Você está na página 1de 116

NÚMERO

Os públicos da cultura:
.12

desafios contemporâneos
Possibilidades e limites para ampliação de públicos
Conceito de público: reflexões a partir do cenário cultural contemporâneo
Uma aguda reflexão sobre a relação entre arte contemporânea e público
Foto: Humberto Pimentel

Centro de Documentação e Referência Itaú Cultural

Revista Observatório Itaú Cultural : OIC. – N. 12 (maio/ago. 2011). – São Paulo : Itaú Cultural, 2011.

Quadrimestral.

ISSN 1981-125X

1. Política cultural. 2. Gestão cultural. 3. Consumo cultural. 4. Formação de públicos. I.


Título: Revista Observatório Itaú Cultural.
CDD: 353.7

.2
n. 12 2011

SUMÁRIO

.08 OS PÚBLICOS DA CULTURA: DESAFIOS PARA AS


POLÍTICAS CULTURAIS
Isaura Botelho

.19 DEMOCRATIZAÇÃO DA CULTURA:


FIM E CONTINUAÇÃO?
Olivier Donnat

.35 AS POLÍTICAS CULTURAIS DIANTE DOS


CRITÉRIOS DE JUSTIÇA: REFLEXÕES A PARTIR DO
CASO FRANCÊS
Philippe Coulangeon

.49 O quarto ofício [métier] da infância:


o de consumidor cultural
Sylvie Octobre

.63 OS PÚBLICOS DAS ARTES DO ESPETÁCULO


NA FRANÇA
Jean-Michel Guy

.77 A ARTE CONTEMPORÂNEA EXPOSTA ÀS


REJEIÇÕES: CONTRIBUIÇÃO A UMA SOCIOLOGIA
DOS VALORES
Nathalie Heinich

.93 A CONQUISTA DOS PÚBLICOS, OS DESAFIOS DE


UM CENTRO CULTURAL FRANCÊS NO EXTERIOR:
O CASO DE ALEXANDRIA, NO EGITO
Brigitte Rémer

.3
Revista Observatório Itaú Cultural

Editora
Isaura Botelho

Editor de imagem
Humberto Pimentel

Equipe de edição
Josiane Mozer
Mariana de Oliveira Machado
Selma Cristina Silva

Produção editorial
Lara Daniela Gebrim

Tradução
Mateus Araújo Silva

Revisão de textos
Rachel Reis
Rosana Brandão

Projeto gráfico
Yoshiharu Arakaki

Design
Estúdio Lumine

Colaboradores desta edição


Brigitte Rémer
Isaura Botelho
Jean-Michel Guy
Nathalie Heinich
Olivier Donnat
Philippe Coulangeon
Sylvie Octobre

observatorio@itaucultural.org.br

.4
Exposição Sutil Violento, itinerância Chile. Abertura no Museo Nacional de Bellas Artes, 2008.
Foto: Cia de Foto

.5
.6
Aos leitores

Este número da revista Observatório dedica-se a discutir a relação


entre as práticas culturais, a produção cultural e as políticas culturais.

Com a criação da Unesco e a consequente valorização da impor-


tância da cultura como elemento-chave no desenvolvimento hu-
mano, a produção de estatísticas sobre o campo cultural começou a
ser incentivada e pensada como uma necessidade. Pesquisas sobre
práticas culturais e consumo cultural passaram a ser compreendi-
das como ferramentas imprescindíveis para o conhecimento das
realidades de um país e para a formulação de políticas de fruição e
democratização dos bens culturais.

Países com avançado desenvolvimento econômico foram os primei-


ros a atender à solicitação da Unesco para realizar pesquisas estatís-
ticas de cultura, sendo a França o país que mais produziu informa-
ções. A existência de um Ministério da Cultura como órgão centra-
lizador facilitou a coleta sistemática e periódica de dados, gerando
metodologia avançada e estudos consistentes, e a França tornou-se
uma referência no assunto.

No Brasil, embora seja recente a dedicação à produção de dados


culturais, estamos caminhando e já produzimos pesquisas impor-
tantes sobre diversos aspectos de nosso campo cultural. Em 2004,
a parceria entre o IBGE e o Ministério da Cultura ampliou a compre-
ensão sobre equipamentos e recursos da cultura nos municípios. A
pesquisa de Isaura Botelho em 2005 observou as práticas culturais
de moradores da Região Metropolitana de São Paulo, reunindo in-
formações preciosas sobre como a população da região faz uso de
seu tempo livre e como decide suas práticas culturais.

Mais recentemente, em 2010, o Instituto de Pesquisas Econômi-


cas (Ipea) divulgou um estudo em nível nacional sobre as práticas
culturais da população brasileira. No mesmo ano, o DataFolha, em
parceria com a J. Leiva Cultura & Esporte e a FGV/SP, produziu da-
dos estatísticos sobre as práticas culturais dos moradores de cidades
paulistas, fornecendo informações para pensar as características do
estado quanto ao consumo cultural.

Essas pesquisas constituem um interessante conjunto de dados,


mas a ausência de uma série histórica e levantamentos estatísticos
sistemáticos acabam por dificultar análises mais aprofundadas sobre
a nossa complexa realidade cultural.

Buscando colaborar para a consolidação de uma agenda consisten-


te e ininterrupta de pesquisas sobre o campo cultural, acreditamos
ser de grande valia oferecer, neste número com tom de dossiê, o
contato com a produção atual e rica de pesquisadores franceses há
muito dedicados a refletir sobre essa que é a mais difícil faceta do
campo cultural: as escolhas, os motivos, os gostos e as recusas dos
“públicos de cultura”.

