social da escravidão, como os de
brasileira, onde a divisão de funções Maria Odila Dias, Kátia Mattoso e
ocorria segundo o sexo. A ausência João José Reis, ela faz uma densa
masculina permanente ou pesquisa que se tornou referência
intermitente impunha a necessidade para os estudos posteriores.
das mulheres assumirem papéis (SOARES, 1994)
“masculinos”. Eram elas que Nas últimas décadas houve
assumiam a economia de grande ampliação no campo de
subsistência e abasteciam o comércio estudos e muitas contribuições se
local e consumo doméstico trabalho somaram aos trabalhos pioneiros.
destituído de valor econômico e Gomes e Paixão (2008) fizeram um
social, modificado a partir da balanço da produção em artigo sobre
consolidação do modelo agrário de gênero e raça no período pós-
exportação. abolição, mas afirmam ainda são
Trabalhando com a vivência poucos os estudos dedicados à
latino-americana cotidiana, Christine sociabilidade de escravas, libertas
Hünefeldt estudou a relação entre africanas e de crioulas, sobretudo se
escravas e senhores, a partir da comparamos com as pesquisas
escravidão urbana no Peru. realizadas nos Estados Unidos e no
(HÜNEFELDT, 1988) Ela identificou Caribe. Os trabalhos citados até aqui
os mecanismos de inserção no indicam não ser possível pensar em
aparato produtivo, vendo a mulher uma experiência única de escravidão
69
por parte das escravas. As várias As ações de liberdade
formas de escravidão tiveram recebiam variados nomes, como
especificidades e produziram manutenção para a liberdade,
processos históricos diferenciados. arbitramento para a liberdade, ação
Se não há dúvidas de que a de libertação com pecúlio, ação de
escravidão feminina foi realizada de manumissão ou auto de libertação.
modo diferente da masculina, novas Todas estas denominações indicavam
especificidades estão vindas à tona. processos movidos pelos escravos,
Enquanto sujeitos de sua experiência por meio de uma representação
histórica, antes de serem heroínas ou legal, para se obter a carta de
vilãs, as mulheres lutaram para se alforria. Além dessas ações mais
manterem dentro das condições específicas, outras também
possíveis e para demonstrarem, em permitiram acesso à liberdade, como
um amplo processo que as educaram inventários, justificativas, ações de
para conseguir a alforria, vivências paternidades, entre outras. Para a
que agora buscaremos compreender cidade de Campinas estas ações
na escravidão da cidade de distribuíram-se em três ofícios ou
Campinas. cartórios, em um total de 157 ações
de liberdade. (ABRAHÃO, 1993, p. 6)
Outra lei que permitiu muitas
A COMPRA DA LIBERDADE ações para obtenção da liberdade foi
a Lei Eusébio de Queiroz, ou Lei dos
Ser livre sempre foi desejo de Sexagenários, de 1885, que
todo aquele que vivia sob escravidão. estabelecia os preços máximos a
Contudo, em 1871, com a Lei do serem pagos pelos escravos, segundo
Ventre Livre, criou-se um meio legal o sexo e a idade. A alforria obtida
para que o escravo chegasse à pelos escravos de Campinas, quase
liberdade, por meio da compra. A lei sempre era comprada, sendo que sua
facultava àquele que tivesse recursos maior parte foi adquira por mulheres
o direito de impetrar ação ou escravas. Assim, se a historiografia
processo judicial para a compra de faculta que nos últimos anos da
sua alforria. Como os escravos não década de 1880, a escravidão estava
eram entendidos como pessoas decadente, ela deve ser pensada à
jurídicas, estabelecia-se um luz de novas condições que surgiram
representante, chamado solicitador, para os escravos que, no caso de
que iniciava a ação, e um curador, Campinas, estavam comprando suas
que o representaria durante todo o cartas de alforria. Como ilustração
processo. O senhor era então deste contexto, vale a indicação de
chamado e em audiência o Maria Helena P. T. Machado, em O
representante do escravo oferecia Plano e o Pânico: os movimentos
um valor prévio, ao qual o senhor, sociais na década da abolição, de que
depois de apreciar aquela quantia, no final da década de 1880, a
respondia se aceitava ou não aquele escravidão também estava sendo
valor como indenização pela superada por fugas coletivas na
liberdade do escravo. Se não região de São Paulo. (MACHADO,
houvesse acordo entre as partes, 1994) A compra e não a simples
devido ao preço, chamava-se um doação da alforria se contrapunha à
avaliador para julgar um preço entre ideia de que na escravidão o escravo
o oferecido e o estipulado pelo era destituído de recursos. Também
senhor, ou, ainda, para se calcular quebra a ideia de que a alforria era
uma média entre os valores um prêmio pela dedicação dado ao
apresentados. escravo obediente e fiel. Outra ideia
70
contestada era a de que o que apenas a partir de 1860 surgiu à
escravizado era permanentemente obrigatoriedade do registro de
revoltado e que ele estava compra e venda de escravo através
condenado a ser eternamente cativo. de lei, mas não encontrou nada que
Havia de fato tais pessoas que obrigasse a alforria ser registrada em
expressavam esses comportamentos, cartório. A carta de alforria parece
mas não existiam apenas submissos ser um documento importante, de
ou revoltados dentro da escravidão. grande valor comprobatório para se
Existiam, também, aquelas que atestar a condição de liberto. Em
buscavam obter, dentro das uma sociedade conservadora onde a
possibilidades que podiam, as formas cor significava a condição se prendia
alternativas para se chegar à primeiro os suspeitos e se averiguava
liberdade, usando de meios legais. a inocência ou não depois ou se a
Embora fosse para o escravo um pessoa era ou não livre4. 4
Como na ação TJC,
meio estranho pela falta de Desde a Antiguidade clássica, 1o. DF, cx 179, 3752, a
alforria, segundo
familiaridade com as instâncias os escravos organizavam maneiras definição jurídica, é um
jurídicas, elas foram um espaço para reunir economias. ato pelo qual o senhor
muito explorado por eles e se tornou Normalmente eles tinham um por sua vontade livre
um canal bastante usado pelos que período de folga, não muito grande, concedia liberdade ao
escravo. Não era
desejavam alcançar a liberdade. onde além do descanso, exigida uma forma
Liberdade e alforria podem, à desenvolviam uma pequena solene para o ato
primeira vista, serem entendidas economia informal. Cultivavam jurídico, era perfeita a
como sinônimos, porém hortas, faziam pequenos produtos simples declaração de
vontade emitida pelo
juridicamente as ações apontaram artesanais, realizavam trabalhos proprietário.
que havia muitos significados. A extras. A mulher escrava
liberdade era uma experiência encontrava no meio urbano
construída a partir da condição de variadas maneiras de uso de seu
cada pessoa que vivenciara a tempo livre, como desenvolver
escravidão. Era feita pelo senhor e atividades e serviços domésticos
pelo escravo, portanto variável, em residências e lojas, como
embora fosse o desejo de todo cozinheira, babá, ama-de-leite e
escravo poder gozar o direito operária. Autonomamente, a
irrestrito de ir e vir, de agir, de falar escrava podia trabalhar como
e fazer de sua vida o que bem vendedora ambulante de alimentos,
quisesse. Se não era possível obter tais como doces, angus, hortaliças
tudo, negociavam condições que ou ervas de efeito curativo;
estavam mais a mão: o direito de atividades observadas por muitos
folga aos domínios e feriados, o viajantes. Em todas estas
direito de poder comercializar o atividades procurava-se reunir 5
Os jornais da cidade
excedente que produzia e fazer algum pecúlio, que o escravo registravam grande
pequenos serviços. poderia utilizar para comprar coisas procura de mão de
obra. Enquanto que a
Já a alforria era o documento que necessitasse ou mesmo sua procura de
jurídico que retirava a pessoa da alforria. O pecúlio era o dinheiro trabalhadores
escravidão. Dava-lhe a condição de oferecido pelo escravo ao seu restringia-se mais a
liberta, denominação que muitos, senhor, para a compra de sua lavoura ou as obras de
construção, as escravas
após se libertarem, usavam para se liberdade. As escravas obtinham eram requisitadas para
distinguir dos demais membros da rápida inserção no mercado de uma série de serviços
sociedade. Havia também o costume trabalho urbano, realizando de tudo domésticos. Conferir as
de se adotar um sobrenome; em e sendo muito procuradas5. diversas notícias
publicadas em Gazeta
geral o de seu ex-senhor ou o nome Os desejos de viver a de Campinas, Correio
de origem do grupo africano que liberdade, por si só não bastava. Os de Campinas e Diário de
descendia. Peter Eisenberg apontou escravos poderiam ser fortes, mas Campinas.
71
tinham que estar aliados a não fosse respeitada, o juiz julgou
estratégias. Em uma ação de 1876, a legítima sua alegação e lhe foi dada
escrava Laura entra na Justiça, sua liberdade.
através de seu representante, Assim, para se obter
pedindo liberdade por ter entrado no juridicamente a liberdade, era
país ilegalmente, depois da lei que preciso que o escravo tivesse alguém
proibia o tráfico de 1831. O processo que o representasse no processo.
durou dois anos e Laura saiu Assim algumas pessoas passaram a
vitoriosa. (TJC, 1º OF, cx 623, 8456) ser rotineiramente representantes de
Dias após o término de sua ação, escravos que entravam com ações de
impetrou um novo processo pedindo liberdade. Estas pessoas passavam a
a liberdade de seus filhos, que fazer parte a vida de escravos.
deveriam ter a mesma condição da Quanto aos interessados nos autos
mãe. Mais rápido, o processo correu judiciais passavam a se
nos tribunais e trouxe a liberdade denominarem libertandos.
dos filhos de Laura.No processo de Praticamente a metade das ações de
liberdade de Laura, assim como no liberdade das escravas pesquisadas
de seus filhos, existem estratégias (em número de 79) envolvia os
utilizadas e que normalmente eram mesmos solicitadores e/ou os
do desconhecimento de muitos que mesmos curadores. Qualquer pessoa
não conheciam a rotina de processos livre poderia iniciar uma ação, mas
jurídicos.Como uma escrava obteve apenas advogados poderiam ser
acesso a uma lei feita quarenta e curadores ou representantes de
cinco anos antes? Certamente escravos durante todas as fases do
alguém que conhecia os cânones a processo. Se as escravas se
auxiliou. Em um lugar onde todos se sentissem ameaçadas pelo seu
conheciam, uma vitória de alguém senhor, elas poderiam, ainda, pedir
que houvesse usado anteriormente a para permanecerem na casa de uma
mesma alegação e houvesse saído terceira pessoa, que se
vitorioso, seria logo sabido por todos. responsabilizaria por ela como fiel
Parte da resposta foi respondida por depositário. (MENDONÇA, 1999)
meio da própria lei de 1871, que Temos aqui um procedimento
obrigava alguém livre a representar o rotineiro que foi percebido pelas
escravo interessado em adquirir sua escravas. Na comunidade havia
liberdade. Portanto, o solicitador sempre pessoas dispostas a se
podia ser qualquer pessoa que fosse envolverem nessas ações e ajudar
livre, não havendo impedimento a nas representações judiciais. (TJC, 3o
libertos e analfabetos. Após a análise OF, cx 41, 697)
do juiz havia a designação de um Se pensarmos no poder de
curador que representava o escravo barganha que a escrava doméstica
ou o libertando durante todo o podia obter para que pudesse ter o
desenrolar do processo. O curador que oferecer em troca de sua
poderia ser trocado se assim o representação, podemos levantar
quisesse. Também havia o algumas hipóteses acerca da ação.
depositário, que se responsabilizava Se o representante fosse
pelo libertando, e os avaliadores, que desconhecido poderia ser oferecida
faziam a apreciação e davam um prestação de serviços, dinheiro ou a
preço à alforria. Mas se retornarmos possibilidade de se ter um favor a ser
a história de Laura, quaisquer que concebido, o que possibilitaria a
tenham sido suas fontes, elas lhes formação de um vínculo de
deu o caminho para a alforria. dependência com o solicitador e o
Embora a lei de 1831 praticamente curador, ou, ainda, ambos, como se
72
observa no seguinte trecho de uma
ação impetrada por Firmino Ramalho Arbitramento para a liberdade da
escrava Procópia. Diz Francisco de
contra sua ex-escrava Laurinda:
Paula Aranha, artista residente nesta
“Ação de infração de Contrato de cidade, que desejando liberar sem
Prestação de Serviços, (...), onde condição alguma a escrava Procópia,
Firmino Ramalho Suplicante move fula escrava de Guilherme Krug, e
permitindo o § 9 do art. 3 da Lei no.
contra a liberta Laurinda Rodrigues
3270 de 28 de Setembro de 1885,
de Carvalho. (...) Diz o Suplicante essa liberalidade, vem por isso
que emprestando o dinheiro para que requerer à V. Exa. que se digne
a ré se redimisse da escravidão, em nomear um depositário a mesma, e
igualmente um curador que zele dos
troca da prestação de serviços.”
direitos e interesses da escrava; visto
[cuja ré não cumpriu]. (TJC, 3o OF, que o suplicante nos termos do artigo
cx 41, 697) 3 e § da Lei at. querer proceder ao
No processo, Laurinda é arbitramento da mesma. Nestes
termos o suplicante vem exibir em
autuada e se conclui pela sua prisão, juízo a quantia de 450$000. (TJC, 1o
por não ter honrado o contrato OF, cx 280, 5452)
estabelecido. No documento,
observa-se que Firmino Ramalho, Aqui, Francisco de Paula
advogado com fama de abolicionista, Aranha vem como solicitador
emprestou dinheiro a uma forra para requerer a carta de alforria de
que ela pudesse libertar-se. (CMU. Procópia, através de uma
Gazeta de Campinas, n. 249, indenização de 450$000 réis, a ser
18/04/1872) Este procedimento, oferecida a Guilherme Krug. A ação
aliás, poderia ter sido bem usual iniciou em 1886, um ano após serem
entre advogados e muitas outras fixados os valores máximos a serem
pessoas que se envolveram nesse pagos por escravos. De acordo com
tipo de ações. Se ao advogado lhe esta tabela, a escrava Procópia valia
era facultado o direito de ganho de 675$000 réis, por ter menos 30
quaisquer custas pela defesa, qual anos. Porém, quem ofereceu o
era o interesse, afinal, de uma dinheiro foi o solicitador,
pessoa sem vínculos com a espontaneamente, e não a escrava, a
escravidão passar a defender um quem pertencia beneficiar. Segundo
escravo em busca de sua liberdade? consta no processo partiu do
Poderia tal auxílio comprometer a solicitante – aquele que movia a ação
vida dos libertos posteriormente? – a vontade para libertá-la. Com
Um de nossos pressupostos é certeza houve anuência de Procópia.
que as pessoas não agiam Se o valor oferecido era menor,
mecanicamente ou apenas pelo como ele pretendia obter a liberdade
interesse da liberdade, mas que suas daquela escrava? Qual seu interesse
ações eram fruto de relações que em libertar Procópia do cativeiro de
realizavam. O trecho do processo Francisco de Paula Aranha? Ou,
abaixo dá indícios de que muitos ainda, talvez por que ela o escolheu
acordos poderiam ser celebrados como seu solicitador?
entre libertandos e pessoas Algumas respostas são
interessadas neles ou naquilo que possíveis de serem obtidas no
poderiam negociar para conseguir a próprio processo. Questionando se
condição de alforriados. O poder de aceitava o preço proposto como
barganha do libertando era percebido indenização, Guilherme Krug, o
em seu potencial e, possivelmente, senhor, respondeu:
incorporado por aqueles que dele
necessitassem, como observarmos que tendo sido intimado... para ver se
no excerto abaixo: aceitava a quantia de 450$000 pela
73
liberdade de sua escrava... vem preço estipulado por aquela liberdade
declarar que não aceita esta quantia
porque a lei no. 3270 de 28 de
poderia ser uma média, e não
setembro de 1885, determinava que necessariamente seu preço máximo.
as escravas e menos de 30 anos As pessoas que faziam parte
podem se libertar mediante a quantia. das relações de amizade de escravos
De Rs. 675$000. (...) É justo que o
adquiriam grande importância, no
suppe seja desembolsado dessa
quantia porque assim determina a lei momento em que estes passavam a
e porque o referido Paulo Aranha é pleitear sua liberdade. Na contenda
homem solteiro e faz esta liberalidade entre as partes, Procópia foi
só com o fim de continuar a
beneficiada por um julgamento
amancebar-se com a referida escrava
o que é público e notório. (TJC, 1o OF, simpático por parte do juiz. Era de
cx 280, 5452, fl. 4-4v) (grifo do praxe o curador e o senhor
original) apontarem seus avaliadores, e o juiz
escolher uma indicação de cada lado.
De acordo com Guilherme Às vezes, o magistrado propunha a
Krug, o solicitador era amante da escolha de um terceiro avaliador. Na
escrava Procópia. Portanto, segundo ação citada, ele escolheu
ele, decorre daí o interesse e as integralmente as indicações do
forças movidas por ele para libertá- curador, não fazendo uma média
la. Mesmo negando a assertiva do entre os preços apontados, mas
proprietário, não se podia contestar fixando o preço no valor indicado
que havia laços de amizade entre a pela defesa da cativa: o mais barato.
escrava e o solicitante. A fala do Seria difícil pensar em uma ação de
senhor, durante todo o processo, favorecimento. O dono,
ocorreu no sentido de demonstrar o posteriormente, manifestou seu
quanto estava sendo lesado através descontentamento diante dos
do valor oferecido, que era abaixo do resultados6. Até onde vimos, a 6
Em outro processo,
estipulado, bem como a rebeldia da escrava se beneficiou da situação. A Guilherme Krug é
escrava. A impressão que nos fica é atuação de pessoas do círculo de acionado por uma ação
que ele não aprovava a situação de de liberdade movida por
conhecimentos dos escravos influía um escravo seu nome
amasiamento de Procópia, porém no desenrolar das ações. As escravas José Lá ele faz um
nada podia ser feito. Mas, por que compreendiam a importância dessa documento relatando
nada se poderia fazer? Guilherme relação. sua posição contrária às
Krug, no caso, não era o proprietário leis que baseavam a
libertação dos escravos.
da escrava? Diz Antônio Ferreira Cesarino, que (TJC, 1o OF, cx 280,
É isso que queremos tendo em seu poder uma escrava de
5452 fls. 4-4v)
nome Maria alugada por três anos,
entender, embora seja um aconteceu que, antes de ontem, José
proprietário severo e cônscio, o Paes de Campos, morador da
senhor acabou admitindo uma Freguesia de Santa Bárbara, induziu a
situação com a qual provavelmente da escrava para segui-lo e levou-a
ora, como o suplicante saiba disto ao
não concordava. A escravidão
certo para que isso q mandou logo
possuía campos de domínio onde o uma pessoa após do copilo e essa
senhor estabelecia regras e espaços pessoa que é Fulgência Moreira,
a serem cumpridos, onde as regras encontrou-o no caminho conduzindo-a
dita escrava e além disso existe aqui
também eram estabelecidas pela um indivíduo de nome Jacinto de Tal
parte dos escravos. Acusado de ser que isso sabe, (...) requer o
amante da escrava, o solicitador não suplicante prosseguir criminalmente
refutou aquela crítica, permanecendo (...) e tem de apresentar sua queixa e
(...) pede se inquirir estas duas
até o fim do processo como seu
testemunhas apontadas. (JTC, 1o OF,
representante, quando ocorreu cx 129, 2870, f. 2)
ganho de causa em favor da escrava.
O juiz aceitou o argumento de que o
74
Neste fragmento de um aprendizado que levavam as
processo de queixa-crime, a escrava escravas a lutarem, em momentos
Maria é colocada como vítima da propícios, se aproveitando dos
situação. Ela foi induzida a fugir, períodos e condições mais
dando-se a ideia de que sem esta favoráveis. A vida na escravidão
proposição, ela jamais agiria daquela levava a elaboração de
maneira; todo o problema de fuga comportamentos, à confecção de
decorre da ação criminosa de José regras próprias e de uso comum.
Paes de Campos, o indutor da fuga. Estas regras informais não valiam
No entanto, Maria intenciona menos por não terem a força de uma
regressar ao seu antigo cativeiro. Ela lei oficial; ao contrário, tinham um
se dispôs a acompanhar José Paes de valor grande ou até maior, por serem
Camargo, sem que para isso elaboradas por quem as usava,
houvesse qualquer coação física. observando nelas um sentido prático,
Maria deveria estar de acordo com a o que nem sempre acontecia com as
fuga. Infelizmente, o processo não leis oficiais, por vezes distantes da
nos permite saber o que foi tratado realidade a que se destinavam. O
entre a escrava e o seu condutor, que poderíamos chamar de
mas indica que ela não estava pedagogia da liberdade ou
satisfeita com a vida que levava após aprendizado do que fazer, falar ou de
a saída do cativeiro de Antônio agir para conseguir seu objetivo é
Ferreira Cesarino. A fuga, em geral, amplamente disseminado, a despeito
ocorria como forma de protesto e da formalidade e filtragem da 7
A historiografia
sempre foi encarada, pela transcrição da fala nos processos: analisou e discutiu a
fuga como artifício de
historiografia que trata da “ação de libertação por apresentação rebeldia, como
escravidão, como um dos meios mais de pecúlio interessada Maria, escrava resistência escrava ao
usados para demonstrar rebeldia7. de dona Deolinda Polyana de Morais. sistema escravista. João
Embora tivesse uma liberdade de A escrava afirma valer 500$000 réis, José Reis e Eduardo
Silva, no capítulo
ação mais estreita, devido a sua por lhe faltar um dedo na mão e ser “Fugas, revoltas e
condição, isto não era impedimento asmática e muito cansada.” (TJC, 1o quilombos: os limites da
para que houvesse tentativas de OF, cx 210, 4345) negociação”, da obra
mudar a condição, que talvez não Neste processo, datado de Negociação e conflito: a
resistência negra no
incluísse a alforria de imediato, mas 1873, a senhora contestou o valor da Brasil escravista (1999)
uma vida melhor, uma escravidão indenização oferecido pela escrava, distinguem dois tipos de
mais branda. Não se trata aqui, de entrando as partes em litígio. Maria fugas: as
romancear, de ver atos heróicos. O Luíza foi avaliada em 1:000$000 reivindicatórias (aquela
que não pretendia o
incomum por si se destacava. réis. Em decorrência deste valor, rompimento com o
Interessa-nos as ações que considerado pela cativa alto demais sistema escravista e era
decorriam dentro da prática rotineira, para suas finanças, ela desistiu da vista como instrumento
as tentativas de agenciar, de obter ação. Neste caso, como estratégia de negociação,
comparável
autonomia para administrar a própria inicial estava em conseguir a modernamente a uma
vida. Se a escravidão era, de fato, liberdade depreciar-se, ou seja, greve) e as de
uma instituição que punha as diminuindo a quantia a ser paga, a rompimento (evasão
pessoas sob uma condição servil, de fim de que o valor se aproximasse escrava mais extrema,
pondo-se como negação
exploração extrema da força de das posses e/ou condições reais que da ordem escravista e
trabalho, ela também gerava formas tinham. Para a senhora, os de seu paradigma
de resistência frente a esta mesma problemas apresentados pela ideológico, que ocorria
exploração. A resistência ocorria escrava, em 1873, não eram geralmente contra o
rompimento de acordos
dentro das condições possíveis de relevantes, tão pouco para os anteriormente
cada um; por isso, variáveis. avaliadores, que apressaram o valor acertados ou quando se
Havia nestas ações uma da escrava praticada na média de rompiam compromissos
Pedagogia da Liberdade, um preços do período: já garantidos).

75
que excedia o montante da
Dizem Generosa e sua filha Idalina, a indenização.
primeira escrava velha e achada de
O desejo de se obter liberdade
moléstia e a segunda da escrava nova
(...) préstimo algum pela pouca idade unia as pessoas de uma mesma
e falta de educação, que ela suppe família, trazendo à tona laços de
tem alcançado forma de pecúlio de solidariedade formados no cativeiro,
1.500$000 rs mediante o qual requer
que os identificava sob uma mesma
obter sua liberdade fazendo-se
avaliação (...) neste juízo e por isso condição, não havendo apenas o
vem rogar a V.S. a digna nomeação desejo de estarem livres por
de curador para acompanhá-las em estarem, mas sentimentos de
juízo. (TJC, 1º OF, cx 210, 4345)
permanecerem em família, de
(grifo nosso)
iniciarem uma vida autônoma, longe
As escravas utilizaram a da vigilância comum da escravidão.
mesma alegação do processo A ideia de autonomia entre os
anterior, partindo de uma ex-escravos foi interpretada de
depreciação de si mesmas, para várias maneiras, algumas vezes
chegar ao valor que ofereciam. A respeitando-se as tradições culturais
argumentação não tinha muita africanas. Entre muitos grupos
consistência e, em nosso entender, a africanos, que foram trazidos ao
indenização oferecida levou a Brasil, a ideia de autonomia sempre
confirmação dessa hipótese, pelo fato esteve presente. Por exemplo, o
cultivo da própria alimentação 8
Generosa possuía 40
de o valor apresentado ser razoável 8.
Provavelmente para reunirem essa conferia ao chefe da família status de anos e sua filha,
provedor, embora a figura mais Idalina, 15 anos;
quantia, ambas, mãe e filha, considerando-se que o
dedicaram-se em conjunto, e não lembrada dentro do círculo familiar processo tramitava no
apenas o trabalho de apenas uma fosse a da matriarca, lembrada em ano de 1873, e que o

delas. Percorrendo esta linha de depoimento oral que colhemos aos preço médio de uma
filhos de ex-escravos em encontro de escrava variava entre
raciocínio e imaginando-se que as 900$000 réis e
duas tivessem trabalhado e poupado ferroviários. 1:100$000 réis, na
suas economias em conjunto, para Aquilo que poderia ser cidade de Campinas.
que chegassem até aquele instante e interpretado como “incapacidade
apresentado aquela quantia, produtiva” e “inadaptação ao
trabalho”, devido aos efeitos da
veríamos que a própria
argumentação das escravas ia ao escravidão, poderiam ser lidos como
encontro do que alegavam, pois respeito às tradições culturais. Estas
tradições culturais demonstraram ter
sendo a primeira uma “velha e
doente e [a] outra de pouco préstimo grande vitalidade, resistindo por
e mal educada”, como se muitos séculos. Na possibilidade de
empregariam ou conseguiriam serem cultuadas na íntegra, elas se
pequenos bicos para angariar mesclaram às tradições culturais
pecúlio? Se o dinheiro fosse de europeias, mantendo costumes de
empréstimo, quais as garantias origem africana. Claire C. Robertson
ofertadas que garantiam que ele apontou a longevidade destas
oportunamente seria restituído ao tradições na cultura material deixada
emprestador? Em nossa análise, as em habitações de escravos,
garantias seriam bem poucas! Na demonstrando várias similaridades
entre grupos da África e os escravos
avaliação, Generosa foi apreciada em
900$000 réis e Idalina em norte-americanos. (ROBERTSON,
1:200$000 réis. No final, elas 1983, p.5-21). É preciso lembrar que
a escravidão, apesar de proibir
conseguiram comprar suas
liberdades, já que possuíam pecúlio muitos costumes culturalmente
herdados, não retirou a oralidade,
76
nem os dialetos, além de sutis Campinas, segundo depoimentos, o
transmissões adaptadas à cultura movimento de deslocamento se dava
que foi imposta. (CUNHA, 1986, p. principalmente para a região central
97-108) A figura da mãe, nas do estado, em direção a zona da alta
tradições afrobrasileira, parece muito Araraquara9. Este movimento 9
Depoimento de
com a representação da mulher nas ocorreu principalmente após a Cypriano Antonio
classes populares. Tem uma abolição, quando escassearam as Oliveira dado a Lúcia
Helena Oliveira Silva,
representação aglutinadora, atraindo ofertas de empregos para os em agosto de 1990, na
em torno de si os filhos e os parentes trabalhadores libertos. cidade de Campinas,
mais próximos, como netos e Os processos referentes às juntamente com outros
sobrinhos. (GIACOMINI, 1988). Tal mulheres nos possibilitaram observar antigos ferroviários.
como na zona rural, os laços de que a qualificação profissional
compadrio eram muito importantes e ajudava na obtenção da alforria.
conferiam compromisso aos Algumas profissões de escravas
padrinhos. foram declaradas nas ações, embora
Com grande mobilidade no não fosse comum fazê-lo. Nos autos
meio urbano, a escrava ou a liberta foram declaradas 28 tipos de
empregavam-se facilmente, profissão entre as quais uma
trabalhando por vezes em vários bordadeiras, nove engomadeiras,
locais, como se atestam nos anúncios uma costureira, duas lavadeiras,
publicados em diversos jornais uma operária, uma mucama e nove
daquele momento, a exemplo da escravas que realizavam serviços
Gazeta de Campinas. (CMU. Gazeta domésticos. Do montante dessas
de Campinas, n. 227, 28/01/1872, p. qualificações, verifica-se que as
3-4) Estes anúncios eram todos de profissões de caráter doméstico eram
um dia. A circulação de mão de obra a maioria. As escravas executavam
e a oferta de empregos serviços manuais nas residências,
entrelaçavam-se dinamicamente. Os casas de comércio e podiam, em seu
anúncios de emprego a procura de tempo disponível, realizarem outras
mulheres correspondiam a mais de tarefas possuindo, por vezes, mais
60% do total, indicando-se que havia de uma qualificação. Esta capacidade
grandes possibilidades de uma de desenvolver várias atividades
existência autônoma. valorizava a escrava e seu trabalho,
As oportunidades para ajudando-a a reunir economias.
obtenção da alforria passaram a ter Algumas profissões eram
um grande crescimento na década de praticamente exclusividade de
1880. A promulgação da Lei dos escravas e mulheres forras, como,
Sexagenários proporcionou a por exemplo, a profissão de
libertação do cativeiro dos escravos quituteira. O comércio ambulante de
com mais de 65 anos, além da alimentos pertencia às mulheres,
estipulação dos preços máximos e que, por sua vez, se dividia segundo
mínimos a serem ofertados aos o agrupamento étnico. Os viajantes
cativos. Ocorreu, também, a observaram que o comércio
movimentação de grupos ambulante de comidas típicas no Rio
abolicionistas, que Maria Helena P. T. de Janeiro era realizado por escravas
Machado chamou de “cometas”. ou libertas da nação mina,
Muitos escravos simplesmente identificadas pelos panos coloridos,
partiam em grandes grupos, penteado e adereços que usavam. As
deslocando-se para regiões melhores ambulantes possuíam maior
desenvolvidas, aproveitando-se o mobilidade dentro do espaço urbano,
passe livre que lhes era dado pelas contatando com as mais diferentes
companhias ferroviárias. Em pessoas, sendo o canal de
77
comunicação entre libertos e reconhecer como alguém igual
escravos. (LEITE, 1984) àqueles que detinham o status de
Quanto às demais profissões, livre desde o nascimento.
com exceção da operária, todas, de
uma forma ou de outra, se
vinculavam também ao espaço CONSIDERAÇÕES FINAIS
familiar. O único processo de
liberdade em que se excetuava a As estratégias traçadas para a
profissão ligada ao universo obtenção da liberdade durante o
doméstico foi o movido pelas período da escravidão apontam para
escravas Vicência, Joana, Manoela e um dinamismo que aos poucos tem
Francisca, junto com outros sido. Ele fez parte da vivência
escravos. Nele, Clemente Vilmot cotidiana das cativas. As mulheres
indenizou os senhores dos escravos escravizadas possuíam uma jornada
que, em troca da alforria, prestariam extensa desempenhando funções
serviço por um período médio de enquanto profissionais e dentro do
quatro anos em uma fábrica espaço doméstico. Em tudo se
americana. (TJC, 1o OF, cx 623, mesclava submissão e resistência.
12785) Submissão pela própria constituição
A ação, embora curta, traz da escravidão: era preciso sujeitar-se
evidências interessantes que se a alguém para quem se trabalhava,
contrapõem a alguns debates, como possuindo um reduzido espaço para
aqueles que vêem incongruência no a privacidade e para a administração
aproveitamento do trabalhador do tempo livre. Resistência por que
liberto pela indústria. Em geral, a se usava de todo o espaço conhecido
ideia de industrialização é associada e disponível para lutar. O espaço
ao trabalhador imigrante europeu. O afetivo, o espaço de trabalho, as
processo acrescenta um dado novo a relações de amizade, enfim, os
se reunir aos estudos até então espaços que conseguia alcançar. Nos
realizados: a inserção de mão de pequenos acontecimentos, travava-
obra de escravos e de libertos ocorria se um movimento que visava
nas múltiplas atividades que a proporcionar melhores condições de
economia da segunda metade do vida, uma vida com mais dignidade.
século XIX comportava. Nossos objetivos centraram-se para
Vimos, então, que ações de que esta luta fosse visível e nítida
liberdade, embora não pudessem ser somando-se as abordagens
realizadas pelas escravas historiográficas já existentes.
interessadas, eram elas que Algumas questões foram levantadas,
possibilitavam um aprendizado que mas não se esgotaram. A resistência
acabava por imprimir um caráter e as estratégias multiplicaram-se na
educativo nos autos que conduziam à escravidão e deram condição para
liberdade. Ter algum dinheiro, que houvesse a manutenção da luta
amigos, saber recorrer a pessoas de após a abolição. Terminada a
“respeito” na cidade, para escravidão, restava a organização de
intermediar as ações, apontava que suas vidas, a adaptação e a inserção
havia elementos de aprendizagem no mercado de trabalho. Se para os
para a liberdade no campo jurídico; ex-escravos, as possibilidades de
assim como a sistemática da difusão emprego passaram a escassear,
rápida das causas que foram ganhas foram as mulheres que
pelos escravos. Uma vez obtida à permaneceram trabalhando, sendo
liberdade, era iniciada outra nova por vezes a fonte de renda da
etapa na vida do forro: fazer-se família. Elas continuaram no espaço
78
doméstico, sobretudo urbano. Os possibilidade através de um
processos demonstraram que havia processo. Estas possibilidades
uma estreita relação entre as poderão dar pistas sobre a colocação
escravas com seus representantes e de libertos no mercado de trabalho,
advogados. A hipótese de que esse da relação destes com o restante da
dinheiro era emprestado por sociedade e, principalmente ajudar a
curadores, solicitadores e localizar para onde foram as pessoas
depositários em especial eram muito libertadas no dia da seguinte
grandes. Em nossa pesquisa abolição.
pudemos aferir a comprovação desta

Fontes
Tribunal de Justiça de Campinas (TJC) – Campinas (São Paulo)
1o DF, cx 179, 3752
1o OF, cx 129, 2870
1o OF, cx 210, 4345
1o OF, cx 280, 5452
1º OF, cx 623, 8456
1o OF, cx 623, 12785
3o OF, cx 41, 697

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Gazeta de Campinas, 1900.

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82
ENTRE POESIAS E CRÔNICAS: abolição e o elemento servil aflorava,
FALAS SOBRE ESCRAVIDÃO E mais uma vez, com veemência, em
ABOLIÇÃO NO MARANHÃO NA todo o país.
SEGUNDA METADE DO SÉCULO No dia 5 de junho de 1884, o
XIX jornal Diário do Maranhão estampava
a seguinte notícia:
Régia Agostinho da Silva1 1
Mestre em História
Injustiças ao Maranhão pela Universidade
Federal do Ceará
Nas festas em Manaus, no (UFCE). Doutora em
Resumo dia 21 do passado, quando foi essa História Econômica pela
capital declarada livre dos 90 cativos, Universidade de São
O artigo trata das falas sobre escravidão que ali existiam, projetaram os Paulo (USP). Professora
e abolição no Maranhão na segunda principais promotores da festa, fazer Adjunta I da
metade do século XIX, tomando como representar em quadros especiais Universidade Federal do
fontes principais, poesias de Gonçalves cada uma das outras províncias do Maranhão (UFMA). E-
império. mail:
Dias (1823-1864) e Trajano Galvão
Nessa ocasião queriam expor ruaformosa@hotmail.co
(1830- 1864), poetas maranhenses que m
um quadro representando o
versaram sobre a escravidão e também Maranhão, vendo-se nele uma praça e
fazemos um apanhado de crônicas em uma figura de escravo, cercado de
alguns jornais da época como A tronco, palmatória e chicotes, dizendo
Pacotilha, Diário do Maranhão e A que no dia em que no Ceará se
Carapuça, nos quais encontramos textos festejava a redenção dos cativos, um
que tratavam sobre a questão do senhor castigava aqui na praça
elemento servil e da abolição da pública um escravo!
Tal afirmativa é uma
escravatura no Maranhão e no Brasil.
injustiça, contra que, como
maranhense, e prestando culto à
Palavras chave verdade, solenemente protestamos.
Escravidão; Abolição; Maranhão. O Maranhão aprecia como
qualquer outra província a
Abstract emancipação, é adepto dessa grande
ideia e os fatos de todos os dias
The article deals with speeches about atestam esta verdade.
O que o Maranhão não tem
slavery and abolition in Maranhão in the
feito é atacar a propriedade, que
second half of the nineteenth century, respeita, porque respeita a lei, mas
taking as main sources, Gonçalves Dias dá repetidas vezes prova inconteste
(1823-1864) and Trajano Galvão’s (1830 de quanto, sem ostentação e sem luta
- 1864) poetry, maranhense poets who concorre para que a sábia lei de 28 de
wrote about slavery. It is also done a setembro de 1871 produza os efeitos
roundup of chronics in some newspapers que todos os brasileiros e habitantes
of the time A Pacotilha, O Diário do do império desejam. (BPBL. Diário do
Maranhão, 1884)
Maranhão and A Carapuça in which we
find papers concerning the issue of the
servile element and the abolition of Nesta pequena nota,
slavery in Maranhão and Brazil. podemos encontrar vários fios de um
cenário e de um debate que se
Keywords colocavam no Maranhão, no final do
Slavery; Abolition; Maranhão. século XIX, acerca da abolição da
escravatura e de como, para alguns
contemporâneos da época, o
Maranhão figurava como uma
INTRODUÇÃO província ainda fortemente arraigada
à escravidão. A posição do articulista
O presente artigo tem por da nota teve por desígnio combater a
gênese os anos finais da escravidão, injustiça que este considerava ter
momento no qual a discussão sobre a
83
sido feita ao se representar a Outro ponto importante que
província maranhense como deve ser salientado é a afirmação,
escravocrata e cruel. por parte do mesmo articulista, que o
Procurava-se fazer isso Maranhão seria uma província que
deslegitimando a libertação dos não se colocava como contrária a
cativos no Amazonas, que, junto com abolição, mas a queria pelos meios
o Ceará, foram as primeiras legais e através da lei de 28 de
províncias a abolir oficialmente a setembro, ou seja, a Lei do Ventre
escravidão. (COSTA, 1998) Ao Livre de 1871, lei que garantiria a
afirmar que o Amazonas se libertava abolição da escravatura de forma
dos 90 cativos existentes na inevitável com o tempo.
província, existe aí uma dupla Para aprofundarmos essa
desqualificação. Primeira, que a discussão de como e por qual razão o
província do Amazonas se libertava articulista do Diário do Maranhão
de seus cativos como se ela fosse afirmava tal ideia, primeiro vamos
escravizada e não ao contrário. Isso acompanhar a resposta que foi dada
seria fruto de um olhar que pensava a ele no jornal abolicionista
a escravidão e os escravizados como maranhense A Carapuça:
um problema social a ser sanado
para que a civilização e o progresso Badaladas.
pudessem se desenvolver no país. A Protestemos.
escravidão foi lida por essa lente com O respeitável colega do
o mesmo olhar que permeou o Diário do Maranhão, noticiando em
romance Vítimas-algozes (1869), de sua edição de 5 do corrente o fato dos
beneméritos promotores da
Joaquim Manuel de Macedo
emancipação da capital do Amazonas
(MACEDO, 2010), no qual os cativos terem feito pintar quadros alegóricos
aparecem como algozes, porque representando as províncias do
estavam passíveis de todas as império nas festas de 24 de maio,
tomou uns tons carregados de censor
crueldades e vilanias para com os
e achou enormemente injusto,
seus senhores. Esse olhar, embora descortês e criminoso que os quadros
antiescravista, legava aos relativos a Maranhão e S. Paulo não
escravizados o motivo do atraso do fossem uma mentira pintada.
Representando eles a
país e da marcha lenta da civilização
escravidão e seu cortejo de negrores
na nação. Portanto, a província do foram, à luz diamantina da justiça, de
Amazonas se libertou dos escravos um realismo completo, porque
de quem era cativa. efetivamente esta descanhada pátria
de sábias e palmeiras e aquela outra
A segunda deslegitimação dos cafezais, são influentes à
estaria na quantidade de escravos, civilização que começa de invadir a
pois era possível para o Amazonas se sociedade brasileira, nobilitando-o
libertar dos cativos, porque quase já pela extinção da barbárie do
esclavagismo.
não os tinha, o que era bastante O respeitável colega do
diferente da realidade no Maranhão, Diário não arredou-se, porém, da
em 1887. Portanto, às vésperas da chapa, censurando os abolicionistas
abolição, ainda havia, no Maranhão, de Manaus.
Disse que o nosso povo é
pelos dados registrados, 33.446
abolicionista, nos limites da legalidade
escravos. (FARIA, 1998) O que e confia na sábia lei de 28 de
tornava a situação da província muito setembro para consumar-se a obra da
diferente do Amazonas. Pelo menos, abolição.
Miserável chapa!
no olhar do articulista do Diário do
Sabe o respeitável colega o
Maranhão. que pode conseguir com a tirada que

84
escreveu mais ou menos n’aqueles dos oito anos de idade, momento no
termos?
Em face da palavra de Victor
qual, o proprietário da mãe decidiria
Scoelcher, foi confirmar que nós se aceitaria a indenização do governo
representamos um triste papel na e o entregava, ou se o manteria no
comedia do esclavagismo. cativeiro até os 21 anos de idade. O
Olhe o que disse Victor
que, de fato, acontecia na maioria
Scoelcher:
Se fosse possível engendrar das vezes (COSTA, 1998).
uma instituição mais imoral ainda do No entanto, para muitos
que a escravidão, a lei de 28 de contemporâneos da Lei do Ventre
setembro reprental-a-ia fielmente.
Livre, essa garantiria o fim da
(BPBL. A Carapuça, jun. 1884)
escravidão, sem haver necessidade
O jornal A Carapuça, de uma abolição imediata e sem
publicado em 1884, com indenização.
periodicidade semanal e subintitulado É sobre estas falas
como “órgão de todas as classes”, escravistas e antiescravistas
era um jornal eminentemente colocadas nos jornais maranhenses
abolicionista, pois tratava do tema da da segunda metade do século XIX e
escravidão e da liberdade, e seus também sobre a literatura do período
artigos reverberavam contra a que iremos tratar neste artigo.
escravidão. No jornal, não há
referência de quem eram os
SER OU NÃO SER
responsáveis por sua publicação.
Talvez o anonimato se fizesse ABOLICIONISTA
necessário para proteger os Carta de liberdade.
articulistas de possíveis represálias. A família Galvão, em regozijo
Ao responder ao Diário do pelo consórcio de seu irmão Ataliba
Maranhão, com as suas badaladas, o Galvão, concedeu anteontem
liberdade a sua escrava Filomena, de
articulista do jornal Carapuça coloca
20 anos de idade. A carta foi entregue
em evidência o flagrante contraste na a libertanda pelo exm. sr. dr. Costa
crença de se pensar na província do Rodrigues que, nessa ocasião, louvou
Maranhão e em seu povo como o ato como ele merecia,
cumprimentando os noivos, que
abolicionista. Para esse articulista, davam motivo para tão eloquente
pensar-se abolicionista respaldado prova de satisfação. (BPBL Diário do
nos limites da legalidade e confiar na Maranhão, 1887)
lei de 28 de setembro de 1871, a Lei
do Ventre Livre, como a lei que Esse é um dos inúmeros
naturalmente aboliria a escravidão, anúncios de alforrias concedidas ao
seria fazer sofismo. Ao invocar o longo dos anos 1880 por várias
famoso abolicionista francês, Victor famílias maranhenses. Perto da
Scoelcher, o mesmo articulista tentou abolição da escravatura, havia, no
deslegitimar o argumento do Maranhão, como nas demais 2
Como Emília Viotti da
“miserável chapa” do Diário do províncias do país, um espírito Costa já explicou, havia
Maranhão. Era preciso esclarecer os manumissor ou abolicionista2. A diferenças entre ser
fatos. A Lei do Ventre Livre, ao discussão sobre o elemento servil e o manumissor e ser
contrário do que afirmara o articulista futuro da lavoura também se fez abolicionista.
Manumissor seria
do Diário, apenas garantiu mais forte no Maranhão da segunda aquele que pregava a
alguns anos ao regime escravocrata, metade do século XIX. compra de alforrias, e
ainda mais que, dentro da própria lei, Segundo Jalila Ayoub Jorge abolicionista seria
o recém- nascido do ventre escravo Ribeiro, formaram-se, a partir da aquele que exigia o fim
da escravidão. (COSTA,
só estaria supostamente livre a partir década de 1860, no Maranhão, 2008)

85
algumas sociedades que faziam explicar, em parte, o que foi o
libertações de escravos, como a movimento abolicionista no país e no
irmandade de São Bento e a Maranhão, mas não pode dar conta
Sociedade Manumissora Vinte e Oito de todas as peculiaridades que ele
de Julho, fundada em 1869. sofreu em diversos locais do país. O
(RIBEIRO, 1990) Essas associações próprio Maranhão tem a sua
faziam arrecadações, quermesses e singularidade, pois, ao contrário das
festas para libertarem alguns demais províncias do norte e
escravos. É preciso entender que, nordeste que se encontravam nesse
mesmo sendo formadas por momento em franca decadência
membros da elite local, estas econômica da lavoura, manteve-se
associações estavam eivadas de um escravocrata até a abolição definitiva.
espírito humanitário e progressista. Para Jalila Ribeiro: “No Maranhão,
Ora, como bem apontou José Maia apesar do decréscimo da sua
Bezerra Neto, ser manumissor, população servil já superada pela
abolicionista, ou antiescravista era, população branca e, muito mais pela
antes de tudo, pregar um ideário de de mestiços, a elite agrária se
progresso e de civilização. (BEZERRA manteve intransigente até o fim,
NETO, 2009) Civilização que estava mostrando-se, portanto, menos
pautada não somente na crença do inclinada a aderir ao abolicionismo”.
progresso econômico, assim como, (RIBEIRO, 1990, p. 149)
igualmente, na civilização dos gestos E, em seus jornais,
e na construção de um constava-se um imenso debate sobre
“humanitarismo” que, além disso, se como resolver a questão do elemento
colocava como um gesto de servil, sem colocar em risco a lavoura
distinção. Afinal de contas, ser e o direito de propriedade dos
civilizado era ser o contrário do senhores. Como mostramos, na fala
bárbaro, do inconsciente, do do articulista do Diário do Maranhão,
escravizado. Ser civilizado e é necessário considerar que o
humanitário era conceder alforria, abolicionismo maranhense existia,
era dar provas de satisfação, mas estava pautado em bases legais,
bondade e elegância. adverso do que pensava o articulista
Claro que estamos falando do Carapuça. Por isso, torna-se
prontamente da década de 1880, em congruente compreender esses
que o pensamento abolicionista já se meandros dos discursos
fazia intenso em todo país, o que, antiescravistas no Maranhão.
para Emília Viotti da Costa, pode ser
explicado porque:
FALAS ANTIESCRAVISTAS
Abriram-se novas perspectivas para o
capital. Não mais convinha mantê-lo
imobilizado em escravos, mercadoria
Os discursos antiescravistas,
que se depreciava a olhos vistos e no Maranhão, começaram a aparecer
estava fadada a desaparecer. por volta da década de 1860,
Modificava-se a mentalidade dos momento em que, no restante do
fazendeiros das zonas mais
país, também se fizeram presentes,
dinâmicas. Não mais pensavam em
comprar escravos, mas em livrar-se muito pelo fato de, em 1850, termos
deles. (COSTA, 1998, p. 490) a lei que proibiu o tráfico negreiro e
recolocou a discussão da e contra a
Essa argumentação escravidão à tona. Do mesmo modo,
historicamente datada e o discurso antiescravista emergia e
economicamente marcada pode nos se fazia forte principalmente através
86
de uma literatura romântica. Uma nesses palácios sem elegância –
escravos! E no adro ou debaixo das
literatura que pretendia formar um naves dos templos – de costas para
ideário de nação, de pátria e de as imagens sagradas, sem temor,
civilização. Uma literatura que se como sem respeito – escravos! E nas
dizia, pela primeira vez, jangadas mal tecidas – e nas canoas
de um só toro de madeira – escravos;
essencialmente brasileira. Que
- e por toda a parte – escravos!!...
buscava, como apontou Machado de Por isso o estrangeiro que chega a
Assis, um “instinto de nacionalidade”. algum porto do vasto império –
Ora, esse “instinto de nacionalidade” consulta de novo a sua derrota e
observa atentamente os astros –
fez os românticos pensarem e
porque julga que um vento inimigo o
repensarem a nação; ao fazerem levou às costas d’África. E conhece
isso, repensaram a condição do por fim que está no Brasil – na terra
cativo e da escravidão. (ASSIS, da liberdade, na terra ataviada de
primores e esclarecida por um céu
1959)
estrelado e magnífico! Mas grande
No Maranhão surgiram, ao parte da sua população é escrava –
longo da década de 1860 e até mas a sua riqueza consiste nos
alguns anos antes, falas que escravos – mas o sorriso – o deleite
do comerciante – do seu agrícola – e
colocaram a escravidão e os cativos
o alimento de todos os seus
como temas. Talvez o texto mais habitantes é comprado à custa do
exemplar disso seja Meditação, de sangue escravo! E nos lábios do
Gonçalves Dias, que, embora escrito estrangeiro, que aporta no Brasil,
desponta um sorriso irônico e
em 1845, foi publicado apenas em
despeitoso – e ele diz consigo, que a
1849, na revista Guanabara. (FARIA, terra – da escravidão – não pode
2010) durar muito; porque ele é crente, e
O teor do texto está sabe que os homens são feitos do
mesmo barro – sujeitos às mesmas
apinhado de uma fala que pensa e
dores e às mesmas necessidades.
medita sobre o império brasileiro, (DIAS, 2010, p. 4)
onde um ancião pergunta a um
jovem o que ele vê quando olha para Para o olhar crítico e arguto
o império, ao que o jovem responde do poeta que ainda jovem escreveu a
prontamente: “Meditação”, o império brasileiro
estava se sustentando pela
E sobre essa terra mimosa, por baixo
dessas árvores colossais – vejo
escravidão e por uma ordem social
milhares de homens – de fisionomias que colocava homens (feitos do
discordes, de cor vária, e de mesmo barro) numa relação social
caracteres diferentes. E esses homens desigual e hierárquica. Aos olhos dos
formam círculos concêntricos, como
estrangeiros, o império brasileiro era
os que a pedra produz caindo no meio
das águas plácidas de um lago. E os desvalorizado pela escravidão que o
que formam os círculos externos têm sustentava, o desencaminhava do
maneiras submissas e respeitosas são progresso e da civilização, o
de cor preta: - e os outros, que são
como um punhado de homens,
desumanizava frente aos demais
formando o centro de todos os países europeus. O império era
círculos, têm maneiras senhoris e colocado como parte de uma imagem
arrogantes: - são de cor branca. E os das terras africanas, considerada por
homens de cor preta têm as mãos
eles como lugar de barbárie e
presas em longas correntes de ferro,
cujos anéis vão de uns a outros – selvageria. A escravidão era um
eternos como a maldição que passa problema não apenas pelo seu
de pais a filhos! (...) E nessas caráter desumano, mas
cidades, vilas e aldeias, nos seus cais,
praças e chafarizes – vi somente –
principalmente porque envergonhava
escravos! E à porta ou no interior a nação diante aos países europeus.
dessas casas mal construídas e Era um problema, porque igualava a
87
nação à África, pois, como ainda Espantados – Ah! também
Arfa o teu peito ansiado!...
pensava Joaquim Manuel de Macedo, Acaso temes alguém?
em seu já citado livro Vítimas- Não receies de ser vista.
algozes tornava o império vítima da Tudo agora jaz dormente;
vilania de escravos. (MACEDO, 2010) Minha voz mesmo se perde
No fragor desta corrente.
Repetidamente, vemos a inversão do
Minha Alsgá, porque estremeces?
discurso. Nesse caso, a “humanidade Porque me foges assim?
era desumana”, porque, ao Não te partas, não me fujas,
estabelecer um discurso humanitário Que a vida me foge a mim!
Outro beijo acaso temes.
para com os cativos, os colocava
Expressão de amor ardente?
como responsáveis pelo motivo do Quem o ouviu? – o som perdeu-se
nosso atraso como nação. Por isso, a No fragor desta corrente.
província do Amazonas se livrou dos Onde o sol na areia ardente
Se espelha, como no mar;
cativos e não o contrário, não foram
Oh! doces terras de Congo,
os cativos que se libertaram do jugo Doces terras dalém-mar!
escravocrata, mas o Amazonas que Quando a noite sobre a terra
se libertou deles, como vítima infeliz Desenrolava o seu véu,
Quando sequer uma estrela
da escravidão.
Não se pintava no céu;
Existe outro olhar que Quando só se ouvia o sopro
também é antiescravista, mas De mansa brisa fagueira,
pautado num discurso de idealização Eu o aguardava – sentada
Debaixo da bananeira.
da África e do povo africano. É
Um rochedo ao pé se erguia,
importante inseri-lo aqui para Dele à base uma corrente
podermos compreender como os Despenhada sobre pedras,
indivíduos daquele período viam, Murmurava docemente.
E ele às vezes me dizia:
inventavam e idealizavam o
– Minha Alsgá, não tenhas medo;
continente africano. No poema “A Vem comigo, vem sentar-te
escrava”, de 1848, percebemos a Sobre o cimo do rochedo.
construção de uma África inventada E eu respondia animosa:
– Irei contigo, onde fores! –
pelo poeta:
E tremendo e palpitando
Me cingia aos meus amores.
Oh! doce país de Congo, Assim praticando amigos
Doces terras dalém-mar! A aurora nos vinha achar!
Oh! dias de sol formoso! Oh! doces terras de Congo,
Oh! noites d’almo luar! Doces terras dalém-mar!
Desertos de branca areia Do ríspido Senhor a voz irada,
De vasta, imensa extensão, Rápida soa,
Onde livre corre a mente, Sem o pranto enxugar a triste escrava
Livre bate o coração! Pávida voa.
Onde a leda caravana Mas era em mora por cismar na terra,
Rasga o caminho passando, Onde nascera,
Onde bem longe se escuta Onde vivera tão ditosa, e onde
As vozes que vão cantando! Morrer devera!
Onde longe inda se avista Sofreu tormentos, porque tinha um
O turbante muçulmano. peito,
O Iatagã recurvado, Qu’inda sentia;
Preso à cinta do Africano! Mísera escrava! no sofrer cruento,
Ele depois me tornava Congo! Dizia3. 3
DIAS, Gonçalves. A
Sobre o rochedo – sorrindo: –
escrava. Disponível em:
As águas desta corrente
O poema retrata a <http://www.geia.org.b
Não vês como vão fugindo?
r/images/goncalves_dia
Tão depressa corre a vida, idealização de uma África ausente, de s.pdf>. Acesso em: 31
Minha Alsgá; depois morrer uma África de liberdade, o avesso da ago. 2012.
Só nos resta!... – Pois a vida
terra que era aqui encontrada, terra
Seja instante de prazer.
Os olhos em torno volves da escravidão, vasto império
88
escravocrata. Gonçalves Dias, muito controlado pelo europeu”. (SANTOS,
provavelmente, sabia da África aquilo 2001, p. 1)
que leu nos livros, a sua África Primazias à parte, o que nos
idealizada, sonhada e construída num chamou a atenção nos poemas de
canto de desterro e de exílio. A Trajano Galvão foi a forma e a
diáspora africana vivida pelos muitos denúncia contra a escravidão que
cativos que aqui estavam foi um seus poemas veicularam, talvez pela
tema importante para os escritores observação do mundo dos cativos, já
românticos. que, administrando a fazenda
Idealizada ou não, essa visão herdada do pai, o poeta conviveu
da África ajudou a construir um com os escravos de forma
discurso antiescravista no Maranhão aproximada. Porém, não sabemos
e no país da segunda metade do como foi a sua relação real com os
século XIX. Essa África, que ao cativos, nem sabemos se foi um
mesmo tempo era lida como lugar de senhor “razoável” ou um verdugo...
barbárie e selvageria, também era a Enfim, nunca saberemos. O que nos
África da liberdade, onde os negros ficou foi sua poesia que tentou
viviam livremente, diferentemente da mostrar e sensibilizar a opinião
realidade que encontraram no pública da época acerca da questão
império brasileiro, pelo menos na da escravidão. As falas
visão de Gonçalves Dias e na de antiescravistas estavam
outros românticos. compenetradas de diversos objetivos
Outro poeta maranhense que – humanitarismos, criação de uma
se destacou na fala em relação aos civilidade, de uma civilização e de um
cativos foi Trajano Galvão em seus ideário de nação e denúncia de maus
poemas: “A Crioula”, “Calhambola”, tratos. Provavelmente, Trajano
“Nuranjan”, todos publicados na Galvão não era contrário ao sistema
coletânea Três Lyras. Coleção de escravocrata, mas sim a
poesias dos bacharéis: Trajano determinados comportamentos de
Galvão de Carvalho, Antonio Marques alguns senhores. Talvez enxergasse a
Rodrigues e Gentil Homem de si mesmo como um bom senhor, um
Almeida Braga, em 1863. senhor benevolente, um senhor
(BORRALHO, 2009) “civilizado”. Para José Henrique de
Trajano Galvão nasceu em Paula Borralho:
Barcelos, Vitória do Baixo Mearim,
em 1830, e faleceu em 1864. A exaltação da condição dos afro-
descendentes, no entanto, não
Bacharel formado em Direito em elimina as contradições do poeta, por
Olinda, retornou ao Maranhão para ser administrador de uma fazenda
administrar sua fazenda, locus onde cuja mão-de-obra é sustentada
pôde observar a vida dos cativos e exatamente pelo braço escravo, por
ser integrante de uma elite
tecer o que, para alguns autores econômica, por pertencer a um seleto
como José Henrique de Paula grupo de pessoas com acesso as
Borralho e Maria Rita Santos, era estâncias de poder, aos locais de
uma “etno-poesia”. (SANTOS, 2001) condução da vida pública, às
instituições de formação de uma
Uma poesia que para Maria Rita
cultura oficial e de educação formal. A
Santos o consagrou como “o primeiro exaltação não elimina as contradições
a cantar o negro escravo e em tom do poeta enquanto sujeito posicionado
sério, isto é, refletindo sobre a a falar ou descrever as condições
históricas do Maranhão, mas também
condição do ser escravo e do peso da
não dirime a riqueza de sua poesia,
perversa escravidão num mundo só e fazendo dela uma outra leitura
somente construído, sistematizado e possível afora as interpretações
89
oficiais sobre o que se passava nas Sou cativa... que importa? folgando
fazendas do Maranhão, dando Hei de o vil cativeiro levar! ...
visibilidade sobre outras Hei de sim, que o feitor tem mui
sociabilidades para além daquelas das brando
elites. (BORRALHO, 2009, p. 373) Coração, que se pode amansar!...
Como é terno o feitor, quando chama,
À noitinha, escondido com a rama
Acreditamos que não exista
No caminho – ó crioula, vem cá! –
uma contradição na poesia de Há nada que pague o gostinho
Trajano Galvão entre ser senhor de De poder-se ao feitor no caminho,
escravos e ter poemas Faceirando, dizer – não vou lá – ?
Tenho um pente coberto de lhamas
antiescravistas. É preciso lembrar
De ouro fino, que tal brilho tem,
que quase todos os poetas Que raladas de inveja as mucamas
antiescravistas vinham de família Me sobre-olham com ar de desdém.
abastadas e a grande maioria deles Sou da roça; mas, sou tarefeira.
Roça nova ou feraz capoeira,
teve contato com cativos, sejam
Corte arroz ou apanhe algodão,
como senhores ou filhos de senhores. Cá comigo o feitor não se cansa;
O próprio Castro Alves, considerado Que o meu cofo não mente à balança,
por determinada crítica literária o Cinco arrobas e a concha no chão!
Ao tambor, quando saio da pinha
“poeta dos escravos”, tinha cativos.
Das cativas, e danço gentil,
(SILVA, 2006) Quase todos os Sou senhora, sou alta rainha,
abolicionistas da década de 1880 Não cativa, de escravos a mil!
estavam ligados ao sistema Com requebros a todos assombro
Voam lenços, ocultam-me o ombro
escravocrata de uma forma ou de
Entre palmas, aplausos, furor!...
outra. Embora Emília Viotti afirme Mas, se alguém ousa dar-me uma
que só foi possível existir um punga,
movimento abolicionista, de fato, O feitor de ciúmes resmunga,
Pega a taça, desmancha o tambor
com a formação de setores urbanos,
Na quaresma meu seio é só rendas
como funcionários públicos, médicos, Quando vou-me a fazer confissão;
bacharéis em Direito que não E o vigário vê cousas nas fendas,
dependiam diretamente da lavoura. Que quisera antes vê-las nas mãos.
Senhor padre, o feitor me inquieta;
(COSTA, 1998)
É pecado ... ? não, filha, antes peta.
O que fica para os Goza a vida... esses mimos dos céus
historiadores é o olhar desses És formosa... e nos olhos do padre
literatos e o que eles podem nos Eu vi cousa que temo não quadre
Com’o sagrado ministro de Deus...
contar sobre a vida do cativeiro que
Sou formosa... e meus olhos estrelas
eles observaram ou idealizaram. O Que transpassam negrumes do céu
que Trajano Galvão pode nos contar, Atrativos e formas tão belas
assim como Gonçalves Dias, como Pra que foi que a natura mais me
deu?
era o universo cultural em que esses E este fogo, que me arde nas veias
cativos estavam inseridos, pelo Como o sol nas ferventes areias,
menos no olhar desses dois poetas. Por que arde? Quem foi que o ateou?
Um dos poemas em que Apagá-lo vou já – não sou tola...
E o feitor lá me chama – ó crioula
percebemos claramente que é o olhar
E eu respondo-lhe branda “já vou”4. 4
GALVÃO, Trajano. A
do senhor branco letrado que fala e crioula. Disponível em:
vê o cotidiano dos cativos está no É claro que, mesmo <http://www.jornaldep
poema “A crioula” no qual existe uma perpassado de um olhar branco e
oesia.jor.br/tra01.html>
. Acesso em: 31 ago.
forte erotização da cativa. Olhar que masculino, pode-se inferir que 2012.
no nosso entendimento demarca
agradaria à crioula inventada por
muito a fala do senhor branco Trajano Galvão exercer no mundo
masculino que observa a branco e masculino dos senhores
sensualidade da escrava:
tanto poder. Isso pode ter sido talvez

90
uma tática (CERTEAU, 1996) de
muitas crioulas que percebiam na ‘Ai! ... pobre de mim, coitada,
sedução uma forma de sobreviver à Que sou negra e sou cativa!’
‘Ai! .... triste de mim, coitada,
escravidão. Obviamente que isto não
Que sou negra e sou cativa!’
retira ou redime tantas violências ... ... ... ...
vividas pelas escravas, mas nos pode ‘Faceira, esquiva e donzela...
oferecer alguns fios de saídas e Ninguém me peça por ela.
‘Branco só vós é que sois;
táticas possíveis utilizadas pelas Mas homens somos nós dois
mulheres escravizadas no intuito de
sobreviverem à escravidão. (REIS; Meu Senhor, por piedade,
SILVA, 1989) Por amor do vosso pai!
Sou castigada sem culpa.
Há ainda, em Trajano Meu Senhor, ah! Perdoai!’
Galvão, um poema chamado ‘Eu dei conta da tarefa,
“Nuranjan”, em que, diferentemente Nunca fiz mal a ninguém,
da crioula, a escrava medita sobre a Sou humilde e sou criança
- Tanto ódio d’onde vem?...’
escravidão e seus malefícios e aponta
(GALVÃO, 2001, p. 3)
o sonho e o pensamento como os
únicos lugares possíveis e plausíveis Já no poema “O
para se escapar da dura realidade calhambola”, percebemos outro perfil
que a cercava. Era, pois, preciso de cativo, aquele que justamente por
mergulhar no mundo da fantasia e da ser “calhambola”, ou seja,
melancolia para esquecer-se dos
“quilombola”, é o que se revolta
castigos infligidos aos escravos: contra a escravidão e reage de forma
- Em que cismo? Em que cisma a
direta, enfrentado assim o mundo
cativa? dos senhores:
Ah! Da negra o que importa o cismar?
D‘estes sonhos ninguém não me Nasci livre, fizeram-me escravo;
priva; Fui escravo, mas livre me fiz.
Ah! Deixai-me, deixai-me sonhar?... Negro, sim; mas o pulso do bravo
Vês a Lua que brilha serena, Não se amolda ás algemas servis!
Solitária – como alma que pena – Negra a pele, mas o sangue no peito,
A vagar pelos campos d’além?... Como o mar em tormentas desfeito,
Porque os brilhos com a noite Ferve, estua, referve em canhões!
despendem? Negro, sim; mas é forte o meu braço,
Quem na leira os sorrisos lhe Negros pés, mas que vencem o
entende? espaço,
Em que cisma?... Não sabe ninguém. Assolando, quase negros tufões
Alta noite, sozinha, o luar:
‘Amo a Lua saudosa, que vaga E soluço, que o peito comprime,
Na campina azulada dos céus, Porque o negro, que chora tem crime,
Porque a Lua com raios me afaga, Porque o negro não deve chorar!...
E levanta minh’alma até Deus! Eu bramia, porém não chorava,
Amo a Lua, porque amo a tristeza, Porque a onça brami-o, não chorou
Porque a Lua jamais se despreza Membro a membro meu corpo
D’escutar meus queixumes de dor: quebrava,
Porque á luz do meu astro fogueiro, A vontade, ninguém m’a quebrou!...
Me deslumbro do vil cativeiro, Como reina a mudez na tapera;
Do azurraque, e do bruto feitor...’ No meu peito a vontade é que
(GALVÃO, 2001, p. 2) impera;
Aqui dentro, só ella dá leis. (GALVÃO,
2001, p. 3)
Já no poema “Solau”, a
imagem da cativa que aparece é a
daquela que se resigna e sente pena Dessas imagens idealizadas,
de si mesma por viver em dessas construções contraditórias,
escravidão: entre o olhar do poeta romântico que

91
se revoltava contra a escravidão, artigo que encontramos perdido, nas
mas dela era dependente, visto que páginas do Jornal do Comércio, nos
sendo senhor de escravos, dá indício de como um determinado
fazendeiro, podemos depreender os setor senhorial leu a proibição do
fios de um mundo cativo, através de tráfico e a perseguição dos navios
um filtro obviamente comprometido, ingleses aos tumbeiros; intitulado
e que filtro não o é? Mas esses “Colonização africana”, o artigo
poemas e esses poetas podem nos esclarece para o público leitor qual
ajudar a entender e compreender o seria o destino dos escravos
que foi o mundo dos cativos e suas apreendidos nos navios negreiros
lutas contra a escravidão e também pelos ingleses:
como eram apreendidos pelos seus
contemporâneos. As falas Quando um cruzeiro inglês aprisiona
um negreiro carregado de escravos,
antiescravistas podem nos dizer
onde depõe seu carregamento? Volta
muito sobre o mundo dos senhores, para costa d'África para restituir os
mas igualmente podem nos falar negros a seu país e à liberdade, ou
sobre o mundo dos escravos. Se não prefere transportá-los para uma
colônia inglesa a titulo de
fizermos o exercício de uma leitura a
trabalhadores e sem pedir-lhes seu
contrapelo, como nos ensinou Walter consentimento?
Benjamin, poderemos entender
muito o que foi aquele mundo dos A esta primeira questão um dos
nossos correspondentes julga poder
cativos que poetas e escritores
responder que estes desgraçados
viram, escreveram, pintaram e tomados ou comprados por força na
interpretaram. (BENJAMIN, 1985) costa d'África, depois capturados em
A discussão sobre a questão alto mar pelos cruzeiros ingleses, são
quase sempre mandados para
servil também dar-se-á pelos jornais
Demerara, Jamaica, Santa Lúcia etc,
do período, como já vimos. Iremos onde são obrigados a fazer
agora aprofundar um pouco mais engajamento de 16 anos ao serviço
essa questão. da rainha, para serem distribuídos
pelos plantadores.

