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Artigo Relações Internacionais
Artigo Relações Internacionais
2012
SOCIEDADE INTERNACIONAL:
A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO
RESUMO
O artigo discute os argumentos da Escola Inglesa de Relações Internacionais e de outros autores acerca
da existência de uma suposta sociedade internacional. Objetiva-se expor quais os pilares teóricos que
sustentariam a utilização do conceito, criticando, paralelamente, as deficiências da abordagem inglesa e
a dissociação de seus aportes daqueles que poderiam ter sido trazidos pela disciplina da Sociologia. O
método é analítico-discursivo, com a revisão de autores relevantes que se debruçaram sobre o tema.
Argumenta-se que existem subsídios suficientes para a sustentação teórica do conceito, os quais serão
analisados por tópicos. Os aportes da disciplina de Relações Internacionais desaguam em um conceito de
sociedade internacional exageradamente focado no caráter estatal desta, o que não condiz com a realidade
de um mundo cada vez mais complexo nas suas interações em todos os níveis, tanto estatal quanto individual.
É necessário que a academia discuta uma concepção de sociedade mais vinculada aos valores e instrumentos
da abordagem sociológica. Propõe-se, ao final do artigo, uma ampliação conceitual que possa agregar o
elemento individual e, conseqüentemente, as contribuições da teoria social.
PALAVRAS-CHAVE: Sociedade Internacional; Escola Inglesa de Relações Internacionais; instituições
internacionais.
Recebido em 18 de dezembro de 2010. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 20, n. 43, p. 5-22, out. 2012
Aprovado em 11 de abril de 2011.
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revestisse do caráter de “internacional”. Uma das plena ciência de que tais considerações configuram
conseqüências dessa atitude foi o estabelecimento um ensaio inicial, mas o objetivo, no longo prazo,
de uma delimitação artificial entre as disciplinas é trazer para o campo das RI as descobertas e
que estudavam o “ interno” e aquelas que contribuições da Sociologia, o que servirá, sem
estudariam, a partir de então, o externo. O conceito sombra de dúvida, à evolução qualitativa daquela
de sociedade internacional, nesse sentido, nasce disciplina.
afastado de suas origens sociológicas e das
II. INSTITUIÇÕES E SOCIEDADE
análises de sociólogos.
É inevitável que a análise inicie-se pela obra
A história do surgimento, divisão, multiplicação
de Hedley Bull (2002), que deu, por assim dizer,
e morte das disciplinas em Ciências Sociais ainda
o pontapé inicial na discussão acerca do conceito
está por ser contada. Tais considerações servem
de sociedade internacional. Sua influência permeia
para ilustrar algumas peculiaridades inerentes a
praticamente todas as obras posteriores dos
essa história no campo das Relações
integrantes da Escola Inglesa de Relações
Internacionais. Em termos bem caricaturais, é
Internacionais e também de autores que trataram
como se as coisas tivessem ocorrido da seguinte
do tema sem pertencerem a ela. Cumpre aqui
forma: quando a Ciência Política olhou para fora
delinear, por um lado, os argumentos de Bull no
do Estado, virou relações internacionais. No
que se refere aos elementos que dão sustentação
entanto, “esqueceu” o indivíduo dentro do Estado.
à existência de uma sociedade e, por outro lado,
Assim também fez a Sociologia, que geralmente
o papel das instituições para a perpetuação dessa
não ultrapassou os limites postos pelas fronteiras
sociedade no tempo.
estatais. Ocorre que o cenário internacional
configura, também, um sistema social, composto “Sociedade” e “ordem” são conceitos interliga-
por indivíduos, mesmo que os realistas insistam dos na obra de Bull. “Ordem” significa padrão,
em negá-lo, com sua ênfase em interações repetição de comportamentos, regularidades,
mecânicas, pautadas por uma lógica de poder. estando essa definição desvinculada da noção de
lei como instrumento formal regulatório. É dizer
A Escola Inglesa, ao “criar” o conceito de
que pode haver ordem mesmo na ausência de leis
sociedade internacional, abriu uma brecha para
ou de aparatos institucionais formais. A norma
explorar as interfaces entre interno e externo, entre
não faz necessariamente parte da definição de
estatal e individual, entre Estado e sociedade, entre
ordem. A ordem que se estabelece de modo quase
política e Sociologia. Ao aprofundar-se nos estudos
natural, como decorrência de regularidades
da EI, no entanto, percebe-se que tal espaço não
comportamentais dos atores, tem por objetivo
foi devidamente explorado, tendo em vista a ênfase
atingir certos resultados, como a proteção da vida
estatal do conceito na Escola Inglesa. Ainda assim,
e da propriedade e a exigência de cumprimento
ao utilizar-se a expressão “sociedade”, está-se no
dos contratos. Esses seriam os objetivos, na visão
limiar do discurso entre sociedade e Estado, nas
do autor, elementares de toda e qualquer
interfaces entre as disciplinas de Ciência Política,
sociedade. Nas palavras do próprio Bull, “order
Sociologia e Relações Internacionais. Isso
is a pattern of behavior that sustain the elementary
representa um desafio para os teóricos de todas
or primary goals of social life”2 (idem, p. 51).
essas áreas, que de algum modo necessitam ter a
mente aberta para discussões provenientes das Posteriormente o autor indicará quais são os
outras áreas acadêmicas. objetivos elementares da sociedade internacional3,
mas o que importa notar, para os fins deste artigo,
O propósito deste artigo é, como se disse,
é a ligação já mencionada entre ordem e sociedade.
responder à indagação de Luard. Para tanto, é
necessário revisitar, de modo crítico, os 2 “Ordem é um padrão de comportamento que sustenta
argumentos gerais dos teóricos – tanto da Escola
os objetivos primários ou elementares da vida social” (nota
Inglesa quanto dos que se interessam pelo tema do revisor).
sem pertencerem à ela – no que se refere aos 3 São eles, em resumo: i) a preservação do sistema e da
elementos comprobatórios da existência de uma
sociedade de Estados; ii) a manutenção da independência
sociedade desse tipo. Alguns aportes da Sociologia individual dos Estados; iii) a manutenção da paz; iv) a
serão mencionados, ainda que de maneira limitação da violência; v) o respeito aos contratos e (vi) o
embrionária, na última seção do texto. Tem-se respeito pela propriedade.
