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0 . A farú/^rí/

uando o Dr Lloyd-Jones pregou estes 25 sermões sobre


2 Pedro (outubro 1946 a março 1947) comparativamente
poucas pessoas perceberam o significado do seu longo alcance.
O ministro da Capela de Westminster estava propondo
reerguer uma congregação sobre bases estranhamente incomuns na
Grã-Bretanha pós-guerra. A forma que o sermão tomou - pregação
autoritativa e expositiva - e ainda mais, o conteúdo dele, foram contra
as tendências prevalecentes. J. I. Packer, um dos seus ouvintes mais
jovens no fim da década de 1940, escreve: “Nunca tinha ouvido pregação
igual e fiquei eletrificado. Tudo que sei a respeito da pregação, posso
dizer honestamente, eu aprendi “do Doutor”. Jamais ouvi outro pregador
com tanto de Deus nele”.
O conteúdo deste volume é seu principal motivo para sua publicação.
Mas como um registro da primeira série extensiva de sermões por
Dr. Lloyd-Jones sobre um livro das Escrituras, encontramos nele algo de
interesse especial. Com um tratamento que é mais abrangente e menos
detalhado do que normalmente faz (intencionalmente ele não expõe
todo versículo) seus ouvintes foram introduzidos à pregação expositiva.
Agora, impressos, os seus sermões sobre 2 Pedro providenciarão para
outros uma introdução a um tipo de leitura que é capaz de, sob Deus,
fortalecer cristãos e igrejas em toda parte do mundo.

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS


Rua 24 de Maio, 1 1 6 -3 ° andar - salas 14-17
01041-000-S ã o Pau lo-SP
2 Pedro
Sermões Expositivos

D a vid M artyn Lloyd-Jones

PUBLICAÇÕES EVANGÉLICAS SELECIONADAS


Caixa Postal 1287 - 01059-970 - São Paulo, SP
W W W .editorapes.com.br
Título original:
Expository Sermons on 2 Pedro

Editora:
The Banner of Truth Trust

Primeira edição em inglês:


1983

Copyright:
Mrs Bethan Lloyd-Jones, 1983

Todos os direitos reservados. Permissão gentilmente


concedida pela editora The Banner of Truth Trust,
Edimburgo, EH 12 6EL

Primeira edição em português:


2009

Tradução do inglês:
Odayr Olivetti

Cooperador:
Silas Roberto Nogueira

Capa:
Wirley dos Santos Corrêa

Impressão:
Imprensa da Fé
índice

Prefácio....................................................................................7

1. Fé Preciosa........................................................................9
Capítulo 1:1,2
2. Grandíssimas e Preciosas Promessas........................... 23
Capítulo 1:3,4
3. A Vida Equilibrada........................................................35
Capítulo 1:5-7
4. Certeza da Salvação....................................................... 48
Capítulo 1:10
5. Vida e M o rte ...................................................................60
Capítulo 1:8,9,11
6. Coisas que Jamais Devemos Esquecer........................ 74
Capítulo 1:12-15
7. A Doutrina do Segundo Advento................................ 86
Capítulo 1:16
8. A Mensagem do Segundo Advento............................100
Capítulo 1:16
9. O Testemunho Apostólico...........................................111
Capítulo 1:16-18
10. A Autoridade das Escrituras.......................................122
Capítulo 1:19-21
11. Profecia Cumprida - A Mensagem do N a ta l.......... 134
Capítulo 1:19
12. Brilho na Escuridão................................................... 148
Capítulo 1:19
13. Falsos Profetas e Seus Ensinos.................................. 162
Capítulo 2:1-3
14. O Ensino Falso e Suas Consequências..................... 176
Capítulo 2:1-3
15. Os Exemplos de Noé e de L ó ................................... 190
Capítulo 2:5-8
16. A Soberania de D e u s ..................................................202
Capítulo 2:9
17. A Importância Vital da História Bíblica.................. 216
Capítulo 3:1-7
18. Deus e o Tempo.......................................................... 228
Capítulo 3:8,9
19. A Visão Bíblica da H istória....................................... 240
Capítulo 3:10
20. A Bendita Esperança..................................................255
Capítulo 3:11-14
21. A Consolação das E scrituras..................................... 269
Capítulo 3:15-17
22. Crescendo na Graça (I)............................................... 283
Capítulo 3:18
23. Crescendo na Graça ( II)............................................. 297
Capítulo 3:18
24. Crescendo na Graça (III)............................................ 313
Capítulo 3:18
25. A Glória de D e u s ....................................................... 328
Capítulo 3:18
Prefácio

Os vinte e cinco sermões que compõem este volume foram


primeiramente pregados, nas manhãs dominicais, na Capela
de Westminster, Londres, começando em 6 de outubro de 1946
e terminando em 30 de março de 1947. A data é de particular
interesse devido ao fato de que esta foi a primeira série ex­
tensa de sermões num determ inado livro das Escrituras
empreendida pelo Dr. Lloyd-Jones. Foram pregados durante
0 período em que a congregação que se reunia na Capela de
Westminster estava sendo reconstituída em seguida aos anos
difíceis da Segunda Guerra Mundial, e levaram a outras séries
que seriam memoráveis nos vinte e um anos subsequentes.
O Dr. Lloyd-Jones acreditava que as congregações [os
ouvintes] precisavam ser despertadas para as exigências que
a pregação expositiva lhes faz, e, com relação a isso, pode-se
notar certa diferença entre estes sermões e os de anos posterio­
res já postos à venda. O tratamento aqui é mais amplo, menos
detalhado e, intencionalmente, não trata de cada versículo da
Epístola. Para alguns leitores se verá que isso os ajuda. Assim
como os sermões baseados em 2 Pedro, quando primeiramente
pregados, levaram os ouvintes da Capela de Westminster a
progredirem na apreciação da pregação expositiva, este volume
proverá um excelente ponto de partida para uma espécie de
leitura desconhecida de alguns cristãos.
Muitos que viram estes sermões impressos pela primeira
vez em The Westminster Record [Registros de Westminster]
2 PEDRO

(março de 1948 - fevereiro de 1950), há muito tempo os pe­


diam nesta forma, que é mais permanente. Era característico
da reticência do Dr. Lloyd-Jones que este volume não apare-
cesse durante a sua vida na terra. A parte de uma revisão
mínima, principalmente pelas mãos da Sra. Lloyd-Jones, o
texto é o mesmo que foi impresso originalmente.
Quando o primeiro volume expositivo do Dr. Lloyd-Jones,
Studies in the Sermon on the Mount [Estudos no Sermão do
Monte], foi publicado em 1959, ele achou necessário comentar
em seu Prefácio que o conteúdo era inequivocamente cons­
tituído de sermões. Longe de disfarçar esse fato de algum
modo, ele expressou a esperança de que o livro pudesse “de
algum modo modesto, incentivar um novo interesse pela
pregação expositiva”. Essa esperança tem-se cumprido abun­
dantemente, e uma consequência é a demanda mundial de
mais sermões de um tipo que apenas vinte e cinco anos antes
muitos consideravam invendável.
O Dr. Lloyd-Jones cria que quando a Igreja atribui à
oração e à pregação a sua verdadeira prioridade bíblica, ela
pode, sob Deus, fazer frente ao desafio de qualquer geração.
Queira Deus, através destas páginas, confirmar em muitos
outros a mesma fé!
OS EDITORES
Fé Preciosa
“Simão Pedro, servo e apóstolo de Jesus Cristo, aos que
conosco alcançaram fé igualmente preciosa pela justiça
do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo: Graça e p a z vos
sejam multiplicadas, pelo conhecimento de Deus, e de
Jesus nosso Senhor.” - 2 Pedro 1:1,2

Temos aqui uma carta escrita nos primeiros tempos da


Igreja Cristã para um determinado número de cristãos. Pela
Primeira Epístola concluímos que ela foi espalhada por uma
considerável parte do mundo civilizado, então conhecido. E
uma carta escrita para pessoas que se achavam confrontadas
por dificuldades e problemas. A Primeira Epístola, exatamente
como o faz esta, deixa claro que o objetivo que o apóstolo tinha
em mente quando escreveu as duas cartas era confortar, enco­
rajar e fortalecer essas pessoas. Elas enfrentavam dificuldades,
tanto de fora como de dentro, pois o seu mundo, como nunca
me canso de assinalar, era um mundo bastante parecido com
o nosso.
Se considerarmos a história de ponto de vista espiritual,
temos que ficar impressionados com o fato de que o caráter
essencial da vida neste mundo não muda. Talvez considere­
mos algumas coisas atuais como terríveis e graves, e pensemos
que, em contraste com essas coisas, as circunstâncias com as
quais as pessoas se defrontavam há dois mil anos eram quase
triviais. Todavia, temos que compreender e lembrar que os
problemas que elas experimentavam eram tão graves e tão sérios
para elas como os nossos problemas são graves e sérios para
nós hoje. A maneira de fazer guerra mudou, o modo de viver
2 PEDRO

mudou em certos aspectos superficiais, e, contudo, os fatos


permanecem essencialmente os mesmos. O mundo é um
lugar marcado por dificuldades, e por isso, digo eu, vemos
que aquelas pessoas, em sua época e em seu tempo, como
nós, em nossa época e em nosso tempo, tinham consciência de
terríveis problemas. Elas haviam crido no evangelho cristão
e, talvez, no princípio não o tenham entendido bem, em
parte, pensando que de repente tudo ia correr bem e que
elas não teriam mais nenhum problema. Mas agora tinham
alcançado o estágio no qual viram que não era esse o caso.
Sofriam oposição de fora; havia perseguições, havia tribulações,
havia dificuldades até no que se refere à alimentação, ao
vestuário e a várias outras coisas.
Depois, em acréscimo a todas essas coisas, também havia
problemas que vinham de dentro da Igreja, e esta Segunda
Epístola de Pedro preocupa-se particularm ente com estes
problemas. Pois o problema que sempre confronta os cristãos
num mundo como este é, em última análise, justamente o
problema da incredulidade. Podemos, pois, entender por
que a grande mensagem desta Segunda Epístola de Pedro foi
escrita para fortalecer os cristãos contra vários fatores e forças
que estavam tendendo a abalá-los e a desestabilizá-los em sua
fé. Certas dúvidas e interrogações estavam se insinuando na
mente deles. Pedro se estende bastante no capítulo dois ao
dizer que falsos mestres tinham entrado sorrateiramente nas
igrejas e que eles, com seu falso ensino, estavam tentando
solapar a fé desses cristãos primitivos.
Levantavam-se, em particular, questões quanto ao valor
das promessas de Deus. Desde o princípio, uma parte essen­
cial da pregação do evangelho era a mensagem da Segunda
Vinda do nosso Senhor e das diversas coisas que a acompa­
nhariam. Todos aqueles primeiros pregadores pregavam um
evangelho de juízo. Certamente vocês se lembram de que nos
Evangelhos e no livro de Atos dos Apóstolos muitas vezes nos
é dito que a sua mensagem era, em primeira instância, que os

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Fé Preciosa

homens e as mulheres deveríam fugir da ira vindoura. O


evangelho era sempre apresentado em termos de juízo. Era
expresso daquela forma histórica, era enfatizado e salientado
que o mesmo Jesus que tinha sido crucificado e sepultado,
e que tinha ressuscitado, igualmente voltaria para juízo e
quando voltasse, julgaria o mundo, e que, portanto, todos
deveríam certifícar-se de que estavam em boas relações
com Ele. Mas aqueles falsos mestres e outros tinham se
insinuado nas igrejas e estavam levantando questões e
interrogações. “Onde está a promessa da sua vinda?”, eles
perguntavam. “Anos se passaram e nada aconteceu, o mundo
continua como era - que dizer, então, dessa pregação, desse
evangelho?” E nos ouvintes havia muita coisa que os deixava
prontos a dar ouvidos a isso. A incredulidade pode ser
m uito insidiosa e insinuante. Ela vem e se aproveita das
diversas condições pelas quais estamos passando - quando
estamos cansados ou doentes, quando estamos passando por
privações ou tristezas, ou quando acabamos de emergir de
uma guerra mundial; nessa espécie de situação de lassidão
e de fadiga, esses pensamentos entram. O perigo era que a
fé dessa Igreja recém-nascida fosse abalada.
Pois bem, esse é o cenário de fundo que devemos ter em
mente. Esta carta foi escrita para pessoas assediadas por
dificuldades de fora, e, ao mesmo tempo, atacadas por difi­
culdades de dentro.
Mal tenho necessidade de assinalar quão pertinente e
apropriada esta carta é ao estado e às condições em que nos
encontramos no presente. A Igreja Cristã está declarada e
francamente enfrentando um período extremamente difícil.
Teríamos que retroceder longo tempo, ao menos duzentos
anos,^ para encontrar um período em que ela teve que encarar
tão graves dificuldades. E eu diria que o tormentoso pecado
de um tempo como este é, provavelm ente, o pecado do

■A contar de 1946. Nota do tradutor.

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2 PEDRO

desânimo. Por causa dessas coisas todas, existe a tendência de


fazer certas perguntas, e há sempre aqueles que estão prontos a
ajudar-nos a sucumbir debaixo de nossas dúvidas e de nossos
temores, e a fomentá-los em nós. Por isso acredito, como não
me canso de dizer nestes dias, que a primeira coisa necessária
no presente é que os cristãos se certifiquem da sua posição.
Tomo emprestadas as palavras do apóstolo quando ele diz:
“Não deixarei de exortar-vos sempre acerca destas coisas, ainda
que bem as saibais e estejais confirmados na presente verdade”.
Isso é psicologia profunda! E um erro muito grande pensar
que, porque sabemos uma coisa, não é preciso que nos façam
lem brá-la repetidam ente. Sugiro, pois, que, se estamos
preocupados com o estado da Igreja e do mundo, se realmente
anelamos por avivamento e despertam ento no presente,
devemos concentrar-nos na Igreja, antes que no mundo. A
Igreja é a portadora da mensagem de salvação; e, se a própria
Igreja estiver sem vida, insegura ou infeliz, como poderá
realizar o seu trabalho? Parece-me cada vez mais claro que o
maior problema do momento está na Igreja propriamente
dita. O mundo é pecaminoso. Claro, o mundo é sempre peca­
minoso. Não temos o direito de esperar nada do mundo, senão
pecado. Nunca devemos surpreender-nos com o estado do
mundo ou com as condições das massas. E ensino essencial da
Bíblia que, enquanto os homens permanecerem no mundo e
fora de Cristo, necessariamente serão desse jeito. Não seria,
porém, o caso de que, talvez, o estado da própria Igreja seja a
principal explicação do motivo pelo qual a Igreja está passan­
do por este período difícil? Como Paulo o expressa escrevendo
aos coríntios: “Se a trombeta der sonido incerto, quem se
preparará para a batalha?” (1 Coríntios 14:8).
Se estamos incertos sobre a nossa posição, como podemos
confrontar-nos com o mundo, e por que o mundo deveria olhar
para nós e, ao ver-nos, ficar convencido e convicto do seu
pecado? Certamente, a via que leva ao avivamento, como a
história dos grandes avivamentos nos mostra tão claramente.

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Fé Preciosa

é que a Igreja seja uma Igreja viva. Quando isso acontece, o


seu impacto sobre o mundo é invariavelmente poderoso e
extraordinário. Bem, esse é o objetivo desta particular carta;
é fortalecer o povo cristão. Notem como Pedro expressa isso
numa frase deste capítulo primeiro. O que é necessário, diz
ele, é “fazer cada vez mais firme a vossa vocação e eleição”. E
nisso que devemos concentrar-nos.
Agora, a grande mensagem do evangelho divide-se de
maneira perfeitamente simples e natural. Que é que ela diz
às pessoas que se acham nesse estado e nessas condições?
Desde logo é bastante claro que há duas verdades principais.
A primeira é que elas precisam estar absolutamente certas
daquilo em que creem. Elas devem assegurar-se plenamente
da base e do alicerce da sua fé. Depois, tendo feito isso,
aumentá-la e crescer nela. Pedro realmente declara isso tudo
nestes dois primeiros versículos, e a Epístola não é nada mais
nada menos que o desenvolvimento dessa declaração, que ele
faz logo no começo. São estes os dois pontos: você deve conhe­
cer o que tem, e depois deve aumentar isso e fazê-lo crescer.
“Simão Pedro, servo e apóstolo de Jesus Cristo, aos que conosco
alcançaram fé igualm ente preciosa pela justiça do nosso
Deus e Salvador Jesus Cristo: graça e paz vos sejam multi­
plicadas, pelo conhecimento de Deus, e de Jesus nosso Senhor”
- é isso! Num sentido, toda a vida cristã é isso. Primeiro nos
certificamos do nosso princípio e do nosso fundam ento;
depois vamos adiante acrescentando algo a isso. “Continuamos
na fé” com a qual começamos; “se retivermos firmemente o
princípio da nossa confiança até ao fim” (Hebreus 3:14). E desse
modo que outros escritores do Novo Testamento expressam
exata e precisamente a mesma coisa. Pedro continua tocando
esse tema e termina a carta na mesma nota: “Antes crescei
na graça e conhecimento de nosso Senhor e Salvador, Jesus
Cristo”. Vocês têm isso; muito bem, vocês precisam continuar
a crescer nisso.
Pois bem, esta é, certamente, uma mensagem para nós

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2 PEDRO

neste tempo presente. A primeira coisa que temos que fazer


é certificar-nos dos fundamentos. Não preciso me demorar
neste ponto. Todos nós devemos estar prontos a concordar que
o principal efeito dos diversos movimentos ocorridos na esfera
do pensamento e na esfera da religião durante os últimos cem
anos, tem sido o erro de pôr em dúvida e questionar o funda­
mento. Que lástima! O problema da Igreja continua sendo
uma questão de fundamentos. Existem aqueles que gostariam
de fazer-nos acreditar que uma coisa boa e certa é formar
grandes uniões, ter uma grande igreja ecumênica, e eles acham
que aí teríamos um grande corpo em confrontação com o
mundo todo. Todavia a pergunta é: por qual causa essa grande
igreja ecumênica deveria lutar? Em que deveria ela crer? Qual
seria o seu fundamento? Não nos preocupamos primariamente
com números, pois, por grande que seja o corpo formado por
uma igreja ecumênica, não teremos nenhuma influência sobre
o mundo, se ela não tiver uma verdade para apresentar, se não
tiver um fundamento sólido e firme sobre o qual se assentar.
Certamente essa é a grande ênfase da Bíblia. O que interessa
à Bíblia é a verdade, e de maneira assaz extraordinária ela
ridiculariza a nossa patética fé em grandes batalhões e em
grandes números. Parece que ela se esforça para ensinar uma
doutrina dos remanescentes e para mostrar o que um homem
pode fazer quando é verdadeiramente cristão. Ela mostra o
nosso Senhor tomando um punhado de homens e fazendo deles
apóstolos e os únicos guardiães e depositários da fé - essa é
a sua mensagem! A ênfase não é ao número de homens, mas
a esta verdade de Deus, a este fundamento, a este depósito de
fé. E, portanto, eu sugiro que nesta época esta é a primeira
coisa na qual devemos concentrar-nos e da qual devemos
ficar duplamente certos. Precisamos saber exatamente onde
estamos e em quem cremos.
Bem, examinemos abreviadamente agora algumas das
coisas que o apóstolo nos diz aqui sobre justamente esta base
e este fundamento da nossa fé. Ele expressa isso tudo com

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Fé Preciosa

estas palavras m uito sugestivas: “Simão Pedro, servo e


apóstolo de Jesus Cristo, aos que conosco alcançaram fé
igualmente preciosa pela justiça de nosso Deus e Salvador
Jesus Cristo”. Pois bem, que é que ele quer dizer com isso?
Tentemos dividir bem o assunto.
O que ele salienta primeiro é que há somente uma fé. O
apóstolo está escrevendo para cristãos. Muitos deles eram
cristãos gentios, como a Primeira Epístola mostra claramente,
e, contudo, diz Pedro, a fé que vocês têm, a fé que vocês obti­
veram, é a mesma, é igual à fé preciosa que eu e os meus colegas
de apostolado obtivemos, a mesma fé que os judeus igualmente
haviam obtido e a qual usufruímos. Pode-se muito bem falar
sobre isso de várias maneiras diferentes. A fé, se lhes parece
bem, é a mesma para todos os tipos, grupos e classes de pessoas.
Essa é uma das glórias centrais e essenciais do evangelho de
nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Pedro nos diz noutro
lugar (Atos 10:34), “que Deus não faz acepção de pessoas”. O
evangelho de Jesus Cristo elimina, uma vez e para sempre,
todas as nossas divisões e distinções humanas artificiais; ele
anuncia que o mundo todo é feito um, diante de Deus. Noutras
palavras, quando entramos na casa de Deus, e quando enca­
ramos o evangelho, os nossos antecedentes são, em certo sentido,
totalmente irrelevantes - não há judeu nem gentio, escravo
nem livre, pois somos todos um em Cristo Jesus. Todas as
paredes de separação foram derrubadas, e não há a mínima
importância em se somos hábeis ou ignorantes, cultos ou faltos
de inteligência. Poder, posição social, riqueza, categoria - todas
essas coisas são completamente irrelevantes. Há somente
uma fé, a “fé igualmente preciosa”. Todos nós temos que
encarar a mesma verdade.
Mas, novamente, podemos ir adiante e acrescentar que só
há uma fé no sentido de que a única í é é a dos apóstolos. Vocês
“conosco alcançaram fé igualmente preciosa”, diz Pedro; e isso
é verdade tanto hoje como o era nos dias em que a Epístola
foi escrita. Aqui talvez esteja a própria essência da heresia

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2 PEDRO

moderna. Somos tão sensíveis às mudanças na superfície que


temos a tendência de acreditar que tempos em mudança e
tem pos m udados exigem um evangelho m odificado ou
diferente. Uma das coisas que o homem natural acha difícil de
acreditar é que um evangelho que foi pregado há quase dois
mil anos possa ser adequado hoje. Todavia, eu digo que isso
constitui o real fundamento de toda a nossa posição. “A fé”
hoje ainda é a fé dos apóstolos. A Igreja Cristã é edifícada
sobre “o fundamento dos apóstolos e dos profetas” (Efésios
2:20), e, por muito conhecimento que seja acumulado com
respeito a questões científicas, ou mesmo com respeito ao
coração hum ano, e à m ente e seu funcionamento, e com
respeito a todas as questões do gênero, ainda voltamos e
vemos que atualmente não há fé à parte da fé apostólica.
“Conosco alcançaram fé igualmente preciosa”. Isso é certa­
mente algo notável e extraordinário. A passagem de quase
dois mil anos não mudou a situação, de modo nenhum; na
verdade, a própria história dá eloquente testemunho e prova
da solidez da nossa afirmação.
Examinem os dois mil anos passados, examinem as lutas,
o empenho e os esforços do homem; considerem toda as
organizações e todos os movimentos; considerem todos os
Atos do Parlamento; considerem todas as experimentações e
formas de governo; observem como o homem tem tentado
sondar os mistérios da vida; examinem o admirável registro
durante os passados dois mil anos! E, contudo, não teríamos
de concordar que quando observamos os problemas e as
questões primárias do homem, da vida e do viver, o problema
de como conviverem os homens, sem matarem uns aos outros
e sem destruírem uns aos outros e o nosso mundo, não há
progresso nenhum ? Portanto, certam ente a evidência da
história comprova esta contribuição das Escrituras. Há somente
um evangelho, diz Pedro. Você pode ser gentio, pode estar
vivendo longe de Jerusalém e da Judéia, mas, se é verdadei­
ramente cristão, tem a mesma fé que eu tenho, e que todos

16
Fé Preciosa

OS outros apóstolos e os outros cristãos têm. E eu e você


estamos na mesma posição hoje. Você pode sondar o mundo,
pode sondar os céus, pode descer às profundezas, pode ir
às partes mais remotas do mundo, na tentativa de descobrir
uma resposta para o problem a da vida, mas em últim a
análise você volta a isto. Há somente uma fé, há somente
um evangelho, e o passar das eras e dos séculos não o afeta.
E um evangelho eterno; é imutável.
Muito bem, que é este evangelho? Pedro responde a essa
pergunta; e vocês notarão que bem no centro dela o apóstolo
coloca Jesus Cristo. “Oh, quão elementar é isso tudo”, alguém
dirá! Meu caro amigo, tenho salientado o fato de que isso é
elementar. Vivemos tempos em que são os fatores elementares
da fé que estão sendo olvidados. “Jesus Cristo!” “Simão Pedro,
servo e apóstolo de Jesus Cristo, aos que conosco alcançaram
fé igualmente preciosa pela justiça de nosso Deus e Salvador
Jesus Cristo”, [ou (VA), “pela justiça de Deus e nosso Salvador
Jesus Cristo”]. Que é a fé? Obviamente você não pode respon­
der a essa pergunta sem ver imediatamente que Jesus é central.
Note quantas vezes Pedro O menciona. Logo na introdução,
nos dois primeiros versículos da sua carta, Jesus está precisa­
mente no centro, e não há evangelho à parte dEle.
Bem, eu penso que é preciso colocar isso, hoje, numa
forma como esta: existem muitos que, confrontados pelo estado
do mundo como ele está hoje, estão começando a dizer que
devemos voltar à religião. Existem muitas pessoas que, vendo
0 estrago feito pela Segunda Guerra Mundial e a completa
futilidade e desesperança do intervalo entre as duas guerras
mundiais, e que se lembram da Primeira, olham para essas
cosas e dizem: “Bem, ao que parece, tentamos e esgotamos
todas as outras coisas; há somente uma resposta, as pessoas
devem ser levadas de volta a Deus. Há muita conversa sobre a
necessidade de novamente reconhecer Deus, de as pessoas
voltarem a subscrever as grandes declarações da religião. Sente-
-se que, se temos que pôr em cheque a delinqüência moral

17
2 PEDRO

da juventude, precisamos retornar à religião e à educação


religiosa nas escolas. Mas eu digo que neste ponto surge
um grande e real perigo. Existem muitos movimentos neste
mundo moderno que estão exortando as pessoas a crerem em
Deus e a se renderem a Deus, mas eu penso que vocês verão
que em muitos deles o nome de Jesus nunca é mencionado.
Eles defendem e ensinam uma fé em Deus; eles pregam
uma mensagem que insta com as pessoas a que se submetam
a Deus; mas para eles Jesus Cristo não é central, Jesus Cristo
não é essencial. Não se fala em Cristo. Podem ir direto a
Deus, eles nos dizem. Ora, naturalmente, isso é uma completa
perversão do evangelho do Novo Testamento. É a religião do
judeu e a religião de Maomé que creem em Deus. Crer
unicamente em Deus não é suficiente para fazer-nos cristãos,
ter uma fé geral em Deus como Criador e como Pai não é
cristianismo. Vocês precisam do Cristo do apóstolo Pedro.
Pedro não consegue ficar sem o nome de Jesus Cristo, está ali,
no centro e no primeiro plano do quadro e na introdução.
Ele nos m ostra qual é a real essência da fé cristã; outra
coisa não é senão a Pessoa de Jesus Cristo.
Não somente isso, Pedro vem a ser ainda mais específico -
“Vocês alcançaram fé igualmente preciosa conosco, mediante
a justiça de Deus e nosso Salvador Jesus Cristo”. Bem, é dessa
maneira que Pedro coloca numa frase a grande doutrina da
justificação pela fé que é exposta tão maravilhosamente pelo
apóstolo Paulo na Epístola aos Romanos. Essa é a essência
do evangelho. A mensagem é que há somente um meio pelo
qual o homem pode vir a ser reto, ou justo, aos olhos de Deus;
e esse meio é a justiça que nos é dada em Cristo. O problema
com o qual o homem se defronta é como ser justo para Deus.
Certamente é muito bom voltar para Deus e crer em Deus,
mas o que primeiramente se pergunta é: como posso fazer
isso? Deus é santo. Deus é absoluto, “Deus é luz, e não há nele
treva nenhum a”. Sou pecador. Que posso fazer? O Velho
Testamento contém uma lei, e a lei disse: se você fizer estas

18
Fé Preciosa

coisas, será justo diante dEle. E a tragédia é que muitos


ainda tentam fazer isso. Sim, dizem eles, devemos ser justos
diante de Deus. Entretanto como eu me torno justo diante
de Deus? Como posso viver essa nova vida? Eu leio os
Mandamentos, faço o melhor que posso para cumpri-los -
tento ser justo aos olhos de Deus. Mas, por meus esforços e
com meus recursos nunca poderei tornar-me justo diante
de Deus. Crer que posso é uma completa antítese e uma
completa contradição do evangelho cristão.
Que é o evangelho? É isto: “fé igualmente preciosa conosco,
mediante a justiça de Deus e nosso Salvador Jesus Cristo”. A
mensagem que os apóstolos pregavam no seu mundo era
simplesmente esta: Jesus Cristo de Nazaré outro não era senão
o Filho unigênito de Deus, e Ele viera à terra para uma só
coisa - para levar sobre Si os pecados do homem. Em Cristo
Deus deu o devido tratamento ao pecado da humanidade;
em Cristo Ele puniu o pecado e o pôs fora de ação. Como
pode o homem ser justo diante de Deus? Creia nisso, sujeite-
-se a isso, e diga: eu não tenho justiça própria; eu aceito a
justiça que Deus me dá em Cristo. Sou indigno e pecador,
mas eu posso ser revestido da justiça de Cristo; e, revestido
dela, posso estar diante de Deus e enfrentar Deus e Sua
justiça. Essa verdade é a essência da fé cristã. Portanto, a Igreja
Cristã, neste mundo moderno, tem que dizer aos homens que
eles não podem salvar a si mesmos, que todos os seus esforços
e diligências acabarão em completa futilidade, mas que Deus
realizou algo em Cristo; Ele abriu um novo caminho para a
justiça - “a justiça de Deus... pela fé”. Deus me diz que aqui
está o caminho para livrar-nos do pecado e da culpa, e do
poder do pecado: aqui está uma nova natureza, uma nova
vida e uma justiça positiva. Deus está oferecendo um caminho
de volta a Ele em Jesus Cristo e por meio de Jesus Cristo, e
Ele crucificado - essa é a natureza da fé.
Observemos agora outra coisa a respeito desta fé, porque
Pedro a descreve como uma “fé preciosa”. “Aos que conosco

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2 PEDRO

alcançaram fé igualmente preciosa.” Esta palavra, “preciosa”,


é a favorita do apóstolo. Vocês verão que ele a emprega em sua
Primeira Epístola e que torna a empregá-la aqui. E continua
a empregá-la uma e outra vez. Que significa ela? Significa
algo valioso, significa na verdade algo que não tem preço que
pague, algo inapreciável; não há nada que se lhe iguale -
“preciosa” - algo que, num sentido, tem maior valor que a
própria vida. Permitam-me colocar isso na forma de ilustração.
Veja-se o caso de um homem que adoeceu - perdeu a saúde
e consulta um médico. Eis o que ele lhe diz: se o senhor sabe
de algum remédio ou de algo que se pode fazer, imploro-lhe
que me diga. Não importa o que me custe, preciso disso. Qual
o valor da riqueza ou da posição ou de outra coisa qualquer
que acaso eu tenha, se perder a saúde? Minha saúde é mais
preciosa do que qualquer outra coisa. Farei hipoteca dos meus
bens para obter esse tratamento, porque a saúde é preciosa,
está além da possibilidade de avaliação, é mais valiosa do que
qualquer outra coisa. E isso que Pedro diz acerca desta fé, e
não conheço melhor teste da nossa profissão de fé cristã do
que fazer esta pergunta simples: será que esta doutrina sobre
Cristo, nossa justiça, é preciosa para nós?
Que é que torna preciosa esta doutrina? Permitam que eu
mencione para vocês algumas das coisas nas quais podemos
regozijar-nos com o apóstolo quando pensamos nelas. Por que
a fé é preciosa? Bem, é a fé que justifica. E a fé que me habilita
a saber que estou sem culpa na presença de Deus. Poderia
alguém avaliar ou computar o valor disso - a consciência livre
de culpa, o conhecimento de que Deus me perdoou, o desa­
parecimento do medo da morte e do túmulo, o sentimento de
que eu posso enfrentar qualquer acusador que se levante
contra mim e apontar para Jesus? “Fé preciosa!” Dinheiro,
saber, e tudo o que o mundo me pode dar, nunca me darão
paz de consciência, paz mental, mas o evangelho de Jesus
Cristo, com sua doutrina da justificação pela fé, dá-me isso
logo no princípio. Que mais? Santificação! Que significa

20
Fé Preciosa

santificação? Santificação significa que, não somente estou


sem culpa num sentido judicial, mas também que eu tenho a
preciosa promessa deste evangelho de que o Espírito Santo
está operando em mim para algo que finalmente me livrará
de toda e qualquer mancha e defeito, de toda corrupção; não
meramente que eu sou perdoado e continuo sendo o mesmo
homem, mas que eu recebo uma nova natureza. E, por últi­
mo, a glorificação. Que significa isso? Significa que vamos estar
na presença de Deus em perfeito estado. Ainda não sabemos o
que vamos ser, diz o apóstolo João, mas sabemos que quando
virmos Jesus Cristo, seremos semelhantes a Ele. A glorificação
dos santos significa serem levados os santos da terra para
viverem com Deus e com Cristo para todo o sempre. E a fé
que me dá essas coisas; é pela fé que eu creio nelas. E pela
fé que eu sei que Deus me perdoou, é pela fé que eu sei que
vou passar a eternidade com Deus. “Fé preciosa!”
Pensem, em seguida, nestas coisas em termos da maneira
pela qual elas chegam a nós - pela vocação de Deus. Deus
olhou do céu para nós e nos separou. Por que você é membro
da Igreja Cristã? Por que você não é como os milhões que não
se preocupam com estas coisas e que acham que não passam
de histórias bobas? E porque Deus o chamou. A decisão não
foi sua. Por que você é diferente? Não seria porque o Espírito
Santo de Deus lhe fez algo? Ele Se apoderou de você, Ele
está operando em você. Oh, que fé preciosa! Ela me declara
que, apesar de eu ser um pigmeu insignificante neste mundo
extraordinário, o Pai das Luzes, o Deus de todo o poder e de
todo o dom ínio, está interessado em mim, conhece-me,
preocupa-Se comigo, e colocou sobre mim a Sua poderosa
mão - é a “fé preciosa” que me diz isso! Ela me fala também
de filiação, de regeneração, e de eu ser transformado em filho,
adotado na família de Deus. Teríamos nós esta preciosa fé?
Passemos agora a pensar nisso subjetivamente. Vocês vêem,
diz 0 apóstolo, que a fé leva à paz interior, à paz com Deus e
à paz com todos os homens - esta admirável e “preciosa” fé!

21
2 PEDRO

Aí está o fundam ento, diz o apóstolo. Não im porta


quem você é, nem de onde vem; se você é cristão, essa é a
sua fé, é nisso que você crê. Você encontrará tudo isso em
Cristo. Note que sem Ele você está perdido e não é ninguém,
mas nEle você está completo, porquanto Ele “foi feito por
Deus sabedoria, e justiça, e santificação, e redenção”. Ele é
meu Tudo - Cristo é tudo em todos. Ele é tudo. Jesus Cristo!
E a fé nEle é “preciosa” para a minha alma por causa destas
coisas maravilhosas que Ele fez e ainda está fazendo por
mim, e que ainda fará por mim até quando eu estiver com­
pleto nEle na presença de Deus. Seria a fé preciosa para
você? E preciosa para todos os que são verdadeiram ente
cristãos.

22
Grandíssimas e Preciosas
Promessas
“Visto como 0 seu divino poder nos deu tudo o que diz
respeito à vida e piedade, pelo conhecimento daquele que
nos chamou por sua glória e virtude; pelas quais ele nos
tem dado grandíssimas e preciosas promessas, para que
por elas fiqueis participantes da natureza divina, havendo
escapado da corrupção, que pela concupiscência há no
mundo.” - 2 Pedro 1:3,4

O apóstolo passa agora a mostrar-nos que, estar na fé, em


si e por si, não é suficiente. Esse é o primeiro ponto - se há
algo errado com o edifício, examinem o fundamento, se há
algo com a corrente d’água, examinem a fonte. Não parem
nisso, porém. O próximo passo, diz ele, é algo como o seguinte:
o resultado da crença nesse evangelho, e de ter essa fé, é que
temos graça e paz. Mas agora o desejo e o anseio do apóstolo
é que a graça e a paz sejam multiplicadas para os crentes, que
elas cresçam, aumentem e se desenvolvam; e isso, diz ele, acon­
tece “pelo conhecimento de Deus, e de Jesus nosso Senhor”. E
nestes dois versículos (3 e 4) ele começa a dizer-nos como isso
vai acontecer. Eu tenho minha fé. Muito bem, preciso que
essa fé aumente e se fortaleça. Mas, como se dá isso? Novamente
devemos apresentar uma espécie de esboço conciso do que
estava na mente do apóstolo. Acontece o seguinte:
Antes de tudo, algumas coisas são feitas em nosso favor;
depois, nós mesmos passamos a fazer algumas coisas. O que
é feito em nosso favor é descrito nos versículos 3 e 4, e o que

23
2 PEDRO

temos que fazer segue-se nos versículos 5 e 6. “E vós também,


pondo nisto mesmo toda a diligência, acrescentai à vossa fé a
virtude, e à virtude a ciência, e à ciência temperança, e à
temperança paciência, e à paciência piedade.” Mas, antes de
nos exortar a fazer algo, ele nos lembra de novo o que é feito
em nosso favor. Noutras palavras, o que temos nestes dois
versículos agora em consideração é uma magnífica declaração
sobre a natureza ou o caráter da vida cristã, que resulta dos
atos de crer e de aceitar a fé que ele já descrevera. Certamente
somos confrontados aqui por uma das descrições mais extra­
ordinárias da vida cristã que se encontram mesmo no Novo
Testamento; e quanto a nós, cristãos, nada é mais necessário,
nesta presente hora, do que lembrar-nos de novo de algo do
caráter da vida cristã na qual nos encontramos. Eis a descrição
- “Visto como o seu divino poder nos deu tudo o que diz
respeito à vida e piedade, pelo conhecimento daquele que
nos chamou por sua glória e virtude; pelas quais ele nos tem
dado grandíssimas e preciosas promessas, para que por elas
fiqueis participantes da natureza divina, havendo escapado
da corrupção, que pela concupiscência há no mundo”.
Essa, digo eu, é a descrição da qualidade ou do tipo, ou
caráter, ou espécie de vida que o cristão deve possuir e viver.
Volto a perguntar: não seria esta a primeira coisa que devemos
lembrar? Não peço desculpa por dizer mais uma vez, de
passagem, que cada vez mais me parece que esta é a primeira
mensagem em que a Igreja Cristã precisa concentrar-se na
presente hora. Eu, pessoalmente, estou muito mais preocu­
pado com o estado da Igreja do que com o estado do mundo.
Estamos todos esclarecidos a respeito do mundo. O mundo
está na confusão, miséria e infelicidade em que está porque
faz ouvido mouco para a mensagem cristã. Ele não dá atenção
ao evangelho de Cristo, e eu sugiro que a causa dominante
disso é o fato de que ele não vê esta qualidade de vida em nós.
Quando a vir, começará a prestar atenção. Portanto, insisto
mais uma vez em que é dever da Igreja concentrar-se em si, e

24
Grandíssimas e Preciosas Promessas

não no mundo fora dela. Avivamento começa nela, e aviva-


mento virá quando o povo começar a perceber quão longe
está do padrão retratado no Novo Testamento.
Pois bem, repito que aqui nos é dito qual é a natureza e o
caráter da vida cristã. Bem, qual é? Qual é o objetivo desta
vida, em que consiste a vida essencial do cristão, por que causa
devemos lutar? De acordo com Pedro, pode-se expressar isso
com duas declarações. A primeira é conhecer Deus, e a segunda
é tomar-se semelhante a Ele. Sempre é essa a definição do cará­
ter, da qualidade e da natureza da vida cristã que se vê no
Novo Testamento. Que é que, como cristão, eu devo desejar
acima de tudo mais? Não é ter certas experiências; não é me
tornar melhor do que eu era; não é sustentar certos conceitos
da vida, do mundo, da sociedade e de várias outras questões.
O objetivo supremo do cristão é conhecer Deus. Lembrem-se
de como o nosso Senhor o expressa - “A vida eterna é esta: que
te conheçam, a ti só, por único Deus verdadeiro, e a Jesus
Cristo, a quem enviaste”. Qual é o summum bonum da vida
cristã? O nosso Senhor o diz numa das bem-aventuranças:
“Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles verão a
Deus”. Conhecer Deus! E notem como Pedro fica repetindo
isso aqui: “Simão Pedro, servo e apóstolo de Jesus Cristo, aos
que conosco alcançaram fé igualmente preciosa pela justiça
do nosso Deus e Salvador Jesus Cristo; graça e paz vos sejam
multiplicadas, pelo conhecimento de Deus, e de Jesus nosso
Senhor; visto como o seu divino poder nos deu tudo o que
diz respeito à vida e piedade, pelo conhecimento daquele que
nos chamou por sua glória e virtude”. Há sempre esta ênfase
ao conhecimento. No primeiro capítulo da Epístola de Paulo
aos Colossenses vemos exata e precisamente a mesma ênfase.
E o conhecimento de Deus - o importantíssimo é isso! Portanto,
as perguntas que nos fazemos antes de prosseguir são:
/

conhecemos Deus? E Deus real para nós? Quando nos pomos


de joelhos e alegamos que estamos orando, estamos falando
com Deus? Sabemos que Deus está ali? Temos consciente

25
2 PEDRO

contato, comunhão e companheirismo com Deus? Pois a


oração não é proferir algumas piedosas esperanças, temores
e aspirações; é conversar com Deus - conhecer Deus, estar
certo de Deus. Vocês precisam crescer na graça, diz Pedro,
porque o conhecimento de Deus é o objetivo supremo do
cristão; esse é o fator peculiar que faz da vida cristã exata e
precisamente o que ela é.
Notem, porém, que Pedro não pára em nosso conhe­
cimento de Deus - ele acrescenta que devemos tornar-nos
semelhantes a Deus. “Pelas quais ele nos tem dado grandíssimas
e preciosas promessas, para que por ela fiqueis participantes
da natureza divina, havendo escapado da corrupção, que pela
concupiscência há no m undo.” Pois bem, esta é uma das
declarações completamente estonteantes e estupendas do
Novo Testamento. O conceito que Pedro tem do cristão é que
ele participa da natureza divina. Com isso ele quer dizer que
o cristão torna-se semelhante a Deus; é alguém que desenvolve
o caráter divino e manifesta as características divinas. Ele já
havia descrito a vida cristã e a esta se havia referido como
uma vida de qualidade divina, ou, se vocês o preferirem, uma
vida divina, uma vida parecida com a de Deus.^ O cristão é
isso, segundo Pedro. Ou permitam que eu o diga de modo
diferente. Que é um cristão? Seria apenas alguém que nasceu
num determinado país? Seria apenas alguém que foi batizado
na infância? Seria simplesmente alguém que foi confirmado
numa certa idade, ou que foi imerso num particular ponto?
Seria m eram ente alguém que procura ter vida virtuosa,
alguém que tem idéias filantrópicas e que se empenha em
elevar o estado da humanidade e melhorar as condições dela?
Segundo o Novo Testamento, embora muitas destas coisas
possam ser próprias do cristão, elas não fazem alguém um
cristão. O cristão é alguém que participa da natureza divina.
Ele é alguém em quem estão presentes, essencialmente, os

' Traduzindo mais literalmente godZmm, godly egod-like. Nota do tradutor.

26
Grandíssimas e Preciosas Promessas

traços e as características do próprio Deus, a vida divina. Ele


é semelhante a Cristo. A vida característica da divindade, a
qualidade divina da vida, as características divinas estão
nele, estão sendo formadas nele, e ele está manifestando estas
características divinas. Segundo Pedro, é para isso que somos
chamados; é isso que se exige e se espera de mim e de vocês
como cristãos. Não meramente cremos que os nossos pecados
estão perdoados em Cristo - graças a Deus que cremos nisso -
mas não devemos parar nisso. Não sou alguém que mera­
mente foi perdoado, devo ser um participante da natureza
divina; devo ser um novo homem, uma nova criação, um novo
ser; e devo revelar e manifestar estas características. Essa é
a vocação.
Bem, 0 apóstolo, tendo falado dessa maneira, parece
imaginar alguém vindo e dizendo: isso é realmente mara­
vilhoso, mas como fazê-lo? Não seria isso uma tarefa totalmente
impossível para nós? Vivemos num mundo que é contra nós,
um mundo contraditório, e você nos diz que temos que ser
semelhantes a Deus, você nos pede que sejamos semelhantes
a Cristo, você nos pede aqui na terra, assim como somos, que
vivamos e exibamos algumas das virtudes e excelências do
próprio Deus. E impossível, não se pode fazer isso. O mundo
está contra nós, e nós somos fracos. Você está estabelecendo
um padrão alto demais. Não, diz Pedro, é isso que faz de um
homem um cristão; isso é ser cristão, nada menos.
Como podemos fazê-lo? O apóstolo responde aqui à
nossa pergunta. Primeiro ele responde dizendo que todas a
coisas que pertencem à vida e à piedade já nos foram dadas.
“Visto com o seu divino poder nos deu tudo o que diz res­
peito à vida e piedade.” Como podemos fazê-lo? A resposta
é que tudo o que necessitamos aí está para nós. Não há
desculpa, não há nenhuma necessidade, que justifique falha.
Todas as coisas - e isso é totalmente abrangente, não há como
acrescentar-lhes coisa alguma - todas as coisas que pertencem
à vida e à piedade já nos foram dadas. Bem, como nos foram

27
2 PEDRO

dadas? Num sentido o apóstolo nos responde desta maneira:


elas nos foram dadas “pelo conhecimento daquele que nos
chamou por sua glória e virtude; pelas quais ele nos tem dado
grandíssimas e preciosas promessas”. E assim que acontece.
Noutras palavras, todas estas coisas que são necessárias para a
vida e para a piedade são-nos dadas no conhecimento, pelo
conhecimento e através do conhecimento de Deus que temos
em Jesus Cristo e Seu evangelho. Muito bem, como isso fun­
ciona? Esta é a explicação que Pedro dá. Que conhecimento é
esse, que eu tenho no evangelho e que me supre todas as
coisas para a vida e para a piedade? O que é que eu tenho
neste conhecimento dado a mim pelo evangelho, que me
capacita na terra a viver esta vida similar, no caráter, à vida de
Deus e de Cristo?
Prim eiram ente e acima de tudo, o evangelho me dá
conhecimento com respeito a meu estado e à minha condição por
natureza. O apóstolo põe isso em último lugar nesta passa­
gem, mas na experiência é o que vem primeiro. “Havendo
escapado da corrupção, que pela concupiscência há no
mundo.” Examinemos isso desta maneira: a primeira coisa
sobre a qual o homem precisa ser iluminado é ele próprio e
a natureza da sua vida neste mundo. Que é o homem? Qual é
0 sentido da sua vida neste mundo? Com que propósito ele
está aqui? Para o quê vamos indo? Precisamos compreender
a natureza da vida como esta é neste mundo. Quanto a isso, o
ensino do Novo Testamento, na verdade o ensino da Bíblia do
começo ao fim, é resumido perfeitamente pelo apóstolo com
estas palavras: “havendo escapado da corrupção, que pela
concupiscência há no mundo”. Segundo a Bíblia, o mundo
caiu de Deus; por isso o mundo é corrupto, seu estado é de
corrupção. Deus criou o homem perfeito, criou-o corpo, alma
e espírito. Deus colocou nele a Sua própria imagem. Nou­
tras palavras, as Suas características divinas foram dadas ao
homem no princípio. Mas, um elemento estranho chamado
pecado entrou, e o efeito do pecado sobre o homem foi

28
Grandíssimas e Preciosas Promessas

corromper toda a sua vida. Que lástima! O pecado entra entre


o homem e Deus, e, quando o homem pecou, perdeu aquela
qualidade de vida peculiar que Deus lhe dera no início,
quando im prim iu nele Sua imagem e Sua estampa. Em
consequência do pecado e da queda, o homem não vive mais
a vida que vivia antes; ele se alienou de Deus e do modo de
vida próprio de Deus, e o mundo no qual ele vive também
está num estado de corrupção. Noutras palavras, o mundo
no qual vivemos é antagônico aos nossos melhores, mais
verdadeiros e mais altos interesses; o mundo está sempre
tentando intrometer-se entre nós e Deus. Se dermos ouvidos
ao mundo, como todos nós fazemos por natureza, ele não
somente nos fará pensar cada vez menos em Deus, mas até
nos fará pensar que Deus está contra nós. Ele até pode criar
dentro de nós uma inimizade contra Deus, um ódio a Deus.
Ele nos faz apreciar e desejar coisas que nos prejudicam,
coisas que nos rebaixam, coisas que nos humilham, coisas que
nos arrastam para cada vez mais longe de Deus. Essa é a
corrupção que pela concupiscência há no mundo. A carac­
terística da vida do homem natural é que é uma vida vivida
segundo o seu desejo. Por natureza o homem não pergunta:
“Isto é bom, é próprio de Deus, é puro, é limpo, é enobrece-
dor, é espiritual?” Ele pergunta: “Isso me agrada?” Ele é
governado por seus desejos, por aquilo que lhe agrada, e por
aquilo que faz conchavo com a sua natureza inferior. E isso
que Pedro quer dizer com corrupção - é a corrupção resultante
de concupiscência ou de desejo desordenado.
Mas não há necessidade de elaborar esse ponto. Basta
que vocês mantenham os olhos abertos e olhem ao redor no
presente para verem exatamente o que eu quero dizer. Exa­
minem os seus jornais. Por que eles fazem longas reportagens
sobre os julgamentos de casos de polícia? Eles sabem que é
disso que o povo gosta - a luxúria, o prazer com o mal alheio,
o peculiar interesse pelo que é imundo, a curiosidade mór­
bida acerca dos julgamentos e até das execuções. Todo esse tipo

29
2 PEDRO

de coisa é uma ilustração perfeita. Observem os rostos dos


homens. Vejam o tipo de vida que os homens levam. Ouçam
as suas conversas. Não seriam elas coisas que apelam para a
natureza inferior e animal? Essa é a corrupção que, pela
concupiscência, há no mundo. Pois bem, a primeira coisa
que o evangelho faz é despertar-nos para o fato de que por
natureza estamos sob a força dessa corrupção, de que não
desejamos conhecer Deus como deveriamos, e de que conhecer
Deus e ser semelhantes a Ele não é a coisa principal da nossa
vida. Nós O esquecemos; podem passar dias sem que jamais
falemos com Ele; não lemos a Sua Palavra, não meditamos
em Deus. Dedicamo-nos a essas outras coisas que estão em
nós e no mundo que nos cerca. Mas o evangelho me faz ver
que estou numa condição perigosa, que sou corrupto por dentro
e que há corrupção por fora, e que eu estou muito longe de
Deus e separado de Deus. O evangelho me faz ver que estou
nesse estado de corrupção e que preciso sair e fugir dele, se
é que haverei de conhecer Deus e de ser semelhante a Deus,
e se haverei de passar a eternidade em Sua santa presença.
E unicamente o conhecimento de Deus e do Senhor Jesus
Cristo em Seu evangelho que me revela esse fato. Esse é o
prim eiro ponto. Jamais poderei conhecer Deus, e jamais
poderei assemelhar-me a Deus em m inha vida, enquanto
eu não me vir como sou, e enquanto eu não me der conta de
que o mundo está, todo ele, contra mim e está me arrastando
para baixo. Mas, no momento em que eu enxergo isso, já dei
o primeiro passo, e isso só vem por meio do evangelho.
Que mais? Bem, o próximo ponto é o que Pedro deno­
mina “grandíssimas e preciosas promessas”. Vejam os passos.
Eu enxergo a minha natureza, vejo que estou levando uma
vida imprudente, vivendo como o mundo, dizendo que tudo
está bem, achando lamentável que haja pessoas que ainda
são religiosas, achando-as antiquadas; e então, de repente,
acordo para o fato de que o evangelho está certo e que estou
num estado de corrupção. Começo a ver o tipo de vida que

30
Grandíssimas e Preciosas Promessas

venho levando, e agora me pergunto como Deus pode me


perdoar por isso, e também como posso escapar disso e como
posso ter uma vida vitoriosa apesar disso. Essa é a sequência
lógica. Muito bem, diz Pedro, quando você é despertada e vê
a corrupção em seu coração, e a corrupção que há por todos os
lados no mundo a seu redor por causa da concupiscência, e
quando você começa a fazer perguntas, graças a Deus, todas
as coisas que são necessárias para a vida e para a piedade
estão disponíveis nas grandíssimas e preciosas promessas.
Quais são elas? Bem, permitam-me anotar algumas delas.
São as coisas elementares do evangelho. Prim eiram ente,
“Perdão”. “Quem crê nele não é condenado.” “Deus amou o
mundo de tal maneira que deu o seu Filho unigênito, para
que todo aquele que nele crê não pereça, mas tenha a vida
eterna.” “Portanto agora nenhuma condenação há para os
que estão em Cristo Jesus.” “Sendo, pois, justificados pela fé,
temos paz com Deus.” Eu poderia continuar repetindo quase
interminavelmente estas grandíssimas e preciosas promessas
que vêm quando o homem se vê corrupto, caído, longe de Deus,
e, portanto, culpado na presença de Deus. Que generosas
promessas de Deus, tudo perdoado e cancelado! Oh, sim, mas,
como já lembrei a vocês, isso não é suficiente! E uma gran­
díssima bênção ser perdoado; porém agora eu compreendo
que sou corrupto em m inha natureza. Que posso fazer a
respeito? Bem, eis aqui outra hondosa promessa: “Mas, a todos
quantos o receberam, deu-lhes o poder (ou a autoridade) de
serem feitos filhos de Deus; aos que creem em seu nome”.
“Sendo de novo gerados, não de semente corruptível, mas da
incorruptível, pela palavra de Deus, viva, e que permanece
para sempre.” Graças a Deus, quando tomo consciência de
que a minha natureza é corrupta, o evangelho me diz que
posso nascer de novo, receber uma nova natureza e um novo
caráter, ser feito um novo homem. “Se alguém está em Cristo,
nova criatura é.” Que maravilhosa, bondosa e grandíssima
promessa!

31
2 PEDRO

Que mais? Bem, tendo compreendido isso tudo e tendo


chegado a este ponto, naturalmente preciso de mais luz. Eu
me dou conta de que tenho passado a minha vida lendo coisas
que não me ajudam neste aspecto; tenho me apoiado na
sabedoria do homem. Todavia, começo a ver que isso tudo
está preso à terra, não se eleva a esta vida espiritual, não me
fala sobre Deus, realmente não me diz como posso viver a
vida que desejo viver. Bem, onde posso obter luz, se não
nas promessas deste Livro, o evangelho de Jesus Cristo e as
instruções que ele contém? “Mas”, alguém dirá, “eu tento ler
a Bíblia, mas a acho desinteressante. M inha mente ficou tão
acostumada com a literatura corrupta que li - romances e
biografias excitantes que tenho desfrutado - que quando chego
a este Livro eu o acho árido. Parece que não tenho aptidão
para isso. Como posso passar a gostar da Bíblia?” Pois aqui
nos vem a bondosa promessa e consolação do Espírito Santo:
“Vós tendes a unção do Santo”, diz João, “e sabeis tudo.” Pela
iluminação do Espírito Santo eu sou capacitado a ver, assi­
milar e compreender algo desta preciosa promessa.
Depois, quando olho para o mundo no qual vivemos e
vejo o estado em que ele se encontra, e todas as suas tentações,
e todas as insinuações de satanás por todo lado, pergunto como
vou saber o caminho que devo trilhar. Aqui vem a grande e
preciosíssima promessa da orientação e direção do Espírito
Santo, que me conduzirá, não somente a toda a verdade, mas
também em m inha vida pessoal, em minhas decisões, em
m inha conduta e em meu modo de agir.
Há depois aquela outra grande necessidade, a necessi­
dade de poder quando me defronto com os principados e
potestades, com os príncipes das trevas deste século, com as
hostes espirituais da maldade nos lugares celestiais. Eu me
declaro fraco, e então vem a resposta, “mas Tu és poderoso” - a
habitação em nós do Espírito Santo, por quem eu posso me
tornar mais que vencedor sobre todos os inimigos que se
defrontam comigo e que se levantam contra mim. E depois.

32
Grandíssimas e Preciosas ProTnessas

quando prossigo nesta vida com estas grandíssimas pro­


messas, há ocasiões em que me sinto cansado, e me pergunto
se vou conseguir chegar. Sinto a contradição presente em tudo,
o inimigo é tão poderoso e tão forte, e por vezes se inclina a
me sitiar e me atacar. Que mais há para mim? Qual será a
suprem a grandíssim a e preciosa prom essa? A b endita
esperança, saber que não somente serei sustentado, instruído
e guiado através deste mundo, mas também que, quando eu
morrer e partir deste mundo, “o que é corruptível se revestirá
da incorruptibilidade”, que até o meu corpo será transfor­
mado - este meu “corpo vil”, como diz a Versão Autorizada
(inglesa), ou, se vocês preferirem a Versão Revista (idem), até
que “o corpo da nossa hum ilhação seja conform ado ao
corpo da sua glória”. Serei emancipado completamente e
serei libertado, sem defeito nem mancha nem culpa; serei
perfeito na presença de Deus.
Mais uma coisa! Em acréscimo a isso tudo, há este
extraordinário poder trabalhando para nós - “graça e paz vos
sejam multiplicadas, pelo conhecimento de Deus, e de Jesus
nosso Senhor; visto como o seu divino poder nos deu tudo
o que diz respeito à vida e piedade, pelo conhecim ento
daquele que nos chamou por sua glória e virtude”. Meus
diletos amigos, nós somos chamados para uma vida sobre­
natural. Toda essa doutrina do novo nascimento precisa da
ação de Deus. O homem não se faz cristão por decidir tornar-
-se cristão. E a ação de Deus, pelo extraordinário poder do
Espírito Santo, que coloca essa disposição dentro do homem,
que lhe dá esta nova vida e esta nova qualidade. E Seu poder
divino; e esse poder divino não só nos dá partida na vida
cristã, mas também nos acompanha, age em nós, e nos vai
modelando e nos amoldando, até chegarmos àquele estado
final de glorificação. Lembrem-se da oração de Paulo pela
igreja de Efeso; ele ora rogando que os olhos deles sejam
ilum inados para que conheçam certas coisas. Quais? “...a
esperança da sua vocação, e quais as riquezas da glória da

33
2 PEDRO

sua herança nos santos; e qual a sobreexcelente grandeza do


seu poder sobre nós, os que cremos.” Isso, diz ele, é tão
grandioso que ele o compara com nada menos que o poder
que ressuscitou Cristo dentre os mortos. Essa é a última e
suprema preciosa promessa na qual precisamos concentrar-
-nos, e na qual devemos meditar sempre. Não somos deixados
entregues a nós mesmos; esta tarefa importante não é sim­
plesmente deixada conosco. “Somos feitura de Deus”, criados,
modelados por Ele. Trata-se de um processo iniciado por
Deus e desenvolvido pelo Espírito Santo, de modo que, quando
me confronto com aquela meta do conhecimento de Deus e
da semelhança com Deus, e quando vejo a corrupção que há
em mim e no mundo que me cerca, tenho o conforto, não
somente destas grandíssimas e preciosas promessas, mas
também sei, ademais, que em mim, acerca de mim e por
meio de mim, está operando este extraordinário poder do
próprio Deus. Por isso, confiantemente, e com segurança, digo
com o apóstolo Paulo: “Aquele que em vós começou a boa
obra a aperfeiçoará até ao dia de Jesus Cristo”.
Porventura conhecemos Deus? Somos semelhantes a
Deus? Podemos dizer que somos participantes da natureza
divina? E isso que faz de alguém um cristão. Esse é o depoi­
mento e o testemunho que temos que dar na presente hora.
Na proporção em que eu e vocês, e todo cristão professo,
manifestarmos esta natureza divina, nessa proporção con­
venceremos, por nossas vidas, o mundo do seu pecado e da
sua corrupção, e puxaremos e atrairemos homens e mulheres
para Jesus Cristo, o nosso Senhor.

34
A Vida Equilibrada
“E vós também, pondo nisto mesmo toda a diligência,
acrescentai à vossa fé a virtude, e à virtude a ciência, à
ciência tem perança, e à tem perança paciên cia, e à
paciência piedade, e à piedade amor fraternal; e ao amor
fraternal caridade.” - 2 Pedro 1:5-7

Ao chegarmos à declaração registrada nestes três versícu­


los, é muito importante que observemos a sua exata conexão
com o que o apóstolo já dissera. Noutras palavras, nada é
mais importante, nesta altura, do que observar atentamente
a sequência lógica seguida pelo apóstolo ao escrever esta
carta. Isso merece um comentário, de passagem. Não há nada
que, finalmente, prove a inspiração divina das Escrituras
como a maneira pela qual um homem como Pedro - um
homem que era pescador por vocação e por profissão, homem
que certamente não tinha tido as vantagens educacionais
especiais que Paulo tivera, homem em quem pensamos como
alguém que era governado por impulsos e que, na verdade,
era impetuoso - tendo-se tornado apóstolo de Jesus Cristo
pela graça de Deus, e, sob a influência do Espírito Santo,
não somente escreve uma carta plena de pensamento trans­
cendental, mas ao mesmo tempo mostra e expõe uma ordem
lógica, uma sequência extraordinária, na forma em que nos
apresenta os vários aspectos da verdade que está interessado
em comunicar.
Como já vimos, nos quatro prim eiros versículos, ele
lembra a seus leitores o glorioso caráter de “preciosa fé” - sua

35
2 PEDRO

origem na mente e no coração do Triúno Deus, o que ela fez


por nós e a gloriosa perspectiva que ela sustenta diante de
nós, de sermos “participantes da natureza divina” e de conhe­
cermos Deus.
Agora então, depois de ter dito isso tudo, praticamente
Pedro diz: prossigamos. “Além disso”, diz a Versão Autorizada
(inglesa), mas em geral se concorda que neste ponto a Versão
Autorizada realmente nos desencaminha um pouco. Ela não
apresenta a exata ênfase que o apóstolo tinha em mente. “Por
essa mesma razão”, disse ele, ou, “por causa disso”, por causa
daquilo que ele já havia dito, “aplicando toda a diligência,
acrescentai à vossa fé a virtude”, etc. Temos aqui algo verda­
deiram ente im portante, e algo que é tam bém básico e
fundamental para a posição cristã em geral. A ordem em que
estas coisas são colocadas é algo absolutamente vital. O após­
tolo não nos pede que façamos nada antes de primeiramente
salientar e repetir o que Deus fez por nós em Cristo. Digo que
isso é básico, e o digo por esta boa razão: quantas vezes,
especialmente durante os últimos cem anos, os homens deram
por certo que a real essência do evangelho cristão está neste
texto que estamos considerando! Quantas vezes, durante os
passados cem anos, os homens deram a impressão de que ser
cristão significa que você manifesta em sua vida uma espécie
de fé geral, e depois você acrescenta a essa fé virtude, conhe­
cimento, temperança, paciência, piedade, amor fraternal e
caridade. Para eles a mensagem cristã é uma exortação para
vivermos um certo tipo de vida, e uma exortação para pormos
essas coisas em prática. Mas isso é uma completa perversão do
evangelho. O evangelho cristão, em primeira instância, não
nos pede que façamos coisa alguma; prim eiram ente ele
proclama e nos anuncia o que Deus fez por nós.
Assim é por um bom número de motivos. Um dos pontos
essenciais do evangelho cristão consiste em mostrar que o
homem, como ele é por natureza, não pode fazer nada. Ele
está morto “em ofensas e pecados”, está sem vida, e toda a sua

36
A Vida Equilibrada

justiça não passa de “trapo da imundícia” (Isaías 64:6) - esse


é o ensino das Escrituras. Com efeito, o evangelho não está
interessado em nenhuma das nossas ações ou em nossa conduta
e em nosso procedimento, enquanto não nos tornarmos cristãos.
Certamente, as primeiras declarações do evangelho são estas:
“Não há um justo, nem um sequer”; “Todos pecaram e destitu­
ídos estão da glória de Deus.” O homem, em suas melhores e
mais altas condições, é uma criatura perdida; ele é um pecador
condenado aos olhos de Deus. Qualquer homem, todos os
homens! Ainda que o homem se esforce, lute e ore, e vá de um
extremo ao outro da terra na tentativa de buscar a justiça, no
fim não estará mais perto de Deus e de um verdadeiro
conhecimento de Deus do que estava no começo.
A primeira declaração do evangelho não é uma exortação
à ação ou à conduta e ao procedimento. Antes de o homem ser
chamado para fazer alguma coisa, é preciso que tenha rece­
bido algo. Antes de Deus cham ar um hom em para que
ponha algo em prática, Ele lhe torna possível pô-lo em prática.
Muitas analogias do Novo Testamento esclarecem muito bem
este ponto. Podemos examinar isso da seguinte maneira: não
adianta fazer apelo a um morto. A única pessoa a quem você
pode, com alguma lógica, dirigir um apelo é a pessoa que está
viva; e esse é precisamente o ensino do evangelho. Quando
alguém se torna cristão, nasceu de novo. Enquanto que antes
estava morto, agora está vivo. A Bíblia compara isso com o
nascimento. Antes de poder haver atividade, é preciso haver
vida, é preciso haver músculos, é preciso haver faculdades e
propensões. E essa é a posição do cristão; foi-lhe dado tudo
isso. Ele tem estes músculos, estes músculos espirituais - todas
as coisas pertencentes à vida e à piedade lhe são dadas. Por­
tanto, por causa disso, “acrescentai à vossa fé a virtude”, etc.
Ou vejam a analogia da fazenda, que é muito boa. A declara­
ção geral do evangelho é que tal fazenda nos é dada como dom
de Deus: “pela graça sois salvos, por meio da fé; e isto não vem
de vós, é dom de Deus”. Recebemos como presente a fazenda.

37
2 PEDRO

recebemos todos os implementos e tudo que é necessário,


recebemos a semente. Para isto somos chamados: para lavrar.
Não adianta mandar um homem lavrar se ele não tem uma
fazenda para isso; se ele não tem terreno e está sem implemen­
tos e sem semente, não pode fazer coisa alguma. Mas todas
essas coisas nos são dadas, e, portanto, tendo-as recebido, é-
-nos solicitado que lavremos. Mesmo neste caso, porém, somos
levados a lembrar-nos de que isso não garante o crescimento.
“Deus deu o crescimento.” O agricultor pode lavrar, passar a
grade, revolver a terra e lançar a semente, mas, na ausência da
chuva, do sol e de muitos outros fatores, não haverá cresci­
mento. Bem, ao que me parece, temos aí o perfeito equilíbrio
que sempre é mantido no Novo Testamento. Essa é a ordem
na qual, invariavelmente, o Novo Testamento coloca as coisas.
E porque vocês obtiveram igualmente conosco uma preciosa
fé, diz Pedro, é porque vocês têm todas as coisas que perten­
cem à vida e à piedade, é por causa destas grandíssimas e
preciosas promessas, é por causa do poder de Deus que há
em vocês - é por isso tudo que agora lhes rogo que acrescentem
à sua fé a virtude, e à virtude a ciência (o conhecimento), e
assim por diante.
Aqui ficamos, então, diante de algo que é muito neces­
sário como uma ênfase a ser dada na presente hora. Existem
dois erros nos quais sempre temos a tendência de cair. Em
todas as épocas continuamos a repetir experiências dos cris­
tãos primitivos descritas no Novo Testamento - os erros dos
extremos. Existem aqueles dos quais eu tenho dito que acham
que podem fazer-se cristãos por seus próprios esforços, que
acham que, acrescentando estas virtudes à sua vida natural,
podem habilitar-se para estar na presença de Deus. E, por
outro lado, há o erro da passividade. Este erro consiste em
dizer: “E claro que ninguém pode fazer nada; a salvação é de
Cristo; portanto, qualquer esforço ou qualquer tentativa que a
pessoa faça no cultivo espiritual, ou qualquer esforço para
disciplinar a vida cristã, é errado, e significa voltar às obras e

38
A Vida Equilibrada

tentar justificar-se pelas obras”. A tendência é sempre de ir


a um extremo ou ao outro, e vocês podem ver estes dois erros
descritos no próprio Novo Testamento. De um lado estão
aqueles que pregam a justificação pelas obras, e do outro
aqueles que podem ser descritos como “antinomistas” e que
dizem: se você está salvo, está salvo, e os seus atos não importam.
Ambos os casos contrariam o ensino das Escrituras e subver­
tem o equilíbrio do ensino delas. Sigamos, pois, a ordem lógica
e a seqüência lógica indicadas pelo apóstolo. Deus nos dá a
capacidade interior que torna tudo possível; sem isso não
podemos fazer nada, e não nos é solicitado que façamos
alguma coisa. Mas, tendo nos sido dado esse dom, e tendo-o
recebido, segue-se que nenhuma outra coisa é mais importante
do que nos dedicarmos com toda a nossa energia ao cultivo
espiritual e ao desenvolvimento da vida cristã. Noutras pala­
vras, podemos traduzir este versículo cinco desta maneira:
“Portanto, por esta mesma causa, segui avante e de vossa
parte, proporcionai à vossa fé a virtude”, e assim por diante.
Isso expressa perfeitamente este ponto, como se Pedro esti­
vesse dizendo: eu já lhes disse o que Deus fez da parte dEle;
agora, por causa disso, vocês, de sua parte, proporcionem à
sua fé a virtude e tudo mais.
Tendo assim demonstrado a imensa importância desta
ordem e sequência lógica, passemos agora aos detalhes do
nosso texto. A primeira coisa que devemos notar é a palavra
“acrescentai”. Aqui, de novo, há acordo geral em que essa
tradução talvez não seja tão boa como deveria, e que uma
palavra melhor seria “suprir” ou “fornecer” [semelhante a
“proporcionar”]. Essa palavra é interessante; era empregada
para expressar a habilitação do coro em sua conexão com as
peças gregas. Era uma palavra empregada para descrever
alguém que custeava o suprimento ou o pleno fornecimento
de tudo o que era necessário ao coro, sendo que este era sempre
uma parte vitalmente importante das peças teatrais gregas.
Assim é perfeitamente traduzida pelas palavras “fornecer”

39
2 PEDRO

OU “suprir abundantemente”. Foi isso que o apóstolo quis


dizer quando disse: em sua fé, ou à sua fé, fornecei ou
proporcionai abundantemente virtude, depois proporcionai
à virtude abundante conhecimento, e assim por diante, todas
estas coisas. O que ele quis dizer não é que apenas acrescente­
mos mecanicamente cada uma dessas qualidades à que já
fora dada; o que o preocupa é que haja um todo perfeito, um
perfeito equilíbrio, que o coro da peça seja habilitado não só
abundante e completamente, mas também com aquele per­
feito equilíbrio que produzirá uma execução perfeita e um
resultado perfeito. Esse é o sentido desta palavra “acrescentai”.
Pois bem, consideremos exatamente o que o apóstolo nos
pede que façamos ao mencionar estas diversas coisas. Acre­
dito que elas podem ser agrupadas sob três títulos principais.
Antes de tudo ele nos lembra o caráter da nossa fé; depois, em
segundo lugar, ele salienta as nossas disposições interiores; e,
em terceiro lugar, ele trata da nossa relação com os outros. É
uma lista perfeita; não se lhe pode acrescentar coisa alguma.
Ela trata da completitude da vida cristã, e tudo depende da fé.
O mais importante é que estejamos certos acerca do caráter
da fé. Depois, o próximo ponto consiste em lem brar que
estamos num mundo antagônico e hostil, e que, portanto,
devemos estar certos e seguros quanto às nossas disposições
íntimas. Em terceiro lugar, devemos ser cuidadosos quanto
às nossas relações com outras pessoas.
Primeiro, consideremos esta definição do caráter da fé:
proporcionai à vossa fé “virtude”. Que significa essa palavra?
Bem, aqui também temos uma palavra acerca da qual temos
que ser cautelosos. Hoje em dia é dada uma significação
inteiramente diversa à palavra “virtude”. Quando falamos das
virtudes de um homem, referimo-nos a certas excelências do
seu caráter. Portanto, a tentação é pensar que aqui Pedro está
dizendo: proporcionai à vossa fé “virtude” nesse sentido. Mas,
evidentemente, não pode ser isso, por esta boa razão: nesse
sentido, todas as outras coisas subsequentes são virtudes, de

40
A Vida Equilibrada

modo que, se Pedro estivesse dizendo isso, estaria dizendo:


proporcionais à vossa fé virtudes, e então continuaria repetindo
as virtudes. Não, essa palavra sofreu mudança de sentido
depois do tem po da produção da Versão Autorizada, e é
sumamente importante que a tomemos no sentido que obvi­
amente Pedro ligou a ela. “Virtude” aqui significa “poder
moral”, ou, se lhes parece bem, energia moral - significa
atividade ou vigor da alma. Vejam lá, diz Pedro, que a sua
fé seja uma fé viva, que seja uma fé ativa, que seja uma fé
vigorosa, que seja uma fé máscula, que seja uma fé repleta
de energia.
Ora, essa é uma exortação da qual todos nós certamente
necessitamos. Pergunto-me às vezes se não estamos lidando
aqui com algo que mantém grande número de pessoas fora
da vida cristã e da fé cristã. Acaso não há, com m uita
frequência, algo de lânguido em nossa vida cristã e em nossa
atividade cristã, quando posta em contraste com o mundo de
fora da Igreja? Não haveria essa curiosa tendência de fazer
predominar o elemento de passividade em nossa concepção
da fé cristã, como se considerássemos a fé como nada senão
uma atitude de espera? Uma espécie de letargia e langor se
espalha sobre nós, uma curiosa espécie de lassidão. Não, não,
diz Pedro, que a sua fé seja enérgica, seja vigorosa, seja viva;
anime-se, veja que a sua fé seja ativa e esteja sempre alerta.
Isso é algo que eu e vocês somos chamados a fazer. Noutras
palavras, não devemos simplesmente reclinar-nos em leitos
de comodidade e esperar que algo nos mova e nos perturbe.
A nossa fé deve ser viva, enérgica, ativa, e devemos ver que,
de nossa parte, apliquemos toda a diligência em fazer que
seja assim: “Acrescentai à vossa fé a virtude”.
Notem, depois, que ele continua e afirma que essa virtude
ou energia ou vigor deve estar abastecido de “conhecimento”
(VA). Que é que ele quer dizer com “conhecimento” neste
ponto? Obviamente não se refere ao tipo de conhecimento que
leva à fé; isso ele já estivera salientando extensamente. Pedro

41
2 PEDRO

fez USO da introdução desta carta para lembrar isso a seus


leitores. Isso é tomado como líquido e certo. Que será, então,
que significa essa palavra? Só pode significar “discernimento”,
“entendim ento”, “esclarecimento”. Vemos de novo aqui a
maravilhosa ordem mantida pelo apóstolo. Ele exorta estas
pessoas a terem vida enérgica, vigorosa, alerta. “Não se
acomodem a uma letargia e lassidão espiritual”, diz Pedro,
“esperando que aconteça alguma coisa maravilhosa; ponham-
-se de pé e ajam, sejam vigorosos, agarrem a oportunidade,
ponham “virtude” em prática”. Mas, continua ele, não parem
nisso. Se ele deixasse o assunto nesse pé, haveria a terrível
tentação de nos precipitarmos a uma falsa atividade e a um
falso zelo. Por isso é preciso que este vigor, esta energia, esta
atividade seja governada, controlada e qualificada por inteli­
gência, entendim ento e esclarecimento. Noutras palavras,
não significa apenas a demonstração de energia sem controle;
é preciso que seja uma energia controlada, que seja uma vir­
tude iluminada. Certamente não podemos examinar estas
palavras sem sentir que, num sentido, Pedro estava escrevendo
a partir de sua experiência pessoal. Pedro era por natureza
um homem impulsivo, e vocês não podem ler as páginas dos
quatro Evangelhos sem que vejam, ao estudar Pedro, um
retrato perfeito de energia descontrolada. Pobre Pedro, por­
que não era controlado, inteligente e esclarecido, às vezes
fazia coisas que depois lamentava amargamente. Sem dúvida
ele se lembrava disso, e, apercebido de que estas pessoas
eram semelhantes a ele, diz então: abastecei de inteligente
entendimento esse vigor que vocês têm.
Sem entrar nestes pontos em detalhe, eu gostaria de dizer,
de passagem, que, quando examinamos a presente situação
religiosa da Grã-Bretanha e de outros países, vemos a impor­
tância de acrescentar conhecimento ao vigor. Há o perigo de
sermos dominados por um estado de mera atividade, de
possuirmos um excesso de organizações. Que a nossa energia
e atividade espiritual seja inteligente, seja esclarecida, seja

42
A Vida Equilibrada

controlada. Certifiquemo-nos de que o conhecim ento de


Deus e de Cristo e da fé cristã esteja sempre na sela, contro­
lando este maravilhoso corcel que está sempre pronto a tomar
o freio entre os dentes e a trava. Não somos chamados para
ceder indulgentemente a qualquer atividade não esclarecida
no reino de Deus; toda atividade deve ser sempre controlada
pelo entendimento.
Permitam-me agora dizer algo sobre o importante grupo
que compreende as disposições do nosso ser interior. Nesse
grupo temos dois termos: temperança e paciência. Estas duas
palavras incluem tudo neste ponto. Quais seriam as duas
coisas nas quais, como cristão, eu tenho que vigiar, e vigiar
incessantemente? Tenho que vigiar a mim mesmo. Embora
renascido, embora tenha a natureza divina, há um outro
homem aqui. Há impulsos e desejos, há luxúria e paixões, e,
conquanto o homem tenha crido no evangelho cristão e tenha
conhecido o poder de Deus, ainda grassa dentro dele uma
luta - “a carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito contra a
carne”. Sempre há também o inimigo e adversário de nossas
almas que procura arrastar-nos para o pecado. Isso pode
acontecer até com relação ao nosso trabalho. Num momento
de sucesso ele pode vir e bajular-nos e lisonjear-nos e, levados
a esse orgulho, podemos cair nestas cobiças e paixões que
estão em nosso ser interior. Portanto, diz Pedro, lembremo-
-nos sempre da autodisciplina, vigiemos sempre estas coisas
que há em nosso íntimo, e tenhamos temperança. Como o
apóstolo se expressa sobre isso, “Mortifícai, pois, os vossos
membros, que estão sobre a terra”.^ Certamente vocês se
lembram da lista que ele nos oferece no capítulo três de
Colossenses.
Isso é algo que não podemos permitir-nos negligenciar.
A mim e a você, que temos esta fé, é dito que isso é algo que

* “Assim, façam morrer tudo o que pertence à natureza terrena de vocês”


(NVI).

43
2 PEDRO

fazemos de nossa parte. Não devemos esperar que, enquanto


estamos sentados numa cadeira, todas estas coisas que estão
dentro de nós de repente serão extraídas de nós. Não, todos
nós temos que praticar a temperança, a disciplina, o auto­
controle. Todos nós temos que mortificar estes membros. Trata-
-se de uma exortação positiva dirigida a nós - “temperança”.
Precisaria dizer-lhes que neste ponto só estou dizendo estas
coisas à luz do que já nos foi dito? E por causa do poder de
Deus, é porque Ele nos deu todas as coisas pertencentes à
vida e à piedade, que podemos fazer isso. Não estou pedindo a
um homem não iluminado que se discipline e se controle;
estou convocando o homem que tem esta nova vida para fazer
algo que ele é capaz de fazer.
Depois vem “paciência” que, naturalm ente, significa
“resistência paciente”. Nesta vida, e nesta peleja cristã, os
problemas não estão somente dentro de nós; também há
problemas fora. Há, por exemplo, o perigo que vem de outras
pessoas e de outras coisas. Oh, a necessidade de paciência - de
resistência paciente! Outra vez Pedro provavelmente estava
retrocedendo à sua experiência pessoal. Foi ele que disse ao
Senhor: “Ainda que todos te abandonem, eu te seguirei”; e
depois 0 pobre Pedro O negou três vezes. Não tem muito
valor fazer grandes declarações e grandes promessas, se não
as cumprimos. O que precisamos cultivar é resistência paci­
ente, não uma súbita investida e depois cair no desânimo,
recuar e colocar a fé cristã em desgraça aos olhos do mundo.
Não, temos que ter o cuidado de acrescentar esta resistência
paciente. Lembrando as coisas que estão adiante, lembrando
o que foi dado, simplesmente prossigamos, e, a despeito de
tudo, sejamos varonis, vigorosos e tenhamos autocontrole.
Temos que ir avante com resistência paciente. Num tempo
como este, quando tanta gente zomba destas coisas e muitos
têm dado as costas para a Igreja Cristã, a tentação é dizer: “Por
que devo prosseguir, por que devo ser diferente e tão-somente
ir adiante e ser paciente?” A resposta é que devemos lembrar

44
A Vida Equilibrada

que somos filhos de Deus, em marcha para uma herança


eterna e gloriosa na qual entraremos “depois de termos sofrido
por um pouco”. “E não nos cansemos de fazer o bem, porque
a seu tempo ceifaremos, se não houvermos desfalecido.”
Chegamos, a seguir, à nossa relação com outros. Aqui
também há uma lista completa, piedade, bondade fraternal,
amor (VA). Que é que Pedro quer dizer? Naturalmente, a
primeira coisa sempre é que devem ser boas as nossas rela­
ções com Deus. Todos os estudiosos da Bíblia acharão, penso
eu, muito interessante raciocinar estes problemas e descobrir
por que o apóstolo coloca a piedade neste particular ponto.
Para mim há só uma explicação. Ele o faz porque está tratando
aqui da esfera das relações. E nós devemos colocar sempre a
nossa relação com Deus em primeiro lugar. Noutras palavras,
enquanto vocês estão controlando estas coisas em seu íntimo,
e enquanto estão prosseguindo no espírito de resistência
paciente, lembrem-se da razão pela qual estão fazendo isso
tudo; lembrem-se de que é para a glória de Deus. O cultivo
pessoal não deve ser praticado só por amor desse cultivo, e o
perigo é ficarmos sopesando sempre a nossa natureza disci­
plinada em si e por si. Mas, se cultuarmos a disciplina, não
estamos sendo piedosos, não temos vida voltada para Deus.
Nenhuma destas coisas tem valor, se não estiver centralmente
relacionada com Deus. Por isso a piedade vem primeiro.
Antes de eu pensar em minhas relações com qualquer outra
pessoa, sempre devo me certificar de que o meu principal
motivo e a m inha maior ambição na vida é honrar Deus,
glorificar Deus e proclamar o Seu louvor. Depois, tendo posto
isso em primeiro lugar, devemos considerar os irmãos na fé -
“bondade fraternal”. Aí, naturalmente, Pedro está se referindo
a outros cristãos. Ele estava exortando estes cristãos primiti­
vos a se amarem uns aos outros, e a serem pacientes uns para
com os outros. Como isso é difícil, às vezes! Com que facilidade
ficamos impacientes, e talvez mais impacientes com os cristãos
do que com os que não são cristãos, porque esperamos mais

45
2 PEDRO

daqueles. Quanto dano tem sido causado à Igreja devido à


falta de bondade fraternal. Leiamos juntos o capítulo treze
da Primeira Epístola aos Coríntios. Tenhamo-lo no coração,
tenhamos uns para com os outros essa atitude fraternal que
“tudo espera”. Então, finalmente, o apóstolo diz: ainda mais,
e acima de todos os irmãos na fé, amem todos os seres
humanos - tenham grande amor em seu coração para com
todos. Procurem divisar as almas dos pecadores, procurem
enxergar sua necessidade; tenham no íntim o de vocês um
grande amor, tal como o amor do próprio Deus, que “faz que
o seu sol se levante sobre maus e bons, e a chuva desça sobre
justos e injustos”. Que esse amor reine em vocês, diz Pedro.
Vemos que cada uma destas qualidades acrescenta algo
às outras e contribui com algo para elas; cada qual tem sua
importância própria e, contudo, cada uma influência as ou­
tras. Vemos a im portância do vigor, e, contudo, vemos a
importância de controlar o vigor por meio do conhecimento.
Cada uma tem sua própria função, e, contudo, cada uma afeta
as outras e, portanto, contribui para o todo. Noutras palavras,
o que me impressiona mais que tudo nessa lista é o equilíbrio
perfeito; e não há nada, no que diz respeito à vida cristã, que
seja tão glorioso como o seu equilíbrio perfeito. Nenhuma
outra vida tem este equilíbrio. Há pessoas que são altamente
intelectuais e m uito cultas, mas talvez não tenham boa
m oralidade; há outras que são m oralm ente inculpáveis,
porém que não são muito inteligentes, e há pessoas que têm
grande poder, todavia de um modo ou de outro, falta-lhes algo.
Não há vida que mostre este equilíbrio perfeito, a não ser a
vida cristã aqui retratada. Para demonstrar isso, permitam-me
colocá-lo na forma de duas figuras. A palavra “acrescentai” já
nos deu uma. Não seria como a perfeição e o equilíbrio de um
grande coro, como o conhecemos - o soprano, o contralto, o
tenor e o baixo? Todas estas vozes são necessárias ao coro, e é
preciso que não haja demasiado de uma nem muito pouco
de outra, ou se perderá o equilíbrio. E preciso sopesar e avaliar

46
A Vida Equilibrada

O volume e a força das vozes para formar com perfeição


um coro ou um oratório; é preciso estabelecer o equilíbrio,
a proporção. Esse é um modo de ver a questão. Ou talvez
vocês prefiram outro modo de ver. Vocês podem examinar
os vários itens desta lista como ingredientes que estão num
frasco de remédio - talvez isso o demonstre melhor: é como
uma m istura na qual a eficácia do todo depende de cada
ingrediente ser devidamente proporcional e, contudo, estar
intim am ente ligado a todos os outros. Cada ingrediente é
im portante e exerce sua ação particular, e, contudo, cada
in g red ien te ajuda os outros. H á um a espécie de ação
sinergística. E aqui, se lhes parece bem, vocês têm a mistura
perfeita para a vida cristã. Oh, como é importante colocar
a quantidade certa de cada ingrediente no frasco, a fim de
obter o todo perfeito! Ou, por último, talvez se possa exami­
nar o ponto em questão desta maneira: na vida cristã você
começa com a fé e sempre termina com o amor. Sem fé você
não pode fazer nada, mas, dada a fé, e a prática da fé,
inevitavelmente você chega ao amor no fim, pois Deus é
amor. Queira Deus, em Sua infinita graça, assim nos habili­
tar e nos estim ular a m anifestar esta estabilidade e este
equilíbrio em nossa vida cristã e em nosso testemunho cristão,
neste nosso tempo e em nossa geração!