Outra questão: Entre negociantes


A FALA, A RÉPLICA E A estrangeiros residentes em Havana,
TRÉPLICA: A ESCRAVIDÃO PELOS Santiago, Rio de Janeiro, Bahia, etc,
quais são os que se apressam mais
JORNAIS
em obter, fornecer e vender aos
traficantes negreiros as mercadorias
No ano de 1859, por próprias para fazer o tráfico, tais
intermédio do Jornal do Comércio da como batata, algodão, pólvora, armas
de fogo, marmitas, tábuas e forros?
cidade de São Luís, circulava um
texto retirado do Jornal da Bahia, que O nosso correspondente pretende que
versava sobre a proibição do tráfico são os negociantes ingleses os que se
negreiro e a apreensão de navios mostram neste assunto menos
escrupulosos e acrescenta que os
negreiros pela frota inglesa. Em
grandes negociantes de negros, cujos
1850, a Lei Eusébio de Queiroz nomes são célebres nestas paragens,
proibiu o tráfico de escravos para o lhes tem dito que muitas vezes,
Brasil pelo Atlântico, restabelecendo quando os jornais de Londres
indignavam-se contra os traficantes
a lei de 1831 que já o havia proibido,
de peles negras: "Não nos vendais os
mas a mesma foi ignorada pelo objetos próprios para fazer o tráfico, e
império brasileiro. (CHALHOUB, não mandaremos mais ao Congo.
2012) A lei de 1850 proibiu o tráfico
Um de nossos correspondentes é
transatlântico e colocou de novo em
ainda mais indiscreto; quereria
discussão o sistema escravista. O perguntar aos cônsules de sua
92
majestade que habitam aos países de literatura, um discurso que
escravos, se muitos de seus nacionais
plantadores ou como fabricantes ou
justificasse ou não a escravidão. De
negociantes não estão em qualquer forma, o debate acerca da
contravenção com a lei de 1842 que escravidão vai permear toda a
lhes proíbe serem senhores de segunda metade do século XIX no
escravos?
Brasil e no Maranhão. Do discurso
Enfim manda-nos também de Londres
um cálculo que aprovaria que os antiescravista dos poetas da década
jornais ingleses não tem razão para de 1860, mergulhamos em jornais
queixar-se da manutenção (ilégível) que historicamente situados nos
de uma esquadrilha nas costas da
falam das apreensões daqueles
África e nas Antilhas para vigiarem o
tráfico de negros; porque os lucros indivíduos, e principalmente daqueles
quase se obtiveram compensariam que detinham a imprensa e se
largamente as despesas que ela faz. colocavam como porta-vozes de uma
classe senhorial que pensava no
Eis aqui o raciocínio que conduz a
esta conclusão: segundo a própria futuro da nação. A fala que
confissão das autoridades inglesas, as deslegitimava a Inglaterra e
presas feitas anualmente pelos contrabalanceava o seu “instinto
cruzeiros ingleses excedem algumas
filantrópico” aos fins lucrativos foi
vezes a cifra de quarenta navios
negreiros. Supondo nesses 40 navios colocada no jornal do comércio,
somente 18 tenham sido presos com sendo também muito próxima da
carregamento humano, a média data de publicação das poesias de
sendo quase de 300 escravos por
Gonçalves Dias e Trajano Galvão
navio, seriam 5.400 trabalhadores
que a Inglaterra, sem ter-lhes pedido que, como já demonstramos,
seu consentimento introduzirá todos posicionaram-se, muitas vezes, com
os anos em suas colônias. um discurso antiescravista, embora
idealizado.
Ajuntando a essas carregações
humanas o valor das mercadorias, Encontramos, nos jornais, ao
aparelhos, navios, ouro e prata longo das décadas de 1860 e 1880,
pertencentes aos capitais, arguidos, multifárias discussões entre os
marinheiros e passageiros, objetos
setores dominantes sobre as veredas
declarados igualmente de boa preza,
firma-se a convicção de que a que caminharia o sistema escravista
esquadrilha dos ingleses, para a e, também, a vida cotidiana, no qual
repressão do tráfico é não uma obra informes sobre fugas de escravos,
ruinosa de filantropia, porém sim um
venda de escravos e tráfico
negócio muito bom.
H. M. Martin,(O Gaycurú) (BPBL. interprovincial se amalgamavam.
Jornal do Comércio, 1859) Enquanto os articulistas discutiam a
História, a história vivida ia se
Afinal, qual o sentido de desenrolando e acontecendo:
enxertar, em um jornal da cidade de
São Luís, um artigo de um jornal Albino Alvim du Rocher remete para o
Rio de Janeiro a sua escrava de nome
baiano, deslegitimando a Inglaterra Leopoldina. Maranhão 8 de junho de
como grande protetora dos escravos 1860.
africanos medonhamente arrastados Compra escravos Albino A. du Rocher,
em diáspora pelos mares atlânticos? em sua casa Rua da paz n. 26.
Nesta tipografia se diz quem precisa
Talvez porque isso viesse a justificar
d'uma escrava de 15 a 23 anos, que
a permanência da escravidão no não tenha vícios e nem esteja
império brasileiro, na província acostumada a castigos: sendo de boa
maranhense. Talvez, porque através índole, e tendo algumas habilitações
para o serviço d'uma casa de família e
dos jornais do século XIX, principal
bonita figura. Precisa-se tê-la alguns
veículo de comunicação, a imprensa dias a contento e declara-se que é
pudesse construir, juntamente com a para ficar na Província.
93
Não se põe dúvida fazer-se bom preço a sua influência, e também por toda a
uma vez que tenha as qualidades que parte a lavoura definha; vão
se requer. (BPBL. Jornal do Comércio, escasseando os braços que se lhe
1860) consagram. (BPBL. Jornal do
Comércio, 1860)
Da história sonhada, a dos poetas,
escritores e literatos, da história Ao detectar que a lavoura
vivida, embora seja inviável uma ser definhava e que os braços para
pensada sem a outra, afinal como trabalhar nela se escasseavam, é
aponta Samira Nahid de Mesquita: imprescindível lembrar o porquê de
isso ter ocorrido. As lavouras do
Faz-se importante lembrar que a
norte e nordeste no século XIX
ficção, por mais “inventada” que seja
a estória, terá sempre, e encontravam-se, de fato, em
necessariamente, uma vinculação decadência, visto que, neste período,
com o real empírico, vivido, o real da era a economia do café do sudeste
história. O enredo mais delirante,
surreal, metafórico estará dentro da
que se ampliava e que boa parte da
realidade, partirá dela, ainda quando mão de obra escrava do Maranhão
pretenda negá-la, distanciar-se dela, havia saído da província no tráfico
“fingir” que ela não existe. Será interprovincial. Encontramos vários
sempre expressão de uma intimidade
fantasiada entre verdade e mentira,
anúncios que informavam a saída de
entre o real vivido e o real possível. cativos, ao longo da década de 1860,
(MESQUITA, 2006) indo para o Rio de Janeiro para
serem lá distribuídos entre os
Claro que, ao falarmos dos cafezais:
jornais do século XIX, não podemos
ser ingênuos em acreditar que ali Joaquim Alves da Silva, remete para o
Rio de Janeiro, por conta e ordem de
estava retratada a vida como ela
seus cunhados Raimundo Alves
era... Afinal, eram pontos de vista, Nogueira da Silva, Marcos Alves
olhares e falas demarcadas de Nogueira da Silva, Joaquim Alves
determinados setores da sociedade e Nogueira da Silva e José Alves
Nogueira da Silva, os seus escravos
que, na maioria das vezes, falavam
crioulos de nomes Marcelino, Ignácio,
sobre a ótica dos setores Bibiana, Martinho, Philomena, Maria,
dominantes. As apreensões que Clara, João Cancio, Geminiana,
encontramos nos jornais aqui Marcelino, Rosa, Januário, Silvestre,
Simão João Ferreiro, Pantaleão, Júlia,
trabalhados são olhares das classes
Ângelo, José, Honorio, Caetano,
que sustentavam esses jornais e Joaquim, Manoel, Clemente, Rozaura,
eram sustentados pela escravidão. Bernardina, Cleto, Adeonato,
Por isso, encontramos, de forma Philomena, Vitório e Cleonice, os
quais houveram por herança de seu
recorrente, a preocupação com o pai o finado José Alves da Silva.
destino da província; o que seria do
Maranhão, ou, melhor, de sua classe João Ribeiro Pontes
senhorial com o findar da escravidão? Júnior, por procuração de José
Antônio de Sampaio, remete para o
A preocupação com o futuro da
Rio de Janeiro, os escravos crioulos
lavoura era uma constante nos Joaquim e Benedito que os houve por
jornais da segunda metade do século herança de seu pai José João de
XIX na província: Sampaio em 1836. Remete mais por
autorização de Raimundo Joaquim
Mouzinho também os escravos
A lavoura e o comércio.
crioulos Pedro, Antonia e Luiza que os
A lavragem e a pastagem são as
houve os dois primeiros por
duas telas do estado.
arrematação em 10 de fevereiro de
O século é industrial por toda parte
1848, e a última por herança de seu
o comércio, a manufatura, a
falecido pai Raimundo Joaquim
especulação multimoda faz prevalecer

94
Mouzinho, em 1848. (BPBL. O tentou perceber como, na última
Publicador Maranhense, 1857)
década da escravidão, a temática
sobre o elemento servil e a
Segundo Cristiane Pinheiro escravidão reaparece nestes jornais
Santos Jacinto, esses informes eram
maranhenses. (PEREIRA, 2006)
de obrigatoriedade desde 1854; Aqui, no entanto, apenas
tinha-se de anunciar a saída dos tomaremos alguns artigos dos jornais
escravos nos jornais por, pelo
O Paiz e A Pacotilha, por
menos, três dias. Era uma medida considerarmos que eles
para impedir a saída de escravos representavam vozes diferenciadas
roubados ou em litígio. Segundo em ralação à escravidão. Enquanto o
ainda Jacinto, “a crise econômica” jornal A Pacotilha se posicionava
afastava definitivamente o Maranhão como abolicionista, o jornal O Paiz
da condição de comprador de defendia a manumissão com
escravos. A província agora ocupava indenização.
lugar inverso, havia se tornado uma Claro que essas diferenças
importante fonte de escravos para a não eram tão abissais, já que ambos
região cafeeira”. (JACINTO, 2009)5. os jornais falavam do olhar e da
5
Afinal, como aponta
Em decorrência dessa Regina Helena de
perspectiva dos setores dominantes. Martins Faria, a
mudança econômica que transformou Até mesmo o jornal A Carapuça, aqui formação da Companhia
o Maranhão em “fonte de escravos” e por nós já apresentado, embora num Geral do Comércio do
contribuiu para a decadência tom muito mais abolicionista e forte
Grão-Pará e Maranhão,
econômica da província, ao longo das em 1755, e o
comparado aos demais, também crescimento da
décadas seguintes, os setores
representava o olhar de uma elite economia algodoeira e
dominantes procuraram saídas para a que se considerava à frente dos rizícola na província,
crise e, já nas últimas décadas do demais contemporâneos e que podia
proporcionou uma
século XIX, nos anos 1880, o entrada maciça de
e devia falar por eles e que, assim, africanos escravizados
discurso contrário à escravidão, outra levava o Maranhão ao progresso. no Maranhão, o que o
vez, emergia com outra vertente. Nesse ideário de progresso, transformou numa
Agora não era mais a causa província negra, pois,
construía-se um discurso sobre a em 1822, cerca de 53,
humanitária, ou não apenas ela que liberdade. Vamos a ele: 3% de sua população
deveria levar o país à abolição, mas era composta por
principalmente a causa civilizatória e A liberdade escravos. (FARIA, 1998)
do progresso. Abolir a escravidão era A instrução progrida, nem sempre O que obviamente se
progredir, era “retirar a mancha guiada por esta estrela nunca extinta alterou com o tráfico
- Liberdade. interprovincial.
negra” que nos envergonhava frente
Ó povos quando chegardes à nova
às demais nações e nos impedia de aurora do porvir é que podereis
crescer economicamente e como exclamar: somos livres, caiu por terra
nação. à opressão, calquemos aos pés a
escravidão, temos a instrução e o
Não foi à toa que a discussão
direito inauferível de pensar. Sempre
acerca da abolição da escravatura andam de mão dada a instrução e o
tornou-se tônica, novamente, nos pensamento e dirigir-se ambos para o
jornais maranhenses dos anos 1880. mesmo ponto, que é-Liberdade.
Ó nações, que já fruis as delícias da
Para Josenildo de Jesus
liberdade, acordai o Brasil, gigante
Pereira, os jornais do século XIX que dorme indolente ante vós, para
podem ser divididos em quatro dizer-lhe que pense e que se instrua
aspectos: político, religioso, literário afim de que possa um dia empunhar o
estandarte da liberdade, que já
e jocoso. O autor, ao analisar três tendes a felicidade de ver flutuar em
jornais da década de 1880: O Diário vossa presença; a tarefa é árdua,
do Maranhão, O Paiz e A Pacotilha, porém é nobre e grandiosa.
como jornais políticos e noticiosos, Povos que dormis ainda embalados
pela negra mão da escravidão
95
despertem d'esse sono inglório e econômicos, visto que a escravidão
trabalhai para legar a vossos filhos
um tesouro imenso, que é a
era um entrave para o
Liberdade. Vossos antepassados, que desenvolvimento industrial e a
já dormem nos túmulos, de lá mesmo ampliação de um mercado
vos saudarão e orgulhar-se-ão de consumidor. Era categórico, portanto,
possuir descendentes como vós.
aboli-la. Os papéis se invertiam, mais
Qual será o homem que não
prestará seus serviços a grande causa uma vez, na construção do discurso;
da liberdade? Qual será o braço que eram os senhores maranhenses
não se erguerá para bater a reféns da escravidão e não o seu
opressão? Nenhum com certeza.
inverso. Era a escravidão que
Aprendei com a história, essa
alavanca enorme que revolve todo o atrapalhava o progresso, a marcha
passado, a libertar-vos. da civilização e a liberdade. Era a
Vede aquele colosso que além vos mancha negra da escravidão que
contempla. Sabeis quem ele é? ‘É o
impossibilitava a construção de um
horizonte da liberdade, que vós
esperais; empunhai, pois o livro essa novo país. Apesar de o jornal A
arma fecunda e, caminhai que ele vos Pacotilha ter se colocado como
estenderá as mãos’. abolicionista e não como
T.J (BPBL A Pacotilha, 1881).
manumissor, a discussão sobre a
escravidão, nos periódicos
O jornal A Pacotilha, fundado maranhenses, não se diferenciava
em 1880, manifestava-se como um muito na concepção de como se
jornal abolicionista que pensavam sobre os escravos.
propagandeava o fim da escravidão e
a marcha para o progresso. Era
necessário para os articulistas deste CONCLUSÃO
jornal que a província maranhense
saísse do atraso que foi legado dos
Disto isto, concluímos que as
mesmos antepassados, que se falas sobre escravidão e abolição no
“orgulhariam” do fim da escravidão Maranhão estavam inficionadas de
feito por seus “descendentes”.
inúmeras noções sobre
Descendentes estes que ainda viviam humanitarismo, economia, marcha
à custa da escravidão. O discurso para o progresso e, principalmente,
civilizatório, que percebia a se colocavam na tentativa de
escravidão como o motivo de atraso responder a pergunta: O que seria da
do país, estava calcado no que província caso a abolição sem
acontecia internacionalmente. Depois indenização ocorresse? Para os
do fim do tráfico negreiro em 1850 e contemporâneos do século XIX,
das sucessivas pressões inglesas
senhores de escravos, poetas,
para que o Brasil abolisse a cronistas de jornais, o futuro era
escravidão, pressões essas pautadas incerto...
em interesses mais do que
humanitários, em especial

Fontes Impressas
Biblioteca Pública Benedito Leite (BPBL). Setor Hemeroteca
A Pacotilha, 1881.
Diário do Maranhão, 1884.
Jornal do Comércio, 1859-1860.
96
O Publicador Maranhense, 1857.

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98
SILVA, Alberto da Costa e. Castro Alves: um poeta sempre jovem. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.

99
IMAGENS DA ESCRAVIDÃO, captive. Highlighting the features of the
TORTURAS E RESISTÊNCIAS NO illegal slavery existing in the country for
CONTO much of the nineteenth century, as well
as more detailed analyzes of shape
“PAI CONTRA MÃE” DE MACHADO
about some practices of torture applied
DE ASSIS under the slaves in everyday life in
nineteenth-century Court.

Ariosvalber de Souza Oliveira1 Keywords


1
Graduado em História
Machado de Assis; Slavery; Violence. pela Universidade
Estadual da Paraíba
(UEPB). Especialista em
Resumo História e Cultura Afro-
Brasileira e Indígena na
O presente trabalho analisa o conto “Pai INTRODUÇÃO UEPB. Mestre em
contra Mãe” de Machado de Assis, História pela
considerando as ressonâncias históricas Universidade Federal de
na narrativa machadiana e
A Lei 10.639, de 9 de janeiro Campina Grande
estabelecendo relação com aspectos da de 2003, torna obrigatório o ensino (UFCG). Assessor
da História e Cultura Afro-Brasileira técnico do Plano
escravidão no Brasil oitocentista. A obra Juventude Viva, de
tem como tema central a escravidão e nos estabelecimentos de ensino Campina Grande. E-
seus desdobramentos sociais, o que fundamental e médio, oficiais e mail:
chamou a atenção de muitos críticos particulares, em todo o país. Para ariosvalber@yahoo.com
literários e historiadores. Nossa leitura tanto, inclui o estudo da História da .br
indica que o conto pode ser lido a África e dos africanos, a luta dos
contrapelo à política republicana de
negros no Brasil, a cultura negra 2
A Lei 11.645/2008
obscurecimento da história e memória
da escravidão no Brasil. O artigo analisa
brasileira e o negro na formação da altera a Lei nº 9.394, de
sociedade nacional, de modo a 20 de dezembro de
aspectos da violência no cotidiano da 1996, modificada pela
escravidão no Brasil e as práticas de resgatar a contribuição do povo Lei nº 10.639, de 9 de
resistências empreendidas pelos cativos. negro nas áreas social, econômica e janeiro de 2003, que
Ressaltando as feições da escravidão política, pertinentes à História do estabelece as Diretrizes
ilegal existente no país durante boa Brasil. O inciso dois complementa: e Bases da Educação
parte do século XIX, assim como, Nacional, para incluir no
“Os conteúdos referentes à História currículo oficial da rede
analisa de forma mais detida sobre e Cultura Afro-Brasileira serão de ensino a
algumas práticas de torturas aplicadas
ministrados no âmbito de todo o obrigatoriedade da
sob os escravos na vida cotidiana na temática História e
currículo escolar, em especial nas
Corte oitocentista. Cultura Afro-Brasileira e
áreas de Educação Artística e de Indígena.
Palavras chave Literatura e História Brasileira”2.
Machado de Assis; Escravidão; Violência. Tal lei foi promulgada há mais
de dez anos e pode ser interpretada
Abstract a partir de duas perspectivas, a
This paper analyzes the short story saber: a primeira como um avanço
“Father versus Mother” Machado de considerável, resultado de lutas
Assis, considering the historical
históricas dos movimentos sociais e
resonances in Machado's narrative and
establishing relationship with aspects of
uma ação afirmativa que valoriza a
slavery in nineteenth-century Brazil. The pluralidade da formação brasileira; a
work is focused on slavery and its social segunda como um retrocesso, pois,
consequences, which caught the admitir a existência de uma lei para
attention of many literary critics and obrigar o ensino multiétnico da
historians. Our reading indicates that the formação nacional, não deixa de ser
story can be read against the grain to vergonhoso. Isso é algo que já
Republican political obfuscation of deveria ser realizado no cotidiano das
history and memory of slavery in Brazil.
salas de aula. E o pior é saber que as
This paper analyzes aspects of violence
in everyday life of slavery in Brazil and
determinações desta lei ainda são
practices of resistance undertaken by constantemente desrespeitadas.

100
Sobre a importância dessa impressão de que um bom texto
questão, cabe lembrar que o Brasil ficcional é o que causa certo
foi o país das Américas que mais incômodo no leitor e o faz refletir
recebeu escravos oriundos da África. diante do desenrolar da narrativa, ao
Estima-se um contingente de mais de transparecer a dimensão da
quatro milhões de africanos que existência de que as coisas que mais
foram arrancados para o território nos surpreendem fazem parte do
brasileiro. A formação econômica e devir existencial. A ficção literária
cultural da nossa nação foi assentada parece nos dizer, num silêncio
sobre o trabalho escravo. Sobre a perturbador, que a vida concreta e
importância da escravidão no Brasil é imaginária fora dos livros é mais
preciso refletir que: complexa e inacreditável do que as
que se desenrolam nas páginas dos
O escravo ficou dentro de todos nós, escritores.
qualquer que seja nossa origem.
Afinal sem a escravidão, o Brasil não
Além desse aspecto, o que
existiria como hoje é e não teria mais me impressiona na obra
sequer ocupado os imensos espaços machadiana é a capacidade que o
que os portugueses e os mamelucos autor tem de visualizar aspectos da
lhe desenharam. Com ou sem
remorso, a escravidão foi o processo
vida política do Brasil no século XIX.
mais importante de nossa história. Para além de um grande deslindador
(SILVA, 2003, p. 72) da alma humana, que descreveu com
sincera crueldade os lados mais
A escravidão brasileira durou obscuros das ações humanas, é
mais de três séculos e o Brasil foi o perceptível na narrativa machadiana
último país do continente americano uma arguta análise da sociedade
a acabar com a instituição, de modo brasileira do seu tempo.
que, parece que nunca seremos Machado de Assis escreveu
como a “Argentina, país quase nove romances, mais de quinhentas
europeu; nem como o México, ou o crônicas, duzentos e dezoito contos,
Paraguai, quase ameríndio. A entre outros textos de teatro, poesia,
substância da cultura africana crítica literária e relatórios de
permanecerá em nós através de toda trabalhos. Outro ponto a ser
a nossa formação e consolidação em destacado é o fato de que, por mais
nação.” (FREYRE, 1996, p. 650) incrível que possa parecer, não existe
Machado de Assis (1839- uma obra realmente completa da
1908), por ser um homem do seu obra machadiana. As duas grandes
tempo, não estava alheio a esses obras são os 31 volumes da editora
fatos. E como poucos, o escritor Jackson, organizada por Raimundo
representou artística e Magalhães Júnior. Tal editora
historicamente as contradições e comprou os direitos autorais da
tensões sociais advindas da Garnier. A outra grande obra são os
escravidão da sua época. três volumes da edição Nova Aguilar,
A minha admiração pelo em papel bíblia, somando mais de
escritor Machado de Assis teve início três mil páginas. Ambas as edições
na adolescência. Textos como A estão longe de estarem completas,
Igreja do Diabo, Missa do Galo, Dom além de serem marcadas por
Casmurro, Memória Póstumas de inúmeras falhas e equívocos, de
Brás Cubas, entre outros, deixaram modo que tal realidade é extensível
fortes impressões no jovem leitor e aos contos.
marcaram minha percepção acerca Na perspectiva do Machado de
da literatura. De modo que acredito Assis contista, a produção ficcional
ter sido importante até hoje a desse gênero merece novos estudos,

101
tanto na crítica literária quanto nos Mônica, resolve entregar o filho à
estudos de história que aproveitam a “roda dos enjeitados”3. No momento 3
Roda dos Enjeitados
obra machadiana considerada como da realização desse ato doloroso, ou Casa dos Expostos
fonte documental. Cândido Neves encontra Arminda, consistia num
mecanismo utilizado
Do ponto de vista dos uma escrava grávida e “fujona”,
para abandonar recém-
historiadores, o escritor é estudado segundo havia lido num anúncio de nascidos que ficavam
principalmente a partir dos romances jornal. Ele logo a captura e a entrega aos cuidados de
e das crônicas. Sobre esse segundo ao seu senhor. Assim que Candinho instituições de
caridade.
gênero, são muitos os estudos que recebe sua gratificação pelo feito, a
abordam o Rio de Janeiro do cronista cativa sofre um aborto. E, dessa
Machado de Assis. Quanto aos maneira, termina o conto: “– Nem
contos, entretanto, faltam estudos todas as crianças vingam, bateu-lhe
amplos e aprofundados. Existem o coração”. (ASSIS, 2007, p. 475)
muitos pontos em silêncio sobre o
Machado de Assis contista. (Cf.
SOUZA, 2013) ASPECTOS DA ESCRAVIDÃO E DE
Sendo assim, a literatura pode TORTURAS NO CONTO “PAI
ser entendida enquanto fonte CONTRA MÃE”
histórica imprescindível para quem
busca uma melhor compreensão Depois de proclamada a
sobre um determinado período República, os republicanos
histórico. Trata-se de rastros projetaram toda uma política de
materiais e sensíveis de uma cultura reconstrução da história e memória
e de uma época. Desse modo, oficial do Estado brasileiro. Para
acreditamos que os textos literários tanto, bandeira, constituição, hino e
são narrativas portadoras de diversas heróis foram construídos, como é o
implicações cognitivas com a história caso de Tiradentes. Nesse contexto,
e, por isso, tentaremos demonstrar o a história de mais de três séculos de
quanto as imagens do conto “Pai escravidão e suas consequências
contra Mãe” representam aspectos da foram sistematicamente alocadas
escravidão no Brasil oitocentista. para debaixo do tapete da memória
oficial do país. Como sabemos, em
14 de dezembro de 1890, Rui
“PAI CONTRA MÃE” Barbosa (1849-1923), Ministro da
Fazenda, determinou que os papéis,
O conto “Pai contra Mãe” foi documentos e livros presentes nas
publicado em 1906, no livro Relíquias repartições do Ministério da Fazenda,
de Casa Velha, última coletânea de relativos à escravidão, como
contos de Machado de Assis. A matrículas dos escravos, ingênuos,
narrativa, em 3º pessoa, descreve a filhos livres e libertos sexagenários,
estória de Cândido Neves, pessoa fossem levados à capital para serem
humilde que casa-se com Clara. O queimados.
casal é agraciado com um filho e os O historiador Robert Slenes
três vão morar com a tia Mônica. (1985) indica que, por muito tempo,
Candinho resolve sobreviver a partir a historiografia brasileira interpretou
das recompensas dadas pela captura a determinação de Rui Barbosa de
de escravos “fujões” e publicadas nos maneira equivocada, como se toda
anúncios de jornais. No entanto, documentação relativa à escravidão
devido à falta de êxito nessa houvesse sido destruída, quando de
empreitada profissional, o casal se vê fato, apenas, uma parte específica
pressionado diante de extrema bibliografia foi queimada. Slenes
situação de penúria e, a pedido da tia (1985) lembra que restou muita

102
documentação sobre a escravidão e e honestidade certas. Era grotesca tal
máscara, mas ordem social e humana
que era preciso uma política urgente nem sempre se alcança sem o
de preservação. grotesco, e alguma vez o cruel.
Contudo, a atitude de Rui (ASSIS, 2007, p. 475)
Barbosa enquanto Ministro
demonstra muito o caráter da política No começo da narrativa temos
empreendida pelos republicanos, isto destilada toda fina e cortante ironia
sem mencionarmos o silêncio oficial machadiana. Cabe refletirmos sobre
do Estado brasileiro diante da essa parte do texto, pois remete a
escravidão ilegal, existente por muito algumas características da
tempo no Brasil oitocentista. É nesse escravidão, negligenciadas pelo
contexto histórico que é publicado o Estado brasileiro do início do século
conto “Pai contra Mãe”. A obra tem XX. No Brasil, as práticas de maus
como tema central a escravidão e tratos e outras violências contra os
seus desdobramentos sociais, o que cativos eram parte constitutiva do
chamou a atenção de muitos críticos cotidiano das cidades no século XIX.
literários e historiadores. Nossa A passagem machadiana pode
leitura indica que o conto pode ser ser lida como uma crítica à
lido a contrapelo à política interpretação da escravidão brasileira
republicana de obscurecimento da enquanto cordial e isenta de violência
história e memória da escravidão no para com os escravos. O ápice dessa
Brasil. Ele representa, especialmente, crítica, por meio da ironia, dar-se na
aspectos fundamentais do sistema seguinte passagem: “Era grotesca tal
escravocrata, como a violência máscara, mas ordem social e
ostensiva e cruel a qual eram humana nem sempre se alcança sem
submetidos os escravos. o grotesco, e alguma vez o cruel.” É
Nos primeiros parágrafos do preciso destacar que esse recurso de
conto, o leitor se depara com linguagem, apresenta-se muitas
imagens dilacerantes da escravidão, vezes a partir da afirmação,
o que torna o texto uma crítica expediente utilizado para ironizar e
contundente à política oficial criticar aquilo que está se afirmando.
republicana, que buscava omitir a Logo, Machado de Assis não está
escravatura da história brasileira, e naturalizando as práticas de violência
uma recusa a qualquer leitura da da escravidão, mas refletindo sobre a
escravidão brasileira enquanto cordial naturalização dos horrores dessa
e isenta de violência. Segue abaixo a instituição e as contradições do pacto
transcrição inicial do conto: social de uma sociedade que se
pretendia moderna e civilizada, mas
A escravidão levou consigo ofícios e que aceitava a escravidão e suas
aparelhos, como terá sucedido a
outras instituição sociais. Não cito
práticas grotescas, principalmente,
alguns aparelhos senão por se ligarem por parte de setores que dirigiam a
a certo oficio. Um deles era o ferro ao sociedade e o Estado brasileiro
pescoço, outro o ferro ao pé; havia oitocentista.
também a máscara de folha-de-
flandres. A máscara fazia perder o
O primeiro parágrafo
vício da embriaguez aos escravos, por representa detalhadamente os usos
lhes tapar a boca. Tinha só três de instrumentos de “torturas”. Sobre
buracos, dois para ver, um para outros objetivos da máscara de
respirar, e era fechada atrás da
folha-de-flandres, o historiador João
cabeça por um cadeado. Com o vício
de beber, perdiam a tentação de Alípio Goulart (1971) indica que:
furtar, porque geralmente era dos
vinténs do senhor que eles tiravam A máscara foi o instrumento usado
com que matar a sede, e aí ficavam preferencialmente para castigar
dois pecados extintos, e a sobriedade escravos dados a excessos alcoólicos,

103
ao furto de alimentos, à ingestão de trajetória, pois, caso contrário,
terra ou barro; sendo que, neste
último caso, como castigo e como
supomos que ele não traria tais
elemento auxiliar na cura dos imagens de forma tão minuciosa e
geófagos (...). Confeccionada em reflexiva para o leitor do século XX
zinco, ou fôlhas-de-flandres, a em diante. Ressalta-se que, quando
máscara cobria todo o rosto,
publicado o conto, o escritor era
prendendo-se ao occiput (parte
trazeira do pescoço – cagote) por uns presidente da Academia Brasileira de
prolongamentos que se fechavam a Letras e consagrado como o maior
cadeado. O aparelho era provido de escritor brasileiro.
pequenos buracos através dos quais o
É preciso mencionar que
“mascarado” via e respirava, sem,
contudo poder levar qualquer existiram no Brasil vários tipos de
alimento à bôca. Havia máscaras que, máscara de folha-de-flandres que
como se fôssem bridões, vendavam variavam no formato. A que fora
sòmente a bôca do seu portador. O
descrita no conto pode ser vista na
castigo da máscara tinha, em regra,
duração prolongada, sendo necessária imagem acima. Existiam outras, e
permissão do senhor para retirada do uma muito comum era a que fechava
aparelho a fim de poder o paciente apenas a boca. Ao escolher a
alimentar-se. Além do sofrimento
máscara de folha-de-flandres, o
físico, que aquêle instrumento não
podia deixar de acarretar, passava escritor preservava as lembranças e
ainda seu portador pela humilhação imagens para os leitores futuros de
do andar por tôda parte de rosto um dos instrumentos mais
tapado. (GOULART, 1971, p. 71)
abomináveis de torturas usados
durante a escravidão no Brasil.
Segundo a historiadora
Nisto, pode-se destacar que o
Mary Karasch (2000), muitos relatos cotidiano dos escravos no Brasil foi
de viajantes indicam que alguns marcado pelas práticas e ameaças de
escravos de determinadas nações,
torturas. Cabe lembrar, o uso comum
como os monjolos, comiam terra dos “anjinhos”, que era um
para se matarem. Karasch pondera, instrumento que prendia os
indicando que, devido à péssima
polegares em dois anéis
nutrição e à fome aviltante, muitos gradualmente comprimidos por meio
cativos ingeriam terra na tentativa de chave ou parafuso, bem como o
última de aliviar a dor da fome, aprisionamento com ferro ou tronco;
enquanto a morte os abraçasse de diversas formas de humilhações e
forma definitiva. Para além de torturas públicas. Destaca-se ainda o
apenas descrever instrumentos de uso forçado do ferro nos pés e
tortura, a passagem inicial do conto pescoços, enforcamentos,
representa o processo de
desmembração, venda de integrante
desumanização e violência, aos quais da família a senhores de outras
os escravos eram submetidos na regiões, entre outras violências.
Corte oitocentista.
Dando continuidade ao
O conto é carregado de parágrafo do conto, vemos:
perspicaz ironia quando, por
exemplo, o narrador diz que não cita Os funileiros as tinham penduradas, à
aparelhos e, logo depois, traz venda, na porta das lojas. Mas não
imagens detalhadas de alguns cuidemos da máscara. O ferro ao
pescoço era aplicado aos escravos
objetos de tortura, como “a máscara
fujões. Imaginai uma coleira grossa,
de folha-de-flandres”. A forma com a haste grossa também à direita
minuciosa que Machado de Assis, já ou à esquerda, até ao alto da cabeça
em idade avançada, retrata tal e fechada atrás com chave. Pesava,
naturalmente, mas era menos castigo
utensílio é a de alguém que conviveu
que sinal. Escravo que fugia assim,
com essas imagens diariamente, o onde quer que andasse, mostrava um
que provavelmente marcou sua
104
reincidente, e com pouco era pegado. torturas da escravidão que mostrava
(ASSIS, 2007, p. 466)
ser reincidente, e assim teria grandes
chances de ser pego, embora sendo
O narrador continua a sabedor disto, andasse com um lenço
descrição etnográfica dos horrores
no pescoço para cobrir as marcas da
desse período, e traz à tona o ferro corrente e de sua condição.
no pescoço, não menos grotesco que Antonio tinha sinais deixados
a máscara, e lembra: “pesava,
pelo uso forçado do ferro no pescoço,
naturalmente, mas era menos cuja função social era marcá-lo,
castigo”. Além do caráter visual e da identificá-lo material e
dor física, o autor evidencia o simbolicamente enquanto escravo ou
aspecto simbólico, ou melhor, o sinal escravo alforriado, e, mesmo que
deixado por tal coleira, que tinha estivesse livre, corria o sério risco de
como um dos objetivos deixarem ser preso ilegalmente. Machado de
marcas nos escravos, caso Assis sutilmente colocou que tal
conseguissem fugir, essas marcas utensílio “pesava, naturalmente, mas
serviriam como rastro de marcas era menos castigo que sinal. Escravo
identitárias, o que era comum que fugia assim, onde quer que
encontrar descritas nos jornais da
andasse, mostrava um reincidente, e
época. Tanto que o senhor Santos, com pouco era pegado”.
morador da Corte, anunciou no Jornal O autor, de forma irônica e
do Comércio, em fevereiro de 1880, sutil, no início do conto “Pai contra
uma gratificação em dinheiro para Mãe”, consegue recuperar imagens
quem recuperasse seu escravo
históricas de aspectos marcantes da
fugido, Antonio, pardo de 30 anos de escravidão urbana no Brasil
idade. O anúncio detalha algumas oitocentista, como a violência física e
características físicas de Antonio:
simbólica, que são instrumentos
basilares para a legitimação e
É ele cheio de corpo, tipo cearense,
altura mais que regular, rosto sustentação da instituição.
redondo, dentes bons, quase imberbe, A narrativa se desenrola na
cabelos pretos e anelados, tem signal cidade do Rio de Janeiro, espaço
de ferro no pescoço e sobre o
urbano que mais recebeu escravos
tornozelo de um dos pés, e de
sevícias nas costas; falla baixo e tem no Brasil durante o século XIX. No
voz um pouco rouca, usar andar com período de 1808 a 1850, a escravidão
lenço no pescoço, com o fim de na Corte teve seu período áureo. Era
encobrir o signal do ferro. (FBN,
a cidade com o maior contingente de
Jornal do Comércio, fevereiro de
1880) cativos do mundo em 1849, como
indica Karasch (2000), alcançando a
O senhor Santos avisa, a surpreendente cifra de quase 80 mil
quem prender o escravo Antonio, que escravos. Mesmo com o crescimento
deve comunicar na Corte a Antonio vertiginoso da população do Rio no
Gomes de Souza, na rua de S. Bento decorrer da segunda metade do
n.34, ou a José Benedicto da Cunha, século XIX, a cidade não alcançou um
e receberá 200$ réis de gratificação. número tão alto de escravos quando
Caso leve-o pessoalmente a estes comparado à população livre.
senhores, receberá do primeiro 300$ Outro aspecto que se destaca
réis e do último 400$ réis. Por fim, no texto é a sutil alusão feita ao
avisa aos leitores interessados que o Valongo e ao tráfico ilegal, como é
fugido Antonio se encontra na apresentada na seguinte imagem:
Parahyba do Sul, onde vive como
Casos houve, ainda que raros, em que
livre. Todavia, como lembra Machado o escravo de contrabando, apenas
de Assis, o cativo tinha marcas de comprado no Valongo, deitava a

105
correr, sem conhecer as ruas da Durante seu funcionamento,
cidade. Dos que seguiam para casa,
não raro, apenas ladinos, pediam ao
estima-se que mais de 20 mil corpos
senhor que lhes marcasse aluguel, e foram jogados no cemitério. Um dado
iam ganhá-lo fora, quitandando. assustador mostra que muitos desses
(ASSIS, 2007, p. 467) escravos mortos se constituíam de
jovens e crianças e, o pior, vários
doentes eram enterrados vivos. O
O narrador traz nessa que dá um teor mais intenso de
passagem a imagem do Valongo, o crueldade. “A combinação de febres
complexo portuário que mais recebeu endêmicas, enterros em massa e
escravos no Brasil, e cenas do doenças infecciosas tornava o
cotidiano de quando o caís estava em Valongo uma das áreas mais
funcionamento, pois, o conto fora insalubres da cidade”. (KARACH,
publicado em 1906, período em que 2000, p. 77) Milhares de africanos
o porto não mais existia, sendo foram enterrados nesse cemitério,
soterrado no decorrer do século XIX. em condições degradantes, em covas
Machado de Assis destaca a rasas, sem nenhuma estrutura
imagem do Valongo e sua relação mínima de higiene e de respeito aos
com o contrabando de escravos e, cultos da passagem para outra vida e
ainda, ressalta que essa conexão aos seus ancestrais.
existiu no passado da Corte e que O porto do Valongo foi
caberia ser lembrada. fechado em 1831, devido ao suposto
O Valongo foi o porto que mais fim do tráfico negreiro imposto pela
recebeu escravos no Brasil. Foi pressão inglesa. Em 1843, foi
construído em 1758 por ordem do recoberto com 60 centímetros de
vice-rei, o Marquês do Lavradio, e pavimento e se transformou no Cais
tinha como objetivo deslocar o da Imperatriz, construído para
comércio de escravos da região do recepcionar Teresa Cristina, futura
Paço (região central da cidade) para esposa de Pedro II, vinda do Reino
a região da Gamboa. Um dos das Duas Sicílias. No período
argumentos utilizados para tal republicano foi aterrado e coberto por
mudança de local era o fato de que ruas e praças. Simbolicamente, é de
supostamente os escravos traziam se notar que uma parte importante
doenças para a população da cidade da história dos africanos e de seus
do Rio. descendentes foi coberta pela
O Valongo era um complexo memória da princesa branca
constituído de ruas e de casas europeia. Atitudes como essa por
comerciais circunvizinhos que parte do governo imperial tinham
tratavam do comércio escravo. Dos uma lógica concreta: a tentativa de
quase cinco milhões de africanos apagar a história da escravidão na
trazidos forçosamente para o Brasil, Corte.
cerca de um milhão devem ter É nesse contexto histórico que
passado pelo porto. O fluxo de seres Machado de Assis destaca a imagem
humanos era tão intenso que, a do Valongo em conexão com o
poucas quadras ao lado, surgiu o contrabando. Em que pese
Cemitério dos Pretos Novos (1779- oficialmente ter sido fechado o porto
1831), como o próprio nome sugere, em 1831 e decretada a lei, no
para enterrar os africanos recém- mesmo ano, que afirmava que os
chegados, mortos devido às terríveis africanos desembarcados após essa
condições de viagem, durante a data no Brasil seriam considerados
travessia do atlântico, e às péssimas libertos e que os contrabandistas
condições de higiene no porto. seriam severamente punidos, o

106
comércio ilegal se intensificou após O Rio de Janeiro era uma
essa data. Para termos uma ideia cidade marcada pela presença social
dessa questão, Sidney Chalhoub e cultural da população negra, livre,
(2012) levanta alguns dados: fugida, liberta e cativa. A escravidão
era a instituição central para o
Desde meados do século XVI até os funcionamento da Corte que estava
anos 1850, chegaram ao país mais de
conectada à lógica internacional de
4,8 milhões de africanos
escravizados; no primeiro quartel do comércio lucrativo, subsidiado na
século XIX (1801-25), entraram diáspora africana.
1012762 africanos; no segundo Voltando ao conto “Pai contra
quartel (1826-50), 1041964, e outros
Mãe”, chama-nos atenção outra
6800 vieram após a nova lei de
proibição do tráfico de 1850. A imagem, logo na primeira página:
aritmética dos dados revela que mais
de 42% das importações de africanos Há meio século, os escravos fugiam
para o Brasil em três séculos de com freqüência. Eram muitos, e nem
tráfico negreiro aconteceram apenas todos gostavam da escravidão.
na primeira metade do século XIX. Sucedia ocasionalmente apanharem
Releva observar que a maioria pancada, e nem todos gostavam de
esmagadora das entradas de apanhar pancadas. Grande parte era
escravizados no último período, 1826- apenas repreendida; havia alguém de
50, mais o número residual da década casa que servia de padrinho, e o
de 1850 destinaram-se à região do mesmo dono não era mau; além
atual Sudeste e ocorreu quando disso, o sentimento da propriedade
tratados internacionais e legislação moderava a ação, porque dinheiro
nacional haviam tornado ilegal o também dói. A fuga repetia-se,
tráfico negreiro. (CHALHOUB, 2012, entretanto. (ASSIS, 2007, p. 466-
p. 35) 467)

As informações levantadas por Podemos indicar que as


Chalhoub (2012) indicam que, após a imagens contidas nesse parágrafo
lei de 1831, o tráfico tornou-se esmeram-se por representar a
intenso. Isto se deveu às baixas escravidão durante o século XIX,
taxas de reprodução natural da quando as fugas foram constantes, o
população cativa e ao surgimento da que de forma iniludível contribuiu
produção de café no Vale do Paraíba, para o fim da instituição no Brasil. O
que fizeram com que se tornassem elemento de tensão perpassava o
mais do que necessária a mão de tecido social do sistema escravista
obra qualificada dos africanos4. Mais brasileiro. O que por sua vez realça o 4
Importante destacar
de 750 mil escravos desembarcaram fato de que os escravos não eram que a mão de obra
no país, após a Lei de 1831, dado agentes passivos às práticas de africana não se
destacava apenas pela
eloquente que revela o peso do torturas e, muitas vezes, a partir de força física, mas,
comércio ilegal neste período. Isto se suas ações, negavam a própria sobretudo, pela
deu por vários motivos. Podemos condição de escravo. Na arguta ironia qualificação do seu
elencar alguns, como: o fim do machadiana, “nem todos gostavam trabalho. Os africanos
eram especialistas no
tráfico negreiro em 1850; a falta de de apanhar pancadas”. trato com a terra, na
condições dignas de sobrevivência; Dessa forma, a fuga foi a produção agrícola e do
as doenças como a cólera, febre principal modalidade de rebeldia e ouro e na criação de
amarela e tuberculose, entre outras, resistência ao cativeiro na Corte animais, pois possuíam
conhecimentos
que ceifaram milhares de vidas; o oitocentista, fato extensivo para tecnológicos avançados
tráfico de cativos para regiões muitas cidades brasileiras da época. na realizações dessas
cafeicultoras; a pressão inglesa pelo Esse ato era uma atitude que poderia tarefas.
fim do tráfico; e, também, as gerar resultados esperados e
próprias ações de liberdades inesperados para os escravos. Por
empreendidas pelos cativos na vida um lado, representaria o fim do
cotidiana da Corte. domínio por parte do senhor e uma

107
maior liberdade diante dos seus recursos jurídicos e econômicos se
desejos, mas, por outro, resultaria na concentravam nas mãos dos
volta ao cativeiro e nas consequentes senhores.
torturas a serem recebidas pelo ato Continuando o parágrafo do
praticado. Mais do que apenas uma conto, temos:
atitude individual ou coletiva, o ato
de fugir de forma deliberada era uma Quem perdia um escravo por fuga
dava algum dinheiro a quem lho
atitude que questionava a própria levasse. Punha anúncios nas folhas
base do sistema escravista, pois o públicas, com os sinais do fugido, o
poder privado do senhor sobre seus nome, a roupa, o defeito físico, se o
cativos é o que define tinha, o bairro por onde andava e a
quantia de gratificação. Quando não
essencialmente um sistema de ordem vinha a quantia, vinha promessa:
escravista. ‘gratificar-se-á generosamente’, - ou
No trecho do conto “Pai contra ‘receberá uma boa gratificação’. Muita
Mãe”, quando se coloca que os vez o anúncio trazia em cima ou ao
lado uma vinheta, figura de preto,
senhores moderavam suas ações sob
descalço, correndo, vara ao ombro, e
seus escravos, pois “dinheiro na ponta uma trouxa. Protestava-se
também dói”, Machado de Assis com todo rigor da lei contra quem o
aponta para o fato de o escravo ser açoitassem. (ASSIS, 2007, p. 467)
antes de tudo um investimento. Isto
fazia com que o senhor mantivesse De modo que Machado de
uma relação tênue e complexa com Assis, pelo fato de ser jornalista e um
seus cativos. Assim sendo, tinha que leitor ativo dos periódicos da época,
demonstrar certo controle e regras, pode ter criado a narrativa do conto
usando de recursos de torturas com base em uma ou mais notícias
físicas e simbólicas, e, ao mesmo que retratavam a fuga de
tempo, tinha que respeitar os pontos escravos(as) e em cartazes de
de vista dos escravos que, mesmo recompensas. A descrição minuciosa
em uma relação desigual de forças, trazida no conto sobre os anúncios de
impunham limites ao controle recompensas na captura de escravos
senhorial. Contudo, nessa tensão fugidos no século XIX é uma fonte
social cotidiana entre os escravos histórica importante, quando
fugidos e os seus senhores e confrontada com outras fontes da
domínios, geralmente os cativos época, como se verifica no anúncio
ficavam em desvantagem, pois os
:

108
FIGURA 1 - Anúncio de recompensa pela captura de escravo fugido

Fonte: <http://novahistorianet.blogspot.com.br/2009/01/escravido-e-resistncia-no-brasil.html>.
Acesso em: 25 abr. 2014.

Gilberto Freyre (1996) social de indicar a posição na


destaca que no Brasil oitocentista o sociedade hierarquizada, que era
tratamento dos pés e os calçados marcada pela extrema desigualdade.
vistosos representavam a ostentação Era comum que o escravo
de pessoas brancas, de classes altas conseguisse o calçado logo que
e a regalia de pessoas livres. Tanto fugido ou conquistado a liberdade.
que, no item “Estrada de Ferro”, do Como assim fez, segundo seu
Almanak Brazileiro de 1876, os senhor, Oscar, escravo fugido de
preços das passagens variavam na dezoito anos, que estava andando
viagem entre Prainha e Raiz da calçado pelas ruas do Rio de Janeiro
Serra. A passagem de 1ª classe e, em especial, pelas áreas do
custava 3.000 réis, de 2ª classe Andaraí. Embora o anúncio descreva
2.500 réis, e para os descalços 1.000 que ele se vestia de forma mais ou
réis, e ainda trazia uma observação: menos decente, era o fato de estar
para os bilhetes de 1ª classe só calçado que lhe dava o estado de se
seriam admitidas pessoas portar como liberto. (FBN. Gazeta de
decentemente vestidas; por sua vez, Notícias, 13 de maio de 1876)
os bilhetes de 2ª e 3ª “classe só Voltando ao conto “Pai
seriam vendidos a descalços e contra Mãe”, Candinho, oprimido pela
escravos”. Então, estar calçado no pobreza e pela falta de oportunidade
Brasil oitocentista tinha a função de acesso a emprego formal, resolve

109
viver da captura de escravos excludente. Ainda sobre a passagem
“fujões”. Sobre essa nova empreitada do conto acima analisado, chama a
profissional do personagem, atenção o fato de Arminda tentar
Candinho ajuíza: “pegar escravos justificar a Candinho que sua fuga
fugidos trouxe-lhe um encanto novo. teria sido motivada pelos maus tratos
Não obrigava a estar longas horas dados pelo seu senhor e que a sua
sentado. Só exigia força, olho vivo, captura resultaria em agressivas
paciência, coragem e um pedaço de surras e torturas. Os maus tratos
corda”. (ASSIS, 2007, p. 470) É eram o principal motivo de fuga
significativa essa parte do texto, pois alegado pelos cativos, como indicam
o movimento de fuga tornara-se tão os jornais e relatos de viajantes da
corriqueiro que era necessário época.
utilizar-se de trabalho privado para Nesse contexto, se justifica
tentar obter resultados satisfatórios à historicamente o uso do conto “Pai
política de controle dos cativos. Contra Mãe” em sala de aula para
que Na separtepercebam
final desse conto,
cenas Candinho,
da desesperado sem enco
escrava fugida Arminda: escravidão, da violência e das
práticas arbitrárias, cometidas contra
Era a mesma, era a mulata fujona. – os escravos no Brasil oitocentista.
Arminda! Bradou, conforme nomeava
o anúncio. Arminda voltou-se sem
cuidar malícia. Foi só quando ele,
tendo tirado o pedaço de corda da CONSIDERAÇÕES FINAIS
algibeira, pegou dos braços da
escrava, que ela compreendeu e quis
fugir. Era já impossível (...). Estou
Machado de Assis indica
grávida meu senhor! Exclamou. Se através do texto “Pai Contra Mãe”
Vossa Senhoria tem algum filho, que compete aos historiadores
peço-lhe por amor dele quem me lembrarem os fatos que, muitas
solte (...). Quem passava ou estava à
vezes, às ordens impostas pelas
porta de uma loja, compreendia o que
era e naturalmente não acudia. elites no presente, não querem que
Arminda ia alegando que o senhor era sejam lembrados, como no caso da
muito mau, e provavelmente a cidade do Rio de Janeiro, no recorte
castigaria com açoites – coisa que,
étnico-racial do século XIX. Pois, se a
estado em que ela estava, seria pior
de sentir. Com certeza, ele lhe Corte tinha sua importância nacional,
mandaria dar açoites – Você é que isto se deve também ao fato de que
tem culpa. Quem lhe manda fazer historicamente foi construída sob
filhos e fugir depois? Perguntou
mãos negras.
Cândido Neves (...). Foi arrastando a
escrava pela rua dos Ourives, em A história da escravidão em si
direção à da Alfândega, onde residia o já é sombria, mas, no caso da
senhor. Na esquina desta, a luta experiência brasileira, ganha
cresceu; a escrava pôs os pés à
parede, recuou com grande esforço,
requintes de crueldades sem
inutilmente (...). O fruto de algum precedentes na história. Além da
tempo entrou sem vida neste mundo. impunidade dos senhores, do Estado
(ASSIS, 2007, p. 474-475) beneficiado por esse sistema e da
não indenização dos libertos e
O conto expõe uma sociedade descendentes, a tentativa sistemática
de relações complexas, onde a de querer apagar os rastros desse
pobreza de maior parte da população crime no decorrer da história do
e a falta de oportunidade de melhoria Brasil é algo grotesco.
de vida afligia tanto pessoas pobres Estudar a escravidão no Brasil
livres, brancas e negras, quanto é se interessar pelos discursos
escravos, embora os escravos (as) silenciosos deixados pelos escravos e
carregassem a parte mais pesada seus descendentes. Muitos não
dessa sociedade desigual e
110
puderam relatar a contento suas Em suas narrativas, Machado
próprias experiências acerca de de Assis, como um homem-escritor
histórias e projetos pessoais. Além comprometido em compreender seu
disso, o Estado brasileiro tempo e seu país, produziu indícios,
historicamente se comprometeu com sinais e vestígios da história da
toda a sua força em apagar as escravidão e de suas implicações
marcas dessa história. Contudo, não sociais, aspectos que se configuram
conseguiu realizar totalmente seus como parte importante da história do
objetivos, pois os rastros e vestígios Brasil. Em especial, no conto “Pai
permanecem indicando os sons, contra Mãe” está preservado
sentimentos e imagens desse literariamente imagens da escravidão
passado. Nisto, o historiador do Brasil oitocentista, cabendo aos
burkinense Joseph Ki-Zerbo (1982) educadores interessados sobre a
afirma que “em algum lugar sob as história e cultura afro-brasileira
cinzas mortas do passado existem olharem com mais atenção para essa
sempre brasas impregnadas da luz narrativa literária, penetrada de luzes
da ressurreição”. que revelam um passado tão próximo
de nós.

Fontes Impressas

Fundação Biblioteca Nacional (FBN).


Periódicos digitais (http://memoria.bn.br/hdb/periodico.aspx):
- Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 13 de maio de 1876.
- Jornal do Comércio. Rio de Janeiro, fevereiro de 1880.
- Almanak Brazileiro, 1876.

Referências

ASSIS, Machado de. 50 contos de Machado de Assis. Seleção, introdução e notas


de John Gledson. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil


oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras 2012.

FREYRE, Gilberto. Sobrados e mucambos: introdução à história da sociedade


patriarcal no Brasil. 9. ed. Rio de Janeiro: Record, 1996.

GOULART, José Alípio. Da palmatória ao patíbulo: castigos de escravos no Brasil.


Rio de Janeiro: Conquista 1971.

111
KARASCH, Mary. A vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo:
Companhia das Letras, 2000.

KI-ZERBO, Joseph. História geral da África. São Paulo: Ática; UNESCO, 1982. v. 1.

OLIVEIRA, Ariosvalber de Souza. Cenas da cidade negra do Rio de Janeiro


oitocentista e outras imagens da escravidão nos contos de Machado de Assis.
Campina Grande, 2013. Dissertação (Mestrado em História) – Centro de
Humanidades; Universidade Federal de Campina Grande.

SILVA, Alberto da Costa e. Um Rio chamado Atlântico: A África no Brasil e o Brasil


na África. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003.

SLENES, Robert W. Escravos, cartórios e desburocratização: O que Rui Barbosa


não queimou será destruído agora? Revista Brasileira de História, São Paulo:
ANPUH; Marco Zero, v. 10, 1985.

112
JOAQUIM NABUCO, A POLÍTICA busca por Nabuco da superação do
ESCRAVISTA E O escravismo através da campanha
ABOLICIONISMO abolicionista, conduzida por ele
dentro dos quadros legais do regime
imperial e concluída pala aprovação
Milton Carlos Costa1 parlamentar da Lei Áurea, que 1
Graduado em História
libertou todos os escravos brasileiros. pela Universidade
Católica de Leuven.
Resumo
Doutor em História
Social pela Universidade
Neste artigo procuramos inicialmente A POLÍTICA ESCRAVISTA de São Paulo (USP).
mostrar a crítica feita por Nabuco da Livre-Docente em
política escravista imperial e, depois, a História pela
Joaquim Nabuco estabelece a Universidade Estadual
sua busca da superação do escravismo
através da campanha abolicionista. Nos
ligação causal entre o regime Paulista “Júlio de
dois momentos do trabalho escravista e o sistema político Mesquita Filho”
imperial. Para ele, a multidão de (UNESP). Professor do
estabelecemos o confronto de suas Departamento de
posições com o tratamento dado aos aderentes ao poder imperial surge História da Faculdade
temas estudados pela historiografia na como o produto do “servilismo” cuja de Ciências e Letras da
variedade de seus pontos de vista. origem radica na escravidão. UNESP, câmpus de
(NABUCO, 1977, p. 65-66) Assis. E-mail:
Palavras chave milton.carlos.costa@hot
Décio Saes postula tese mail.com
Joaquim Nabuco; política escravista;
semelhante a qual faz depender do
abolicionismo.
escravismo não somente a política
Abstract
imperial, mas o próprio Estado
monárquico. Para ele, entre o século
In this article initially we tried to show XVI e o final do século XIX, existiu no
the criticism made by Nabuco about the Brasil “uma formação social
imperial slave politics, then your search escravista moderna”. Essa formação
overcoming of slavery through the estatal dominou o período 1831-
abolitionist campaign. The two moments 1888. A política desse Estado
of labor established the confrontation of escravista permitiu a reprodução das
his positions with the treatment given to relações de produção escravistas. 2
the topics studied by historiography in Sedi Hirano critica
(SAES, 1985)2 Sua tese não deriva, Décio Saes, por não ter
the variety of their views.
contudo, de Nabuco, mas constrói-se submetido a uma
Keywords a partir do estudo de Gorender elaboração teórica
(1988) a respeito do modo de satisfatória a
Joaquim Nabuco; Slave holding policy; superestrutura do
Abolitionism. produção escravista colonial no Estado colonial no
Brasil. Brasil. Cf. HIRANO,
Joaquim Nabuco sustenta a 1988, p. 59.
existência de um “patronato”
exercido pelos dois partidos
INTRODUÇÃO monárquicos, os quais, dispondo do
Tesouro Nacional, distribuem
Joaquim Nabuco destacou-se benesses e mantém sob controle a
como o maior líder do movimento parte necessitada da população de
abolicionista brasileiro, que um país devastado e empobrecido
encontrou nele igualmente seu maior pela escravidão3. 3
A respeito da relação
teórico, como se observa O poder dos partidos deriva entre política e
principalmente na sua obra O patronato no Império,
do escravismo, tomado no seu consultar: GRAHAM,
abolicionismo , de 1883. aspecto tanto político quanto privado, 1990.
Neste artigo buscamos instituição que constitui “um estado
mostrar primeiramente sua no Estado”, muito mais poderosa que
caracterização crítica da política a nação. (NABUCO, 1977, p. 66)
escravista do Império brasileiro e a
113
Portanto, ampliando sua de sua clientela, ligados à economia
de importação e exportação e
caracterização da política imperial interessados na manutenção das
temos agora os partidos escravistas estruturas tradicionais de produção
como manipuladores do patronato. cuja base era o sistema de trabalho
A historiografia brasileira escravo e a grande propriedade.
mostrou-se atenta a esse fenômeno
detectado por Nabuco. Para Faoro, o A permanência das elites no
patronato constitui o aparelho de poder, constituindo-se como
sustentação e expansão da oligarquia – ocupando posições no
“aristocracia”, do “estamento Conselho de Estado e no Senado –
superior”. Trata-se do famoso ocorreu através do “sistema de
estamento burocrático, caro ao clientela e patronagem”. Este último
autor. – de origem colonial – cerceou a
Ele se estruturava de modo ao racionalidade administrativa e
mesmo tempo burocrático e político, ocultou “tensões de classe” e
baseado no Conselho de Estado e no “antagonismos raciais”.
Senado vitalício. Essa camada dotada Tal sistema permitiu que as
de vitaliciedade, “centralizadora”, elites imperiais exercessem papel
mantém a ela submetido o poder hegemônico sobre o resto da
imperial e existe da maneira sociedade, contribuindo para que a
independente da atuação decorativa estrutura política fosse relativamente
dos partidos. (FAORO, 1975, v. 1, p. estável. (COSTA, 1979, p. 11; 14)
390-391; 341-342; 362) Ainda a propósito do
Se o autor aparece patronato, Wilma Peres Costa
impregnado da leitura de Joaquim observa que as oligarquias de caráter
Nabuco como transparece das agrário apoiaram o centralismo
inúmeras citações do mesmo na sua monárquico pós-1850, através de um
obra maior e, também, no seu livro “sistema político” clientelístico do
Machado de Assis: a pirâmide e o “poder privado” sem o desarme do
trapézio [2ª ed. São Paulo: Nacional, mesmo. (COSTA, 1990, v. 1, p. 82) A
1976], em que ele é o autor mais autora aproxima-se de Nabuco pela
citado, seus argumentos em relação importância que atribui ao
à política imperial distanciam-se dos escravismo na conformação do
do famoso abolicionista. Isso porque Estado e política imperiais, embora
não a faz depender das classes ressalte e analise o caráter ambíguo
dominantes escravistas, mas de um do papel exercido pelo aparelho
estamento burocrático que submete estatal.
a tudo e a todos. Joaquim Nabuco considerou os
Emília Viotti da Costa também partidos monarquistas apenas como
dedicou atenção ao patronato. Sua associações usadas na defesa contra
visão do Império – como a dos a miséria. (NABUCO, 1977, p. 170)
autores marxistas em geral – guarda Ele estudou minuciosamente o
parentesco com a de Nabuco, na comportamento dos partidos liberal e
medida em que vê as classes conservador na política imperial,
agrárias escravistas como detentoras referindo-se às vezes também à
do poder estatal e como elites atuação do partido republicano.
manipuladoras do jogo político, dos Em texto de 1886, Nabuco
cargos e das benesses. mostra os partidos monárquicos
Segundo a historiadora: resumidos no Senado, no qual uma
vintena de homens controla o
As elites brasileiras que tomaram o partido. O objetivo dos partidos
poder em 1822 compunham-se de consiste na exploração do Tesouro.
fazendeiros, comerciantes e membros

114
A política dos senadores Tratando do Partido
dirige-se no sentido de conquistar o Republicano, em escrito de 17 de
apoio do imperador, o qual detém o julho de 1884, Nabuco vê como
poder real no país. Embora seguindo causa de seu nascimento o golpe de
na aparência o modelo Estado ocorrido a 16 de julho de
parlamentarista inglês, os partidos 1868 (NABUCO, 1977, p. 31) que,
giram em torno de um patrono, “são como é sabido, derrubou o gabinete
partidos pessoais”. Eles “resumem-se liberal de Zacarias de Goes, sendo
nos cinco ou seis homens de cada um ele um ramo que se destacou do
que passaram pelas diferentes Partido Liberal. (NABUCO, 1949a, p.
provas precisas para merecerem a 191-192, texto de 1º/06/1886) Ele
mais alta confiança do Imperador”. A critica os republicanos pelo fato dos
falta de opinião que pública no Brasil mesmos terem se aproximado dos
deve ser atribuída a tal estado de grandes proprietários escravistas,
coisas. (NABUCO, 1949a, p. 215- num momento em que estes tinham
216) No seu livro O abolicionismo, de se afastado da Coroa
1883, Nabuco culpava a escravidão provisoriamente, o que demonstrou a
pela ausência no Império de uma força do escravagismo. (NABUCO,
opinião pública progressiva, 1949a, p. 95)
adiantada, dotada de patriotismo. Deste modo, Nabuco tem uma
Pelo fato de não existir esta força visão bem clara e criticamente
transformadora, os homens não negativa dos partidos existentes no
tinham valor, não sendo sustentados Império, todos comprometidos com o
pelo país. (NABUCO, 1977, p. 177) escravismo, inclusive o republicano.
Faoro notará, a respeito, a falta de A questão da natureza dos
autonomia tanto da opinião pública partidos no Império tem dividido a
como dos interesses classistas, historiografia. Para Emília Viotti da
ambos dependentes do governo Costa, semelhantemente a Nabuco,
escorado no seu caráter vitalício. eles, apesar de seu antagonismo
(FAORO, 1975, v. 1, p. 390) Joaquim político e programático, comungavam
Nabuco verbera o oportunismo do da mesma determinação de manter a
Partido Liberal, o seu parasitismo do economia de tipo agrário. (COSTA,
trono ao invés de ser um partido 1979, p. 13)
progressista. A organização do Na sua rica pesquisa a
partido é antirreformista, visa respeito da formação do Estado
apropriar-se do poder para a imperial, na qual renovou o enfoque
exploração pessoal e não para marxista do Império a partir da
grandes objetivos nacionais: ele está aplicação apropriada dos conceitos
ligado aos especuladores, mas não gramscianos a seu objeto de estudo,
ao “povo, que cresce na maior Ilmar Rohloff de Mattos mostrou a
degradação física, intelectual e importância do grupo saquarema
moral”. (NABUCO, 1977, p. 228-229) naquele processo. Ele demonstra
Quanto ao Partido como esse núcleo conservador, com
Conservador, nosso autor o define base inicial na província fluminense,
muito bem em poucas palavras: por sua atuação consciente, permitiu
“Sem dúvida o Partido Conservador, que o Estado imperial fosse
eu sou o primeiro a reconhecê-lo, constituído e a classe senhorial
tem todas estas vantagens sobre constituída num mesmo processo.
nós; de ser um partido disciplinado, Nesse os liberais foram integrados à
organizado, ambicioso, previdente, proposta conservadora, perdendo,
paciente, autoritário, escravista, rico portanto, sua identidade política.
e céptico”. (NABUCO, 1977, p. 265) (MATTOS, 1987, p. 2; 5)

