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ARTIGOS REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 20, Nº 43: 5-22 OUT.

2012

SOCIEDADE INTERNACIONAL:
A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO

Bruno Macedo Mendonça

RESUMO

O artigo discute os argumentos da Escola Inglesa de Relações Internacionais e de outros autores acerca
da existência de uma suposta sociedade internacional. Objetiva-se expor quais os pilares teóricos que
sustentariam a utilização do conceito, criticando, paralelamente, as deficiências da abordagem inglesa e
a dissociação de seus aportes daqueles que poderiam ter sido trazidos pela disciplina da Sociologia. O
método é analítico-discursivo, com a revisão de autores relevantes que se debruçaram sobre o tema.
Argumenta-se que existem subsídios suficientes para a sustentação teórica do conceito, os quais serão
analisados por tópicos. Os aportes da disciplina de Relações Internacionais desaguam em um conceito de
sociedade internacional exageradamente focado no caráter estatal desta, o que não condiz com a realidade
de um mundo cada vez mais complexo nas suas interações em todos os níveis, tanto estatal quanto individual.
É necessário que a academia discuta uma concepção de sociedade mais vinculada aos valores e instrumentos
da abordagem sociológica. Propõe-se, ao final do artigo, uma ampliação conceitual que possa agregar o
elemento individual e, conseqüentemente, as contribuições da teoria social.
PALAVRAS-CHAVE: Sociedade Internacional; Escola Inglesa de Relações Internacionais; instituições
internacionais.

I. INTRODUÇÃO1 ou das Relações Internacionais: bastaram-lhes


algumas referências vagas para estabelecer o
Evan Luard (1990), nas considerações iniciais
conceito na disciplina. Esta, por sua vez, aceitou
de sua obra, afirma que a primeira questão à qual
a contribuição sem muito alarde, embora com
se deve dar atenção no estudo da “sociedade
enormes resistências quanto à sua
internacional” (SI) é a de saber se tal sociedade
operacionalidade e com uma impressão de que
de fato existe. A indagação essencial desse autor é
constituía um tipo ideal altamente imbuído de
o que consubstancia o objeto do presente artigo.
conteúdo normativo. Seja como for, a expressão
Embora a expressão faça parte do vocabulário
“ pegou”, ao menos no nível do discurso.
comum dos teóricos das Relações Internacionais
Raramente se encontra um livro que trate de
(RI), sobretudo pela influência da Escola Inglesa
fenômenos internacionais, sem que se faça
(EI), a quem se atribui sua concepção original,
referência gratuita a tal sociedade, como se
nunca foi devidamente problematizada, a não ser
constituísse um dado óbvio da realidade.
por poucos atores, como Hedley Bull, que pode
ser considerado como seu criador. A Sociologia, por sua vez, nunca teve interesse
em tratar dessa suposta sociedade internacional.
Era de esperar-se, por exemplo, tendo em vista
Sua preocupação central sempre foi a de estudar
que o conceito envolve a noção de sociedade, que
as sociedades internas, as sociedades nacionais.
os aportes da Sociologia fossem trazidos para o
O assunto ficou relegado, em um primeiro
centro da análise, mas tal não se deu. Os
momento, às análises dos cientistas políticos, o
formuladores do conceito estavam atrelados às
que implicou a eqüalização, altamente perigosa,
áreas da Filosofia, da História, da Ciência Política
do Estado com a sociedade, como se aquele
correspondesse metricamente a esta; e, em um
1 Gostaríamos de agradecer aos pareceristas anônimos da segundo momento, aos teóricos de Relações
Revista de Sociologia e Política por sua contribuição ao Internacionais que, por assim dizer, tomaram para
presente artigo. si a responsabilidade de tratar de tudo que se

Recebido em 18 de dezembro de 2010. Rev. Sociol. Polít., Curitiba, v. 20, n. 43, p. 5-22, out. 2012
Aprovado em 11 de abril de 2011.
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SOCIEDADE INTERNACIONAL: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO

revestisse do caráter de “internacional”. Uma das plena ciência de que tais considerações configuram
conseqüências dessa atitude foi o estabelecimento um ensaio inicial, mas o objetivo, no longo prazo,
de uma delimitação artificial entre as disciplinas é trazer para o campo das RI as descobertas e
que estudavam o “ interno” e aquelas que contribuições da Sociologia, o que servirá, sem
estudariam, a partir de então, o externo. O conceito sombra de dúvida, à evolução qualitativa daquela
de sociedade internacional, nesse sentido, nasce disciplina.
afastado de suas origens sociológicas e das
II. INSTITUIÇÕES E SOCIEDADE
análises de sociólogos.
É inevitável que a análise inicie-se pela obra
A história do surgimento, divisão, multiplicação
de Hedley Bull (2002), que deu, por assim dizer,
e morte das disciplinas em Ciências Sociais ainda
o pontapé inicial na discussão acerca do conceito
está por ser contada. Tais considerações servem
de sociedade internacional. Sua influência permeia
para ilustrar algumas peculiaridades inerentes a
praticamente todas as obras posteriores dos
essa história no campo das Relações
integrantes da Escola Inglesa de Relações
Internacionais. Em termos bem caricaturais, é
Internacionais e também de autores que trataram
como se as coisas tivessem ocorrido da seguinte
do tema sem pertencerem a ela. Cumpre aqui
forma: quando a Ciência Política olhou para fora
delinear, por um lado, os argumentos de Bull no
do Estado, virou relações internacionais. No
que se refere aos elementos que dão sustentação
entanto, “esqueceu” o indivíduo dentro do Estado.
à existência de uma sociedade e, por outro lado,
Assim também fez a Sociologia, que geralmente
o papel das instituições para a perpetuação dessa
não ultrapassou os limites postos pelas fronteiras
sociedade no tempo.
estatais. Ocorre que o cenário internacional
configura, também, um sistema social, composto “Sociedade” e “ordem” são conceitos interliga-
por indivíduos, mesmo que os realistas insistam dos na obra de Bull. “Ordem” significa padrão,
em negá-lo, com sua ênfase em interações repetição de comportamentos, regularidades,
mecânicas, pautadas por uma lógica de poder. estando essa definição desvinculada da noção de
lei como instrumento formal regulatório. É dizer
A Escola Inglesa, ao “criar” o conceito de
que pode haver ordem mesmo na ausência de leis
sociedade internacional, abriu uma brecha para
ou de aparatos institucionais formais. A norma
explorar as interfaces entre interno e externo, entre
não faz necessariamente parte da definição de
estatal e individual, entre Estado e sociedade, entre
ordem. A ordem que se estabelece de modo quase
política e Sociologia. Ao aprofundar-se nos estudos
natural, como decorrência de regularidades
da EI, no entanto, percebe-se que tal espaço não
comportamentais dos atores, tem por objetivo
foi devidamente explorado, tendo em vista a ênfase
atingir certos resultados, como a proteção da vida
estatal do conceito na Escola Inglesa. Ainda assim,
e da propriedade e a exigência de cumprimento
ao utilizar-se a expressão “sociedade”, está-se no
dos contratos. Esses seriam os objetivos, na visão
limiar do discurso entre sociedade e Estado, nas
do autor, elementares de toda e qualquer
interfaces entre as disciplinas de Ciência Política,
sociedade. Nas palavras do próprio Bull, “order
Sociologia e Relações Internacionais. Isso
is a pattern of behavior that sustain the elementary
representa um desafio para os teóricos de todas
or primary goals of social life”2 (idem, p. 51).
essas áreas, que de algum modo necessitam ter a
mente aberta para discussões provenientes das Posteriormente o autor indicará quais são os
outras áreas acadêmicas. objetivos elementares da sociedade internacional3,
mas o que importa notar, para os fins deste artigo,
O propósito deste artigo é, como se disse,
é a ligação já mencionada entre ordem e sociedade.
responder à indagação de Luard. Para tanto, é
necessário revisitar, de modo crítico, os 2 “Ordem é um padrão de comportamento que sustenta
argumentos gerais dos teóricos – tanto da Escola
os objetivos primários ou elementares da vida social” (nota
Inglesa quanto dos que se interessam pelo tema do revisor).
sem pertencerem à ela – no que se refere aos 3 São eles, em resumo: i) a preservação do sistema e da
elementos comprobatórios da existência de uma
sociedade de Estados; ii) a manutenção da independência
sociedade desse tipo. Alguns aportes da Sociologia individual dos Estados; iii) a manutenção da paz; iv) a
serão mencionados, ainda que de maneira limitação da violência; v) o respeito aos contratos e (vi) o
embrionária, na última seção do texto. Tem-se respeito pela propriedade.