Eduardo Saron .7
Foto: Humberto Pimentel
Exposição Sutil Violento, itinerância Uruguai, espaço expositivo do Museo Nacional de Artes Visuales, 2008. Foto: Carmen Luccas/Itaú Cultural

os pÚBLICOS DA CULTURA:
DESAFIOS PARA AS POLíticas
culturais
Isaura Botelho

Este número da revista Observatório, do Itaú Cultural, se organiza


de maneira diferente dos demais. Ele se constitui como um dos-
siê de artigos em torno da questão dos públicos da cultura e as-
pectos relacionados, temas fundamentais para o planejamento e
a implantação de políticas culturais. Considerar os públicos e as
barreiras simbólicas que dificultam o acesso às manifestações ar-
tísticas e culturais é essencial quando a vida cultural da popula-
ção é a razão do engajamento dos poderes públicos em políticas
de suporte ao setor. Apesar disso, entre nós, é ainda o elo menos
estudado da cadeia criação/produção, circulação/difusão, fruição/
consumo. Como veremos adiante, a questão do acesso aos bens
culturais passa por fatores que não são cobertos por políticas que
se concentram na oferta.

No Brasil, a realização de pesquisas na área das políticas culturais,


que não são muitas, encontra-se dispersa em instituições de ti-
pos variados e ainda muito dependente do interesse pessoal do
pesquisador. Ainda é um campo sem fisionomia definida. Assim,
a institucionalização do campo de estudos nessa área dá ape-
nas os seus primeiros passos. A revista Observatório é parte des-
se cenário e tem cumprido um papel importante no sentido de
estimular, mediante premiação, o desenvolvimento de pesquisas
no setor. Esta revista é também um instrumento importante para
a legitimidade de um campo de estudos que se amplia e vem
ganhando adeptos.

.8
Foi a partir dessa constatação que pareceu oportuno o convite aos
colaboradores, todos franceses. Assim como o primeiro Ministério
da Cultura, a França também criou o primeiro departamento mi-
nisterial, em 1960, voltado exclusivamente para estudos e pesqui-
sas socioeconômicos da cultura, quantitativos e qualitativos, com
o intuito de auxiliar na formulação e na tomada de decisões em
matéria de políticas culturais. Cinquenta anos depois, a produção
e a excelência desse organismo atravessaram fronteiras, estimulan-
do a criação de centros análogos em outros países.

Temos, entre nossos colaboradores, três membros do Départé-


ment des Études, Prospective et Statistiques (Deps): Olivier Don-
nat, Sylvie Octobre e Jean-Michel Guy, pesquisadores com larga
trajetória e rica produção sobre os diversos fatores que regem os
consumos culturais, com amplo conhecimento dos públicos. Na-
thalie Heinich e Philippe Coulangeon, pesquisadores ligados ao
Centre National de Recherche Scientifique (CNRS), e Brigitte Rémer
são pesquisadores que trouxeram importantes contribuições para
esse campo de estudos, para cuja organização e para cujo desen-
volvimento o Deps contribuiu diretamente.

Olivier Donnat é o responsável pela realização da pesquisa sobre


as práticas culturais dos franceses que, ao longo do tempo, se tor-
nou o principal instrumento de acompanhamento da evolução
comportamental da população. Dessa pesquisa, realizada a cada
sete anos, derivam os estudos específicos sobre os públicos das di-
ferentes áreas artístico-culturais, aprofundando aspectos mais es-
pecíficos de cada uma delas. A periodicidade aqui possibilita uma
análise serial e permite o questionamento das grandes estratégias
políticas governamentais. Foi a partir dos resultados das sucessivas
pesquisas que se colocou em xeque a estratégia da “democratiza-
ção cultural”, bordão da maioria das políticas públicas implantadas
em diversos países. Essas políticas têm por objetivo a superação de
tais desigualdades de acesso àquela que é considerada a “única” ou
a mais “legítima” cultura: a cultura erudita. Veem o público, portan-
to, como único e homogêneo, e acreditam na magia do encontro
entre a obra e esse público como algo suficiente para a conversão
dos chamados “excluídos culturais”. Ao ignorar as barreiras simbó-
licas presentes na recepção a obras e programas culturais, e ao
não analisar os mecanismos de transmissão do “desejo por cultura”,
que nada têm de natural, tais políticas de democratização cultural
não alcançaram o seu principal objetivo: incorporar novos setores
sociais no mundo dessas práticas eruditas.1

Além de retomar tal questão, Donnat enfatiza também o fenômeno


massivo em escala internacional, muito comum nas sociedades oci-
dentais, que é o protagonismo do consumo cultural em domicílio. A
disseminação e o barateamento dos equipamentos eletrônicos são
as principais razões da generalização desse tipo de prática. Dessa
forma, uma diversidade maior de práticas de cultura e de lazer se
torna possível, sem que haja a necessidade de despender tempo e
dinheiro, o que também propicia a simultaneidade de atividades,
como escutar música enquanto se faz outras coisas, por exemplo.

.9
Consequentemente, o centro de gravidade da política cultural se
desloca e convoca a formulação de intervenções em dinâmicas res-
tritas ao espaço doméstico e que são dominadas pela lógica de mer-
cado. Para ele, é um desafio tão importante quanto aquele aberto
por Malraux na criação do Ministério dos Assuntos Culturais.

O desenvolvimento da “cultura em domicílio” tem propiciado a di-


versificação do universo cultural dos indivíduos, transformando as
práticas culturais “tradicionais”, o que só tende a se aprofundar com
o envelhecimento das gerações habituadas a essas novas manei-
ras de vivenciar as artes e a cultura. Assim, as mudanças no cenário
apontam para três objetivos interligados a ser perseguidos pela po-
lítica cultural: incorporação efetiva da educação artística e cultural
nas políticas educativas, medidas para que os equipamentos cultu-
rais tenham uma real política de desenvolvimento dos públicos e
criação de um serviço público de “cultura em domicílio” que alcance
o maior número de pessoas. Ninguém melhor que Olivier Donnat
para falar desse tema no artigo que abre este número da revista.