115
A uma conclusão parecida já como mediadores entre a Corte e os
havia chegado Isabel Marson, em latifundiários, assim como
investigação publicada antes do livro instrumentos de efetivação da
de Mattos, feita a propósito da burocracia imperial. (URICOECHEA,
Rebelião Praieira, para quem com o 1978, p. 16) Joaquim Nabuco não
esmagamento desta última impôs-se poupou críticas ao Poder Moderador,
o projeto do liberal – exercido por D. Pedro II, que
conservadorismo de modernização do concentrava em sua pessoa,
Império, ao qual foram integrados os legalmente, imensos poderes4. 4
Uma análise da
liberais praieiros derrotados. Em 1883, no seu célebre livro atuação política de D.
Pedro II pode ser
(MARSON, 1981) de propaganda abolicionista, O encontrada em três
Segundo Faoro, as abolicionismo, o escritor afirma importantes estudos
agremiações partidárias, apesar de derivar o poder imperial da biográficos:
sua indistinção quando no governo, escravidão, a qual causou a SCHWARCZ, 1999;
CARVALHO, 2007;
guardavam uma linha própria. O abdicação cívica do nosso povo. Seu BARMAN, 2012.
partido liberal estava bem próximo poder possui natureza objetiva,
do latifúndio, pois seu federalismo deriva daquela “causa perene” e
previa conceder ao poder local o cresceu enormemente devido a ela.
mando político, e também ligado à Assim se desmistifica a tese
inquietação urbana. Quanto ao segundo a qual o poder pessoal seria
partido conservador, sua maior um poder satânico imposto ao povo
proximidade será com os donos do brasileiro. Se o imperador tem
crédito e do comércio, ambos alguma responsabilidade nele, não
dominando o setor rural. Esse partido conseguiria por si só, reverter a
e a monarquia revelaram, desde o situação. O poder, com caráter de
momento da centralização, grandes autonomia e permanência, só o
afinidades – fato ressaltado por encontramos no Poder Moderador. Ao
Nabuco – o primeiro procurando o comparar o poderio do Imperador e o
poder do Imperador chegando regime dirigido por ele com outros
mesmo ao extremo da defesa do poderes e regimes de outros povos,
absolutismo. (FAORO, 1975, v. 1, p. Nabuco vê de maneira certeira uma
341-322; v. 2, p. 455) José Murilo de das características essenciais da
Carvalho, por seu turno, sustenta monarquia brasileira:
que a elite política imperial guardava
uma forte unidade em termos Olhando em torno de si, o Imperador
não encontra uma só individualidade
ideológicos, o que já diminui a
que limite a sua, uma vontade,
importância da divisão partidária individual ou coletiva, a que ele deva
entre liberais e conservadores. sujeitar: nesse sentido ele é absoluto
(CARVALHO, 1981, p. 177) como o czar ou o sultão, ainda que
esteja no centro de um governo
Contudo, as diferenças entre moderno e provido de todos os órgãos
eles existiam: os primeiros estavam superiores, que não tem a Rússia nem
ligados majoritariamente à a Turquia, a supremacia parlamentar,
agricultura visando o mercado que não tem a Alemanha, a liberdade
absoluta de imprensa, que muitos
nacional, além de congregar os poucos países conhecem. Quer isso
elementos da profissão liberal, dizer, em vez de Soberano absoluto, o
enquanto os segundos na sua parte Imperador deve antes ser chamado
principal constituíram-se dos grandes Primeiro-ministro do Brasil. (NABUCO,
1977, p. 171-172)
proprietários ligados à economia
exportadora e dos magistrados.
(CARVALHO, 1981, p. 175-176; Joaquim Nabuco insistiu na
2012, v. 2, p. 83-129) ligação de D. Pedro II com os
interesses escravistas. Afirmou em
Fernando Uricoechea ressaltou
a extrema importância dos partidos texto de 11 de setembro de 1884 que
116
o governo pessoal, que consistia no paralítica. (NABUCO, 1949a, p. 144,
folheto “O erro do imperador”)
domínio do imperador em relação aos
ministros e na alteração dos
gabinetes segundo seus desígnios, foi A posição da historiografia
resulta controvertida em relação aos
o sistema escravista que o criou, de
forma negativa. (NABUCO, 1949a, p. poderes e ao papel do imperador na
252) política do Segundo Reinado. Alguns
autores, numa linha oposta à de
Em escrito de 1886, “O eclipse
do abolicionismo”, nosso autor Nabuco, tendem a minimizar a
sustenta que numa sociedade onde importância do Imperador, sua
havia duas soberanias – a estatal e a influência nas questões políticas e
da escravidão – o imperador não outras do Império.
ultrapassou a fronteira entre ambas, Em primeiro lugar citaremos
sendo vassalo de todos os senhores Caio Prado Júnior, o influente
de escravos embora fosse, de cada historiador que renovou a
escravista, o suserano. (NABUCO, historiografia brasileira na década de
1949a, p. 252) 1930, com seu enfoque marxista da
O caráter cínico e parasitário história do Brasil. Para ele a política
de D. Pedro II refletiu a das forças
da vida política brasileira derivava do
fato do sistema político estar baseado sociais atuantes no Império. Ele
sobre a vontade imperial, a qual não constituiu “um instrumento passivo”
era representativa do seu tempo. do conservadorismo e do
(NABUCO, 1949a, p. 223, artigo de reacionarismo imperiais: “O
imperador é (...) uma figura de
13/12/1886)
E pelo fato do imperador ter segundo plano, que aliás sempre se
em suas mãos o ministério, e o mostrou incapaz de compreender o
processo social que se desenrola sob
Partido Conservador, Nabuco queria
impedir que o soberano pertencesse suas vistas. (...) Nunca passou de
ao escravismo, e que ao contrário se um bom, e mesmo se quiserem, de
um ótimo burocrata”. (PRADO
servisse da força da nação que
concentrava para um objetivo JÚNIOR, 1981)
nacional importante. Isto apelando Emília Viotti da Costa,
para o próprio imperador. (NABUCO, certamente influenciada por Caio
1949a, p. 156, folheto “O eclipse do Prado, considera o poder pessoal um
abolicionismo”) mito. Pela Constituição o imperador
Num dos trechos mais gozava de poderes quase totais, mas
contundentes escritos durante o a Carta os limitava e no decorrer da
história imperial eles foram
período abolicionista da sua vida,
Joaquim Nabuco critica o imperador paulatinamente cerceados. A história
por não resolver os problemas que concreta do Império mostra que
poucas vezes o monarca logrou
afligem o povo e a nação:
impor-se na resolução dos grandes
Do que eu acuso o imperador quando problemas nacionais. A política foi
me referi ao governo pessoal é de não controlada pelas oligarquias,
servir-se dele para grandes fins representadas nos principais órgãos
nacionais. A acusação que eu faço a
esse déspota constitucional é de não
de governo e nas instituições do
ser ele um déspota civilizador, é de Estado. O imperador não foi um rei
não ter resolução ou vontade de absolutista. O exercício do Poder
romper um parlamentarismo Moderador no Brasil, ao expor a
fraudulento como ele sabe que é o
nosso para procurar o povo nas suas
Coroa nos embates políticos, fê-la
senzalas ou nos seus mocambos e alvo de ataques de liberais e
visitar a nação no seu leito de conservadores. O imperador não foi o
responsável pelas características
117
econômicas sociais e políticas do Faoro, por seu turno, tem
Império nem pelas principais posição parecida, porém mais
reformas que ocorreram durante o nuançada. Segundo o historiador, o
período em que governou. Ele estamento burocrático mantinha em
procurou sempre, diante das subordinação o imperador. Este
questões nacionais, consultar as governava de fato, exercendo o
muito poderosas oligarquias, cujo poder pessoal, mas de acordo com a
poder derivava da “estrutura burocracia.
econômica e social brasileira”. Temeroso das revoluções
(COSTA, 1979, p. 302-303) devido às que presenciou, o monarca
Jacob Gorender – que dá guardou para si o exercício de uma
como Nabuco peso decisivo ao ditadura que queria pacífica, popular
escravismo na determinação da e se possível, branda. O Poder
política nacional – defende a tese Imperador impôs-se ao país com
segundo a qual o poder imperial não vigor, baseado em eleições
era tão grande como sustentaram a fraudulentas e nos partidos
oposição da época e historiadores da desligados do povo. (FAORO, 1975,
época republicana. A política de D. v. 1, p. 393; 356-357; 343)
Pedro II sempre teve que levar em O Senado e o Conselho de
conta as pressões institucionais Estado, órgãos vitalícios e poderosos,
(Conselho de Estado etc.) e dos não escaparam aos reparos críticos
grandes senhores escravistas, os de Joaquim Nabuco. Para o nosso
quais estavam também presentes na autor, entrar para o primeiro
política imperial. As tomadas de constituía o desejo da totalidade dos
posição do monarca resumiram as políticos imperiais, pobres e
pressões dos diversos grupos desejosos de escapar dos incertos
dominantes na formação escravista pleitos eleitorais. O resultado dessa
imperial. (GORENDER, 1990, p. 185) situação era a onipotência do
Outros autores tendem a imperador e o aumento desmedido
reforçar – nisso parecidos com do prestígio do Senado, com a
Nabuco – a imagem de um imperador eliminação da Câmara dos
que exerceu poderes reais e Deputados. (NABUCO, 1949a, p.
governou de fato. 220-221, artigo de 13/12/1886)
Sérgio Buarque de Holanda, Quanto à segunda instituição
em posição muito próxima da de citada, afirma Nabuco:
Nabuco, afirma que o imperador
representava a única figura do O Conselho de Estado, por seu turno,
não representa as opinião pública
Estado dotada de estabilidade no nacional. Os conselheiros,
arcabouço imperial. D. Pedro II foi individualmente, se consideram cada
um rei que governou. Sua atenção qual o grande estadista nacional. E o
para os detalhes impediu-o de ter primeiro-ministro enganar-se-ia
profundamente, como se enganaria o
uma visão de conjunto dos
imperador se supusesse que o
problemas. A dedicação minuciosa Conselho de Estado é o cérebro
aos negócios entorpecia o andamento político do país, que ele está em
da administração. Nos negócios do relação direta com a massa da nação
e pode servir de órgão pensante às
Estado é indubitável ter sido sua a
necessidades morais e sociais das
última palavra. O imperador utilizou diversas classes que formam o povo
seus poderes para frear as reformas brasileiro. (NABUCO, 1949a, p. 23-24,
exigidas pela modernização do país – artigo de 16/07/1884)
como a reforma eleitoral, a abolição
da escravidão e outras. (HOLANDA, José Murilo de Carvalho
1972) analisa de maneira valiosa o
pensamento dessa instituição e
118
trataremos de resumir os principais a maior parte dos presidentes de
pontos de seu estudo. O pensamento conselho e dos ministros. Essa
do Conselho de Estado praticamente instituição intensamente política
coincidia com o do governo. Sua reunia o cardinalato político do
maneira de pensar era a do núcleo Império. Sua “política [era a] de
mais importante da elite política homens superiores ao ostracismo e
imperial. O Conselho tinha como aos azares das dissoluções
modelo a Europa. A intervenção do parlamentares, das eleições”. Sua
governo na economia aparece como posição dirigente dependia,
“a tendência dominante” dele. Apesar entretanto, da vontade imperial.
de declararem-se favoráveis a (FAORO, v. 1, p. 389-390; 33; 392-
“ideias” e “exemplos” do Velho 33)
Mundo no terreno político, na prática A Câmara dos Deputados
concreta os conselheiros mostraram- ocupava posição de inferioridade em
se bastante pragmáticos. Eles relação ao Senado, era dependente
aparecem mais como defensores das dos ministros e estava consciente de
prerrogativas do Estado do que sua nulidade. (NABUCO, 1977, p.
daquelas dos setores sociais 170)
dominantes. Da sua posição no topo Dois historiadores confirmam
do aparelho de Estado, os membros a apreciação de Nabuco. Carvalho
do Conselho visualizavam bem as mostrou na sua pesquisa que os
ameaças ao mesmo, mas essa deputados constituíam o grupo
posição lhes impedia a percepção dos majoritário da elite política do
problemas que ocorriam nos “porões Império, mas o que possuía menor
do sistema político”. (CARVALHO, poder também. Contudo “a
1988, p. 107-108; 114-132) deputação era um importante passo
Quanto ao Senado (Cf. LEITE, na carreira política, e a Câmara
1978), Carvalho diz ser ele em sua possuía de direito e de fato mais
composição mais homogêneo que o poder do que nos regimes
Conselho de Estado e o Conselho de subsequentes”. (CARVALHO, 1981)5. 5
A respeito das
Ministros, pois continha maior Faoro diz que a Câmara carreiras políticas no
Império, consultar:
número de fazendeiros sem estudos estava sujeita às reviravoltas LEITE, 1984.
superiores e a metade pelo menos de políticas imperiais, sendo por isto,
seus membros ocupam postos segundo Zacarias, “a confraria dos
ministeriais. A instituição pedintes”. (FAORO, 1975, v. 1, p.
caracterizou-se também por maior 393)
conservadorismo do que aqueles dois A Constituição Imperial de
órgãos do governo citados. 1824 constituía um “epigrama”, pois
Aparentemente seu caráter vitalício e milhões de escravos do Brasil
sua composição social fizeram dele contradiziam seu suposto liberalismo.
um elemento bloqueador das Ela foi usada como instrumento dos
reformas “e de desgaste do próprio senhores de escravos para combater
sistema político”. (CARVALHO, 1981) o ministério Dantas, o qual propunha
Faoro por sua vez considera o uma reforma abolicionista moderada.
Senado e o Conselho de Estado como (NABUCO, 1949a, p. 23, artigo de
partes essenciais de uma estrutura 16/07/1884)
mais ampla de dominação, o Do mesmo modo que Nabuco,
estamento burocrático. Com o Emília Viotti da Costa opõe à
evolver do Segundo Reinado, o Constituição a realidade concreta do
Senado passou a ser a peça mais Império que a desmente. Ela afirma
importante da política imperial. Ele que a legislação de tipo liberal
abrigava os líderes políticos europeu não encontrava aplicação na
escolhidos pelo imperador. Dele saiu prática, mostrando como vários
119
artigos da Constituição eram liberdade de pensamento. Hoje os
tempos são muito diversos: a
praticamente desrespeitados. adoração monárquica está viva
(COSTA, 1979, p. 51-52) apenas nos espíritos de alguns
Já Sérgio Buarque de Holanda subservientes; o fanatismo acabou
realiza uma análise diversa das de nas prisões dos bispos de Pernambuco
e do Pará; a escravidão foi varrida de
Nabuco e Costa. Ele sustenta que,
norte a sul por um verdadeiro simum
para se compreender a política do nacional; e já não há medo de que o
Império, torna-se necessário contar fantasma da guerra se levante dos
com a existência “de uma túmulos do Paraná e do Paraguai para
vir agoirar o nosso futuro pacífico,
constituição não escrita, a qual
liberal e americano. (NABUCO, 1949b,
tolerada pelas duas formações p. 284)
partidárias” se sobrepõe à carta de
24 e ao mesmo tempo vai solapá-la. O que vemos aqui retratado
D. Pedro II procura manter o que com vigor e felicidade é o apogeu e o
existia quando da declaração da declínio da monarquia brasileira,
Maioridade. Depois desta, escolheu através do fastígio e declínio do
livremente seus ministros escorado prestígio monárquico, da escravidão,
na Constituição, e também da política intervencionista do Brasil
interpretou largamente o preceito na área do Prata e do
constitucional que o autorizava a ultramontanismo religioso, o qual
dissolver a Câmara. (HOLANDA, teria vida mais longa do que
1972, p. 21-22) suspeitou Joaquim Nabuco6. 6
Consultar, a propósito
Em resumo, o sistema Nesse trecho, o escritor da atuação da Igreja
Católica no final do
governamental do Império possuía mantém a caracterização do governo Império e na Primeira
conteúdo “patriarcal” e forma imperial como expressão da classe República, o belo livro
parlamentarista, não sendo um agrária escravista; permanece na sua de MICELI, 1988.
regime democrático, mas a “paródia” posição contrária ao ultramontanismo
dele. (NABUCO, 1977, p. 170) qualificado de fanático; expressa
Além da análise suas convicções pacíficas e
extremamente crítica das instituições americanistas (o americanismo
e do sistema político imperial, desaparecerá na sua fase
lembremos agora como Nabuco viu a violentamente antirrepublicana, que
história imperial e alguns momentos dura até que ele assuma a
importantes da mesma, representação brasileira no caso da
estabelecendo uma periodização Guiana Inglesa e voltará quando da
baseada neles e na transformação sua campanha pan-americana).
que sofreram. Em discurso de 14 de Manifesta-se contra as intervenções
setembro de 1885 afirma: brasileiras no cenário platino,
qualificando-as de derramamento
Todos se recordam deste país quando
a monarquia era uma verdadeira
inútil de sangue.
adoração e o imperador era por assim O líder abolicionista fizera
dizer adorado por meio de cerimônias anteriormente várias referências, no
quase religiosas como o beija-mão. seu livro O abolicionismo, à Guerra
Todos se lembram do tempo em que
o escravo ainda não tinha sentido as
do Paraguai, na qual o Brasil gastou
primeiras esperanças de liberdade; 600 mil contos e que foi
em que uma política de tradições politicamente um desastre. Sustenta
suspeitosas tinha os brasileiros que nela a demonstração de
constantemente voltados para o Rio
patriotismo foi dada não pelos
da Prata, onde os governos de uma
classe que nunca se bateu senhores de escravos, mas pelo
sacrificavam em carnificinas inúteis, a proletariado analfabeto. D. Pedro II
flor da população e o exército do levou a Guerra do Paraguai até a
trabalho; em que o fanatismo não
tinha sofrido os primeiros golpes da
liquidação completa do “governo de

120
Lopez”, mas não fez o mesmo uso de Em discurso de 7 de outubro
seu poder para eliminar a escravidão de 1887, na Câmara, a repeito da
no Brasil. Para a sociedade civilizada “questão militar”, Nabuco mostrando-
o Brasil era sinônimo de escravidão: se preocupado com a defesa do país
“Daí a ironia com que foi geralmente em relação aos países do Prata, já
acolhida a legenda de que íamos começa a mudar de opinião em
fundar a liberdade no Paraguai”. A relação a eles, destacando que na
crítica ao Brasil por ter feito a Guerra área do Prata os preconceitos anti-
do Paraguai não significava, Brasil vinham de longe, “apesar do
entretanto simpatia pelo povo Brasil ter ido ali muitas vezes levar a
paraguaio e pelo Paraguai, pois liberdade”. (NABUCO, 1949b, p. 290)
Nabuco os vê bastante Posicionamento esse que abandona
negativamente ao dizer que, se não os anteriores, que viemos
fora a raça negra que criou com seu resenhando e que anunciam as
trabalho a pátria brasileira, o Brasil posições nacionalistas e
seria “somente um segundo americanistas, características de Um
Paraguai, guarani e jesuítico”, o que estadista do Império.
queria dizer provavelmente na sua Ainda a respeito da fase de
ótica: atrasado e fanático. (NABUCO, crise da monarquia, Nabuco produziu
1977, p. 69; 195) Em artigo de 11 de notável análise, em artigo para O
setembro de 1884, lembra ele os País, de 19 de junho de 1884, no
repetidos apelos que fez ao qual mostra como inevitável a queda
imperador – apesar de suas críticas do regime imperial pelos efeitos
ao poder pessoal - no sentido de usar entrecruzados de diversas crises em
deste para abolir a escravidão andamento. Eis os argumentos do
americana, em uma missão escritor-jornalista:
infinitivamente maior e melhor “do
que a liquidação das forças militares Nenhum dos quatro partidos em que
se divide a opinião pode resolver o
do Paraguai”. (NABUCO, 1949a, p.
problema que temos diante de nós.
97) Nós nos achamos em frente de uma
Para ele, a Guerra do Paraguai série de crises, cada qual mais grave.
precipitou o amadurecimento do A primeira destas é a crise financeira,
pelo uso extravagante que fizemos do
emancipacionismo brasileiro,
imposto e do crédito, uso que
principalmente ao pôr-nos em produziu um desequilíbrio
contato com países onde vigorava a irremediável entre a parte morta, a
liberdade. (NABUCO, 1949a, p. 78) que se refere ao passado – a dívida –
e a parte viva ou que é necessária à
Discursando na Câmara dos vida de todos os dias, das nossas
Deputados em 3 de agosto de 1885, finanças. A segunda é a crise
asseverou que a Guerra do Paraguai comercial, ligada à crise financeira
constituiu-se de esbanjamento de pelas relações que o comércio tem
com o Estado, e ligada também à
grandes proporções. Comparando o crise econômica devido ao período de
emancipacionismo imperial com a flutuação em que entrou a
Guerra do Paraguai, o orador diz que propriedade escrava para dele nunca
o Partido Liberal levou o Brasil à mais sair, à transição do trabalho, ao
estado ameaçador do câmbio e ao
guerra sem quartel contra Lopez –
pessimismo da lavoura que quer que
um capricho imperial – enquanto Deus a ajude sem ela se ajudar a si
iniciava o movimento para emancipar mesma. A quarta crise é a crise
os escravos. Depois o imperador, já social, proveniente da anarquia moral,
do enfraquecimento de toda e
não necessitando dos liberais para tal
qualquer autoridade, da falta absoluta
guerra, elevou os conservadores ao de espírito público, das perturbações
poder, paralisando a luta pela causadas pelas crises anteriores, e
emancipação dos escravos. pela ruína do Estado, o qual tem sido
até hoje o pai de todos nós. Quem
(NABUCO, 1977, p. 234)
121
não reconhecer em todas essas crises No próximo tópico deste
inevitáveis, e dentro das quais já nos
achamos de fato, elementos para uma
artigo, veremos como Joaquim
quinta crise – mostra não ter a Nabuco tratou dos problemas
mínima ideia de seismologia social, da sua grande campanha pela
das leis que persistem aos terremotos libertação total dos escravos
dessa espécie.
brasileiros.
Na continuação do artigo é
dito que os partidos liberais e ABOLICIONISMO
conservadores revelam impotência
diante da crise global do Império. O livro O abolicionismo,
(NABUCO, 1949a, p. 19-21) publicado em Londres, em 1883,
Várias coisas chamam a representa a sistematização das
atenção nesse texto que podemos ideias de Joaquim Nabuco sobre a
qualificar de profético. Aí aparece a escravidão e a sua necessária
grande visibilidade que a campanha abolição e a condensação do ideário
abolicionista deu a Nabuco dos abolicionista. (QUEIRÓZ, 1981, p.
problemas e contradições do Império, 52) É, portanto, uma via privilegiada
o que lhe permitiu vislumbrar com
de acesso ao pensamento
acuidade a profundidade da crise abolicionista de Nabuco e o
deste último. utilizaremos para reconstruí-lo.
Nabuco previu, já em 1884, As razões do abolicionismo
como o Império estava são de várias ordens: política,
irremediavelmente condenado. E isso
nacional, econômica e social. A
por intuição política e pela análise escravidão é ilegítima e ilegal. Seus
objetiva de elementos conjunturais malefícios mostram-se inúmeros,
concretos.
entre eles ela impede o
Para o abolicionista, temos desenvolvimento do capitalismo e
cinco crises graves no Império: atiça a luta de classes. A escravidão
financeira, comercial, econômica,
constitui motivo de inferioridade para
social e política (esta em incubação). o Brasil em relação aos estados sul-
Ele mostra a interpenetração, americanos livres. Sua abolição
articulação e potenciamento entre representará uma mudança social
elas, sem esquecer o papel dos profunda. Com a eliminação de
fatores morais e psicológicos na crise escravismo, poderá surgir “uma
geral do Império. pátria comum”, para a qual
Este texto nos parece muito contribuirão todas as classes e
importante, por constituir o estágio
indivíduos que habitam o Brasil. Os
mais avançado do liberalismo motivos expostos, articulados,
reformista de Nabuco na sua análise exigem que a escravidão – empecilho
do regime imperial, cuja primeira
da modernidade brasileira – seja
formulação rigorosa e sistemática abolida e a abolição, feita como “uma
encontra-se no livro O abolicionismo, reforma vital que não pode ser
de 1883.
adiada sem perigo”. (NABUCO, 1977,
Passadas a Abolição e a p. 123-124)
República, Nabuco repensará sua Como se define o
vida, conceitos analíticos e a maneira abolicionismo? Seu objetivo não
de ver a sociedade. O que significará consiste somente em libertar os
sua passagem ao conservadorismo, ingênuos, os escravos ainda
com o qual escreveu Um estadista do existentes, mas também em eliminar
Império, depois de testá-lo em os efeitos negativos do regime
muitos textos de polêmica
escravista. À educação deve competir
antirrepublicana. o liquidar os efeitos culturais da
122
escravidão. Segundo o escritor, “o nasce de um pensamento diverso: o
de reconstruir o Brasil sobre o
abolicionismo é (...) uma concepção trabalho livre e a união das raças na
nova em nossa história política”, cuja liberdade. (NABUCO, 1977, p. 67-68)
ação desagregaria provavelmente os
partidos existentes. O abolicionismo Já detectamos o racismo de
– ao contrário da política seguida Nabuco, mas devemos lembrar
pelos estadistas imperiais – não quer igualmente o seu antirracismo, o qual
deixar que a morte resolva o convive com o primeiro. Num trecho
problema da abolição, que é ao em que lembra a importância do
mesmo tempo da ordem da moral, elemento negro na sociedade
da justiça e “previdência política”. brasileira, Nabuco afirma
Se, para ele, a nova geração formalmente uma posição
educada em princípios diferentes não antirracista em relação a ele: “A raça
provocasse a reação do organismo negra não é (...) para nós, uma raça
nacional, a salvação deste só poderia inferior, alheia à comunhão ou
vir de fora, pela imigração branca isolada desta. (...) A raça negra é um
europeia, supõe-se, a qual operaria elemento de considerável
nele “a transfusão do sangue puro e importância nacional, estreitamente
oxigenado de uma raça livre”. ligada por infinitas relações orgânicas
(NABUCO, 1977, p. 59-60) Aqui se à nossa constituição, parte integrante
explicita mais o racismo de Nabuco do povo brasileiro”. Observa também
que, ora explícito, ora larvar, reponta que a pátria brasileira pertencente a
em muitos momentos de sua obra. outros, foi criação da raça negra, a
Perguntando-se se haverá um qual tem mais direito que eles de
“Partido Abolicionista” para comandar reivindicá-la para si. O Brasil
a libertação dos escravos e liquidar a cometeu um crime ao escravizar os
herança da escravidão, Nabuco negros “que o civilizaram”. (NABUCO,
afirma que a expressão será usada 1977, p. 68-70)
no seu livro como sinônimo do Defensor decidido da
movimento abolicionista em conciliação de classes, nosso
expansão. Observa que o abolicionista assegura que em termos
abolicionismo surgiu junto com “a coletivos a escravidão não jogou o
opinião política” cujo esteio principal, negro contra o seu dominador, nem
a imprensa, constitui importante fez nascer entre as raças dominantes
força democrática. (NABUCO, 1977, e oprimidas “o ódio recíproco”. É
p. 64-65) devido à importância decisiva da
Recorrendo a uma ficção libertação dos escravos que os
política para defender melhor sua abolicionistas aceitam o mandato de
causa, o abolicionista sustenta a defender o interesse desses, e isso
existência de um “mandato da raça em defesa do “próprio senhor e da
negra”, pelo qual os abolicionistas se sociedade toda”. (NABUCO, 1977, p.
transformaram em defensores dos 70-71)
escravos e ingênuos, inconscientes e O abolicionismo possui
sem defesa. natureza conciliadora:
Se bem tenha igualmente
razões humanitárias, o abolicionismo Os abolicionistas que querem conciliar
possui um caráter primordialmente todas as classes, e não indispor umas
contra as outras; não pedem a
político:
emancipação no interesse somente do
escravo, mas do próprio senhor e da
No Brasil, o abolicionismo é antes de sociedade toda; não podem instilar no
tudo um movimento político, para o coração do oprimido um ódio que ele
qual, sem dúvida, poderosamente não sente, e muito menos fazer apelo
concorre o interesse pelos escravos e a paixões que não servem para
a compaixão pela sua sorte, mas que
123
fermento de uma causa, que não se
resume na libertação da raça negra, A escravidão já corrompeu o sangue
mas que é equivalente (...) à brasileiro e, portanto, libertar
reconstituição completa do país. ingênuos e escravos constitui
somente o primeiro objetivo dos
Os escravos não são alvo do abolicionistas. Realizado este, livres
senhores e escravos da escravidão
abolicionismo em sua propaganda.
que os inutilizava “para a vida livre”,
Incitar o escravo à violência poderemos empreender esse
constituiria covardia, que só o programa sério de reformas – das
prejudicaria. A escravidão deve ser quais as que podem ser votadas por
lei, apesar de sua imensa
extinta por lei e não por uma guerra
importância, são, todavia,
civil. Contribuindo para a libertação insignificantes, ao lado das que
dos escravos, os abolicionistas devem ser realiadas por nós mesmos,
querem dar autenticidade à sua por meio da educação, da associação,
da imprensa, da imigração
cidadania. O crescimento do
espontânea, da religião purificada, de
abolicionismo diminuirá os “receios” um novo ideal de Estado. (NABUCO,
de violência e “guerra civil”. Os 1977, p. 201-202)
abolicionistas atacam a instituição
escravista e não os senhores de O projeto reformador de
escravos. A sua propaganda dirige-se Nabuco implicava uma visão de longo
à população livre. (NABUCO, 1977, p. prazo, já que as reformas deveriam
183-184) ser feitas por todos os brasileiros,
Joaquim Nabuco coloca sua individualmente e em termos
grande esperança para a realização familiares, reforma cívica e patriótica,
da abolição da escravatura no poder único meio de erradicação da
governamental. O governo constitui escravidão da sociedade.
um produto do escravismo. Este tem O Brasil deveria ser um país
maior poder que o Parlamento e se de liberdade pronto a receber,
uma nova reforma precisar ser feita, espontaneamente, “a imigração
como a de 1871, ele obedecerá. europeia [que] traga, sem cessar,
Profetizando a provável queda do para os trópicos uma corrente de
Império, o escritor assinala que “essa sangue caucásico, enérgico e sadio,
é a força capaz de destruir a que possamos absorver sem perigo,,
escravidão, da qual aliás dimana, em vez dessa onda chinesa, com que
ainda que talvez venham a morrer a grande propriedade aspira a viciar
juntas”. O governo atualmente e corromper ainda mais a nossa
dominado pelos senhores territoriais raça”. (NABUCO, 1977, p. 202) Em
entrará em luta mortal com eles, na uma nova demonstração inequívoca
sua defesa da “abolição imediata” ou de racismo, juntamente com o
de soluções parciais do problema preconceito anti-negro e anti –
constituído pela escravidão. Existe asiático, Nabuco deixa claro que a
uma opinião pública em formação e reconstrução nacional operada pela
que possui grande influência política, ação do abolicionismo comportava
excluídos os núcleos cafeicultores de também uma “regeneração” étnica
São Paulo, Rio de Janeiro e Minas operada pelo sangue dos europeus
Gerais. O governo mostra vacilação que aqui se misturariam com a
na luta. O abolicionismo deve população brasileira. O abolicionismo
convencer a opinião pública de que a propõe “a reconciliação de todas as
escravidão constitui a ruína material classes” no quadro de uma sociedade
do país. E ela deve convencer o ordeira e moralizada.
poder a fazer a abolição. (NABUCO, Os brasileiros devem fazer a
1977, p. 201-202). O autor aborda educação de seus descendentes,
também outros aspectos da questão: respeitando a liberdade dos outros,

124
pois assim valorizam a própria Suely Robles mostra a
liberdade. Devem praticar o civismo, identidade e a diferença entre o
abandonar a busca de posições pensamento expresso por Nabuco em
políticas, fazer a propaganda dos O abolicionismo com os precursores
ideais liberais. Deve ser praticado um do movimento abolicionista que
liberalismo de preocupação social. Os escreveram nos primeiros 50 anos do
abolicionistas são patriotas e querem século passado. Se a primeira é
que o Brasil exerça a sua missão importante, muito mais é a segunda:
americana. (NABUCO, 1977, p. 203- enquanto a perspectiva destes está
204) ligada à dos senhores, pois estavam
Vejamos agora como alguns preocupados com os malefícios do
historiadores se posicionaram diante escravismo para eles e o conjunto da
das ideias abolicionistas de Nabuco. sociedade, para Nabuco importava
Emília Viotti da Costa dedica em maior grau o escravo. (QUEIRÓZ,
espaço razoável em um de seus 1981, p. 53)
livros para a análise da atuação de Jacob Gorender, depois de
três abolicionistas moderados: Luiz resumir as grandes características do
Gama, André Rebouças e Joaquim livro O abolicionismo, afirmou
Nabuco. Contudo, a parte mais também que o mesmo “sintetizou,
interessante de suas considerações atualizou e potenciou, pela
consiste na comparação que faz eloquência de brilhante difusor de
entre a trajetória de vários líderes – ideias, os argumentos de José
moderados ou não – abolicionistas de Bonifácio, Burlamaque, Perdigão
recrutamento elitista, cujo nome a Malheiro e outros precursores”. Mas
historiografia consagrou, entre eles enganou-se ao dizer que Nabuco
Nabuco. ficou imune ao racismo contra os
Caracterizam-se na totalidade negros, o que já mostramos ser
pela identidade geracional, tendo evidente no abolicionista.
entrado na vida política no decênio (GORENDER, 1990, p. 170)
de 1870, marcado por lutas Passamos agora a tratar de
reformistas. Eles receberam o influxo como a historiografia tem discutido o
da pregação reformadora da época. movimento abolicionista, seu caráter,
Viveram as oscilações da vida seus objetivos. Wilma Peres Costa
política. Seu destino dependeu do destacou a novidade política
sistema oligárquico de representada pelo abolicionismo na
apadrinhamento. Havia ambiguidade cena brasileira:
no seu relacionamento com as
oligarquias. Seu abolicionismo O abolicionismo, com suas
manifestações e comícios, seu
significou ao mesmo tempo
potencial mobilizador da opinião
identificação com o sistema pública dos centros urbanos (...) pode
oligárquico e combate a ele. ser considerado como o grande
O abolicionismo deles atacou o inovador da cultura política do final do
Império, criando de certa forma novos
arcaísmo brasileiro e os identificou à
modelos de ação, que teriam efeitos
Europa civilizada. Abolicionismo para duradouros nas manifestações
eles significava fazer progredir o populares urbanas da primeira década
Brasil. Concluindo, a autora julga republicana. (COSTA, 1990, v.1, p. 3)
que, mais importante que a atuação
dos líderes abolicionistas egressos Emília Viotti da Costa colocou
das elites, “talvez” tenha sido a ação em evidência, sobretudo, o caráter
dos numerosos abolicionistas de urbano do abolicionismo e a atuação
extração étnica diversa cuja luta pela dos abolicionistas radicais e
abolição permaneceu anônima. anônimos. Várias cidades – centros
(COSTA, 1982, p. 82) comerciais – crescem bastante,
125
principalmente o Rio de Janeiro, que absolveu o crime do escravo. Fez do
senhor um algoz e do escravo uma
passa de 274 mil habitantes em 1872 vítima. A campanha abolicionista
a 450 mil em 1886/87. Ocorre a tornou possível a atitude mais
multiplicação de instituições ligadas à favorável de juízes, advogados e da
cultura nas cidades, as quais população em relação ao escravo.
Deu a ele a ferramenta de justificação
conhecem efervescência cultural com
de sua revolta e da condenação da
a proliferação de livrarias, escolas, repressão. Quais foram as condições
jornais, editoras. As profissões que permitiram a emergência do
liberais veem crescer o número de abolicionismo? Com a mudança do
setor produtivo da economia, a
seus membros, assim como outras
escravidão foi perdendo importância
atividades ligadas ao “sistema de em escala nacional. Por outro lado, as
clientela e patronagem”. transformações que permitiram o
Dentre eles encontramos os surgimento de ‘projeto alternativo’
para solucionar a questão ‘da mão-
que se rebelam contra esse último,
de-obra’ tornaram possível o
caso de Rui Barbosa, e os que se abolicionismo. Este com sua
tornaram representantes do mesmo campanha interferiu nas condições
como Andrade Figueira. O produtivas, desmoralizando a
escravidão e onerando o trabalho
radicalismo abolicionista republicano
servil. Finalmente, o fenômeno da
e os renovadores das letras vêm dos fuga massiva das fazendas paulistas
“ressentidos da patronagem”, ligados tem relação direta com a atuação
aos setores da economia menos abolicionista nessa área. (COSTA,
1979, p. 85-86)
vinculados ao escravismo. Havia
diversidade de posições nesses
Quanto aos fatores
grupos diante das reformas. As
mulheres citadinas exerceram papel responsáveis pela efetivação da
decisivo no movimento abolicionista abolição, a historiadora, prefaciando
a segunda edição de sua obra Da
operando de diversas formas. Os
grupos urbanos de extração mais senzala à colônia, critica as razões
humilde – jangadeiros, cocheiros e apontadas por vários estudiosos para
o fenômeno:
outros – atuaram com destaque para
a consecução da abolição. Deve se
A maioria dos autores que tem
notar a presença entre eles de estudado, nos últimos anos, a
imigrantes (poucos) e de mulatos e transição do trabalho escravo para o
pretos (muitos). O protesto desses trabalho livre nas regiões cafeeiras,
não utilizou de uma abordagem
setores urbanos obrigou o dialética. Para Toplin, o fator
Parlamento a reabrir o problema da determinante da abolição é a revolta
abolição. (COSTA, 1979, p. 60-62) dos escravos; para Conrad, são as
Estudando a relação do mudanças demográficas e o processo
político parlamentar; para Slenes e
abolicionismo com a revolta escrava,
Carvalho de Mello é o abolicionismo;
a historiadora sustenta que o para Paula Beiguelman a luta
primeiro conferiu legitimidade à partidária e o emigrantismo.
segunda: Evidentemente, a partir da
perspectiva que adotamos nenhuma
dessas explicações é suficiente, por si
O abolicionismo deu uma nova
mesma, para explicar o processo.
dimensão à revolta do escravo. Deu
(COSTA, 1989, p. 5, nota 18)
ao escravo uma nova percepção de si
mesmo, ao mesmo tempo criou uma
opinião pública mais favorável aos Para Paula Beiguelman, o fato
escravos. Conferiu ao protesto do das áreas mais novas da lavoura
escravo uma dignidade jamais
opor-se ao afluxo de escravos
reconhecida, dando a seu gesto um
significado novo. Concedeu significou que a agricultura
legitimidade à sua revolta e negou desinteressou-se do escravismo,
legitimidade ao sistema escravista. rompendo “o equilíbrio” do mesmo a
Tornou a escravidão um crime e
nível nacional.
126
O eixo articulador da “agitação aspecto da luta entre a Coroa e os
abolicionista” foram as áreas mais proprietários rurais, “os barões”,
novas do Oeste Paulista, que tinham como os denomina. Para ele, o
condições de pagar assalariados, e a conflito entre a grande lavoura
do norte do país, que não podia escravista e o governo imperial
manter a escravatura, que a revela “o pacto” que funcionava
onerava. Estando o trabalho escravo como sustentáculo do “sistema
progressivamente ameaçado em sua político imperial”. O escravismo
organização, a cafeicultura adere ao minava a sociedade e o Estado e
imigrantismo. terminou por destruir este último. A
Em São Paulo, a Sociedade de historiografia recente demonstrou a
Imigração, fundada em 2 de julho de importância capital dos fatores de
1884, evitou a imigração em termos ordem política e demográfica no
individuais, estimulando o processo. Houve reação diferenciada
fornecimento de imigrantes “para a das diversas regiões diante da
área mais nova da província”. questão abolicionista. O Nordeste
Segundo Beiguelman “a abolição é latifundiário queria preservar a
conduzida de acordo com a exclusiva escravidão, mas não estava
conveniência do pequeno setor preocupado com a abolição. As áreas
emigrantista”. (BEIGUELMAN, 1987, de pequena propriedade ou de
v. 1, p. 30-33; 35) pecuária (caso do Ceará) veem a
Robert Conrad atribui a abolição de maneira tranquila. No Sul
abolição da escravatura a um cafeeiro, havia áreas decadentes com
conjunto de fatores: o término do mão de obra “suficiente” e nas áreas
tráfico de africanos, o fato de a novas, houve esforço para importar
população cativa ter declinado mão de obra livre, mas mantendo a
gradualmente com posterioridade a escravidão. Esta região vislumbra a
1850; o tráfico de escravos entre as abolição como catástrofe. Os
províncias; a liquidação do fazendeiros caracterizavam-se por
escravismo norte-americano, que seu pragmatismo na questão da mão
inspirou a libertação do ventre livre de obra: eles procuravam usar a
da escrava; o desgaste da “opinião” existente “e, como a escrava estava
escravocrata, ocorrido especialmente destinada a desaparecer, a solução
nas cidades e províncias mais seria buscar a livre”. Para eles, a
pobres; e a resistência dos escravos, coincidência entre a intensificação
culminando nas fugas massivas dos das ações do abolicionismo popular
anos 1887-1888. com a crise italiana que permitiu a
Qual o papel atribuído pelo vinda de muitos imigrantes depois de
historiador ao movimento 1877 foi ocorrência feliz. Contudo, no
abolicionista na destruição do novo oeste de São Paulo houve uma
escravismo? “Auxiliados por este combinação de mão de obra escrava
constante declínio da instituição [que com a livre “até o final”.
acabamos de resumir], os Passando ao abolicionismo
abolicionistas haviam apressado seu popular, o historiador assinala ter
fim por meio de uma brilhante sido ele a marca distintiva do último
liderança” e conseguiram a abolição período da campanha pela abolição.
“por meio de uma dura e complexa Tratou-se de um movimento
luta” contra os senhores de escravos. principalmente pequeno-burguês. Ele
(CONRAD, 1978, p. 336) rompeu a unidade dos senhores de
José Murilo de Carvalho escravos. De tal maneira que, a 13
realiza análise bem diferente do de maio de 1888, as fazendas
processo abolicionista, estando paulistas na proporção de 1/3
preocupado em vê-lo como um
127
funcionavam com trabalho de ex- a nossa revolução burguesa.
escravos agora assalariados. Desenvolve argumentação
Quanto à relação entre o defendendo de maneira apaixonada o
processo abolicionista e o sistema abolicionismo radical de Patrocínio,
político imperial, temos que durante Antonio Bento e outros, o qual
todo o Segundo Reinado o governo juntamente com a ação
mostrou-se mais inclinado ao revolucionária dos escravos
abolicionismo do que os constituíram os artífices principais da
proprietários. A Coroa encorajou o “revolução abolicionista” no Brasil.
movimento abolicionista. A posição Isso significa minimizar a importância
dos grandes produtores escravistas do abolicionismo moderado,
ligados à economia exportadora foi parlamentar, cujo principal líder foi
de oposição ao abolicionismo do Nabuco.
princípio ao fim. Consideravam Segundo o historiador,
rentável o uso da mão de obra fracassado o projeto de hegemonia
escrava “até o final”. escravista, ressurgiu o abolicionismo,
Optavam-se pelo braço livre, por volta de 1880, o qual se separa
isso se devia ao término fatal da agora dos emancipacionistas,
escravidão, não à ineficácia desta. defensores de medidas graduais, por
Quanto aos elementos causais desejar a abolição sem delongas nem
da abolição e à sua relação com o indenização para os senhores de
sistema político, Carvalho considera escravos. A criminalidade escrava no
que “o impacto dos fatores externos decênio de 1870 mostra como se
foi determinante até 1850. Em 1871 acentuou a rebeldia dos cativos
foi mais fantasiado que real, e em nesse período. Essa insubordinação
1888 foi nulo”. torna-se quantitativamente nova,
No que se refere às razões de quando passa de individual (anos
ordem interna temos no último 1870) para coletiva (decênio de
período do movimento abolicionista a 1880). Nesse período, a atuação
ocorrência pela primeira vez no Brasil autônoma dos escravos consistiu em
de um movimento de massa se tornarem “componentes essenciais
“autêntico”: favorecido pela Coroa, do movimento abolicionista”. Este
ele possui, no entanto, dinâmica deu sentido para a atuação escrava e
própria, englobando setores significou a potenciação desta.
populares (operários, ex- escravos) Analisando a relação entre os
até integrantes da burocracia escravos e o abolicionismo observa
(militares, magistrados). Gorender que eles desejavam a
A abolição não foi nem liberdade e abandonar seus donos.
“doação” nem somente conquista Os cativos “não dispunham de
abolicionista ou de ação escrava. As condições estruturais para formular
revoltas em São Paulo só se deram um projeto nacional e ultrapassar o
com posterioridade a 1887. A âmbito local ou regional, na ação
ausência de rebeliões escravas ou política”. Já o abolicionismo da
seu pequeno número não população livre conseguiu elaborar
significavam passividade dos cativos, “um projeto de transformação
pois eles resistiam cotidianamente nacional”, articulando sua atuação na
aos senhores, o que podia ocasionar escala da nação. A hegemonia
“resultados importantes, embora abolicionista foi aceita pelos
pouco visíveis”. (CARVALHO, 1988, escravos. A atividade desses
p. 50; 75-79; 82, nota 43) radicalizou o abolicionismo m termos
Jacob Gorender, na sua revolucionários.
análise do abolicionismo, tem como Qual a base social do
objetivo principal caracterizá-lo como movimento abolicionista? O
128
abolicionismo, no pico de sua Gorender concluiu, quando ao
atividade, foi a “aliança do acontecimento mesmo da abolição:
movimento urbano popular” com os “Com toda evidência, a abolição não
escravos. Todos os grupos urbanos foi um ‘negócio de brancos’. Foi o
participaram do abolicionismo, com resultado revolucionário da luta
predominância dos elementos vindos autônoma dos escravos conjugada à
das profissões liberais. Apesar de militância do abolicionismo urbano-
próximo da classe média por seu popular radical”. A lei que libertou os
recrutamento social, o abolicionismo escravos constitui somente a
foi dirigido pela burguesia ratificação do que já ocorrera,
“nascente”, através de seus salvando o domínio classista dos
intelectuais, Joaquim Nabuco entre latifundiários, ao livrá-los do que
eles. restava do escravismo. (GORENDER,
O movimento abolicionista 1990, p. 157-159; 164-166; 173-
teve caráter heterogêneo: “A 174; 182)
heterogeneidade social do
movimento abolicionista se prolonga
na heterogeneidade ideológica e CONSIDERAÇÕES FINAIS
partidária, o que se refletirá nas
variantes da ação concreta”. No primeiro tópico deste
O abolicionismo brasileiro artigo procuramos mostrar a crítica
tinha basicamente como objetivo da política escravista imperial feita
transformar o escravo em mão de por Nabuco e no segundo tópico
obra livre e criar condições para o desenvolvemos sua caracterização do
advento do capitalismo. movimento abolicionista. Em ambos
Os radicais e moderados estabelecemos o contraponto de suas
abolicionistas separavam-se na posições com o tratamento dado aos
prática, na questão tática. A tática temas estudados pela historiografia
moderada expressou-se na variedade de suas propostas.
perfeitamente na proposta feita por A política imperial foi vista e
Nabuco da passividade dos escravos analisada pelo nosso autor como uma
na luta e na outra segundo a qual a política escravista, servindo aos
liberdade dos escravos deveria vir objetivos e interesses do escravismo.
através do Parlamento, conseguida A análise de Nabuco não foi
por lei; os radicais, por sue turno, desinteressada: ela se inscreve
fizeram apelo à atuação dos dentro da práxis abolicionista e foi
escravos. Tais abolicionistas feita para servi-la.
hegemonizaram o movimento Somente com a abolição do
abolicionista, o que foi aceito pelos escravismo pensava ele, poderiam
escravos, já que “o contrato social” começar a ser resolvido todos os
implicado por tal fato estimulou-os problemas nacionais.
na sua atuação pela liberdade.

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132
A ABOLIÇÃO NAS AMÉRICAS E A characterized by its eminently economic
SUPRESSÃO DO dimension.
CAPITAL ESCRAVISTA-
Keywords
MERCANTIL
Abolition in the Americas; Slavery;
Suppression of the slave-mercantile
Iraci del Nero da Costa1 capital. 1
Graduado, Mestre,
Julio Manuel Pires2 Doutor e Livre-Docente
em Economia pela
Universidade de São
Paulo (USP). Professor
Resumo
INTRODUÇÃO: AS LIMITAÇÕES aposentado da
DO CAPITAL ESCRAVISTA- Faculdade de Economia,
No artigo Slave-mercantile capital and Administração e
slavery in the Americas, os autores
MERCANTIL Contabilidade (FEA) da
expuseram os elementos embasadores USP. E-mail:
do capital escravista-mercantil e No artigo Slave-mercantile idd@terra.com.br
indicaram as limitações que se capital and slavery in the Americas 2
Graduado em História
impunham a tal forma do capital. No (Cf. PIRES; COSTA, 2012) pela Universidade de
presente trabalho – depois de serem evidenciamos as limitações que se São Paulo (USP).
identificadas, no plano hipotético, as impunham ao capital escravista- Graduado, Mestre e
condições necessárias à superação do mercantil3. Assim, não podia ele ver- Doutor em Economia
capital escravista-mercantil – são pela USP. Professor
se reproduzido autonomamente, pois Doutor da Faculdade de
apontadas as causas históricas imediatas
das quais resultou, para as nações e
devia sua reprodução a algumas Economia,
demais dependências políticas existentes condições que lhe eram imanentes e Administração e
a outras que, para ele, definiam-se Contabilidade de
nas três Américas, a aludida superação. Ribeirão Preto da USP
Discute-se, também, a relação existente como dadas, pois independiam de (FEA-RP/USP) e
entre a extinção do escravismo, sua existência e situavam-se no Professor Titular e do
enquanto elemento de caráter político, e âmbito da economia mundial, quais Programa de Estudos
a supressão do capital escravista- sejam: mercados fornecedores de Pós-Graduados em
mercantil, que se caracteriza por sua Economia Política da
mão de obra cativa e mercados Pontifícia Universidade
dimensão eminentemente econômica.
absorvedores da produção exportável Católica de São Paulo
Palavras chave
ofertada pela economia escravista. A (PUC-SP). E-mail:
estas últimas, somavam-se, pois, as jmpires@usp.br
Abolição nas Américas; Escravidão;
Superação do capital escravista- condições de ordem endógena: 3
Sobre a categoria
mercantil. institucionalização do escravismo, “capital escravista-
escravistas desejosos de acumular e mercantil”, veja-se:
a massa de cativos disponível PIRES; COSTA, 2010.
Abstract internamente. Como avançado, as
condições exógenas fugiam à ação
In the article entitled Slave-mercantile imediata do capital escravista-
capital and slavery in the Americas, the mercantil cuja supressão, portanto,
authors exposed the elements
poderia advir de um ou mais eventos
underlying the slave-mercantile capital
and indicated the limitations that were
originados na órbita externa, na
imposed to such capital. In the present interna, ou colocados nessas duas
article – after having being identified, in esferas, pois, a falta de qualquer
the hypothetical plan, the necessary pressuposto, endógeno ou exógeno,
conditions for overcoming the slave- seria bastante para provocar sua
mercantile capital – it presents the ruptura.
immediate historical causes of this A consequência mais
overcoming for the nations and other significativa das características
existing colonies in the Americas. It
reportadas acima está em que, por
discusses also the relationship between
the extinction of slavery, as part of a
ser incapaz de reproduzir
political character, and the suppression integralmente suas próprias
of the slave-mercantile capital, which is condições de existência, o capital

133
escravista-mercantil não podia, pois, um processo único: o da superação
dar suporte a um específico modo de do escravismo. Processo este no bojo
produção. Destarte, o lapso temporal do qual atuaram de maneira solidária
de sua dominância em dada área ou e integrada – com pesos relativos
nação deve ser tomado – por mais distintos, é verdade – fatores de
longo que se apresente – como um caráter político, social e econômico.
período de transição. No caso do Note-se, ainda, que a solidez
escravismo moderno tratou-se, ou robustez do escravismo, bem
efetivamente, da incorporação à como a coesão interna de dada
economia mundial, já fortemente sociedade escravista, não bastavam,
impregnada pelo capitalismo que per se, para garantir a subsistência
conhecia os momentos iniciais de sua do capital escravista-mercantil, pois,
afirmação definitiva, de terras como afirmado acima, a presença de
praticamente virgens ou de áreas tais atributos só era relevante para a
mais densamente povoadas cujos manutenção dos determinantes de
autóctones conheceram o total ordem endógena desta específica
derruimento do destino que lhes era forma de existência do capital.
traçado pelas formas de existência Do acima posto, conclui-se
social, econômica e política sob as que o estudo da supressão do capital
quais viviam antes da chegada do escravista-mercantil confunde-se
colonizador europeu. com o da abolição do escravismo. A
No que tange ao Novo Mundo, este respeito é crucial o
como sabido, a transição acima entendimento sobre a dimensão
aludida culminou com a política – encarnada pela abolição do
transformação radical das relações de escravismo – e o aspecto econômico
produção – de escravistas para consubstanciado no capital
capitalistas – e a correlata escravista-mercantil; isto significa
metamorfose do capital escravista- que a eliminação (superação) deste
mercantil em capital “industrial”, vale último só poderia se dar mediante a
dizer: em acumulação calcada na ação política, ou seja: a abolição da
exploração da mão de obra escravidão.
assalariada. Além disto, na medida Assim – e aqui falamos em
em que, no âmbito das sociedades termos hipotéticos e não exaustivos
escravistas modernas, foram, a –, o golpe mortal contra o capital
pouco e pouco, consubstanciando-se escravista-mercantil (ou seja, contra
as condições para o estabelecimento o escravismo), nesta ou naquela área
generalizado do trabalho assalariado, e/ou nação, poderia decorrer de
a transição para estas relações de uma, ou da combinação de duas ou
produção – inclusive com a presença mais, das seguintes causas
de formas de exploração do trabalho imediatas: 1) imposição da
livre como os contratos de parceria, metrópole com respeito a suas
de locação de serviços e o sistema do dependências coloniais; 2) imposição
colonato, adotados no Brasil – não de nação estrangeira em decorrência
assumiu, do ponto de vista de atritos econômicos e/ou armados;
estritamente econômico, caráter 3) decisão política adotada de
traumático, dando-se o mesmo com maneira unânime pelas próprias
respeito à transformação do capital elites escravistas dominantes ou
escravista-mercantil em capital decorrente de uma cisão no corpo de
industrial. Destarte, as mudanças tais elites de sorte a levar a um
havidas não decorreram de uma confronto entre as facções
“revolução burguesa” no sentido discordantes do qual, no caso, sairia
clássico da expressão, mas devem vencedora a ala favorável à abolição;
ser definidas como duas facetas de 4) sublevação dos cativos; 5) uma
134
forte expansão da demanda cota de mortos em combate. É esse o
argumento de Bolívar em apoio às
internacional por tal ou qual bem providências que tomou, e que não
produzido por dada economia eram aceitas pelos proprietários de
escravista poderia levá-la a encontrar escravos. A escravidão doméstica
tamanhas restrições quanto ao perde importância, enquanto a
agrícola resiste melhor nas zonas das
aliciamento de mão de obra cativa
plantações, que não poderiam
que a busca de uma alternativa não- sobreviver sem ela. Ainda em 1827,
escravista se impusesse; 6) sua importância na Venezuela é tão
correlatamente, a retração violenta grande que justifica uma tenaz defesa
por parte dos latifundiários. Onde a
dos mercados mundiais para os bens
escravidão se conserva, a disciplina
oferecidos por dada economia da mão de obra escrava perde boa
escravista poderia levá-la, no médio parte da sua eficiência. A
prazo, ao colapso, pois faltar-lhe-iam produtividade cai na Venezuela e na
costa do Peru (e aqui de modo
os recursos para sustentar-se
catastrófico), o mesmo ocorrendo nas
enquanto tal; 7) a supressão do zonas mineradoras de Nova Granada,
tráfico também conduziria, na falta nas quais se empregava mão de obra
de uma oferta interna renovável de africana. (DONGHI, 1975, p. 83)
cativos4, inexoravelmente, ao
desaparecimento, em prazo mais ou Ademais, o fim do tráfico de 4
“Hasta en los Estados
escravos e o impacto dessa medida Unidos, después de que
menos dilatado, do escravismo e, la zona intermedia entre
portanto, do capital escravista- sobre o mercado de escravos los estados del Norte,
mercantil. implicou a inviabilização econômica en que regía el sistema
Examinemos mais de perto cada vez maior das atividades de trabajo asalariado, y
assentadas na mão de obra cativa. los estados esclavistas
algumas situações concretas nas del Sur, se transformó
quais, cremos, podem ser en una zona de
A implantação e substituição da mão
identificadas algumas das causas abastecimiento de
de obra coloca problemas; a longo
aventadas acima. esclavos, en que, por
prazo, a escravidão não consegue
tanto, el esclavo
No que concerne a alguns sobreviver na América espanhola sem
lanzado al mercado
países da América do Sul, houve, o tráfico; e, com as crescentes
esclavista se convertía a
dificuldades do mercado, o preço dos
segundo Tulio Halperin Donghi, uma su vez en elemento de
escravos – onde eles são empregados
influência decisiva das guerras de la reproducción anual,
em atividades produtivas – cresce
llegó un momento en
independência na conformação e no rapidamente; ao longo da costa
que esto no bastaba y
ritmo do processo de abolição da peruana, durante a década posterior à
fue necesario recurrir
revolução, o seu preço triplica. O
escravatura. Com efeito, a partir dos por el mayor tiempo
instituto da escravidão, antes de ser
conflitos armados a caracterizar a posible a la trata de
abolido (quase por toda parte na
esclavos africanos para
luta pela independência comandada metade do século) perde importância.
tener el mercado
por Bolívar e San Martín Os negros emancipados não serão
abastecido”. (MARX,
reconhecidos como iguais à população
1964, p. 426)
branca e nem mesmo à mestiça; mas
o significado da escravidão se
a posição deles será profundamente
modificou: embora os novos Estados
diferente numa sociedade que, se não
não se demonstrem dispostos a aboli-
é igualitária, organiza porém as
la (escolhem, ao contrário, situações
desigualdades de um modo diverso da
de compromisso, como a proibição do
velha sociedade colonial. (DONGHI,
comércio e a liberdade para os filhos
1975, p. 83-84)
dos escravos, inovações de alcance
mais limitado do que poderia
parecer), a guerra os induz a Detenhamo-nos, adiante, em
emancipações cada vez mais amplas; alguns processos de emancipação
e as guerras civis serão ocasião de
novos passos nessa direção (...) A
verificados em distintos países e
emancipação tem a finalidade de áreas das Américas. A maior atenção
recrutar soldados; e, além desse aqui dispensada ao exame dos casos
objetivo imediato, em alguns casos se norte-americano, cubano e brasileiro
busca explicitamente conservar o
equilíbrio racial, garantindo que
devem-se não só à maior densidade
também os negros forneçam a sua da literatura pertinente, mas também

135
à maior importância relativa destas fazendas a uma disciplina militar”.
três nações no conjunto do (FONER, 1988, p. 29) Tais
escravismo americano. imposições decorriam de uma
tentativa de não isolar política e
economicamente o Haiti do restante
O HAITI E A REBELIÃO NEGRA do mundo5, bem como de estabelecer 5
Tal tentativa viu-se
uma política conciliatória com os frustrada pela reação
desfavorável das
Segundo país do continente a fazendeiros brancos, uma vez que a potências européias e
tornar-se independente, após os grande propriedade rural voltada à dos Estados Unidos à
Estados Unidos, a parte ocidental da exportação era encarada como a nova nação. Segundo
Ilha de Hispaniola, no Caribe, chave da prosperidade para o país. Craton, “esse novo e
orgulhoso país e sua
contava, às vésperas da Revolução, Apesar de demonstrar este economia foram
com cerca de 550.000 habitantes, tipo de preocupação, Toussaint é imediatamente
80% dos quais escravos. (CARDOSO; derrotado por Charles Leclerc, marginalizados, tanto
BRIGNOLI, 1983, p. 147) A vida cunhado de Napoleão, em 1803, e pelo espírito
independente dos
econômica e política do Haiti era enviado para a França, onde é próprios haitianos
monopolizada por uma elite reduzida executado. quanto pela calculada
de brancos e mulatos, impedindo-se Jean-Jacques Dessalines indiferença ou o
de forma definitiva a ocupação de assume então a liderança na luta dos antagonismo ativo,
baseado na paranóia
cargos públicos e profissões liberais haitianos e consegue expulsar racista, das principais
por parte de negros, mesmo se novamente os franceses, criando a potências, inclusive os
libertos. Como sabido, a base segunda república do Hemisfério Estados Unidos”.
econômica principal do Haiti era a Ocidental em 1806. Com a ascensão (CRATON, 1995, p. 32)
produção de açúcar, seguida do café, ao poder de Dessalines, a política 6
“Ao longo do século
anil e algodão. conciliatória de Toussaint em relação XIX, o Haiti teve a mais
As revoltas – iniciadas em aos fazendeiros foi drasticamente baixa porcentagem de
1758 sob a liderança de Makandal e abandonada – tendo sido trabalhadores sem terra
entre todas as ilhas das
sufocadas em sua maior parte – massacrados os brancos Antilhas”. (FONER,
retornaram, no outono de 1791, com remanescentes e incorporando-se as 1988, p. 30).
amplitude revolucionária, envolvendo fazendas ao patrimônio do Estado.
praticamente todo o território Entretanto, a crença de Dessalines de
haitiano. Os escravos rebelados que apenas a agricultura de
incendiaram os canaviais e exportação seria capaz de garantir a
expulsaram os exércitos franceses. manutenção de um exército forte e,
Com a vitória sobre as forças desta forma, consolidar a
francesas, François Toussaint, independência da nação, levou-o a
também conhecido como Toussaint preservar a política de trabalho
Louverture, proclamou a forçado, a qual não diferia muito da
independência e a libertação dos escravidão, inclusive por empregar o
escravos, mantendo-se, todavia, açoite como medida disciplinadora.
dentro da federação francesa. (FONER, 1988, p. 29)
Ainda durante o processo de Esta legislação punitiva e
consolidação do novo poder político, rigorosa quanto à obrigação de
a crise e o bloqueio econômico trabalhar manteve-se, com pequenas
imposto pela França que se seguiram alterações, nos governos
à guerra de independência imediatamente seguintes, tendo sido
condicionaram fortemente a política suplantada, ao longo do século XIX,
de Toussaint relativamente à mão de pela emergência do campesinato
obra. Foi instituído “um rígido haitiano, mediante a ampliação do
sistema de trabalho forçado, acesso à propriedade da terra6.
anulando vendas de terras anteriores
para trabalhadores rurais e
sujeitando os trabalhadores das
136
NO CANADÁ, UM PROCESSO efetuadas por indivíduos interessados
ORDENADO DE LIBERTAÇÃO no comércio de cativos.
Por fim, cabe uma referência
No Canadá, como em outras ao Webster-Ashburton Treaty,
dependências coloniais da Coroa assinado em 9 de agosto de 1842,
Britânica, a emancipação dos que abrangeu vários problemas e
escravos deu-se de modo ordenado e disputas então existentes entre os
sem a ocorrência de confrontos Estados Únicos e a colônia britânica
generalizados de caráter violento. do Canadá; entre tais questões
Destarte, sem desprezar ações colocou-se a supressão do comércio
condenáveis perpetradas por de escravos africano.
escravistas – as quais, diga-se, Assim, embora no Canadá a
estimularam o abolicionismo –, pode- escravidão não tenha atingido as
se afirmar que no Canadá o aludido mesmas proporções observadas em
processo mostrou-se precoce e, outras áreas do Novo Mundo, os
embora paulatino, conduziu os movimentos favoráveis ao término da
poderes constituídos a imporem, aos escravatura ali observados foram
resistentes proprietários de cativos, a marcantes.
supressão definitiva da escravatura.
Cumpre anotar, também, que,
no âmbito das possessões britânicas, NAS ANTILHAS E NAS GUIANAS,
desenvolveram-se na área canadense A PRESENÇA METROPOLITANA
as ações pioneiras visando à 7
Nas colônias
abolição. Assim, em 9 de julho de O fim da escravidão nas britânicas espalhadas
1793, é aprovada, na Province of Antilhas e Guianas decorreu, por todo o mundo, algo
Upper Canada (hoje correspondente imediatamente, de decisões tomadas em torno de 700.000
a parte sul da província de Ontário), no âmbito das metrópoles às quais se pessoas foram
libertadas, 311.000 só
a lei An Act to Prevent the further encontravam subordinadas essas na Jamaica e 83.000
Introduction of Slaves and to limit áreas. No caso das colônias em Barbados.
the Term of Contracts for Servitude administradas diretamente pela
8
within this Province. Esta lei, que fez Coroa inglesa, a legislação referente No mesmo sentido,
Craton afirma:
de Upper Canada a primeira à emancipação por estágios foi “resultasse ou não da
dependência colonial britânica a imposta diretamente, tendo sido freqüentemente alegada
abolir a escravatura, vigorou até a negociada quando a colônia tinha tendência nacional
aprovação, em 1833, do Slavery legislação própria. (CRATON, 1995, britânica no sentido da
mudança evolutiva, em
Abolition Act, ao qual se deve a p. 46) vez da revolucionária, e
abolição, a contar de 1834, em quase O processo que levou à de uma concomitante
todo o Império Britânico. emancipação dos negros nas colônias facilidade de adaptação
A Province of Lower inglesas nas Antilhas e na América do pragmática, o processo
nas Índias Ocidentais
Canada (cobria a porção sul da Sul7 – iniciado a partir da proibição Britânicas demonstrou
moderna província de Quebec e na do tráfico britânico de escravos da aspectos de um
região de Labrador da moderna África em 1808 – foi radicalmente ‘continuum’, com
província de Newfoundland e distinto ao observado no Haiti, como antecipações e
sobrevivências de cada
Labrador) também conheceu o teremos oportunidade de ratificar lado da emancipação
movimento abolicionista; assim, em mais adiante. “Se no Haiti a abolição formal dos escravos, em
1803 foram libertados cerca de três se realizou através da revolução, no lugar de fases
centenas de escravos dessa Caribe inglês o processo refletiu tudo profundamente
marcadas e mudanças
província. Não obstante, é preciso o que é quintessencialmente inglês: abruptas”. (CRATON,
lembrar que tal ação não se deu em respeito pela ordem, processos legais 1995, p. 33)
decorrência de dispositivos legais, e direitos de propriedade”8. (FONER,
muito embora juízes dessa província 1988, p. 33)
não dessem respaldo a reivindicações A manumissão nas possessões
britânicas caracterizou-se, sobretudo,
137
pela intenção de gerar o menor atrito incondicional dos aprendizes em
possível com a classe de 1838. (FONER, 1988, p. 38-39)
proprietários de escravos; buscou-se Nas demais colônias europeias
preservar em suas mãos tanto a do Caribe também o processo foi
propriedade da terra como o poder definido a partir de decisões tomadas
político. Ademais, o governo inglês nos respectivos centros
indenizou os antigos donos de metropolitanos. “Depois de medidas
escravos com 20 milhões de libras. parciais, os franceses aboliram a
(FONER, 1988, p. 33) Inicialmente, escravidão em 1848, tendo a
as autoridades britânicas buscaram – revolução daquele ano agido como
mediante a instituição do catalisador. A Holanda, também
aprendizado – uma solução depois de medidas parciais, protelou
conciliatória entre, de um lado, a até 1863 a abolição final”.
opinião pública antiescravocrata e (CARDOSO; BRIGNOLI, 1983, p.
seu próprio compromisso público com 150) Tenha-se presente que tanto a
a ideia do trabalho livre e, de outro, abolição promovida pela França
os interesses da classe de (1848) como a decretada pela
9
proprietários de escravos. Também Holanda (1863) também abrangeram A controvérsia
fundamental opõe
pesou, na decisão de estabelecer o suas dependências na América do Williams e Drescher. O
aprendizado, a desconfiança Sul: Guiana Francesa e Suriname, primeiro atribui ao
relativamente ao comportamento do respectivamente. É importante notar interesse inglês razões
manumitido. Segundo a lei de 1833, que em todos esses casos a decisão de ordem
fundamentalmente
“todos os escravos na lavoura desses dois países europeus também econômica, relacionadas
serviriam por seis anos como foi acompanhada de uma ao declínio da
aprendizes, período durante o qual compensação monetária aos importância dos fluxos
seriam pagos por seus trabalhos, proprietários dos escravos de produção e comércio
de mercadorias e
permanecendo, porém, sujeitos a manumitidos, tendo sido facilitada, escravos entre a
regulamentações severas ademais, pelo fato de tais Inglaterra e Antilhas e a
determinadas pelas legislaturas proprietários constituírem uma incompatibilidade entre
coloniais”. (FONER, 1988, p. 36) parcela restrita das burguesias as exigências do
desenvolvimento do
Pretendia-se, desta maneira, metropolitanas. Há a considerar,
capital industrial inglês
assegurar um processo de transição ademais, a abolição da escravatura e o escravismo.
o menos traumático possível entre a em Porto Rico, devida a decisão Seymour, baseado em
escravatura e o trabalho livre. tomada, em 1873, pela Assembleia amplo conjunto de
dados, procura mostrar
O resultado de tal tentativa foi Nacional da Espanha. Seguindo o que aos anos
um fracasso evidente. Um dos mesmo perfil acima reportado, os imediatamente
principais problemas de que se escravistas de Porto Rico viram-se anteriores ao fim do
revestiu o aprendizado foi o fato de o igualmente contemplados com tráfico de escravos
corresponderam
governo inglês deixar as indenização pecuniária. volumes ascendentes de
regulamentações pertinentes a cargo Assinale-se, também, que as exportações de algodão
das assembleias locais, dominadas feições genéricas, acima apontadas, e açúcar das Antilhas
pelos grandes proprietários. As penas assumidas pelo processo de abolição para a Inglaterra,
ocorrendo o mesmo
extremamente severas impostas do trabalho escravo nas referidas
com o tráfico de
pelos legisladores caribenhos aos dependências coloniais não comporta escravos. As razões
menores deslizes e resistência ao qualquer dúvida; a polêmica básicas relacionadas ao
trabalho por parte dos ex-escravos, existente – e ela foge ao escopo fim do tráfico e
posterior abolição,
as quais “‘cheiravam’ em excesso a deste artigo – diz respeito às razões
segundo este autor,
um retorno da escravidão”, fizeram associadas ao interesse pelo fim do devem ser buscadas,
com que as autoridades britânicas – tráfico e da escravidão por parte das sobretudo, no
pressionadas por uma opinião pública potências europeias, notadamente no movimento
abolicionista. Para mais
desfavorável ao aprendizado – que se refere à Inglaterra9. detalhes, ver:
impusessem o fim deste Outros fatores, e não apenas WILLIAMS (1975) e
experimento, decretando a liberdade relacionados aos interesses e DRESCHER (1977).
138
disputas internas às Metrópoles, definitivamente em 1851, sob a
devem, no entanto, ser agregados. presidência de Manuel Isidoro Belzu.
Entre estes destaca-se o “exemplo” Mesmo assim, os ex-cativos foram
haitiano e a eclosão frequente de reduzidos à condição de
revoltas de escravos em toda região, trabalhadores rurais nos quadros de
as quais amedrontavam tanto as um sistema semi-feudal de
autoridades metropolitanas como os exploração da mão de obra, sistema
proprietários locais, impelindo-os a este que perdurou até o meado do
vislumbrarem na manumissão geral século XX.
uma alternativa menos ruim. No caso
das possessões britânicas na América
cabe citar as rebeliões de escravos  A luta política como
ocorridas em Barbados (1816), protagonista: Argentina, Peru,
Guiana Inglesa (1823) e Jamaica Equador e Uruguai
(1831-32). (CRATON, 1995, p. 32-
33) Já em outras nações, que
também estavam a se formar, a luta
política e os confrontos militares
ALGUNS CAMINHOS PARALELOS desempenharam papel central; no
âmbito de tais conflitos intestinos
Algumas áreas conheceram e/ou externos, e atendendo a
processos abolicionistas bem menos variados interesses, deu-se a
traumáticos do que aquele vivenciado superação do trabalho escravo. Aqui
no Haiti. Tais condições desenharam- comparecem a Argentina, cujo
se no Chile, no qual a lei do ventre tortuoso caminho rumo à abolição
livre foi implementada em 1811 e a efetiva só foi alcançado em 1853; o
manumissão definitiva viu-se inscrita Peru, onde a libertação efetiva dos
na Constituição de 1823; na escravos decorreu da luta armada
Colômbia – da qual, à época o entre dois contendores políticos que
Panamá era uma província –, com lei almejavam o controle do poder
do ventre livre datada de 1821 e com central – o General José Rufino
abolição efetivada em 1852, Echenique que era o Presidente
recebendo os ex-escravistas Constitucional da República e o
indenização na forma de bônus pago General Ramón Castilla o qual se
pelo Estado; assim como na apresentava como Presidente
Venezuela, na qual se consagrou a lei Provisório –, enquanto o primeiro
do ventre livre em 1821 e a abolição prometia a liberdade aos que se
deu-se em 1854 mediante decreto do engajassem em suas forças, o
Congresso da República, a qual segundo – que resultaria vitorioso –
também se encarregou de pagar dispôs, aos 3 de dezembro de 1854,
recompensa monetária aos ex- sobre a emancipação de todos os que
proprietários de cativos. não houvessem aceito a oferta de
seu oponente; bem como o Equador,
nação na qual se digladiaram por
 Na Bolívia, da escravidão à largo período de tempo os interesses
exploração “semi-feudal” costeiros e serranos, aqueles
favoráveis à continuidade do
Com o advento da República, escravismo, estes últimos favoráveis
Simón Bolívar decretou a abolição do à abolição proclamada, porém não
escravismo na Bolívia (1826); não efetivada imediatamente, pelo chefe
obstante, os governos posteriores supremo da República em 1851 e
não efetivaram a libertação dos ratificada no ano seguinte pela
escravos a qual só se deu Assembleia Nacional Constituinte.
139
Mas foi no Uruguai que se Costilla tem início a luta pela
observou um roteiro dos mais lentos independência do México; neste
e pleno de conflitos internos e mesmo ano Don Miguel decreta a
externos. Assim, em face da abolição da escravidão. Não
sobreposição de mandatários, a lei do obstante, tal decreto terá de se ver
ventre livre viu-se repetida em três reiterado em 1813, por José María
anos distintos, 1813, 1825 e 1839; o Morelos, e reafirmado por Vicente
mesmo se deu com a extinção do Guerrero, em 1829. O artigo primeiro
tráfico de escravos (1825, 1830 e do decreto de Don Miguel é dos mais
1837) e com a própria abolição da radicais, reza ele: “Que todos los
escravidão. Sobre esta última, lemos dueños de esclavos deberán darles la
em artigo dedicado ao tema: libertad, dentro del término de diez
días, so pena de muerte, la que se
El discurso abolicionista se instaló en les aplicará por transgresión de este
la opinión pública en 1841, en torno al
‘armamento’ de los esclavos. En una
artículo.”
coyuntura bélica como la Guerra
Grande (1839-1852) [a Grande
Guerra envolveu facções internas –  A intervenção estrangeira no
blancos e colorados – assim como
várias potências estangeiras:
Paraguai
Argentina, Brasil, França e Reino
Unido – observações de JMP e IDNC], No Paraguai, como sabido, o
se generó la necesidad de nuevas término do escravismo decorreu da
levas de esclavos y se abrió la
posibilidad de respaldar la abolición
intervenção de potências
de la esclavitud. Hacia 1841-1842, el estrangeiras no âmbito da guerra no
desarrollo de la guerra obligó a qual aquela nação viu-se derrotada
Fructuoso Rivera a formar cuerpos de pela Tríplice Aliança formada pelo
infantería; las primeras medidas
Brasil, Argentina e Uruguai.
afectaban solo a los morenos libres,
dado que los amos lograron posponer Assim, coube ao Conde D’Eu,
la leva de esclavos. Al peligrar la comandante das tropas brasileiras,
situación del gobierno en Montevideo atuar de sorte a ser alcançada, em
(conocido luego como Gobierno de la
1869, a libertação dos últimos
Defensa), se procedió al
reclutamiento general de esclavos por escravos existentes na nação
medio de la ley de Abolición del 12 de perdedora.
diciembre de 1842. Una vez Materializou-se neste caso,
establecido en el territorio oriental el
gobierno de Manuel Oribe (conocido
independentemente das motivações
como Gobierno del Cerrito), que puso últimas das tropas de ocupação e de
sitio a la ciudad de Montevideo, seus respectivos governos, a
también aplicó medidas de possibilidade, acima apontada, de
alistamiento hasta concretar la
superação da ordem escravista em
abolición a través de la ley del 28 de
octubre de 1846. En esta no se hizo virtude de intervenção militar
mención explícita a que los esclavos externa.
liberados fueran enrolados. Sin
embargo, la reglamentación y la
puesta en práctica de la ley
evidenciaron su carácter militar. NOS ESTADOS UNIDOS, A
(FREGA et alii, 2008, p. 15) DISSENSÃO DAS ELITES

Em contraste com o processo


 No México, abolição e lento, gradual e contemporizador a
independência vincularam-se caracterizar a extinção do escravismo
imediatamente em Cuba e no Brasil, nos Estados
Unidos, tal evento ocorreu de forma
Em 1810, sob o comando do abrupta, como resultado de um
sacerdote Don Miguel Hidalgo y violento conflito armado. A
140
emancipação nos Estados Unidos – a Do mesmo modo, cabe
qual englobou número muito superior rejeitar as teses que atribuem ao
de pessoas do que o observado em sistema escravista tal nível de
qualquer outro país ou colônia, cerca ineficiência vis-à-vis o trabalho
de 4 milhões – resultou, à assalariado que o condenaria a
semelhança do ocorrido no Haiti, de desaparecer. Os estudos mais
uma guerra sangrenta, na qual os recentes mostram que a escravatura
negros tiveram participação não estava prestes a se extinguir por
expressiva. (FONER, 1988, p. 73) razões internas, pois, do ponto de
Os principais fatos históricos vista econômico, ainda evidenciava
que antecederam imediatamente o boas condições de competitividade e
término do regime escravista são lucratividade. Nesse sentido, a força
conhecidos: eleição de Abraham das armas mostrou-se fundamental
Lincoln, em 1860, pelo Partido para pôr fim à escravidão nos
Republicano; decretação da Estados Unidos.
emancipação; oposição dos estados Conquanto os fatores
sulistas, a tentativa de Secessão e o estritamente econômicos tenham
início da Guerra Civil; a vitória da certo poder explicativo, parecem-nos
União ratificada em 1865 e a secundários frente às divergências
consagração do abolicionismo. políticas, sociais e ideológicas
Para os efeitos deste artigo, existentes entre o Norte e o Sul. Ou,
os pontos importantes a serem colocando de forma mais precisa,
realçados dizem respeito aos motivos embora a origem essencial da
da guerra e aos interesses diferenciação entre as duas
divergentes do Norte e do Sul quanto sociedades situe-se no campo
à escravidão10. econômico – dada pela relação de
Em primeiro lugar cabe produção hegemônica diversa a 10
O eixo fundamental
destacar a reduzida relevância das caracterizar cada uma das duas da análise seguinte
baseia-se em: MOORE
análises que se concentram de forma regiões – a Guerra de Secessão JÚNIOR, 1975, p. 141-
exclusiva nos fatores de ordem encontra-se, na realidade, 189.
econômica, como, por exemplo, na relacionada às dificuldades de
11
questão das tarifas de importação ou convivência, sob um mesmo governo Seria, no entanto, um
erro grosseiro atribuir
na suposta incompatibilidade nacional, de duas sociedades com
homogeneidades
econômica entre a mão de obra características tão distintas, estritas em relação ao
escrava e o crescente capitalismo conquanto capitalistas: uma, trabalho escravo no
industrial. aristocrática, defensora do privilégio interior das sociedades
nortista e sulista. Da
Na verdade, como demonstra hereditário e a outra, burguesa, mesma forma como
Moore Jr., no período 1815-1860, a valorizadora do esforço e talento existia um grupo
economia algodoeira do Sul exerceu individual e contrária à desigualdade significativo de pessoas
influência decisiva no crescimento da jurídica e de oportunidades11. “Com o no Norte, quiçá
majoritários,
economia americana e, até 1830, Oeste, o Norte criou uma sociedade e indiferentes à sorte dos
constituiu o fator mais importante do uma cultura cujos valores entraram negros e, por certo,
desenvolvimento industrial nortista. cada vez mais em conflito com os do indivíduos favoráveis à
Ademais, devido ao expressivo Sul. O ponto focal dessas diferenças escravidão, havia vários
brancos sulistas
volume de exportações para a Grã- residia na escravatura”. (MOORE simpáticos à causa
Bretanha, responsabilizava-se pela JÚNIOR, 1975, p. 169) abolicionista. (FONER,
parcela principal da oferta de divisas. Em face de tal quadro, tornou- 1988, p. 73)
Portanto, longe de se caracterizar se cada vez mais improvável – para
como excrescência, a economia ventura da democracia americana – a
escravista revelou-se parte solução conciliatória entre a
integrante da formação do burguesia industrial e as elites rurais,
capitalismo industrial do século XIX. típica da Alemanha do século XIX.