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Onde houver ordem, no sentido apresentado por manutenção da ordem e na perpetuação da


Bull, haverá sociedade. Essa visão deságua sociedade internacional na Europa. Pode-se inferir
logicamente no reconhecimento da existência de daí que a ligação entre sociedades e instituições é
uma sociedade de estados ou sociedade muito forte. Estas últimas representam um elemento
internacional, uma vez que é possível identificar que “conecta” os atores entre si, colocando-os sob
inúmeros padrões de comportamento, de a esfera de pertencimento de uma determinada
consensos e práticas comuns na história das “comunidade” de valores, criando um sentido de
Relações Internacionais. Essas regularidades obrigação para com os demais membros desta
comportamentais provêem um tipo de ordem comunidade. Segundo Tim Dunne: “The source
(logo, um tipo de sociedade) no cenário of the obligation is the sense of belonging, being a
internacional, ainda que não corresponda, sovereign member, being bound by the rules. Herein
analogicamente, às ordens internas dos estados. lies the essence of international society. It exists in
A diferença reside basicamente na existência de the activities of the state leaders, and is reproduced
uma hierarquia nas ordens internas, onde o topo in the treaties they sign, friendships they form,
é ocupado pelo aparato estatal. Como na sociedade customs they observe, and laws they comply
internacional não se reconhece uma hierarquia, with”6 (DUNNE, 1998, p. 98).
um centro de autoridade, Bull houve por bem
Essa visão difere daquela defendida pela
denominar tal sociedade de “anárquica”4.
corrente liberal-institucionalista no âmbito das
Uma vez estabelecida a premissa de que existe teorias de Relações Internacionais, cujo maior
uma sociedade internacional, Bull passa à análise expoente talvez sejam Robert Keohane e Joseph
da manutenção da mesma. Aqui, além de outros Nye (2001). Barry Buzan (2004) faz uma análise
elementos, o destaque da obra recai sobre as acerca das diferenças entre a abordagem inglesa
“instituições”. Esse conceito, para o autor, é e a liberal-institucionalista, com seu foco nos
extremamente amplo e não se resume à existência regimes. Na visão dos institucionalistas, segundo
de organizações ou corpos administrativos: são, esse autor, os atores (estados) agem de forma
antes de mais nada, “a set of habits and practices racional e egoísta, perseguindo seus interesses
shaped towards the realization of common goals”5 dentro de um quadro de regimes que, de alguma
(idem, p. 71). Dada a amplitude conceitual, até a forma, incentiva-os à cooperação em
guerra é considerada como uma instituição da determinadas circunstâncias. Para os defensores
sociedade internacional. As outras instituições da SI, os atores cooperam porque compartilham
apontadas por Bull são a balança de poder, o das normas e valores dessa sociedade, e não
Direito Internacional, o mecanismo diplomático somente porque lhes é conveniente, por vezes,
e as grandes potências. Martin Wight, aquele que cooperar. Ademais, os autores da tradição inglesa
é considerado por muitos como o “pai” da Escola enfocam as instituições como estruturas
Inglesa, elencara como instituições da sociedade normativas construídas historicamente, e não
internacional a diplomacia, as garantias, a guerra como arranjos particulares, formal ou
e a neutralidade (WIGHT, 2002). informalmente organizados (idem).
Embora Bull não tenha associado diretamente A amplitude do conceito de instituição na obra
sociedade e instituições, uma parte substantiva de Bull não deve, no entanto, obscurecer o fato
de sua obra tem por objeto o estudo dessas de que as instituições – em um sentido mais
instituições na história européia e seu papel na restrito – vêm multiplicando-se de modo
exponencial no cenário internacional. Sem
4 Vê-se, portanto, que o termo “anarquia” não se refere a ingressar, ainda, no debate acerca da ascensão
“caos”, mas simplesmente à ausência de um poder de atores não estatais, pode-se afirmar que no
hierárquico. Outras sociedades, como as primitivas, quadro estrito da sociedade de estados, desde o
também possuíram esse padrão, no qual se vislumbra uma
ordem social sem que, no entanto, exista uma autoridade 6 “A fonte da obrigação é o sentido do pertencimento, ser
central. Bull traçará uma comparação entre esses dois tipos
um membro soberano, estar amarrado às regras. Aqui reside
de sociedade – a primitiva e a internacional – entre as
a essência da sociedade internacional. Ela existe nas
páginas 57-62 da obra citada (BULL, 2002).
atividades dos líderes estatais, e é reproduzida nos tratados
5 “Um conjunto de hábitos e práticas moldadas com que eles assinam, nas amizades que formam, nos costumes
vistas à realização de objetivos comuns” (N.R.). que observam e nas leis que obedecem” (N.R.).

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SOCIEDADE INTERNACIONAL: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO

final do século XIX e início do século XX, as como Kenneth Waltz (1979). Nas palavras de Adam
organizações internacionais cresceram em Watson, “um conjunto de regras e instituições
número e muitas delas tomaram formas cada vez concebidas por estadistas para uma sociedade
mais institucionalizadas, com mecanismos internacional é uma superestrutura conscientemente
complexos de participação, atuação e, inclusive, instalada para modificar o funcionamento mecânico
resolução de conflitos, a exemplo do que ocorre do sistema” (WATSON, 2004, p. 434). As
no âmbito da Organização Mundial do Comércio instituições, em alguma medida, representam um
(OMC). Essa tendência, que não se enfraqueceu locus de atuação estatal onde elementos sociais de
durante o século passado, reflete a permanência interação, reconhecimento, respeito recíproco e
de valores compactuados no seio do sistema7 . cooperação, entre outros, parecem sustentar a
Não se pode querer tratar a miríade de instituições hipótese da existência de uma sociedade, sem que
criadas – e recriadas – no espaço internacional aqui se faça qualquer consideração sobre as
como um fenômeno de menor importância, uma características dessa sociedade.
“farsa” criada pelos estados para servir de verniz
Aliás, parte da problemática de comprovação
aos seus interesses de poder.
da existência de uma sociedade internacional
Os próprios regimes 8 e suas instituições provém da ausência de consenso sobre o próprio
específicas, embora não tenham sido objeto de conceito de sociedade (BUZAN, 2004, p. 66). É
muita análise na Escola Inglesa, também de notar-se que essa indefinição tem origem no
simbolizam a existência de um determinado campo das Ciências Sociais que mais autoridade
consenso, ainda que frágil, sobre a necessidade tem para tratar do tema: o da Sociologia. Há autores
de discussão de problemas globais e de espaços contemporâneos da área que levantam reservas,
de debate e adoção de medidas para lidar com inclusive, quanto à possibilidade de manter a
eles. Entre os regimes cuja importância tem se “sociedade” como a principal unidade de análise
tornado indiscutível pode-se citar o de comércio, da Sociologia, como o faz Anthony Giddens
o de meio ambiente e o de direitos humanos. (2009, p. 388). Ora, se o conceito é problemático
Cumpre não colocar em um mesmo patamar de na Sociologia, o que dizer de sua utilização
análise, no entanto, as noções de instituição da indiscriminada na disciplina de RI? A abordagem
Escola Inglesa e as de instituição e regimes dos institucional da Escola Inglesa, mesmo que se
liberais-institucionalistas, visto que são distintas adicionem a ela contribuições de outras correntes,
conceitualmente, como dito acima. Mas essa deixa em aberto a questão de saber se a existência
precaução não implica negar o potencial de de instituições é um elemento suficiente para
cooperação estatal inerente a quaisquer dessas comprovar a existência de uma sociedade.
abordagens.
A abordagem institucional deve servir como
É possível afirmar, nesse sentido, que os um dos pilares argumentativos dessa discussão.
estados têm participado de um longo processo O conceito de sociedade, sobretudo o de sociedade
de aproximação mútua por meio de instituições – internacional, por sua complexidade inerente, deve
seja em que sentido pretenda-se utilizar o termo. agregar mais argumentos que lhe dêem
Em alguma medida, essa tendência aponta sim sustentação analítica. Assim, cumpriria abordar
para a existência de algo mais do que uma outros possíveis aspectos constituintes e sua
interação sistêmica, baseada no cálculo político e existência empírica, sobretudo a relação entre
de poder, entre os estados, como querem realistas sociedade e Direito, o papel da interação entre os
atores, a problemática da identidade, a discussão
7 Continuamos, por enquanto, utilizando a palavra acerca da identificação de valores etc. Alguns
“sistema”, em vez de “sociedade”, visto que o objetivo do desses pontos serão tratados em seguida, ainda
artigo é justamente indagar até que ponto é possível afirmar que de maneira breve, em razão do espaço. Uma
a existência da última. questão mais problemática referente ao tema é a
8 Adota-se aqui a definição clássica de regimes de Stephen discussão sobre a analogia entre Estado e
Krasner, segundo a qual são “princípios, normas, regras e indivíduo: afinal, o que significa conceitualmente
processos decisórios em torno dos quais as expectativas afirmar que estados formam sociedades, se estas,
de cada ator convergem dentro de uma determinada área por definição, são constituídas por indivíduos
chave” (KRASNER, 1995, p. 2; tradução de minha (ROBERSON, 1998). Esse tópico será levantado
responsabilidade).
nas conclusões.