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final do século XIX e início do século XX, as como Kenneth Waltz (1979). Nas palavras de Adam
organizações internacionais cresceram em Watson, “um conjunto de regras e instituições
número e muitas delas tomaram formas cada vez concebidas por estadistas para uma sociedade
mais institucionalizadas, com mecanismos internacional é uma superestrutura conscientemente
complexos de participação, atuação e, inclusive, instalada para modificar o funcionamento mecânico
resolução de conflitos, a exemplo do que ocorre do sistema” (WATSON, 2004, p. 434). As
no âmbito da Organização Mundial do Comércio instituições, em alguma medida, representam um
(OMC). Essa tendência, que não se enfraqueceu locus de atuação estatal onde elementos sociais de
durante o século passado, reflete a permanência interação, reconhecimento, respeito recíproco e
de valores compactuados no seio do sistema7 . cooperação, entre outros, parecem sustentar a
Não se pode querer tratar a miríade de instituições hipótese da existência de uma sociedade, sem que
criadas – e recriadas – no espaço internacional aqui se faça qualquer consideração sobre as
como um fenômeno de menor importância, uma características dessa sociedade.
“farsa” criada pelos estados para servir de verniz
Aliás, parte da problemática de comprovação
aos seus interesses de poder.
da existência de uma sociedade internacional
Os próprios regimes 8 e suas instituições provém da ausência de consenso sobre o próprio
específicas, embora não tenham sido objeto de conceito de sociedade (BUZAN, 2004, p. 66). É
muita análise na Escola Inglesa, também de notar-se que essa indefinição tem origem no
simbolizam a existência de um determinado campo das Ciências Sociais que mais autoridade
consenso, ainda que frágil, sobre a necessidade tem para tratar do tema: o da Sociologia. Há autores
de discussão de problemas globais e de espaços contemporâneos da área que levantam reservas,
de debate e adoção de medidas para lidar com inclusive, quanto à possibilidade de manter a
eles. Entre os regimes cuja importância tem se “sociedade” como a principal unidade de análise
tornado indiscutível pode-se citar o de comércio, da Sociologia, como o faz Anthony Giddens
o de meio ambiente e o de direitos humanos. (2009, p. 388). Ora, se o conceito é problemático
Cumpre não colocar em um mesmo patamar de na Sociologia, o que dizer de sua utilização
análise, no entanto, as noções de instituição da indiscriminada na disciplina de RI? A abordagem
Escola Inglesa e as de instituição e regimes dos institucional da Escola Inglesa, mesmo que se
liberais-institucionalistas, visto que são distintas adicionem a ela contribuições de outras correntes,
conceitualmente, como dito acima. Mas essa deixa em aberto a questão de saber se a existência
precaução não implica negar o potencial de de instituições é um elemento suficiente para
cooperação estatal inerente a quaisquer dessas comprovar a existência de uma sociedade.
abordagens.
A abordagem institucional deve servir como
É possível afirmar, nesse sentido, que os um dos pilares argumentativos dessa discussão.
estados têm participado de um longo processo O conceito de sociedade, sobretudo o de sociedade
de aproximação mútua por meio de instituições – internacional, por sua complexidade inerente, deve
seja em que sentido pretenda-se utilizar o termo. agregar mais argumentos que lhe dêem
Em alguma medida, essa tendência aponta sim sustentação analítica. Assim, cumpriria abordar
para a existência de algo mais do que uma outros possíveis aspectos constituintes e sua
interação sistêmica, baseada no cálculo político e existência empírica, sobretudo a relação entre
de poder, entre os estados, como querem realistas sociedade e Direito, o papel da interação entre os
atores, a problemática da identidade, a discussão
7 Continuamos, por enquanto, utilizando a palavra acerca da identificação de valores etc. Alguns
“sistema”, em vez de “sociedade”, visto que o objetivo do desses pontos serão tratados em seguida, ainda
artigo é justamente indagar até que ponto é possível afirmar que de maneira breve, em razão do espaço. Uma
a existência da última. questão mais problemática referente ao tema é a
8 Adota-se aqui a definição clássica de regimes de Stephen discussão sobre a analogia entre Estado e
Krasner, segundo a qual são “princípios, normas, regras e indivíduo: afinal, o que significa conceitualmente
processos decisórios em torno dos quais as expectativas afirmar que estados formam sociedades, se estas,
de cada ator convergem dentro de uma determinada área por definição, são constituídas por indivíduos
chave” (KRASNER, 1995, p. 2; tradução de minha (ROBERSON, 1998). Esse tópico será levantado
responsabilidade).
nas conclusões.
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que o contrário é verdadeiro, ou seja, que os atores Internacional que se tem comumente uma visão
internacionais, sobretudo os estados, são grandes segundo a qual ele nunca é respeitado. Essa noção
respeitadores do Direito. Jackson defende, no decorre, entretanto, do fato de que normalmente
entanto, que os estadistas, em suas ações, estão ressaltam-se as violações ao DIP, e não seu
submetidos a diferentes dilemas de natureza ética cumprimento. Traçando um paralelo com o que
e moral, que necessitam justificá-las para diferen- ocorre internamente, não é porque se vê na
tes públicos, que devem sopesar interesses varia- televisão, todos os dias, algum crime bárbaro
dos. O mundo teórico, nesse sentido, difere do sendo noticiado que se desacredita a existência
mundo prático: neste último raramente encon- do Direito nacional. Por outro lado, a suposta
tram-se homens que agem de forma mecanicista, ausência de sanção no DIP é o principal argumento
pautados por uma lógica de poder que menospreza que se utiliza para desacreditá-lo. Aqui se cometem
quaisquer considerações de natureza moral. Isso três equívocos: primeiro, associa-se a idéia de
se reflete nos discursos, nas justificações, nas Direito com a existência de uma sanção; segundo,
discussões sobre o que é justo ou injusto, legítimo iguala-se Direito estatal com o fenômeno do
ou ilegítimo nas relações internacionais. Michael Direito em sua totalidade, como se o Direito
Walzer (2003) defende argumento semelhante, tivesse de ser, necessariamente, Direito estatal;
como veremos na seção IV. terceiro, menospreza-se as sanções existentes no
DIP, que são de natureza mais fluída e menos
Os estudos acadêmicos do campo jurídico,
efetiva, mas cuja existência não pode ser negada.