Philippe Coulangeon propõe uma reflexão sobre as políticas cul-


turais do ponto de vista dos critérios de justiça. Para isso, recorre

.10
a uma análise das políticas de democratização cultural baseadas
nos pressupostos da universalidade da cultura erudita como valor
maior e da universalidade do “desejo por cultura”. Esses equívocos
são o pano de fundo da não incorporação de novos segmentos
sociais nessas práticas legitimadas. Coulangeon avança sobre as
diferenças que a incorporação do novo paradigma da democra-
cia cultural traz para o campo das políticas culturais, fundando
uma alternativa que permite questionar as hierarquias culturais
estabelecidas. Mostra, porém, como o sistema de hierarquização
tradicional continua presidindo a distribuição de recursos, fazen-
do com que as subvenções continuem voltadas para o financia-
mento da produção de bens e serviços, ou seja, da oferta. Daí o
encaminhamento da análise para as questões relativas às políticas
de oferta e de demanda e à força das heranças sociais e familiares,
que o próprio Coulangeon chama de “variável principal e oculta”
em outro texto em que ele discorre sobre o papel da escola na
democratização do acesso aos equipamentos culturais. Assim, a
transmissão de valores, gostos e hábitos tem o seu lócus privile-
giado na família, a partir da educação recebida durante a infância
e a adolescência; sabendo disso é que se pode afirmar a fragilida-
de da subvenção da oferta e das apostas da política de democra-

Exposição Cinético Digital, 2005. Foto: Cia de Foto

.11
tização na melhor distribuição territorial de equipamentos e nas
medidas de rebaixamento de custos de ingressos.

Coulangeon reitera e demonstra, ao longo do artigo, como as ati-


tudes culturais são ligadas à posição e à origem social dos indiví-
duos, diretamente ligados ao peso e à natureza das bagagens cul-
turais herdadas do seio da família. A compreensão das dinâmicas
de transmissão sobre as quais já existe uma considerável literatura
deveria se refletir no processo de formulação das políticas cultu-
rais, o que não acontece de forma consequente.

A criança e seu papel como consumidora cultural é o tema abor-
dado por Sylvie Octobre, responsável por vários estudos em tor-
no da infância e da adolescência do ponto de vista das práticas
culturais. Uma descrição de cada etapa do desenvolvimento
acompanhada da evolução dos gostos e preferências conforme
a idade avança nos aponta as imbricações do espaço doméstico
com o escolar, permeado pelas relações de sociabilidade e pelas
limitações e controles da criança menor. Os sucessivos ganhos
de autonomia com relação ao espaço familiar à medida que a
criança cresce se fazem acompanhar de uma maior presença das
preferências ligadas aos grupos de camaradas. O capital cultural
herdado da família é (re)investido e (re)interpretado pelos jovens
num processo que a autora vê como dinâmico e em constante
transformação. A formação de hábitos culturais é o fundamento
de um percurso que autoriza uma maior liberdade e diversidade
de consumos por parte dos jovens, sem que haja necessaria-
mente uma identidade absoluta entre os hábitos e consumos
dos pais e os de seus filhos, por exemplo. Com a revolução da
cultura digital, não apenas os usos culturais evoluíram, mas tam-
bém as modalidades e os conteúdos da transmissão familiar,
permitindo que não haja a ruptura geracional que costumava
existir antes da presença maciça dos conteúdos veiculada pela
indústria cultural e midiática de hoje. Sylvie Octobre coloca em
dúvida a família como “sujeito principal das estratégias de repro-
dução”, citando Pierre Bourdieu,2 relegando as outras instâncias
de socialização a “influências”. Em primeiro lugar, ela chama a
atenção para as diferenças das “heranças” adquiridas, dependen-
do do membro da família, segundo o sexo e a classe da criança.
Na verdade, ela quer reforçar a complexidade dessa socialização
familiar, demandando um olhar mais fino sobre sua dinâmica, e,
ao mesmo tempo, dar ênfase a outros fatores que intervêm na
transmissão, como a mobilidade social dos pais, a relação com
o tempo, extensão e densidade das redes sociais, a escola, pa-
res, mídia etc. Embora dissonante como posição, Sylvie Octobre
não compromete o peso da herança familiar pelo arrolar desses
outros fatores. A densidade e a complexidade das dinâmicas de
transmissão no seio do universo familiar não se reduzem à célula
primária, inclusive. Também os modos de transmissão são varia-
dos e seus atores diversos, atuando tanto no plano simbólico
quanto no das práticas e hábitos num processo dinâmico que
se transforma e se renova de geração em geração e que podem
ser interpretados “como motores da mudança social e cultural”.

.12
Uma rápida abordagem sobre os tipos de pesquisas e seus limites
é o que evoca Jean-Michel Guy no início de seu artigo, ao lado dos
problemas ligados à metodologia. Mais voltado para uma reflexão
do que para conclusões, ele propõe uma indagação de ordem epis-
temológica sobre a imprecisão de termos que estão no cerne do
tema tratado em seu texto, que são os públicos das artes do espe-
táculo: espetáculo, espectador e público. Sobre os limites políticos
das pesquisas, Jean-Michel Guy chama a atenção principalmente
para o fato de elas não terem consequência efetiva, o que nos leva
a pensar que, para os seus comanditários, a encomenda lhes basta.
As considerações feitas a partir da última pesquisa sobre as práti-
cas culturais dos franceses confirmam o fato de que as taxas de
frequência a espetáculos em geral e de cada gênero em particular
variam consideravelmente de acordo com variáveis como idade,
sexo, nível de instrução e categoria profissional, assim como o ta-
manho da cidade e região do domicílio. Sua leitura dos dados é ex-
tremamente instrutiva no sentido de nos mostrar as possibilidades
que o exercício da análise e a construção de variáveis pertinentes
abrem, permitindo um conhecimento mais refinado das dinâmicas
que presidem os hábitos de consumo cultural. A problematização
da análise não apenas refina esse conhecimento específico como
revela movimentos mais amplos da sociedade.