141
A busca desta solução fez-se movimento que pudesse aumentar as
vantagens do outro. Dentro deste
em vão na primeira metade do contexto maior, a tese da tentativa de
século. Alguns anos após o fim do veto do Sul ao progresso nortista faz
tráfico de escravos (1808) (FONER, sentido, como causa importante para
1988, p. 130), tentou-se instituir a guerra. (MOORE JÚNIOR, 1975, p.
169)
uma fórmula para manter o equilíbrio
entre os estados escravistas e
A vitória do Norte, como
abolicionistas. Por meio do
“Compromisso de Missouri” (1820) sabido, permitiu definir tal disputa de
ficou estabelecido que os estados ao forma favorável aos interesses
norte do paralelo 36o30’ seriam industriais e consolidar a
emancipacionistas e, escravistas, os emancipação dos escravos. Todavia, 12
Para maiores detalhes
colocados ao sul de tal linha. No a derrota dos republicanos radicais –
a respeito dos
entanto, em 1850, a Califórnia os quais propunham reformas republicanos radicais e
solicita sua entrada na União como profundas na estrutura econômica e suas políticas durante o

estado abolicionista, apesar de se política do Sul –, ao longo da década período da


“Reconstrução” e sua
situar ao sul daquele paralelo. Houve de 1870, obstou a consecução de
derrota para o Partido
protestos dos estados escravistas, melhorias significativas no padrão de Democrata com a
vida dos libertos12. “Redenção”, veja-se:
sendo, por fim, acordado o FONER, 1988, p. 73-
denominado “Compromisso de 1850”, 176; MOORE JÚNIOR,
assegurando o livre arbítrio dos 1975, p. 183-189.
novos estados quanto à escravidão. EM CUBA: UM CAMINHO LONGO E
Tal solução, entretanto, parece não COMPLEXO
ter sido satisfatória, pois o problema
da escravatura nos territórios A supressão do escravismo
desempenhou papel crucial para em Cuba lembra, em linhas gerais, a
experiência observada no Brasil.
conduzir à guerra.
Tratava-se, dentre outras Trata-se de um processo gradual no
questões, de definir a que qual intervieram vários fatores, tanto
de ordem interna como externa.
interesses/conveniências o Governo
Central iria se colocar à disposição. Cardoso e Brignoli identificam
duas grandes fases no processo de
O aspecto fundamental tornou-se abolição da escravidão em Cuba. A
cada vez mais o fato de a maquinaria primeira estende-se do início da
do governo federal dever ser usada década de 1840 até o começo da
para apoiar uma sociedade ou a
Guerra dos Dez Anos em 1868. A
outra. Era esse o significado por trás
de assuntos tão poucos interessantes segunda fase compreende o período
como a tarifa alfandegária e que pôs da guerra de libertação (1868-78) e
paixão na reclamação sulista, ao se estende até 1886, com o fim
afirmar que estava a pagar tributo ao
definitivo da escravidão dada a
Norte. A questão do poder central
tornou também crucial a questão da extinção do patronato (CARDOSO;
escravatura nos territórios. Os BRIGNOLI, 1983, p. 150-153)
dirigentes políticos sabiam que a Em 1845, por conta dos 13
“A Espanha havia
admissão de um estado de escravos
movimentos e conspirações de prometido aos
ou de um estado de trabalhadores britânicos desde 1817
livres desequilibraria a balança para escravos havidos entre 1841 e 1843 abolir o tráfico de
um lado ou para o outro. O fato de a e da pressão diplomática e naval da escravos, e em 1835
incerteza constituir parte inerente da Inglaterra, a Espanha elabora a lei de permitiu que seus
situação, devido às terras não
colonizadas, ou parcialmente
abolição e repressão do tráfico de navios fossem
revistados e julgados os
colonizadas, do Oeste, aumentou escravos, cujo objetivo fundamental
traficantes espanhóis
muito as dificuldades para se chegar a seria propiciar instrumentos mais por autoridades
um compromisso. Cada vez se tornou adequados à repressão do tráfico, já britânicas”. (CARDOSO;
mais necessário que os dirigentes
ilegal havia muitos anos13. Tal BRIGNOLI, 1983, p.
políticos de ambos os lados se 151).
mantivessem em alerta para qualquer legislação apresentou alguma
142
efetividade durante a década de 40,
quando reduziu-se o número de o impacto da insurreição sobre a
escravidão ultrapassou a intenção
escravos desembarcados na Ilha,
inicial de seus líderes. A própria
voltando a aumentar, na década política rebelde foi pressionada a
seguinte, o contingente de negros desenvolver-se em direção a um
provindos da África, apesar da abolicionismo menos limitado,
especialmente à medida que cresceu
manutenção das imposições inglesas.
a participação de pessoas de cor livres
O tráfico só cessou, de fato, em e de libertos no exército. Ao mesmo
meados da década de 60; é tempo, os libertos aprenderam a
importante notar, no que tange a aproveitar-se até mesmo de
concessões parciais e oportunistas
este aspecto, a existência de um
feitas pelos líderes rebeldes. (SCOTT,
grupo de escravistas interessado em, 1987, p. 460)
simultaneamente, pôr termo ao
tráfico e manter a escravidão, com o A resposta do lado espanhol
intuito de valorizar o estoque de não tardou; frente aos interesses
escravos em seu poder. divergentes de abolicionistas cubanos
Nos marcos desta primeira – aos quais poderiam vir a se aliar os
fase deu-se, ainda, a Guerra de norte-americanos –, de um lado, e de
Secessão nos Estados Unidos e o senhores de engenho, por outro, as
enfraquecimento da causa escravista Cortes Espanholas aprovaram a Lei
em todo o continente em decorrência Moret, a qual apontava para uma
da abolição que se seguiu à vitória do “solução conciliatória”, mediante a
Norte sobre o Sul. proposta de extinção gradual da
O início da Guerra dos Dez escravidão. Os escravos acima de 60
Anos, em 1868, marca um momento anos e as crianças nascidas a partir
de inflexão no processo abolicionista, de 1868 teriam sua liberdade
o qual se acelera a partir de então. assegurada, conquanto, estas
Em 1869, os rebeldes cubanos que últimas, ainda devessem permanecer
lutavam pela independência da Ilha, sob a “proteção” de seus ex-donos
tendo em vista a pressão interna de até que se casassem ou
suas próprias fileiras de soldados – completassem 21 anos de idade.
compostas em grande parte por Além disso, tal legislação tornava
libertos – e a necessidade de apoio ilegal o açoite e libertava o escravo
internacional para a causa, vítima comprovada de “crueldade
abandonam sua posição reticente no excessiva”, estabelecendo também
que toca ao fim da escravidão e as “Juntas Protectoras de Libertos”
propõem a emancipação imediata dos para vigiar o cumprimento da lei.
escravos. A libertação plena, no Previa, ademais, a emancipação
entanto, viu-se obstada pelo indenizada ao final da Guerra.
“Reglamento de Libertos”, o qual (SCOTT, 1987, p. 461)
exigia trabalho forçado dos ex- Apesar da constatação de
escravos. Apenas com o abandono do fraudes de variados tipos –
“Reglamento”, no final de 1870, é notadamente no que diz respeito ao
que os rebeldes assumiram estabelecimento da idade e da data
definitivamente a causa dos de nascimento dos escravos – e da
escravos. (SCOTT, 1987, p. 458) obrigação do patronato até a
Deste modo, conquanto de início maioridade para os recém-nascidos
limitados em seus ímpetos tornarem a lei muito menos efetiva
abolicionistas, os revolucionários do que poderia parecer à primeira
cubanos foram compelidos pelas vista, a existência de tal legislação, e
circunstâncias a comprometerem-se a insurreição, constituíram poderoso
cada vez mais com o fim da estímulo para que os escravos
escravidão:
143
buscassem concessões cada vez de compra e venda como
maiores. “The environment of the anteriormente.
1870s, with the legal provision for Todavia, os resultados finais 14
“They [os casos
the eventual end of slavery and the desta nova legislação parecem ter levados perante as
Juntas] show the
outbreak of rebellion in the east, sido mais significativos do que os inadequacy of
encouraged some slaves to press for inicialmente pretendidos. As conceptualizing slave
whatever concessions they could iniciativas dos patrocinados – as and patrocinado
obtain. In doing so they made use of quais poderíamos caracterizar como behavior in terms of
‘accomodation’ or
old techniques as well as new”. um ponto intermediário entre a ‘resistance’, and the
(SCOTT, 1985, p. 74) acomodação e a resistência14 –, se necessity of analyzing
Esta situação foi deveras implicavam a aceitação da ordem that behavior in terms
reforçada pelos acontecimentos legal escravista, exploravam as that reflect the
complexity of
posteriores ao fim da Guerra dos Dez possibilidades de libertação colocadas patrocinados’ goals and
Anos. O Pacto de Zanjón, de 1878, pela nova ordem legal, notadamente strategies”. (SCOTT,
que pôs fim ao conflito, garantiu a no que diz respeito à autocompra e 1985, p. 141)
liberdade a “todos os escravos e às denúncias de abusos, violências e 15
“O artigo 4 da lei de
asiáticos que tivessem lutado pela ausência de cuidados legalmente 1880 enumerava as
independência ou contra ela”. previstos por parte do patrono15. O obrigações do patrono:
(CARDOSO; BRIGNOLI, 1983, p. patrocinato permitiu aos escravos manter seus
152) Tal fato, por certo, contribuiu influenciar o ritmo em que se patrocinados, vesti-los,
dar assistência aos
para o crescimento da resistência alteravam as relações de produção doentes, pagar o
passiva, das ameaças de sublevação fundamentais, até mesmo no que diz estipêndio mensal
e das fugas em massa dos escravos, respeito ao seu conteúdo, chegando- estipulado, educar os
como as ocorridas na Província de se à própria manumissão. Assim, tais menores, alimentar,
vestir e dar assistência
Santiago de Cuba nos anos finais da expedientes permitiram que o quando doentes aos
década de 1870, as quais obrigavam número de escravos existentes em filhos de seus
os plantadores a fazerem Cuba às vésperas do fim do patrocinados”. (SCOTT,
concessões, sob pena de perderem o patronato (1886) fosse pouco 1987, p. 473)
controle sobre a mão de obra, superior a 25.000, número quase oito
mesmo contando com o apoio militar. vezes menor do que o existente
É neste contexto que, “em 1879 o nove anos antes. A verdade é que
governo espanhol preparou uma lei “em um contexto de hostilidade
abolicionista final, posta em vigor no internacional para com a escravidão,
dia 29 de julho de 1880. Ela decidia a de contínuos desafios ao domínio
abolição total, mas estendia o espanhol e crescente percepção das
patronato a todos os novos libertos, vítimas do escravismo de que o
em lugar de uma indenização sistema não sobreviveria por muito
pecuniária aos proprietários. Tal tempo, a legislação não pôde refrear
patronato terminaria em 1888”. as pressões por mudanças mais
(CARDOSO; BRIGNOLI, 1983, p. rápidas”. (SCOTT, 1987, p. 484)
153) Sob a “retórica da tutelagem e Destarte, com o declínio dos
proteção” pretendia-se manter as preços do açúcar no mercado
relações fundamentais da escravidão, internacional a partir de 1885 e o
alterando-se apenas aspectos consequente rebaixamento da
relacionados à sua aparência. lucratividade da atividade açucareira,
(SCOTT, 1987, p. 466) Os ex- diluíram-se as resistências mais
escravos, agora patrocinados, a par importantes ao fim da escravidão.
de alguns direitos alcançados, viam- Assim, em julho de 1886, o
se na obrigação de trabalhar por um parlamento espanhol vota a
salário simbólico, não podendo sair autorização para a extinção do
da propriedade de seu dono ou patronato e, no mês seguinte, a
escolher seu patrão e sendo objeto Junta Provincial de Agricultura,
Indústria e Comércio de Havana
144
concorda com tal resolução. (SCOTT, de solo e clima, a grande 16
As discussões
1987, p. 482) Em 7 de outubro de disponibilidade de terras para serem encaminhadas no
1886, dois anos antes do prazo ocupadas e o expressivo crescimento Parlamento Inglês para
fixado pela lei de 1880, o patronato é da demanda mundial – norte- pôr termo ao tráfico de
escravos iniciam-se em
suprimido, encerrando-se a americana, sobretudo – permitiram 1783, estabelecendo-
escravidão na maior ilha das consolidar de vez o café como nosso se, por fim, a proibição
Antilhas. principal produto de exportação. do tráfico para os
Restava solucionar o problema da súditos britânicos a
partir de 1807. Nos
mão de obra. Vislumbradas as anos posteriores
O CASO DO BRASIL: possibilidades restritas do comércio seguiram-se Dinamarca,
CONJUGAÇÃO DE FATORES interno de escravos e da utilização da Portugal, Chile, Suécia e
EXTERNOS E INTERNOS mão de obra livre nacional para Holanda. A extinção do
tráfico por parte da
atender à demanda ascendente de Espanha demorou mais
O fim da escravidão no Brasil trabalhadores braçais, a opção fez-se a efetivar-se, em
emergiu como resultado de diversos em favor da política imigrantista. virtude da sensibilidade
condicionantes internos e externos. Opção esta favorecida pelas da corte espanhola aos
interesses econômicos
Em primeiro lugar, cabe condições prevalecentes na Europa, dos proprietários de
destacar a participação destacada na as quais se responsabilizavam por escravos, sobretudo
Inglaterra no que tange ao término expulsar enormes contingentes de cubanos e porto-
do comércio de escravos. A trabalhadores17. riquenhos. Para mais
detalhes, vide: SACO,
desagregação do sistema escravista A constituição, por esse meio, 1965, p. 213-229.
brasileiro inicia-se, de fato, com o fim do mercado de trabalho livre no
do tráfico, em 1850, por conta, Brasil, somada ao encarecimento do 17
Celso Furtado chama
sobretudo, da pressão inglesa16. As preço do escravo, permitiu tornar a atenção
particularmente para as
tentativas da Inglaterra em fazer cada vez menos importante a mão de conseqüências
cessar o fluxo de negros da África obra escrava, notadamente nas econômicas da
para a América – cujas motivações regiões cafeeiras mais dinâmicas, unificação política da
fundamentais parecem ter sido de como o Oeste Paulista. No entanto, Itália, com a criação de
uma “situação de
ordem humanitária e econômica, não alguns grupos de interesses depressão permanente
cabendo aqui a discussão a respeito econômicos fortemente fundados na para as províncias
da importância relativa de cada um escravidão ainda resistiam, meridionais”.
destes fatores – foram decisivas obstaculizando e tornando muito (FURTADO, 1986, p.
127-128)
para, no mínimo, antecipar tal lento o processo de abolição que se
decisão por parte do governo arrastou ao longo das décadas de 18
Posição semelhante a
brasileiro, o qual resistiu 1860 a 1880 sob a forma de esta pode ser
obstinadamente às investidas concessões tópicas como a Lei dos encontrada no estudo
de Slenes (1986), o
inglesas contra o tráfico realizadas Sexagenários e do Ventre Livre, cuja qual, no entanto,
desde os Tratados de 1810. efetividade mostrou-se muito discorda da tese que
A incapacidade de reprodução discutível. associa a postura
vegetativa da população escrava, a Destarte, houve uma divisão antiabolicionista dos
produtores do Vale do
menor taxa de natalidade vis-à-vis a crescente no seio da elite dominante Paraíba a uma
taxa de mortalidade dos escravos quanto à questão escravista. mentalidade pré-
condenava, inexoravelmente, o Segundo Beiguelman, a opção dos capitalista ou ao
sistema escravista a seu término. fazendeiros do Oeste paulista pelo domínio do capital
comercial sobre o
Somou-se a este fator o abolicionismo faz-se tendo em vista a processo produtivo.
grande desenvolvimento da economia oposição dos fazendeiros escravistas, Este autor procura
cafeeira, o que determinou uma notadamente do Vale do Paraíba, à demonstrar que os
significativa escassez relativa de mão política imigrantista. fazendeiros dessa
região comportavam-se
de obra. É justamente na segunda (BEIGUELMAN,1977)18 Isso obrigou a segundo os mesmos
metade do século XIX que a tomada de posição por parte dos padrões de
economia cafeeira apresenta suas primeiros em favor do fim da racionalidade de seus
mais expressivas taxas de escravidão como forma de colegas do oeste
paulista, apenas “se
crescimento. As condições favoráveis consolidação da política imigrantista. enganaram na década
145
Além disso, também há de se relativamente ao que pretendiam as de 1870 na sua
considerar o desequilíbrio na elites do país. percepção da
proporção de escravos entre o estabilidade futura da
escravidão como
Norte/Nordeste e o Sudeste. A CONSIDERAÇÕES FINAIS
instituição” (SLENES,
reduzida magnitude do número de 1986, p. 142), sofrendo
escravos contribuiu para que a As evidências empíricas aqui as consequências desse
resistência política ao fim da relembradas permitem, a nosso erro nos anos
seguintes.
escravidão naquelas regiões fosse juízo, duas conclusões básicas.
praticamente nula na década de De uma parte, como
1880. verificado, as distintas maneiras
Tais fatos, somados à assumidas pelo término da
importância cada vez maior do escravidão nas Américas cobrem, em
movimento abolicionista e da larga medida, as formas hipotéticas
resistência dos próprios escravos, aventadas na abertura deste texto.
mostraram-se fundamentais para dar Por outro lado, tais formas de
um paradeiro ao escravismo no superação do escravismo moderno
Brasil. definem-se como elementos que, a
Neste sentido, cabe destacar a par de outros, corroboram nossa tese
emergência de algumas pesquisas, respeitante à existência de uma
nos últimos anos, que buscam peculiar forma de existência do
fundamentar uma crítica a certa capital – categoria esta não
literatura tradicional, a qual atribui às explorada por Marx – por nós
elites do país papel exclusivo no caracterizada em trabalhos
processo abolicionista. Assim, para precedentes e à qual emprestamos a
Célia Maria Marinho de Azevedo, é denominação de capital escravista-
essencial considerar “as pequenas mercantil. Cumpre-nos, por fim, e
lutas disseminadas pelo cotidiano, mais uma vez, chamar a atenção dos
não organizadas num todo coerente e estudiosos da história das Américas
dotado de ideário próprio, e quase para a necessidade de explorarmos
sempre reprimidas e derrotadas” criticamente esta eventual forma de
(AZEVEDO, 1987, p. 179), o “não existência do capital e suas
quero dos escravos” levado adiante implicações no que tange à formação
por meio da intensificação dos crimes econômica e social das distintas
contra os senhores, fugas e revoltas áreas do Novo Mundo que
nas fazendas. A partir disto, podemos conheceram o escravismo dito
entender melhor a própria moderno.
radicalização do movimento Não poderíamos dar fecho a
abolicionista nas cidades e o este artigo sem repisar que
crescimento da preocupação das consideramos aqui, tão somente, as
elites em acelerar o fim da causas imediatas que levaram à
escravidão como estratégia para superação do capital escravista-
assegurar o controle social. mercantil no mundo americano.
Argumentação semelhante Permanece, pois, a exigência de nos
vamos encontrar em Hebe Maria empenharmos no estudo das causas
Mattos de Castro, para quem a ação de fundo que determinaram, por um
das massas escravizadas lado, a sua emergência e, de outro, a
“representaram o vetor que produziu sua superação. Sem o pleno
mais fortemente as dimensões de conhecimento de tais fatores nossas
surpresa e imprevisibilidade de todo proposições sobre o capital
o processo [abolicionista]” (CASTRO, escravista-mercantil permanecerão,
1995, p. 238), ensejando sua apenas, como mais uma tentativa de
aceleração e mudança de rumos explicação lógica para uma larga fase
da história do colonialismo e do
146
escravismo como se desenvolveram questão ainda em aberto e
nas três Américas. É este, pois, o merecedora da atenção dos que se
repto que lançamos a todos os debruçam sobre os diversos campos
pesquisadores que, como nós, das ciências sociais.
entendem estarmos em face de uma

Referências

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149
GUINÉ EQUATORIAL NA Bioco, onde fica Malabo capital do
HISTÓRIA DO ATLÂNTICO: O referido país. Assim como Roquinaldo
TERRITÓRIO BRASILEIRO E A Ferreira, nas Ilhas crioulas, analisa a
MANUTENÇÃO ESCRAVISTA EM interação cultural na África Atlântica,
CUBA principalmente a criolização em
Angola mostrando como os mundos
africanos e europeus se encontraram,
Pedro Acosta-Leyva 1 negociaram e recriaram novas 1
Graduado em História
identidades; do mesmo modo pode pelo Centro
Universitário Metodista
dizer, que a territorialização da Guiné
(IPA-RS). Mestre e
Resumo Equatorial foi um processo derivado Doutor em Teologia pela
das negociações atlânticas cujo Escola Superior de
Este artigo analisa a relação atlântica epicentro se localiza nas Teologia (EST). Pós-
entre Guiné Equatorial, Brasil e Cuba Doutor em Educação
demarcações que definiam as
como um processo cujas negociações, pela Universidade Vale
intercâmbios e mediações definiram a
fronteiras do que viria a constituir o do Rio dos Sinos
territorialidade brasileira e de Guiné território nacional brasileiro, tendo (Unisinos). Professor
Equatorial, assim como a dinamização como pano de fundo a manutenção Adjunto do Instituto de
Humanidades e Letras
da sociedade cubana em relação ao da escravidão em Cuba.
da Universidade da
tráfico, o desenvolvimento cultural- Estes apontamentos foram Integração
religioso e a indústria açucareira. realizados a partir de uma revisão Internacional da
bibliográfica preliminar de vários Lusofonia Afro-Brasileira
Palavras chave números da Revista La Guinea (UNILAB), câmpus dos
Guiné Equatorial; Atlântico; tráfico. Malês, na Bahia. E-mail:
Española, assim como de outras eyvapal@yahoo.com.br
Abstract
literaturas arroladas na bibliografia.
Para dar continuidade a esta
This paper analyses the Atlantic pesquisa e conseguir elaborar outros
relationship between Equatorial Guinea, textos já foram identificados uma
Brazil and Cuba as a process where ampla literatura no Instituto de
negotiations, interchanges and Estudios Africanas (I.D.E.A), cuja
mediations have defined Brazilian and produção bibliográfica possui 284
Equatorial Guinean territorialities, as livros e 68 números da sua revista.
well as the dynamism of Cuban society,
Também existem outros arquivos
in relation to trafficking, cultural-
como são o Archivos del Instituto de
religious development and the sugar
industry. Estudios Africanos (A.LE.A.), o
Centro Cultural Hispano-Guineano, o
Centro de Estudios Africanos (CEA-
Keywords ULL), o Departamento de Historia e
Equatorial Guinea; Atlantic; trafficking. Instituciones Económicas da
Universidad de La Laguna (Islas
INTRODUÇÃO Canarias-España) e a Biblioteca
Nacional de Madrid-Sección sobre
Cada dia que a pesquisa África, que possuem grandes
avança os dados revelam que a quantidades de materiais publicados
gênese da identidade, da cultura em e de fontes primarias ricas em
geral e mesmo da territorialidade dos informações para uma análise das
países do continente americano diferentes variáveis da história de
foram formadas no Atlântico. Guiné Equatorial.
(ALENCASTRO, 2000) Nesse sentido, O texto a seguir foi
Brasil e Cuba tem uma forte conexão organizado, primeiro tentando
com Guiné Equatorial, especialmente orientar ao leitor sobre o lócus e os
com o território da Ilha atlântica de agentes; num segundo item,
150
apresento uma breve síntese das Camarões empurrada pelas oleadas
negociações dos territórios brasileiro, migratórias dos Fang. (TESSMANN,
espanhol na América do Sul e o que 1935) Seus costumes, tradições e
se constituiu na África como Guiné cultura material têm sido estudos por
Equatorial. Os itens três e quatro, vários autores, entre eles José Móros
respectivamente, são analises da y Morellon, Oscar Baumann e Gunter
situação colonial de Guiné Equatorial Tessmann, que descrevem e
e de sua relação com Cuba no que se apontam suas riquezas e densidade.
refere ao tráfico e a indústria Segundo José Móros y
açucareira. Morellon, o primeiro contato com os
europeus aconteceu em 1472 em
razão da viajem de Fernando Poo a
PROCESSOS INICIAIS DUMA procura de uma rota para as Índias;
TERRA COM DONOS e, somente 1507 o português Ramos
Esquivel tenta colonizar a Ilha, mas
“Guiné” aparece nas pelas condições de insalubridade e
representações européias, segundo especialmente pela atitude combativa
Ki-Zerbo (1972, v. 1, p. 264), desde dos Bubis fecha o projeto.
“1320 no mapa do genovês Giovanni Quase todo o tempo que vai
di Caringuana (Gunuïa) e no atlas desde 1510 até 1777 foram escassas
catalão de 1375 sob a forma de as atividades dos europeus na Ilha.
Guinuia, era, segundo Leão-Africano, Ki-zerbo (1972, v. 1, p. 271) coloca a
uma corruptela de Djenne (jena). Ilha como parte das “ilhas fáceis de
Talvez seja simplesmente corruptela defender”, que eram essenciais para
da palavra Gana”. Guiné é um termo a “cintura de aço” facilitadora, pela
que representava na mentalidade sua geografia, do tráfico. Alguns
européia, uma ampla região, que ao barcos iam se abastecer de água e
passar dos anos foi se restringindo a alimentos num pequeno povoado ao
três países na África: Guiné, Guiné- norte da ilha de Bioco de portugueses
Bissau e Guiné Equatorial. empobrecidos e outros que ali
Geograficamente Guiné permaneciam em razão do tráfico
Equatorial está situada ao ocidente humano.
da zona equatorial da África. Possui
uma superfície de 28.050 km2
distribuída em dois territórios: o BRASIL E GUINÉ EQUATORIAL
insular e continental. O insular UMA TERRITORIALIDADE
compreende as ilhas de Bioco, DEFINIDA NO ATLÂNTICO
Annobão, Corisco, Elobye Chico e
Elobye Grande. A parte continental se Espanha e Portugal desde
limita no sul e leste pelo Gabão e ao muito tempo atrás rivalizavam pela
norte pelo Camarões. Sua capital é colônia de Sacramento, caso que
Malabo situada na Ilha de Bioco. tinha sido debatido desde a “Paz de
A ilha de Bioco está habitada Utrecht” e os encontros violentos de
desde o tempo imemorável, 1735-1737. Como se prolongava a
provavelmente um milênio antes da situação de crises entre ambos
chegada dos europeus, pela etnia impérios, o comércio e os interesses
Bubis. A literatura científica e dos ingleses e franceses estavam
jornalística os conhece também como sofrendo perdas consideráveis. Nessa
Boobes o Adeejahs. A etnia Bubis é conjuntura de guerras por território
um grupo do tronco lingüístico bantu, por parte dos ibéricos e por outro
que migrou das redondezas dos lado lutas por mercados entre França
151
e Inglaterra é que surge a mediação evangelizadores sob a orientação da
destes dois últimos. Na pressão da Baptist Missionary Society. (CANTÚS,
circunstancia a rainha de Portugal D. 2003) Nem a análise feita na
Maria I e o Rei da Espanha Carlos III atualidade nem na própria época
assinam o Tratado de El Pardo, que fechavam as possibilidades as estes
em principio define as três aspectos de interesse inglês.
territorialidades de uma ampla região Pelo que mostra Morós, os ingleses
da África e do sul do Continente ocuparam a Ilha de Bioco, que
Americano. antigamente era Fernando Poo, por
Conforme Luis Ramos outro grande motivo.
Izquierdo y Vivar (1912), a partir de
1777 com os tratados de Santo La situación de la Inglaterra ha
cambiado con respecto a España y
Ildefonso e do El Pardo em 1778, muy particularmente de sus ricas
onde Espanha e Portugal negociaram Antillas y he aquí porque pide ahora lo
a troca da colônia de Sacramento e mismo que un día despreció. La
da ilha de Santa Catarina (hoje posición de las islas africanas las
constituye la llave para el comercio no
Florianópolis), no Brasil, por uma
solo negrero sino de muchos artículos
zona de 800.000 Km2 na África, é que con el Africa hacia nuestra
que a ilha de Bioco sofre uma Habana y su cesión a Inglaterra
dinâmica cultural e econômica de traería á esta rica posesión nuestra
perjuicios muy considerables por más
grande peso; em outras palavras, um de un concepto. Colocada una colonia
território somente visitados pelos inglesa en Fernando Póo tendría en su
europeus começa o real processo de mano impedir ó más bien anular
intervenção colonizadora. Ambos completamente el comercio de
nuestras Antillas con aquella parte del
tratados colocam sob domínio dos
Africa porque a protesto de que se
espanhóis a Ilha de Bioco, que dirigían al tráfico de negros los
rapidamente tenta ocupar o território buques que por allí cruzaran serian
como base para o tráfico humano todos registrados perseguidos.
(MORÓS, 1844, p. 55)
com os objetivos de fornecer mão de
obra para as colônias espanholas na
América, especialmente para Cuba. Morós tinha percebido que a
Como na América continental as Inglaterra também estava
colônias já estavam em preocupada com o controle do
desenvolvimento dos movimentos de comércio espanhol com a costa da
liberação e a Espanha tinha gastado África. A industrialização inglesa não
volumosos recursos no controle não podia permitir uma competição que
teve suficientes condições financeiras levaria a uma super-acumulação de
produto no seu território. Por isto,
para manter a colonização de Bioco e
a deixou quase no abandono. segundo Ki-Zerbo (1972, v. 2), era
Os britânicos, em 1821, na prioridade limitar o comércio das
outras potencias e abrir novos
pessoa do capitão Nelly, tomaram a
Ilha, que estava largada a sua mercados consumidores. Deste
própria sorte pelos espanhóis, e modo, as territorialidades tanto
brasileira quanto a de Guiné
fundaram duas pequenas cidades.
Desde esta época a permanência dos Equatorial são peças de um tabuleiro
ingleses mudou de perspectivas em de negociações atlânticas onde
várias ocasiões, primeiro Portugal e Espanha definem suas
colonizadores e traficantes; segundo, posições e Inglaterra e França
no comando do capitão Fitz William demarcam sua área de influencia
Owen na condição de exterminadores econômica e comercial.
do trafico e depois como os
152
Clarens esta formado de unas 300
casas aproximadamente todas de
GUINÉ EQUATORIAL NO madera, entre las cuales se distinguen
PROCESSO DE INTERVENÇÃO por su lujo las de los misioneros
COLONIALISTA EUROPEU ingleses protestantes y las de algunos
comerciantes; estando elevadas en la
curba que se estiende desde la punta
Espanha como tinha perdido
William á la punta Adelaida. Los
suas colônias na América, em 1843, habitantes son en la mayor parte
retomou os tratos de São Ildefonso e colonos Ingleses negros libertos que
do Pardo de 1777 e 1778 para la Inglaterra mandó á Fernando Póo
cuando en 1827, quiso principiar su
recuperar a Ilha de Bioco de mão dos
colonizacion; no se hallan mas que
ingleses. Esse período Alexsander cinco blancos, tres mulatos de la
Lemos de Almeida Gebara (2009), na Jamaica y ricos negociantes. El pueblo
sua tese de doutorado, o identifica inteligente es de los Camerones del
Príncipe, Del Viejo Calabar, Sierra
com as representações humanísticas
Leona en fin compuesto de toda la
das mentalidades inglesas, que Costa de Africa. La lengua inglesa es
acreditavam que África devia ser la sola hablada y comprendida en
“civilizada” através da intervenção do aquellos paises. Las costumbres son
enteramente las mismas de
cristianismo e da educação dos
Inglaterra, todos profesan á escepcion
nativos. Provavelmente, pela de 20 ó 30 el protestantismo; son
formalidade legalista do parlamento religiosos fanatizados, no faltan a la
inglês e pela sua postura humanistas oracion todas las noches ni al sermon
de los misioneros que eran sus
cederam com bastante facilidade a
dueños y amos. Observan el Domingo
Ilha de Bioco. Primeiro tentaram como en Londres, es decir que todo
comprar a Ilha, mas Espanha não queda en silencio este dia en Clarens,
aceitou e então Inglaterra entregou o y se lee la Biblia en las casas
particulares. Desde el sabado á las
território sem resistência. Espanha,
diez de la noche hasta el lunes a las 5
por sua parte, tinha reduzido seu de la mañana los almacenes, en los
domínio na América a Cuba e Porto cuales se vende aguardiente, tabaco y
Rico, e precisava uma possessão na géneros, estan cerrados por orden de
Beecroft (iba á decir de los
África que lhe facilitara a introdução
misioneros). (CANTÚS, 2003, p. 367)
de escravizados para a produção de
açúcar de cana. Nesse Mesmo que desde 1843
empreendimento, segundo Fernando
Espanha era detentora do poder
Carnero Lorenzo e Díaz de la Paz político em Bioco, só se começou a
(2009), o comandante Lerena y Barry relação de poder cultural em 1856
chegou a Bioco, em 1843, toma o
com a chegada da Missão do pároco
controle, e, no entanto, delegou o a de Chamberí Miguel Martínez Sanz
administração da Ilha aos com 40 pessoas. O grupo de
funcionários da Coroa Britânica John missionários recém haviam colocado
Beecroft (1833-1854) e Manterol os pés na ilha e já começaram a obra
(1854-?), que permaneceram até de “evangelização”. A grande
1858. Um quadro do que era Malabo, questão é que a pregação depende
que na época dos ingleses se da comunicação, da linguagem e pela
conhecia como “Clarens” [Port “representação” que oferece
Clarence], pode se observar segundo Guillemard de Aragón se tratava de
a Memória de Guillemard de Aragón, uma realidade complexa. Por um
“De los habitantes de Fernando Po;
lado estavam os ingleses que não
Sus usos y costumbres”, escrito entendiam o espanhol e que ademais
1846. tinham como base cultural-religiosa o
cristianismo nos moldes anglicanos

153
ou na perspectiva da Baptist y cuya marinería asistió al acto casi al
completo. (CANTÚS, 2003, p. 337-
Missionary Society, que ironicamente 338)
Guillemard de Aragón, na frase
supracitada “iba á decir de los A prática e as representações
misioneros”, os coloca como os que a festa produziu num momento
verdadeiros orientadores do poder e pontual em 1856, e mais tarde de
da cultura da Ilha. Por outro lado, os forma intermitente continuaram os
emancipados que formam duas jesuítas (1858-1872) e os padres
comunidades, a de fala espanhol, seculares (1872 -1983), teve uma
proveniente de Cuba, e um numeroso profunda articulação cultural e social
grupo de emancipados advindos de
mediada pelas práticas dos
todas as partes da África continental. clareteanos desde 1883, que finaliza
De Libéria e Serra Leoa, ademais dos com a identidade moderna mais ou
emancipados, haviam arribado uma menos extensiva a todo o território
ampla população integrada por da Guiné Equatorial.
braceiros, “contratados”. Tanto os Os clareteanos chegaram em
emancipados em geral como os 1883, de acordo com Cantús (2011,
braceiros inventaram uma língua que p. 23), em número de 12. Três anos
misturava o inglês com vários mais tarde, em 1885, aportaram 19
dialetos bantu, que mais tarde são missionários e 5 irmãs
identificados como os “fernandinos”. Concepcionistas. Para “1890 se 2
Uma outra cronología
O próprio missionário Miguel Martínez
encontraba ya en Guinea 50 é oferecida por J.
Sanz dizia que os negros fugiam ou misioneros, distribuidos en estas Creus: “La cronología
passavam longe deles. Acrescente-se ocho Casas: Sta. Isabel, Banapá, San
frenética quedaba
restablecida: en febrero
a essa Babel a presença das Carlos y Concepción, en la isla de de 1885 se creaba el
tripulações dos navios franceses, Fernando Póo; Cabo San Juan, en el colegio femenino de
ingleses e portugueses que se continente africano, e islas de Santa Isabel y también
abasteciam no porto da capital de la Misión de Banapá; en
Corisco, Elobey y Annobón”2. marzo, las Misiones del
Bioco. Os Bubis tomaram uma A intervenção dos clareteanos no cabo de San Juan y de
atitude de recuo para o interior, no processo histórico cultural da ilha de la isla de Corisco; en
entanto, sempre tiveram uma Bioco pode ser entendida na agosto, la de la isla de
quantidade expressiva deles em representação analisada por Ki-zerbo
Annobón; en agosto de
1886, la del islote de
contato com o resto da população.
(1972, v. 2) e por Mbembe (2013) Elobey; en enero de
Perante a dificuldade de sobre a invasão do Continente 1887, la Misión de
comunicação, a missão comandada africano no século XIX. Para Batete en Fernando
por Miguel Martínez Sanz planeja e Poo, así como la
Mbembe o “processo de civilização”, ampliación de la Casa
executa a Festa do Corpus Christi, onde se discute as noções dos central de Santa Isabel,
dando inicio a integração, negociação africanos como “não - humano” ou que se volvería a
e reinvenção da cultura de Bioco. O “ainda-não-suficientemente- producir en abril y mayo
Corpus Christi foi a primeira atividade humano”, aparecem “os três vetores
de 1889; en enero de
1888, la Misión de
cultural onde a maioria da população deste processo de domesticação Concepción, en el actual
participou, como registrado por [que] eram a conversão ao Riaba; en noviembre de
Cantús: cristianismo, a introdução à 1890, la Casa
concepcionista de
Martínez Sanz cuenta que fue a partir
economia de mercado e a adoção de Corisco; en octubre de
de la lujosa procesión del Corpus formas de governo racionais e 1892, la Misión de
cuando se deshicieron las iluministas”. (MBEMBE, 2001, p.180- Basilé; en julio de 1896,
la de Musola; y en julio
prevenciones de la población hacia los 209) Para Ki-zerbo, “os três
misioneros españoles. A ello ayudó de 1898, la femenina de
protagonistas principais desta cadeia Basilé, en substitución
bastante la actitud generosa, tanto de
los ingleses como de los franceses del de acontecimentos são os de la capitalina”.
bergantín de guerra ‘Víctor’ que había missionários, os mercadores e os (CREUS, 2007, p. 132)
fondeado en Santa Isabel el 5 de julio
154
militares, as chamadas - três M”. (KI- analisa-se, que tanto a integração
ZERBO, 1972, v. 2, p. 603) Espanha dos Bubis como os fernandinos e da
como as outras potências européias população em geral, em Bioco, teve
tinham-se mantido nas costas, a como elementos básicos as
beira mar, do Continente africano. A representações religiosas, a prática
exceção foi Portugal, na área que da educação e a inserção dos Bubis
hoje corresponde com Angola e na forma de agricultura voltada para
Moçambique. Os militares e o capitalismo. Créus resume esta
mercadores europeus não haviam ideia afirmando que:
penetrado no interior da África. A
terceira “M”, os missionários, foram à En esta nueva etapa, que sería la
definitiva en el proceso de
ponta de lança para alcançar a parte colonización, los misioneros
mais profunda do Continente. No claretianos serían la punta de lanza de
interior de Bioco onde Espanha não un Gobierno que les financiaría y les
havia conseguido chegar por permitiría todo (….) mantendrían un
oscuro monopolio en el ámbito
intervenção comercial e militar, o fez
educativo, propio del Antiguo
por mediação dos missionários Régimen, que les permitiría una
Clareteanos3. situación privilegiada y una actuación 3
Rafael Obiang Ncham
Os comerciantes espanhóis, directa sobre los indígenas-bubis en (2014) explica como
Fernando Poo. (CREÚS, 2007, p. 519) foram rápidas as
em Bioco, se limitavam a pequenas atividades de
trocas de ferramentas por inhame, penetração da missão
pescado e outros vegetais próprios A educação que passou a ser clareteana no interior
para alimentação. Nada de grande um privilégio dos clareteanos se de Bioco. “La iniciativa
constituiu uma prática fundamental parte de Santa Isabel.
produção, nem de amplas Hacia 1886, el Padre
perspectivas. Os militares tinham para instaurar outras práticas e criar
Prefecto Apostólico
feito diversas incursões, no entanto a uma mentalidade, é dizer uma nova Ciriaco Ramírez viaja en
representação, que configurou os lancha acompañándole
pequenez da Ilha, não foram longe
da beira do mar. A natureza da valores, as festas, as tradições, o Don Guillermo Vigor,
casamento, as relações entre o ser natural de Sierra Leona.
vegetação vigorosa, cipós por toda El objetivo del viaje fue
humano e a natureza, como explicou
partes, clima chuvoso, insetos e buscar un lugar al sur-
pernilongos picando e a resistência Barros (2005, p. 12), “Um sistema oeste de la isla de
acirrada dos Bubis não permitiram educativo inscreve-se em uma Fernando Poo donde
prática cultural, e ao mesmo tempo establecer una
aos militares avançar. Os reducción misional
clareteanos, sendo assim, tomariam inculca naqueles que a ele se atendida desde Santa
o lugar de civilizadores por meio do submetem determinadas Isabel. La idea cuajó.
cristianismo. Já na representação de representações destinadas a moldar Pues el P. Ciriaco
certos padrões de caráter”. Ramírez el 19 de enero
Ki-Zerbo, a terceira “M”, os de 1.887 vuelve a salir
Por intervenção dos
missionários Clareteanos, desde Santa Isabel por
penetraram na profundeza de Bioco clareteanos na educação, o conceito vía marítima para
sendo patrocinados pelo Governo de espaço modificou-se radicalmente. fundar en Batete una
(NCHAM, 2012) Os Bubis que misión fuerte; se lleva
espanhol. Quais foram às motivações consigo cinco
do Governo? Com bastante certeza costumavam morar em aldeias e misioneros claretianos:
pode se pensar que não deveu ser a cujas terras eram trabalhadas de Los PP. Jaime Pinosa
forma comunitárias se superior, Luis Sáez y
ocupação colonial para cumprir os José Singla. Y los
requisitos da Conferência de Berlim, transformaram num tabuleiro de
hermanos Jaime Miquel
porque as negociações da Espanha xadrez, compartimentados, y José Lacunza”.
com os missionários Clareteanos são fracionados, distribuídos em
anteriores a 1884. Provavelmente, se pequenas famílias de duas pessoas. A
conseguirá entender as diversas própria noção de escola-internato
motivações do Governo espanhol tomou a demissão tríplice: escola-
para enviar os missionários se igreja-horta. Os espaços abertos que
155
só eram fechados pela escuridão da GUINÉ EQUATORIAL E SUA
noite ou pela densa vegetação, agora RELAÇÃO COM CUBA ESCRAVISTA
ganha fortes paredes e um limite
estabelecido por cercas de arames Parte do que na atualidade é
farpados. território do Brasil foi trocado pela
Os clareteanos afetaram zona geopolítica que hoje pertencem
também as tradições familiares, em a Guiné Equatorial, mas essa
especial a relações pai-filhos e o negociação se realizou, além do clima
casamento. Segundo Creús, “el de pressão exercida pela França e a
matrimonio sin dote con alguna Inglaterra, porque Espanha precisava
compañera, la posesión de una de um enclave na África que lhe
casa... una vida casi de blancos que, permitira a continuidade do tráfico de
sin embargo, no merecía el aprecio escravizados para Cuba e Porto Rico.
de los suyos”. (CREÚS, 2007, p. 538) Um número de cubanos, ou talvez de
Isto é: a distribuição econômica africanos que moraram em Cuba por
característica da oferta que uma algum tempo, foram “retornados
família fazia a outra ao retirar uma para África”, exatamente para Bioco,
moça de seu saio familiar, e que que naquela época se conhecia como
compensava de alguma maneira todo Fernando Poo. Três razões
o trabalho e cuidado consumido em impulsionam a pensar que Guiné
tornar uma menina em mulher, Equatorial é um dos espaços
foram abolidos pelos clareteanos. A africanos mais dinâmicos pela sua
eliminação do “dote’ não foi somente história e sua importância na
uma perca econômica, mas uma formação do mundo atlântico, que
profunda crise para os valores Bubis criou a identidade do que é o
e uma criação por parte dos universo dos cubanos. Gilroy ilustra
clareteanos duma representação a importância do Atlântico negro num
negativa das práticas Bubis. Ainda parágrafo revelador:
pode se ler e escutar que o dote é a
compra de uma mulher e na visão O piloto de Colombo, Pedro Nino,
também era africano. Desde então, a
dos Bubis é só a forma de redistribuir
história do Atlântico negro,
o tempo e o sacrifício de tornar um constantemente ziguezagueado pelos
ser humano adulto. (NCHAM, 2012) movimentos de povos negros - não só
As variações da prática e a como mercadorias, mas engajados
em várias lutas de emancipação,
reinvenção do capital das formas, no autonomia e cidadania - propicia um
casamento e nas atividades meio para reexaminar os problemas
agrícolas, influenciaram a identidade, de nacionalidade, posicionamento
o imaginário coletivo, a ideologia e as [location], identidade e memória
histórica. (Gilroy, 2001, p. 59)
imagens na explicação do mundo.
Complexidade como a concepção do
Eric Williams, em Capitalismo
espaço e o domínio do tempo
ocidental pelos Bubis e, ao mesmo e escravidão, analisa o mundo
tempo, a assimilação dos clareteanos atlântico no sentido do triangulo
comercial, que criou na África,
de costumes e hábitos dos Bubis leva
a considerar, que é importante não Europa e América novas relações de
trabalhar com as noções de blocos intercâmbios de produtos, de
homogêneos, ignorando-lhes as dominação financeira, especialmente
estratificações, negociações e os banqueiros alemães e ingleses, e
combinações variadas. (HALL, 2005) também a grande mobilidade de
seres humanos. (BLACKBURN, 2003)
Em raciocínio semelhante Alencastro,
156
mesmo pensando na configuração Equatorial se justifica pela situação
luso-angolano-brasileira, aponta para de mediação entre o Atlântico como
a atlantização do mundo na relação via de construção da nova cultura
não só comercial, mas também das relações internacionais moderna,
político, militar e cultural, que Gilroy neste caso a territorialidade
(2001, p. 13) o reafirma dizendo que Brasileira, assim como pela sua
“as culturas do Atlântico negro relevância para o comercio de
criaram veículos de consolação escravizados para Cuba. Segundo De
através da mediação do sofrimento. Castro e De La Calle:
Elas especificam formas estéticas e
contra-estéticas e uma distinta Fernando Poo (...) situada en el
centro de la bahía de Biafra, aparecía
dramaturgia da recordação”. Por seu como un enclave de extraordinario
lado, Lovejoy, no livro A escravidão valor para realizar el comercio con las
na África, resume que o tráfico cercanas costas de Bonny, Calabar,
atlântico fez “uma alteração Río del Rey y Camerún (...) Pero,
sobre todo, constituía un magnífico
fundamental na maneira pela qual a
centro de aprovisionamiento de agua
escravidão pode ser implantada y víveres para los navegantes. (DE
numa formação social”. (LOVEJOY, CASTRO; DE LA CALLE, 1992, p. 19).
2002, p. 51) As radicais mudanças
das sociedades africanas introduzidas Fernando Poo, que hoje é
por motivo do trafico configurou as Bioco, e que faz parte da área insular
novas relações geopolíticas e a da Guiné Equatorial, era um lugar
distribuição dos grupos étnicos importante para o desenvolvimento
humanos e suas culturas em todo o do tráfico humano. Além de oferecer
planeta. Assim pode se encontrar um segurança por ser uma ilha, também
grande poeta russo negro, Alexander era um enclave apropriado para
Sergueievitch Pushkin (1799-1837) e acessar diversos mercados
como tem sido apontado neste texto, relacionados, na costa do continente,
as relações do Atlântico criaram o com o tráfico e com o controle do
território do Brasil, da Guiné sistema triangular de comercio
Equatorial e modelaram a economia internacional. A Guiné constitui uma
cubana. chave tanto para a interpretação do
Para compreender a tráfico de escravizados como para
atlantização do mundo e, portanto, entender o fim do tráfico, porque foi
um dos fatores determinantes na na Guiné que a armada britânica
base da história das relações estabeleceu o um dos pontos mais
econômicas e culturais existentes, importante de vigilância na tarefa de
tanto na África como na América exterminar os entrepostos e
hoje, é preciso ter em conta uma “armazenes” de capturados na África
análise histórica da Guiné Equatorial, Continental, como estudado por
tal como asseverado por Gilroy, ao Cantús, ao analisar a dinâmica entre
dizer que: “as formas culturais Espanha e Inglaterra.
estereofônicas, bilíngües ou bifocais
originadas pelos - mas não mais la repercusión que la abolición
británica tuvo sobre la política
propriedade exclusiva dos - negros
española del momento, sobre todo, en
dispersos nas estruturas de su especialísima relación con Cuba. El
sentimento, produção, comunicação análisis histórico de esta relación
e memória, a que tenho chamada metrópoli-oligarquía colonial,
mediatizada por la prohibición, resulta
heuristicamente mundo atlântico
muy esclarecedor de las actitudes e
negro”. (GILROY, 2001, p. 35) É ideologías de los diversos actores en
nesse sentido que pesquisar Guiné juego, tanto en el centro como en la
157
periferia. Y es especialmente controle de Bioco. A colonização de
pertinente estudiar las consecuencias
que la puesta en practica, por parte
Bioco é a outra cara da moeda da
de Inglaterra, de una política activa produção extensiva da monocultura
de represión de la trata a partir de los em Cuba. Isto é relevante porque
años veinte del siglo XIX, tuvieron oferece subsídios para ampliar a
para la isla de Fernando Poo.
compreensão histórica tanto de
(CANTÚS, 2003, p. 102)
aquela parte da África como do
Por outro lado, Guiné processo social e cultural de Cuba. A
Equatorial tem uma relação estreita história de ambas as ilhas é uma
com as ilhas do Caribe, em especial chave para analisar a face do tráfico,
a escravidão e também a abolição.
com Cuba. A produção de açúcar de
cana em Cuba, como afirma Manuel Por outro lado, é relevante para a
Moreno Fraginals, em El ingenio, era pesquisa alicerçada na História
uma maquina de consumir homens e Cultural, sobretudo, pensada desde a
estes homens eram africanos. Na participação dos clareteanos porque
medida que em Cuba a produção de como afirma Cantús (2003, p. 1180),
açúcar tinha alguma variação na o extermínio do tráfico a partir de
quantidade ou na mecanização ou Bioco teve conotações religiosas. Ela
qualquer outro fenômeno a Guiné diz que: “se basaba en unos
Equatorial era a primeira em sentir o principios éticos igualitarios que
impacto. Cantús, na sua tese de hundían sus raíces en antiquísimos
preceptos religiosos cristianos (…)
doutorado, no item titulado “los
Orígenes de la sustitución”, explica desde las rebeliones campesinas
que: medievales o las guerras campesinas
de los siglos XVI y XVII”. E, nesse
Un hecho que queremos resaltar sentido um elemento importante para
desde ahora es la importancia que pensar a relação entre África/
tuvo la isla de Cuba, tanto en las Cuba/Espanha porque o fundador dos
ausencias como en las presencias
clareteanos, Antonio Maria Claret,
colonizadoras españolas en África
Ecuatorial, hasta el punto que su morou em Cuba e foi lá que ele
historia es uno de los hilos amadureceu suas ideias, “suas
conductores de todo un proceso representações” escrevendo dezenas
colonial verdaderamente atípico ya
de textos e criando várias fazendas-
desde sus mismos inícios (...) Es
decir, la característica esencial de la escola que serviriam como modelo na
especialísima colonización que España Ilha de Bioco.
realizó em Guinea vendría
determinada por la dependencia que
las islas africanas tenían de otra isla,
Cuba, a su vez dependiente. (Cantús, CONCLUSÃO
2003, p. 74-75)
Pode-se concluir parcialmente
As ilhas de Cuba e Bioco que a territorialidade do Brasil foi
tiveram um papel significativo na negociada sob a intervenção das
política e na prática colonial potencias européias e as
espanhola. Quando Cuba estava contingências da situação
sendo rentável na produção de escravocrata em Cuba como último
açúcar sustentado pelo tráfico espaço de manutenção imperialista
exercido por outra potência, então da Espanha na América. Do mesmo
Espanha abandonou Bioco; mas no modo, é necessário apontar que a
tempo que a situação se tornou mais sociedade de Guiné Equatorial teve
complexa para a importação de mão- muitos outros impactos na população
de-obra, Espanha reassumiu o negra do Brasil e de Cuba, que ainda
158
estão em um estado embrionário de de qual a influencia real, por
pesquisa porque a maior parte dos exemplo, da experiência do fundador
textos sobre Guiné analisa a relação dos clareteanos em Cuba e sua
com a Espanha, enquanto sua relação com a sistematização das
dinâmica com América fica em práticas e representações em Guiné-
segundo plano. Nesse sentido, ainda Equatorial.
não existe uma pesquisa sistemática

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161
TOMÀS, Jordi; FARRÉ, Albert. Los estudios africanos en España: balance y
perspectivas. Barcelona: CIDOB, 2010.

162
ÉDOUARD GLISSANT: with that condition in five novels. The
NOVELÍSTICA DE ESCLAVITUD Y author of this article explores three key
ERRANCIA1 issues to understand how the glissandian 1
Una versión
vision of slavery is built: the thought of preliminar, más corta,
wandering, genealogy and invisibility or fue leída en la IV
“history less”. The links between history Negritud Conference,
Margarita Aurora Vargas and literature, between memory and
celebrada en Cartagena,
Canales2 Colombia, en marzo de
oblivion, between the visible and the 2014.
invisible are woven master fully in the
novels of Glissant so we can hear the 2
Bacharel em Relações
Resumen whispers of History. Internacionais pela
Universidad Nacional
El artículo “Édouard Glissant: novelística Keywords Autónoma de México
(UNAM). Mestre e
de esclavitud y errancia” constituye una Édouard Glissant; Literature and slavery;
Doutora em Estudos
reflexión sobre la forma en que el escritor Slavery and history.
Latino-Americanos
martiniqueño trata la esclavitud en cinco (História) pela
novelas de su autoría. La autora indaga Faculdade de Filosofia e
en tres aspectos fundamentales para Letras da UNAM.
entender cómo se construye la visión Pesquisadora Associada
INTRODUCCIÓN do Centro de
glissantiana de la esclavitud: el
pensamiento de la errancia, la genealogía Investigaciones sobre
y lo invisible o la ahistoria. Los nexos El escritor martiniqueño América Latina y el
Édouard Glissant (1928-2011) ha Caribe (CIALC) da
entre historia y literatura, entre la
UNAM. E-mail:
memoria y el olvido, entre lo visible y lo escrito profusamente, tanto novelas mvargas@unam.mx
invisible se tejen magistralmente en la como poesía y teatro así como
novelística de Glissant para acercarnos a ensayo3, sobre la situación de los
los murmullos de la Historia. pueblos colonizados, sojuzgados,
3
Entre ellos podemos
citar, además de las
particularmente sobre los novelas mencionadas,
Palabras claves
esclavizados de origen africano en el las que corresponden a
Édouard Glissant; literatura y esclavitud;
historia y esclavitud.
Caribe insular. El presente artículo su primera etapa como
se centra en el análisis de tres escritor: La Lézarde
(1958), Le Quatrième
Resumo propuestas de Édouard Glissant para Siècle (1964), Malemort
descubrir las huellas de procesos, (1975) y La Case du
O artigo constitui uma reflexão sobre a que marcaron profundamente las Commandeur (1981).
maneira pelo qual o escritor historias de los pueblos que no Así mismo el libro de
martiniquenho Édouard Glissant trata a poemas Les Indes
pudieron contarlas por ellos mismos. (1956) y los ensayos:
escravidão em cinco romances de sua La primera propuesta, L'lntention Poétique
autoria. Para isso, exploramos três
presente en las cinco novelas (1969), Le Discours
aspectos fundamentais para se Antillais (1981),
compreender como se constitui a visão
analizadas, es el pensamiento de la
Introduction à une
glissantiana da escravidão: o pensamento errancia, como parte esencial de la poétique du divers
de errante, a genealogia e a huella. El segundo aspecto es la (1996), Faulkner,
invisibilidade. As ligações entre a história genealogía y la filiación, el imposible Mississippi (2002) y
e a literatura, entre memória e que se genera de la violencia e Philosophie de la
esquecimento, entre o visível e o invisível Relation (2009).
imposición del sometimiento.
são tecidas com maestria nos romances Finalmente, atendemos a lo que el
de Glissant para abordar os sussurros da filósofo y poeta, conocido como el
História.
Padre de la Antillanidad, llamó “lo
Palavras chave
invisible”, es decir, los intersticios, en
Édouard Glissant; Literatura e este caso históricos
escravidão; Escravidão e história. fundamentalmente, que ayudan a
que la opacidad se vuelva más
Abstract intensa para así revelar lo visible.