47
Certeza da Salvação
“Portanto, irmãos, procurai fazer cada vez mais firme a
vossa vocação e eleição; porque, fazen do isto, nunca
jamais tropeçareis.” - 2 Pedro 1:10

Vimos que o apóstolo, em seu esforço para ajudar e animar


estes cristãos primitivos, vem enfatizando a importância dos
dois lados da vida cristã. Nos versículos 1-4 ele trata do lado
referente ao que nos é dado - o que Deus nos fez. Nos versículos
5-7, à luz disso e por causa disso, ele os exorta a desempenharem
sua parte e a demonstrar isso na prática.
Chegando agora ao versículo 8, vemos que, num sentido,
do começo do versículo 8 ao fim do versículo 11, ele simples­
mente repete aquela exortação. Mas é uma repetição tão
interessante que não podemos tratar dela num só discurso.
Teremos que dividi-lo em duas importantes partes. Começo
pelo versículo 10 porque, aqui, ele faz novamente o mesmo
apelo que já havia feito nos versículos 5-7; mas, em acréscimo,
ele nos mostra por que devemos atender ao apelo. E venho
insistindo e instando com vocês, diz Pedro, que acrescentem
à sua fé conhecimento, temperança, resistência paciente, etc.,
porque eu quero que vocês tornem segura a sua vocação e
eleição. Esse é o objetivo. Esses problemas que vêm de fora
estão tendendo a deixar vocês inseguros. Essas heresias de
dentro e o ensino dos falsos mestres estão tendo o mesmo
efeito. Estão abalando sua fé e vocês estão se tornando inse­
guros. Eu os exorto, diz o apóstolo, a abastecerem sua fé, a fim
de que possam tornar certa e segura a sua vocação e eleição.

48
Certeza da Salvação

Essa é a base do argum ento, e o que desejamos fazer é


considerar a exortação desta forma: é certo dizer que este
versículo dez é realmente a chave da Epístola em geral, que
o objetivo da Epístola toda é habilitar-nos a tornar certa e
segura a nossa vocação e eleição.
Que é que Pedro quer dizer com esta exortação? Na
superfície ela parece antes contraditória - temos que tornar a
nossa vocação e eleição certa e segura! Bem, há aqueles que a
interpretam dizendo que esta é tão-somente uma exortação
a que as pessoas se tornem cristãs e se certifiquem de que são
cristãs. Segundo esse argum ento, se você fizer as coisas
enumeradas pelo apóstolo, o resultado será que você se tor­
nará cristão num sentido verdadeiro. Contudo, certamente, não
se pode aceitar essa interpretação nem por um momento, e
por esta boa razão: seria uma completa e total contradição de
toda a doutrina da Bíblia, e muito especialmente da doutrina
do Novo Testamento. O apóstolo não está exortando estas
pessoas a tornarem certa ou firme a sua vocação e eleição
num sentido supremo e eterno, pois disso elas são incapazes.
A eleição e a vocação estão no lado de Deus e constituem ação
de Deus. O apóstolo já esclarecera isso. Porventura vocês
notaram, no versículo prim eiro, aquela declaração muito
significativa, “Simão Pedro, servo e apóstolo de Jesus Cristo,
aos que conosco obtiveram fé igualmente preciosa”? Eles não
a criaram, não a geraram; obtiveram-na, receberam-na como
um dom. A fé é algo que “obtemos”, que “recebemos”.
Essa é a grande doutrina que encontramos em toda parte
no Novo Testamento, não é? “Pela graça sois salvos, por meio
da fé; e isto não vem de vós; é dom de Deus.” “Porque os que
dantes conheceu também os predestinou para serem confor­
mes à imagem de seu Filho...” Falemos com clareza sobre isto
- a vocação e a eleição estão no lado de Deus. Pedro nos dá a
palavra no versículo três - “Visto como o seu divino poder
nos deu tudo o que diz respeito à vida e piedade”. É Seu
glorioso poder, e é somente Ele que pode dar-nos o dom da

49
2 PEDRO

vida. Paulo nos diz que estávamos “mortos em ofensas e


pecados”. Mas, quando estávamos mortos em ofensas e peca­
dos, Deus “nos vivificou”. Uma pessoa m orta não pode
regenerar-se; o homem não pode dar vida a si mesmo; não
pode vivificar-se. E incapaz de qualquer ação. O homem não
pode dar novo nascimento a si mesmo. Isso tem sido sempre
uma pedra de tropeço para muitos, mas é uma das doutrinas
centrais do Novo Testamento. Esse nos diz que a salvação é,
inteiramente, dom de Deus, pela graça. Não, Pedro não nos
está dizendo aqui que elejamos a nós mesmos ou que esco-
lhamos a nós mesmos ou que chamemos a nós mesmos. E
Deus quem chama, é Deus quem escolhe. E um grande
mistério - reconheçamos e confessemos isso. A mente humana
não o pode captar e entender. Perm itam -m e avançar um
pouco mais e dizer que a mente humana jamais teria pen­
sado nisso; homem nenhum teria pensado nisso. [No contexto
religioso], os termos “eleição” e “vocação” só se acham na
Bíblia.
“Bem, se é assim”, alguém dirá, “acho que Deus não é
justo.” Mas, enquanto você estiver ansioso para entender, não
vai aceitar esta doutrina. Para mim, a essência da fé consiste
em crer onde não posso entender, porque o vejo na Palavra
de Deus. Não cabe ao pregador cristão entender a mente de
Deus, mas, sim, aceitar a Sua bondosa revelação e submeter-
-se a ela. Se eu pudesse entender a mente de Deus, minha
mente seria igual à mente de Deus. Eu não posso entender a
mente de Deus. Mas é parte essencial do trabalho do prega­
dor dizer que qualquer homem que examine a si mesmo,
sua vida e sua experiência, e que nesse momento se veja na
posição cristã e como possuidor da vida cristã, quando ele
fizer um retrospecto através da sua experiência deverá
reconhecer, admitir e confessar que ele é o que é pela graça
de Deus. Observem o mundo e verão com seus próprios olhos
a confirmação do ensino do Novo Testamento. Existem aque­
les que têm preocupação e interesse pelas coisas que estamos

50
Certeza da Salvação

discutindo; e existem as grandes multidões de pessoas que


não somente não se preocupam com elas, mas também as
descartam com desprezo e para quem tudo isso é ultrajante.
Qual seria a causa da diferença e da divisão? Por que será que
temos este entendimento e este interesse? Por que não somos
como os muitos milhares de pessoas deste mundo moderno
que não dão ouvidos? Haveria outra resposta a isso senão
que Deus nos chamou, que a graça de Deus agiu em nós?
Não, a vocação e a eleição provêm de Deus. Constituem ação
de Deus; Deus iniciou o movimento. Não haveria salvação
se Deus não tivesse agido.
Bem, que é esta exortação? E que eu e vocês estejamos
certos da nossa salvação. A exortação é para que eu e vocês
façamos estas coisas para que saibamos e estejamos cientes do
fato de que, nas palavras de Philip Doddridge, “Está feita, a
grande transação está feita”. A eleição e a vocação são atos de
Deus; mas a questão é: será que eu sei que fui chamado e
eleito? E aqui Pedro exorta estes cristãos a terem certeza
disso. João, no capítulo primeiro da sua Primeira Epístola
diz a mesma coisa. “Estas coisas vos escrevi, para que saibais
que tendes a vida eterna” - para que estejais seguros! Portanto,
aquilo pelo que o apóstolo está pleiteando é o que tradicio­
nalmente se chama segurança da salvação.
Tendo definido deste modo o sentido do texto, permitam-
-me agora passar para outra questão. Quem deve ter esta
segurança, ou a quem é destinada? Aqui também tem havido
grande confusão. Seria destinada a todos, ou somente a algu­
mas pessoas especiais? Porventura todos os cristãos foram
destinados a terem esta segurança, ou apenas uns poucos - certas
pessoas proem inentes? Oh, sim, alguém dirá, o apóstolo
Paulo tinha segurança da salvação, mas certamente isso não
foi destinado a todos nós; não foi destinado a pessoas como
nós! Contudo, o certo é que essa idéia também é uma completa
perversão do ensino do Novo Testamento. Pedro aqui escreve
para cristãos comuns. Não há diferenciação entre eles, entre

51
2 PEDRO

grandes e pequenos; e ele diz: “procurai fazer cada vez mais


firme a vossa vocação e eleição”. João, igualmente, escreveu
para aqueles cristãos primitivos, a maioria deles escravos,
todos eles pessoas m uito comuns, nada excepcionais em
capacidade e cultura. Não eram homens que tinham vida
segregada; não eram hom ens que tinham feito da vida
espiritual uma vocação; eram pessoas comuns, que realiza­
vam as tarefas mais servis do mundo. E, todavia, esperava-se
que elas fizessem sua vocação e eleição cada vez mais firme,
que soubessem que tinham a vida eterna.
Se vocês consultarem a história subsequente da Igreja,
verão que todas as vezes em que houve avivamento ou reforma,
quando a igreja se m ostrou realm ente viva, nada é mais
característico da sua vida do que este fato: seu povo tinha esta
segurança da salvação e “sabia em quem tinha crido”. Um
conhecido incidente ocorrido no Avivamento Evangélico do
século 18 ilustra isso muito bem. A primeira vez que o grande
pregador do século 18, e homem de Deus, George Whitefield,
esteve com um dos líderes metodistas galeses, Howell Harris,
em Cardiff, esta foi a primeira pergunta que ele fez a Howell
Harris: “Senhor Harris, o senhor sabe que os seus pecados estão
perdoados?” É isso! Você está seguro, está certo, pode dizer
que os seus pecados estão perdoados? E Howell Harris pôde
responder que fazia anos que se regozijava nesse conheci­
mento. É disso que o meu texto fala - o conhecimento do
perdão dos pecados, o conhecimento da posse da vida eterna
e de que somos participantes da natureza divina - “para que
saibais que tendes a vida eterna”. Para cada um de nós nada é
mais importante do que encarar a pergunta feita por George
Whitefield a Howell Harris - você sabe que os seus pecados
estão perdoados? Você sabe que é um filho de Deus? Você
pode dizer que tem a vida eterna? Lembre-se de como João o
expressa no capítulo cinco da sua Prim eira Epístola: “...o
testemunho é este, que Deus nos deu a vida eterna”. Essa é a
questão referente a nós, como foi a questão referente àqueles

52
Certeza da Salvação

cristãos primitivos. É preciso que vocês estejam certos disto,


diz Pedro, porque, se não estiverem certos, não poderão
funcionar como devem. Portanto, certifiquem-se. E nós,
cristãos modernos, estamos certos da nossa salvação?
Há alguma confusão sobre isso porque as pessoas têm
certas objeções preliminares. Quero tratar delas para que
possamos implementar esta exortação.
Muitos lhes dirão que não se deve falar desta maneira
sobre o conhecimento de que os seus pecados estão perdoados,
nem de que vocês têm a vida eterna. Por que pensam assim?
Há alguns que são completamente antagônicos à doutrina da
segurança por causa da maneira leviana como certas pessoas
usam essas expressões. Penso que temos que enfrentar isso
muito definida e francamente. Há pessoas que falam sobre a
certeza da salvação com tan ta verbosidade, com tanta
superficialidade e com um espírito que parece tão completa­
mente contrário ao espírito do Novo Testamento, que eles
definitivamente tornam outros antagônicos à doutrina. Há
pessoas que empregam essa expressão com presunção e com
um sorriso de satisfação própria e dizem que estão “gloriosa­
m ente salvas”. Há em seu falar pouco m enos que uma
leviandade ofensiva; e eu digo que é ofensiva à doutrina do
Novo Testamento. Não há frivolidade na linguagem do Novo
Testamento; não há leviandade, não há superficialidade nela.
Não há riso escarninho nem brincadeira aqui. Não há nada
daquela jovialidade artificial frequentemente manifestada
quando certos tipos de pessoas dão testemunho da sua salva­
ção - não há nada disso no Novo Testamento! A alegria do
Novo Testamento é a alegria do homem que se vê pecador
merecedor do inferno. A alegria do Novo Testamento é a alegria
daquele que compreende que ainda há corrupção dentro dele
e que atribui tudo o que ele é como salvo à graça e à misericórdia
de Deus. O homem do Novo Testamento é alguém que com­
preende que foi perdoado para poder ser chamado para a
santidade e para poder ser semelhante a Deus e semelhante

53
2 PEDRO

a Cristo. Quanto mais alguém procura ser sem elhante a


Cristo, menos frívolo, menos superficial ele é. Falemos com
clareza sobre isso.
Há, depois, outros que acham que é presunção falar em
ter certeza. Eles dizem: “Como posso eu, numa vida e num
mundo como este, dizer que sei que os meus pecados estão
perdoados? Não seria isso presunção? E, por assim dizer, não
estaria menosprezando a soberania de Deus, se eu dissesse
que sei que os meus pecados estão perdoados e que eu tenho
a vida eterna?” A resposta a isso é o que vou mostrar num
momento, dizendo: se esta doutrina não fosse ensinada no
Novo Testamento, fazer essa declaração seria o cúmulo da
presunção. Todavia, o Novo Testamento nos lembra que, não
somente não é presunção afirm ar isso, mas também que
dizê-lo não é desprezar a glória e a maravilha do evangelho
e da sua grandiosa obra de salvação.
Outra dificuldade é a das pessoas que acham que não
podem fazer esta declaração enquanto não forem perfeitas.
Para elas é ridículo dizer, “eu sei em quem tenho crido”, e que
sou possuidor da vida eterna, embora eu ainda peque e em­
bora eu ainda esteja cônscio de que há corrupção dentro de
mim. Noutras palavras, eles acham que só os que podem
arrogar-se perfeição isenta de pecado têm direito de alegar a
certeza da salvação. Mas, de novo, há aqui uma confusão
doutrinária. Não nos é dito que façamos a nossa vocação e
eleição mais firme por estarmos sem pecado e por sermos
perfeitos; a ideia de perfeição isenta de pecado não consta no
Novo Testamento. O que nos é dito é que reivindiquemos
segurança e que nos certifiquemos disso firmados noutras
bases. Não há necessidade de esperarmos até sermos perfeitos
para reivindicar isso. A doutrina do Novo Testamento salienta
que ainda existem duas naturezas residentes dentro de nós,
a nova e a velha, e que a velha natureza está continuamente
em guerra contra a nova; mas o fato de a carne estar ali não
significa que o Espírito não esteja.

54
Certeza da Salvação

Essas são algumas das objeções. Passemos agora a outra


questão prática. Por que devemos ter esta certeza? Sem dúvida
não há nada mais importante, na presente hora, do que a
Igreja de Deus considerar a razão pela qual devemos ter esta
certeza e segurança. Permitam-me sugerir algumas respostas.
Primeiramente e antes de tudo, a razão é que Deus a oferece. É
ensinada em Sua Palavra. Não é algo em que o homem pensou.
Portanto, a minha primeira razão para eu fazer mais firmes a
minha vocação e a minha eleição é que Deus me pede que o
faça. Faz parte do método de salvação estabelecido por Deus
que os homens e as mulheres tenham esta certeza e segurança.
E uma doutrina citada em toda parte nestas Epístolas do
Novo Testamento. Podemos argumentar com muita facili­
dade no sentido de que o objetivo de cada particular Epístola
do Novo Testamento é dar certeza às pessoas, dar-lhes o
conhecimento desta segurança. Deus a oferece; e é para nós.
Deste modo, embora um homem possa dar a aparência de
que é muito modesto e muito espiritual quando pergunta,
“Quem sou eu para afirmar tal coisa, e que direito tenho eu,
tão miserável pecador, de fazer uma afirmação tão exaltada?”,
a verdade é que é falsa modéstia, é uma forma espúria de
humildade.
O apóstolo Paulo não hesita em dizer que ele sabe - “Eu
sei em quem tenho crido, e estou certo de que é poderoso
para guardar o meu depósito até àquele dia”. “Estou certo”,
diz ele, “de que, nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem
os principados, nem as potestades, nem o presente, nem o
porvir, nem a altura, nem a profundidade, nem alguma outra
criatura nos poderá separar do amor de Deus, que está em
Cristo Jesus nosso Senhor.” “Desde agora, a coroa da justiça
me está guardada” - vou tê-la. Vocês acusariam tal homem de
falta de humildade? Será possível isso? Absolutamente não,
pois ele diz também: “Eu sou o menor dos apóstolos, que não
sou digno de ser chamado apóstolo”, e “Esta é uma palavra
fiel, e digna de toda a aceitação, que Cristo Jesus veio ao

55
2 PEDRO

mundo para salvar os pecadores, dos quais eu sou o principal”.^


Paulo diz: sou o principal [o pior] dos pecadores, e, todavia,
tenho certeza da m inha salvação. Esta é algo que nos é ofere­
cido, e devemos tomar cuidado com essa falsa hum ildade
sutil. Não há nada incompatível com a maior humildade em
afirmar a segurança da salvação. Permitam-me ir adiante e
dizer que os homens mais humildes que a Igreja e o mundo
conheceram foram os que tinham certeza da sua salvação.
Eles tinham consciência de que isso era inteiramente devido
a Deus, e quanto mais o homem se dá conta disso, mais
certo está e mais humilde é, por causa disso.
Também devemos ter certeza da nossa vocação e eleição
porque, de outro modo, somos cristãos incompletos, subde­
senvolvidos, somos cristãos não crescidos plenamente. O
cristão é alguém que se regozija na salvação. Se não temos
certeza, não podemos regozijar-nos, de modo que a obra de
Deus em nós, pela graça, está incom pleta, a não ser que
tenhamos certeza. Nesse caso, em certo sentido, somos umas
monstruosidades espirituais. Se nos falta certeza, somos mais
como o cego descrito no capítulo oito do Evangelho Segundo
Marcos, aquele cego que foi ter com Jesus. O nosso Senhor
começou a curá-lo, e primeiro ele disse que via os homens
“como árvores que andam”. Num sentido ele tinha visão, mas
era uma visão im perfeita, incom pleta; e o nosso Senhor
continuou a tratar dele até que ele passou a ver claramente
todas as coisas. Se faltar certeza no cristão, ele será como
alguém que enxerga mal. Realmente não manifesta a salvação
como deveria.
Outra razão, e, num sentido prático e muito mais impor­
tante, é que ter esta certeza faz de nós melhores testemunhas
de Cristo. “A alegria do Senhor é a nossa força”, diz o Velho
Testamento - e quanta verdade há nisso! O melhor obreiro a
serviço de Deus é aquele que está mais certo e seguro da sua

' NVI: “o pior”. Nota do tradutor.

56
Certeza da Salvação

posição diante de Deus. Se a pessoa estiver incerta quanto à


sua salvação e à sua posição, como poderá pregar e recomendar
o evangelho? Como poderá falar verdadeiramente sobre o
evangelho aos outros? Enquanto houver dúvidas, temores e
incertezas, a pessoa, num sentido, não tem direito de falar.
Não há nada que seja tão mutilador em nosso depoimento e
testemunho como a incerteza nesta questão. É por isso que,
quando vocês examinarem retrospectivamente a história da
Igreja, verão que homens como George Whitefield, e muitos
outros que eu poderia mencionar, e que têm sido muito usa­
dos por Deus, tinham certeza e autoridade em sua proclamação.
Ou, para expressar a questão de outra forma, é esta qualidade
que torna o evangelho atraente para os outros. Os homens e as
mulheres do mundo olham para nós e nos observam. Eles
parecem ter muita certeza de tudo e, então, um dia, a morte
vem, ou desentendim entos, ou guerras, ou problem as e
tribulações. Essas coisas os abalam, e eles não sabem para onde
se voltar. Mas, se eles vêem outra pessoa na mesma situação e
que, não obstante, permanece calma e controlada, com uma
paz imperturbável e com uma alegria subjacente a todas as
ansiedades, perturbações e tribulações que há na superfície,
eles se põem a perguntar: “Como podemos obter isso, qual é
o segredo?” Noutras palavras, o homem que tem certeza é
o homem que exerce atração. E o homem que mostra que
conhece a sua causa e que entende o seu dever; é o homem
que irradia certeza e autoridade que atrai vocês; esse é o tipo
de homem do qual a Igreja tem necessidade atualmente.
O mundo está em busca desse homem; quanto mais certos
e seguros vocês e eu estivermos da nossa vocação e eleição,
mais atrairemos outros, trazendo-os a Cristo, e mais capazes
seremos de ajudá-los.
E então, como se pode obter esta certeza? Como posso
fazer certa e segura a m inha vocação e eleição? Há dois
principais perigos neste ponto. O primeiro é o de exagerar no
auto-exame. Falando resumidamente, há algumas pessoas

57
2 PEDRO

que nunca se examinam - esse é um perigo. Mas há outras


pessoas que sobrecarregam nisso e se tornam mórbidas -
passam a vida tomando seu pulso espiritual. O resultado é que
nunca fazem outra coisa. Há, depois, o perigo de ficar espe­
rando por alguma grande experiência ou por algum tipo de
visão ou de manifestação extraordinária. O Novo Testamento
não menciona tais coisas.
Qual é a maneira neotestamentária de se obter certeza?
Prim eiram ente, a fé objetiva nos fatos concernentes ao
Senhor Jesus Cristo. Se você se sente inseguro, se se sente in­
feliz, a primeira coisa é olhar para o Senhor Jesus Cristo. Se
vocês olharem para si mesmos e para nada mais, não vão ver
nada, a não ser escuridão. Homem nenhum pode sentir-se
seguro olhando para o seu próprio coração. Olhem para o
Senhor, olhem para o filho de Deus, vejam-no morrer por
seus pecados. Sejam objetivos - olhem para Ele; em seu
desespero e em seu pecado, olhem para Ele. Ele veio, não
para os justos, mas para os pecadores; não para os inculpá-
veis, mas para os culpados. Ele m orreu por pecadores;
portanto, se vocês vêem os seus pecados, olhem para Ele,
comecem por Ele, sejam objetivos.
Que é que vem em seguida? O próximo passo, segundo
Pedro, é completar a sua fé, abastecê-la. Vocês começam
baseando a sua fé inteiram ente em Cristo e em Sua obra
consumada em favor de vocês. Depois, tendo feito isso, vocês
acrescentam à sua fé, etc. Esse é o método do Novo Testamento.
Não fiquem apenas sentados na contemplação de Cristo;
saiam e pratiquem a vida cristã. E uma coisa extraordinária,
mas, quanto mais fizermos por Ele, mais certos estaremos
dEle. Não somos justificados pelas obras - Ele é a nossa
única esperança. Mas, tendo visto isso, quanto mais vocês
fizerem, mais certos e seguros estarão. Acrescentem, pois, à
sua fé a virtude, e à virtude o conhecimento, e ao conheci-
mento temperança, e à temperança paciência, etc. E assim
que se faz. Estas coisas interagem umas sobre as outras.

58
Certeza ãa Salvação

Quanto mais realizamos a obra do Senhor e praticamos a


vida cristã, mais certos estamos do Senhor.
Se enxergarmos claramente e lembrarmos constante­
mente que a nossa única esperança está em Cristo e na obra
que Ele realizou por nós; e se, por causa disso, porque
cremos nEle, fizermos tudo o que pudermos para ser-Lhe
agradáveis e para completar a nossa fé, ao fazermos isso o
Espírito Santo “testificará com o nosso espírito que somos
filhos de Deus”. Portanto, não fiquemos sentados esperando
passivamente; façamos tudo o que pudermos; acrescentemos
à nossa fé, manifestemos a vida, e quanto mais a manifes­
tarmos, mais certeza teremos dela. Noutras palavras, se vocês
não exercitarem os seus músculos, menos capazes serão de
usá-los. Quanto mais os exercitarem, mais certos estarão
deles, e mais poderosos eles ficarão. Essa é a norma para a
vida cristã - creiamos e façamos. Ajamos e pratiquemos; e,
quando fizermos isso, faremos nossa vocação e eleição firme
e segura.
Permita Deus que, quando, por Sua graça, viermos a im­
plementar estas coisas, possamos fazer face àquela pergunta
de George Whitefield sem temor e com segurança.
Você sabe que os seus pecados estão perdoados? Será
que você pode dizer: “Eu sou um participante da natureza
divina”, “sou filho de Deus”, “nasci de novo”? Essa é a questão,
e é desse modo que se pode responder satisfatoriam ente
tal pergunta.

59
Vida e Morte
“Porque, se em vós houver e abundarem estas coisas,
não vos deixarão ociosos nem estéreis no conhecimento
de nosso Senhor Jesus Cristo. Pois aquele em quem não
há estas coisas é cego, nada vendo ao longe, havendo-
s e esquecido da purificação dos seus antigos pecados.
Porque assim vos será amplamente concedida a entrada
no reino eterno de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. ”
- 2 Pedro 1:8, 9, 11

Nestes versículos temos a continuação da exortação dos


versículos 5, 6 e 7, que o apóstolo tinha dirigido aos cristãos
aos quais ele estava escrevendo.
A exortação central é esta - “E vós também, pondo nisto
mesmo toda a diligência, acrescentai à vossa fé a virtude, e à
virtude a ciência, e à ciência temperança, e à temperança
paciência, e a paciência piedade, e à piedade amor fraternal, e
ao amor fraternal caridade”. Essa é a exortação, e depois ele
acrescenta os versículos que agora estamos considerando.
Noutras palavras, o que o apóstolo faz aqui é fornecer razões e
motivos para ajudar estes cristãos a porem em prática a sua
exortação quanto a abastecerem com aquelas outras graças a
sua fé; pois ele tinha mostrado que um efeito e resultado de
fazerem isso seria que eles fariam cada vez mais firmes a sua
vocação e a sua eleição. Não somente seriam salvos, mas
também saberiam que estavam salvos; e teriam alegria e
segurança na felicidade e na certeza desse conhecimento de
Deus como Pai, e de sua relação com Ele em nosso Senhor
e Salvador Jesus Cristo.

60
Vida e Morte

Mas agora eu desejo considerar com vocês estas razões


adicionais, com outros motivos mais, apresentados pelo
apóstolo em sua tentativa de persuadir os cristãos a abastece­
rem destas outras graças a sua fé. O apelo aqui feito pelo
apóstolo é algo bastante típico e característico do ensino do
Novo Testamento, em toda parte, no que diz respeito à santi­
dade e à santificação. Pode-se fazer im ediatam ente dois
comentários a respeito disso, porque é muito característico do
método do Novo Testamento. O primeiro é que o apelo do
Novo Testamento para a santidade nunca é feito em termos da
lei. O Novo Testamento nunca vem a nós apresentando-nos a
lei; nunca vem até nós meramente ditando que façamos isso e
não façamos aquilo. Nesse sentido, o Novo Testamento não
nos trata como crianças. Não nos insulta, por assim dizer,
colocando-nos sob uma lei rígida; e todo aquele que tem uma
visão legalista da santidade longe está do ensino essencial do
Novo Testamento. Não é desse modo que o Novo Testamento
ensina a santidade. Antes, o que ele faz é um apelo, tanto à
nossa razão como ao nosso entendimento. O Novo Testamento
a apresenta de um modo que é como se dissesse: se vocês afir­
mam que creem em certas coisas, se vocês realmente querem
dizer o que dizem, vocês não vêem, realmente, que devem fazer
certas coisas? Noutras palavras, o Novo Testamento, em seu
apelo com vistas à santidade, é sempre racional e razoável. Vocês
afirmam, diz ele, que vieram a ser um certo tipo de pessoas;
muito bem, sigam a sua própria lógica, ponham em prática e
apliquem o que vocês realmente declaram crer. Naturalmente,
se vocês não alegam crer, não há apelo nenhum ; mas, se
alegam crer, muito bem então, diz o Novo Testamento, sejam
razoáveis. Vocês creem que são filhos de Deus, “participantes
da natureza divina”; e então, por isso, será que vocês não veem
que é inevitável que, necessariamente, abasteçam a sua fé com
a virtude, e a virtude com o conhecimento, etc.? O Novo
Testamento faz da santidade a coisa mais razoável e de bom
senso imaginável, e a sua argumentação geral com respeito

61
2 PEDRO

aos que não se preocupam com a santidade é que eles são


completamente irracionais e autocontraditórios.
Isso me leva ao meu segundo comentário, que é que, de
acordo com o próprio Novo Testamento, não há nada que seja
tão totalmente ilógico e irracional como o cristão professo que
faz objeção ao chamado do Novo Testamento para a santidade.
Isto cheira de algo completamente ilógico. Pois bem, o Novo
Testamento não fica nem um pouco surpreso com as pessoas
que não se dizem cristãs objetarem a este padrão. O Novo
Testamento não se surpreende nem um pouco que homens e
mulheres de fora da Igreja não se interessem por estas coisas,
ou que considerem a vida cristã como algo que estraga e arruina
a vida, e que torna a vida algo totalmente odioso. O Novo
Testamento não se surpreende pelas pessoas de fora falarem
desse modo. Ele espera que elas façam essa idéia dele e do seu
ensino. Não espera que os incrédulos gostem dele; na verdade,
espera provocar antagonismo. Talvez alguns de vocês se
lembrem do conselho que Martinho Lutero deu a seu amigo
Philip Melanchton quando esse dava início à sua carreira.
“Pregue sempre”, disse Lutero, “de tal modo que, se os seus
ouvintes não odiarem os pecados deles, odeiem você”. O
incrédulo, necessariamente, considera o modo de vida cristã,
e a santidade ensinada no Novo Testamento, como algo
totalmente insípido, algo estreito. Ele o considera como um
padrão impossível. Ora, de acordo com Pedro nestes versícu­
los, e de acordo com o Novo Testamento em toda parte, é agir
de modo completamente ilógico e irracional, e é colocar-nos
numa posição desesperadora e contraditória. Não há melhor
teste para verificar se somos verdadeiramente cristãos ou não,
do que a nossa reação a esta exortação do apóstolo. Como eu
me sinto quando encaro esta exortação a acrescentar à minha
fé a virtude, etc.? Como me sinto quando encaro o apelo para
que eu me negue a mim mesmo, tome a cruz e siga Cristo?
Reajo contra? Sinto-me oposto a isso, não gosto disso, é
objetável para mim? Eu digo que a minha resposta a essas

62
Vida e Morte

perguntas proclama exatam ente a m inha posição; e, em


última instância, um dos melhores testes quanto a se a minha
profissão de fé tem algum real valor, é a minha reação a este
apelo do Novo Testamento. Esse é o argumento que Pedro
desenvolve aqui em detalhe, e o expressa dessa maneira.
Existem três principais razões pelas quais todos nós
devemos diligenciar para fazer firme a nossa vocação e elei­
ção, pelas quais todos nós devemos retesar cada nervo para
abastecer a nossa fé com estas outras qualidades. Duas razões
são positivas, e a outra é negativa. Pedro coloca um argumento
positivo primeiro, depois um negativo, no meio, e depois ter­
mina usando um argumento positivo. Mas talvez seja mais
conveniente para nós, e para a nossa memória, começarmos
pelo argumento negativo e depois irmos para os dois positivos.
A razão negativa para abastecermos a nossa fé com a
virtude, o conhecimento, etc., é dada no versículo 9. Posta na
forma de princípio, o argumento declara que não acrescentar
à fé a virtude, etc., é demonstrar ignorância do propósito
fundam ental da vida cristã. Eis como Pedro o expressa:
“Aquele em quem não há estas coisas é cego, nada vendo ao
longe, havendo-se esquecido da purificação dos seus antigos
pecados”. Assim é que o homem que não se preocupa em
fazer firme a sua vocação e eleição, que não se preocupa em
esforçar-se para progredir na santidade e em equipar a sua fé
com todos estes meios, é um homem que, de acordo com a
Bíblia, ignora o propósito fundamental da vida cristã. Em
primeira instância, Pedro afirma que esse homem tem vista
curta - “Aquele em quem não há estas coisas é cego, nada vendo
ao longe”. Ele não consegue ver coisas distantes; tem vista
curta; só enxerga o que está imediatamente em frente dele.
Não vê o cenário distante; ele é um homem que só se preo­
cupa com 0 transitório e com o presente. Quer gozar a vida
aqui e agora e esquece a outra vida, por vir. Vê tanta coisa do
mundo a seu redor e suas brilhantes conquistas, sua pretensa
felicidade e alegria, e tudo aquilo para o que o mundo vive.

63
2 PEDRO

que não vê mais nada. Ele vê as coisas que estão diretamente


em sua frente, mas não consegue enxergar as que estão mais
longe. Portanto, o que obviamente o apóstolo quer dizer é
que esse tipo de pessoa não vê o fim supremo da vida cristã:
não vê a meta final. E um homem que alega que encetou uma
jornada, mas esqueceu para onde vai; esqueceu por que saiu
e o propósito com o qual tinha saído. Qual é a meta da
vida cristã? Que é que procuramos alcançar finalmente?
Qual é nosso alvo e nosso destino? Não há dúvida sobre
isso no Novo Testamento. O objetivo disso tudo é que vejamos
Deus e que O fruamos para sempre. Muito bem, diz Pedro,
se essa é a meta suprema, se vocês, como cristãos, veem que o
fim que devem alcançar supremamente é ver Deus e passar
a eternidade em Sua santa presença, e desfrutá-10 para
sempre, se vocês creem nisso, então este é o argumento.
Há certas declarações que foram feitas sobre esse supremo
alvo e objetivo, e aqui estão algumas delas: “Bem-aventurados
os limpos de coração, porque eles verão a Deus”. Eu quero
ver Deus. Muito bem, que é que eu devo fazer? Purificar
meu coração - isso é inevitável. Ou escutem a Epístola aos
Hebreus dizer a mesma coisa: “Segui a paz com todos, e a
santificação, sem a qual ninguém verá o Senhor”. Eu quero
ver o Senhor. Muito bem, diz o escritor, vá em busca da
santidade, pois, sem ela, ninguém verá o Senhor. Ou escutem
João, em sua P rim eira E pístola, dizer a mesma coisa:
“Q ualquer que nele tem esta esperança” (de ver Cristo)
“purifica-se a si mesmo, como também ele é puro”. E desse
modo que o Novo Testamento expressa este ponto. Acaso
você diz que quer ver Deus? Bem, lembre-se de que Deus é
santo, perfeito e puro; e se você realmente quer vê-10, não tem
um momento para ceder, não tem um segundo para perder.
Comece a purificar o seu coração. Seja puro como Ele é puro.
Se você não faz estas coisas, você tem vista curta, não consegue
ver ao longe, é cego, esqueceu o que você tencionou fazer.
Mas não só isso, diz Pedro; tal homem tinha-se “esquecido

64
Vida e Morte

da purificação dos seus antigos pecados”. Noutras palavras,


esse homem não só não consegue ver adiante, mas também
não consegue ver atrás. Não tenho dúvida de que, quando
Pedro escreveu esta carta, era idoso. Talvez já estivesse
chegando perto do fim da jornada, no sentido físico, e isso o
impressionou como uma analogia e ilustração muito boa.
Homem de vista curta, não conseguia enxergar adiante, e não
conseguia enxergar atrás. “Esquecido da purificação dos seus
antigos pecados.” Que será que ele quer dizer com isso? Que
tal homem se esquecera do propósito inicial do evangelho, do
objetivo da salvação! Afinal, por que foi que o Senhor Jesus
Cristo veio a este mundo? Qual é o propósito da Encarnação?
Voltem ao capítulo primeiro de Mateus e ali verão a resposta.
“Chamarás o seu nome Jesus.” Por quê? “Porque ele salvará o
seu povo dos seus pecados.” Foi por isso que Ele veio. Ele
jamais teria saído das mansões celestiais, não fosse isso. Será
que eu acredito que Jesus de Nazaré é o Filho de Deus? Creio
na Encarnação? Vejo por que a Substância da Substância
Eterna abandonou as mansões celestiais e veio à terra? Há
somente uma resposta; Ele veio para libertar o Seu povo dos
seus pecados. Por que Ele morreu na cruz do Calvário? Qual
é o sentido disso? Que é que o pão e o vinho da Ceia do
Senhor representam? Por que o Seu corpo foi partido e o Seu
sangue foi derramado? Seria apenas uma figura, apenas um
incidente dramático? Não, o propósito e o objetivo que Ele
tinha quando fez isso foram expostos uma vez por todas pelo
apóstolo Paulo no capítulo dois da Epístola a Tito, versículo
catorze, onde ele diz que Cristo “se deu a si mesmo por nós
para nos remir de toda a iniquidade, e purificar para si um
povo seu especial, zeloso de boas obras”. Porventura você
crê que Jesus de Nazaré é o Filho de Deus; você crê que Ele
foi deliberadamente àquela morte na cruz do Calvário? Se
você crê nestas coisas, diz Pedro, eis a lógica disso - se você
crê que Ele Se humilhou e Se despojou das insígnias da Sua
deidade, que Ele veio e compartilhou a vida dos homens e

65
2 PEDRO

das mulheres, que sofreu por muito tempo a contradição dos


pecadores, que Ele esteve no jardim suando gotas de sangue,
que Ele suportou o opróbrio e a agonia da cruz para que você
fosse libertado do poder e da corrupção do pecado, para que
você fosse feito perfeito, sem mácula e santo - se você crê que
esse é o pano de fundo e o princípio de toda a sua posição, só
lhe cabe fazer uma coisa, você tem que ficar tão longe do
pecado quanto puder, tem que odiar o pecado. Se você crê
que Cristo o libertou do pecado, como pode continuar no
pecado? Não pode! Você precisa aplicar toda a diligência
para fazer firme a sua vocação e eleição. Você deve desejar
ansiosamente abastecer a sua fé com a virtude, o conheci­
mento, a temperança, a paciência e todas as demais coisas.
Quem não faz isso esqueceu-se de que foi purificado dos
seus antigos pecados; esqueceu-se do propósito geral da
encarnação, da humilhação de Cristo, da agonia e da morte
na cruz e da gloriosa ressurreição. Ele é totalmente incoerente,
contradizendo a si próprio. Diz ele que crê no Senhor Jesus
Cristo para ser libertado do seu pecado, e, contudo, continua
no pecado. Ele é culpado até de m ercadejar a cruz de
Cristo. Esse homem esqueceu o propósito realmente inicial
e fundamental da vida cristã.
Passemos, porém, ao segundo argumento. Pedro assim
exorta os homens e as m ulheres a, dessa forma, fazerem
diligentemente firme sua vocação e eleição, porque fazer
estas coisas produz uma vida ativa e frutífera. Essa é a mensa­
gem do versículo 8. “Porque, se em vós houver e abundarem
estas coisas, não vos deixarão ociosos nem estéreis no
conhecimento de nosso Senhor Jesus Cristo”. Ora, geralmente
se concorda que a palavra “estéreis” é uma tradução errônea.
Na margem da Versão Autorizada (inglesa) consta a palavra
certa - é a palavra “ociosos” [na ARC “ociosos” corresponde a
“banen”, estéreis, na VA, e “estéreis” corresponde a “infrutí­
feros”]. Se houver estas coisas em vós, elas farão com que não
sejais nem “ociosos nem infrutíferos”, etc. Pois bem, essa é a

66
Vida e Morte

segunda razão para fazer estas coisas; e vocês veem que é


uma razão positiva. O problema que há com muitos de nós,
cristãos, é que a nossa vida cristã e muito ociosa. Dizemos
que cremos nestas coisas, mas, que fazemos a respeito?
Somos muito ativos com relação a outras coisas nas quais
acreditamos; seja num clube de que fazemos parte; seja num
jogo no qual entramos com todo o empenho; seja num negó­
cio, no qual aplicam os nossas energias. Todavia, aqui,
reivindicamos que Deus Se interessa por nós e que Cristo
morreu por nós - aqui fazemos a maior reivindicação que um
homem poderia fazer - porém, o que é que estamos fazendo
sobre isso? Nossa declaração estaria levando a algum tipo de
atividade?
Pergunto como nos sentimos quando nos comparamos
com os nossos antepassados. As vezes me pergunto se a maior
diferença entre os cristãos modernos e os cristãos do século
dezenove não está justamente neste ponto: eles eram ativos, e
nós somos ociosos. Aqueles homens acreditavam em reuniões
de oração. Eles iam às reuniões de oração e oravam; eles tinham
suas reuniões de comunhão, suas reuniões de estudos, suas
reuniões sociais. Eles queriam conversar sobre estas coisas,
sobre a vida espiritual e sobre os problemas da vida espiritual.
Viviam a vida cristã; organizavam sociedades missionárias.
Havia grande atividade na vida deles. Mas de algum modo
insinuou-se a ideia de que ser cristão é fazer subscrição a
certas idéias e frequentar ocasionalmente a casa de Deus e
p articip ar dos meios da graça. Sentam o-nos, ouvimos,
recebemos, mas não fazemos nada - não há atividade cristã
em nossas vidas. Que cada pessoa se examine à luz desta
palavra.
“Muito bem”, alguém dirá. “eu vejo e reconheço isso;
tenho que admitir e confessar que sou ocioso em minha vida
cristã. Que devo fazer; qual é a sua exortação a mim para que
eu possa livrar-me desse espírito de ociosidade que parece ter
descido sobre mim?” Bem, aqui o apóstolo tem algo muito

67
2 PEDRO

importante e vital para dizer. Neste ponto Pedro declara que


a atividade sempre deve ser resultado do caráter; e essa distin­
ção é realmente fundamental. Temos que ser algo e tornar-nos
algo antes de fazermos alguma coisa. Não entendamos mal a
exortação do apóstolo aqui. Ele não nos está exortando apenas
a precipitar-nos à atividade. Tampouco Pedro ou qualquer outra
pessoa do Novo Testamento acreditava em agitação e ativismo,
e em corre-corre, para o crente estar sempre em muita ativi­
dade. Absolutamente, não é esse o apelo do Novo Testamento.
O Novo Testamento não está interessado em atividade por
amor da atividade. Não está interessado em atividades e
esforços mecânicos. Na Igreja atual multiplicamos as nossas
instituições e as nossas conferências, e há pessoas tremenda­
mente ativas; mas não é essa a atividade da qual fala o Novo
Testamento. O apóstolo coloca a questão nestes termos: não
exorta estas pessoas a se ocuparem em fazer coisas; ele as exorta
e as concita a lutarem para se tornarem semelhantes a Cristo.
E assim que ele se expressa a respeito. Além disso, diz ele,
aplicando toda a diligência, acrescentem à sua fé a virtude, e
à virtude o conhecimento, etc. Depois ele diz: “Se em vós
houver a abundarem estas coisas, não vos deixarão ociosos”.
Vocês vêem como funciona. Pedro os concita a que cada um se
concentre em tornar-se um homem santo porque, quem se
tornar santo se tornará, necessariamente, um cristão ativo.
Essa é a diferença entre o método cristão verdadeiro e o ati­
vismo carnal. Devemos ser diligentes no cultivo das virtudes
e graças de Cristo, pois, se fizermos isso, “se em vós houver
e abundarem estas coisas, não vos deixarão ociosos. A sua
atividade será, então, determinada pelo Espírito Santo, e não
por seu excitamento carnal, não pela pressão do seu nervo­
sismo, não pelo seu prazer em estar ocupado e em ser ativo.
Será o resultado de uma natureza semelhante à do Filho de
Deus. Ele ia por toda parte fazendo o bem, Ele era o que era
e fazia o que fazia por causa da Sua natureza santa; e vocês
devem ser semelhantes a Ele”, diz Pedro.

68
Vida e Morte

Depois ele passa a mostrar que essa espécie de atividade


será frutífera. Esse outro tipo de atividade, esse mero ativismo
mecânico, não é muito frutífero. Basta ver isso no que se
refere à Igreja atual. Examinem a agitação e a atividade
organizada da Igreja. Mas, que é que isso está produzindo e a
que está levando? Apesar de termos m ultiplicado nossas
organizações e instituições, o número de membros de igreja
está diminuindo, o número de pessoas que frequentam locais
de culto é cada vez menor, e o mundo não está melhor. A
atividade agitada é infrutífera; mas, se nos entregarmos à
atividade cristã verdadeira, esta será frutífera. E será frutífera
desta maneira: se nos concentrarmos em desenvolver o caráter
cristão, exerceremos atração sobre outros. Quando os homens
e as mulheres nos observarem, verão em nós gente boa e santa,
e perguntarão: “Que é que estas pessoas têm, por que são tão
encantadoras e atraentes, que paz e que compostura são estas
que elas possuem, e que atmosfera de santidade e de bondade
é esta que sentimos nelas, que é que elas têm e que nos falta?”
Se desenvolvermos o caráter, esse exercerá atração. Não so­
mente isso, mas também o desenvolvimento do nosso caráter
cristão nos fará compassivos e compreensivos; poderemos
entender e considerar os problemas alheios. Em acréscimo nos
dará conhecimento e entendimento, e seremos capazes de
ensinar. Daí, quando outros vierem ter conosco com aflição
e angústia de alma, estaremos habilitados a dar a razão da
esperança que há em nós, estaremos habilitados a guiá-los a
Cristo, e estaremos habilitados a confortar os seus corações com
as promessas do evangelho. O homem ativamente ocupado
num sentido carnal não pode fazer isso; mas o homem verda­
deiramente cristão tem o que passar adiante. O cristão é alguém
semelhante a Cristo; e, se nos esforçarmos para desenvolver o
caráter de Cristo, as nossas vidas se tornarão frutíferas. Sobre
Ele nós lemos: “Chegavam-se a ele todos os publicanos e peca­
dores para o ouvir”. As crianças vinham a Ele; os párias, os
aflitos, vinham a Ele, muito embora estando Ele sem pecado

69
2 PEDRO

nem mancha. Que seria isso? Ah, era simplesmente Sua graça!
E é assim que devemos ser; e é assim que devemos aplicar
a nossa energia no cultivo destas graças. Então não seremos
ociosos, e as nossas vidas serão frutíferas como frutífera foi
a vida de Jesus.
No entanto, isso nos leva à derradeira razão para culti­
varmos estas graças, e esta razão, desejo lembrar-lhes, também
é positiva. Devemos acrescentar à virtude o conhecimento, etc.,
por esta razão: que isso leva a um feliz e glorioso fim para a
vida. Vocês veem a lógica do apóstolo. Significa que vocês
começam do jeito certo, continuam do jeito certo, o que
significa que terminarão do jeito certo. Se tão-somente vocês
fizerem estas coisas, diz Pedro, vocês darão cobertura a toda a
sua vida. Quando meditamos neste último argumento, vemos
uma vez mais a total loucura que há em negligenciar estas
coisas. Mais uma vez vemos como é cego e tem vista curta o
homem que não diligência em acrescentar à sua fé a virtude,
0 conhecimento e outras graças. Que vista curta esse homem
tem! Ele esqueceu aquilo que se lhe antepõe.
Mais uma vez quero dizer-lhes que não há nada, talvez,
que teste e revele tão exatamente onde estamos e que posição
ocupamos como a maneira como encaramos o fim. O que vai
finalmente testar o valor da nossa fé professa é a maneira pela
qual encaramos a velhice, a maneira pela qual encaramos a
morte. Acaso vocês não ficam decepcionados, às vezes, quando
observam certos idosos? As vezes pode até ser trágico. A velhice
nos prova, pois, quando entramos nesse estágio, as nossas
forças naturais vão faltando. Sucede que muitos de nós vivemos
nesta existência e neste mundo dependendo de nossa própria
atividade. E por isso que m uita gente m orre de repente
depois que se aposenta da vida de negócios; e muitas vezes
0 médico sábio aconselha tais pessoas a não abandonarem
totalmente o seu trabalho, mas que vão fazê-lo duas ou três
vezes por semana. Não há nada que faça prosseguir o homem
que vive dependente do seu trabalho e depois se aposenta.

70
Vida e Morte

Isso aplica-se também em conexão com o trabalho cristão.


O homem pode viver da sua pregação, em vez de viver de
Cristo, exatamente como alguém pode viver do seu trabalho.
Mas, quando chega a velhice, não pode fazer o que fazia;
faltam-lhe as forças, e ele não consegue apreciar as coisas
do mundo. E lá está ele, entregue a si próprio! Esse é o teste.
Face à velhice, como vamos morrer? Bem, diz o apóstolo, o
homem que acrescenta o que deve acrescentar à sua fé é o
homem que morre gloriosa e triunfantemente - “assim vos
será amplamente concedida a entrada no reino eterno de
nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo”. Notem como Pedro
joga com as palavras. Vejam a palavra “concedida” [VA:
“ministrada”]; vocês sabem que é exatamente a mesma palavra
traduzida por “acrescentai” no versículo 5? “Ministrada” a
vocês - se vocês fizerem certas eoisas, uma entrada lhes será
ministrada - vocês ministram estas coisas, e esta entrada lhes
será ministrada. Vocês morrerão gloriosa e triunfantemente.
Como funciona isso? Eis o que Pedro diz: quando eu
envelhecer, e quando eu morrer, se sou cristão verdadeiro, a
morte será para mim tão-somente uma entrada, uma entrada
para uma vida gloriosa. Posso me expressar melhor sobre
isso contrastando-o com o que disse Tennyson. Lembrem-se
de como Tennyson descreve a morte? Diz ele:

O pôr do sol e a estrela vespertina,


E um claro chamamento a mim é feito!
E pode não haver na barra pranto algum,
Quando me lanço ao mar.

Não! - com o maior respeito possível ao grande poeta - isso


não é cristão. O cristão, quando morre, não cruza a barra e se
lança ao mar. Não; é mais como o expressa Charles Wesley:

Levado a salvo ao seguro porto,


/

O, recebe minha alma finalmente.

71
2 PEDRO

- essa é a ideia cristã da morte. E ir para casa, é entrar no


porto: “Uma entrada vos será ministrada”. Não um lançar-se a
um oceano sem roteiro, não um vagar para algum ponto
obscuro, para um mundo não mapeado. Nada disso, mas, sim,
uma entrada para o porto, indo para casa. Que significa isso
tudo? Significa que o cristão m orre desse modo porque
conhece Deus. Ele lutou diligentemente para conhecê-10 cada
vez melhor. Ele conhece Cristo. Ele sabe para onde vai. Ele
não se sente solitário quando está morrendo, porque Cristo
está com ele. Cristo lhe prometeu: “Não te deixarei, nem te
desampararei” e “Quando passares pelas águas estarei contigo”;
e Ele está ali. O cristão não se sente estrangeiro, ele tem algum
conhecimento da terra para onde vai. Ele tinha meditado nela,
ele a tinha contemplado pela fé. Ele estivera observando
“as coisas invisíveis e eternas”, e pensava “nas coisas que são
de cima”. Por isso encara a morte e diz: vou indo para casa,
vou estar “com Cristo, porque isto é ainda muito melhor”. E
assim se foi o medo da morte - ele não faz objeção sobre
p a rtir porque sabe com exatidão para onde vai, e para
Quem ele vai. Ele pensa tam bém na entrada ampla, na
entrada “amplamente concedida”. Que significa isso? Signi­
fica algo assim: o cristão que respondeu afirmativamente
ao apelo de Pedro e que aplicou toda a diligência a viver
plenamente a vida cristã, não morre cheio de lamentações
por suas falhas e faltas; antes, ele é alguém que pode dizer
com Paulo, quando contem pla o fim: “Com bati o bom
combate, guardei a fé. Desde agora, a coroa da justiça me está
guardada”. E desse modo que o cristão morre. Ele aplicou
esta diligência, viveu realmente a vida, e assim não se sente
culpado; não acha que esteve desperdiçando o tempo. Ele
não diz: “Se tão-somente eu pudesse voltar atrás, eu seria
melhor”. Não há amargas lamentações, ele está certo e seguro
da ampla [abundante] entrada. Não é salvo apenas “como
que pelo fogo”.
E além e acima disso, ele recebe profusas boas-vindas.

72
Vida e Morte

Vêm a seu encontro as hostes angelicais do céu. Ele é como


o hom em chamado Lázaro, a respeito de quem o nosso
Senhor falou. Certamente vocês se lembram de que os anjos
vieram e o levaram para o seio de Abraão. E assim que o
cristão morre. Vocês se lembram de como João Bunyan fala
disso. Ele descreve a marcha de Cristão e de Esperançoso,
e diz que uma multidão dos exércitos celestiais, com harpas
nas mãos, veio ao encontro deles, e eles entoaram cânticos
que homem nenhum pôde entender, exceto aqueles dois e
os considerados dignos de serem admitidos naquele bendito
lugar. As boas-vindas dos anjos e dos espíritos glorificados!
Mas, acima de tudo, quando o cristão está entrando no
porto, uma voz diz: “Vinde, benditos de meu Pai, possuí por
herança o reino que vos está preparado desde a fundação do
mundo - entrai no gozo do teu Senhor”. E dessa maneira que
o cristão morre. Porventura vocês não se sentem, ao ouvirem
tais palavras, que querem exclamar com um cristão da
antiguidade: “Que eu morra a morte do justo, e que o meu
derradeiro final seja como o dele”? Bem, há somente um
caminho que garante a abundante entrada no Reino eterno.
É este: “Bem-aventurados aqueles que cumprem seus manda­
mentos, para que tenham direito à árvore da vida e possam
entrar pelas portas da cidade” (VA). Se você, amigo, quer que
lhe seja m inistrada a abundante entrada quando morrer,
aplique toda a diligência a abastecer sua fé com a virtude, o
conhecimento, a temperança, a paciência, a piedade, a bon­
dade fraternal e o amor - ou a ministrar essas graças para a
sua fé. Ministrem estas coisas, e as ouras serão ministradas
para voeês.

73
Coisas que Jamais Devemos
Esquecer
“Pelo que não deixarei de exortar-vos sempre acerca
destas coisas, a in d a que bem as saibais, e estejais
confirmados na presente verdade. E tenho por justo,
enquanto estiver neste tabernáculo, despertar-vos com
admoestações, sabendo que brevemente hei de deixar este
meu tabernáculo, como também nosso Senhor Jesus
Cristo já mo tem revelado. M as também eu procurarei
em toda ocasião que depois da minha morte tenhais
lembrança destas coisas.” - 2 Pedro 1:12-15

Nos prim eiros onze versículos, o apóstolo expôs sua


principal tese. Seus leitores estavam em angústia e desanima­
dos porque tendiam a esquecer as coisas nas quais tinham
crido quando se tornaram inicialm ente cristãos. Isso é
sumamente importante, pelo que, nestes quatro versículos,
ele trata de toda a questão de tê-las em mente e de mantê-las
na lembrança. Esse é seu objetivo geral ao escrever; é por
isso que ele disse o que disse.
Quando examinarmos esta sua exposição, descobriremos
um bom número de princípios gerais, como também uma
ênfase e mensagem específica e peculiar. Há alguns pontos
gerais que são de grande valor para nós e que devemos partilhar
com os incrédulos. Tomemos, por exemplo, certos fatos e pontos
relacionados com a lembrança. Existiria coisa mais caracte­
rística da vida do que a nossa tendência de esquecer? E agora
é bom parar por um momento e considerar isso. Com que

74
Coisas queJamais Devemos Esquecer

facilidade esquecemos pessoas! Com que facilidade esque­


cemos amigos! Todos nós temos tido a experiência de pensar
que, quando certas pessoas m orrem , jamais poderiamos
esquecê-las, que a lembrança delas estaria sempre presente
conosco, que nunca haveria sequer um momento em que elas
estariam fora da nossa memória. Mas isso não tem sido o caso.
Nós esquecemos. As vezes dizemos que o tempo é um remédio
maravilhoso, mas isso é apenas outro modo de dizer que temos
esta constante tendência de esquecer. Temos, igualmente, a
tendência de esquecer grandes e exaltados momentos. Isso é
um fato na vida do indivíduo, como também na vida das
nações. Todos nós sabemos o que é, num sentido ou noutro,
estar no pico da m ontanha - pode ser uma experiência
espiritual que a pessoa tem, ou pode ser um grande momento
de alta percepção com respeito a seu trabalho ou profissão.
Isso também é um fato na vida das nações. Constantemente
se faz referência ao espírito de D unquerque e a como a
Inglaterra se ergueu a grande altura e de repente se tornou
una, como foram esquecidas as diferenças menores, e o espírito
geral da nação foi repentinamente unificado. Naquele tempo
os homens e as mulheres sentiram, num novo sentido, a real
natureza da guerra, e o valor do país e sua grandeza. Eles diziam
que coisa alguma deveria ser poupada, a fim de que o país
fosse livre e triunfante. Mas, quão facilmente caímos daquele
momento exaltado, quão facilmente nos afastamos lenta­
mente daquele tempo de exaltação e de visão! Ou vejamos a
questão no que se refere aos votos e compromissos. Como
resultado de alguma experiência, fizemos um voto e assumi­
mos um compromisso. Dissemos: “Daqui por diante estou
determinado a viver de tal ou qual maneira”. Mas, com que
facilidade nos esquecemos do voto, do compromisso e do
juramento solene! Como é fácil, posteriormente, esquecê-lo
inteiramente, cair num baixo nível e continuar vivendo como
vivíamos antes. Que pena! Todos nós temos consciência disso.
Todos nós nos lembramos das experiências que tivemos

75
2 PEDRO

depois da Primeira Guerra Mundial, os grandes idealismos,


os grandes discursos, as altas resoluções e determinações por
parte desta nação e das nações do mundo, em seu propósito
de viverem de forma diferente; mas, como logo tudo foi
esquecido! Havia uma genuína determ inação de m anter
fresca na memória a lembrança dessas coisas, mas isso foi logo
esquecido. Há em nós esta constante tendência de esquecer.
Pois bem, estou chamando a atenção para isso por uma
boa razão. As vezes, quando leio a Bíblia e medito nela,
penso que é mais fácil dem onstrar o fato do pecado e a
doutrina do pecado nesta questão de lembrança do que em
qualquer outro aspecto. Pois não seria uma simples verdade,
que sempre tendemos a esquecer justamente as coisas que
desejamos lembrar, e, inversamente, achamos quase impossível
esquecer as coisas que gostaríamos de esquecer? Tenho citado
exemplos de coisas que gostaríamos de lembrar. São elas que,
lamentavelmente, de algum modo escapam da nossa memória
e tendemos a esquecer. Mas há outras coisas das quais às
vezes dizemos que daríamos o m undo inteiro para poder
esquecer; atos grosseiros, motivos indignos, coisas ditas no
calor do momento; coisas que fizemos ou que outros nos
fizeram. Sabemos perfeitamente bem que devemos esquecê-
-las, mas, vem a pessoa e aquilo se reacende em nós. Pode ser
que não tenhamos pensado naquilo durante anos, e então
algo acontece, e a coisa volta. Ora, tudo isso, digo e reitero,
é manifestação do pecado. Foi isso que o pecado fez com a
natureza humana; é dessa forma que o pecado a perverte.
Esse é o elemento maldito do pecado, e é aí que o pecado
é tão odioso e inquietante. Ele se põe entre nós e o que é
melhor e superior; e em nenhum outro aspecto isto se mostra
mais do que nesta particular questão da lembrança.
Consideremos outro princípio. O apóstolo tem o cuidado
de salientar a diferença entre ter ciência de uma coisa e
realmente viver por ela. Notem como ele coloca a sua dou­
trina: “Pelo que não deixarei de exortar-vos sempre acerca

76
Coisas queJamais Devemos Esqueeer

destas coisas, ainda que bem as saibais, e estejais confirmados


na presente verdade”. Pois bem, eu considero que, psicolo­
gicamente, este é um dos pontos mais importantes de todos.
O perigo sempre consiste em imaginar que, porque sabemos
uma coisa, ela está em nossa memória. Mas pode não estar. Há
muitas maneiras de ilustrar isso. Quem quer que tenha sido
estudante sabe exatamente o que eu quero dizer com este
princípio. Um dia você se senta numa sala de conferências e
o conferencista lhe fala de uma série de fatos. Você ouve e
diz: “Sim, eu sei disso, lembro-me de haver lido isso, estou
ciente disso”. Então você não se preocupa em tomar notas.
Mas alguns meses depois você está sentado na sala de exames,
e lhe fazem uma pergunta justamente sobre aquela questão.
Você se lembra da conferência, você se lembra de ter lido
sobre aquele mesmo assunto, entretanto por isto ou por
aquilo não consegue recordá-lo com exatidão. Você tem
conhecimento daquilo, mas não o domina realmente. É esse o
tipo de princípio que o apóstolo tem em mente. Aqui de
novo temos um princípio de aplicação geral e universal,
bem como neste particular sentido cristão.
N.

As vezes eu penso que essa é a real explicação do patético


período entre as duas guerras. Os homens e as mulheres tinham
consciência de que certos princípios governam a vida, mas
não foram igualmente cuidadosos quanto a observar que
fossem postos realmente em prática e em operação. O perigo
está em que o pecado nos persuada de que, uma vez que
conhecemos certos padrões morais, está tudo bem; que nos
persuada de que o conhecimento vale pela prática. Há toda
a diferença do mundo entre saber o que é bom e praticá-lo.
“Aquele, pois, que sabe fazer o bem e não o faz, comete pecado.”
Lembrem-se das palavras do nosso Senhor: “Se sabeis estas
coisas, bem-aventurados sois se as fizerdes”. Se eu não tiver
o cuidado de fazer diferença entre o conhecimento e a prática
factual da verdade, isso de nada me valerá. Eu sei perfeita-
mente bem que vocês sabem estas coisas, diz o apóstolo, vocês

77
2 PEDRO

estão firmados na verdade que vocês têm no momento, e


conhecem muito bem as coisas das quais lhes venho falando;
porém eu me conheço suficientemente bem para saber que
preciso tê-las bem no centro da m inha mente e da m inha
vida, se é que elas hão de ter algum valor para mim.
Talvez possamos expressar o ponto ainda mais clara­
mente passando a outro princípio. De acordo com o ensino
do apóstolo, a memória é algo que precisa ser despertado e
estimulado. “Sim, eu penso que vale a pena”, diz ele, “enquanto
eu estiver neste tabernáculo, despertar vocês e fazê-los
lembrar.” E temos aqui, novamente, um princípio vital. Ele
não quer dizer que deseja que estas pessoas vivam de lem­
branças - esse é um perigo bastante sutil. O que ele quer
dizer é que certos princípios precisam estar ativam ente
presentes no centro de nossas mentes. Ora, talvez este seja
um ponto no qual vemos claramente a diferença entre o
conceito cristão de um dia, como o Domingo do Armistício
ou o Dia da Rememoração, e o conceito não cristão. Os que
adotam o conceito psicológico costumam argum entar di­
zendo mais ou menos que evocamos lembranças e depois
passamos a viver por essas lembranças e nelas firmados. Mas
não se pode fazer isso. Não se pode viver do passado, não se
V

pode viver de lembranças. Isso não é viver, é existir. As vezes


isso é muito triste e patético, e essa é a diferença entre um
conceito sentimental e o conceito verdadeiramente cristão da
vida. Você realmente não respeita os mortos por tentar viver
no passado; isso não é viver no presente; é existir. Não adianta
tentar viver pelas lembranças, viver baseado nas evocações
da memória; isso é tentar andar para frente olhando para
trás ao mesmo tempo, e é um erro em si mesmo. Não é isso
que o apóstolo quer dizer. Ele não diz que vai despertá-los
para que eles vivam das lembranças. Ele diz: vou despertá-los
para que estes princípios estejam ativamente em suas mentes
no presente, e para que vocês vivam deles e por eles. Portanto,
não é viver do passado ou dependendo do passado; é manter

78
Coisas queJamais Devemos Esquecer

certos princípios infindáveis permanentemente presentes.


E assim passamos por outro princípio central do ensino
bíblico. Podemos dizer a nós mesmos: “Sim, eu sei exatamente
o que você quer dizer, creio nisso, aceito isso, e, portanto,
está tudo bem comigo”. Nada disso, diz o apóstolo; vocês
têm que manter sempre isso diante de vocês. Noutras pala­
vras, a disciplina da vida cristã exige que jamais deve passar
um dia em que não nos lembremos de certas coisas. Não
basta dizer que temos Cristo como a nossa salvação; no
momento em que nos damos conta disso, temos que tê-lo
todos os dias, temos que estimular a memória. Esse é o valor
da leitura da Bíblia, esse é o valor da oração e da meditação,
e eu digo que não passamos de novatos na vida cristã, se não
descobrimos que temos contra nós um mau sistema. Devemos
forçar-nos a recordar diariam ente certos princípios; caso
contrário, eles permanecerão vagamente na esfera da memória,
e eles não agirão ativamente operando em nossa vida diária.
Isso leva ao próximo princípio, o meu último princípio
geral relativo à memória. E este: a atividade que compete à
Igreja e à pregação não é apresentar-nos idéias novas e
interessantes; é, antes, perseverar em lembrar-nos de certas
verdades fundamentais e eternas. Pois bem, aí chegamos ao
ponto no qual o evangelho de Jesus Cristo é relevante atual­
mente, relevante para este país e para os países do mundo
na presente hora e situação. Numerosas declarações são
feitas hoje com respeito à situação mundial e às condições
gerais deste país e dos demais países; mas, digo eu, o dever
primário da Igreja Cristã e da sua mensagem e sua pregação
não é entregar-se a vagas declarações gerais. E repetir as
centralidades, lembrar aos homens e às mulheres a verdade
de Deus que se vê em Cristo Jesus. O mundo é suscetível de
esquecer mais isso do que qualquer outra coisa. O interesse
do mundo está na situação geral, na política, na economia, nas
condições sociais, nas possibilidades de outra guerra, e noutras
coisas similares. Por isso o mundo se deleita nessas vagas

79
2 PEDRO

declarações gerais que não levam a nada. Contudo, o dever


da Igreja Cristã é lembrar constantemente aos homens e às
mulheres certas coisas que eles constantemente tendem a
esquecer. Quais são? Permitam-me lembrar-lhes algumas
delas. São as coisas grandiosas que o apóstolo lembra a estes
cristãos e que a Igreja Cristã aqui está para proclamar ao
m undo neste momento. Eis aqui algumas das coisas que
devemos manter constantemente no centro da nossa vida hoje.
Primeiramente, a vida propriamente dita. O evangelho tem
um pronunciamento muito especial para fazer com respeito à
vida. Ele nos fala sobre a grandeza e a glória da vida. O mundo
atual, fora da Igreja e fora do evangelho, tem um conceito muito
baixo da vida. Novos tipos de cinismo e de desespero estão se
espalhando pelas mentes do povo. Hoje em dia não ouvimos
m uito sobre aqueles grandes idealismos e otimismos que
eram tão populares no século dezenove e antes da guerra de
1914-1918. O hom em não parece quase tão maravilhoso
agora como era antes da guerra de 1939-1945. Os homens
passaram por campos de concentração, por bombardeios e
por horrores do gênero daquele tempo em diante; e a ten­
dência atual é, de preferência, pensar no homem como um ser
aviltado. Sustentamos conceitos biológicos sobre o homem
que não o elogiam muito. Esses conceitos salientam o bestial
existente no homem, e o que é degradante; e a tendência atual
quanto aos homens é a de pensar na vida como algo de baixo
nível e aviltante. “Comamos, bebamos e alegremo-nos, porque
amanhã morreremos.” Que é a vida, perguntam; qual é o seu
objetivo? Temos tido dificuldades, e parece que mais virão;
certamente, dizem, a essência da sabedoria está em que o
homem faça o melhor que puder da vida, passando por ela
de um modo ou de outro.
Pois bem, a Bíblia existe para proclamar e pronunciar
que a vida é algo grandioso, importante e grande. A frase “Tu
és pó e ao pó retornarás, não foi dita a respeito da alma”. De
acordo com a Bíblia, o homem não é meramente um animal

80
Coisas queJamais Devemos Esquecer

pensante que evoluiu de tipos inferiores; o homem não é


tão-somente uma criatura que vivia na selva e na roça e que
desenvolveu um córtex cerebral. O homem é a criação especial
de Deus. Deus o fez e o modelou; Deus disse: “Façamos o
homem à nossa imagem”. O homem é grandioso, e tem isso
estampado nele - ele foi feito para coisas tremendas e extra­
ordinárias. Ora, é esse o ensino do evangelho; é isso que ele
realmente ensina e enfatiza. As religiões pagãs estão cheias
de pessimismo e de desespero, mas o evangelho cristão
lembra-nos a verdadeira dignidade e grandeza do homem
como criação individual e especial de Deus. Lembremo-nos
disso em tempos como estes, quando os homens só pensam
em conforto, riqueza e casas, e quando o homem pensa em si
em termos materialistas. Chamemos à lembrança a ideia que
Deus tem do homem e o esquema e plano de Deus para o
homem.
Consideremos, a seguir, a natureza da vida. Aqui se vê que
o apóstolo expressa o ponto de maneira muito interessante. “E
tenho por justo, enquanto estiver neste tabernáculo, despertar-
-vos com admoestações, sabendo que brevemente hei de deixar
este meu tabernáculo, como também nosso Senhor Jesus
Cristo já mo tem revelado.” Essa é a natureza da vida, de acordo
com a Bíblia. Estou aqui, neste mundo; meu corpo nada é,
senão o tabernáculo ou a tenda na qual eu moro por algum
tempo. Vocês por certo se lembram de como o apóstolo João
se expressa sobre este assunto. A respeito do Senhor Jesus
Cristo ele declara que Ele veio e “tabernaculou” entre nós. Que
é o corpo? Não passa de uma tenda. Noutras palavras, sou
movido a lembrar que este não é o meu lugar permanente

de habitação. E-me dito que diferencie entre mim (minha


personalidade) e meu corpo. A tragédia é que os homens se
identificam com os seus corpos, com a vida do corpo e com a
vida da carne. Dessa forma, fica parecendo que a vida neste
mundo é a única vida. Não, diz Pedro, eu mesmo fui posto
aqui, fui enviado a este mundo e estou nesta tenda por

81
2 PEDRO

algum tempo. Sou tão-somente um viajor, faço estada aqui


por um pouco. A vida é uma peregrinação, o homem é um
viajante, o mundo é uma espécie de estalagem na qual passa­
mos uma noite em nossa viagem. Viemos para cá. Deus nos
colocou aqui, e vamos indo para Deus, e a vida que temos
aqui na carne é vivida numa tenda e num tabernáculo. Bem,
aí, digo eu, há novamente uma grande ênfase à dignidade
da nossa vida neste mundo. Somos levados a lembrar que
vamos indo rumo a um grande destino.
Isso, por sua vez, lembra-nos o propósito geral da vida. Aqui
também há algo que temos necessidade de lembrar cons­
tantemente. Se eu tenho o referido conceito da minha vida
neste m undo, então, im ediatam ente vejo o propósito da
m inha vida neste mundo. Qual será a resposta, pergunto,
quando paramos para fazer certas perguntas a nós mesmos?
Que é que estamos fazendo aqui? Por que fomos colocados
aqui? Que dizer daqueles que estavam aqui conosco e que já
partiram? Que acontece? Haveria algum sentido, propósito
ou razão nisso tudo? Seria a vida apenas um acidente, algo
devido ao acaso? O homem simplesmente se vê aqui, é uma
simples parte deste processo biológico de reprodução? Nós
viemos e nos vamos - seria essa toda a história? Deveria eu
só viver para comer, beber e me alegrar? Para o gozo dos
prazeres, a espécie animal de vida que a imensa maioria
das pessoas vive hoje? Bem, naturalm ente há um eterno
“Não” a tudo isso, se vocês adotam este conceito cristão.
O homem está aqui para glorificar a Deus. Deus criou o
homem com essa intenção e com esse propósito; esse é o
objetivo das nossas vidas. Não viemos a este mundo só para
ter residência nele ou para nos arrastar através dele; deve­
mos dar-nos conta de que fomos destinados a ser filhos e
filhas de Deus. Deus criou o homem para que a Sua glória
fosse manifestada. Deus tem um grande propósito quanto
ao homem; e o mundo faz parte do grande plano de Deus
para levar a efeito o Seu propósito supremo e eterno. Por

82
Coisas queJamais Devemos Esquecer

conseguinte, lembremo-nos de que o que fazemos neste mundo


e nesta vida é de grande importância; cada ato conta, cada
momento é significativo. E-nos dito que teremos que prestar
contas de toda palavra ociosa que tivermos proferido. Até o
nosso tempo é precioso aos olhos de Deus; e é quando nos
lembrarmos da dignidade e grandeza disso tudo que seremos
encorajados por um novo propósito e objetivo.
Isso, por seu turno, leva-nos a outra questão inevitável.
“Se esse é o conceito certo acerca da vida”, alguém dirá,
“por que a vida está como está? Se você me diz que Deus
criou o homem e que Deus criou o mundo; se você diz que
Ele é 0 Autor da vida e que o homem é criação singular de
Deus, como você explica o estado atual do mundo? Lembramo-
-nos das duas guerras mundiais e dos sacrifícios feitos. Homens
morreram por um certo propósito, mas por que a guerra, afinal?
Por que lutar, por que os conflitos e as guerras? Que é que
há?” “Certamente”, diz essa pessoa, “o próprio estado do
mundo desmente o que você nos falou sobre o ensino bíblico
a respeito do homem e da vida.” Mas não há contradição,
pois unicamente o ensino da Bíblia nos propicia a verdadeira
explicação, a única real e adequada. O evangelho nunca deixa
de nos lembrar que todos os problemas, tribulações e tragé­
dias podem ser explicados por uma só coisa, o pecado. Oh,
sim, estou me referindo a isso mais uma vez! Estou fazendo o
que o apóstolo Pedro diz: “Pelo que não deixarei de exortar-
-vos sempre acerca destas coisas, ainda que bem as saibais, e
estejais confirmados na presente verdade”. A coisa que, por
excelência, o mundo odeia é que o façam lembrar-se do seu
pecado. Gostamos de pensar em nós mesmos em termos
otimistas; procuramos diminuir a avaliação dos problemas.
Continuamente tentamos pintar nossos brilhantes retratos,
mas os fatos permanecem. Se quisermos colocar as coisas
realisticamente, devemos reconhecer e admitir que a causa de
todo o problema não é outra coisa senão estas más relações
com Deus, e que embora o mundo atual procure sustentar a

83
2 PEDRO

sua esperança e persuadir-se de que o futuro vai ser brilhante,


ele não tem real confiança em suas próprias palavras, mas
sabe que está tudo errado. O evangelho está aqui para nos
lembrar constantemente que uma atitude errada para com
Deus, individual ou nacionalmente, ou em termos mundiais,
leva inevitavelmente a tristezas, problemas e destruição final.
Certamente essa, e somente essa, é a mensagem dos anos
recém-passados. E o Senhor Deus, o Todo-poderoso, dizendo
à humanidade: “Eu tenho deixado vocês verem o que vocês
fazem de si mesmos e do seu mundo quando tentam viver
sem M im”. Não haverá esperança para os hom ens, nem
para o mundo, enquanto eles não reconhecerem Deus e não
voltarem a Seu modo do viver. O evangelho está aqui para
lembrar-nos perpetuamente o fato do pecado.
Muito bem, façamos a próxima pergunta: qual é o objetivo
da vida do homem? Aqui de novo recebemos esta grande
palavra do apóstolo: “Mas também eu procurarei em toda
ocasião que depois da minha morte tenhais lembrança destas
coisas”. Que é a morte? Que acontece quando passamos desta
existência? A palavra “decease” (VA),^ traduzida por “morte”, é
uma grande palavra. Ela nos diz que a morte é realmente
um êxodo. Vou lembrar-lhes estas coisas, diz Pedro, enquanto
não chegar o meu “êxodo”. Vocês veem a sugestão. Para o
cristão verdadeiro a morte é apenas a passagem da escravidão
e do cativeiro do Egito para Canaã, a nova terra. E como o
êxodo dos filhos de Israel, lá sob o calcanhar de Faraó, o
cruel opressor, na escravidão e na servidão; depois, o êxodo, a
saída, a travessia do Mar Vermelho e do Jordão, e finalmente a
entrada na terra de Canaã e em todas as suas admiráveis
possessões. E desse modo que, de acordo com o Novo Testa­
mento, o cristão deve encarar o fim. Não um terror, mas
simplesmente o desmonte da tenda e a mudança - um êxodo,
uma travessia do rio e a entrada no reino eterno e sempiterno.
' Do latim. Preposição de + o verbo cedo = ir embora, partir. Daí: saída,
partida. Nota do tradutor.

84
Coisas queJamais Devemos Esqueeer

Contudo, não devemos considerar a m orte só dessa


maneira. A Bíblia tem seu próprio conceito da totalidade da
vida e do destino final do homem. Ela nos diz que Deus tem
um grande plano e propósito para este mundo, e que Deus
está efetuando esse plano e propósito. Há o grande ensino sobre
a profecia bíblica. O ensino é este: enquanto permanecer o
pecado, haverá dificuldade, e eventualm ente haverá um
acontecimento cataclísmico final. Não há nenhum otimismo
superficial na Bíblia. Ela fala de guerras e rumores de guerras,
mas declara que o Filho de Deus, que já venceu a morte, o
pecado e o túmulo, voltará finalmente para purificar o mundo,
e para que todas as forças inimigas de Deus sejam finalmente
erradicadas. Há por vir um glorioso dia de consumação,
um êxodo final que nos cabe esperar, um apocalipse final
e definitivo. Assim como a Bíblia nos pede que olhemos
retrospectivamente para o que Ele fez, assim também ela
nos pede que olhemos para o futuro, para o que Ele ainda
vai realizar.
Noutras palavras, a verdade suprema de que a Bíblia
sempre nos lembra e de que sempre nos concita a manter na
lembrança, é que a coisa mais grandiosa e mais vitalmente
importante do mundo é conhecer o Senhor Jesus Cristo. Você
não pode viver de lembranças, você não pode viver de espe­
ranças, mas do Senhor Jesus Cristo você pode viver sempre.
O que jamais devemos esquecer é o Seu sacrifício e a Sua
ressurreição. Aí, digo eu, está o fato que transforma todos os
outros fatos, o fato da vida - sim, e, graças a Deus, o fato da
morte. Em Cristo, e somente em Cristo, temos uma verda­
deira concepção sobre o homem e uma verdadeira concepção
sobre a vida. NEle nós triunfamos sobre a morte e sobre o
túmulo, e temos a vida eterna e sempiterna. Diletos amigos,
estas são as coisas que devemos manter na lembrança. Que
todas as demais lembranças sejam santificadas pela nossa
lembrança dAquele “que se deu por nós e ressuscitou”.