Nesse sentido, Jean-Michel Guy invoca um estudo, coordenado por


ele em 1993, junto a jovens de 12 a 25 anos de idade. Esse estudo
mostra que a “falta de informação” que os jovens invocam para ex-
plicar por que não frequentam algum tipo de espetáculo, por exem-
plo, significa muito mais um excesso de informações que eles não
são capazes de qualificar ou hierarquizar. Outro aspecto para o qual
ele chama a atenção é o do quão problemático é trabalhar com o
que ele chama de categorias político-administrativas, como teatro,
dança, música e circo, na medida em que os públicos se dividem
(e são fiéis) por subgêneros (flamenco, moderna, clássica etc., no
caso da dança) e que geralmente não se recobrem. Por vezes, mes-
mo no caso de gêneros extremamente delimitados, como o novo
circo, caso em que se imaginaria uma homogeneidade razoável do
público, um estudo pontual mostrou que este chega a variar con-
forme a obra encenada, desmentindo a homogeneidade esperada.

Nathalie Heinich vem, desde os anos 1980, estudando as reações


do público à arte contemporânea: o texto que temos aqui faz parte
de uma coletânea de artigos reunidos no livro L’Art Contemporain
Exposé aux Rejets, mesmo título do artigo que aqui publicamos;3
tendo como origem uma pesquisa feita para o Ministério da Cultu-
ra. Rejeitada pela própria delegação das artes plásticas, a estratégia
de Heinich foi a de diluir os resultados e as informações obtidas em
várias publicações suas, já que tais resultados pertencem à delega-
ção.4 Utilizando uma metodologia inovadora – que merecerá algu-
mas observações a seguir –, suas conclusões mostram o quanto a
prioridade dada à arte contemporânea pelo governo socialista de
François Mitterrand, que assumira o poder em 1981, fez com que ela
fosse vista como “arte oficial”. Dessa forma, a rejeição contaminou o
governo como um todo.

.13
.14
Performance do artista Shima, selecionado do Rumos Artes Visuais, 2008/2009. Foto: Christina Rufatto/Itaú Cultural
Do ponto de vista metodológico, o grande achado de Heinich foi
o de utilizar a rejeição à arte contemporânea, explicitada sob diver-
sas formas pelo senso comum e não pelo discurso de especialistas.
Como ela diz,

o prazer estético ou o assentimento passam, mais frequen-


temente, pela contemplação silenciosa ou pelo implícito
compartilhar de valores, o que por evidentes razões de ordem
metodológica torna difícil a observação.

O caso contrário, a indignação, tende a se exprimir de forma mais


espontânea e, muitas vezes, em público. Habituada a utilizar entre-
vistas, ela não achava que esse fosse o melhor caminho, preferindo
uma démarche mais etnológica, trabalhando sobre as reações exis-
tentes, sem criar novas situações que terminam muitas vezes por
dirigir as respostas.

A dificuldade de ter não especialistas como objeto é o fato de que


as suas reações são muito mais difíceis de observar, já que eles não
dispõem de canais para expressá-las. Daí a necessidade de buscá-
las naqueles lugares onde a arte contemporânea está acessível ao
grande público, ou seja, no espaço público, por ocasião de ma-
nifestações de caráter variado: exposições, performances, instala-
ções etc., situações em que a percepção não é (ou é pouco) pré-
formada. Assim, a autora privilegiou como objeto de seu estudo
as reações sob forma de grafites, cartas a jornais, livros de ouro
de exposições, comentários ouvidos durante eventos, etc. Como
a própria autora aponta, esses julgamentos não somente vêm do
gosto pessoal de cada um (para o qual o espaço privado é sufi-
ciente), mas apelam a uma ética geral, de caráter cívico ou político,
que privilegia a esfera pública. O método adotado então a leva a
trabalhar apenas com situações paradoxais nas quais a questão de
gosto, supostamente restrita à esfera privada, se vê transformada
pela rejeição em problema de sociedade, investida de valores mo-
rais, políticos e cívicos.

Dessa forma, a autora procura explicitar as contradições – através


da análise dos diversos registros de valor em jogo – entre os dois
campos e esclarecer o que chama de diversos mal-entendidos entre
eles. Para isso ela lança mão de um amplo repertório teórico, que
inclui sociólogos de sua própria geração e que vêm trazendo contri-
buições extremamente interessantes para a sociologia dos valores,
como é o caso de Luc Boltanski e Laurent Thévenot,5 que pretendem
ir além daquilo que, na construção de Pierre Bourdieu, reduz os con-
flitos a “estratégias de distinção”, ao exercício de uma “violência sim-
bólica” ou à dominação dos “legítimos” sobre os “ilegítimos”. Nesse
caso, trata-se de colocar em evidência a pluralidade das escalas de
valor e dos regimes axiológicos dando a palavra aos atores.

Se a maioria dos gestores e dirigentes culturais pensa conhecer as


reações do público, Heinich nos relembra que esse público se res-
tringe ao universo daqueles com quem eles se encontram no seu
dia a dia, nos vernissages ou nas conferências. Assim,

.15
o pequeno público dos visitantes muito motivados se transfor-
ma, por metonímia, no “público”, enquanto o grande público
anônimo praticamente desaparece do campo de percepção.6

Mais uma vez nos defrontamos com o paradigma que regeu as


políticas de democratização da cultura como profissão de fé dos
dirigentes e gestores culturais que, crendo na universalidade da
arte, ou quem sabe sendo eles mesmos depositários de uma no-
ção clássica de uma arte fundada sobre a universalidade da bele-
za, em que basta ser vista para ser apreciada, deixam os cidadãos
desprovidos de qualquer formação em história da arte moderna
se confrontar com obras claramente atentatórias aos valores ar-
tísticos tradicionais, levando-os a homogeneizar seu contato e a
estabelecer comparações entre obras que apelam para diferentes
valores de julgamento e apreciação.