The article “Édouard Glissant: novels of


slavery and wandering” is a reflection
about how the Martinican writer deals
163
EL PENSAMIENTO DE LA la esclavitud, aprendieron no
ERRANCIA solamente a errar física y
mentalmente, acompañados de
Los diversos pueblos africanos procesos que conllevaron un
que fueron sometidos a la esclavitud: sufrimiento muy profundo, la herida
ibos, ashantis, congos, yorubas, a la que se refiere Glissant pero, ese
peuls y masaï, aunque los dos dolor los llevó también a
últimos proceden del sur de África y mimetizarse, como mecanismo de
no se tienen evidencias que llegaran sobrevivencia, a ocultarse, a jugar y
a América, erraron forzadamente por alternar con su ethos y a inventarse
las islas del mar Caribe y el /contruirse otros ethos.
continente americano, dejando Tout-monde toca algunos
huellas que no siempre pueden ser puntos, de manera poética, que
reconocidas con facilidad, ya que quiero destacar en relación con la
generalmente sólo se apela a la esclavitud de los africanos. La novela
filiación étnica para identificar a se divide en tres grandes apartados,
alguien como afro-descendiente. los dos primeros tienen títulos que
Este continuo traslado de un relacionan los fenómenos naturales,
lugar a otro de diversos pueblos es decir, los dos astros más
sojuzgados, no nada más de los importantes para el ser humano: la
africanos sino también de los pueblos luna y el sol, en dos fases opuestas:
originarios y asiáticos, e incluso de la luna llena y el ocaso: 1-. “La lune
los propios europeos produjo un en montant”, 2-. “Soleil couché” y 3-.
movimiento dinámico de “Terre, terre¡”
intercambios y pérdidas culturales Como su nombre lo dice Tout-
mutuas en el Caribe insular. Una monde es el “Todo-mundo”, la 4
Édouard Glissant
suerte de magma4, que es el esclavitud africana en su Relación utiliza frecuentemente
sustento del pensamiento de la con el mundo en el que surgió y se imágenes de la
errancia. perpetuó. La esclavitud fue una naturaleza caribeña
No debe confundirse la idea de consecuencia del naciente para explicar sus
teorías, en este caso es
errancia como el simple hecho de capitalismo europeo del siglo XVI y el magma volcánico. En
vagar por el mundo, o de viajar. La de un sistema de pensamiento su novelística
errancia verdadera, de acuerdo con atávico. Los africanos esclavizados, igualmente aparecen
el escritor martiniqueño, es una ante el dolor y el sufrimiento, innumerables
referencias al paisaje: el
búsqueda interna5 que nos permita además del legado cultural propio, se mar, la flora y fauna,
romper con el sistema de refugiaron cada vez más en un las rocas, los astros, los
pensamiento de raíz única pensamiento mágico-mítico, que les vientos. Hay una
(pensamiento atávico) y así permitió metoforizar una vida necesidad de
aprehender los paisajes.
comprender la diversidad que extremadamente difícil de soportar Incluso, en novelas,
impulsa un pensamiento rizomático. sin la imaginación y los sueños. cuya ambientación es
¿Cómo funcionó el Uno de los contadores de diferente al ámbito
pensamiento de raíz única y en Tout-Monde narra que en el barco caribeño, como La terre
magnètique, el paisaje
contraposición el pensamiento de la negrero venían brujos/curanderos, constituye un elemento
errancia en los esclavizados de origen que en Martinica recibieron el fundamental.
africano en el Caribe insular? ¿Cómo nombre de quimboiseurs, desde esa
5
traduce el escritor al plano artístico primera época curaban, con sus “El pensamiento de la
errancia nos permite
de la novelística este pensamiento? hierbas, a los castigados y latigados, rechazar las raíces
Me parece que la primera pregunta también a los que enloquecían, a los únicas, depredadoras:
se responde en gran parte en dos de que intentaban suicidarse, a los que el pensamiento de la
sus novelas Tout-Monde y Sartorius. ya no regresaban de una errancia sin errancia es el de las
raíces solidarias y el de
Le roman de Batoutos. fin. En la novela este personaje es las raíces rizomáticas”.
Los pueblos sojuzgados, Papa Longoué, quien tiene muchas (GLISSANT 2009, p. 61)
sometidos en el límite más extremo a vidas, muere por lo menos tres veces (traducción propia)
164
y, además, posee una barrica en higueras de la India con numerosas
cuyas profundidades puede adivinar raíces aéreas.
el futuro. La novela toca un punto que
Los békes, blancos es un rastro de la huella: los mulatos
plantadores de Martinica, deseaban y su papel en relación con el sistema
poseer la barrica, Papa Longoué se colonial, ejemplifica con uno de ellos,
negó a entregársela. Los saberes hijo no reconocido de un béké, M.
ancestrales de los esclavizados eran Laroche y una esclava Émeranthe, en
codiciados por los blancos, incluso en Martinica. Este mulato no fue
muchos casos, usurpados, robados. reconocido oficialmente como hijo
Papa Longoué sigue viviendo en legítimo pero, M. Laroche pagó sus
pleno siglo XX. Se entrevista con estudios, diversiones y su inserción
Mathieu Béluse, otro personaje en el mundo “culto, elegante y
presente en la mayor parte de la moderno”. En una época aproximada
novelística glissantiana, el brujo le de finales del siglo XVIII.
pregunta a Mathieu si tanto errar por Georges de Rochebrune, este
el mundo le ha permitido conocer la personaje mulato da la posibilidad de
profundidad del tiempo: observar que el sistema esclavista en
el mundo colonial francés tuvo
¿No soñaste que un día ibas a intersticios, difusos y quizás
desdibujar el Todo-mundo y encontrar
muchos países y recorrer sus paisajes
liminales, que permitieron,
y su forma y ponerlos juntos para eventualmente, a algunos libres,
aprender por fin cómo la tierra entra sobre todo mulatos y escasamente a
en el agua y el sol en la noche? esclavizados negros, acceder, estos
¿Conociste el tiempo que sopló en tí
últimos a la libertad y los primeros a
siempre y cuando no mezclaras estos
países? (GLISSANT, 2011, p. 207) formar parte de una élite, a veces
(traducción propia) pro defensa de los afrodescendientes,
la mayoría de la veces todo lo
Otro rastro de la huella en la contrario.
novelística glissantiana es la
resistencia de los esclavizados, en Él Georges de Rochebrune, el mulato
libre hijo de M. Laroche fecuenta las
Tout-monde aparece una princesa
sociedades de ayuda entre los negros.
africana llamada Oriamé, que es Recorre esas casas que están
forzada a subir al barco negrero. Ella reservadas para los esclavos, en
es violada por los marineros y, pleno centro de la ciudad, hasta los
domicilios de los libres en los barrios.
aunque, había sido escogida por uno
Recorre los cabarets, donde se
de los tenientes del barco como su producen canciones de tambor,
favorita, decide suicidarse, enseña la calenda, aprende inglés y
aventándose al mar desde lo más esos viejos cánticos de iglesia, de los
que se cuenta que los Negros de
alto del mástil del barco. “Nada se
América los cantan hasta hacerte
movía en ese barco y Oriamé había llorar. (GLISSANT, 2011, p. 89)
desaparecidoen ese no sabemos (traducción propia)
cuántas espumas y desórdenes del
mar”. (GLISSANT, 2011, p. 115) Los rostros de la huella
(traducción propia) adquieren vida en dos movimientos
Otro de los mecanismos de que utiliza Édouard Glissant en esta
resistencia frente a un sistema novela: la errancia propiamente, que
opresor es la errancia sin fin, ahora sí se vincula con el Caos y la
el trasladarse sin tener un centro fijo, inmovilidad y la importancia de
justamente como los banians, título buscar puntos de conexión. Pudieran
de la primera sección del primer parecer opuestos estos movimientos
apartado de la novela, que son pero, en realidad no lo son.

165
El Caos, que también lo llama segundo un afro-caribeño Anestor
el Caos-Mundo es esa dinámica de Masson, y el tercero un árabe
intercambios y de asedios mutuos maghrebí, nacido en la metrópli,
entre las diferentes culturas, en una Anestor Salah.
relación las más de las veces tensa. El mundo colonial,
El Caos permite la criollización, que paradójicamente porque nace dentro
no es un proceso sino la creación de un sistema de pensamiento
acelerada de ese magma que incluye atávico, generó un pensamiento
esos intercambios. En otras palabras, archipielágico, es decir no sólo de
la errancia permite obtener un Caos múltiples raíces y en ese sentido
más puro. diaspórico sino revelador porque
Sin embargo, en lo referente a busca, al romper con lo Sagrado y la
la esclavitud hay intersticios, aún filiación, llegar por medio de la
difusos, inaprehensibles, también hay obscuridad a la luz, a la revelación.
episodios no narrados, de allí el
interés del escritor por contar lo que esta criollización te aleja de lo
Sagrado, ya hay mucha mezcla en el
“invisible”. Así, en Tout-monde
guaje. Se diría que lo mejor de lo
aparecen frases, que dicen los Sagrado no es conveniente en las
contadores (déparleurs), nótese que mezclas apiladas, era necesario,
ya no se les llama narradores, porque quizás en los tiempos de antaño, la
pureza de la gente elegida en un
se pretende acercarse a las formas Territorio elegido, sin embargo, es por
orales de las culturas africanas y eso también y a pesar de ello lo
afro-caribeñas. Algunas de esas Sagrado, el apetito insospechado de
frases son: “Es un cuerpo sin cabeza, lo imprevisible, el asalto de las cuatro
direcciones en el remolino.
nuestra historia, tal como la estatua
(GLISSANT, 2011, p. 602) (traducción
de Josefina”. (GLISSANT, 2011, p. propia)
17) (traducción propia) “Nuestra
ciencia es la de la evasión y el ir y
venir”. (GLISSANT, 2011, p. 18) GENEALOGÍA Y FILIACIÓN EN
(traducción propia) SARTORIOUS
El último punto que quiero
tratar a propósito de Tout-monde es Uno de los imposibles que, de
el colonialismo como sistema. La acuerdo con Glissant, persiguen los
última parte de la novela, llamada pueblos colonizados es la filiación
“Ocaso” es la que hace referencia a patrilineal legítima, es decir, el
ello. Se ubica en la posguerra que va reconocimiento jurídico y social de
de 1945-60, comprende las guerras los orígenes por línea paterna, sin
coloniales que Francia entabló contra embargo, la esclavitud y la plantación
Indochina en 1948 y contra Argelia produjeron actos violentos, donde la
en 1956. En ambas participaron, mujer negra fue violada, forzada, 6
William Faulkner es
como combatientes, afro-caribeños humillada, obligada a jugar el papel el escritor
de los departamentos de ultramar de estadounidense que
de concubina y no el de esposa, los revela esta tensión
Martinica y Guadalupe y africanos: hijos de estas uniones, además de trágica en su obra
senegaleses, beninenses, chadianos y ser mestizos, eran ilegítimos. Sartoris, cuyo título sólo
demás colonias de África. La nueva La esclavitud y el sistema de difiere del de la novela
esclavitud: miles de muertos, de Glissant en una letra
plantación engendraron comunidades Sartorius. Sobre la obra
heridos, mutilados, enloquecidos en que no respondían a los sistemas de de Faulkner véase:
guerras de blancos. fundación patrilineal. La diferencia es GLISSANT, Édouard.
Èdouard Glissant hace que en los Estados del sur de los hoy Faulkner Mississipi.
referencia a estos episodios históricos Trad. Matilde Paris.
Estados Unidos6 este hecho suscitó Madrid: Fondo de
a través de tres personajes, cuyo una tensión aniquiladora entre los Cultura Económica,
nombre es idéntico: el primero es un blancos y los afrodescendientes; en 2002.
afro-zaireño Anestor Klokoto, el
166
el Caribe insular, aún con lo constituyeron la Alemania actual, al
problemático que las relaciones inter- hablar de estas transformaciones,
étnicas han sido, la tensión no sugiriendo quizá que, contrariamente
alcanzó los límites de la destrucción a lo que pudiera pensarse, los reinos
en aras de la legitimidad. protestantes del Norte de Europa
La novela que condensa este ofrecieron mayores posibilidades de
imposible es Sartorius. Le roman de cambiar de filiación.
Batoutos. Se trata de una de las Otra idea sugerente en la
novelas más creativas de Glissant, novela es la posibilidad de
éste inventa un pueblo imaginario: aculturación de un niño esclavizado
los Batoutos pero, lejos de africano, en el condado de
caracterizarlos física o Brunswick-Wolfenbuttel, bajo la
geográficamente, crea un universo de protección del conde de ese lugar,
sentidos alrededor de ellos. Es una durante el siglo XVIII. Aunque claro
especie que ha existido a lo largo del era una idea concebida por el conde
tiempo, aún está presente, y es como un experimento para mostrar
invisible, secreta, se puede ser que, si a un negro se le ofrecían
batouto sin saberlo. todas las posibilidades de educación
El texto muestra que no existe y refinamiento, éste podía llegar a
una filiación verdadera, los pueblos ser un hombre “de bien”: “En lo
colonizados sufrieron dislocamientos invisible donde usted escruta, otro
en aras de un imposible. El autor invisible vigila, le corresponde a
imagina un diálogo entre el pintor usted arreglárselas”. (GLISSANT,
Albert Dürer y el grabador maître 2002, p. 228) (traducción propia)
Schneider, este último anuncia que La genealogía aparece en las
va a cambiar su apellido por el de primeras novelas de Édouard Glissant
Sartor y su nombre por el de Jacob. como un esfuerzo por buscar las
Este episodio sucede en 1518. huellas del “país de antaño”, aunque
Tiempo después en 1705 paradójicamente una genealogía es
encontramos en la lectura a un un anti-rizoma. En Mahogany, el
descendiente de Jacob Sartor, título del libro correspondería a
Johannes Franz que decide cambiar, “Caoba” en castellano, el autor
una vez más, su apellido por el de relaciona el paisaje, en este caso,
Sartorious. Finalmente, ya en el siglo fundamentalmente los distintos tipos
XX, otro descendiente Sartorious de árboles: filaos, caobas, acomats y
emigra a los Estados Unidos, donde ceibas, entre otros, con los
el oficial de aduanas cambia su acontecimientos políticos de la isla:
nombre por el de William Sartoris. esclavitud, cimarronaje,
(GLISSANT, 2002, p. 269) departamentalización, segunda
Los comerciantes, marineros e guerra mundial, depresiones
incluso los artesanos europeos de la económicas.
época colonial podían cambiar su Tres dimensiones se
filiación, mimetizarse, construirse entretejen magistralmente: a) el
otro ethos. América era el lugar paisaje, árboles y desastres
perfecto para poder empezar de naturales, aquí hay varias referencias
nuevo. Los esclavizados no tenían a los ciclones, b) lo político y
esa opción, al contrario se les quitaba económico y c) la geneaología. Las
su identidad imponiéndoles nombres genealogías de los afro-caribeños son
y apellidos, prestados a los santos inconclusas, tienen espacios vacíos,
católicos, a los amos blancos, a los sin nombres, con nombres
padrinos y protectores. inventados como “Filaos Casse-Tête”
Llama la atención que la o la “mamá de tres colores”, son los
novela se refiera a los reinos que rostros de la huella…
167
Le Quatrième Siècle presenta que gira en torno a la historia de un
las historias de los personajes que ejército de cimarrones/brigands
Édouard Glissant crea en sus comandados por Flore Gaillard en
primeras novelas (La Lézarde, 1958): Saint-Lucie de 1793-1797. No tiene
Papá Longoué, Mathieu Béluse, un tiempo lineal, intercala este
Mycéa, Thaël, en cada novela de su episodio histórico con historias del
primera etapa el lector va tiempo presente (Evora y Nestor’o),
descubriendo una parte de su el tráfico de drogas en el
genealogía, como si ésta estuviera archipiélago, o el episodio de
construida de rupturas, de largos Granada, ocurrido el 19 de octubre
periodos donde no sé sabe quiénes de 1983 y el posterior asesinato de
forman el árbol genealógico. Una Maurice Bishop, a la sazón elegido
búsqueda de un imposible, la presidente de la flamante isla.
genealogía de los pueblos Las novelas de Édouard
esclavizados es una hecha de Glissant narran las historias de los
rupturas de silencios ¿acaso también sufrimientos de los africanos y sus
de olvidos? descendientes, pero también las
historias de sus luchas cotidianas, de
su fuerza como la tierra magnética,
LA AHISTORIA, LO INVISIBLE de sus sueños y creencias; creo que
su escritura es justamente
El contador de Sartorius dice archipielágica, porque busca los
que: “el arte de pintar consiste, puntos de conexión, los vasos
primero, en saber garantizar la comunicantes en un doble
eternidad de las formas y los movimiento: el del remolino y el de
espacios” (GLISSANT, 1999, p. 168) la inmovilidad, para finalmente
(traducción propia), quizás también concluir que el Todo-mundo es
de captar lo que los demás no inaprehensible, que a la tierra
pueden ver. El escritor antillano no realmente nadie la puede poseer y
se atribuye esa facultad, sino que que hay un sueño, que soñaron los
busca acercarse a lo “invisible”, cimarrones/ errantes como Georges
precisamente a través de su de Rochebrune y los galibis/caribes o
escritura, intenta tender un puente sus descendientes, el sueño de
largo con la oralidad, “construir una Pachacámac, es decir, los errantes
casa de palabras”, revelando los que se establecen de nuevo, creando
lugares oscuros, los intersticios. nuevas relaciones, bajo otros
Su novelística es una no- principios y pensamientos, sin
historia que revela las historias. centros ni periferias.
Ormerod, por ejemplo, una narración

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168
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______ . Le quatrième siècle. Paris: Gallimard, 1997.

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______ . Malemort. Paris: Éditions du Seuil, 1975.

______ . Ormerod. Paris: Gallimard, 2003.

______ . Philosophie de la relation. Paris : Gallimard, 2009.

______ . Tout-monde. Paris: Gallimard, 2011.

______ . Sartorius: le roman des Batoutos. Paris: Gallimard, 1999.

169
______ ; SÉMA, Sylvie. La terre magnètique. Paris: Éditions du Seuil, 2007.

VARGAS, Margarita. La antillanidad como búsqueda de identidad en la novelística


de Édouard Glissant. Cidade do México, 2004. Dissertação (Mestrado em Estudos
Latino-Americanos) – Facultade de Filosofia e Letras, Universidad Nacional
Autónoma de México.

ANEXOS
BREVE SINOPSIS DE CADA UNA DE LAS NOVELAS ANALIZADAS

Mahogany (1987)
Se divide en tres capítulos, los dos primeros tienen nombres de lugares en
Martinica: Le-Trou-à-Roches y Malendure, el último es justamente lo que
prefigura el título de una de sus últimas novelas Tout-Monde (1995). Glissant
intercala fragmentos de Gazettes de la época en donde enlistan la salida o llegada
de barcos, cuyo cargamento principal eran los esclavos. La inter-relación con el
mundo mágico está presente, en el caso de Mahagony parece ser uno sólo, es
decir, aunque, de hecho hay otros tipos de relatos en la novela, por primera vez
encuentro una predominancia de ese mundo mágico sobre todo con la presencia
de los árboles: la caoba, en particular.

Tout-monde (1995)
Se trata de una novela muy extensa. A mi juicio, es la primera novela de
Glissant que se extiende hacia otros confines del mundo: Europa, África y Asia.
Trasciende los límites de Martinica para entrar en la Relación, aunque la temática,
en realidad sigue siendo los sufrimientos y errancias de los pueblos colonizados,
sojuzgados, aun cuando éstos sean europeos, por ejemplo Hungría o Polonia
durante la invasión nazi. El libro está dedicado a Alain Baudot y a la memoria del
filósofo Félix Guattari.

Sartorius. Le roman de Batoutos (1999)


Se divide en tres grandes secciones: 1) “La permanence fragile de toutes
les vies”; 2) “L’invisible, l’invu”; 3) “L’eau de la mare”. Cada una tiene un nombre,

170
a veces propio, como Oko, Okoo, Onoko, Odono y de lugares Mahinondoo, Éléné,
de pueblos Batuototoos, Ibos. En un principio, quizá está hablando de África, en
donde había un pueblo circular Mahinondoo, donde los nombres de las mujeres
llevaban una doble o al final. Éléné era la tierra prometida. El Kwamé es la suerte,
o algo así como el karma. Los batoutos son un pueblo creado por el escritor, la
novela narra sus errancias, bien pudieran ser los esclavizados africanos.

Ormerod (2003)
Comienza con una narración del mar y sus movimientos, las olas, la
espuma que produce y algo así como el olvido. Me parece que hay una noción
clara de lo que es un archipiélago: el Caribe, aunque para Glissant es el “arco de
islas” y no tanto la tierra continental. Otra noción expresada es el Archipiélago de
islas como región, aquí a contracorriente de lo que dicen algunos textos históricos
sobre el colonialismo que disoció o no permitió la unión de estos pueblos, para el
autor hubo una idea de región basada en la solidaridad contra la esclavitud de los
afrodescendientes. Los desastres naturales aparecen en esta novela ya no como
metáforas de las rebeliones, del “grito” sino en su connotación de presagios de
pequeños y grandes acontecimientos históricos. Aparece algo que él llama
anticiclón. Las bandas de cimarrones, comandadas por una mujer Flore Gaillard
en Saint-Lucie a principios del siglo XVIII y el asesinato de Maurice Bishop en
Granada en 1983 son los acontecimientos históricos que se presentan.

La terre magnètique (2007)


Es un libro pequeño, que incluye dibujos de Sylvie Séma, muy bello,
dedicado a ella y a Mathieu. Trata de la Isla de Pascua, en medio del Océano
Pacífico, un pueblo del agua; inmigrantes de Polinesia poblaron la isla, que
actualmente pertenece a Chile. Un pueblo no precisamente afro-descendiente
pero sí del agua, archipielágico. Se divide en seis pequeños apartados: Échohées,
Mundo, Rapu, Nau Nau, Papa Kiko y Santiago, la Terre hors d’angle. Forma parte
de una colección dirigida por el propio Glissant sobre los pueblos a los que sólo se
puede acceder por vía marítima.

171
VIVÊNCIAS DE AFRO- a refletir sobre o período chamado de 1
. Graduada em História
pela Universidade Estadual
BRASILEIROS NOS MUNDOS DO pós-abolição em Campina Grande2. O da Paraíba (UEPB).
TRABALHO EM CAMPINA nosso trabalho contribui com essa Mestranda em História na
Universidade Federal de
GRANDE-PB (1945-1964) reflexão, buscamos essas pessoas na Campina Grande (UFCG).
E-mail:
cidade campinense e sua importância France.araujo@hotmail.co
Francisca Pereira Araújo1 enquanto seres sociais ativos que m

impregnaram os bairros, as ruas com


Resumo
2
A cidade de Campina
modos de vida particularizados no Grande, no Estado da
No presente artigo, buscamos refletir período recortado para estudo. Paraíba, situa-se no
sobre as formas de sobrevivência dos Investigamos de que modo os
Agreste da Borborema e
dista 122 km de João
afro-brasileiros na cidade de Campina
afro descendentes foram Pessoa, capital do Estado.
Grande no período compreendido entre O maior destaque da cidade
recepcionados no cotidiano dos é a de ser, por sua posição
1945-1964. Quais eram os espaços geográfica privilegiada, um
ocupados por eles nos mundos do mundos do trabalho campinense em importante entreposto

trabalho, qual a relevância desses meados do século XX. Campina comercial; inicialmente dos
tropeiros, de venda de
trabalhadores na contextura da História Grande passava por uma gado e produtos agrícolas,
com destaque para a
no âmbito das modificações que estavam efervescência política, comercialização, em grande
acontecendo na cidade campinense no desenvolvimento urbano, social e escala, interna e externa do
algodão, até fins da década
período recortado para análise? Para isso, econômico e muito se falou sobre a de 30. Atualmente se
utilizamos relatos orais de idosos negros modernização, os emblemas do diferencia principalmente
nos setores: educacional –
e não negros.
moderno, a urbanização3. possui várias
universidades, sendo uma
Assim, importa-nos pensar o Federal, a UFCG, uma
Palavras chave Estadual, a UEPB e várias
Mundos do trabalho; Afro-brasileiros; cotidiano desses trabalhadores particulares – ; e
Campina Grande. negros campinenses e assim, tecnológico ― na produção
de tecnologia de ponta,
adensar as discussões no sentido de através de seu Parque
melhor compreendermos como Tecnológico.

Abstract sobreviviam na cidade. Apesar de 3


Existem vários trabalhos,
In this article, we reflect on the ways of mas elencaremos apenas
haver muitos ditos e escritos sobre os de: ARANHA, Gervácio
survival of African Brazilians in the city of homens e mulheres negros, ainda Batista. Trem e imaginário
Campina Grande in the period 1945- na Paraíba e região: tramas
existem silêncios sobre a história político-econômicas e
1964. What were the spaces occupied by práticas sociais (1880-
dessas pessoas enquanto
them in the worlds of work, which one 1925). Campina Grande -

the relevance of these workers on the trabalhadores. É sabido que durante PB: EDUFCG, 2006.
CABRAL FILHO, Severino. A
contexture of history in the context of the o século XX, esses trabalhadores cidade revelada: Campina
Grande em imagens e
changes that were happening in the deixaram rastros de memória história. Campina Grande:
Campina Grande city during the period sinalizadores de experiências de EDUFCG, 2009. SOUSA,
Fábio Gutemberg R. B. de.
for analysis? For this, we use oral reports liberdade, relações de trabalho e Territórios de confrontos:
of elderly blacks and non-blacks. práticas de luta para sobreviver num Campina Grande (1920-
1945). Campina Grande:
país estranho com costumes EDUFCG, 2006. SOUZA,
Keywords Antonio Clarindo Barbosa
diferentes. de. Lazeres permitidos,
Worlds of work; African Brazilians;
Após a abolição da prazeres proibidos:
Campina Grande. sociedade, cultura e lazer
escravatura, os descendentes de em Campina Grande (1945-
1965). Tese de doutorado.
escravizados tiveram de enfrentar o Recife: UFPE, 2002.
problema do ingresso no mercado de
trabalho livre. Os negros do Novo
Passados mais de 120 anos
Mundo enfrentaram uma série de
desde a libertação dos escravizados
dificuldades para reconstruírem suas
no Brasil, somos levados mais ainda
vidas. Até porque sua condição
172
anterior de cativos não lhes dava (e geralmente se opõem) dos seus. A
experiência de classe é determinada,
condições de competir em igualdade em grande medida, pelas relações de
com a população branca e capitalista. produção em que os homens
nasceram ― ou entraram
Uma das principais questões involuntariamente. A consciência de
no período pós-emancipação aqui na classe é a forma como essas
nossa cidade, como no restante do experiências são tratadas em termos
culturais: encarnadas em tradições,
país, estava relacionada à maneira sistemas de valores, ideias e formas
de assimilar a antiga população institucionais. (THOMPSON, 1987, p.
10)
escrava em um novo contexto social.
Além da transformação dos Para o autor, a existência
escravizados em trabalhadores livres, palpável de uma classe evidencia-se
havia um ideal de sociedade no qual pela identidade de interesses e
as experiências do cotidiano de ex- valores, compartilhados por
escravizados e negros que já eram indivíduos segundo uma experiência
livres deveriam se adequar.
em comum, que se contrapõem a
O mercado de trabalho em interesses e valores de outros
meados do século XX se indivíduos que partilham uma
materializava de certo modo como experiência diversa e que, de modo
resultado do processo histórico.
análogo, constituem uma classe
Ademais, os egressos da escravidão
antagônica.
e seus descendentes constituíram Um indicador da teoria
suas experiências de vida, luta e thompsoniana é noção de experiência
trabalho na nossa cidade, buscando que o autor ressalta. A experiência –
garantir condições dignas de termo ausente no marxismo ortodoxo
sobrevivência. – permite perceber e reconhecer as
ações humanas fazendo a história.
São as experiências cotidianas
Cotidiano de trabalhadores herdadas ou partilhadas e de lutas
negros na cidade campinense das pessoas que contribuem para seu
Buscamos mostrar as fazer-se.
experiências de vida desses O historiador inglês evidenciou
trabalhadores e como no cotidiano
o conceito de agenciar humano
eles conseguiram através das suas apreendendo os trabalhadores como
práticas, suas lutas, subverter sujeitos de sua história, daí ele se
preconceitos construídos histórica e preocupar com as experiências
socialmente para negros. A obra A efetivas dos trabalhadores ingleses,
Formação da Classe Operária Inglesa não sendo estes receptores inativos
trata da experiência social de sujeitos de determinações de outra classe que
operários no mundo do trabalho. os considera inferiores.
Neste sentido, nos aportamos em Podemos dizer que Thompson
Thompson, quando afirma que
realizou sua abordagem no campo da
História Social baseando-se numa
A classe acontece quando alguns
homens, como resultado de pesquisa empírica em fontes
experiências comuns (herdadas ou diversas, tais como jornais,
partilhadas), sentem e articulam a
identidade de seus interesses diferem

173
panfletos, livros de atas, etc. Nesse mero reflexo do nível econômico.
sentido, Muito menos numa perspectiva de
passividade das classes populares,
Num contexto intelectual paralelo, supostamente, presas às armadilhas
profundamente influenciado pelo
interesse no estudo da cultura popular da ideologia dos dominadores.
e operária, houve o desenvolvimento Thompson pensava cultura como algo
dos trabalhos de Edward P. Thompson
e dos historiadores marxistas ingleses
dinâmico, como resistência e por isso
com a reformulação de conceitos chamava atenção aos agenciamentos
clássicos, como o de classe social a
dos trabalhadores em suas
partir da valorização de noções como
a de experiência, enfatizando estudos experiências cotidianas e a
sobre costumes, alavancando o dimensionalidade desta ação.
desenvolvimento da História Social.
(SANTOS, 2005, p. 2-3) Nesta seara, a contribuição de
Hobsbawm é fundamental. Ao
Uma importante inovação, apontar que essa história tendera a
trazida por esta historiografia identificar classes operárias com
marxista inglesa, foi a valorização do movimento operário, ou mesmo com
conceito de cultura para as análises organizações, ideologias ou partidos
inspiradas no materialismo histórico. específicos, abriu caminho para os
Esta introdução possibilita trabalhos preocupados em estudar a
compreender formas diversas e classe operária sem reduzi-la às suas
complexas de como os trabalhadores lideranças ou às suas expressões
exprimem suas experiências organizadas (sindicatos ou partidos).
coletivas, como também as maneiras Podemos dizer que o trabalho
múltiplas de transgressões e de se constitui no esforço do ser
lutas. Thompson, um dos principais humano para sobreviver, trabalho é
expoentes desta vertente inglesa, meio de sobrevivência. Na longa
traz a seguinte análise: história da atividade humana, em sua
incessante luta pela sobrevivência e
Mas uma cultura é também um pela conquista da dignidade, o
conjunto de diferentes recursos, em
que há sempre uma troca entre o mundo do trabalho tem sido vital.
escrito e o oral, o dominante e o Concordamos com Matos, quando
subordinado, a aldeia e a metrópole;
coloca que “a experiência histórica do
é uma arena de elementos conflitivos,
que somente sob uma pressão trabalho unifica, qualifica e surge
imperiosa ―, por exemplo, o como elemento capaz de lhes conferir
nacionalismo, a consciência de classe
ou a ortodoxia religiosa predominante coerência e sentido, construindo
― assume a forma de um sistema. E laços de solidariedade e estratégias
na verdade o próprio termo cultura,
com sua invocação confortável de um de sobrevivência. (...) Discutir as
consenso, pode distrair nossa atenção questões do cotidiano nos leva,
das contradições sociais e culturais,
das fraturas e oposições existentes
necessariamente, à experiência do
dentro do conjunto. (THOMPSON, trabalho.” (MATOS, 2002, p. 50)
1998, p. 17) O mundo do trabalho foi
tecido de acordo com as
necessidades do sistema capitalista,
Percebe-se que Thompson não
ou seja, à medida que avançava a
apreendia cultura como um
industrialização, que se alteravamas
componente da superestrutura e
estruturas socioeconômicas e que se
174
impulsionava o desenvolvimento Em quase todas as línguas da cultura
europeia, trabalhar tem mais de uma
tecnológico. Foi se constituindo significação. O grego tem uma
também de acordo com as lutas palavra para fabricação e outra para
esforço, oposto a ócio; por outro lado,
sociais, à medida que surgiam novas também apresenta pena, que é
estratégias de ação sindical, que se próxima da fadiga. O latim distingue
definiam novos mecanismos de entre laborare, a ação de labor, e
operare, o verbo que corresponde a
participação política, que era opus, obra (...). Em português,
concebida uma cultura operária em apesar de haver labor e trabalho, é
possível achar na mesma palavra
oposição à cultura burguesa. trabalho ambas as significações: a de
Ao longo do século XIX e do realizar uma obra que te expresse,
que dê reconhecimento social e
século XX, este amplo conjunto de permaneça além da tua vida; e a de
práticas sociais e discursos esforço rotineiro e repetitivo, sem
liberdade, de resultado consumível e
ideológicos foi se transformando e se incômodo inevitável. (ALBORNOZ,
diferenciando, inclusive nos vários 2002, p. 8-9)
espaços nacionais. Por isso,
Hobsbawm (1987) escreve no plural,
mundos do trabalho. Antunes nos A participação no trabalho,
mostra que entendido como ação criativa,
construtiva, mantenedora e
o que nos obriga a elaborar uma transformadora de todas as
concepção ampliada de trabalho, que
engloba a totalidade dos assalariados
dimensões da cultura humana, é a
que vivem da venda da sua força de condição básica ao exercício da
trabalho, não se restringindo aos cidadania; pois o trabalho é que cria
trabalhadores manuais diretos, mas
incluindo também o enorme leque que os modos e as condições de vida de
compreende aqueles que vendem sua cada cidade. O trabalho é a
força de trabalho como mercadoria
em troca de salário. (ANTUNES, 2008, característica fundamental da cidade,
p. 14) pois as cidades são construídas a
partir do trabalho constante e
É necessário ressaltar que o ininterrupto das longas cadeias de
século XX foi um período marcado gerações de mulheres e homens.
por grandes transformações O trabalhar adquiriu
mundiais, avanços e descobertas significações mais amplas. A
científicas. No contexto da sociedade dignidade, o reconhecimento
brasileira, especificamente em nossa enquanto pertencente à sociedade, a
cidade, essas mudanças vão refletir possibilidade de alimentar os filhos
no trabalho. No entanto, às vezes o pelo esforço, possibilitaram uma
trabalho é algo penoso, forçado, um defesa do valor e do direito ao
esforço obrigatório, pouco trabalho. Mas ao trabalho associamos
reconfortante. Isso pode ser a transformação da natureza em
percebido na origem da palavra produtos ou serviços, portanto em
trabalho, que vem do latim tripallium elementos de cultura.
(instrumento com o qual se O trabalho é desse modo, o
castigavam os escravos durante o esforço realizado e também a
Império Romano). Albornoz esclarece capacidade de reflexão, criação e
que: coordenação. Ele deve ser
compreendido, como ponto de
175
partida, como uma atividade vital do pesquisadores pelas chamadas
ser humano. Não há nenhum relato questões do dia a dia, pelos assuntos
de culturas humanas que tenham mais usuais que compõem os
existido sem trabalho. Assim, esse acontecimentos diários da vida.
fazer humano é uma das atividades O cotidiano está inserido na
humanas fundamentais, rica e cheia dinâmica das transformações,
de caminhos e descaminhos, portanto, este não é um espaço
alternativas e desafios, avanços e separado da vida, onde se age
recuos. Nesse sentido: “O trabalho é mecanicamente sem nenhum
a atividade que corresponde ao significado ou influência. Para Heller:
processo biológico do corpo humano,
cujo crescimento espontâneo, A vida cotidiana é a vida do homem
inteiro; ou seja, o homem participa na
metabolismo e resultante declínio vida com todos os aspectos de sua
estão ligados às necessidades vitais individualidade, de sua personalidade.
Nela, colocam-se ‘em funcionamento’
produzidas e fornecidas ao processo todos os seus sentidos, todas as suas
vital pelo trabalho. A condição capacidades intelectuais, suas
habilidades manipulativas, seus
humana do trabalho é a própria
sentimentos, paixões, ideias,
vida”. (ARENDT, 2010, p. 8) ideologias. (HELLER, 1992, p. 17)
O trabalho continua sendo o
modo dominante de inserção social, Trata-se de um lugar, assim
ainda que não seja um trabalho como o político ou econômico, cheio
regulado e legalizado pelo Estado. de significados sociais Assim, a vida
Com seu trabalho, homens e cotidiana é o palco para a atuação
mulheres transformam a natureza humana, onde ele faz história. Ao
para conseguir sustento e bem-estar, investigar o mundo que nos rodeia,
criando entre as pessoas as relações estamos procurando entender a
que marcam o cotidiano. Nesse história do nosso tempo.
sentido: Constatamos que o ser humano é
feito de tempo e que é um ser
A expansão dos estudos sobre o histórico, já que suas ações e
cotidiano da história localiza-se no
quadro de transformações por que pensamentos mudam no tempo à
vem passando a história nos últimos medida que vai vivenciando
tempos. Poderíamos dizer que, por
razões internas e externas, os
experiências coletivas e/ou pessoais.
estudos históricos do cotidiano Nesse sentido, a temática
emergiram da crise dos urbana é um grande desafio aos
paradigmastradicionais da escrita da
história, que requeria uma completa pesquisadores de diferentes áreas do
revisão dos instrumentos de pesquisa. conhecimento, pois vem sendo
(MATOS, 2002, p. 21)
desenvolvida de forma ampla e sob
diferentes perspectivas. Matos
Dispomo-nos a trabalhar com
auxilia-nos a compreender que
o cotidiano de homens e mulheres
negros campinenses, já que o mesmo
Nesse processo, a problemática da
passou a ser encarado como uma cidade foi delineada enquanto questão
possibilidade de recuperação de (a chamada questão urbana),
encontrando-se atravessada pelos
outras experiências. Ocorre um pressupostos da disciplina e da
interesse crescente dos cidadania, passando a ser reconhecida
enquanto palco de tensões.

176
Construiu-se aí a questão social muitos trabalhadores eram ignorados
mediante a identificação do outro (o
pobre, o imigrante, a mulher, o pelos letrados campinenses ansiosos
negro). (MATOS, 2002, p. 34) por projetarem mentalmente uma
cidade moderna. A esse respeito, nos
mostra que
O espaço urbano tornou-se
cada vez mais crescente e Eram simples carregadores,
fragmentado, pleno de tensões e empregados do comércio, moradores
ou trabalhadores das grandes
contradições decorrentes das propriedades do município e da
transformações aceleradas do região, domésticas e operários.
Dificilmente o conceito de progresso,
processo de desenvolvimento do que tanto significa nos escritos da
capitalismo. Esse espaço da cidade época, contemplaria tais figuras,
muito embora nenhum dos
campinense está cheio de significados desse conceito
lembranças, experiências e memória prescindisse do labor diário dessas
pessoas para materializar-se; exigia-
de trabalhadores negros.
se, no entanto, um trabalhador
Faz-se necessário pontuar higienizado e produtivo, livres das
ainda que os primeiros africanos aqui peias e vezos antigos, associados à
incivilidade. Ao final, os trabalhadores
chegaram por causa da expansão das e pobres, quando apareciam nos
atividades socioeconômicas do escritos dos letrados, eram em grande
parte como contraponto ao progresso,
povoado, que passaria a se chamar que um dia os varreria com seus
Vila Nova da Rainha e, finalmente, hábitos e vícios inaceitáveis. (SOUSA,
2006, p. 51)
cidade de Campina Grande. Com o
tempo, eles foram se tornando a
Percebemos que em Campina
maior força de trabalho local ao lado
Grande – apesar de não ser uma
de trabalhadores livres, como os
grande metrópole – houve uma
meeiros, agregados e aqueles que
intensificação do processo de
recebiam por tarefa, tornando-se os
urbanização e ingresso de migrantes
principais responsáveis pela produção
na vida urbana. Nessa cidade, no
da riqueza do município.
final dos anos de 1950, percebemos
Podemos perceber as relações
que:
de trabalho em Campina Grande
através do que trata Cabral Filho no Nesse período, o processo de
período por ele enfatizado, concentração fundiária contribui para
que grande parte da população do
campo seja obrigada a emigrar para
Pensemos agora no trabalho e nos
as cidades. Os que conseguem
trabalhadores sob esta pressão
enquadrar-se na nova ordem vão ser
progressista. Trabalho e
artesãos, pequenos produtores,
trabalhadores que, de alguma forma,
trabalhadores de comércio,
já estavam sendo submetidos aos
funcionários públicos, pequenos
interesses destes modernizadores,
comerciantes, vendedores
constituem-se numa etapa importante
ambulantes, ferreiros e outras
para a compreensão do caráter
categorias do mesmo nível, além dos
ambíguo do qual este processo de
que conseguem trabalhar nas poucas
modernização foi revestido: Bênção e
fábricas locais. (...) Ao mesmo tempo
flagelo. (CABRAL FILHO, 2009, p.
em que se estruturavam novos
104)
bairros como a Prata, que seriam
ocupados por industriais e
Notamos ainda que no comerciantes, recém-chegados à
cidade, levantavam-se bairros
ambiente rural que ainda ocupados pelos comerciários e
predominava em Campina Grande, operários, como José Pinheiro,
177
Bodocongó e Liberdade. (ARAUJO, tecelagem, na construção da ferrovia
2000: 80)
ou no comércio local.
No contexto pós-abolição e de
Estes aspectos da cidade
crescimento da cidade, buscava-se
acima enfatizados são ratificados
adequar homens e mulheres de
pelo relato de um idoso de 97 anos,
certos segmentos sociais a uma nova
que antes residia em São João do
situação do mercado de trabalho,
Cariri e que chegou para viver na
inculcando-lhes valores, formas de
cidade no ano de trinta e sete, nos
comportamento, disciplina rígida do
disse o seguinte:
espaço e tempo de trabalho. As
Vim pra cá porque naquele tempo o mulheres, particularmente, deveriam
sítio não tinha condição pra nada, o assumir um comportamento desejado
povo vivia como bicho, o cara lá não
tinha trabalho, eu trabalhava lá numa
enquanto trabalhadoras.
caieira de cal. Mas o trabalho aqui era Ao inquirirmos o advogado
muito difícil, só melhorou da década afrodescendente e Professor da
de 40 pra cá, antes o povo vivia mais
nos sítios. O serviço era barato, Universidade Estadual da Paraíba
ganhava pouco. Mas tinha trabalho, o (leciona a disciplina Direito do
camarada só não trabalhava se não
quisesse. Eu conheci muitos negros Trabalho), sobre as mudanças
que trabalhavam na construção civil. efetivadas no campo do direito
Trabalhei na rede ferroviária, aqui e
acolá tinha um negro, eles
trabalhista, a partir de 1945, ele nos
trabalhavam no pesado. O negro diz:
sempre foi discriminado, né? Tudo
que era de serviço pesado era
entregue ao negro. Aos brancos era A partir de 1945 a primeira mudança
dado o serviço mais leve. Existia uma que houve na legislação brasileira foi
indústria, a Marques de Almeida que o estabelecimento da CLT
mexia com tecido, lá trabalhava todo (Consolidação das Leis Trabalhistas).
tipo de gente, havia negros lá A questão dos negros não foi
também. Campina era atrasada. contemplada, o que foi consolidado na
(Severino Assis Simões, 2010) CLT foi a instituição do trabalho com
carteira assinada. A chamada Lei
Áurea não podia vir para a CLT
Em Campina Grande, como porque ela não trataria de libertação,
ela privilegiava aquele que estava no
em outras cidades do país eram
mundo do trabalho. Se o patrão não
realizadas centenas de atividades em assinasse a carteira de trabalho ele
seu interior, havia o ambiente da poderia ser punido, mas isso não dizia
respeito somente aos negros, era ao
feira, lugar que congregava pessoas trabalhador em geral. O que se via
que lá trabalhavam oriundas do em relação aos negros era muitas
vezes o trabalho forçado, o negro era
espaço rural e da cidade, bem como obrigado a trabalhar, às vezes sem
de outras localidades. poder sair de onde estava, às vezes
sem receber salário, trabalhando só
Vimos que não só aqui, mas
pela alimentação; uma forma de
em muitas partes, as principais escravidão não como a anterior, mas
funções ocupadas pelos não deixa de ser uma escravidão,
porque não se tinha conhecimento de
descendentes de escravizados foram: nenhuma lei trabalhista. (Amilton de
meeiro, rendeiro, alugado, vendeiro, França, 2010)

tropeiros, aguadeiro, empregados


domésticos etc. Alguns outros se Em seu relato, ele nos fala
inseriram em relações de trabalho sobre como a trabalhadora negra foi
assalariado nas poucas fábricas de beneficiada pela CLT:

178
Houve um avanço do ponto de vista lavava roupas como for de ganhar
da mulher, aí se incluindo a negra, dinheiro, nessa época, meu pai
até os anos 40-45 as mulheres não cortava lenha e botava nas casas,
tinham capacidade civil, elas viviam pois o pessoal tinha o fogão inglês.
sob a tutela do pai e quando casavam Em algumas casas ele combinava o
passava para o marido. Ela não podia seguinte: vou botar lenha e não vou
colocar um comércio, por exemplo, cobrar e você toma minha lição.
sem autorização do marido. Essas Campina Grande tinha uma rua que
mudanças realmente existiram, a na década de 40 era chamada Rua
mulher não tinha direito ao voto aqui dos Operários, hoje é a Rua
no Brasil, porque era semi- Independência. Nessa rua tinha dois
inimputável, era uma cidadã de operários, todos dois de cor negra,
segunda categoria, necessitando ser um deles era meu pai (Inácio José dos
tutelada. Houve o estabelecimento do Santos) e o outro a família dele ainda
salário mínimo, também a mora na mesma casa. Meu pai era
integralização das horas extras ao ferreiro e o trabalho dele tinha uma
salário. Quanto à gestação da mulher, qualidade muito boa, artesanal, muito
foi estabelecido um período de valorizado. A espada da maçonaria foi
descanso com a garantia que ela feita por ele, era natural de Goiana,
nãovai ser demitida do trabalho nesse Pernambuco. (Amilton de França,
período. Isso ainda não se aplica às 2010)
empregadas domésticas, elas ainda
não têm estabilidade no trabalho,
podendo ser demitidas em qualquer Sabemos da importância que
época. (Amilton de França, 2010) tem a memória quando vamos
reelaborar o cotidiano de
trabalhadores negros na cidade
Após a abolição, o modelo de
campinense, buscando evidenciar
desenvolvimento econômico foi
suas experiências e vivências, seus
centrado em grandes unidades
modos de ver e viver o espaço
produtivas concentradoras de mão-
urbano, suas condições de vida, as
de-obra; era preciso subordinar
suas variadas formas de
contingentes operários disciplinados
sobrevivência. Jacques Le Goff nos
a um processo técnico fabril.
esclarece que “A memória, onde
Percebemos ainda a ausência de uma
cresce a história, que por sua vez a
política de integração dessas pessoas
alimenta, procura salvar o passado
por parte das autoridades.
para servir o presente e o futuro.
Assim, nos tempos em que se
Devemos trabalhar de forma a que a
seguiram à abolição, os
memória coletiva sirva para a
trabalhadores foram reinventando a
libertação e não para a servidão dos
liberdade e as práticas de luta, que
homens”. (LE GOFF, 1994, p. 471)
lhes garantissem sobrevivência e
Logo, Bosi acrescenta que “O
cidadania na cidade campinense.
que foi não é uma coisa revista por
Além de nos esclarecer quanto
nosso olhar, nem é uma idéia
aspecto jurídico trabalhista, o
inspecionada por nosso espírito – é
professor já citado anteriormente,
alargamento das fronteiras do
nos relatou sobre seus ancestrais
presente, lembranças de promessas
negros ao relembrar:
não cumpridas”. (BOSI, 1994, p. 18)
A minha avó nasceu em Pernambuco
Ademais, homens e mulheres
na época da Lei do Ventre Livre, os idosos têm uma nova função social,
pais dela eram escravos, mas com a ou seja, lembrar e contar para os
Lei do Ventre Livre ela saiu da
escravidão. Ela casou com meu avô mais jovens a sua história, de onde
(Francilino) que era branco e vieram
para cá; ele era vaqueiro. Minha avó
179
eles vieram, o que fizeram e Indagamos ainda como os
aprenderam. negros trabalhavam na cidade de
Neste país, assim como a Campina Grande, ele prossegue
nossa cidade, tem muitas relembrando que
africanidades e ao analisarmos a
história campinense podemos Em 1952 eu me casei e botei uma
mercearia na Rua Arrojado Lisboa, lá
reconstruir e entender o papel dos tinha um casal de negros que eram
trabalhadores negros não só como meus vizinhos, eles me enganaram.
Ela era uma mulher já madura,
mão-de-obra, mas também como perigosa, antes de ser amigada com
sujeitos plenos da sociedade em que ele era chamada de Maria tranca-rua
viveram. porque era malcriada, brava, batia
nas mulheres, trancava a rua mesmo.
A história registra que na era Ela era daqui de Campina, aí o negro
pré-colonial, ou seja, “antes da chegou do Rio Grande do Norte, se
conheceram e foram viver
chegada dos europeus, florescia ali maritalmente. O nome dele era
uma cultura rica e variada, grandes Francisco Inácio Rodrigues, o apelido
dele era criança, o nome dela só sei
comerciantes, reinos prósperos, com que era Maria, eles não tinham filhos.
um conjunto de crenças, Ele vendia mangaio na rua, ele fez um
galão de dois balaios, em vez de lata
politicamente organizados, vida
eram balaios. Ali ele colocava inhame,
urbana, ou seja, lá havia uma batata, macaxeira e outras coisas.
civilização”. (M‘ BOKOLO, 2003, p. Passava o dia todo vendendo, vendia
tudinho. Ele vivia disso, e a morena
113) A abolição não lhes garantiu não trabalhava não, ficava em casa,
condições dignas de vida, de certa eles viviam bem, eram controlados.
Depois ele me pediu dinheiro
forma continuaram cativos de sua emprestado para comprar uma carga
própria condição social: sem ter para de inhame, estocar e ir vendendo
devagar. Eu emprestei, esse negro
onde ir, sem ter onde morar, em parecia ser muito bom, trabalhador,
subempregos etc. foi aí que eles me deram o golpe de
Isto pode ser notabilizado cinco mil cruzeiros. Me tomaram o
dinheiro emprestado e foram embora
quando perguntamos a Otacílio para o Rio Grande do Norte, isso em
Cabral da Silva (2010) se os negros 1954, no ano que Getúlio se suicidou.
(Otacílio Cabral da Silva, 2010)
eram discriminados, se sofriam
preconceito, este nos respondeu: Para compreender a presença
dos negros nos mundo do trabalho,
Naquela época tinha poucos negros,
hoje tem muito. Os que tinham na tentamos reconstituir nestes
cidade eram civilizados, eram bons, fragmentos as histórias dos
não procuravam fazer mal. Quando eu
estava no Rio de Janeiro eu sofri
trabalhadores negros, procurando
muito nas mãos dos negros, os de lá enfatizar a maneira de ver e viver o
eram perigosos, malcriados, bravos.
espaço urbano, como também as
Mas os daqui eram uma beleza, eram
diferentes dos de lá, eram pacatos, suas condições de vida. Concordamos
bons, não procuravam o mal de com Rocha, quando ela propõe:
ninguém. Tinha preconceito contra
eles, eles eram menos, como eu
posso dizer, menos sem valor, os Afinal, o estudo de temas decorrentes
brancos discriminavam, apesar dos da história e da cultura afro-brasileira
negros daqui serem negros bons. e africana não deve restringir-se à
Agora não, as coisas foram população negra, mas a todos os
progredindo,chegou ao ponto de se brasileiros que desejam uma
alguém chamar uma pessoa de negro, sociedade equânime, na qual as
pode até ser processada. diversidades (culturais, etnicorraciais
etc.) sejam reconhecidas, com a
180
expectativa de que as crianças e os Percebemos nesse contexto,
jovens se tornem cidadãos com forte
sentimento de respeito e de as trajetórias urbanas que aparecem
reconhecimento da cultura do outro, nas memórias de uma idosa, que se
do diferente. Sem dúvida, esse é um
caminho para se ampliar a cidadania
reconhece negra, e que nos relata:
brasileira. (ROCHA, 2010: 97)
Desde os doze anos que eu trabalho,
primeiro no roçado, depois com vinte
As histórias aqui contadas são anos fui trabalhar na fábrica como
sobre pessoas negras e sobre as tecelã na Tecelagem Marques de
formas adotadas por eles para Almeida, ainda hoje tem o prédio,
parece que é uma loja de carro, é ali
contornar as limitações enquanto na Faculdade de Administração, antes
lutavam para tornar-se parte da o Correio era ali. É um prédio grande,
bem velho que tem. Tava com trinta e
nação. Deste modo: três anos quando me casei, mas
nunca deixei de trabalhar. Dava um
O trabalhador recém-liberto não viveu agrado a uma sobrinha pra ela cuidar
a experiência de ser outro. Está dos meninos e ia trabalhar. Fazia o
marcado por uma nova ordem em que almoço de madrugada e levava pra
a única fala, a única vontade é a do comer na fábrica. Depois fui trabalhar
patrão. O sofrimento, o embate, a no cotonifício, que não existe mais,
discussão são inadmissíveis. A trabalhei nove anos, depois trabalhei
vontade do senhor não deve ser lá em João Cristino perto do
contrariada. Discordar é desrespeitar. cemitério. Depois saí de lá e voltei pra
Não há espaço nem condições para se Tecelagem Marques de Almeida e
conviver com a diferença, contra a fiquei lá até me aposentar em 1983.
qual se decreta o silêncio. Essa é a Minha vida todinha foi trabalhar. Na
prática dos patrões. (MONTENEGRO, fábrica trabalhava de seis da manhã
1988, p. 68) até às seis da noite. Uma vez
trabalhei até a quinta-feira e ganhei
menino no sábado. (Antônia Francisca
Quanto à questão do negro no de Souza, 2010)
mercado de trabalho, é sabido que
havia falta de ações sociais para com Quando indagamos a mesma
a população negra associada a uma se teve algum tipo de lazer na sua
profunda reticência por parte da juventude, ela nos responde:
classe média em geral em aceitá-la
A minha vida foi assim (pausa) eu não
em empregos formais de melhores
tive vida. Eu fui uma pessoa que não
salários. tive juventude. Hoje é que eu tô
Como resultado de nossa tendo, quando era nova não tinha,
pois tive que trabalhar. Com doze
busca, encontramos homens e anos eu cheguei em Campina e já
mulheres vindos de muitas cidades comecei a trabalhar pra ajudar a
família. A minha infância foi junto
da região para tentar a vida na com gente adulta, eu não tive
cidade de Campina Grande. Benjamin juventude, sabe. Hoje é que eu tenho,
passeio e gosto de ir à igreja e ir pra
coloca que as migrações foram
casa da minha família. Domingo
realizadas sem planejamento e, por mesmo fui lá pra Guarabira, eu ando
este motivo, os negros “que aquele mei de mundo(sic)todinho com
minhas amigas, hoje eu tenho amiga.
migraram para as cidades Antigamente eu não tinha porque
mantiveram-se como trabalhadores trabalhava muito, tinha marido e
quatro filhos. (Antônia Francisca de
não-qualificados, recebendo baixos Souza, 2010)
salários e sem acesso à habitação
digna, serviços básicos de saúde, Podemos inferir pelos relatos,
educação, higiene e segurança”. que o cotidiano de alguns negros
(BENJAMIM, 2004, p. 135) campinenses foi caracterizado pelo
181
trabalho duro e geralmente mal trabalho nas fábricas e incipientes
remunerado. Notamos certa indústrias igualmente
passividade em aceitar a extensa desconsideravam de início pelo
jornada de trabalho, encarada com menos, habilidades específicas, ao
naturalidade. A indústria paraibana considerarmos que a maioria destes
era precária e com um pequeno ofícios era apreendida no próprio
contingente operário. E, prossegue trabalho.
colocando que, geralmente esses
trabalhadores eram “oriundos da
zona rural e condicionados aos Considerações finais
ditames do coronelismo, às relações Trouxemos à tona com este
pessoais de dominação e trabalho situações que estão
dependência, muito freqüentes presentes na nossa realidade, mas,
também nas fábricas, os operários muitas vezes, estão esquecidas,
paraibanos dificilmente teriam como dar vozes a idosos negros, para
condições de perceber sua condição conhecermos seus agenciamentos
de expropriados.” (GURJÃO, 1999, p. nos mundos do trabalho. A fase pós-
85) abolição não foi uma época em que
Deste modo, homens e brancos e negros tinham
mulheres negros estavam aptos a oportunidades iguais, mas ao
serem inseridos no mercado de contrário, havia toda uma
trabalho campinense da época? preocupação em garantir que eles
Nossa entrevistada, anteriormente continuassem em condições desiguais
citada, ao ser indagada a esse no mercado de trabalho.
respeito, nos relata: Diante desse aspecto, ao
analisarmos a história dos
Eu tinha muita vontade de estudar, trabalhadores negros, percebemos
mas minhas tias não deixavam. O
povo antigamente era tão burro que suas lutas, resistências e capacidade
não queria que o povo estudasse, de superação de realidades,
principalmente a mulher, pra não
aprender a escrever pra mandar carta
ambientes e trabalhos, muitas vezes
pra homem. Eu vim estudar quando adversos. Na cena cultural brasileira
comecei a trabalhar na fábrica. A de hoje, em relação a trabalho,
maioria lá assinava o nome, eu e
outros colocava o dedo, eu tinha uma observa-se ainda que muitos homens
vergonha! Aí uma amiga minha botou e mulheres negros não obtêm postos
uma escola pela Prefeitura e me
chamou pra estudar com ela. Eu de trabalho importantes, contando-se
chegava do trabalho muito cansada e nos dedos aqueles que conseguem
foi difícil minhas tias deixarem e olha
que eu já tinha mais de vinte anos.
galgar cargos.
(Antônia Francisca de Souza, 2010) É necessário refletirmos sobre
a condição na qual os africanos e
O trabalho nas fazendas e seus descendentes estavam
mesmo nas atividades fabris e expostos, violados nos seus direitos
industriais que se formavam nas sociais e humanos. Realmente, a
cidades não requeriam de modo abolição não veio acompanhada de
significativo uma instrução formal. A ações que permitissem o acesso dos
mesma idéia pode ser atribuída em negros à educação, ao trabalho e à
relação às especializações, pois o
182
terra. O que se pode fazer para ocupando principalmente posições
amenizar esta situação? menores em setores de menor status
Faz-se necessário social. Há exceções, mas,
urgentemente a desconstrução do infelizmente não é a regra. Além dos
mito propalado pelo europeu em negros que ficaram marginalizados,
relação ao africano, desfazendo houve aqueles que também
equívocos no que diz respeito à África ascenderam social e culturalmente,
e sua gente, desconstruindo mitos, destacando-se em profissões de
preconceitos e estereótipos prestígio, sendo reconhecidos em
historicamente elaborados para a ambientes letrados e respeitados
permanência da visão negativa para pelos mais diferentes extratos da
negros africanos e sua cultura, bem sociedade.
como negros e seus descendentes.
Os negros estão associados a
trabalhos menos qualificados,

Fontes orais
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SILVA, Otacílio Cabral da. Entrevista concedida à autora, Campina Grande, 2010.
SIMÕES, Severino Assis. Entrevista concedida à autora, Campina Grande, 2010.
SOUZA, Antônia Francisca de. Entrevista concedida à autora, Campina Grande,
2010.

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184
A TRANSFORMAÇÃO NA Keywords
PERCEPÇÃO DO HERÓI DA Medieval hero; Hero in Antiquity;
ANTIGUIDADE AO SÉCULO XVIII: Modern hero.
UMA ANÁLISE CRÍTICA

Francisco Eduardo Alves de Heródoto, considerado o “pai


da história”, em seu clássico História, 1
Almeida1 Graduado em Ciências
descreveu de uma maneira pungente Navais pela Escola
e dramática a batalha das Termópilas Naval. Graduado em
História pela
Resumo travada em 480 a.C. Nesse confronto Universidade Federal do
contra os invasores persas liderados Rio de Janeiro (UFRJ).
O presente artigo pretende discutir as por Xerxes, se bateu um pequeno Mestre e Doutor em
transformações ocorridas na percepção grupo de espartanos e téspios História Comparada
do que é ser herói, desde Homero até pela UFRJ. Professor de
liderados por Leônidas, rei de História Naval e
Voltaire. O texto inicia com a discussão Esparta. Foram 300 espartanos e Estratégia do Programa
do que se entende ser o herói, para em pouco mais de 3500 helenos de de Pós-Graduação em
seguida serem abordadas as visões de Estudos Marítimos da
diversas procedências (HERÓDOTO,
heroísmo de Paul Johnson, Dixon Escola de Guerra Naval
1985, VII, p. 202) contra 5.283.220
Wecter, Lucy Hugues-Hallet e de Rauol (EGN). E-mail:
Girardet. Em continuação são discutidas combatentes de diversas satrapias do alves.pe.almeida@egn.
as percepções do heroísmo na império persa. (HERÓDOTO, 1985, mar.mil.br
Antiguidade de Homero e de Plutarco, VII, p. 186)
passando-se a analisar as visões de Depois de diversos dias de
Beda e Jean Froissard no período resistência, os helenos foram
medieval e François Marie Arouet de finalmente sobrepujados. Dos 300
Voltaire no século XVIII, indicando na lacedemônios que iniciaram a batalha
conclusão existirem transformações
só sobreviveram dois, que teriam
graduais na percepção do herói nesses
diferentes períodos históricos.
regressado a Esparta, um doente e
outro um simples mensageiro
Palavras chave (HERÓDOTO, 1985, VII, p. 229). Um
Herói medieval; Herói na Antiguidade; suicidou-se e o outro, desonrado por
Herói moderno. abandonar o campo de batalha,
mesmo que por uma razão justa,
reabilitou-se em Platéia no ano
Abstract seguinte.
Exageros numéricos à parte,
The current article intends to discuss the
transformations that occurred in the
Heródoto fez questão de enaltecer
perceptions of hero from Homer to aqueles heróis defensores da Hélade
Voltaire. The text begins with a de uma forma marcante. Além do
discussion of what a hero must be próprio Leônidas, ele apontou
understood, following the different Dieneces como um exemplo de herói
visions of heroism according to Paul a ser referenciado. Disse ele o
Johnson, Dixon Wecter, Lucy Hugues- seguinte sobre esse herói:
Hallet and Raul Girardet. In sequence
there are discussions about the heroism Os lacedemônios e os téspios se
from Antiquity with Homer and Plutarch, comportaram com coragem igual,
followed by Bede and Jean Froissard mas segundo se diz um homem
hero visions in the Middle Ages and sobrepujou todos os outros em
François Marie Arouet de Voltaire in the bravura, o espartano Dieneces, que
XVIII century, indicating in the de acordo com esses relatos teria
pronunciado as palavras mencionadas
conclusion that there are changes in the
a seguir antes de entrar em combate
hero´s perceptions in those different com os medos: ouvindo um dos
historical periods. traquínios dizer que, quando os
bárbaros disparavam os arcos, o sol