85
A Doutrina do Segundo
Advento
“Porque não vos fizem os saber a virtude e a vinda de
nosso Senhor Jesus Cristo, seguindo fábulas artificialmente
compostas; mas nós mesmos vimos a sua majestade.”
- 2 Pedro 1:16

Ao continuarm os nossa consideração deste capítulo,


novamente é de vital importância ter os antecedentes em mente
e agarrar-nos com firmeza ao objetivo e propósito geral que
animava o apóstolo quando ele escreveu estas palavras. Ele
está escrevendo, permitam-me lembrar-lhes, para cristãos que
estão em difieuldades. Isto não é uma dissertação teológica,
não é mero ensaio filosófico; é uma carta pastoral escrita por
um pastor a pessoas cristãs, membros de igrejas. Seu objetivo
é ajudá-los e encorajá-los, estabelecê-los e fortalecê-los. Como
ele próprio diz, seu objetivo é capacitá-los a “fazer cada vez
mais firme a sua vocação e eleição”. Ele quer que estes cris­
tãos tenham certeza e estejam num a situação tal que, o
que quer que aconteça fora, e o que quer que aconteça dentro,
permaneçam não afetados e fortes.
Agora, quando o apóstolo passa a este assunto, particular
tratado no versículo 16, ele o relaciona com tudo o que se havia
passado, “Porque”, diz ele, “não vos fizemos saber a virtude e
a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, seguindo fábulas
artificialm ente compostas; mas nós mesmos vimos a sua
majestade”. Temos aqui algo adicional, e em certo sentido
temos o direito de dizer que neste ponto nos é apresentado

86
A Doutrina do Segundo Advento

pela primeira vez desta maneira explícita, aquilo que, na


realidade, é o tema central desta Epístola. Noutras palavras,
aqui o apóstolo se refere a um assunto que comumente é
conhecido entre nós como o Segundo Advento, ou, se vocês
preferirem, como a Segunda Vinda de nosso Senhor Jesus
Cristo.
Pois bem, é assunto de interesse para os que estão
preocupados com a parte mecânica da exposição e se interes­
sam por isso, considerar se esta passagem é realmente uma
referência à Segunda Vinda ou à Primeira. As duas idéias têm
seus defensores entre os expositores. Há aqueles que acham
que Pedro se refere à Prim eira Vinda do nosso Senhor, à
encarnação, ao fato que o próprio Pedro e outros tinham
testemunhado quando o nosso Senhor esteve aqui nos dias da
Sua carne. Mas me parece, como se dá com a maioria dos
comentaristas, que esta é, claramente, uma referência, não à
Primeira Vinda, e sim, na verdade, à Segunda. Penso que se
vocês lerem a Epístola completa, verão que esse é o ponto
que mais pesa para o apóstolo. A questão de que Pedro se
incumbe de tratar é a atividade dos escarnecedores aos quais
ele se refere no capítulo três, os escarnecedores que estavam
perguntando: “Onde está a promessa da sua vinda?” Essa é a
grande questão. Ele toma esse assunto no início do capítulo 2,
e depois lhe dá continuidade. Como esse é o seu tema central,
parece mais provável que, mesmo neste ponto, em sua mente
está a Segunda Vinda, não a Primeira. Ao mesmo tempo,
podemos concordar que algumas coisas aqui presentes, neste
contexto imediato, têm suporte na Primeira Vinda bem como
na Segunda; entretanto a doutrina central aqui é a doutrina
do Segundo Advento de Cristo, o retorno do nosso Senhor.
Ora, essa era uma das grandes e centrais doutrinas da Igreja
Primitiva. Ninguém pode ler o Novo Testamento, ainda que
ligeiramente, sem logo ver que este era um assunto que não
somente significava muito para os primeiros cristãos, mas
também era até algo pelo qual, num sentido, eles viviam. Vocês

87
2 PEDRO

não podem ler o Novo Testamento sem que lhes fique a


impressão de que aqueles primeiros cristãos eram homens e
mulheres que viviam à luz deste grande acontecimento, o
retorno, a volta de Cristo. Vocês vêem isso em toda parte no
Novo Testamento. Vocês o veem no ensino e doutrina do nosso
Senhor. No capítulo treze de Marcos temos um lembrete dessa
doutrina. Vocês a veem nos capítulos correspondentes dos
outros Evangelhos; lá está o tempo todo. Muitas das parábo­
las de Jesus fazem referência a ela. Vê-se explicitamente nas
três partes do capítulo vinte e cinco de Mateus, na parábola
das dez virgens, na parábola dos talentos e, finalmente, no
quadro descritivo do juízo das nações. Ela está implícita em
m uitas outras parábolas e declarações, da mesma forma.
Portanto, a doutrina do Segundo Advento está no ensino
pessoal do nosso Senhor.
Não precisamos, talvez, demorar nisto, por este bom
motivo: certamente vocês se lembram de que, até os primei­
ros anos do século vinte, havia o conceito “liberal”, assim
chamado, sobre o nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Nos
últimos cem anos, ou mais, houve aqueles que achavam que
podiam reconstruir o que eles chamavam “o Jesus da História”
- aquele movimento que tirava o sobrenatural e o miraculoso
e tentava fazer do nosso Senhor nada mais que um mestre
judeu. Eles diziam que Jesus foi um mestre excepcional.
Retratavam-no como uma espécie de agitador e reformador
social, homem cujo interesse era em grande parte político e
social; dessa forma tentavam destituí-10 de tudo mais e
apresentar esse retrato. Mas agora os eruditos, praticamente
todos os eruditos interessados nestas questões, concordam
em geral que essa tentativa de pintar e retratar “o Jesus da
História” foi demolida completa e definitivamente pela obra
de um homem, o Dr. Albert Schweitzer, em seu livro, The
Quest of the Historical Jesus (A Busca do Jesus Histórico).
Menciono estas coisas apenas como algo de interesse, mas ele
estabeleceu, mesmo em termos da crítica e da história, que, se

88
A Doutrina do Segundo Advento

há uma coisa que é essencial à descrição que o Novo Testa­


mento e o evangelho fazem do nosso Senhor, é a Sua própria
crença no elemento apocalíptico e transcendental da Sua
vida e obra. Schweitzer provou isso satisfatoriamente para a
mente de eruditos que, como ele próprio, estão muito longe
da nossa posição evangélica.
Noutras palavras, desejo lembrar-lhes que, realmente, no
coração do ensino do evangelho lemos esta doutrina da
consumação final, a volta de Cristo, o elemento apocalíptico.
Depois, quando vocês passam pelos outros livros, encontram-
-na exatamente da mesma maneira. Vocês a vêem no capítulo
primeiro de Atos dos Apóstolos. Lembrem-se de que, quando
o nosso Senhor foi assunto aos céus, veio um anjo e disse aos
maravilhados e atônitos discípulos que Jesus iria voltar de
igual maneira. Lá está, logo no começo. Vocês a têm na prega­
ção que Pedro fez às autoridades de Jerusalém. Ele fala
sobre “a restauração de tudo” - a mesma doutrina. E quando
vocês percorrem as diversas Epístolas, veem a mesma dou­
trina em toda parte. Uma vez foi feita a tentativa de provar
que o apóstolo Paulo só cria nesta doutrina no princípio, e
que ela não se encontra em suas Epístolas posteriores; mas
agora há acordo em que ela se acha em suas Epístolas, em
toda parte. Ela está em sua derradeira Epístola. Por último,
vocês chegam ao livro do Apocalipse, livro que não se pode
entender, exceto em termos desta doutrina. Aqui, na passagem
que estamos estudando, consta uma mensagem, aqui consta
uma mensagem que foi vital para os prim eiros cristãos.
Estes hom ens viviam à luz desta particular doutrina, e
ela governava toda a perspectiva deles. Eles estavam
dispostos a sacrificar-se por causa dela; e quando sofriam
séria perseguição, ela era o esteio que os sustentava.
Agora que expusemos dessa forma o ponto, obviamente
se levanta a questão sobre se se pode dizer verdadeiramente
isso dos cristãos modernos. Este assunto particular, esta
particular doutrina, sobressai em nossas mentes, em nossas

89
2 PEDRO

vidas e em nosso testemunho tão proeminentemente como


acontecia na Igreja Primitiva? Será que podemos dizer, quando
nos examinamos como cristãos, que esta idéia, esta verdade,
esta doutrina do retorno e Segunda Vinda do nosso Senhor
está no lugar proeminente, primário e central que ela ocupava
na vida e na mente destas pessoas? Bem, eu penso que todos
nós temos que concordar que não é esse o caso, e talvez tenha­
mos que adm itir, adem ais, que essa é uma das grandes
diferenças que há entre nós e os cristãos do Novo Testamento.
Há no Novo Testamento uma nota de urgência. A im ­
pressão que temos é de pessoas que consideram esta vida
apenas como uma residência temporária. Aqueles cristãos se
viam como viajores; eles tinham na mente a ideia do fim dos
tempos, do juízo, do retorno de Cristo e do fim de todas as
coisas. Há no Novo Testamento a impressão de que os crentes
vivem entre dois mundos - essa é a atmosfera. Mas é evidente
que não é essa a atmosfera na qual os cristãos em geral vivem
no presente, e a pergunta óbvia é - por que há esta diferença?
Que é que explica o fato de não atribuirm os como eles a
mesma significação a esta particular verdade? Por que não
cremos nela? Por que não somos dominados por ela como
eles eram? Pois bem, essa, parece-me, é a questão mais im­
portante que nos cabe considerar neste ponto. Sugiro que há
duas principais respostas a essa questão. A primeira, que eu
chamaria resposta geral, e depois a que eu chamaria resposta
especial e particular.
Exam inem os prim eiro a resposta geral. Por que esta
doutrina, de um modo ou de outro, está sendo relegada ao
papel de mero pano de fundo da nossa fé e do que cremos?
Penso que a primeira resposta é que tem havido negligência
geral da doutrina cristã como um todo. E para alguns de nós
esta é uma questão sumamente vital. Durante os últimos cem
anos, ou mais, especialm ente durante o presente século
[vinte], a doutrina tornou-se impopular. Os nossos antepas­
sados tinham grande interesse pelas doutrinas da fé cristã.

90
A Doutrina ão Segundo Advento

pela doutrina bíblica; liam-na, estudavam-na, discutiam-na;


era um dos seus temas favoritos. Contudo, não é mais assim.
Hoje em dia os homens e as mulheres não se interessam por
doutrina; na verdade podemos ir mais longe e dizer que tem
havido reação contra a doutrina, que a doutrina passou a ser
uma ofensa e que está sendo ridicularizada. Insinuou-se
entre nós a tendência de considerar o evangelho como uma
moralidade geral com relação à vida. As pessoas em geral
dizem; “Não queremos doutrina; a vida está muito agitada,
é muito opressiva. Precisamos de algo que nos reconforte,
queremos algo que nos ajude a seguir adiante”. O resultado
é que a tendência da pregação tem sido de oferecer uma
vaga e geral filosofia moralizadora quanto à vida. Temos
sido concitados a ter coragem e a resistir, e temos considerado
o evangelho como um estímulo geral, algo que nos ajuda a
prosseguir. Essa, digo e repito, tem sido a tendência, e a dou­
trina, como doutrina, está em descrédito, e, de modo geral,
tem sido grave e lamentavelmente negligenciada.
A consequência é que há cristãos que de fato, doloro­
sam ente, ignoram as grandes doutrinas concernentes à
Trindade, à Expiação, ao Espírito Santo, a esta particular
doutrina do Segundo Advento, e à doutrina sobre a Igreja. Há
uma ignorância geral, mesmo na Igreja Cristã, sobre estas
questões. E assim pouca atenção é dada à doutrina da Segunda
Vinda porque a doutrina toda está em descrédito. Enquanto
nos dedicamos ao levantamento moral, esquecemos com­
pletam ente a doutrina, e só nos interessam os por esses
acessórios temporários, empregando a terminologia cristã só
num sentido geral. Ou talvez às vezes tenhamos tido tanto
interesse por um Salvador pessoal que esquecem os os
aspectos mais gerais da doutrina cristã. Acertadam ente
começamos pela doutrina da salvação pessoal. Essa é a nossa
primeira e principal necessidade; e não há nada errado em
nos preocuparmos primeiro com isso. Essa é a ênfase do
Novo Testamento; mas, se deixarmos o Novo Testamento

91
2 PEDRO

confinado nisso, e somente numa experiência pessoal, não


seremos fiéis ao ensino do Novo Testamento. Pois o Novo
Testamento tem uma visão mundial; tem uma perspectiva da
vida em geral e do curso fundamental da história. No entanto,
penso que todos nós concordaremos, tem havido durante cin­
quenta anos, ou mais, esta tendência de só nos interessarmos
pessoalmente. Pode ser que a psicologia tenha dado estímulo
nessa direção; e os tempos difíceis pelos quais temos passado
têm incentivado isso. Dizem-nos que devemos estar pes­
soalmente bem, e negligenciam os aspectos mais gerais da fé.
Tudo isso tem sido um fator eorroborativo da negligência
quanto a essas grandes doutrinas.
Outra explicação é que há aqueles que dizem que este
ensino do Novo Testamento sobre a Segunda Vinda do nosso
Senhor deve ter explicação diferente da tradicional. Eles
dizem que a Segunda Vinda do nosso Senhor refere-se ao que
aconteceu no ano 70 d.C., quando o exército romano invadiu
Jerusalém e destruiu a cidade, e somente a esse acontecimento.
Outros dizem que se refere ao que aconteceu no dia de
Pentecoste. Eles concordam que a doutrina da Segunda
Vinda está no Novo Testamento, mas acreditam que ela
certam ente foi cum prida no dia de Pentecoste, quando
Cristo veio na Pessoa do Espírito Santo. Esse aeontecimento,
pensam eles, é a Segunda Vinda. Dessa forma, alguns acredi­
tam que já aconteceu no passado e que não há nada ainda
por vir.
Mas talvez a mais comum das razões gerais seja a verdade
ensinada pelo nosso Senhor na parábola das Dez Virgens,
quero dizer, a ten d ên cia para in d o lên cia geral e para
relaxamento geral. Acaso vocês se lembram de que o nosso
Senhor assinalou que mesmo as cinco virgens prudentes,
como as cinco imprudentes, dormiram em vez de vigiarem?
Certamente elas se despertaram quando chegou o Noivo, e
elas tinham óleo em suas lâmpadas; mas elas dormiram durante
o tempo de espera. Foi igualmente o que aconteceu antes da

92
A Doutrina do Segundo Advento

p rim eira V inda do nosso Senhor, na carne. A mesma


morosidade e letargia tinham descido sobre Israel. E nós, neste
tempo, temos a tendência de ser letárgicos. Esta indolência
geral tende a dominar-nos, e nós deixamos de combater no
combate da fé e de encarar os fatos como eles são apresenta­
dos no Novo Testamento.
Deixem-me m encionar agora outro grupo de razões,
que descrevo como razões especiais ou particulares. Sugeri até
aqui que o principal motivo para a negligência quanto a
esta doutrina é que as pessoas a têm esquecido. Quero agora
sugerir que o outro principal motivo é que algumas pessoas
têm se lembrado demais dela. Não há, talvez, doutrina que
tenha sofrido tanto nas mãos dos seus amigos como a dou­
trina do Segundo Advento, ou da Segunda Vinda do nosso
Senhor. Não há doutrina, imagino, que tenha sofrido tanto
nas mãos daqueles que têm sido movidos por um zelo mal
guiado e descontrolado como esta p articular doutrina.
Permitam-me ilustrar o que quero dizer por meio de uma
anedota pessoal. Lem bro-m e de que, quando vim pela
primeira vez a esta igreja, conversei com o Dr. Campbell
Morgan no gabinete pastoral numa noite de sexta-feira. Ele
olhou para mim e me disse: “Vamos ter uma multidão hoje”.
“Que é que o leva a dizer isso?”, eu lhe perguntei, e ele disse:
“Vou falar sobre o livro do Apocalipse, e saiba que sempre
que eu anuncio que vou falar sobre algum aspecto da dou­
trin a profética, invariavelm ente se junta extraordinária
multidão”. E foi o que aconteceu naquela noite. Digo isso
para lembrar a vocês este particular aspecto do assunto. No
caso de algumas pessoas existe um mórbido e doentio interesse
por esta matéria. Há pessoas que se interessam pelos “tempos
e estações”, há pessoas que constantemente passam o tempo
tentando estudar profecia e identificar pessoas particulares
retratadas na Bíblia, e que “literalizam” as diversas figuras e
imagens empregadas na Bíblia. Passam todo o seu tempo,
reitero, tentando entender estas coisas.

93
2 PEDRO

Não preciso tomar o tempo de vocês lembrando-lhes os


vários movimentos que surgiram, as diversas escolas de ensino
com relação a estas questões, todos os refinamentos e todas as
ramificações da doutrina, o dogmatismo que caracteriza as
diversas escolas, e como algumas delas até fazem do seu acordo
ou desacordo com a sua interpretação particular o real teste e
a marca distintiva da ortodoxia. Refiro-me ao tipo de pessoas
que na Segunda Guerra Mundial tinham plena certeza de
que Mussolini ou Hitler era a Besta, e aquelas que no século
anterior tinham toda a certeza de que era Napoleão. Sem dú­
vida vocês estão familiarizados com as diversas idéias. Tem
havido esse interesse mórbido por “tempos e estações”, por
datas e pela tentativa de identificar as diversas figuras das
Escrituras. Em certo sentido esta grande doutrina do Segundo
Advento ganhou má reputação por causa desse interesse falso,
por causa dessa tendência, da parte de alguns, de se interes­
sarem mais pelo como e pelo quando da Segunda Vinda do
que pelo fato da Segunda Vinda. O efeito disso tudo é que
há mestres, pregadores e expositores que sempre creram e
aceitaram esta doutrina, mas que raramente se referem a ela
porque desejam evitar estimular essa curiosidade mórbida
e doentia. Em seu interesse por preservar o equilíbrio da
verdade e da doutrina, não querem alcovitar favorecendo o
mau uso das Escrituras e de um falso entendimento do Novo
Testamento. Outros não a mencionam para não se envolverem
em controvérsias muitas vezes amargas e também inúteis.
Tomei tempo para elaborar esta argumentação sobre a
relativa negligência desta doutrina porque isso constitui um
vital ponto de partida para nós quando passarmos a examiná-
-la resumidamente. Por enquanto expliquei por que a dou­
trina não tem sido pregada e enfatizada; ela tem sido esquecida
na tendência geral de ignorar a doutrina como um todo, e não
tem sido salientada por outros pelo temor de estimularem o
que é falso.
Que será, então, que o Novo Testamento realmente ensina

94
A Doutrina do Segundo Advento

sobre este assunto? Noutras palavras, o que é clara e inequi­


vocam ente en sin ado aqui? Não estou interessado em
refinamentos e nas diversas escolas de interpretação. Estou
simplesmente preocupado em lembrar a vocês, como Pedro
lembrou a seus primeiros leitores, qual é, fora de dúvida e
de erro, o ensino do Novo Testamento.
Em primeiro lugar, é o grande fato do retorno do nosso
Senhor à terra. Esse é o grande e claro feito - o Senhor Jesus
Cristo, que veio primeiro como bebê em Belém, vai retornar
a esta terra e a este mundo. Qual é o ensino do Novo Testamento
quanto ao modo como Ele fará o Seu retorno? Primeiro, que
será um retorno pessoal. O Novo Testamento não diz apenas
que o ensino do nosso Senhor vai influenciar grandemente o
mundo e impregnar a vida e a perspectiva em geral. Existem
os que interpretam o Seu retorno dessa maneira. Eles dizem:
“Sim, concordamos com você sobre a doutrina do retorno de
Cristo depois da Sua ascensão ao céu, mas”, dizem eles, “já
aconteceu isso, o ensino cristão já influenciou o mundo.
Houve gradual penetração na vida da humanidade pelo en­
sino de Cristo registrado no evangelho”. Seria esse o retorno?
Minha réplica é: “Não!” O retorno do nosso Senhor, como
ensinado em todas as partes do Novo Testamento, é um retomo
pessoal. A ideia de permeação no mundo pelo ensino cristão
não faz justiça à linguagem empregada nos Evangelhos e nas
Epístolas - linguagem que tem em vista um retorno pessoal.
Em segundo lugar, é um retorno corporal, ou, se vocês
preferirem, um retorno físico. Pois bem, coloco o assunto
nestes termos para corrigir outro erro. Existem aqueles que
tentarão argumentar que o retorno do nosso Senhor foi o
que aconteceu no dia de Pentecoste. Eles dizem que o Seu
retorno é um retorno espiritual - “Vejam os discípulos e os
apóstolos”, dizem eles, “antes do dia de Pentecoste, e vejam-
-nos depois. Não estaria perfeitamente claro que o retorno do
nosso Senhor no Espírito fez toda a diferença?” Bem, concordo
inteiramente que esse é, num sentido, um retorno do nosso

95
2 PEDRO

Senhor, e se vê nobre e exaltada linguagem na Bíblia acerca


da vinda do nosso Senhor no Espírito para habitar no crente.
Isso é perfeitamente certo e verdadeiro, mas eu digo que a
Bíblia, além e acima disso, fala sobre um retorno corporal e
declara que, assim como Ele ascendeu corporalmente ao céu,
assim tam bém voltará corporalm ente, “O aparecimento
glorioso” (Tito 2:13, VA), essa é a linguagem - Ele vai aparecer,
vai manifestar-Se!
Isso me leva a expressar o ponto de outra maneira. Há
claras, inequívocas e inconfundíveis declarações no sentido
de que a volta do nosso Senhor não será somente pessoal e
corporal, mas também visível. Ele virá “sobre as nuvens do
céu”, “todo olho o verá”. Não vai ser uma influência, não vai
ser um efeito espiritual. Exatam ente da mesma maneira
como a sua ida foi visível, assim também o Seu retorno será
visível. Há muitas declarações nesse sentido percorrendo
todo o Novo Testamento, e significando que, quando Ele
aparecer, os homens clamarão aos montes e às rochas que os
cubram. “Todo olho o verá.” Ele virá sobre as nuvens, e será
visível.
O próximo ponto é que é claro o ensino de que esta vinda
será repentina. Bem, devemos ter cuidado ao dizer isso,
porque lemos que vão acontecer certas coisas antes de Ele vir.
Ocorrerão alguns sinais, e Ele narrou a parábola da figueira a
fim de nos lembrar isso. Todavia, a despeito disso, Ele salienta
constantemente a subitaneidade. Ele assinala que quando não
é esperado, Ele virá. Ele aponta o perigo que corremos de
dormir em vez de vigiar. Pensem em todas aquelas exortações
feitas antes da Sua morte - como Ele continua dizendo: vigiai
e orai, sede vigilantes, estai preparados, vigiai! E uma vinda
repentina. Depois, outro aspecto sempre apresentado é que
vai ser um acontecimento glorioso. Na primeira vez que Ele
veio, veio como bebê e nasceu num estábulo de Belém. Essa
foi a vinda em humilhação. Veio como servo e na semelhança
da carne pecaminosa. Mas quando voltar, virá em poder e

96
A Doutrina do Segundo Advento

glória, assistido pelos anjos e ao som da trombeta, em toda


a glória e majestade, e na plenitude da Sua Pessoa divina.
Ultrapassará o brilho do sol, será algo incrível, uma Vinda
gloriosa, radiosa. Tudo isso é ensinado claramente em todo o
Novo Testamento, acerca do modo como ocorrerá a Segunda
Vinda do nosso Senhor.
Mas, qual é o propósito da Sua Vinda} O propósito da
Segunda Vinda do nosso Senhor será liquidar os negócios e
quefazeres deste mundo e dar cabo do tempo. Deus fez o
mundo, deu início a seu curso, mas logo no princípio Deus
designou o fim. O mundo não existe desde toda a eternidade,
o mundo não existirá por toda a eternidade. Há um princípio
e um fim, e o propósito supremo da Segunda Vinda do nosso
Senhor é encerrar os quefazeres da terra e liquidar as ativi­
dades do tempo. De igual modo, Ele virá para produzir a
ressurreição final. Aqueles que já estão mortos, aqueles de nós
que estiverem mortos antes deste acontecimento, todos os
mortos serão ressuscitados, maus e bons; os que restarem na
terra na ocasião da vinda do nosso Senhor serão transformados.
Haverá, pois, uma ressurreição final - de todos, bons e maus,
cristãos e não cristãos - e será uma ressurreição para juízo.
Todos os mortos, bons e maus, grandes e pequenos, compa­
recerão diante de Deus e os livros serão abertos. O registro das
vidas dos homens será examinado, e o Livro da Vida, que
contém os nomes dos eleitos, será aberto - haverá este juízo
final.
Seguir-se-á a isso a destruição de todos os inimigos de Deus.
Jesus de Nazaré, o Filho de Deus, o Rei dos reis, o Senhor dos
senhores, destruirá todos os inimigos, o diabo e todas as suas
legiões, e todas as hostes de homens e mulheres que não creem
nEle. Serão definitivamente eliminados da vista de Deus -
isso é ensinado claramente. Então haverá a destruição do
próprio mundo. Será consumido por chamas ardentes. A
criação, como nós a conhecemos, será destruída e haverá um
novo céu e uma nova terra. Isso introduzirá o estado de glória

97
2 PEDRO

final, eterno e sempiterno na presença de Deus, quando,


destruídos os ímpios e o mal, os cristãos, aqueles que são de
Cristo, estarão com Deus o Pai, o Filho e o Espírito Santo,
e com todos os santos anjos, e participarão dessa bem-aven-
turança e glória eterna e sempiterna.
Uma últim a pergunta. Quando virá acontecer isso? A
resposta pode ser dada quase com uma só palavra - ninguém
sabe. Por isso estão sempre errados os que procuram fixar a
data do fim. Peço-lhes que leiam literatura de ambos os lados.
Vocês verão que alguns dos maiores comentaristas da história
erraram nesta questão de fixar datas e tempos. Diz-nos a Bíblia
que não devemos preocupar-nos com a questão de fixar
tempos e estações. Porventura vocês notaram o que o nosso
Senhor disse, como consta em Marcos 13:32? Nem Ele sabia o
tempo do fim, mas somente o Pai. Eu e vocês não devemos
preocupar-nos com o preciso momento e tempo. Anos recen­
tes nos têm mostrado pessoas tentando identificar certos
acontecimentos. Eu digo: não desperdice o seu tempo, não se
torne um desencaminhado, não se deixe distrair e afastar-se
do ensino claro e central. O ensino do Novo Testamento sobre
o elemento tempo é este - esteja preparado. “E as coisas que
vos digo, digo-as a todos: vigiai!”
Talvez seja incrível para nós que estas coisas irão aconte­
cer realmente. Parecia incrível às pessoas antes do Primeiro
Advento que Ele viria como veio. Era algo miraculoso, era
sobrenatural; mas aconteceu. E, assim como aconteceu naquele
tempo, assim também vai acontecer; e o que cabe a mim e a
vocês, meus caros amigos, é que estejamos sempre prontos,
sempre preparados. E vigiar, é orar, é crer, e ter consciência
disto. Como diz Pedro, ele não seguiu fábulas artificialmente
elaboradas quando estava ensinando este assunto. Essa é
a essência do Novo Testamento. Foi, e é, tão certo como a
Encarnação e a Expiação e o Espírito Santo e a Igreja, e
todas as demais doutrinas que ali estão. Permita Deus, pois,
que tenhamos condições de evitar os erros dos dois extremos -

98
A Doutrina ão Segundo Advento

O erro de ignorar a doutrina, e o erro de um interesse


mórbido e doentio por ela - e que possamos encarar estas
declarações centrais e preparar-nos para elas, e esperar o
bendito aparecimento e Vinda do Senhor Jesus Cristo.

99
8
A Mensagem do Segundo
Advento
“Porque não vos fizemos saber a virtude e a vinda de
nosso Senhor Jesus Cristo, seguindo fábulas artificialmente
compostas; mas nós mesmos vimos a sua majestade.”
- 2 Pedro 1:16

Ao voltarmos a este versículo, desejo lembrar-lhes que


ele se refere essencialmente à Segunda Vinda do nosso Senhor,
e não ao Primeiro Advento, e que esse é, num sentido, o tema
central desta carta particular. No último sermão tratamos desta
doutrina em geral, sem nenhum pregueado e sem fantasias,
sem nenhuma especulação ou imaginação, e sem qualquer dos
refinamentos que tão frequentemente têm dado má reputa­
ção a esta doutrina.
Mas 0 meu desejo agora é mostrar a relevância disso tudo.
Pedro chamou a atenção para isso porque, como ele sugere no
restante da Epístola, num sentido essa é, talvez, a única coisa,
acima de todas as demais, que vai fortalecer, reconfortar e aju­
dar as pessoas às quais ele escreveu. E, pois, vitalm ente
importante que fiquemos igualmente esclarecidos quanto à
influência desta doutrina sobre a nossa vida e sobre a nossa
perspectiva na presente hora.
Há hoje grande número de pessoas fora da Igreja, e às
vezes penso que há m uitas dentro da Igreja, que ficam
grandem ente perturbadas quando observam este m undo
moderno no qual vivemos. Elas se inquietam no sentido de
que, no primeiro caso, ficam impedidas de crer no evangelho.

100
A Mensagem do Segundo Advento

e no segundo, no sentido de que a sua fé é abalada. Por isso


devemos interessar-nos por este assunto. Não é uma questão
teórica. Não voltamos ao tema pelo desejo de condescender,
pelo passar do tempo, em tentar determinar os tempos e as
estações - não, nós estamos interessados nesta doutrina porque
ela nos ajudará e nos habilitará, no presente tempo, a sermos
“fortalecido no Senhor e na força do seu poder”, e também
porque nos ajudará a falar com muitos que não se sentem
atraídos pelo evangelho cristão atualmente e que, devido a
algumas coisas que estão acontecendo, acham que não podem
aceitá-lo. Estou pensando naquelas pessoas que nos vêm
perguntar; “Como você explica o estado do mundo atual,
especialmente depois de quase dois mil anos de obra cristã e
de pregação do evangelho cristão?” Esse é o problema para
muitos hoje. Alguns deles estão fora da Igreja. Eles dizem:
“Gostaríamos de crer no seu evangelho, mas realmente não
podemos, porque nos parece que o evangelho falhou - você
alega que ele é o evangelho de Deus, você afirma que o Filho
de Deus veio ao mundo, você fala sobre o poder do Espírito
Santo, você afirma que o evangelho é miraculoso e sobre­
natural, você diz que tudo isso tem estado em operação por
quase dois mil anos e que ele tem sido pregado sem interrup­
ção durante esse tempo todo, e, todavia, veja o mundo, veja as
duas guerras mundiais ocorridas dentro de um quarto de
século, observe o estado da sociedade, observe a falta de temor
de Deus e a irreligiosidade, observe as nuvens no horizonte, e
0 futuro incerto. Como pode você”, eles perguntam, “levantar-
-se e proclamar que esse evangelho é o que você diz que é, e,
no entanto, defronta-se com os fatos como estes o confrontam
neste mundo atual?” Essa questão é a pedra de tropeço para
eles, e por essa razão eles dizem isso, porque são incapazes
de subscrever “a fé” e juntar-se à Igreja Cristã.
Da mesma maneira, dentro da Igreja há muitos que ficam
desanimados por causa dos mesmos fatos. Eles ficam aber­
tamente inquietos. Estes cristãos primitivos também estavam

101
2 PEDRO

inquietos neste ponto porque achavam que o evangelho ia


vencer o mundo em pouquíssimos anos, que o Senhor ia
voltar imediatamente e que tudo ficaria bem. E quando estas
coisas não aconteceram, eles se puseram a dizer: afinal de
contas, seria esta fé o que pensávamos que era? Seria miracu­
losa e sobrenatural? Seria, afinal, o poder de Deus? Ou, dita
na linguagem moderna, a questão que confronta muitos é:
teria falhado o evangelho? Teria falhado a Igreja Cristã?
H averia, afinal, algo no evangelho? O estado em que o
mundo se encontra, e as coisas que se vêem no horizonte,
tendem, no presente, a abalar a fé professada por muitos e a
manter muitos inteiramente fora da fé cristã. Bem, qual seria
a resposta do Novo Testamento a esse tipo de atitude? Que é
que o Novo Testamento tem para dizer a essa posição? Num
sentido, pode-se colocar a resposta numa só frase: é a doutrina
da Segunda Vinda de Cristo. Essa é a resposta do Novo
Testamento à referida dificuldade, e a toda a inquietação e
confusão que surge nesse ponto particular; e é para mostrar
como esta doutrina trata dessa situação que eu me refiro
novamente à verdade contida neste versículo particular.
Já lhes ofereci um esboço do que a doutrina propria­
mente dita expõe. Como aplicar isso ao presente problema?
Há bom número de princípios necessariamente envolvidos,
e im plícitos na doutrina da Segunda Vinda. O que me
proponho fazer é tom ar uma vista panorâm ica do que o
Novo Testamento tem para dizer sobre esta doutrina em suas
diversas partes. Não posso fingir que num único discurso
apresentarei um relato exaustivo; só estou interessado em
salientar princípios, os grandes princípios centrais. Alguns
podem fazer perguntas como estas: “Bem, que é que se faz
com que estas e aquelas declarações que há no livro do
Apocalipse?” Não estou preocupado diretamente com isso no
momento, e, em todo caso, penso que a minha exposição da
doutrina mostrou que esse é o tipo falso de abordagem, que
tende a fazer-nos extraviar. Devemos preocupar-nos com

102
A Mensagem do Segundo Advento

princípios, e devemos sempre ser cuidadosos na elaboração


detalhada de princípios, porquanto é justamente nos detalhes
que muitos erros surgiram no passado.
Aqui há, então, alguns dos princípios da doutrina da
Segunda Vinda. A verdade concernente à Segunda Vinda é,
primeiramente e antes de tudo, um pronunciamento no sentido
de que há um plano de salvação. Os nossos pais gostavam dessa
expressão - o plano de salvação. Receio que não usamos esta
expressão como deveriamos; estamos interessados em ser
salvos e em ser perdoados. Eles estavam sempre enfatizando o
plano de salvação. Por uma razão ou outra, temos nos tornado
demasiadamente subjetivos. Suponho que, em parte, isso é
devido ao mundo no qual vivemos, e aos tempos pelos quais
tivemos que passar durante este século [vinte]. Suponho que
em parte isso também é produzido pela psicologia. Todo o
mundo está interessado em sentimentos e na segurança pes­
soal. Isso é inteiram ente legítimo, porém nunca devemos
permitir que monopolize tanto a nossa atenção que nos leve
a esquecer o plano de salvação e a realidade objetiva presente
na mente de Deus como delineada na Bíblia.
O Novo Testamento, na verdade a Bíblia toda, deixa muito
claro e simples que na passada e longínqua eternidade, se se
pode usar essa linguagem. Deus, no conselho eterno, mapeou
um plano para a salvação deste mundo. Diz-nos o Novo
Testamento que antes de o homem sequer ter sido criado, antes
de o homem ter caído. Deus planejou a salvação do mundo.
Deus vê o fim desde o princípio. Todas as coisas estão patentes
diante dos olhos de Deus, e a Bíblia, torno a dizê-lo, constante­
mente repete e reitera este grande fato: Deus, tendo visto o
fim desde o princípio, e estando todas as coisas inteiras, claras
e abertas a Seus olhos, planejou, antes de principiar o tempo,
que, num dado ponto e lugar, criaria o mundo. Ele criaria o
homem. Ele previu que a Queda ocorreria, que o homem
daria ouvidos à sugestão de satanás, e que Ele, Deus, então
começaria o processo de salvação.

103
2 PEDRO

Este plano é esboçado no Velho Testamento. Lemos sobre


a vocação de Abraão num dado ponto, sobre a criação da nação
e sobre como a nação foi levada para o Egito. Isso parecia o
fim de tudo, mas Deus os tirou de lá e os levou para a Terra
Prom etida. Certam ente vocês se lem bram das estranhas
vicissitudes pelas quais eles passaram naquela terra. Quando
vocês leem o Velho Testamento, se não tivessem conhecimento
do Novo Testamento, seriam lançados às profundezas do
desespero. Os filhos de Israel foram levados cativos, mas
Deus interveio e eles foram trazidos de volta - somente um
remanescente, mas Deus estava com ele. O remanescente
extraviou-se e durante quatrocentos anos não se registrou a
presença de nenhum profeta, nem da “Palavra do Senhor”.
Então, na plenitude dos tempos, veio o Filho de Deus. Toda­
via, Ele foi crucificado, e outra vez parecia que o fim tinha
chegado. Mas na manhã do terceiro dia, como fora predito e
profetizado, Ele ressuscitou e deixou a sepultura, manifestou-
-se, ascendeu ao céu. Depois, exatamente como tinha sido
prenunciado, chegou o dia de Pentecoste e foi dado o Espírito
Santo.
Pois bem, a doutrina da Segunda Vinda faz parte desse
plano. A primeira coisa que ela nos diz é que o plano de
salvação ainda não terminou. Podemos examinar os diversos
passos já dados no grande e glorioso plano de Deus, e então
esta doutrina nos declara que ainda vai acontecer alguma
coisa. Tudo foi previsto; os tempos são fixos; Deus conhece
Sua própria mente e Seu propósito. Tudo o que Deus plane­
jou foi cumprido, e o que Deus ainda tem planejado ainda
acontecerá. A doutrina da Segunda Vinda anuncia tudo isso;
assim é que não devemos pensar na salvação como algo
contingente ou fortuito; não devemos pensar nela como algo
que depende do que está acontecendo neste mundo limitado
pelo tempo; devemos, sim, voltar ao plano. E como se esti­
véssemos examinando um cronograma, e nós argumentamos
no sentido de que o cronograma sempre foi cumprido no

104
A Mensagem ão Segundo Advento

passado, e que assim também terá que se cumprir no futuro.


Queira Deus que possamos apoderar-nos firm em ente do
“plano de salvação”. O fim é tão certo como o princípio; e
todos os propósitos de Deus, a respeito da humanidade, são
definidamente porções de um plano grandioso, completo,
grande, o qual é invencível.
A segunda coisa que a doutrina nos faz lembrar é a reali­
dade e 0 terrível poder do mal. E não hesito em dizer que há um
sentido em que nenhum a doutrina do Novo Testamento
enfatiza tanto o fato e o poder do mal e do pecado como esta
doutrina da Segunda Vinda do nosso Senhor. Há outras
doutrinas que dão ênfase ao mal, tais como a da Queda do
homem, a doutrina do pecado propriamente dito e a doutrina
da salvação; mas eu penso que, se vocês examinarem bem o
assunto, verão que não há nada que enfatize tanto o terrível
poder maligno do mal como a doutrina da Segunda Vinda.
Ela o faz desta maneira: ela nos diz que o poder do mal é tão
grande que até os hom ens e as m ulheres salvos seriam
derrotados por ele, não fosse a Vinda do Senhor Jesus Cristo.
Nenhum ser humano é suficientemente capaz de lidar com
o mal; é preciso que o Senhor volte, para que o mal receba
0 tratamento final.
Pois bem, é aí que vemos a relevância desta doutrina
para a presente hora. Quando observamos o mundo e vemos a
sua conturbação, a sua discórdia, a sua infelicidade, não há
nada que propicie um real discernimento e entendimento do
tempo presente, exceto uma clara compreensão desta dou­
trina bíblica do mal e do poder do mal. Ela nos ensina que há
neste mundo duas forças poderosas, dois poderosos reinos, o
reino de Deus e o reino de satanás. O diabo é o deus deste
mundo. Vocês por certo se lembram das palavras de Paulo:
“Não temos que lutar contra a carne e o sangue, mas sim
contra os principados, contra as potestades, contra os príncipes
das trevas deste século, contra as hostes espirituais da mal­
dade, nos lugares celestiais”. Será que captamos isso como

105
2 PEDRO

deveriamos? Poderiamos alguma vez surpreender-nos com o


estado do mundo se tão-somente compreendéssemos isso
como o Novo Testamento o compreende? Nós nos damos
conta de que o mal é um reino chefiado por um grande rei, o
deus deste mundo, o principe do poder do ar? Isso é algo
sugerido pela doutrina do Segundo Advento. Há um ajun­
tamento e uma mobilização de dois grandes exércitos, dois
grandes reinos. Deus e satanás. Cristo e o mal. São essas as
forças. O mal é uma realidade terrivel, um medonho poder.
“Ah”, alguém dirá, “isso é muito deprimente!” Contudo, o certo
é que nós temos que ser realistas e encarar os fatos. O mundo
está deprimido; e o maior inimigo da humanidade, como
também do evangelho, atualmente, é o indivíduo superficial
A

que procura provar que as coisas não são tão más. E dever de
toda pessoa pensante encarar os fatos, e não procurar embalar-
-se nalguma posição de comodidade e de proteção. A doutrina
da Segunda Vinda proclama a terrível realidade e o terrível
poder do pecado.
Nossa próxima dedução enfatiza o inevitável conflito entre
esses dois reinos. Ela diz que é inevitável. O poder do mal entrou
neste mundo, e seu único objetivo e motivo é destruir a obra
de Deus. Foi por isso que o pecado entrou, foi por isso que
satanás interveio. Ele odeia Deus - essa é a paixão consumi­
dora do seu ser e da sua existência - e, como um ser que odeia
Deus, ele se contrapôs a Deus. Ele objetou ao senhorio e à
soberania de Deus, e o único objetivo e missão de satanás é
destruir, não meramente danificar, mas arruinar e destruir a
obra de Deus. Ele está focado nisso, trabalha para isso, planeja
isso, organiza-se para isso. Seu propósito é nada menos que
isso. Por outro lado, o propósito de Deus é bom; o propósito
de Deus é bondoso e benéfico. O choque entre essas forças é
inevitável, e a doutrina geral da Segunda Vinda é uma dou­
trina que, num sentido, delineia esse conflito e essa guerra,
essa luta ferrenha que está sendo travada.
Pois bem , em m uitos dos seus sím bolos, figuras e

106
A Mensagem do Segundo Advento

imagens, a Bíblia nos propicia uma penetração na natureza


dessa luta. Ela nos diz que, às vezes, satanás parece tomar a
forma de governo e poder do mundo. Aqui vocês podem apli­
car a figura a diferentes e particulares poderes do mundo - se
lhes parece bem, o Império Romano, e os diversos impérios.
Há aparências que o sugerem nessa forma hoje; mas o princí­
pio é que tem im portância. Algumas vezes satanás usou
dinastias e governos do mundo para tentar destruir a obra
de Deus. Mas nem sempre tem sido dessa forma. As vezes se
vê que, de acordo com os símbolos e figuras bíblicos, esse
inimigo toma a forma de religião falsa. A Bíblia não ensina
religião, ensina a fé cristã; e a religião pode ser, às vezes, o
maior inimigo de Deus e Sua verdade. Assim satanás se
transforma em um anjo de luz, e está sempre pronto a pro­
clamar uma religião falsa. Sob o título de religião logo vemos
que devemos incluir várias idéias, não somente religião
especificamente como tal, mas também filosofias - o mate-
rialismo, ou talvez um idealismo que exclui Deus; teorias,
sejam políticas, sociais ou econômicas; ou teorias mais gerais
acerca do homem e sua natureza, sua existência, e talvez idéias
relacionadas com a vida em geral. Satanás usa e emprega todos
estes métodos, qualquer coisa de que possa fazer uso para
estragar e destruir a obra de Deus ou pôr-se entre o homem e
Deus. Esses são seus métodos, e quando consideramos estas
coisas, podemos ver claramente que o estado atual do mundo
não é surpreendente como parece à primeira vista. Façam
um exame retrospectivo através dos últimos dois mil anos, e
verão as diferentes formas que esta grande luta tem assumido
- às vezes política, às vezes filosófica, às vezes religiosa. Ora,
a doutrina neotestamentária concernente à Segunda Vinda
dá-nos uma indicação de todas estas coisas e nos prepara
para o entendimento deste conflito terrível travado entre os
dois reinos.
Mas ela nos fala também sobre o curso do conflito. Há dois
pontos a considerar aqui. Primeiro e antes de mais nada.

107
2 PEDRO

ela nos diz que há uma periodicidade concernente ao curso


do conflito. Há épocas em que o evangelho floresce, em que o
evangelho é popular, e os homens e as mulheres se aglome­
ram nas reuniões religiosas e se regozijam nisso. Há, depois,
períodos terríveis, em que os homens desviam-se do evangelho,
tornam-se indiferentes face a ele. Mas, graças a Deus, Deus
intervém novamente com um glorioso avivamento e des-
pertamento, com um novo estímulo. Acaso vocês não vêem
isso quando voltam os olhos para o passado? Observem as
curvas, se lhes parece bem, na história da Igreja. Vocês verão
que ela começou com um grande avivamento. Depois houve
um afastamento gradativo. Depois outro período de grande
avivamento, e depois ele se desvanece aos poucos. Lá vão
vocês às profundezas da Idade Média, a Idade das Trevas.
Vem depois a gloriosa Reforma Protestante. Mas essa foi
ficando gradativam ente no passado. Depois, de novo, o
grande avivamento do século dezoito. Isso é história - há
uma periodicidade. O inim igo parece todo-poderoso e o
povo de Deus parece derrotado; então Deus intervém, e Ele
“ergue o estandarte quando o inimigo vem como um dilúvio”.
Esse é o primeiro ponto.
O segundo, e este é mais importante para nós hoje, é que
0 fim de todas as coisas será uma crise. Há nesta doutrina o
claro e inequívoco ensino no sentido de que este conflito será
consumado num choque extraordinário - num Armagedom,
uma confrontação culminante das duas forças, e uma batalha
final. Em parte alguma o Novo Testamento sugere um gra­
dual melhoramento do mundo e uma gradual introdução do
reino de Deus; a doutrina é apocalíptica, escatológica, crítica.
Esse é o quadro que nos é apresentado em toda parte nas
páginas do Novo Testamento, o quadro do resultado final deste
terrível conflito. Terminará numa crise - num choque final e
definitivo.
A próxima dedução, que, acima de todas as outras coisas,
aplica-se a nós, é a certeza da vitória final de Cristo e de Sua

108
A Mensagem do Segundo Advento

causa. Graças a Deus por isso. Aconteça o que acontecer,


ocorra o que ocorrer, o plano de salvação garante que o reino
de Deus virá e que o Senhor dos senhores vai triunfar e
prevalecer. Permitam-me enfatizar isto. Haverá tempos em
que será quase impossível acreditar nisso. Haverá tempos em
que os próprios eleitos quase serão enganados e perderão o
ânimo e a esperança. Mas o Novo Testamento nos prepara
para tudo isso. Ele nos diz que em certos períodos parecerá
que Deus foi derrotado, mas que podemos saber com certeza
que Deus triunfará e prevalecerá. O fim é certo, “Jesus reinará”,
fora de dúvida e de incerteza.
Muito bem, qual é a tarefa e a função do evangelho e da
sua pregação nesse ínterim ? E neste ponto que tratamos
suprem am ente da questão original. A incum bência do
evangelho no ín terim não é ten tar m elhorar o m undo
gradativamente. Este mundo nunca vai ser melhorado aos
poucos e cada vez mais - esse é o erro e a loucura daqueles que
perguntam por que o mundo está como está depois de dois
mil anos de pregação do evangelho. O Novo Testamento nos
diz que será assim. O que cabe ao evangelho não é melhorar
o mundo de modo geral; é tirar homens e mulheres indivi­
dualmente desse mundo e colocá-los no reino de Deus; é
apoderar-se de mim e de vocês neste mundo, que está sob a
ira de Deus, e da condenação sob o juízo de Deus, e livrar-nos
dele antes de sua destruição final. E chamar e reunir o povo de
Deus, é remover a plenitude dos gentios e a plenitude dos
judeus; é separar o povo peculiar de Deus, é tirar cada um de
nós, um por um, deste presente mundo mau e introduzir-nos
no reino eterno e sempiterno. Vemos, pois, claramente que o
evangelho não falhou. O evangelho nunca prometeu que o
mundo seria cada vez melhor; ele simplesmente declarou
que o mundo continuaria sendo mau, até a sua destruição final,
e que nós seríamos salvos do mundo e de sua destruição.
Qual será, então, a conclusão que podemos tirar disso
tudo? Que dizer do presente mundo, da presente situação?

109
2 PEDRO

Não temos por que ficar surpresos ao vermos o que vimos.


Não seria verdade que o mundo não se amolda ao ensino
bíblico? Haveria algo que explique o mundo atual senão o
ensino bíblico? O cristão não deve ficar surpreso face ao
estado do mundo e das nuvens que se veem no horizonte; ele
deve esperar isso, deve estar preparado para isso.
A doutrina dá-nos também este glorioso conforto - seja o
que for que esteja adiante de nós, se estamos em Cristo sabe­
mos que 0 fim definitivo é certo e seguro. Contudo, isso não
leva à complacência; isso, acima de tudo, deve estimular-nos
à atividade. Se cremos nestas coisas, só podemos fazer uma
dedução - não há um momento a poupar. Quando vejo o que
Deus, em Seu amor, fez e do que me está salvando, só tenho
que me pôr à disposição dele, e devo orar rogando a Deus
que me faça digno do reino do Seu amado Filho; devo falar
a outros e adverti-los, devo abrir seus olhos para os fatos que
para mim estão claros, devo ser diligente a tempo e fora de
tempo, devo exortar os homens a que fujam da ira vindoura.
Queira Deus, em Sua infinita graça e piedade, dar-nos um
tal discernimento e entendimento desta bendita e gloriosa
doutrina, que não somente sejamos encorajados, fortalecidos
e estabelecidos, mas que também, juntamente com os p ri­
meiros cristãos e com todos os verdadeiros cristãos de todas
as eras, esperemos e anelemos pelo “bendito aparecimento”
que final e definitivamente aniquilará satanás e suas cortes
e introduzirá o reino de justiça, paz e glória que jamais
terá fim.

110
o Testemunho Apostólico
“Porque não vos fizemos saber o poder e a vinda de nosso
Senhor Jesus Cristo, seguindo fábulas artificialmente
compostas; mas nós mesmos vim os a sua majestade.
Porquanto ele recebeu de Deus Pai honra e glória, quando
da magnífica glória lhe foi dirigida a seguinte voz: Este é
0 meu Filho amado, em quem me tenho comprazido. E
ouvimos esta voz dirigida do céu, estando nós com ele no
monte santo. ” - 2 Pedro 1:16-18

A declaração presente neste capítulo primeiro, do versí­


culo 16 até o fim do capítulo, é de enorme importância. De
fato dela se pode dizer que é de central importância do ponto
de vista da certeza da nossa fé e, se lhes parece bem, por
conseguinte, do ponto de vista daquilo que geralmente é
descrito como apologética. O apóstolo, recordemos, está
preocupado em ajudar estes agônicos cristãos, que estavam
enfrentando dificuldades - e nós o seguimos passo a passo
enquanto ele argumenta com eles até trazê-los ao que talvez
seja, de todos, o mais forte conforto e consolação, a saber, a
doutrina da Segunda Vinda e da volta de nosso Senhor em
glória, e expô-la diante deles.
Nesse ponto, contudo, o apóstolo parece im aginar
alguém fazendo um a pergunta como esta: “ Sim”, dirá
alguém, “tudo isso está certo, você nos esteve lembrando
ampla e extensamente o que você e os demais apóstolos
pregaram , a mensagem que ouvimos no princípio e que
aceitamos e na qual cremos. Mas, você sabe, as circunstâncias

111
2 PEDRO

e as condições são tais que temos que confessar que há oca­


siões em que ficamos um tanto inseguros acerca de grande
parte dessa mensagem, e há outras pessoas, outros mestres, que
alegam possuir tanta autoridade como você, que nos estão
sugerindo que estas coisas não são exata e precisamente como
você nos diz. Pois bem, aqui você nos fez lembrar este grande
e tremendo acontecimento que você diz que vai acontecer -
que esta mesma pessoa, Jesus de Nazaré, que você nos pregou
como Cristo e Senhor, vai voltar à terra em honra e glória,
vai introduzir novo céu e nova terra e vai levar-nos para um
eterno estado de bem-aventurança, felicidade e perfeição.
Mas, que garantia temos de que tudo isso está certo e de que
tudo isso é verdade? Nós cremos nisso e o aceitamos, e tive­
mos que sofrer por essa fé e por essa aceitação, mas, como
podemos saber que estas coisas são realmente verdadeiras,
que elas são o que você tem alegado a favor delas? Quais são
as bases da certeza sobre as quais podemos ficar absolutamente
confiantes e seguros?”
E para tratar desse preciso problema e dificuldade que
Pedro escreve as palavras que estamos considerando, junta­
mente com as palavras que se seguem, até o fim do capítulo.
Ele antecipa essa pergunta, esse argumento, e trata dele aqui
a seu modo característico. Na ocasião particular em que Pedro
escreveu, esse problema tinha surgido de forma aguda, não
somente por causa das dificuldades com as quais os cristãos
se defrontavam em consequência das circunstâncias, mas
também porque circulavam em torno deles muitas fábulas
estranhas e maravilhosas. E a elas que Pedro faz referência aqui.
Quem quer que conheça a história dos judeus, não só do tempo
da Vinda [a primeira] do nosso Senhor ao mundo, mas também
de antes disso, sabe que não havia nada que fosse, talvez, mais
característico da sua perspectiva mental e da atmosfera que
os cercava naquele tempo do que a multiplicidade de fábulas
e contos que tinham conquistado a aceitação geral entre eles.
Os judeus tinham desenvolvido uma espécie de exposição

112
o Testemunho Apostólico

imaginativa do Velho Testamento e, em acréscimo, viviam


inventando contos e fábulas. Não somente isso; quem tem
mesmo que seja um conhecimento superficial da mitologia
sabe que não havia nada mais característico da literatura grega,
comum em todo o mundo civilizado daqueles tempos, do que
a grande variedade de mitos, contos e fábulas sobre diversos
deuses que tinham assumido forma humana e tinham habi­
tado na terra, e com quem e por meio de quem algumas coisas
estranhas e maravilhosas tinham acontecido. Na verdade,
podemos ir adiante e dizer que até na própria Igreja um
bom número de fábulas e contos referentes ao nosso Senhor
tinham obtido grande aceitação. Existem coisas como os
evangelhos apócrifos, que pretendem ser histórias e registros
da vida e dos feitos de Jesus de Nazaré, o Filho de Deus. Nesses
contos e nessas fábulas todas as espécies de coisas estranhas,
maravilhosas e fantásticas eram atribuídas ao nosso Senhor
e Salvador Jesus Cristo. Não podemos aprofundar-nos nisso
tudo agora; mas é importante que o tenhamos em mente,
pois o efeito de todas essas fábulas pagãs, judaicas e até cristãs
foi o de levantar dúvida nas mentes de alguns dos crentes, e,
em consequência, estes foram tentados a fazer esta particular
pergunta: “Como podemos saber que o que você nos vem
dizendo não é também uma fábula artificialmente composta?”
Essa é a questão com a qual agora estamos preocupados, e,
naturalmente, nem haveria necessidade de assinalar que essa
questão é tão urgente hoje como quando Pedro escreveu sua
carta àqueles cristãos primitivos. Noutras palavras, é a questão
de autoridade e, em certo sentido, durante os recentes anos'
não há questão que tenha sido tão ardorosa e constantemente
debatida como esta. Sobre que bases pregamos este evangelho?
Sobre que bases cremos nele? Sobre que bases convidamos os
que estão fora da Igreja para o aceitarem? Aqui estamos nós,
como cristãos, confrontando o mundo como ele está hoje, e

' De 1946 para trás. Nota do tradutor.

113
2 PEDRO

nós alegamos que a mensagem cristã é única. Dizemos que


esta é a única solução para todos os problemas, e que a chave
para tudo é que, na Pessoa de Seu Filho unigênito, o nosso
Senhor e Salvador Jesus Cristo, Deus fez algo uma vez por
todas. Mas as perguntas feitas são: “Com que autoridade você
diz isso? Qual é a sua sanção? E, não somente fora da Igreja
Cristã, mas também dentro, há aqueles que, às vezes em
consequência da sua leitura, ou de suas conversas com outros
que não creem e que alegam ter uma perspectiva científica
da vida, vêem sua fé um tanto enfraquecida quando são con­
frontados por certos argumentos. Pois bem, isso é algo de
importância absolutamente central. Toda a questão é: que
garantia temos da veracidade da fé cristã? Qual é a nossa
autoridade para fazermos esta singular reivindicação a favor
do evangelho do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo?
Aqui o apóstolo tem duas coisas importantes para dizer.
Primeiramente e antes de tudo é a questão do testemunho
apostólico. Depois vem o testemunho da profecia. Tratemos
agora da primeira delas.
Se alguém me vem dizer: “Isso tudo está muito bem, você
alega que estas coisas são verdadeiras, e você se sente muito
feliz como fruto da sua fé, mas saiba que eu quero algo sólido
em que me firmar antes de crer nelas. Quais são as suas
razões?” Observemos como o apóstolo lida com a questão.
Primeiro permitam que eu me expresse negativamente:
o nosso primeiro argumento não deve ser apontar para a
natureza exaltada do ensino. M uito frequentem ente nós
vemos que quando os cristãos são pressionados sobre este
ponto, esta é a razão que eles dão: “A m inha razão”, dizem
eles, “para crer no evangelho é que ele é um ensino realmente
maravilhoso, nobre e exaltado. Tenho lido outras idéias e não
cruzei com nada que seja tão maravilhoso e tão exaltado.
Examine a sua visão da vida, examine a espécie de ética para
a qual ele nos chama; examine o seu efeito quando os homens
realmente procuram vivê-lo e pô-lo em prática”. Mas eu digo

114
o Testemunho Apostólico

que vocês nunca verão essa linha de argumentação empre­


gada no Novo Testamento. Há um motivo muito bom para
esse fato. Se basearmos a nossa confiança no evangelho
unicamente na natureza do seu ensino, finalmente vamos ser
deixados numa situação na qual realmente não poderemos
argum entar convincentem ente contra aqueles que creem
em várias outras formas de ensino. Vocês verão que há outras
religiões no mundo que têm muito ensino nobre e exaltado.
Não faz parte da pregação do evangelho detratar outras visões
da vida. Alegamos em prol do evangelho que ele pode trans­
cender todos os outros ensinos. Não procuramos detratar ou
depreciar os demais. Dizemos que o evangelho é inteira­
mente único. Noutras palavras, concedamos livremente que
o budism o é um ensino m uito alto, nobre e exaltado.
Igualmente podemos dizer a mesma coisa sobre o islamismo,
com sua moralidade severa e estrita, com sua ética elevada,
com sua promoção de um tipo de vida altamente disciplinada.
Não somente isso, dirijamos a atenção aos filósofos pagãos
gregos - Aristóteles, Platão, Sócrates - e muitos outros mestres,
alguns dos quais, Sêneca e outros, foram de fato contempo­
râneos do nosso Senhor.
Leiam os escritos desses homens e o seu ensino sobre a
vida. Se somos sinceros, temos que admitir que, se fizermos
uma sinopse do ensino deles e depois examinarmos a ética
cristã como se vê no Sermão do Monte, vocês verão que
muitas vezes há pequena diferença entre eles. Não temos o
direito de reivindicar para o evangelho de Cristo uma
singularidade a partir meramente do ponto de vista da ética
e da moral, ou do ensino nobre e elevado. E o fato é que há
grande número de pessoas fora de Cristo nesta manhã por
essa mesma razão. Elas alegam que veem o mesmo ensino
noutros lugares. “Portanto”, eles perguntam, “por que devo
crer em toda essa parte miraculosa do seu evangelho? Por
que devo, de repente, ser solicitado a engolir o que parece per­
tencer ao domínio das fábulas, e não dos fatos? Parece-me

115
2 PEDRO

que é mais honesto e mais inteligente aceitar um ensino


que eu vejo que vem daqueles que afirmam que são apenas
humanos, em vez de acrescentar tudo isso que se apresenta
como divino e sobrenatural.” Por isso digo que devemos
observar que o argumento do apóstolo não se baseia tão-
-somente, ou em primeira instância, na natureza exaltada do
ensino.
Permitam-me assinalar igualmente, em segundo lugar,
que Pedro não se baseia na experiência, ou nos resultados que
decorrem da fé no evangelho. Isso também é igualmente
importante, e tem sido importante durante os últimos cem
anos. Por certo vocês se lembram de que, como resultado da
pesquisa, dos avanços e do desenvolvimento científico durante
0 período vitoriano, havia na Igreja aqueles que começaram a
dizer: “Agora, se não tivermos muito cuidado, vamos perder a
nossa fé. Os homens estão querendo provar com a sua ciência
que milagres não podem acontecer. Mas não há necessidade
de perder a nossa fé. Devemos diferenciar entre os fatos da
religião cristã reportados, e a experiência da religião cristã”.
Eles diziam que a prova suprema da religião cristã está na
experiência e nos resultados a que ela leva. Muitos, quando
pressionados na argumentação, dirigem-se à pessoa pseudo-
científica moderna, dizendo: “Você pode provar o que quiser,
porém isso nunca faz qualquer diferença para o que eu tenho
experimentado”. E pensam que estão defendendo a fé cristã.
Agora o meu desejo é assinalar que, num sentido, tal
argumento é trair e negar o real centro da fé cristã. Pedro não
está dizendo que as verdadeiras bases para crer no evangelho
são algo como isto: “Eu era um pescador, homem que tinha
vida pecaminosa. Mas, desde que me tornei cristão, pregador
e apóstolo, já tive experiências estupendas”. Pedro não baseia
o seu argumento em sua experiência pessoal no sentido do
seu ser interior, ou nos resultados do evangelho em seu caso
particular. E há muito boa razão para isso. Se basearmos a
nossa certeza em algo tão subjetivo assim, que é que temos

116
o Testemunho Apostólico

para dizer às diversas seitas que são tão populares na presente


hora? Há m uitas entidades que podem dar às pessoas
experiências muito definidas e extraordinárias. Não faz parte
do evangelho negar qualquer valor de qualquer outro ensino.
Uma das mudanças mais notáveis que já vi na vida foi no caso
de alguém que cria na seita conhecida como “Ciência Cristã”.
Essas seitas e essas crenças falsas podem propiciar às pessoas
experiências muito definidas - transformação de ébrios em
pessoas sóbrias, gente desonesta em honesta, etc. A psicologia
também pode fazer isso; um mero tratamento da mente e do
cérebro, ao longo destas linhas, é plenamente capaz de produ­
zir mudanças na esfera da experiência e do sentir interior.
Portanto, se basearmos a demanda pelo evangelho cristão em
bases como essas, qual será nossa réplica a esses vários outros
ensinos, seitas e entidades que podem produzir exatamente
os mesmos resultados e os mesmos efeitos?
Noutras palavras, é vitalmente importante que compre­
endamos o caráter positivo e a natureza da apologética cristã.
Que é ela? Nada menos que o depoimento e testemunho
apostólico de certos fatos, e é justamente disso que Pedro nos
fala neste ponto. “Não vos fizemos saber o poder e a Vinda de
nosso Senhor Jesus Cristo, seguindo fábulas artificialmente
compostas... nós mesmos vimos a sua majestade... Ele recebeu
de Deus Pai honra e glória, quando da magnífica glória lhe foi
dirigida a seguinte voz: Este é o meu Filho amado, em quem
me tenho comprazido. E ouvimos esta voz... estando nós com
ele no monte santo.” Essa é a natureza da apologética cristã.
A base da nossa fé repousa solidamente em certos fatos dos
quais os apóstolos dão testemunho. Leiam o livro de Atos dos
Apóstolos e observem ali a natureza da pregação dos apósto­
los, os primeiros pregadores do evangelho cristão. Que diziam
eles quando saíam pelo mundo então conhecido? Falavam
sobre si mesmos? Diziam ao povo o que tinha acontecido com
eles? Eram eles tão-somente expoentes de alguma experiên­
cia mística que tiveram? A resposta é um “Não” bem definido.

117
2 PEDRO

Eles expunham certos fatos dos quais eles eram testemunhas


e os quais eles testificavam. Iam de lugar em lugar e “pregavam
Jesus”, pregavam “Jesus como o Cristo”, pregavam “Jesus
como Senhor”. Há uma perfeita ilustração disso no capítulo
dez de Atos, onde vemos Pedro pregando a Cornélio, um
gentio, e observem ,o que ele disse. Ele falou de Jesus de
Nazaré. Ele disse: eu estive com Ele, e O vi realizar estas
obras, e digo que Este é Aquele que eu vi depois que Ele
ressuscitou dentre os mortos e que comeu e bebeu conosco.
Ele pregou Jesus. E se vocês examinarem a pregação de Pedro
e de Paulo em toda parte, verão que era sempre a mesma coisa.
Nas sinagogas Paulo argumentava baseado nas Escrituras
para provar que Jesus era o Cristo e que era necessário que
o Cristo sofresse. O argumento é sempre precisamente o
mesmo. Noutras palavras, toda a base da nossa posição re­
pousa na Pessoa do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo e
nos fatos concernentes a Ele.
E quais são esses fatos? Aqui somos levados de volta a
algumas afirmações que encontramos nos evangelhos e em
Atos dos Apóstolos. Ali são feitas algumas alegações a favor
dEle. Consta a alegação de que Ele é o Filho unigênito de
Deus. Que prova temos? Bem, somos informados de que
Ele operava milagres - que Ele podia curar os enfermos, dar
vista aos cegos e ressuscitar os mortos. Ele podia dar ordens
aos elementos, acalmar o mar e mandar o vento parar. Ele
tinha 0 senhorio sobre tudo o que há na criação, doenças,
pestes e coisas do gênero. Estes homens alegavam que O
viram operar estes m ilagres. Sem elhantem ente, davam
testemunho do fato da Sua ressurreição. Eles diziam que O
tinham visto pregado num a cruz, que Ele m orreu e foi
enterrado numa sepultura, mas depois viram essa mesma
sepultura vazia. Viram que Ele tinha ressuscitado dentre os
mortos, que Ele conversou com eles e esteve com eles durante
quarenta dias, que Se manifestou, e que, no fim desse período,
eles O viram ascender ao céu.

118
o Testemunho Apostólico

Aqui, porém, para menção muito especial, Pedro destaca


o fato da transfiguração. “Não vos fizemos saber o poder e
a vinda de nosso Senhor Jesus Cristo, seguindo fábulas
artificialmente compostas; mas nós mesmos vimos a sua
m ajestade” [VA: “ fomos testem unhas oculares da sua
majestade”]. Estivemos com Ele, diz praticamente Pedro,
eu Tiago e João, lá naquele monte, e de repente O vimos
transfigurado, e mais que isso, ouvimos a voz do céu que
disse: “Este é o meu Filho amado, em quem me tenho
comprazido”. Pergunto: por que ele destaca isso em particu­
lar? Parece-me que a razão deve ser que foi lá naquele monte
da transfiguração que estes homens viram mais claramente
do que em qualquer outro lugar a peculiar e maravilhosa
glória do nosso Senhor. Por certo vocês se lembram da descri­
ção. De repente eles O viram transfigurado; havia um brilho,
uma fulgente luz em Seu rosto, e até Suas vestes estavam tão
brancas como nenhum lavadeiro os poderia branquear.
Aquela glória maravilhosa - eles quase ficaram cegos por
causa dela. Pedro nunca se esqueceu disso. Mas, além e acima
disso, diz ele, enquanto se achavam ali, naquela cena estupenda,
eles viram Moisés e Elias e os ouviram conversar com Jesus.
Estes homens, que tinham vindo da vida pós morte e além
túmulo, apareceram ali e falaram. Mas, acima de tudo, eles
tinham ouvido uma voz vinda do céu, voz como igual nunca
tinham ouvido antes, e que disse: “Este é o meu Filho amado,
em quem me tenho comprazido”.
Toda a nossa posição neste momento depende desse
fato. Ou eu aceito ou não aceito essa declaração do apóstolo
Pedro. Eu sou cristão, não porque vejo certos efeitos produ­
zidos em certas pessoas que creem no evangelho. Por que sou
cristão? Bem, minha razão final é que eu creio no que este
livro me diz; creio no fato que é solenemente asseverado pelo
apóstolo, que quando ele, Tiago e João subiram àquele monte
com Jesus, repentinam ente O viram transfigurado, viram
Moisés e Elias e ouviram a voz do céu. Creio nos apóstolos

119
2 PEDRO

quando eles dizem que Ele aquietou as ondas e silenciou o


vento, curou enfermos e ressuscitou mortos - não tenho outra
razão para crer, esta é a única base, o único fundamento e a
única garantia da minha certeza.
Em última análise, somos levados de volta a uma destas
duas posições: se você preferir acreditar nas filosofias moder­
nas e na moderna atitude pseudocientífica para com a vida,
você começará dizendo que milagre é impossível, pelo que
terá que dizer que milagre nunca aconteceu; e então você
dirá: “Não creio no seu evangelho, com as suas pretensões
miraculosas”. Você estará sendo perfeitamente lógico, mas
não é esse o argumento entre nós. Não estamos aqui para
argumentar afirmando que milagre pode acontecer. A questão
suprema é: seriam estes homens são testemunhas fidedignas,
ou não? Estaria eu disposto a crer no que eles afirmam?
Acreditaria eu que a ciência pode explicar tudo quanto há
na vida? Estarei seguro ao dizer que, à luz das teorias moder­
nas, milagre é inerentem ente impossível? Posso ter uma
ex p eriên cia psicológica, posso to rn ar-m e um hom em
diferente - isso não faz de mim um cristão. O que me torna
cristão é crer e aceitar o testemunho de que Jesus é o Filho
unigênito de Deus, que Ele nasceu de uma virgem, Maria,
que Ele nasceu de m aneira m iraculosa, que Ele operou
milagres, que Ele foi transfigurado naquele monte, que ele
fez coisas que o homem nunca fez, que Ele morreu na cruz
pelos pecados dos homens, que Ele ressuscitou e deixou o
túmulo, que Ele ascendeu ao céu. Ou eu aceito estas coisas
como fatos, ou então eu digo que eles não passam de fábulas
e invenções. Teria eu alguma coisa para me fortalecer e que
me apóie nessa fé? Teria uma grande prova, e essa é a própria
Igreja Cristã. Como você explica a Igreja Cristã à parte destes
fatos? Como explica os apóstolos? Seria provável que os
homens que escreveram estes Evangelhos eram mentirosos,
forjadores e puras fraudes, e que deliberadamente inventaram
estas cenas? Seria provável que Pedro, que negou seu Senhor

120
o Testemunho Apostólico

pouco antes da crucificação porque tinha medo de morrer


e que depois passou a fazer alegações e declarações que
constantemente o expunham à morte e ao martírio e que, na
verdade, subsequentemente, levaram a seu martírio, foi falso
nisso tudo? Nós baseamos toda a nossa causa neste depoi­
mento e neste testemunho apostólico. Foi assim que a Igreja
Cristã veio à existência, foi assim que ela venceu o mundo
antigo. Estes hom ens sim plesm ente pregavam os fatos
concernentes a Ele, e nós somos finalmente levados a uma
destas duas posições - ou acreditamos nos apóstolos, ou não
acreditamos neles. Ou eu aceito a alegação exaltada, miraculosa,
definida, ou a rejeito. Ou eu creio que estas coisas são fatos,
ou as descarto como fábulas.
Povo cristão, não temamos este ataque pretensamente
científico m ovido contra o evangelho. A ciência nunca
poderá remover fatos; nunca poderá alterar acontecimentos
ocorridos na história. Não peçamos desculpas por nossa fé.
Não reduzamos a fé. Façamos a afirmação miraculosa com­
pleta. Não ofereçamos um Jesus restrito, com nobres idéias
e ensino exaltado. Façamos a plena reivindicação neotesta-
mentária em prol dEle, e fixemos o nosso tudo no depoimento
e testemunho apostólico, na prova dos homens que estiveram
com Ele no monte e que ouviram a voz do céu dizer: “Este é
o meu filho amado, em quem me tenho comprazido”.

121
10
A Autoridade das Escrituras
“E temos, muito firme, a palavra dos profetas, à qual
hem fazeis em estar atentos, como a uma luz que alumia
em lugar escuro, até que o dia clareie, e a estrela da alva
apareça em vossos corações. Sabendo primeiramente isto:
que nenhuma profecia da Escritura é de particu lar
interpretação. Porque a profecia nunca fo i produzida
por vontade de homem algum, mas os homens santos de
Deus falaram inspirados pelo Espírito Santo. ”
- 2 Pedro 1:19-21

Passamos agora à segunda parte do que podemos descre­


ver como a “Apologética do Apóstolo Pedro”. E esta segunda
grande seção da sua apologética são, n aturalm ente, as
E scrituras. São estas as coisas nas quais nos firm am os
supremamente. O testem unho apostólico e as Escrituras
Sagradas.
Nos versículos 19, 20 e 21 ele trata do segundo aspecto.
Mas aqui há também um argumento duplo. Por amor da cla­
reza do pensamento e da exposição, permitam-me indicar
esses dois argumentos. Primeiro, diz ele, há os acontecimentos
que cumpriram a profecia. Disso ele trata no versículo 19. O
outro é a natureza das Escrituras; e esse é o assunto do qual
ele trata nos versículos 20 e 21 e que agora vamos estudar.
Fatos cumprindo profecia, sim; mas, em acréscimo a isso, a
natureza da profecia. E não somente a natureza da profecia,
mas também das Escrituras em geral. Notem como Pedro se
expressa a respeito - “Sabendo primeiramente isto: que ne­
nhuma profecia da Escritura...”. A profecia é parte integrante

122
A Autoridade das Escrituras

das Escrituras, de modo que o que é certo sobre a profecia é


certo sobre todas as Escrituras. Na Segunda Epístola de Paulo
a Timóteo, no capítulo três, é feita a mesma afirmação. Em
vista disso, precisamos descobrir o que Pedro está dizendo
exatamente aqui. “Sabendo primeiramente isto: que nenhuma
profecia da Escritura é de particular interpretação. Porque a
profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum,
mas os homens santos de Deus falaram inspirados pelo Espírito
Santo.” E importante saber precisamente o que o apóstolo quer
dizer no versículo 20, e eu imagino que tenho razão quando
digo que não há nem uma só frase das Escrituras que tenha
produzido tal variedade de interpretações como este versículo
particular. Para os que se interessam pela exposição, e pela
elucidação do significado das Escrituras, penso que não existe
nada mais fascinante do que estudar a história da sua inter­
pretação. Ela tem figurado proeminentemente nas grandes
controvérsias religiosas dos séculos. Neste versículo se baseia
em parte a grande divisão entre o catolicismo romano e o
protestantism o. E, pois, uma declaração extrem am ente
significativa e importante.
Permitam-me oferecer-lhes um ligeiro relato sobre as
principais linhas de interpretação que têm sido sugeridas e
propostas na tentativa de explicar este versículo. “Sabendo
primeiramente isto: que nenhuma profecia da Escritura é de
particular interpretação.” E como se lê na Versão Autorizada
(inglesa) [como na ARC], e eis aqui algumas das explicações
apresentadas. Tratando delas historicamente, começamos
pela exposição católico-romana, exposição que é precisa­
mente o que vocês esperariam que fosse. Dizem eles que
aqui, claro, está a declaração das próprias Escrituras de que
juízo particular é algo que deve ser excluído rigidamente - só
a igreja [católica romana] pode interpretar as Escrituras.
Nenhuma profecia das Escrituras é de particular interpreta­
ção! Logo, dizem eles, o protestantismo, com sua defesa do
livre exame e do sacerdócio universal de todos os crentes,

123
2 PEDRO

está desde logo e para sempre condenado completamente.


Nada, continuam eles, é mais perigoso do que este Livro cair
nas mãos de pessoas comuns e estas tentarem interpretá-lo
e entendé-lo pessoalmente. Só há uma coisa segura que se
pode fazer, dizem eles, e essa é ir à igreja. Somente a igreja
pode interpretar esta grande tradição que chegou até nós, e
ela o faz por meio dos concílios, dos cardeais e do papa.
“Nenhum a profecia da Escritura é de particular interpre­
tação; nada pode ser tão perigoso como os indivíduos fazerem
frente à Palavra e tentarem interpretá-la pessoalmente. E assim
vemos por que este versículo tem desempenhado uma tão
proem inente parte na discussão geral entre o catolicismo
romano e a posição protestante com relação à apologética e
à base geral da nossa fé”. Vocês creem na necessidade da igreja
em acréscimo à Palavra, ou dizem que a Palavra propriamente
dita é a autoridade final e que a igreja não é absolutamente
necessária para a interpretação da Palavra, mas, antes, ela
própria tem que ser julgada pela Palavra?
Outra ideia apresentada é que aqui somos advertidos con­
tra a interpretação de qualquer profecia particular baseada
nela mesma - a ideia segundo a qual a única maneira de
interpretar profecia é interpretá-la à luz de toda a profecia.
Nenhuma profecia é, ela própria, de particular interpretação.
Noutras palavras: tenha o cuidado, dizem eles, de não pegar
uma só profecia e, com base nessa única profecia, elaborar
uma doutrina ou um corpo de doutrinas. Para entender bem
[o assunto de] profecia, dizem eles, você deve tomar uma
profecia individual e colocá-la à luz de todo o corpo de pro­
fecia; essa é a única maneira segura de agir.
Também tem sido proposto que o que o versículo quer
dizer é que os próprios profetas eram incapazes de entender
tudo o que eles diziam em suas próprias profecias. Vocês verão
que Pedro faz essa real e concreta declaração no capítulo
primeiro da sua Primeira Epístola, nos versículos 10 e 11, e
há aqueles que interpretam esta declaração dessa maneira.

124
A Autoridade das Escrituras

Eles dizem que nem sempre o profeta entendia o que estava


dizendo. “Nenhuma profecia... é de particular interpretação.”
Depois há aqueles que sugerem que o que a passagem quer
dizer é que a profecia não é a sua própria interpretação, e que
ela não traz em si a sua própria interpretação, mas que só
pode ser entendida quando se dão os acontecimentos pro­
fetizados e preditos. Em face disso, eles dizem que não se
pode interpretar uma profecia enquanto ela não for cumprida
- é isso que significa a frase “nenhuma interpretação particular”
- você precisa esperar pelo acontecimento profetizado antes
de procurar o sentido da profecia.
Depois, a última explicação que tem sido apresentada é
que nenhum homem, lendo a profecia, ou nem mesmo o profeta
que a expressa, é capaz de interpretar profecia com sua mente;
só pode fazê-lo quando iluminado e guiado pelo Espírito
Santo. Por isso o que eles dizem é que nenhum homem, como
ele é, pode entender profecia - “nenhum a profecia é de
particular interpretação”, você precisa ter a iluminação do
Espírito Santo em sua mente, antes de poder entendê-la ou
interpretá-la direito. São essas as idéias comuns que têm sido
apresentadas no passado na tentativa de interpretar esta
declaração particular.
Bem, ao examinarmos essas explicações, o que certa­
mente deveremos pensar é que, embora haja elementos de
verdade em todas elas, exceto na católico-romana, vê-se que
todas elas falham neste sentido: elas tomam o versículo
isoladamente e deixam de considerá-lo à luz do versículo
vinte e um. Mas os versículos 20 e 21 devem ser tomados juntos.
A própria palavra “porque”, no começo do versículo 21, torna
isso imperativo. “Sabendo primeiramente isto: que nenhuma
profecia da Escritura é de particular interpretação. Porque a
profecia nunca foi produzida por vontade de homem algum,
mas os hom ens santos de Deus falaram inspirados pelo
Espírito Santo.” O versículo 21, seguramente, lança grande
luz sobre o versículo 20. Não somente devemos ter isso em

125
2 PEDRO

mente, mas também mais outra coisa. Vejam o verbo “é”, no


versículo 20. Geralmente se concorda que a tradução “é” é
realmente infeliz nesse ponto. De fato a palavra significa
“surge” ou “se origina”, ou, se vocês preferirem , “vem à
existência”. Examinemos depois a palavra “interpretação”. Se
vocês pesquisarem sóbre essa palavra vão ver que às vezes
ela é traduzida pela palavra “expondo” ou “expor”, ou pela
palavra “determinação”, de modo que a idéia que temos é
algo semelhante ao seguinte: “Sabendo primeiramente isto,
que nenhum a profecia da Escritura origina-se ou surge
como resultado de alguma particular determinação”.
Agora começamos a enxergar exatamente o que Pedro
está dizendo. Se posso fazer uma tradução um pouco mais
livre, posso dizer algo assim: “Sabendo primeiramente isto:
que nenhuma profecia da Escritura origina-se no entendi­
mento que o profeta tem pessoalmente das coisas”, e, dito
dessa forma, vocês verão que esse versículo leva naturalmente
ao versículo 21. “Nenhuma profecia da Escritura surge ou
origina-se do entendimento que o profeta tem pessoalmente
das coisas. Porque a profecia nunca foi produzida por vontade
de homem algum, mas os homens santos de Deus falaram
inspirados pelo Espírito Santo.” Aí, penso eu, temos a única
explicação razoável, racional e satisfatória deste particular
versículo. E claro está que ela se liga perfeitamente ao que
Pedro já dissera no versículo 19: “E temos, muito firme, a
palavra dos profetas, à qual bem fazeis em estar atentos, como
a uma luz que alumia em lugar escuro, até que o dia clareie
em vossos corações”. Por que devo prestar atenção nesta
Escritura e profecia? Por que devo meditar nela? Por que devo
basear a minha vida nela? A resposta é que esta profecia foi
cumprida na Encarnação, e, além disso, profecia não é mero
registro da meditação, da cogitação, do pensam ento, do
entendimento e do discernimento do homem; não se originou
em nenhum a determinação por parte do homem, não é a
exposição de idéias humanas - “a profecia nunca foi produzida

126
A Autoridade das Escrituras

por vontade de homem algum, mas os homens santos de


Deus falaram inspirados pelo E spírito Santo”. N outras
palavras, estes dois versículos vão juntos, e a declaração do
versículo 21 é muito forte e vigorosa. Vejamo-lo na tradução
da Versão Autorizada [inglesa]: “A profecia, nos tempos antigos,
não veio pela vontade de homem algum”. Ora, isso não é tão
forte como deveria ser; deveria dizer: “A profecia nunca
veio” - em tempo algum - “nenhuma profecia jamais veio (ou
foi produzida) pela vontade de algum homem, mas homens
santos de Deus falaram quando foram movidos pelo Espírito
Santo”.
Há mais uma palavra da qual devemos tratar para com­
pletar a nossa exposição. Homens santos de Deus falaram
quando foram “movidos” pelo Espírito Santo. Bem, talvez um
modo melhor de dizê-lo seja: “Homens falaram da parte de
Deus quando foram movidos pelo Espírito Santo”, e vocês
sabem muito bem que a palavra “movidos” talvez possa ser
mais bem traduzida por “levados”, ou, a tradução que para
mim é mais recomendável que todas as outras é com a palavra
“dirigidos”, “conduzidos”. Com relação à palavra “movidos”,
todos os expositores gostam de fazer-nos reportar ao capítulo
vinte e sete do livro de Atos dos Apóstolos. Vocês se lembram
da narrativa ali feita do naufrágio de Paulo e seus companhei­
ros de viagem quando iam para Roma. Lembram-se, por certo,
do modo impressivo como a narrativa é feita, descrevendo
como se levantou aquele vento fortíssimo, euroaquilão, e como
aquele pequeno navio foi lançado para lá e para cá; deixando
sobremodo perplexos os marinheiros e o capitão do navio. O
que fizeram primeiro foi aliviar a nau descartando-se de todo
o equipamento desnecessário, depois lançaram a carga ao
mar. Fizeram tudo o que naquele tempo os homens podiam
fazer para salvar o navio, e a narrativa nos informa impres-
sivamente que, tendo feito tudo, “nos deixamos levar” (ARA).
Diz-nos o texto que o barco foi levado, arrastado - a mesma
palavra empregada aqui - “homens santos falaram da parte

127
2 PEDRO

de Deus arrastados pelo Espírito Santo”.


Aqui está, pois, a declaração que o apóstolo faz. As
Escrituras, diz-nos ele, a profecia em particular, jamais devem
ser consideradas apenas como uma coleção de pensamentos e
idéias de homens. Evidentemente, esta verdade é absoluta­
m ente vital e fundam ental. A profecia e a predição das
Escrituras não são fruto do discernimento e do entendimento
humanos. Não há como exagerar nisso, principalmente du­
rante os anos atuais. Não preciso cansar vocês lembrando-lhes
que uma parte vital da chamada Alta Crítica da Bíblia
consiste em sustentar uma particular idéia sobre profecia.
“Nossos pais”, dizem os críticos, “estavam todos errados;
consideravam que a profecia significava previsão e predição;
o que realmente significa é percepção, discernimento.” O que
esses críticos realmente acreditam é que o que temos no
Velho Testamento nada é senão escritos de hom ens que
tinham um profundo discernimento da vida, homens sábios,
homens entendidos, homens que ponderavam sobre os tempos
nos quais eles viviam, homens que pensavam, escreviam,
argumentavam, raciocinavam e, como resultado desse grande
processo, expressavam o seu discernimento. Eis aqui estes
escritos, diziam eles; temos discernimento, não previsão. Pois
bem , 0 apóstolo Pedro se em penha laboriosam ente em
demonstrar que o que temos nestes registros não é apenas
discernimento de homens. Ele vai de fato além; ele declara
que os profetas nunca tiveram a intenção de escrever, nunca se
dispuseram a escrever, “a profecia nunca foi produzida por
vontade de homem algum”. Não é o homem decidindo escrever
o que ele pensa, é mais que isso. Não é como alguém escrever
um artigo no jornal.
Que é então? A grande afirmação feita é que estes homens
foram tomados pelo Espírito Santo. O Espírito Santo veio
sobre eles, apoderou-Se deles, deu-lhes uma mensagem,
conduziu-os, dirigiu-os enquanto escreviam e registravam o
que lhes era dado. E, naturalmente, essa é exata e precisamente

128
A Autoridade das Escrituras

a alegação feita pelos próprios profetas - estas eram as


expressões empregadas - “veio sobre eles a Palavra do Senhor”
- “Assim diz o Senhor”. Eles não dizem: “Foi isto que pensei”,
mas: “Assim diz o Senhor”. Outra frase é: o “peso do Senhor”,
referindo-se à mensagem colocada pelo Senhor sobre eles,
aquilo que veio a eles da parte do Senhor, o constrangimento
causado pelo Senhor obrigando-os a escrever - são essas as
expressões. E o que consubstancia esta verdade ainda mais
é aquilo que já lhes fiz lembrar, a saber, a declaração feita pelo
apóstolo Pedro em sua Primeira Epístola, no sentido de que
havia ocasiões em que os próprios profetas não entendiam o
que estavam escrevendo. Longe de ser seu pensamento e sua
ideia, eis o que ele diz: “Da qual salvação inquiriram e trataram
diligentemente os profetas que profetizaram da graça que
vos foi dada, indagando que tempo ou que ocasião de tempo o
Espírito de Cristo, que estava neles, indicava, anteriormente
testificando os sofrimentos que a Cristo haviam de vir, e a
glória que se lhes havia de seguir. Aos quais foi revelado que,
não para si mesmos, mas para nós, eles ministravam estas
coisas...”. Aí está, pois, mais uma prova de que sua mensa­
gem era uma mensagem dada a eles. Mas podemos ir mais
longe ainda. A Bíblia nos diz definida e especificamente, não
só que estes homens foram chamados por Deus por meio do
Espírito Santo, mas também que às vezes eles eram chamados
contra a sua vontade e contra o seu desejo. Por certo vocês se
lem bram de que Jeremias, pobre Jeremias, m uitas vezes
levanta as suas objeções. Vocês já leram os capítulos 15 e 20 do
seu livro? Leiam-nos de novo e notem quantas vezes ele diz:
não quero transmitir essa mensagem, sei que ela vai levar a
problema e que eu vou ficar impopular - provavelmente vou
ser lançado na prisão. Mas Deus fala e lhe diz: “Você tem que
transmiti-la, você é obrigado a dizer esta palavra”. Deus o
chamou contra a sua vontade; ele não queria falar. Quantas
vezes isso é verdade acerca dos profetas - este chamado de
Deus, não a vontade deles! A palavra era lançada sobre eles;

129
2 PEDRO

eles eram literalmente arrastados por Deus o Espírito Santo,


eomo aquele navio foi arrastado no Adriático.
N outras palavras, fomos iniciados por Pedro, dessa
m aneira b astan te explícita, na grande doutrina neo e
veterotestamentária da revelação. A afirmação aqui feita é que
a Deus aprouve, em Sua infinita compaixão e condescendência,
falar aos homens. E feita a reivindicação, em prol deste Livro,
de que ele é absolutamente único, que não hã no mundo
nenhum outro livro como este. Todos os outros livros são
produção do homem; são o resultado da vontade do homem,
do entendimento do homem, do discernimento do homem.
Mas hã um livro, o Livro, que alega que é o registro do falar
de Deus. E ele alega isso com relação à mensagem - revelação
- e também com relação à maneira pela qual a mensagem foi
registrada - inspiração.
Esse é o segundo grande fato no qual estamos firmados e
com base no qual decidimos que toda a nossa vida seja vivida
em termos deste Livro. Não é pensamento e entendimento
humano, com os homens tentando predizer e profetizar o que
vai acontecer. Aqui vemos que ao Deus eterno aprouve tornar
conhecidas aos homens certas coisas que são de vital impor­
tância. O ensino do Livro é, noutras palavras, que, por causa
do pecado, a humanidade não pode chegar ao conhecimento
de Deus, mas que, apesar disso, foi do agrado de Deus conce­
der esse conhecimento ao homem. Agora não é o momento
para estudarmos em detalhe a doutrina da inspiração, mas
podemos dizer algo assim - a Bíblia nos ensina que Deus, que
é inconcebível para o homem, agradou-Se em revelar-Se ao
homem em dois im portantes aspectos. Primeiro, hã uma
revelação geral na natureza e na criação, e, se lhes parece bem,
no processo da história. Todavia, em acréscimo a isso, existem
formas especiais de revelação. Na antiga dispensação às vezes
Deus Se revelava nas chamadas teofanias - aparecimentos entre
os homens. Vocês lêem sobre o “Anjo do Senhor”, o “Anjo de
Deus” - são teofanias, aparecimentos do Senhor em forma

130
A Autoridade das Escrituras

humana - não encarnação, mas aparecimento. Depois, às vezes


Deus Se revelava dirigindo-Se ao povo com palavras e atos,
noutras vezes com milagres. Mas, acima de tudo, dou ênfase
ao fato de que Deus Se revelou falando a certos servos
escolhidos, revelando a eles a Sua mensagem e habilitando-os
a registrá-la - essa é a reivindicação em prol da inspiração da
Bíblia. Vemos que Deus guiou homens como Moisés. Moisés
registrou fatos. Certamente vocês se lembram de que a Epístola
aos Hebreus nos diz: “Pela fé entendemos que os mundos pela
palavra de Deus foram criados” (Hebreus 11:3). Bem, esse foi
um fato que foi revelado pelo Espírito de Deus a Moisés. Não
foi imaginação ou ideia ou descoberta de Moisés; foi revelado
a ele, e ele o registrou junto com todos os outros fatos em seus
livros. A mesma coisa é certa sobre a profecia e a predição.
Eventos por vir são comunicados aos profetas pelo Espírito
Santo de Deus.
A d o u trin a vai além desse ponto. Ela não nos diz
meramente que a verdade foi inspirada; vai mais adiante e
anuncia que o próprio ato de registrar foi inspirado. O homem
não foi só tomado, mas também foi conduzido e foi mantido
sob essa direção. Nós cremos que as palavras das Escrituras
foram inspiradas pelo Espírito Santo. Acaso quer dizer, per­
gunta alguém, que estes homens foram apenas amanuenses?
Significa que eles estavam simplesmente pondo no papel o
que Deus lhes ditava? Não, nós não cremos numa doutrina
mecânica da inspiração, porque eu não posso ler as Escrituras
sem notar a variação de estilo. Quando vocês leem uma certa
passagem, sabem que ela foi escrita por Paulo; quando a
lêem, vocês reconhecem Paulo. Da mesma maneira, quando
vocês chegam a passagens escritas por Pedro, vocês dizem:
“Obviamente, isso é Pedro”. Qualquer pessoa pode reconhe­
cer 0 estilo de João. Não foi apagada a personalidade. O que a
doutrina pretende dizer é que estes homens eram controlados
pelo Espírito Santo de tal maneira que eram salvaguardados
do erro; eram guiados, não somente ao conhecimento da

131
2 PEDRO

verdade, mas também em sua maneira de expressar a verdade.