A experiência mostra que não se pode esperar nenhum imedia-


tismo no confronto com a arte contemporânea – salvo se con-
siderarmos alguns casos excepcionais de conversão fulgurante
– e que só um trabalho cuidadoso de explicitação daquilo que
produz a obra em questão (inclusive sobre o próprio especta-
dor) permite provocar, no mínimo, interrogações e, no melhor
dos casos, adesões, evitando que o espectador agredido não se
refugie na recusa.7

A uma arte nova deveria corresponder uma ação cultural também


nova que, vindo do poder público, não pode recusar o confron-
to com o público não especializado, principalmente quando seu
lema é o de uma democratização cultural.8 O estudo mostrou que
as rejeições, mesmo não sendo pertinentes de um ponto de vis-
ta estético, não eram nem absurdas nem desprovidas de sentido:
elas apenas apelam – na falta de uma sintonia de registros, mesmo
quando são de ordem estética – para valores diversos. Na verda-
de, elas testemunham emoções bastante fortes, capazes de en-
gendrar argumentos extremamente coerentes que se reportam a
valores bastante legítimos em outras circunstâncias ou segundo
outros pontos de vista. Daí encontrarmos, a título de exemplo, re-
gistros de caráter “purificatório” (que apelam para a necessidade de
manter a “pureza” do local onde foram instalados); ou “doméstico”
(que apelam para a preservação da integridade do passado ou do
território); ou “funcional” (apelando para os incômodos provoca-
dos pela instalação de determinadas obras, como a segurança); ou
“econômico” (onipresente na maioria dos casos); ou “cívico” (apelan-
do para a má utilização dos recursos públicos, para o favoritismo,
para o esnobismo etc.); ou “jurídico” (que questiona a legalidade
das obras ou de sua instalação); ou, ainda, “ético” (indignação pela
transgressão de valores morais) etc. Ou seja, a indignação do senso
comum invoca valores que, por não se referirem aos problemas es-
pecíficos da criação artística e de sua história, levam os especialis-
tas de arte a não reconhecê- los como pertinentes, recusando-os a
priori. Daí uma atitude que decorre dessa incompreensão, que é o
desprezo dos profissionais por esse público. O caráter muito espe-
cializado da cultura necessária para se relacionar com a arte con-

.16
temporânea, da mesma forma que a morfologia particular de um
mundo excessivamente restrito e bastante recente, duplamente
voltado para dentro de si mesmo, não parece encorajar a abertura
àqueles que não detêm o domínio sobre essas variáveis. A análise
de Nathalie Heinich aponta claramente para o fato de que, antes
de constituir uma agressão, as rejeições à arte contemporânea são
uma defesa à agressão sentida por seus detratores: uma agressão
contra os valores tradicionais da arte, que eles aprenderam a res-
peitar. Não são, portanto, gostos que se afrontam, mas paradigmas
estéticos, nos quais está em jogo inclusive a legitimação daquilo
que pode ou não ser chamado obra de arte.

Brigitte Rémer compartilha conosco sua experiência como diretora


adjunta do Centro Cultural Francês em Alexandria, no Egito. Seu
texto nos revela a articulação de vários problemas: a burocracia
francesa e seu narcisismo, que levam a uma prática desvinculada
dos valores e das necessidades locais; a precariedade da institu-
cionalização da esfera cultural no país, que se reflete na falta de
recursos materiais e logísticos locais. Como gestora, a autora se vê
diante do desafio de ser a mediadora de todos os tipos de conflito,
a começar o de enfrentar o centralismo burocrático que faz com
que as ordens ou a passividade se imponham a partir da capital.
Enfrentar o desinteresse dos responsáveis franceses. Construir um
diálogo com os artistas locais. Conquistar um público acostumado
à indiferença de um centro cultural estrangeiro, pouco equipado
e quase inativo. Barreiras simbólicas que ultrapassam o mundo da
arte: língua, práticas, costumes e tradições que precisam ser co-
nhecidas, absorvidas e compreendidas de maneira a dar vida a
esse equipamento cultural e a criar uma ponte entre as diferen-
tes culturas. A experiência nos mostra como a postura do gestor
é mais importante que os recursos financeiros, por exemplo. Sua
atitude como mediador é o aspecto fundamental: mediação no
campo da gestão, assim como no campo da arte. No estabeleci-
mento de diálogos entre culturas, entre artistas e destes com um
público que se constitui e se fideliza a partir da receptividade e do
diálogo estabelecido.

Relembrando o artigo de Donnat, Brigitte Rémer nos mostra como


facilidade de acesso, convivialidade do lugar, qualidade do atendi-
mento, diversidade dos serviços oferecidos, qualidade das obras
apresentadas, resultantes de uma gestão comprometida, foram os
motores da transformação e da inserção do Centro Cultural Fran-
cês na paisagem cultural de Alexandria, relativamente em pouco
tempo e com recursos limitados.

Esse pequeno dossiê sobre políticas, públicos e transmissões é


uma forma de apresentar pesquisadores importantes dessas te-
máticas e que não têm seu trabalho traduzido no Brasil. São “pita-
das” dos trabalhos de autores que, principalmente para quem se
dedica ao estudo das políticas culturais, fornecem pistas esclare-
cedoras das dinâmicas que presidem os processos com os quais
nos vemos confrontados em nossos estudos e práticas de gestão
na área da cultura.

.17
Isaura Botelho
Doutora em ação cultural pela ECA/USP e pós-doutorada na Fran-
ça. Gestora cultural desde 1978, trabalhou na Funarte, na Biblio-
teca Nacional e no Ministério da Cultura. Como pesquisadora co-
ordenou O Uso do Tempo Livre e as Práticas Culturais na Região
Metropolitana de São Paulo, no Centro de Estudos da Metrópole/
Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), em São Pau-
lo. É autora de livros, artigos e ensaios sobre política cultural.
E-mail: zau.botelho@gmail.com

Notas
1
Uma respeitável literatura sociológica já apontava isso, e a contribuição teórica de
Pierre Bourdieu é aqui balizadora dos avanços havidos nesse campo.

2
BOURDIEU, Pierre. Raisons pratiques. Paris: Minuit, 1994, p.141.

3
Nîmes, Editions Jacqueline Chambon, 1998.

4
Assim, encontramos menções à pesquisa em artigos de sua autoria e em dois outros
de seus livros: Le triple jeu de l’art contemporain e Ce que l’art fait à la sociologie, ambos
editados pela Editions de Minuit em 1998.