185
era ocultado pela enorme quantidade “sabe”, isto é, ele tem uma elevada
de suas flechas, tão grande era o seu
número, ele, sem perturbar e sem dar
disposição para aprender, uma
a menor importância à imensidão das abertura para o novo, uma
tropas medas, teria dito que a notícia curiosidade criativa e uma grande
trazida pelo estrangeiro de Traquis necessidade de entender e
era excelente, pois se os medos
compreender as inter-relações
escondiam o sol, os helenos iriam
combatê-los a sombra e não ao sol. sociais. Ele “ousa”, significando que
(HERÓDOTO, 1985, VII, p. 226) tem a coragem para o risco
calculado, para o desconhecido e
Heródoto, continuando o seu capacidade de superar os conflitos
relato, disse que em honra dos heróis que surgem, por se distanciar das
tombados nas Termópilas, foram normas coletivas, mantendo-se fiel a
gravadas inscrições que diziam “aqui si mesmo. Ele “quer” expressando a
um dia quatro mil peloponésios força de seguir o caminho que ele
lutaram bravamente contra três mesmo escolheu com paciência,
milhões... dize aos lacedemônios, firmeza e intencionalidade, apesar de
estrangeiro, aqui jazemos em todos os revezes que possam ocorrer
obediência as suas leis”. e, por fim, ele se “cala”, denotando
(HERÓDOTO, 1985, VII, p. 228) uma disciplina emocional,
O que se pretende discutir é o autodeterminação, autonomia e
que se entende por herói segundo capacidade para ser objetivo nos
Paul Johnson, Dixon Wecter, Lucy seus propósitos. (MULLER, 1997, p.
Hugues-Hallet e Rauol Girardet, para, 34)
em seguida, analisar-se as diferentes A palavra ‘herói’ vem do grego
percepções do heroísmo desde a héros, que significa homem
Antiguidade, passando pelo período extraordinário por seus feitos
medieval e pela modernidade, com guerreiros, por seu valor ou por sua
as visões de Homero, Plutarco, Beda, magnanimidade. Assim cada homem
Froissard e, finalmente, Voltaire. tem o seu valor e alguns são mais
valiosos que outros, segundo
Fernando Seffner. Para ele, atos
O QUE É SER HERÓI magnânimos são aqueles que
revelam grandeza da alma,
O herói exerce uma grande generosidade, desprendimento e
fascinação sobre o homem. Ele nobreza. (SEFFNER, 1998, p. 195)
personifica a figura ideal do espécime Por outro lado, para Peter Burke os
humano, defendendo as causas heróis agem como modelos ou
consideradas justas e por isso há símbolos de nossas próprias
uma imediata identificação com o seu identidades e valores culturais. Ver o
grupo social. Seus desafios, medos, herói poderá ser, também, uma
vitórias, derrotas e fama assombram expressão de esperança no futuro.
o seu semelhante. Ele é o consolo em (BURKE, 2009, p. 36) Apesar de se
tempos tormentosos e o salvador em viver uma época anti-heróica, Burke
situações extremas. Segundo Lutz indica que a maioria dos seres
Muller, ele mostra ao ser humano as humanos necessita do herói para
virtudes de honra, sacrifício e os melhor convívio com os seus
mais altos valores humanos. Pelo seu semelhantes. Para esse historiador
exemplo o homem se identifica e inglês, a necessidade de heróis não
procura copiá-lo. O herói possui irá desaparecer. Parece impossível
algumas capacidades anímicas e viver sem heróis psicologicamente,
essenciais que o coloca acima dos quer sejam vistos com olhos críticos
demais homens. (MULLER, 1997, p. ou não. Burke complementou
34) Muller afirmou que o herói afirmando que se pode dizer “que a
186
maturidade psicológica é marcada Reagan, dentre alguns por ele
não pela rejeição dos heróis, mas citados.
pela capacidade de admirá-los, Uma visão particular do que
enquanto o [homem] permanece seja o herói foi a especificada pelo
cônscio de suas fraquezas humanas”. norte-americano Dixon Wecter.
(BURKE, 2009, p. 36) Segundo esse estudioso havia uma
Paul Johnson, mais necessidade nos Estados Unidos da
pragmático, definiu o herói como América (EUA) de se homenagear os
sendo qualquer ser humano encarado heróis locais como uma parcela
ampla e entusiasticamente e por essencial do patriotismo. Wecter
muito tempo como heróico por uma conceituou o patriotismo norte-
pessoa racional ou mesmo irracional. americano como sendo ligado àquele
(JOHNSON, 2008, p. iii) A percepção local no qual residia seu cidadão,
para ele é mais importante que a onde ele considerava o seu lar, a
ação. Ele, assim definindo o herói, região onde encontrava outros
se aproxima mais da percepção do cidadãos com os pensamentos
heroísmo por parte de uma pessoa semelhantes aos seus. Dessa
do que o ato heróico de per si. Ele maneira os símbolos coletivos, a
distingue quatro pontos principais bandeira, a declaração de
para que um herói seja identificado independência, a constituição e as
como tal. Em primeiro lugar, o herói façanhas dos heróis serviam como
deve possuir absoluta independência um sentido de continuidade nacional.
mental, que surge de sua capacidade (WECTER, 1965, p. 11) Para Wecter,
de pensar em tudo por si mesmo e os heróis norte-americanos serviam
tratar com desconfiança e ceticismo o de conselheiros além das sepulturas,
consenso sobre qualquer assunto. Em guiando o povo com “uma sabedoria
segundo lugar, após tomada a santificada pelo tempo”. (WECTER,
decisão de realizar o ato, ele deve 1965, p. 12) O culto aos heróis nos
agir com firmeza e coerência para EUA constituiu uma inspiração para
cumprir sua missão. Em terceiro as boas ações, desde que seus
lugar, ele deve ignorar ou rejeitar objetivos fossem bons. Dizia ele que
tudo o que os meios de comunicação era raro o homem não dispor de
lançarem sobre a opinião geral, heróis para cultuar, “nada
desde que permaneça convencido de encontrando capaz de excitar seu
que está agindo corretamente e por sangue na memória de sua raça, ou
fim, como quarto ponto, agir com nação ou dos atos de seus
coragem pessoal todo o tempo, contemporâneos”. (WECTER, 1965,
independentemente das p. 13) O culto ao herói era uma
conseqüências que possam advir. religião secular, constituindo uma
Não existe para Johnson substituto forma de culto aos ancestrais. O
para a coragem que é a mais nobre e modelo de perfeição de seus heróis,
positiva de todas as qualidades como George Washington e Abraham
humanas e o único elemento Lincoln, não devia ser discutido e
indispensável em todas as qualquer tentativa de se denegrir
manifestações do homem. esses modelos era ressentida pela
(JOHNSON, 2008, p. 257) Para ele, maioria, segundo Wecter. Os próprios
tornaram-se heróis personagens souvenirs desses heróis cultuados
como Alexandre, o Grande, Júlio eram quase que sagrados. As camas
César, Sir Thomas Morus, Mary em que dormiam, as roupas que
Stuart, Elizabeth I, Nelson, vestiam, as casas que habitavam,
Wellington, Lincoln, Lee, Churchill, enfim relíquias que a eles pertenciam
De Gaulle, Marylin Monroe, Ronald deviam ser bem preservados e
admirados pelo norte-americano
187
comum. (WECTER, 1965, p. 18) Os viva valia tanto para ser cultuada.
aniversários dos heróis (WECTER, 1965, p. 23)
transformavam-se em dias sagrados A britânica Lucy Hugues-
e os lugares de seus feitos deviam Hallett, por outro lado, conceitua o
ser relicários. (WECTER, 1965, p. 19) herói de modo menos etnocêntrico e
Para ele, o herói era escolhido pelo determinista. Para ela, os heróis são
próprio povo dos EUA, como devia pessoas dinâmicas e sedutoras, de
ser numa democracia, no entanto a outra forma não seriam heróis, e a
propaganda bem estruturada podia fúria heróica é emocionante de ser
ser benéfica para a montagem do contemplada. O herói é a expressão
culto e uma biografia positiva podia de um espírito soberbo, associado à
contribuir para essa percepção. Em coragem, à integridade e ao desdém
segundo lugar, os heróis norte- pelas pequenas concessões que
americanos, segundo ele, foram permitem que a maioria não-heróica
homens de boa vontade. O herói prossiga com suas vidas. (HUGUES-
devia ser modesto e cortês e não HALLETT, 2007, p. 13) O furor
devia autoproclamar-se infalível. heróico pode, também, desestabilizar
Devia ser superior à média, porém a ordem, daí ser uma característica
em tudo concordante com a massa. A que o herói se vale para perseguir
vontade coletiva era o seu rumo. seus objetivos. Na hora da
Wecter apontou que os homens necessidade o homem certo irá
fortes, os soldados profissionais, os surgir, o herói. Em tempos de
vitoriosos militares não foram heróis emergência é que se procuram
duradouros nos EUA. Muitos desses heróis. Sua visão do herói e da nação
militares, ao investirem no “mundo é diferente da de Wecter. Para
civil” fracassaram e deixaram de ser Hugues-Hallett, uma nação sem
cultuados. Ele citou os casos de heróis pode ser considerada
militares como William Henry afortunada, pois eles são uma
Harrison e Zachary Taylor que foram ameaça ao equilíbrio de qualquer
presidentes medíocres. (WECTER, grupo social. No entanto, uma nação
1965, p. 22) Não considerava que não pode prescindir de seus heróis,
Washington e Jackson tenham sido pois eles representam a salvação em
militares, mas sim políticos que se momentos de perigo, protetores ou
sobressaíram. O que se requer do paladinos. Para Hugues-Hallett, ser
herói norte-americano era que fosse virtuoso não é uma qualificação
altruísta, sem ostentar a fama necessária ao herói. Os heróis não
conquistada e a grandeza pessoal. O devem ser modelos a serem
sacrifício do herói em prol de uma seguidos, pois sua essência é única e
causa era fundamental para a inimitável. (HUGUES-HALLETT, 2007,
constituição do herói, isso não p. 14) Eles não são personagens
significava que a vitória fosse o seu perfeitos, muito pelo contrário,
resultado sacrifical. Muito pelo alguns mentem, fingem, aproveitam-
contrário, as derrotas tinham um se de outras pessoas, não se
peso maior na constituição do exigindo que os heróis sejam
heroísmo. (WECTER, 1965, p. 26) altruístas, honestos e competentes.
Uma última característica do herói Eles devem apenas inspirar confiança
norte-americano era que ele não e embora não sejam efetivamente
seria reconhecido como herói se bons, trazem consigo a imagem de
ainda estivesse vivo. A posteridade grandiosidade. (HUGUES-HALLETT,
diria se ele foi realmente bom e 2007, p. 15) A autora britânica não
valoroso. Para Wecter o norte- concorda com a visão de adoração
americano comum criticava sempre pelo herói de Thomas Carlyle, uma
os homens vivos e nenhuma criatura vez que a veneração exagerada de
188
um indivíduo permite a seus imortalidade”. (HUGUES-HALLETT,
defensores eximir-se da 2007, p. 24)
responsabilidade, procurando no Um fenômeno interessante na
grande homem a salvação ou a construção do herói é a chamada
realização daquilo pelo que deveriam heroificação ou a capacidade de
estar buscando eles mesmos. Os qualificar o personagem em herói,
heróis, para ela, são insubordinados engrandecê-lo e glorificá-lo. Para
e rebeldes, fazendo isso parte de seu Adhemar Lourenço da Silva existem
encanto. (HUGUES-HALLETT, 2007, três fatores que correlacionam à
p. 15) Eles não apreciam a ordem e a historiografia e o universo empírico
autoridade estabelecida e contra elas ao se analisar a heroificação,
se rebelam muitas vezes. A natureza tomando como exemplo o movimento
e a função do herói modificam-se operário. O primeiro é o
juntamente com a mentalidade da compromisso político-ideológico de
cultura que o produz, bem como as seus historiadores tradicionais. A
qualidades atribuídas ao herói, os heroificação pode ser determinada
seus feitos e o seu lugar nas pela crença político-ideológica do
estruturas social e política de onde analista e sua convicção de que a
provém. (HUGUES-HALLETT, 2007, ação daquele personagem é um ato
p. 20) O culto ao herói, também, tem heróico, apesar de existirem
uma dimensão erótica, sendo a questões a serem discutidas e até
beleza e o encanto trunfos do herói. contestadas por outros analistas. O
Mesmo a falta deles, um estilo e segundo, como observado por Rauol
presença imponentes, também, Girardet, não há simplesmente
surtem os efeitos desejados de heróis, mas narrativas heróicas. A
heroísmo. O herói seduz ou intimida, mitificação das condutas de certos
tem talento e personalidade forte, heróis tende a dissociá-los do tempo
sendo o heroísmo, teatral. (HUGUES- cronológico, com relatos que tem
HALLETT, 2007, p. 21) Ele é força no presente. Seus atos
autoconfiante, arrogante e orgulhoso, parecem ser permanentes e suas
ao mesmo tempo em que, se assim condutas sempre exemplares e
for necessário, humilde e dignas de serem seguidas. O terceiro
subserviente, porém sempre e último fator jaz na concepção do
espetaculoso e visível. Ele é o que os agentes sociais têm de sua
personagem, protagonista e ator de passagem no processo histórico.
fatos e estórias contadas por outros e (SILVA, 1998, p. 116) O
depois de morto torna-se um símbolo compromisso assumido por cada
maleável. (HUGUES-HALLETT, 2007, agente social transformado em herói
p. 23) O herói oferece maneiras no processo histórico em curso e no
diferentes de se pensar sobre a seu desenrolar transforma-se em
morte, uma vez que se expõe a uma “missão histórica” a ser
perigos mortais na busca da cumprida por ele.
imortalidade e assim não envelhece. O próprio Raoul Girardet
Hugues-Hallett aponta que “um herói expande as narrativas heróicas em
pode sacrificar-se para que outros quatro grandes modelos
vivam, ou para que ele próprio viva interpretativos. O primeiro modelo de
para sempre na memória de outros. narrativa heróica refere-se ao caso
Porém, mesmo quando seus feitos de um velho personagem com a vida
são realizados por razões puramente coberta de glórias, que exerceu
egoístas e temporais de ambição ou elevados cargos, grandes comandos,
ganância, o mero fato de sua fama retirado da vida política por escolha e
ser duradoura é um símbolo de longe dos tumultos da vida pública.
(GIRARDET, 1987, p. 73) Ele então
189
regressa à atividade, interrompendo por Girardet é o de profeta, o
a velhice tranqüila e respeitável, sua anunciador dos tempos que virão.
tarefa passa a ser o apaziguamento, (GIRARDET, 1987, p. 79) Ele guia o
a proteção e a restauração. Sua seu grupo pelos caminhos do futuro.
função é salvar uma situação crítica e Há um processo de identificação do
sua conduta passa a ser a firmeza na destino individual com o coletivo, de
provação, a experiência, a prudência, todo o grupo com o intérprete
o sangue-frio, o comedimento e a profético e heróico. Normalmente é
moderação. Exemplos típicos dessa pela palavra que ele convence, guia e
tarefa foram o de Napoleão em 1815, conduz. Ele encarna os desejos
quando regressou à França da ilha de coletivos de seu grupo, a sua marcha
Elba, para restaurar a grandeza da para a glória sob sua orientação
nação francesa, e o sempre segura. Um exemplo típico desse
mencionado Petain, que regressou modelo foi o de Adolf Hitler na
em 1940 para “salvar” a França dos Alemanha. Baldur Von Schirach,
alemães. Surpreendentemente esse chefe da Juventude Hitlerista,
último não cumpriu com o que se compôs o verso seguinte para
esperava dele e passou à história exprimir a relação estreita entre o
como colaboracionista. O segundo ‘profeta’ Hitler e a multidão
modelo está relacionado com o germânica que nele acreditou e
grande conquistador com uma visão seguiu, exprimindo esse modelo
de futuro promissor, atrás de glória e típico de narrativa heróica
poder. Ele se apodera das multidões referenciada por Girardet:
e a legitimidade de seu poder não
provém do passado, não depende da Sois vários milhares atrás de mim;
E vós sois eu e eu sou vós;
lembrança, mas sim no brilho de sua
Não tive pensamentos que não
ação imediata. Ele “atravessa a tenham nascido em vossos corações;
história como um raio fulgurante”. No momento em que falo não posso
(GIRARDET, 1987, p. 75) Um senão exprimir;
O que se encontra já em vossa
exemplo típico dessa narrativa é o
vontade;
caso de Alexandre o Grande com seu Pois sou vós e vós sois eu
ímpeto pela glória e fama. Segundo E todos nós cremos, a Alemanha em
esse modelo, há um momento Ti. (GIRARDET, 1998, p. 80)
culminante desse herói, no qual será
definido ou não o processo narrativo Há certamente nesse último
da heroificação. É exatamente o modelo uma apropriação simbólica
momento de sua punição ou morte, efetiva, sendo o domínio do
momento a partir do qual se imaginário popular e do simbólico um
cristalizam os relatos que tratam de importante lugar estratégico.
definir se seu ciclo de vida, será ou Cornelius Castoriadis (1993, p. 43)
não heróico. (SILVA, 1998, p. 118). observa que o imaginário tem que
O terceiro modelo do homem utilizar o simbólico, não para se
providencial é o do legislador, expressar, mas para existir, para
normalmente surgindo nos poder deixar de ser algo virtual e
momentos de tumulto. Ele organiza o converter-se em algo mais,
grupo social e dá sentido a ele. Um exatamente naquilo que Rauol
exemplo indicado por Girardet desse Girardet chamou no processo de
modelo foi o de De Gaulle que heroificação de “transmutação do
regressou à política em 1958, real em sua absorção pelo
estabelecendo os princípios e as imaginário”. (GIRARDET, 1998, p.
regras da nova república. 71) Assim, a heroificação passa
(GIRARDET, 1987, p. 77) O quarto necessariamente pelo domínio do
modelo de heroificação especificado imaginário popular e do simbólico
190
para se estabelecer e essa é uma Heitor pediu a Aquiles depois de dar
chave importante para se três voltas em torno da cidade,
compreender o papel do herói no seu procurando evitar o confronto direto
grupo social e sua permanência no contra o filho de Tétis. Aquiles
tempo e espaço. necessitava eliminar Heitor, pois este
Um tipo de herói muito matara Pátroclo, seu grande amor
representativo é o chamado herói em um combate singular, no qual
mítico, ligado ao estudo do mito. A imaginou estar lutando contra o
maioria dos povos primitivos teve em próprio Aquiles. Ao ver que a fuga
sua evolução estórias relacionadas pouco afugentava Aquiles, resolveu
com grandes homens que venceram enfrentá-lo sabendo que seria morto.
as adversidades e foram classificados Na Ilíada, Heitor pediu a Aquiles que
como heróis, normalmente após seu corpo não fosse conspurcado, a
cumprirem uma série de etapas a maior desonra para um herói morto
que tinham que se submeter e em combate. Seu pedido foi
ultrapassar. Com os gregos, eles pungente e doloroso:
tiveram o seu esplendor,
transformados em mitos. Pode-se, Ante a cidade vezes três Pelides, sem
te suster girei; não mais te fujo;
então, afirmar que o nascimento do Agora a te arrostar me força o brio,
herói se deu com a criação do mito. ou vencer ou morrer. Porém
(FEIJÓ, 1995, p. 12) O mito, em guardemos pacto que os deuses
verdade, se refere às crenças de um testemunhem todos;
Se da vida privar-te eles me
povo ou de um grupo social. Martin outorgam, teu corpo restituo inteiro e
Feijó apontou que o mito sobrevive puro, e só das pulcras armas
em um povo, não por que lhe despojado; igual favor, Pelides, me
explique a sua realidade, mas por assegures. (HOMERO, 2003, XX, p.
203)
refletir um aspecto real dele mesmo,
isto é, os mitos refletem sempre um
medo de mudança (FEIJÓ, 1995, p. Aquiles, enfurecido, rejeitou o
pacto e partiu para o combate com o
13). Assim, o herói mítico traz
consigo muito daquele grupo de onde desafortunado que depois de certa
deriva. O ciclo heróico grego resistência caiu morto perante as
corresponde ao ciclo em que existiam muralhas de Tróia para desespero de
os semideuses, filhos de deuses com seus pais que a tudo assistiam. Não
mortais que se destacaram por seus satisfeito, Aquiles amarrou o corpo
atos e empreendimentos. Desse de Heitor em uma biga e deu
grupo surgiu o grande Aquiles, figura diversas voltas em torno da cidade,
de modo a desfigurar o corpo do
ímpar da guerra de Tróia,
imortalizado por Homero na Ilíada. herói troiano morto para defender a
Filho de Peleu, rei da Ftia e uma sua honra e da cidade. Os deuses,
contudo, reconhecendo a valentia do
ninfa do mar, Tétis, Aquiles
representou o ideal heróico em sua herói Heitor, não permitiram que seu
essência. Em sua procura pela glória corpo sofresse os efeitos da
conspurcação e o preservaram para
se defrontou com o grande herói e
príncipe troiano Heitor, filho de as libações, após o pedido suplicante
Hécuba e Príamo. Heitor representou de Príamo a Aquiles, para que
o ideal do sacrifício heróico defronte devolvesse o corpo de seu filho para
a um oponente quase imortal como o enterro fúnebre ao final da obra
Aquiles. Seu combate contra o magna de Homero. (HOMERO, 2003,
pelides, perante as muralhas de XXIV, p. 375) Esse exemplo
Tróia, sob as vistas de seus pais, demonstra o que o herói mítico
representa no estudo do herói. O ato
tornou-se épico. Nada se iguala em
beleza e espírito de sacrifício o que
191
heróico transformando-se em mito do designava um valor objetivo, uma
herói. força que lhe era própria, constituinte
Francisco Marshall e Francisco de sua própria perfeição pessoal.
Murari Pires (2009) apontam que do Muito freqüentemente arete tinha
ponto de vista epistemológico o secundariamente um sentido de
estudo do herói inaugurado na aceitação social, traduzido em
antiguidade se distingue do estudo respeito e prestígio. (JAEGER, 2001,
sistemático do mito do herói, como p. 26)
proposto a partir do século XIX. No A arete era o atributo próprio
primeiro caso, com repercussões até da nobreza humana, sendo que em
o próprio século XIX, são abordadas qualquer posição social dominante a
questões de carisma, liderança e destreza e a força eram a base de
grandeza, normalmente relacionados seu suporte. Ainda segundo Jaeger,
com a disputa de poder e liderança a designação da arete como destreza
política, expressando muitas vezes e força estava ligada aos guerreiros
admiração por suas ações. Para os ou lutadores e acima de tudo
dois professores, essa tradição teve heroísmo, não no sentido moral, mas
em Thomas Carlyle o seu grande ligado a ele intimamente. (JAEGER,
representante e esse tipo de leitura 2001, p. 27) Na Odisséia, Homero
continua, de certa forma, sendo enalteceu Odisseu, seu herói
praticado até os dias de hoje. Pode- principal, acima da própria valentia,
se apontar esse heroísmo como destacando sua prudência e astúcia,
historiográfico. atributos da arete. O conceito de
Na próxima seção será arete revelava uma expressão de
discutido o aspecto do herói força e de coragem heróicas que
historiográfico, por meio das estavam enraizadas na poesia
interpretações de Homero, com sua heróica e esse significado
intercessão com o mito e de Plutarco permaneceu por muito tempo.
no período antigo, para em seguida (JAEGER, 2001, p. 27)
serem discutidas as percepções de Uma característica ligada à
Beda e Jean Froissart no período arete era a honra, nos primeiros
medieval, Voltaire no moderno. tempos inseparável da habilidade e
do mérito. Segundo o próprio
Aristóteles, a honra era a expressão
O HERÓI E SUAS natural do ideal da arete que ele
INTERPRETAÇÕES desejava. Os homens, para ele,
aspiravam à honra para assegurar o
Por uma questão de referência seu valor próprio, a sua arete.
temporal, pretende-se iniciar a (JAEGER, 2001, p. 31) A negação da
discussão sobre o herói, no chamado honra era, nos tempos homéricos, a
mundo ocidental, por Homero e suas maior das tragédias humanas. Os
duas obras-primas, a Ilíada e a heróis assim possuíam arete e a
Odisséia. Ao se debruçar sobre a cultivavam como um valor superior,
percepção de heroísmo homérico, ao mesmo tempo em que se
deve-se discutir inicialmente o tratavam mutuamente com respeito
conceito de arete que permeava esse e honra recíprocas. A ânsia pela
período e os séculos posteriores. Para honra era uma busca insaciável do
Werner Jaeger, os gregos herói, sendo natural para os grandes
compreendiam por arete uma força, heróis a exigência de uma honra
uma capacidade. Para os helênicos, cada vez mais alta.
vigor e saúde eram a arete do corpo O herói homérico, então, tinha
e a sagacidade e penetração a arete como característica fundamental a
do espírito. Originariamente arete busca pela honra, sua morte física só
192
teria efeito se houvesse um homens sobre a Terra. (BOTELHO,
2011, p. 77)
aperfeiçoamento de sua arete, isto é
a sua fama deveria transcender a
morte. Para o herói, até mesmo os Aquiles, sem hesitação,
murmurou ‘morte e glória’, no que foi
deuses deveriam reconhecer a sua
morte honrosa e comprazerem do seguido pelas palavras tristes e
culto que glorificaram os seus feitos. chorosas de sua mãe, ‘você as terá’,
desaparecendo em seguida no mar.
Não à toa Príamo foi reclamar com
Aquiles o corpo de Heitor, morto em Esse era o espírito que norteava o
defesa de sua arete. Esse último, herói homérico.
como um ato de reconhecimento ao O herói homérico deveria ser,
herói troiano e em respeito ao velho também, sagaz, inteligente e
rei de Ilium, cedeu o corpo de Heitor ardiloso, como o era Odisseu, o
para as libações reclamadas não só principal representante dessa
pelos troianos, mas também pelos característica de heroísmo. Odisseu,
deuses. Os deuses deveriam ser herói máximo da Odisséia homérica,
honrados pelos homens e Aquiles, em sua jornada de volta a Ithaca,
um filho de mortal e imortal, não se enfrentou o terrível ciclope Polifemo,
comedor de carne humana. Após
insurgiu contra isso.
O herói homérico deveria ser presenciar a morte de seus amigos
valente e nobre guerreiro e o na caverna do ciclope, imaginou
principal representante dessas Odisseu um ardil para matá-lo e
qualidades foi naturalmente Aquiles. assim prosseguir em sua jornada. Por
três vezes ofereceu vinho a Polifemo,
Outros heróis guerreiros se
destacaram na guerra de Tróia tais de modo a embebedá-lo para ter
como Ájax, o Grande, da ilha de uma chance de matá-lo. O ciclope,
então bêbado, perguntou o nome
Salamina, sobrinho de Peleu e primo-
irmão de Aquiles; Filoctetes da daquele homem que lhe oferecera
Tessália, o mais hábil dos arqueiros tão deliciosa bebida. Como
recompensa, o ciclope afirmou que
aqueus, herdeiro do arco e flecha do
mais célebre dos heróis Heracles; comeria Odisseu por último como um
além do nobre Heitor. presente de hospitalidade,
O herói homérico deveria ser pretendendo devorar seus
desejoso de glória e por ela pronto a companheiros em primeiro lugar.
se sacrificar. Ao se preparar para a Sagazmente o herói respondeu que
guerra, Aquiles foi visitado por sua seu nome era “ninguém” e esperou o
amorosa mãe, a deusa Tétis, quando monstro adormecer em razão da
bebida. Logo após, auxiliado por seus
caminhava por uma praia na Hélade.
Desejosa de ver o filho querido companheiros, Odisseu enterrou uma
afastado daquele conflito tenebroso estaca de oliveira em brasa no único
olho de Polifemo. Terrível foi o urro
que surgia, Tétis profetizou a
Aquiles: do monstro que, distraído pela dor,
gritou para os outros ciclopes das
Meu filho, agora você deve optar cavernas vizinhas para virem auxiliá-
entre dois caminhos. Pode escolher lo a caçar aqueles homens que
uma vida longa e pacata; nesse caso fugiam de sua caverna, estando
morrerá no anonimato e logo será
Odisseu à frente. Na chegada dos
esquecido, mas conhecerá o gosto da
felicidade. O outro caminho leva à outros ciclopes, esses perguntaram a
glória, mas também à morte causa da aflição do ciclope ferido,
prematura. Se for a Tróia você diálogo retratado na Odisséia de uma
morrerá ainda jovem e sua alma
maneira marcante:
descerá rapidamente à Mansão dos
Mortos; mas sua lembrança viverá
para sempre enquanto houver

193
Sobre ventosos cumes habitavam. conquistar a glória apenas para os
Aos gritos acudindo, eles à entrada.
O que aflige indagam: ‘Polifemo, por
espartanos Leônidas mandou os
que a noite balsâmica perturbas aliados embora”. (HERÓDOTO, 1985,
E nos rompe o sono com tais vozes ? VII, p. 220) Glória, honra e valentia
Acaso ovelha ou cabra te roubaram em combate foram características de
Ou por dolo ou por força alguém
Leônidas naquela luta desigual nas
matou-te ?’
‘Amigo, do antro Polifemo Termópilas. Leônidas transformou-se
disse, o ousado que por dolo, não por em herói. Da mesma maneira,
força, matou-me, foi Ninguém’. Temístocles provocou uma derrota
Replicam logo: ‘se ninguém te
naval a Xerxes, em Salamina, que
ofendeu, se estás sozinho, morbos
que vêm de Jove não se evitam; pede motivou o fim de sua investida na
que te alivie ao pai Netuno’. Com isso Hélade. Por meio de um ardil e de
vão-se andando e eu rio n’alma de um inteligente planejamento tático
que meu nome e alvitre os
encurralou os persas em Salamina,
enganasse. (HOMERO, 2002, IX, p.
310) que ficaram indisponíveis para
manobrar seus barcos. Temístocles
Os outros ciclopes então se transformou-se em herói.
afastaram já que “ninguém” ferira Outro intérprete do herói
Polifemo. Utilizando a astúcia e exemplar foi Plutarco de Queronéia
inteligência, Odisseu salvou seus que, em sua obra magna Vidas
amigos de uma morte terrível na Paralelas, escreveu a biografia de 25
mão do horrendo Polifemo. O pares de personagens gregos e
heroísmo homérico definido pela romanos que se destacaram. Sua
inteligência e perspicácia de Odisseu. obra biográfica tinha para ele três
Aquiles, Heitor, Ájax, Odisseu, características principais; foram
Filoctetes, Enéas, Agamenon, escritas por prazer, tentou humanizar
Pátroclo, Palamedes, Antíloco, os biografados e destacou detalhes
Mêmnon (STEPHANIDES, 2000) e significativos. (KURY, 2001, p. 14)
outros tantos heróis homéricos Um par biográfico típico da obra de
representativos de um heroísmo que Plutarco foi “as vidas comparadas de
prosseguiu até o tempo de Alexandre e César” que segundo a
Alexandre, o herói macedônico, que ordenação de seu filho Lâmprias,
se considerava um dos descendentes assumiu o número 22 de seu
dessa plêiade de heróis, muito bem catálogo. (SILVA, 2006, p. 30)
discutido pelo historiador Plutarco no A preocupação de Plutarco era
século I d.C. de caráter moralizante, procurando
Esse tipo de heroísmo iria apontar a moral do homem de bem,
perpassar o período homérico e embora nem sempre seus
avançar até o predomínio romano no biografados tenham sido homens
ocidente. A ênfase na defesa da benevolentes. Esse foi o caso de
honra, valentia, ânsia pela glória, Demétrio (par biográfico 25 no
sagacidade, inteligência e ardileza catálogo de Lâmprias) que, apesar de
eram características do heroísmo notável, era conhecido por sua
helênico. Quando a Pítia tinha maldade. Seus biografados ofereciam
respondido à pergunta dos exemplos a serem seguidos por
lacedemônios sobre o propósito da todos. Seus heróis eram homens
guerra contra os medas, ela idealizados exemplares e no texto A
respondera que ou Esparta deveria malignidade de Heródoto, Plutarco
ser destruída por Xerxes ou “então criticou severamente esse autor por
seu rei teria de perecer”. Heródoto apontar os grandes homens com
claramente indicou que “refletindo suas falhas e limitações, fato que
sobre esse oráculo e por querer considerava inconcebível descrever.
(KURY, 2006, p. 16) Para Plutarco os
194
heróis deveriam ser seguidos e não textual, tornando o relato da vida do
criticados. Ao descrever os seus herói mais atrativo (1992). Um
heróis, o autor grego tinha como aspecto interessante de suas
finalidade educar as gerações biografias comparadas era o
futuras, de modo a que servissem enaltecimento do herói grego em
como exemplos e assim os leitores comparação com o romano,
não cometeriam os mesmos erros de demonstrando com isso uma
seus antecessores. (KURY, 2006, p. preferência pela superioridade de
43) Dessa maneira, as suas educação dos helenos. (KURY, 2006,
biografias comparadas tinham um p. 44)
caráter pedagógico. O grande exemplo de herói
Para Plutarco a verdade dos para Plutarco foi Alexandre. Esse
fatos narrados era o ponto mais guerreiro macedônio tinha uma
importante a ser perseguido, enorme atração pela Ilíada e esse
procurando compilar as mais fato foi enaltecido por seu biógrafo
variadas fontes sobre seus heróis, de Queronéia. Alexandre, ao
inclusive as orais. Ateve-se, também, atravessar o Helesponto em suas
na estrita cronologia e na conquistas, se reportou a Aquiles,
contextualização do mito, não o seu ideal de heroísmo. Plutarco assim
reconhecendo como verdade, mas descreveu esse fato em sua biografia
sim como um componente comparada:
fundamental do texto para se
compreendesse o ambiente vivido Com tal resolução vigorosa e sua
mente assim preparada, ele
pelo herói. [Alexandre] atravessou o Helesponto
Mario da Gama Kury, ao e em Tróia fez sacrifícios para Minerva
comentar a obra de Plutarco, afirmou e honrou a memória dos heróis que lá
que o autor grego revelou em suas foram enterrados com solenes
libações; especialmente na coluna
biografias o que havia de mais nobre
funerária de Aquiles e com seus
na alma humana. Seus heróis eram amigos seguindo um costume antigo
exemplos de virtude e grandeza andou nu em torno de sua sepultura e
moral. Para Kury, quando se fala em colocou ali uma coroa, declarando
alegremente que muito o estimava
“um grande homem de Plutarco”,
por ter, enquanto viveu, um amigo
tem-se presente no espírito “um tipo fiel e quando morreu teve um poeta
particular, talvez mais ideal que real, que enalteceu suas façanhas.
mas de qualquer forma admirável”. Caminhou depois pelas ruínas e
observou curiosidades do lugar, sendo
(KURY, 2006, p. 17)
perguntado se desejava ver a harpa
Plutarco procurou em suas de Paris respondeu pouco me importo
biografias descrever as grandes com ela, contudo ficaria feliz se
tragédias e feitos de seus heróis, pudesse ver a harpa de Aquiles com
que cantou as glórias e as grandes
expondo dramas, emoções e fatos ações de homens bravos. (PLUTARCH,
que marcaram as suas vidas de 1952, p. 547)
modo indelével. A historiadora
britânica Judith Mossmam, uma das Alexandre, para Plutarco, era
principais pesquisadoras sobre a obra o modelo especial de herói e suas
de Plutarco, apontou que no caso da características apontavam para uma
biografia de Alexandre, o autor de superioridade moral, valentia e
Queronéia se inspirou no paradigma nobreza que caracterizavam sua idéia
poético de um herói homérico, o de heroísmo.
grande Aquiles, sendo que para ela No período medieval houve
Plutarco se baseou na Ilíada para uma mudança no enfoque do
compor o personagem macedônico. heroísmo. Jacques Le Goff apontou
Esse estilo trágico-épico seria uma que na Antiguidade o termo herói
particularidade de seu método
195
designava um personagem fora do 2009, p. 21) Heróis reais como
comum em função de sua coragem, Carlos Magno, Ricardo Coração de
valentia, glória e vitórias, sem que Leão e São Luiz se misturavam com
por isso o herói pertencesse às heróis imaginários como Robin Hood
categorias superiores de deuses e e Arthur de Pendragon e heróis reais
semideuses, conforme discutido. (LE transformados em imaginários como
GOFF, 2009, p. 15) Na Idade Média Rolando e El Cid.
esse termo sofreu grande Os grandes heróis típicos da
transformação. Os considerados Alta Idade Média foram homens que
heróis eram um novo tipo de homem, se sacrificaram pela religião cristã.
o santo e o rei, no entanto para ele Dentre os escritores que melhor
existia outro tipo de herói, o que foi retrataram esses heróis avultou o
chamado inicialmente de corajoso, padre inglês Beda nascido em 673
depois de destemido, um bom d.C, cuja obra foi amplamente lida
cavaleiro e por fim ao final do nesse período. Os heróis de Beda
período o herói cortês, gentil, belo e eram responsáveis por milagres, por
franco. (LE GOFF, 2009, p. 16) A acalmar tormentas e salvar cidades
honra, por sua vez, estava ligada ao ao recorrerem às graças de Deus. Os
progresso da cavalaria. A Instrução seus heróis hagiográficos tinham a
de um jovem príncipe escrita na tarefa de transmitir “a verdade” e os
Baixa Idade Média por Guillebert de ensinamentos de Deus por seus atos
Lannoy, a serviço do duque de e ações, auxiliando a conversão das
Borgonha, afirmou que a honra era a pessoas à doutrina cristã. Os heróis
força motriz necessária para a transformados em santos eram os
realização dos ideais da cavalaria. instrumentos de Deus para indicar o
(MUCHEMBLED, 1992, p. 44) O caminho dos crentes e não crentes,
cavaleiro devia ser de condição nobre mesmo à custa de sacrifícios como na
e franca, sendo a cavalaria um corpo morte de São Albano. Beda, em um
social superior, definido pela origem texto carregado de emoção, indicou
e por uma aprendizagem especial. que esse santo, ao ser conduzido
(MUCHEMBLED, 1992, p. 45) A para o local de execução, o rio que
cavalaria, em sua essência, moldaria margeava o caminho tornou-se seco
o comportamento de um verdadeiro para a sua passagem, comovendo o
cavaleiro e permitiria a condenação carrasco que se apressou a colocar-
do falso. (BRAUDY, 2005, p. 74) se em seu lugar para morrer. São
Muitos desses heróis Albano continuou sua caminhada em
habitaram o imaginário medieval com direção a seu destino traçado por
exemplos de conduta, ora em defesa Deus e ao morrer tornou-se um
do cristianismo como os santos, ora santo e herói recebendo “a coroa da
do cavaleiro valente defensor da fé vida que Deus prometeu àqueles que
pronto para sacrificar sua vida em o amam”. (BEDE, 1994, 1 & 7) Os
prol de uma dama em apuros ou da principais heróis de Beda foram
busca do ideal cavalheiresco, o Graal. Agostinho de Canterbury, Benedict
Interessante mencionar que muitos Biscop, São Albano, Santa Hilda,
dos heróis medievais ilustraram a Santo Cuthbert e o Bispo Aidan.
ausência de fronteiras entre o mundo Sobre a vida desse último, Beda fez a
imaginário e o mundo transformado seguinte descrição que retrata o seu
em fantasia que caracterizou o ideal de heroísmo e santidade:
universo medieval, conforme apontou
Le Goff, ignorando qualquer linha Ele [Aidan] nunca procurou obter ou
se importar com os bens materiais,
demarcatória entre o natural e o mas adorava doar aos pobres que
sobrenatural, a terra e o além, a tinham a sorte de encontrá-lo tudo
realidade e a fantasia. (LE GOFF, quanto ganhasse dos reis ou de
196
pessoas abastadas. Tanto na vida juntamente com a glória do mundo e
quanto no campo ele sempre viajava
a pé, a menos que houvesse
sua atividade principal era a estima
necessidade de cavalgar; e com todas do povo”. (SKORGE, 2006, p. 26) A
as pessoas com as quais se deparava honra aqui referenciada, segundo
em suas andanças, fossem Skorge, referia-se a um capital
importantes ou humildes, ele parava e
simbólico como definido por Pierre
conversava. Se fossem pagãs,
impelia-as ao batismo; e se fossem Bourdieu. Para esse pensador
cristãs, fortalecia-lhes a fé e francês, o capital simbólico
iluminava-lhes o espírito com palavras significava algo diferente do capital
e feitos para que levassem uma vida
material, como, por exemplo, o
saudável e fossem generosas com o
próximo. (BEDE, 1994, 3 & 5) prestígio auferido por alguém e
percebido pelo grupo do qual
Beda foi um autor típico do provinha. No caso em estudo, a
heroísmo cristão orientado para a percepção provinha da nobreza
piedade, a determinação, a crença, medieval, como algo com valor e
ao miraculoso, ao sacrifical, ao importância percebidos
disseminador do mundo de Deus e imediatamente quando alguém agia
antes de tudo foi um conversor da fé contra o código ético do período e
cristã. Ele faleceu em 735 d.C. assim passível de perda de prestígio
Na Baixa Idade Média, embora e poder. Esse capital simbólico
ainda existissem autores que apresentava-se como algo percebido
reverenciassem os heróis santos, a como necessário ao herói para a sua
ênfase passou a ser conferida aos afirmação no grupo, a defesa de sua
heróis da cavalaria, do qual o grande honra cavalheiresca. Um dos mais
artífice foi o francês Jean Froissart discutidos heróis de Froissart foi o
nascido em 1337. Conde de Foix, Gaston Fébus (1331-
Como Beda, Froissart era 1391), um dos cavaleiros que lutou
padre e descreveu a história dos contra os ingleses na Guerra dos
feitos de nobres e heróis ocidentais, Cem Anos.
em especial aqueles que estiveram Froissart teve contato direto
envolvidos na Guerra dos Cem Anos. com Gaston durante certo período,
Froissart desejou preservar a ao freqüentar a corte do conde. Sua
memória dos heróis que exprimiram descrição física desse nobre francês
o ideal cavalheiresco. Seus heróis pareceu ter o propósito de integrá-lo
deviam possuir as características de no ideal físico de seu tempo “criando
honra, lealdade, fidelidade e cortesia, uma imagem de um herói cavaleiro
no entanto foi um crítico do clero, carismático, um homem que outros
quando ele contribuiu para a homens admiravam e obedeciam”.
desordem social, embora enaltecesse (SKORGE, 2006, p. 34) Na época
figuras pias e bispos guerreiros. uma bela forma física era a prova de
(HUGUES-WARRINGTON, 2002, p. um bom caráter e o ideal de
127) heroísmo de Froissart significava,
Os heróis de Froissart foram também, beleza física. (SKORGE,
os grandes cavaleiros que tinham na 2006, p. 36)
honra e na pureza de caráter os Outra característica do
ingredientes principais típicos do heroísmo de Froissart era a
heroísmo do período. Segundo Kristel habilidade no combate e o destemor
Mari Skorge, Froissart tinha o perante o perigo, como no caso do
propósito de transmitir os valores da rei inglês Eduardo III, descrito por
cavalaria para a posteridade. Um ele como um herói destemido, um
nobre que “não agisse com heroísmo combatente hábil e cavaleiro nobre.
não podia alcançar a honra perfeita Seu combate contra o mais valente
cavaleiro francês da época Eustache
197
de Ribeaumont nas portas de Calais pelo príncipe inglês por “sua coragem
foi enaltecido por Froissart, e lealdade”. (LUCE, 1869, I, V, p.
principalmente por que Eduardo lutou 384)
como um cavaleiro comum, sob a O herói de Froissart deveria
insígnia de Sir Walter Manny. Ao final ser pio, galanteador e refinado,
da luta Eustache, após infligir quando tratando com damas.
ferimentos em Eduardo, rendeu-se a Novamente o autor francês citou
ele. Para Froissart, a honra de ambos Eduardo III como exemplo de
foi mantida pela intensidade e vigor piedade e galanteio refinado ao
com que os dois contendores se cortejar a Condessa de Salisbury,
bateram na refrega. (FROISSART, considerada uma das mais belas
2006, p. 38) mulheres da Inglaterra. (LUCE, 1869,
Para Froissart, a cortesia, I, II, p. 157-160) Dessa maneira, o
também, fazia parte do capital herói de Froissart, típico da Baixa
simbólico do herói cavalheiresco. Seu Idade Média, deveria ser belo, cortês,
exemplo de cortesia feudal ocorreu generoso, leal, pio, intrépido em
após a batalha de Crecy quando o combate, corajoso e galanteador com
Príncipe Eduardo recebeu o derrotado as damas.
rei da França João II com grande No período que se seguiu, a
cerimônia e o serviu pessoalmente, chamada Idade Moderna, inaugurada
declinando de sentar-se à mesa com no século XV até o final do século
o rei francês, por não se considerar XVIII algumas dessas características
honrado o suficiente para dividir o heróicas se alteraram. O próprio
alimento com “o bravo soldado rei da conceito de honra também sofreu
França que se provou digno naquele algumas alterações significativas. A
dia”. (LUCE. 1869, I, V, p. 397) Em historiadora Arlette Jouanna citou o
Crecy, João havia mostrado o seu texto de um moralista
valor e o Príncipe Negro demonstrou contemporâneo do rei Henrique IV,
sua admiração pela cortesia e David Rivault de Fleurance, que
generosidade que se esperava de definiu honra como sendo:
outro cavaleiro honrado. Como João,
Eduardo tornou-se um herói Não há nada de mais honroso para o
costureiro do que fazer a roupa na
admirado pelo autor francês.
medida do corpo. Da mesma maneira,
Froissart, ao descrever João, afirmou a honra do soldado é combater
que o rei da França era o mais valentemente; e a do chefe é conduzir
valioso e poderoso rei do mundo e e combater ao lado, com coragem e
destreza... assim a honra deve
que o Príncipe Negro demonstrou, primeiramente ser medida segundo a
por seu ato, um caráter consciência e o padrão universal.
cavalheiresco, uma conduta Depois, a distinção advém da
exemplar, uma cortesia suprema que diferença das profissões, ofícios ou
tipo de vida, segundo os quais uns
foi capaz de conseguir a admiração devem ser mais hábeis numa virtude,
de seus pares e se estabelecer como outros noutra. O cantor na música, o
primus inter pares com pouca idade. magistrado na justiça, o fidalgo na
(LUCE, 1869, I, V, p. 397) magnanimidade. (BILLACOIS, 1992,
p. 52)
Outra característica do herói
apontado por Froissart era a sua
fidelidade a um senhor, como foi o Percebe-se, assim, uma
caso do cavaleiro John Audley, que alteração significativa no conceito de
se voluntariou para seguir à frente do honra no período em relação ao
Príncipe Eduardo no combate de medievo. A honra estava, dessa
Poitier. Depois de intensa luta e por maneira, ligada intrinsecamente a
certas profissões, as de nobres ou de
demonstrar uma lealdade extrema a
Eduardo, Audley foi recompensado soldados, no entanto já se podia
198
perceber que a honra não se ligava Um autor que correlacionou o
somente a carreira das armas ou dos heroísmo com a grandeza e
nobres fidalgos, mas também a consolidação do estado nacional no
certos ofícios, profissões e atividades, século XVIII foi François Marie Arouet
em uma percepção mais ampla. de Voltaire em seu livro que se
Nessa concepção, Paul Johnson tornou célebre o Siecle de Louis XIV ,
qualificou como um grande herói do lançado em 1751. Nele, Voltaire fez
período Thomas Morus que pagou uma apologia ao reinado de Luis XIV,
com sua vida por defender princípios falecido em 1715, correlacionando-o
universais de moralidade contra os a uma era ou a um período de
ditames de Henrique VIII. Apesar de magnificência da França. Para
aprisionado na torre, Morus não se Voltaire o rei francês foi um dos
dobrou ante as ameaças do rei Tudor maiores reis que a França possuiu e a
e não o aceitou como chefe da Igreja partir de suas realizações nos
Anglicana, uma manobra para campos político, militar, científico,
concretizar seu casamento com Ana literário, musical, legal, econômico,
Bolena e se divorciar de Catarina de pictórico e escultural a França se
Aragão, além de confiscar bens da distinguiu de outros estados
Igreja de Roma em território inglês. nacionais europeus, tornando-se uma
Morus foi executado em 1535 com potência no cenário internacional.
grande dignidade, afirmando no Para Voltaire existiram quatro
patíbulo que “sede testemunha fases antes da ascensão de Luis ao
comigo de que vou morrer agora na trono da França. A primeira foi
e pela fé da Igreja Católica Romana. composta do mundo grego com
Vivi como bom servidor do rei, mas personagens tais como Felipe,
Deus vem primeiro”. (JOHNSON, Alexandre, Péricles, Demóstenes,
2008, p. 75) Tornou-se após sua Aristóteles, Platão e Fidias e fora
morte um mártir da igreja e santo. desse limite grego só existia o
Os heróis passaram também a bárbaro. A segunda fase
serem ligados a formação do estado compreendeu o mundo romano com
e não mais a apenas grupos sociais todo o seu esplendor e poder com
dispersos. Na Idade Moderna no homens como Júlio César, Augusto,
ocidente ocorreu o início do processo Cícero, Tito Lívio, Virgílio, Horácio e
de formação de estados nacionais e Ovídio. A terceira fase se iniciou com
nessa criação os heróis tornaram-se a queda de Constantinopla em 1453
paradigmas fundamentais. Paul e o início do Renascimento, centrado
Johnson discutiu em seu livro Os nas cidades-estado italianas como
Heróis inicialmente heróis Florença, Gênova e outros núcleos de
pertencentes a chamada era do arte e ciência que se espraiaram para
machado, o próprio Thomas Morus, o resto da Europa, trazendo à
Lady Jane Grey, Mary Stuart, discussão homens do quilate de
Elizabeth I e Sir Walter Raleigh, Miguelângelo, Rafael e Ariosto. Por
ligados a princípios e fim, a quarta e última fase de
comportamentos honrosos e em esplendor para Voltaire se iniciou na
seguida heróis ligados ao barulho de França de Luis XIV e para ele foi a
tiros de canhão como George fase que mais se aproximou da
Washington, Arthur Wellesley, Duque perfeição, realizando muito mais que
de Wellington e finalmente Horatio as três fases anteriores. (VOLTAIRE,
Nelson, Visconde Nelson, todos os 2010, p. 8)
três ligados ao estabelecimento e Voltaire procurou em seu
consolidação do estado de seus Siecle de Louis XIV apontar o rei
respectivos países. francês como o principal artífice de
seu reinado e assim digno de
199
admiração de todos os franceses. A aumentando o número de tropas em
historiografia tem apontado que locais sensíveis, treinando esses
Voltaire, ao elevar Luis XIV a homens e freqüentemente
condição de herói de sua época, inspecionando-os. (VOLTAIRE, 2010,
estaria em realidade procurando p. 59) Seus oficiais, também, eram
apontar a situação de crise que se disciplinados e assim, por suas
encontrava a França sob Luis XV. campanhas vitoriosas, assegurou
(LEAL, 2008, p. 108) Com essa visão honra para o seu nome. (VOLTAIRE,
parece concordar Marco Antonio 2010, p. 60) Luis sabia, também,
Lopes, em um interessante texto respeitar os seus inimigos honrados.
sobre a trajetória intelectual de Quando tomou conhecimento que um
Voltaire, no qual indicou que “Voltaire dos seus grandes adversários, o
teria elevado demais a figura de Luis nobre almirante holandês De Ruyter
XIV com o propósito de rebaixar a de havia morrido em combate em 1676,
Luis XV, o que parece verossímil”. afirmou consternado que “estava
(LOPES, 2001, p. 270) Seja qual afligido pela morte daquele grande
fosse a sua motivação, Voltaire homem”. (VOLTAIRE, 2010, p. 95)
enalteceu Luis XIV como o maior dos Voltaire, ao enaltecer Luis, fez
heróis franceses e, assim, o ligou questão de indicar que seu herói era
diretamente à grandeza da França. O também humilde e que o povo
certo foi que o livro bateu recordes francês o venerava, sendo que a
de venda no período, chegando a ter população de Paris o idolatrava.
oito edições em menos de dez (VOLTAIRE, 2010, p. 112) Ao mesmo
meses. (LOPES, 2001, p. 273) tempo em que Luis era bondoso,
Voltaire, em determinado Voltaire chamou a atenção para os
trecho de seu Siecle de Louis XIV, conselhos que Luis deu a seu neto,
afirmou o seguinte sobre a grandeza Felipe V que assumiria em breve o
de seu ídolo biografado: trono espanhol. Disse Luis que Felipe
deveria “amar e promover a alegria
Nenhum dos severos censores de Luis de seus súditos; diminuir os
XIV pode negar que até a batalha de
impostos; postar-se à frente das
Hochstadt ele foi o mais poderoso, o
mais magnífico e o maior dos homens tropas se fosse a guerra inevitável;
do mundo, pois embora tenham preferir o trabalho em vez do prazer;
existido heróis tais como Jon Sobieski tratar todos os súditos com bondade;
e os reis da Suécia que o eclipsaram
como guerreiro, nenhum foi capaz de
amar seus parentes; não esquecer
eclipsá-lo como monarca. É que ele era francês; não ridicularizar
necessário confessar que ele [Luis] outros costumes; e não sofrer por
suportou e remediou suas perdas. Ele estar reinando, sendo sempre o seu
teve defeitos, e cometeu erros, no
mestre, escutando e decidindo”.
entanto aqueles que o condenam
teriam cometido os mesmos erros se (VOLTAIRE, 2010, p. 241)
estivessem em seu lugar. (VOLTAIRE, O herói idealizado por
2010, p. 228) Voltaire, na pessoa de Luis, refletia
não apenas o heroísmo ligado aos
Embora Voltaire tenha ofícios da guerra, mas também ao
mencionado os reis da Suécia como heroísmo sábio, cortês, bondoso,
heróis mais qualificados na arte da empreendedor, glorioso e
guerra que Luis, o autor francês não fundamentalmente grandioso, capaz
dispensou elogios exagerados ao de transformar um século e uma era.
monarca biografado no campo A França foi grandiosa por que teve
militar. Em certo trecho de sua obra, um rei herói que a tornou grandiosa
comentou que Luis mantinha seus e essa parece ser a mensagem de
soldados prontos para o combate, Voltaire. Nas partes finais de seu
fortificando as cidades fronteiriças, livro o autor francês comparou a obra
200
de Luis XIV com o Império Romano. indicando quatro modelos
Disse ele o seguinte: interpretativos distintos para esse
processo.
A época de Luis XIV tem sido Por sua vez, o herói homérico
comparada com aquela de Augusto.
Não que o poder e os eventos
tem como características a busca
pessoais possam ser comparados. pela honra e glória e o
Roma e Augusto foram dez vezes aperfeiçoamento de sua arete, sendo
mais consideráveis que Luis XIV e a sua fama a transcendência da
Paris. No entanto deve ser chamada a
própria morte, em especial se ela for
atenção que Atenas foi igual a Roma
em tudo que não derive de seu valor obtida em defesa de sua arete. Para
em força e poder... entretanto, a Plutarco, o herói tinha um papel
Europa é bem superior a Roma. Na moralizante e exemplar servindo
época de Augusto só existia uma
nação e hoje em dia existem diversas
como referência para as gerações
que são bem estruturadas, guerreiras que se seguiam. No período medieval
e ilustradas, com mais arte que é houve uma mudança no enfoque do
estranha aos gregos e romanos e herói e segundo Beda o heroísmo
entre essas nações não existe
passou a ser miraculoso, um
nenhuma mais ilustrada que essa
formada em alguma medida por Luis instrumento de Deus na terra.
XIV. (VOLTAIRE, 2010, p. 261) Avultaram as hagiografias que
enalteciam os santos como heróis a
serviço de Deus. Já para Froissard os
CONSIDERAÇÕES FINAIS heróis tinham características
cavalheirescas, possuindo honra,
Os heróis têm servido de lealdade, fidelidade e cortesia e não
modelo ou símbolos de nossas mais sendo pios e miraculosos. Na
identidades e valores culturais, modernidade, Voltaire já percebe o
segundo Peter Burke e como tal eles herói como ligado à grandeza e
refletem o próprio tempo em que consolidação do Estado, e assim
foram discutidos. Para Paul Johnson a tomou Luiz XIV como seu paradigma,
percepção do heroísmo é mais correlacionando-o com um período de
importante que a própria ação por magnificência da França.
ele realizada. Dixon Wecter, por sua Assim, podem-se perceber
vez, liga o herói ao local onde claramente as transformações
considerava seu lar, sua região, seu ocorridas na percepção do herói
torrão natal em uma típica visão desde Homero até Voltaire, no
norte-americana, enquanto a entanto um fato continua comum aos
britânica Lucy Hugues-Hallet percebe três períodos históricos analisados, a
os heróis como personagens necessidade de existirem heróis
sedutores que não servem como como uma identificação do próprio
modelos perfeitos de grupo social. O homem continuou a
comportamento, mas que encantam precisar de heróis. Os heróis
e fascinam. Raoul Girardet, por sua personificam exatamente aquilo que
vez, discute a construção do herói o homem deseja: encontrar-se e
como um processo de heroificação, identificar-se.

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204
UM BISPO AMIGO DOS JESUÍTAS: Company (Society) of Jesus. In spite of
CONSIDERAÇÕES ACERCA DO the royal prohibitions against the
BISPADO DE DOM FREI MANUEL presence of Regulars in Minas Gerais,
this did not prevent those priests,
DA CRUZ EM MINAS GERAIS
among them there were several Jesuits,
(1749-1763) from being present in that territory. This
tendency intensified during the Bishopric
of Friar Don Manuel da Cruz. Although
Leandro Pena Catão1 the Bishop belonged to The Order of 1
Graduado e Doutor em
Saint Bernardo, he was a declared História pela
Resumo admirer of the Company of Jesus. He Universidade Federal de
was friend and confident of Priest Gabriel Minas Gerais (UFMG).
Pós-Doutor em História
Este artigo analisa a instalação e a Malagrida, one of the most famous
pela Universidade
atuação do primeiro Bispo de Mariana, o Jesuits in his time, well known because Federal de Juiz de Fora
Cisterciense Dom Frei Manuel da Cruz, of the duel fought against Marquis of (UFJF). Professor da
enfatizando sua relação com a Pombal, from which resulted his Graduação e do
Companhia de Jesus. Apesar das régias condemnation by Inquisition. The first Mestrado em Educação,
proibições contra a presença de Bishop of Mariana introduced the Priests Cultura e Organizações
Regulares em Minas Gerais, isso não of the Company of Jesus to Minas da Universidade do
impediu aqueles padres, dentre eles Gerais to manager the Diocesan Estado de Minas Gerais
(UEMG), câmpus da
havia vários Jesuítas, de estarem Seminary. Besides that he favoured the
Fundação Educacional
presentes naquele território. Essa action of other Jesuits in Mission through de Divinópolis.
tendência se intensificou durante o the Backlands in Minas Gerais and on Coordenador do Arquivo
Bispado de Don Frei Manuel da Cruz. the way that linked Minas Gerais to Rio Histórico de Pitangui. E-
Embora o Bispo pertencesse à Ordem de de Janeiro. Don Friar Manuel da Cruz mail:
São Bernardo, ele era um admirador Bishopric was decisive to the Jesuits leandropenacatao@gma
declarado da Companhia de Jesus. Ele coming into Minas, and these Priests’ il.com
era amigo e confidente do Padre Gabriel idea system contributed to the formation
Malagrida, um dos mais famosos of a political culture culminating in four
Jesuítas de seu tempo, célebre pelo Uprising Offences (delitos de
duelo contra o Marquês de Pombal, do Inconfidências) that took place in Minas
qual resultou sua condenação pela Gerais during the Pombal Period.
Inquisição. O primeiro Bispo de Mariana
introduziu os Padres da Companhia de Keywords
Jesus em Minas Gerais para Don Friar Manuel da Cruz; Mariana
administrarem o Seminário Diocesano. Bishopric; Jesuits.
Além disso, ele favoreceu a ação de
outros Jesuítas em Missões pelos sertões
de Minas Gerais e no caminho que ligava
Minas Gerais ao Rio de Janeiro. O
Bispado de Dom Frei Manuel da Cruz foi
decisivo para a entrada dos Jesuítas em
Embora a criação do bispado
Minas Gerais, e o sistema de idéias de Mariana e a ação de seu primeiro
desses Padres contribuiu para a bispo, dom Manuel da Cruz, seja um
formação de uma cultura política tema bem abordado pela
culminando em quatro Delitos de historiografia, são raras as análises a
Inconfidências que ocorreram em Minas mencionar e se debruçar mais
Gerais durante o Período Pombalino. detidamente acerca da afinidade do
prelado para com a Companhia de
Palavras chave
Jesus, assim como as repercussões
Dom frei Manuel da Cruz; Bispado de
Mariana; Jesuítas.
desses laços durante sua gestão,
num contexto marcado pelo
Abstract enfrentamento da Companhia de
Jesus e o Marquês de Pombal. A
This article analyses the settlement and intenção deste artigo é preencher
actuation of the first Bishop of Mariana, esta lacuna, analisando o primeiro
the Cistercian Friar Don Manuel da Cruz, bispado das Minas à luz dessa forte
emphasizing his relationship with the
205
vinculação do primeiro bispo e a com vistas a subsidiar a Coroa
Ordem jesuítica. (Cf. BOSCHI, 1986; portuguesa no que tange a
CARRATO, 1958; ÁVILA, 1967; redefinição dos limites territoriais
TRINDADE, 1953) entre as possessões das duas
Um dos mais importantes potências ibéricas na América. Eram
marcos da vida religiosa das Minas vitais e de imenso valor estratégico
Gerais setecentistas foi, as informações coletadas e aferidas
indiscutivelmente, o estabelecimento pelos padres da Companhia, sobre
de seu bispado, instituído pela Bula um território que a àquela altura era
Papal Condor Lucis Aeternae, de 6 de muito mal conhecido, sobretudo os
dezembro de 1745, que criou as sertões onde se encontravam as
dioceses de Mariana e São Paulo, preciosas catas auríferas, cujas
além das prelazias de Cuibá e Goiás. posses ainda não eram definitivas,
Além das motivações de natureza devido exatamente às incertezas
religiosa e espiritual, a criação desses quanto à soberania de uma ou outra
bispados e prelazias atendiam a potência ibérica. (ALMEIDA, 1999, p.
aspirações políticas da Coroa 82-83) Os cartógrafos jesuítas
portuguesa, que buscava garantir executaram um importante trabalho
juridicamente suas imensas posses à cartográfico, confeccionando valiosos
oeste da América portuguesa, além mapas e coletando informações
das áreas demarcadas pelo Tratado acerca das capitanias do Rio de
de Tordesilhas, garantindo a posse Janeiro, São Paulo e Colônia de
dos vastos sertões onde Sacramento, além das regiões
recentemente havia se descoberto interioranas onde estavam as minas
imensas quantidades de ouro e de ouro e de diamante na capitania
pedras preciosas. A criação do de Minas Gerais. (FURTADO et alii,
bispado de Mariana era o “aval” da 2002, p. 54-59)
Santa Sé quanto ao domínio da Outro objetivo da missão seria
Coroa portuguesa sobre aquela vasta a delimitação dos limites entre as
área à oeste da delimitação do capitanias e os bispados da América
Tratado de Tordesilhas. Nesse portuguesa, pondo fim a um sério
sentido, a criação do Bispado de problema de ordem administrativa
Mariana, o de São Paulo, mais as relacionadas as esferas civil e
prelazias de Goiás e Cuiabá eclesiástica. A missão dos cartógrafos
constituíam parte importante na da Companhia visava ampliar o
estratégia de Portugal na mesa de conhecimento acerca do espaço
negociações com a Coroa Espanhola relativo à América portuguesa,
no sentido a redefinir as fronteiras sobretudo os seus vastos sertões.
entre as potências ibéricas na Desde a década de 1720, dom João V
América do Sul, consolidadas pelo desejava a criação de um bispado
Tratado de Madri (1750). nas Minas, seja por conta da imensa
(CORTESÃO, 1952) extensão do bispado do Rio de
A Criação do Bispado de Janeiro e sua distancia em relação às
Mariana foi antecedida por um longo Gerais, seja pelo precário controle e
trabalho de aferição espacial da acompanhamento dos eclesiásticos
América portuguesa, conduzido por em Minas, fatos que sob a
dois cartógrafos jesuítas, que a perspectiva da Coroa acarretavam
mando da Coroa percorreram todos inconvenientes de natureza religiosa
os vastos sertões recém descobertos e política.
delimitando com precisão a posição Em 1745, dom João V elevou
dos sítios, vilas e demais pontos a vila do Ribeirão do Carmo à
aferidos a partir do levantamento das categoria de cidade, com o nome de
latitudes e longitudes dos mesmos, Mariana, em homenagem à sua
206
rainha. Tal fato deu-se em virtude da respeito de minha nomeação para
criação da sede episcopal nas Minas. Bispo do novo Bispado de Mariana”.
Uma sede de bispado, por questões (COPIADOR, 2008, p. 149) A viajem
de foro legal, só poderia ser instalado teve início apenas em agosto de
em um centro urbano com o status 1747 e por via terrestre, e ainda
de cidade. A escolha do local se assim, mais de um ano após já estar
deveu, entre outras coisas, por ser a designado para o seu novo cargo.
referida cidade a mais antiga, bem Explicando pela qual não poderia
localizada e de clima e topografia fazer a viajem “pelo tempo que se
favoráveis. (BOTELHO, 2004, p. 53- me insinuava [as autoridades] e
55) porque em semelhantes cartas não
Os limites do novo bispado se pode dizer tudo, digo
“são menores que os da Capitania de particularmente a Vossa
Minas”. Nas bordas da capitania, ao Paternidade”: (COPIADOR, 2008, p.
norte e ao sul haviam áreas sujeitas 149) (grifo nosso)
ao controle eclesiástico do bispado de
São Paulo, do bispado de Que não tinha o dinheiro para fazer
logo esta jornada, nem quem mo
Pernambuco e do Arcebispado da
emprestasse nesta cidade [São Luiz]
Bahia, entretanto, todas essas áreas porque tudo é pobreza, e assim me é
não subordinadas ao Bispado de necessário recorrer ao sertão, onde
Mariana estavam sujeitas, “quanto ao tem a Mitra algumas cabeças de
gado, para que se me troquem por
governo militar e político, à Capitania
cavalos, e alguns escravos para
de Minas”. (COELHO, 1994, p. 128) minha condução”. (COPIADOR, 2008,
Escolhido como primeiro bispo p. 149) (grifo nosso)
das Minas em 15 de dezembro de
1745, dom frei Manoel da Cruz, Parecendo antever os
religioso de São Bernardo, até então problemas que enfrentaria nas Minas,
prelado do Maranhão, veio por terra Dom frei Manuel da Cruz
desde São Luiz até Mariana, numa confidenciou ao amigo: “a
jornada épica. O Cônego Trindade repugnância natural pelos trabalhos,
descreve como: que assim me esperam assim na
fundação daquela Catedral, como na
Odisséia assustadora de quatorze prolongada, e penosa jornada que hei
meses, através de quatro mil
de fazer”. (COPIADOR, 2008, p. 149)
quilômetros de aspérrimos sertões
raro ou nunca trilhados pelo homem Dom frei Manuel da Cruz chegou
civilizado, numa extensa porção das finalmente às Minas em outubro de
quais não só imperava o gentio 1748, entrando solenemente na
antropófago, como grassavam,
endêmicas e arrasadoras, as
cidade em novembro do mesmo ano,
‘carneiradas’ do São Francisco. tão fatigado da viajem que em
(TRINDADE, 1953, p. 159) correspondência endereçada ao rei
via Mesa da Consciência declarou que
Em relação à “aventura”, “em dois meses não pode [entrar] no
empreendida pelo primeiro bispo de laborioso exercício desta ocupação”.
Mariana, uma carta “particular” (COPIADOR, 2008, p. 231)
escrita pelo bispo a um companheiro A prelazia de dom frei Manuel
de Ordem religiosa, frei Francisco da Cruz foi marcada por inúmeros
Caetano, elucida muitos pontos conflitos, que opôs o novo bispo aos
interessantes relacionados à sua “eclesiásticos desocupados”, que
nomeação e às agruras que o proliferavam nas Minas, ao cabido, a
aguardavam. Ele explica a razão pela algumas autoridades civis da
qual retarda o início de sua jornada Capitania, entre as quais se destaca
para as Minas, mesmo com “os o caso do ouvidor de Vila Rica
repetidos avisos que tive da Coroa a Caetano da Costa Matoso. (CÓDICE,
207
2000; TRINDADE, 1953; 1951; inerentes à sua vontade, dom frei
COPIADOR, 2008) Em carta Manuel da Cruz manteve intenso
endereçada ao frei Gaspar da contato com os padres da
Encarnação em 1752, o bispo de Companhia. Realizou, pessoalmente,
Mariana relatava ao companheiro as várias visitas pastorais nos sertões
dificuldades que enfrentava nas da capitania do Maranhão, ordenando
Minas: muitos sacerdotes, dentre os quais
muitos religiosos regulares.
Eu vou lidando como posso neste (OLIVEIRA, 2001, p. 48) É provável
Bispado, e que reinam as vaidades,
que o bom relacionamento do
simulações, e ambições, e ainda que
sofro muito Deus me vai ajudando; referido bispo com os membros da
com a ausência do bacharel Caetano Companhia de Jesus fosse oriundo,
da Costa Matoso, ouvidor, que foi da em parte, do convívio com membros
comarca de Vila Rica, não só meu
da Ordem no Maranhão, onde era
perturbador, mas de toda esta
República, fiquei com mais forte e marcante a presença dos
[quietação] no ministério do meu jesuítas.
pastoral ofício. (COPIADOR, 2008, p. Em movimento semelhante ao
351)
empreendido no Maranhão, dom frei
Manuel da Cruz intentou, com êxito,
Embora a prelazia de dom frei a criação de um seminário episcopal
Manuel da Cruz seja extremamente nas Minas. Em carta a dom João V,
fecundo no que se refere às rogou a Sua Majestade a dádiva de
possibilidades de análise, nosso foco ali naquelas Minas instalar um
neste trabalho é a relação do
seminário. O bispo solicitou, ainda, a
primeiro bispo de Mariana com a vinda do padre jesuíta Gabriel
Companhia de Jesus, tema ainda Malagrida para que este, em missão
muito pouco explorado pela
nessas Minas, fosse o responsável
historiografia. pelo seminário. Em carta régia de
Ainda que pertencesse a outra 1748, ainda no reinado de dom João
Ordem religiosa, dom frei Manuel da
V, o primeiro bispo marianense teve
Cruz era um entusiasta da ambas as mercês concedidas pelo
Companhia de Jesus, onde tinha monarca. (TRINDADE, 1953, p. 373)
muitos amigos, entre os quais o Apesar da permissão régia, o padre
padre Gabriel Malagrida, um dos Malagrida não atendeu à solicitação
mais célebres membros da referida do amigo. Em carta do bispo
Ordem de seu tempo. (BOSCHI, provavelmente escrita nos primeiros
1986, p. 83-84) O bispo marianense meses de 1749 ao padre Malagrida, o
também mantinha profícua
mesmo expressava seu desalento
correspondência com outros ante a resolução do missionário
importantes membros da Companhia jesuíta: “Fiquei muito desconsolado
de Jesus, entre os quais o padre
por Vosso Padre não vir na nau de
Carbone, conselheiro de dom João V guerra, porque vejo a grande
e padre José Moreira, seu confessor. necessidade, que há de operários
(COPIADOR, 2008) Numa das muitas
evangélicos neste bispado para o seu
cartas trocadas com este último, o bom regimem espiritual, e ainda
bispo afirmou: “sempre conservei, e temporal”. (COPIADOR, 2008, p.
conservo especial afeto, e veneração 323) Dom frei Manuel da Cruz
à Companhia”. (COPIADOR, 2008, p. entendia que nas Minas os serviços
353) Afeto e veneração fáceis de do padre Malagrida seriam muito
comprovar pelas ações do bispo em mais úteis a Deus, pois “no Reino há
Minas Gerais, como veremos. quem possa fazer as suas vezes; e
Ao longo do período em que
neste bispado não; porque os
foi bispo do Maranhão, por razões operários que por cá andam, cuidam
208
apenas de desfrutar”. (COPIADOR, da expulsão dos jesuítas dos
2008, p. 324) O bispo encerrava a domínios lusos contava com 780
carta pedindo ao amigo que índios aldeados. A aldeia de Santana
intercedesse junto à Corte, estaria relativamente próxima do rio
solicitando a mercê de mais três das Velhas, onde o mesmo deságua
padres mestres para o seminário de no São Francisco e também não
Mariana. Manuel da Cruz parecia muito distante da Vila de Paracatu,
ainda contar com a vinda do padre no caminho entre esta vila e as
Malagrida para as Minas Gerais, minas de Goiás. (VIOTTI, s.d., p.
relatando o estado em que se 364-365) Existe ainda hoje na
encontravam as ações para a localidade de Barra do Guaicuí
instalação do seminário “e assim (denominada no século XVIII de
espero firmemente, que Vosso Padre Barra do rio das Velhas), região
não falte a que temos ajustado”. muito importante durante o século
(COPIADOR, 2008, p. 324) XVIII, uma igreja inacabada, cuja
Ainda nesta carta endereçada construção é atribuída aos padres da
ao padre Malagrida, o prelado Companhia de Jesus. A igreja
marianense relata um curioso encontrava-se em fase de edificação
encontro com outro missionário da em 1755, mas não se sabe
Companhia de Jesus, padre mestre exatamente o ano em que se iniciou
Manuel da Silva: “com quem falei no a construção da chamada “Igreja dos
rio de São Francisco, quando vim jesuítas.” Ao que tudo indica, a sua
para este bispado, lá ficou, e não me edificação não foi concluída devido à
escreveu mais, nem sei por anda, expulsão dos jesuítas, perpetrada em
faltando-me também nisto ao que me 17592. Em seus relatos sobre a 2
Os dados constam no
prometeu, e me era bem necessário expulsão dos jesuítas do Império inventário do IEPHA-
MG, assinado pelo
para superior no seminário.” português, o jesuíta José Caeiro faz
historiador Fabiano
(COPIADOR, 2008, p. 324) menção a estes aldeamentos nas Lopes de Paula,
No trajeto entre São Luiz e margens do rio das Velhas, quando gentilmente cedido pelo
Mariana, por certo dom frei Manuel informa acerca da prisão de dois historiador Márcio
Santos.
da Cruz se hospedou em fazendas e companheiros seus, “os padres
missões da Companhia de Jesus nos Manuel Cruz e Francisco José que
sertões da América portuguesa, pastoreavam numa aldeia nas
algumas das quais localizadas nos margens do chamado Rio das
limites e mesmo nos sertões Velhas”. (CAEIRO, 1936, p. 61)
adjacentes da Capitania das Minas Existia ainda outra missão nas
Gerais, onde provavelmente se deu o proximidades do rio das velhas,
encontro entre o bispo de Mariana e denominada Rio das Pedras.
o jesuíta Manuel da Silva. Já à época Localizava-se junto a um de seus
dos primeiros descobertos auríferos afluentes, denominado exatamente
nas Minas Gerais, o vale do rio São rio das Pedras, que nasce na serra do
Francisco se achava povoado e Cipó. (VIOTTI, s.d., p. 365) Estes
repleto de “currais”, dentre os quais aldeamentos estavam sob a
alguns pertencentes aos jesuítas. responsabilidade do colégio da
Durante o século XVIII, os jesuítas Companhia de São Paulo. Como se
mantiveram várias missões nos pode constatar, embora os jesuítas
limites ou mesmo dentro da capitania não possuíssem residência nas Minas
de Minas. A primeira das povoações, Gerais, estavam fortemente
denominada Lanhoso, localizava-se presentes em suas bordas. (CATÃO,
próximo à atual cidade de Uberaba. 2007)
Mais a oeste, localizava-se uma das Na impossibilidade de contar
maiores missões jesuíticas da região, com os jesuítas Gabriel Malagrida e
denominada Santana, que ao tempo Manuel da silva para atuarem no
209
seminário de Mariana, Dom Manuel Era tamanha a confiança e
da Cruz, solicitou então à Companhia vínculo de Dom frei Manuel da Cruz à
de Jesus a vinda de seu sobrinho, Companhia de Jesus que o mesmo
padre José Nogueira, no que foi entregou o controle do Seminário
atendido. Em fevereiro de 1749, o diocesano à Ordem. (TRINDADE,
jesuíta, professor de Filosofia, já se 1951, p. 12) Outro elemento que
encontrava em Mariana. Um ano sinaliza o vínculo do bispo assim
depois, no mês de dezembro, como do seminário de Mariana aos
inaugurava-se o seminário. jesuítas foi o fato de o mesmo ter
(TRINDADE, 1951, p. 9-10) O padre sido consagrado à Boa Morte, uma
José Nogueira reunia as funções de devoção criada e difundida pela
professor e missionário, com ampla Companhia de Jesus. (SANT’ANNA,
atuação perante a comunidade local, s.d., p. 5-6)
fazendo frequentes pregações e Segundo Serafim Leite, que se
exercendo o papel de diretor ampara nos registros cartoriais da
espiritual de alguns habitantes da Companhia de Jesus, altamente
região. Àquela altura, o bispo de zelosos quanto ao registro de suas
Mariana intentava elevar o número ações e bens materiais, os jesuítas
de professores no seminário. Em chegaram a estabelecer uma
1752, em carta escrita a dom José I, residência na cidade episcopal na
o bispo lembrava ao novo monarca década de 1750, da qual foi superior
que antes de partir do Maranhão para o padre José Morais. (SERAFIM
Mariana: “dei conta ao Sereníssimo LEITE, 1945, t. 6, p. 199-201) A
Rei, o senhor dom João Quinto de existência dessa residência dos
saudosa memória, da grande jesuítas em Mariana indica a
necessidade que havia nele de um presença dos padres da Companhia
seminário, para cuja fundação tenho naquela cidade, possivelmente em
eu obrigação de concorrer não só número maior àquele relatado à
pelo Concílio Tridentino, mas pelas Coroa.
minhas bulas de Sua Santidade”. O Seminário de Mariana não
(COPIADOR, 2008, p. 328) era o primeiro criado por dom frei
Informava ainda que até aquele Manuel da Cruz e entregue ao
momento, havia nas Minas somente controle dos jesuítas. Ele agiu de
um mestre: “que mandei vir do maneira idêntica no Maranhão, onde
Colégio da Companhia de Jesus do também entregou o controle do
Rio de Janeiro”. (COPIADOR, 2008, Seminário daquela diocese à
p. 329) Companhia. Em carta endereçada ao
rei em 1749, via Conselho
São necessários mais três mestres Ultramarino, o prelado cisterciense
para a lerem, e juntamente Teologia
Moral, e outro para ser prefeito dos
justificava a sua decisão em doar
estudos, e superior do dito seminário aquele Seminário a Ordem de Santo
e como estes povos têm grande fé Inácio. Ainda que pairasse alguma
nos estudos da Companhia, dúvida quanto à jurisdição para a
represento a Vossa Majestade, seja
servido mandar ao padre provincial da
realização da referida doação, dizia o
Companhia da Bahia, determine mais bispo, uma vez que na ocasião em
quatro mestres idôneos para este que dom frei Manuel da Cruz
seminário que também se faz mui entregou a direção aos jesuítas o
preciso para nele se terem os
mesmo já havia sido indicado para o
exercícios espirituais de Santo Inácio,
os ordinandos e todos os mais que bispado de Mariana:
quiserem aproveitar deste tão grande
bem. (COPIADOR, 2008, p. 329) Ainda que houvesse alguma dúvida,
[quanto à jurisdição para proceder a
doação] se deve sanar pela certeza,