Era dado livre curso à personalidade deles, mas sob o con­
trole do Espírito Santo, e isso garantia este resultado final.
Pois bem, claro está que isso é uma das coisas mais admiráveis
e miraculosas. Nós afirmamos que essa produção é a Palavra
de Deus. Neste Livro temos o único relato de Deus que o
homem possui. Que podemos nós saber verdadeiramente
acerca de Deus, senão o que nos é dito neste Livro? Vocês
podem raciocinar, se quiserem, por meio da natureza, e
chegarão a um Criador. Nunca vão chegar a um Pai e a um
Deus amoroso; jamais conhecerão Deus como o Pai de nosso
Senhor Jesus Cristo. Somente quando Deus revela Seu ser.
Seu caráter e Sua santidade neste Livro é que realmente fica­
mos sabendo algo sobre Ele.
Contudo, não somente isso; aqui Deus revela Seus pensa­
mentos concernentes ao homem, à vida e ao mundo. Aqui
nos é dito como o homem veio à existência, como todos os
problemas do homem são uma consequência do pecado, o que
Deus fez acerca do pecado, e o que Deus vai fazer acerca do
pecado. Temos aqui um mapa da história. Temos aqui uma
filosofia dos séculos. Aqui nos é dito o que vai acontecer nos
dias futuros - e esse, lembrem-se, é o objetivo imediato de
Pedro aqui. Ele esteve falando a estas pessoas sobre a volta
de Cristo, a Segunda Vinda. Como posso saber que isso vai
acontecer? Bem, minha resposta final e única é a seguinte:
vejo isso exposto na Bíblia, e eu creio que este Livro não é
imaginação de algum homem, mas é Deus o Espírito Santo
falando por meio do homem. Quando o leio sou confrontado
pelo fato de Cristo. Sou confrontado por estes registros
inspirados, autênticos, e eu creio no que creio sobre Cristo
porque vejo o fato exposto aqui; e, portanto, creio quando o
Livro me diz que Ele voltará. Ou eu aceito este Livro e as
realidades que ele apresenta, ou então baseio a minha vida e a
m inha visão do futuro nos pensamentos, idéias, percepções e
entendimentos dos homens. E quando me vejo confrontado

132
A Autoridade das Escrituras

por estas alternativas, digo a mim mesmo que sou levado a


crer nesta Palavra, que não é da vontade do homem, mas que
é produto de hom ens movidos, sustentados, inspirados,
arrastados, conduzidos e guiados pelo Espírito Santo. Aqui
está uma Palavra que na verdade e de fato é a Palavra de
Deus. Não é interpretação particular, não é entendimento
humano; é Deus falando. Quem é sábio ouça a Palavra de
Deus.

133
11
Profecia Cumprida -
A M ensagem do N atal
“E temos, muito firme, a palavra dos profetas, à qual
bem fazeis em estar atentos, como a uma luz que alumia
em lugar escuro, até que o dia clareie, e a estrela da alva
apareça em vossos corações.” - 2 Pedro 1:19

Aqui o apóstolo, lembro a vocês outra vez, está apresen­


tando o que podemos muito bem denominar sua apologética.
Ele está reconfortando pessoas que estão inquietas e em
dificuldades. Ele lhes estivera lembrando os princípios cen­
trais e principais da fé cristã, e então, por assim dizer, ele passa
a confrontar este tipo de questão - questão que foi levantada
no primeiro século do cristianismo e que ainda é levantada -
como podemos saber que estas coisas são verdadeiras? Que
fundamento, que base, que suporte de confiança temos para
crer e aceitar estas coisas? Aqui o apóstolo dá uma série de
respostas a essa questão. A prim eira foi: “Não seguimos
fábulas artificialmente compostas” (VA) - o depoimento e
testem unho apostólico. “Vimos e ouvimos”, disse Pedro,
“estivemos com Ele no monte santo.” Há esse depoimento
apostólico, esse testemunho das coisas que eles viram na vida
e nos milagres de Cristo, e especialmente o que aconteceu no
Monte da Transfiguração. Lembrem-se, a seguir, de que con­
sideramos o outro elemento da nossa confiança - o grande fato
da revelação, com especial ênfase à inspiração das Escrituras.
Consideramos os versículos 20 e 21, nos quais Pedro se preo­
cupa em lembrar a estas pessoas a real natureza da profecia

134
Profecia Cumprida - A Mensagem do Natal

e das Escrituras em geral, que é Deus falando, que não se trata


de idéias tecidas na mente e na imaginação dos homens, mas
que é fruto da intervenção de Deus, da ação de Deus, Deus
graciosamente Se revelando e Se manifestando a nós.
Todavia, isso não é tudo; pois agora temos mais esta
declaração para considerar: “Temos também, mais segura, uma
palavra de profecia”, ou “Temos também uma palavra de
profecia feita mais segura”. Que é, exatamente, que o apóstolo
quer dizer com isso? Este é mais um argumento, diz ele,
mais uma fonte de consolação. Consideremos agora, por um
momento, a exata explicação das palavras em foeo. O que é
mais seguro? Qual é a comparação que ele está fazendo? Há
diversas sugestões que imediatamente nos tocam. Estaria o
apóstolo dizendo que a palavra da profecia é mais segura que
as fábulas artificialmente compostas? Não precisamos demo­
rar-nos aqui - fábulas artificialmente compostas não têm base
nenhuma, são pura invenção e imaginação, não são factuais,
não têm existência real. Assim é que, se o apóstolo estivesse
dizendo meramente que a profeeia é mais segura que as fábu­
las artificialmente compostas, não estaria estabelecendo coisa
alguma. Mostrar que uma coisa é melhor do que algo não
existente não é prestar-lhe nenhum cumprimento; na verdade,
não é fazer-lhe nenhum elogio.
Pois bem, estaria então o apóstolo dizendo aqui que a
palavra da profecia e mais segura que o depoimento e teste­
munho dos apóstolos? A primeira vista isso se nos oferece
como uma sugestão. Ele tinha feito uma narrativa do que eles
viram no Monte da Transfiguração, e de como tinham ouvido
a voz, e então diz: “Também temos uma palavra mais segura
de profecia”, como que sugerindo que esta palavra profética
é mais firme e mais segura do que aquilo que eles tinham
visto e ouvido. E, contudo, parece-me, e penso que muitos
expositores concordariam comigo, que essa explicação destas
palavras também não é certa, porque há um sentido em que
nada pode ser maior ou mais completo do que aquilo que

135
2 PEDRO

eles viram no Monte da Transfiguração. Lá eles viram o Filho


de Deus transfigurado. Ouviram de fato a voz vinda do céu,
o que, necessariamente, é algo que não se pode comparar
nem com a m esma voz falando por m eio dos profetas
inspirados. Mas o que me parece excluir inteiramente essa
explicação como uma das explicações possíveis é que Pedro
diz: “Nós também vimos”; noutras palavras, ele não está
apenas se referindo ao povo, ele se inclui e inclui os outros
apóstolos, e diz que “nós”, “os apóstolos”, que realmente
ouvimos aquela voz falando do céu e que O vimos trans­
figurado, temos uma palavra de profecia feita mais segura.
Há somente uma explicação adequada das palavras que
estamos considerando, e é necessariamente esta: ele não está
comparando a palavra da profecia com o que vinha descre­
vendo; o que ele está fazendo realmente é comparar a palavra
da profecia dada nos tempos antigos ao povo que vivia
naquela época, com a mesma palavra da profecia à luz do
que acontecera. E a palavra da profecia propriamente dita
que foi feita mais segura. Não é que ela é mais segura do que
alguma outra coisa, mas que foi feita mais segura por causa
do seu cumprimento e por causa da sua consubstanciação. E
dessa forma, diz o apóstolo, estes são os fundamentos sobre os
quais repousamos e baseamos o nosso tudo. Nós O vimos,
ouvimos Sua voz, mas, em acréscimo a isso, temos esta outra
coisa maravilhosa e extraordinária. Os profetas falavam na
antiguidade e diziam certas coisas que haveriam de aconte­
cer. Para eles e para as pessoas a quem essas coisas eram ditas,
isso era algo surpreeendente e maravilhoso. Mas, contemplar
o cumprimento destas coisas e meditar nesse fato é, obviamente,
ainda mais maravilhoso. Ora, esse argumento é empregado
muitas vezes no Novo Testamento. Vocês o verão utilizado
pelo autor da Epístola aos Hebreus no capítulo 11, onde, tendo
dado uma longa lista de santos do passado e heróis da fé, ele
afirma que todos eles andaram pela fé; o cumprimento da
promessa não foi dado a eles como agora nos é dado.

136
Profecia Cumprida - A Mensagem do Natal

Dessa maneira, aqui, o apóstolo está enfatizando que a


Vinda do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, e tudo o que
Ele fez e disse, é cumprimento de profecia. Quero chamar a
atenção de vocês para isso; é dessa forma, penso eu, que
podemos abordar com o maior benefício o dia do Natal e os
dias que o precedem. Sempre que pensamos no nascimento
do Filho de Deus e em sua Vinda à terra, não há maneira
mais proveitosa de fazê-lo do que considerá-lo, como Pedro
faz aqui, à luz da profecia cum prida. Como o apóstolo
argum enta, não há nada mais fortalecedor da fé do que
justamente este fato. Nós realmente consideramos os tes­
temunhos e depoimentos apostólicos, e não temos hesitação
em aceitá-los; porém, em acréscimo a isso, lembremo-nos de
que tudo o que nós associamos com o Natal é, no sentido
neotestamentário, um direto e completo cumprimento das
profecias, e, portanto, supre-nos de uma confiança que não
pode ser abalada nestes dias sombrios e difíceis.
Permitam-me, então, colocar o ensino na forma de umas
proposições.
Primeiro, Cristo e Sua vinda são o cumprimento da profecia
do Velho Testamento. “Temos a palavra da profecia feita mais
segura.” Noutras palavras, temos o direito de dizer que o Velho
Testamento realmente só pode ser entendido em Jesus Cristo.
O Velho Testamento é um Livro que, de certa maneira, não
tem sentido enquanto você não olhar retrospectivamente
com olhos cristãos e à luz do cumprimento e efetivação do
que ali está predito. Naturalmente, esse é o jeito certo de ler
o Velho Testamento; é captar, quando você o lê, que é um
Livro de promessas, um Livro de sombras, um Livro de
tipos. Tudo nele é temporário; nota-se isso em tudo o que
nele foi escrito. Os episódios ali registrados são, indubitavel­
m ente, ações que valem por si, e elas têm sua própria
importância e significação; mas cada uma delas sugere muito
mais do que diz - sente-se que é tudo uma espécie de legisla­
ção temporária, que estamos num período de interregno, que

137
2 PEDRO

estamos olhando adiante e para frente. O Velho Testamento é,


todo ele, um Livro de tipos e de expectação, buscando,
esperando e procurando algo. Ora, a grande declaração que
Pedro faz aqui é que Cristo, em Sua Vinda à terra, é o cum­
primento de tudo quanto ali está exposto. Vocês certamente
se lembram de que Paulo expressa a mesma coisa com sua
linguagem e a seu modo quando diz: “Todas quantas promes­
sas há de Deus, são nele sim, e por ele o Amém” [2 Coríntios
1:20]. Lá estão as promessas, aqui está o sim, a resposta, o amém,
a consubstanciação, o cum prim ento de tudo o que Deus
dissera por meio dos Seus profetas do Velho Testamento. Aqui
está, por excelência, uma das grandes chaves para o en­
tendim ento da Bíblia, uma chave que também nos ajuda
a dem onstrar a admirável unidade e maravilha do Livro.
Cristo é o centro do Livro; tudo no Velho Testamento olhava
para frente para Ele, tudo no Novo Testamento olha para
traz para Ele. Ele é o centro da história. Ele é o ponto focal
do movimento global da humanidade, desde a criação até o
fim dos tempos. E nEle, em Sua Pessoa, que se veem reunidas
e juntas todas as promessas de Deus. Elas, todas e cada uma
delas, têm seu sim e amém nEle, e nEle a palavra da profecia
é feita mais segura - por Sua Vinda, por todas as Suas pala­
vras e por todas as Suas ações.
Mas examinemos por um momento a natureza detalhada
desse cumprimento; pois isso também é algo verdadeiramente
assombroso e m aravilhoso. E, quando abordamos dessa
forma o dia do Natal, não podemos fazer nada melhor do que
recordar a minuciosa natureza deste cumprimento. Quando
fizermos isso, seremos levados a lembrar mais uma vez que
esta Palavra só pode ser, necessariamente, a Palavra de Deus.
Mesmo que fosse apenas uma questão de algumas poucas
declarações com uma espécie de similaridade e correspon­
dência geral com o Novo Testamento, já seria maravilhoso.
Mas aqui não se trata apenas de idéias que parecem ter um
cum prim ento geral; há um cum prim ento pormenorizado

138
Profecia Cumprida - A Mensagem do Natal

que SÓ pode ser explicado em termos do fato de que os homens


que escreveram estas profecias estavam escrevendo sob a
inspiração de Deus. Isso é mais uma prova da tese de que
nenhuma profecia das Escrituras é de particular interpreta­
ção, mas que a profecia de modo nenhum veio na antiguidade
pela vontade do homem, “mas homens santos falaram quando
foram m ovidos, ou im pulsionados, ou conduzidos ou
inspirados, pelo Espírito Santo”.
Façamos agora um rápido e apressado exame deste
minucioso cumprimento. Os detalhes são de grande valor,
quando expostos em termos da tribo e da família das quais
o nosso Senhor procedeu. Aí está essa Criança nascida em
Belém. A que tribo pertence? A resposta é: “A tribo de Judá”.
A que particular família dessa tribo? A resposta é: “A casa
de Davi”. Agora, lembrem-se de que no Velho Testamento
havia sido predito e profetizado que era da tribo de Judá e
da casa de Davi que o Messias, o Libertador, viria. Muitos
séculos, quase um milênio antes do nascimento, e até antes
disso, tinha sido feita a promessa de que ele seria dessa tribo
e dessa casa. E aqui em Belém, onde o Menino nasceu, deu-se
o cumprimento dessa promessa.
Depois, que dizer do tempo da Sua Vinda? Este é um
ponto de grande interesse e importância, mesmo que vocês
abordem o nascimento de Cristo do ponto de vista da filosofia
da histórica. Geralmente se concorda que não houve tempo
na historia da humanidade em que a Vinda do Filho de Deus,
o Messias, fosse menos provável do que o tempo em que Ele
veio. Se coubesse aos homens a escolha da data, nunca seria
nesse tempo, pois realmente nesse tempo parecia que o cetro
se apartava de Judá. Mas foi justamente isso que foi profeti­
zado e predito centenas de anos antes, que nos dias futuros,
quando o cetro parecia estar se apartando da mão de Judá, o
verdadeiro Rei e Governador viria. E se vocês lerem a história
então contemporânea, verão que essa era a situação dos filhos
de Israel quando o nosso Senhor nasceu. Ou vejam a questão

139
2 PEDRO

também em termos da profecia do profeta Daniel. Leiam o


capítulo nove do livro de Daniel, com sua profecia acerca das
setenta semanas, e ali verão igualmente, em seus mínimos
detalhes, uma declaração feita de antemão sobre o tempo
/■

exato da Vinda de Cristo. E realmente estupendo este extraor­


dinário processo, esta ação acurada, esta predição mediante
profecia feita nos mínimos detalhes.
Em seguida, consideremos este assunto com relação à
Sua mãe. Por certo vocês se lembram da profecia que predisse
que uma virgem daria à luz um filho. Sei que, provavelmente,
a referência imediata e mais direta disto é a um acontecimento
da história daquele tempo; mas não se pode confiná-lo nisso.
Há um elemento dúplice, um fato imediato e um cumprimento
remoto - “a virgem dará à luz um filho”.
Consideremos novamente o local do Seu nascimento.
Lembrem-se de que foi dado ao profeta Miquéias acrescentar
esse detalhe. O Messias nasceria em Belém. Por certo vocês se
lembrarão da visita dos magos a Herodes quando, na pleni­
tude do tempo, o nosso Senhor nasceu. Como Herodes não
entendeu o que eles reportaram, ele consultou as autoridades
e essas responderam que Ele nasceria em Belém, segundo
a profecia. Pois bem, quando vocês examinarem o Velho
Testamento, verão descortinada diante de vocês esta verdade
extraordinária - Deus deu a um, um fato, e a outro, outro fato.
Só Miquéias menciona Belém, porém Deus lhe deu esse fato
particular, esse detalhe, e assim o local exato do nascimento
do Messias foi predito.
Pensemos agora nas palavras do nosso Senhor - as palavras
que Ele proferiu pessoalmente. Se vocês lerem o capítulo
sessenta e um do livro de Isaías, verão ali que o profeta profe­
tiza e prediz que o Messias diria certas palavras e faria certas
coisas. Dirijam depois sua atenção àquela ocasião, na sinagoga
de Nazaré, em que o nosso Senhor tinha entrado na sinagoga,
segundo Seu costume. Ali deram a Ele as Escrituras para que
lesse, e Ele leu parte do capítulo sessenta e um de Isaías, e.

140
Profecia Cumprida - A Mensagem do Natal

tendo feito isso, disse: “Hoje se cumpriu esta Escritura em


vossos ouvidos”. As palavras que Ele proferiu, Seu método de
falar, seu modo de ensinar, descendo aos mínimos detalhes -
todos estes atos foram preditos e profetizados.
Pensemos também em Suas obras e em Seus milagres.
Lemos no capítulo trinta e cinco do livro do profeta Isaías
que o Messias abriria os olhos dos cegos e desobstruiría os
ouvidos dos surdos, o coxo saltaria como o cervo e o mudo
cantaria; depois vocês vêm ao Novo Testamento e leem o relato
que m ostra Jesus Cristo realizando precisam ente essas
coisas. Vocês se lembram de que João o Batista, em seu perí­
odo de incerteza na prisão, enviou dois dos seus discípulos
a Jesus para Lhe perguntarem: “Es tu aquele que havia de
vir?”, e a esses dois homens foi dito que voltassem e anunci­
assem “a João as coisas que ouvis e vedes. Os cegos veem, e os
coxos andam... e os surdos ouvem”, etc. Aqui João é remetido
diretamente àquele capítulo trinta e cinco de Isaías.
Não somente isso; lembrem-se do capítulo cinquenta
e três de Isaías, com sua profecia sobre o Servo do Senhor
levando sobre Si as nossas enfermidades e as nossas doenças,
e lembrem-se de que Mateus, ao descrever alguns dos mila­
gres de cura realizados pelo nosso Senhor, refere-se àquela
profecia que dizia que Ele ia “levar sobre si as nossas enfer­
midades”.
Permitam-me lembrar-lhes resumidamente que a Sua
entrada em Jerusalém foi predita pelo profeta Zacarias, quando
ele menciona a jumenta e o jumentinho relacionados com
aquela entrada triunfal, e que Ele seria vendido por trinta
peças de prata. Quase não tenho necessidade de lembrar-lhes
que os Seus sofrimentos são descritos em detalhe, não somente
naquele capítulo cinquenta e três de Isaías, outra vez, mas
também, especialmente, no Salmo vinte e dois - o fato de que
as Suas mãos e os Seus pés seriam perfurados ali é profetizado
e predito - tudo prenunciado nos mínimos detalhes. Esses fatos
foram preditos centenas de anos antes de acontecerem. O fato

141
2 PEDRO

de que Ele seria sepultado num local particular, que o Seu


túmulo seria com os ricos, foi profetizado. E quando chegou a
hora, Ele foi sepultado no túmulo de José de Arimatéia. Tanto
a Sua ressurreição como o dia de Pentecoste foram preditos.
Certamente vocês se lembram de que, depois da Sua ascensão,
Ele enviou o Espírito Santo, conforme Sua promessa, e que
quando o povo começou a perguntar: “Que é isso?”, veio-lhes
a resposta de Pedro: “Isto é o que foi dito pelo profeta Joel”.
Todos esses casos, e há muitos outros, mostram que, nos
mínimos detalhes, por Sua vinda e por tudo o que fez e disse,
Ele tornou a palavra da profecia mais segura; Ele a cumpriu;
Ele a consubstanciou.
Mas permitam que eu diga algo sobre a gloriosa natureza
deste cumprimento. E maravilhoso em detalhe, porém vejam a
sua glória como um todo. Na vida de Cristo, no nascimento
do nosso Senhor, em Sua vida e em todas a Suas atividades na
terra. Deus cumpriu Sua palavra. Deus honrou Sua palavra
dada aos pais na antiguidade. Ao percebermos isso, quando
lemos a Bíblia, os nossos olhos se abrem para a glória singular
das Escrituras. Voces leem estas promessas feitas por Deus há
muito tempo ao Seu povo antigo, e quando percorrem o Velho
Testamento, começam a ver que Deus cumpriu a Sua palavra.
Algumas dessas pessoas clamavam em sua agonia: “Até
quando. Senhor, te esquecerás de ser misericordioso?” Lemos
as palavras da promessa, mas examinem a situação. Porventura
Deus Se esquece, esqueceu-Se Ele de ser misericordioso? -
que houve com as Suas promessas? Quando aquele Bebê nasceu
em Belém, o grande pronunciamento feito foi - Deus cumpriu
a Sua palavra. Deus provou que as Suas promessas são verazes.
Tudo o que Deus prometeu, aqui está sendo cumprido. E
uma grande declaração da im utabilidade do conselho de
Deus, de que a Palavra de Deus é fixa, absoluta e eterna, que
Deus cum priu aqui o juram ento que Ele fizera para que
pudéssemos ter tão grande consolação.
Deixem-me, porém, mostrar-lhes a glória disso tudo desta

142
Profecia Cumprida - A Mensagem do Natal

maneira: Deus, vemos isso, efetuou todas as promessas que


fizera a respeito do homem e da sua salvação. Pois, afinal, é
isso que temos no Velho Testamento. A Bíblia é a história do
homem em sua relação com Deus, de modo que podemos
descrevê-la, se lhes parece bem, como a história da salvação.
E a história da raça humana inteira, do começo ao fim. Pois
bem. Deus criou o homem, e o criou perfeito, e o homem
desfrutou de perfeita comunhão com Deus. Entretanto o
pecado entrou, e essa comunhão foi rompida. O homem trouxe
sobre si a ira de Deus e toda a miséria que se seguiu. Que é
que vai acontecer com o homem? Aqui entra a Bíblia com
sua grande mensagem. Toda a sua ocupação, sua história geral,
consiste em dizer-nos o que Deus Se propôs fazer acerca do
homem caído. Por isso Deus começou, imediatamente após
a Queda, a fazer promessas, e são promessas relacionadas com
o homem e sua salvação. Pois bem, no nascimento de Cristo,
e em tudo o que se lhe segue, todas essas promessas são levadas
a efeito e cumpridas. Permitam-me lembrar-lhes algumas das
principais. Desde o momento em que o homem caiu, pode-se
dizer. Deus ilum inou as trevas oferecendo uma preciosa
promessa. A serpente havia entrado na perfeita criação de
Deus e tinha enganado o homem e o tinha feito cair, e com
isso ofendera a Deus também; mas Deus, em Sua graça infi­
nita, logo fez uma promessa: “A semente da mulher esmagará
a cabeça da serpente”. Aí estão vocês, quatro mil anos antes do
nascimento de Cristo. A promessa feita foi que a semente da
mulher esmagaria a cabeça da serpente. Essa foi a primeira
promessa de Deus - foi a promessa original. E, quando o Bebê
nasceu em Belém, a promessa foi cumprida - a semente da
mulher tinha chegado e foi esmagar a cabeça da serpente.
Outra grande promessa foi aquela da qual somos relem­
brados no capítulo três de Atos, como disse Moisés: “O Senhor
vosso Deus levantará dentre vossos irmãos um profeta
sem elhante a m im ”; isso foi algo que o povo da antiga
dispensação ficou aguardando através dos séculos. Eles o

143
2 PEDRO

descreviam como “a vinda do Profeta”. Foi isso que João o


Batista quis dizer quando perguntou; “Es tu aquele que havia
de vir?” Eles aguardavam o Profeta, o Líder, esperavam alguém
que, num sentido muito mais grandioso do que a libertação
do Egito, os tiraria da escravidão. Praticamente Moisés disse:
eu tirei vocês da escravidão do Egito, e os levei nessa passa­
gem do Egito para Canaã; mas isso é apenas uma figura
do outro Profeta que virá e que será maior que eu; Ele os
tirará da escravidão do pecado e da escravidão e servidão
da iniquidade. E aqui, naquele Bebê de Belém, vocês têm
0 Profeta, o Mestre, o Líder do povo. Aquele que por muito
tempo foi esperado e procurado.
De igual modo, foi prometido que um dia seria feita uma
oferta sacrificial suficiente para cobrir o pecado. Na dispensa-
ção do Velho Testamento há muita coisa escrita sobre ofertas e
sacrifícios,sobre o sangue de touros e bodes, sobre a oferta de
um cordeiro, e assim por diante. E, todavia, tudo isso é de
natureza tem porária. Como diz o autor da Epístola aos
Hebreus, “porque é impossível que o sangue dos touros e dos
bodes tire os pecados”. Tudo temporário. Uma grande oferta é
necessária, um grande e final sacrifício que seja realmente
eficaz, que seja satisfatório para Deus. Assim ali, passando
por todo o Velho Testamento, vocês têm os tipos e as sombras
de uma grande oferenda que deveria ser feita suprem a e
finalmente; e foi somente em Cristo que essa oferenda foi
feita. “Este Homem” ofereceu-Se uma vez por todas e fez o
sacrifício final. Exatam ente da mesma m aneira, o Velho
Testamento prediz que um grande Sumo Sacerdote viria
para representar-nos diante de Deus e para recomendar-nos a
Deus. Por certo vocês se lembram de que a Arão era permitido
entrar no “lugar santíssimo” uma vez por ano, e ele o fazia
com temor e tremor, mas eis aqui, afinal, o Sumo Sacerdote
perfeito, tocado pelo sentim ento das nossas fraquezas, e,
todavia, sem pecado. E, tendo entrado no lugar santíssimo
com uma oferta e um sacrifício - Seu próprio sangue - Ele nos

144
Profecia Cumprida - A Mensagem do Natal

representa para sempre, e continua a realizar um ministério


eterno, e assim Ele “pode também salvar perfeitamente os
que por ele se chegam a Deus”.
Depois houve a promessa de uma Nova Aliança. Deus fez
uma aliança com o homem por meio de Moisés. Era uma
aliança de lei que ninguém podia cumprir. Mas Deus disse,
por intermédio do profeta Jeremias: “farei uma nova aliança
contigo” , não como a velha aliança - não será uma lei externa,
mas a escreverei nos corações e nas mentes de vocês - uma
nova aliança. E onde estaria o profeta que pode intermediar
tal aliança? Nenhum homem é digno disso; nem os anjos são
suficientes. Aqui, porém, no Bebê de Belém, está o Mediador
da Nova Aliança, Aquele que, suprema e definitivamente,
pode dar o Espírito Santo e que põe a lei de Deus em nossas
mentes e em nossos corações, e que nos dá vida. Ele pode
tirar o nosso coração de pedra e dar-nos um coração de carne
com o qual podemos amá-10.
Acima de tudo mais, porém, houve a promessa da vinda
de um reino. Através de todo o Velho Testamento corre esta
idéia de um grande rei que viria reinar, que venceria todos
os inimigos do povo e estabelecería um reino de justiça e
paz. E onde achá-10? Somente num lugar. Ali está Ele, um
Bebê numa manjedoura em Belém - o Rei dos reis, o Senhor
dos senhores. Ali estão os magos que vieram prestar-Lhe sua
homenagem e dar-Lhe suas ofertas, e eles O reconheceram
imediatamente. Ele venceu todos os inimigos, satanás, a morte,
o inferno. Todo mal foi subjugado. Ele é o Rei universal,
todo-poderoso, e Ele reinará de pólo a pólo, e Seu reino não
terá fim. O Filho de Deus, o Rei eterno.
Dessa forma vocês vêem que Deus cumpriu, levou a efeito,
todas as Suas promessas. Permitam que eu lhes diga uma
palavra final. Que deduzo desta palavra de profecia que foi feita
mais segura? Há algumas óbvias e inevitáveis deduções. E
evidente que a salvação está em Cristo, e nEle somente. Ele
cumpriu todas as promessas. E nEle que Deus está salvando

145
2 PEDRO

a humanidade - aqui Ele de fato salva a humanidade - É Cristo


que cumpre as promessas. Não há outro Salvador, não há
outro caminho. “N enhum outro nome há, dado entre os
homens, pelo qual devamos ser salvos”, diz este mesmo
apóstolo Pedro num a pregação que fez depois do dia de
Pentecoste. O Bebê de Belém cumpriu as promessas. Ele é
o único Salvador, o único caminho para Deus, a única espe­
rança de libertação - Ele e somente Ele é o Salvador. Ele é
0 Profeta, Ele é o Sumo Sacerdote, Ele é o Rei.
Que mais? De todas estas coisas podemos deduzir o
seguinte: a Sua Vinda e tudo o que Ele fez e disse é cumpri­
m ento de tudo o que D eus p ro m eteu , de m odo que,
seguramente, o puro fato é, em si, uma garantia de que tudo
mais que foi prometido igualmente será cumprido. Tudo o
que foi profetizado, predito e prometido com relação à Sua
Primeira Vinda foi realizado literalmente. Mas há mais por
vir. Pedro, está falando aqui sobre a Segunda Vinda, e, embora
a Segunda Vinda possa parecer estranha para nós hoje, como
a Sua Primeira Vinda o foi para o povo do Velho Testamento,
desenvolvamos esta lógica inevitável. Embora não O esperas­
sem, Ele veio; embora muitos tenham ridicularizado a ideia,
isso não impediu Sua Vinda; e embora estas coisas possam
parecer impossíveis para nós, o que aconteceu é prova de que
elas acontecerão.
Finalmente, permitam-me tocar uma nota de consolo,
glória e alegria. Por causa do nascimento de Cristo, a encar­
nação e tudo o que se lhe seguiu é algo que torna a palavra da
profecia mais segura; algo que me diz que Deus cumpriu
Sua palavra e que Deus executou Seus planos, promessas e
propósitos na terra, e então eu faço esta dedução: a Palavra de
Deus é algo em que eu sempre posso confiar. Há grandes e
preciosas promessas, “grandíssimas e preciosas promessas” na
Palavra; promessas para você quando adoece; promessas
para você quando está desolado; promessas para a viúva,
promessas para os que não têm pai, promessas para o órfão;

146
Profecia Cumprida - A Mensagem do Natal

promessas para outros, que estão passando por águas pro­


fundas; promessas para aqueles que estão em angústia de
alma e não sabem o que fazer nem o que buscar; todas as
condições imagináveis em que eu e você possamos alguma
vez estar, são cobertas por promessas. Meus diletos amigos,
creiam nas promessas, introduzam-nas em seu coração, provem
que Deus sempre honra as Suas promessas. Ele nunca deixa
de cum prir Sua palavra; toda promessa que Ele lhe faz é
uma promessa na qual você pode crer e baseado na qual
você pode agir. Por isso, quando eu reler a Sua Palavra e
vir promessas tais como “Nunca te deixarei, nem te desam­
pararei”, “Eis que estou convosco sempre”, acreditarei nelas,
aceitá-las-ei. Repito que a Vinda de Cristo consubstancia
tudo e prova tudo. Ele deu Sua palavra, e podemos confiar
em Sua palavra; e portanto eu levo a sério Sua palavra. Ben­
dito seja Deus! “Graças a Deus, pois, pelo seu dom inefável.”
Graças sejam dadas a Deus por Aquele em quem todas as
promessas de Deus são o sim e o amém, sem nenhum a
dúvida nem vacilação.

147
12
A L u z nas Trevas
“E temos, muito firme, a palavra dos profetas, à qual
bem fazeis em estar atentos, como a uma luz que alumia
em lugar escuro até que o dia esclareça, e a estrela da
alva apareça em vossos corações.” - 2 Pedro 1:19

Quero tratar especialmente da exortação presente neste


versículo - “à qual bem fazeis em estar atentos, como a uma
luz que alumia em lugar escuro, até que o dia esclareça, e a
estrela da alva apareça em vossos corações”.
Com estas palavras o apóstolo oferece aos cristãos aos quais
estava escrevendo o que é, num sentido, sua última parcela
de aconselhamento. Seu desejo era ajudá-los, reconfortá-los e
alegrá-los, e ele os estivera lembrando das grandes centrali-
dades da fé que professavam. Aqui ele chega a esta “palavra
de profecia” que, na realidade, significa a totalidade das
Escrituras do Velho Testamento. As profecias acham-se, como
já vimos, em todo o Velho Testamento, e a sua exortação a
estes cristãos é que eles deem grande atenção a elas - “bem
fazeis em estar atentos”. Estar atento significa, naturalmente,
prestar diligente, calorosa e confiante atenção. Apeguem-se
às profecias, diz com efeito o apóstolo, estudem-nas diligen­
temente, tomem tempo com elas, deixem-se governar por
elas, meditem sempre nelas.
O que ele faz não é tão-somente dar este conselho final a
estas pessoas, é, ao mesmo tempo, uma notável reivindicação
em prol da Bíblia, da Palavra de Deus; porque o apóstolo,
observem, dá várias razões pelas quais elas deviam prestar

148
A Luz nas Trevas

atenção nesta Palavra. Já consideramos algumas delas - que


se me perm ita simplesmente lembrá-las a vocês. Ele lhes
declara que se trata da Palavra de Deus, não é palavra de
homem. Nenhum a profecia das Escrituras é de particular
interpretação. Não se origina ou surge na mente do homem,
pois a profecia na antiguidade não veio pela vontade do
homem, mas homens santos falaram quando foram movidos,
sustentados, conduzidos e impelidos pelo Espírito Santo.
Assim, essa é uma boa razão para ouvi-la atentamente, para
prestar diligente e reverente atenção no estudo desta Palavra.
E a Palavra de Deus, não são meras teorias e idéias do homem.
Vimos depois, particularm ente em nosso estudo anterior,
que outra boa razão para dar atenção a esta Palavra é que,
em muitos aspectos, ela já foi cumprida. Temos “a palavra da
profecia feita mais segura”. Se vocês não podem crer nela e
aceitá-la como a Palavra de Deus por causa do seu caráter
inerente, observem tudo o que aconteceu na encarnação;
vejam ali a comprovação daquelas minuciosas profecias de
outrora. M uito bem, ele argumenta, a lógica inevitável é
que, devido tanta coisa do que foi profetizado e predito ser
cumprida, o que resta ser cumprido certamente será realizado.
Assim é que prestamos atenção na palavra da profecia por
causa do que já foi cumprido e verificado. Mas também, diz
ele, vocês devem ouvi-la e dar-lhe atenção pelo que ela diz.
E agora chegamos aqui a mais esta razão que o apóstolo
nos dá para darmos ouvidos e prestar atenção. “A qual bem
fazeis em estar atentos” - por quê? - porque ela é “como uma
luz [ou lâmpada] que alumia em lugar escuro, até que o dia
esclareça, e a estrela da alva apareça em vossos corações.” Ora,
essa é uma alegação realmente notável - uma alegação que,
noutras palavras, pode ser expressa desta maneira: a única luz
que qualquer homem tem neste mundo a luz das Escrituras.
Não há outra luz e, para o homem neste mundo, as Escrituras
são exatamente como uma lâmpada brilhando numa caverna
escura, num lugar sombrio, sujo e escuro. Por isso ele concita

149
2 PEDRO

e exorta os seus leitores a que deem grande atenção a esta


Palavra, que lhe deem ouvidos e a considerem diligentemente,
porque ela é, verdadeiramente, a única e exclusiva esperança,
e a única e exclusiva luz capaz de iluminar as trevas. Natural­
mente, o apóstolo está se referindo às Escrituras do Velho
Testamento, mas o que ele diz do Velho Testamento é igual­
mente verdadeiro com referência ao Novo Testamento e suas
profecias e previsões. Os escritores do Velho Testamento se
arrogam uma inspiração única, e o que reivindicamos em
prol do Velho Testamento, reivindicamos [também] em prol
do Novo Testamento; de modo que toda a Bíblia, como nós a
temos, é realmente coberta pela exortação feita pelo apóstolo
com estas suas palavras.
Agora, quando vamos exam inar esta extraordinária
afirmação, há duas ou três considerações preliminares que
me parecem de grande importância, e eu não posso tratar
explicitam ente desta declaração sem notar certas coisas.
Prim eiram ente, noto o realismo da Bíblia. No que me diz
respeito, se eu não tivesse nenhuma outra razão para crer
que esta é a Palavra de Deus, para mim o seu realismo seria
em si mais que suficiente. Toda vez que leio a Bíblia sinto
que ela é verdadeira porque não hesita em expor os fatos. Ela
os expõe francamente, ela os expõe abertamente. Sempre me
impaciento com as tentativas de pintar a vida de maneira
romântica e rósea; sabemos simplesmente que não é verdade.
E grandioso ter um Livro no qual você pode confiar. E
grandioso ler um Livro que não se limita a registrar felici­
tações e a fazer você se sentir uma pessoa maravilhosa. A
Bíblia é realista; ela nos diz a verdade sobre nós; ela tem
consonância com a exigência que Oliver Cromwell fez ao
homem que ia pintar seu retrato. Certamente vocês se lembram
de que ele queria que o artista o retratasse completamente,
“verrugas e tudo”, sem qualquer omissão. A Bíblia é exata­
mente assim; ela nos dá um retrato do homem, da vida e do
mundo como eles são. O estupendo realismo deste Livro!

150
A Luz nas Trevas

Ele expõe as fraquezas de seus grandes heróis, mostra as


manchas que maculam as personalidades mais eminentes.
Ele não procura apresentar-nos um alegre e róseo retrato da
vida com o fim de nos agradar; ele é realista e retrata a vida
como ela realmente é.
E o segundo ponto, que necessariam ente decorre do
primeiro, é a profundidade do conceito bíblico da vida. A Bíblia
não se restringe a examinar a vida superficialmente; não lhe
examina apenas certos aspectos e aparências. Com sua psico­
logia profunda, a Bíblia sempre trata da vida abaixo da
superfície. A Bíblia nunca se deixa iludir pelas aparências. “O
homem vê o que está diante dos olhos”, diz ela. E quanta
verdade há nisso, e é por isso que o homem é constantemente
enganado pelas aparências. Perm itam -m e ilustrar o que
estou querendo dizer. Imaginem a diferênça entre pregar
sobre um texto como este atualmente e, digamos, há quarenta
anos. Num sentido, em 1906 os homens ridicularizariam
uma declaração como esta, com sua descrição de “uma luz
em lugar escuro”. Como os homens eram confiantes nesse
tempo; a vida lhes parecia tão vitoriosa, parecia que estáva­
mos resolvendo todas as dificuldades e que nos movíamos
de um período primitivo e subdesenvolvido para o período
eduardiano,^ para o século vinte, que ia levar-nos a um paraíso
na terra. Esse era o conceito que prevalecia na época, e,
naturalmente, um texto que declara que o mundo é um lugar
escuro, que está em condições repulsivas, um mundo tene­
broso, parecia aos sabichões completamente ridículo. Eles
então falavam do pessimismo da Bíblia e do pessimismo
da doutrina do pecado. Mas não parece tão ridículo assim,
diante das características atuais. Os homens sempre tiveram

' Eduardo VII (1841 -1910), filho da rainha Vitória. Homem viajado e muito
bom nas relações públicas, locais e internacionais, foi chamado “Eduardo,
0 Pacificador”. Nota do tradutor.

151
2 PEDRO

a tendência de examinar a vida superficialmente, e porque


são muitos os que têm feito isso, o mundo é otimista e confiante,
e vive completamente iludido. Pois bem, a Bíblia estava
igualmente certa em 1906 ao dizer que o mundo é um lugar
escuro e sombrio, e que se encontra em miseráveis condições;
a Bíblia não se deixa enganar por mudanças superficiais e
por aparências. Ela conhece o coração do homem. A Bíblia
sempre disse que “enganoso é o coração, mais do que todas as
coisas, e perverso: quem o conhecerá?” Ela continua dizendo
isso, apesar do otimismo dos vitorianos. “Os ímpios não têm
paz, diz o Senhor”, e “os homens maus... irão de mal para
pior”. A Bíblia faz isso porque é profunda; ela não se deixa
iludir por mudanças ocorridas na superfície. Ela vê as coisas
como realmente são, e desce às profundezas.
Talvez outra maneira de expor tudo isso seria dizer que
a Bíblia sempre declara a verdade, e nada impressiona tão
verdadeiramente quem lê a Bíblia num tempo como este
como a óbvia veracidade do conceito bíblico da vida, do
mundo e do homem. Quanto a mim, torno a dizê-lo, cada vez
mais acho difícil entender como pode ser que todo o mundo
não seja levado a crer na Bíblia nos dias atuais. Não seria a
cegueira do homem uma verdade espantosa? Eis aqui o velho
Livro que sempre vem dizendo certas coisas através dos sécu­
los. Ele tem sido objeto de zombaria e de escárnio; suas
descrições da vida têm sofrido blasfêmias dos otimistas e
confiantes. E, todavia, vemos hoje que o que este velho Livro
sempre disse nada menos é que a pura e séria verdade. Como
pode 0 homem deixar de crer isso? Existiría algum outro livro
que explique a vida como esta é neste momento, salvo este
Livro? Suas profecias estão sendo cumpridos ao redor de nós;
seu diagnóstico está sendo comprovado diante dos nossos
olhos. A veracidade da Bíblia! Como devemos agradecer a
Deus, toda vez que fazemos uma pausa para rever as nossas
vidas neste mundo, no que, para empregar de novo a lingua­
gem deste apóstolo, “não seguimos fábulas artificialmente

152
A Luz nas Trevas

compostas” no transcurso do ano. Quão gratos devemos ser


a Deus por agradar-Se em dar-nos uma revelação do Seu
conceito da vida, do homem e do mundo, e entendimento, e
discernimento, um diagnóstico! Como devemos agradecer a
Deus que, sempre que voltamos a ela, voltamos a considerar
algo que sempre se comprovou verdadeiro! Temos aí todas
essas razões para ouvi-la atentamente, para dedicar-lhe tempo
e para dar-lhe grande atenção. Aqui certamente estão razões
pelas quais decidir que doravante vamos tomar mais tempo
com este Livro. Se desejamos entender os tempos nos quais
vivemos, temos que voltar a este Livro. Devemos estudar
todo o seu conceito da vida e da história, do destino do
indivíduo e da raça toda. Devemos ouvi-la atentam ente
e estudá-la, e captar os seus princípios fundamentais.
Qual é, então, o seu ensino? Podemos resumi-lo sob títulos
óbvios, sugeridos pelo próprio apóstolo. Que é que a Bíblia
nos diz sobre a vida como a vemos hoje? Sobre como as
coisas estão neste momento, e não somente individual, mas
tam bém nacional e internacionalm ente? Que dizer da
perspectiva, que dizer dos tempos?
A primeira coisa que a Bíblia faz é levar-nos a compreen­
der quão sombrio o mundo é - “como a uma luz que alumia em
lugar escuro”. “Escuro”, aqui, significa, repulsivo ou sujo,
sombrio. Ora, é assim que a Bíblia define e descreve este
mundo; é um lugar tenebroso, sombrio e sujo. Essa é uma
verdade absolutamente vital e essencial para o entendimento
da doutrina cristã. Não tenho dúvida nenhuma de que há
alguns que, não obstante, quando ouvem uma coisa como
essa, dizem algo assim a si mesmos - “Que doutrina terrivel­
mente deprimente! Venho a um local de culto para receber
ânimo e conforto, e aqui estou eu ouvindo dizer que o mundo
é um lugar sombrio e sujo. Como isso é deprimente!” Mas ela
é de fato uma declaração muito interessante, e sumamente
importante, porquanto, ter um correto entendimento da vida
neste mundo é um dos primeiros passos na doutrina cristã.

153
2 PEDRO

Em última análise, a pessoa se proclama cristã ou não por


seu conceito sobre este mundo. E não há como questionar a
Bíblia. Basta ler a Bíblia em quase todo lugar para ver que o
seu conceito do mundo é precisamente o que é dito neste
versículo. Portanto, toda tentativa feita para dim inuir a
realidade do pecado do mundo e da humanidade só pode ser
não cristã; toda tentativa de negar a doutrina bíblica do homem,
do pecado e da Queda, e de todas as consequências da Queda,
é, de novo, negar o próprio evangelho. Somente aqueles que
aceitam o diagnóstico bíblico sobre o mundo é que têm a
probabilidade de aceitar o remédio da Bíblia para o homem.
E o que a Bíblia continua dizendo sobre o mundo é que ele
está cheio de infelicidade, que é um lugar de trevas. Certa­
mente nunca houve época em que fosse mais fácil aceitar o
diagnóstico bíblico do que a atual. Observemos as pessoas,
sejamos realistas. Examinemos a vida, examinemos o mundo,
procuremos ter uma visão da situação política e internacio­
nal. Haveria alguém que possa descrever tal situação como
brilhante e cheia de luz, de esperança e de otimismo? Basta
retroceder alguns anos e examinar a série de conferências
feitas, as tentativas de produzir ordem do caos resultante da
guerra, nacional e internacionalmente. Não há nada senão
sombrias trevas - aí está, é óbvio. Pegue o seu jornal, examine
qualquer artigo em qualquer jornal; todos adm item e
confessam isso - aí está. Observem as condições sociais,
observem o aumento da ilegalidade e o aumento da manifes­
tação de puro egoísmo. Vejam isso no crescente predomínio
das greves, legais e ilegais. O espírito de ilegalidade é
socialmente generalizado. Examinem a constante tendência
de as pessoas dizerem que o que elas se inclinam a fazer é
que é certo - tomar a lei em suas mãos, trabalhar lentamente,
não fazer o seu trabalho, só fazer o mínimo.
Depois examinem a situação moralmente. Seria uma
situação na qual podemos ser felizes e que podemos descre­
ver como brilhante, esperançosa e otimista? Observem o

154
A Luz nas Trevas

esmagador aumento do número de divórcios; observem a


imoralidade e os vícios, o aumento do uso de bebidas, dos
jogos de azar e das drogas. Observem o dinheiro gasto nestas
coisas. Observem as m ultidões que correm em busca de
prazeres. Ouçam-nas gritarem em seu excitamento; vejam as
coisas que atraem os homens e as mulheres hoje em dia, no
meio de uma situação mundial pouco menos que apavorante.
Observem a leviandade e a frivolidade, a incapacidade até de
ficarem profundam ente preocupados, o desejo de mais e
mais prazer, só para escaparem de tudo e gozarem na hora e
no momento. E depois, por trás e por cima disso tudo, as
terríveis possibilidades associadas à energia atômica. Todos
nós temos perfeito conhecimento destas coisas. Esse é o nosso
mundo, como o vemos neste momento. Haveria algum ser
pensante, pergunto, que ainda seria tolo o bastante para con­
testar a descrição do mundo apresentada nesta passagem?
A

E um lugar escuro, um lugar sombrio e sujo. Parece que


estamos percorrendo, como que numa corrida, uma caverna
escura, sem nenhum a luz que nos perm itiría enxergar.
Sentimos a estagnação, o frio, o gotejar da água. Lá estamos
nós, movendo-nos num percurso aparentemente interminá­
vel através da caverna, na esperança de sair no outro extremo,
mas não vendo nada senão escuridão, sujeira, trevas, miséria,
infelicidade. “Em lugar escuro”, diz o apóstolo. Pois bem, essa
é a visão bíblica da vida neste mundo, do começo ao fim. Diz
a Bíblia que este mundo está como está em consequência
do pecado; e recusar reconhecer este fato ou tentar enfraquecê-
-lo de algum modo, é negar um dos princípios fundamentais
do evangelho cristão. A

No entanto, passemos à segunda asserção do apóstolo. E


que não se pode obter luz alguma em parte nenhuma, exceto nas
Escrituras. E aqui está, mais uma vez, uma proposição abso­
lutamente vital e essencial. Não há luz nenhuma neste lugar
escuro, sombrio e sujo, fora do evangelho. Eu os exorto, diz
aqui o apóstolo, a darem ouvidos à palavra da profecia.

155
2 PEDRO

porque esta é como uma lâmpada, uma luz nessa caverna escura
- é a única luz. E aqui novamente sou constrangido a assinalar
que esta segunda proposição, exatamente como a primeira, tem
sido constantemente contestada durante os últimos cem anos
[de 1946 para trás]. Os homens em geral têm feito objeção a
esta visão sombria do mundo. Eles têm ridicularizado o
conceito de pecado. Ah, diziam eles, assim era o puritanismo
- os pais criam nesse tipo de coisa; mas o homem não é desse
jeito! E esses críticos não gostavam da pregação do pecado e
do chamado ao arrependimento. E exatamente da mesma
m aneira os homens objetaram a esta segunda declaração,
segundo a qual não há nenhuma luz à parte da luz do evangelho
e das Escrituras. Quanto a mim, acho muito difícil decidir
qual dos dois homens seguintes prestaram maior desserviço,
nos cem anos passados, mais ou menos, ao evangelho e à
mensagem da Igreja - o homem que negava a doutrina do
pecado, ou o homem que perdeu a cabeça acreditando que os
melhoramentos sociais e as resoluções políticas poderiam
resolver os problemas da raça humana. Quando olho para o
passado, dou graças a Deus por eu não ter, de modo algum,
que assumir a responsabilidade que pesa sobre muitos líderes
da Igreja Cristã que pareciam dar a impressão de que as
coisas que iam solucionar os problemas do mundo eram as
Leis do Parlamento e o avanço da ciência. Sempre achei
que aqueles que se imiscuíram no evangelho social, e os
chamados pregadores políticos, vão ter que assumir enorme
responsabilidade. Quantos de nossos pais se voltaram da
sua pregação do evangelho e do poder do Espírito Santo
para a ação que o homem pode assumir! Quantos se puseram
a servir aos estadistas e aos políticos, antes que a Deus! Tudo
isso tem sido característico dos últim os cem anos. Eles
acreditavam que havia luz ao alcance do homem e a este sujeita.
Mas a Bíblia sempre disse que não existe luz à parte da luz
que a própria Bíblia emite, e aqui vemos de novo a doutrina
bíblica sendo verificada por todos os lados ao nosso redor.

156
A Luz nas Trevas

Examinemos a questão direta e realisticamente. Haveria


algo que possa explicar a causa da presente situação à parte da
Bíblia? Leiam os livros e os jornais, ouçam os filósofos
modernos. Eles não podem explicar a presente situação, pois
foram educados com base numa teoria e visão da vida que
acreditava na capacidade inerente ao homem de salvar-se e
de salvar seu mundo. Era uma teoria que ensinava que, por
um processo evolutivo inevitável, o homem já estava avan­
çando e progredindo automaticamente. E que, por meio da
educação e do conhecimento, este avanço seria ainda mais
acelerado. Nada poderia detê-lo, e o século vinte seria o
coroamento final da história do homem. Leiam os discursos
dos grandes estadistas vitorianos, e vocês verão que todos
estavam confiantes em que o mundo iria avante. Se vocês
acreditam nisso, como podem explicar o mundo como ele
está hoje? Como podem explicar as duas guerras mundiais?
Como podem explicar a degeneração e a decadência do perí­
odo entre as guerras? E inexplicável. Não há nenhuma luz
sobre a causa do estado do mundo à parte da luz da Bíblia.
E depois, quando formos considerar o poder de tratar da
situação e de mudá-la, a mesma coisa será mais perceptível.
Nunca me permito tornar uma prática ou um hábito citar
escritores modernos populares não cristãos, mas às vezes o
testemunho deles tem valor. Recentemente eu estava lendo a
resenha de um livro intitulado Condição do Homem, de auto­
ria de um certo Lewis Mumford - livro extraordinário, que
revela competência e que penso que, em muitos aspectos,
seria bom que os cristãos lessem e estudassem por sua descrição
da nossa era e do nosso período. E, todavia, devo concordar
com a crítica feita a esse livro pelo Dr. Joad, que, em sua resenha
do livro, disse o seguinte: “É um diagnóstico maravilhoso”,
mas (disse ele), “você pede ao Sr. Mumford uma solução, e ele
não tem nenhuma para oferecer”. Ele nos diz que devemos
organizar-nos, que devemos ter conferências, que devemos
federar-nos. “Bem”, disse o Dr. Joad, “todos nós podemos dizer

157
2 PEDRO

isso e todos nós estamos dizendo isso, mas todos nós sentimos
no íntim o que isso não vai funcionar; tudo isso já foi
tentado, mas não se vê resposta, não se vê solução.” Também,
se vocês lerem o novo livro de B ertrand Russell sobre
filosofia, verão que ele diz a mesma coisa. Ele confessa com
a m aior franqueza que a filosofia não pode lidar com os
problemas da humanidade. Ele não sabe a resposta; ele pode
descrever a situação, mas não consegue resolver o problema.
Não há nem esperança nem luz alguma no mundo atual, fora
a que se encontra nas Escrituras. Acaso conferências podem
resolver o problema? Será que a educação pode fazer com
que os homens tenham uma vida decente e benéfica, pode
dar-lhes um novo entendimento da dignidade do trabalho,
e da santidade de certos votos solenes? Todos nós sabemos
perfeitamente bem que ela já fracassou nisso.
Que esperança há para este mundo escuro, sombrio e
sujo dos dias atuais? A resposta é a antiga resposta dada pelo
apóstolo Pedro aqui. Não há luz à parte das Escrituras, à parte
da profecia. Mas, graças a Deus, aqui temos uma luz bem
definida. Ainda é uma lâmpada numa caverna escura, é a
única luz que nos pode dar um vislumbre de esperança. Que
é que ela tem para dizer? Permitam-me resumi-lo em poucas
palavras.
Ela nos diz que a única esperança do mundo está nos atos de
Deus com relação ao mundo. A esperança do mundo não está
em coisa alguma inerente ao homem, nem tampouco em
nenhuma ação que o homem possa empreender. A esperança
do mundo está no programa e plano de Deus para o mundo.
Esse é, naturalmente, o grande tema da profecia - vocês o
veem no Velho Testamento e no Novo. Em que consiste?
Bem, podemos colocá-lo nos seguintes termos; diz a profecia
que o m undo está como está devido à desobediência do
homem, devido ao pecado do homem, devido à rebelião do
homem contra Deus. E a inevitável consequência disso. O
que apreciamos e o que queremos, aí está o fato. Deus disse

158
A Luz nas Trevas

que se o homem pecasse seria visitado por uma maldição; e


a maldição caiu e ainda está sobre nós. Sendo assim, como
de fato é, que se pode fazer, que é que pode dar-nos alguma
luz e esperança?
A única resposta é que Deus Se preocupou e esboçou
neste Livro exata e precisamente o que Ele Se propôs fazer, e
o que Ele vem fazendo. Deus iniciou Seu plano e propósito
de salvação. No Velho Testamento Ele deu início ao processo.
Ele tomou um homem como Abraão e fez dele uma nação.
Essa nação caiu em maus dias e se viu no Egito. Deus a
tiro u de lá e a levou para a terra prom etida. Ele levou
adiante o processo, e lhe deu juizes e reis. Depois lhe enviou
profetas para lhe dizerem que o Messias, o Libertador, viria.
Examinem o Velho Testamento, leiam-no do começo ao fim.
Haveria alguma esperança no Velho Testamento, à parte da
luz desta profecia segundo a qual o Messias, o Libertador,
viria - Alguém que levaria sobre Si os pecados dos homens.
Aquele que Deus enviaria ao mundo? Que luz haveria no
mundo antigo, se não fosse a lâmpada da profecia? Esta foi
a única coisa que sustentou aquele povo. Eles não podiam
entender os tempos, seus inimigos os derrotavam, tudo pare­
cia que ia dar errado, mas ali estava sempre o raio de luz, a
luz da revelação, a luz da Vinda do Messias - a única esperança!
E depois, “na plenitude do tempo”, Ele veio. Bem, alguém
perguntará, se isso está certo, você age corretamente quando
diz que este mundo ainda é um lugar escuro, sujo, úmido
e sombrio?
De acordo com o Novo Testamento, esse ainda é seu estado,
continua sendo essa a sua situação. Conquanto o Messias, o
Filho de Deus, tenha vindo ao mundo, o mundo O rejeitou.
Ele não veio para mudar a aparência e a condição do mundo
com um passe de mágica. De jeito nenhum! O processo de
salvação é este: o Filho de Deus realizou a expiação, reconciliou
o homem com Deus, e o que está acontecendo no processo é
que Deus agora chama pessoas para fora do mundo. O mundo

159
2 PEDRO

continua pecaminoso, escuro e sombrio, o mundo ainda está


nas condições em que estava antes da vinda do Messias.
Basta que vocês observem a vida atual e leiam o Velho
Testamento, e verão que vocês continuam tendo os mesmos
problemas. Eis aí ainda a rebelião contra Deus, ainda a
mesma queda nos mesmos vícios, ainda a vida vivida no
nível animal - exatamente igual! O mundo ainda é um tipo
de lugar escuro, úmido, sujo e sombrio; mas eis o que está
acontecendo - Deus está chamando pessoas para fora. Deus
está resgatando e redimindo do mundo os que Lhe pertencem.
Não somente isso, a luz continua aí, a lâmpada continua
brilhando. E o que ela mostra? Eis a declaração final: este
processo continuará “até que o dia esclareça, e a estrela da
alva apareça em vossos corações”. Que significa isso? A decla­
ração bíblica é que este processo de cham ar hom ens do
m undo para o reino de Deus deve continuar até quando
Cristo, o Messias, o Filho de Deus, voltar a este mundo. Ele
virá como Rei, como Vencedor. Ele vai destruir tudo o que é
pecaminoso, mau e errado. O pecado e o mal serão removidos,
serão eliminados, e tudo o que provém do pecado e do mal e
a esses pertence será igualmente destruído. Desse modo,
tudo o que torna o mundo escuro, sombrio e sujo será posto
fora. Então haverá “novos céus e nova terra, em que habita
a justiça”.
Contudo, alguém dirá, não posso acreditar nisso tudo;
parece um conto de fadas. A única resposta às pessoas que
fazem essa objeção é muito simples. Ou você crê na mensa­
gem do evangelho, ou então você permanecerá em completas
sombras, trevas e na absoluta falta de esperança. Não há luz
nenhuma fora do evangelho. Desde o princípio o mundo tem
procurado alguma luz. Esse é o significado de toda flutuação
na ascensão e queda dos grandes impérios. Há um período
de luz aparente, e depois uma era de trevas; segue-se outro
período de iluminação, e depois outra era de trevas. Essa é
a história do m undo; ele permanece escuro, não há nele

160
A Luz nas Trevas

nenhuma luz. Mas a luz ou a lâmpada da profecia continua


brilhando. Ela nos diz que Deus interfere nas atividades e
na vida deste mundo; que, tão certamente como Ele enviou
Seu filho como um Bebê em Belém, Ele O enviará nova­
mente, agora como um poderoso Rei e Vencedor, e todos os
inimigos serão finalmente destruídos, e Ele fará o mundo
perfeito e bom, e todos os que creem em Cristo reinarão
com Ele e desfrutarão da eternidade em Sua santa presença.
Essa é a luz bíblica.
Porventura essa espécie de declaração é luz para você?
C onstitui uma mensagem de esperança para você? Será
desse modo que você vê a vida, quando observa a situação
internacional, quando examina os problemas daqui, do nosso
país, quando você examina a sua vida pessoal, quando você
vê as sombras e as trevas e a imundície? Você dá graças a
Deus pela luz da profecia, pela luz das Escrituras, pela luz
da verdade? E isso que decide se somos cristãos ou não -
se aceitamos esta visão bíblica da vida e do mundo. Será
que significa que nos submetemos a Cristo, que aceitamos
Seu conceito sobre a vida, e que, deixando de procurar a
luz nalgum outro lugar, olhamos somente para Ele. “Uma
luz que alumia em lugar escuro, até que o dia esclareça, e a
estrela da alva apareça em vossos corações”.

161
13
Falsos Profetas e Seus Ensinos
“Também houve entre o povo falsos profetas, como entre
vós haverá também falsos mestres, que introduzirão
encobertamente heresias de perdição, e negarão o Senhor
que os resgatou, trazendo sobre si mesmos repentina
perdição. E muitos seguirão as suas dissoluções, pelos
quais será blasfemado o caminho da verdade. E por avareza
farão de vós negócio com palavras fingidas; sobre os quais
já de largo tempo não será tardias sentença, e a sua
perdição não dormita.” - 2 Pedro 2:1-3

De todos os capítulos que se encontram em toda a Bíblia,


este capítulo dois da Segunda Epístola de Pedro está entre os
mais terríveis. Quanto à ameaça, à advertência, à ideia de juízo,
de desgraça e de destruição, não há nada em todas as Escritu­
ras Sagradas que sobrepuje este particular capítulo. Ora, aqui
o apóstolo está ajudando estes cristãos a enfrentar o futuro -
por isso, escreve dessa maneira. Ele está contemplando o futuro,
e está contemplando o futuro deles. Ele já lhes havia contado,
no capítulo anterior, que ele, agora um homem velho, tinha
sido informado pelo nosso Senhor de que não tinha muito
tempo de vida. Sabia que o tempo da sua partida estava
próximo, e aqui ele se preocupa com o rebanho que vai deixar
atrás. O apóstolo examina a fundo o futuro, e aqui prepara o
seu rebanho para esse futuro. Ele o faz da maneira que é
inteiramente típica e característica do Novo Testamento. Ele
os adverte; sua mensagem é primariamente de advertência.
Em sua carta ele já lhes havia lembrado as grandes verdades
nas quais eles estão firmados, verdades inexpugnáveis que

162
Falsos Profetas e Seus Ensinos

jamais podem falhar, e, tendo lhes feito lembrá-las, agora


passa a adverti-los.
Bem, isso é bastante típico e característico do Novo Testa­
mento; é sempre e em toda parte, exatamente, seu modo de
preparar os homens e as mulheres para o futuro. Para quem
não crê em sua mensagem central, não há livro na terra mais
deprimente que o Novo Testamento. Se não aceitarmos o
núcleo central do evangelho concernente ao nosso Senhor e
Salvador Jesus Cristo e ao propósito de Deus por meio dEle,
repito que, nesse caso, é impossível encontrar, seja onde for,
uma exposição a respeito da vida que seja tão completamente
pessimista e deprimente como o Novo Testamento. Esse é o
ponto de partida quando consideramos um capítulo como
este. Esta descrição neotestamentária da vida é que esta é o
cenário de um extraordinário e terrível combate e conflito
espiritual. Leiam qualquer parte deste Livro, leiam as pala­
vras do nosso Senhor nele registradas, leiam os sermões dos
prim eiros pregadores como se encontram em Atos dos
Apóstolos, e leiam qualquer das Epístolas que acaso escolham,
começando pela Epístola aos Romanos e indo direto até o
livro do Apocalipse; em toda parte lhes é dada uma sensação
de crise, uma sensação de juízo. A vida neste mundo, de
acordo com este Livro (e a mesma coisa ocorre igualmente
com o Velho Testamento) é o cenário de um extraordinário
e terrível conflito entre dois poderes enormes. Ambos são
poderes espirituais - Deus e todas as Suas forças num lado, e
satanás, o diabo, e todas as suas forças no outro. E, de acordo
com este Livro, o que acontece nesta vida e neste mundo é
que estes dois megapoderes e suas forças estão empenhados
em tentar obter o sufrágio do homem, em tentar conquistar
o homem para os seus respectivos lados. Este terrível e ex­
traordinário conflito continua sendo travado. O resultado é
que nunca se vê nenhum otimismo fácil no Novo Testamento;
não há nele vaga superficialidade geral. Em todo ele, sua
mensagem é de modo a preparar-nos para este conflito, a

163
2 PEDRO

habilitar-nos a compreender a natureza do conflito. Não nos


deixará escapar; na verdade, seu grande tema consiste em
alertar-nos do grande perigo de permitirmos que, de várias
maneiras, o mundo nos faça esquecê-lo.
A mensagem típica do Novo Testamento é a que vemos
neste capítulo - é explosiva, ameaçadora, apóia-se em pala­
vras de advertência. Na verdade, a Bíblia, em particular o
Novo Testamento, sustenta que este mundo não somente é
perigoso para todos os homens, mas que também o é até para
os cristãos, e estas mensagens foram escritas especifícamente
para os cristãos. O argumento do Novo Testamento, expresso
aqui por Pedro nesta Epístola, como também em sua Primeira
Epístola, é que “já é tempo que comece o julgamento pela
casa de Deus; e, se primeiro começa por nós, qual será o fim
daqueles que são desobedientes ao evangelho de Deus?” Esse
é o seu argumento, que até para os cristãos o mundo é um
lugar perigoso por causa dos poderes e forças do mal mobi­
lizados contra nós, poderes e forças que estão sempre tentando
afastar-nos de Deus. Portanto, vocês, cristãos, diz ele com efeito,
estejam vigilantes, observem, estejam atentos, vigiem e orem!
Estas são suas palavras e elas são o grande lema do Novo
Testamento. Noutras palavras, ele quer que percebamos e
entendamos que a peleja pode ser tão violenta e tão difícil que
haverá ocasiões em que até os cristãos começarão a sentir-se
quase sem esperança e se perguntarão o que está acontecendo,
e serão tentados a dar ouvidos às insinuações do maligno.
Ora, de acordo com este Livro, a única maneira de guar­
dar-nos contra isso é compreender que isso vai acontecer e
preparar-nos para isso. Sabedores do que vai acontecer,
devemos estar plenamente armados para, então, nunca sermos
apanhados de surpresa. Mas, e é a isto que eu desejo referir-me
particularm ente, as forças do mal mobilizadas contra nós
nunca são tão perigosas como quando nos falam como falsos
profetas, ou falsos mestres. As forças do mal têm uma quase
interminável variedade de maneiras de lidar conosco; mas, de

164
Falsos Profetas e Seus Ensinos

acordo com o Novo Testamento, elas nunca são tão sutis e


perigosas como quando aparecem entre nós como profetas,
falsos profetas, que se nos apresentam como fiéis e capazes de
guiar-nos e de mostrar-nos o caminho do livramento e de
escape. Observem agora que Pedro diz aqui que isso foi o caso
no Velho Testamento. A Bíblia tem uma expressão, empre­
gada no Novo Testamento, para descrever os judeus - “o povo”,
e Pedro diz: “Também houve entre o povo [sob a velha
dispensação] falsos profetas, como entre vós haverá também
falsos mestres”. Pois bem, essa é a situação, como se aplica a
nós. Havia falsos profetas e mestres na Igreja Primitiva; ainda
há falsos profetas e mestres; e, se havemos de entender os
tempos nos quais vivemos, a primeira coisa que temos que
fazer é dar-nos conta de que o perigo maior que nos confronta
atualmente é o perigo que vem dos falsos profetas e dos falsos
mestres. Portanto, nada é mais importante para nós do que
termos claro entendim ento de como diferenciar entre os
verdadeiros e os falsos.
Não há nenhuma necessidade de descrever a difícil situa­
ção mundial na qual nos achamos - todo o mundo sabe disso.
Estamos todos cientes disso. Estamos todos cientes das
dificuldades e dos problemas. Toda a questão quanto a nós é
como havemos de enfrentar o que está acontecendo e o que
vai acontecer. Pois bem, o maior de todos os perigos sobre
este particular ponto é o perigo que surge dos falsos mestres e
falsos profetas, daqueles que aparentemente vêm ter conosco
em nome de Deus e que, todavia, não passam de mensageiros
de satanás. É isso que Pedro diz a estes primeiros cristãos que
eles devem saber - eles devem ter o cuidado de observar e de
agir da maneira por ele indicada nesta questão de discrimi­
nação. Hoje somos confrontados precisamente pelas mesmas
condições. Observem a multiplicidade de conselhos oferecidos,
examinem as teorias que estão sendo propagadas, examinem
todas as soluções que estão sendo apresentadas, e tudo o que as
pessoas inteligentes estão escrevendo, e que nos estão dizendo

165
2 PEDRO

O que devemos fazer. A boa arte da vida consiste na capaci­


dade de discriminar entre o verdadeiro e o falso, e depois
rejeitar totalmente o falso e apegar-se àquilo que é única e
fundamentalmente verdadeiro. Em vista disso, ouçamos a
ajuda e o conselho que nos são dados aqui pelo apóstolo,
pois ele nos fala sobre um meio pelo qual podemos diferen­
ciar claramente entre o verdadeiro profeta e o falso. Que é
que ele tem para dizer sobre isso?
Consideremos primeiram ente os testes negativos que
ele nos sugere. Há certas maneiras errôneas de avaliar a
veracidade ou a falsidade de um profeta e seu ensino. Quais
são? Bem, a prim eira maneira errônea de decidir se um
ensino é verdadeiro ou não, é deixar que a sua novidade ou a
sua modernidade determine se ele é certo ou não. Não há necessi­
dade de demorar-nos nisto porque essa é a mais óbvia das
falácias, e, todavia, há pessoas que obviamente são vítimas
desse erro. Outro modo de dizer isso é o seguinte: “Qualquer
coisa que seja nova só pode ser certa”. Essa crença fatal num
progresso inevitável - simplesmente tomar por concedido
que, devido vivermos no século vinte, nós, nestas questões,
sabemos coisas que os homens que viviam no século passado
não podiam saber - como é comum essa pressuposição! O
Novo Testam ento sempre desm ente rotundam ente essa
particular falácia. Pedro coloca a questão nestes term os:
“Houve entre o povo falsos profetas, como entre vós haverá
também falsos mestres”. Essa é a filosofia neotestamentária
da história - assim como foi, assim também será. Noutras
palavras, o mundo continua o mesmo, e não há nada tão tolo
como a crença em que, porque estamos vivendo no século
vinte, estamos num mundo diferente daquele em que os
nossos antepassados habitavam. A resposta da Bíblia é que
desde a queda do homem este m undo tem perm anecido
exata e precisamente o mesmo. Naturalmente há mudanças
superficiais, mas estas são inteiram ente irrelevantes. Os
hom ens se vestem de modo diferente, viajam por meios

166
Falsos Profetas e Seus Ensinos

diferentes, mas nós não estamos discutindo superficialidades,


estamos discutindo os problemas do homem relacionados com
a vida. E quando vocês olham desta maneira, logo vêem que o
mundo continua sendo exatamente o mesmo. Houve falsos
profetas, e os haverá. De modo que, se ingenuamente imagi­
narmos que, uma vez que estamos vivendo no século vinte,
estamos em condições superiores para encarar os problemas
da vida, estaremos condenados a fracasso e desastre. O
problema continua sendo o mesmo. O homem continua sendo
tentado pelo diabo a não crer em Deus e a não obedecer a
Deus - tem sido assim desde a queda do homem, e continua
sendo o problema central atualmente. Espero, pois, que não
haja [aqui] ninguém que ainda abrigue a falácia particu­
larmente fútil e fátua segundo a qual, porque vivemos neste
momento particular, e devido a recentes novas idéias, estamos
numa posição especialmente vantajosa para fazer frente aos
problemas e às batalhas da vida.
O segundo teste referente ao modo errado de submeter à
prova os falsos profetas é a falácia de sempre supor que, se o
ensino é popular, só pode ser certo. “Muitos seguirão as suas
dissoluções” [“os seus perniciosos caminhos” (VA)], diz Pedro.
Vão levantar-se falsos mestres entre vocês, diz ele, e tais mes­
tres vão atrair uma m ultidão - “Muitos seguirão os seus
perniciosos caminhos”. Certamente esta falácia não merece
atenção prolongada, mas eu tenho que me referir a ela
porque ainda ouço as frases levianas: “Todo mundo crê nisso”,
ou, para dizê-lo negativamente, “Ninguém mais acredita na
Bíblia; nenhuma pessoa culta, bem instruída, crê nela; veja as
multidões que estão fora da Igreja”. Dessa forma é pressuposto
que o cristianismo só pode ser errado porque a multidão
sempre está certa! Essa posição é tão infantil e tão tola que
quase não merece séria consideração; mas

A verdade para sempre na forca;


O erro para sempre no trono

167
2 PEDRO

é uma declaração tão verdadeira quanto à nossa época como


quanto a qualquer período da história do mundo. “Muitos
seguirão os seus perniciosos caminhos.” Qual é a lição do
Novo Testamento e da Bíblia sobre esta questão? Voltem ao
Dilúvio em busca de resposta - vocês verão o mundo inteiro
errado e apenas oito pessoas certas. Muitíssimos estavam
contra Deus na época do Dilúvio, somente oito pessoas foram
salvas. Seria uma coisa verdadeira porque todo o mundo crê
nela? Então voltem à história de Sodoma e Gomorra - que é
que vocês encontram? Exatamente a mesma coisa; o maior
número, a multidão, todos estes no lado errado. Somente Ló
e sua família foram salvos. Esse é o ensino da Bíblia. Ela
sempre ensinou a doutrina do remanescente - o maior número,
os populares, as multidões, todos indo na direção errada, e
apenas um pequeno remanescente permanecendo certo. Para
mim, um dos traços mais tristes, e isso até da vida religiosa
moderna, é a tendência de avaliar a verdade em termos de
resultados, de popularidade, de multidões e de movimentos.
Isso é uma total negação do ensino bíblico. Não se pode
avaliar verdade espiritual pelos róis; contagem de cabeças
não é um método bíblico de verificar se um ensino é certo
ou errado. Não se faz um recenseamento no qual se pede
às pessoas que preencham certos quesitos. “A Lei e ao
Testemunho!” Popularidade e número são um teste muito
falso da verdade.
Mas perm itam que eu passe a uma coisa ainda mais
séria. O fato de que a mensagem é ensinada, mesmo pela Igreja,
não égarantia de que é verdadeira. Ouçam. “Também houve falsos
profetas.” Onde? No mundo, na nação, fora de Israel? Não,
“entre o povo” - e, como ali, “haverá falsos mestres” (VA).
Onde? No mundo, no meio dos incrédulos fora da Igreja?
Nada disso! “Entre vós.” E esse texto não é uma passagem
isolada. Se vocês lerem o capítulo vinte de Atos dos Após­
tolos,
/ verão Paulo despedindo-se dos líderes da igreja de
Efeso. Ele lhes diz exatamente a mesma coisa. Dificilmente

168
Falsos Profetas e Seus Ensinos

haverá uma Epístola do Novo Testamento que não advirta os


cristãos contra os falsos mestres entre eles e na Igreja. O
mero fato de que uma mensagem é ensinada na Igreja e por
ela não é garantia de que é verdadeira. Existem coisas como
falsos crentes professos na Igreja, falsos cristãos, pessoas que
se imaginam cristãs mas que não são cristãs e, portanto, pre­
gam e ensinam uma falsa mensagem. Essa, digo e repito, é a
questão mais grave de todas, e aqui temos que ser cautelosos
na presente hora.
Pois eu penso que vocês concordarão que a tendência
dominante não é de falar e escrever sobre a verdade. Toda a
ênfase no m om ento é que devemos juntar-nos e formar
grandes organizações. O interesse não é tanto pela veracidade
da mensagem, mas sim por reunir-nos num a só grande
comunidade. A tendência atual é menosprezar a verdade em
favor da organização, e os homens nos estão dizendo com
incansável reiteração que a maior tragédia do mundo é a
Igreja desunida. E ntretanto a tragédia, a m aior tragédia,
como entendo o Novo Testamento, não é a falta de unidade
da Igreja, não é o fato de que a Igreja está dividida em grupos
e denominações, não é que não estamos todos num a só
organização, mas sim que todos os segmentos estão pregando
uma falsa mensagem e que houve um afastamento da verdade
de Deus como se vê em Cristo Jesus. Se todos nós nos
reuníssemos e formássemos uma só organização, isso não é
garantia de que a mensagem pregada seria verdadeira. Exis­
tem falsos mestres; existiam no Velho Testamento, e existem
e sempre existiram na Igreja. Não há nada tão patético e triste
como a maneira pela qual alguns membros de igreja pare­
cem pensar que, seja o que for que preguem na denominação
a que eles pertencem, só pode estar certo; e, todavia, o tempo
todo 0 Novo Testamento nos diz que isso não é prova de
veracidade. Não podemos presumir que qualquer homem que
se levante na Igreja é um verdadeiro profeta. Assim é que,
se presumirmos levianamente que, porque a “Igreja” está

169
2 PEDRO

pregando certa coisa, essa é necessariamente verdadeira,


estaremos no maior perigo possível de sermos conduzidos
por falsos profetas. Infelizmente, a fé na infalibilidade da
“Igreja” não está restrita aos católicos romanos.
Aí estão os testes errôneos. Como devemos testar a verdade
de maneira positiva? Pedro diz: vão à Bíblia! Considerem
as marcas do falso profeta. Suas características lá estão, e são
sempre as mesmas. Leiam-nas no Novo Testamento. Vejam-
-nas também na subsequente história da Igreja Cristã. O tipo
nunca varia, nunca muda. Quais são essas características? A
primeira, diz Pedro, é que o falso profeta nunca foi chamado -
não foi chamado por Deus. Ele é um falso profeta, não
som ente falso no que ensina, mas tam bém falso em sua
designação. Ele absolutamente não é profeta. Notem aqui
também que Pedro obviamente está contrastando este tipo de
indivíduo com a espécie de profeta descrito por ele no capí­
tulo anterior. Ali Pedro fala do verdadeiro profeta algo assim:
“Sabendo prim eiram ente isto: que nenhum a profecia da
Escritura é de origem humana [de particular interpretação ou
teoria ou ideia], porque a profecia nunca foi produzida por
vontade de homem algum, mas homens santos de Deus fala­
ram quando foram movidos pelo Espírito Santo”. Aí está o
verdadeiro profeta. Ele não tece suas próprias teorias, nem
elabora suas próprias idéias. Ele não é um homem que quer
falar ou que decide falar; é um homem de que o Espírito Santo
Se apoderou. E-lhe dada uma mensagem, ele é movido, é
levado a expô-la. “Também houve entre o povo falsos profetas,
como entre vós haverá também falsos mestres.” Qual é a
característica do falso profeta? Em primeiro lugar - ele não
foi chamado. Ele é diferente do verdadeiro profeta. O falso
profeta fala por sua própria vontade; elabora as suas próprias
idéias. Ele não tem real autoridade, não tem nenhuma sanção
fundamental. Noutras palavras, o falso profeta sempre dá
expressão a suas teorias e idéias pessoais.
Ao dizer isso, estou descrevendo os últimos cem anos [de

170
Falsos Profetas e Seus Ensinos

1946 para trás]. Como isso é verdadeiro! Pensem em como as


filosofias tomaram o lugar da revelação durante esse período!
Que é filosofia? Idéias humanas! Por outro lado, crer na
revelação é dizer: eu creio na Palavra de Deus. Mas isso foi
posto de lado, e a filosofia do homem é que tem sido popular
- idéias humanas. Mencionemos algumas delas. Veja, por
exemplo, a teoria da evolução do homem. O que nos dizem é
que os nossos primeiros pais eram macacos. Existiria alguma
prova disso? Não passa de teoria, e, contudo, ela tem sido aceita,
tem sido tomada como fato completamente estabelecido. Não
há vestígio de prova por trás dela. E isso que o falso profeta
sempre faz; ele desenvolve uma teoria e depois a apresenta
como fato. Ele não tem nenhuma sanção ou autoridade - por
isso ele é falso.
Que mais? Vejam a psicologia. Os homens das massas
acreditam que a psicologia explodiu completamente o cristia­
nismo e a religião. Que é ela? Nada senão teoria. Observem
as diferentes escolas de psicologia, como eliminam umas
as outras. E, todavia, com base nessas meras teorias e hipó­
teses, pedem-nos que rejeitemos a Bíblia e que deixemos de
crer no evangelho. Essa maravilhosa teoria afirma que pela
aplicação da psicologia podemos livrar-nos de todos os
males pessoais e de todos os males nacionais e internacionais;
e, no entanto, muitas vezes vemos que as próprias pessoas que
propagam essa teoria se tornam vítimas dos mesmos males
que elas pretendem curar. Que lástima! E depois, que dizer
das declarações feitas muitas vezes de que os milagres são
impossíveis, declarações feitas por muitos como um motivo
para não crermos no Novo Testamento? Alguma vez foram
comprovadas? Vejam também toda a conversa sobre religiões
com-paradas, e as confiantes alegações dos seguros resultados,
assim chamados, da Alta Crítica, muitas das quais foram
destruídas pelos arqueólogos. Tudo isso é teoria; e em nome
dessas teorias e suposições, e sem nenhuma sanção e autoridade
divina, os homens estão negando o evangelho e estão se

171
2 PEDRO

dedicando a crer nessas teorias. Mas o que torna isso ainda


mais falso é que, frequentemente, todo esse tipo de ensino
tem sido apresentado em termos deste Livro. Certamente a
suprema diferença entre o verdadeiro profeta e o falso é que
o verdadeiro profeta prega a mensagem da Bíblia, e o outro
prega o que ele acha que a Bíblia deveria dizer e ensinar.
Essa é a primeira característica do falso profeta; ele não foi
chamado, não recebeu nenhuma real autoridade e sanção.
Em segundo lugar, o falso profeta não tem uma verdadeira
mensagem. Quais são as características da sua mensagem?
Bem, diz Pedro, muitos seguirão seus perniciosos caminhos,
e “por avareza farão de vós negócio com palavras fingidas” -
palavras sutis, palavras macias e afáveis. Esse é o ensino dos
falsos profetas. A segunda característica do falso profeta é que
ele é sempre confortador. Ele nunca critica, nunca faz com
que nos sintamos desconfortáveis. Ele sempre procura dizer
o que nós queremos que ele diga. E depois, diz Pedro, também
ele é ambicioso, avarento; sempre deseja aplauso popular. E
acrescentemos, ele vem “com palavras fingidas”. Ele nunca
faz você sentir-se pecador, nunca faz você sentir-se perdido,
nunca faz você odiar a si mesmo e odiar o pecado que há em
você. Ele sempre está dizendo, de um modo ou de outro,
que você é m aravilhoso, bastando que a você lhe sejam
dadas circunstâncias decentes. “Palavras fingidas”!
Mas, o que é ainda mais grave, a maneira final de testar
uma mensagem é esta: o falso profeta e mestre nega o Senhor
que o resgatou (VA: “comprou”) - “e negarão o Senhor que os
comprou”, existem mais de um modo de fazer isso. As vezes
negam o Senhor que os comprou simplesmente deixando-
-O fora completamente. Eles se propõem transm itir uma
mensagem cristã, e, todavia, o nome de Cristo nunca é men­
cionado. Deus é mencionado, mas Cristo, o Senhor, não. Eles
O negam deixando-O fora. As vezes O negam não O fazendo
absolutamente central, vital e essencial. Se Cristo não está no
centro, Ele está sendo negado. Ou Ele está no centro, ou não

172
Falsos Profetas e Seus Ensinos

está em parte alguma. Também O podem negar por negar


Sua Pessoa, considerando-0 apenas como homem, como um
grande mestre, um exemplo maravilhoso, mas negando a Sua
Deidade - negando-0 como Deus-Homem, o “theanthropos”,
em toda a glória e plenitude da Sua bendita Pessoa. Ou O
negam, mais que tudo e mais gravemente, negando Sua obra
expiatória, negando o fato de que, se Ele não tivesse ido à
cruz, todos os homens permaneceriam condenados e debaixo
da ira de Deus negando que este é o único caminho para
Deus, deixando de ver a si mesmos como pecadores deses­
perados, condenados, salvos unicamente porque Ele levou
os pecados deles em Seu corpo na cruz - negando a
centralidade da cruz! “Negando o Senhor que os comprou.”
Seja qual for o ensino que o homem tenha para oferecer a
vocês, se o Cristo na cruz do Calvário não for o pivô central
do cerne desse ensino, eu digo que ele é um falso profeta e
um falso mestre. E ninguém pode dar esperança, quer ao
indivíduo quer ao mundo, hoje, se não estiver centralizado
absolutamente nessa expiação. Esse tal é um falso profeta,
um falso mestre.
Contudo, por último, de acordo com Pedro, os falsos
profetas e mestres são falsos em suas vidas e em seu modo de
viver. Eles não têm uma verdadeira vocação, não têm uma
verdadeira mensagem; e nem tampouco têm um verdadeiro
modo de viver - uma verdadeira vida. E muitos seguirão os
seus “perniciosos caminhos”, ou, se vocês preferirem a tradução
que consta na margem, os seus “modos lascivos” [ARC: “as
suas dissoluções”]. Isso é sempre uma verdade: o falso ensino
sempre leva a um falso viver.
Durante os últimos cem anos tem sido dito a nós que a
mensagem evangélica era adequada para dar aos homens
uma experiência pessoal, mas que não tratava da ética, não
tratava das condições sociais. Levava os hom ens a uma
conversão pessoal, mas realmente não elevava as massas e a
raça. Por isso começaram a pregar o chamado evangelho ético.