5
De la justification. Les économies de la grandeur. Paris: Gallimard, 1991.

6
Trata-se de uma entrevista realizada por mim em 1999. Ela citou, na ocasião, o caso
do diretor de um museu regional que afirmara ter deixado de ler o livro de presenças,
já que ele só via observações de ordem prática ou interjeições desabusadas, que ele
preferia desconsiderar.

7
Entrevista citada.

8
A autora menciona ter ouvido o argumento de que a difusão junto ao grande
público seria secundária, só importando aquela feita junto aos especialistas, o que
é inaceitável em termos de uma política de democratização da cultura, como no
caso francês.

.18
Público interage com a obra 9/4 Fragmentos de Azul, de Gilberto Prado, na exposição A Subversão dos Meios, 2003.
Foto: Rubens Chiri/Itaú Cultural

DEMOCRATIZAÇÃO DA CULTURA:
FIM E CONTINUAÇÃO?1
Olivier Donnat

Ao ser criado, em 1959, o Ministério Francês dos Assuntos Cultu-


rais recebeu como principal missão a tarefa de “tornar acessíveis ao
maior número de pessoas as obras capitais da humanidade e, em
primeiro lugar, as obras da França”, o que situava de início a questão
do público no coração da política cultural. Durante muitos anos, o
projeto de democratização legitimou a ação dos poderes públicos
em matéria cultural: eleitos encarregados da política cultural, diri-
gentes dos estabelecimentos, artistas etc., todos se referiam – com
variáveis doses de lirismo ou de convicção, é bem verdade – à exi-
gência de democratização para justificar suas escolhas ou precisar
o sentido de sua ação. Depois, o vento soprou, o bonde da história
passou e, nos últimos anos, o termo desapareceu totalmente da
retórica ministerial em benefício de outras temáticas, sobretudo a
da diversidade cultural.

.19
Não se trata aqui de rediscutir as dimensões contraditórias do proje-
to inicial de democratização nem a profusão de iniciativas do início
dos anos 1980 que contribuiu para consumi-lo,2 mas simplesmente
de constatar que a política cultural foi progressivamente “esque-
cendo” suas missões de ampliação da demanda em proveito das
missões ligadas à criação ou à distribuição cultural no território. O
projeto de democratização desapareceu aos poucos do horizonte
da política cultural, sem que ninguém assumisse explicitamente a
responsabilidade por tal abandono nem examinasse precisamente
as razões que o justificavam. Devemos concluir que as desigualda-
des de acesso à arte e à cultura diminuíram ou que as questões le-
vantadas pela problemática da democratização foram resolvidas?

Penso, ao contrário, que a “questão do público” permanece inteira-


mente atual. Mesmo se deixarmos de lado o caráter messiânico do
projeto inicial de Malraux e os argumentos de ordem ética ou social
que constituíam o fundamento da política de democratização para
nos concentrarmos apenas nos argumentos financeiros ou econô-
micos, resta uma verdade da qual muitos procuram fugir: a sobre-
vivência de faixas inteiras da vida cultural – e, portanto, dos artistas
e das obras – passa pela ampliação dos públicos que a ela acedem.
Razão pela qual uma das condições – necessária embora não su-
ficiente – para a refundação da política cultural3 que todo mundo
parece desejar reside em nossa capacidade de renovar a “questão do
público” e encontrar respostas capazes de levar em conta não só as
novas condições de acesso à arte e à cultura ligadas às tecnologias
digitais como também o estado atual das desigualdades na socie-
dade francesa.4

Esquecer ou refundar a exigência democrática?

Pode-se, obviamente, lembrar que sempre houve uma distância


considerável entre a grandiloquência dos discursos e a realidade
dos recursos humanos e financeiros efetivamente alocados. Isto é
incontestável: mesmo na época dos maiores entusiasmos pelas ca-
sas de cultura, o Ministério da Cultura só destinou uma pequena
parte de seu orçamento à redução das desigualdades de acesso à
arte e à cultura. Seja como for, a problemática da democratização
permitia manter uma tensão entre as duas séries de missões assu-
midas pelos poderes públicos em matéria cultural, as que concer-
nem à oferta cultural e à qualidade da criação, de um lado, e as que
tocam a questão dos públicos, de outro. A virtude essencial desse
dispositivo retórico, além do fato de que ele punha em debate a
questão das desigualdades de acesso à arte e à cultura, era afirmar
como uma evidência que “a oferta puxa a demanda”, vinculando
assim os objetivos relativos à oferta e aqueles concernentes à am-
pliação da demanda.

Ora, o balanço do meio século já concluído não deixa a esse respeito


nenhuma ambiguidade: a relação entre a oferta e a demanda nada
tem de mecânica, o apoio aos profissionais e às instituições artísticas
e o esforço de ampliação ou diversificação dos públicos não são in-
dissociavelmente ligados. Dito de outro modo, os objetivos relativos

.20
à oferta cultural (apoio à criação, à valorização do patrimônio, à cria-
ção de equipamentos...) e aqueles relativos à demanda, pensados
por muito tempo como duas faces de um único projeto, são na ver-
dade largamente autônomos. Ambos são legítimos, mas a busca dos
primeiros não garante de modo algum a realização dos segundos.
Assim sendo, a alternativa é clara.

Num primeiro momento, podemos ficar tentados a abandonar –


dizendo-o ou não – todo projeto de luta contra as desigualdades de
acesso à arte e à cultura, e a considerar que o projeto de democra-
tização da cultura partia de uma nobre ambição, mas era irrealista
por ignorar completamente os mecanismos sociais que produzem
o “desejo de cultura”. Por que, no fim das contas, não aceitar a impo-
tência da ação cultural para remediar as desigualdades sociais que
entravam o acesso à arte e à cultura e aceitar virar a página, privile-
giando sem culpa os objetivos da política cultural relativos à oferta?
Tal posição, que defende, por exemplo, Philippe Urfalino5 quando
ele encoraja aqueles que têm poder decisório em matéria de cul-
tura a romper com uma grandiloquência que perdeu o lugar num
momento em que o Estado deve aprender a ser modesto, apresenta
a vantagem da coerência: os discursos estariam enfim compatíveis
com a realidade dos orçamentos; e, passando de uma legitimação
da ação dos poderes públicos estruturada em torno da temática da
democratização a um discurso autocentrado sobre as condições
de criação e de produção dos bens culturais, a política cultural teria
atingido sua idade da razão. Mas cumpre reconhecer que ela tem o
inconveniente principal de ser difícil de sustentar (pelo menos publi-
camente) num regime democrático.6