por sua vez, tendem a enfatizar o papel do Direito
Internacional na vida internacional. Aqui vale a O argumento dos defensores do DIP, em
pena relembrar, antes de mais nada, algumas suma, é o de que, comparado ao Direito interno,
diferenças essenciais entre Direito interno e aquele possui deficiências claras; no entanto, a
internacional. O primeiro é centralizado, vida internacional demonstra-o, ele é
hierarquizado, com um aparato estatal no seu continuamente respeitado. Quando violado, tendo
ápice. Esse aparato é o legítimo detentor do Direito em vista que as conseqüências de sua violação
de punir e possui meios materiais de fazê-lo caso normalmente são mais graves do que as do Direito
as regras que dele emanam sejam descumpridas. interno, tem-se uma percepção superdimensionada
Não existem, salvo em caso de revoluções sociais, do seu desrespeito12 . Poder-se-ia argumentar que
dúvidas quanto à sua legitimidade e sua autoridade os estados cumprem o Direito quando não está
para atuar em nome da sociedade que lhe dá em jogo seu interesse nacional: uma vez presente,
sustentação. No âmbito internacional, ao o DIP tende a ser violado. Pergunta-se, em
contrário, não existe hierarquia entre as diversas resposta, se o mesmo não ocorre com os
entidades políticas que compõem a SI. O resultado indivíduos no Direito interno, quando cometem
é que o Direito é construído sobre bases crimes. Apesar de suas imperfeições, o DIP
cooperativas, sem a instituição de um poder desempenha sim um papel no cenário
central, hierarquicamente superior aos estados. internacional: a regra é que suas normas são
Essa situação fática tem reflexos na natureza das habitualmente cumpridas13 . A vida internacional
sanções do Direito Internacional, que não podem se desenrola no seio de aparatos normativos, cuja
ser aplicadas da maneira coercitiva como se dá extensão é maior do que o que contem o restrito
no Direito interno. Organizações como a
Organização das Nações Unidas não são entidades
supranacionais que governam as relações
interestatais; não há uma legislação (ONU) ou uma 12 Compara-se, por exemplo, o impacto de uma notícia
constituição que estabeleçam de maneira de homicídio com a de início de uma guerra de agressão.
sistemática quais são as normas da sociedade 13 A afirmação é de Bull (2002, p. 131): “Se fosse possível
internacional; não há tribunais legitimados a julgar ou significativo conduzir um estudo quantitativo da
quaisquer conflitos, sem o consentimento prévio obediência às regras do Direito Internacional, pode-se
dos estados. esperar mostrar que a maioria dos estados obedecem às
regras do Direito Internacional na maior parte do tempo”.
Michael Akenhurst (1985), no capítulo (N.R.). O autor não está, ao contrário do que fazem os
introdutório de sua obra, faz considerações juristas, enaltecendo o DIP, mas chamando a atenção para
esclarecedoras acerca de tais aspectos. É em o cumprimento reiterado de normas que regulam os
aspectos mais cotidianos da vida internacional.
razão dessas características peculiares do Direito
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Caso se aceite o argumento segundo o qual a consolidado a sociedade, passa a ser elemento
existência desses aparatos normativos são a constitutivo sem o qual aquela não pode existir.
comprovação mais cabal da existência de
Tal idéia pode ser encontrada em vários autores
sociedades, avança-se mais um passo no
da EI e teóricos da SI, mas na maioria das vezes
reconhecimento da presença de uma sociedade
de modo implícito nos argumentos centrais.
de cunho internacional. Juristas e teóricos da SI
Hedley Bull não tratou do tema em profundidade.
mutuamente, embora nem sempre de maneira
Na distinção que estabeleceu entre sistema
consciente, apóiam-se na defesa desse argumento.
internacional, sociedade internacional e sociedade
Instituições e normas, além do mais, também são
mundial (BULL, 2002, p. 39), não traça
termos que parecem indissociáveis, sendo que as
considerações sobre os mecanismos de transição
primeiras são constituídas pelas segundas, de
de um tipo a outro. A visão de Bull, ao contrário,
modo mais ou menos intenso a depender do caso
parece bem estática: os três tipos são maneiras
concreto. A própria guerra, que Bull considera
de observar-se a “realidade internacional”, são os
uma instituição da SI, não está desprovida de
elementos que compõem essa realidade e que estão
normas que a regulam e que, paradoxalmente,
em constante interação. O sistema internacional
transformam-na em um acontecimento de
existe quando há contato entre os atores (estados,
natureza também social. As instituições, por sua
no caso, entendidos como comunidades políticas
vez, também são fonte de produção normativa.
soberanas), mas esses não estão ligados por uma
Bem ponderados, os argumentos dessa seção e consciência de pertencerem a uma sociedade –
da procedente lançam uma luz diferente sobre a não há valores compartilhados entre eles. A
realidade internacional. Instituições, normas, valores interação é meramente estratégica: um leva a
parecem jogar um importante papel na vida dos reação do outro em consideração na hora da
estados e na sua interação recíproca. Algo que se tomada de decisões. Já a sociedade internacional
assemelha a uma sociedade desponta no horizonte. existe quando um grupo de estados, conscientes
Mas a existência de instituições e de normas pode da existência de interesses e valores em comum,
ser considerada, por si só, como elemento consideram-se ligados, nas suas relações, por um
suficiente para comprovar sua realidade concreta? determinado número de regras e instituições, que
Nas seções seguintes, faz-se uma breve análise de eles constroem em conjunto. A sociedade mundial
mais dois possíveis pilares de sustentação de um ou global é aquela formada pelos indivíduos como
conceito como o de SI. O primeiro nos remete às integrantes da humanidade.
noções de interação e identidade; o segundo é uma
Embora dê pistas sobre os elementos
tentativa de se ingressar na intersubjetividade do
constituintes de uma SI, Bull não explica como
sistema, com a ajuda, sobretudo, de lições
um sistema pode transformar-se em sociedade
provindas da Sociologia.
ou sobre quais mecanismos impulsionam o
IV. INTERAÇÃO, EXPECTATIVAS E IDENTI- nascimento desta. Adam Watson (2004), ao
DADE estudar diferentes tipos de sociedade internacional
que surgiram ao longo da história e em diferentes
Esta seção enfatiza mais o processo de
contextos geográficos, acrescenta um elemento
construção da sociedade internacional, segundo
dinâmico na imagem construída por seu colega
alguns autores, do que os elementos que a
de academia. A idéia de interação surge com maior
constituem. Não obstante, cumpre notar que
ênfase na sua obra. O envolvimento dos atores,
características desse processo transformam-se,
na visão de Watson, à medida que se fortalece,
com o tempo, em elementos constitutivos
gera uma pressão tendente à aproximação, à
permanentes. Para que haja sociedade, por
formação de alianças, à geração de ordem. Nesse
exemplo, é necessária a existência de pelo menos
ponto, o sistema transitaria para uma sociedade
dois atores e seu contato regular. Não pode haver
(idem, p. 29).