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III. DIREITO E SOCIEDADE ou a sociedade internacional. Essa tendência está


arraigada na tradição jurídica devido à influência
Martin Wight afirma que a comprovação mais
do Direito romano e sua expressão lapidar
essencial da existência da SI é a existência do
encontra-se no famoso adágio de Ulpiano: ubi
Direito Internacional (WIGHT, 2002, p. 99).
societas ibi jus11. Em outras palavras, a existência
Nesse mesmo diapasão, Evan Luard (1990), ao
da norma está intrinsecamente relacionada com a
tratar genericamente das normas e códigos
da sociedade. Pode-se inverter a frase para afirmar
normativos de uma sociedade, argumentou que
que onde há Direito, há sociedade. Assim fazendo,
“it is indeed pehaps only because of the existence
conclui-se, pela análise histórico-evolutiva das
of such codes that there can be said to exist an
normas no âmbito internacional, que uma
international society at all”9 (idem, p. 65). O
sociedade aí existe. Mais do que isso: a tendência
próprio Hedley Bull, que elencou o Direito
no cenário internacional é de multiplicação
Internacional como uma das instituições da SI,
significativa dos mais variados tipos de normas,
reconhecia sua importância, embora, ao contrário
de multiplicação do número de tratados, de
do que pensam muitos juristas, não considerasse
crescimento – ainda que neste caso mais modesto
ser ele o seu “princípio normativo supremo”10 .
– do número de tribunais internacionais e outros
Estas afirmações apontam para a importância que
institutos de natureza jurídica.
se dá, no âmbito dos estudos da Escola Inglesa,
mas também no de outras correntes de RI, aos O sistema internacional, nesse sentido, não
aspectos normativos do sistema internacional. pode ser observado como um fenômeno político
isolado de suas interações com as exigências
Poder-se-ia considerar o Direito Internacional
normativas do sistema social. Estudando a
como sendo meramente uma das instituições da
expansão das cortes internacionais, a
sociedade internacional, como fez Bull. Caso se
interpenetração entre Direito nacional e
adotasse essa postura, a seção precedente já teria
internacional, o crescimento dos tratados
esgotado o assunto. A proposta, no entanto, é a
multilaterais, entre outros, Andrew Hurrell aponta
de abarcar o fenômeno do Direito de modo mais
para o surgimento de uma comunidade legal de
amplo: trata-se não somente do Direito
âmbito global (HURRELL, 2009, p. 63). A questão,
Internacional, mas do aspecto normativo que
ainda não resolvida no campo teórico das RI, é a
permeia todo o sistema. Por outro lado, embora
de saber qual o peso de todo esse aparato
se possa afirmar sem problemas que configura
normativo no momento em que o Estado toma
uma instituição da SI, o interesse pela norma de
suas decisões. A academia de RI, sobretudo na
uma forma geral não deve ficar restrito à análise
sua vertente realista, levanta sérias restrições
da Escola Inglesa ou dos teóricos da SI: o tema já
quanto à afirmação de que os estados obedecem
foi estudado por filósofos, psicólogos e juristas,
à norma. Segundo os realistas, o aspecto
entre outros, e tem importância fundamental para
normativo do sistema corresponderia meramente
a compreensão do comportamento humano como
a uma espécie de camuflagem do que ocorre na
um todo. Não se pretende, evidentemente,
política internacional, na qual impera a lógica do
aprofundar estas análises, mas apontar algumas
poder. Seria o que Robert Jackson chamou de
abordagens diferentes acerca do tema.
uma “window-dressing critique” (JACKSON,
A título de exemplo, não há praticamente obra 2000, p. 67).
de Direito Internacional Público (DIP) que não
O problema dessa crítica é que ela seria supos-
se inicie pela afirmação de que o DIP é o conjunto
tamente irretorquível. O que quer que façam ou
de normas que regulam a sociedade dos estados
digam os estados, pressupõe-se que estão atuando
sob bases egoísticas, sem qualquer consideração
por normas ou valores. O fato é que isso não foi
9 “De fato, é talvez apenas por causa da existência de tais
provado e provavelmente não pode ser provado
códigos qu e se pode dizer existir uma sociedade empiricamente, uma vez que exigiria o conheci-
internacional” (N.R.).
mento do que se passa na mente dos atores polí-
10 Diz o autor: “O Direito Internacional não pode identi- ticos envolvidos. Não se está afirmando com isso
ficar a idéia de sociedade internacional como o princípio
normativo supremo, a não ser que a sociedade internacional
em alguma medida já exista” (BULL, 2002, p. 137). 11 “ Onde há sociedade, aí está o Direito”.

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SOCIEDADE INTERNACIONAL: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO

que o contrário é verdadeiro, ou seja, que os atores Internacional que se tem comumente uma visão
internacionais, sobretudo os estados, são grandes segundo a qual ele nunca é respeitado. Essa noção
respeitadores do Direito. Jackson defende, no decorre, entretanto, do fato de que normalmente
entanto, que os estadistas, em suas ações, estão ressaltam-se as violações ao DIP, e não seu
submetidos a diferentes dilemas de natureza ética cumprimento. Traçando um paralelo com o que
e moral, que necessitam justificá-las para diferen- ocorre internamente, não é porque se vê na
tes públicos, que devem sopesar interesses varia- televisão, todos os dias, algum crime bárbaro
dos. O mundo teórico, nesse sentido, difere do sendo noticiado que se desacredita a existência
mundo prático: neste último raramente encon- do Direito nacional. Por outro lado, a suposta
tram-se homens que agem de forma mecanicista, ausência de sanção no DIP é o principal argumento
pautados por uma lógica de poder que menospreza que se utiliza para desacreditá-lo. Aqui se cometem
quaisquer considerações de natureza moral. Isso três equívocos: primeiro, associa-se a idéia de
se reflete nos discursos, nas justificações, nas Direito com a existência de uma sanção; segundo,
discussões sobre o que é justo ou injusto, legítimo iguala-se Direito estatal com o fenômeno do
ou ilegítimo nas relações internacionais. Michael Direito em sua totalidade, como se o Direito
Walzer (2003) defende argumento semelhante, tivesse de ser, necessariamente, Direito estatal;
como veremos na seção IV. terceiro, menospreza-se as sanções existentes no
DIP, que são de natureza mais fluída e menos
Os estudos acadêmicos do campo jurídico,
efetiva, mas cuja existência não pode ser negada.
por sua vez, tendem a enfatizar o papel do Direito
Internacional na vida internacional. Aqui vale a O argumento dos defensores do DIP, em
pena relembrar, antes de mais nada, algumas suma, é o de que, comparado ao Direito interno,
diferenças essenciais entre Direito interno e aquele possui deficiências claras; no entanto, a
internacional. O primeiro é centralizado, vida internacional demonstra-o, ele é
hierarquizado, com um aparato estatal no seu continuamente respeitado. Quando violado, tendo
ápice. Esse aparato é o legítimo detentor do Direito em vista que as conseqüências de sua violação
de punir e possui meios materiais de fazê-lo caso normalmente são mais graves do que as do Direito
as regras que dele emanam sejam descumpridas. interno, tem-se uma percepção superdimensionada
Não existem, salvo em caso de revoluções sociais, do seu desrespeito12 . Poder-se-ia argumentar que
dúvidas quanto à sua legitimidade e sua autoridade os estados cumprem o Direito quando não está
para atuar em nome da sociedade que lhe dá em jogo seu interesse nacional: uma vez presente,
sustentação. No âmbito internacional, ao o DIP tende a ser violado. Pergunta-se, em
contrário, não existe hierarquia entre as diversas resposta, se o mesmo não ocorre com os
entidades políticas que compõem a SI. O resultado indivíduos no Direito interno, quando cometem
é que o Direito é construído sobre bases crimes. Apesar de suas imperfeições, o DIP
cooperativas, sem a instituição de um poder desempenha sim um papel no cenário
central, hierarquicamente superior aos estados. internacional: a regra é que suas normas são
Essa situação fática tem reflexos na natureza das habitualmente cumpridas13 . A vida internacional
sanções do Direito Internacional, que não podem se desenrola no seio de aparatos normativos, cuja
ser aplicadas da maneira coercitiva como se dá extensão é maior do que o que contem o restrito
no Direito interno. Organizações como a
Organização das Nações Unidas não são entidades
supranacionais que governam as relações
interestatais; não há uma legislação (ONU) ou uma 12 Compara-se, por exemplo, o impacto de uma notícia

constituição que estabeleçam de maneira de homicídio com a de início de uma guerra de agressão.
sistemática quais são as normas da sociedade 13 A afirmação é de Bull (2002, p. 131): “Se fosse possível
internacional; não há tribunais legitimados a julgar ou significativo conduzir um estudo quantitativo da
quaisquer conflitos, sem o consentimento prévio obediência às regras do Direito Internacional, pode-se
dos estados. esperar mostrar que a maioria dos estados obedecem às
regras do Direito Internacional na maior parte do tempo”.
Michael Akenhurst (1985), no capítulo (N.R.). O autor não está, ao contrário do que fazem os
introdutório de sua obra, faz considerações juristas, enaltecendo o DIP, mas chamando a atenção para
esclarecedoras acerca de tais aspectos. É em o cumprimento reiterado de normas que regulam os
aspectos mais cotidianos da vida internacional.
razão dessas características peculiares do Direito

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conceito de Direito: o Direito resultante de tratados ofício, com premissas maquiavélicas e