Podemos, ao contrário, permanecer fiéis à exigência que fundava


a política cultural e buscar, à luz das lições trazidas do passado, um
equilíbrio entre as missões de apoio à oferta e de ampliação da
demanda, política e moralmente aceitável numa democracia. Tal
orientação também é, evidentemente, difícil de sustentar, pois ela
implica realocação dos recursos financeiros, exceto se imaginarmos
uma duplicação do orçamento destinado à cultura, como ocorreu
em 1982. Sem ampliação do orçamento, toda política de reequilí-
brio só pode contrariar os hábitos adquiridos e reduzir as “margens
artísticas” num momento em que os setores envolvidos esperam, ao
contrário, aumentá-las.

Que fique claro: situando-se numa tal perspectiva, não se trata de


ceder aos encantos da nostalgia ou de lançar um apelo vibrante para
que voltemos a uma suposta época de ouro. Se, como pensamos, o
último meio século de política cultural nos obriga a romper com a
ilusão em que se fundava o projeto de democratização, o desafio a
enfrentar para todos os que não abandonaram toda ambição em
matéria de ampliação da demanda pode ser formulado assim: quais
revisões devemos operar para manter vivo o ideal de igualdade que
fundava o modelo da democratização, reconhecendo ao mesmo
tempo as profundas mutações vividas desde o início dos anos 1960
nos planos econômico, político e social, assim como nas condições
de produção e de difusão da cultura? Ou, dizendo mais diretamente:

.21
quais as principais inflexões ou rupturas exigidas para um ree-
quilíbrio da política cultural em favor das questões de demanda?

Proponho aqui trazer alguns breves elementos pessoais de res-


posta a essa interrogação, abordando sucessivamente as três
principais alavancas capazes de transformar as condições de
produção do desejo de cultura: a educação artística e cultural, a
política dos estabelecimentos culturais em relação aos públicos
e a “cultura em domicílio”.

Acabar “realmente” com a democratização

Em primeiro lugar, sem sucumbir aos encantos do paradoxo,


somos tentados a pensar que o abandono do termo “democrati-
zação” constitui hoje uma das primeiras condições para o desen-
volvimento de uma política mais eficaz em matéria de acesso
à arte e à cultura. Renunciar a esse termo, que já foi de grande
valia, permitiria primeiro evitar os amálgamas e as confusões cul-
padas: o aumento da frequentação dos equipamentos, a con-
quista de novos públicos e a fidelização daqueles já existentes,
por exemplo, não são objetivos equivalentes ou complementa-
res, mas diferentes; devemos, portanto, distingui-los, cada um
exigindo estratégias específicas para ser alcançado. Abandonar
o termo “democratização” em favor de objetivos mais precisos
pode assim ajudar a separar as finalidades relativas à oferta cul-
tural das finalidades relativas ao público. Isso permitiria desfazer
a espessa cortina de fumaça que tão frequentemente encobre
os objetivos realmente visados e impede uma real avaliação das
ações desenvolvidas. Isso seria também uma maneira de admitir
não só o caráter formal do princípio de igualdade que funda o
projeto de democratização, mas também o fato de que a política
de oferta adotada pode produzir efeitos de favorecimento (de
determinados segmentos da população) contrários ao princípio
Exposição Sob o Peso dos Meus Amores, Leonilson, 2011.
Foto: Edouard Fraipont/Itaú Cultural

.22
de equidade. Já não é hora de tirar as lições da constatação, con-
firmada a cada pesquisa, de que os cidadãos não são todos iguais
perante a arte e de que a política cultural, observado o perfil so-
ciodemográfico dos públicos que dela mais se beneficiam, consti-
tui uma redistribuição ao avesso? Assim sendo, por que não admitir
que a diversificação dos públicos da cultura passa necessariamente
por ações cuidadosamente dirigidas e plenamente assumidas como
tais,7 já que todos sabem que tentar “converter” as pessoas menos
inclinadas à arte exige mais tempo, energia e poder de convicção, e
supõe, consequentemente, mais recursos?

A clarificação semântica que nos permitiria falar de “fidelização”, “di-


versificação” e “ampliação dos públicos” em vez de “democratização”
corre, porém, o risco de ser insuficiente se não for acompanhada por
um profundo questionamento de todas as representações tendentes
a superestimar o poder das obras e dos artistas. Com efeito, muitos
atores da vida cultural continuam a acreditar na capacidade “natural”
de atração das obras ou dos artistas, o que é sempre uma maneira
de desconhecer os mecanismos reais através dos quais nasce o de-
sejo de cultura. Permanecem assim convencidos de que as pessoas
às quais se dirigem estão prontas para aderir aos modelos que lhes
são propostos: para eles, o desejo de cultura está sempre lá, presente
mesmo que mudo, escondido atrás dos “maus hábitos” (a televisão, a
rotina ou as mentalidades que, como sabemos, evoluem sempre len-
tamente) ou represado por coerções materiais (o preço, a distância
da oferta etc.) que bastaria superar para que a “revelação” ocorresse.