173
2 PEDRO

A que isso levou? Isso sempre tem o mesmo efeito. Vejam o


estado da sociedade nestes dias, com toda a sua imoralidade
e vício. Se a mensagem for errada, a vida sempre será errada.
Um falso conceito da vida sempre leva a um modo errôneo de
viver e a um padrão ético mais baixo, mesmo que se pregue
ética. Não se pode separar estas coisas. Nunca se pode separar
da cruz a santidade. Não se pode pôr as doutrinas neotesta-
mentárias em compartimentos e ter um movimento especial
para cada uma delas. Todas vão juntas. Não há santidade a
não ser que venha do Cristo crucificado. As doutrinas da
vida são inseparáveis.
Muito bem, procurei colocar vocês face a face com algu­
mas das características do falso profeta e mestre. Se esses
testes tivessem sido aplicados diligentemente como deveriam
durante os últimos cem anos, a Igreja Cristã estaria como está
atualmente? A sociedade estaria como está atualmente? O
mundo estaria como está atualmente? Oh, a tragédia de esque­
cer os testes da Palavra de Deus e de elaborarmos os nossos
próprios testes superficiais e filosóficos, assim chamados!
Devemos fazer a nós mesmos algumas perguntas, e eu lhes
sugiro as seguintes; primeira: qual é o meu conceito do mundo
atual e do mundo futuro? Como eu o vejo? Eu vejo a história
à luz deste Livro, ou à luz das filosofias populares? Vejo este
mundo como a sede de um extraordinário conflito espiritual?
Vejo-o encaminhar-se a uma final crise cataclísmica, com a
data desconhecida, mas com o fato inevitável? A segunda
pergunta vital é: o que Cristo é para mim? Onde Ele entra,
em m eu esquem a das coisas? Seria Ele absolutam ente
vital? Eu me ponho na completa dependência dEle? Digo
com sinceridade: “Simplesmente à Tua cruz me apego”, e:
“Desamparado, eu Te busco por Tua graça”? Tenho eu uma
concepção cada vez mais profunda da santidade de Deus e da
minha pecaminosidade, quando me comparo com o que eu
era há um ano? Posso dizer honestamente que vejo a santi­
dade de Deus mais do que via antes, e minha pecaminosidade

174
Falsos Profetas e Seus Ensinos

pessoal mais profundamente do que nunca antes? E, logo,


sou impelido cada vez mais de volta a Ele, ao Senhor que
me comprou e que me segurará até finalmente me apresentar
perfeito, sem mancha nem culpa nem defeito, diante de Deus,
com exultante alegria?

175
14
O Ensino Falso e Suas
Consequências
“Também houve entre o povo falsos profetas, como
entre vós haverá também falsos mestres, que intro­
duzirão encobertamente heresias de perdição, e negarão
0 Senhor que os resgatou, trazendo sobre si mesmos
repentina perdição. E muitos seguirão as suas dissolu­
ções, pelos quais será blasfemado o caminho da verdade.
E por avareza farão de vós negócio com palavras
fingidas; sobre os quais já de largo [longo] tempo não
será tardia a sentença, e a sua perdição não dormita. ”
- 2 Pedro 2:1-3

Como no-lo lembra o versículo três, este capítulo trata do


tema geral do estrago feito na Igreja Cristã pelo falso ensino
concernente à nature 2a do evangelho. Estou pronto a admitir
que abordo este capítulo mais uma vez com boa dose de
aversão. E, como penso que todos concordarão, um dos
capítulos mais terríveis e terrificantes de toda a Bíblia. Quem
gosta de ler um capítulo como este só pode ser anormal. E
um capítulo que contém muita coisa repulsiva e desagradável;
e eu digo que, se fosse deixado à escolha livre, de acordo com
o gosto da pessoa, este tipo de capítulo certam ente seria
evitado. Digo isso com o fim de lembrarmos uns aos outros a
importância de se tomar toda a Bíblia, e a importância de ler
e estudar a Bíblia de forma sistemática. Quem não seguir
um sistema de leitura da Bíblia que abranja a Bíblia toda,
certamente nunca lerá um capítulo como este. As pessoas que

176
o Ensino Falso e Suas Consequências

SÓ leem os capítulos favoritos, assim chamados, e que escolhem


as partes das quais elas gostam e que as ajudam, nunca
tomarão muito tempo com este capítulo dois da Segunda
Epístola de Pedro. E, todavia, devemos lem brar que, se
cremos na doutrina da inspiração das Escrituras, este capí­
tulo é tão inspirado como o capítulo oito de Romanos, ou o
terceiro capítulo do Evangelho de João, ou como qualquer
dos nossos Salmos favoritos. E a Palavra de Deus, e nós
devemos considerar toda a Palavra de Deus. Devemos tomar
essas partes que não exercem forte atração sobre o nosso homem
natural e compreender que elas têm suas lições para nós, lições
tão definidas e tão certas como aquelas outras partes que
exercem forte atração sobre nós. Digo, pois, que é preciso
encarar este capítulo; e talvez esta seja outra justificativa para
0 ensino expositivo - a pregação que se preocupa em expor
a Palavra de Deus e não meramente em expressar as idéias
do pregador, a pregação que não é meramente tópica e que
tem a intenção de adequar-se ao gosto popular e às condições
predominantes no momento. Isso nos mostra a importância
de uma consideração sistemática da Palavra de Deus e sua
mensagem.
Bem, aqui, digo eu, somos impelidos a isso devido ao
simples fato de que, afinal, Pedro escreveu o capítulo, e o
fez bastante extensamente. Parece que ele estava tão preo­
cupado em esclarecer tão bem a sua tese, que foi levado a
desenvolvê-la e a apresentar todos estes medonhos e des­
agradáveis de-talhes ao descrever o tipo de pessoa que ele
está considerando. Pedro achava que este assunto era de tão
vital importância que não tinha a mínima possibilidade de
tomar alguma coisa como concedida. Certamente vocês se
lembrarão de que a Epístola de Judas tem notável semelhança
com este capítulo. Há alguns versículos quase idênticos, e as
autoridades têm debatido através dos séculos quanto a qual
dos textos depende do outro. Isso realmente não importa - o
ponto é que ambos compreenderam a importância do assunto.

177
2 PEDRO

Vocês verão advertências e exortações similares nas outras


Epístolas, e em particular no livro do Apocalipse. Vê-las-ão
tam bém na Prim eira Epístola de João. Os apóstolos se
preocupavam trem endam ente com essa questão, e não
deixavam nada por fazer em seu esforço para advertir estes
primeiros cristãos no Sentido de preservarem a pureza da fé
e de batalharem “pela fé que uma vez [ARA: “uma vez por
todas”] foi dada aos santos” - com o fim de a defenderem e de
se certificarem de que essa fé jamais seria adulterada. Esse é
o tema.
Não há nada que seja mais importante no presente do que
considerarmos novamente, e com muita atenção, tudo o que
o apóstolo tem para dizer aqui. Insinuei no capítulo anterior
que certamente seria muito difícil encontrar uma detalhada
descrição mais precisa e perfeita do mundo como ele está
hoje, e da Igreja no m undo, do que a que se acha neste
capítulo. Pessoalmente não tenho conhecimento de nenhum
sumário mais perfeito dos últimos cem anos do que o que
vemos aqui. Noutras palavras, temos aqui uma descrição de
um m undo m ergulhado na falta de tem or de Deus, na
imoralidade, no vício, na leviandade e na vida sem lei. Essa
é a descrição. Vocês veem aqui o tipo de condições morais
predominantes na história do mundo no tempo do Dilúvio,
em Sodoma e Gomorra, na época em que o nosso Senhor
veio ao mundo e, subsequentemente, na Idade das Trevas.
Acaso não parece evidente e óbvio que estamos baixando a
condições como essas na presente hora, se é que já não
acabamos de baixar a isso? Observem o mundo por todos os
lados, ao nosso redor. Observem a apostasia, como os homens,
longe de Deus, vivem para a carne e para tudo quanto é feio
e torpe, especialmente todo o desrespeito à lei que caracteriza
a vida da humanidade no presente. Eis aí a Igreja, hesitante,
cheia de dúvidas, visivelmente incerta quanto à sua palavra e
à sua mensagem, cheia de medo, preocupada consigo e com o
seu futuro como organização, e, todavia, vendo-se impotente

178
o Ensino Falso e Suas Consequências

quando enfrenta o mundo - impotente no sentido de não ter


nenhum a palavra de condenação e nenhum chamado ao
arrependimento e ao retorno a Deus em Cristo. Pois bem,
essa é a situação.
Parece-me que temos esboçado nesta passagem justamente
a condição nas quais nos encontramos na presente hora.
Falando com simplicidade e franqueza, eu e vocês, meus
amigos, nos vemos vivendo num dos períodos realmente
difíceis, na verdade num dos períodos mais difíceis da his­
tória geral da Igreja. Contrastem a nossa situação atual, mesmo
com a de há vinte ou trinta anos; contrastem-na com a daqueles
que viveram há sessenta ou setenta anos [respectivamente, no
início do século vinte, e por volta de 1880]. A vida geral do
país era então diferente; num sentido, o cristianismo e a religião
eram populares; os homens e as mulheres reuniam-se na casa
de Deus e o ensino cristão influenciava toda a vida da nação
e até a vida dos parlamentos. Nesse tempo o evangelho de
Cristo realmente contava e, em todo caso, era respeitado até
por aqueles que não o praticavam. Mas nós já não vivemos
em dias e num período como aqueles. As multidões deram
as costas ao evangelho, e nós nos vemos um diminuto re­
manescente a encarar o mundo. Pois bem, essa é a situação.
Nossa época é um período de excepcional dificuldade. Não
é fácil ser cristão hoje. Nunca foi, mas é extraordinariamente
difícil num tempo como este. E talvez a dificuldade que se
nos apresenta, acima de todas as outras dificuldades, seja a de
termos que tomar uma posição, até mesmo dentro da própria
Igreja, em prol do que acreditamos que é o real e verdadeiro
evangelho. E difícil por esta razão: a tendência geral na
atualidade é de os homens falarem mais ou menos assim: “Aí
está”, dizem eles, “o seu mundo como você o descreveu. Os
cristãos se tornaram um pequeno grupo. Agora, seguramente,
o que importa acima de tudo mais numa época como esta
é que estejamos todos juntos”.
Já me referi ao movimento ecumênico, essa ideia de uma

179
2 PEDRO

grande Igreja mundial. O argumento a favor disso é que, uma


vez que somos pequenos em número, devemos fazer sucumbir
todas as diferenças e distinções individuais. Este é um tempo,
dizem-nos, em que devemos cerrar fileiras, em que não
devemos ser exageradamente meticulosos, em que devemos
evitar especialmente a tendência de insistir em que todos
devem pôr os pontos nos i’s e cruzar seus t’s exatamente
como fazemos. Dizem-nos que não devemos discutir sobre
diferenças de ensino e doutrina. “Todos nós que reivindicamos
o nom e de cristão, em bora vagam ente, juntem o-nos e
apresentemos uma frente unida” - esse é o argumento que
se ouve constantemente. Em tal situação não é fácil contender
pela fé, não é fácil lutar pelo que acreditamos que o evangelho
é, e naquilo que cremos ser unicamente o evangelho. Numa
época assim é muito difícil lutar pela verdade e dizer que a
verdade é importante, até mais importante que a unidade, e
que, além e acima da questão de números e de uma posição
comum, está a pureza da fé e uma honesta declaração da
Palavra de Deus como nos é dado vê-la.
Ora, esse é, em certo sentido, o real problema de que
Pedro trata aqui. Seu argumento é, em geral, no sentido de
que, se havemos de fazer o que Deus quer que façamos,
devemos colocar a verdade sempre na primeira posição, e de
que, mesmo que sejamos reduzidos a um punhado, devemos
continuar contendendo pela fé. Pois a nossa única e exclusiva
preocupação deve ser com a “a verdade uma vez por todas
entregue aos santos”. Aqui ele nos diz que é isso que devemos
fazer. Ele nos dá grande encorajamento. Graças a Deus por
isso, mas, antes de podermos passar a esse encorajamento,
devemos retornar à análise que Pedro faz deste falso ensino -
o falso ensino nos tempos do Velho Testamento, e o falso ensino
na nova época. A prim eira coisa que temos que fazer é
reconhecer o verdadeiro e o falso. Consideramos isso em geral
no capítulo anterior, mas quero considerá-lo mais e com mais
detalhes agora. Digo mais uma vez que prefiro ensinar o

180
o Ensino Falso e Suas Consequências

evangelho de maneira mais positiva. Mas não cabe ao prega­


dor escolher seu texto. Cabe-lhe expor a Palavra de Deus; e,
como Pedro continua reiterando estas declarações, é nosso
dever, se quisermos ser expositores honestos, seguir seus passos.
De acordo com Pedro, a primeira coisa que temos que
determinar e compreender é a causa desta condição. Que é que
faz com que o mundo se torne tão imoral, tão ímpio e tão torpe?
Que é que leva isso até para dentro da própria Igreja, às
vezes? Noutras palavras, que é que, na Igreja, leva a um
mundo ímpio e à apostasia? Por que o mundo está como está?
Por que a Igreja está como está atualmente? Que acontece?
Por que há essa falta de vida, poder e vigor na Igreja Cristã
em sua confrontação com o m undo atualmente? Bem, de
acordo com o apóstolo, a resposta é que isso sempre se deve
a falso ensino. A causa do problema é, invariavelmente, a
não conformação com a lei, com o testemunho e com o ensino
de Deus. Agora, isso, de acordo com Pedro, não é matéria de
dedução; é um fato. E o apóstolo prova isso apresentando
prova auferida da história. Vocês se lembram da sua prova.
Prim eiro ele toma o caso do D ilúvio. Lem brem -se das
descrições feitas do m undo im ediatam ente an terior ao
Dilúvio - 0 destemor de Deus, a licenciosidade, a completa
confusão moral. Volte, cada um de vocês, ao livro de Gênesis
e leia pessoalmente o relato descritivo daquele mundo. O
mundo estava tão cheio de coisas terríveis que Deus o destruiu
por meio do Dilúvio - Deus o julgou e o condenou. Mas a
questão é: que foi que levou o mundo a esse estado? Que foi
que o levou a tal condição? Há somente uma resposta a essa
questão: a humanidade tinha se apartado, tinha caído e ficado
longe de Deus e do Seu ensino. Deus tinha dito ao homem
como ele devia viver. Deus sempre dava uma lei, mas os
homens escarneciam da lei de Deus, os homens davam às costas
a Deus, zombavam do nome, do pensamento e da sugestão de
Deus. Foi porque eles tinham dado as costas a Deus e viviam
conforme suas próprias idéias que o mundo entrou naquele

181
2 PEDRO

estado que produziu o Dilúvio a modo de julgamento. A


apostasia do homem em sua fuga de Deus, e a consequente
vida fora da lei, foram as causas que levaram ao Dilúvio.
Depois Pedro apressou-se a seu segundo exemplo e
ilustração. Não necessito lem brar-lhes os porm enores
repugnantes relacionados com as cidades da planície. Leiam
os capítulos 18 e 19 do livro de Gênesis e verão tudo a respeito
delas - a terrível corrupção moral, a fealdade e a torpeza da
vida daquelas cidades. Sim, mas eu torno a perguntar: qual
foi a causa disso? E de novo a resposta é exatamente a mesma.
Aquelas pessoas tinham dado as costas a Deus; tinham aban­
donado o ensino, tinham abandonado o caminho da lei e
estavam vivendo de acordo com os seus próprios desejos e
com a sua própria luxúria. Ainda a mesma resposta! Ou
vejam qualquer outro período de degradação moral na his­
tória dos filhos de Israel e sempre verão que a explicação é a
mesma. Sempre que eles se desviavam de Deus e do Seu
ensino, afundavam moralmente até à escória e até ao fundo.
E, se vocês tomarem a história da Igreja Primitiva, verão ali
a mesma sequência. Tão logo ela começava a afastar-se do
puro evangelho de Cristo, isto se mostrava em sua vida, no
aspecto moral, e em seu viver diário. E quando vocês tomarem
a subsequente história da Igreja, verão sempre exatamente
a mesma coisa.
Que dizer da nossa era e da nossa geração? Poderia
alguém contestar a afirmação de que continua sendo a
mesma coisa? Há somente uma explicação do estado atual
da sociedade neste país, e do estado do mundo inteiro, e é que
a humanidade, durante os últimos cem anos, esteve dando as
costas a Deus. Gostemos ou não, essa é uma regra invariável.
Sempre uma coisa segue a outra, como a noite segue o dia;
quando os homens param de adorar Deus, de viver de acordo
com este Livro e de crer no evangelho de Cristo, a morali­
dade baixa, e tudo o que é bom baixa com ela. Embora vocês
tenham o melhor sistema educacional do mundo, embora

182
o Ensino Falso e Suas Consequências

tenham aprovado leis do Parlamento destinadas a lidar com


as condições morais e sociais, embora vocês tenham feito
provisão para todas as eventualidades, quando Deus é
olvidado, vocês voltam im ediatam ente a uma condição
semelhante à que prevalecia nos tempos do Dilúvio e de
Sodoma e Gomorra, condição que prevalece grandemente
mesmo nos dias de hoje. Gostemos ou não, esse é um fato sólido
e solene. E o abandono da pura e sã doutrina que, em última
análise, leva ao caos moral, político, social e econômico.
Mas é interessante observar que este processo de declínio
e de degradação geralmente acontece por estágios. E aí que se
vê que todo este ensino é tão importante, por causa da suti­
leza do processo. Nunca acontece repentinamente. Nunca o
resultado segue-se im ediatam ente após os hom ens e as
mulheres começarem a abandonar Deus. Sempre há passos
e estágios. Aquele notável professor de teologia, Emil
Brunner, da Suíça, penso eu, expôs isto de maneira perfeita
quando disse que geralmente há três estágios. O avô cria no
evangelho e vivia em conformidade com esse ensino. O filho
deixou de crer no evangelho, mas ainda conduzia sua vida de
acordo com as idéias de moralidade a ele dadas por seu pai.
A terceira geração deixa de crer, não somente no evangelho,
mas também na visão moral e ética da vida baseada no
evangelho e dele derivada. Mas hoje eu e vocês estamos
rodeados pelos netos dos avós vitorianos; e hoje em dia vemos
que a moralidade não pode existir à parte do evangelho. A
própria categoria de moralidade está sendo negada atualmente.
Mas leva tempo para efetuar-se a deterioração.
A seguir, certam ente outro ponto muito interessante
sobre toda esta questão é a relação entre o falso ensino e o falso
viver. Do ponto de vista da mera mecânica, às vezes é muito
difícil ver qual dos dois vem primeiro. O falso ensino sempre
leva ao falso viver; sim, mas o falso viver sempre tende a
produzir falso ensino. Permitam-me expressar isso desta
maneira: aqui Pedro nos diz profeticamente que “muitos”

183
2 PEDRO

seguirão seus perniciosos ou “lascivos caminhos”. Pergunto:


por que são m uitos os que sempre estão prontos a dar
ouvi- dos a falso ensino? Que foi que levou o hom em ,
durante os últimos cem anos, a acreditar tão prontamente na
teoria apresentada por Charles Darwin como se fosse um
grandioso fato? Por qüe o homem está sempre tão pronto a
ler artigos ou apresentações de sermões nos quais alguém
nega o m iraculoso e o sobrenatural? Por que será que
muitos estão sempre prontos a seguir vários ensinos falsos?
Seguramente só há uma resposta adequada a essas perguntas.
E porque o falso ensino lhes torna mais fácil viver. Isso
porque, se eles puderem livrar-se de Deus, dos milagres
e do sobrenatural, poderão ter a vida que desejam ter, sem serem
condenados por sua consciência. Em certo sentido, é a vida
em seu aspecto moral que clama pelo falso ensino. Há uma
estranha interação entre estas coisas - é o estado de apostasia
do homem que sempre incentiva o falso ensino. Noutras
palavras, o falso ensino serve de alcoviteiro para o homem
caído e distanciado de Deus; e o homem dá as boas-vindas
ao falso ensino porque esse desculpa a vida que ele leva.
Aí vemos, pois, a causa dessa condição; e, a não ser que
estejamos cientes do fato de que é este abandono de Deus
que explica o nosso mundo como ele está hoje, nem sequer
começamos a entender a situação moderna. Pois bem, tendo
visto isso, prossigamos.
Como se pode evitar isso tudo? Aqui Pedro nos dá
instruções detalhadas. O que temos que fazer é compreender o
caráter do falso ensino. Precisamos examiná-lo, esquadrinhá-
-lo, investigá-lo, e é isso que muitos acham difícil. Não é fácil
o homem ser diferente dos outros, não é fácil você manter a
sua posição contra a vasta maioria das pessoas. O homem,
por instinto e por natureza, não gosta de parecer excêntrico. E
muito mais fácil ir com a multidão, amoldar-se a tudo o que é
popular. Mas é justamente contra isso que a Bíblia nos adverte.
Pode ser que tenhamos que ser como Noé, permanecendo sós

184
o Ensino Falso e Suas Consequências

e tendo o mundo inteiro rindo de nós. Talvez tenhamos que


ser como Ló em Sodoma. Talvez tenhamos que resistir como
alguns dos primeiros cristãos tiveram que resistir. Talvez
tenhamos que resistir como alguns dos pais protestantes
tiveram que resistir; pode até ser que tenhamos a Igreja nos
condenando. Não, não é fácil, e, todavia, é justamente isso
que somos exortados a fazer. Não devemos acreditar em tudo
o que ouvimos, temos que examiná-lo por meio da Palavra
de Deus. Temos que ser combatentes e lutar pela fé; não que
nos constituamos em detetives espirituais, mas que nos demos
conta da importância de posicionar-nos em prol da verdade.
Como podemos fazer isso? Como podemos reconhecer o
que é falso? Aqui estão alguns detalhes que preenchem os
princípios já estabelecidos. Eis aqui alguns pontos gerais.
É certo observar que o ensino falso é sempre sutil. Pedro
expressa este ponto assim: “Também houve entre o povo falsos
profetas, como entre vós haverá também falsos doutores, que
introduzirão encobertamente heresias de perdição”. A pala­
vra “encobertamente” é muito importante - é como ele enfatiza
a sutileza do ensino falso. Agora, conforme vamos entrando
nestes detalhes, é importante que tenhamos em mente o que
tem acontecido durante os últimos cem anos. A sutileza do
processo é enfatizada pelo apóstolo. Não esperem, diz ele com
efeito, que os falsos mestres se levantem de repente entre
vocês e digam: “Eu sou um falso mestre e vou dizer algo que
é inteiramente oposto a toda e qualquer coisa que vocês já
ouviram”. Ao contrário - “encobertamente” - de maneira
muito sutil. Vejam, eles dirão, eu sou pregador do evangelho,
sou um de vocês, e lhes vou pregar o evangelho. Eles até
empregarão a linguagem do evangelho, mas lhe darão um
sentido diferente. Foi o que aconteceu durante o século
dezenove. Os homens chamavam Cristo de Salvador, mas com
a palavra Salvador eles queriam dizer “um Grande Exemplo”.
Eles usavam a terminologia do Novo Testamento, mas esva­
ziaram os termos do significado neotestamentário. É aí que

185
2 PEDRO

todo O perigo entra. Os termos continuam sendo empregados,


mas eles deixam confuso o seu sentido dessa maneira insi-
nuante e sutil. O veneno do erro e da heresia é inoculado -
“encobertamente” - fazendo uso da linguagem, mas com um
sentido diferente.
Outra característica deste procedimento, de acordo com
Pedro, é que é irreverente. Referência a isso é feita nos versí­
culos 10 e 11 - “atrevidos”, “obstinados”. Ali ele descreve em
parte a atitude irreverente destes falsos mestres para com a
verdade. Em vez de pregarem a Bíblia como a Palavra de Deus,
com reverência, em vez de a usarem como um Livro único
que, num sentido, o homem só deve pregar com humildade,
em vez de pregarem a Pessoa do Senhor apercebidos da Sua
Deidade única, estes falsos mestres pregam estas coisas sem
espírito de reverência. Eles negam que este Livro é inteira­
mente único, e não hesitam em empregar linguagem humana
a seu respeito. Não hesitam em descartar e expurgar certas
partes dele. Eles falam do nosso Senhor como apenas homem.
Há ausência de reverência, há ausência de uma abordagem
piedosa. Há pouco do respeito e do temor que estas coisas
merecem. “Irreverência”, diz Pedro. E novamente permitam-
-me lembrar-lhes os passados cem anos de história da Alta
Crítica, assim chamada.
Mas não somente isso, o apóstolo nos diz que este tipo de
ensino é desonesto - “Os quais abandonaram o reto caminho,
e se extraviaram”. Estes falsos mestres vão ser desonestos, diz
Pedro; e não estou exagerando quando sugiro que exatamente
esta profecia de Pedro tem sido cumprida frequentemente
durante os últimos cem anos. Houve homens que fizeram os
votos de ordenação nos quais eles disseram que criam que
este Livro é a Palavra de Deus, e a Palavra de Deus única, e
depois passaram a dizer que ele não é a Palavra de Deus. As
vezes eles prom etiam , sob juram ento e voto, que não se
engajariam em certas práticas que tinham sido condenadas
por sua própria igreja, e depois passaram a fazer justamente

186
o Ensino Falso e Suas Consequências

essas coisas. Podería essa conduta ser descrita por alguma


linguagem, senão pela que a qualifica como desonesta?
São essas algumas das características dos falsos profetas
e do falso ensino.
Mas permitam que eu passe a uma questão mais parti­
cular, a uma análise mais detalhada do ensino propriamente
dito. Quais são as características do ensino falso? Bem, de
acordo com Pedro, ele sempre contém uma idéia superficial do
pecado e do mal. Voltando aos versículos 10 e 11, “atrevidos,
obstinados”, eles são, “não receando blasfemar das dignida-
des; enquanto os anjos, sendo maiores em força e poder, não
pronunciam contra eles juízo blasfemo diante do Senhor”.
Bem, que é que significa “blasfemar das dignidades” (VA:
“falar mal das dignidades”)? Não pode haver dúvida de que
ele se refere à m aneira pela qual estes mestres falam dos
poderes malignos, acerca do diabo e das forças do inferno e
do mal. Diz ele que mesmo os anjos não pronunciam contra
eles juízo blasfemo diante do Senhor, mas estas pessoas o
fazem. Não seria espantoso ver com que precisão as Escrituras
profetizaram o que tem acontecido? Vocês têm observado
como os homens têm feito brincadeiras acerca do diabo durante
os últimos cem anos? A Bíblia toma o diabo terrivelmente
a sério, mas o diabo veio a ser uma piada no século recém-
passado. A B íblia leva os m aus espíritos e os poderes
malignos desesperadamente a sério. “Não temos que lutar
contra a carne e o sangue, mas sim contra os principados,
contra as potestades, contra os príncipes das trevas deste século,
contra as hostes espirituais da maldade nos lugares celestiais.”
Mas hoje em dia os homens ridicularizam os poderes e
espíritos maus. O diabo foi posto fora, não passa de uma
pilhéria - “falando mal das dignidades”. Tenhamos cuidado,
amigos, de não permitir que o mundo, em sua irreverência,
nos influencie. Os falsos mestres sempre têm inadequado
conceito sobre o pecado e o mal; na verdade, já faz um século
ou mais que os homens realmente não acreditam em pecado.

187
2 PEDRO

Eles reconhecem certas fraquezas que eles alegam que podem


ser corrigidas pela educação e pela cultura.
Outra característica do falso ensino é que ele é vazio - vejam
os versículos 17-19. “Estes são fontes sem água”; noutras
palavras, o falso ensino não tem luz, não tem conhecimento,
não tem nenhuma real instrução. Não nos dá poder algum, e,
portanto, não tem nenhum efeito sobre a vida. Permitam-me
colocar isto na forma de um desafio. Pensem em todos os
livros escritos no último século criticando a Bíblia. Pensem
na nova teologia, da qual temos ouvido tanto - o novo ensino
que ia corrigir estes antigos mitos e estas meras crenças
mágicas, o novo evangelho que veio para ser um evangelho
social, um evangelho ético, esta maravilhosa nova Alta Crítica
da Bíblia, que veio para abstrair a verdade e para levar a
resultados maravilhosos. Perguntemos simplesmente; a que
isso levou? Que sabemos a respeito da verdade que os nossos
tetravós não conheciam? Quanto melhorou o nosso mundo?
Que é que isso tudo produziu realmente? Bem, é interessante
notar que os mais recentes especialistas em Velho Testamento
agora nos estão dizendo que não devemos mais tomar nosso
tempo todo com crítica; não devemos tentar chegar ao ensino
ético e à mensagem ética do Velho Testamento. As próprias
autoridades agora estão admitindo que a Alta Crítica perdeu
tremendamente o rumo, e que devemos voltar à mensagem
da Bíblia. “Fontes sem água, nuvens levadas pela força do
vento.” Pensem nas fontes em que os homens têm afundado
nos últimos cem anos; examinem nomes como Wellhausen
e outros, e as maravilhas que eles produziram. Eles não têm
levado a nada, senão a uma verdadeira aridez espiritual, e
a duas guerras mundiais, “fontes sem água, nuvens levadas
pela força do vento”. Eles nunca efetuam o que dizem -
“prometendo-lhes liberdade, sendo eles mesmos servos da
corrupção”. Apenas falam “coisas m uito arrogantes de
vaidades”, que não levam a nada, exceto à corrupção e ao
desespero.

188
o Ensino Falso e Suas Consequências

Por isso devemos evitar esse falso ensino - devemos


reconhecê-lo pelo que é e evitá-lo. Por que fazer isso? “Porque”,
diz Pedro, é “condenável” - são “heresias destrutivas”. Elas
contêm elementos de destruição, destroem os mesmos homens
que nelas creem, e levam a ainda maior destruição.
Contudo, talvez, de todas as razões pelas quais devemos
evitar esse ensino, a mais vital seja que ela causa má reputação
à verdade. Por estes falsos mestres, diz Pedro, “será blasfemado
o caminho da verdade” (VA: Por causa dos quais, diz Pedro,
“será mal falado o caminho da verdade”). Ah, infelizmente,
quantas vezes homens que reivindicam o nome de cristãos
solaparam a fé que outros tinham neste Livro! É uma lástima
que muitas vezes é a própria Igreja que tem feito com que os
homens não o aceitem como a Palavra de Deus, mas, em vez
disso, levam-nos a crerem em algo que não passa de mero
ensino social e humano. A verdade tem sido feita objeto de
difamação. A imensa maioria de homens e mulheres está
fora da Igreja atualmente porque, de algum modo, vieram a
ter a ideia de que a própria Igreja não acredita neste Livro
e de que a própria Igreja é insegura quanto ao evangelho.
Por isso eu e vocês devemos ter o cuidado de evitar tal
ensino, tal heresia. Os homens e as mulheres do mundo nos
observam, e, à medida que os tempos se tornem mais sombrios,
eles nos observarão cada vez mais. Certifiquemo-nos de que
conhecemos a verdade na qual cremos, certifiquemo-nos de
que conhecemos Aquele em quem temos crido. Certifiquemo-
-nos da fé, para que, quando eles vierem falar conosco e nos
pedirem um a palavra, sejamos capazes de dizê-la sem
hesitação, com conhecimento da “Palavra de Deus, viva, e
que permanece para sempre”.

189
15
Os Exemplos de Noé e de Ló
“E não perdoou ao mundo antigo, mas guardou a Noé,
pregoeiro da justiça, com mais sete pessoas, ao trazer o
dilúvio sobre o mundo dos ímpios; e condenou à subversão
as cidades de Sodoma e Gomorra, reduzindo-as a cinza, e
pondo-as para exemplo aos que vivessem impiamente; e
livrou 0 justo Ló, enfadado da vida dissoluta dos homens
abomináveis (porque este justo, habitando entre eles, afligia
todos os dias a sua alma justa, pelo que via e ouvia sobre
as suas obras injustas).” - 2 Pedro 2:5-8

As palavras do nosso texto nos compelem a considerar a


situação geral do cristão individual num tempo de decadên­
cia religiosa, para não dizer de apostasia e confusão espiritual.
Esse é o particular tema destes versículos que vamos conside­
rar juntos. Eles são uma espécie de interpolação, ou, se lhes
parece bem, uma digressão dentro do grande tema central que
ocupa a atenção do apóstolo em todo o corpo do capítulo. Este
tema é amplo, e, ao tratar dele, o apóstolo, incidentalmente,
apresenta como exemplos estes dois homens - Noé e Ló - e
por meio deles dá-nos inapreciável instrução quanto ao lugar
e à situação do cristão individual num tempo de pavoroso
declínio religioso, e de balbúrdia e confusão espiritual.
Pois bem, penso eu que não há nada mais importante para
nós atualmente do que considerar esta particular instrução.
Há uma norma que se pode encontrar em toda parte na Bíblia,
do começo ao fim, e que é confirmada pela subsequente his­
tória da Igreja Cristã, no sentido de que, quanto menor é
o núm ero de cristãos, correspondentem ente m aior é a

190
Os Exemplos de Noé e de Ló

importância do cristão individual. Obviamente, isso não requer


demonstração. A importância do indivíduo é um princípio
que foi inculcado durante a Segunda Guerra Mundial e que,
obviamente, é aumentada e exagerada quando o número total
dos indivíduos em foco é pequeno. Portanto, todo homem
conta, e conta tremendamente. E cada vez mais me parece que
essa é uma das primeiras coisas que temos que compreender
na presente hora, confrontados como estamos sendo por uma
situação que, em muitos aspectos, constitui uma reminiscên-
cia daquilo que o apóstolo descreve aqui. Esta exortação aos
primeiros cristãos é tão apropriada e tão pertinente hoje como
o foi então.
Afortunadamente para nós, ele coloca o seu ensino em
termos de uma figura, retratando destes dois homens que
sobressaem tão proem inentem ente na história do mundo
antigo - Noé e Ló. Todos nós conhecemos muito bem a
história desses dois homens. Certamente vocês se lembram de
que Noé viveu naquele terrível período anterior ao Dilúvio.
O relato da decadência moral e espiritual daquele tempo é
feito com frases impressionantes no livro de Gênesis. De tal
modo o mundo tinha dado as costas a Deus que, num sentido,
tinha ido além de toda esperança, e Deus disse: “Não con­
tenderá o meu Espírito para sempre com o homem”. As
condições que nessa época prevaleciam eram pavorosas, mas
naquela sociedade havia este homem, Noé. Bem, é importante
que consideremos juntos como este homem se conduziu e se
comportou, cercado como estava de iniquidade, e como
enfrentou o mal que assumira tal dimensão que finalmente
levou ao juízo pelo Dilúvio.
Depois por certo vocês se lembrarão da história de Ló e
das cidades da planície, Sodoma e Gomorra. Notemos a ternura
e a gentileza das Escrituras quando lemos a história de Ló. No
livro de Gênesis talvez vocês não se sintam muito inclinados
a descrevê-lo como o “justo” Ló, pois foi ele que escolheu ir
para a planície do Jordão, porque era uma região mais

191
2 PEDRO

proveitosa, e, apesar da pecaminosidade das cidades da pla­


nície, escolheu viver ali. Todavia, notem que o apóstolo aqui
fala muito pouco, se é que diz algo, sobre a insensatez que o
levou a fazer isso. O que o apóstolo realmente enfatiza é como
Ló se conduziu naquela atmosfera - “livrou o justo Ló, en­
fadado da vida dissoluta dos homens abomináveis”. Voltem
aos capítulos 18 e 19 de Gênesis e ali vocês verão a narrativa
sobre a sociedade como era naqueles dias - a terrível degra­
dação moral, a torpeza e a feiúra que caracterizavam a vida,
todo aquele afastamento de Deus e dos Seus santos caminhos,
e tudo aquilo a que tal afastamento sempre leva. Lá se via isso
tudo; e nessa sociedade havia este homem, Ló, e sua família; e
o que Pedro anseia que consideremos é como esse homem se
conduziu, como reagiu a esse ambiente, que efeito a situação
teve sobre ele. E esse tema que estamos conside-rando aqui e,
como reivindicamos que nos preocupamos com estas coisas,
torno a sugerir que não há nada de maior importância para
nós do que a apreensão dos princípios aqui enunciados.
São dois princípios principais. A primeira coisa que nos é
dita muito distintamente é que o cristão é sempre severamente
provado por tal tipo de vida. Conforme o apóstolo, não se pode
viver a vida cristã numa [cidade onde os cristãos são uma]
pequena minoria sem passar por tal dura provação. Há mui­
tos motivos para isso. O simples fato da pequenez numérica é
uma dura provação e uma dura prova. Notem as interessantes
palavras com as quais Pedro expõe este ponto: “E não perdoou
ao mundo antigo, mas guardou a Noé, pregoeiro da justiça,
com mais sete pessoas” [VA: “Noé, a oitava pessoa”]. Bem que
significa a expressão, “a oitava pessoa”? Obviamente não
significa que havia só oito pessoas vivendo naquele período
particular, ou oito pessoas desde a criação do mundo. Signi­
fica que Noé era a oitava pessoa no sentido de que foram salvas
do mundo antigo oito pessoas. Vocês verão que Pedro, em sua
Primeira Epístola, no capítulo três, depois de descrever o
Dilúvio, diz exatamente a mesma coisa - “na qual poucas (isto

192
Os Exemplos ãe Noé e de Ló

é, oito) almas se salvaram pela água”. Aqui, portanto, a palavra


“poucas” representa oito, e essa é apenas outra maneira de dizer
que havia somente oito pessoas justas. Notem o contraste -
“Não perdoou ao mundo antigo, mas guardou a Noé, pregoeiro
da justiça, com mais sete pessoas, ao trazer o dilúvio sobre o
mundo dos ímpios”. O mundo inteiro era ímpio, à exceção
destas oito pessoas.
Lembrem-se depois de que a mesma coisa aconteceu
com Sodoma e Gomorra. Vocês lembram do estupendo relato
registrado em Gênesis, de Abraão pleiteando com Deus e
rogando a Ele que poupasse as cidades. Abraão menciona vários
números de pessoas - “Não pouparás o lugar por causa dos
cinquenta justos?” “Pouparei”, disse Deus. Depois de reduzir
o número por etapas, “Se porventura se acharem ali dez?”,
disse Abraão, talvez pensando na família de Ló. “Sim”, disse
Deus, “se houvesse somente dez - sim, até por amor de dez
eu pouparei as cidades”. E vocês se lembram de que, por
fim, as pessoas que foram salvas foram Ló e sua família.
Todos os cidadãos da planície eram ímpios e injustos - as
únicas pessoas que mantiveram seu testemunho e sua firmeza,
as únicas pessoas que estavam procurando viver, neste ou
naquele sentido, uma vida piedosa e justa foram Ló e os
membros da sua família, os componentes da sua casa. Ora,
digo e reitero, isso em si constitui uma duríssima provação. Se
nós tivéssemos vivido a sessenta ou setenta anos, ou até mais
recentemente, o nosso problema seria muito diferente do atual.
Em certo sentido, nesse tempo a religião era popular, e os
homens e as mulheres achavam que era certo irem à casa de
Deus. Não é muito difícil ser religioso numa época como
aquela; mas é muito difícil você achar-se, não somente na
minoria, mas numa pequeníssima minoria. Seja o que for que
você diga a respeito, não é muito fácil para um homem que se
encontra sozinho num dormitório de quartel ajoelhar-se e orar
a Deus. Pode ser que existam alguns teóricos que diriam que
deveria ser fácil fazer isso - bem, se deveria ser fácil ou não.

193
2 PEDRO

não é fácil na prática, e a Bíblia não diz que é fácil. Não é


fácil para uma pessoa, ou para duas ou três, numa escola, ou
num hospital ou nalguma instituição, viver a vida cristã e
ser fiel a Deus, quando a maioria está fazendo coisa diferente.
Mais difícil ainda é para um só membro de uma família
resistir, e resistir sozinho. A pequenez do número significa,
em si e por si, que estamos sendo provados duramente. Há em
nós um instinto que faz com que não gostemos de sobressair
dessa maneira e de ser o sujeito esquisito do grupo. É sempre
muito fácil acompanhar a multidão. Lembrem-se do que disse
o nosso Senhor: “Estreita é a porta, e apertado o caminho que
leva à vida, e poucos há que a encontrem”, e “Larga é a porta,
e espaçoso o caminho que conduz à perdição, e muitos são os
que entram por ela”. Há grande número de pessoas que não
querem ir com a multidão, mas o mero fato de que há uma
multidão as leva embora; elas têm medo de ficar sozinhas.
Isso, no entanto, é claro, não é a única coisa. Também é
tempo de provação por causa da conduta do mundo com relação
aos que permanecem firmes em sua posição, embora num e­
ricamente poucos. Aqui de novo estas histórias do livro de
Gênesis são muito valiosas. Podemos imaginar o sarcasmo, o
riso escarninho, que Noé teve que aguentar e enfrentar; e de
igual modo pode-se ver que Ló e sua família tiveram que
suportar precisamente a mesma coisa nas cidades de Sodoma
e Gomorra. Não há necessidade de desenvolver isto - na
medida em que somos verdadeiros cristãos, somos forçados a
ter a mesma experiência. O mundo não quer saber disso, e
seus meios e métodos de mostrar sua contrariedade são quase
intermináveis - o ridículo, o desprezo, o sarcasmo! Se você
tivesse que ser o único cristão num escritório, ou em seu cír­
culo particular, ou em sua instituição, ou na escola, ou seja
onde for, bastaria você entrar na sala e veria os presentes se
entreolharem . Não dizem nada, mas eles sim plesm ente
olham, e você sente o ridículo, o desprezo, o escárnio. Depois,
às vezes isso toma uma forma bem mais ativa e lhe é feito

194
Os Exemplos de Noé e de Ló

um ataque mais positivo, e você é questionado, desafiado e


interrogado sobre como uma pessoa inteligente pode realmente
crer nesse tipo de coisa atualmente - “Certamente você não
acredita que a Bíblia é a Palavra de Deus inspirada, acredita?”
Rirão de você, se você aceita a narrativa da primeira parte de
Gênesis. Você será considerado um tolo. O m undo está
condenando ativamente este Livro e dizendo que ele já deu o
que tinha que dar e está desacreditado. Digo mais uma vez
que não é fácil enfrentar tal situação. Nenhum homem que
tenha um mínimo de sensibilidade, nenhum homem que tenha
algum grau de intelecto, embora saiba que o que ele crê é a
Verdade, gosta de ser objeto de sarcasmo, escárnio e zombaria
dessa forma. O mundo está fazendo o máximo para atacar os
poucos que ainda resistem por estas coisas de Cristo; e, devido
a esses ataques, digo que a posição do cristão individual torna-
-se extremamente difícil.
Mas eu quero demonstrar que o cristão é provado de
maneira muito mais séria do que toda a provação já demons­
trada. Examinem os versículos que se acham no fim do
capítulo. “Prometendo-lhes liberdade, sendo eles mesmos
servos da corrupção. Porque de quem alguém é vencido, do
tal faz-se também servo. Porquanto se, depois de terem escapado
das corrupções do mundo, pelo conhecimento do Senhor e
Salvador Jesus Cristo, forem outra vez envolvidos nelas e
vencidos, tornou-se-lhes o últim o estado pior do que o
primeiro. Porque melhor lhes fora não conhecerem o caminho
da justiça, do que, conhecendo-o, desviarem-se do santo
mandamento que lhes fora dado; deste modo sobreveio-lhes o
que por um verdadeiro provérbio se diz: o cão voltou ao seu
próprio vômito, e a porca lavada ao espojadouro de lama”.
O ponto que estou enfatizando é a terrível e terrificante
verdade contida nesta declaração. Aqui nos é dito claramente
que nem toda profissão de fé no cristianismo é necessariamente
uma profissão de fé verdadeira. A tese geral de Pedro é, num
sentido, a seguinte: há pessoas na Igreja Cristã que declaram

195
2 PEDRO

que creem no evangelho. Sim, mas um tempo de tribulação


como este vai testá-las, vai peneirá-las. E aqueles que não têm
aquilo que realmente vale, vão dar para trás. Nunca mudaram,
o cão sempre foi cão, a porca, embora lavada, voltará “ao
espojadouro de lama”. A religião pode ter um efeito temporário
sobre nós, o evangelho de Jesus Cristo pode operar tempo­
rariam ente em nós. Assim sendo, a prova sobre se somos
verdadeiramente filhos de Deus é se permanecemos fiéis
apesar da tendência do mundo de ir por ouro caminho. Um
tempo como este é um tempo de provação extraordinaria­
mente dura, rigorosa, e, desafortunadamente, o que o apóstolo
diz aqui está sendo testemunhado por todos os lados. Quando
a religião era popular, o povo se aglomerava nos locais de
culto, e era relativamente fácil ser cristão; mas quando a
maioria lhe dá as costas, aqueles que estão apenas apoiados
num frágil esteio bem depressa o perdem. Aqueles que não
têm realmente em seu ser a raiz da coisa não pode resistir à
perseguição. Eles são como aqueles que são retratados pelo
nosso Senhor na parábola do semeador, os quais receberam a
palavra com alegria, mas, devido não terem raiz ou profun­
didade, no tempo da tribulação ou da perseguição, a semente
que tinha brotado seca-se. Não muitas vezes, e certamente
não por muitos séculos, houve tempo em que a adesão ao
cristianismo e a verdade têm sido provadas tão duramente
como está sendo hoje. Atualmente não é popular ser cristão.
Houve tempo em que ser cristão ajudava a pessoa a encontrar
emprego e a levar avante a sua profissão; mas hoje é quase
um obstáculo. Ser cristão é quase como ser um tipo duvidoso
de pessoa. Não é popular, não há “glamour” nisso - e é dessa
forma que somos provados. O homem que hoje se apega
tenazmente ao evangelho faz isso porque realmente crê nele,
e porque sabe que o evangelho é a Verdade de Deus.
Permitam-me passar ao segundo princípio, o qual é: o
cristão é sempre um homem que resiste, que se destaca, em tal hora.
E isso é, obviamente, o que se destaca grandemente em Noé,

196
Os Exemplos de Noé e de Ló

como tam bém em Ló. Noé e Ló eram hom ens que se


mantinham totalmente separados da tendência predominante
em sua época; e o que é verdade a respeito de Noé e de Ló é,
naturalm ente, verdade a respeito de todos os verdadeiros
cristãos em todos os períodos similares da longa história da
Igreja Cristã. Pensem naqueles irmãos waldenses da Idade
Média, como resistiram! Pensem em como os reformadores
protestantes resistiram ! Pensem em como os puritanos
resistiram, especialmente durante o reinado de Charles II.
Quando vocês lerem sobre aquele rei licencioso no trono, e
sobre como a sociedade seguiu a sua conduta, vejam como os
puritanos se destacaram, em contraste. Pensem nos primeiros
metodistas - chamavam-nos metodistas empregando o termo
ofensivamente; pichavam-nos dessa forma somente porque
eles tinham vida diferente. Sempre foi assim. Os cristãos, em
épocas como esta, sempre se distinguiram como homens e
mulheres diferentes, separados, à parte.
Pois bem, isso não é questão de discussão; é algo abso­
lutam ente inevitável, se realmente cremos que o cristão é
alguém que tem se tornado participante da natureza divina,
se realmente cremos que o cristão nasceu de novo, pela ação
do Espírito de Deus, que é do alto. Se cremos que Deus criou
de novo esta pessoa, ela vai destacar-se; não pode ser como as
que não nasceram de novo e que não receberam a natureza
divina. O que sempre me espanta e me choca é que alguém
que fez profissão de fé em prol do cristianismo fique surpreso
diante disso ou lhe faça objeção. Se há alguém no mundo atual
que, francamente, eu não consigo entender, é o tipo de cristão
que teme ser chamado de mente estreita. Posso entender facil­
mente quem é do mundo e que faz objeção a isso. Não espero
nada melhor dele. Ele não afirma que nasceu de novo, não se
vê como participante da natureza divina. Ele se vê como
homem do mundo. Mas o que eu não consigo entender é
alguém que reivindica tudo o que ser cristão significa e que,
ao mesmo tempo, tem medo de ser bom demais ou santo

197
2 PEDRO

demais.^ Isso é uma contradição em seus próprios termos - é


um pensamento confuso, é na verdade uma confissão muito
significativa. O fato é que o cristão de verdade, devido ao que
ele é, necessariamente se distingue na sociedade; é por isso,
naturalmente, que os cristãos sempre tiveram influência e
causaram efeito sobre o mundo.
Acaso vocês leram a história do grande Tertuliano? Era
um homem capaz e um intelectual. Foi convertido pelo que
viu nos cristãos primitivos - eles não eram como os outros
homens, eram cristãos. Foi isso que o impressionou. Ele viu
que os cristãos, em vez de fazerem o juramento^ que não podiam
levar a sério, e em vez de negarem Cristo, estavam prontos a
ser atirados aos leões na arena. “Observem-nos”, dizia ele, “deve
haver algo nisto, deve haver algo nesta crença, se esta pode
mover um homem a agir dessa forma. Eles estão dispostos a
perder tudo, até a própria vida.” E isso levou à sua conversão.
Não seria uma das maiores tragédias atuais que é quase
impossível dizer quem é cristão? Não seria uma das maiores
tragédias que nós, cristãos, somos tão espantosamente pare­
cidos com os homens que nunca se declararam cristãos -
parecidos com eles na aparência, parecidos com eles nas con­
versas, parecidos com eles nos interesses, parecidos com eles
nas reações aos acontecimentos? Será que distinguimo-nos
como se distinguiam os cristãos primitivos? Distinguimo-nos
como os puritanos se distinguiam? Somos semelhantes aos
irmãos waldenses da Idade Média? Somos semelhantes aos
cristãos primitivos? A tragédia é que a diferença entre nós e o
mundo é quase imperceptível. As vezes a tragédia é maior,
pois alguns até fazem uma tentativa positiva de serem
semelhantes ao mundo. Até dentro da Igreja muitas vezes isto

‘ Às vezes me refiro a isso dizendo: se no rebanho há lobos vestidos de


ovelhas, há também ovelhas vestidas de lobos. Nota do tradutor.
^Juramento de lealdade a César, que comprometería sua lealdade a Cristo.
Nota do editor.

198
Os Exemplos de Noé e de Ló

se evidencia, e há quem pense na Igreja como um lugar pró­


prio para entretenimento cultural e até para outras formas de
entretenimento. A Igreja, na tentativa de tornar-se popular,
organiza representações de dramas e danças, para ser tão
semelhante ao mundo quanto possível, em vez de sobressair
como Ló e Noé. E isso não diz respeito à Igreja somente
nessas questões sociais, mas até em suas reuniões evangelísticas
ela muitas vezes faz a mesma coisa. Ela tenta ficar parecida
com o mundo e dar a impressão de que, apesar de sermos
cristãos, não somos tão diferentes assim. Exatamente da mesma
m aneira vocês veem isso quando descem ao dom ínio da
conduta do cristão individual.
Pois bem, isso é completamente contrário à Bíblia, onde
lemos que o cristão é um homem que se distingue, que se
mantém à parte. Contudo, ele se distingue e se mantém à
parte, não nalgum sentido falso, não no sentido de que ele não
tem nada que ver com o mundo, de que se nega a tomar parte
na política local, ou nacional, ou internacional. Não significa
que ele se torna um monge ou um eremita. Nem Noé nem Ló
eram homens separados dos outros homens nesse sentido. Bem,
que significa ser separado, distinguir-se? Significa que, como
diz Tiago, o cristão é um homem cuja “religião pura e ima­
culada... é esta: visitar os órfãos e as viúvas nas suas tribulações,
e guardar-se da corrupção do mundo”. Não significa sair do
mundo; significa estar nele sem ser dele.
Como funciona? Certamente o ensino é que não devemos
deixar-nos influenciar e afetar pelo mundo, quer em sua mente,
sua perspectiva e sua mentalidade, quer em sua conduta e em
seu comportamento. Notem a significativa palavra que Pedro
emprega. Ele emprega a palavra “envolvidos” (VA: “enreda­
dos”; [cf. ARA e NVI]) - “se, depois de terem escapado das
corrupções do mundo, pelo conhecimento do Senhor e Salvador
Jesus Cristo, forem outra vez enredados...”. Oh, a sutileza disso
tudo! O maior de todos os perigos é sempre o perigo do
compromisso, o perigo de permitir que o mundo nos dite o

199
2 PEDRO

que devemos pensar e o que devemos dizer e fazer. Ora, é contra


isso que temos que lutar. Lembrem-se de como João se expressa
sobre isso em sua Primeira Epístola - “Não ameis o mundo,
nem o que no m undo há”. Que é que há no mundo? “A
concupiscência da carne, a concupiscência dos olhos e a so­
berba da vida”. Isso é o que sempre caracteriza o mundo.
Essas eram as condições dominantes antes do Dilúvio e em
Sodoma e Gomorra, e continua sendo assim atualmente. Essa
é a perspectiva mundana, e jamais devemos permitir que ela
nos contamine. Devemos evitá-la como a própria peste e, longe
de nos deixarmos governar pelo mundo, sua perspectiva e sua
mentalidade, devemos deixar-nos governar unicamente por
nosso amor a Deus, por nosso interesse por Seu reino, e por
nossa relação com o nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo.
A segunda coisa é que devemos inquietar-nos e preocupar-
-nos com o estado em que o mundo se encontra. Pedro o diz
claramente - ele nos diz que mesmo Ló se inquietava, que ele
“afligia todos os dias sua alma justa” e se sentia “enfadado da
vida dissoluta dos homens abomináveis”. Interpretando esses
dizeres, podemos colocá-los nesta forma: primeiramente e
acima de tudo, devemos entristecer-nos pelo estado do mundo;
devemos lamentá-lo; devemos revoltar-nos contra esse estado
de coisas. Isso nos vem como um teste muito pessoal, muito
sim ples e direto. P erm itam -m e expressá-lo com um a
ilustração. Seria certo ou errado o cristão, que recebeu a natureza
divina, divertir-se com as constantes brincadeiras que o mundo
faz acerca da embriaguez, da imoralidade e dos vícios? Segundo
o ensino da Bíblia, devemos afligir-nos com essas coisas,
devemos revoltar-nos; devemos odiar até a roupa manchada
por esses pecados. Digo e reitero que devemos aborrecer-nos e
inquietar-nos com isso. Vou além e sugiro que o ensino deste
Livro é que temos que carregar o peso disso. Não basta condená-
-lo; não basta dizer: “Que coisa terrível é isso!” A reação destes
homens era que eles oravam a respeito. Esses males se tornaram
um fardo para as suas almas em tal medida que eles clamavam

200
Os Exemplos de Noé e de Ló

a Deus; rogavam-lhe que tivesse misericórdia e interferisse.


E assim que o cristão se porta em tal tempo. Essas coisas o
inquietam, o afligem e o angustiam. Poderiamos nós dizer
honestamente que sentimos o peso do estado dos tempos em
que vivemos? Será que essas coisas fazem pressão sobre as
nossas almas, levam-nos a orar a Deus por avivamento e
por despertamento?
E, finalmente, devemos pregar a justiça a um mundo como
esse. Devemos adverti-lo; devemos falar-lhe do juízo que vem
sobre ele por causa do seu pecado; devemos pleitear com os
homens para que vejam o perigo que correm e escapem dele.
E, acima de tudo, devemos dar-lhe exemplo da vida cristã e
do caráter cristão, de lealdade a Deus e à Sua Verdade. E de
fato bem pode ser que sejamos chamados para sofrer. Pode ser
que ainda tenhamos que sofrer por nossa fé neste país, como
os cristãos tiveram que sofrer noutros países. Pode ser que
tenhamos que escolher entre o papa ou algum outro poder
autoritário, e a lealdade a Cristo. Devemos de tal modo capturar
a nossa fé e ser devidamente capturados por ela que, se alguma
vez formos confrontados por essa escolha, alegremente mor­
ramos pelo nome de Cristo, e que consideremos a suprema
honra dar nossas vidas por Aquele que deu Sua vida por nós.
Aí estão, em breves palavras, os princípios aqui ensinados.
E concluo com algumas perguntas: seríamos parecidos com
Noé e Ló? O mundo hoje é espantosamente parecido com o
mundo daquele tempo. E fácil para outras pessoas perceberem
que somos cristãos? Somos diferentes? Distinguimo-nos?
Sendo nós o que somos, somos uma repreensão à sociedade
moderna? Acima de tudo, isso constitui um peso para nós?
Afligimo-nos e anelamos pela honra de Deus e pela glória de
Deus? Afligimo-nos e anelamos pelas almas dos homens que
dessa forma vão se lançando à destruição? Estamos orando e
fazendo o máximo para apressar a vinda de um verdadeiro
avivamento e de um verdadeiro despertamento religioso?
Esse é o desafio que Noé e Ló fazem ao cristão moderno.

201
16
A Soberania de Deus
“Assim, sabe o Senhor livrar da tentação os piedosos, e
reservar os injustos para o dia de ju ízo , para serem
castigados.” - 2 Pedro 2:9

Estas palavras formam a conclusão de um argumento que


começa no início do versículo quatro, onde lemos: “Porque,
se Deus não perdoou aos anjos que pecaram, mas, havendo-os
lançado no inferno, os entregou às cadeias da escuridão, ficando
reservados para o juízo...”. Depois o apóstolo passa a tratar dos
casos do Dilúvio e de Sodoma e Gomorra, e depois disso tudo
declara: “O Senhor sabe livrar da tentação os piedosos, e reservar
os injustos para o dia de juízo, para serem castigados”.
Devemos manter em nossa lembrança que o objetivo que
o apóstolo tem em mente ao escrever esta carta é auxiliar, ani­
mar e confortar os cristãos, que se defrontam com um tempo
de terrível dificuldade e, na verdade, de ameaçadora e crescente
apostasia. O método que ele segue para fazer isso, como temos
visto anteriormente, é típico do ensino bíblico em toda parte.
Primeiramente ele os adverte dos falsos profetas e dos falsos
mestres. Depois, como já vimos em nosso estudo anterior, ele
dá sequência a essa palavra de advertência com uma palavra
de exortação pessoal aos cristãos que se acham nessa situação.
Eles precisam, não somente ser advertidos contra os perigos
que ameaçam de fora, mas também lembrar-se do que eles
próprios tinham que fazer. Vimos ali que ele nos chama para o
tipo e espécie de vida que tiveram Noé, antes do Dilúvio, e
Ló, antes da destruição de Sodoma e Gomorra. Ora, essa tarefa

202
A Soberania de Deus

é difícil, e, por isso, o apóstolo, depois dessa exortação pes­


soal, seguindo um método que é invariável na Bíblia, passa
a proferir uma palavra de encorajamento, uma palavra de
consolação, uma palavra de alegre alento, uma palavra plane­
jada para estimular-nos a realizar esta grande tarefa para a
qual somos chamados. E neste versículo nove temos a essência
mesma desse consolo e encorajamento.
Pois bem, não pode haver nenhuma dúvida de que, para
os cristãos confrontados, como estes cristãos primitivos esta­
vam sendo, por esses problemas, dificuldades e tribulações, o
maior perigo sempre é o de ceder a um senso de desespero
devido a um sentimento de completa futilidade e desesperança.
Esse é talvez o maior de todos os perigos que nos afligem na
presente hora, vivendo como vivemos no mundo moderno,
o qual é muito similar àquele no qual os cristãos primitivos
viviam. Vê-se que o poder do mal é muito grande. Somos um
pequeno grupo, e visivelmente diminuindo sem parar ano
após ano. O poder do mal parece muito grande, altamente
organizado, profundamente entrincheirado na vida. Vê-se
que o mundo todo está, não somente contra o que cremos, mas
também contra Deus, na perspectiva e na prática. Tomamos
consciência disso quando andamos pelas ruas das nossas
cidades; mas também o vemos nos vilarejos e cidades do
interior. Há este abandono de Deus e da religião, não somente
na prática, mas também na teoria e na idéia - a blasfêmia e o
repúdio de Deus. Depois, nos livros e nos artigos, nos jornais
e nos periódicos, vê-se que a perspectiva geral é contra as
coisas de Deus. Portanto, o perigo é que muitos, vendo tudo
isso, são tentados a dar livre curso a um sentimento de total
desânimo e a um sentimento de completa desesperança. Ora,
esse é justamente o perigo do qual o apóstolo está procurando
dar proteção. Vendo a grande maioria visível e crescente­
mente contra Deus, muitas pessoas são tentadas a dar ouvidos
a falsos mestres e a segui-los em seus perniciosos caminhos.
Como poderiamos livrar-nos de extraviar-nos dessa forma?

203
2 PEDRO

Que ânimo poderiamos ter para continuar a lutar pela causa


de Deus e da verdade, faça o mundo o que fizer e mesmo que
venhamos a ser apenas um punhado, como o que havia antes
do Dilúvio e antes do juízo de condenação que sobreveio a
Sodoma e Gomorra? Que será que pode incentivar-nos a
continuar nessa posição, venha o que vier? E exatamente isso
que 0 apóstolo nos oferece neste versículo nove.
Qual é a mensagem dele? Antes de tudo assinalemos o
que ele não diz. Observemos que ele não diz que tudo vai
estar bem. Pedro não diz a estas pessoas que basta aguentarem
um pouco mais, porque as circunstâncias logo vão mudar e
elas não terão mais problemas para enfrentar. Ele não diz isso
- não devemos cansar-nos nunca de repeti-lo. A Bíblia não
oferece um mundo maravilhoso logo ao dobrar a esquina.
A Bíblia jamais condescende em um otimismo fácil e leviano;
ela não nos ajuda dizendo que os nossos problemas são apenas
temporários e que logo todo este mal e todo este pecado vão
ser removidos e banidos. Essa ideia é, na verdade, justamente
o oposto do que a Bíblia diz. Esse é o falso idealismo, o falso
otimismo e o falso humanismo que sempre foram tão popu­
lares durante o século recém-passado; e, chamem isso sorte ou
falta de sorte, eu e vocês tivemos que viver numa época em
que vemos esse falso e leviano otimismo arrancado comple­
tamente da terra e exposto em toda a sua superficialidade.
Pedro não diz que as coisas vão estar bem e que as circuns­
tâncias vão mudar logo, logo.
Tampouco diz o apóstolo a estas pessoas que o que elas
têm que fazer é sair para pregar e dizer ao mundo que, ou é
“Cristo ou o caos”. Deliberadamente coloco o caso nestes
termos porque essa é a frase que se ouve frequentemente no
presente. Recentemente me pediram que falasse numa reu­
nião, e esse foi o assunto que um bom amigo me sugeriu para
a minha palestra. Perguntei-lhe sobre que assunto ele queria
que eu falasse, e ele disse: “Bem, eu penso que o que há de
importante para dizer ao mundo atualmente é que, ou Cristo

204
A Soberania ãe Deus

OU 0 caos”. Há muitas variações disso - “rebelião ou revelação”


- vocês as conhecem bem. Pois eu digo que o apóstolo tam­
pouco diz isso. Ele não diz a estas pessoas que, se o mundo
não for convertido a Cristo, tudo vai terminar num caos - não
é essa a sua mensagem.
Como, então, ele consola, fortalece e encoraja estas pes­
soas? Para eolocar a resposta num a frase, o apóstolo lhes
apresenta a doutrina da soberania de Deus, que ele desenvolve
partindo de três diferentes pontos de vista. E agora me vejo
constrangido a assinalar novamente que esta é a essência mesma
do método bíblico. A Bíblia sempre nos conforta e nos anima
por meio da doutrina - nunca à parte da doutrina. Vejam aquele
grandioso eapítulo oito da Epístola aos Romanos. E uma das
passagens mais teológicas, mais doutrinárias, da Bíblia toda;
e, todavia, não há nada que seja mais reconfortante, mais
consolador e mais animador. Eis o argumento: “Aos que
predestinou a estes também chamou; e aos que chamou a estes
tam bém justificou; e aos que justificou a estes também
glorificou”. Doutrina! E sem essa doutrina a Bíblia não teria
nenhum conforto e consolação para nos oferecer. Pois bem, na
passagem que estamos estudando consta a grande doutrina
da soberania de Deus, que o apóstolo desenvolve ao longo
de três linhas diferentes.
A primeira é lembrar-nos o poder de Deus. Ouçam. Aí está
o mundo todo, por assim dizer, indo contra Deus e contra a
religião - que dizer a respeito? Eis a resposta - “Sabe o Senhor”,
ou, se vocês preferirem, “O Senhor pode, o Senhor tem o
poder...”. Esse é o primeiro ponto, como sempre o é na Bíblia.
E é sempre por onde devemos começar. Este é o primeiro e o
absoluto. O Senhor é o Todo-poderoso. Ora, essa é a razão pela
qual eu reprovo tão fortemente a tendência atual de falar
sobre “Cristo ou o caos”. Essa frase sugere que há alguma
possibilidade de Deus ser derrotado, que Cristo pode ser der­
rotado, o que é uma completa negação da grande e central
doutrina da Bíblia, do começo ao fim. Se vocês quiserem fazer

205
2 PEDRO

USO de uma frase que inclua “Cristo” e “caos”, sugiro outra


melhor. Em vez de falarmos sobre “Cristo ou o caos”, devemos
falar sobre “O caos e Cristo”. Se o mundo se reduzir ao mais
completo caos. Deus ainda estará acima dele e continuará sendo
maior que ele, e desse caos Ele poderá fazer sobressair o Seu
propósito. Jamais devemos colocar Cristo e o caos como pos­
síveis alternativas. Sempre devemos começar lembrando-nos
do poder á^Deus. A despeito do caos, Deus permanece - seja o
que for que os homens façam ou deixem de fazer, seja o que
for que eles façam com a terra, seja o que for que eles produzam
no mundo, o Senhor ainda reina. E em nenhum sentido o Seu
poder pode ser afetado, nem na mínima extensão. “Ah, muito
bem”, alguém dirá, “isso está certo como uma declaração teó­
rica ou abstrata, mas não me parece funcionar na prática,
porque, se Deus fosse tão poderoso como você está dizendo,
por que o mundo está como está? Observe o poder do mal,
observe o que está acontecendo no mundo ao seu redor; você
pode continuar dizendo que Deus é todo-poderoso, que Deus
está em Seu trono, que Deus controla tudo, quando o mundo
está como está?” Pois bem, parece-me que este capítulo que
estamos considerando juntos dá-nos realmente a resposta a
essa questão, pois ele trata, de maneira indireta, de tudo o
que se relaciona com o problema do mal.
Que é que este capítulo ensina com respeito ao problema
do mal? Em primeiro lugar ensina que, obviamente. Deus
permite o mal. Isso é um grande mistério e, todavia, é ensinado
na Bíblia. Deus, em Sua sabedoria e em Seu conselho
inescrutável, decidiu perm itir o mal. Se Deus não tivesse dado
essa permissão, o mal nunca teria vindo à existência. Agora,
não adianta perguntar por que Deus fez isso, por que um Deus
santo e todo-poderoso achou por bem permitir o mal. Sim­
plesmente não sabemos, e não faz parte da posição cristã dizer
que entendem os a m ente de Deus exaustivamente. Não
sabemos - o problema do mal continua sendo um mistério,
mas aí está! Não entendemos a origem do mal, mas sabemos

206
A Soberania de Deus

que ele veio a existir e que só pode ser que Deus o permitiu.
Por que o diabo caiu originariamente? Que foi que levou
Lúcifer, aquela estrela da manhã, levantar-se contra Deus e
rebelar-se contra Ele? Não entendemos, mas o fato é que tal
fato foi permitido. De igual modo, foi permitido que os anjos,
aos quais Pedro se refere, seguissem Lúcifer. O santo, o grande
Deus, por Seus próprios propósitos, perm itiu que o mal
adentrasse o mundo perfeito que Ele próprio tinha criado. Esta
é a primeira proposição. Deus permite o mal.
O segundo passo do argumento, igualmente claro, é que
Deus, tendo permitido o mal, não lhe dá livre escopo. Ele o
mantém dentro de restrições e limites. Pois bem, em certo
sentido é esse o grande argumento do livro de Jó. Certamente
vocês se lembram de que satanás apareceu diante de Deus e
fez certas observações a respeito de Jó, e que Deus lhe deu
permissão para provar Jó. Mas o tempo todo manteve o
controle, e satanás não teve permissão para ir além, de certo
ponto. Não somente isso. Por que existem estados, governos,
magistrados e todos os demais poderes? A resposta da Bíblia
é que “as potestades que há” são todas ordenadas por Deus e
que são destinadas a pôr um limite aos efeitos e resultados do
mal. Se esses poderes não tivessem vindo à existência, de há
muito 0 mundo inteiro se teria lançado à destruição. Mas
Deus, tendo permitido o mal, põe-lhe um limite e o mantém
dentro dos termos por Ele demarcados, e o m antém sob
vigilância.
Outro modo de ver este princípio operando é no fato dos
avivamentos. Vocês já observaram o caráter da historia da
Igreja? A Igreja começa com um grande derramamento do
Espírito. Gradativamente esse tempo passa e a religião vai
ficando aparentemente morta, e o mundo em geral fica sem
Deus e sem religião. Então Deus aviva a Sua obra, e o resultado
do avivamento é que o mal é contido e posto sob controle. Os
países que experimentaram avivamento melhoraram; o povo,
em geral, passou a ter vida melhor, o padrão de moralidade

207
2 PEDRO

foi elevado e foram realizadas algumas reformas. Depois


de um tempo, isso também passa, e o país volta a um estado
de impiedade e de irreligiosidade, e fica parecendo que tudo
cam inha para a destruição. E ntão D eus envia outro
avivamento. Sugiro, pois, que os avivamentos e a história dos
avivamentos são, em si mesmos, uma clara prova de que
Deus controla o mal e o mantém dentro de limites muito
definidos.
Pode ser, porém, que a maneira mais clara pela qual eu
posso provar esta tese seja lembrar a vocês o grande tema de
Pedro neste capítulo, a saber, que há períodos de juízo espe­
cial na história da humanidade. Tomemos, por exemplo, a
história do Dilúvio. É um fato: o mundo foi criado perfeito,
depois o hom em pecou, e gradativam ente o pecado se
desenvolveu e se espalhou até chegar a um estado quase
indescritível. Diz-nos a Bíblia que “toda a imaginação dos
pensamentos de seu coração (do homem) era só má con­
tinuamente”. Parecia que o mal estava completamente fora
de todos os limites, e então Deus disse: “Não contenderá o
meu Espírito para sempre com o hom em ”. O mal tinha
chegado a tal ponto que Deus decidiu derramar Sua ira em
juízo sobre ele; e condenou o mundo e lhe deu cabo, só
deixando a salvo aquela única fam ília de Noé. Então o
mundo começou de novo, e pouco tempo depois os homens se
tornaram irreligiosos, e vocês veem essa realidade concentrada
no caso de Sodoma e Gomorra. Essas cidades se tornaram
tão sórdidas que Deus, por assim dizer, decidiu mais uma vez,
em Seu inescrutável conselho, que o que era necessário não
era um avivamento. Cabia-lhe julgar, punir e destruir, e foi
o que fez.
Observem depois os filhos de Israel em sua longa história.
Apesar da sua rebelião e do seu pecado. Deus lhes enviou Seus
mensageiros e levantou Seus profetas. Os profetas lhes diri­
giam apelos; às vezes eles davam ouvidos e havia uma reforma
temporária, e as coisas ficavam um pouco melhor; mas aos

208
A Soberania de Deus

poucos o povo voltava atraz outra vez, continuava em pecado,


e depois as coisas se tornaram tão ruins que Deus o tratou
com juízo de condenação. Levantou o exército dos caldeus que
destruiu a cidade de Jerusalém, despedaçou o templo e levou
cativo o povo. O juízo de Deus pôs fim àquele período de
pecado. E tem continuado assim desde aquele tempo.
Q uando vocês exam inarem a história da era cristã,
observarão o mesmo fenômeno. Houve tempo em que existiu
uma poderosa Igreja Cristã no norte da África, mas hoje não
existe mais. Houve casos, dentro da cristandade, em que as
igrejas caíram num tal estado de apostasia que Deus, digamos,
tomou a decisão de que não poderiam ser revividas, e Ele as
julgou e as destruiu. Desapareceram da existência. Tudo isso é
apenas uma prova de que Deus estabelece um limite muito
definido para o mal e de que exerce controle sobre o mal. Isso
também, naturalmente, é um grande e profundo mistério. Não
o entendemos, mas o fato de que é isso que acontece está
além de toda dúvida. Deus parece perm itir que o mal se
desenvolva e se expanda até certo ponto, até parecer que este
se tornou supremo e todo-poderoso; e então, nesse ponto. Deus
age, interfere e mostra que Ele está por cima e acima disso
tudo e que Ele exerce o Seu controle por meio de juízo. Por
isso enfatizamos mais uma vez que o caos nunca pode ser
mais poderoso que Deus. Em certo sentido. Deus nunca
m anifesta tanto o Seu poder como quando intervém em
condições completamente caóticas. Essa é, pois, a primeira
manifestação da soberania de Deus, o poder de Deus.
Em segundo lugar, a soberania de Deus manifesta-se em
termos de retidão e de justiça. Esta também é uma questão
muito importante, porque são muitos os que têm dificuldade
neste ponto. E uma dificuldade muito antiga, e vocês a verão
exposta perfeitamente no Salmo setenta e três, onde o salmista,
olhando para os ímpios em sua prosperidade, pergunta: seria
Deus justo? “Na verdade que em vão tenho purificado o meu
coração.” Tenho vivido virtuosamente, mas o que se vê é que

209
2 PEDRO

estes ímpios florescem, enquanto que eu sofro. Estaria certo


isso? Pois bem, Pedro dá ênfase à retidão e à justiça de Deus
e declara que estas são tão absolutas como o poder de Deus.
Esta verdade também é exposta em toda parte na Bíblia. Aqui
está o princípio: nada é mais certo do que o fato de que Deus
pune o pecado, o mal e a injustiça. Permitam-me lembrar-
-Ihes como Ele o faz - vê-se tudo isso neste capítulo.
Parte da punição do pecado vem im ediatam ente. O
sentim ento de culpa e de vergonha nada mais é que uma
parte da punição do pecado. Você não pode pecar sem se sen­
tir infeliz e miserável - isso faz parte da punição imediata.
Geralmente o pecado traz também consigo um sentimento de
repulsão. Em geral o homem odeia o mal que acabou de
praticar. Isso faz parte do sentimento de remorso. O pecado
sempre leva também a confusão, discórdia, infelicidade e vi-
leza. Voltem ao livro de Gênesis e leiam a narrativa descritiva
da sociedade anterior ao Dilúvio. Que balbúrdia terrível, que
condição infeliz! Observem o povo de Sodoma e Gomorra,
com todo o aparente encanto e fascínio da vida daquelas cidades
que tinham atraído tanta gente do interior, e, todavia, vejam
como a vida que ali havia era bestial, feia e sórdida. E observem
os tempos em que nós estamos vivendo. O mundo ri-se da
religião, zomba do cristianismo, diz que passamos muito
bem sem ele. Mas os jornais não parecem sugerir isso.
Observem as separações e os divórcios, observem os assassi­
natos, observem a tensão que se nota no semblante das pessoas.
Não é uma vida feliz; é uma vida miserável. O mundo se acha
em sua presente condição caótica simplesmente porque isso
constitui uma parte essencial da punição do pecado. Talvez a
melhor exposição sobre este assunto seja a que se encontra
na segunda metade do capítulo prim eiro da Epístola aos
Romanos, onde somos informados de que Deus “os entregou
a uma disposição mental reprovável”. O resultado foi toda a
sordidez e sujeira que caracterizava a vida dos homens e das
mulheres quando da primeira vinda de Jesus Cristo a este

210
A Soberania de Deus

mundo. A Bíblia sempre nos lembra isso - “O caminho dos


prevaricadores é áspero” (VA: “O caminho dos transgressores
é difícil”). Ponha o dedo no fogo, e sofrerá queimadura. O
filho pródigo é talvez a ilustração mais saliente disso. Que
vida maravilhosa parecia, por algum tempo; mas isto sempre
leva aos porcos e às bolotas, à miséria e à vileza. O pecado é
punido imediatamente por Deus.
Todavia, a ação de Deus não pára aí. Notem que Pedro, ao
falar das heresias, descreve-as como “heresias destruidoras”
(versículo primeiro), e declara que aqueles que se deixam levar
por elas acabam “trazendo sobre si mesmos repentina
destruição”. A punição do pecado é sempre continuada. E
continua, segundo Pedro, não somente nesta vida mas tam­
bém na próxima. É isso que ele diz em nosso texto (dou-lhes a
Versão Revisada [inglesa], não a Autorizada) “O Senhor sabe
libertar os piedosos da tentação, e m anter os injustos sob
punição com vistas ao dia do juízo”. Acaso notaram que as
mesmas palavras se acham no versículo quatro: “Se Deus não
poupou aos anjos que pecaram, mas os lançou no inferno, e os
entregou às cadeias das trevas, a fim de reservá-los para o juízo”?
Ora, esse é o ensino bíblico. O homem é punido por seus
pecados no momento em que peca, e é punido enquanto
continua vivendo neste mundo. E então, que acontece depois
que ele morre? Bem, depois da morte os injustos e os ímpios
serão reservados num estado de punição até o dia do juízo
final. Só pensar nisso já é terrível e terrificante, e, contudo, eu
sugiro que, se vocês negarem essa doutrina, estarão negando a
totalidade da Bíblia, do começo ao fim. E isso que faz esta
nossa vida algo tão sério; é isso que faz do trabalho de prega­
ção uma questão desesperadamente séria. E por isso que, em
muitos aspectos, a evangelização leviana e petulante é, para
mim, uma negação do evangelho do Novo Testamento. Se
alguém partir desta vida e deste mundo na condição de ímpio,
vai para “as cadeias das trevas” e é reservado em punição para
o Juízo Final. Noutras palavras, o passo final da punição do

211
2 PEDRO

pecado imposta por Deus é o Dia do Juízo - os ímpios ficam


reservados em punição até o Dia do Juízo. Ali, não preciso
lembrar-lhes novamente, é algo que percorre a Bíblia de capa
a capa. Ali haverá um julgamento final do mundo, e não
somente um julgamento final do mundo, mas um julgamento
final de todos os seres criados, em toda parte - anjos, princi­
pados, potestades, o pecado, o mal, o inferno, tudo. “Do céu se
manifesta a ira de Deus sobre toda a impiedade e injustiça dos
homens.” O Senhor sabe como fazer isso, diz Pedro. Não se
deixem apavorar pelo poder do mal; não se deixem apavorar
pelo diabo e suas coortes e todas as suas legiões; não se
deixem apavorar pelo que veem ao redor de vocês - “O Senhor
sabe reservar os injustos para o Dia do Juízo para serem
punidos”.
Contudo, o nosso terceiro e último princípio que ilustra
a doutrina da soberania de Deus é o amor de Deus. Graças a
Deus por isso. A soberania de Deus manifesta-se no poder
que lhe é próprio, em sua retidão e justiça, sim, mas também
se manifesta no amor de Deus. E isso é certo quanto aos dois
princípios anteriores. Assim como Deus tem poder para lidar
com o pecado, e assim como Deus tem retidão e justiça para
lidar com o mesmo, assim também Ele, com Seu amor, lida
com os que Lhe pertencem, apesar do pecado deles. “O Senhor
sabe livrar os piedosos das tentações” (VA). Esta é uma das
doutrinas mais reconfortantes e mais consoladoras das que
se acham na Bíblia. Como Deus faz isso? Bem, permitam-me
assinalar de novo que Ele não o faz no sentido de prometer-
-nos que ficaremos livres de todos os problemas, sofrimentos,
provações e tribulações. A Bíblia não promete isso. Há muitos
que parecem pensar que é isso que a Bíblia diz, e, devido a
eles terem problemas, dão as costas a Deus e seguem os falsos
profetas. Mas isso não é prometido. Não nos é dito que Noé
e Ló não sofreram nada. Eles sofreram muito. Na verdade, a
Bíblia nos diz que pode ser que tenhamos que sofrer a morte
por amor de Cristo. Não nos é dito que seremos colocados

212
A Soberania de Deus

numa redoma onde nada nos poderá tocar - não é essa a


promessa. Qual será ela então? A promessa é que Deus nunca
permitirá que o pecado e o mal nos causem dano, em nenhum
sentido vital. Uma vez o nosso Senhor o disse da seguinte
maneira: “Não temais os que matam o corpo, e não podem
matar a alma; temei antes aquele que pode fazer perecer no
inferno a alma e o corpo”. Bem, o mundo pode fazer algumas
coisas conosco, mas nunca lhe será permitido causar-nos dano
em nenhum sentido vital. O Senhor sabe livrar-nos disso tudo.
Como Ele faz isso? Ele o faz livrando-nos do poder e do efeito
corruptor do pecado e do mal. Também o faz habilitando-nos
a alegrar-nos mesmo no meio do mal e da tribulação. Na
verdade Ele nos capacita a sermos “mais do que vencedores”.
Dessa forma sucede que podemos transformar estas coisas
que são contra nós em vitórias, e elas só se prestarão para nos
reconfortar e nos fortalecer.
Eis, porém, a final e suprema promessa: Deus sabe livrar-
-nos do juízo final e da destruição final, que sobrevirão ao
pecado, ao mal e a tudo o que é injusto e mau. Essa é a grande
mensagem deste capítulo. O Dilúvio, o destino de Sodoma
e Gomorra, são apenas uma indicação preliminar do juízo
final, e no juízo, finalmente, tudo e todos os que se opõem a
Deus serão entregues à destruição perene e eterna. Ora, a
promessa feita aqui é que Deus salvará os piedosos disso
tudo. Não seremos envolvidos e esmagados nessa última
destruição. Ele sabe livrar-nos dela. Noutras palavras, para
resumir o ensino do capítulo, podemos dizer o seguinte: há
sempre duas espécies de gente neste mundo, e sempre houve
só duas espécies de gente - os justos e os injustos - os parecidos
com Ló e Noé, os que pertencem a Deus, e os que são contra
Deus. O destino destes dois grupos de pessoas já foi fixado e
determ inado. Se somos piedosos, seremos libertados da
destruição final; se somos ímpios, estaremos envolvidos nela.
As pessoas podem dizer que não gostam desta doutrina. Na
verdade, hoje muitos gostam de dizer algo como o seguinte:

213
2 PEDRO

“Está tudo bem, não precisa pensar que nos vai amedrontar.
Temos conhecimento demais, hoje em dia, para acreditar
nesse tipo de coisa. Há cinquenta anos você teria conseguido
assustar-nos falando desse modo”. Não estou interessado em
assustar ninguém, mas estou aqui para pregar e anunciar a
Verdade. E eu gostaria de fazer uma pergunta simples: que
conhecimento temos nós que os nossos pais ignoravam e que
de algum modo invalida esta doutrina? Poderia alguém
desaprovar este ensino que é o solene pronunciamento da
Bíblia, do princípio ao fim? Os piedosos vão ser libertados
do juízo, os ímpios vão ser esmagados por ele. A separação
destes dois grupos é clara de Gênesis ao Apocalipse.
Portanto, a única coisa que importa é que nos certi­
fiquemos de que estamos entre os piedosos. Quais são as marcas
dos piedosos? São sim plesm ente estas: temos que crer e
confessar o Senhor que nos adquiriu. Temos que ser exata­
mente 0 oposto daquilo que nos é dito neste capítulo sobre
estes falsos mestres e sobre estes falsos profetas - eles negavam
o Senhor que os adquiriu. Temos que crer nEle, temos que
confessá-10, temos que reconhecer que à parte dEle estamos
perdidos e sem nenhuma esperança, e temos que nos apoiar
inteiramente no Senhor Jesus Cristo.
A segunda marca dos piedosos é que eles conseguem
enxergar que o mundo está sob juízo. Conseguem ver que a
mente do mundo é oposto a Deus, que o mundo está em
inimizade contra Deus. Por isso, obviamente, eles se mantêm
separados do mundo: recusam ser governados e controlados
por ele; recusam viver a sua espécie de vida. Noutras pala­
vras, eles vivem para a glória de Deus, sua suprema ambição
é agradar a Deus e exaltar Seu grande e santo nome, falar aos
outros sobre Ele e fazer o máximo para trazer estes outros a
Ele. O Senhor, com todo o Seu onipotente poder, sabe livrar
os piedosos de todas as tentações. Por mais duros e difíceis que
sejam os tempos, por mais atribulada que seja a sua situação
no particular lugar em que você se encontra, permaneça firme.