sociedade de um só, obviamente. É a partir do
contato regular entre atores que se dará, ou não, O argumento dá ensejo a que se analisem
o surgimento de laços sociais mais profundos e, diversos aspectos da questão. Sem contato, sem
quem sabe, de sociedades. De modo que é interação, não há sociedade. Esse ponto é
relativamente fácil perceber que a interação inicial indiscutível. A interação estabelecida, no entanto,
–antes um processo – uma vez tendo se embora crie alguns “laços sociais”, pode não gerar
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internacional e sociedade global. Ao final do seu as sociedades modernas não se sustentam sobre
estudo, após as críticas que vai fazendo ao longo uma identidade comum homogênea22 , como as
da obra, Buzan reformula esse circulo que, na comunidades primitivas no passado. No seu
sua teoria, deve ser composto por sociedades interior, as divergências são múltiplas e de diversas
interestatais, sociedades transnacionais e naturezas: políticas, sociais, religiosas, étnicas,
sociedades inter-humanas. Em outras palavras, o culturais etc. A distinção entre comunidade e
indivíduo continua sendo tratado, assim como na sociedade não se sustentaria mais. Ora, se no
abordagem clássica da EI, como um elemento interior das sociedades nacionais observa-se esse
alheio ao conceito de SI. O que se discute aqui é fenômeno e ninguém põe em questão sua natureza
justamente sua possível inclusão num conceito de sociedade, por que fazê-lo com a sociedade
de sociedade internacional ampliado. internacional?
A pergunta é se é possível que o indivíduo, Voltando a interação, esta tenderia a gerar
que durante boa parte da história do Estado tem interdependência, pressão no sentido da
se identificado com este, poderia identificar-se cooperação, conseqüente construção de normas
com uma suposta sociedade internacional que e, no limite, à conformação de sociedades. Esse
transcende os limites de seu território nacional. processo dá-se em meio à repetição de
Se ao conceito de sociedade fizer-se a exigência comportamentos no tempo e no espaço, à rotina,
de agregar uma identidade compartilhada entre os em suma 23 . Uma vez estabelecida, produz
indivíduos, o analista depara-se com duas espécies expectativas de comportamento que são, na
de problemas. O primeiro é que, embora seja maioria das vezes, reproduzidas pelos atores. Essa
relativamente fácil verificar certa coesão identitária linguagem, de cunho eminentemente sociológico,
na história dos estados modernos, tal coesão não ajuda a compreender o que seja talvez a essência
é facilmente identificável entre indivíduos de de qualquer sociedade. Não há dúvida que o grau
diferentes nacionalidades. O segundo remete a uma de imprevisibilidade dos comportamentos na SI é
questão metodológica: que instrumentos utilizar maior do que nas sociedades nacionais, onde há
para investigar a existência de identidades maior coesão do grupo social, mas, nas palavras
societárias internacionais? Quanto mais de Luard, as diferenças entre os dois tipos de
abrangente a sociedade internacional de que se sociedade – nacional e internacional – são de grau,
está tratando, mais difícil torna-se verificar a não de gênero (idem).
existência de tais identidades. No caso, talvez fosse
As considerações acima remetem-nos ao
necessário adotar as visões de Buzan (idem) e de
caráter abstrato e de mais difícil análise no estudo
Watson (2004) de sociedades internacionais
da sociedade: o universo intersubjetivo dos atores
geográfica e temporalmente localizadas para
que a compõem. A crítica dirigida aos que
analisar-se, por exemplo, se existiria, hoje, uma
defendem os estudos sobre idéias, identidades e
identidade européia.
valores foca-se, na maior parte do tempo, nas
O aspecto da identidade é problemático e não dificuldades metodológicas para acessar-se esse
há espaço para aprofundá-lo. A questão central mundo subjetivo. De fato, analisar esses temas
seria, no entanto, se para que exista uma sociedade
é preciso haver, no seu interior, uma identidade
compartilhada. Essa pergunta, mais uma vez, 22 Essa é também a visão de Estevão de Rezende Mar-
transcende as fronteiras nacionais e leva-nos ao tins, para quem a identidade nacional não foi questionada
questionamento acerca da identidade na até o fim do século XX, quando se vê “desafiada pela
conformação da sociedade internacional. Uma ressurgência da identidade cultural operada pelos
maneira de responder à questão seria dizer que indivíduos e seus grupos, sem que tal coincida com o
tal sociedade não existe, tendo em vista a lealdade tamanho e com os objetivos do Estado” (MARTINS,
2007, p. 49).
que os indivíduos ainda mantêm para com seus
23 Na concepção de Anthony Giddens, é a repetição das
respectivos estados. Mas o tema é muito mais
complexo, e a obra de Stuart Hall (2005) lançou ações individuais que dá sustentação à estrutura social
(GIDDENS, 2009). Embora estivesse tratando de
um alerta para o caráter multifacetado das sociedades nacionais, nada impede que essa noção seja
identidades no contexto pós-moderno. Melhor aplicada nas relações internacionais, nas quais também se
seria admitir, como fez Evan Luard (1990), que formam rotinas que tendem a “consolidar-se” no tempo.
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não é o mesmo que contabilizar exércitos. Não inúmeros acontecimentos históricos nos quais,
obstante, a mera contabilidade material de pelas atitudes dos atores ou pelos seus discursos,
recursos bélicos não serve para explicar tudo o é possível identificar os contornos de uma
que ocorre no contexto internacional, como se a moralidade internacional. Seu livro é um desses
matéria ditasse o destino dos homens. Nesse trabalhos que põem em xeque as afirmações de
sentido, ficamos ao lado de Wendt. Apesar das que o mundo ideacional não pode ser acessado
dificuldades, a Sociologia e seus instrumentos pela pesquisa.
parecem mais uma vez de extrema relevância para
Walzer nega que exista algo como a política
a compreensão do que ocorre no nível
de poder pura e simples. Analisando o diálogo de
internacional. Na última seção, abordaremos
Melos24 , ocorrido num episódio da Guerra do
brevemente as análises de dois eminentes autores,
Peloponeso e famoso no campo das Relações
Michael Walzer e Evan Luard, estando o primeiro
Internacionais por enunciar, em termos claros, o
mais próximo às idéias da Escola Inglesa, e o
lado mais cru da teoria realista, o autor considera-
segundo mais atrelado aos instrumentos
o como uma criação literária. A crítica generalizada
metodológicos da Sociologia e da Teoria Social.
