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FEST, Joachim. Hitler. Rio de Janeiro: Ediouro, 2010.

Excertos selecionados
A mesma operação que se procedeu a respeito da suposta trajetória singular da
Alemanha (a teoria do Sonderweg), fez-se notar quanto à imagem de Hitler: ele
“permaneceu como a força irresistível, determinadora de tudo, e ‘apenas mudou de
qualidade: o salvador transformou-se no sedutor diabólico’” (p. 3).

Na verdade, Fest defende que Hitler foi o ponto focal de uma série de
circunstâncias coletivas, muito maiores que ele:
“o ‘cinza’ particularmente triste da República de Weimar; o rebaixamento da nação pelo
Tratado de Versalhes e o segundo rebaixamento social de largas camadas da população
devido, ao mesmo tempo, à inflação e à crise da economia mundial; a fraqueza da
tradição democrática na Alemanha; os sobressaltos causados pela ameaça de revolução
comunista; a experiência da guerra; os cálculos falhos de um conservantismo que se
tornara precário; e, finalmente, as angústias que se difundiram pela transição de uma
ordem conhecida para outra, nova e ainda incerta. Tudo isso, acrescido ainda do desejo
de encontrar a proteção de um mando autoritário” 1. (p. 3)

Nesta enumeração, nota-se a presença de elementos pontuais e particulares ao


caso alemão. Lá a mobilização patriótica e entusiasta da Primeira Guerra, que formou
um sentimento de unidade entre os cidadãos, especialmente dentre aqueles que se
envolveram diretamente nas ações do front, foi sucedida de maneira súbita e chocante
pela humilhante derrota, agravada pelas pesadas sanções estabelecidas pelos países
vencedores. O ressentimento causado por esses eventos daria o tom nas duas décadas
seguintes, sentimento que alimentou o extremismo político e arruinou as chances de
sobrevivência do sistema republicano. Para muitos alemães, a adoção do regime
republicano equivalia à submissão aos modelos políticos dos países vencedores, e a
República era vista “como responsável pelas desordens, pela derrota e humilhação
nacionais”2.
“[...] a amargura motivada pelas cláusulas do tratado de paz intensificou mais ainda o
ressentimento contra a república, porque esta se mostrara incapaz de poupar ao país o
rigor e a desonra daquele ‘diktat da vergonha’; [...] a própria noção da república tornou-
se cada vez mais sinônimo de vergonha, de desonra e de incapacidade. E não se apagou
jamais o sentimento de que com ela se impusera, pela mentira e pela coação, uma forma
de governo essencialmente estranha ao país. Mesmo durante seus poucos anos felizes, a
república não conseguiu captar verdadeiramente as simpatias da população [...]” 3.
1
FEST, 2010, p. 3.
2
Idem, p. 61.
3
Idem, p. 65.
A República só seria tolerada na medida em que significava uma débil barreira
ao comunismo, outra força política que atuou durante todo o período Weimar. Não se
deve tampouco minimizar o papel da crise econômica, que corroeu a vida alemã em
ondas sucessivas. Em muitos documentos do Arquivo Lasar Segall pode-se encontrar os
vestígios das dificuldades impostas à vida cotidiana pela hiperinflação, como num
curioso debate registrado em cartas entre Segall e os editores do Círculo dos Artistas
Gráficos e Colecionadores, a respeito da maneira correta de se atualizarem os valores
ajustados por uma contribuição do artista russo para a publicação4. Os reflexos dos
problemas econômicos aparecem em diversas obras de arte produzidas por Segall.
Temas como a viuvez e a orfandade, a mendicância, a prostituição, a fome e a morte por
escassez de recursos são recorrentes em telas e gravuras desse período. Não se deve
desprezar o papel que a crise inflacionária alemã exerceu na decisão de Segall em
emigrar para o Brasil, decisão feita no momento mesmo em que ele experimentava
grande aceitação e reconhecimento de seu trabalho. Seu descontentamento com a
situação aparece em diversas cartas escritas nesse período, e é bastante eloquente o fato
de que ele deixa a Alemanha exatamente no ano em que a crise atingiu seu paroxismo.
Ainda que a crise inflacionária tenha sido debelada em 1924, as taxas de
desemprego seguiram elevadas na Alemanha ao longo de todo o período republicano. O
golpe final veio com a crise mundial de 1929, que fez com que o apoio ao partido
nazista extrapolasse a base original e conquistasse novos segmentos da população. Não
foi por outro motivo que o historiador Eric Hobsbawn declarou que o que levou Hitler
ao poder foi a crise de 29 (XXXXXX).
Mas na enumeração citada por Fest devem ser notados também alguns elementos
que apontam um mal-estar civilizacional mais antigo e difuso. Ele se refere a “angústias
que se difundiram pela transição de uma ordem conhecida para outra, nova e ainda
incerta”. Esse sentimento encontrava-se vivo também fora da Alemanha, e tinha raízes
que remontavam, pelo menos, ao início do século XIX, quando as grandes