214
A Soberania ãe Deus

meu amigo. Lembre-se do poder de Deus, lembre-se da retidão


e da justiça de Deus; acima de tudo, lembre-se deste mara­
vilhoso amor de Deus. Ele nunca permitirá que você sofra
além de certo ponto. “Fiel é Deus, que não deixará que vocês
sejam tentados acima do que podem suportar, antes com a
tentação dará também o escape, para que a possam suportar.”
E Ele o livrará da destruição que certam ente esmagará
todos os que se Lhe opõem.

215
17
A Importância Vital da História
Bíblica
“Am ados, escrevo-vos agora esta segunda carta, em
ambas as quais desperto com exortação o vosso ânimo
sincero; pa ra que vos lembreis das p a la v ra s que
primeiramente foram ditas pelos santos profetas, e do
mandamento do Senhor e Salvador, mediante os vossos
apóstolos. Sabendo primeiro isto: que nos últimos dias
virão escarnecedores, andando segundo as suas próprias
concupiscências, e dizendo: onde está a promessa da sua
vinda? Porque desde que os pais dormiram todas as coisas
permanecem como desde o princípio da criação. Eles
voluntariamente ignoram isto: que pela palavra de Deus
já desde a antiguidade existiram os céus, e a terra, que
foi tirada da água e no meio da água subsiste. Pelas
quais coisas pereceu o mundo de então, coberto com as
águas do dilúvio. Mas os céus e terra que agora existem,
pela mesma p a la vra se reservam como tesouro, e se
guardam para o fogo, até o dia do juízo, e da perdição
dos homens ímpios.” - 2 Pedro 3:1-7

Devemos agora considerar o argumento contido nos sete


primeiros versículos deste capítulo três da Segunda Epístola
de Pedro. Devemos tomar os sete versículos juntos, porque
eles formam um argumento inteiro e completo.
A sequência que se vê no argum ento elaborado pelo
apóstolo nesta carta é mais ou menos assim: lembrem-se de
que ele introduziu o assunto geral da Segunda Vinda do nosso
Senhor e do Juízo Final no versículo dezesseis do capítulo

216
A Importância Vital da História Bíblica

primeiro. A seguir, no capítulo dois, ele nos esteve lembrando


a certeza da punição final imposta aos malfeitores e do resgate
dos piedosos, e esteve considerando a posição e a atitude dos
falsos mestres, que se opunham a essa doutrina. Depois, tendo
exortado os cristãos a se sobreporem aos tempos e a se porta­
rem como os cristãos devem portar-se num tempo como esse,
de apostasia e pecado, ele lhes deu a palavra de conforto e
consolação que consideramos no capítulo anterior - “Sabe o
Senhor livrar da tentação os piedosos, e reservar os injustos
para o dia de juízo, para serem castigados”.
Mas então, nesse ponto, ele parece imaginar, e na verdade
não só imaginar, mas ele também definidamente prediz e
profetiza que surgirão certas pessoas que farão esta pergunta:
“Onde está a promessa da sua vinda?” “Está muito bem fazer
um anúncio desse teor”, dizem tais pessoas; “está muito bem
nos exortar a sofrermos como cristãos” - pois muitos daqueles
cristãos primitivos foram perseguidos, foram provados muito
duramente - “está muito bem exortar-nos a permanecer fir­
mes e a perseverar. Mas, sobre que bases devemos fazê-lo?
Tudo bem quanto aos cristãos primitivos”, eles diriam; quando
você pregou essa doutrina a eles você lhes disse que o Senhor
ia voltar, mas agora, todo esse tempo passou, e não aconteceu
nada. “Desde que os pais dorm iram todas as coisas per­
manecem como desde o princípio da criação. “Com que
objetivo”, dizem eles, “há em pedir-nos que resistamos,
perseveremos e prossigamos, quando todos os sinais e todas
as aparências são completamente opostos àquilo que você
está pregando?” E desse argumento que o apóstolo passa a tratar,
e nunca, talvez, houve tempo em que era preciso considerar
este argumento mais do que na presente hora. Aqui se trata
da causa contra aqueles que são descritos como escarnecedo-
res, ou, se vocês preferirem, como zombadores - pessoas que
ridicularizam o evangelho e suas promessas, e especialmente
tudo o que o evangelho tem para nos ensinar quanto à
finalização da vida neste mundo. Naturalmente, a situação atual

217
2 PEDRO

não somente é similar à que prevalecia no tempo em que o


apóstolo escreveu estas palavras; há um sentido em que é ainda
mais acentuada. Todas as aparências mostram-se contra o que
é ensinado aqui, na Bíblia, e toda essa oposição é reforçada
grandemente por vários ensinos científicos, assim chamados,
os quais parecem ir francamente contra o ensino das Escrituras
do Novo Testamento.
Ora, que é que o apóstolo tem para dizer diante disso tudo?
Perm itam -m e resum ir as suas declarações. Sua prim eira
declaração é que toda esta questão é fu ndam en tal e finalm ente
um a questão de f é e um a questão de aceitação do ensino das
Escrituras. Diz-nos o evangelho que haverá um fim definitivo
deste mundo, e Pedro continua e nos diz como esse fim deve
acontecer. Ele nos diz que a história mundial está avançando
rumo a um grande clímax e ao Juízo Final. Essa é, talvez,
uma das coisas mais difíceis que se requer que creiamos. E
grande o número de pessoas que estão muito prontas a aceitar
o evangelho em geral, quanto à sua doutrina do perdão, e
quanto à sua doutrina da expiação; há muitos que estão
dispostos a aceitar a doutrina da cruz; mas eles acham par­
ticularm ente difícil toda esta ideia da Segunda Vinda do
nosso Senhor, ou do retorno do nosso Senhor para juízo, para
a destruição do mundo, e para novos céus e nova terra. Eles
a acham estranhamente incrível. Tudo, dizem eles, parece
estar contra isso. Para a mente natural é muito difícil aceitar
esse ensino.
A resposta que Pedro lhes dá é que, em última análise,
não é questão de razão, não é questão de argumento. Ele baseia
sua causa p rim ariam ente nas E scrituras propriam ente
ditas. “Amados, escrevo-vos agora esta segunda carta, em
ambas as quais desperto com exortação o vosso ânimo sincero;
para que vos lem breis das palavras que prim eiram ente
foram ditas pelos santos profetas” (quer dizer, os profetas
do Velho Testamento). Noutras palavras, nesta carta, como na
verdade em todos os pontos centrais da fé cristã, ou aceitamos

218
A Importância Vital da História Bíblica

a revelação ou não; e a própria Bíblia nos diz que a revelação


é algo que está definidamente além da razão. Esse é talvez o
grande divisor de águas que separa os homens em dois grupos
neste momento - os que estão dispostos a aceitar a revelação
deste Livro, e os que a rejeitam. Pedro se refere aos que a
rejeitam como escarnecedores. O que ele quer dizer é que
tais pessoas abordam a revelação, fazem suas perguntas,
preocupam -se com argum entos, ao passo que a própria
categoria a que pertence a revelação sugere o sobrenatural e
o miraculoso. Sugere algo que, na realidade, está além da
mente do homem e que o poder da mente desajudada jamais
pode alcançar. Pois bem, a idéia geral da Bíblia com respeito
à vida neste mundo é expressa dessa forma; a própria criação
é um milagre, é criar as coisas do nada, é esta manifestação
do poder de Deus. Ora, claro está que o homem natural acha
difícil crer nisso, e é por isso que durante estes últimos cem
anos, particularmente, esse ensino tem sido rejeitado por ele.
O homem natural acha que se deve partir de algo existente,
que tudo tem que evoluir de algo. Daí a teoria da evolução.
Mas, naturalmente, isso ainda deixa por resolver a matéria
original. De onde veio ela, qual é a origem dessa matéria
primitiva? Há um sentido em que nesse ponto a própria
teoria da evolução é forçada a retornar a alguma porção de
criação original, apesar de os homens não estarem dispostos a
conceder isso. A teoria da evolução, sem a atividade de Deus
como Criador, deixa sem solução o problema da matéria
original.
Ora, isso é tão-somente uma ilustração da argumentação
geral apresentada pela Bíblia. A Bíblia me pede que creia
em coisas que ao homem natural parecem completamente
ridículas. A própria Bíblia contém exemplos disso - esta
advertência concernente ao Dilúvio que Pedro considera aqui,
o caso de Sodoma e Gomorra, e várias coisas que aconteceram
com os filhos de Israel. A Bíblia é francamente sobrenatural, é
francamente miraculosa, e pede que aceitemos tais coisas sem

219
2 PEDRO

a mínima hesitação. Toda a profecia referente à vinda do nosso


Senhor, à mente natural parecia uma total fantasia. Nada
parecia mais ridículo aos racionalistas judeus daquele tempo
que este Carpinteiro de Nazaré fosse o Messias, o Filho de
Deus. Para eles a coisa toda era ridícula, e eles escarneciam
dele, zombavam dele, mofavam dele. Ora, era exatamente
isso que estas outras pessoas faziam, e farão, diz o apóstolo,
quanto à doutrina do fim dos séculos, do retorno da Cristo,
da destruição do mundo e da introdução de novos céus e
nova terra. Eles ridicularizam tudo isso e dizem: “Onde está
a promessa da sua vinda? Observe a vida e o mundo, como
você pode dizer que estas coisas vão chegar ao que você
descreveu? Tudo continua como sempre foi”. E a primeira
resposta a isso é que, ou você baseia toda a sua perspectiva
na razão humana e no entendimento humano, naquilo que
você pode sondar e seguir, e sobre o que você pode arrazoar,
ou então você diz francamente: creio que este Livro é a
Palavra de Deus e, porque a Palavra de Deus ensina isso, eu
0 aceito e o subscrevo. Esta doutrina do fim dos tempos e do
Juízo Final é parte integrante do ensino da Bíblia, como
ocorre com a primeira vinda de Cristo e com todas as outras
doutrinas fundamentais da fé cristã. E essencialmente uma
questão de aceitação da revelação e de submissão à autori­
dade da Palavra de Deus. Mas, diz Pedro, esta declaração
central pode ter o esteio e o suporte de diversas outras
declarações subsidiárias. E ele faz menção delas.
A primeira é que as Escrituras consolam e fortalecem a nossa
f é profetizando para nós a vin da destes escamecedores. “Sabendo
primeiro isto: que nos últimos dias virão escamecedores,
andando segundo as suas próprias concupiscências.” Ora,
para mim isso é questão de grande conforto e consolo. F un­
ciona desta maneira - quanto maior for o ceticismo atual
quanto a estas coisas, maior prova será, num sentido, do fato
de que o ensino bíblico é uma revelação vinda de Deus.
Escarnecendo hoje desta doutrina, os homens simplesmente

220
A Importância Vital da História Bíblica

estão confirmando a profecia bíblica. Isso, digo e repito, é


algo de muito grande valor e importância, e é principalmente
por essa razão que eu nunca me canso de criticar e denunciar
aquele conceito sobre o ensino do evangelho e do Novo
Testamento que quer fazer-nos acreditar que o Novo Testamento
prediz um mundo que vai se corrigir gradativamente, ficando
cada vez melhor, e por fim será perfeito. Agora, se aceitarmos
esse conceito falso, bem, então será extremamente difícil
entender os tempos nos quais estamos vivendo. Se o homem
está melhorando automaticamente, se o mundo está melho­
rando automaticamente, então eu digo que é extremamente
difícil entender o mundo moderno. Ora, há muitos que estão
inquietos por causa disso - há até muitos cristãos que estão
abalados em sua fé. Eles dizem: “Veja a maioria do povo;
eles não creem no evangelho; faz quase dois mil anos que
o evangelho tem sido pregado, você não acha que ele deveria
ter mais forte domínio sobre as pessoas, se é a Verdade de
Deus? Como o evangelho tem sido pregado século após
século, não deveria dar-se o caso de ele ter-se gravado de tal
maneira no coração do homem que hoje o mundo inteiro teria
sido cristianizado e se tornado cristão?” E, sustentando essa
opinião, e vendo as multidões fora da Igreja e vendo os líderes
do povo, em muitos países, para não dizer na maioria deles,
opostos ao evangelho, ou ignorando o evangelho, sua fé se
abala e eles se perguntam se, afinal de contas, o evangelho é o
poder de Deus para salvação. Pois bem, eis a real resposta a
isso: o próprio estado em que o mundo se encontra atual­
mente é uma confirmação do ensino do evangelho. Em parte
alguma a Bíblia diz que o mundo vai ficar cada vez melhor.
O evangelho prediz que os últimos tempos serão perigosos,
que haverá escarnecedores, que o mundo irá ridicularizar o
evangelho. Lembrem-se da pergunta feita pelo nosso Senhor
- “Quando vier o Filho do homem, porventura achará fé na
terra?” A predição geral do Novo Testamento é que nalgum
ponto, antes do final da história, haverá uma terrível apostasia.

221
2 PEDRO

O mundo estará repleto de escarnecedores que irão ridicula­


rizar o evangelho. Digo, pois, que, em vez de deixar-nos
deprimir pelo presente estado e situação, devemos ver nisso
uma das mais notáveis e extraordinárias confirmações do
ensino do Novo Testamento. Há então aqui um fato que me
ajuda a crer que isto é a Pala-vra de Deus - vê-se que ela
conhece o hom em , vê-se que ela conhece o m undo de
m aneira mais completa do que qualquer outro ensino. A
própria natureza terrível dos tempos é uma confirmação das
Escrituras.
Mas depois o apóstolo passa a expor ainda mais o estado
e a condição destes escarnecedores, e ele o faz simplesmente
lembrando-nos alguns fatos. Eis o que dizem os escarnecedores,
diz Pedro: “Onde está a promessa da sua vinda? porque
desde que os pais dormiram todas as coisas permanecem
como desde o princípio da criação” - parece que tudo é como
sempre foi. Como o apóstolo explica a insensatez dessa atitude?
Ele 0 faz lembrando-nos alguns fatos, e eu desejo enfatizar
mais uma vez a importância dos fatos.
Atualmente há um movimento, um certo movimento
teológico, que a princípio parece um retorno à Bíblia mas que,
examinado mais de perto, revela-se uma espécie de movimento
espúrio nessa direção. Os originadores desse movimento
lamentam o fato de que a chamada Alta Crítica da Bíblia,
especialmente do Velho Testamento, chegou a um beco sem
saída, a um impasse. Temos criticado tanto a Bíblia, dizem
eles, que não sobrou nada; temos dividido os livros e as frases,
e temos até dividido os períodos, e perdemos a mensagem.
Agora temos que voltar à Bíblia. Mas o que eles realmente
querem é que voltemos ao que eles chamam a “mensagem” do
Velho Testamento. Dizem eles que ainda não rejeitam a Alta
Crítica, mas que estão dispostos a aceitar a mensagem do Velho
Testamento. Eles rejeitam muitos dos fatos do Velho Testa­
mento - não aceitam os primeiros capítulos de Gênesis como
história, rejeitam a narrativa do Dilúvio, não creditam na

222
A Importância Vital da História Bíblica

narrativa sobre Sodoma e Gomorra. Não podem crer em coisas


como essas, pois o seu conhecimento científico o torna im­
possível. Mas eles nos dizem que há um certo valor religioso
nisso tudo e que estão querendo apegar-se ao princípio e
ensino religioso, embora rejeitem os fatos como tais e os
considerem como mitos.
Ora, isso é justamente o oposto do que o apóstolo afirma
neste capítulo. Notem que aqui toda a sua argumentação se
baseia na aceitação dos fatos. Se não aceitamos o fato do
Dilúvio, o argumento de Pedro entra em colapso. Todo o seu
argumento se baseia em fatos como esse. E aqui de novo,
falando por mim, vejo-me exatamente na mesma posição.
Os milagres não são para serem entendidos, são para serem
cridos. Há coisas que eu não posso entender no Velho
Testamento, mas vejo que elas constituem parte integrante
da história bíblica, e creio nelas. Pois, conforme eu entendo
este Livro, a salvação dada por Deus é dada mediante atos.
Deus não salva m ediante palavras; Deus salva por [Seus]
feitos. E notem que o nosso Senhor aceita a história do Velho
Testamento. Ele Se refere ao Dilúvio, Ele Se refere a Sodoma
e Gomorra. Ele acreditava nessas coisas. Como posso crer
que Ele é o Filho de Deus e, contudo, acreditar que Ele Se
enganou tanto em relação aos fatos? Minha simples fé em
Sua Pessoa insiste em minha aceitação destes fatos da história
do Velho Testamento. Muito bem, tendo-os aceitado, Pedro
elabora o seu argumento desta forma: ele mostra que a falsa
asserção dos escarnecedores já fora falsificada em muitas
ocasiões. Ele destaca um argumento perfeito, o argumento
baseado no D ilúvio, e o mesmo argum ento baseado em
Sodoma e Gomorra. Ele taxa esses escarnecedores de igno­
rantes. Noutras palavras ele nos relembra a história. Lá naquele
mundo antigo, quando os homens se entregaram ao pecado,
ao mal e à iniquidade. Deus confiou uma mensagem a um
homem chamado Noé. Disse-lhe que ia julgar e destruir o
m undo; disse-lhe, então, que construísse uma arca para

223
2 PEDRO

salvar-se e para salvar sua família, e para advertir o povo.


Noé pôs-se a fazer isso, e certamente vocês se lembram de
que, durante cento e vinte anos, ele advertiu aquela geração
avisando-a do Dilúvio e da destruição que estava para vir.
Qual foi a reação? Bem, podemos imaginar que o mundo
daquele tempo achou que aquilo era a maior piada já ouvida
por eles. Achavam que este homem era um lunático, e escar­
neceram, zombaram e riram dele. Essa idéia de que o mundo
ia ser inundado! “Vejam a estabilidade da criação”, diziam
eles, “vejam os montes e os vales, vejam as colinas, tudo
permanece como é, e você está nos dizendo que, de repente,
tudo isso vai ser destruído.” Como estavam confiantes e que
este homem estava louco. E, contudo, apesar do seu escárnio
e da sua zombaria, aquilo aconteceu. A insolente confiança e
a arrogante segurança deles foram totalmente desmascaradas
e falsificadas.
Quando vocês lerem o Velho Testamento verão a mesma
coisa através de todas as suas páginas. Acaso vocês se lembram
das incisivas palavras do profeta Amós sobre os que estavam
tranquilos em Sião? Ele viu a destruição que estava para vir e
foi advertir o povo; mas eles riram disso. Disseram: “Este
homem está tentando nos amedrontar, isso é ridículo”. Esta­
vam tranquilos em Sião, porém isso não os ajudou quando a
destruição, rápida e certa, veio sobre eles. De fato, uma das
grandes mensagens do Velho Testamento consiste em mostrar-
-nos que os homens e as mulheres, com suas idéias naturais e
racionalistas, recusaram a revelação de Deus, ridicularizaram
completamente estas advertências, e depois foram esmagados
pelos acontecimentos. E quando vocês lerem o Novo Testa­
mento verão que o nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo
repete e reforça a mesma mensagem: “E, como foi nos dias de
Noé, assim será tam bém a vinda do F ilho do hom em .
Porquanto, assim como, nos dias anteriores ao D ilúvio,
comiam, bebiam, casavam e davam-se em casamento, até ao
dia em que Noé entrou na arca, e não o perceberam, até que

224
A Importância Vital da História Bíblica

veio o Dilúvio, e os levou a todos - assim será também a


vinda do Filho do homem”.
Mas depois Pedro passa a assinalar que estas pessoas estão
deliberada e voluntariamente fechando seus olhos para os fatos.
“Eles voluntariamente ignoram isto”, diz Pedro. Ignorância
voluntária, porque sabiam que o que pessoas da antiguidade
tinham considerado impossível já acontecera de fato. Este é
o argum ento do apóstolo: assim como Deus destruiu o
m undo antigo, assim também Deus destruirá o presente
mundo. Os escarnecedores dizem que isso é impossível. Mas
os escarnecedores dos tempos antigos diziam a mesma coisa.
Entretanto, os fatos da história se levantam contra os escar­
necedores com uma solene advertência, e o homem não crer
é simplesmente fechar seus olhos para a história e cegar-se
para aquilo que já aconteceu.
Depois, 0 último argumento. A final dificuldade que há
com tais pessoas, diz o apóstolo, é que elas esquecem o poder de
Deus. Ele o diz com estas palavras: “Eles voluntariamente
ignoram isto: que pela palavra de Deus já desde a antiguidade
existiram os céus e a terra, que foi tirada da água e no meio da
água subsiste”. Esta é uma referência à criação do mundo. O
mundo era sem forma e vazio, estava num estado informe, e
teria permanecido nesse estado, não fora unicamente isto:
o poder de Deus. Deus disse: “Haja luz”, e houve luz. Esse é o
Deus em quem cremos. A coisa toda nos parece impossível,
mas 0 poder de Deus é tal que Lhe bastou dizer, “Haja luz”, e
houve. Esse é o Deus que está por trás do universo. Exatamente
da mesma maneira o mundo antigo lá estava com aparente
estabilidade eterna, e Deus ordenou o Dilúvio. E as águas
desceram dos céus e subiram da terra, e o mundo antigo foi
destruído. Muito bem, diz Pedro, “os céus e a terra que agora
existem, pela mesma palavra se reservam como tesouro, e se
guardam para o fogo, até o dia do juízo, e da perdição dos
homens ímpios”. Esse é o problema final que temos com os
escarnecedores; eles se esquecem do poder de Deus. O mundo

225
2 PEDRO

parece muito estável, parece fixo e imutável; mas devemos


lembrar-nos de que o Deus que o fez e o controla, e que fez e
controla o cosmos inteiro, é este Deus todo-poderoso, que do
nada pode trazer coisas à existência, e que pode destruí-las
num momento, o Deus que pode manejar o mundo e brincar
com as constelações como se fossem apenas átomos. Foi este
Deus todo-poderoso que reservou este mundo para ser pu­
nido. Assim como Ele o fez e o destruiu, assim também, com
a mesma palavra, Ele pode destruí-lo novamente. Ele o está
reservando “até o dia do juízo, e da perdição dos homens
ímpios”.
Por isso o apelo que o apóstolo nos faz é simplesmente
este: devemos preservar o que no primeiro versículo é chamado
“ânimo sincero” (VA: “mente pura” - “Quero despertar vossas
mentes puras” - e com isso ele quer dizer mente não adulte­
rada por falso ensino. Ele se refere à mente que é o real oposto
da dos escarnecedores. O escarnecedor é o homem do mundo,
0 homem que, como o expressa Pedro, segue suas próprias
concupiscências, o homem esperto que pode ridicularizar
tudo o que pertence à religião e que fala tão confiadamente
sobre “ciência” e sobre o princípio da uniformidade. Diz ele
que é monstruoso pedir às pessoas que acreditem em mila­
gres e em interferências nas leis naturais. Notem, porém, as
palavras do apóstolo: eu os exorto a manterem suas mentes
puras, limpas e não adulteradas por tal escárnio e tal ensino.
Os cristãos, noutras palavras, são chamados para adotarem
uma atitude e uma posição que ao mundo parecem totalmente
ridículas. Crer nestas coisas hoje é tão monstruoso para o
homem natural, como era para os incrédulos do tempo de Noé.
E, todavia, se aceitamos a Bíblia como a Palavra de Deus, se
cremos nesta revelação, temos que crer que isso é uma parte
essencial do ensino. O mundo todo está sendo dividido em
dois grupos, os piedosos e os impiedosos; o juízo vem, rápido,
certo e seguro, e o que vai determinar o nosso destino perene
e eterno é em qual desses dois grupos estamos. Não devemos

226
A Importância Vital da História Bíblica

introduzir a razão natural nisto; devemos aceitar a Bíblia


como a Palavra de Deus, a revelação de Deus, e ter uma vida
que esteja em conformidade com ela. Precisamos é da mente
pura, não da mente escarninha, zombadora, do homem natural
que rejeita a revelação de Deus. Conceda-nos Deus que as
nossas mentes sejam, pois, puras, e estejam completamente
livres de todas as sugestões e de todos os ensinos que querem
que rejeitemos o claro ensino da revelação de Deus em Sua
santa Palavra.

227
18
Deus e o Tempo
“Mas, amados, não ignoreis uma coisa: que um dia para
0 Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia. O
Senhor não retarda a sua promessa, ainda que alguns a
têm por tardia; mas é longânimo para convosco, não
querendo que alguns se percam, senão que todos venham
a arrepender-se.” - 2 Pedro 3:8,9

Até aqui, em nosso estudo deste capítulo, vimos que


neste mundo somos confrontados por duas possíveis posições:
podemos, ou aceitar as idéias dos homens e suas filosofias, suas
tentativas de entender a história, de explicar a história e de
prognosticar o futuro do mundo - podemos fazer isso, ou então
podemos crer que a Bíblia é a Palavra de Deus; que estes pro­
fetas aos quais Pedro se refere, e estes apóstolos, eram homens
especialmente escolhidos por Deus, homens que receberam
de Deus uma mensagem e um entendimento que ia além da
razão humana, e que aqui, neste Livro, temos o relato feito
por Deus sobre o mundo e sobre a história. Temos que estar
numa dessas duas posições. Esse é o argumento que Pedro está
elaborando, e vocês se lembram de que, ao fazê-lo, ele toma
a história passada e mostra que os escarnecedores estão com­
pletamente enganados. Ele assinala que sempre houve gente
desse tipo - antes do Dilúvio antes de Sodoma e Gomorra.
Como eles são sempre confiantes, arrogantes e seguros de si!
Mas ficou comprovado seu erro, não som ente pelo que
aconteceu, mas também pela maneira pela qual Deus final­
mente agiu, depois de prolongada protelação. Pedro concluiu
sua grande observação lembrando-lhes o poder de Deus.

228
Deus e o Tempo

Mas agora, aqui, nestes dois versículos, ele dá mais um


passo à frente. Porquanto não só os escarnecedores que se
preocupam com estas questões; o próprio povo de Deus sabe
o que é ser afetado por dúvidas e incertezas. Os que são de
Deus crêem no evangelho, aceitam o evangelho e, contudo,
quando olham para o m undo, este não parece estar em
consonância com o que o evangelho diz. Por conseguinte,
sucedeu que, na maioria, estas Epístolas do Novo Testamento
foram escritas para fortalecer a fé do povo de Deus e confortá-
-lo. Pois, embora o povo de Deus não goste dos escarnecedores,
embora não faça perguntas da mesma maneira, frequentemente
ele faz as mesmas perguntas. Vocês encontrarão em muitos
Salmos perguntas como, “Esqueceu-se Deus de ter miseri­
córdia?” Noutras palavras, a diferença entre o povo de Deus
e os escarnecedores está na maneira pela qual eles fazem as
perguntas, não na natureza das perguntas. Por exemplo, vocês
verão muitas vezes no próprio Novo Testamento que o povo
de Deus se desanimou. Ao que parece, os membros da Igreja
Primitiva, ao menos muitos deles, acreditavam que o Senhor
ia voltar imediatamente. Por isso começaram a perguntar o
que estava acontecendo - por que o Senhor não tinha voltado?
Por que Deus não enviou Cristo?
Pois bem, agora a situação continua sendo quase idêntica,
quando observamos o mundo moderno e vemos sua vida sem
Deus e a sua irreligiosidade. Não seria surpreendente que às
vezes nos vemos sentindo como que perguntando - por que
Deus permite isto? Por que Deus tolera aquilo? Se Deus tem
o poder, por que permite que isto continue, por que Ele não
intervém e não interfere, por que não esmaga os Seus inim i­
gos? Ele prometeu fazer isso, por que não o faz? E desse tipo a
pergunta de que o apóstolo agora trata nestes dois versículos.
Temos aqui suas respostas à igreja e aos cristãos; não sua
resposta aos escarnecedores, que já consideramos.
Podemos dividir sua resposta mais convenientemente
sob dois títulos principais - a resposta geral, e a resposta

229
2 PEDRO

particular. Há aqui, diz Pedro, alguns pontos gerais que


devemos ter sempre em mente. O primeiro é que nunca devemos
ser curiosos quanto aos “tempos e estações”. Não preciso demorar-
-me nisto, porque esta advertência acerca do exagero na
preocupação com tempos e estações vê-se repetidamente na
Bíblia. Em geral, a Bíblia nos diz que devemos ter grande
preocupação acerca do Fim; que devemos estar sempre con­
templando e esperando anelantemente este grande evento
que vai finalizar a história; mas não devemos nos preocupar
demais quanto ao tempo em que isto vai acontecer. Isso me
parece a maneira que o Novo Testamento aborda este assunto
- sempre devemos estar aguardando e esperando a Vinda do
Senhor, mas no momento em que começamos a calcular e a
fixar o tempo em que isso vai acontecer, nos envolvemos em
dificuldades e problemas. Daí a exortação a que não fiquemos
preocupados com tempos, estações e datas.
Não quero deter-me nisso agora, mas um estudo escla­
recedor e interessante é ler a história sobre este assunto e ver
que até hom ens bons, devotos e piedosos caíram nessa
armadilha. Houve pessoas, séculos atrás, que tinham certeza
de que a Vinda do Senhor ia ocorrer no tempo delas. Algo que
sempre veio naturalm ente à mente de algumas pessoas é
identificar certos símbolos - Napoleão como o anticristo, por
exemplo. Sempre que os homens tentaram fixar tempos e
estações, eles caíram nesse erro. Sabemos que houve pessoas
que estavam certas do significado da guerra de 1914-1918, ao
passo que na últim a guerra, tam bém , houve hom ens e
mulheres que se fizeram culpados desta particular falácia e
fizeram a mesma identificação em conexão com Mussolini
e Hitler. Pois bem, a resposta é que devemos estar sempre
esperando anelantemente o Senhor, e, todavia, jamais devemos
tentar fixar e determinar exatamente o tempo da Sua Vinda.
Porquanto a Bíblia declara que será repentina, inesperada e
ignorada por todos.
Mas talvez o princípio geral mais importante que Pedro

230
Deus e o Tempo

estabelece aqui possa ser expresso deste modo: devemos lemhrar-


-nos sempre de que, com a nossa natureza e constituição, não podemos
entender plenamente a mente de Deus. Estamos na terra; somos
finitos. Não somente isso, mas também ocorreu que as nossas
mentes foram torcidas e pervertidas em consequência do
pecado. Portanto, uma das primeiras coisas que temos que
compreender é que sempre partimos dessa limitação, quando
nos pomos a meditar em Deus, em Seus caminhos e em Suas
obras com relação aos homens. “Porque os meus pensamentos
não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos os
meus caminhos, diz o Senhor. Porque, assim como os céus são
mais altos do que a terra, assim são os meus caminhos mais
altos do que os vossos caminhos, e os meus pensamentos mais
altos do que os vossos pensamentos” (Isaías 55:8,9). Esse é o
grande princípio que encontramos em toda parte na Bíblia, e
podemos expressá-lo de forma e maneira prática. Sempre que
eu me preocupar com os caminhos de Deus, se não puder
entender bem o que está acontecendo, se achar que deveria
estar acontecendo algo com pletam ente diferente; se os
caminhos de Deus com relação a mim, pessoalmente, ou com
relação ao m undo e à hum anidade, parecem esquisitos e
estranhos, a primeira coisa que devo dizer a mim mesmo é
que sempre tenho que lembrar que provavelmente a dificul­
dade está em minha mente, porque Deus é tão infinitamente
acima de mim, e Sua mente eterna é tão diferente, que eu não
devo esperar ser capaz de entender. Se começarmos a abordar
estes problemas com base na presunção de que podemos
entender a mente de Deus como nós entendemos a nossa
própria mente, aí estará, desde logo, uma falácia inicial. Na
verdade, a única coisa definida que há é que devemos partir
da compreensão de que existe esta diferença qualitativa
infinita, como os teólogos modernos a descrevem, entre Deus
e nós - que Deus está nos céus, e nós na terra. Não podemos
ver as coisas como Ele as vê.
Sendo, então, esse o princípio geral, vejamos como Pedro

231
2 PEDRO

O desenvolve em particular e em detalhe. O primeiro ponto


de que ele trata é a relação de Deus com o tempo, e ele o
desenvolve nos seguintes termos:
Em primeiro lugar, Pedro nos diz que Deus está totalmente
acima do tempo. “Amados, não ignoreis uma coisa; que um
dia para o Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia”.
Esse é o princípio; Deus é eterno. Deus está acima do tempo.
Jamais devemos pensar que Deus está envolvido no processo
do tempo ou no fluxo e movimento do tempo e da história
- Deus está totalmente acima do tempo. E-nos quase impos­
sível captar tal pensamento e tal conceito, e, contudo, é um
princípio realmente vital. Sendo nós criaturas do tempo,
necessariamente pensamos em termos do tempo. Deus está
completamente acima, além e fora do tempo, de modo que
quando pensamos nos propósitos de Deus, sempre corremos
0 perigo de exagerar este fator tempo. Deus, como é eterno,
está inteiram ente fora do tempo. Para Ele mil anos são
apenas como um dia, e um dia como m il anos. N outras
palavras, Ele não vive na esfera, ou em termos, do processo
do tempo.
Todavia, obviamente, não nos detemos aqui, porquanto
devemos passar a esta segunda declaração: apesar de Deus estar
acima do tempo, Deus age no tempo. Isso é igualmente necessá­
rio. Foi Deus quem deu início ao processo do tempo. Quando
criou o mundo. Deus iniciou o movimento da história. Ele
próprio está fora e acima desse movimento, mas Ele o pôs
em andamento. Ora, nesse sentido suponho que o argumento
dos famosos deístas de duzentos anos passados, pode ser
utilizado, contanto que não o usemos mal. Deus é como um
homem que fabrica um relógio - Ele próprio está fora dele,
Ele existe sem o tempo, não faz parte dele. O fabricante do
relógio o faz, dá-lhe corda, faz o relógio funcionar, está fora do
processo mas inicia o processo, põe os ponteiros em movimento.
Isso pode ajudar-nos um pouco a entender a relação de Deus
com 0 tempo. Mas, de acordo com o ensino bíblico, Deus

232
Deus eo Tempo

põe o processo em movimento e o mantém em movimento.


Podemos até ir além disso - Deus controla o tempo e os
atos de Deus se desenvolvem com base num plano definido
e de acordo com um esquema definido. Vocês não podem ler
a Bíblia sem ver isso muito clara e definidamente. Deus
criou o mundo e, num certo ponto, a história começou. Mas
o homem pecou e caiu. Então Deus interveio. De novo parecia
que o processo prosseguia independentem ente de Deus,
mas novamente Deus interveio. Vocês notam o tempo todo
como Ele fez as coisas - tudo aconteceu “no devido tempo” -
expressão bíblica constantemente empregada. Vemos, pois,
que, embora Deus esteja acima e além do tempo, Ele continua
controlando o tempo e agindo no tempo. Ele estabeleceu o
processo do tempo e o processo histórico prossegue, e então
Ele entra nesse processo; se lhes parece bem, Ele penetra
de fora nesse processo. Isso ainda não faz de Deus uma parte
do processo do tempo, porém mostra o Seu controle sobre
ele e Sua interferência nele, segundo a Sua vontade eterna,
segundo o Seu conselho eterno.
Isso nos leva a uma declaração concreta sobre a natureza
do que podemos denominar cronologia divina. Deus age, planeja
e projeta, Ele interfere e se impõe. Quando o faz? Que é
que determina a ocasião da interferência de Deus? Essa é a
questão que preocupa as pessoas. O nosso problema, quando
começamos a pensar em tempo, em cronologia, é que pensa­
mos em relógios e em calendários, em semanas, meses e anos.
Mas um estudo da Bíblia deixa mais que claro que nunca ✓

devemos pensar na cronologia de Deus dessa maneira. E


sempre mais uma questão de condições morais. Permitam-
-me oferecer-lhes algumas citações das Escrituras para provar
o que estou querendo dizer. Em Gênesis 6:3 lemos: “Não
contenderá o meu Espírito para sempre com o homem”. Ora,
que é que estava acontecendo ali? Bem, o povo pecara e as
condições morais iam de mal a pior. Deus estava falando.
Deus estava censurando, estava condenando e chamando o

233
2 PEDRO

povo ao arrependimento; mas os homens não Lhe deram


atenção. Por isso Ele fez esta declaração: vai chegar o ponto
em que deixarei de contender com vocês e agirei. Não se trata
de um ponto do calendário, a questão é que as condições morais
viriam a ser tais que Deus iria agir. Ou vejam a declaração
registrada em Gênesis 15:16: “A medida da injustiça dos
amorreus não está ainda cheia”. Deus só agirá quando a medida
estiver cheia. Tomemos de novo as palavras do Novo
Testamento: “Profetas e apóstolos lhes mandarei; e eles matarão
alguns, e perseguirão outros; para que desta geração seja
requerido o sangue de todos os profetas que, desde a fundação
do mundo, foi derram ado” (Lucas 11:49,50). Os profetas
haviam sido mortos séculos antes, mas a punição vem quando
a iniquidade chega a certo nível. Tomemos as frases, “até que
se cumpram os tempos dos gentios”, e “este evangelho do reino
será pregado em todo o mundo, e então virá o fim”. Quando
virá o fim? Obviamente não se trata aqui de certa data do
calendário, mas o fim virá quando o evangelho for pregado a
todas as nações e entre todas as pessoas - “então virá o fim”.
Quando Cristo veio a este mundo? Quando veio “a plenitude
dos tempos” - quando as condições eram tais que Deus disse:
este é 0 tempo. E mais: “a seu tempo”, ou “no devido tempo.
Cristo morreu pelos ímpios”. Quando será o fim do mundo?
Não acontecerá enquanto não tiver entrado a plenitude dos
gentios, enquanto Deus não tiver reunido o Seu povo dentre
as nações gentílicas - não acontecerá até então. Pois bem, esse
é o ensino bíblico sobre a cronologia divina.
Livremo-nos, pois, de todas essas idéias de datas e calen­
dários, e tratemos de compreender que o que determina a
intervenção de Deus no processo do tempo é questão de
condições morais. O que é muito mais importante do que
qualquer data particular é o estado e condição do mundo
atual; pois as Escrituras deixam muito claro que antes do
fim haverá uma terrível apostasia. Mas temos que ter muito
cuidado, pois muitas vezes os homens já disseram: “Esta é

234
Deus e o Tempo

a Última grande apostasia”. Não devemos tentar de novo fixar


o tempo exato do fim, mas devemos mover-nos a refletir,
quando vemos os homens se afastando de Deus, a arrogância,
o ateísmo ativo e a irreligiosidade. Devemos mover-nos a
pensar nestas coisas porque somos informados de que, antes
da Vinda do nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, as con­
dições morais serão tais que haveria esta grande apostasia, e
o pecado e a iniquidade seriam revelados. Portanto, fiquemos
de olho nas condições morais, antes que nas datas, porque se
vê claramente que esse é o ensino da Bíblia concernente à
natureza da cronologia divina.
Depois Pedro passa ao segundo princípio, que apenas
vou destacar. È o princípio da justiça de Deus. Tendo assinalado
que, embora Deus esteja dessa forma fora do processo do tem­
po, não obstante Ele interfere nesse processo, Pedro continua
e diz: “O Senhor não retarda a sua promessa, ainda que alguns
a têm por tardia; mas é longânimo para convosco”. Permitam-
-me dizê-lo desta forma: quando ficamos preocupados com
estas coisas, devemos não somente lembrar que não podemos
entender a mente de Deus, que toda esta questão de tempo
não é para Ele o que é para nós; também devemos agarrar-nos
tenazmente e sem vacilar ao princípio segundo o qual Deus
é justo. Noutras palavras, seja qual for a explicação das coisas
que nos inquietam, não há nada indigno no caráter de Deus.
Quando vemos o mundo como está hoje, ou como estava em
épocas anteriores, e parece que Deus não age, a tentação
sugerida a nós pelo diabo é que perguntemos: “Será que Deus
não Se preocupa, se os ímpios prosperam?” Bem, eu digo que
só há um meio de responder a isso, que é dizer: “O Senhor não
retarda”. Qualquer outra coisa que seja o problema, não é
nenhuma injustiça em Deus. Não é que Deus não Se preo­
cupa. Podemos estar certos e seguros neste momento de que
o que Deus disse. Deus fará. Suas promessas são absolutas, são
seguras, são certas. A justiça de Deus é algo que não pode variar,
é um daqueles absolutos com os quais nunca devemos tentar

235
2 PEDRO

brincar. O que Deus disse. Deus fará, e podemos estar seguros


de que os ímpios e os injustos serão levados a julgamento,
serão submetidos a castigo. “Por que se amotinam as gentes,
e os povos imaginam coisas vãs; eu, porém, ungi o meu Rei
sobre o meu santo monte de Sião”. Essa é a resposta bíblica.
Povo cristão, confortemo-nos pensando nesse grande
princípio. Uma vez que somos cristãos, pode ser que tenhamos
sido chamados para sofrer num tempo como este. O mundo
pode rir e zombar, e pode ter muito sucesso nisso, mas tão
certo e verdadeiro é que estamos vivos neste momento, como
certo é que os injustos e os ímpios terão que responder por
toda palavra que tiverem pronunciado, e aqueles que têm
sido fiéis ao Senhor receberão esta aprovação; “Bem está,
bom e fiel servo”. O Senhor é justo, o Senhor “não retarda”
(VA: “não é negligente” ou “frouxo”), não há negligência nem
atraso em Deus, não há nEle frouxidão moral; a justiça
completa, absoluta de Deus permanece. Apeguemo-nos a
isso, quer entendamos o que está acontecendo quer não.
Depois, finalmente, há este princípio maravilhoso, a
longanimidade de Deus. “O Senhor não retarda a sua promessa,
ainda que alguns a têm por tardia; mas é longânimo para
convosco, não querendo que alguns se percam, senão que todos
venham a arrepender-se.” Essa é uma declaração difícil. E
difícil teologicamente, e tem levado a muita argumentação e
discussão. Se posso dizê-lo de passagem, essa é, geralmente,
uma das citações comuns sempre apresentadas, toda vez que
são discutidas a eleição e a predestinação. Mas, examiná-la
dessa maneira é na verdade perder de vista a tese que Pedro
tem em mira. Parece-me que o ponto visado por Pedro é que
uma parte da explicação da aparente demora é a longanimi­
dade de Deus. Disto podemos estar certos: Deus não deseja
que ninguém pereça (não digo “quer”, digo “deseja”, pois a
palavra traduzida por “querendo” [expressão da vontade
im utável de Deus] realm ente deveria ser traduzida por
“desejando”). O que quer que Deus “queira” acontece - aí está

236
Deus e o Tempo

uma diferença entre Deus querer e desejar uma coisa, e o que


Pedro diz é que Deus não deseja que alguém pereça, mas que
todos venham a arrepender-se. Deus não tem prazer na morte
dos ímpios; por isso, diz Pedro, Ele protela a Sua ação. Podemos
ilustrar isso partindo da história do Velho Testamento. Acaso
vocês notaram os tempos anteriores ao dilúvio - viram que
Deus parece não ter agido durante cento e vinte anos? Lá estava
Noé pregando àquele povo. Por que Deus não o destruiu logo
no começo? - vocês perguntam. Ah, esta é a longanimidade
de Deus! Deus, retendo Sua mão, não deseja que os ímpios
pereçam. Deus sempre adverte antes de ferir, e, se vocês lerem
a história do Velho Testamento deste ponto de vista, ficarão
mais e mais extasiados ao notarem a extraordinária paciência
de Deus. Vejam quanto Ele esperou antes da destruição de
Sodoma e Gomorra. Observem especialmente a Sua paciência
com os filhos de Israel quando eles riam dEle, insultavam-
-nO e Lhe davam as costas. Deus lhes enviou aquela sucessão
de profetas - a longanimidade de Deus! Oh, não pergun-

temos por que Deus demora! E esta admirável paciência e


longanimidade de Deus.
Depois examinem o assunto em termos dos séculos que
se passaram antes de Cristo vir - por que a longa demora
aparente? Para mim só há uma resposta: era Deus, digamos
assim, mostrando ao mundo antigo que ele não podia salvar-
-se independentemente da Sua ação. O homem sempre alega
que pode fazer-se pessoalmente reto - Deus deu à nação uma
lei e disse: se você puder cumprir essa lei, ela a salvará. Os
homens se mostraram confiantes em que podiam fazer isso, e
Deus lhes deu todos aqueles séculos, tão-somente para lhes
mostrar que não podiam. E esta longanimidade de Deus que
deixa o mundo sem escusa ou sem direito. E, segundo o
apóstolo Pedro, essa [longanimidade] explica por que o Senhor
não voltou antes deste particular ponto da história. Está
sendo dada uma chance, uma oportunidade ao m undo;
Cristo é pregado, o evangelho é oferecido; todos estes anos

237
2 PEDRO

estão passando, e a oferta está sendo feita. É assim que funciona.


Quando chegar o fim, e quando ocorrer o Juízo Final, todos
os homens e mulheres que nalgum tempo viveram, serão
postos diante de Deus em juízo, e então esta demora será, em
si mesma, o fato que os condenará finalmente. O mundo não
terá escusa. Deus poderá dizer: “O evangelho foi pregado.
Cristo foi oferecido a vocês, e durante todos estes longos séculos
eu esperei, eu protelei, eu lhes dei a oportunidade”. A justiça
de Deus será revelada. Não restará ao mundo um só vestígio
de escusa. Graças a Deus por essa demora. Onde eu e vocês
estaríamos, não fora essa demora? A longanim idade e a
paciência de Deus! “A bondade de Deus te conduz ao
arrependimento”, diz Paulo. E ainda: no fim deste capítulo
vemos Pedro dizer mais uma vez: “Tende por salvação a
longanimidade de nosso Senhor”.
Essa é então, parece-me, a resposta do apóstolo Pedro
ao cristão que se acha inquieto acerca das condições, e que às
vezes é tentado a inquirir e a questionar quanto à demora.
Lembrem-se de que estamos tratando com Deus, e não com o
homem. Lembrem-se da Sua eternidade. Lembrem-se da Sua
relação com o tempo. Lembrem-se da completa justiça e
santidade de Deus. Lembrem-se do Seu amor, da Sua mise­
ricórdia, da Sua compaixão. Estamos no tempo, confessemos
isso, somos muito semelhantes a Tiago e João. Por certo vocês
se lembram de que um dia o nosso Senhor os enviou adiante
para prepararem o cam inho para Ele. Eles foram a uma
cidade dos samaritanos, e estes não os receberam, e certamente
vocês se lembram do que Tiago e João disseram ao nosso
Senhor: “Senhor, queres que digamos que desça fogo do céu
e os consuma?” Se eu e vocês controlássemos este mundo,
sem dúvida era isso que faríamos - traríam os sobre ele
imediato juízo. Contudo, a resposta foi: “Vós não sabeis de
que espírito sois, porque o Filho do homem não veio para
destruir as almas dos homens, mas para salvá-las”. “O Senhor
não retarda”, porém Ele não deseja que ninguém se perca.

238
Deus e o Tempo

mas que todos venham a este bendito conhecim ento da


salvação.
Sujeitemo-nos, então, a Deus e à Sua sabedoria absoluta,
especialmente a Seu amor e misericórdia, à Sua longanimi-
dade e compaixão. Os caminhos de Deus são certos e são
seguros. Não podemos entendê-los agora, mas a Seu bom
tempo entenderemos todas as coisas.

239
19
A Visão B íblica da H istória
“Mas 0 dia do Senhor virá como o ladrão de noite; no
qual os céus passarão com grande estrondo, e os elementos,
ardendo, se desfarão, e a terra, e as obras que nela há, se
queimarão.” - 2 Pedro 3:10

Com estas palavras o apóstolo continua a sua considera­


ção do assunto que constitui o seu tema desde o versículo 16
do capítulo primeiro. Escrevendo a estes cristãos para encorajá-
-los, para ajudá-los e para os consolar, acima de tudo mais
ele expõe diante deles o que é descrito no Novo Testamento
como a “Bendita Esperança”. Noutras palavras, aqui estamos
tratando da visão neotestam entária do curso da história
do mundo. E um tema central no Novo Testamento. Vocês
o encontram em cada parte do Livro, de um modo ou de
outro. Está nos Evangelhos - o nosso Senhor fala sobre ele
constantemente. Este tema sobressai proeminentemente em
todas as Epístolas do Novo Testamento, e claro está que é,
exclusivamente, o tema de alguns dos livros.
Bem, este é um assunto que, evidentem ente, está
atraindo m uita atenção no presente. Não estou querendo
dizer que a visão neotestamentária propriamente dita está
granjeando atenção - o que digo refere-se à questão geral da
história. Está sendo tomado um interesse bastante incomum
por essa questão nos dias atuais, e isso, claro, é inevitável e
perfeitamente natural, em vista das experiências pelas quais
temos passado. O problema da história está se tornando
crescentemente o primeiro problema dos filósofos e de todos

240
A Visão Bíblica da História

quantos se preocupam , ainda que indiretam ente, com a


questão geral da vida e do seu significado. Em muitos aspec­
tos ele é o grande tema deste nosso século vinte. Temos
experimentado choques de tal monta, acontecimentos tão
inesperados, que as idéias que eram tomadas como mais ou
menos concedidas e certas no século anterior, e noutros
tempos, acabaram parecendo um tanto ridículas. Devido às
guerras mundiais, e à incerteza dominante no presente, não é
antinatural que as pessoas pensantes encarem estas perguntas
ao considerarem a história deste mundo. Existiria algum
propósito na história? Haveria nela algum objetivo? A que
ela vai levar? Que é que jaz adiante de nós? São essas as
perguntas que nos fazem. As pessoas já não se contentam em
simplesmente viver sem indagar o que vai acontecer. A ideia
da estabilidade eterna do mundo parece ter sido abalado, e,
em consequência de todas as nossas experiências, há um
sentimento de que devemos aplicar as nossas mentes a esta
questão geral da história. Todos nós desejamos saber se há
um objetivo, se há um propósito diretor. E isso, por sua vez,
afetará a maneira como levamos a nossa vida. Pois bem, esse
é o tema de que o apóstolo trata aqui com muita clareza.
Talvez o melhor modo que temos de considerá-lo juntos
será considerá-lo à luz, e contra o pano de fundo, de algumas
das idéias populares modernas com respeito a este assunto.
Permitam-me, pois, apenas anotar alguns dos conceitos mais
comuns relativos à história do mundo, hoje correntes.
O prim eiro é o conceito que, apesar de tudo o que
aconteceu, ainda acredita na ideia de progresso inevitável. Essa
visão da vida, do mundo e da história era muito popular no
século dezenove. Segundo essa maneira de ver, a qual foi
proposta primeiramente pelo filósofo alemão Hegel, a história
é um processo que avança gradativamente, desenvolvendo-se
a partir de um grande princípio. Existem contradições patentes,
diz esse conceito, mas todas finalmente se fundirão numa só
realidade. Temos a tese, depois a antítese, e ambas operam juntas

241
2 PEDRO

produzindo a síntese final. Segundo essa ideia hegeliana, toda


a história nada mais mostra que a efetivação deste grande e
grandioso processo de desenvolvimento.
Alguns dos nossos poetas gostaram muito dessa filosofia.
Em muitos lugares Tennyson lhe dá expressão - a grande ideia
de que há um magnífico princípio de progresso sendo
efetuado, até finalmente chegar a algum glorioso milênio. Ele
compôs cantos poéticos sobre o tempo prestes a chegar em
que veriamos “o parlamento do homem e a federação do
mundo” e sobre “o aumento do conhecimento era após era”. O
característico otimismo vitoriano, como nos inclinamos a
descrevê-lo hoje, baseava-se nessa teoria e nessa perspectiva.
Há muitas subdivisões disso, nas quais não precisamos
deter-nos, mas podemos anotar que a visão marxista da vida,
a visão comunista da vida, é apenas uma variante dessa ideia
de progresso inevitável. Segundo esse conceito, há forças, forças
materiais, lutando umas contra as outras e produzindo a tal
síntese final - empregador e empregado, e a divisão entre os
dois, estes dois interagindo. Essa é a sua explicação da história.
Seus defensores alegam que dessa forma podem explicar todas
as guerras do passado, todo o avanço da civilização e todos os
avanços científicos. Tudo isso é produzido pelo jogo ocorrido
entre estas duas forças. E o tempo todo o processo prossegue,
continua e se desenvolve. Cada passo é superior ao anterior, e
os movimentos vão interagindo até chegarem a um estado de
perfeição que, segundo esse conceito, é o estado de uma socie­
dade sem classes. Esse conceito, digo, ainda é sustentado por
muita gente. É surpreendente ver quantas vezes ele aparece
nos artigos dos jornais e nos discursos dos políticos e de ou­
tros, e nos escritos de certos escritores populares - a crença na
inevitabilidade do progresso e do desenvolvimento.
Mas há depois outro conceito, muito mais antigo, que
considera a história como uma questão de ciclos. Essa ideia era
sustentada pelos antigos filósofos gregos. Eles diziam que a
história nada mais é que um giro em ciclos. Parece haver um

242
A Visão Bíblica da História

avanço, e você imagina, quando está subindo por um lado da


curva, que vai continuar a subir para sempre; mas não funciona
assim. Você se vê simplesmente girando em círculos. Você
chega a certo ponto, alcança certo nível, e então começa a descer.
Os que adotam esta ideia assinalam que a história mostra a
ascensão das civilizações, chegando a um estágio no qual elas
floresceram e prosperaram, e depois decaíram e desaparece­
ram. Tais pessoas nos lembram as civilizações da China, do
Egito e de outros lugares do mundo. Vê-se o mesmo processo
na história dos impérios e dos grandes Estados - a gradativa
ascensão e obtenção de poder, influência e importância; eles
prosseguem e vão até um ponto além do qual não avançam, e
então, vão abaixo. Os defensores dessa ideia nos dizem que a
história é questão de ciclos, e você fica girando, girando. Bem,
essa ideia é fascinante. Em certo sentido a temos no livro de
Eclesiastes: “Nada há novo debaixo do sol”; o que é, já foi; e
o que será, também já foi.
Ficamos estupefatos ao vermos em quantos aspectos da
vida há fortes evidências que parecem dar suporte a esse
conceito. No domínio da ciência, por exemplo, lembro-me
de um homem que, depois de muita pesquisa feita pacien­
tem ente, fez um a descoberta que, quanto ele sabia, era
absolutamente nova. Fizera experiências e descobrira algo.
Alegrou-se com isso, e estava prestes a escrever seu informe.
Mas, prudente que era, achou melhor pesquisar a literatura
sobre o assunto para certificar-se de que ninguém tinha feito
antes aquela descoberta. Depois de passar três semanas fazendo
essa leitura, ele ficou decepcionado ao ver uma breve nota de
rodapé, em letra miúda, que indicava que os egípcios antigos
tinham descoberto algo quase idêntico ao que ele descobrira
após sua penosa e cansativa pesquisa. Lembro-me de que ele
disse: “Que adianta pesquisar coisa alguma? Creio que tudo
o que podemos descobrir, realmente já foi descoberto”.
Também, com relação ao maravilhoso tratamento de doen­
ças com penicilina, fiquei interessado ao ler numa revista.

243
2 PEDRO

recentem ente, que era mais que evidente que os antigos


chineses, há milhares de anos, usavam exatamente a mesma
coisa. Não sabiam o que era, não lhe chamavam penicilina,
mas estavam usando as mesmas coisas. Bem, esse tipo de
evidência é que leva as pessoas a acreditarem nessa teoria de
ciclos da história. É questão de destino, dizem elas, uma
questão de acaso; há forças cegas operando nesta vida e que
estão por trás de tudo. Ninguém as entende, ninguém as
controla, o mundo tem estado girando dessa forma sempre, e
sempre o fará. A história é isso, um girar e girar em círculos,
tudo resultante do destino e do acaso cego.
Há depois outro conceito que, à luz do nosso texto,
interessa-nos um pouco mais diretamente - o moderno conceito
científico que nos diz muito definidamente que a história vai
ter fim. Fala da segunda lei da termodinâmica. Ora, o que a
segunda lei da termodinâmica diz realmente é que o mundo
é como um relógio ao qual foi dada corda, mas que aos
poucos vai perdendo o impulso e se enfraquecendo, e chegará
o tempo em que perderá toda a corda, e a vida neste planeta se
acabará. Há muitíssimos cientistas hoje que acreditam nisso,
fundamentados unicamente em bases científicas. Ocorrerá
o fim do tempo, e se vai chegar a um ponto no qual a vida
não mais será sustentável. E esse será o fim da história.
Ainda outro conceito que desejo m encionar é a ideia
comum de muitos historiadores profissionais, e penso que
vocês concordarão comigo que se trata de uma ideia inte­
ressante e significativa. Foi, por exemplo, a ideia do finado
H. A. L. Fisher, autor de uma monumental “História da Eu­
ropa”.^ Um membro da sua escola enunciou perfeitamente o
seu conceito com estas palavras: “A história, segundo os seus
narradores, é uma sequência de acontecimentos sem sentido.

‘ Herbert Albert Laurens Fisher (1865-1940), erudito, parlamentar e


historiador inglês. Sua obra History ofEngland (1925) o colocou entre os
grandes historiadores da Inglaterra. Nota do tradutor.

244
A Visão Bíblica da História

sem leis e sem forma”. Em m inha opinião, essa é a ideia


comum dos historiadores profissionais dos nossos dias. Aí
estão homens cuja ocupação na vida consiste em estudar a
história. Eles observam os fatos, dispõem-nos e os confrontam,
e depois procuram ver se encontram algum sentido ou
alguma razão de ser, algum propósito, alguma filosofia, que
possam colocar diante de nós com relação aos fatos observados.
E esta é a sua conclusão - a história é uma sequência de
acontecimentos sem sentido, sem leis e sem forma.
São essas, então, as idéias mais comuns com relação à
história sustentadas no presente. Não podemos tratar delas
uma a uma. Apenas quero apresentá-las em contraposição ao
que encontramos estabelecido claramente na Bíblia, ao que
vemos aqui, nestas palavras do apóstolo.
Porventura é surpreendente e espantoso que alguém
ainda possa crer na teoria do progresso e desenvolvimento
inevitável? Será que os fatos que eu e vocês temos testemunhado
durante o presente século não a desaprovam inteiramente?
Seria possível dizer que o mundo está progredindo e que o
homem está ficando cada vez melhor? Ao observarmos a vida
atual, e o nosso m undo, podemos realmente afirm ar que
somos superiores aos que nos antecederam? Certamente chegou
o tempo de reexaminarmos a teoria que tem sido dominante
por tão longo tempo e que, em muitos aspectos, tem produzido
a complacência que tem sido a origem de tão grande número
dos nossos recentes problemas. E há outra coisa acerca dessa
teoria que a torna completamente impensável - ela é uma
total violação de qualquer ideia legítima de personalidade
humana, especialmente das personalidades dos homens que
vivem na presente época ou que viveram em qualquer ponto
da história. Falando grosso modo, essa visão da humanidade
significa que eu e vocês não temos importância como seres
humanos. Nada mais somos que partes deste processo que vai
levar à perfeição final. Não passamos de dentes da roda que
tem que girar até que a perfeição seja finalmente produzida.

245
2 PEDRO

Segundo esse conceito, por fim o homem vai ter uma vida
maravilhosa e realmente gostará de existir. Mas, que será de
nós? Bem, dizem eles, desafortunadamente, nossa parte é
apenas levar a isso - nós, pessoalmente, não contamos. Essa
teoria deprecia a personalidade e o valor do indivíduo humano,
e o tempo todo ela só está interessada naquele estado de
perfeição final que vai ser alcançado.
Quanto à ideia dos ciclos, há, como concedi, muita coisa
que se pode dizer. Mas, seguramente, ao mesmo tempo, temos
que concordar que há algo na história que vai além deste girar
em círculos. Civilizações vieram e se foram; isso é perfeita-
mente verdadeiro; mas, ao mesmo tempo, não seria verdade
que o mundo todo, e como um todo, está claramente se
movendo para diante? No passado houve civilizações na
China, mas elas não afetaram o resto do mundo. Houve a
mesma coisa no Egito. Mas agora, num sentido, o mundo é o
que nunca foi no passado. O que acontece hoje, acontece no
mundo inteiro. Não é de admirar que, hoje, uma guerra torna-
-se mundial. As viagens, a ciência, todas estas coisas nos
juntaram. A máquina fez isso. E qualquer coisa que acontece
no m undo atual afeta o m undo todo, de modo que, em
acréscimo ao revolver destes ciclos e dessas rodas individuais,
há, sugiro, um m ovim ento do todo que estranham ente
confirma a ideia e concepção bíblica da história.
E quanto à ideia do historiador profissional, tudo o que
precisamos dizer a respeito é que ela é típica do fundamental
ceticismo e desespero do homem que assume uma visão
materialista da vida e que não aceita o ensino bíblico a res­
peito de Deus, do homem e do universo. Quanto a esse
historiador profissional, eu diria que, deixando de lado este
Livro, pode-se dizer tudo em favor da sua ideia. Eliminem o
evangelho de Jesus Cristo, e penso que teremos que admitir
que esses cavalheiros são muito científicos e perspicazes, e se
guardaram de ser arrebatados pelas belas teorias concernentes
à vida.

246
A Visão Bíblica da História

Todavia, tomemos todas estas teorias e procurem os


contrapô-las ao conceito bíblico. Qual seria o enunciado

resultante? E totalmente diferente de todos os demais. A his­


tória, diz a Bíblia, primeiramente e antes de tudo está definidamente
sob 0 controle de Deus. Não é cega, ininteligível ou destituída de
inteligência. Não é o desenvolvimento de uma força cega ou
de poderes invisíveis sem pé nem cabeça. Não devemos dizer
que a história é sem sentido, sem leis e com pletam ente
disforme, porque podemos indicar alguns acontecimentos
históricos que muito clara e definidam ente mostram um
propósito. Basta ler a história dos filhos de Israel para ver
isso. Basta observar a Pessoa de Jesus de Nazaré para ver isso.
Basta tomar a história da Igreja para ver que há outro plano,
outra ordem de acontecimentos. Esse é o primeiro grande
pronunciamento da Bíblia - ela nos assegura que todo o pro­
cesso histórico está nas mãos de Deus. Como assinalamos
anteriormente, ela nos diz que Deus iniciou o processo, que
Deus inventou o tempo, introduziu o tempo, inseriu o tempo
no esquema das coisas, e que Deus irrompe no tempo e tem
em Sua mão o relógio do tempo. Essa é a primeira declaração.
Permitam-me assinalar, incidentalmente e de passagem,
que a Bíblia não discute conosco a questão da história; ela faz
a sua exposição e somos deixados na posição de aceitar ou não
0 ensino da Bíblia e a revelação que dela nos vem, ou então,
finalmente, somos deixados com o ceticismo do historiador
moderno. Sucede hoje que o mundo e suas teorias e seus filó­
sofos estão completamente frustrados e desnorteados. Mas,
contrariamente a isso tudo, há esta grande revelação que se
declara sobrenatural e essencialmente miraculosa. Ela não se
diz científica no sentido que nós atribuímos ao termo; ela se
apresenta como revelação de Deus, e se vocês examinarem a
história à luz desse fato, verão como a história está sendo
efetuada.
Em primeiro lugar e antes de mais nada, a Bíblia declara
que Deus controla a história; depois, a sua segunda declaração

247
2 PEDRO

é que a chave para o entendimento da história é o fato do pecado,


Mas, que significa isso? Permitam-me dizê-lo brevemente
assim; de acordo com a Bíblia, depois que Deus criou o
hom em , tendo-o feito perfeito e tendo-o colocado num
mundo perfeito, o homem rebelou-se e pecou contra Deus.
Assim, entrou na vida outro elemento, discordante e oposto
à mente, à vontade e ao propósito de Deus. Um novo fator
entrou na vida e no mundo do homem. Segundo a Bíblia,
todas as contradições, todas as dificuldades, todos os problemas
surgiram desse fato, e somente desse. Pois bem, vocês se
lem bram de que a Bíblia nos diz que quando o homem
pecou e desobedeceu a Deus, não afetou só a sua própria
história, mas também afetou a história da criação toda. E-nos
dito que Deus amaldiçoou a terra por causa do pecado do
homem. Nunca existiriam espinhos e cardos, se não fosse o
pecado; o homem nunca teria que ganhar o seu pão com o
suor do seu rosto, se não fosse o pecado. Por certo vocês se
lembram de como o apóstolo Paulo fala sobre isso tudo no
capítulo oito da Epístola aos Romanos: “a criação ficou sujeita
à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que a sujei­
tou” (VA: “a sujeitou em esperança”); “toda a criação geme e
está juntamente com dores de parto até agora”.
N outras palavras, não som ente a história hum ana é
diferente do que poderia ter sido, mas também o próprio
mundo no qual vivemos é diferente. Eu e vocês não podemos
conceber o que este mundo era quando Deus o criou; não
podemos visualizar a sua grandiosidade; não podemos conce­
ber o Paraíso. A perfeição era algo que nem sequer podemos
captar. O pecado mudou a criação, o mundo não é mais o que
era, os animais já não são o que eram, nada é a mesma coisa.
Não significa que não há beleza, encanto e glória na criação,
mas significa que, em comparação com o que fora destinada a
ser, é pouco menos que feia. O pecado afetou o homem, sua
história e toda a criação na qual ele se encontra, e, naturalmente,
vê-se isso em todo o transcurso do longo registro da história

248
A Visão Bíblica ãa História

do homem, aqui, na face da terra. E por isso que há estes


ciclos aparentes. O homem reteve alguns poderes, apesar de
haver pecado contra Deus, e tem dem onstrado isso em
diversos planos e desígnios que ele se propôs realizar e que
realizou.
Lem brem -se da grande história que nos vem lá do
começo e que nos conta que os homens, com sua astúcia e
com sua engenhosidade, disseram: “Edifiquemos uma torre”.
E começaram a construí-la, mas não tinham ido muito longe
na construção quando Deus a despedaçou e frustrou o propó­
sito deles, confundiu a sua língua,
y
e com isso mostrou que
Ele era o Senhor sobre todos. E esse tipo de coisa que vem
acontecendo sempre, daquele tempo em diante; constante­
mente os homens tentam ir avante sem Deus, e Deus permite
que eles vão até certo ponto, mas então, de repente, Ele
y

intervém, e tudo é destruído. E por isso que a história é


contraditória; é por isso que parecem ocorrer estes ciclos
recorrentes; é por isso que muitos se tornam cínicos e confu­
sos, ou, para empregar uma palavra comum, ficam frustrados.
Durante os cem anos passados estivemos tentando reconstruir
a to rre de Babel. Estávam os m uito confiantes em que
podíamos fazer o bem com os nossos próprios esforços. Deus
nos permitiu tentar isso, e depois, subitamente, o mundo que
tínham os co n struído foi despedaçado por um a guerra
mundial. Tudo isso é simplesmente Deus nos mostrando que,
por causa do pecado, não pode haver progresso ininterrupto.
y

E Deus pondo abaixo o orgulho do homem. Dessa forma


sucede que ocorre uma espécie de renascença, e depois, lá
vamos de volta à idade das trevas. E por isso que atualmente
muitos estão prontos a acreditar nos historiados profissionais.
De acordo com a Bíblia, a explicação disso é o pecado. Sendo
assim, se não começamos aceitando a doutrina bíblica do
pecado, não podemos entender a história, não podemos espe­
rar entender este mundo moderno no qual vivemos. É por
isso que há dificuldades, contradições e frustrações - o homem

249
2 PEDRO

está em inimizade contra Deus; e enquanto essa inimizade


persistir, esse tipo de coisa persistirá.
Permitam, porém, que eu passe à próxima declaração.
Em relação à salvação, a Bíblia mostra que não somente há
um plano, mas que há um plano progressivo e que está em
desenvolvimento. Há um nítido propósito na mente de Deus.
Pois bem, esse é o próximo ponto, que vemos com bastante
clareza - que na Bíblia há uma história da salvação. E essa é toda
a glória do nosso evangelho. Devido ao pecado, tudo deu
errado, e, se Deus deixasse a coisa nesse pé, a história do
mundo seria tão-somente uma torrente perpétua de pecado e
do mal. Mas, graças a Deus, há mais alguma coisa; é o tema da
Bíblia - a história da salvação. A Bíblia não é a história do
mundo, é a história da salvação, da ação de Deus no mundo.
Deus fez uma promessa, chamou um homem cujo nome era
Abrão. Fez dele uma nação. Ele faz várias coisas com essa
nação; deu testemunho concernente a Si próprio a todas as
outras nações por meio dessa nação. E prosseguindo, tudo foi
levando a algo; e então, na plenitude do tempo. Cristo veio, o
centro da história. Depois Ele fez certas coisas que levaram à
Sua morte na cruz, mas tudo de acordo com o “determinado
conselho e pré-conhecimento de Deus”. O plano de Deus
está aqui, está sendo efetuado, vai prosseguindo, está se
desdobrando. Deus o está realizando. A história da salvação
mostra e indica claramente o propósito.
Mas passemos ao último ponto, que é o seguinte: haverá
uma última e final consumação. E isso que Pedro nos relembra
neste versículo. O plano de Deus que foi iniciado e que está
continuando hoje, continuará sendo cumprido até à con­
sumação final. O que está acontecendo neste m undo no
presente é que Deus está chamando Seu povo. Ele trata com
indivíduos, resgata-os, liberta-os do mundo e os introduz num
novo reino. Ele os acrescenta a esta esfera da supra-história
e vai conduzindo tudo ao fim; e o fím é a volta de Jesus
Cristo a este mundo. Esta verdade é apresentada claramente

250
A Visão Bíblica ãa História

neste Livro do começo ao fim - a volta de Cristo para juízo!


O que Sua volta vai envolver? Vai envolver, segundo o registro,
o juízo do m undo inteiro. O pecado, o mal e tudo o que
pertence a essa esfera serão destruídos. Não somente isso - e
este é o detalhe particular que Pedro acrescenta - a terra, o
mundo, a criação como eu e vocês a conhecemos hoje, também
vão ser destruídos. Diz-nos o apóstolo que , assim como o
mundo antigo foi destruído pelo Dilúvio, assim também
Deus destruirá pelo fogo o presente mundo. No mundo
moderno há muitos que realmente acham que é mais que
ridículo alguém acreditar em algo parecido com isso hoje
em dia. Minha única resposta a essa ideia é a seguinte: esse
ponto é sem pre incluído como parte do ensino bíblico
concernente à salvação. Se eu creio nesta mensagem con­
cernente à salvação, à expiação e a todos os outros assuntos,
que direito tenho de rejeitar este ensino concernente à
consumação final e definitiva? Ele está aqui [no Livro], em
toda parte, e se eu creio que este apóstolo estava especialmente
inspirado quando escreveu, então tenho que aceitar seu ensino,
e eu 0 aceito. “O dia do Senhor virá como o ladrão de noite; no
qual os céus passarão com grande estrondo, e os elementos,
ardendo, se desfarão, e a terra, e as obras que nela há, se
queimarão.”
Existem duas principais idéias quanto ao que isso
significa. Fundam entalm ente elas diferem m uito pouco
uma da outra. Alguns defendem a ideia de que a terra e o
cosmos, toda a criação como nós a conhecemos, serão literal
e completamente destruídos e que Deus criará uma nova
terra. Mas, de acordo com a outra ideia, o que vai acontecer
é que a terra, como nós a conhecemos agora, vai ser inteira­
m ente destruída, mas os elementos fundam entais que a
constituem permanecerão e com eles Deus modelará um
novo mundo. Um exemplo disso é a maneira pela qual, no
tempo do Dilúvio, o mundo foi destruído, num sentido, mas,
todavia. Deus o reconstruiu. Deus o remodelou. Há muitos

251
2 PEDRO

que acreditam que o que vemos nos dois primeiros versículos


do livro de Gênesis, num sentido irá acontecer de novo. O que
naquela ocasião aconteceu foi que o Espírito ficou pairando
sobre o caos, dando vida ao caos. O mundo, dizem eles, tinha
sido criado “no princípio”, mas, em consequência do mal, tinha
entrado num estado de caos. Deus pairou (vivificantemente)
sobre aquele caos e trouxe à existência um novo mundo.
Digo que, em última análise, não importa em qual das
duas idéias acreditamos, mas o que importa é que, como diz
Pedro, “nós, segundo a sua promessa, aguardamos novos céus
e nova terra”. O que é absolutamente certo é que quando o
mal e o pecado forem destruídos e removidos, o mundo, a
terra como agora a conhecemos, será igualmente destruído.
Então serão produzidos um novo céu e uma nova terra. E
justam ente isso, diz Paulo, que em toda parte a criação
aguarda, e o aguarda anelantemente - a criação “espera a
manifestação dos filhos de Deus”. Os que são cristãos vão
estar naquele novo mundo com corpos glorificados, reinando
com Cristo e desfrutando com Ele o estado eterno. Os ani­
mais serão diferentes, a criação será diferente; tudo o que é
feio, doloroso e torpe será rem ovido. Não haverá mais
doenças, não haverá mais morte; choro, tristeza e sofrimento
serão removidos. Haverá uma terra glorificada e um céu
glorificado, e os homens e as mulheres glorificados viverão
nessa terra e debaixo desse céu.
Essa é a visão bíblica do fim definitivo da história, e, de
acordo com Pedro, os cristãos são aqueles que o esperam. “Mas
nós, segundo a sua promessa, aguardamos novos céus e nova
terra, em que habita a justiça.” Como eu me sinto com relação
à história hoje? Que penso das coisas como se veem no
presente? Como me mantenho no curso desta vida? Que é que
me capacita a viver? Estaria vivendo na esperança de que
alguma coisa maravilhosa vai acontecer, que todos os pro­
blemas serão banidos e que tudo estará bem dentro de um ano
ou dois, ou talvez dentro de dez anos? Ainda estaria apegado

252
A Visão Bíblica ãa História

a algo que vai acontecer nesta vida e neste mundo para a


minha felicidade? Se estaria, significa que, de acordo com a
Bíblia, tenho mente m undana, tenho mente carnal. Essa
absolutamente não é a visão bíblica. A Bíblia declara que
o cristão é alguém que realmente vive à luz deste bendito
Livro e que crê que, devido ao pecado, este m undo será
finalmente destruído. Vocês já notaram que nas predições
bíblicas do reto rno do nosso Senhor a este m undo há
sempre este elemento de palpável desesperança, que mostra
que as coisas vão de mal a pior? - “Quando o Filho do
homem vier, porventura achará fé na terra?” Esse é o ensino
do Novo Testamento. Ele não nos promete nenhum milênio
maravilhoso resultante do esforço do homem. Não! A predição
é: “guerras e rumores de guerras” e “aflições”. Se somos cristãos,
devemos estar esperando esse tipo de coisa. Não devemos ficar
deprimidos por causa disso. A esperança do cristão é de novo
céu e nova terra, a glória que nos aguarda com Deus em Cristo.
“Bem”, alguém perguntará, “você não está sendo deprimente
quanto ao im ediato?” Sou realista quanto ao im ediato.
Certamente o tolo é que tenta persuadir-se de que tudo está
bem e de que tudo vai ficar melhor, sem nenhum a base
para tal esperança. Ouçam os seus historiadores profissionais;
eles dizem que a esperança não tem justificativa, e eles têm
razão. Há somente uma esperança, somente uma consolação.
Seja o que for que tenhamos que suportar, seja o que for que
o m undo faça conosco, se somos filhos de Deus, somos
herdeiros de Deus, somos co-herdeiros com Cristo. E, tão certo
como estamos vivos hoje, há por vir um novo céu e uma
nova terra, e, se eu e vocês pertencemos a Cristo, vamos viver
nesse m undo. Essa é a doutrina pregada pelos cristãos
primitivos. Essa foi a doutrina que os habilitou a morrerem
alegremente entre os leões na arena. Essa é a doutrina que os
levou a dizer que, melhor lhes fora morrer voluntariamente
do que negar o seu Senhor. Essa é a fé que tem sustentado o
povo de Deus através dos séculos. Este é o único otimismo

253
2 PEDRO

OS dias de hoje, a única consolação. Oh, examinemos dili­


gentemente estas coisas! Leiamos de novo a Bíblia segundo
este ponto de vista. Aguardemos essa bendita esperança,
tratemos de adentrar aquele estado no qual, com o apóstolo
da antiguidade, anelemos e aguardemos a glória que ainda
está para ser revelada, a promessa de Deus a Seus filhos em
Jesus Cristo, o nosso Senhor.

254
20
A B endita Esperança
“Havendo, pois, de perecer todas estas coisas, que pessoas
vos convém ser em santo trato e piedade, aguardando, e
apressando-vos para a vinda do dia de Deus, em que os
céus, em fogo se desfarão, e os elementos, ardendo, se
fundirão? M as nós, segundo a sua promessa, aguardamos
novos céus e nova terra, em que habita a justiça. Pelo
que, amados, aguardando estas coisas, procurai que dele
sejais achados imaculados e irrepreensíveis em paz. ”
- 2 Pedro 3:11-14

Nestes versículos o apóstolo continua o tema de que já


estivera tratando nos três versículos anteriores. Já o descre­
vemos como a “visão cristã da história”, e no capítulo anterior
deste livro consideramos o que podemos descrever como o
lado “negativo” dessa visão cristã da história. Fizemos grande
esforço para mostrar que a Bíblia ensina em toda parte, não
somente um definido fim da história, mas também que esse
fim será para juízo, introduzido e acompanhado pela volta
do nosso Senhor Jesus Cristo como Rei. Ele julgará todos os
homens e mulheres que nalguma época tiverem vivido, e
haverá um julgamento final dos homens e dos anjos. Seguir-
-se-á a esse julgamento, não somente a condenação e destruição
dos ímpios, mas, além disso, o acontecimento descrito como
a destruição do m undo como o conhecemos. Os céus e a
terra, somos informados, passarão, e os elementos se fundirão
com ardente calor, e a terra também, e as obras nela existentes
serão queimadas.