assinados formalmente pelos Estados, por hobbesianas. Quem dera o mundo fosse tão
exemplo. simples. Se a lógica de atuação estatal resumisse-
se a adotar a política de poder em toda sua pureza,
Nessa linha de raciocínio, Terry Nardin (1987)
por que razão os estadistas justificariam suas
traça uma distinção entre dois tipos de associação:
ações em termos morais, como fazem
a associação de objetivos e a associação prática.
constantemente? Essa é uma indagação levantada
A primeira visa à consecução de objetivos
por Michael Walzer (2003), em sua obra, a que
partilhados entre seus membros; a segunda dá
trataremos na seção IV.
nascimento a normas provenientes da própria
estrutura em que se dão as interações entre os Não temos como responder ao questionamento
estados. Na visão de Nardin, a sociedade sobre a razão pela qual os homens cumprem as
internacional não pode ser encarada como uma normas. No entanto, Alexander Wendt (1999) teve
associação de objetivos, e sim como uma alguns insights interessantes na direção de uma
associação prática. Essa visão é interessante pois resposta. Segundo esse autor, existem diferentes
aponta para a dificuldade de se reconhecer os “graus de internalização das normas”. Os atores
“objetivos partilhados” dos estados. Esses, na cumprem a norma por medo, por acharem que é
verdade, possuem interesses diversos e, muitas de seu interesse ou por entenderem que a norma
vezes, divergentes. O fato não elimina a é legitima. À medida que se transita de um grau
constatação de que, ainda que haja interesses ao outro, e isso se dá na interação continua entre
conflitantes, as práticas para resolução dos atores e estrutura, as lógicas anárquicas do
conflitos e a interação dão-se no seio da sistema podem ser transformadas, fortalecendo,
normatividade. Nas palavras do autor: “A idéia de em alguma medida, seus aspectos cooperativos e
sociedade é a idéia de certos entendimentos, identitários. A obra de Wendt, além de chamar a
práticas e padrões de conduta partilhados. Nem atenção para os elementos ideacionais da realidade
mesmo os Estados mais isolados podem escapar internacional, buscou contrapor-se à visão
às normas que definem a condição de Estado, a neorealista, na qual não se enxerga espaço para
soberania e a jurisdição territorial e é difícil imaginar explicação de transformações sistêmicas. O fato
qualquer estado que consiga, por longo tempo, é que se dá importância às feições normativas que
deixar de considerar as normas que governam os o sistema internacional pode, ou não, adquirir14 .
tratados e a representação diplomática. Um
Qualquer que seja a posição do analista quanto
Estado, como um indivíduo, pode ficar
ao papel da norma no âmbito internacional, sua
impaciente com as normas e os deveres da
existência e influência sobre o comportamento dos
existência social, mas não pode escapar a elas
atores não pode ser negada. A vida internacional
enquanto restar um contato regular com outros
se desenrola no seio de um universo normativo
Estados” (idem, p. 267).
de características explícitas (tratados,
Assim, percebe-se que o “aspecto normativo” organizações internacionais) e implícitas
de que tratamos aqui possui uma dimensão muito (costumes, associação prática). Mais do que isso:
mais ampla do que aquela que se atribui a conceitos este universo está em contínua e inequívoca
mais restritos de Direito. Em face da constatação expansão. A variedade de casos em que o Direito
de existência de um verdadeiro universo jurídico- é estabelecido ou invocado também é significativa.
normativo, a pergunta essencial adquire conteúdo Em alguns casos, como a ênfase nos Direitos
psicológico e até filosófico, e pode ser traduzida humanos, assiste-se ao surgimento de normas de
nesses termos: por que os homens obedecem às conteúdo não só (supostamente) universal, mas
normas? Essa pergunta, evidentemente, também que abandonam o enfoque estatal para
transcende os limites de contextos sociais concentrar-se no indivíduo, apontando para o
nacionais e adentra o campo do internacional que, crescimento do caráter solidário da sociedade
não se deve esquecer, constitui também um internacional (VINCENT, 1986).
sistema social composto por indivíduos.
Indivíduos que vivem os mesmos dilemas quanto
às contingências normativas, ainda que sejam 14 Wendt não afirma categoricamente que se transitará de
estadistas supostamente comprometidos, por uma lógica para a outra, em um movimento linear.

11
SOCIEDADE INTERNACIONAL: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO

Caso se aceite o argumento segundo o qual a consolidado a sociedade, passa a ser elemento
existência desses aparatos normativos são a constitutivo sem o qual aquela não pode existir.
comprovação mais cabal da existência de
Tal idéia pode ser encontrada em vários autores
sociedades, avança-se mais um passo no
da EI e teóricos da SI, mas na maioria das vezes
reconhecimento da presença de uma sociedade
de modo implícito nos argumentos centrais.
de cunho internacional. Juristas e teóricos da SI
Hedley Bull não tratou do tema em profundidade.
mutuamente, embora nem sempre de maneira
Na distinção que estabeleceu entre sistema
consciente, apóiam-se na defesa desse argumento.
internacional, sociedade internacional e sociedade
Instituições e normas, além do mais, também são
mundial (BULL, 2002, p. 39), não traça
termos que parecem indissociáveis, sendo que as
considerações sobre os mecanismos de transição
primeiras são constituídas pelas segundas, de
de um tipo a outro. A visão de Bull, ao contrário,
modo mais ou menos intenso a depender do caso
parece bem estática: os três tipos são maneiras
concreto. A própria guerra, que Bull considera
de observar-se a “realidade internacional”, são os
uma instituição da SI, não está desprovida de
elementos que compõem essa realidade e que estão
normas que a regulam e que, paradoxalmente,
em constante interação. O sistema internacional
transformam-na em um acontecimento de
existe quando há contato entre os atores (estados,
natureza também social. As instituições, por sua
no caso, entendidos como comunidades políticas
vez, também são fonte de produção normativa.
soberanas), mas esses não estão ligados por uma
Bem ponderados, os argumentos dessa seção e consciência de pertencerem a uma sociedade –
da procedente lançam uma luz diferente sobre a não há valores compartilhados entre eles. A
realidade internacional. Instituições, normas, valores interação é meramente estratégica: um leva a
parecem jogar um importante papel na vida dos reação do outro em consideração na hora da
estados e na sua interação recíproca. Algo que se tomada de decisões. Já a sociedade internacional
assemelha a uma sociedade desponta no horizonte. existe quando um grupo de estados, conscientes
Mas a existência de instituições e de normas pode da existência de interesses e valores em comum,
ser considerada, por si só, como elemento consideram-se ligados, nas suas relações, por um
suficiente para comprovar sua realidade concreta? determinado número de regras e instituições, que
Nas seções seguintes, faz-se uma breve análise de eles constroem em conjunto. A sociedade mundial
mais dois possíveis pilares de sustentação de um ou global é aquela formada pelos indivíduos como
conceito como o de SI. O primeiro nos remete às integrantes da humanidade.
noções de interação e identidade; o segundo é uma
Embora dê pistas sobre os elementos
tentativa de se ingressar na intersubjetividade do
constituintes de uma SI, Bull não explica como
sistema, com a ajuda, sobretudo, de lições
um sistema pode transformar-se em sociedade
provindas da Sociologia.
ou sobre quais mecanismos impulsionam o
IV. INTERAÇÃO, EXPECTATIVAS E IDENTI- nascimento desta. Adam Watson (2004), ao
DADE estudar diferentes tipos de sociedade internacional
que surgiram ao longo da história e em diferentes
Esta seção enfatiza mais o processo de
contextos geográficos, acrescenta um elemento
construção da sociedade internacional, segundo
dinâmico na imagem construída por seu colega
alguns autores, do que os elementos que a
de academia. A idéia de interação surge com maior
constituem. Não obstante, cumpre notar que
ênfase na sua obra. O envolvimento dos atores,
características desse processo transformam-se,
na visão de Watson, à medida que se fortalece,
com o tempo, em elementos constitutivos
gera uma pressão tendente à aproximação, à
permanentes. Para que haja sociedade, por
formação de alianças, à geração de ordem. Nesse
exemplo, é necessária a existência de pelo menos
ponto, o sistema transitaria para uma sociedade
dois atores e seu contato regular. Não pode haver
(idem, p. 29).
sociedade de um só, obviamente. É a partir do
contato regular entre atores que se dará, ou não, O argumento dá ensejo a que se analisem
o surgimento de laços sociais mais profundos e, diversos aspectos da questão. Sem contato, sem
quem sabe, de sociedades. De modo que é interação, não há sociedade. Esse ponto é
relativamente fácil perceber que a interação inicial indiscutível. A interação estabelecida, no entanto,
–antes um processo – uma vez tendo se embora crie alguns “laços sociais”, pode não gerar

12
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 20, Nº 43: 5-22 OUT. 2012

a sociedade, ficando restrita ao cenário tecnológicas de transporte de pessoas, produtos,


sistêmico15 . Esse cenário é não só o primeiro exércitos e de comunicação. Já o processo refere-
elemento de Bull quanto o pilar em que se baseia se ao tipo de interação predominante: militar,
grande parte da corrente realista das RI, cuja econômica, política e os padrões de compor-
ênfase recai na política de poder como aspecto tamento decorrentes dessa predominância. A
central da realidade internacional. A partir daí surge estrutura corresponde aos princípios segundo os
o problema: como o sistema torna-se sociedade? quais as unidades estão postas no sistema. O
Pelo argumento da interação, corre-se o risco de estudo dos sistemas deve levar esses aspectos
supor que todo sistema transformar-se-á em em consideração de maneira integrada. Por
sociedade, afinal, a interação tende a ser crescente, exemplo: a capacidade de interação reduzida dos
por diversas razões estruturais, como, por tempos antigos impedia que alguns estados
exemplo, o crescimento da população mundial; enfrentassem-se militarmente, pela distância no
as migrações; o progresso tecnológico, sobretudo espaço, embora pudesse existir entre eles um
dos transportes e das comunicações; e a sistema setorialmente econômico (BUZAN &
porosidade das fronteiras nacionais, entre outras. LITTLE, 2000, p. 82).
Sabe-se, no entanto, e a história demonstra-o, que
Afirmam os autores que os estudos de RI
o contato muitas vezes gerou conflitos.
focaram-se excessivamente nos setores políticos
Barry Buzan e Richard Little (2000) parecem e militar16 , sendo que os outros setores fazem-se
ter encontrado uma solução argumentativa para sentir na conformação dos sistemas e não devem
o problema. Na sua obra conjunta, esses autores ser menosprezados. Dito isso, pode-se retornar
tentaram conciliar o estudo dos sistemas ao risco apontado pela noção de interação
internacionais com a história mundial, fazendo uma encontrada em Watson. O crescimento da
ampla análise da evolução sistêmica desde interação não pode significar, necessariamente, a
períodos remotos da existência humana. Para isso, transição do sistema para a sociedade. A interação
tiveram de conceituar sistema, o que, apesar da é uma fonte de explicação a ser levada em
recorrência do termo, não foi feito com consideração em conjunto com os aspectos
propriedade na disciplina de RI. Segundo eles, há estruturais e com o peso dos setores em um dado
diferentes níveis de análise: sistema, subsistema, sistema. A título de exemplo, a capacidade de
unidade, subunidade e individual. Até aqui, nada interação na Guerra Fria permitia que Estados
de novo: Kenneth Waltz (2004) já havia iniciado Unidos e União Soviética pudessem iniciar um
esta discussão, embora com quantidade menor conflito bélico entre si, mesmo estando a uma
de níveis. Os autores escolhem o nível dos distância considerável um do outro. No entanto,
sistemas e afirmam que esses devem ser a estrutura social não permitia, em razão da
diferenciados por setor: político-militar, desconfiança recíproca, da história e das
econômico, social e ambiental. Por fim, ideologias divergentes, que se pudesse considerar
estabelecem fontes de explicação para as a existência de uma sociedade entre as duas
mudanças sistêmicas: capacidade de interação, superpotências 17 , a não ser em um sentido
processo e estrutura.
A capacidade de interação corresponde ao 16 A Escola Inglesa teria agregado ao setor político-militar
potencial de as unidades manterem contato umas o social: essa seria sua maior contribuição para a disciplina.
com as outras, movimentando bens, pessoas e Já os teóricos da Economia Política Internacional (EPI)
teriam aproximado o setor político do econômico. É
informações. Essa fonte de explicação está interessante notar que Buzan, embora tenha criticado a
diretamente relacionada com as capacidades ausência dos aspectos econômicos na obra da EI em um
artigo anterior (BELLAMY, 2009), não chega à conclusão
15 Há quem defenda que o mero contato é fato criador de
de que o conceito de sociedade internacional, caso incorpore
o aspecto econômico, abrange os três setores mais
normas, e, por via de conseqüência, de sociedades. Essa importantes, correspondendo, desse modo, ao seu conceito
parece ser a posição de A. James (ROBERSON, 1998, p. de sistemas internacionais plenos (“full international
61). Tal posição é insustentável. Embora o contato possa systems”).
ensejar o estabelecimento de normas e laços sociais entre
atores diversos, seria um exagero supor que essas 17 Uma das críticas que podem ser endereçadas aos
características, por si só, tenham potencial para criar teóricos da Escola Inglesa é a de terem discutido a idéia de
sociedades. sociedade internacional no contexto da Guerra Fria, quando