à postura ateniense é um indicativo da inexistência
V. ACEDENDO O UNIVERSO INTERSUB- de uma lei de poder, cuja necessidade não pode
JETIVO ser contrariada. Caso contrário, ninguém criticaria
os atenienses ou qualquer Estado que tenha agido
Tanto a seção anterior quanto a presente são
da mesma forma em outros períodos e contextos
tentativas de estudar um universo intersubjetivo
da história internacional. Os julgamentos
que, ainda que de difícil acesso, é importante para
realizados acerca das ações de estadistas e
a compreensão do que seja uma sociedade. O
soldados, embora não sejam sempre unânimes em
argumento permanece o mesmo: quais os pilares
um determinado sentido, apontam para limites do
que constituem o conceito de sociedade
que é permitido ou aceitável fazer e para o que é
internacional. A visão mais ampla possível do que
inaceitável no campo da ação internacional.
seja tal entidade deve integrar, contudo, elementos
materiais, de mais fácil comprovação empírica, Esses julgamentos repercutem na esfera da
como a existência de instituições formais, de guerra em dois sentidos: tanto questionam quando
normas e tratados, e elementos imateriais, cujos é possível realizar a guerra quanto quais são as
estudos revestem-se de dificuldades adicionais. normas a serem seguidas uma vez iniciado o
Os dois primeiros tópicos deste trabalho trataram conflito. Walzer afirma que, se houvesse, de fato,
dos primeiros elementos; os dois últimos voltam- a predominância de uma lógica de poder
se para os segundos. Mas todos devem ser vistos desatrelada de quaisquer preceitos morais
como subsídios para a sustentação do conceito. compartilhados, estadistas e soldados não
A discussão sobre identidades, valores comuns e precisariam mentir. O fato de contarem-se
idéias não é nova. O que não se tem feito com mentiras, de justificarem-se medidas e ações prova
muita freqüência, no entanto, é tentar analisar em que há uma noção do que seja correto, ainda que
que medida tais fatores, em conjunto, são capazes no meio de um embate armado. Se fôssemos
de gerar agregados mais amplos de interação todos meros realistas, isso seria, segundo Walzer,
humana, em outras palavras, em que medida o fim tanto da moral quanto da hipocrisia. Assim,
sustentam sociedades internacionais. “uma das coisas que a maioria de nós deseja,
A obra de Michael Walzer (2003) pretende,
entre outros objetivos, comprovar a existência de 24 Os atenienses, tentando obter a rendição da ilha de
um mundo moral nas relações internacionais, cujas Melos, teriam, a certa altura do diálogo, expressado a “lei”
premissas básicas são compartilhadas entre os da política de poder: “the standpoint of justice depends
atores – no caso específico, entre agentes do on the equality of power to compel and that in fact the
strong do what they have the power to do and the weak
Estado: líderes, diplomatas e soldados. O aspecto
accept what they must “. (BAYLIS, SMITH & OWENS,
mais ousado da obra, no entanto, é que analisa a 2008, p. 97). [“O posicionamento da justiça depende da
existência dessa moralidade no contexto mais igualdade de poder para compelir e isso tendo em vista
desprovido de sociabilidade possível, qual seja, que os fortes fazem o que têm poder para fazer e os fracos
na guerra. O autor, ao longo do texto, abordará aceitam aquilo que devem” (N.R.).]
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mesmo numa guerra, é agir ou parecer agir de abraçado em toda sua extensão o aporte dos
acordo com a moral” (idem, p. 32)25 . Atuamos sociólogos e tentado utilizar esses conhecimentos
todos dentro de “um mundo moral” (idem, p. 33), no estudo da sociedade internacional. Nesse
mesmo na guerra. Essa constatação seria uma último sentido, o livro de Luard possui um
indicação da existência da sociedade internacional. interesse peculiar, uma vez que os autores da
Escola Inglesa não costumam agregar elementos
Os julgamentos acerca das ações corretas ou
da Sociologia, ainda que seu conceito central seja,
incorretas, justas ou injustas, são realizados ao
paradoxalmente, o de sociedade internacional.
longo da história pelos atores mais diversos,
inclusive combatentes e não combatentes. A obra Luard parte do pressuposto de que as
de Walzer é riquíssima em exemplos de ações diferenças entre sociedade nacional e internacional
ocorridas no interior de conflitos em que é são diferenças de grau, não de gênero. A SI seria
possível identificar os dilemas morais de soldados mais descentralizada, com o poder disperso, mas
e comandantes e, por via de conseqüência, altamente concentrado nos estados; sem estrutura
comprovar que até mesmo na guerra o universo formal, sendo que as ligações entre indivíduos,
moral não é eliminado. Há exemplos de soldados divididos em nações, é mais difusa, tênue e
que deixaram de atirar em inimigos porque esses incerta; sem um sentido forte de solidariedade,
encontravam-se em situações engraçadas ou que ou seja, o sentido de pertencer a um determinado
lembravam demais contextos cotidianos, o que grupo, a ausência de crença em uma origem ou
teria gerado, na interpretação do autor, destino comuns; e sem consenso sobre
identificação muito forte entre inimigos em um legitimidade e sobre como tal sociedade deve ser
nível mais humano. O julgamento acerca de ações ordenada. Após ter feito uma revisão sobre o que
mais amplas, normalmente praticadas sob ordens os sociólogos27 entendem ser uma “sociedade”,
superiores, como o massacre de My Lai, na Guerra sua proposta é a de utilizar dez conceitos-chave
do Vietnã, perpetrado pelos americanos contra da Sociologia para compreender como funcionam
uma aldeia de civis, também gera debate e no âmbito da sociedade internacional. A pretensão
condenações morais quase unânimes. Esses aqui não é a de fazer uma resenha da obra do
acontecimentos tendem a gerar discussões de autor, mas tão somente mencionar os conceitos
âmbito institucional: a evolução do Direito que de alguma forma relacionam-se com aquela
Internacional da guerra está aí para comprová- característica intersubjetiva presente em uma
lo. O mesmo pode ser dito quanto aos tratados sociedade, e que servem para sustentar, também,
que proíbem a utilização de armas de determinada sua existência.
