Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Excertos selecionados
A mesma operação que se procedeu a respeito da suposta trajetória singular da
Alemanha (a teoria do Sonderweg), fez-se notar quanto à imagem de Hitler: ele
“permaneceu como a força irresistível, determinadora de tudo, e ‘apenas mudou de
qualidade: o salvador transformou-se no sedutor diabólico’” (p. 3).
Na verdade, Fest defende que Hitler foi o ponto focal de uma série de
circunstâncias coletivas, muito maiores que ele:
“o ‘cinza’ particularmente triste da República de Weimar; o rebaixamento da nação pelo
Tratado de Versalhes e o segundo rebaixamento social de largas camadas da população
devido, ao mesmo tempo, à inflação e à crise da economia mundial; a fraqueza da
tradição democrática na Alemanha; os sobressaltos causados pela ameaça de revolução
comunista; a experiência da guerra; os cálculos falhos de um conservantismo que se
tornara precário; e, finalmente, as angústias que se difundiram pela transição de uma
ordem conhecida para outra, nova e ainda incerta. Tudo isso, acrescido ainda do desejo
de encontrar a proteção de um mando autoritário” 1. (p. 3)
4
Segall discordava da fórmula de reajuste proposta pelos editores, devolvia o cheque enviado como
pagamento e solicitava outra importância. Os 300 mil marcos que inicialmente deveriam ser pagos a
Segall a título de liquidação dos honorários se haviam convertido, entre março e outubro de 1923, em
6.8 bilhões, segundo os cálculos da empresa, ou em 32 bilhões de marcos, segundo pleiteava Segall. Ver
documentos ALS 00491 (Carta do editor do Círculo dos artistas gráficos e colecionadores a Lasar Segall,
23/3/1923) e ALS 00454 (Cópia de Carta de Lasar Segall ao Círculo dos artistas gráficos e colecionadores,
12/10/1923).
transformações modernas – políticas, econômicas e sociais – semearam a incerteza
quanto às formas do futuro. No geral,
“A velha Europa, cosmopolita, feudal e camponesa, que tinha sobrevivido por singular
anacronismo [...] desfazia-se no decorrer de uma revolução silenciosa, e as agitações, os
conflitos que a acompanhavam não poupavam ninguém. O futuro, que fora durante
longo tempo o domínio na esperança e da utopia sorridente no plano privado ou social,
tornava-se agora uma causa de preocupação e ansiedade para grupos cada vez mais
numerosos.
Esse clima de inquietação ocasionou, naturalmente, numerosos movimentos, sobretudo
de ideologias defensivistas na base do nacionalismo popular e do racismo, que se
apresentavam como doutrinas salvadoras de um mundo em perigo. Essa atitude
defensivista se manifestou particularmente através do antissemitismo, denominador
comum de numerosos partidos e ligas concorrentes” 5.
“Quando o gato come o rato, quem é o culpado?”. Segundo Joachim Fest, Hitler
costumava dar início à exposição de suas concepções de mundo com esta prosaica
pergunta. Em seguida, desfiava uma argumentação em que se misturavam traços mal
compreendidos da filosofia de Nietzsche e ecos do darwinismo, tingidos com o
antissemitismo conforme o praticavam vários pensadores da época e do passado, dentre
eles Wagner, sempre admirado pelo Führer. Para Hitler, a reflexão sobre o dilema do
gato e do rato apontava para o fato de que a natureza é amoral, e que a única lei
aceitável na regulação das relações entre os indivíduos deve ser aquela que é ditada por
ela. “Um ser bebe o sangue do outro. Enquanto um morre, o outro se alimenta. É preciso
não ficar por aí dizendo tolices, falando de humanidade” 6. Hitler declarava que todas as
épocas de decadência do passado se deviam à desobediência a essas supostas “leis
divinas de existência”, no que acusava o cometimento de uma “infidelidade biológica”.
Aliada a essa concepção encontrava-se a doutrina racista, segundo a qual uma pequena
elite ariana era responsável pela elevação das capacidades humanas até seus patamares
máximos. Na narrativa de Hitler, vivia-se justamente o momento em que essa casta
superior ameaçava desaparecer, sucumbindo, por um lado, à conspurcação biológica
pela mistura com raças inferiores e, por outro, pela supressão de seu direito à
supremacia, por meio da ofensiva de movimentos os mais diversos que procuravam
instaurar uma igualdade considerada artificial entre os indivíduos. Para Hitler,
configurava-se uma
“[...] uma ofensiva geral, sob os mais diversos disfarces: comunismo, pacifismo, Liga
das Nações e todas as instituições e todos os movimentos internacionais mas também a
moral judaico-cristã da piedade e as variantes de sua fraseologia cosmopolita, [que]
5
Idem, p. 21. Neste trecho, Fest refere-se especificamente à situação da Áustria, mas parece ser possível
aplicar essas constatações a outras nações da Europa.
6
Apud. FEST, 2010, p. 156.
tentavam persuadir o homem de que ele era capaz de dominar a natureza, domesticar
seus instintos e construir a paz eterna”7.
7
FEST, 2010, p. 159.
8
Idem, p. 153.