13
SOCIEDADE INTERNACIONAL: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO

extremamente limitado. Assim, parece que a lhamento de padrões de comportamento, a


noção de interação é fundamental para a repetição de ações, a geração de normas. E nesse
compreensão da sociedade internacional, desde ponto entra-se no segundo aspecto de sua
que levados também em consideração os critérios contribuição: a incorporação da análise
de análise apontados. construtivista de Alexander Wendt (1999). As
sociedades internacionais podem ser tipificadas
Em um momento posterior, Barry Buzan, em
de acordo com os diferentes “ graus de
obra agora individual, irá mais longe ao levantar a
internalização” das normas existentes em cada
hipótese de que a interação contínua entre os
caso. De modo que existiriam sociedades
estados pode dar ensejo ao nascimento de
internacionais em que a internalização das normas,
identidades compartilhadas (BUZAN, 2004).
por ser insuficiente, daria lugar a tipos
Nesse estudo, incorpora aspectos já ressaltados
“hobbesianos” de sociedade internacional, assim
neste artigo sobre a obra de Wendt a respeito das
como sociedades em que a internalização intensa
influências recíprocas de agentes e estrutura para
das normas ensejaria a conformação de
a construção de identidades comuns. O
sociedades de tipo “kantiano” 19 . A lógica de
argumento é o de que, como fruto da interação,
funcionamento dessas sociedades, em uma
os estados vão além de reconhecer-se como tipos
linguagem bem construtivista, resultaria da
iguais de entidade: estariam preparados para
interação mutuamente constitutiva entre
reconhecer legalmente seu status de igualdade.
determinada sociedade internacional e os estados
Esse reconhecimento mútuo e a igualdade legal
que a compõem. Afirma o autor que: “just as
significariam a aceitação de uma identidade
human beings as individuals live in societies which
compartilhada (BUZAN & LITTLE, 2000, p. 106).
they both shape and are shaped by, so also states
A obra de Buzan tenta incorporar a Teoria live in an international society which they shape
Social aos conceitos da Escola Inglesa, no intuito and are shaped by”20 (BUZAN, 2004, p. 8).
de reformular estes últimos e com a intenção de
A contribuição de Buzan é importante porque
construir uma interpretação “sócio-estrutural” da
agrega aspectos da Teoria Social21 ao conceito
EI (BUZAN, 2004, p. 15). Apesar de seu interesse
de sociedade internacional e porque aponta para
estar essencialmente voltado para o terceiro
uma maior coerência metodológica ao afirmar a
elemento de Bull18 – o de sociedade mundial –
existência de sociedades internacionais, e não
dois aspectos de sua análise são relevantes para
permanecer insistindo no estudo de uma sociedade
nós. Em primeiro lugar, Buzan afirma que a
internacional global, cujo objeto é amplo demais
“sociedade internacional” dos ingleses é na verdade
para o desenvolvimento sadio de um trabalho
uma sociedade “interestatal”. Esse aparente
científico. Mas, apesar disso, os indivíduos
preciosismo terminológico é de suma relevância
parecem estar fora do desenho do autor. Na
para a compreensão do conceito de SI. De fato,
verdade, a intenção de Buzan era a de modificar a
ao apontar para o caráter estatal da definição
noção de Bull acerca da “realidade internacional”.
inglesa, o autor está implicitamente afirmando a
A visão deste último pode ser representada por
ausência dos elementos individuais, humanos,
um círculo dividido em três partes, que são seus
provenientes de forças sociais no conceito. A
elementos: sistema internacional, sociedade
sociedade internacional é menos uma sociedade
entre nações do que uma sociedade entre estados.
Dizer isso não significa eliminar o caráter social 19 A tipologia de Buzan é bem mais extensa: compreende
de suas relações, que envolvem o comparti- sociedades “associais”, de política de poder, de
coexistência, cooperativas, convergentes e confederativas
(BUZAN, 2004, p. 159).
tu do apontava para o caráter sistêmico do cenário
internacional. Isso confere às idéias da EI um conteúdo 20 “Assim como os seres humanos como indivíduos vivem
altamente normativo. Lembre-se de que a primeira edição em sociedades as quais eles ao mesmo tempo moldam e
do livro de Bull é de 1979. são moldados, também os estados vivem em uma sociedade
18 Bull considera que a realidade internacional é composta internacional que eles moldam e são moldados” (N.R.).
por três elementos preponderan tes: o do sistema 21 Vale relembrar que o construtivismo de Wendt tem
internacional, o da sociedade internacional e o da sociedade inspiração direta em algumas das análises do sociólogo
mundial ou global (BUZAN, 2002, p. 39). Anthony Giddens.

14
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 20, Nº 43: 5-22 OUT. 2012

internacional e sociedade global. Ao final do seu as sociedades modernas não se sustentam sobre
estudo, após as críticas que vai fazendo ao longo uma identidade comum homogênea22 , como as
da obra, Buzan reformula esse circulo que, na comunidades primitivas no passado. No seu
sua teoria, deve ser composto por sociedades interior, as divergências são múltiplas e de diversas
interestatais, sociedades transnacionais e naturezas: políticas, sociais, religiosas, étnicas,
sociedades inter-humanas. Em outras palavras, o culturais etc. A distinção entre comunidade e
indivíduo continua sendo tratado, assim como na sociedade não se sustentaria mais. Ora, se no
abordagem clássica da EI, como um elemento interior das sociedades nacionais observa-se esse
alheio ao conceito de SI. O que se discute aqui é fenômeno e ninguém põe em questão sua natureza
justamente sua possível inclusão num conceito de sociedade, por que fazê-lo com a sociedade
de sociedade internacional ampliado. internacional?
A pergunta é se é possível que o indivíduo, Voltando a interação, esta tenderia a gerar
que durante boa parte da história do Estado tem interdependência, pressão no sentido da
se identificado com este, poderia identificar-se cooperação, conseqüente construção de normas
com uma suposta sociedade internacional que e, no limite, à conformação de sociedades. Esse
transcende os limites de seu território nacional. processo dá-se em meio à repetição de
Se ao conceito de sociedade fizer-se a exigência comportamentos no tempo e no espaço, à rotina,
de agregar uma identidade compartilhada entre os em suma 23 . Uma vez estabelecida, produz
indivíduos, o analista depara-se com duas espécies expectativas de comportamento que são, na
de problemas. O primeiro é que, embora seja maioria das vezes, reproduzidas pelos atores. Essa
relativamente fácil verificar certa coesão identitária linguagem, de cunho eminentemente sociológico,
na história dos estados modernos, tal coesão não ajuda a compreender o que seja talvez a essência
é facilmente identificável entre indivíduos de de qualquer sociedade. Não há dúvida que o grau
diferentes nacionalidades. O segundo remete a uma de imprevisibilidade dos comportamentos na SI é
questão metodológica: que instrumentos utilizar maior do que nas sociedades nacionais, onde há
para investigar a existência de identidades maior coesão do grupo social, mas, nas palavras
societárias internacionais? Quanto mais de Luard, as diferenças entre os dois tipos de
abrangente a sociedade internacional de que se sociedade – nacional e internacional – são de grau,
está tratando, mais difícil torna-se verificar a não de gênero (idem).
existência de tais identidades. No caso, talvez fosse
As considerações acima remetem-nos ao
necessário adotar as visões de Buzan (idem) e de
caráter abstrato e de mais difícil análise no estudo
Watson (2004) de sociedades internacionais
da sociedade: o universo intersubjetivo dos atores
geográfica e temporalmente localizadas para
que a compõem. A crítica dirigida aos que
analisar-se, por exemplo, se existiria, hoje, uma
defendem os estudos sobre idéias, identidades e
identidade européia.
valores foca-se, na maior parte do tempo, nas
O aspecto da identidade é problemático e não dificuldades metodológicas para acessar-se esse
há espaço para aprofundá-lo. A questão central mundo subjetivo. De fato, analisar esses temas
seria, no entanto, se para que exista uma sociedade
é preciso haver, no seu interior, uma identidade
compartilhada. Essa pergunta, mais uma vez, 22 Essa é também a visão de Estevão de Rezende Mar-
transcende as fronteiras nacionais e leva-nos ao tins, para quem a identidade nacional não foi questionada
questionamento acerca da identidade na até o fim do século XX, quando se vê “desafiada pela
conformação da sociedade internacional. Uma ressurgência da identidade cultural operada pelos
maneira de responder à questão seria dizer que indivíduos e seus grupos, sem que tal coincida com o
tal sociedade não existe, tendo em vista a lealdade tamanho e com os objetivos do Estado” (MARTINS,
2007, p. 49).
que os indivíduos ainda mantêm para com seus
23 Na concepção de Anthony Giddens, é a repetição das
respectivos estados. Mas o tema é muito mais
complexo, e a obra de Stuart Hall (2005) lançou ações individuais que dá sustentação à estrutura social
(GIDDENS, 2009). Embora estivesse tratando de
um alerta para o caráter multifacetado das sociedades nacionais, nada impede que essa noção seja
identidades no contexto pós-moderno. Melhor aplicada nas relações internacionais, nas quais também se
seria admitir, como fez Evan Luard (1990), que formam rotinas que tendem a “consolidar-se” no tempo.