natureza, tratados que estabelecem direitos para
O conceito de “ideologia” é um dos que mais
prisioneiros, não combatentes etc. O argumento
chamou a atenção de Luard e perpassa
não é de que atrocidades não serão mais
praticamente toda sua obra. Ao fazer uma análise
cometidas. As condenações morais e os
histórica das diferentes sociedades internacionais
julgamentos realizados no âmbito internacional,
que existiram no tempo, o autor identifica
no entanto, comprovam a existência de uma
diferentes princípios segundo o contexto
determinada sociedade que compartilha valores.
histórico. Sociedades formaram-se sob ideologias
Deixando de lado o ambiente conflituoso da dinásticas, sob princípios de religião, sob a defesa
guerra, mas ainda no seio deste universo do princípio da soberania, do nacionalismo ou de
intersubjetivo, a obra de Evan Luard (1990) diferenças baseadas em credos políticos
destaca-se por ter, primeiro, trazido para o centro específicos. Não há como negar que a história
da análise a atuação de indivíduos, embora seu
foco permaneça centrado no Estado26 ; segundo,
internacional. Mesmo Luard, que inicia cada um dos seus
capítulos falando das ações de indivíduos na SI, termina
25 Em trecho ainda mais emblemático, afirma: “A por admitir a centralidade das ações dos estados.
comprovação mais nítida da estabilidade dos nossos valores 27 Entre outros, cita Comte, Spencer, Durkheim, Parsons,
ao longo do tempo é o caráter imutável das mentiras que Merton, Weber, Schultz e Touraine. Essa preocupação de
soldados e estadistas contam” (WALZER, 2003, p. 31). incorporar os aportes da Sociologia, infelizmente, não
26 Essa forma de tratar a matéria é recorrente nas obras dos vingou no âmbito da Escola Inglesa. Evan Luard não é
autores da EI: não se abandona o caráter estatal da sociedade considerado integrante desta última.
17
SOCIEDADE INTERNACIONAL: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO
das sociedades sofreu o influxo dessas ideologias. enriquecedora para o debate na disciplina de RI,
O importante, para Luard, é perceber como tais que tende a afastar a incidência desses fatores.
ideologias influenciam a ação dos atores. Para o Os pontos elencados servem-lhe para identificar
nosso propósito aqui, a ideologia é um elemento a existência, no passado e no presente, de
ideacional – cuja existência não pode ser negada sociedades internacionais. As relações que se
– que sustenta a ligação entre alguns estados em estabelecem entre os atores dão-se em um
determinados contextos e serve de subsídio para ambiente social onde as idéias, ideologias,
sustentar a hipótese da existência de sociedades percepções e expectativas têm um papel
internacionais. Evidentemente, o compartilha- explicativo relevante. Na SI, assim como na
mento de valores, por si só, não pode servir a sociedade interna, um processo de socialização
esse propósito. Como já se deve ter notado, a está em contínuo andamento: “There, as in other
esta altura do trabalho, a sociedade internacional societies, a process of socialization takes place.
não se sustenta sobre um único pilar: ela nasce Individuals, groups and states alike are slowly
na conjunção de inúmeros fatores, como a made aware of the demands of others within
existência de normas, instituições, interação, international society. They become conscious of
valores e outras mais que poderiam ser citadas. the practices and conventions governing
international behavior accepted among other
Luard analisa também os motivos da ação no
actors. They absorb, from the comments of
contexto de diferentes sociedades internacionais.
politicians, editorial writers, television
A crítica, embora implícita, é contra a idéia de
commentators and others within their own states,
que exista, por exemplo, um interesse nacional
ideas concerning the standards that should be
objetivamente identificável que os estados
applied in judgments of international behavior”28
utilizariam para pautar sua conduta. Os motivos
(MENDONÇA, 1990, p. 59).
da ação estão intimamente relacionados com as
crenças dos estados acerca do que constitui, no Nesta seção, o intuito foi o de abordar aspectos
caso concreto, seu interesse. Nesse sentido, os imateriais das relações que se dão no seio de
motivos podem ser de espécies variadas e, mais quaisquer sociedades. A dificuldade em analisá-
uma vez, dependem também da ideologia que los por meio da pesquisa não pode servir de
perpassa determinada sociedade. Algumas desculpa ou de justificativa para não levá-los em
prezaram territórios, outras riquezas materiais, consideração. Na medida em que tais “estruturas
outras ainda a glória na guerra. À medida que ideacionais” são compartilhadas entre atores, dá-
mudam as ideologias, os atores tendem a agir se um passo importante na direção de uma
em conformidade com a ideologia compartilhada “sociedade”. Repita-se: os valores compartilhados
ou dominante. Estas noções são típicas da constituem unicamente um dos pilares de qualquer
Sociologia: trata-se de uma maneira de visualizar sociedade. A história da Europa no século XX,
o poder de estruturas ideacionais sobre o nesse sentido, é emblemática: embora a quantidade
comportamento dos agentes. A sociedade de valores compartilhados fosse grande, os
internacional contemporânea, a título estados participaram de conflitos militares de
exemplificativo, age em conformidade com uma proporções inimagináveis até então, colocando em
ideologia tipicamente capitalista: a competição xeque a própria existência da sociedade. Essa
dá-se, de modo geral, em termos econômicos:
crescimento das economias nacionais, aumento
do Produto Interno Bruto (PIB), aumento do
fluxo de comércio, industrialização, entre outros. 28 “Lá, como em outras sociedades, ocorre um processo
de socialização. Indivíduos, grupos e estados estão
Luard estudará, ainda, a importância dos lentamente tornando-se conscientes das demandas de
papéis sociais, do status, do conflito, da autoridade outrem dentro da sociedade internacional. Eles tornam-se
e das normas nas sociedades internacionais. Os conscientes das práticas e convenções aceitas entre outros
conceitos provêm da Sociologia e são analisados atores, as quais governam o comportamento internacional.
Eles absorvem, dos comentários de políticos, escritores
em sua importância tanto para a formação das
de editoriais, comentadores televisivos e outros dentro de
sociedades quanto pela influência que exercem seus próprios esta dos, ideias a respeito dos padrões que
sobre a ação de estados e indivíduos. A deveriam ser aplicados em julgamentos de comportamento
perspectiva do autor é extremamente internacional” (N.R.).
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constatação impulsiona-nos a verificar se o políticos dos outros estados. Ou, o que seria ainda
conceito de sociedade internacional da Escola pior, como se o Estado fosse analogicamente
Inglesa, por exemplo, com seu foco no Estado, representado como um indivíduo que, juntamente
não necessitaria de alterações. Mas esse é outro com outros “indivíduos”, formasse uma sociedade
problema. semelhante às sociedades internas.
