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Individualismo liberal e pertencimento

Serge Katembera
Pesquisador e doutorando em sociologia

Um fait divers capturou a atenção dos brasileiros na última semana. Seja nas redes
sociais ou nos programas de televisão de entretenimento, só se discutiu a respeito da
famosa briga num restaurante de São Paulo. Porém, outra coisa chamou minha atenção
nesse brouhaha:, me refiro a uma frase pronunciada por um dos envolvidos na briga. E
queria utilizar esse recurso linguístico para debater brevemente o que isso implica em
termos políticos e de definição da nossa comunidade.

“Estou ligando pro MEU delegado!”, esta frase utilizada para dar uma carteirada no meio
da briga é reveladora da cultura individualista na qual mergulhamos como sociedade. É
uma manifestação do individualismo exacerbado na modernidade e que, nesse caso, no
auge do neoliberalismo, ultrapassa os limites do bom senso. Mas ela também sinaliza
outra coisa. E é exatamente aqui que chamo a atenção do leitor.

Lembrei que em muitas culturas africanas, quando as crianças se referem a seus pais,
elas não dizem “meu pai”, elas dizem “nosso pai”, “nossa mãe”. Em primeiro lugar, isso
se deve à composição dos núcleos familiares onde há poucos casos de filhos únicos. E
mesmo quando é apenas uma criança falando de uma situação particular, ao mencionar
os pais, sempre utiliza o plural porque a experiência de ser filho não é vivida de modo
individual. Em segundo lugar, considera-se que sou filho com outros filhos, meus pais
são meus pais ao mesmo tempo que são os pais dos meus irmãos ou das minhas irmãs. A
filiação nunca é uma relação pensada individualmente, ela se pensa sempre incluindo o
outro, em sua dimensão coletiva e comunitária.

Em lingala, uma língua do Congo, por exemplo, se diz: “Papa na BISO [nós]". O singular
seria "Papa na NGAI [eu]". Esta segunda forma, quase nunca é usada. Ao contrário disso,
quando se olha para as sociedades ocidentais, as pessoas costumam empregar a forma
“meu pai disse.”, “minha mãe fez”.
A mesma forma aparece quando falamos “meu dentista”, “meu advogado”, “meu
médico”. Marcamos distinção, classe e marcamos nossa individualidade. É nesse instante
que o pensamento liberal se destaca na esfera da língua e da cotidianidade. Mais do que
isso, eEle se impõe, sobretudo, como marca do individualismo liberal que é indissociável
da modernidade ocidental. Nesse sentido, modernizar significa atomizar.

Em swahili, outro idioma africano bastante conhecido, também temos um exemplo de


como essa distinção da autorreferenciação se desmarca do modelo ocidental,
especialmente quando evocamos Deus. “Baba YETU [nós]” ou “Baba WETU [nós]”,
são as formas usadas para dizer “nosso pai”. “Mama YETU” ou “Mama WetuWETU”
servem para se referir à “nossa mãe”. Porém, quando as pessoas fazem uma oração ou
um louvor a Deus, especialmente nas religiões cristãs, em geral usam o pronome “eu”.
Por exemplo, durante uma oração, fala-se “Mungu WANGU [meu]”, para dizer “Meu
Deus”; e “Nzambe na NGAI [eu]” para dizer a mesma coisa em lingala. É interessante
perceber que tanto em swahili quanto em lingala, marcamos individualmente nossa
relação com a divindade (em religiões monoteístas). Nesse aspecto em particular a
ascese cristã que impõe uma relação íntima com Deus se sobrepõe às concepções
coletivas da espiritualidade africana.

Há também nessas distintas formas de marcar pertencimento e posse uma relação com o
neoliberalismo, principalmente nessa dinâmica que considera todos os bens públicos
(neste caso, a segurança pública) como bens de consumo, como serviço. O recurso
discursivo “Meu delegado” consagra uma maneira de se relacionar com a autoridade
pública bem marcada pela ideologia do empreendedorismo, onde até os policiais
exercem seu trabalho como se fosse um negócio privado. Não é à toa que no imaginário
coletivo, cada vez mais se associa a imagem do policial ao milicianismo que, afinal de
contas, não é outra coisa senão uma perversão resultante do neoliberalismo.

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