210
que me mostrou a experiência de subsistência assim como os
naquele bispado, que se não pode
estabelecer com formalidade um
“padres mestres” da Companhia para
semenário naquela cidade sem ser completar os quadros do Seminário
governado pelos padres da da “Boa Morte”. Em carta do prelado
Companhia assim no espiritual, como marianense ao jesuíta José Moreira, o
no temporal. (COPIADOR, 2008, p.
primeiro rogava ao amigo que
234)
intercedesse diante do rei, do qual
A experiência de dom frei Manuel da era o confessor, a fim de que o
cruz no Maranhão parece ter sido monarca fizesse a mercê de conceder
decisiva para a construção ou a permissão para que fossem
enviados às Minas mais três padres
ampliação do afeto do prelado pela
Companhia de Jesus, assim como da Companhia de Jesus, “para serem
para compreender algumas ações mestres de Filosofia e Teologia neste
suas enquanto bispo de Mariana. Seminário que ando fundando para a
Inclusive, é possível inferir mesma Companhia em que
que a companhia de Jesus teria atualmente é mestre (...) Padre José
articulado a nomeação de dom frei Nogueira, do Colégio do Rio de
Manuel da Cruz ao cargo de bispo de Janeiro”. (TRINDADE, 1953, p. 12-
Mariana, estrategicamente tão 13) Em 1753, o prelado remeteu
importante, utilizando-se do prestígio carta ao rei relatando a existência do
até então desfrutado pela Ordem Seminário bem como os meios para a
subsistência do mesmo, para tanto,
perante a Coroa. O bispo foi
nomeado em 1746. Segundo o os mestres da Companhia eram
jesuíta José Caeiro, em seus relatos fundamentais:
sobre Os jesuítas do Brasil e da Índia
Os padres que peço a Vossa
na perseguição do Marquês de Majestade, são cinco Mestres, e um
Pombal, o substituto de dom frei irmão leigo para cujo sustento, e
Manuel da Cruz na prelazia do ainda para continuar as obras há
muitos rendimentos, mas como este
Maranhão foi indicação do jesuíta
seminário se funda com esmolas peço
José Moreira (confessor do rei) e do também uma a Vossa Majestade
já mencionado padre Carbone, um sendo servido mandar da Sua Real
dos mais poderosos conselheiros que Fazenda dar alguma côngrua para a
despesa que será de vinho, hóstias, e
circundavam o soberano. (CAEIRO, ornamento da sacristia, e sobretudo
1936, p. 317) Ambos eram também peço para esta fundação a real
íntimos do prelado marianense, como proteção de Vossa Majestade.
pode ser constatado em suas cartas (COPIADOR, 2008, p. 401)
endereçadas aos referidos jesuítas.
(COPIADOR, 2008) Não seria Entre 1751 e 1756 o bispo
estranho, portanto, com base nesta enviou várias cartas endereçadas ao
imensa afinidade entre dom frei rei, seus ministros de estado e aos
Manuel da Cruz e a Ordem inaciana, seus contatos eclesiásticos no reino
o fato de o bispo de Mariana ter se com o intuito de conseguir a
empenhado tanto em introduzir os autorização para a entrada dos
jesuítas nas Minas, utilizando-se de demais padres da companhia nas
todos os canais e meios possíveis Minas para atuação no Seminário. Ao
para isso. que parece, as pretensões do bispo
Dom frei Manuel da Cruz lutou não foram atendidas, pois em carta
com todas as suas forças no sentido datada de 26 de junho de 1755 ao
a fundar um Seminário em Mariana e secretário de Estado dom frei Manuel
entregá-lo à Companhia. Não foi da Cruz afirmava:
pequeno o seu empenho junto à
Consta-me que a consulta sobre
Corte no sentido a garantir os meios virem padres da Companhia para

211
mestres deste seminário subiu e não regular. Nas Minas, por outro lado,
desceu; peço a Vossa Excelência por
serviço de Deus, e bem espiritual, e
eram rígidas as restrições quanto à
temporal deste bispado, concorra presença de padres regulares, só
para que se resolva a favor deste admitidos com expressa permissão
seminário tão útil, e necessário nesta régia3. Mesmo ante ao quadro 3
Como bem adverte
diocese, como já representei a Sua Caio Boschi, não
restrito à atuação de regulares nas
Majestade, e Vossa Excelência lá verá obstante os inúmeros
as razões de minha representação, Minas, seria natural que o bispo pronunciamentos régios
que são fortes, e nem isto se opõem quisesse estar cercado também nas proibindo a entrada e a
às Ordens de Sua Majestade de não Minas, de jesuítas e outros padres permanência de
residirem religiosos nesta capitania. religiosos regulares na
regulares. Essa parece ter sido a
(COPIADOR, 2008, p. 474) capitania das Minas,
causa do primeiro “desentendimento” isso não significou que a
Os tempos que se seguiram entre a Coroa e o bispo de Mariana. vontade da Coroa fosse
ao terremoto do dia 1 de novembro Em carta régia de 31 de dezembro de atendida. Ao contrário,
1754, a Coroa afirmou estar a insistente repetição de
de 1755 que assolou Lisboa foram tais ordens ao longo de
marcados por fortes mudanças no informada de que “no Bispado de toda a primeira metade
cenário político português, que iria Mariana andavam vários eremitas do século XVIII pode
reverberar profundamente no pedindo com caixinhas e Imagens de ser interpretada como
Santos só com licença do Bispo um indício do não
relacionamento da Coroa lusitana cumprimento das
com a Companhia de Jesus, e vice- daquela Diocese, e como esta não determinações régias a
versa. A não aprovação dos basta para se admitirem estes este respeito. Conferir:
reiterados pedidos do bispo para homens a pedir vagamente não he BOSCHI, 1986, p. 83-
justo se tolere um abuso tão 84.
entrada de jesuítas nas Minas era um
sinal inconteste do monumental prejudicial aos povos”. (AHU/MG, cx.
confronto entre o gabinete pombalino 66, doc. 72) Na carta régia, o
e a Companhia de Jesus que marcou monarca ordenava não apenas aos
a primeira década do reinado de dom ministros da capitania das Minas
José I e culminou com a expulsão da Gerais, mas a todos os outros
vassalos do vice-reinado do Brasil
Ordem em 1759. No campo
eclesiástico, Pombal pretendia que “não consentissem com os ditos
submeter à Igreja ao Estado e nesse peditórios e façam observar
sentido, a Companhia de Jesus era o inteiramente as Leis e Ordens que há
principal obstáculo em seu caminho. sobre esta matéria”. (AHU/MG, cx.
66, doc. 72)
(CATÃO, 2005, cap. 2-3)
Provavelmente por conta desse Alguns anos mais tarde, já na
cenário desfavorável a Companhia, o década de 1760, a Coroa teria
imensa preocupação com os
bispo de Mariana era advertido pelo
rei em aviso de 24 de março de ermitãos, pois se sabia àquela altura
1753, “por constar que o governo de que muitos jesuítas estariam
seu bispado era dirigido por uns circulando pelas Minas Gerais
clérigos seus sobrinhos”. (VEIGA, encobertos e disfarçados. A carta
1998, p. 400) Essa seria apenas uma regia de 31 de dezembro de 1754
das muitas “advertências” sofridas ordenava também que o governador
pelo bispo por conta de seus laços das Minas averiguasse “se há no
com a Ordem jesuítica. Pitangui [sic], ou outra terra daquele
Dom frei Manuel da Cruz Bispado alguns pretos andando por
viveu, em seus dois bispados, ordem do bispo pedindo esmolas
para um Seminário e achando-os os
realidades dissonantes. No Maranhão
ele esteve cercado de padres embarace para não continuarem
regulares, entre os quais, muitos da praticando com Mesmo disposto nas
mesmas Leis e Ordens”. (AHU/MG,
Companhia. Não havia para aquela
parte da América portuguesa cx. 66, doc. 72) Com relação ao
qualquer restrição a atuação do clero exorbitante peditório de esmolas nas
Minas, que, segundo as queixas dos
212
seus moradores, se intensificaram prender todos os religiosos
após a instalação do bispado, dom transitados que residirem neste
frei Manuel da Cruz se defendia, mas bispado, e assim ordeno a Vossas
não negou o fato de que ele: Mercês a execute com segredo, e
“mandara vestir o hábito de ermitão prontidão, mandando prender a
a seis escravos meus para pedirem todos os que assistirem nessa
esmolas para o seminário”. comarca, e recolhendo-os à cadeia”.
(COPIADOR, 2008, p. 469) Dizia que (COPIADOR, 2008, p. 477) (grifo
não eram seis escravos, que naquele nosso) Para isso, o prelado e os
tempo já não andavam mais no vigários da vara poderiam contar
referido peditório e que ele havia com o apoio do “senhor governador”
pedido a licença “antes”, ainda no e do “braço secular”.
reinado de dom João V, em uma Um ano depois, dom frei
conjuntura completamente diferente. Manuel da Cruz prestava conta desta
Quanto às licenças para se pedir complexa diligência perante a Coroa.
esmolas expedidas por ele: “Algumas No tom impresso no relatório,
licenças, como também a outros aparece implícita a reprovação do
ermitães as dou só para pedirem nos bispo ante aquelas determinações:
adros das igrejas”. (COPIADOR,
2008, p. 469) Estes documentos Em observância da ordem, que tive de
Sua Majestade, em que o mesmo
atestam o empenho de dom frei senhor foi servido resolver que
Manuel da Cruz em levantar fundos procedesse a prisão contra todos os
com o intuito de arregimentar o frades transitados, que assistem
seminário, assim como a facilitação nesse bispado, para serem remetidos
a esse Reino (...). Tanto que chegou
do acesso de regulares nas Minas.
do Rio de Janeiro a Vila Rica o
Em junho de 1755, mesmo governador, lhe pedi auxílio para que
após a reprimenda da Coroa, o bispo se fizessem as tais prisões (...) e de
cisterciense recomendava ao rei que fato, na comarca do Sabará se
prendeu o padre José do Bom
viessem às Minas padres
Sucesso, que preso remeto. Na
Capuchinhos italianos vindos do Rio comarca do Rio das Mortes indo os
de Janeiro, para que: oficiais eclesiásticos com o auxílio do
Capitão Mor daquele distrito para
Com os seus sermões, práticas, prenderem a outro, lhes fugiu (...); e
doutrinas, e confissões gerais, na mesma forma outro, que residia
venham assistir nesta cidade, e nela perto do bispado de São Paulo (...) e
tenham um hospício, donde saíam em na comarca do Serro do Frio se
missão, e donde busquem para tinham retirado dois para o Rio de
diretores, e confessores, e Janeiro. Esses são os frades
confessores e para assistir aos transitados que assistiam nesse
doentes (...). É certo que será de bispado. (COPIADOR, 2008, p. 491)
grande utilidade espiritual para este (grifo nosso)
bispado o fundar-se um hospício para
os ditos padres residirem no sítio de De uma relação de cinco
São Gonçalo podendo-lhe servir de
frades transitados apenas um foi
igreja a mesma capela, que é do
ordinário, e a ofereço com muito preso, os demais conseguiram
gosto. (COPIADOR, 2008, p. 434-435) escapulir. Apenas três anos mais
tarde, viriam à tona em Curvelo e
O pedido do bispo à Coroa Vila Rica dois crimes de inconfidência
vinha em péssimo momento, e em entre os quais estavam envolvidos
total dissonância à política da Coroa outros frades transitados, como era o
portuguesa para a Capitania das caso do frei Antão de Jesus Maria,
Minas Gerais. Em novembro de 1755 que assistia nos sertões das Minas
o bispo repassava aos Vigários da entre as Comarcas de Sabará e Serro
Vara de Minas a Ordem de Sua Frio. Frei Antão também não foi
Majestade no intuito de “mandar preso, fugiu, se embrenhando pelos
213
vastíssimos sertões da América As vinculações entre dom
portuguesa. (Cf. CATÃO, 2005; Manuel da Cruz e a Companhia de
2007) Jesus não se limitavam às questões
Em carta de 1756, endereçada relativas ao seminário diocesano e as
ao amigo Gabriel Malagrida, o amizades cultivadas com alguns dos
prelado marianense expunha de mais importantes membros da
forma clara uma série de Ordem. Em seu relatório decenal à
posicionamentos que expressavam Santa Sé, o bispo novamente deixou
de maneira inconteste seu transparecer a sua afinidade com os
descontentamento ante as últimas métodos propostos por Santo Inácio
determinações oriundas de Portugal, de Loyola ao relatar os seus
assim como a sua ampla afinidade procedimentos na ocasião das
com a espiritualidade e as práticas da visitações pela diocese, ao dizer que
Companhia de Jesus, externando “fazia a leitura de um texto de
ainda seus sentimentos quanto à meditação apropriado para a oração
grave catástrofe que se abatera mental e a isto me dedicava por
sobre Lisboa: o terremoto do Dia de tempo determinado; empenhei-me
Todos os Santos. Com relação ao em difundir este exercício, através de
cismo de 1755, dizia dom frei Manuel cartas encíclicas, expedidas para toda
da Cruz: a diocese”. Em outro trecho do
mesmo relatório, referente à
o estrago dessa soberba Corte foi na formação dos clérigos do seminário,
verdade lamentável, mas bem
merecido este flagelo da Divina
afirmava o prelado que “todos os
Justiça (...). Estimo muito que as candidatos às ordens são preparados
Majestades e toda a sua Real família pelos exercícios espirituais de Santo
se resolvessem a tomar os exercícios Inácio”. (AEAM, 1757)
de Santo Inácio; porque com este real
As alterações de natureza
exemplo todos nessa Corte o
tomarão; e sendo este o meio mais política implementadas pelo governo
conducente para a reforma dos reformista ilustrado sob a batuta do
costumes, brevemente se verá esta Marquês de Pombal não demorariam
Babilônia de vícios reformada, e
muito a fazer sentir nas Minas. Após
conseqüentemente todo este reino, e
as conquistas; porque Regis ad o terremoto de 1755 se acirram as
exemplum totus componitur orbis animosidades entre Pombal e a
[todo o mundo se comporta segundo Companhia de Jesus, e os reflexos
o exemplo do rei]. (COPIADOR, 2008,
p. 496-497) (grifo nosso)
disso não tardam a se manifestar nas
Minas Gerais. Em 1757, os planos de
O bispo de Mariana traduzia dom Manoel da Cruz entraram em
em suas palavras o ambiente de franco desacordo com as ações da
consternação e efervescência administração do marquês de
religiosa que se instalou em Portugal Pombal. Aquele. (CATÃO, 2005, cap.
logo após a catástrofe, no qual a 2-3). Em 1757, Pombal remeteu
maior parte da Corte também tomou carta ao governador das Minas
parte, até mesmo a Família Real. Os manifestando ter recebido denúncia
dizeres do bispo dão conta da de que o bispo favorecia a ação dos
afinidade do mesmo com relação à jesuítas, que intentavam instalar
interpretação perpetrada por seu uma residência em Mariana. Pombal
se referia à denúncia perpetrada por
amigo Malagrida em relação ao
terremoto de Lisboa de 1755, Leandro Barbosa de Matos datada de
segundo a qual aquela catástrofe era 15 de abril de 1757, que dava conta
“da presença de jesuítas no caminho
decorrência das “extravagâncias”
daquela Corte. (MALAGRIDA, 1756) para as Minas assim como dos
motivos de seu estabelecimento no
dito território e dos procedimentos do
214
Bispo de Mariana na pretendida Para se desalojar, e fazer sahir do
território do caminho das Minas ao
função de um seminário e na Padre Manoel Cardoso, e seu
introdução dos jesuítas”. (IHGB, companheiro ambos da Companhia
códice 1.3.8, f. 186v) A denúncia de Jesus, dos motivos de seu
mencionada por Pombal não era estabelecimento no dito território, e
dos procedimentos do Bispo de
infundada. No entanto, as ações do
Mariana na pretendida função de um
bispo em benefício dos padres da Seminário, e na introdução dos
Companhia de Jesus, sobretudo no jesuítas [sic] com os aparentes
que diz respeito ao seminário, tinham pretextos do parentesco, e da
necessidade de sua doutrina para
contado até então com uma relativa
gerencial do dito Seminário, e para
aquiescência da Coroa. Ocorre que o as consultas dos casos graves, que
recebimento da denúncia coincidiu ocorrem naquele Bispado. (IHGB,
exatamente com o momento em que códice 1.3.8, f. 187-188)
as relações entre os jesuítas e o
governo andavam muito Em outro documento, o rei
estremecidas. O confronto entre os mandava o conde de Bobadela
jesuítas e Pombal ganhava contornos “estranhar severamente” a atitude
decisivos. Estava sendo deflagrada do bispo Manuel da Cruz, por “haver
no reino uma forte “perseguição” aos introduzido no território das Minas os
inacianos. As novas diretrizes então Regulares com transgressão
estabelecidas pelo governo de dom manifesta das suas Reais Ordens”.
José I eram muito diferentes das que (IHGB, códice 1.3.8, f. 186v-188)
haviam marcado o reinado Fica claro o descontentamento da
antecessor, sobretudo no que dizia Coroa ante as atitudes de dom frei
respeito ao trato com os padres da Manuel da Cruz não apenas com
Companhia de Jesus. O confronto relação à introdução de regulares no
com a Companhia de Jesus era parte território mineiro, em Mariana, mas
de um projeto político mais amplo, também com relação ao fato de
onde o objetivo era submeter à estar “encobertando” padres
Igreja ao Estado e “pôr termo à missionários em aldeamentos
posição hegemônica do clero sobre a indígenas dispersos pelos sertões
sociedade civil”. (BOSCHI, 1986, p. das Minas. O bispo, por conta de
41) O combate empreendido pelo suas redes clientelares e afinidade
gabinete pombalino aos inacianos era com a Companhia, acolheu no
“combate político e não religioso”. âmbito de sua diocese aqueles
(BOSCHI, 1986, p. 47) Esse foi um padres, seja para a condução do
período de tremenda turbulência seminário, ou ainda, para a
política e social em várias partes do formação de missões naquele
Império português, nas Minas em território, o que era absolutamente
particular. perniciosa sob a perspectiva daquele
Em carta do secretário de governo. Para a Coroa, dom Manuel
Estado do Conselho Ultramarino, da Cruz estava diretamente ligado à
Tomé Joaquim da Costa Corte Real, introdução dos jesuítas na diocese
dirigida ao irmão do conde de sob a sua jurisdição, como deixa
Bobadela, José Antônio Freire de claro outro documento, também
Andrade, governador interino das datado de 31 de janeiro de 1758:
Minas, datada de 31 de janeiro de
Sendo presente a Sua Majestade que
1758, o secretário de Estado
V. Ex. com transgressão manifesta
congratulava o governador das Minas das Suas Reaes Ordens tem
por executar as ordens que lhe foram introduzido no território das minas
dirigidas, as quais ordenavam: alguns Regulares, e não podendo
[sic] uma violação tão estranha, nem
com o pretesto de parentesco, que V.

215
Ex. para introduzir um religioso da 1.3.8, f. 184-184v) O monarca
Companhia de Jesus a título de seu
sobrinho, nem com outro pretexto de
afirmava na oportunidade não haver
falta de conselho; (...) a ofensa do necessidade da presença de qualquer
respeito devido as Reais Ordens do regular nas Minas, uma vez que tinha
Mesmo Senhor, me mando estranhar “certa informação de que atualmente
a V. Ex. a irregularidade do referido
há naquele continente número não só
procedimento, e intimar lhe a
expressa proibição até da tolerância suficiente, mas superabundante de
de todos e quaisquer regulares no clérigos capazes de exercitar aqueles
território de sua jurisdição; tendo ministérios”. (IHGB, códice 1.3.8, f.
entendido que no caso de
184-184v)
reincidência usara Sua Maj. Com V.
Ex. daquelas demonstrações de seu Em outra carta Régia, da
justo e Real Poder que julgar mesma data, expedida ao
necessário para cessar o escândalo e governador das Minas, o mesmo
a perturbação que causam nos seus
recebia novas instruções cuja matéria
fieis vassalos a repetição de tão
prejudiciais desobediência aos Seus era quase a mesma daquela
Régios mandados. (IHGB, códice correspondência recebida alguns
1.3.8, f. 19) meses antes via Conselho
Ultramarino:
A partir da análise deste
documento, é possível apreender Pela Carta firmada pela Minha Real
alguns elementos relativos à política Mão, que será com esta, significo ao
Bispo dessa Diocese do Rio de estão
pombalina na esfera administrativa e
Janeiro, que usando dos poderes de
religiosa. Primeiramente, observa-se, Reformador Apostólico da Religião da
na prática, o quanto deveria ser Companhia de Jesus, que lhes
direto e incisivo o controle da Coroa significados, fizesse recolher as Casas
das respectivas filiações os Religiosos
sobre o clero (principalmente o
da dita Companhia, que com
secular), graças às prerrogativas transgressão repreensível das Minhas
concedidas ao rei pelo padroado e Reaes Ordens expedidas sobre esta
também qual seria o lugar da Igreja matéria, se acham ainda assistindo
no território da Diocese de Mariana.
no âmbito pombalino: subordinada
O que pareceu comunicar-vos para
ao Estado. Não obstante tratar-se de que assim o façais executar pelo que
uma alta dignidade eclesiástica, dom vos pertence, fazendo sahir os
Manuel da Cruz foi asperamente mesmos Religiosos sem demora, nem
replica de todas as terras mineraes
advertido pelo Conselho Ultramarino, de vossa jurisdição onde forem
no sentido de que viesse a agir na achados, ou procurarem introduzir-
estrita observância daquilo que lhe se. (IHGB, códice 1.3.8, f. 179) (grifo
foi determinado pela “esfera nosso)
superior”. Para a Coroa, estava claro
que o bispo acobertava jesuítas, A carta sinalizava alguns
atitude absolutamente contrária aos pontos importantes. Evidenciava a
seus desígnios e interesses. preocupação da Coroa em relação à
Em carta datada de 8 de presença da Companhia de Jesus na
maio de 1758, quatro meses após capitania das Minas. Ficavam claras
aquela severa repreensão, o rei também a insatisfação e a
comunicava ao então governador das desconfiança em relação ao prelado
Minas, Gomes Freire de Andrade, que de Mariana no que se referia à
informasse ao bispo da diocese que introdução dos jesuítas naquele
“mandasse recolher aos seus território.
claustros os Religiosos da Companhia Em 3 de setembro de 1759,
de Jesus, que estão exercitando os membros da Companhia de Jesus
como párocos, debaixo do nome de foram declarados inimigos da Coroa
missionários, nas aldeias e residência portuguesa e expulsos de todas as
da mesma Diocese”. (IHGB, códice suas possessões. Era o ápice do
216
conflito entre o governo português e afinidade do bispo de Mariana pelos
a Ordem. Em dezembro do mesmo padres da Companhia. O jesuíta
ano, o conde de Bobadela recebeu Anselmo Eckart, que atuava na
um documento do Conselho América portuguesa por essa época,
Ultramarino especificando a maneira relata a presença de vários deles nas
como deveriam ficar aprisionados os imediações do que era então a região
padres da Companhia, no qual se mineradora, confirmando também a
demonstra, entre outras coisas, o existência do cárcere provisório para
quão importante era para a Coroa os jesuítas nas Minas. Eckart
evitar todo e qualquer contato dos menciona a “saga” dos jesuítas
padres jesuítas com a população, o Manuel da Silva e Pedro Tedaldi, que,
que atesta, sob determinado ponto “seguindo os passos gloriosos do P.
de vista, o bom relacionamento e o Malagrida, percorreram as plagas
prestígio gozados pelos jesuítas imensas do Brasil”. Manuel da Silva
perante os povos de uma maneira atou nos vastos sertões margeados
geral. No entanto, o fato que mais pelo rio São Francisco, sendo que no
interessa é a informação que dá momento da expulsão encontrava-se
conta de que foi instalada uma “à margem do rio das Velhas, como
prisão para os membros da lhe chamam”. (ECKART, 1987, p.
Companhia de Jesus em Minas 176) O padre Manuel da silva era o
Gerais, como mostra o cabeçalho do mesmo que esteve com dom frei
documento recebido pelo Manuel da Cruz durante a jornada do
governador, referente aos cuidados mesmo do Maranhão à Mariana, e
que deveriam ser observados quanto que foi convidado pelo bispo para
à prisão e guarda dos jesuítas atuar no seminário e na diocese.
prisioneiros: “Ordens que se hão de Segundo os relatos de Eckart:
observar nas guardas que
bloquearem as casas em que devem A 20 de março de 1760, foi preso [o
padre Manuel da Silva] com seu
ficar reclusos os Religiosos da
companheiro [o jesuíta de
Companhia de Jesus, nas Capitanias nacionalidade italiana Pedro Tedaldi]
do Rio de Janeiro e Minas Gerais”. na perseguição pombalina, e
(IHGB, códice 1.3.8, f. 170-171v) obrigados a atravessar a região dos
Goiazes, perto das minas de ouro
A ordem para a reclusão dos
geralmente chamadas Minas Gerais.
jesuítas que atuavam e circulavam Ali permaneceu por 40 dias, sob a
na capitania de Minas Gerais não vigilância de soldados. Finalmente foi
seria necessária se o número deles levado ao Rio de Janeiro (...) sendo
encerrado na prisão na fortaleza da
fosse reduzido. Tal documento Ilha das Cobras. (ECKART, 1987, p.
também revela o quanto tal matéria 176)
era importante para a Coroa, tanto
que deveriam ser muito bem Naturalmente, as medidas
guardados e permanecer governamentais adotadas para com
incomunicáveis. Foi duro o os padres da Companhia não
tratamento que lhes foi dispensado, agradaram ao bispo das Minas
seja na colônia ou na metrópole, Gerais. A insatisfação do prelado
sendo que muitos acabaram mortos para com tais medidas ficou clara na
devido aos maus tratos. (ECKART, promoção da causa de beatificação
1987) do padre Anchieta, entre os anos de
Além dos casos já analisados, 1758 e 1759, e na manutenção nos
diretamente vinculados a dom frei estatutos de sua diocese, de todos os
Manuel da Cruz, existem outros feriados específicos da Companhia de
registros da presença de jesuítas nas Jesus, como aquele em comoção a
Minas Gerais e seus sertões que Inácio de Loyola, patrono da
também podem estar relacionados à
217
Companhia. (TRINDADE, 1951; significava a posse daquele vasto
SEREFIM LEITE, 1945, t. 6) Essas território.
foram formas encontradas por dom Foi constante a presença dos
frei Manuel da Cruz a fim de externar inacianos nas Minas Gerais
sua insatisfação ante os desígnios de setecentistas, mesmo após a
Pombal. Por certo, as medidas expulsão dos referido padres das
empreendidas pelo gabinete possessões portuguesas em 1759.
pombalino trouxeram consternação a Nem todos os jesuítas seguiram para
um grande número de vassalos de o velho mundo, alguns continuaram
dom José I, que viram o mundo ruir nas vastidões da América
sob os seus pés. Aquele era um portuguesa, muitos dos quais, ao que
período de grandes transformações parece, auxiliados pelo prelado de
em Portugal e em toda a Europa. Mariana. Durante a década de 1760,
Dom frei Manuel da Cruz atenta a essa “ameaça”, os
morreria em janeiro de 1764, representantes da Coroa portuguesa
chegava ao fim o seu governo. Entre denominavam esses jesuítas de
os legados do primeiro bispo das “encobertos”. Muitos destes
Minas, a introdução dos jesuítas e “encobertos” circulavam pelas Minas
suas ideias por todos os meios que Gerais na década de 1760.
lhe foram possíveis foi um dos mais Quando nos referimos a um
marcantes, sobretudo por conta da legado da Companhia de Jesus na
conjuntura altamente desfavorável à Capitania de Minas Gerais após o
Ordem jesuítica. Como se verá, o período em que a Ordem já havia
legado jesuítico nas Minas extrapola sido expulsa dos domínios de
o tempo em que esteve a sua frente Portugal, não estamos nos referido a
dom frei Manuel da Cruz. O nenhuma ação “direta” da
sentimento do bispo no que se refere Companhia ou algum de seus padres
à sorte dos jesuítas não foi um caso contra a Coroa, embora alguns
isolado. jesuítas tenham sido encontrados e
presos nas Minas na década de 1760.
(CATÃO, 2005, cap. 4) Além do
O LEGADO JESUÍTICO NAS MINAS empenho do primeiro bispo de
GERAIS APÓS SUA EXPULSÃO Mariana, outros fatores concorreram
para constituição de sentimento de
A década de 1760 foi o contestação à expulsão dos padres
período em que se consolidaram e se da Companhia de Jesus entre alguns
amplificaram as reformas iniciadas vassalos nas Minas Gerais.
pelo gabinete pombalino na década Até a primeira metade do
anterior, que incluíam: a século XVIII, não existiam na
estruturação de um novo sistema de América portuguesa seminários
educação pública em substituição à diocesanos (o de Mariana foi um dos
implementada pelos jesuítas; a primeiros). Cabia, pois, aos colégios
afirmação da autoridade do Estado da Companhia de Jesus a formação
na esfera administrativa; o controle de quase todo o clero que atuava na
da Igreja; o estímulo aos colônia, e não apenas o clero local.
empreendimentos manufatureiros e Boa parcela dos filhos dos abastados
comerciais; e a reestruturação do estudava com os jesuítas nos
aparato militar no reino e nas colégios da Companhia ou no
colônias. (MAXWELL, 1996, p. 96) A seminário de Mariana, que durante
América portuguesa seguia sendo os seus primeiros anos também foi
prioridade nos planos de pombal, dirigido e orientado pelos jesuítas.
plenamente consciente da Era bastante significativa a
importância econômica e política que penetração da Companhia de Jesus
218
nas distintas partes da América e Melo, naturalmente associado ao
portuguesa inclusive nos campos combate aos padres da Companhia.
social e político, mesmo em Minas Atacaram também, e com violência,
Gerais, onde sua atuação foi menos o próprio monarca. Apesar de ser o
intensa do que em outras capitanias. ápice dos confrontos entre a Coroa e
Outro indício da relação profícua dos os jesuítas, a expulsão desses do
jesuítas com os “mineiros” pôde ser universo português estava longe de
atestado quando, no ato da configurar a resolução e o fim
contagem e identificação dos jesuítas daquele conflito. Os padres da
que seguiam presos para Lisboa, Companhia e seus amigos ou
verificou-se que mais de vinte eram “aderentes”, como a eles se referia
naturais da capitania de Minas Gerais Pombal, estavam longe de encarar
e alguns dos quais adentraram para com submissão aquilo que os
a Companhia durante o bispado de mesmos entendiam ser um violento
dom frei Manuel da Cruz. (VIOTI, distúrbio da ordem, da unidade da
s.d., p. 368) Dentre estes jesuítas cristandade. Sob o ponto de vista dos
naturais das Minas do Ouro, destaca- jesuítas e os que os apoiavam,
se José Basílio da Gama, que, configurava-se um nítido caso de
conforme a possibilidade concedida tirania, em que o governo quebrara o
pelo governo português no ato da pacto segundo o qual o monarca
expulsão dos inacianos, abandonou o deve servir a seu povo, e não o
hábito da Ordem, pois ainda não contrário. Era legítimo, segundo
havia feito os votos definitivos. preceitos políticos defendidos e
As ideias propagadas e propagados pelos jesuítas,
defendidas pelos padres da denominados teorias corporativas,
Companhia tiveram forte eco na resistir a tamanhas “atrocidades”, a
capitania de Minas Gerais. A um tão abominável ato contra a
ocorrência de dois crimes de Igreja. É esse sentimento que moveu
inconfidência imediatamente após a alguns vassalos de Sua Majestade a
expulsão dos inacianos (Curvelo 1760 disseminar papéis “sediciosos” e
e Vila Rica 1760) é um reflexo claro proferir publicamente os mais
da atuação marcante dos jesuítas na horrendos insultos e sacrilégios
região. A radicalização das relações contra o rei nas Minas Gerais, dando
entre os jesuítas e Pombal, que origem às inconfidências do período
culminou com a expulsão dos pombalino4. Eclodiram quatro 4
Por uma questão de
primeiros, iria repercutir de maneira Inconfidências5 motivadas pela espaço não
muito particular na capitania. expulsão dos jesuítas: Vila Rica analisaremos estas
inconfidências nesse
Segundo o marquês de Pombal, o 1760; arraial do Santo Antônio do artigo. As
fato de os inacianos terem sido Curvelo 1760; Sabará 1775 e inconfidências, assim
expulsos não se traduziu na extinção novamente o Curvelo em 1776. como o envolvimento
de suas ações no mundo português. (CATÃO, 2005) Essas Inconfidências, dos jesuítas (e suas
ideias), são analisadas
Para ele, os jesuítas continuaram que tiveram como palco as Minas em: CATÃO, 2005.
agindo na clandestinidade, durante o período pombalino,
particularmente nas Minas. atestam a influência e prestígio dos 5
Inconfidência
Aliada à presença de alguns inacianos, que fora construído ao significava, à época,
falta de fé e de
padres da Companhia, pairava um longo do tempo em que aqueles obediência ao rei.
sentimento de insatisfação por parte padres e suas ideias estiveram
de alguns vassalos com relação à presentes naquela região.
expulsão dos jesuítas do mundo A análise, sobretudo do
português iria gestar sérias período relativo ao governo de dom
convulsões políticas nas Minas frei Manuel da Cruz à frente do
Gerais, em represália não apenas ao bispado de Minas revela o quão foi
ministro Sebastião José de Carvalho drástica a mudança de orientação
219
política empreendida pelo gabinete regiões onde sua ação direta pode
pombalino, que culminou com a ser considerada discreta, em
expulsão dos jesuítas das possessões comparação a outras partes das
portuguesas. O governo do possessões lusitanas. Por outro lado,
cisterciense dom frei Manuel da Cruz foi durante o relativamente breve
à frente do bispado de Mariana é um governo de dom frei Manuel da Cruz
claro exemplo do raio de ação política que aquele bispo e todos os vassalos
e doutrinária da Companhia de Jesus, assistiram atônitos um dos eventos
assim como o imenso prestígio mais marcantes e desconcertantes do
gozado por aquela Ordem no âmbito século das Luzes.
do Império português, mesmo em

Fontes manuscritas
Arquivo Histórico Ultramarino (AHU)
Conselho Ultramarino, documentos avulso relativos à Capitania de Minas Gerais.
[caixas 19, doc. 18; 66, doc. 72]

Arquivo Episcopal da Arquidiocese de Mariana (AEAM)


CRUZ, Manuel da. Relatório do episcopado de Mariana à Sagrada Congregação do
Concílio de Trento. 1757. [armário nº 1, gaveta nº 1, pasta nº 17]

Arquivo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB)


Coleção Conselho Ultramarino [arquivo: 1. 3. 8]

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220
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Corte de Lisboa, no primeiro de novembro de 1755. Lisboa: Oficina de Manoel
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223
COMISSÁRIOS DO SANTO OFÍCIO inquisitoriais que se estruturam na 1
Esta pesquisa foi
NO BRASIL COLONIAL: América portuguesa ao longo do desenvolvida no Brasil
CRONOLOGIA, GEOGRAFIA E período colonial. Nos últimos anos com bolsa da Fundação
de Amparo à Pesquisa
DINÂMICAS DA FORMAÇÃO DA tem ficado evidente a relevância da do Estado de São Paulo
REDE (SÉCULO XVIII)1 malha de oficiais para a presença do – FAPESP (2007/59427-
Santo Ofício de Lisboa nestas terras 2). Em Portugal, o
que não sediaram um tribunal da pesquisador integra o
projeto Grupos
Aldair Carlos Rodrigues2 Inquisição, sobretudo no que diz intermédios em Portugal
respeito ao enraizamento da e no Império Português:
instituição na sociedade e nos as familiaturas do Santo
Resumo territórios dos confins da Colônia a Ofício (c. 1570-1773) –
O artigo analisa a formação da rede de PTDC/HIS-
partir das últimas décadas do século HIS/118227/2010,
comissários do Santo Ofício no Brasil XVII. Contudo, abordagens com base coordenado por
levando em conta, por um lado, o
em uma perspectiva mais global Fernanda Olival
contexto mais amplo do funcionamento (Universidade de Évora)
da Inquisição portuguesa e, em escala
ainda não tiveram sua potencialidade
no âmbito do programa
mais reduzida, os fatores que plenamente explorada. Com exceção FEDER-COMPETE
influenciavam as dinâmicas subjacentes do trabalho de Daniela Calainho (Programa Operacional
ao crescimento do número de clérigos sobre os familiares (CALAINHO, Fatores de
que aderiam às estruturas do poder 2007), predominam os estudos que Competitividade) - FCT
– Fundação para a
inquisitorial. O objetivo é construir um privilegiam cortes mais regionais. Ciência e a Tecnologia.
panorama abrangente sobre a geografia e (SIQUEIRA, 1978, NOVINSKY, 1972;
a cronologia da formação da malha de MOTT, 1987; MOTT, 2011; SOUZA,
comissários e revelar o que significava 2
Graduado em História
2009; WADSWORTH, 2006; FEITLER,
para a sociedade colonial a obtenção de pela Universidade
tal posto.
2007; PEREIRA, 2006; RODRIGUES, Federal de Ouro Preto
2009) (UFOP). Mestre e
Palavras chave Acreditamos que o estudo do Doutor em História
fenômeno a partir de um quadro Social pela Universidade
Comissários do Santo Ofício; Brasil
de São Paulo (USP).
Colonial; Poder inquisitorial. mais alargado pode contribuir para o Pós-Doutorando em
esclarecimento de alguns de seus História na Yale
aspectos ainda pouco elucidados. University (Estados
Abstract Neste artigo analisamos a Unidos) e na
Universidade Estadual
formação da rede de comissários do de Campinas
This paper analyzes the formation of the
Santo Ofício no Brasil levando em (UNICAMP), ambos com
network of commissioners of Holy Office
in Brazil considering, in one hand, the conta, por um lado, o contexto mais bolsa da Fundação de
amplo do funcionamento da Amparo à Pesquisa do
broader context in which the Portuguese Estado de São Paulo
Inquisition worked and, in a smaller Inquisição portuguesa e, em escala (FAPESP). E-mail:
scale, the factors which influenced the mais reduzida, os fatores que rodriguesaldair@gmail.c
growth of the number of its members. influenciavam a dinâmica subjacente om
The goal is to build an overview of the ao crescimento do número de
geography and chronology of the clérigos que aderiam às estruturas do
commissioners’ network and clarify the
poder inquisitorial. O objetivo é
meaning of those institutional positions to
Brazilian colonial society.
construir um panorama abrangente
sobre a geografia e a cronologia da
Keywords formação da malha de comissários e,
Comissioners of Holy Office; Colonial neste quadro, revelar o que
Brazil; Inquisitorial power. significava para a sociedade colonial
a obtenção de tal posto. Daremos
destaque também expectativas que
os candidatos demonstravam possuir
Introdução em relação ao ofício por meio do
A historiografia brasileira tem estudo do conteúdo de suas
realizado avanços importantes no petiçõesapresentadas ao tribunal
conhecimento das redes de agentes para a obtenção do cargo.
224
Quanto às fontes, o trabalho é Santo Ofício. Uma vez que o
desenvolvido principalmente com eclesiástico era contratado para ser
base nos livros de provisões da notário ou qualificador na sede, ele
Inquisição de Lisboa e nos processos não possuía o estatuto nem as
de habilitação ao cargo de atribuições daqueles que se
comissário. Ambas as tipologias habilitaram para atuar externamente.
encontram-se armazenadas no Os qualificadores não teriam muitas
Arquivo Nacional da Torre do Tombo, funções a desempenhar caso não
em Lisboa. atuassem na sede dos tribunais de
distrito e, com efeito, o posto seria
mais de natureza honorífica.
Definição do cargo No caso dos comissários, além
Para efeitos de análise, das qualidades exigidas nos
ahierarquia inquisitorial pode ser processos de habilitação para todos
dividida em duas partes principais, a os postos inquisitoriais – ser cristão-
interna e a externa. Na primeira, velho de “sangue puro”, não ter
enquadram-se os oficiais que nenhum ascendente condenado
desempenhavam funções anteriormente pela Inquisição, ter
permanentes dentro do tribunal, bons costumes –, os candidatos ao
3
recebendo, para isso, um salário fixo. cargo precisavam ser “pessoas No acervo do Conselho
Geral do Santo Ofício,
São, como diz o regimento de 1640, eclesiásticas, de prudência e virtude depositado na Torre do
os “ministros e oficiais contínuos, que conhecida, e achando-se letrados Tombo, existe um
assistem na mesa do despacho, no serão preferidos”. As principais documento que
secreto e na sala do Santo Ofício”, funções dos comissários eram ouvir complementa o
regimento dos
que podem ainda ser subdivididos testemunhas nos processos de réus e comissários: “Instrução
em, de um lado, eclesiásticos – nas habilitações de agentes que hão de guardar os
inquisidores, deputados, promotores, inquisitoriais; cumprir mandados de comissários do Santo
qualificadores e notários – e, de prisão com o auxílio dos familiares e Ofício da Inquisição nas
coisas e negócios da fé
outro, os leigos, tais como os organizar a condução dos presos; e nos demais que se
procuradores dos presos, alcaides, vigiar os condenados que oferecerem”. Ele possui
despenseiros, porteiros, meirinhos, cumprissem pena de degredo nas 36 pontos, organizados
médicos, barbeiros e guardas. áreas de sua atuação e transmitir em nove partes, que
esmiúçam e prevêem as
Além desta divisão, Bruno denúncias ao tribunal; enfim, circunstâncias que
Feitler destaca uma segunda deveriam estar disponíveis para demandariam a atuação
tipologia adotada em seu trabalho executar as ordens do Santo Ofício. dos comissários,
que separa os agentes inquisitoriais (ANTT, RSO, Dos Comissários e principalmente no
tocante aos
em religiosos e laicos. (FEITLER, Escrivães de seu cargo. Reg. 1640, procedimentos que
2011) Liv.I, Tit. XI)3 Como os comissários envolvessem a relação
Um segundo grupo de oficiais não atuavam nas sedes dos tribunais do tribunal com as
da hierarquia inquisitorial é composto e ocupavam o cargo juntamente com testemunhas, seja em
causas de fé, criminais,
por aqueles que atuam fora dos outras funções na Igreja, eles civis ou informações
tribunais e são chamados para integravam, como foi dito, o grupo sobre limpeza de
cumprir funções em diligências de agentes inquisitoriais que não sangue. Cf. ANTT,
específicas, sendo pagos, portanto, recebiam um salário fixo. De acordo CGSO, maço 12, doc.
28.
por dia de trabalho. Entre os com o Regimento de 1640,
eclesiásticos, esta categoria engloba ganhavam seis tostões por cada dia
os comissários e os visitadores das de trabalho. (ANTT, RSO, Dos
naus; entre os civis, os familiares. Comissários e Escrivães de seu
Estes últimos compõem o maior cargo. Reg. 1640, Liv.I, Tit. XI)
grupo de agentes. Os notários e os
qualificadores, ambos eclesiásticos,
desempenhavam funções tanto fora
quanto dentro das instalações do
225
Contexto e cronologia da maior em que outras áreas do lado
formação da rede atlântico do Império foram também
No século XVI e na primeira visitadas: Açores e Madeira em 1575-
metade da centúria seguinte, o Santo 1576, 1591-1593 e 1618-1619;
Ofício utilizou as visitações Angola em 1596-1598, 1561-1562 e
itinerantes e periódicas como uma 1589-1591. (BETHENCOURT, 2000,
importante estratégia de atuação e p. 217)
controle dos territórios sob sua A partir da segunda metade
jurisdição, incluindo o Brasil. do século XVII, a utilização deste
Realizada pelo Licenciado Heitor mecanismo entra em declínio. Sobre
Furtado de Mendonça entre 1591 e tal matéria, concordamos com
1595, a primeira delas atingiu as Bethencourt, para quem a visitação
capitanias da Bahia, Pernambuco e do Santo Ofício ao estado do Grão-
Paraíba. A Bahia seria novamente Pará, ocorrida entre 1763-1769.
visitada entre 1618 e 1621 por (BETHENCOURT, 2000, p. 215;
Marcos Teixeira. (ABREU, 1922; OLIVEIRA, 2009) Em concomitância
ABREU, 1925; FRANÇA, 1963; com o declínio das visitações
GARCIA, 1927 e 1929) Ainda na (mecanismo dispendioso e de eficácia
década de 1620, embora a duvidosa (BETHENCOURT, 2000, p.
documentação seja mais escassa, 215-218), notamos um crescimento
temos notícia de outra Visitação que do número das habilitações de
percorreu o Brasil, passando pelo agentes inquisitoriais, cujo ápice foi
Espírito Santo, Rio de Janeiro, Santos atingido no século XVIII, indicando
e São Paulo. Para esta última, apesar uma gradativa mudança de
de várias denúncias recebidas, estratégia por parte da Inquisição,
apenas uma pessoa foi processada, que buscou se apoiar cada vez mais
Izabel Mendes, acusada de Judaísmo. na rede de agentes próprios,
(GORENSTEIN, 2006) composta principalmente por
As Visitações ocorridas no comissários, notários, qualificadores
Brasil durante o final do século XVI e e familiares.
início do XVII integram um contexto

Expansão dos quadros burocráticos inquisitoriais


Deputados e
Período Comissários Notários Qualificadores Familiares Não Especif.
Inquisidores
1580-1620 132 00 38 47 684 00
1621-1670 297 00 117 110 2285 00
1671-1720 637 142 94 287 5488 33
1721-1770 1011 404 119 419 8680 20
1771-1820 484 189 62 62 2746 1
Fonte: TORRES, 1994, p. 130; 135.

No contexto geral de de 1721 a 1770; um aumento de 524


expansão de toda a hierarquia de agentes em relação aos 50 anos
agentes inquisitoriais, a rede de anteriores, que era de 637. (TORRES,
comissários do Santo Ofício ganhou 1994, p. 130)
fôlego nas últimas décadas do século A abertura desses setores da
XVII, atingindo o seu pico no século hierarquia inquisitorial ocorreu numa
XVIII, quando foram criados 1011 conjuntura na qual a instituição
novos comissários no período que vai estava enfraquecida. As críticas aos
226
modos de proceder do tribunal, inquisitoriais bastante atrativos, visto
intensificadas no último decênio do que passavam a ter a eficácia de um
século XVII, e a pressão exercida “atestado de limpeza de sangue”. Os
pelos cristãos-novos em Roma privilégios, embora seu usufruto
levaram à suspensão das atividades fosse polêmico, contribuíam também
do Santo Ofício por Clemente X entre para tornar as insígnias socialmente
1674 e 1681. Trata-se, conforme atrativas. A habilitação no Santo
afirma José Pedro Paiva, do “mais Ofício oferecia, assim, distinção
sério revés de toda a história da social, status e honra aos seus
Inquisição” (PAIVA, 2011, p. 240), postulantes. A hierarquização social,
colocando sua credibilidade, como se vê, também teve a
reputação e legitimidade em dúvida. interferência do tribunal inquisitorial.
A estratégia que consistia no A análise da formação da rede
aumento do número de habilitações de comissários do Brasil insere-se
de agentes para atuar fora da sede neste contexto mais amplo de
do tribunal, sobretudo comissários e expansão global das habilitações do
familiares, pode ser considerada Santo Ofício. Houve uma vontade do
como uma reação a esse quadro tribunal em conquistar apoios e
adverso. Estratégia tardia, se enraizamento social por meio das
comparada ao caso espanhol. familiaturas, no caso da população
Segundo Bethencourt, na monarquia civil, e das patentes de comissário,
vizinha, a rede de agentes foi no caso dos eclesiásticos.
instalada precocemente e A instituição se abriu. Para
acompanhou os ritmos das atividades além do apoio para o funcionamento
repressivas. (BETHENCOURT, 2000, da máquina repressiva, a rede de
p. 134-147) Em Portugal, não. Como comissários era fundamental para a
demonstra Veiga Torres, o aumento Inquisição atender a demanda por
da criação de agentes ocorre a partir cartas de familiares, que vinha
do final do século XVII e em crescendo desde o final do Seiscentos
contradição com a curva da produção e se manteve ao longo do século
de sentenciados. (TORRES, 1994) seguinte até 1773. Eram os
O Santo Ofício entra com força comissários que realizavam etapas
no mercado de privilégios, importantes das diligências nos locais
controlando, por meio dos seus de morada dos candidatos à insígnia
processos de habilitação (reputados de familiar do Santo Ofício. A atuação
como rigorosos), uma das clivagens nas provanças para as habilitações
estruturantes da ordem social do de familiares era uma das principais
Antigo Regime português, que era a (se não a principal) atividades que
separação da sociedade entre desempenhavam. Portanto, além de
cristãos-velhos e cristãos novos. comporem a engrenagem inquisitorial
(TORRES, 1994) A entrada dos diretamente ligada às atividades
estatutos de limpeza de sangue na repressivas, os comissários atuavam
composição dos códigos de distinção de forma “redundante” no
social desde finais do século XVI crescimento da ramificação capilar da
(OLIVAL, 2004; FIGUEIRÔA-RÊGO, instituição (os familiares). (TORRES,
2011) tornava os postos de agentes 1994)
227
No cômputo global, os papéis do século XVIII, como pode ser visto
referentes aos trâmites necessários à no quadro abaixo. Há uma tímida
expedição de familiaturas foram os procura pelo posto até a década de
principais responsáveis pela 1730. Na primeira década, são sete
movimentação do sistema de habilitados; depois, entre 1711 e
comunicação entre o tribunal de 1720, três; em seguida, entre 1721-
Lisboa e o Brasil, principalmente 1730, são dez, subindo para 13 no
entre 1721 e 1770. Este intervalo foi decênio seguinte. A partir daqui
marcado por um surto na expedição começa uma nova fase na habilitação
de cartas de familiares do Santo de comissários. A rede ganha força.
Ofício para a Colônia. (TORRES, Entre 1741 e 1750, habilitam-se 30;
1994; CALAINHO, 2007; na década seguinte, esse número se
WADSWORTH, 2006; RODRIGUES, mantém, aumentando para 33 no
2011, p. 150-151) De um total de período que vai de 1761 a 1770. Há
1332 registros de correspondência do uma diminuição no decênio seguinte,
tribunal cujo conteúdo pode ser caindo para 23 habilitações. O 4
Um mesmo registro
classificado em dois núcleos interesse pela função de comissário pode conter várias
principais, atividades de repressão volta a subir na penúltima década da diligências, as quais
também podem se
(1º) e habilitação de agentes (2º), as centúria, passando novamente de distribuir entre os dois
diligências para criação de novos três dezenas de patentes expedidas núcleos classificatórios.
Nove registros não se
oficiais somam 747 itens; e aquelas (31). No final do século, entre 1791 e enquadram em nenhum
ligadas diretamente às atividades 1800, há uma brusca diminuição das dos dois núcleos. ANTT,
IL, Registro Geral do
repressivas perfazem 585 registros, habilitações, mas ainda são criados Expediente, livros: 20
sendo que estes últimos 17 novos comissários. Há um claro (1692-1720); 21 (1720-
1733); 22 (1731-1752);
predominaram nas décadas iniciais e desequilíbrio na distribuição das
23 (1752-1770); 24
finais da centúria4. habilitações entre as duas metades (1780-1802).
No total, localizamos os da centúria: 62 (31%) para a
processos de habilitação de 198 primeira e 136 para a segunda
residentes no Brasil que se tornaram (69%).
comissários do Santo Ofício ao longo

Formação da rede de comissários do Brasil (por década)

Período Total

1701-10 7

1711-20 3

1721-30 10

1731-40 13

1741-50 29

1751-60 31

1761-70 33

1771-80 24

228
1781-90 31

1791-1800 17

Total 198

Fonte: ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO, Inquisição de Lisboa, Provisões de nomeação e


termos de juramentos, livros 108-123; Habilitações do Santo Ofício (HSO).

Um dado intrigante quando Juramentos, livros 110-123)5 No caso 5


Esses dados
analisamos o ritmo de habilitação de dos comissários, além da prova encontram-se melhor
comissários é a persistência da pública de limpeza de sangue (aspeto analisados e
sistematizados em:
procura pelo cargo mesmo após a primordial), o prestígio do cargo RODRIGUES, 2011, p.
abolição da distinção entre cristãos- estava ligado também às suas 137-163, sobretudo p.
150-151.
velhos e cristãos-novos. Como vimos, funções institucionais. Tais agentes
24 provisões foram expedidas na possuíam uma importância que não
década de 1770 (no decênio anterior se comparava à dos familiares no
a cifra tinha sido 33) e 31 na de funcionamento da engrenagem
1780. Só podemos falar em inquisitorial no Brasil. Eles eram a
decadência no último decênio da maior autoridade do tribunal nessas
centúria, quando foram criados terras e atuavam como pólo
(ainda assim) 17 comissários. A centrípeto, tanto do ponto de vista
derrocada na procura pelos títulos de lisboeta, como na ótica da população.
agentes inquisitoriais após 1773, Pela posição que possuíam nos
observada por Torres no quadro órgãos locais do poder eclesiástico, 6
Dos 198 membros da
rede de comissários do
global (TORRES, 1994), foi sentida os comissários eram os mais Brasil habilitados no
na Colônia, porém, no caso dos procurados pelos fiéis na hora de Setecentos, 165 eram
comissários, de forma amortecida e descarregarem suas consciências6. oriundos do clero
secular. Destes, 86
não linear. Acreditamos que a faziam parte do cabido
Esta diminuição da procura persistência na busca pelos lugares e/ ou do alto oficialato
episcopal, atuando
seguiu um ritmo diferente quanto aos de comissário após 1773 esconde principalmente nos
familiares. A familiatura estava alguns matizes. Uma parte das órgãos do governo
diocesano ou da justiça
ligada, sobretudo, ao atestado de patentes expedidas atendia agora eclesiástica. Outro
limpeza de sangue que o título uma demanda reprimida daqueles núcleo importante para
o quadro de oficiais do
representava, embora as funções que, antes de 1773, não se
Santo Ofício foi a rede
institucionais do cargo e o fato de candidatavam ao posto porque paroquial, que forneceu
representarem a Inquisição também estavam inseguros quanto à “pureza cerca de 60
eclesiásticos, sendo que
contassem (mas não com o mesmo de sangue” de sua ascendência. 23 deles exerciam
peso). Com efeito, a eliminação Temiam que rumores de “sangue concomitantemente
ofícios episcopais,
oficial da fratura cristãos-velhos/ infecto” emergissem durante as sobretudo na justiça
cristãos-novos pelo centro político foi provanças, causando sérios danos na eclesiástica como
vigários da vara. Cf.
um golpe certeiro na sua eficácia honra do candidato e de sua família. ANTT, HSO. Estes dados
social. Basta pensar que a cifra da Outra parcela dos eclesiásticos estão mais bem
expedição de familiaturas para a que insistiam na busca pelo posto de analisados em:
RODRIGUES, 2014, p.
Colônia caiu de 438 para 236 da comissário contentava-se com algum 175-224.
década de 1760 para a de 1770. grau de prestígio que ele ainda
(ANTT, IL, Provisões e Termos de possuía, portanto tinha consciência
229
que seu estatuto socialnão era o das habilitações entre elas explica o
mesmo de outrora. Como muitos desequilíbrio global verificado ao se
comissários haviam se habilitado nos comparar a primeira e a segunda
anos anteriores a 1773, o poder metades do século XVIII. O caso de
inquisitorial continuava sendo Pernambuco é o mais saliente: 10
ostentado, todavia sem o esplendor patentes de 1701 a 1750, saltando
das décadas anteriores. para 41 entre 1751 e 1800. O pico da
curva para essa região ocorreu na
penúltima década do período
A geografia da rede analisado: 12 novos comissários
Observando a distribuição entre 1781 e 1790. No Rio de Janeiro
geográfica das provisões de também há desequilíbrio: 12 para a
comissários pela América portuguesa, primeira metade e 25 para a
identificamos claramente quatro segunda, portanto, a quantidade
regiões. Primeiro, a maior procura mais do que dobrou depois de
pelo título vem de Pernambuco, meados do século. Na Bahia, a
Bahia e Rio de Janeiro. distribuição das habilitações foi
Respectivamente, no período menos desequilibrada do que nas
enfocado, foram habilitados 51, 45 e duas regiões já mencionadas: 18
37 agentes para cada uma dessas habilitados na primeira metade do
capitanias. A distribuição cronológica século XVIII e 27 entre 1751 e 1800.

Formação da rede de comissários do Brasil por região

PERÍODO PE BA RJ MG PA MA SP CS PB CE ES GO RN MT

1701-10 2 3 1 0 0 0 0 0 1 0 0 0 0 0

1711-20 0 1 2 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0 0

1721-30 1 3 1 4 0 0 1 0 0 0 0 0 0 0

1731-40 1 3 3 2 2 1 1 0 0 0 0 0 0 0

1741-50 6 8 5 5 3 1 1 1 0 0 0 0 0 0

1751-60 8 4 8 6 1 0 0 0 1 0 2 0 0 0

1761-70 9 4 6 5 4 2 2 1 0 0 0 0 0 0

1771-80 6 10 4 0 0 1 1 0 0 1 0 0 1 0

1781-90 12 6 6 0 2 2 2 0 0 1 0 0 0 0

1791-1800 6 3 1 1 0 0 3 0 0 0 0 2 0 1

TOTAL 51 45 37 23 12 7 11 2 2 2 2 2 1 1

Fonte: ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO, Inquisição de Lisboa, Provisões de nomeação e


termos de juramentos, livros 108-123; Habilitações do Santo Ofício.

A proeminência dessas três século XVII. Essa pujança ficou


capitanias está ligada ao fato de elas expressa na centralidade ocupada
terem se desenvolvido econômica, por elas no processo de formação das
social e demograficamente desde o estruturas eclesiásticas da Colônia.
230
(RUBERT, 1992; BOSCHI, 1998; São Paulo (com 11) e Maranhão
SILVA, 2000; SOUZA, 2010) Eram (sete). Por último, temos as
estruturas que abrigavam em sua capitanias e regiões mais periféricas
densidade o clero mais ambicioso e e de pouca expressão no quadro
mais bem formado da Colônia, como global da colonização, que não
pudemos observar nos processos de abrigaram sedes episcopais: Colônia
habilitação dos comissários destas do Sacramento (dois), Paraíba (dois),
zonas. (ANTT, HSO) Ceará (dois), Espírito Santo (dois),
A segunda região em termos Goiás (dois), Rio Grande do Norte
de número de comissários é Minas (um) e Mato Grosso (um). (ANTT, IL,
Gerais, com 23 agentes, ocupando Provisões de Nomeação e Termos de
assim um papel intermediário na Juramentos, livros 108-123)
distribuição regional das habilitações.
O dinamismo social, econômico e
demográfico da capitania não se Fatores que influenciavam o
expressou com tanta força na rede crescimento da rede
de comissários, visto que só foi Além dos aspectos abordados
instalada uma sede episcopal naquela acima, podemos elencar, num nível
zona em 1745. (BOSCHI, 1998) Além mais imediato, três outros elementos
disso, o assentamento social recente que exerciam papel importante na
impediu a formação e, sobretudo, a atração do clero para a rede de
consolidação de uma elite na região comissários.
que enviasse seus filhos para a Em primeiro lugar, é
carreira eclesiástica ou para Coimbra necessário considerar que uma
a tempo de ocuparem os postos que parcela relevante dos comissários
se abriram com a criação do bispado. (110 de um total de 198, ou seja,
O dinamismo dessa região ficou 56%) já possuía parentes habilitados
expresso nas familiaturas (457 para no Santo Ofício. Isso certamente
o século XVIII, com apogeu em exercia influência na sua decisão de
meados da centúria), obtidas procurar a patente, pois eram
principalmente pelos comerciantes de oriundos de famílias já sensíveis ao
escravos e fazendas secas em capital simbólico oferecido pelas
intenso processo de mobilidade social insígnias inquisitoriais. (ANTT, HSO)
ascendente (reinóis e filhos de O fato de alguém da parentela
lavradores, em sua maioria). possuir a venera facilitava bastante o
(RODRIGUES, 2011) Portanto, a processo de habilitação, em termos
familiatura responde de forma mais de duração e custos, e também
imediata às demandas sociais do tornava os canais até a instituição
contexto envolvente, diferentemente bem conhecidos para a família: como
da comissaria, cuja obtenção exige, constituir um procurador, o que
antes, uma carreira eclesiástica dos declarar na petição e como realizar o
seus postulantes, o que demanda depósito e outros trâmites
mais tempo e recursos. necessários para a obtenção da
Em seguida, localizamos um medalha.
terceiro perfil regional, no qual se Em cerca de 80% dos casos
enquadram Pará (com 12 agentes), em que os comissários possuíam
231
membros de sua parentela habilitações nas parentelas dos 7
A maioria dos
habilitadosa patente obtida era a agentes de origem colonial, visto que comissários era natural
da própria Colônia: 139
familiatura e o grau de parentesco eles formam 70% da rede7. O que (70%) de um total de
mais recorrente era o de irmão: 43 está de acordo com a tendência de 198. Os reinóis eram 59
agentes. Os agentes
casos. Em seguida, o paterno, que os reinóis eram provenientes de nascidos no Brasil se
incidindo em 34 habilitandos. setores sociais menos elevados, se concentravam nas
regiões de colonização
Portanto, a sensibilidade às patentes comparados com os colonos8. Por mais antigas; já os
inquisitoriais, nesses casos, não era exemplo, entre os 34 casos de reinóis estavam nas
individual, mas sim um fenômeno comissários (27 do clero secular) capitanias de ocupação
intensa mais recente,
mais abrangente, e quase podemos com pais habilitados, apenas quatro especialmente no
falar numa estratégia familiar. dos filhos eram naturais do Reino. Os Centro-sul. Cf. ANTT,
HSO.
Os candidatos naturais da demais eram nascidos em
Colônia compunham cerca de 82% Pernambuco (11), na Bahia (nove),
8
Os comissários
do total que possuía parentes no Rio de Janeiro (sete), em São procedentes do Reino
habilitados no Santo Ofício. Há, Paulo (dois) e no Pará (um). saíram
predominantemente de
portanto, uma maior proporção de
setores sociais baixos e,
no máximo, médios.
Entre os pais, apenas
em 14 casos há menção
a algum estatuto social
Incidência de habilitação no Santo Ofício na parentela
de âmbito local, como o
Grau de Número % exercício de cargos nos
órgãos do poder local e
parentesco
títulos de distinção
Irmão 43 39,09 como familiatura do
Santo Ofício e hábito de
Meio-irmão 2 1,82 cavaleiro das ordens
Pai 22 20,00 militares. No lado
colonial a situação se
Pai e avó(s) 6 5,45 inverte. Apesar da
Tio (as) 13 11,82 heterogeneidade social,
percebemos que boa
Primo (as) 6 5,45 parte dos agentes
originários do Brasil era
Irmão e tio 1 0,91 composta por rebentos
Parentes distantes 5 4,55 das elites locais,
sobretudo de extração
Pai e irmão 3 2,73 mercantil. Em um pouco
mais da metade dos
Pai e tios 1 0,91
casos (72, em um total
Pai e outros 1 0,91 de 139), eles eram
parentes filhos de pais
portadores de algum
Avó (s) 2 1,82 estatuto social, de
Pai, tio e primo 1 0,91 eficácia, sobretudo,
local. Cf. ANTT, HSO.
Tio e primo 1 0,91
Sobrinho 1 0,91
Sem espec. 2 1,82
110 100
Fonte: ARQUIVO NACIONAL DA TORRE DO TOMBO, Habilitações do Santo Ofício.