VI. CONCLUSÕES Essa maneira de abordar o assunto decorre,
de alguma forma, da resistência encontrada entre
Após as considerações acima, é razoável
os teóricos da EI em agregar em suas análises os
supor que a pergunta da introdução pode ser
aportes da Sociologia. Na obra de Emile Durkheim
respondida de maneira afirmativa. O conceito de
(2010), por exemplo, encontramos noções que
sociedade internacional parece corresponder a
poderiam enriquecer o conceito de SI. Podemos
algo cuja existência, no mundo empírico, pode
citar melo menos duas, que têm relação direta com
ser atestada pela observação do que ocorre no
o exposto nas seções III e IV deste artigo,
âmbito internacional. Os pilares dessa sociedade
respectivamente. Em primeiro lugar, Durkheim
são, entre outros que se poderia mencionar, a
utiliza a idéia de solidariedade para identificar a
interação que gera padrões de comportamento
própria essência do que configura uma sociedade.
reproduzidos pelos a tores, a formação de
Trata-se do laço abstrato, ideacional, difuso no
instituições, o reconhecimento da existência de
inconsciente coletivo, que promove a coesão e o
normas e o compartilhamento de valores e de
funcionamento daquela. Por ser algo não muito
uma moralidade mínima entre os estados. A
palpável em termos metodológicos, o autor afirma
percepção da existência, em conjunto, desses
que é por meio do Direito que essa solidariedade
fatores é mais do que suficiente para sustentar o
manifesta-se30 . Em suma, o Direito seria o dado
conceito.
material – empiricamente verificável – que se
Isso não significa, no entanto, que tal conceito assenta no sentimento de solidariedade e que o
não mereça ser problematizado. Os autores que o representa, por assim dizer. Sob essa perspectiva,
criticam29 chamam atenção para algumas as considerações feitas na seção III adquirem
possíveis deficiências. Alguns, como Yale peculiar relevância.
Ferguson, atacam o caráter eminentemente estatal
Durkheim traça uma distinção entre
do mesmo, que não serve para explicar as
solidariedade mecânica e solidariedade orgânica,
complexidades de um sistema no qual cada vez
onde a primeira corresponde à coesão existente
mais indivíduos, grupos, organizações não
nas sociedades primitivas, com predominância do
governamentais atuam ao lado ou a despeito do
Direito de natureza repressiva, e a segunda à
Estado. Outros, como Shaw, questionam se é
coesão existente nas sociedades modernas, nas
possível falar de sociedade de estados quando
quais se multiplicam as normas jurídicas de
comumente uma sociedade é entendida como
natureza social. Neste último caso, a divisão do
composta por indivíduos. Essa crítica merece
trabalho social está consolidada. Uma vez que se
uma análise séria: a SI parece representar, muitas
constata, na sociedade internacional
vezes, uma sociedade de estadistas, de líderes
contemporânea, tanto o declínio das guerras
políticos, ou, nas palavras de Barry Jones, uma
interestatais quanto a multiplicação dos tratados
“sociedade diplomática”.
e normas jurídicas das mais diferentes naturezas,
De fato, na sociedade internacional de Bull, há grande possibilidade de, fazendo-se uma
composta por estados – que são, na sua analogia com os conceitos do autor, afirmar que
expressão, comunidades políticas – as no âmbito internacional também está
comunidades no interior dessas entidades estatais,
seus indivíduos, parecem não formar nenhum tipo 30 “A solidariedade social, porém, é um fenômeno
de laço social com os indivíduos de outros
totalmente moral, que, por si, não se presta à observação,
estados. É como se só os corpos políticos dos nem, sobretudo, à medida. Para proceder tanto a essa
estados compartilhassem valores com os corpos classificação quanto a essa comparação, é necessário,
portanto, substituir o fato interno que nos escapa por um
fato externo que o simbolize e estudar o primeiro através
29 Os autores citados no parágrafo constam todos da do segundo. Esse símbolo visível é o Direito”
obra organizada por Roberson (1998). (DURKHEIM, 2010, p. 31).
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SOCIEDADE INTERNACIONAL: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO
consolidando-se uma sociedade de natureza mais sociedade internacional de maneira geral, salvo
orgânica 31 . A analogia, contudo, não pode ser algumas exceções. Dentro da disciplina de
adotada de forma tão superficial e mereceria Relações Internacionais, o tema tem merecido
análises e debates mais aprofundados. destaque crescente, sobretudo a partir do final
dos anos 1980. Aponta-se para o papel crescente
Em segundo lugar, o conceito de densidade
desempenhado por atores não estatais:
dinâmica (idem, p. 252) também oferece
multinacionais, empresas, movimentos sociais,
interessantes insights que poderiam servir à
organizações não governamentais, lobbies,
abordagem do tema no âmbito internacional.
indivíduos, entre outros. Muitas vezes afirma-se
Durkheim acredita que a divisão do trabalho social
que, por sua preocupação com assuntos de
e, por via de conseqüência, o surgimento de
interesse global – e não meramente de interesses
sociedades mais orgânicas só pode ocorrer quando
confinados ao espaço geográfico estatal – como
o número de interações entre os indivíduos
meio ambiente e Direitos Humanos, alguns desses
multiplica-se em um espaço geográfico
movimentos representam o surgimento de uma
determinado. Essa idéia remete-nos às discussões
verdadeira sociedade civil internacional, que
da seção IV. De fato, os teóricos clássicos da
estaria a desafiar a proeminência do Estado.