255
2 PEDRO

Bem, a isso é que chamei o lado “negativo”. Afortunada-


mente, porém, a descrição não termina aí. Pedro vai adiante
e nos faz uma descrição positiva daquilo que o cristão pode
esperar. Para os ímpios não há nada para esperar, exceto sua
destruição final e definitiva. Fora de Cristo não há nenhuma
esperança; e o que este Livro nos diz em toda parte é que
aqueles que não creem no Senhor Jesus Cristo não têm nada
que possam esperar, a não ser um estado de punição e de
destruição sem alívio e sem fim. E um pensamento terrível
e terrificante, e, contudo, é o claro e franco ensino da Bíblia,
em toda parte. Mas, graças a Deus, há um outro lado, mantém-
-se uma esperança para o povo de Deus. “Mas nós”, diz o
apóstolo - já aqui está a esperança cristã, aqui está algo
diferente - “nós, segundo a sua promessa, aguardamos novos
céus e nova terra, em que habita a justiça”.
Pois bem, esta é, sem dúvida nenhuma, a promessa mais

gloriosa das que se acham em toda a Bíblia. E a isso que,


naturalmente, tudo o que lemos na Bíblia visa levar final­
mente. Este é 0 grande objetivo e propósito da salvação; e não
há nada, talvez, que seja tão triste e lamentável na história da
Igreja Cristã, principalmente nos últimos cinquenta anos,
mais ou menos, como a maneira pela qual esta suprema glória
da mensagem cristã tem sido quase completamente olvidada
e ignorada. O fato do estado sempiterno, ou eterno, é recitado
nos credos, mas quão raramente as pessoas lhe dão atenção!
Temos ficado tão preocupados com o estado de coisas aqui
na terra, que esquecemos a glória por vir. Os homens têm
falado tanto sobre “introduzir o reino de Deus na terra” que se
esqueceram desta gloriosa visão da eternidade exposta diante
de nós em tantas passagens das Escrituras Sagradas.
É a isso que o apóstolo se refere aqui, e a isso é feita fre­
quente referência em muitas passagens da Bíblia. Vejam, por
exemplo, a referência do apóstolo Paulo a esse ponto na
Primeira Epístola aos Coríntios, onde ele diz: “As coisas que
o olho não viu, e o ouvido não ouviu, e não subiram ao

256
A Bendita Esperança

coração do homem, são as que Deus preparou para os que o


amam”. Depois, na mesma Epístola, um pouco mais adiante
[no capítulo 6], ele diz: “Não sabeis vós que os santos hão de
julgar o mundo?”, e logo depois diz também: “Não sabeis que
havemos de julgar os anjos?” Ele estava tratando de um
problema muito simples relacionado com a igreja de Corinto.
Havia disputas e diferenças de opinião. Isso, diz com efeito
Paulo, é ridículo. Vocês, como povo de Deus, como santos,
não percebem que vão julgar o mundo e vão julgar os anjos
numa era vindoura? Ora, se vão fazer isso, por que não fazem
estas coisas menores?
Depois, lem brem -se tam bém das palavras do nosso
Senhor Jesus Cristo, registradas em Mateus 19:28, onde Ele
diz: “Em verdade vos digo que vós, que me seguistes, quando,
na regeneração, o Filho do homem se assentar no trono da sua
glória, também vos assentareis sobre doze tronos, para julgar
as doze tribos de Israel”. E esta é a palavra interessante - “rege­
neração”. “Vós, que me seguistes, quando na regeneração...” -
quando tudo for feito de novo - é o que significa. Noutras
palavras, quando o presente céu e terra tiverem passado e
houver novo céu e nova terra, então, nessa regeneração, vocês
vão sentar-se em doze tronos para julgar as doze tribos de
Israel. E por certo vocês se lembram de que o apóstolo Pedro,
no sermão registrado no capítulo três do livro de Atos dos
Apóstolos, começando no versículo 19, expõe o assunto nestes
termos: “Arrependei-vos, pois, e convertei-vos, para que sejam
apagados os vossos pecados, e venham assim os tempos do
refrigério pela presença do Senhor, e envie a Jesus Cristo, que
já dantes vos foi pregado, o qual convém que o céu contenha
até aos tempos da restauração de tudo, dos quais Deus falou
pela boca de todos os seus santos profetas desde o princípio”.
Aí está a mesma ideia - o tempo que virá quando todas as
coisas serão restauradas, “a restauração de tudo” ao estado de
glória que era a intenção de Deus para tudo quanto criou.
De novo, o apóstolo Paulo, no capítulo oito da Epístola

257
2 PEDRO

aos Romanos, diz muito definidamente que “O mesmo Espírito


testifica com o nosso espírito que somos filhos de Deus. E, se
nós somos filhos, somos logo herdeiros, também herdeiros de
Deus e co-herdeiros de Cristo”. Um herdeiro deve se herdeiro
de alguma coisa, e Paulo deixa simples e claro que somos
herdeiros deste grande novo mundo que virá, esta nova terra,
este novo céu, pois ele continua e diz: “Porque para mim
tenho por certo que as aflições deste tempo presente não são
para comparar com a glória que em nós há de ser revelada”. E
então, lembrem-se: “Porque a ardente expectação da criatura
espera a manifestação dos filhos de Deus. Porque a criação ficou
sujeita à vaidade, não por sua vontade, mas por causa do que
a sujeitou. Na esperança de que também a mesma criatura será
libertada da servidão da corrupção para a liberdade da glória
dos filhos de Deus”. Porque sabemos que toda a criação geme
e está juntamente com dores de parto até agora. E não só ela,
mas nós mesmos, que temos as primícias do Espírito, também
gememos em nós mesmos, esperando a adoção, a saber, a
redenção do nosso corpo. Ora, isso é, talvez, uma das mais
magnificentes declarações que já tem sido feito.
Mas depois, em acréscimo a tudo isso, achamos a mesma
doutrina exposta de maneira muito clara e explícita, espe­
cialmente no livro do Apocalipse, o último livro da Bíblia,
com aquele glorioso relato que dela é feito no capítulo vinte
e um. Ali, num sentido, nesse único capítulo, toda a doutrina,
toda a verdade, é posta abertamente diante de nós, e veremos
isso de m aneira particularm ente clara se compararmos e
contrastarmos esse capítulo, e, em certo sentido, todo o livro
do Apocalipse, com os primeiros capítulos do livro de Gênesis.
Talvez seja essa a melhor maneira de captar esta doutrina. No
livro de Gênesis vemos a criação do mundo; depois, neste
último livro, principalmente no capítulo vinte e um, vemos
esta nova criação, esta “regeneração” da qual o nosso Senhor
falou, a “restauração de tudo”, de que fala Pedro. E aí vocês
veem o grande contraste. Deus criou o mundo; depois o

258
A Bendita Esperança

pecado entrou e com ele o caos, mas Deus vai recriar o mundo.
Temos sido levados a lembrar que isso não significa que será
um mundo diferente; mas significa, sim, que o mundo como
o conhecemos vai ser expurgado e purificado do pecado até
que não reste nele nada do que resultou do pecado. E tudo
será perfeito.
Examinemos, porém, o assunto por meio de contraste. No
livro de Gênesis temos a narrativa da criação; no livro do
Apocalipse temos a nova criação. Em Gênesis nos é dito que
a lua, o sol e as estrelas, os luminares, os luzeiros nos céus
foram trazidos à existência; no livro do Apocalipse nos é dito
que não haverá necessidade desses luminares porque a glória
de Deus será a luz desta Cidade. Em Gênesis temos a narrativa
sobre como se perdeu o paraíso; em Apocalipse vemos o
paraíso reconquistado. Em Gênesis vemos o poder do diabo,
a serpente, o anjo caído que entrou na terra e causou a queda
do homem e toda a miséria, angústia e iniquidade que sempre
se lhe seguiu em toda a longa história da humanidade; em
Apocalipse vemos o diabo vencido, dominado e finalmente
destruído e lançado no lago da destruição e espoliado do seu
poder. Em Gênesis vemos o homem, por causa do pecado,
fugir de Deus, esconder-se da face de Deus no jardim, recuar
de diante de Deus, tentar ficar longe de Deus - desde aquele
tempo o homem tem tentado fazer isso - mas em Apocalipse,
como resultado do evangelho e de suas bênçãos, sua benig-
nidade e sua misericórdia, vocês veem Deus habitando com o
homem, e o homem habitando com Deus e na luz de Deus, o
alheamento e o temor de Deus removidos, e ali, em perfeita
comunhão, eles habitam juntos. Em Gênesis vocês veem o
homem desobedecer a Deus, comer da árvore proibida, ser
expulso do jardim e depois ser impedido, por uma espada
flamejante e pelos querubins, de chegar à Arvore da Vida e
de comer seu fruto; no livro do Apocalipse (capítulo vinte e
dois) é permitido ao homem tomar livremente e comer da
Arvore da Vida - justam ente aquilo que originalm ente

259
2 PEDRO

lhe fora proibido, agora lhe é dado como a maior dádiva, a


maior bênção.
— A grande promessa mantida diante de nós é o que Pedro
tem em mente. “Mas nós, segundo a sua promessa” - a promessa
que percorre a Bíblia toda - “aguardamos novos céus e nova
terra...”. Depois do juízo e da destruição dos ímpios, depois
que o mundo como o conhecemos tiver sido queimado sob
um calor abrasador, haverá este novo céu e esta nova terra. O
que isto significa é que o fogo terá queimado do cosmos toda
mancha de pecado, os espinhos e cardos, as doenças, tudo o
que causa pestes, tudo o que leva a terremotos e calamidades.
Tudo será removido, a terra será expurgada de todo esse
tipo de coisa - é isso que o fogo significa. Ele queimará tudo
o que é mau, e o resultado é que haverá “novos céus e nova
terra, em que habita a justiça”, realidade de transcendental
beleza, encantamento e glória.
Pois bem, aqui estamos na esfera de algo que é verda­
deiramente maravilhoso e estupendo. As nossas imaginações
são fracas demais para apreendê-lo, e, contudo, procurei
lembrar-lhes o que as Escrituras nos dizem a respeito. Não é
muito mais que isto: “As coisas que o olho não viu, e o ouvido
não ouviu, e não subiram ao coração do homem, são as que
Deus preparou para os que o amam. Mas Deus no-las revelou
pelo seu Espírito...”; e no-las revelou neste Livro. Esse é o
ensino; é nisso que, de acordo com Pedro, os cristãos devem
concentrar o seu olhar. Falamos sobre as belezas do mundo
e da criação como se nos apresentam no presente - e há
sublimes belezas na natureza - e, todavia, de acordo com este
Livro, quando nós, filhos de Deus, virmos esta nova criação,
esta terra glorificada, as belezas das quais falamos no presente
empalidecerão reduzindo-se a uma insignificância. Haverá
tal glória que a mente do homem no presente não a pode
captar nem entender. O lobo morará com o cordeiro; o leão
comerá palha como o boi; não haverá contenda, nem tristeza
nem lamentos; tudo isso vai ser removido. Leiam de novo

260
A Bendita Esperança

O capítulo vinte e um do livro do Apocalipse e meditem


nele - é por isso que devemos interessar-nos.
Agora, sendo essa a visão, sendo esse o glorioso prospecto
sustentado pelos cristãos, qual deve ser a nossa reação a isso?
Pedro no-la diz aqui, neste versículo. Ele diz três coisas. Só
vou anotá-las. A primeira é que os cristãos devem aguardar
tal faw , a segunda, que eles devem preparar-se para isso; e a
terceira é que devem apressar a sua vinda. São essas as três
coisas que Pedro nos diz aqui. Vejamo-las muito brevemente.
O primeiro efeito é que devemos estar sempre aguardando
a nova realidade (VA: “olhando-a, à sua espera”). Porventura
vocês notaram como Pedro fica repetindo o verbo “olhar”
nos versículos treze e catorze? Essa é a primeira coisa que o
cristão faz - ele olha para estas coisas, esperando-as. Bem, essa
palavra não requer nenhuma explicação. Talvez a maneira
mais simples de explicá-la seja a seguinte: é a mesma palavra
que foi empregada a respeito do homem que estava sentado
à porta do templo chamada Formosa, no capítulo três de
Atos dos Apóstolos. Certamente vocês se lembram da narrativa.
E-nos dito que Pedro e João subiam juntos ao templo à
hora da oração, e lá estava um homem deixado por seus
amigos no lado de fora do templo, e o homem era coxo desde
o seu nascimento. Era colocado ali para receber esmolas, e
ali ficava sentado. Pedro e João vinham vindo, e o homem,
provavelmente de forma mecânica, estendeu sua mão para
receber algo. Mas Pedro dirigiu-se a ele e lhe disse: “Olha
para nós”, e o texto nos diz que o homem “olhou para eles,
esperando receber deles alguma coisa”, e essa foi a mesma
palavra empregada aqui, na passagem que estamos estudando
- “esperando, olhando, aguardando, antecipando”.
Que significa isso? Penso que devemos elaborar o assunto
desta maneira: a expectação e a esperança do cristão não se
baseiam neste mundo. As vezes penso que esta seja talvez a
mensagem particularmente necessária nesta época. Em épocas
pretéritas era necessário dar ênfase a diferentes princípios e

261
2 PEDRO

doutrinas. Sugiro que talvez hoje seja necessário enfatizar


esta doutrina acima de todas as demais. A esperança e a
expectativa do cristão não se baseiam neste mundo. O real
centro da posição cristã consiste em crer que este mundo
está condenado, e que não há como questionar isso. É por
essa razão, naturalmente, que o evangelho ataca frontalmente
todo o patético otimismo dos cem anos recém-passados, que
lamentavelmente fez muitas pessoas extraviarem-se e que,
por sua vez, levou a esta presente geração cínica de homens
e de mulheres. Nossas esperanças foram edificadas em relação
às coisas que iriam acontecer aqui, neste mundo e no tempo;
e vimos exatamente o oposto do que esperávamos. Mas o
tempo todo o evangelho tem estado aqui, advertindo-nos e
m ostrando-nos que a nossa esperança neste m undo era
completamente falsa.
Agora, devemos entender claramente como este ensino
deve ser exposto e como ele funciona. Outro dia ouvi um
homem apresentar o que ele achava que era a mensagem do
evangelho desta forma. Disse ele que a mensagem para o
mundo na hora presente é: “Arrependimento ou morte”. Ele
nos falou sobre a energia atômica - isso para ele era a coisa
mais importante - e ele disse que a mensagem era que, se as
nações do mundo não se decidirem a aplicar os princípios
cristãos e não eliminarem totalmente o poder atômico, bem,
esse poder atômico vai destruir o mundo. Por isso a mensa­
gem é: “Arrependimento ou morte”. Isso parece plausível e,
contudo, desejo mostrar que não é essa a mensagem cristã.
Eis a mensagem cristã: o mundo não vai se arrepender,
o m undo está condenado. Já passamos por duas guerras
mundiais. Vocês não achariam que se alguma coisa pudesse
dar sobriedade a um a raça isso o teria feito? Mas não
fez. Em vez disso, tem havido um endurecim ento do
coração, e relatórios enviados por missionários, contando
experiências ocorridas em campos de concentração durante
a guerra, mostram que, longe de tais experiências levarem

262
A Bendita Esperança

OS homens a Cristo os têm endurecido.


Ora, é justamente isso que a Bíblia nos diz - que a rebelião
contra Deus continuará, e que quando as coisas piorarem, a
rebelião aumentará e será mais intensa. Não, não se pode
intimidar o mundo e assim levá-o a crer em Deus; a Bíblia é
eloquente sobre esse tema. O mundo O odeia mais ainda. O
mundo está condenado. A mensagem não é que se arrependa
ou perecerá; a mensagem é que o mundo vai perecer. Não
significa que estou dizendo que o mundo vai perecer logo,
não significa que eu me convenci ou me convença da
necessidade de crer que as bombas atômicas e o poder atô­
mico vão levá-lo ao fim. O mundo pode decidir eliminar
o poder atômico, mas isso não vai salvar o mundo. Pode
prolongar o curso da história - não sabemos, e não devemos
preocupar-nos com tempos e estações - mas o que sabemos é
que 0 mundo está condenado a uma completa e final destrui­
ção. A mensagem do evangelho não se dirige ao mundo em
geral, dirige-se aos homens e às mulheres para que se salvem
do mundo que está condenado. E uma mensagem que diz:
“Se você não quiser ficar envolvido nessa condenação,
arrependa-se e creia no Senhor Jesus Cristo - saia do mundo”.
Assim, a mensagem enviada ao mundo não pode ser para
as nações em geral ou para o mundo como um todo; para
este é uma mensagem que pronuncia condenação, juízo e
destruição.
Permitam-me apressar-me e dizer que esta doutrina não
significa, nem por um momento, que os cristãos não devem
preocupar-se com o estado deste mundo. De modo nenhum.
Mas significa, sim, que o cristão nunca deve “perder a cabeça”
quanto às chamadas reformas sociais. E essa tem sido a tragédia
dos últimos cem anos. Parece-me que os maiores responsáveis
pelo estado em que se encontra o mundo, e principalmente
pelo estado em que a Igreja se encontra, foram os chamados
pregadores políticos do século dezenove que dedicaram grande
entusiasmo, zelo e energia à tentativa de reformar o mundo

263
2 PEDRO

e a sociedade, e que davam a impressão de que a educação


era mais importante que a salvação. Eram homens que fala­
vam sobre este mundo e sobre o que podería ser feito neste
mundo e nesta hora, e desviavam a atenção dos homens e das
mulheres para longe do mundo vindouro. A tragédia não é
tanto que eles acreditavam na reforma social, mas que se
tornaram exageradamente zelosos nisso, e fixaram sua fé na
A

reforma. E dever do povo cristão, crendo que este mundo


pertence a Deus, controlar o pecado e os maus efeitos do
pecado; e é por isso que, de acordo com as Escrituras, os
governos, as autoridades e os poderes foram trazidos à exis­
tência. Foi Deus quem ordenou o Estado, foi Deus quem
ordenou os magistrados e os reis. Entretanto, qual é a função
deles? Num sentido, sua função é inteiramente negativa -
impedir o mundo de tornar-se um lugar pior. A função do
governo e da atividade hum ana é restringir o mal e seus
efeitos, embora isso jamais produza condições perfeitas.
Assim, pois, o cristão não somente deve crer em governo
hum ano e em promulgação de leis; ele deve tomar parte
nisso. Mas, no momento em que ele começa a fixar sua fé
nisso e a crer que isso pode salvar o mundo, está negando a fé
cristã. Não temos que fixar nossa fé neste mundo, nossa
esperança não deve ser posta nele. O cristão é alguém para
quem a principal coisa, o que há de grande, é aquela glória
por vir, aquele m undo vindouro. “O lhem esperando!”
“Olhamos esperando novos céus e nova terra.” A questão que
cada um de nós deve encarar é: estaríamos olhando, aguar­
dando estas coisas? Pedro afirma que isso é inteiram ente
inevitável. Você não pode crer nesta doutrina, não pode
aceitar as profecias do princípio ao fim, não pode aceitar
esta mensagem, sem contemplar estas coisas, sem esperá-las,
sem anelar por elas. Receio que, ao meditarmos nesta gloriosa
verdade, nos sintam os condenados e censurados ao p er­
cebermos quanto do nosso tempo, do nosso pensamento e das
nossas expectativas dedicamos a este mundo e a suas atividades.

264
A Bendita Esperança

e quão pouco pensamos naquele outro mundo. E, todavia, se


tão-somente compreendéssemos que aquele é o mundo real -
que “as coisas que se veem são temporais, e as que se não
veem são eternas”! Se cremos neste evangelho cristão, as coisas
eternas são as que estão diante de nós. M uito bem, con-
templemo-las; se cremos nelas, esperemo-las anelantes. Nunca
haja na história ou na narrativa da nossa vida um dia em que
não paremos e não façamos uma pausa para meditar nestas
coisas e contemplá-las. Falamos muito acerca do sofrimento
presente - oh, não estou aqui para fazer pouco caso disso,
mas sim para insistir em que o cristão não deve parar aí!
D evem os p en sar p o sitiv am en te na realidade por vir,
pensar nos novos céus e na nova terra, pensar nesta criação
glorificada. Essa é a realidade para a qual estamos indo, se
estamos em Cristo. Muito bem, olhemos para ela esperando-
-a, e passemos o tempo de que dispomos contemplando-a
e meditando nela.
No entanto, permitam que eu passe ao segundo ponto. O
cristão não somente olha esperando estas coisas, mas também
se prepara para elas. Pedro, de novo, expõe isso muito clara­
mente: “Havendo, pois, de perecer todas estas coisas, que
pessoas vos convém ser em santo trato e piedade?” E também
no versículo 14: “Pelo que, amados, aguardando estas coisas,
procurai que dele sejais achados imaculados e irrepreensíveis
em paz”. Pois bem, esta é a base do apelo do Novo Testamento,
em toda parte, para conduta cristã e comportamento cristão.
O Novo Testamento nunca apela para a moralidade, a ética, a
conduta e o comportamento em si mesmos. Nunca! O Novo
Testamento nunca pede aos homens que vivam uma vida
virtuosa e benéfica só por amor desse modo de viver. Seu
apelo nestas linhas é sempre em term os desta “bendita
esperança”. Dessa forma, não há nada, em nenhum sentido,
que seja tão contraditório como a posição do cristão que faz
objeção às exigências éticas do Novo Testamento. Pedro diz
que isso é lógico - não há necessidade de argum entar a

265
2 PEDRO

respeito, é inevitável, é absolutamente racional. Se você declara


que a realidade para a qual você olha esperando, a qual você
espera, e a espera anelantemente, é um mundo no qual há
justiça e não há nenhum pecado, como pode você continuar
a fazer aquilo que pertence à esfera do pecado? E uma
contradição em seus próprios termos. Esse é o argumento
do apóstolo, e ele o submete ao bom senso e à lógica dos seus
leitores. E por isso que me parece que aqueles que abordam a
santidade como o cum prim ento de uma lista de regras e
regulamentos estão negando o verdadeiro ensino do próprio
Novo Testamento. Não é esse o caminho; o mundo tenta fazer
isso; não é esse o apelo cristão, de maneira nenhuma. O apelo
cristão é este - vocês alegam que são filhos de Deus, vocês
dizem que creem no evangelho; muito bem, se vocês creem
realmen-te nisso, é hora de começarem a preparar-se para
isso. Ouçam João dizer a mesma coisa - não sabemos “o que
havemos de ser. Mas sabemos que, quando ele se manifestar,
seremos semelhantes a ele; porque assim como [Ele] é o
veremos. E qualquer que nele tem esta esperança purifica-
-se a si mesmo” - naturalmente, é inevitável. Se eu digo que
isso é o meu desejo, bem, permitam-me dar uma prova e
demonstração prática.
Ah, sim, mas há mais uma coisa! Devo viver esta vida
cristã piedosa, altamente moral, santa porque de outro modo,
quando chegar o dia, ficarei envergonhado. “Pelo que, amados,
aguardando estas coisas, procurai que dele sejais achados
imaculados e irrepreensíveis em paz.” Que é que o apóstolo
quer dizer? Quer dizer o seguinte: vem o dia em que o nosso
Senhor voltará, e “todo olho o verá”. Eu e vocês O veremos.
Por isso cantamos aquele hino de Murray McCheyne -

“Então, Senhor, saberei plenamente,


Não antes, só então, quanto devo a Ti”.

Nós O veremos, veremos o bendito Filho de Deus, que.

266
A Bendita Esperança

embora sendo igual ao Pai e co-eterno, desfrutando a ventura


da eternidade, deixou tal posição e Se humilhou, esvaziou-Se,
despiu-se das insígnias da Sua glória e Se fez homem na face
desta terra, suportou o que suportou até a morte na cruz a fim
de que eu e vocês fôssemos perdoados, fôssemos libertados do
pecado e fôssemos feitos herdeiros desta glória que nos espera.
Nós O veremos! Então veremos o que isto significou para
Ele e o que Lhe custou. E se você quiser encarar isso, diz
Pedro, em paz, bem, aplique-se diligentemente no sentido de
que possa comparecer perante Ele sem mácula e irrepreen­
sível. Quando então O vir, e vir o significado da Sua vida e o
que Lhe custou redimir você e levá-lo àquela glória, então
você se lembrará do tempo em que, na terra, você brincou com
o pecado, e de que, dizendo-se cristão, na verdade gostava do
mundo e se entregava a ele e passava o tempo contemplando-
-o e contemplando as atividades do mundo, e você vai sentir-
-se um canalha. Você vai sentir-se pior que canalha; você vai
ficar envergonhado, incapaz de olhar para Aquele que tanto
fez e tanto sofreu. Ah, diz Pedro, se você quiser evitar isso,
seja diligente e prepare-se para o dia, para a Vinda de Cristo
e para a sua entrada naquela glória!
Finalmente, não devemos somente aguardar tal glória e
preparar-nos para ela, mas também devemos apressar a sua
vinda. “Aguardando, e apressando-vos para a vinda do dia de
Deus”, diz ele no versículo doze. Isso também é um grande
mistério. Se estas coisas estão determinadas, como podemos
apressá-las? Pedro diz exatamente a mesma coisa, vocês se
lembram, no sermão registrado no capítulo três de Atos dos
Apóstolos. Certamente significa que não devemos pensar
nestas coisas em termos de datas, não devemos pensar nelas
em termos do tempo; é uma questão de condições morais. O
fim virá quando as condições morais forem tais que Deus o
julgue necessário. Bem, podem os apressar a sua vinda
preparando-nos, pregando o evangelho, falando a outros
sobre Cristo. O fim virá quando a plenitude dos gentios e a

267
2 PEDRO

plenitude dos judeus forem cumpridas, quando todos forem


resgatadas, quando todos os remidos tiverem sido tirados do
mundo. Apressemos o fim preparando-nos, apressemo-lo
propagando o evangelho, pregando, ou ajudando o sustento
da obra missionária no exterior e da obra da Igreja neste
país; de fato, podemos apressar a sua Vinda fazendo tudo
que pudermos.
Pois bem, de acordo com Pedro, essa é a reação cristã a
este glorioso evangelho; essa é a bendita esperança desta
doutrina maravilhosa. Que vista! Que visão! Pergunto-me se
a temos contemplado. Penso que talvez a m aneira mais
simples de submeter isso à prova é fazer a nós mesmos estas
perguntas: qual é a nossa reação à presente situação? Ficamos
completamente deprimidos, ficamos até surpresos, ficamos
decepcionados? Achamos que está tudo errado? Continuamos
fixando a nossa fé no que o homem pode fazer? Se isso é o
caso, não temos a esperança cristã. O cristão é alguém que não
espera nada deste mundo. Ele não se surpreende ante o estado
atual do mundo porque isso foi predito e é a única coisa que
se pode esperar dele. O cristão não prende sua esperança
neste mundo porque sabe que ele está condenado. Por isso
passa o tempo contemplando esta outra visão - algo que
ninguém pode tirar dele. O mundo, o mal e satanás nunca
poderão despojar-nos da nossa herança. Se você é de Cristo,
você é “co-herdeiro com Cristo”. Ele entrou na herança, e,
certamente, assim como Ele entrou lá, todos os que Lhe
pertencem igualm ente entrarão e estarão com Ele. Olhe
para a bendita herança, espere-a, prepare-se para ela, apresse
a sua vinda.

268
21
A Consolação das Escrituras
“E tende por salvação a longanimidade de nosso Senhor;
como também o nosso amado irmão Paulo vos escreveu,
segundo a sabedoria que lhe foi dada; falando disto, como
em todas as suas epístolas, entre as quais há pontos difíceis
de entender, que os indoutos torcem, e igualmente as outras
Escrituras, para sua própria perdição. Vós, portanto,
amados, sabendo isto de antemão, guardai-vos de que,
pelo engano dos homens abomináveis, sejais juntamente
arrebatados, e descaiais da vossa firm eza.”
- 2 Pedro 3:15-17

Nestes versículos o apóstolo, tendo completado a sua


exposição doutrinária, conclui sua carta com um apelo, e, num
sentido, seu apelo final. A grande necessidade destes cristãos,
diz-nos ele, à luz de tudo o que ele vinha dizendo - e, portanto,
a nossa grande necessidade também - é a necessidade de
perseverança, a necessidade de estabilidade, a necessidade de
persistência. Notem que a ideia se repete nestes versículos.
Por isso temos que levar em conta a magnanimidade do nosso
Senhor para haver salvação; por isso o apóstolo se refere a
algumas pessoas instáveis; por isso ele conclui dizendo: “Vós,
portanto, amados, sabendo isto de antemão, guardai-vos de
que, pelo engano dos homens abomináveis, sejais junta-
mente arrebatados, e descaiais da vossa firmeza”. E disso, diz
ele, que necessitamos acima de tudo mais - desta qualidade
de persistência, paciente persistência, estabilidade, firmeza,
continuidade.

269
2 PEDRO

Bem, em certo sentido esse é o grande tema do Novo


Testam ento em geral. Poderiam os passar m uito tem po
simplesmente fazendo uma lista de citações do Novo Testa­
mento para mostrar que, acima de tudo e de qualquer outro
apelo, o grande apelo que vai de fio a pavio é este apelo no
sentido de que haja continuidade, persistência, perseverança,
firmeza. O nosso Senhor constantemente trata deste ponto,
mas talvez nunca mais claramente do que com aquelas pala­
vras com as quais Ele fala sobre “o dever de orar sempre, e
nunca desfalecer” - nunca desanimar. O desânimo é o maior
perigo - fraquejar, desistir, ir embora, retroceder. Ele exorta
constantemente os Seus discípulos contra esse perigo. Por
isso Ele lhes diz que neste mundo eles têm que persistir
em meio a muitas tribulações - “No mundo tereis aflições”.
Ele os prepara para isso tudo porque sabe que a m aior
tentação que os assaltará é a tentação de fraquejar sob o
desalento e a perseguição. Por isso os prepara para o que
vem; e constantemente os exorta à oração, ao cuidado dili­
gente e a esta firmeza e perseverança.
Vocês verão isso exatamente da mesma m aneira nas
diversas Epístolas escritas pelo apóstolo Paulo, como Pedro
nos relembra nesta passagem que estamos estudando. De certo
vocês se lembram de que Paulo disse aos gálatas que “a seu
tempo ceifaremos, se não houvermos desfalecido”. E um apelo
para que continuem , sigam firmes, prossigam. E depois,
naturalmente, quase não preciso salientar que é, acima de tudo
mais, a mensagem geral da Epístola aos Hebreus. Vocês vão
receber certas bênçãos, diz essa carta, se mantiverem firme a
confiança que tinham no começo. Esse é o refrão que percorre
a Epístola toda. Esse é o ponto visado na gloriosa argumentação
que consta no capítulo onze. Com que objetivo se refere àquela
lista de santos do Velho Testamento? Bem, aqueles crentes
estavam vivendo num mundo difícil e contraditório; mas eles
foram em frente apesar de tudo. Como Moisés, eles tinham
em vista “a recom pensa”. Buscavam “a cidade que tem

270
A Consolação ãas Escrituras

fundamentos”. O apelo geral da Epístola aos Hebreus é para


que haja perseverança, confiança, continuidade, paciência na
prática do bem. Temos esse tipo de mensagem exatamente da
mesma maneira na Primeira Epístola de João, e certamente
esse foi o grande motivo pelo qual foi escrito o livro do
Apocalipse. Esse é um livro que nos apresenta uma previsão
do que vai acontecer, a fim de que estejamos preparados para
isso. Esse é um dos grandes temas do Novo Testamento em
geral. Não há nada que seja uma apresentação mais falsa do
ensino do Novo Testamento do que a ideia de que é simples­
mente um livro que meramente nos diz que creiamos no
Senhor Jesus Cristo e então tudo estará perfeitamente certo,
nunca m ais haverá problem as e tribulações, podem os
descansar em paz e, nesse estado de passividade, seremos
transportados para o céu. Nada disso! E um “combate da fé”, e
“por muitas tribulações nos importa entrar no reino de Deus”.
O tempo todo a mensagem é um apelo para que haja a mesma
coisa que aqui encontramos: persistência, perseverança.
Bem, por que isso é necessário? Sugiro três motivos. O
primeiro é a demora da vinda do Senhor. Eu disse demora;
talvez devesse dizer demora aparente. Quero dizer com isso
que estas pessoas, estes cristãos primitivos, tendo ouvido a
pregação do apóstolo, de algum modo ficaram com a ideia de
que o nosso Senhor ia voltar imediatamente. E porque Ele
não veio imediatamente, começaram a levantar dúvidas e a
questionar. Esse é o grande tema desta Epístola - por que Ele
não veio? E já vimos a resposta de Pedro - o calendário de
Deus é moral, e para Ele “mil anos são como um dia, e um
dia como mil anos”.
Um segundo fator que tendia a produzir esse enfraque­
cimento eram a obra e o ensino dos falsos mestres. Não preciso
voltar a eles; esse é o tema geral do capítulo dois, como já
vimos. Mas Pedro se refere a ele novamente no versículo
dezessete - “Guardai-vos de que, pelo engano dos homens
abomináveis, sejais juntamente arrebatados” (VA: “...levados

271
2 PEDRO

pelo erro dos ímpios”). Os ímpios são os falsos profetas, e eles


continuam conosco. Não é fácil ser cristão atualmente. Há
tantos pensamentos, idéias, sugestões e insinuações que podem
causar-nos desânimo, e que na verdade nos induzem ao
relaxamento, à indolência, ao enfraquecimento e a deixar de
resistir! Estamos numa posição difícil. Portanto, nunca a
presente exortação à perseverança foi tão necessária como o é
hoje.
Depois, talvez, o terceiro fator, um fator que Pedro deseja
enfatizar particularmente nesta parte, é o que poderiamos
denominar nossa má vontade natural, a nossa tendência natural
para a indolência. Não seria uma extraordinária manifestação
do pecado que o homem natural, quando se interessa pelas
coisas materiais, caracteriza-se por energia e capacidade
empreendedora, e quando a questão é permanecer leal aos
princípios cristãos, o crente é afetado pela instabilidade e pela
indolência? As vezes sinto que no presente não há nada que,
quanto a nós, cristãos, nos faça sentir tanta vergonha como a
maneira como tão facilmente somos afastados dos nossos
conceitos cristãos. Quando observamos o contraste entre o
mundo e nós, não seria isso realmente triste e patético? Custa
muito ficar entre o homem do mundo e seus planos e aquilo
em que ele crê. Ele suporta quase tudo para obter o que lhe
apraz e no que ele acredita. Mas muito frequentem ente
damos a impressão de que custa muito pouco ficar entre
alguns de nós e a nossa lealdade ao evangelho - este evangelho
que nos diz que somos filhos de Deus, que estamos indo para
uma glória que transcende a mais elevada imaginação, que
somos herdeiros de Deus e co-herdeiros com Cristo. Dizemos
que cremos nessas verdades e, não obstante, com que facilidade
podemos ser desviados delas. Esses, então, foram os motivos
que levaram o apóstolo a fazer este apelo; e estes fatores ainda
são proem inentes entre nós e continuam tendo poderosa
influência.
A questão é, então: como resistir a estas tentações e a estas

272
A Consolação das Escrituras

tendências? Como podemos ser perseverantes, como podemos


continuar como homens dignos do nome? Para usar a língua
gem de Paulo, como podemos portar-nos “varonilmente” e ser
“fortes”? O apóstolo Pedro responde a essas perguntas aqui.
Como o faz? Bem, permitam-me assinalar, antes de tudo, o
que ele não nos diz. Qual é o seu apelo? Em primeiro lugar,
não é um apelo dirigido à nossa coragem como tal, não é
um apelo para mostrarmos fibra. Coloco isto nestes termos
negativos porque no presente há o grande perigo de aplicar­
mos num sentido material o que também nos foi dito num
sentido espiritual. Vivemos numa época de dificuldade, e
apelos como estes são feitos a nós. Lembremo-nos dos apelos
feitos durante a Segunda Guerra Mundial; eram apelos diri­
gidos à nossa fibra, à nossa varonilidade, à nossa força. Bem,
não é esse o apelo que o apóstolo nos faz aqui. É muito
im portante com preender isso. O cristão, como pretendo
mostrar-lhes, não segue firme e sempre simplesmente em
termos de varonilidade e de fibra humana. Tampouco Pedro
apela aos cristãos que vejam a situação filosoficamente.
Também sobre isso ouvimos muita coisa hoje em dia. Há
pessoas que podem ir avante, não porque têm alguma par­
ticular varonilidade ou coragem, mas porque decidiram que
podiam manter-se numa postura filosófica acerca da situação.
“Que adiante queixar-nos”, elas perguntam; “aí está a situação;
temos que passar por ela.” Mas, embora do ponto de vista
natural isso pareça muito bom, não nos ajuda radicalmente a
confrontar a situação. Muitas vezes o homem tem dito; “Vou
simplesmente tom ar uma atitude filosófica. As coisas são
como elas são, os acontecimentos são desafortunados, mas
não adianta chorar sobre o leite derramado. Sem dúvida os
acontecimentos vão melhorar”. Ele não perde o ânimo, apenas
aceita a situação dessa maneira - fruto de uma atitude filosófica.
Não é esse o apelo aqui; não é desse modo que o cristão age.
Também não é um apelo para alguma resignação mecânica.
Pedro não lhes diz apenas: “Ora, reaja à altura; a coisa não é

273
2 PEDRO

muito boa, mas, bem, aí está, esforça-se, vá adiante com isso,


reaja à altura; faça o melhor que puder, você pode muito bem
resignar-se à situação”. Essa também não é a maneira cristã
de agir. Pedro tampouco apela para que eles vivam de suas
experiências passadas. Ele não diz: “As coisas não são como
você esperava. O Senhor não voltou. Que é que você vai fazer?
Por que não pensa nas experiências m aravilhosas que
você teve? Reveja os momentos emocionantes que teve na
vida, volte às suas experiências mais altas. Encontre alguma
coisa que o alegre. E, à luz das experiências passadas, vá adiante
hoje e siga visando o futuro; viva da sua experiência e de
tudo o que o tem ajudado”. Digo novamente que isso tam­
bém pode ser muito valioso, no sentido natural e no plano
puramente humano; mas não é o método do evangelho.
Bem, essas negativas são importantes porque muitíssimas
vezes todos nós deveriamos declarar-nos culpados de, em nossa
vida cristã, nos empenharmos em vencer nossas dificuldades
e nossos problemas usando algum método psicológico, em vez
de fazê-lo pelo método espiritual. Mas, certamente, alguém
perguntará, você não é contrário à psicologia? Oponho-me à
psicologia se ela se coloca entre nós e aquilo que é verdadeiro.
A sugestão e o tratamento psicológicos podem ser uma ajuda
temporária para os que não são cristãos; mas o cristão consolar-
-se, firmar-se e fortalecer-se só pelo uso da psicologia pode ser
uma negação da verdade do evangelho. Com muita frequência
vemos que a própria Igreja Cristã promove a psicologia em
vez de apresentar a mensagem cristã com seu conforto e com
sua alegria. “Ah”, dizem muitos, “isso é excelente. Sinto-me
melhor por estar nessa atmosfera!” Pode ser, mas eu lembro
a você que existem muitas coisas que podem produzir esse
efeito. Pode ser produzido pelo uso de drogas ou de álcool.
Você esquece os seus problemas e se alegra no momento.
Mas esse não é o método do evangelho.
Como faz o evangelho? Bem, o método pelo qual o evan­
gelho nos dá firmeza é infundir conhecim ento em nós.

274
A Consolação ãas Escrituras

dar-nos instrução; ele nos apresenta a verdade. “Tende por


salvação a longanimidade de nosso Senhor; como também o
nosso amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria
que lhe foi dada; falando disto, eomo em todas a suas
Epístolas.” Esse é o método. Portanto, quando eu e vocês nos
defrontarmos com a contradição e com os problemas da
presente hora, o que somos exortados a fazer é ler o Novo
Testamento, voltar a esta revelação e a esta verdade. Agora,
por que devemos fazer isso? Como isso nos ajuda? Essa é a
questão. Por que eu, como cristão, ao confrontar o mundo
moderno, devo dizer: “Bem, eu não vou dar ouvidos a ne­
nhuma das coisas que estão sendo ditas pelo mero homem.
Não vou tentar ajudar a mim mesmo experim entando a
psicologia do homem. Vou ao Novo Testamento, vou ver a
verdade nele desfraldada e exposta, e vou crer na verdade da
Palavra de Deus”. Por que devo fazer isso?
Pedro responde a essa pergunta nesta passagem, e aqui
estão as suas razões. Em primeiro lugar devo ler as Escrituras
e aceitar este ensino porque eu ereio que as Escrituras são a
revelação dada por Deus. Baseio a minha vida completa neste
ensino porque creio que as Escrituras são inspiradas por
Deus. E Pedro se expressa assim: “Como também o nosso
amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que
lhe foi dada”. Eu estou dizendo isto a vocês, diz Pedro, não
eomo Pedro, mas como o apóstolo de Jesus Cristo a quem esta
sabedoria foi dada, e lhes peço que também leiam as Epístolas
do meu amado irmão Paulo, a quem também foi dada esta
sabedoria. Ora, isso é fundamental. Afínal, Pedro era um
pescador expondo filosofia da história. Este homem que redi­
giu estas palavras estava nos dizendo efetivamente que ele,
em sua pessoa, não tinha entendimento ou conhecimento. Ele
estava dizendo que o que lhe fora dado por Deus é a sabedoria
recebida, a revelação dada do alto. Não sou eu, eu estou apenas
anunciando estas coisas a vocês. Não sou cientista. Não é pelo
meu conhecimento científico que digo que o mundo vai ser

275
2 PEDRO

destruído. Esse fato me foi revelado, foi-me dado. As Escri­


turas são inspiradas por Deus, não são idéias e filosofias
hum anas; são a revelação de Deus e do Seu propósito
relacionado com o homem.
Não somente isso; notem que nesta passagem Pedro
coloca os escritos do apóstolo Paulo, e daí os seus próprios
escritos, em igualdade com as Escrituras do Velho Testamento.
“Como também o nosso amado irmão Paulo vos escreveu,
segundo a sabedoria que lhe foi dada; falando disto, como
em todas as suas Epístolas, entre as quais há pontos difíceis de
entender, que os indoutos e inconstantes torcem, e igualmente
as outras Escrituras, para sua própria perdição.” Tremenda
declaração! Essas pessoas, diz o apóstolo, estão entendendo
mal algumas coisas que Paulo diz em sua carta, mas eles
fazem exatamente a mesma coisa também com as outras
Escrituras, e quando ele fala sobre as outras Escrituras, está
se referindo a todo o conteúdo das Escrituras do Velho
Testamento. Por conseguinte, aqui ele coloca o seu apelo, e o
de Paulo, em igualdade com as Escrituras do Velho Testamento,
que todos os judeus consideravam singularmente inspiradas
por Deus e dadas por Ele.
Aí está, pois, a nossa primeira razão para a aceitação deste
ensino - este conhecimento. Este Livro é a revelação da mente
de Deus. E eu digo mais uma vez que, em última análise, sou
levado a uma destas duas posições: ou creio e aceito o Livro
como revelação de Deus, ou então confio em idéias humanas
e em noções humanas. E ultrapassa a minha capacidade de
compreensão como alguém pode crer nessas idéias e noções,
em vista da história do presente século [vinte] e da maneira
pela qual todos os prognósticos, conceitos e idéias do homem
foram desmentidos. Aqui nós temos o conceito de Deus.
A segunda razão para a leitura das Escrituras é que elas
nos dão plena informação concernente a todas estas questões acerca
das quais tantas vezes somos exortados. “E tende por salvação
a longanimidade de nosso Senhor; como também o nosso

276
A Consolação ãas Escrituras

amado irmão Paulo vos escreveu, segundo a sabedoria que


lhe foi dada; falando disto, como em todas as suas Epístolas,
entre as quais há pontos difíceis de entender, que os indoutos
e inconstantes torcem, e igualmente as outras Escrituras, para
sua própria perdição. Vós, portanto, amados, sabendo isto de
antem ão, guardai-vos de que, pelo engano dos hom ens
abomináveis, descaiais da vossa firmeza.” Graças a Deus, as
Escrituras tratam justamente desta situação, e é isso que,
para mim, faz do Novo Testamento um Livro cada vez mais
emocionante. Não conheço nenhum outro livro que seja tão
nosso contemporâneo como o Novo Testamento. Como vejo
a situação moderna, aqui é o único lugar no qual encontro
algo satisfatório. Leio outros livros; todos eles tentam
diagnosticar o nosso tempo e os problemas do nosso tempo,
mas de novo lembramos o que o Dr. Joad disse na resenha
que fez de um certo livro contemporâneo: “Um excelente
diagnóstico, mas sem nenhum a solução”. Aqui, no Novo
Testamento, está o único lugar que conheço no qual se trata
realmente destas coisas. Aqui está o único Livro que eu sei
que me prepara para um mundo difícil. Aqui está o único
Livro que me prepara para o mundo como ele está neste
momento.
Tendo lido e ouvido as filosofias idealistas e humanistas
do século passado, ninguém esperaria duas guerras mundiais
num quarto de século. Com a nossa educação e cultura
ninguém esperaria a impiedade e imoralidade que estamos
testemunhando no tempo presente. Mas aqui está um Livro
que me exorta a estar preparado ara estas coisas. “Nos últimos
dias sobrevirão tempos trabalhosos.” O Livro nos fala da
balbúrdia moral, diz-nos que estejamos preparados para
muitos sinais, maravilhas e vozes tão enganadoras que pode­
ríam enganar “até os escolhidos”. Ele nos prepara para estas
coisas. Ele nos diz que a demora da Vinda do Senhor outra
coisa não é senão salvação - “E tende por salvação a longa-
nim idade de nosso Senhor”. Já tratam os desse aspecto e

277
2 PEDRO

entendemos que isso nos capacita a ver que Deus tem um


propósito nisso tudo. Deus é tão amoroso que ainda está
dando ao mundo uma oportunidade para arrepender-se -
esse é o sentido da demora aparente. Este Livro nos adverte
contra os falsos mestres que nos cercam por todos os lados.
Mas, acima de tudo mais, e graças a Deus por isto, ele nos
propicia um vislumbre da glória que nunca terá fim, que
jamais poderá ser afetada por bombas atômicas nem por
nenhum recurso diabólico que a mente humana possa inventar.
Essa aparente demora nos propicia uma penetração naqueles
fatos que por fim serão cumpridos. E assim que ele nos pre­
para. Em todos os aspectos o evangelho nos dá uma provisão
perfeita e uma preparação completa.
Mas agora, finalmente, permitam-me tratar do último
ponto aqui exposto pelo apóstolo. Temos bons motivos para
ver a vida e suas circunstâncias subjacentes à luz das Escri­
turas, mas, diz Pedro, vocês precisam ter todo o cuidado de
abordar as Escrituras de maneira correta. Bem, este ponto é de
incomum interesse. Pedro nos diz que não basta apenas ler as
Escrituras; temos que lê-las de modo correto, para não nos
fazermos culpados de torcer as Escrituras para nossa perdi­
ção. Se houve algum tem po em que foi necessária esta
advertência, certamente é o presente. Pedro nos diz que havia
algumas pessoas que estavam entendendo erradam ente
algumas coisas pregadas pelo apóstolo Paulo. Vocês poderão
ver isso exposto claramente em diversas Epístolas. Por exem­
plo, na Epístola aos Romanos Paulo diz que algumas pessoas
o estavam caluniando. Algumas delas diziam que o ensino
do apóstolo sobre a justificação chegava a isto; uma vez que
somos justificados pela fé, uma vez que somos salvos pela
graça, podemos praticar o mal para que nos venha o bem.
Peque quanto quiser, diziam tais pessoas, está tudo bem;
quanto mais você pecar, quanto mais praticar o pecado, mais
necessitará do perdão de Deus e mais graça você receberá.
Pratiquemos o mal para que nos venha o bem. Assim eles

278
A Consolação ãas Escrituras

torciam o ensino para a sua própria perdição.


Além disso, ele nos diz em sua Primeira Epístola aos
Coríntios que havia alguns que estavam tentando mostrar que
a ressurreição já tinha acontecido. Essas pessoas estavam
torcendo o ensino dele sobre a ressurreição para a própria
perdição delas. A seguir, no capítulo dois da Segunda Epístola
aos Tessalonicenses, ele também nos diz que algumas pessoas
tinham dito que ele, Paulo, em suas cartas, dissera que o dia
do Senhor já havia chegado. Não acreditem nisso, diz Paulo;
é uma apresentação falsa, é justamente o oposto do que eu
disse. E ele passa a corrigi-las. Pois bem, elas tinham feito
exatamente a mesma coisa com esta particular doutrina que
ora estamos considerando. Por isso Pedro é muito enfático
ao dizer que devemos ser extremamente cuidadosos quando
lemos as Escrituras, para abordá-las corretamente.
Qual seria, então, a maneira correta de ler as Escrituras?
Permitam-me oferecer-lhes alguns títulos sugeridos pelo
ensino do apóstolo. O primeiro ponto é que sempre devemos
ler as Escrituras cuidadosa e aplicadamente. Nunca devemos
lê-las apressadamente, nunca devemos fazer leitura precipi­
tada das Escrituras, e jamais devemos saltar para conclusões.
Nada é mais fatal do que somente abrir a Bíblia e examinar
um versículo, ou extrair um versículo aqui e ali, fora do seu
contexto - as Escrituras devem ser lidas cuidadosa e apli­
cadamente. Serei mal compreendido se disser que o Livro
mais perigoso do mundo é a Bíblia, porque é a Palavra de
Deus, porque é o Livro mais grandioso, porque é um Livro
divino, porque se a lermos mal poderemos torcê-la, como
diz Pedro, para a nossa perdição? Por isso eu digo e repito:
abordemos as Escrituras cuidadosa e aplicadamente.
O segundo ponto é: devemos ler a Bíblia como um todo.
Não devemos ler apenas uma porção aqui e ali, ou uma pas­
sagem particular que acaso exerça atração sobre nós. Em
especial numa época como a presente, nada é tão importante
como ler a Bíblia toda. O perigo é que as pessoas digam:

279
2 PEDRO

“Bem, sinto-me cansado e deprimido, e as coisas são muito


difíceis. Os salmos são reconfortantes; parecem entender-me”.
E assim vão aos Salmos, ou a alguma passagem favorita do
Novo Testamento; Mas eu digo e repito, leiam a Bíblia toda,
passem pela história, leiam a lei, leiam os profetas, vejam a
que a Bíblia leva no final - leiam a Bíblia inteira, e não apenas
as partes favoritas.
Depois, em terceiro lugar, devemos ler a Bíblia com
honestidade e com mente aberta. Noutras palavras, não devemos
ler a Bíblia tão-somente para conformá-la às nossas próprias
idéias e para buscar suporte para as nossas próprias teorias.
Não podemos adentrar isso agora, porém é isso que Pedro tem
em mente, e é isso que Paulo tem em mente quando corrige
essa tendência - o perigo de a pessoa vir às Escrituras com
suas próprias idéias e teorias. Leiam todo o conteúdo do Novo
Testamento; não o leiam com uma teoria em sua mente. Não
preciso dizer-lhes de quantas maneiras isso está sendo feito
atualmente. Pensem nas numerosas teorias correntes, observem
as doutrinas estranhas que estão correntes, olham às seitas que
estão por todos os lados ao redor de nós, examinem algumas
noções que alguns abrigam sobre a nossa nação, sobre o nosso
país. E o problema é que eles tendem a ver essas coisas em
toda parte na Bíblia. E a isso que me refiro quando falo em ir
à Bíblia com uma teoria, e não com mente aberta, e então, em
vez de ler a Bíblia e perm itir que ela lhe fale, você está só
procurando uma confirmação das suas teorias e idéias pessoais.
Esse é um modo de você torcer as Escrituras para a sua própria
perdição. Noutras palavras, devemos vir com mente aberta, e,
se não entendermos o que lemos, devemos confessá-lo e alegrar-
-nos por não termos uma teoria perfeita. Devemos dizer que
há certos pontos nas Escrituras que não podemos sondar.
Ademais, devemos ir às Escrituras com espírito de humildade
e com prontidão para aprender. E há um glorioso exemplo disso
em nosso texto. Examinado de modo puramente pessoal, é
maravilhoso. Pedro diz: “Tende por salvação a longanimidade

280
A Consolação das Escrituras

de nosso Senhor, como também o nosso amado irmão Paulo


escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi dada”. Esse é o
espírito! Que quer dizer? Lembrem-se de que somos infor­
mados no capítulo dois da Epístola aos Gálatas que Paulo teve
que repreender Pedro na presença de todos. Em Antioquia
Pedro tinha se desviado; tinha entendido mal a doutrina da
justificação e tinha dito aos gentios que nalguns aspectos era
preciso que eles se tornassem judeus. E Paulo teve que
repreender Pedro. Eis aí, um grande vulto da Igreja Cristã,
num sentido um líder, e, todavia, Paulo o questiona, o corrige
e o endireita. Pois bem, muitos de nós nessa situação nunca
perdoaríamos Paulo pelo que fez, e com toda a certeza não
recomendaríamos às pessoas que lessem as suas epístolas.
Mas eis como Pedro coloca a questão: “Como também o nosso
amado irmão Paulo escreveu, segundo a sabedoria que lhe foi
dada”. Aí está um homem humilde, aí está um homem que
reconheceu que estava errado e que Paulo estava certo; ele se
dispunha a ouvir e a aprender - esse é o espírito! Devemos ir
ao Livro com esse espírito de humildade e prontos a ouvir e a
aprender. Ainda que a minha teoria favorita possa ser errada,
não im porta; devo ir com a simplicidade da criança; até
Pedro deu ouvidos a seu amado irmão Paulo.
Noutras palavras, finalmente, devemos abordar o Livro
em atitude de oração. Devemos dar-nos conta da grandeza da
sua mensagem, devemos dar-nos conta da fragilidade das
nossas mentes, e devemos dar-nos conta da nossa tendência de
deixar-nos governar por pensamentos carnais, mundanos,
meramente humanos. Por isso nunca devo abrir este Livro
sem orar, sem humilhar-me e sem pedir a Deus que me dê
entendimento e que, por Seu Espírito Santo, abra a minha
mente, abra o meu intelecto, abra o meu coração. Devo ir com
reverência e com espírito de súplica, para que venha a receber
unção e conhecimento do Santo. Por quê? Porque esta Palavra
de Deus pode ser uma palavra perigosa para mim, pois eu
posso torcê-la para a m inha própria perdição.

281
2 PEDRO

Esse é, pois, o método pelo qual o apóstolo encara a


tendência de cair, vacilar e debandar. Esse é o modo de
perseverar, esse é o modo de ser leal e verdadeiro, e de conti­
nuar sem vacilação. Não é apenas um pouco de incentivo
psicológico, não é apenas você virar as páginas e se distrair
lendo as Escrituras e estudando a doutrina, mas fazer isso
desta maneira humilde e reverente. Se fizer isso, diz Pedro,
você não será afetado por nenhum sarcasmo dos escarnece-
dores nem por nenhuma das heresias dos falsos mestres. O
mundo pode perseguir e até ameaçar e m atar você, mas,
enxergando estas coisas, tendo uma visão da glória que o
espera, você será capaz de sorrir diante disso tudo e de perma­
necer firme, e de continuar com perseverança em sua fé
santíssima. Amém.

282
22
Crescendo na Graça (I)
“Antes crescei na graça e [n o] conhecimento de nosso
Senhor Jesus Cristo. A ele seja dada a glória, assim agora,
como no dia da eternidade. Am ém .”
- 2 Pedro 3:18

“Antes crescei na graça e [no] conhecimento de nosso


Senhor Jesus Cristo”.
São essas as palavras finais do apóstolo a estes cristãos a
quem estava escrevendo. Ele tinha desenvolvido a sua dou­
trina, elaborando-a em detalhe com eles. O apóstolo deu
uma explicação completa da posição e da perspectiva deles.
Advertiu-os contra os perigos que provavelmente os con­
frontaria. E principalm ente no versículo im ediatam ente
anterior a este último versículo, como já vimos na ocasião
anterior, insistiu com eles na importância de um reverente e
cuidadoso estudo das Escrituras. A razão para isso era que
havia o perigo de serem levados pelo erro dos ímpios, e que,
se fossem levados dessa maneira, cairiam da sua firmeza.
O apóstolo chega, então, a esta palavra final que ele
introduz com a palavra “antes”. Contrariamente a tudo o que
ele tinha dito - que evitassem este erro dos ímpios, dos falsos,
mestres; que evitassem a tendência de fraquejar, escorregar e
ficar em dificuldade - em contraste com isso tudo, eles
deveriam “crescer em graça” [VA], ou melhor, “crescer na
graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus
Cristo”. O modo como Pedro se expressa é pleno de interesse.
Ele sugere obviamente, e desde logo, que a única maneira de

283
2 PEDRO

evitar queda na vida cristã é ir avante. A única maneira de


evitar retrocesso é ir para frente. Isso de permanecer estático
na vida cristã não existe, pelos bons motivos que logo vamos
descobrir; e ali, então, consta o tipo de princípio ou de chave
para o entendimento de todo o seu ensino sobre este ponto.
Agora, este versículo é bem conhecido e familiar. Em
muitos aspectos é um epítome do apelo do Novo Testamento
aos cristãos. O Novo Testamento está repleto de exortações
dirigidas a nós para que nos aperfeiçoemos na piedade; há
em seu conteúdo este constante chamado à santidade e à san­
tificação. E, em certo sentido, todo esse ensino é resumido
perfeitamente com estas palavras: “Crescei na graça e [no]
conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo”.
Temos aí a soma total do dever cristão; a frase expressa, rei­
tero, perfeita e concretamente, tudo o que eu e vocês somos
chamados para fazer nesta vida cristã. Isto, portanto, é algo
que realmente exige a nossa cuidadosa e cerrada atenção, e
me alegro em chamar a atenção de vocês para este ponto
nesta particular estação do ano conhecida como período da
quaresma. Não é que acreditamos na observância mecânica de
tempos e estações, mas sim que qualquer ocasião que chame
os homens e as mulheres para se examinarem e examinarem
suas vidas é algo essencialmente bom. Nosso conflito final e
definitivo com todo o conceito católico-romano da vida cristã
não é que essa igreja crê no período da quaresma, e sim que
ela não crê na observância da quaresma sempre, durante o ano
todo. Nosso objeto de contenda é que essas ocasiões são isola­
das, em vez de serem observadas perpetuamente. Pois bem, eu
digo que aqui, na passagem em foco, certamente está o tema
da quaresma, aqui está a doutrina cristã e neotestamentária
essencial referente ao modo de viver a vida cristã.

E um assunto muito amplo, e me parece que a melhor


maneira de dividi-lo é a seguinte: primeiro, devemos tentar
descobrir juntos o que o apóstolo quer dizer com “crescer na
graça e no conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus

284
Crescendo na Graça (I)

Cristo”. Depois, tendo feito isso, o próximo passo óbvio é


eonsiderar como se cresce na graça e no conhecimento do
nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. A seguir, em terceiro
lugar, como a pessoa determina se está crescendo? Não é
suficiente considerar esta questão teoricamente e de fora; o
objetivo fundamental é descobrir se estamos crescendo. Como
se faz isso? Quais são os testes? Quais são os métodos possí­
veis? Quais são os perigos e as armadilhas fundam entais
relacionados com toda esta questão de autoexame e inspeção
de nós mesmos em nossa fé cristã?
O ponto do qual devemos partir é, pois, descobrir o que
significa exatamente esta ideia geral de crescer na graça e no
conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Ora,
esta m aneira de propor a doutrina neotestam entária da
santificação e da santidade é algo que leva imediatamente a
alguns dos elementos essenciais da nossa fé. E isso que,
naturalmente, Pedro estava desejoso de fazer. Ele desejava
deixar estas pessoas com uma palavra final que sempre as
fizesse lembrar o que tinham que fazer, e não se pode imaginar
uma sinopse mais perfeita do dever cristão em geral do que
a que temos aqui. Tudo está aqui embrionariamente, e penso
que, quando examinarmos este versículo, veremos que ele nos
mantém face a face com os elementos básicos da nossa fé.
Agora, que é que a palavra “crescer” sugere primeiramente?
Que pensamentos esta concepção de crescimento insinuam de
imediato à mente? Aí, penso eu, somos levados a lembrar-nos
de algo básico. O próprio verbo “crescer”, a própria ideia de
crescimento, nos sugere imediatamente que ser cristão significa
receber nova vida. Não pode haver crescimento se não houve
nascimento, e nascimento significa trazer ou vir à vida. Assim
é que, quando o evangelho nos exorta a crescer na graça e no
conhecimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo, ele
pressupõe vida, nascimento, um princípio, a posse de algo
muito definido.
Aqui, naturalmente, está o primeiríssimo passo, o mais

285
2 PEDRO

fundamental. Todos estes apelos à santidade que há no Novo


Testamento são dirigidos apenas aos cristãos. Temos aí, eu diria,
um fundamental aspecto no qual é certo dizer que o evange­
lho não está interessado na conduta e no comportamento dos
incrédulos, exceto num sentido puramente negativo. Quero
dizer com isso que o evangelho nunca vem a um incrédulo
para dizer-lhe que viva uma vida moralmente melhor. Isso,
num sentido, é uma negação do evangelho. O evangelho nunca
chama uma pessoa não regenerada para aperfeiçoar-se e fazer-
-se melhor. Isso é moralismo, não cristianismo. Há sempre
esta vital pressuposição no apelo do Novo Testamento à san­
tidade; este apelo só fala aos que receberam a nova vida. O
apelo do evangelho se dirige somente aos que nasceram de
novo. Dessa forma o próprio verbo “crescer” introduz imediata
e automaticamente a doutrina geral da regeneração e do novo
nascimento. Ora, esse, naturalmente, é justamente o ponto
que Pedro tem em mente; porque, como temos visto, toda
a sua ênfase tem sido que estas pessoas às quais ele está
escrevendo devem compreender que são com pletam ente
diferentes das que não são cristãs. Elas receberam uma natureza
divina, tornaram-se “participantes da natureza divina, havendo
escapado da corrupção, que pela concupiscência há no mundo”.
Ele disse isso no princípio, e agora term ina tocando preci­
samente a mesma tecla.
Portanto, a primeira pergunta que devemos fazer a nós
mesmos, ao nos confrontarmos com esta exortação a que
cresçamos na graça e no conhecimento, é: estamos vivos? Temos
vida? Já nascemos de novo? Noutras palavras, o cristão tem
em si uma diferente semente de vida, ou posso ir mais longe e
dizer que o cristão é essencialmente diferente do incrédulo.
Ele é diferente quanto à espécie. E isso é básico. O cristão não
somente é melhor que o incrédulo; é diferente. Ele nasceu do
alto, nasceu do Espírito - essas são as expressões do Novo Testa­
mento - é sempre alguém que tem consciência de que recebeu
nova vida. Ele se ajusta à definição dada pelo apóstolo Paulo:

286
Crescendo na Graça (I)

“Se alguém está em Cristo, nova criatura é: as coisas velhas já


passaram; eis que tudo se fez novo”.
Obviamente, este é o ponto de partida. Em qualquer exame
próprio, em qualquer desejo que tenhamos de crescer e de
nos desenvolver, devemos estar cônscios desta nova vida;
devemos estar cientes do fato de que Deus, em Sua infinita
graça, infundiu em nós a Sua própria natureza; para dizê-lo
de outro modo, devemos estar cônscios desta diferença vital.
O cristão não é sim plesm ente um hom em como outro
qualquer. Permitam que eu o diga desta maneira: eu diria
que demasiadamente nos inclinamos a pensar no cristão como
alguém cuja forma de conduzir a vida é igual à de todos os
demais, mas acrescentou algumas coisas à sua vida. Isso, digo
eu, é uma completa perversão do ensino do Novo Testamento;
e o meu argumento é que esta palavra “crescer” torna isso
completamente impossível. Sua afirmação é que o cristão
não é alguém que acrescenta algo à sua vida, mas sim que a
sua vida é essencialmente diferente, que ele tem uma ordem
de vida diferente. Há um novo ser, uma nova existência, uma
nova qualidade encarnada em sua vida. Cristo adentra o ser
interior do cristão, e eu digo que, sem esta ideia da vida, o
crescimento é totalm ente impossível. Portanto, a própria
exortação a crescer leva-nos imediata e diretamente à doutrina
fundamental do Novo Testamento sobre o novo nascimento
e a regeneração.
Depois, tendo dito isso, podemos passar à segunda de­
dução: esta vida, como todas as outras formas de vida,
necessariamente leva ao crescimento. E evidente que isso é sempre
uma característica da vida. O simples fato da vida contém em
si a ideia geral de crescimento. Pensem na menor semente. Há
dentro dela, inerentemente, a possibilidade de crescimento e
desenvolvimento. Pensem no menor animal, e verão a mesma
coisa. Pensem na menor planta ou flor - onde quer que haja
vida, sempre há esta possibilidade inerente de crescimento.
Ora, esse é exata e precisamente o caso com respeito à vida

287
2 PEDRO

cristã. Podemos, pois, dizer que não há melhor teste que


podemos aplicar a nós mesmos para verificar se estamos
verdadeiramente na vida cristã, do que justamente este teste
de crescimento. Pergunto: o que eu considero como cristia­
nismo é algo que mostra capacidade de crescer, ou não? Se
não é capaz de crescer, não é cristão. Ele pode ser muitas outras
coisas boas, mas não é cristão. Permitam-me dizê-lo assim: há
toda a diferença do mundo entre o processo vital de crescimento
e o aumento mecânico de qualquer coisa destituída de vida.
Você pode acrescentar algo a uma coisa que não tem vida, mas
não pode fazer crescer algo que não tem vida. Vejam, por
exemplo, um monte de terra; você pode acrescentar-lhe mais
terra, mas não vai dizer que a terra desse monte cresceu.
Crescimento é algo essencial e vital.
Temos aqui, de novo, um teste completo, sensível e deli­
cado. Isto tem sido causa de tropeço para muitos na vida cristã,
como os registros da Igreja mostram muito claramente. Digo
que o fato de que há possibilidade de crescimento em nossa
experiência cristã é um dos mais delicados e sensíveis testes
quanto a se temos vida ou não. Permitam-me oferecer-lhes
uma ilustração. Penso que podemos ver claramente a dife­
rença na vida de um homem, como Lutero, ou, se vocês
preferirem, na vida de um homem como João Wesley. Vocês
podem vê-la, de fato, na vida e na experiência de todo aquele
que tenha escrito uma narrativa da sua peregrinação espiri­
tual e que tenha feito um contraste entre o período da sua pré-
-conversão e o da sua pós-conversão. Consideremos Lutero.
Lá estava ele, um homem muito religioso. Era monge, e lá o
vejo em sua cela jejuando e orando. Ali está um homem que
tenta, como ele pensa, crescer na vida cristã. Que faz ele? Bem,
ele jejua, ora, dá esmolas, pratica boas obras; e, todavia, tendo
feito tudo isso, ele sabia perfeitamente bem que não tinha
crescido nem um pouco, não tinha mais vida no fim do que
no começo. Esse homem estava acrescentando coisas à sua
vida, mas não estava crescendo. Acrescentava mérito a mérito.

288
Crescendo na Graça (I)

mas ele sabe, no fim disso tudo, que não há vida ali. Então,
vocês se lembram, ele foi convertido, recebeu esta nova vida,
e doravante teve consciência de um processo de crescimento,
de desenvolvimento, de um real crescimento.
Vocês veem exatamente a mesma coisa no caso de João
Wesley - um excelente jovem, de alta moral, membro de um
bom lar cristão. Seu único interesse na vida era a religião, seu
único desejo era ser melhor. Ele forma seu Clube Santo em
Oxford, vai pregar nas prisões, e com isso sofre sarcasmo e
zombaria; ele renuncia à posição prestigiosa que tinha em
sua faculdade e cruza o Atlântico para pregar aos pagãos na
Geórgia. E, contudo, ele sabe que não tem vida real. Não
sente que tenha crescido, nem que tenha se desenvolvido
ou que tenha avançado. Ali está um homem que esteve
adicionando mais e mais [coisas], sem, porém , nenhum
desenvolvimento ou crescimento. Então ele recebeu vida, e
desde o momento em que recebeu vida tornou-se cônscio de
crescimento, de um verdadeiro crescimento orgânico.
Pois bem, aí, penso eu, vemos este princípio realmente
vital. A vida contém dentro de si, inerentemente, a possi­
bilidade geral de crescimento, e deve levar ao crescimento;
mas, sem essa vida não pode haver crescim ento algum.
Repito que posso acrescentar moralidade e mais moralidade,
mas isso não é crescer. Por isso sugiro o segundo teste que
podemos aplicar a nós mesmos. E o seguinte: será que per­
cebo crescimento em m inha vida cristã? Posso dizer que
estou crescendo na graça e no conhecimento de nosso Senhor
Jesus Cristo? Mais adiante trataremos de diversos testes -
agora estou tratando disso de forma geral. Quando faço um
retrospecto e vejo o transcurso do ano que passou, quando
examino os dez, vinte ou trinta anos passados, ou o mais longo
tempo que acaso eu tenha estado na vida cristã, percebo algum
crescimento e aumento orgânico? Haveria um real crescimento
em minha vida cristã? Não há nada mais vital e mais impor­
tante do que esta aguda e cuidadosa distinção entre o processo

289
2 PEDRO

de tentar acrescentar algo à vida e um crescimento na vida.


Tudo isso é sugerido inerentemente por este verbo “crescer”.
A seguir, digamos de passagem uma palavra sobre o pro­
cesso de crescimento. Em certo sentido eu já tratei de uma
parte disto. O processo de crescimento é algo vital, e não
mecânico. E muito difícil defini-lo; há alguma coisa muito
ardilosa nesta ideia de crescimento. Quando examinarmos os
métodos e meios pelos quais o cristão deve crescer, e quando
examinarmos os testes de crescimento, retornaremos ao mesmo
ponto, mas há algo misterioso em torno do crescimento. E
algo que, num sentido, não se pode observar diretamente -
você sente que está ocorrendo, mas não pode vê-lo acontecer.
Vocês certam ente se lem bram de que o nosso Senhor o
comparou a um homem que semeou semente em seu terreno
e que, enquanto ele dormia, a semente brotou - o mistério do
crescimento. Essa é sempre uma verdade com relação ao
crescimento e a este processo da vida. Mas podemos dizer
que é sempre um processo vital, nunca um processo mecâ­
nico. Portanto, deve ser julgado em termos de um todo
orgânico, não em partes separadas.
Devo enfatizar a importância desta distinção. Se vocês
examinarem os Manuais ofthe Devout Life [Manuais da Vida
Devota], verão que muitos deles foram escritos por católicos
romanos, porque eles sempre foram especialistas nesta ques­
tão. Penso que vocês verão neles que o princípio da diferença
entre o processo mecânico e o vital é realmente muito impor­
tante, porque, de modo geral, a concepção católico-romana
sobre crescimento tende a ser mecânica. Ela separa e isola
coisas particulares e seu método geral de avaliar a santidade
tende a ser em termos de acrescentar isto e não acrescentar
aquilo, de ver se a pessoa acrescentou isto ou aquilo à sua vida.
Você segue o rosário, por assim dizer; você pendura sua lista
na parede e vai ticando cada coisa feita, até completar a lista.
Ora isso é mecânico, não é um processo vital. Parece-me que
o erro neste ponto está em confundir as coisas que promovem

290
Crescendo na Graça (I)

crescimento com o crescimento propriamente dito; e, como


penso que vocês verão, tudo o que eu e vocês podemos fazer
em últim a instância é obedecer a certas condições que
tendem a promover crescimento. Não podemos produzir
crescimento diretamente, e devemos ter sempre em mente
que o crescimento é um processo vital, e não mecânico.
O outro ponto no qual eu gostaria de tocar é que o processo
de crescimento é necessariamente um processo progressivo e gradual
- o crescimento jamais é súbito. Aqui, naturalmente, estou
dizendo algo que é altamente controvertido, porque penso
que vocês verão que há escolas de pensamento quanto a esta
questão. Existem aqueles que, ao pregarem a santidade e a
santificação, gostariam de fazer-nos crer que o homem pode
ser santificado repentinamente. Muitas vezes eles comparam
o processo da santificação com o fato da nossa justificação num
ato de recebim ento, dizendo que você pode receber sua
santidade pessoal e sua santificação do mesmo modo. Como
vocês sabem, esse tem sido o ensino característico de uma
conhecida escola sobre a santidade. Seus seguidores dizem que
você pode ser feito santo imediatamente com um só ato, que
você pode chegar ali, que você pode ser colocado nessa posi­
ção. Pois bem, sugiro que isso faz violência a este mesmo
processo essencial de crescimento. Toda a descrição feita pelo
Novo Testamento é, certamente, de crescimento e desenvol­
vimento. Fala de homens como “crianças em Cristo” - uma
criança não pode saltar repentinamente da infância para a
idade adulta. Isso acontece gradualmente, não se sabe como;
você apenas sabe que a pessoa não é mais criança, não é mais
menino, tornou-se jovem e depois tornou-se homem. Não se
pode assinalar estes estágios. Isso acontece gradualmente -
você vê uma criança, você vê um menino, depois vê um moço
e depois o homem. Aconteceu aos poucos, imperceptivelmente.
Ele foi indo de um passo a outro, de um estágio a outro. E a
santidade não é algo que se pode receber uma vez por todas
num só ato. Nós “crescemos na graça”, crescemos na santidade.

291
2 PEDRO

crescemos no conhecimento. E algo gradual, é algo progres­


sivo, é algo que vai acontecendo através de toda a nossa vida
cristã neste mundo, até finaimente chegarmos “à medida da
estatura completa de Cristo” na vida glorificada que nos
espera além desta.
Pois bem, de novo digo que esta distinção é m uito
importante, porque o seu não reconhecimento explica muita
infelicidade que ocorre na vida de muitos cristãos. Muitos
destes passam a maior parte das suas vidas girando de Con­
venção em Convenção, esperando que finalmente recebam o
que eles chamam aquele “xis”, procurando consegui-lo,
esperando que alguma coisa tremenda aconteça e eles rece­
bam a santidade e a santificação como já receberam a sua
justificação. Ora, meu parecer é que o Novo Testamento não
ensina isso; na verdade, o Novo Testamento deixa simples e
claro que justificação sem santificação é coisa que não existe.
Cristo foi feito para nós “sabedoria, e justiça, e santificação, e
redenção”. Se você tem Cristo, tem Cristo completo. Se você
está “em Cristo”, está “em Cristo”. E impossível ao homem
ter a justificação sem que a semente da santidade e da san­
tificação esteja nele ao mesmo tempo, e sem que essa semente
cresça e se desenvolva. Na verdade não haveria nenhum
objetivo em todos estes apelos do Novo Testamento para
crescermos e nos desenvolvermos, e para despir-nos do velho
homem e revestir-nos do novo, se [a santificação] fosse algo
para ser realizado num só ato. Não, não; crescimento é neces­
sariamente algo gradual e progressivo.
Bem, esses são alguns pensamentos sugeridos a nós por
estas palavras “crescer” e “crescimento”. Mas deixem-me dizer
apenas umas palavras sobre os aspectos nos quais podemos crescer.
Pedro fala sobre isso com muita clareza. Antes de tudo, devo
crescer na graça de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Que
significa isso? As vezes eu penso que essa frase é uma das
mais difíceis do Novo Testamento - crescer na graça, crescer
na graça de nosso Senhor Jesus. Que quer dizer? Penso que

292
Crescendo na Graça (I)

em primeiro lugar devo dizer que não significa que eu cresço


em am abilidade - inclui isso, porém não significa isso.
Tampouco significa, em si e por si, que eu devo crescer em
minha posse das graças da vida cristã. Inclui isso, mas não é
isso. Que significa, então? Significa que, como cristãos, fomos
introduzidos na esfera da graça. Todos nós estamos ou sob a
lei ou sob a graça - ou estamos sob a ira de Deus ou estamos
sob a graça de Deus. Pois bem, Pedro está dizendo o seguinte:
vocês, como cristãos, agora estão na esfera da graça. Nessa
esfera, cresçam na vida na qual vocês foram inseridos pela
morte de Cristo e Sua ressurreição, e, como resultado da Sua
graça, desenvolvam-se, expandam-se, ampliem-se e sigam
avante.
E certamente inclui isto também: ser cristão significa que
sou objeto especial do favor e da bondade de Deus. Como
cristão, posso receber e experimentar esse favor de Deus, em
graus e volume variáveis. Quanto mais eu viver a vida cristã,
quanto mais obediente eu for, mais experimentarei o favor
de Deus. Isso é crescer na graça do Senhor Jesus Cristo. Aí
está Ele, esperando para me mostrar o Seu favor e para fazer
chover o Seu favor sobre mim. Bem, agora, diz Pedro, vivam
de tal maneira que possam experimentar isso cada vez mais
e possam desfrutar crescentemente a sua vida cristã - isso é
crescer na graça do Senhor Jesus Cristo. Na esfera da graça eu
estou me desenvolvendo, estou crescendo, e tenho crescente
consciência do meu conhecimento e da minha experiência
do Seu favor. É isso que crescer na graça significa. Sendo
assim, podemos colocar o assunto na forma de perguntas.
Estou ficando mais consciente do favor e da bondade de
Deus? Quando eu me contrasto com o que eu era há um
ano, posso dizer que para mim o favor, a benignidade, a mise­
ricórdia e a bondade de Deus são algo de que estou mais
consciente do que nunca antes? Se a resposta é sim, estou
crescendo na graça.
Mas também devo crescer “no conhecimento do Senhor

293
2 PEDRO

Jesus Cristo”. Que significa isso? Esse é o modo de Pedro dizer


que devo crescer em meu entendimento da verdade. Como
Pedro desenvolveu isso, só preciso fazer um sumário. Significa
que devo desenvolver-me e crescer em meu conhecimento
concernente a Cristo, em meu conhecimento do que Ele fez e
do que Ele trouxe a este mundo. Posso resumir o ponto desta
maneira: como cristão não devo deter-me meramente no
conhecimento do perdão [dos meus pecados] e no conheci­
mento da salvação; devo crescer em meu entendimento e em
meu conhecimento de todo o esquema, plano e propósito da
salvação; devo aprender tudo o que Pedro nos diz nesta Epís­
tola. Devo ver o plano geral dos séculos, e o plano do mundo
e do cosmos. Devo entender cada vez mais a natureza do
conflito espiritual que está sendo travado neste mundo, por
todos os lados a meu redor. Não devo parar no senso do
perdão pessoal do pecado, devo ver-me na economia global
de Deus. Devo estar ciente desta formidável luta espiritual
que se trava nos lugares celestiais. Devo ver Deus efetuando
paulatinamente o Seu plano mesmo na esfera da história, e
devo entender cada vez mais a consumação final do plano
divino. Isso é em parte o que significa crescer “no co­
nhecimento do Senhor Jesus Cristo”. Existe o conhecimento
concernente a Ele, e as implicações desse conhecimento.
Devo, pois, ocupar-me com a doutrina cristã. Devo entender
mais e mais a doutrina de Deus e Seu Ser, a doutrina da
Trindade, a doutrina sobre o homem, a doutrina do pecado, a
doutrina da salvação, a doutrina das últimas coisas, das coisas
finais. Devo aproíundar-me em todos estes ensinos para que
eu possa captar cada vez mais o conhecimento concernente
ao Senhor Jesus Cristo.
Contudo, em acréscimo, penso que significa isto: não
somente o conhecimento concernente a Ele, mas também o
conhecimento dEle próprio. Devo crescer em meu conheci­
mento do Senhor Jesus Cristo, pelo que me refiro à minha
comunhão com Ele; o meu senso de uma relação pessoal

294
Crescendo na Graça (I)

com Ele deve aumentar. Vocês se lem brem como Paulo


expressa isso perfeitamente e nos diz que esta era sua ambi­
ção - “E seja achado nele... para conhecê-lo”. E isso! E-nos
possível ter um conhecimento místico de Cristo. O cristão
não é deixado com um mero conhecim ento [intelectual]
concernente a Cristo, há um conhecimento [íntimo] de Cristo.
Lem brem -se de como Pedro fala disso em sua Prim eira
Epístola: “Ao qual, não o havendo visto amais”. Você só pode
amar uma pessoa que você conhece. Você não deve deter-se
no conhecimento de coisas acerca de Cristo; é preciso haver
o senso de um conhecimento pessoal. Quero crescer nisso,
diz Pedro, e vocês devem crescer nisso. Portanto, cresçam na
graça e no conhecim ento do Senhor Jesus Cristo nesse
sentido dual.
E agora uma palavra final. Por que é importante assim que
cresçamos em ambos estes aspectos? Naturalmente, a resposta é
que essa a única maneira pela qual podemos ser firmes e
sólidos, e é a única maneira pela qual podemos enfrentar as
contradições desta vida e deste mundo. Quanto mais eu
conhecer o favor de Cristo, mais capaz serei de sorrir em face
da adversidade. Se eu realmente O conhecer e receber o Seu
favor, poderei dizer com Paulo: “Estou certo de que nem a
morte, nem a vida, nem os anjos, nem os principados, nem as
potestades, nem o presente, nem o porvir, nem a altura, nem a
profundidade, nem alguma outra criatura nos poderá separar
do amor de Deus, que está em Cristo Jesus nosso Senhor”
(Romanos 8:38,39). Esse conhecimento me habilita a dizer
isso. Não somente isso, porém; a descrição geral da diferença
entre a criança e a pessoa adulta mostra-nos outro motivo
pelo qual devemos avançar. A criança não entende, e é por
isso que está sempre sujeita a algum desapontamento. A
criança varia de acordo com aqulo que a cerca. Falta à criança
a capacidade de perceber verdadeiramente as coisas, e, por­
que lhe falta entendimento, a criança, digo, ou está muito
viva ou está deprimida. E há muitos cristãos desse jeito, o

295
2 PEDRO

que significa simplesmente que são crianças em Cristo.


Outro fator que induz ao crescimento é que a criança
sempre carece de um senso de discriminação [discernimento],
e aquele a quem lhe falta discriminação está sempre pronto
a cair presa de falsas doutrinas (Efésios 4:14). É o cristão
imaturo que sempre corre para a seita ou o movimento mais
recente. E, pois, necessário que cresçamos para desenvolver­
mos um senso de discriminação.
E, igualmente, a criança sempre é muito dependente dos
seus sentimentos e dos seus impulsos, e julga as coisas de
acordo com esses sentimentos e impulsos. Acontece exatamente
a mesma coisa na vida cristã. E por isso que Pedro conclui
com esta grande exortação. Vocês estão num mundo difícil,
diz ele. Como vão m anter-se firmes em face dele? Eis a
resposta: “Crescei na graça”, apreciem o favor de Cristo cada
vez mais. E cresçam no conhecim ento. Procurem obter
entendimento destas coisas, vejam o alcance global da verdade,
livrem-se das tolices infantis e tornem-se adultos, e, quando
fizerem isso, diz Pedro, jamais cairão, jamais serão arrastados
pelo engano dos ímpios, mas se portarão como homens, serão
fortes, serão dignos do Deus que por Sua graça lhes deu este
novo dom da vida e fez de vocês herdeiros da eternidade.
Portanto, “crescei na graça e no conhecim ento de nosso
Senhor Jesus Cristo”. Amém.