15
SOCIEDADE INTERNACIONAL: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO

não é o mesmo que contabilizar exércitos. Não inúmeros acontecimentos históricos nos quais,
obstante, a mera contabilidade material de pelas atitudes dos atores ou pelos seus discursos,
recursos bélicos não serve para explicar tudo o é possível identificar os contornos de uma
que ocorre no contexto internacional, como se a moralidade internacional. Seu livro é um desses
matéria ditasse o destino dos homens. Nesse trabalhos que põem em xeque as afirmações de
sentido, ficamos ao lado de Wendt. Apesar das que o mundo ideacional não pode ser acessado
dificuldades, a Sociologia e seus instrumentos pela pesquisa.
parecem mais uma vez de extrema relevância para
Walzer nega que exista algo como a política
a compreensão do que ocorre no nível
de poder pura e simples. Analisando o diálogo de
internacional. Na última seção, abordaremos
Melos24 , ocorrido num episódio da Guerra do
brevemente as análises de dois eminentes autores,
Peloponeso e famoso no campo das Relações
Michael Walzer e Evan Luard, estando o primeiro
Internacionais por enunciar, em termos claros, o
mais próximo às idéias da Escola Inglesa, e o
lado mais cru da teoria realista, o autor considera-
segundo mais atrelado aos instrumentos
o como uma criação literária. A crítica generalizada
metodológicos da Sociologia e da Teoria Social.
à postura ateniense é um indicativo da inexistência
V. ACEDENDO O UNIVERSO INTERSUB- de uma lei de poder, cuja necessidade não pode
JETIVO ser contrariada. Caso contrário, ninguém criticaria
os atenienses ou qualquer Estado que tenha agido
Tanto a seção anterior quanto a presente são
da mesma forma em outros períodos e contextos
tentativas de estudar um universo intersubjetivo
da história internacional. Os julgamentos
que, ainda que de difícil acesso, é importante para
realizados acerca das ações de estadistas e
a compreensão do que seja uma sociedade. O
soldados, embora não sejam sempre unânimes em
argumento permanece o mesmo: quais os pilares
um determinado sentido, apontam para limites do
que constituem o conceito de sociedade
que é permitido ou aceitável fazer e para o que é
internacional. A visão mais ampla possível do que
inaceitável no campo da ação internacional.
seja tal entidade deve integrar, contudo, elementos
materiais, de mais fácil comprovação empírica, Esses julgamentos repercutem na esfera da
como a existência de instituições formais, de guerra em dois sentidos: tanto questionam quando
normas e tratados, e elementos imateriais, cujos é possível realizar a guerra quanto quais são as
estudos revestem-se de dificuldades adicionais. normas a serem seguidas uma vez iniciado o
Os dois primeiros tópicos deste trabalho trataram conflito. Walzer afirma que, se houvesse, de fato,
dos primeiros elementos; os dois últimos voltam- a predominância de uma lógica de poder
se para os segundos. Mas todos devem ser vistos desatrelada de quaisquer preceitos morais
como subsídios para a sustentação do conceito. compartilhados, estadistas e soldados não
A discussão sobre identidades, valores comuns e precisariam mentir. O fato de contarem-se
idéias não é nova. O que não se tem feito com mentiras, de justificarem-se medidas e ações prova
muita freqüência, no entanto, é tentar analisar em que há uma noção do que seja correto, ainda que
que medida tais fatores, em conjunto, são capazes no meio de um embate armado. Se fôssemos
de gerar agregados mais amplos de interação todos meros realistas, isso seria, segundo Walzer,
humana, em outras palavras, em que medida o fim tanto da moral quanto da hipocrisia. Assim,
sustentam sociedades internacionais. “uma das coisas que a maioria de nós deseja,
A obra de Michael Walzer (2003) pretende,
entre outros objetivos, comprovar a existência de 24 Os atenienses, tentando obter a rendição da ilha de
um mundo moral nas relações internacionais, cujas Melos, teriam, a certa altura do diálogo, expressado a “lei”
premissas básicas são compartilhadas entre os da política de poder: “the standpoint of justice depends
atores – no caso específico, entre agentes do on the equality of power to compel and that in fact the
strong do what they have the power to do and the weak
Estado: líderes, diplomatas e soldados. O aspecto
accept what they must “. (BAYLIS, SMITH & OWENS,
mais ousado da obra, no entanto, é que analisa a 2008, p. 97). [“O posicionamento da justiça depende da
existência dessa moralidade no contexto mais igualdade de poder para compelir e isso tendo em vista
desprovido de sociabilidade possível, qual seja, que os fortes fazem o que têm poder para fazer e os fracos
na guerra. O autor, ao longo do texto, abordará aceitam aquilo que devem” (N.R.).]

16
REVISTA DE SOCIOLOGIA E POLÍTICA V. 20, Nº 43: 5-22 OUT. 2012

mesmo numa guerra, é agir ou parecer agir de abraçado em toda sua extensão o aporte dos
acordo com a moral” (idem, p. 32)25 . Atuamos sociólogos e tentado utilizar esses conhecimentos
todos dentro de “um mundo moral” (idem, p. 33), no estudo da sociedade internacional. Nesse
mesmo na guerra. Essa constatação seria uma último sentido, o livro de Luard possui um
indicação da existência da sociedade internacional. interesse peculiar, uma vez que os autores da
Escola Inglesa não costumam agregar elementos
Os julgamentos acerca das ações corretas ou
da Sociologia, ainda que seu conceito central seja,
incorretas, justas ou injustas, são realizados ao
paradoxalmente, o de sociedade internacional.
longo da história pelos atores mais diversos,
inclusive combatentes e não combatentes. A obra Luard parte do pressuposto de que as
de Walzer é riquíssima em exemplos de ações diferenças entre sociedade nacional e internacional
ocorridas no interior de conflitos em que é são diferenças de grau, não de gênero. A SI seria
possível identificar os dilemas morais de soldados mais descentralizada, com o poder disperso, mas
e comandantes e, por via de conseqüência, altamente concentrado nos estados; sem estrutura
comprovar que até mesmo na guerra o universo formal, sendo que as ligações entre indivíduos,
moral não é eliminado. Há exemplos de soldados divididos em nações, é mais difusa, tênue e
que deixaram de atirar em inimigos porque esses incerta; sem um sentido forte de solidariedade,
encontravam-se em situações engraçadas ou que ou seja, o sentido de pertencer a um determinado
lembravam demais contextos cotidianos, o que grupo, a ausência de crença em uma origem ou
teria gerado, na interpretação do autor, destino comuns; e sem consenso sobre
identificação muito forte entre inimigos em um legitimidade e sobre como tal sociedade deve ser
nível mais humano. O julgamento acerca de ações ordenada. Após ter feito uma revisão sobre o que
mais amplas, normalmente praticadas sob ordens os sociólogos27 entendem ser uma “sociedade”,
superiores, como o massacre de My Lai, na Guerra sua proposta é a de utilizar dez conceitos-chave
do Vietnã, perpetrado pelos americanos contra da Sociologia para compreender como funcionam
uma aldeia de civis, também gera debate e no âmbito da sociedade internacional. A pretensão
condenações morais quase unânimes. Esses aqui não é a de fazer uma resenha da obra do
acontecimentos tendem a gerar discussões de autor, mas tão somente mencionar os conceitos
âmbito institucional: a evolução do Direito que de alguma forma relacionam-se com aquela
Internacional da guerra está aí para comprová- característica intersubjetiva presente em uma
lo. O mesmo pode ser dito quanto aos tratados sociedade, e que servem para sustentar, também,
que proíbem a utilização de armas de determinada sua existência.
natureza, tratados que estabelecem direitos para
O conceito de “ideologia” é um dos que mais
prisioneiros, não combatentes etc. O argumento
chamou a atenção de Luard e perpassa
não é de que atrocidades não serão mais
praticamente toda sua obra. Ao fazer uma análise
cometidas. As condenações morais e os
histórica das diferentes sociedades internacionais
julgamentos realizados no âmbito internacional,
que existiram no tempo, o autor identifica
no entanto, comprovam a existência de uma
diferentes princípios segundo o contexto
determinada sociedade que compartilha valores.
histórico. Sociedades formaram-se sob ideologias
Deixando de lado o ambiente conflituoso da dinásticas, sob princípios de religião, sob a defesa
guerra, mas ainda no seio deste universo do princípio da soberania, do nacionalismo ou de
intersubjetivo, a obra de Evan Luard (1990) diferenças baseadas em credos políticos
destaca-se por ter, primeiro, trazido para o centro específicos. Não há como negar que a história
da análise a atuação de indivíduos, embora seu
foco permaneça centrado no Estado26 ; segundo,
internacional. Mesmo Luard, que inicia cada um dos seus
capítulos falando das ações de indivíduos na SI, termina
25 Em trecho ainda mais emblemático, afirma: “A por admitir a centralidade das ações dos estados.
comprovação mais nítida da estabilidade dos nossos valores 27 Entre outros, cita Comte, Spencer, Durkheim, Parsons,
ao longo do tempo é o caráter imutável das mentiras que Merton, Weber, Schultz e Touraine. Essa preocupação de
soldados e estadistas contam” (WALZER, 2003, p. 31). incorporar os aportes da Sociologia, infelizmente, não
26 Essa forma de tratar a matéria é recorrente nas obras dos vingou no âmbito da Escola Inglesa. Evan Luard não é
autores da EI: não se abandona o caráter estatal da sociedade considerado integrante desta última.