Escola Inglesa, vinculados como estão à natureza
estatal de seu conceito de sociedade, Não há como negar que esses elementos têm
menosprezaram as interações que ocorrem no adquirido maior relevância, sobretudo após o fim
nível dos indivíduos pertencentes a estados da Guerra Fria. O problema, no entanto, é de
diferentes. Se se puder comprovar, estabelecer-se em que medida essa ascensão da
empiricamente, que a densidade dinâmica entre sociedade civil global põe em xeque a estrutura
indivíduos de diferentes nacionalidades têm Estado centrada da sociedade internacional. Aqui
aumentado de modo consistente, torna-se a disputa é acirrada. Por um lado, autores como
possível transitar de um conceito eminentemente James Rosenau (1990, p. 41) defendem que não
estatal de SI para uma noção mais social do se deveria estabelecer uma hierarquia de
conceito. Não custa lembrar, mais uma vez, que autoridade nesse mundo “bifurcado”33 . Por outro,
a idéia de sociedade refere-se, originalmente, às autores como Robert Jackson (2000), apesar de
relações entre indivíduos. Não acreditamos, reconhecerem o papel crescente desses atores,
todavia, que isso se possa fazer com relação à continuam a afirmar a preponderância do elemento
sociedade internacional global, dada a abrangência estatal: “This argument does correctly draw our
do objeto. Mas o conceito certamente serviria para attention to transnational networks which are
o estudo da configuração de sociedades indeed expanding at a rapid rate and do now
internacionais geograficamente delimitadas32 . constitute a important feature of international
Nesse sentido, a Europa configuraria um bom society. And it is undoubtedly the case that NGOs
estudo de caso. and sovereign states reciprocally “benefit from
each other” presence. It is also the case that there
Não se está alegando aqui que a disciplina de
are “networks of knowledge and action”
RI tem menosprezado o papel de indivíduos e
constructed by “decentered, local actors, that
forças sociais no novo cenário internacional. Essa
cross” international boundaries with some
ausência dá-se, isso sim, no âmbito da Escola
regularity and frequency and without too much
Inglesa e entre os estudiosos do conceito de
difficulty. But any claim that a “global civil
society”, consisting of such actors and networks,
is displacing global international society based on
31 É necessário recordar que essa sociedade orgânica, na
qual impera a divisão do trabalho social, é considerada
por Durkheim como mais resistente do que as sociedades 33 Na concepção desse autor, o mundo teria se bifurcado:
mecânicas. Isso porque a divisão, ao atribuir funções
por um lado, aponta-se para a manutenção do mundo
específicas aos diversos órgãos sociais, implica uma maior
estado-centrado, cujos atores mais importantes continuam
interdependência entre eles, com a conseqüência de a
sendo as entidades estatais; por outro lado, há a ascensão
eliminação ou o enfraquecimento de uma função gerar
de um mundo multi-centrado , composto por diversas
prejuízos em todo o organismo social.
categorias de atores não estatais que não se submetem,
32 Buzan (2004, p. 208) critica veementemente a Escola necessariamente, à autoridade do Estado. A noção de
Inglesa por sua rejeição dos aspectos regionais da SI. “turbulência” nasceria da interação entre essas duas esferas.
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sovereign states seriously misconstrues the “poder” com poder “material”, o que é uma
character of international society. It is hugely postura sujeita a críticas. Seja como for, percebe-
misleading to claim that NGOs and sovereign states se certa dificuldade dos teóricos da SI em agregar,
“coexist” because that implies an equality between de maneira consistente e sistemática, o indivíduo
both parties that does not exist”34 (idem, p. 107). e as forças sociais ao conceito de sociedade
internacional. Viu-se, em seção anterior, como
A posição de Jackson pode parecer
Buzan, apesar de traçar distinções importantes
conservadora, mas já constitui um avanço dentro
entre sociedade internacional e sociedade
do referencial teórico da Escola Inglesa, por
interestatal, reservou um espaço distinto para a
exemplo, visto que inclui os atores não estatais
atuação dos indivíduos, ou, nas palavras de
dentro do conceito de sociedade internacional35 .
Rosenau, para o mundo “multi-centrado”. A
O fato incontornável é que não se conhece um
relutância em agregar esses fatores ao conceito
critério capaz de medir o poder desses dois
causa estranheza, uma vez que são justamente
mundos um em face do outro. Há indícios de que
indivíduos, grupos e forças sociais que
a razão assiste a Jackson, mas tão somente
constituem, na teoria, uma sociedade.
porque as capacidades materiais dos estados são
visivelmente superiores às desses “novos” atores. Outra espécie de crítica feita à tradição inglesa
No entanto, dizer isso significaria equalizar é direcionada à ausência de metodologia e de
levantamentos empíricos no trato do conceito
(BELLAMY, 2009). Percebe-se certa “fluidez”
34 “Esse argumento não atrai, corretamente, a nossa
conceitual que não corresponde às necessidades
atenção para a s redes transnacionais que estão, de fato,
da teoria. O conceito de sociedade internacional,
expandindo-se a um ritmo rápido, e que agora constituem por exemplo, não possui indicadores precisos,
uma característica importante da sociedade internacional. sendo que isso implica a impossibilidade de
E é indubitavelmente o caso de que os NGOs e os estados verificar sua solidez no mundo empírico. Neste
soberanos ‘beneficiam-se ’ reciprocamente da presença artigo agrupamos diferentes noções ou
‘um do outro ’. Também é o caso de que há ‘redes de argumentos para dar-lhe sustentação, mas é
conhecimento e ação’ construídas por ‘atores locais e
descentralizados que cruzam ’ limites internacionais com
possível que a constatação da existência de uma
alguma regularidade e frequência, e sem muita dificuldade. SI verdadeiramente coesa dependa da verificação
Mas qualquer afirmação de que a ‘sociedade global civil ’, de dados de natureza diversa, buscados no nível
consistindo de tais atores e redes, está deslocando a da interação de indivíduos de sociedades nacionais
sociedade internacion al global baseada em estados distintas.
soberanos mal interpreta seriamente o caráter da sociedade
internacional. É tremendamente enganoso afirmar que as Em outras palavras, o conceito parece merecer
NGOs e os estados soberanos ‘coexistem’, porque isso ampliação: as forças sociais e os indivíduos devem
implica uma igualdade que não existe entre ambas as ser abarcados por ele, ainda que se torne
partes” (N.R.). necessário uma redefinição rigorosa e sujeita às
35 Afirma, em outro trecho, que: “International society discussões da academia. Os aportes da Sociologia,
also consists of international organizations (IGOs), non- por outro lado, fazem-se necessários, uma vez
governmental organizations (NGOs) and transnational que o cenário internacional também corresponde
networks, and individual humans beings seen as composing
a world society” (JACKSON , 2 000, p. 105). [“A
a um sistema social. Caso não se discutam essas
sociedade internacional também consiste de organizações modificações, a sociedade internacional corre o
internacionais (OIGs), organizações não-governamentais risco de continuar sendo encarada seja como um
(ONGs) e redes transnacionais, e seres humanos individuais elemento discursivo, seja como a expressão de
vistos como compondo uma sociedade mundial” (N.R.).] um sonho a realizar-se em um futuro distante.
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SOCIEDADE INTERNACIONAL: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO
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