296
23
Crescendo na Graça (II)
“Antes crescei na graça e no conhecimento de nosso
Senhor e Salvador, Jesus Cristo. A ele seja dada a glória,
assim agora como no dia da eternidade. Amém.”
- 2 Pedro 3:18

Estam os considerando aqui esta exortação final do


apóstolo, na qual ele resume, e desta forma positiva, aquilo
que, na realidade, é toda a sua exortação aos cristãos em todo o
curso da Epístola. Ele delineou sua doutrina. Isso precisa vir
prim eiro. Tendo exposto sua doutrina claramente a seus
leitores, agora conclui com esta exortação a que ponham em
prática tudo o que lhes estivera indicando. E a isso que ele
visa, então, com a exortação a “crescer na graça e no conhe­
cim ento de nosso Senhor e Salvador Jesus C risto”. Já
procuramos considerar de modo geral o que isso significa,
e vimos que há diversos princípios de vital importância.
Vimos que esta exortação implica vida; que não pode haver
crescimento se não há vida. Isso é vital. O cristão não é
alguém que acrescenta certo número de boas obras à sua
vida; é alguém que recebeu o dom de uma nova vida que
cresce e se desenvolve. Temos considerado também os diver­
sos outros princípios relativos à natureza desse crescimento,
seu caráter gradual e seu caráter progressivo.
Passemos agora a outra consideração, a saber, como
devemos crescer na graça? Se é esse o sentido do crescimento
na graça, como devemos fazer isso?
Ao passarmos a considerar esta questão, talvez o melhor

297
2 PEDRO

ponto de partida seja indicar que é um fato que está fora de


discussão e de dúvida, que este assunto geral sobre crescer na
graça, e especialmente quanto a uma detalhada consideração
sobre como se deve fazer isso, é algo de que temos ouvido falar
muito pouco nos recém-passados cinquenta anos, mais ou
menos [a contar de meados do século vinte]. Eu faço um
contraste entre o referido período e o que anteriorm ente
acontecia na longa história da Igreja Cristã. Houve tempo
em que nada era mais comum do que frequentes sermões e
exortações sobre este assunto, e na verdade havia uma m ulti­
plicidade de livros sobre a vida devota, sobre a vida santa e
sobre toda esta questão de crescer na graça. Mas eu penso que
vocês concordarão comigo em que não tem acontecido isso
durante os recentes cinquenta anos, aproximadamente. Temos
ouvido relativamente pouco sobre isso. Não tem estado proe­
m inente no ensino da Igreja, como costumava estar. Que
costumava estar proeminente, digo e reitero, está inteiramente
fora de discussão. Se vocês examinarem a história da igreja
católica romana, por exemplo, verão que este assunto ocupava
sempre um lugar proeminente em seu ensino. Acredito que
essa igreja tem mais literatura sobre a questão da vida devota
do que qualquer outro segmento da Igreja Cristã. Sua dou­
trina geral sobre aqueles que ela chama “santos” é em si uma
prova disso.
No entanto, isso não se limitava à igreja católica romana.
Em muitos aspectos o fato saliente acerca da literatura puri­
tana, a grandiosa literatura do século dezessete, era sua
insistência neste princípio do crescimento na graça e do
desenvolvimento da vida espiritual. Vejo constantemente, como
todos quantos se defrontam com este assunto devem ou
deveriam ver, que, se hei de obter uma real análise da natu­
reza da vida cristã e das leis que a governam, tenho que voltar
constantemente às obras dos grandes puritanos, como John
Owen, Thomas Goodwin, Richard Sibbes e outros. E um
fato, não destituído de interesse, que, provavelmente, a maior

298
Crescendo na Graça (II)

obra já escrita sobre o Espírito Santo e Sua obra, é o monu­


mental livro de John Owen, que no passado pregava aqui em
Londres, no século dezessete. E os puritanos estavam sempre
preocupados com este assunto - era o que estava sempre
predominante nas suas vidas. Como poderiam crescer na graça;
como poderiam certificar-se de que eram herdeiros do reino
de Deus e como poderiam ter certeza de que finalmente
chegariam lá?
E a mesma coisa se pode dizer em grande parte sobre o
século dezoito. Não há dúvida nenhuma de que foram obras
dessa natureza que prepararam o caminho para o grande des-
pertamento evangélico e que levaram a ele e à produção de
livros como Seriot4s Call [Sério Chamamento], de William Law,
ou o livro daquele grande homem, Philip Doddridge, sobre
The Rise and Progress of Religion in the Soul [Surgimento e
Progresso da Religião na Alma]. Esses dois livros têm exer­
cido trem enda influência sobre a vida religiosa. William
Law teve profunda influência sobre George W hitefield
e sobre João Wesley, e o livro de Philip Doddridge foi o
instrum ento de conversão de homens como Wilberforce.
Depois, por sua vez, o livro do próprio W ilberforce,^ Practical
View o f Christian Religion [Uma Visão Prática da Religião
Cristã], teve grande influência sobre o Lorde Shaftesbury.
Menciono esses fatos com o fim de consubstanciar a
m inha afirmação de que estas coisas não som ente eram
proeminentes, mas estavam sempre presentes na vida cristã e
no ensino cristão em tempos passados. Voltem aos referidos
séculos e verão que em geral os homens estavam preocupados
com isto acima de tudo mais - o cultivo da vida do espírito, o
crescimento na graça, o desenvolvimento dentro do reino de
Deus, como ser mais semelhante a Deus e como conhecer
Deus melhor. Isso era o que havia de importante. Mas temos
que confessar que durante os cinquenta anos recém-passados,
aproxim adam ente, pouco ou nada ouvimos sobre estas
questões; e é muito difícil encontrar um livro escrito nesse

299
2 PEDRO

período sobre este assunto. Quando alguém deseja literatura


sobre este aspecto da vida cristã, ainda tem que voltar àqueles
velhos livros.
Pois bem, é de interesse descobrir como se deu essa
diferença. Para mim há somente uma explicação adequada,
a saber, uma nova maneira de ver o evangelho. Como nunca
me canso de assinalar, isso entrou em cena em meados do
século dezenove. A ênfase passou do pessoal para o social, e
cada vez mais os hom ens têm pensado no evangelho do
Senhor Jesus Cristo em termos gerais, como um ensino
interessado na elevação geral da raça. De igual modo a Igreja
é considerada como uma instituição que deve fazer vagos e
gerais pronunciamentos sobre guerra e paz, política, indús­
tria, e assim por diante. Essa tem sido a grande característica
dos últimos sessenta ou setenta anos; todo o interesse tem
sido social e geral, em vez de ser pessoal, direto e intenso, e,
naturalmente, o resultado é que temos ouvido muito pouco
sobre o cultivo, o desenvolvimento e a natureza da vida cristã.
Noutras palavras, isso nada mais é que a manifestação, e muito
significativa, do declínio geral do nível da espiritualidade
da Igreja de Deus. Na medida em que o interesse se ampliou,
assim também tem havido menos intenso cultivo da devoção
pessoal e da vida espiritual pessoal. Temos estado tão preo­
cupados em tentar melhorar o mundo por meio do evangelho,
que deixamos de nos tornar homens e mulheres melhores, e
estamos testemunhando este trágico rebaixamento do nível
da vida em todos os aspectos na presente hora. Esquecidos de
que, afinal de contas, a sociedade nada mais é que uma cole­
ção de indivíduos, e tentando melhorar a massa em detrimento
do indivíduo, vemos que tanto a massa, como o indivíduo,
tem caído a um nível cada vez mais baixo, moralmente falando.
Essa é a explicação geral.
Penso que a explicação, em particular nos círculos evan­
gélicos, está no falso ensino a respeito da santidade, a saber, o
ensino segundo o qual a santidade é algo a que podemos

300
Crescendo na Graça (II)

chegar de repente e como fruto de um só ato. Se eu acreditasse


que num só ato eu recebería algo que me tornaria santo, e que
tudo o que eu teria de fazer seria manter esse nível, bem,
obviamente, eu não estaria muito interessado em manuais que
me falam sobre crescimento e desenvolvimento na graça. E é
isso que tem acontecido. Muitos acreditam que o crente é
justificado num ato e santificado noutro; e então ele continua
apenas m antendo essa posição. Dessa forma, este ensino
característico do Novo Testamento sobre o cultivo e a nutri­
ção da vida cristã é naturalmente jogado nos fundos.
Essa, penso eu, é a explicação do estado de coisas que se
vê na Igreja e com o qual nos vemos confrontados. Mas,
certamente, se levamos a sério o Novo Testamento, temos que
voltar a este assunto, pois esta exortação a crescer na graça
acha-se em toda parte. Não há nada mais característico do
Novo Testamento do que este apelo particular, e afirmo que
temos que voltar a ele, não só para nossa própria paz e felici­
dade, mas especialm ente se desejamos exercer algum a
influência e algum peso ao mundo que nos cerca na presente
hora. Há aqueles que se sentem tentados a perguntar: “Por
que você gasta tanto tempo assim para falar sobre um desen­
volvimento pessoal da vida cristã? Não seria egoísta seguir
essa linha? Esse argumento é apresentado frequentemente.
Eles dizem: “Imaginem, num tempo como este, quando o
país está cheio de problemas, dirigir a atenção para nós mes­
mos em vez de falar sobre o que se pode fazer acerca da situação
industrial, em vez de indicar como se pode produzir mais
boa vontade, como o problem a da alimentação pode ser
resolvido, e assim por diante. Imaginem, num tempo como
este, dirigir a atenção para nós mesmos e para as nossas pró­
prias almas! Não seria isso algo totalmente egoísta? Não seria
esse o problema de vocês, cristãos, que parecem esquecidos do
mundo e do estado em que ele se encontra e passam o tempo
de que dispõem examinando a si mesmos? Não seria isso
mórbido e totalmente egoísta?”

301
2 PEDRO

Ora, não há nada que mostre um entendimento tão com­


pletamente errôneo da doutrina do Novo Testamento como
uma crítica desse tipo. Para mim é fácil provar para vocês
que os homens que de fato influenciaram o curso da história
deste país e do mundo em geral mais que todos, eram homens
que tinham excepcional cuidado justamente com esta ques­
tão de crescimento pessoal na graça e no conhecimento de
nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo. Permitam-me oferecer-
-Ihes apenas um ou dois exemplos.
Presumo que ninguém vai querer discutir a tese de que,
em muitos aspectos, a verdadeira grandeza deste nosso país
foi fundada e estabelecida no século dezessete. Um verdadeiro
entendimento da história deste país e da sua grandeza só pode
levar-nos de volta a Oliver Cromwell. Ali estava o homem que
fez com que este país fosse levado em conta nos conselhos das
nações. Foi nesse tempo que este país começou a sobressair
em posição e proeminência, e o homem mais responsável por
isso não foi nenhum outro senão esse Grande Protetor. Pois
bem, se alguma vez houve um homem que passava grande
parte do tempo nesta questão de crescer na graça e no cultivo
e nutrição de sua própria alma, foi Oliver Cromwell. Foi por
causa disso que, num sentido, ele veio a ser o homem que foi.
Ele entendia que a prim eira coisa que importava era sua
relação com Deus, e não se pode explicar Cromwell a não
ser em termos da sua direta aplicação de si mesmo a esta
obrigação pessoal de crescer na graça.
Já mencionei William Wilberforce, que foi responsável
pela emancipação dos escravos. Vocês conhecem sua história?
Ele foi convertido, como eu já disse, pela leitura do livro
The Rise and Progress of Religion in the Soul [Surgimento e
Progresso da Religião na Alma]. Leiam a história de William
Wilberforce e do chamado Grupo de Clapham,* que trabalhava

' The Clapham Sect, pequena comunidade de amigos políticos íntimos, todos
eles evangélicos e humanitários, a maioria dos quais residia na então > >

302
Crescendo na Graça (II)

com ele e que incluía homens como Zachary Macaulay, os


Thornton e os Venn. Estes santos homens sabiam que o que
constituía a maior grandeza da vida era a sua relação com Deus.
Estes homens foram os pioneiros de grandes reformas, e a
primeira coisa da vida deles era esta questão de crescimento
na graça. Foi assim também com o grande Lorde Shaftesbury
e seus colaboradores na aprovação das leis para as fábricas
(Factory Acts). Essa mesma verdade aplica-se na verdade a
Gladstone. Estou mencionando apenas uns poucos. Vocês
podem rastrear a origem das instituições mais importantes, e
dos movimentos mais benéficos deste país, e o tempo todo
verão que estão voltando a um homem ou a um grupo de
hom ens cujo p rincipal interesse na vida era o pessoal
crescimento na graça. Realmente se pode resumir a causa
toda nestes termos: quando os homens deixam de pôr o
crescimento na graça em primeiro lugar, não somente as suas
vidas param de crescer, mas também a vida do país em geral
se deteriora. O grande chamado que na atualidade nos é feito
é o chamado para liderança, o que significa homens com uma
nobre visão da vida. Por que há tão poucos homens assim?
Sugiro que a resposta é que nos esquecemos desta doutrina.
Os homens agem em benefício de si próprios. Eles dizem:
“Por que devo preocupar-me, por que devo interessar-me pela
política ou pelo estado geral da sociedade?” Isso nada mais é
que puro egoísmo, e se deve à falta de espiritualidade. Nou­
tras palavras, a vereda direta que leva à recuperação nacional
é a recuperação deste senso pessoal de vocação, este desejo
pessoal de conhecer Deus e de viver uma vida agradável aos
Seus olhos. Por isso defendemos isto, e torno a dizê-lo, não
somente por razões pessoais, mas, num sentido ainda mais
forte, por seu efeito geral, e até por sua importância nacional.
Muito bem, tendo dito isso, tornamos a voltar à questão

< aldeia de Clapham, situada na zona metropolitana de Londres, em


parte pertencente ao município de Wandsworth. Nota do tradutor.

303
2 PEDRO

prática - como crescer na graça? Qual é o método? Aqui


dividimos o nosso assunto em duas partes principais. Falando
grosso modo, há o que podemos chamar de ideia católica e
ideia protestante. Bem, a ideia católica não está restrita aos
católicos romanos. Vocês a verão em qualquer outro tipo de
crença que a si mesma se chame católica - essa é a verdade a
respeito dos anglicano-católicos e dos escoceses católicos como
o é dos católicos romanos. Em geral a ideia católica da vida
cristã devota conforma-se a um certo padrão cuja essência
pode ser expressa deste modo: ela considera a santidade como
uma vocação especial. Dizem seus propugnadores que, se você
quiser crescer na graça, terá que assumir isso como a ativi­
dade exclusiva da sua vida. Daí vocês veem o monasticismo e
as diversas ordens religiosas. O católico romano é um que
divide os cristãos em dois grupos - os religiosos e os leigos. Os
religiosos são os que crescem na graça e se desenvolvem. Os
leigos, por outro lado, não podem crescer na graça e desen­
volver-se porque estão muito ocupados e muito preocupados
com outras coisas. Daí os dois grupos de cristãos. Que há para
os leigos? Bem, os leigos podem receber méritos provindos
de outros, dos que assumiram a vida espiritual como uma
vocação e se tornaram “santos”. Estes não são “santos” só em si
e para si, mas tam bém são santos para que os leigos, os
cristãos comuns, possam apropriar-se das suas obras de
supererrogação e com isso possam desenvolver-se. Bem, essa
é, na essência, a ideia católica sobre esta questão de crescer na
graça. O fiel tem que sair do mundo, não pode permanecer
em nenhuma profissão, em nenhum tipo de negócio. E algo
para pessoas especiais, e vem a ser a ocupação exclusiva da sua
vida. E preciso ser celibatário, de modo que o casamento é
incom patível com essa vocação. Você tem que elim inar
drasticamente certas coisas e depois seguir o método místico.
Você tem que passar por vários estágios, como “a escura noite
da alma”, o estado de purificação, e finalmente entra num
estado de união com Deus. Não precisamos incomodar-nos

304
Crescendo na Graça (II)

com os detalhes; o princípio é que é de interesse para nós.


Que devemos dizer quanto a toda essa concepção católica
de santidade? Bem, parece-me que a nossa suprema e final
crítica é que essa concepção se baseia num conceito inteira­
mente falso do crescimento, e é por isso que me demorei
primeiro sobre o princípio do crescimento. A crítica que faço
à concepção católica desta questão é que ela nos ensina
virtualmente que vivemos para crescer, em vez de nos ensinar
que o crescimento nada mais é que o resultado natural do
viver. O crescimento, de acordo com a concepção católica, é o
objetivo pelo qual os fiéis vivem, e eles passam o tempo todo
vivendo para crescer. Ou, se podemos dizê-lo de outra forma,
eu diria que o problema que há com essa atitude é que ela
aborda a questão do crescimento diretam ente, em vez de
fazê-lo indiretamente. E a concepção “estufa” de crescimento
e desenvolvimento em vez do natural. Por conseguinte, essa
ideia tende inevitavelmente a levar àquela falsa divisão dos
cristãos nos dois grupos que já mencionei.
Ora, acima e contrariamente a isso, vejamos o que des-
crevi como ideia protestante. A ideia protestante parte de um
princípio geral. Diz ela que existem certas leis que governam
0 crescimento em todos os domínios e em todos os depar­
tamentos da vida e do viver. Ela começa dizendo que não
podemos fazer-nos crescer por nós mesmos. Não podemos
produzir crescimento, e em certo sentido não devemos nem
tentar produzi-lo. Que é que temos de fazer, então? Bem, diz a
ideia protestante, é preciso abordá-lo indiretam ente, não
diretamente. Por certo vocês se lembram da declaração do
nosso Senhor de que não podemos acrescentar um côvado à
nossa estatura. Ele estava Se referindo ao crescimento físico
ou à duração da vida. Mas há um sentido em que é igualmente
certo que tampouco podemos acrescentar um só côvado ao
nosso crescimento espiritual. Que podemos fazer, então? Bem,
de acordo com a ideia protestante, eis o que podemos fazer:
eu não posso fazer com que eu cresça, porém posso observar

305
2 PEDRO

algumas condições que promovem crescimento e que lhe


são essenciais. E é isso que eu tenho que fazer. Pois bem, talvez
eu possa expressar melhor isso na forma de uma frase que
encontrei quando lia um livro, recentemente, numa conexão
inteiram ente diferente. Não tinha relação nenhum a com
questões espirituais, mas essa frase me tocou como muito
aplicável. Ei-la: “A saúde não é algo que pode ser produzido
por medicação e por cirurgia”. Bem, eu acho extraordinária e
muito profunda essa observação. Remédios e cirurgia não
podem produzir ou criar saúde. Penso que essa é a crítica
mais perfeita que conheço da concepção geral católico-romana
desta questão de crescimento na graça. Você se põe fora do
m undo porque é impossível tornar-se santo se viver no
mundo ou envolvido em negócios. Você tem que ser celibatário
- o casamento é incompatível - e eu digo que isso é cirurgia.
E, de igual modo, em seu aspecto positivo, há um artificia-
lismo nisso, há uma falsa tentativa de produzir crescimento
- é tentar produzir saúde por meio de remédios e drogas. Isso
é a tentativa de crescer na graça por meio de medicação e
de cirurgia - o esforço direto, a fé em que, fazendo algo, você
pode fazer-se crescer pessoalmente.
Agora, acima disso e contra isso, devemos colocar a
concepção protestante, a concepção do Novo Testamento. Isto
é, que tudo o que temos de fazer é compreender que existem
algumas condições que levam ao crescimento, que incentivam
o crescimento e que promovem o crescimento. Meu dever e o
de vocês é preencher essas condições, e, se as preenchermos,
o crescimento virá em seguida. Assim ficaremos livres da
morbidez e da introspecção, de uma visão doentia da vida
cristã, do monasticismo e daquela visão incorreta e ascética da
vida. E vemos que, no meio da vida e das nossas vocações
comuns, podemos crescer na graça, e podemos ser pessoas
santas, como aconteceu com os cristãos do Novo Testamento.
Se esse é o princípio, que dizer então dos detalhes? Quais
são essas condições essenciais para o crescimento, para a vida

306
Crescendo na Graça (II)

e para o desenvolvimento em todas as esferas? Permitam-me


apenas anotá-las para vocês. Antes de mais nada, colocamos o
alimento, os líquidos e o ar. Isso é certo na esfera natural, e eu
digo que é igualmente certo na esfera espiritual. Assim como
o crescimento físico é impossível sem alimento, água e ar,
assim também, da mesma maneira, o crescimento espiritual
é igualmente impossível sem o alimento, a água e o ar corres­
pondentes, no sentido espiritual. Pensem no crescimento de
um bebê, no crescimento de um animal nascido recentemente,
no crescimento de uma planta. Vocês verão que essa é a pura
verdade, tem que haver alimento, tem que haver líquido, tem
que haver ar. Que é que significa isso no sentido espiritual?
Bem, isso parece muito elementar, mas quantas vezes esque­
cemos estas coisas, e quão propensos somos a negligenciá-las!
Há certas coisas das quais eu devo participar, se hei de crescer
na graça. Quais são elas?
Em primeiro lugar, há este Livro. Aí está o alimento da
alma - “Desejai, como m eninos recém -nascidos, o leite
racional, não falsificado, para que por ele crescais para a
salvação”. Pedro diz isso o tempo todo. Se eu não me alimen­
tar deste Livro, bem, nesse caso, simplesmente não poderei
crescer. Não há necessidade de argum entar sobre esta
questão. Vocês verão que, invariavelmente, as pessoas que não
crescem na graça são as que estão negligenciando a leitura da
Bíblia. Por outro lado, as que cresceram têm sido estudantes
diários, regulares, deste Livro. É o alimento da alma fornecido
pelo próprio Deus. Que mais? Oração! Na oração o crente não
somente entra em comunicação com Deus, mas também
recebe a vida de Deus. Ao esperar de Deus, ele recebe de Deus.
Obviamente, cada uma destas coisas merece um sermão à
parte - aqui só as estou apresentando como títulos gerais.
Em seguida a isso, os “meios de graça” - comparecimento
à pregação da Palavra, participação da Ceia do Senhor - são
igualmente o alimento da alma. Voltem aos grandes períodos
da história da Igreja e verão que, invariavelmente, em tais

307
2 PEDRO

tem pos os hom ens aproveitavam todo ensejo, todas as


oportunidades, de servir-se dos meios de graça. João Wesley,
por exemplo, costumava dizer que ele sempre observava que
as pessoas que deixavam de comparecer ao seu culto de
pregação às cinco horas da manhã eram sempre as que não
cresciam na graça. Esse era um dos seus sinais e testes fun­
damentais - os meios de graça. Que mais? Bem, a meditação,
pensar na alma, fazer pausa neste mundo ocupado, ruidoso e
rouquenho para nos lembrarmos de que estamos “hoje aqui,
amanhã teremos partido”, que temos dentro de nós algo que
é imortal e eterno, que Deus nos deu algo visando a Ele
próprio. Meditar nisso, meditar em nós mesmos e em nosso
crescimento na graça, em nossa relação com Deus, pensar na
morte, no juízo e na eternidade - quão vital é isso! Depois, a
leitura de livros que nos ajudem a crescer na graça, livros sobre
pessoas, biografias, a história dos avivamentos. Não sei qual é
a experiência de vocês, mas eu acho essenciais estas coisas, e,
invariavelmente, quando leio sobre santos homens de Deus,
quando leio sobre os períodos de avivamento, quando leio
livros que me ajudam a entender estas coisas, sinto que minha
alma é alimentada. Isso é alimento para a alma.
Qual é o próximo grande princípio? E que eu devo evitar
tudo o que é prejudicial à vida e ao crescimento da m inha
alma. Se eu não proteger uma criança das febres infecciosas,
não é provável que ela cresça. Em termos da horta, se vocês
não regarem as suas hortas, as ervas daninhas se fortalecerão e
suas plantas deixarão de crescer. E exatamente a mesma coisa
na vida cristã. Se eu quiser crescer, tenho que evitar tudo o
que é prejudicial à minha vida espiritual. Não vou insultar
vocês enfatizando dem oradam ente este princípio. Vocês
verão isso em toda parte nas Escrituras. Se somos amigos do
mundo, não podemos ser amigos de Deus. Se eu quero crescer
na graça, é evidente que devo evitar as coisas que se opõem a
essa vida, e o fato é que a mente e os caminhos do mundo são
definidamente opostos a ela. A leitura de jornais, é como o

308
Crescendo na Graça (II)

vejo, não me ajuda muito a crescer na graça, com suas insi­


nuações e sugestões, com sua propaganda de coisas baixas, com
a proeminência que eles dão àquilo que é oposto à vida de
Cristo. Igualmente, grande parte da literatura que temos no
mundo, e grande parte das suas diversões e dos seus prazeres,
vão contra o nosso crescimento. Cabe aos cristãos desen­
volverem estas coisas pessoalmente. Todos nós sabemos o
que impede a nossa comunhão com Deus. O princípio é este:
sabendo disso, cientes disso, o que se interpõe entre mim e a
vida da qual estou falando, devo eliminar. Não tenho tempo
para essas coisas, devo manter-me numa atmosfera que não
seja um empecilho para a vida de minha alma.
O próximo grande princípio é o exercício. Não é suficiente
ter a comida certa. Não é suficiente evitar o que é prejudicial.
Se é para haver crescimento, a vida deve ser exercitada.
Tomemos o bebê, o animal em crescimento - se o confinarmos
e o impedirmos de mover-se e de desenvolver-se, não haverá
crescimento. Que significa isso para o cristão? Significa vida
cristã positiva. Significa pôr em prática o que eu afirmo que
creio, significa obra cristã ativa; significa interessar-se pela
propagação do evangelho. E quando nos exercitamos dessa
maneira que nos vemos crescer na graça. Se o nosso interesse
por estas questões ficar só no nível intelectual, e se não fizer­
mos nada a respeito, penso eu que pararemos de crescer.
Qual é 0 próximo princípio? E na verdade um princípio
estranho, e, todavia, realmente vital. Alimento, água, evitar o
que é antagônico, exercício, e, a seguir - repouso! Quantas vezes
isso é olvidado - repouso! Vejam aquela criança - se não lhe
for dado o tempo certo de repouso, mesmo que você lhe dê
alimento certo, e embora evite o que lhe é nocivo, ela não
desabrochará. O repouso é de tremenda importância, o tempo
certo de sono e de repouso para a planta é vital; você não deve
agitar-se constantemente em volta dela; é preciso deixá-la a
sós. Por certo vocês se lembram do que o nosso Senhor disse
na parábola do agricultor que semeou sua semente, e depois

309
2 PEDRO

descansou, depois se levantou e ficou fazendo isso dia e noite.


Como é vital isso na esfera da alma e do espírito! Se você não
tiver mente tranquila, você não crescerá. Pode estar lendo
diligentemente a Bíblia, mas, se a sua mente não estiver em
repouso e em paz, você não crescerá. Existem alguns pobres
indivíduos que passam seu tempo tentando crescer na graça
por orar continuamente a Deus, mas sem sucesso. Há também
pessoas que sofrem do que podemos descrever como sarampo
e caxumba espirituais - desenvolvem aquela dolorosa expres­
são em seus rostos, estão sempre cheias de perguntas; não
entendem por que Deus faz isto, não conseguem sondar e ver
por que Deus faz aquilo. Então, como podemos obter este
repouso? O grande princípio consiste em compreendermos
que somos justificados pela fé e que vivemos pela fé. Temos
que compreender que não somos nós que nos fazemos cris­
tãos. Devemos saber algo sobre este repouso da fé, e, quando
não pudermos entender, devemos dizer: “Não sei, mas eu creio
no que Deus faz, e todas as coisas contribuem juntamente
para o bem daqueles que O amam”. Devemos aprender a
repousar e a reclinar-nos nos braços de Deus, e temos que crer
quando não podemos provar; e, sem o cultivo desse aspecto
do repouso e de tranquilidade m ental, não haverá real
crescimento.
Mas permitam que eu simplesmente mencione o último
princípio - o princípio da disciplina. Noutras palavras, tendo
reconhecido todas aquelas outras coisas, devo efetuar com
regularidade o desempenho delas. Não devo ler a Bíblia e
orar espasmodicamente, devo fazê-lo constantemente. Devo
evitar o mal da época, levando em conta que feriado espiri­
tual é coisa que não existe. Devo manter regularidade e ser
constante. Acresce que devo inspecionar a mim mesmo e a
minha vida, e me rever constantemente. Noutras palavras,
devo entregar-me ao exame de mim mesmo. Agora, para
mostrar o que eu quero dizer com exame de nós mesmos,
perm itam que eu leia, em conclusão, uma lista elaborada

310
Crescendo na Graça (II)

pelo piedoso John Fleteher, de Madeley, no século dezoito,


lista que ele fez com o propósito de mostrar às pessoas sim­
ples da sua paróquia como deveriam examinar-se a si mesmas.
São estas, diz ele, as perguntas que vocês podem fazer a si
mesmos, nesta ordem:
1. Acordei espiritual, e fui vigilante em impedir que a
m inha m ente vagasse esta m anhã, enquanto me
levantava?
2. Cheguei hoje mais perto de Deus, quanto aos períodos
de oração, ou me deixei levar por um espírito lasso
e ocioso?
3. A minha fé foi enfraquecida pela falta de vigilância,
ou foi vivificada pela diligência neste dia?
4. No dia de hoje andei pela fé e com os olhos postos em
Deus, em todas as coisas?
5. A bstive-m e de todos os pensam entos e palavras
indelicados? Alegrei-me ao ver outros preferidos a
mim?
6. Aproveitei ao máximo o meu precioso tem po, na
medida em que tive luz, força e oportunidade?
7. Guardei as saídas^ do meu coração nos meios de graça,
de modo que tirei bom proveito deles?
8. Que fiz eu hoje em favor das almas e dos corpos dos
santos amados de Deus?
9. Gastei alguma quantia hoje para agradar a mim mesmo,
quando eu poderia ter poupado dinheiro para a causa
de Deus?
10. Governei bem a minha língua hoje, lembrando que
na multidão de palavras não falta pecado?
11. Em quantos casos eu neguei a mim mesmo no dia de
hoje?
12. Minha vida e meu procedimento adornam o evangelho
de Jesus Cristo?

-Ver Provérbios 4:23. Nota do tradutor.

311
2 PEDRO

De acordo com Fletcher, é dessa maneira que examinamos


a nós mesmos. Levamos a sério estas questões, compreendemos
que temos alma, vida espiritual, e desejamos que ela cresça, e,
tendo observado as condições para crescimento, certificamo-
-nos de que as observamos todas, sim plesm ente fazendo
perguntas a nós mesmos semelhantes a estas, dia a dia.
Esse é o método protestante de crescer na graça. Compre­
endendo que Deus nos deu o dom da vida, compreendendo
que certas condições são essenciais para a preservação e o
desenvolvimento da vida, devemos praticá-las e, ao fazermos
isso veremos que estamos “crescendo na graça e no conhe­
cimento de nosso Senhor e Salvador Jesus Cristo”.
Deus, em Sua graça, conceda-nos esta sabedoria e por ela
nos habilite a crescer. Amém.

312
24
Crescendo na Graça (III)
“Antes crescei na graça e [no] conhecimento de nosso
Senhor e Salvador Jesus Cristo. A ele seja dada a glória,
assim agora, como no dia da eternidade. Amém.”
- 2 Pedro 3:18

Consideremos mais uma vez este grande e vital assunto


relativo a “Crescer na graça e no conhecimento de nosso
Senhor e Salvador Jesus Cristo”. Já o examinamos partindo
de dois pontos de vista. Já consideramos o que significa este
processo e a definição que dele dá o Novo Testamento - a natu­
reza da vida e o caráter do crescimento. Depois também
consideramos juntos como crescer - o que exatamente temos
que fazer para podermos crescer. De novo fomos compelidos,
necessariamente, a considerar algo do caráter da vida cristã, e
vimos que o principal ensino do Novo Testamento é no sen­
tido de que o nosso maior dever é observar certas condições.
Não podemos fazer-nos crescer, nós mesmos. O crescimento é
algo que não pode ser produzido por nós; mas podemos
observar certas condições e obedecer a certas leis; e, se fizermos
isso, o crescimento será o resultado. Vimos a necessidade
absoluta de alimento, água e ar, no sentido espiritual; vimos
também a necessidade de exercício e atividade, e a igual
necessidade de repouso. Depois vimos que, se observássemos
essas condições em geral e as checássemos por periódico auto-
exame e autoinspeção, teríamos o direito de esperar que haja
crescimento. Também demos algumas ilustrações para mostrar
que, quando estas condições são observadas, crescimento é o
resultado inevitável.

313
2 PEDRO

Bem, agora, a próxima questão que se nos antepõe é: como


sabemos que estamos crescendo? Como se mede o crescimento na vida
cristã? Certamente isso constitui uma parte essencial desta
injunção. Recebemos ordem para crescer, mas há algumas
pessoas que, obviamente, acham que já cresceram, que já
chegaram lá. Se a ideia delas estiver correta, não há porque
apelar a elas para que cresçam mais um pouco. Qualquer
doutrina de perfeccionismo, em qualquer molde ou forma, é
em si uma contradição desta exortação a crescer. Os que
acreditam que podem chegar repentinamente ao padrão não
acreditam em crescimento; acreditam em manter-se naquele
padrão máximo. Isso não é crescimento. Por isso afirmo que,
como parte essencial desta exortação, devemos encarar as
perguntas: como determinamos se estamos crescendo ou se
não estamos crescendo? E como mensuramos qualquer cres­
cimento que acaso tenha ocorrido em nós? Pois bem, aqui,
novamente, assinalo que este assunto é vitalmente importante
do ponto de vista prático. Não devemos preocupar-nos so­
mente com a nossa própria vida; não devemos considerar-nos
como plantas de estufa; não devemos passar todo o nosso
tempo apenas contemplando a nós mesmos e tomando nosso
pulso espiritual e nossa temperatura espiritual. Isso é morbi­
dez e é ser valetudinário, enfermiço, no sentido espiritual. Não
é com isso que nos preocupamos. Nós nos preocupamos com
o assunto globalmente porque, como já tenho enfatizado, a
maior necessidade do mundo atual é de cristãos eficientes.
A tragédia é que falamos sobre a Igreja em geral; e, embora
tenhamos falado muito sobre a Igreja em geral por muitos
anos, a Igreja tem cada vez menos influência porque o número
de cristãos é insuficiente. A Igreja sempre teve sua máxima
influência sobre este mundo quando teve o maior número
de indivíduos cristãos. Todas as nossas resoluções e cada re­
comendação que enviemos ao parlamento ou ao primeiro
ministro serão completamente ignoradas, a não ser que eles
achem que há uma grande porcentagem da com unidade

314
Crescendo na Graça (III)

por trás dessas resoluções. Assim sendo, de todo e qualquer


ponto de vista, o cham ado é para crescerm os na graça
individualm ente a fim de que possamos funcionar mais
eficientemente, e a fim de que grande número seja beneficiado
como resultado. Ora, é por isso que o Novo Testamento em
toda parte nos exorta a crescermos na graça e a que nos
certifiquemos de que estamos crescendo na graça. Esse é,
como venho assinalando, o grande mandado que se acha em
toda parte no Novo Testamento. Foi essa a exortação que
estes escritores e apóstolos sempre dirigiram à jovem Igreja,
à Igreja infante - à Igreja do Novo Testamento.
Vivemos numa época de confusão e de incerteza, época de
agitada atividade; nunca, talvez, pesou mais sobre nós a
incumbência de nos avaliarmos e nos testarmos em termos
do ensino do Novo Testamento do que atualmente. Certa­
mente todos concordarão que há muitas indicações de uma
certa tendência para manifestar o que somos compelidos a
descrever como um estado infantil no que diz respeito à vida
da Igreja. Penso que vocês verão isso quando eu puser diante
de vocês algumas indicações do que podemos chamar de
“infância na graça”, ou a condição de “bebê” na graça.
Há um ponto prelim inar ao qual devemos referir-nos
antes de passarmos à discussão detalhada, a saber, que há
muitos que acham que esta exortação necessariamente leva
direto à morbidez e à introspecção. Eles perguntam: você, na
verdade, não nos estaria chamando para a contemplação de
nós mesmos? Acaso não foi esse todo o problema do monas-
ticismo e de toda aquela visão da vida cristã que acredita em o
cristão segregar-se do mundo? Você não nos está exortando a
isso, a passar o resto de nossas vidas apenas observando a nós
mesmos, examinando a nós mesmos? Isso não nos tornaria
na verdade pessoas inúteis, com pletam ente m órbidas e
introspectivas? Embora eu admita pronta e francamente que
há esse perigo, e que há muitos que, em consequência desta
exortação a crescer na graça, tornaram -se m órbidos e

315
2 PEDRO

introspectivos, digo que isso aconteceu por causa do mau


uso do que aqui nos é ordenado. O fato de alguns fazerem isso
de maneira falsa, certamente não é razão para que simples­
mente não seja feito. O oposto ao falso é o verdadeiro, e há um
modo de autoexame que evita o perigo de morbidez e de
introspecção.
Sugiro que há duas coisas que, se observadas, sempre nos
salvaguardam desse perigo. A primeira é que devemos sem­
pre estar com os olhos postos na glória de Deus, e não em nós
mesmos. Noutras palavras, devo preocupar-me em crescer
na graça, não para que eu possa crescer, mas para a glória de
Deus. Para dizê-lo de outro modo, o objetivo do crescimento
não é somente que eu venha a ser melhor que alguém que eu
sei que é pior ou melhor do que eu era; é que, por esse meio,
eu glorifíque a Deus, para que Deus faça maior uso de mim,
para que eu seja um instrumento mais eficiente nas mãos de
Deus. Isso é o mesmo que dizer que o motivo deve ser correto.
Nunca deve ser em termos pessoais. Talvez eu possa expres­
sar a questão desta maneira: m inha ambição não deve ser
que eu seja santo só para ser santo; devo ser santo porque, se
eu for santo, por esse fato manifestarei a glória de Deus de
maneira agradável a Ele. Não devo olhar para o fim em si
mesmo. Dá-se o mesmo em nosso ser físico quando as pes­
soas se preocupam demais com a saúde. Em certo sentido, o
homem saudável é aquele que esquece a questão de saúde. Se
alguém estiver o tempo todo considerando e observando a sua
saúde, isso é em si um sinal de que ele não goza boa saúde.
Pois bem, isso é exatamente certo quanto à esfera espiritual.
Não devem ser esses o nosso alvo e o nosso objetivo; a ques­
tão realmente não deve ser considerada em função de mim
mesmo, mas, antes, em função da honra e da glória de Deus.
E, enquanto eu mantiver isso em primeiro plano, estarei livre
da tendência ou do perigo de morbidez.
O segundo grande princípio é que eu nunca devo dar iní­
cio a este processo de autoexame sem me lembrar, no começo.

316
Crescendo na Graça (UI)

no meio e no fim, da doutrina fundamental da justificação


pela fé somente. Eis o que eu quero dizer: se eu der início ao
processo de auto-exame sem me lembrar de que sou justificado
pela fé somente, só pode haver um resultado do meu auto-
exame, a saber, eu vou sentir que não sou cristão. Vou me
desesperar e vou ser lançado a um estado de morbidez. Ora
esse é, naturalm ente, o perigo que nos confronta quando
lemos certos devocionários m uito conhecidos e famosos.
Tomemos a famosa Imitação de Cristo, de Thomas à Kempis,
em muitos aspectos um livro muito valioso, e, contudo, em
muitos aspectos um livro extremamente perigoso, porque
no fundo ensina a justificação pelas obras. Ele tende, em
última análise, a dar a impressão de que nos tornamos cris­
tãos pelo que fazemos. E, digo eu, se começarmos com essa
ideia, esse autoexame só pode levar-nos ao desespero. Há
somente um meio seguro de nos examinarmos, e é começar
lembrando-nos de que somos salvos unicamente pala graça
de Deus em Jesus Cristo, e de que, ainda que movamos céus e
terra, ou subamos aos céus, ou desçamos às profundezas, jamais
poderemos tornar-nos justos diante de Deus. Nada nos pode
salvar, a mim e a vocês, senão o fato de que Cristo morreu na
cruz por nós - ali está a nossa salvação!
Muito bem, começo com isso. Então me examino e vejo
coisas que me condenam. Vejo faltas, indignidade, e outras
coisas mais; se, porém, comecei pela doutrina da justificação
pela fé, todas as coisas que eu descobrir, e todas as manchas,
vão me levar de volta, e para mais perto de Cristo. Mas, se eu
não tiver começado com Ele, e com Sua morte expiatória na
cruz, verei que o processo me levará ao desespero, à morbi­
dez, à introspecção e ao sentimento de que não há nenhuma
esperança. Por isso eu digo que, ao nos examinarmos no
período da quaresma, ou ao nos examinarmos em qualquer
ocasião, certifiquemo-nos de que o resultado do autoexame
sempre seja levar-nos de volta à cruz. Se vocês chegarem ali,
nunca serão mórbidos, e evitarão aquilo que infelizmente

317
2 PEDRO

caracteriza a vida monástica, e o que anteriormente descreve­


mos como a visão católica da vida santa, da vida santificada.
Bem, essa foi a advertência preliminar, antes de passar­
mos aos detalhes sobre como a pessoa pode saber se está
crescendo na graça e no conhecimento do Senhor. Este é,
naturalmente, um assunto imenso e vitalmente importante, e
não posso fazer nada mais que tentar apresentar-lhes títulos.
Cheguei à decisão de que é melhor dar-lhes uma vista geral
de toda a posição do que dividir o assunto em muitos sermões.
Como o crente pode saber que está crescendo na graça? Ora,
há um meio falso e um meio verdadeiro. O meio falso é
comparar-nos com pessoas que sabemos ser piores que nós
mesmos. Dizer isso parece quase pueril, porém eu penso que
temos que admitir que esse é um dos nossos perigos mais
constantes. Nenhum de nós gosta de terminar o ano com um
balanço adverso, e um modo muito simples de evitar isso é
eomparar-nos com alguém que é pior que nós. E na verdade
é muito simples fazer isso neste mundo moderno. E muito
simples ver todo o pecado que existe ao nosso redor, ler o jor­
nal matutino e dizer: “Bem, eu não sou assim e, portanto, está
tudo bem comigo”. O padrão é tão baixo que não há como
você não se sentir satisfeito. Esse é um método completa­
mente falso.
O segundo grande erro, sugiro, nesta questão de auto-
exame é avaliar o nosso crescimento na graça em termos da
atividade - o que fazemos. Aqui de novo há um grande
perigo, o perigo de supor que muita atividade é, necessa­
riamente, um sinal de crescimento. Permitam-me eliminar
este ponto falando dele desta maneira: há uma ilustração da
esfera natural que eertamente há de nos esclarecer sobre isso
uma vez por todas. Geralmente a criança é muito mais ativa
que a pessoa adulta; dessa maneira, se avaliarmos o nosso
crescimento meramente em termos da atividade, estaremos
estabelecendo uma característica da infância como a medida
do crescimento.

318
Crescendo na Graça (HJ)

Retrocedendo, qual é o método verdadeiro? Há somente


uma resposta. A maneira de medir crescimento é vir à medida
padrão, e essa é este Livro - a Palavra de Deus - a Bíblia. O
único jeito de descobrir onde estamos é ler o que o Novo
Testamento tem para dizer sobre o cristão. Isso também parece
óbvio, e, todavia, sugiro que é fácil ler o Novo Testamento sem
nos examinarmos em momento algum. A pessoa pode ler
este Livro tão mecanicamente que ela não é testada por ele de
modo algum, e, contudo, aí está o único teste real. Há mara­
vilhosos retratos do homem cristão no Novo Testamento; são
delineações da vida cristã e da espécie de pessoas que preci­
samos ser. Há as personalidades bíblicas - observem os santos
do Velho Testamento, e os apóstolos; observem os cristãos
primitivos e a espécie de vida que eles viviam, as coisas que
eles diziam e as ambições que eles tinham. Ora, o jeito de nos
subm eterm os a prova é observar essas pessoas e depois
examinar-nos à luz destes retratos e destes grandes princípios
aqui enunciados. Depois vocês podem, se quiserem, ler as
vidas das pessoas que viveram desde o fim do Novo Testa­
mento. Temos aí também algo que é muito valioso, embora
possa ser perigoso, perigoso no sentido de que pode ser que
queiramos imitar e recapturar suas experiências em vez de
contemplar a sua fidelidade aos padrões descritivos do Novo
Testamento. Podemos, pois, examinar a questão dessa maneira,
mas acima de tudo, e além de tudo, devemos observar o nosso
Senhor. Pensem nas frequentes exortações a que o façamos,
como por exemplo: “Haja em vós o mesmo sentimento que
houve também em Cristo Jesus”. Essa é a prova - nossa seme­
lhança com Ele e nossa conformidade com a espécie de vida
que Ele viveu.
Muito bem, esse é o método - chegamos à Bíblia e ali
encontramos a vara de medir, a medida, pela qual nos medi­
mos. Como fazer isso na prática real e concreta? Como dividir
o assunto? Penso que há duas divisões principais. O Novo
Testamento contém testes negativos e testes positivos, quanto

319
2 PEDRO

a se a pessoa está crescendo. Ou posso dizê-lo nestes termos:


uma boa maneira de me avaliar é ler novamente no Novo
Testamento o que esse fala sobre a que se assemelha um bebê
em Cristo - esse é o teste negativo. Se estou crescendo já não
sou mais bebê. O teste positivo consiste em examinar o quadro
que o Novo Testamento apresenta do cristão adulto. Posso
fazer as duas coisas. Agora, o que eu quero fazer resumida­
mente é dar a vocês algumas das características destes dois
tipos de cristãos como as vemos no Novo Testamento.
Examinemos primeiro algumas coisas que caracterizam
o bebê em Cristo; aquele que não cresce, aquele que não
cresceu. Este assunto é também tão extenso que quase frustra
qualquer tentativa de classificação. Tentei classificar os traços
e as características da seguinte maneira: observemos algumas
das características do bebê em Cristo observando as coisas
que caracterizam a vida imatura na esfera natural. Há, neste
sentido, uma aplicação da lei natural ao mundo espiritual. O
que é verdade a respeito do bebê natural, é verdade, em
princípio, a respeito do bebê espiritual. Quais são as caracte­
rísticas? Bem, o apóstolo já nos dissera, neste mesmo capítulo,
que uma das características da criança é que ela é instável.
Vocês por certo se lembram de que Pedro nos falou que as
Epístolas de Paulo tratam destas questões, “entre as quais há
pontos difíceis de entender, que os indoutos e inconstantes (VA:
“instáveis”) torcem, e igualmente as outras Escrituras, para sua
própria perdição. Vós, portanto, amados, sabendo isto de
antemão, guardai-vos de que, pelo engano dos homens abo­
mináveis, sejais juntamente arrebatados, e descaiais da vossa
firmeza”. Instabilidade: a criança é instável, mutável, facil­
mente fica deprimida, facilmente amedrontada e facilmente
desanimada. Quase não há necessidade de comentar estas
coisas. Transfiram os, porém , tudo isso para o dom ínio
espiritual. O cristão que está sempre entrando em pânico é
obviam ente um bebê em Cristo. Fomos colocados neste
m undo, e há coisas acontecendo por todo lado ao nosso

320
Crescendo na Graça (III)

redor - será que facilmente nos desanimamos, facilmente


ficamos deprimidos? Estas coisas que acontecem imediata­
mente nos levam a questionar toda a nossa fé e o amor a Deus
para conosco? Somos instáveis e mutáveis? Se a resposta é
sim, somos apenas bebês em Cristo. Nada é tão característico
desse estágio da vida e do desenvolvimento como justamente
isso.
A segunda coisa que caracteriza o bebê é que lhe falta
entendim ento e capacidade de discriminação. Certamente
vocês se lembrarão de como o apóstolo Paulo fala disto na
grande passagem do capítulo quatro da sua Epístola aos
Efésios: “Para que não sejamos mais meninos inconstantes,
levados em roda por todo vento de doutrina”. Vocês veem o
que ele quer dizer. Havia na Igreja Prim itiva pessoas que
eram bebês em Cristo. Estas pessoas tinham recebido o
evangelho, tinham crido nele e tinham se tornado membros
da Igreja Cristã. Entretanto, havia falsos mestres, pessoas que
circulavam ensinando heresias, e estes bebês em Cristo os
achavam maravilhosos e interessantes. Então vinha alguém
e dizia exatamente o oposto, e os bebês o seguiam. O bebê é
sempre vítima da seita mais recente - qualquer espécie de
refinamento, qualquer nova teoria, e imediatamente eles se
precipitam para ela e a aceitam. “Para que não sejamos mais
meninos inconstantes, levados em roda [como uma rolha de
cortiça na superfície das ondas] por todo vento de doutrina”
que acaso chegue ali. Isso é sempre um sinal do bebê em
Cristo - o tipo de pessoa que se apressa a entrar em qualquer
novo movimento e pensamento religioso. Ele é um bebê
levado em roda por todo vento de doutrina. Pois bem, isso
não é ideia minha, é o ensino do Novo Testamento.
Que é que vem em seguida? Bem, a próxima caracterís­
tica do bebê em Cristo é o que posso dizer com uma palavra
da qual não gosto nem um pouco, a palavra “exibicionismo”.
A criança é sempre, em dadas ocasiões, culpada deste espí­
rito de exibicionismo. Isto significa - m ostrar demasiado

321
2 PEDRO

interesse por si mesma, estar demasiado pronta para falar de


si mesma, demasiado pronta para chamar a atenção para si.
Isso é psicologia elementar, mas é algo de que a criança é
sempre culpada, e é dever dos pais refrear tais tendências dos
filhos. A criança sempre gosta de ser o centro do círculo. Essa
é uma das consequências da Queda - exibicionismo - o ego se
manifestando. Quando ficamos mais velhos somos um pouco
mais sutis na m aneira de exibir-nos. A criança, em sua
ingenuidade, não se dá conta do que está fazendo; não se
apercebe dessa tolice. A criança o faz abertamente, mas o adulto
fala sobre suas boas obras, fala sobre suas atividades, ou conta
suas experiências, fala das coisas maravilhosas que aconte­
ceram. A aplicação é perfeitamente óbvia. Desafortunadamente
há um tipo de cristão (Deus sabe que todos nós já padecemos
deste mal, e talvez ainda estejamos padecendo - Deus tenha
misericórdia de nós, se é assim) que, no momento em que
começa a falar, fala sobre o que ele tem feito e tem visto, e nos
passa uma lista de suas boas ações - exibicionismo! Que coisa
sutil é isso, e talvez seja uma das últimas tentações a nos
deixar, até ocorrendo a tentação de dizermos que somos
humildes! Podemos orgulhar-nos da nossa humildade; de fato
penso que sempre o fazemos, se procuramos dar a impressão
de que somos hum ildes. Se a nossa hum ildade não for
inconsciente, é exibicionismo. Enquanto permanecermos no
estágio no qual sempre fazemos com que as pessoas saibam o
que estamos fazendo, e fazemos relatos de nós mesmos desta
ou daquela forma, isso é exibicionismo.
Depois, a próxima característica da criança é gostar do
que é divertido, espetacular e excitante. Acho que vocês não
contestarão isto; a criança sempre gosta dessas coisas. Vocês
dão uma aula a uma criança de maneira muito diferente da
que dariam a um adulto. Bem, transfiram tudo isso para o
domínio espiritual, e verão que ali isso é igualmente certo. O
bebê em Cristo está sempre interessado em experiências, e, se
ouve falar de alguém que vai se apresentar para relatar sua

322
Crescendo na Graça (lU)

experiência, vai correndo ouvi-lo. Ocorre a mesma coisa, claro,


com reuniões e comoções! A criança gosta de entretenimento,
gosta de grande número de reuniões, quanto mais reuniões
melhor, quanto mais emocionantes e excitantes melhor. Tudo
isso é característico da mente infantil e do estado infantil.
Lembrem-se da exortação do Novo Testamento - “... e procureis
viver quietos”. Lemos também sobre os que têm “comichão
nos ouvidos”, sempre querendo ouvir algo, pessoas que não
gostam de meditação. Não gostam de contemplação, não
gostam muito de ler e estudar. O excitante, o espetacular, o
entretenim ento é que acima de tudo os atrai. Essas são
algumas das características gerais da criança.
Mas perm itam que eu lhes apresente algumas carac­
terísticas particulares. Que descrição extraordinária das
características da criança nos é oferecida no capítulo três da
Primeira Epístola aos Coríntios! A criança em Cristo está
sempre mais interessada no mestre do que na verdade ensi­
nada. Os cristãos coríntios estavam divididos em facções;
alguns punham fé em Paulo, alguns em Apoio, alguns em
Cefas, e alguns eram seguidores de Cristo; e lá estavam eles,
sempre falando sobre os pregadores. Um dizia; “Eu sou de
Paulo”, outro: “Eu sou de Apoio”. Ora, enquanto vocês per­
manecerem desse jeito, diz praticamente Paulo, vocês serão
bebês em Cristo; eu os alimentei com leite, pois não conse­
guem suportar outra coisa, enquanto são o que são. Para mim
uma das coisas mais tristes do Novo Testamento é ler o que
alguns daqueles membros da igreja de Corinto diziam sobre
um homem, como o apóstolo Paulo. Não há melhor ilus­
tração da infantilidade e puerilidade em Cristo do que as
duas Epístolas aos Coríntios. Elas realmente merecem atenta
consideração, sob esse ponto de vista. Ali Paulo nos fala mais
sobre o bebê em Cristo do que em qualquer outra parte. Havia
membros da igreja de Corinto que tiveram o inestimável
privilégio de ouvir o apóstolo Paulo pregando. (Se me fosse
dada a oportunidade de voltar a algum grande cenário da

323
2 PEDRO

história, com toda a certeza o que eu pediria acima de tudo


mais seria uma oportunidade de sentar-m e para ouvir o
apóstolo Paulo pregar.) Todavia, vocês sabem que havia pes­
soas que 0 tinham ouvido e que torciam o nariz para ele e
diziam: “sua presença é fraca” - ele não é de muita expressão
para quem devamos olhar - e discutiam sobre este apóstolo
extraordinário, sobre este servo de Deus. “A presença pessoal
dele é fraca, e a palavra, desprezível” (ARA) - ele escreve cartas
vigorosas, mas não é de muita expressão a quem devamos dar
atenção ou ouvir. Eles eram bebês em Cristo. Eram cristãos,
mas estavam mais interessados na aparência do pregador do
que na verdade. Vocês imaginariam que alguém que ouvisse
a verdade provinda dos lábios daquele santo homem iria
sequer se lembrar da sua aparência?
Pois é, e eles estavam interessados também na maneira
pela qual ele a dizia. “Sua presença é fraca e seu discurso é
desprezível” (VA). Apoio era m uito mais eloquente que
Paulo; era um grande orador, Paulo não. Penso que a prega­
ção de Paulo era muito diferente da que imaginaríamos ou
esperaríamos. “Sua aparência é fraca, seu discurso é despre­
zível”, mas somente os bebês em Cristo são interessados
em coisas desse tipo. Os bebês se interessam muito pela
personalidade do pregador, por sua aparência e por seu
método e modo de falar. Bem, foram essas coisas que criaram
o espírito partidário, são essas coisas que dividem igrejas em
diferentes partes. Permitam-me expressar-me desta maneira
- se você estiver mais interessado em sua denominação do
que na verdade de Deus, bem, você é um bebê, mesmo que
esteja na idade adulta. Denominacionalismo é sinal de in ­
fância espiritual - realizar coisas porque este é meu grupo,
m inha denominação, m inha organização, e não porque a
verdade de Deus a nos confiada é que nos impulsiona e nos
constrange a realizá-las.
Que mais? A criança, como já nos foi lembrado, está mais
interessada na experiência do que nas relações. Permitam-me

324
Crescendo na Graça (UI)

dizê-lo desta forma: a criança interessa-se mais por ativida­


des e resultados do que por relações. Lembrem-se de como
o nosso Senhor repreendeu Seus discípulos. Eles tinham
expulsado demônios, tinham pregado com muito bom êxito
e estavam cheios de exaltação. Mas Ele lhes disse: “Não vos
alegreis porque se vos sujeitem os espíritos; alegrai-vos antes
por estarem os vossos nomes escritos nos céus”. A criança está
interessada em atividades e resultados, e no que ela está fa­
zendo e no que acontece; mas Cristo diz: alegrem-se, antes,
pela relação - alegrem-se porque os seus nomes estão escritos
no céu.
Permitam-me resumir isso tudo nestes termos: a criança
está sempre mais interessada nos dons do que nas graças.
Leiam o capítulo treze da Primeira Epístola aos Coríntios
sobre este assunto; e o capítulo doze é igualmente importante.
A dificuldade que havia em Corinto era devida ao fato de que
os crentes só estavam interessados nos dons, tais como línguas,
milagres e curas, mas Paulo diz: “Eu vos m ostrarei um
caminho ainda mais excelente” - “a fé, a esperança e o amor,
estes três, mas o maior destes é o amor”. A criança interessa-se
por dons deslumbrantes, espetaculares; aquele que cresceu
interessa-se mais pelas graças da vida cristã.
Isso me leva ao lado positivo. E exatamente o oposto de
tudo o que estive dizendo e com o que não devemos ter
sem elhança alguma. E preciso elaborar isso. Que mais?
Podemos colocar a questão sob três títulos. Pessoalmente
posso ter certeza de que estou crescendo na graça se tenho
crescente consciência da minha pecaminosidade e da minha
indignidade; se cada vez mais eu vejo o negror do meu coração.
Se estou satisfeito comigo mesmo, não estou crescendo; se não
estou satisfeito comigo mesmo, isso é sinal de crescimento.
Permitam que o diga desta maneira - se estou mais preo­
cupado em ser libertado do pecado do que de pecados
particulares, isso é sinal de que estou crescendo. A criança
preocupa-se com pecados particulares; o homem que está

325
2 PEDRO

crescendo está ciente da sua natureza pecaminosa, da qual


anseia por ser libertado.
Que dizer da atitude do cristão em relação ao mundo?
Bem, o sinal de crescimento na graça é um crescente enten­
dimento da natureza do conflito espiritual que ocorre neste
mundo. Noutras palavras, o homem que está crescendo é aquele
que se surpreende cada vez menos com o que está acontecendo
e com a condição do mundo. O homem que está crescendo na
graça deseja cada vez menos o mundo e menos se sente ten­
tado por ele.
Acima de tudo, porém, eu diria que o sinal de crescimento
na graça é quando uma pessoa está entristecida pela condição
do mundo. Eis como Paulo fala sobre isso em sua Segunda
Epístola aos Coríntios: “Gememos carregados”. Este mundo,
para o cristão, é um mundo pecaminoso; ele geme por causa
disso; ele é impulsionado a orar por causa disso; é im pul­
sionado a orar por avivamento; preocupa-se com a sociedade
e as terríveis condições em que ela se acha.
Contudo, finalmente, o melhor de todos os testes de
crescimento é a atitude da pessoa para com Deus. Porventura
amo a Deus mais do que O amava antes? Desejo a glória de
Deus mais do que a desejava antes? Oh, deixem-me expres­
sar este ponto com uma só frase - eu anseio porDews cada vez
mais, e não somente o que Ele pode fazer por mim? A criança
quer presentes, dons, e está sempre correndo atrás disso, e
muitos de nós ainda vêm a Deus dessa maneira, interessados
em Seus dons, interessados no que podemos obter de Deus,
co n sid eran d o -0 apenas como uma agência destinada a
abençoar-nos. Que lástima! Não há melhor teste de cresci­
mento do que verificar se a pessoa anseia por Deus porque
Ele é Deus, se deseja conhecer Deus, e não se preocupa tanto
em receber coisas de Deus quanto em estar em Sua presença e
sentir o fulgor que dEle irradia, e conhecer a si mesmo na
abençoada relação filial. “Esquecendo-me das coisas que atrás
ficam, e avançando para as que estão diante de mim, prossigo”.

326
Crescendo na Graça (III)

diz o apóstolo Paulo. Essa era sua grande ambição - “conhecê-


-10”. Ah, esse é o teste supremo! Livres do domínio dos
experimentos, da experiência, dos dons e de todas estas coisas
que são perfeitam ente legítimas e inteiram ente corretas,
desde que não vivamos por elas e para elas, e crescentemente
levados para o real centro, e ansiando por Deus, e por Ele
somente. Conceda-nos Deus a graça de nos examinarmos à
luz deste ensino, e de podermos dizer com humildade e, não
obstante, com confiança, que avançamos um pouco, que
temos crescido um pouco, e que o nosso maior objetivo e
desejo é conhecê-10 e ser mais semelhante a Ele, para Sua
glória. Amém.

327
25
A Glória de Deus
“Antes crescei na graça e [n o] conhecimento de nosso
Senhor e Salvador Jesus Cristo. A ele seja dada a glória,
assim agora, como no dia da eternidade.”
- 2 Pedro 3:18

“A Ele seja dada a glória, assim agora como no dia da


eternidade”, ou, como diz outra tradução, “tanto agora como
no dia da eternidade”. Examinemos, então, esta Epístola pela
última vez nesta particular série de meditações. Estas pala­
vras são de conclusão. Observamos que o apóstolo termina
sua carta como a começou. Começou dizendo: “Simão Pedro,
Servo e apóstolo de Jesus Cristo, aos que conosco alcançaram
fé igualmente preciosa pela justiça do nosso Deus e Salvador
Jesus Cristo. Graça e paz vos sejam m ultiplicadas, pelo
conhecimento de Deus, e de Jesus nosso Senhor”. Assim,
repito, 0 apóstolo termina como começou; e isso é verdadeira­
mente característico, não somente dele, mas também de todos
os outros escritores do Novo Testamento. Vimos, ao percorrer
esta particular carta, que Pedro, como sábio pastor, estava
acertada e naturalmente preocupado com os problemas das
pessoas para as quais ele estava escrevendo. E certo discutir
nossos problemas pessoais e peculiares; mas, em última ins­
tância, a Igreja não é uma instituição preocupada mera ou
primariamente com discussões dos problemas dos homens e
das mulheres. A principal função e obrigação da Igreja é
proclamar o Senhor Jesus Cristo. Por isso Pedro se apressa a
terminar sua Epístola com esta nota: “crescei na graça”. Afinal

328
A Glória de Deus

de contas, diz ele praticamente, esse é o grande valor, isso é o


que há de importante. Mas, mesmo dizer isso é pensar muito
em termos das pessoas para as quais ele estava escrevendo,
pelo que ele continua e diz: “a quem seja dada a glória, assim
agora, como no dia da eternidade. Amém”.
Pois bem, temos aí uma perfeita ilustração e exemplo do
que eu descrevería como a mentalidade saudável do Novo
Testamento. Vejam vocês, o Novo Testamento não é um manual
de psicologia. Não começa por nós, não se limita a ter-nos
como objeto de sua consideração e não termina falando de
nós, deixando-nos, talvez, um pouco mais felizes por algum
tempo, e fazendo com que nos sintamos bem e à vontade. Não
é esse o grande propósito deste Livro. Seu grande propósito
é proclamar as boas novas concernentes a Jesus Cristo. É o
evangelho, é uma declaração vinda de Deus, e seu interesse é
algo que Deus fez. Eu e vocês entramos em cena porque visa
ao nosso benefício; mas começa, não por nós, e sim por Ele.
Qualquer coisa que se possa dizer de nós ou que possamos
auferir é secundário em relação a este importantíssimo tema.
Ora, certamente, no mundo como ele está hoje, devemos dar
graças a Deus por ser assim.
O mundo está profundamente imerso em dúvidas e
problemas. Os livros se preocupam com isso, e, visivelmente,
até muitos romances e novelas entraram nesse vórtice. Todo o
mundo se tornou muito subjetivo, muito egocêntrico, muito
introspectivo. O homem moderno, com toda a sua jactância,
tornou-se um problema para si mesmo, e passa a maior parte
do tempo de que dispõe olhando para si mesmo. É por isso
que ele se sente tão miserável e infeliz; é por isso que, no
sentido intelectual, ele é tão inferior a seus antepassados. Ele
se voltou para si mesmo, e há então essa morbidez doentia que
o cerca. Mas aqui nos vemos num a esfera inteiram ente
diversa, que podemos descrever como uma esfera de grande
objetividade, na qual se nos pede que deixemos de olhar para
nós mesmos e olhemos para Jesus Cristo. Pedro nos exorta a

329
2 PEDRO

crescer na graça, e fizemos grande empenho para explicar


que, se adotarmos o método do Novo Testamento para efetuar
o crescimento, distinguindo-o dos métodos que descrevemos
como católicos, e de outros, que são psicológicos, ficaremos
livres desse perigo - do perigo da introspecção. Essa é a
decorrência porque o princípio realmente essencial que opera
no crescimento na graça consiste em olhar para Cristo, e não
para nós mesmos. Quando olharmos para Ele, passaremos a
ser semelhantes a Ele; quando meditarmos nEle, teremos
m aior anseio por Ele; e quando procurarm os ser-L he
agradáveis, incidentalmente estaremos crescendo. O método
bíblico não nos impele a voltar-nos para nós mesmos; sempre
nos impele para Ele.
Bem, as últimas palavras desta Epístola nos dizem tudo
isso com muita objetividade e clareza. Vocês não podem ler
estas cartas de Pedro, não podem ler qualquer das cartas do
Novo Testamento, sem verem Jesus Cristo no centro de todas
elas; Ele é seu constante tema. Este Livro fala de Jesus Cristo,
tudo olha para Ele - para diante, olha para Ele, com vistas ao
passado, olha para Ele; é tudo uma exposição sobre Ele. O
Livro todo nos faz lembrar, então, que a vida cristã é essen­
cialmente uma vida de relação com Ele. O cristianismo é
Cristo. Não é certo número de conceitos, nem um conjunto de
idéias; não é um certo número de expressões e categorias que,
se as aplicarmos e se meditarmos nelas, farão algo a nós. O
cristianismo é, todo ele, acerea de Cristo, e eu digo que esta
carta, que temos considerado juntos nestes estudos, deixa isso
inequivocamente claro. Pedro não se afasta do tema. Ele pre­
cisa tratar de vários problemas, mas o tempo todo os leva de
volta a Cristo. Ele começou dizendo que queria que os seus
leitores crescessem no conhecimento de Cristo; e termina
dizendo a mesma coisa. Ele lhes conta que estivera com Ele
no monte santo, que contemplara Sua glória - o tempo todo é
Cristo. Pedro foi um homem cuja vida e cuja perspectiva eram
inteiram ente governadas e controladas por Jesus Cristo.

330
A Glória ãe Deus

Cristo tinha mudado tudo quanto a ele e para ele, e desde a


primeira vez em que O encontrou, e desde a primeira vez que
O entendeu, Ele era a chave de toda existência, de todos os
problemas e de todas as situações. E, por conseguinte, quando
ele conclui sua carta, é inevitável que o faça com as palavras
que agora estamos considerando juntos. Tal é seu amor por
Cristo e tal é seu interesse por Cristo, que sua grande ambição
na vida é que toda a glória seja dada ao Senhor Jesus Cristo.
Que significa isso? Significa que Pedro entendia que tudo
o que ele tinha, como também tudo o que qualquer outra
pessoa tinha, devia ser dedicado ao Senhor Jesus Cristo. Foi o
que ele quis dizer com estas suas palavras: “A ele seja dada a
glória, assim agora, como no dia da eternidade”. Esse é seu
modo de expressar seu desejo de que Cristo receba toda a
honra e de que seja engrandecido, que Cristo seja glorificado
pelo mundo inteiro e por toda a criação. Vemos exatamente a
mesma coisa quando lemos o capítulo dois de Filipenses. É
que “ao nome de Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos
céus, na terra, e debaixo da terra, e toda língua confesse que
Jesus Cristo é o Senhor, para glória de Deus Pai”. Era isso que
enchia a mente e o coração destes cristãos, e esse era o seu ardente
desejo e a sua maior ambição. E é a isso que o apóstolo exorta
estas pessoas dessa forma, no fim de sua carta.
O que praticamente ele diz é o seguinte - será vocês estão
vivendo para que a glória de suas vidas vá para Jesus Cristo?
Será que vocês se preocupam com Sua glória? Desejam
promover Sua glória? Agora, se ilustrarmos este ponto por
meio de outra coisa, talvez fique ainda mais claro. Sabemos o
que isso significa em termos do nosso país; sabemos o que é
lutar por nosso país e desejar que seu nome seja grandioso.
Sabemos algo da resposta a um apelo como esse; e em resposta
a um apelo como esse os homens estão dispostos a morrer.
Sabemos o que é propugnar e desejar a honra e a glória de
grandes homens ou de uma grande causa, ou de algo que nos
interessa particularmente e que exerce grande atração sobre

331
2 PEDRO

nós. Pois bem, o que Pedro está dizendo é que Jesus Cristo
deveria ser como isso para o cristão. Deveria ser o centro da
sua meditação, a lei da sua vida. Aquele que ele ama com
todo o seu ser. Sua maior ambição na vida deveria ser a de
levar todo o mundo a reconhecer Cristo, louvá-10, submeter-
-se a Ele e fazer tudo o que puder para prom over Sua
honra e Sua glória, e fazê-10 sobressair, supremo, em todo o
mundo dos homens. É exatamente isso que ele quer dizer, e
esse é seu último e final apelo às pessoas para as quais está
escrevendo.
Eu sugiro que esse é um chamado que se dirige a nós, que
reivindicamos o nome de Cristo na presente hora. A Pessoa
de Cristo deve sobressair, e devemos ter todo o cuidado de
deixar claro que não estamos preocupados com uma coleção
de idéias, mas que a nossa posição, toda ela, consiste numa
relação pessoal com esta Pessoa. Nossa proclamação e de que
Ele não somente é digno de ser louvado, mas também que
Ele merece toda a glória que o homem Lhe possa dar.
Talvez alguém pergunte: por que se deve fazer isso?
Quais são suas razões para dizer: “A Ele seja dada a glória,
assim agora, como no dia da eternidade”? Observemos de
passagem esta última e notável frase antes de eu responder à
pergunta. Há algo de estranho e quase paradoxal nela - “dia
da eternidade”. “Agora e para sempre”, diz a Versão Autori­
zada (inglesa). Bem, sem dúvida Pedro está mantendo em
m ente aqui algo que ele tinha dito antes, neste mesmo
capítulo: “Amados, não ignoreis uma coisa: que um dia para
o Senhor é como mil anos, e mil anos como um dia”. E então
ele fala sobre “o dia da eternidade”. Aqui estão vocês agora,
no tempo. Mas, como ele lhes havia explicado, o fim do
tempo aí vem. O fim será introduzido pelo retorno do nosso
Senhor, e o reino de glória será estabelecido numa nova terra
e num novo céu. E isso que ele quer dizer com a expressão
“o dia da eternidade”. Seja Cristo glorificado entre vocês
agora, continuadamente, e até “o dia da eternidade” - aquele

332
A Glória ãe Deus

glorioso dia do qual ele estivera falando.


Ora, por que Cristo deve ser assim glorificado? Por que
nós, cristãos, dizemos que Ele é digno de toda esta honra e de
toda esta glória? Permitam-me sugerir algumas respostas a estas
perguntas. A primeira é que Cristo deve receber toda glória e toda
honra porque Ele é Deus. Jesus Cristo é Deus. Expressando o
ponto em termos negativos, se Jesus Cristo não fosse Deus,
esta declaração do apóstolo Pedro não passaria de blasfêmia.
Somente Deus é digno de ser glorificado e honrado pelo
mundo inteiro. E Deus somente, porque Ele é Deus, que
merece toda a glória. Deve-se atribuir a Ele toda a glória.
Pedro diz aqui: “A ele” - ao Senhor Jesus Cristo - “seja dada
a glória, agora e para sempre. Amém”. Qual será a implicação?
E, inequivocamente, que Jesus Cristo é Deus; e essa é a nossa
afirmação cristã central; que a Pessoa Jesus de Nazaré, que
nasceu como um bebê em Belém, que viveu trinta anos uma
vida comum, seguindo a ocupação de carpinteiro, e que saiu
para pregar com trinta anos de idade e que ia por toda parte
“fazendo o bem”, operando milagres e ensinando o povo
durante aqueles três anos - dizemos que essa Pessoa outra
não é senão a segunda Pessoa da Trindade Santa e Bendita -
Deus. Sobre que base dizemos isso? Sobre qual fundamento
nós de fato baseamos a nossa afirmação de que este Jesus, a
quem atribuímos dessa forma toda a glória, é realmente o
Filho de Deus? Quase pedi desculpa por fazer tais perguntas,
mas, em vista de algumas recentes publicações, parece-me
necessário ainda fazer certas afirm ações com clareza e
inequivocamente.
Sobre que base dizemos que Jesus de Nazaré é o Filho de
Deus, o unigênito Filho de Deus, e que Ele é pessoalmente
Deus, a segunda Pessoa da Trindade? A primeira resposta é
Seu nascimento virginal. Aqui está uma doutrina claramente
exposta no Novo Testamento. Hoje em dia há pessoas, até
pessoas que ocupam posição proem inente na Igreja, que
dizem que isso é cientificamente impossível. Mas a Igreja

333
2 PEDRO

nunca afirmou que a ciência pode entender esse fato. O


evangelho de Jesus Cristo é, declarada e confessadamente,
sobrenatural. Não se pode esperar que o homem natural o
entenda. Na verdade Paulo deelara que o homem natural não
o pode entender. Não começamos dizendo que a geração de
Jesus Cristo foi igual à de todas as outras pessoas que vivem
ou que já viveram na terra. Nós dizemos: não! Ele é essencial­
mente diferente. Afirmamos que Ele nasceu de uma virgem,
que Ele foi “eoncebido pelo Espírito Santo”, o que resultou
de um ato sobrenatural - o nascimento virginal. Ele é diferente
em Seu nascimento. Ele começa diferentemente. Ele veio ao
mundo; não foi gerado de maneira comum. Alegamos, pois,
que Ele é Deus, ainda que fosse meramente devido ao modo
como Ele veio a esta vida e a este mundo.
Depois examinamos as reivindicações que Ele faz quanto
a Si e quanto a Seu ensino. Observamos que Ele próprio Se
contrastou com todos os que existiram antes dEle, como na
verdade Ele Se coloca acima e em posição superior à de todos
os antigos mestres. Ele diz de Si mesmo: “Antes que Abraão
existisse eu sou”; “Eu e o Pai somos um”. Ele exige dos homens
uma adesão totalitária; Ele chamou homens dizendo-lhes que
deixassem seu trabalho e sua carreira ou vocação e O seguis­
sem. Ele Se coloca nessa posição com palavras e atos. Ele
reivindica unicidade e Se declara um Ser igual a Deus. Ele
afirma que tem uma intim idade e uma profunda relação
com Deus que nenhum homem jamais teve.
Apontamos igualmente para os Seus milagres. De novo
lem bro que algumas pessoas dizem hoje que realm ente
devemos parar de falar em milagres, e que, com o nosso
conhecim ento científico m oderno, crer em m ilagres é
totalm ente impossível. A isso há uma réplica simples. O
milagre é, por definição, algo que a ciência não pode enten­
der porque é sobrenatural. Milagre não significa rompimento
de alguma lei natural; significa que uma lei da natureza é
superada. E não há nenhum conhecimento, entendimento ou

334
A Glória ãe Deus

progresso científico que de algum modo, ou na menor extensão


concebível, tenha invalidado as reivindicações do Novo
Testamento concernentes aos milagres. O Novo Testamento
apresenta os milagres como algo fora do comum, e dizer que é
anticientífico crer em milagres é simplesmente fazer uma
declaração completamente anticientífica. A ciência preocupa-
-se com a esfera das coisas que podem ser tocadas, mensuradas
e verificadas m ediante experim entação. O m ilagre, por
definição, é algo que está acima e além disso. Portanto, tentar
colocar a ciência e o miraculoso em posições antagônicas é,
parece-me, mostrar incapacidade de entender o significado
da ciência e o significado dos milagres.
Permitam-me expor o assunto partindo do ponto de vista
do Novo Testamento. Se vocês tirarem os milagres do Novo
Testamento, que é que fica? Se os milagres não são verdadei­
ros, em que podemos crer? Se eu não puder aceitar os registros
destes homens acerca dos atos de Cristo, poderei aceitar o que
eles dizem acerca das Suas palavras e do Seu ensino? Se eu
tirar os milagres e disser que eles são falsos ou que são exage­
ros, poderei crer nalguma coisa, afinal? Não me resta nada,
quando nos vemos lidando com a questão de autoridade no
capítulo primeiro desta carta. A situação em que nos vemos
como cristãos é que, ou aceitamos o testemunho dos quatro
Evangelhos, o testemunho dos homens que estiveram com
Cristo e que O viram e foram testemunhas da Sua vida, morte
e ressurreição, ou então cremos e aceitamos tudo da nossa vida
e da nossa perspectiva baseados nas suposições e nas declara­
ções dos homens modernos - uma coisa ou outra. À parte deste
Livro, não temos nenhuma autoridade, e, ou ele está certo ou
está errado. Posso entender o homem que diz que este Livro
está completamente errado e que o rejeita; mas o homem que
não consigo entender é aquele que declara que o pensamento
moderno é a autoridade suprema e depois aplica isso a este
Livro, e tira dele o que não é do seu gosto e aceita o que lhe
agrada. Isso me parece um a completa negação do Novo

335
2 PEDRO

Testamento. O Novo Testamento nos manda atribuir glória a


Cristo porque Ele é Deus. E nos garante que Deus revelou
o fato de que Jesus Cristo é Deus pelos milagres que Ele
realizou - “[Se] não credes em mim, crede nas obras”, disse
Ele. Os milagres de Cristo atestam e proclamam que Ele é
realmente Deus.
Que mais? A ressurreição. Também nos é dito que nenhum
homem moderno, com conhecimento científico, pode crer e
aceitar como fato uma ressurreição física, literal. Mas, se não
tivesse ocorrido a uma ressurreição física, literal, existiria uma
Igreja Cristã? Observem aqueles discípulos após a morte de
Cristo! São eles do tipo que inicia um grande movimento, ou
estavam eles em condições de começar um movimento que
logo iria “alvoroçar o mundo”? Não; há somente uma explica­
ção - foi a ressurreição que levou ao surgimento da Igreja. Foi
a ressurreição que deu àqueles homens a certeza de que Ele
era o Filho de Deus. A ressurreição! E justamente à luz destas
realidades que são tão rejeitadas - o nascimento virginal, os
milagres e a ressurreição - que declaramos e afirmamos que
Jesus Cristo é Deus, e que, porque é Deus, atribuímos a Ele
toda a glória e toda a honra.
E depois acrescentemos a isso o envio do Espírito Santo
no dia de Pentecoste. Essa é a prova final da Sua deidade.
Tendo feito tudo, Ele prova que tem autoridade enviando
sobre os Seus discípulos “a promessa do Pai”. Essa é a razão
para atribuirmos toda a glória a Ele - Ele é Deus. Esta Pessoa
maravilhosa outra não é senão a segunda Pessoa da Trindade
santa e bendita.
A seguir, atribuímos toda a honra e toda a glória a Cristo
também em razão do que Ele realizou. Lá está o Filho eterno
de Deus; Ele deixa o seio do Eterno e as mansões do céu.
Lem brem -se da linguagem de Paulo no capítulo dois da
Epístola aos Filipenses - Sendo Ele tão glorioso, humilhou-
-Se. Não considerou usurpação o ser igual a Deus, e, no entanto,
despojou-Se de todos os sinais da Sua glória eterna e nasceu

336
A Glória de Deus

como um Bebê em Belém. Vejam aquele Bebê, vejam aquele


m enino, quando Ele estava com doze anos de idade, no
templo, vejam aquele jovem durante aqueles dezoito anos
de silêncio, com partilhando a vida comum dos homens.
Lem brem -se de que Ele é o unigênito Filho de Deus, a
segunda Pessoa da Trindade santa e bendita. Lá está Ele em
Sua solidão. Humilhou-Se, tomou sobre Si a forma de servo,
precisamente como uma pessoa comum. Interagiu com Seu
povo e trabalhou com Suas mãos, apesar de ser o Filho de
Deus. E depois vejam-nO e observem-nO em Seu ministério
público. Ouçam Seu ensino e observem também Suas obras.
Observem-nO quando tem que sofrer nas mãos dos Seus
inimigos - escribas, fariseus, doutores da Lei - os insultos que
acumularam sobre Ele, os entendimentos errôneos que Ele
padeceu!
Olhem depois para Ele naquele m aravilhoso Dia de
Ramos quando, repentinamente, aquele povo, elevando-se
acima e além de si mesmo, parece ter enxergado, embora sem
entender, quem Ele é. Sigam aquela grande procissão e Sua
entrada triunfal na cidade de Jerusalém. Mas é preciso que
vocês se dirijam ao Getsêmani e contemplem a agonia e o
opróbrio de tudo aquilo - e então, a cruz. Ele humilhou-Se
até a morte, “e morte de cruz”. Pensem na coroa de espinhos,
pensem nos cravos, pensem na sede, pensem no suor e na
agonia, no grito de desamparo, e pensem depois na morte e
no sepultamento no sepulcro.
Pois bem, diz Pedro aqui; ele merece ter toda a glória e
toda a honra pelo que Ele realizou. E é exatamente esse o
argumento do grande apóstolo Paulo em sua Epístola aos
Filipenses - por causa disso tudo, “Deus o exaltou soberana­
mente, e lhe deu um nome que é sobre todo nome; para que
ao nome de Jesus se dobre todo joelho dos que estão nos céus,
e na terra, e debaixo da terra”. Assim é que, se alguém perguntar
hoje por que devo atribuir glória a Cristo, essa é a segunda
resposta. Não somente porque Ele é quem é, mas devido ao

337
2 PEDRO

que Ele realizou. Esta bendita e gloriosa Pessoa desceu à


terra e sofreu tudo isso; e por essa razão O louvamos e en­
grandecemos Seu nome, e Lhe damos toda a honra e toda a
glória.
Mas não paramos aí - a Ele seja dada toda a glória, e honra,
e louvor, por causa da Sua presente posição. Pois o evangelho
não pára no sepultamento e no sepulcro. Ele prossegue e fala
da ressurreição de Cristo, e diz mais, que depois da ressurrei­
ção Ele subiu às alturas. Diz-nos Pedro que Cristo Se assentou
à direita da autoridade e do poder de Deus, que Ele compar­
tilha o trono com Deus e que neste momento esta mesma
Pessoa lá está, na glória, reinando com Deus. Pois bem, estas
coisas são tão transcendentais, e tão maravilhosas em sua
natureza, que as nossas mentes parecem aturdidas e desnor­
teadas, e não conseguimos contemplá-las; mas estas são as
declarações do Novo Testamento. Você começa nos céus, você
O vê descer, você acompanha o Seu curso terreno, e depois
você O vê de novo no céu. E cada uma destas coisas é uma
razão pra atribuir honra e glória a Ele.
O apóstolo desenvolveu este particular ponto em detalhe
no corpo da Epístola. Pediu aos leitores que suportassem seus
sofrimentos e lhes deu consolo. Sua consolação máxima para
eles foi que Cristo estava no trono, que o Filho de Deus estava
na glória, que, saibamos ou não, creiamos ou não, o fato era
que esta Pessoa que padeceu sob Pôncio Pilatos, morreu e foi
sepultado, agora estava sentado à destra de Deus, nesse
momento. Ele é o Rei dos reis e o Senhor dos senhores; toda
a autoridade Lhe foi dada, todo o poder está em Suas mãos.
Ele já abriu o livro da vida e da história, Ele, o Rei, já está
em Seu trono, e também por essa razão nos atribuímos a Ele
toda a glória.
Que mais? Bem, a próxima razão é que atribuímos glória
a Ele pelo que Ele vai realizar. Aqui também vocês veem, mais
uma vez, que Pedro, nesta última palavra, está apenas juntando
numa frase tudo o que havia dito em sua Epístola. Aqui nos

338
A Glória de Deus

encontramos, na face desta terra, num mundo que emergiu de


duas guerras mundiais, num mundo em que há fala de guerras
e rumores de guerras, num mundo de pecado, contradição e
vergonha; e o chamado que nos é feito é para darmos glória a
Cristo. Por quê? Vê-se que Ele não é glorificado, os homens
negam a Sua deidade, negam os Seus milagres, negam a Sua
ressurreição. Eles querem fazer dEle um mero homem, um
mestre. A maioria nem pensa nEle, e não se preocupa. O
mundo está contra Ele; por que devemos, então, dar-Lhe
glória? A resposta adicional é que esta bendita Pessoa, que lá
está sentada à direita de Deus neste momento, vai retornar a
este mundo. Ele virá sobre as nuvens, entrará no mundo, não
montado num jumento, mas assentado nas nuvens do céu em
transcendental glória, e todos os que O virem O reconhecerão
e O conhecerão. “O dia da eternidade” vem. O reino de glória
vai ser introduzido. O Cristo que foi crucificado, o Cristo que
foi e está sendo olvidado, o Cristo que os homens negam, não
obstante virá em glória, estabelecerá Seu reino e reinará para
sempre. Por que devo atribuir glória e honra a Ele? Porque
eu creio nisso; porque, com os olhos da fé, eu vejo tudo isso
acontecendo; porque sei, agora, que isso é verdade; porque
vislumbro a glória que ainda está por ser revelada.
Contudo, permitam que eu lhes apresente a última razão
pra atribuir toda a glória a Ele. Devo glorificá-10 porque Ele
é Deus, pelo que Ele realizou, por Sua atual posição na glória,
e por causa da glória que ainda será revelada concernente a
Ele. Mas, se vocês quiserem uma razão ainda mais pessoal,
ei-la - esta razão é como que o resultado de tudo o que eu
estive dizendo, de tudo o que Cristo realizou, que nos é
totalmente possível conhecer Deus no dia de hoje. Portanto,
m inha última razão para glorificá-10 é pelo que Ele fez por
mim. Sem Ele, onde ficamos? Somos filhos da ira, nascemos
em pecado e fomos formados em iniquidade. Temos infringido
as leis de Deus, e Deus nos vê com desprazer. Aos olhos da lei
não temos esperança. Na vida somos desprezíveis, e depois da

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2 PEDRO

morte seríamos condenados, sob maldição. Mas Cristo veio


e fez o que nós descrevemos; e o resultado é que Deus nos
perdoa, somos reconciliados com Deus, somos feitos filhos
de Deus, e todas as coisas foram feitas novas.
Por que devo glorificar a Cristo? Bem, pela nova vida
que Ele me deu, pela esperança que Ele me deu, porque
Ele torna diferente a vida, porque Ele muda tudo. Ele tornou
a vida suportável e sustentável; Ele me libertou daquela
desprezível e infeliz vida que consistia em tentar viver para o
prazer, na qual eu tentava esquecer os meus problemas, sem
nenhuma esperança na vida e sem nada depois da morte, a
não ser escuridão e trevas. Ele morreu por meus pecados e me
reconciliou com Deus. Foi Ele que me introduziu no reino
de Deus. E Ele que me dá a certeza de que, seja o que for que
0 homem faça comigo, vou estar com Ele em Seu reino glori­
oso, e vou passar a eternidade em Sua gloriosa e venturosa
presença. A Ele seja a glória, agora e no dia da eternidade!
Muitas coisas podem acontecer entre este momento e o dia
da eternidade. Não importa; elas não podem afetar Cristo,
não podem mudá-10, não podem desviá-10 do Seu propósito.
E, finalmente, nada nos pode separar do Seu amor.
A Ele, Deus o Filho; a Ele, que Se destituiu de Sua
reputação, que até foi para a morte de cruz; a Ele, que saiu
triunfante do sepulcro; a Ele, que está assentado à direita de
Deus; a Ele, que ainda virá e introduzirá o Seu reino glori­
oso; a Ele, e somente a Ele, seja a glória, agora e até que Ele
venha, e até “o dia da eternidade”.

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