17
SOCIEDADE INTERNACIONAL: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO

das sociedades sofreu o influxo dessas ideologias. enriquecedora para o debate na disciplina de RI,
O importante, para Luard, é perceber como tais que tende a afastar a incidência desses fatores.
ideologias influenciam a ação dos atores. Para o Os pontos elencados servem-lhe para identificar
nosso propósito aqui, a ideologia é um elemento a existência, no passado e no presente, de
ideacional – cuja existência não pode ser negada sociedades internacionais. As relações que se
– que sustenta a ligação entre alguns estados em estabelecem entre os atores dão-se em um
determinados contextos e serve de subsídio para ambiente social onde as idéias, ideologias,
sustentar a hipótese da existência de sociedades percepções e expectativas têm um papel
internacionais. Evidentemente, o compartilha- explicativo relevante. Na SI, assim como na
mento de valores, por si só, não pode servir a sociedade interna, um processo de socialização
esse propósito. Como já se deve ter notado, a está em contínuo andamento: “There, as in other
esta altura do trabalho, a sociedade internacional societies, a process of socialization takes place.
não se sustenta sobre um único pilar: ela nasce Individuals, groups and states alike are slowly
na conjunção de inúmeros fatores, como a made aware of the demands of others within
existência de normas, instituições, interação, international society. They become conscious of
valores e outras mais que poderiam ser citadas. the practices and conventions governing
international behavior accepted among other
Luard analisa também os motivos da ação no
actors. They absorb, from the comments of
contexto de diferentes sociedades internacionais.
politicians, editorial writers, television
A crítica, embora implícita, é contra a idéia de
commentators and others within their own states,
que exista, por exemplo, um interesse nacional
ideas concerning the standards that should be
objetivamente identificável que os estados
applied in judgments of international behavior”28
utilizariam para pautar sua conduta. Os motivos
(MENDONÇA, 1990, p. 59).
da ação estão intimamente relacionados com as
crenças dos estados acerca do que constitui, no Nesta seção, o intuito foi o de abordar aspectos
caso concreto, seu interesse. Nesse sentido, os imateriais das relações que se dão no seio de
motivos podem ser de espécies variadas e, mais quaisquer sociedades. A dificuldade em analisá-
uma vez, dependem também da ideologia que los por meio da pesquisa não pode servir de
perpassa determinada sociedade. Algumas desculpa ou de justificativa para não levá-los em
prezaram territórios, outras riquezas materiais, consideração. Na medida em que tais “estruturas
outras ainda a glória na guerra. À medida que ideacionais” são compartilhadas entre atores, dá-
mudam as ideologias, os atores tendem a agir se um passo importante na direção de uma
em conformidade com a ideologia compartilhada “sociedade”. Repita-se: os valores compartilhados
ou dominante. Estas noções são típicas da constituem unicamente um dos pilares de qualquer
Sociologia: trata-se de uma maneira de visualizar sociedade. A história da Europa no século XX,
o poder de estruturas ideacionais sobre o nesse sentido, é emblemática: embora a quantidade
comportamento dos agentes. A sociedade de valores compartilhados fosse grande, os
internacional contemporânea, a título estados participaram de conflitos militares de
exemplificativo, age em conformidade com uma proporções inimagináveis até então, colocando em
ideologia tipicamente capitalista: a competição xeque a própria existência da sociedade. Essa
dá-se, de modo geral, em termos econômicos:
crescimento das economias nacionais, aumento
do Produto Interno Bruto (PIB), aumento do
fluxo de comércio, industrialização, entre outros. 28 “Lá, como em outras sociedades, ocorre um processo
de socialização. Indivíduos, grupos e estados estão
Luard estudará, ainda, a importância dos lentamente tornando-se conscientes das demandas de
papéis sociais, do status, do conflito, da autoridade outrem dentro da sociedade internacional. Eles tornam-se
e das normas nas sociedades internacionais. Os conscientes das práticas e convenções aceitas entre outros
conceitos provêm da Sociologia e são analisados atores, as quais governam o comportamento internacional.
Eles absorvem, dos comentários de políticos, escritores
em sua importância tanto para a formação das
de editoriais, comentadores televisivos e outros dentro de
sociedades quanto pela influência que exercem seus próprios esta dos, ideias a respeito dos padrões que
sobre a ação de estados e indivíduos. A deveriam ser aplicados em julgamentos de comportamento
perspectiva do autor é extremamente internacional” (N.R.).

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constatação impulsiona-nos a verificar se o políticos dos outros estados. Ou, o que seria ainda
conceito de sociedade internacional da Escola pior, como se o Estado fosse analogicamente
Inglesa, por exemplo, com seu foco no Estado, representado como um indivíduo que, juntamente
não necessitaria de alterações. Mas esse é outro com outros “indivíduos”, formasse uma sociedade
problema. semelhante às sociedades internas.
VI. CONCLUSÕES Essa maneira de abordar o assunto decorre,
de alguma forma, da resistência encontrada entre
Após as considerações acima, é razoável
os teóricos da EI em agregar em suas análises os
supor que a pergunta da introdução pode ser
aportes da Sociologia. Na obra de Emile Durkheim
respondida de maneira afirmativa. O conceito de
(2010), por exemplo, encontramos noções que
sociedade internacional parece corresponder a
poderiam enriquecer o conceito de SI. Podemos
algo cuja existência, no mundo empírico, pode
citar melo menos duas, que têm relação direta com
ser atestada pela observação do que ocorre no
o exposto nas seções III e IV deste artigo,
âmbito internacional. Os pilares dessa sociedade
respectivamente. Em primeiro lugar, Durkheim
são, entre outros que se poderia mencionar, a
utiliza a idéia de solidariedade para identificar a
interação que gera padrões de comportamento
própria essência do que configura uma sociedade.
reproduzidos pelos a tores, a formação de
Trata-se do laço abstrato, ideacional, difuso no
instituições, o reconhecimento da existência de
inconsciente coletivo, que promove a coesão e o
normas e o compartilhamento de valores e de
funcionamento daquela. Por ser algo não muito
uma moralidade mínima entre os estados. A
palpável em termos metodológicos, o autor afirma
percepção da existência, em conjunto, desses
que é por meio do Direito que essa solidariedade
fatores é mais do que suficiente para sustentar o
manifesta-se30 . Em suma, o Direito seria o dado
conceito.
material – empiricamente verificável – que se
Isso não significa, no entanto, que tal conceito assenta no sentimento de solidariedade e que o
não mereça ser problematizado. Os autores que o representa, por assim dizer. Sob essa perspectiva,
criticam29 chamam atenção para algumas as considerações feitas na seção III adquirem
possíveis deficiências. Alguns, como Yale peculiar relevância.
Ferguson, atacam o caráter eminentemente estatal
Durkheim traça uma distinção entre
do mesmo, que não serve para explicar as
solidariedade mecânica e solidariedade orgânica,
complexidades de um sistema no qual cada vez
onde a primeira corresponde à coesão existente
mais indivíduos, grupos, organizações não
nas sociedades primitivas, com predominância do
governamentais atuam ao lado ou a despeito do
Direito de natureza repressiva, e a segunda à
Estado. Outros, como Shaw, questionam se é
coesão existente nas sociedades modernas, nas
possível falar de sociedade de estados quando
quais se multiplicam as normas jurídicas de
comumente uma sociedade é entendida como
natureza social. Neste último caso, a divisão do
composta por indivíduos. Essa crítica merece
trabalho social está consolidada. Uma vez que se
uma análise séria: a SI parece representar, muitas
constata, na sociedade internacional
vezes, uma sociedade de estadistas, de líderes
contemporânea, tanto o declínio das guerras
políticos, ou, nas palavras de Barry Jones, uma
interestatais quanto a multiplicação dos tratados
“sociedade diplomática”.
e normas jurídicas das mais diferentes naturezas,
De fato, na sociedade internacional de Bull, há grande possibilidade de, fazendo-se uma
composta por estados – que são, na sua analogia com os conceitos do autor, afirmar que
expressão, comunidades políticas – as no âmbito internacional também está
comunidades no interior dessas entidades estatais,
seus indivíduos, parecem não formar nenhum tipo 30 “A solidariedade social, porém, é um fenômeno
de laço social com os indivíduos de outros
totalmente moral, que, por si, não se presta à observação,
estados. É como se só os corpos políticos dos nem, sobretudo, à medida. Para proceder tanto a essa
estados compartilhassem valores com os corpos classificação quanto a essa comparação, é necessário,
portanto, substituir o fato interno que nos escapa por um
fato externo que o simbolize e estudar o primeiro através
29 Os autores citados no parágrafo constam todos da do segundo. Esse símbolo visível é o Direito”
obra organizada por Roberson (1998). (DURKHEIM, 2010, p. 31).