4
Segall discordava da fórmula de reajuste proposta pelos editores, devolvia o cheque enviado como
pagamento e solicitava outra importância. Os 300 mil marcos que inicialmente deveriam ser pagos a
Segall a título de liquidação dos honorários se haviam convertido, entre março e outubro de 1923, em
6.8 bilhões, segundo os cálculos da empresa, ou em 32 bilhões de marcos, segundo pleiteava Segall. Ver
documentos ALS 00491 (Carta do editor do Círculo dos artistas gráficos e colecionadores a Lasar Segall,
23/3/1923) e ALS 00454 (Cópia de Carta de Lasar Segall ao Círculo dos artistas gráficos e colecionadores,
12/10/1923).
transformações modernas – políticas, econômicas e sociais – semearam a incerteza
quanto às formas do futuro. No geral,
“A velha Europa, cosmopolita, feudal e camponesa, que tinha sobrevivido por singular
anacronismo [...] desfazia-se no decorrer de uma revolução silenciosa, e as agitações, os
conflitos que a acompanhavam não poupavam ninguém. O futuro, que fora durante
longo tempo o domínio na esperança e da utopia sorridente no plano privado ou social,
tornava-se agora uma causa de preocupação e ansiedade para grupos cada vez mais
numerosos.
Esse clima de inquietação ocasionou, naturalmente, numerosos movimentos, sobretudo
de ideologias defensivistas na base do nacionalismo popular e do racismo, que se
apresentavam como doutrinas salvadoras de um mundo em perigo. Essa atitude
defensivista se manifestou particularmente através do antissemitismo, denominador
comum de numerosos partidos e ligas concorrentes” 5.

“Quando o gato come o rato, quem é o culpado?”. Segundo Joachim Fest, Hitler
costumava dar início à exposição de suas concepções de mundo com esta prosaica
pergunta. Em seguida, desfiava uma argumentação em que se misturavam traços mal
compreendidos da filosofia de Nietzsche e ecos do darwinismo, tingidos com o
antissemitismo conforme o praticavam vários pensadores da época e do passado, dentre
eles Wagner, sempre admirado pelo Führer. Para Hitler, a reflexão sobre o dilema do
gato e do rato apontava para o fato de que a natureza é amoral, e que a única lei
aceitável na regulação das relações entre os indivíduos deve ser aquela que é ditada por
ela. “Um ser bebe o sangue do outro. Enquanto um morre, o outro se alimenta. É preciso
não ficar por aí dizendo tolices, falando de humanidade” 6. Hitler declarava que todas as
épocas de decadência do passado se deviam à desobediência a essas supostas “leis
divinas de existência”, no que acusava o cometimento de uma “infidelidade biológica”.
Aliada a essa concepção encontrava-se a doutrina racista, segundo a qual uma pequena
elite ariana era responsável pela elevação das capacidades humanas até seus patamares
máximos. Na narrativa de Hitler, vivia-se justamente o momento em que essa casta
superior ameaçava desaparecer, sucumbindo, por um lado, à conspurcação biológica
pela mistura com raças inferiores e, por outro, pela supressão de seu direito à
supremacia, por meio da ofensiva de movimentos os mais diversos que procuravam
instaurar uma igualdade considerada artificial entre os indivíduos. Para Hitler,
configurava-se uma
“[...] uma ofensiva geral, sob os mais diversos disfarces: comunismo, pacifismo, Liga
das Nações e todas as instituições e todos os movimentos internacionais mas também a
moral judaico-cristã da piedade e as variantes de sua fraseologia cosmopolita, [que]
5
Idem, p. 21. Neste trecho, Fest refere-se especificamente à situação da Áustria, mas parece ser possível
aplicar essas constatações a outras nações da Europa.
6
Apud. FEST, 2010, p. 156.
tentavam persuadir o homem de que ele era capaz de dominar a natureza, domesticar
seus instintos e construir a paz eterna”7.

Para Fest, a força de Hitler provinha exatamente desse poderoso delírio


escatológico. “Como que hipnotizado pela ideia de uma grande enfermidade mundial,
por toda parte enxergava a existência de vírus, pragas e úlceras afetando a humanidade”.
Com base nessa constatação pseudocientífica, acreditava cada vez mais, até chegar ao
completo desvario, em seu papel missionário, colocando-se – e sendo visto por parte
expressiva da população – como um novo redentor, encabeçando a luta pela salvação da
humanidade. Grandes decisões tidas como estrategicamente desnecessárias e até mesmo
contraproducentes – como a “solução final” para a questão dos judeus e a invasão e
guerra de extermínio contra os russos – explicavam-se justamente por essa convicção de
que se tratava de uma luta do escolhido em busca de “repelir o Mal para os domínios de
Lúcifer” 8(p. 153).
A contribuição particular de Hitler, que era também o predicado que o tornou
apto a enfeixar a força da sociedade alemã sob si, foi sua capacidade de condensar essa
doutrina, “a ponto de fazer dela um instrumento demagógico e um sistema que oferecia
explicação plausível para todos os descontentamentos, angústias e sintomas de crise do
tempo presente” (p. 160).

7
FEST, 2010, p. 159.
8
Idem, p. 153.

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