232
A cronologia da expedição de Império. A capacidade que a
familiaturas para o Brasil, salvo as instituição possuía de gerir a
proporções, seguiu um ritmo clivagem “cristãos-velhos/ cristãos-
parecido com o da habilitação de novos” dos códigos de honra,
comissários. Numa amostra de 1907 atestando quem era “limpo de
cartas de familiares, que vai de 1713 sangue” por meio dos critérios
a 1785, notamos que 37% das excludentes dos processos de
patentes datam da primeira metade habilitação, penetrava assim na
da centúria. O auge da criação de sociedade colonial e os eclesiásticos
familiares para a Colônia ocorreu não ficaram incólumes a esse
entre 1750 e 1770, quando foram fenômeno.
expedidas 413 familiaturas no Destacamos, em seguida, o
intervalo 1751-1760 (na década efeito “competição”. A obtenção da
anterior, 1741-1750, esse número comissaria por um clérigo poderia
havia sido de 265 cartas) e 438 despertar nos demais um sentimento
patentes para o decênio 1761-1770. de disputa, atraindo mais indivíduos
Na década seguinte, a cifra cai para para o Santo Ofício. Em instituições
236. (ANTT, IL, Livro de Registro de como os cabidos das catedrais,
Provisões, 110-123)9 Haveria sempre comumente dividido em facções, o
9
Esses dados
muito mais habilitações de familiares fato de um membro obter a insígnia
encontram-se melhor
do que de comissários, visto que os poderia ser uma ameaça para os sistematizados e
primeiros eram quase todos leigos e integrantes da ala que lhe fazia analisados em
RODRIGUES, 2011:
os segundos deveriam ser oposição. 137-163.
necessariamente eclesiásticos. Os conflitos nos cabidos
O interesse pelas habilitações tinham, por norma, duas origens
no Santo Ofício no Brasil se difundiu principais: a lealdade ou não ao
entre a população branca da bispo, como no caso de Mariana
sociedade escravista colonial. Na (TRINDADE, 1953; CHIZOTI, 1984;
população secular tal interesse ficou MOTT, 1989; BOSCHI, 2012), e pelas
expresso na procura pela familiatura cisões entre naturais da terra e 10
A Guerra dos
e, entre os eclesiásticos, na busca adventícios reinóis. Inclusive, tais Mascates foi resultado
principalmente da
pela comissaria. O fato de boa parte fraturas podem ser captadas nos resistência da oligarquia
dos comissários possuir algum processos de habilitação em suas açucareira de
Pernambuco, que
membro da família habilitado (110 partes referentes aos depoimentos monopolizava a câmara
num total de 198) explica, em parte, coletados na Colônia. (ANTT, HSO) de Olinda, ao
estabelecimento de uma
a coincidência do ritmo das curvas. No campo do poder nova circunscrição
Mas o impacto da familiatura camarário, Evaldo Cabral de Mello municipal com sede em
no aumento do interesse pela demonstrou como essa fratura entre Recife, a partir do
desmembramento do
comissaria não se resumia aos casos naturais da terra (senhores de município olindense,
em que já havia membros da engenho da oligarquia agrária de este criado por pressão
dos pujantes
parentela com a medalha do Santo Olinda) e reinóis adventícios comerciantes de Recife,
Ofício. A difusão das familiaturas (comerciantes da praça de Recife) quase sempre de
extração reinol.
sustentava um crescente era um dos elementos que dividia os (MELLO, 2003)
enraizamento social da Inquisição, pernambucanos em um ou outro
levando o poder e o nome da partido na Guerra dos Mascates10.
instituição para os confins do Para outros contextos, numa outra
233
faceta, os adventícios reinóis eram todo esse movimento de observação,
bem aceitos no mercado matrimonial os interessados aprendiam como
dos brancos pertencentes aos setores requerer o posto, qual a melhor
médios e da elite, pois muitas das maneira de elaborar a petição inicial
nubentes já eram provenientes de e quais os custos e a duração média
famílias formadas por pais reinóis e da habilitação. Enfim, interiorizavam
mães brancas nascidas na Colônia. a cultura institucional necessária à
(FLORY, 1978, p. 571-594; obtenção da insígnia de comissário
KENNEDY, 1973, p. 415-439; do Santo Ofício.
BORREGO, 2010, p. 240-241) Muitos dos que sabiam não
Por fim, devemos considerar atender aos requisitos do tribunal
que a habilitação de uma pessoa para a ocupação do cargo já se auto-
poderia explicitar para o contexto excluíam. Na verdade, o tribunal, ao
envolvente (não só para a parentela) estabelecer as condições para a
os caminhos que levavam à obtenção obtenção do título em regimentos,
do título e os requisitos necessários cumpria uma etapa importante no
para tanto. Assim, o perfil ideal do processo de exclusão, determinando
comissário idealizado pela Inquisição, quem poderia ocupar o cargo.
ia sendo difundido por meio da Algunsmal informados tentavam a
parcela do clero bem-sucedida nas habilitação para depois ver o pedido
provanças efetuadas pelo Santo negado. Já outros, mesmo sabendo
Ofício. Nossa hipótese é que os que corriam grande risco de receber
agentes do campo religioso um parecer negativo a respeito de
interessados no cargo, ao observar seus predicados, tentavam. Era a
as taxas de sucesso nas habilitações, capacidade de excluir, e assim
percebiam o perfil desejado pela controlar o processo de quem poderia
Inquisição para o posto de comissário ter ou não a almejada insígnia, que
e procuravam se informar sobre os dava à Inquisição essa grande
trâmites necessários para obtê-lo. capacidade de intervenção social, de
Essa informação seria obtida com as um modo geral, e, aqui neste
pessoas que conheciam os recorte, no campo religioso.
habilitados e os caminhos que os
haviam levado à insígnia, ou mesmo
diretamente com os habilitados, ou, O discurso peticionário
ainda, nas portas do palácio Como os candidatos se 11
Quase sempre os
inquisitorial. apresentavam ao Santo Ofício? clérigos melhor
Os naturais da Colônia que Os principais argumentos formados eram oriundos
clero secular (64
iam estudar em Coimbra (66 do total presentes nas petições dos comissários), e estavam
de 198 comissários possuíam habilitandos referiam-se à assentados sobretudo
nos cabidos, a partir de
diploma universitário) (ANTT, HSO, necessidade de cobrir o território
onde atuavam também
AUC, Ficheiros de matrículas e colonial com comissários hábeis para no alto oficialato
exames)11, cidade que sediava um que a malha de agentes do Santo episcopal, ocupado, por
exemplo, os cargos de
tribunal da Inquisição, estariam em Ofício se tornasse cada vez mais provisores, promotores,
contato direto com familiares, densa. Desejavam levar o tribunal vigários-gerais e
visitadores.
comissários ou com pessoas que aos principais pontos da Colônia.
viriam a se tornar algum deles. Em Assim, a população poderia
234
descarregar suas consciências mais léguas de âmbito e compreende
facilmente realizando denúncias à dentro em si 25 mil almas, vendo por
Inquisição. Era assim que eles isso aqueles povos na urgência de
compreendiam a expectativa da casos ocorrentes obrigados a recorrer
instituição em relação ao posto que à cidade de São Paulo em distância
almejavam. de 40 léguas”. (ANTT, HSO,
Um dos tópicos mais Francisco, maço 130, doc. 1957) Em
recorrentes do discurso peticionário Minas Gerais, Manuel Martins de
era a falta de comissários nos locais Carvalho, morador na freguesia de
de atuação dos habilitandos. A Nossa Senhora da Conceição dos
vontade de representar o tribunal Prados, comarca do Rio das Mortes,
inquisitorial foi despertada em ressaltou “não haver naquelas
Antônio José dos Reis Pereira e vizinhanças outros [comissários]
Castro quando “sendo ele Visitador mais que na distância de 13/ 14
geral do mesmo bispado [do Rio de léguas, que é o reverendo vigário de
Janeiro], achara tanta falta de Congonhas, e da outra 9/10 léguas,
comissário do Santo Ofício naquelas que é o reverendo vigário de Borda 12
Habilitou-se em 1766.
partes, principalmente na Ilha do Campo”. (ANTT, HSO, Manuel,
Grande e recôncavo do norte e sul maço 203, doc. 1150)12
que logo lhe nasceu um fervoroso Alguns postulantes, sabendo
desejo de servir a este santo tribunal que já havia comissários nos lugares
na ocupação de comissário”. (ANTT, onde moravam, mencionavam que o
HSO, Antônio, maço 125, doc. 2119) número daqueles existentes não era
Em muitos requerimentos era o suficiente, advogando assim uma
alegada a longa distância entre a maior densidade da rede. Alexandre
freguesia de morada do candidato e a José da Costa Aguiar, de
residência do comissário mais Pernambuco, tinha grande desejo de
próximo. Antônio Mendes Santiago, servir os inquisidores “no lugar de
clérigo atuante na região do Manga, comissário não só por haver poucos
interior do bispado de Pernambuco, naquele bispado e ele muito extenso
sustentou seu pedido de habilitação com muitas capitanias, cidades e
dizendo que “por distar a dita vilas e ser clérigo muito exemplar, é
comarca [do Manga] dos portos de abastado e ter todos os requisitos
mar de Pernambuco 400 léguas e do para bem servir o dito emprego”.
Rio de Janeiro e Bahia mais de 200 e (ANTT, HSO, Alexandre, maço 9, doc.
não haver em todo este distrito e 89, microfilme 2914) Os candidatos
comarca comissário do Santo Ofício a que se encontravam na flor da idade
quem se possa delatar os culpados desqualificavam os que havia na sua
nos casos pertencentes ao Santo zona afirmando que esses estavam
Ofício”, queria ser um oficial do decrépitos, sempre mal dispostos e,
tribunal. (ANTT, HSO, Antônio, maço portanto, inábeis para a realização
96, doc. 1772) Francisco da Costa das diligências do Santo Ofício. A
Moreira, vigário em Guaratinguetá, principal justificativa para os
especificou que desejava ser requerentes serem condecorados
comissário “por não haver algum com a insígnia era, então, a
dentro da sua comarca, que tem 70 renovação da rede por jovens
235
robustos, de modo que a eficácia da Antônio Teixeira apresentou
máquina repressiva fosse justificativa parecida: “há muitos
aumentada. Foi assim que Francisco anos serve de escrivão dos
Fernandes, habilitado em 1745, comissários deste tribunal na vila do
apresentou-se ao tribunal, dizendo Recife com aquele zelo, fidelidade e
que, no Rio, havia dois comissários, o satisfação, que pode ser notória”.
deão Gaspar Gonçalves de Araújo e (ANTT, HSO, Antônio, maço 129,
Lourenço de Valadares, porém “como doc. 2162)13
13
estes se acham velhos, têm justo Tornou-se comissário
em 1757.
motivo para não darem a expedição
necessária às diligências contínuas Considerações finais
que do Santo Ofício se lhes Se no plano do discurso
remetem”. (ANTT, HSO, Francisco, peticionário o interesse pelo título de
maço 65, doc. 1237) Francisco comissário era expresso na vontade
Martins Pereira, habilitado em 1726, de representar a Inquisição de
estava em Lisboa e desejava ser maneira que a sua rede de agentes
comissário na cidade da Bahia, “onde fosse territorialmente o mais densa e
se acham somente dois dentro na eficiente possível, numa perspectiva
dita cidade e um no recôncavo que mais ampla a obtenção da insígnia
por ser muito velho e achacado não estava ligada antes à ambição do
poderá fazer as diligências que lhe clero (e de sua parentela) por poder,
forem cometidas e no suplicante autoridade, privilégios, prova pública
concorrem os requisitos necessários de sua limpeza de sangue, honra e
para a dita ocupação”. (ANTT, HSO, status. Esses elementos, todos
Francisco, maço 46, doc. 949) interligados, eram fundamentais para
Os clérigos que já serviam ao uma boa posição nas hierarquias
Santo Ofício como escrivães nas sociais. Por isso o cargo de
diligências ocasionalmente levadas a comissário do Santo Ofício era
cabo em suas terras, na medida em atrativo. Por meio dos diversos
que se interessavam pelo posto de critérios excludentes adotados nas
comissário, alegavam aqueles habilitações e através dos privilégios
serviços em suas petições. Essa seria que oferecia, a instituição
uma prova de que tinham predicados inquisitorial logrou interferir no
para servir ao tribunal. João de processo de hierarquização da
Almeida Cardoso atuou desta sociedade colonial.
maneira na Colônia do Sacramento e Em termos institucionais,
tais préstimos foram bem lembrados odinamismo do processo colonizador
em seu requerimento: “porque não deixou de se manifestar na
concorre nos requisitos necessários e formação das estruturas eclesiásticas
por este motivo tem servido por da Colônia. É no cenário mais amplo
muitas vezes de escrivão em de montagem das estruturas do
algumas diligências que por parte do poder eclesiástico (o diocesano,
Santo Ofício se mandaram fazer sobretudo) no século XVIII que se
naquela praça, sempre com o bom insere a formação da rede de
procedimento que é notório”. (ANTT, comissários do Santo Ofício na
HSO, João, maço 12, doc. 148) América portuguesa. No contexto
236
metropolitano, vimos que a sentido de atender aos requisitos
Inquisição se abria para um maior regimentais.
enraizamento na sociedade por meio O cargo de comissáriofoi um
do aumento da habilitação de instrumento fundamental para a
agentes atuantes fora do tribunal, interferência do Santo Ofício no
mas o fato de o Santo Ofício estar aparato do poder eclesiástico
mais propenso a habilitar agentes colonial. O apoio das mais
não seria o suficiente para a criação importantes instituições diocesanas,
de mais comissários na Colônia. Foi por intermédio do cargo de
preciso haver também uma comissário, foi fator fundamental
densidade das estruturas para que o Santo Ofício se fizesse
eclesiásticas que abrigasse um clero representar nesse território que não
interessado na obtenção de um lugar sediava nenhum dos seus tribunais
de comissário e apto para tanto, no de distrito.

Fontes

Arquivo Nacional da Torre do Tombo (ANTT) – Portugal


Habilitações do Santo Ofício (HSO):
- Antônio, maço 125, doc. 2119;
- Antônio, maço96, doc. 1772;
- Francisco, maço130, doc. 1957;
- Manuel, maço203, doc. 1150;
- Alexandre, maço9, doc. 89;
- Francisco, maço65, doc. 1237;
- Francisco, maço 46, doc. 949;
- João, maço12, doc. 148;
- Antônio, maço129, doc. 2162.

Inquisição de Lisboa (IL):


- Livro de Registro de Provisões, 110-123;
- Registro Geral do Expediente, livros: 20 (1692-1720); 21 (1720-1733); 22
(1731-1752); 23 (1752-1770); 24 (1780-1802);
- Provisões e Termos de Juramentos, livros 108-123.

Regimentos do Santo Ofício (RSO):


- Dos comissários e escrivães de seu cargo. Reg. 1640, Liv. I, Tit. XI.
- CGSO, maço 12, doc. 28.
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241
UMA ANÁLISE SOBRE OS Câmara Cascudo about culture, culture-
CONCEITOS DE “CULTURA”, popular, ethnography and folklore 1
Mestre em história
aspects which largely permeated the pelo PPGH/UFCG, com o
“CULTURA-POPULAR”, doutorado em
whole of his work? We returned in this andamento pela
“ETNOGRAFIA” E “FOLCLORE” NA
article, our attention to the book FFLCH/USP.
OBRA CIVILIZAÇÃO E CULTURA
Civilização e Cultura (2004), completed in
DE LUÍS DA CÂMARA CASCUDO 1962 and published only in 1973.
Giuseppe Roncalli Ponce Leon de Cascudo gathered in this book, research
Oliveira1 results systematically about the
"ethnographic constant," discussed as a
teacher of ethnography Overview of the
Faculty of Philosophy of UFRN (1955-
Resumo 1963).
O futuro pesquisador de campo, em
qualquer disciplina, em especial na Key-words: culture-popular,
Antropologia (com maior atenção à ethnography and folklore
prática etnográfica), deve muitas vezes
basear-se no anedotário ocasional de
seus predecessores, ou em comentários
igualmente acidentais, registrados em (...) O mesmo objeto ‘inventado’ aqui
prefácios de etnografias celebres. O que foi ‘transmitido’ ali para outras
não dizer, portanto das reflexões de Luís paragens. E nessas paragens pode
da Câmara Cascudo acerca da cultura, haver o mesmo material utilizável,
mas não determinante da invenção
cultura-popular, etnografia e folclore,
(CASCUDO, 2004, p. 19).
aspectos que em grande medida
permeou todo o conjunto da sua obra?
Voltamos, neste artigo, nossa atenção
para o livro Civilização e Cultura (2004), Introdução
concluído em 1962 e só publicado em Neste artigo, partiremos do
1973. Cascudo reuniu neste livro, pressuposto de que não existe uma
resultados de pesquisas de forma homogeneização do conceito de
sistemática acerca das “constantes cultura, principalmente se
etnográficas”, discutidas enquanto compreendermos que problematizá-
professor de etnografia geral da
la emerge de diferentes
Faculdade de Filosofia da UFRN (1955-
possibilidades de conceituar a
1963).
condição humana, portanto, ela
Palavras-Chaves: cultura-popular, mesma – a cultura – pode se tornar
etnografia, folclore. diferentes objetos, de acordo com o
campo de conhecimento que a utiliza.
A fim de obtermos
Abstract informações prévias sobre inúmeros
The future fieldworker, in any discipline, problemas práticos dessa
especially in anthropology (with greater
especialidade, o futuro pesquisador
attention to ethnographic practice), must
de campo, em qualquer disciplina,
often rely on occasional anecdotes of his
predecessors, also accidental or em especial na Antropologia (com
comments, recorded in prefaces maior atenção à prática etnográfica),
celebrated ethnographies. What not to deve muitas vezes basear-se no
say, however Reflections of Luís da anedotário ocasional de seus
242
predecessores, ou em comentários livro, resultados de pesquisas de
igualmente acidentais, registrados forma sistemática acerca das
em prefácios de etnografias celebres. “constantes etnográficas”, discutidas
O que não dizer, portanto das enquanto professor de etnografia
anedotas sobre os nuers estudados geral da Faculdade de Filosofia da
por Evans-Pritchard, que os UFRN, onde ensinou de agosto de
considerava peritos em sabotar uma 1955 a junho de 1963 (GICO, 2003,
investigação, bloqueavam perguntas p. 34).
sobre costumes com uma técnica que
o autor recomenda aos “nativos” que
são incomodados pela curiosidade Civilização e Cultura:
dos etnólogos. Afirmando que depois antropologia cultural ou
de algumas semanas mantendo etnografia? (uma questão de
contato unicamente com os nuers, método, ou de sua ausência?)
exibisse sintomas mais evidentes de Em Civilização e Cultura
“nueroses” (BERREMAN, 1975, p. (2004), Câmara Cascudo afirma, não
123; EVANS-PRITCHARD, 1978, p. ter compendiado a matéria de
15). etnografia geral tal e qual expunha
Roberto da Matta (1978) nos aos seus alunos durante a época,
mostra que livros que ensinam a mas sim reunido documentário sobre
fazer pesquisas etnográficas são os vários ângulos de possível
velhos na disciplina de Antropologia. curiosidade, finalizando o programa
Segundo o autor, pode-se até dizer total. Em sua opinião na obra
que eles nasceram com a sua encontra-se o registro de constantes
fundação. De acordo com Da Matta, etnográficas agenciadas num
Henry Morgan teria sido o primeiro a ementário em que se fixou o
descobrir a utilidade de tais rotinas, depoimento cultural de toda uma
quando preparou uma série de existência de professor provinciano.
questionários de campo que foram Na obra em questão, Câmara
enviados aos distantes missionários e Cascudo, afirma não se “alistar sob
agentes diplomáticos norte- qualquer bandeira doutrinária”, mas
americanos para escrever o seu teve aos mestres uma admiração
clássico Systems of Consanguinity fervorosa que não implicou
and Affinity of the Human Family submissão deslumbrada nem preito
(1871) (MATTA, 1978, p. 26). de obediência. Cascudo dedicou
O que não dizer, portanto das nessa etnografia geral à mesma
reflexões de Luís da Câmara Cascudo curiosidade de percurso com que
acerca da cultura, cultura-popular, viajou pelo mundo, sem a ajuda de
etnografia e folclore, aspectos que guias letrados. Procurou com a
em grande medida permeou todo o simples alegria da identificação e a
conjunto da sua obra? todos ouvindo sem a obrigatoriedade
Voltamos nossa atenção para devocional (CASCUDO, 2004, p. 15).
o livro Civilização e Cultura (2004), Não se trataria, portanto da
concluído em 1962 e só publicado em obra de um etnógrafo, mas sim, de
1973. Câmara Cascudo reuniu neste reflexões de um professor

243
provinciano, erudito do folclore e da na antropologia os métodos atinentes
cultura popular nordestina. De ao estudo do Homem, estrutura
acordo com Maria Laura Cavalcanti e física, acomodação humana,
Luís Rodolfo Vilhena (1990), os interdependência social, processos e
estudos atuais de sociologia e resultados, pesquisadores e
antropologia que lida de alguma normativos confundiam-se com a
forma com a temática do popular sociologia, aliada à psicologia social
referem-se frequentemente à ótica que prolongava na análise humana a
do folclore como redutora dos fatos veracidade das conclusões.
da cultura a sobrevivência do Como não havia e nunca
passado. A preocupação com o houvera homem sem uma cultura no
contexto e com o sentido ou função tempo e no espaço, o motivo do
de um determinado fenômeno viria estudo coincidia na indagação de
opor-se a essa forma de abordagem. toda ciência social, diversificando-se
Do ponto de vista acadêmico, nos ângulos da apreciação e
o estatuto do folclore como disciplina amplitude. Acreditava Câmara
é problemático: não consta no Cascudo que “a etnografia, até
currículo das faculdades de ciências deliberação em contrário, estuda
humanas e sociais. Talvez por isso, essas culturas, que são
Câmara Cascudo, não tenha em seu perpetuamente as explicações da
estudo a proposição de uma passagem humana na face da Terra”.
metodologia etnográfica, pois não se Etnologia passava a ser sinônimo de
trataria de seu próprio campo. antropologia cultural e etnografia um
Esses fatos alinhados simples aspecto inerente a qualquer
esquematicamente indicam, ao ver estudo da antropologia cultural ou
de Câmara Cascudo, a evolução apenas coleta e descrição do
histórica peculiar de um determinado material.
campo intelectual. O folclore é um O autor nos mostra que a
dos temas já em voga no país curiosidade crescente pelo mundo
quando se inicia o processo de antigo e o encontro de esqueletos e
institucionalização no ensino superior objetos da vida doméstica dos
das chamadas ciências sociais. homens primitivos deram valorização
Folclore, sociologia e às buscas. As missivas e relatórios de
antropologia são nesse período viajantes, naturalistas, exploradores
interlocutores próximos, e o processo e missionários na Ásia, na África, na
de construção de seus respectivos Oceania e depois na América
campos de ação pode ser alargaram infinitamente o
vislumbrado num jogo de atribuições documentário dessas regiões. Tudo
e de definições metodológicas se registrava de acordo com a
(CAVALCANTE & VILHENA, 1990, p. mentalidade do observador. E a
75-76). mentalidade tomava as cores do
Na época em que escreveu o interesse, prático e econômico, moral
livro Civilização e Cultura (2004), e teológico.
Câmara Cascudo acreditava que a Na opinião de Cascudo a vida
tendência contemporânea é agrupar indígena era bem fortuita e

244
rapidamente motivo de estudo e como proceder metodologicamente
muito mais curiosidade ou relação de no seu estudo de campo, sendo sua
erros a corrigir e desfazer. A primeira lição a descrição da
percepção geral e lógica do nativo, morfologia social.
pela observação interessada As monografias etnográficas
unicamente na verdade funcional das partem da geografia, identificando no
culturas, é um nobre esforço no final espaço homens e costumes. A
do século XIX. A expansão colonial especificidade cultural se
nos términos do século XVIII e XIX manifestaria no seio de contornos
ampliara o conhecimento do homem determinados, o que torna possível a
que vivia nos rincões mais recuados descrição de seus traços “essenciais”.
do globo. Em principio qualquer organização
As lutas pelo domínio social poderia ser resumida a um
territorial puseram em contato os conjunto de valores, traços que
europeus com os povos desempenhariam um papel nodal no
desconhecidos em sua intima conjunto de sua articulação, cabendo
organização social. Ao lado das à antropologia explicitá-los (ORTIZ,
forças militares, fechado o período 2006, p. 72-73).
dos morticínios, apareceram os Observa-se, portanto que a
estudiosos, professores, cultura não é um objeto dado, onde
missionários, médicos, funcionários se possa buscar num lugar
administrativos, relacionando e especifico. A cultura é uma
anotando pacientemente o abstração, acredito que ela absorve o
“admirável mundo novo” daquela significado material e simbólico das
estranha gente. Todo esse acervo práticas sociais. A noção de cultura
sacudiu de entusiasmo a vitalidade se revela então como um
da disciplina etnográfica que ia instrumento adequado para acabar
tomando corpo e feição legítimos. com as explicações naturalizantes
Toda esta cordilheira de informações dos comportamentos humanos
despertou o instinto da generalização (CUCHE, 2002, p. 10-11).
doutrinária, o sonho da explicação
racional para a paisagem humana e
cultural revelada aos olhos analíticos Cultura na perspectiva
(CASCUDO, 2004, p. 25-29). cascudeana: genealogia do
Se nos valermos do ponto de conceito
vista de Renato Ortiz (2006), para Em Civilização e Cultura
alguns antropólogos, parece não (2004), Câmara Cascudo nos chama
parecer difícil perceber como as a atentar para a genealogia do termo
culturas se realizam no marco de “cultura”. O termo cultura deriva de
suas territorialidades. Daí a cultum, supino de colere, trabalho da
preocupação de todo etnógrafo em terra, conjunto de operações próprias
localizar seus objetos de estudo: para obter do solo os vegetais
primitivos das ilhas Trobiand, papuas cultivados. É, pois, sinônimo de
da Nova Guiné, tikopias da Polinésia, agricultura, lavoura, trabalho rural,
ensinando ao jovem antropólogo cultura agri. Fundar cultura era

245
plantar uma determinada espécie ou modo que títulos como Cultura e
aproveitar terreno com um plantio colonialismo são, de novo, um tanto
apropriado. Depois, de forma tautológicos. Mas colere também
figurada é que o termo será desemboca, via o latim cultus, no
associado de forma analógica à termo religioso “culto”, assim como a
cultura das letras, das ciências, das própria ideia de cultura vem na Idade
belas artes. Sempre numa aplicação Moderna a colocar-se no lugar de um
parcial, específica, localizada sentido desvanecente de divindade e
(CASCUDO, 2004, p.39). transcendência. Verdades culturais –
Na opinião de Cascudo trata-se da arte elevada ou das
nascemos e vivemos mergulhados na tradições de um povo – são algumas
cultura da nossa família, dos amigos, vezes verdades sagradas, a serem
das relações mais continuas e protegidas e reverenciadas.
íntimas do nosso mundo afetuoso. O Logo, se cultura significa
outro lado da cultura (cultura fórmula cultivo, um cuidar, que é ativo,
aquisitiva de técnicas, e não daquilo que cresce naturalmente, o
sinônimo de civilização) é a escola, termo sugere uma dialética entre o
universidade, bibliotecas, artificial e o natural, entre o que
especializações, o currículo fazemos ao mundo e o que o mundo
profissional, contatos com os grupos nos faz. É uma noção “realista”, no
e entidades eruditas e que sentido epistemológico, já que
determinam vocabulário e exercício implica a existência de uma natureza
mental, diversos do vivido ou matéria-prima além de nós; mas
habitualmente. Vivem numa tem também uma dimensão
coexistência harmônica e “construtivista”, já que essa matéria-
permanente, as duas forças originais prima precisa ser elaborada numa
e propulsoras de nossa vida mental. forma humanamente significativa.
Non adversa, sed diversa (não A própria palavra “cultura”
adverso, mas diferente). Potências compreende uma tensão entre fazer
de incalculável projeção em nós e ser feito racionalidade e
mesmos, o folclore e a cultura espontaneidade, que censura o
letrada, oficial, indispensável, espécie intelecto desencarnado do iluminismo
de língua geral para o intercâmbio tanto quanto desafia o reducionismo
natural dos níveis da necessidade cultural de grande parte do
social (CASCUDO, 1967, p. 18). pensamento contemporâneo.
Terry Eagleton (2005) tem Neste aspecto a cultura é uma
uma definição de cultura que reforça questão de auto-superação tanto
o já defendido por Câmara Cascudo quanto de auto-realização. Se ela
anteriormente. A raiz latina da celebra o eu, ao mesmo tempo
palavra “cultura” é colere, o que também o disciplina, estética e
pode significar qualquer coisa, desde asceticamente. A natureza humana
cultivar e habitar a adorar e não é exatamente o mesmo que uma
proteger. Seu significado de “habitar” plantação de beterrabas, mas, como
evoluiu do latim colonus para o uma plantação, precisa ser cultivada
contemporâneo “colonialismo”, de – de modo que, assim como a

246
palavra “cultura” nos transfere do que ainda éramos um tanto século
natural para o espiritual, também XVIII quando classificamos as
sugere uma afinidade entre eles culturas pela maior ou menor
(EAGLETON, 2005, p. 10-15). aproximação com as nossas. Nós
Cascudo define cultura como o mesmos consagramos os tipos
conjunto de técnicas de produção, padronais da nossa civilização e os
doutrinas e atos, transmissíveis pela declaramos superiores e altos dentro
convivência e ensino, de geração em do processo deduzido inteiramente
geração. Acreditava, portanto que grupal e doutrinário (CASCUDO,
existia um processo lento ou rápido 2004, p. 40-41).
de modificações, supressões, Os etnólogos cederam por
mutilações parciais no terreno muito tempo ao que se denomina a
material ou espiritual do coletivo sem “superstição do primitivo” ou ainda o
que determine uma transformação “mito do primitivo”. O importante
anuladora das permanências para eles era estudar
características. prioritariamente as culturas mais
Defendia que a cultura é “arcaicas”, pois eles partiam do
sempre funcional, vigorosa e postulado que estas culturas
mantenedora do estado normal do forneciam para a análise as formas
seu povo quando sentida, viva e elementares da vida social e cultural
exercida por todos os membros e que se tornariam necessariamente
objeto de orgulho e confiança. mais complexas à medida que a
Também ressaltava que a cultura sociedade desenvolvesse. Se por
compreenderia o patrimônio definição, o que é simples é mais
tradicional de normas, doutrinas, fácil de aprender do que é complexo,
hábitos, acúmulo do material era preciso começar por aí o estudo
herdado e acrescido pelas aportações das culturas (CUCHE, 2002, p. 110).
inventivas de cada geração. Para Câmara Cascudo o que
Via que a mais espantosa caracterizaria essencialmente uma
conquista intelectual do século XX cultura não é a existência de padrões
teria sido a valorização das culturas, equivalentes aos nossos no espaço e
defendendo-as dos desníveis da no tempo. Uma cultura vive por sua
apreciação unitária, mostrando que suficiência. A diferenciação dos níveis
as mais rudimentares e obscuras não deveria estabelecer o critério de
talvez fossem portadoras de soluções inferioridade, e sim valorização local
de muito maior coerência funcional de cada complexo no plano de sua
que as outras, de esplendor e utilidade relativa aos possuidores e
notoriedade. não aos observadores estranhos,
Câmara Cascudo frente a tais portadores e defensores de outras
argumentos, afirmava que o encanto culturas (CASCUDO, 2004, p. 42-43).
da etnografia é ter feito findar a
imagem da civilização única que deve
ser a mesma em todo o mundo e
quem não lhe pertencer está
condenado à selvageria. Ironizava

247
Cultura Popular e Folclore: A circular mais lentamente sem que de
Emergência de uma ciência social todo morram. Ou vão morrendo
brasileira? devagar, como o rei D. Sebastião na
Na concepção de Cascudo, a batalha de Alcácer - Quibir
cultura popular seria o saldo da (CASCUDO, 1967, p. 12-13).
sabedoria oral na memória coletiva. É preciso que o motivo, fato,
Difícil seria fixar as distinções ato, ação, seja antigo na memória do
específicas porque ambas exigem a povo; anônimo em sua autoria;
retenção memorial, atendem a divulgado em seu conhecimento, e
experiência, têm bases universais e persistente nos repertórios orais ou
há um instinto de conservação para no hábito normal:
manter o patrimônio sem
modificações sensíveis, uma vez Uma anedota é tipicamente
documento folclórico mas, ao redor de
assimilados. A cultura popular é nome contemporâneo, de
anciã, humilde sob o manto protetor acontecimento recente, participa da
literatura popular, oral, ágrafa, mas
da Etnografia, Antropologia Cultural somente o tempo, dando-lhe a pátina
e, ultimamente, da Sociologia, da autenticidade, a fará folclórica. A
autenticidade é o resumo constante e
Psicologia Social, e mesmo constitui
sutil das colaborações anônimas e
o pedestre e democrático Folclore. concorrentes para sua integração na
Na sua concepção, folclore psicologia coletiva nacional. Assim é
possível uma quadrinha de poeta
nada mais seria que a cultura popular conhecido tornar-se folclórica, através
tornada normativa pela tradição. dos filtros populares na quarta
dimensão (Idem, Ibidem. p.14)
Compreendendo técnicas e processos
utilitários que se valorizam numa
O folclore não apenas
ampliação emocional, além do ângulo
conserva, mas mantém os padrões
do funcionamento racional. A
imperturbáveis do entendimento e da
mentalidade móbil e plástica, tornada
ação, remodela, refaz ou abandona
tradicional nos seus dados recentes,
elementos que se esvaziaram de
integrando-os na mecânica
motivos ou finalidades indispensáveis
assimiladora do fato coletivo como a
a determinadas sequências ou
imóvel enseada dando a ilusão da
presença grupal. Sendo assim, o
permanência estática, embora
conteúdo do folclore ultrapassa o
renovada na dinâmica das águas
enunciado de 22 de agosto de 1846,
vivas.
quando William John Thoms (1803-
O folclore, sendo uma cultura
1885) criou o vocábulo. Nenhuma
do povo é uma cultura viva, útil,
disciplina de investigação humana
diária, natural. As raízes imóveis no
imobilizou-se nos limites impostos,
passado podem ser evocadas como
quando seu nascimento. Qualquer
indagações da antiguidade. O folclore
objeto que projete interesse humano,
é o uso, o emprego imediato, o
além de sua finalidade imediata,
comum, embora antiquíssimo. Como
material e lógica é folclórico.
o povo tem o senso utilitário em nível
O Folclore enquanto disciplina,
muito alto, as coisas vão sendo
estudaria a solução popular na vida
substituídas por outras mais
em sociedade. Como há dez anos
eficientes e cômodas passando a
passados, e ao contrário da lição dos
248
mestres, Câmara Cascudo acreditava antidemagógica, da cultura popular
na existência dual da cultura (ou (CASCUDO, 1967, p. 17).
seja, uma cultura de caráter popular Luís Rodolfo Vilhena
e erudito) entre todos os povos. Em argumentava outrora que lutando
qualquer deles haveria uma cultura pela afirmação da disciplina que
sagrada, hierárquica, veneranda, abraçaram (o Folclore), muito dos
reservada para a iniciação, e a folcloristas, terão nos representantes
cultura popular, aberta à transmissão de outras áreas das ciências sociais
oral e coletiva, estórias e acessos às interlocutores que questionaram a
técnicas habituais do grupo, relativa relevância desta perspectiva
destinada à manutenção dos usos e para o estudo da sociedade
costumes no plano do convívio diário. brasileira, comprometidos que
Nesse sentido Cascudo estavam também com a sua
argumentava que os problemas perspectiva disciplinar.
delimitadores do Folclore são O relativo sucesso que os
idênticos aos das ciências ou técnicas folcloristas obtiveram na criação de
em fase de desenvolvimento. Os agências estatais dedicadas à
quadros sociológicos, geográficos, preservação de nossa cultura popular
antropológicos, entre 1859 e 1959, não foi acompahado pelo
desnorteariam roteiros dedutivos e desenvolvimento de espaços
cada uma dessas atividades denuncia dedicados ao estudo do folclore no
a invasão no terreno de outrora interior das universidades. No plano
privativo e solitário de colaborações dos estereótipos, o folclorista se
imprevistas. O Folclore deve estudar tornou o paradigma de um intelectual
todas as manifestações tradicionais não acadêmico ligado por uma
na vida coletiva (CASCUDO, 1972, p. relação romântica ao seu objeto, que
400-401). estudaria a partir de um colecionismo
Acreditava ainda, não ser descontrolado e de uma postura
mais possível o estudo de um sem o empirista.
outro, e mesmo o Popular alcançava A perda de legitimidade do
os valimentos da curiosidade no tema do folclore nascida por
plano da explicação originária, sobre intermédio desses embates
o Culto, posterior, heterogêneo, delimitaram a desqualificação dos
mutável. Essas investigações estão estudos folclóricos. A isso, devemos
nobilitando o Popular, que nunca acrescentar a suspeição crescente
concedeu doutoramento aos seus entre vários autores (dentre esses
estudiosos fieis. Em sua opinião, este Arthur Ramos, Florestan Fernandes e
aspecto prejudicaria o folclore a sua Roger Bastide) de que a pretensão
aparente facilidade, a humildade de se constituir em torno do folclore
plebéia dos motivos pesquisados, sua uma disciplina à parte seria abusiva.
ausência no currículo universitário. Para esse ponto de vista aqui
Onde quase todos poderiam ter um apresentado teríamos apenas um
depoimento no gênero. A justificação campo de estudos frequentado por
é o próprio elogio do folclore, a especialistas de diferentes disciplinas
ciência direta, desinteressada, (VILHENA, 1997, p. 30-31).

249
Para Câmara Cascudo foi essa índice de resistência e de
Cultura Popular tão negada em sua conservação do “nacional” ante o
dualidade paralela pelos clássicos do “universal” que lhe é, entretanto,
Folclore e tão real na existência participante e pertubador.
indígena, o elemento comunicante, Ainda acredita que é do
enviado às jornadas distantes na critério popular uma valorização de
memória e voz dos caçadores e objetos acima do conceito
guerreiros. Era essa cultura que ia econômico. A equivalência letrada
dentro das lembranças das moças articula o objeto à sua utilidade. O
que foram raptadas, que casavam povo encontra um sentido de
longe, que eram vendidas ou iam, utilidade alheio às regras do consumo
para longes terras. As estórias e circulação das riquezas.
viajavam com elas e eram contadas Essa sedução prestigiosa das
aos filhos, bem distantes das aldeias coisas, Câmara Cascudo supunha ser
nativas, irrecuperáveis. Assim, as proveniente de outra perspectiva de
tradições orais dos aruacos passaram Economia, baseada não mais na
aos caraíbas antilhanos e as donzelas utilidade, mas numa estimativa de
vindas para os haréns dos sultões e sua significação afetuosa, íntima,
emires, samurais e madarins, simbólica, com efeitos positivos para
espalhavam nas recordações a a representação social, alarde de
saudade da gente que era sua. Era a prestígio, sendo o display
porção patrimonial mais facilmente indispensável à celebridade.
conduzida quando das mudanças Foi essa tabela de valores
cíclicas do nomadismo ou aventura emocionais que Malinowski encontrou
emigratória. em Trobriand e que, segundo
Câmara Cascudo defende a Câmara Cascudo, ainda podemos
ideia de que a transmissão oral comprovar nas populações do interior
consagra a Cultura Popular porque a do Brasil... (quiçá por todo o mundo,
lembrança guarda realmente os enfatiza o folclorista). De acordo com
permanentes da sabedoria Cascudo, seria o que se denomina no
tradicional. Algumas toneladas de Brasil e em Portugal o valor
noticias, cantos, anedotas, casos estimativo não financeiro, mas de
passam como simples ressonância estima, bem-querer, uma “mais
pelo espírito do povo sem vestígios valia” sentimental e que pode se
duradouros (CASCUDO, 2004, p. apresentar como detalhe de
710-714). superioridade no grupo, pela
Cascudo compreende que a raridade, exotismo ou inutilidade
influência teimosa e polifórmica total, que seria deduzida como uma
exerçam pressão diária na cultura utilidade acima da percepção
popular, desde que as comunicações ambiental. A pesquisa do “popular” é
modernas teriam determinado um aquela que revela à
incessante contato. Navios, aviões, contemporaneidade no milênio, o
rádios, permutam os produtos do “presente” da antiguidade, as formas
mundo ao mundo. Na sua concepção pretéritas vivas na diuturnidade do
a cultura popular fica sendo o último exemplo (Idem, Ibidem. p. 725-740).

250
Ao buscar uma cultura aperfeiçoamento dos métodos ou
popular, autêntica, a curiosidade uma inversão das convicções não
científica e etnográfica não sabe mais mudará o que uma operação
que repete suas origens e que científica faz da cultura popular.
procura, assim, não reencontrar o Logo, supõe-se que “é no momento
povo. A partir de então, estas em que uma cultura não mais possui
práticas, só se tornam dignas de os meios de se defender que o
conhecimento, quando estão etnólogo ou o folclorista aparece”.
cristalizadas na folha de papel, Ocorre então, como se
fazendo com que o nome deste que a percebe nesta obra; a reivindicação
cataloga se eternize na condição de de uma restauração da vida
autor (CERTEAU, 1995, p. 56 ). provinciana, sancionada pela
Sem voltar a insistir sobre as exigência de uma renovação social
implicações sócio-econômicas do que deverá reencontrar o camponês
lugar onde se produz um estudo no operário e conhecer as virtudes
etnológico ou histórico, nem sobre a primitivas da terra, essa outra idade
política que desde as origens da de ouro da tradição e do folclorismo
pesquisa contemporânea inscreveu o e que, de imediato, manifestam a
conceito popular numa problemática existência de um populismo dos
de repressão, Michel de Certeau poderosos em busca de uma nova
(1995) sugere que é necessário levar aliança (Idem, Ibidem. p. 58-64).
em conta uma urgência: caso não se
fique esperando que venha uma Considerações Finais:
revolução transformar as leis da No livro Civilização e Cultura
história; e, dessa maneira, a (2004) os conceitos românticos de
preocupação é como se torna gênio, de índole, de espírito do povo,
possível vencer hoje a hierarquização da cultura ou da nação, de
social que organiza o trabalho permanências culturais, surgiram
científico sobre as culturas articulados com outros de matriz
populares? evolucionista buscando reviver certos
O que está, em jogo, não são atavismos étnicos e culturais, tipo
as ideologias nem as opções raça e herança assim como outros de
metodológicas, como nos mostra formulação difucionista como:
Michel de Certeau (1995), mas as influência, difusão, dispersão,
relações que um objeto e os modelos contato.
científicos mantêm com a sociedade As inclinações de Câmara
que os permite. E se os Cascudo para o estudo da etnografia,
procedimentos científicos não são desenvolvidos mais rigorosamente a
inocentes, se seus objetivos partir da experiência docente do
dependem de uma organização ensino superior, tiveram seus
política, o próprio discurso da ciência primórdios no folclore, os quais
deve admitir uma função que lhe é deram início às investigações do
concedida por uma sociedade que autor no campo das raízes
oculta o que ele pretende mostrar. tradicionais do Brasil.
Isso quer dizer que um Mesmo envolvido com as

251
manifestações culturais dessa área, partes culturais (CASCUDO, 2004, p.
não simpatizava com a concepção 17-18).
reducionista que, em geral, era dada Seriam estas umas das
à palavra folclore, pelo seu sentido características da moderna erudição
limitado aos contos e histórias a que pertencia em contraponto a
populares. Por isso preferia ser sua não identificação com o modelo
entendido como um estudioso da do intelectual e explicam em parte,
cultura popular e pensava que a sua ausência das bibliografias das
“cultura popular é o complexo, que disciplinas universitárias e seu quase
representa a totalidade das total desconhecimento por parte
atividades normais do povo, do daqueles que se tornam especialistas
artesanato ao mito, da alimentação em antropologia no Brasil
ao gesto” (IVO, 1960, s.p.), como (ALBUQUERQUE JR, 2002, p. 5).
afirmava numa entrevista, ou “o
saldo da sabedoria oral na memória
coletiva” (CASCUDO, 2004, p. 679) ,
mas ressaltava também que a cultura
popular “não pode e não deve ser
explicada pela enumeração de seus
elementos formadores. É um caso
em que o todo não corresponde à
soma das partes”.
Câmara Cascudo, na sua
compreensão do folclore e do
conceito de cultura popular,
apresenta a categoria “povo”
relacionado ao de sociedade,
contrapondo-se ao conceito
determinismo no mundo da produção
das ideias e de forma insubmissa,
aproveitou-se das áreas do domínio
da elite cultural e intelectual, pondo
ênfase nos aspectos folclóricos e da
sua função para a preservação das
manifestações ou elementos da
cultura popular (GICO, 2003, p. 36).
Voltando ao próprio Câmara
Cascudo, “vemos que a etnografia
seria realmente o estudo da origem,
desenvolvimento e permanência
social das culturas”. Para
compreender o fenômeno total da
civilização local, acreditava Cascudo
que era preciso entender que o todo
civilizador é maior que a soma das

252
Referencias:
ALBUQUERQUE Jr. Durval Muniz de. De amadores a desapaixonados: Eruditos e
Intelectuais como distintas figuras de sujeito do conhecimento no Ocidente
contemporâneo. Barcelona, 2002. (Mimeo).
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revisão técnica Cezar Mortari. – São Paulo: Editora UNESP, 2005. 204p.
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1964). Rio de Janeiro, RJ: Funarte: Fundação Getúlio Vargas, 1997.

254
NAZI-FASCISMO: UMA Introdução
1
DOMINAÇÃO BURGUESA Graduado em História
pelo Centro
Jorge Miklos1 A história do breve Século XX não
pode ser entendida sem a Revolução Universitário Assunção
Russa e seus efeitos indiretos e (UNIFAI). Graduado em
Resumo diretos. Não menos porque se revelou Ciências Sociais pela
Este artigo tem por objetivo apresentar a salvadora do capitalismo liberal, Universidade Metodista
tanto possibilitando ao Ocidente
os principais fatores que promoveram a ganhar a Segunda Guerra Mundial
de São Paulo (UMESP).
ascensão do nazi-fascismo no século XX, Mestre em Ciências da
contra a Alemanha de Hitler quanto
fornecendo incentivo par o capitalismo Religião e Doutor em
suas características, bem como procurar
se reformar, e também – Comunicação e
articular tais eventos com os
paradoxalmente – graças à aparente Semiótica pela Pontifícia
desdobramentos do desenvolvimento do imunidade da União Soviética à Universidade Católica
capitalismo. O nazi-fascismo é muitas Grande Depressão, o incentivo a de São Paulo (PUC-SP).
vezes interpretado pelo senso comum abandonar a crença na ortodoxia do
Pós-Doutorando em
livre mercado. (HOBSBAWM, 1995, p.
como apenas um “inimigo” das formas 84) Comunicação pela
democráticas e liberais e que foi vencido Universidade Federal do
pelo bloco aliado na Segunda Guerra em Rio de Janeiro (UFRJ).
O historiador britânico Bolsista Júnior do
1945. O intuito é demonstrar que o nazi-
Christopher Hill, refletindo acerca do Conselho Nacional de
fascismo é uma forma autoritária de
caráter social do Estado Absolutista Desenvolvimento
dominação capitalista e foi à resposta Científico e Tecnológico
política para manter a dominação na Europa Moderna, considera que:
(CNPq). Professor de
burguesa na Europa bem como uma História nas Faculdades
reação ao crescimento e expansão do A monarquia absoluta foi uma forma de Integradas de
de monarquia feudal diferente da
socialismo. monarquia dos Estados medievais que
Ciências Humanas,
a precedera, mas a classe dominante Saúde e Educação de
Palavras-chave permaneceu a mesma, tal como uma Guarulhos. Professor
república, uma monarquia Titular do Programa de
Capitalismo; Dominação burguesa; Nazi-
constitucional e uma ditadura fascista Pós-Graduação em
Fascismo. podem ser todas formas de Comunicação da
dominação burguesa. (HILL, 1987, p.
Universidade Paulista
Abstract 87)
(UNIP). Email:
This paper aims at presenting the main jorgemiklos@gmail.com
factors that promoted the rise of nazi- O Estado é uma das mais
fascism in the twentieth century, its complexas instituições sociais criadas
features, and strive to coordinate such pelo homem ao longo da história.
events with the unfolding development of Este artigo procura adotar uma
capitalism. The nazi-fascism is often perspectiva teórico-epistemológica
interpreted by common sense as just an marxista para quem o Estado é uma
“enemy” of liberal and democratic forms,
instituição política inserida em um
and which was won by the block ally in
contexto social de lutas de classes e
the War in 1945. The intention is that the
nazi-fascism is an authoritarian form of sua função é interferir nessa luta
capitalist domination and the political tomando o partido das classes sociais
response was to maintain the domination dominantes. Dessa forma a função
of the bourgeoisie in Europe as well as a do Estado é garantir o domínio da
reaction to the growth and expansion of classe.
socialism. Assim, a explicação das
formas jurídicas, políticas, espirituais
Keywords
e de consciência encontra-se na base
Capitalism; Bourgeois domination; Nazi-
econômica e material da sociedade,
Fascism.
no modo como os homens estão
255
organizados no processo produtivo. econômica do capitalismo
No caso das sociedades onde se dá a imperialista em crise foi preciso
apropriação privada dos meios para alterar o modelo político como
produzir, esta base relaciona-se estratégia de garantir a hegemonia
diretamente à forma adotada por burguesa no ocidente.
suas instituições. O chamado período entre
guerras (1919-1939) foi marcado por
Na relação imediata entre o dois processos interligados: a crise
proprietário dos meios de produção e
o produtor direto há que se buscar o econômica do mundo capitalista, cujo
segredo mais profundo, o cimento auge se verifica no ano de 1929, e a
oculto de todo o edifício social, e, por
conseguinte da forma política que a
ascensão do nazi-fascismo como
relação de soberania e dependência resposta tanto a essa crise quanto ao
adota; em uma palavra, a base da
fortalecimento do movimento
forma específica que o Estado adota
em um período dado. Isto não impede socialista europeu.
que a mesma base econômica A crise de 1929 foi uma
apresente, sob a influência de
inumeráveis condições empíricas herança legada pela Primeira Grande
distintas, de condições naturais, de Guerra (1914-1918), devido à
relações sociais, influências históricas
exteriores, infinitas variações e devastação provocada pelo conflito, e
matizes, que só poderão ser representou o primeiro
esclarecidos por uma análise dessas
questionamento de peso à
circunstâncias empíricas. (MARX,
1985, p. 75-76) capacidade ilimitada de reprodução
do modo de produção capitalista. O
Nessa perspectiva, o Estado é centro da crise foram os Estados
uma instituição detentora do poder Unidos, mas, pela dependência
político (monopólio da força) cuja econômica de outros países em
finalidade última é garantir de relação aos americanos, a crise
maneira legal e jurídica o domínio da acabou se alastrando por imensas
classe dominante. O aparato legal e regiões do planeta.
jurídico apenas dissimula o essencial: Os resultados mais
que o poder político existe como expressivos dessa crise foram à
poderio dos economicamente expansão do ideário socialista (num
poderosos, para servir seus momento em que se consolidava o
interesses e privilégios e garantir- comunismo soviético) e a
lhes a dominação social. consequente expansão do nazi-
A partir desse pressuposto fascismo, enquanto resposta tanto à
teórico perguntamos: Sendo o Estado incapacidade do liberalismo em dar
um aparelho jurídico que garante a soluções eficientes aos problemas
dominação social de um grupo. Qual gerados pela crise, quanto pela
a base social do Estado nazi-fascista? expansão do socialismo dela
Para examinarmos essa decorrente. Além disso, promove um
questão é preciso considerar que o revigoramento do intervencionismo
nazi-fascismo é resultado de um estatal na economia.
conjunto de mutações que se
processaram no início do século XX
quando por força da nova realidade
256
O Nazi-facismo caso nazista defendia-se a
Denomina-se por nazi- ideia do “espaço vital”;
fascismo o modelo de dominação  Corporativismo: o Estado
política e os regimes totalitários que totalitário aparece como
a seguiram, marcada por seu caráter árbitro de todos os conflitos
nacionalista, antidemocrático, no interior da sociedade;
antioperário, antiliberal e  Anticomunismo: defesa do
antissocialista. O nazi-fascismo combate ao comunismo
emergiu com resultado político da tanto dentro do país
Primeira Guerra Mundial e expandiu- (perseguições) quanto no
se pela Europa como reação ao âmbito internacional
avanço do movimento operário- (aniquilação da União
socialista, amparado pela instauração Soviética);
do comunismo na União Soviética.  Racismo: crença na
Além disso, apresentava-se como superioridade racial dos
alternativa ao liberalismo político e brancos sobre os não
econômico, típico do século XIX, num brancos (arianismo); este
período em que o liberalismo já não aspecto foi particularmente
conseguia dar mostras de eficiência, importante no caso nazista.
como revelou a crise de 1929. Nesse
sentido, propunha o autoritarismo A crise de 1929 afetou
político e o intervencionismo profundamente a vida econômica de
econômico. algumas nações europeias, gerando
Dentre as principais desemprego e miséria. Muitos
características dessa ideologia, trabalhadores, inspirados pelo
podemos mencionar as seguintes, exemplo soviético, aderem ao
lembrando, porém, que algumas socialismo, ameaçando a ordem
delas emergem com maior burguesa. Simultaneamente, o
intensidade em determinados países pensamento liberal não oferece
e em outros, às vezes, pouco se soluções para os problemas
manifestaram: econômicos que o mundo ocidental
deve enfrentar. O nazi-fascismo,
 Totalitarismo: portanto, surge num contexto de
subordinação dos interesses crise do liberalismo e de ameaça de
individuais aos do Estado; avanço comunista. Os países em que
 Nacionalismo: tudo pela mais se desenvolve são Itália e
nação, cuja grandeza deve Alemanha, coincidentemente os mais
ser buscada pela totalidade duramente atingidos pela crise de
da sociedade; 1929.
 Militarismo: a guerra
permite um aprimoramento
individual e nacional; O Fascismo italiano
 Expansionismo: expansão A palavra fascismo deriva de
territorial é uma necessidade ‘fasces lictoris’ (latim) ou de ‘fascio
à sobrevivência da nação; no littorio’ (italiano). Trata-se de uma
257
espécie de cilindro, composto de um da distribuição das terras; finalmente,
a revolução russa de 1917 aparece
feixe de varas ligadas à volta de um como um modelo interessante em
machado. Simboliza a força da união mais de um sentido. Desde a
primavera de 1919, a agitação se
em torno do chefe. Era usado na desenvolve: onda de greves contra a
Roma Antiga, associado ao poder e à vida cara, amiúde seguidas de motins
autoridade, em cerimônias oficiais - nas cidades e atividades mais
politizadas. (NÉRÉ, 1981, p. 410-412)
jurídicas, militares e outras. Na
década de 1920, foi adotado como
símbolo do Fascismo, em Itália. Não O texto acima revela a
se deve confundir com “facho”, que situação na Itália após o término da
se usa como equivalente de chama Primeira Guerra Mundial: acentuada
em “facho olímpico”, por exemplo, e crise econômica, acompanhada de
que é um dos símbolos das agitação social. Nesse contexto, em
Olimpíadas. que a ordem liberal-burguesa parece
ameaçada, nasceu o Partido Fascista,
A economia italiana, frágil na véspera
do conflito [Primeira Guerra], sofreu fundado por Benito Mussolini. Em seu
perdas consideráveis, mormente no interior, organizaram-se as
Nordeste: estradas, ferrovias,
esquadras - também conhecidas
fábricas, edifícios diversos destruídos;
as matérias-primas e os capitais, em como camisas negras - milícia
conjunto, fizeram muita falta, como armada que espalhava o terror entre
fez falta a mão-de-obra, em virtude
da mobilização dos homens tanto no os adversários do fascismo:
setor industrial quanto no setor perseguiam comunistas, sindicalistas
agrícola, onde se empregaram
mulheres, crianças, prisioneiros. Na de esquerda, adeptos em geral do
agricultura a produção diminuiu socialismo, praticavam atentados
sensivelmente (por falta de adubos e
máquinas agrícolas) ao mesmo tempo
contra jornais de esquerda e
que os preços se estagnavam, sindicatos, dispersavam, com
bloqueados por uma medida violência, comícios e manifestações.
governamental, para evitar a elevação
do custo de vida, geradora de Em 1921, favorecidos pela
agitação social. No plano financeiro, o crise instaurada na Itália pós-guerra
balanço é desastroso: balança
comercial em déficit, evasão de e apoiados pela burguesia que temia
divisas em razão das importações o avanço socialista no país, os
indispensáveis e, para cobrir o esforço
de guerra, majoração dos impostos, fascistas obtiveram expressiva vitória
endividamento público através de eleitoral para o Parlamento,
empréstimos sucessivos e inflação,
que provoca a depreciação da lira e
conquistando a maioria das cadeiras.
vigorosa elevação dos preços. (...) É Tal vitória, associada ao terrorismo
no seio das classes laboriosas que a praticado pelas esquadras, contribuiu
agitação aparece primeiro. Os
trabalhadores da indústria e da para fortalecer o partido.
agricultura conhecem a parte Em um discurso, pronunciado
essencial que lhes cabe na vitória da
qual pensam poder tirar algum em outubro de 1922, o líder do
proveito imediato; ora, o seu nível de Partido Fascista, Benito Mussolini,
vida está deteriorado (alta dos preços
mais rápida que a dos salários) e o
assim criticava o regime
desemprego é uma consequência da democrático:
crise econômica; nos campos, não se
cumprem as promessas feitas depois
de Caporetto relativas às soluções O fascismo italiano representa uma
que deverão ser dadas aos problemas reação contra os democratas que

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tornaram tudo medíocre e uniforme e que deu aos fascistas a maioria
tentaram sufocar e tornar transitória
a autoridade do Estado. (...) A parlamentar. O primeiro-ministro
democracia tirou a elegância da vida nada fez para apurar em que
das pessoas, mas o fascismo a traz de
volta, isto é, traz de volta à cor, a
circunstâncias e quem foram os
força, o pitoresco, o inesperado, o responsáveis por sua morte.
misticismo, enfim, tudo o que falta às Finalmente, em 1926, o Duce
almas da multidão. (REMOND, 1995,
p. 47) (o “guia”, título atribuído a Mussolini)
decretou o unipartidarismo na Itália,
Nesse mesmo ano, amparado suprimindo todos os partidos políticos
pelo crescimento e fortalecimento do e órgãos de imprensa oposicionistas.
partido, Mussolini promoveu, Instituía-se, assim, o Estado
juntamente com as esquadras, a totalitário na Itália. A oposição
Marcha sobre Roma, tomando de sempre foi reprimida através de
assalto o poder. O rei Vítor Emanuel perseguições, prisões arbitrárias e
III não reagiu contra o golpe fascista, até execuções sumárias.
acreditando que, Mussolini e seus Mussolini, em 1929, conseguiu
adeptos neutralizariam os socialistas o apoio do clero para a causa fascista
e, a seguir, seriam derrotados pelos ao assinar o Tratado de Latrão, que
liberais dos quais o rei era criou o Estado do Vaticano,
representante. Nesse contexto, resolvendo assim a questão surgida
Mussolini tornou-se o primeiro- na época da unificação em que a
ministro italiano e passou a adotar autoridade administrativa do papa
uma série de medidas autoritárias sobre a cidade de Roma ficou
que escapavam do controle da subordinada à do rei.
monarquia. Nesse mesmo ano, a crise econômica
Já em 1923, o primeiro- atingiu violentamente os Estados
ministro determinou a alteração da Unidos e irradiou-se pelo mundo
legislação eleitoral: a partir de então, capitalista. A Itália foi duramente
o partido que obtivesse 1/3 dos votos atingida e o governo fascista passou
nas eleições parlamentares ocuparia a defender mais intensamente o ideal
2/3 das cadeiras da Assembleia, isto expansionista, além de intensificar a
é, assumiria o controle do produção bélica do país: os italianos
Parlamento. Com isso, o partido invadiram a Abissínia e a Albânia,
fascista conquistou a hegemonia no dominando seus territórios.
legislativo, aprovando todas as
medidas de exceção que se
seguiram. Ao mesmo tempo, a ação O Nazismo alemão
terrorista das esquadras continuava, Ao final da Primeira Guerra, a
fortalecendo ainda mais o poder dos Alemanha, que não perdera no
fascistas. campo de batalha, acabou sendo
No ano seguinte, o líder da “traída” pelas potências ocidentais
oposição ao fascismo no Parlamento com a imposição do Tratado de
italiano, o socialista Matteotti, foi Versalhes. Além da humilhação, uma
cruelmente assassinado, após ter violenta crise econômica atingiu a
denunciado irregularidades no pleito economia alemã no início dos anos
259
1920, crise essa que a República de a nossa época. Os seus líderes
recusam-se, uma vez alcançados os
Weimar, recém-instituída, não objetivos nele inscritos, a formular
conseguiu solucionar. outros unicamente com a finalidade
de possibilitar que se prolongue a
A crise econômica gerou existência do partido excitando
inflação (em 1923, o índice foi de 32 artificialmente o descontentamento
400% ao mês) e desemprego, das massas.
1. Exigimos a reunião de todos
acarretando miséria e, sobretudo, os alemães numa grande Alemanha,
descontentamento entre os fundamentados no direito dos povos
de dispor de si mesmos.
trabalhadores alemães. Ao mesmo 2. Exigimos a igualdade de
tempo em que estes desacreditavam direitos entre o povo alemão e as
demais nações, e a abolição dos
do regime liberal, aproximavam-se tratados de paz de Versalhes e de
dos pressupostos socialistas, Saint-Germain.
3. Exigimos terras (colônias)
amplamente difundidos na Europa para alimentar o nosso povo e nelas
ocidental depois da Revolução Russa instalar a nossa população excedente.
de 1917. 4. Somente os membros do
povo podem ser cidadãos do Estado.
Em resposta ao avanço socialista e a Só pode ser membro do povo aquele
ineficiência liberal, nasceu na que possui sangue alemão, sem
consideração de credo. Nenhum
Alemanha o Partido Nacional judeu, portanto, pode ser membro do
Socialista dos Trabalhadores Alemães povo.
5. Quem não é cidadão só pode
ou Partido Nazista, de cuja fundação viver na Alemanha como hóspede e
participou um ex-cabo do exército deve submeter-se à legislação relativa
a estrangeiros.
alemão que lutara na Primeira
6. O direito de decidir sobre o
Guerra, Adolf Hitler. Em pouco governo e a legislação do Estado só
tempo, o novo partido conquistou pode pertencer ao cidadão. Por
conseguinte, exigimos que toda
milhares de adeptos, recrutados, função pública, seja ela qual for, tanto
sobretudo entre a burguesia, ao nível do Reich como do Land ou da
comuna, só possa ser ocupada por
descontentes com a crise, mas quem é cidadão.
temerosa com a o avanço socialista, Combatemos o sistema parlamentar
corruptor por atribuir postos
e também entre os setores populares unicamente em virtude de um ponto
que respondiam ao apelo de vista de partido, sem consideração
nacionalista. do mérito nem da aptidão.
(...)
No interior do Partido Nazista, 24. Exigimos liberdade dentro do
a exemplo do que se verificou no Estado para todos os credos
religiosos, na medida em que não
Partido Fascista Italiano, surgiram ponham em risco a sua existência e
milícias cuja atividade principal era não contrariem o espírito dos
costumes e da moral da raça
reprimir com violência as germânica. Quanto ao partido,
manifestações de oposição ao defende a ideia de um cristianismo
positivo, sem, no entanto, vincular-se
nazismo. Essas milícias chamavam-
a um credo determinado. Combate o
se SA (Seções de Assalto) e seus espírito judeu-materialista em nós e
integrantes eram conhecidos como em torno de nós, e está convencido
de que um saneamento duradouro do
“camisas pardas”. nosso povo só pode realizar-se
internamente com base no seguinte
Programa do Partido Nazista princípio: o interesse coletivo
Munique, 24 de fevereiro de 1920 prevalece sobre o interesse individual.
O programa do Partido 25. Para a realização de todas
operário alemão é um programa para essas reivindicações, exigimos que se

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constitua no Reich um poder central maneira absoluta o aparelho de
forte; a autoridade absoluta do
Parlamento central sobre todo o Reich Estado alemão e por fim à República
e os seus organismos. A constituição de Weimar, os nazistas forjaram um
de câmaras de ofícios e profissões
para que se apliquem nos diferentes
plano de tomada do poder,
Estados federais leis de cunho geral incendiando o prédio onde funcionava
editadas pelo Reich. (THIERRY; o Reichstag (Parlamento alemão) e
GAUCHON, 1984, p. 87-91)
acusando os comunistas do ato: o
Em 1923, ocorreu o Putsch de Parlamento permaneceu fechado, os
Munique, tentativa fracassada de partidos políticos foram suprimidos,
golpe por parte de membros do enquanto seus principais membros
partido nazista. Seus principais foram presos, jornais e sindicatos de
líderes, inclusive Hitler, foram presos, oposição também foram extintos e,
enfraquecendo temporariamente o até mesmo, membros dissidentes das
ideal totalitário na Alemanha. Na SA foram eliminados.
prisão, Hitler escreveu um livro A repressão aos opositores do
chamado Mein Kampf, onde nazismo - tanto comunistas quanto
desenvolve os principais elementos liberais-democratas - intensificou-se
da ideologia nazista - arianismo, com a criação das SS (Sessões de
anticomunismo, antiliberalismo, Segurança, a polícia política do
antissemitismo, militarismo partido) e da Gestapo (polícia secreta
expansionista com vistas à conquista do Estado).
do espaço vital. A morte do presidente
A partir de 1929, com o Hindenburg, em março de 1933, deu
agravamento da crise econômica na a Hitler à oportunidade de fortalecer
Europa e, sobretudo, na Alemanha, o seu poder: ao invés de convocar
desemprego e a inflação atingiram eleições presidenciais, o chanceler
níveis insuportáveis e a acumulou o cargo de presidente e
incompetência da República de primeiro-ministro, fundando o
Weimar em dar soluções a ela Terceiro Reich e adotando o título de
manifestou-se com grande Führer (“guia”). Nascia assim o
intensidade. Nesse contexto, o Estado totalitário alemão que, nos
Partido Nazista e suas ideias anos seguintes, tendeu à
ganharam força, até porque a ação militarização e ao expansionismo,
das SA tornava-se mais determinada desrespeitando, pouco a pouco, as
e contínua. A adesão ao nazismo, determinações do Tratado de
que contava com eficiente Versalhes, numa clara atitude de
propaganda, foi enorme na Alemanha agressão.
e a oposição foi violentamente
reprimida.
Nas eleições parlamentares de Considerações finais
1932, o Partido Nazista obteve Para triunfar, o nazismo
expressiva vitória e Hitler foi precisava combater seu principal
nomeado primeiro-ministro pelo concorrente ideológico, o socialismo
presidente Hindenburg. No ano revolucionário ou comunismo, com o
seguinte, visando controlar de qual teria de disputar a adesão
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popular. Igualmente totalitário, o Essa política foi batizada de Política
comunismo também se arvorava a de Apaziguamento.
construir uma sociedade perfeita, não Impressionados com o
só na Alemanha, mas no mundo. elevado custo em vidas humanas da
Entretanto, no lugar de uma raça Primeira Guerra Mundial, grupos
superior, colocava uma classe social - políticos europeus convenceram-se
o proletariado - à frente do processo. de que a paz com a Alemanha
Por isso, o anticomunismo constituía deveria ser mantida a qualquer
um ponto central do pensamento de custo, mesmo que tivessem que
Hitler. ignorar as constantes violações de
Muito embora o senso comum Hitler a diversos tratados
considere o nazi-fascismo como uma internacionais.
força antiliberal, percebe-se que ele Porém, a Política do
foi antes de mais nada o caminho Apaziguamento também era uma
político autoritário e totalitário de maneira de fortalecer a Alemanha e
afirmação das formas burguesas de colocá-la em confronto com a URSS.
dominação. O nazi-fascismo era a Ficou célebre a frase de um
força estratégia capaz de deter uma político pernambucano Holanda
possível expansão do socialismo na Cavalcanti que teria afirmado: “Nada
Europa. Um argumento favorável a mais se assemelha a um saquarema
essa tese aplica-se quando em 1938, (conservador) do que um luzia
em nome do arianismo defendido (liberal) no poder.” Essa frase revela
pelos nazistas, a Alemanha anexou a a grande identidade entre Liberais e
Áustria (Anchluss) e os Sudetos, Conservadores que juntos dominarão
região ocidental da ex- a cena política brasileira exercendo o
Tchecoslováquia, habitada por domínio completo sobre as
maioria alemã. A autorização para províncias, restringindo e controlando
essa agressão foi concedida pelas o número de eleitores no Brasil
potências ocidentais (Inglaterra e Império. Parafraseando Cavalcanti,
França) depois da Conferência de podemos dizer que nada mais
Munique. Tais potências, no entanto, parecido com um fascista do que um
exigiram que a Alemanha deixasse liberal no poder. O Capital não tem
independente o restante do território pátria, não tem ética, não tem
Tcheco. Em 1939, desrespeitando tal modelo político. Uma democracia ou
determinação, Hitler desmembrou a um fascismo servem para manter os
Tchecoslováquia e dividiu seu interesses do mercado superando as
território entre a Polônia, a Hungria e crises arquitetadas pelo seu
a própria Alemanha que assumiu o imperialismo.
controle sobre a Boêmia e a Morávia.

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Referências:
ECO, Umberto. O fascismo eterno. Disponível em:
<http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=1624
9>. Acesso em: 5 abr. 2012.
HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça. São Paulo: Companhia das Letras,
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HOBSBAWM, Eric. Era dos extremos: o breve século XX, 1914-1991. São Paulo:
Companhia da Letras, 1995.
MARX, K. O capital. São Paulo: Abril, 1985.
NÉRÉ, Jacques. História contemporânea. 2. ed. São Paulo: Difel, 1981.
REMOND, René. O século XX: de 1914 aos nossos dias. São Paulo: Cultrix, 1995.
THIERRY, Buron; GAUCHON, Pascal. Os fascismos. Rio de Janeiro: Zahar, 1984.

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