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SOCIEDADE INTERNACIONAL: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO

consolidando-se uma sociedade de natureza mais sociedade internacional de maneira geral, salvo
orgânica 31 . A analogia, contudo, não pode ser algumas exceções. Dentro da disciplina de
adotada de forma tão superficial e mereceria Relações Internacionais, o tema tem merecido
análises e debates mais aprofundados. destaque crescente, sobretudo a partir do final
dos anos 1980. Aponta-se para o papel crescente
Em segundo lugar, o conceito de densidade
desempenhado por atores não estatais:
dinâmica (idem, p. 252) também oferece
multinacionais, empresas, movimentos sociais,
interessantes insights que poderiam servir à
organizações não governamentais, lobbies,
abordagem do tema no âmbito internacional.
indivíduos, entre outros. Muitas vezes afirma-se
Durkheim acredita que a divisão do trabalho social
que, por sua preocupação com assuntos de
e, por via de conseqüência, o surgimento de
interesse global – e não meramente de interesses
sociedades mais orgânicas só pode ocorrer quando
confinados ao espaço geográfico estatal – como
o número de interações entre os indivíduos
meio ambiente e Direitos Humanos, alguns desses
multiplica-se em um espaço geográfico
movimentos representam o surgimento de uma
determinado. Essa idéia remete-nos às discussões
verdadeira sociedade civil internacional, que
da seção IV. De fato, os teóricos clássicos da
estaria a desafiar a proeminência do Estado.
Escola Inglesa, vinculados como estão à natureza
estatal de seu conceito de sociedade, Não há como negar que esses elementos têm
menosprezaram as interações que ocorrem no adquirido maior relevância, sobretudo após o fim
nível dos indivíduos pertencentes a estados da Guerra Fria. O problema, no entanto, é de
diferentes. Se se puder comprovar, estabelecer-se em que medida essa ascensão da
empiricamente, que a densidade dinâmica entre sociedade civil global põe em xeque a estrutura
indivíduos de diferentes nacionalidades têm Estado centrada da sociedade internacional. Aqui
aumentado de modo consistente, torna-se a disputa é acirrada. Por um lado, autores como
possível transitar de um conceito eminentemente James Rosenau (1990, p. 41) defendem que não
estatal de SI para uma noção mais social do se deveria estabelecer uma hierarquia de
conceito. Não custa lembrar, mais uma vez, que autoridade nesse mundo “bifurcado”33 . Por outro,
a idéia de sociedade refere-se, originalmente, às autores como Robert Jackson (2000), apesar de
relações entre indivíduos. Não acreditamos, reconhecerem o papel crescente desses atores,
todavia, que isso se possa fazer com relação à continuam a afirmar a preponderância do elemento
sociedade internacional global, dada a abrangência estatal: “This argument does correctly draw our
do objeto. Mas o conceito certamente serviria para attention to transnational networks which are
o estudo da configuração de sociedades indeed expanding at a rapid rate and do now
internacionais geograficamente delimitadas32 . constitute a important feature of international
Nesse sentido, a Europa configuraria um bom society. And it is undoubtedly the case that NGOs
estudo de caso. and sovereign states reciprocally “benefit from
each other” presence. It is also the case that there
Não se está alegando aqui que a disciplina de
are “networks of knowledge and action”
RI tem menosprezado o papel de indivíduos e
constructed by “decentered, local actors, that
forças sociais no novo cenário internacional. Essa
cross” international boundaries with some
ausência dá-se, isso sim, no âmbito da Escola
regularity and frequency and without too much
Inglesa e entre os estudiosos do conceito de
difficulty. But any claim that a “global civil
society”, consisting of such actors and networks,
is displacing global international society based on
31 É necessário recordar que essa sociedade orgânica, na
qual impera a divisão do trabalho social, é considerada
por Durkheim como mais resistente do que as sociedades 33 Na concepção desse autor, o mundo teria se bifurcado:
mecânicas. Isso porque a divisão, ao atribuir funções
por um lado, aponta-se para a manutenção do mundo
específicas aos diversos órgãos sociais, implica uma maior
estado-centrado, cujos atores mais importantes continuam
interdependência entre eles, com a conseqüência de a
sendo as entidades estatais; por outro lado, há a ascensão
eliminação ou o enfraquecimento de uma função gerar
de um mundo multi-centrado , composto por diversas
prejuízos em todo o organismo social.
categorias de atores não estatais que não se submetem,
32 Buzan (2004, p. 208) critica veementemente a Escola necessariamente, à autoridade do Estado. A noção de
Inglesa por sua rejeição dos aspectos regionais da SI. “turbulência” nasceria da interação entre essas duas esferas.

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sovereign states seriously misconstrues the “poder” com poder “material”, o que é uma
character of international society. It is hugely postura sujeita a críticas. Seja como for, percebe-
misleading to claim that NGOs and sovereign states se certa dificuldade dos teóricos da SI em agregar,
“coexist” because that implies an equality between de maneira consistente e sistemática, o indivíduo
both parties that does not exist”34 (idem, p. 107). e as forças sociais ao conceito de sociedade
internacional. Viu-se, em seção anterior, como
A posição de Jackson pode parecer
Buzan, apesar de traçar distinções importantes
conservadora, mas já constitui um avanço dentro
entre sociedade internacional e sociedade
do referencial teórico da Escola Inglesa, por
interestatal, reservou um espaço distinto para a
exemplo, visto que inclui os atores não estatais
atuação dos indivíduos, ou, nas palavras de
dentro do conceito de sociedade internacional35 .
Rosenau, para o mundo “multi-centrado”. A
O fato incontornável é que não se conhece um
relutância em agregar esses fatores ao conceito
critério capaz de medir o poder desses dois
causa estranheza, uma vez que são justamente
mundos um em face do outro. Há indícios de que
indivíduos, grupos e forças sociais que
a razão assiste a Jackson, mas tão somente
constituem, na teoria, uma sociedade.
porque as capacidades materiais dos estados são
visivelmente superiores às desses “novos” atores. Outra espécie de crítica feita à tradição inglesa
No entanto, dizer isso significaria equalizar é direcionada à ausência de metodologia e de
levantamentos empíricos no trato do conceito
(BELLAMY, 2009). Percebe-se certa “fluidez”
34 “Esse argumento não atrai, corretamente, a nossa
conceitual que não corresponde às necessidades
atenção para a s redes transnacionais que estão, de fato,
da teoria. O conceito de sociedade internacional,
expandindo-se a um ritmo rápido, e que agora constituem por exemplo, não possui indicadores precisos,
uma característica importante da sociedade internacional. sendo que isso implica a impossibilidade de
E é indubitavelmente o caso de que os NGOs e os estados verificar sua solidez no mundo empírico. Neste
soberanos ‘beneficiam-se ’ reciprocamente da presença artigo agrupamos diferentes noções ou
‘um do outro ’. Também é o caso de que há ‘redes de argumentos para dar-lhe sustentação, mas é
conhecimento e ação’ construídas por ‘atores locais e
descentralizados que cruzam ’ limites internacionais com
possível que a constatação da existência de uma
alguma regularidade e frequência, e sem muita dificuldade. SI verdadeiramente coesa dependa da verificação
Mas qualquer afirmação de que a ‘sociedade global civil ’, de dados de natureza diversa, buscados no nível
consistindo de tais atores e redes, está deslocando a da interação de indivíduos de sociedades nacionais
sociedade internacion al global baseada em estados distintas.
soberanos mal interpreta seriamente o caráter da sociedade
internacional. É tremendamente enganoso afirmar que as Em outras palavras, o conceito parece merecer
NGOs e os estados soberanos ‘coexistem’, porque isso ampliação: as forças sociais e os indivíduos devem
implica uma igualdade que não existe entre ambas as ser abarcados por ele, ainda que se torne
partes” (N.R.). necessário uma redefinição rigorosa e sujeita às
35 Afirma, em outro trecho, que: “International society discussões da academia. Os aportes da Sociologia,
also consists of international organizations (IGOs), non- por outro lado, fazem-se necessários, uma vez
governmental organizations (NGOs) and transnational que o cenário internacional também corresponde
networks, and individual humans beings seen as composing
a world society” (JACKSON , 2 000, p. 105). [“A
a um sistema social. Caso não se discutam essas
sociedade internacional também consiste de organizações modificações, a sociedade internacional corre o
internacionais (OIGs), organizações não-governamentais risco de continuar sendo encarada seja como um
(ONGs) e redes transnacionais, e seres humanos individuais elemento discursivo, seja como a expressão de
vistos como compondo uma sociedade mundial” (N.R.).] um sonho a realizar-se em um futuro distante.

Bruno Macedo Mendonça (bmacedomendonca@hotmail.com) é Mestre em Relações Internacionais


pela Universidade de Brasília (UnB).

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SOCIEDADE INTERNACIONAL: A CONSTRUÇÃO DE UM CONCEITO

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