Na verdade, ninguém rompeu totalmente com o modelo inicial da


ação cultural, e a hostilidade para com aqueles ou aquelas que se ar-
riscaram a fazê-lo8 é sintomática das resistências ideológicas que nos
impedem ainda hoje de escapar das ilusões subjacentes ao projeto
de democratização. Basta analisar os discursos sobre as experiências
de residência de artistas ou de intervenções no meio escolar para
perceber que o mito da revelação perdura, ainda que hoje ele assu-
ma formas mais difusas do que no tempo de Malraux. Não se trata
obviamente de negar que o desejo de cultura possa nascer da emo-
ção de um encontro com um artista ou uma obra, ou de contestar a
existência dessas experiências “miraculosas” que os profissionais da
cultura gostam de relatar: um aluno imigrante de um meio desfavo-
recido que se tornou um grande leitor depois de descobrir a litera-
tura numa biblioteca, um jovem aprendiz maravilhado pela pintura
clássica durante uma excursão da escola etc. Trata-se simplesmente
de lembrar que tais casos de conversão ao amor pela arte perma-
necem estatisticamente pouco frequentes – pois ligados a trajetó-
rias pessoais particulares ou a circunstâncias excepcionais. É difícil
imaginar que se possa generalizá-los, mesmo supondo que todos
os artistas se preocupem em partilhar sua experiência e possuem de
resto qualidades humanas ou pedagógicas para fazê-lo.

A observação dos fatos obriga a renunciar ao mito da revelação e a


reconhecer que o desejo de cultura e o prazer experimentado no
contato com as obras, longe de espontâneos e universais, sempre
fazem parte de um legado do meio familiar: ambos remetem, com

.23
raras exceções, às condições de socialização das pessoas envolvi-
das e a seu ambiente social imediato. Admitir tal visão das coisas
nos leva obviamente a ver na educação artística e cultural o único
meio de transformação das condições de produção do “desejo” de
cultura e a deplorar o lugar sobremodo modesto que lhes concede
o sistema escolar francês. Sabemos que essa questão tem seu lugar
na agenda política desde os anos 1980: vários planos nacionais se
sucederam sem que os recursos necessários à sua implementação
fossem alocados, em parte por razões ligadas à história tumultuosa
das relações entre os ministérios da Cultura e da Educação nacional.
Não pretendemos voltar aqui à questão, mas tão só salientar que
o objetivo de uma política, a nosso ver, longe de se limitar apenas
à promoção da oferta proposta pelas instituições culturais numa
perspectiva de formação dos “espectadores de amanhã” ou ao es-
tímulo do potencial criativo das crianças e dos adolescentes, deve
concernir ao conjunto da produção cultural de ontem e de hoje, em
toda a sua diversidade. Como a educação artística e cultural poderia
hoje se esquivar dos debates sobre o estatuto atualmente incerto da
obra de arte e sobre a multiplicação das instâncias de legitimação,
permanecendo prisioneira de uma concepção da cultura limitada
apenas às grandes obras da arte e do espírito, e definida por oposi-
ção às mercadorias culturais?9 E, ainda mais, como ela poderia igno-
rar o papel desempenhado em nossa sociedade pelas “fábricas de
sonhos”, para falar como Malraux?
Exposição Sob o Peso dos Meus Amores, Leonilson, 2011. Foto: Edouard Fraipont/Itaú Cultural

.24
Longe de nós a ideia de contestar a necessidade de transmitir as re-
ferências necessárias à compreensão das obras da cultura clássica às
jovens gerações, cada vez menos armadas para “lê-las” em razão do
recuo concomitante das humanidades nos programas escolares e
da religião na educação familiar; longe de nós também a ideia de
negar que a criação contemporânea, mais do que qualquer outra
forma de expressão, requer um trabalho de explicitação e de sensibi-
lização prévio para ser apreciada como obra, seja nas artes plásticas,
seja na música, no teatro ou na dança. De fato, é mais do que nunca
indispensável que as políticas educativas integrem essas dimensões,
mas com a condição de inscrevê-las num contexto que é o nosso
hoje, a saber, o de uma sociedade dominada pela mídia e pelas in-
dústrias do entretenimento, em que o estatuto simbólico das obras
e dos produtos culturais ficou mais incerto. Quem hoje pode negar
seu embaraço no momento de definir o que é uma obra de arte ou
um produto cultural? A lógica interna da arte contemporânea que
leva à interrogação incessante sobre a fronteira entre arte e não arte;
a tendência à mestiçagem artística observada em várias formas de
artes do espetáculo (dança contemporânea e hip hop, novo circo...);
a programação cada vez mais eclética das casas de espetáculo; a
patrimonialização de objetos e lugares considerados anteriormente
como ordinários; uma política cultural cada vez mais voltada para a
produção de eventos; tudo isso torna particularmente perigoso o
exercício de definir os contornos do mundo da arte ou de situar os

.25
gêneros artísticos uns em relação aos outros à luz dos critérios que,
até algumas décadas atrás, serviam para distinguir as artes maiores
das menores. E isso se torna mais forte ainda pelo fato de já fazer mui-
to tempo que se desenvolvem no espaço doméstico novas relações
com a arte e a cultura.

Com a diversificação da oferta televisual e a chegada da internet, tor-


nou-se absurdo reduzir a cultura midiática aos programas mais popu-
lares dos grandes canais da televisão aberta e aos grandes sucessos
da indústria do entretenimento. Na realidade, os conteúdos da mídia
e das indústrias culturais constituem hoje uma fonte essencial de in-
formações, conhecimentos e modelos de referência que participam
ativamente da representação da realidade: os livros, os filmes, mas
também as canções de variedades, as séries de televisão, as emis-
sões de telerrealidade, os blogs etc. alimentam o tempo inteiro uma
espécie de supermercado mundializado dos bens simbólicos, onde
os adolescentes buscam maneiras de ser e de parecer, mas também
elementos de discurso que os ajudam a exprimir o que eles pensam,
sentem ou sonham; numa palavra, a profusão de produtos culturais
permitida pela diversificação da oferta e dos meios de difusão – dos
canais abertos de televisão aos sites da internet mais “personaliza-
dos” – constitui uma fonte permanente de recursos identitários que
os adolescentes usam de maneira privilegiada para indicar seu per-
tencimento a grupos de pares, reivindicando ao mesmo tempo seu
estatuto de indivíduos singulares e vivendo como tais. Por essa ra-
zão é que a educação cultural cumpre um papel decisivo no que M.
Gauchet chama de formação da individualidade:10 numa sociedade
da hiperescolha, em que a formatação das preferências operada pela
publicidade cresce à medida que esta participa cada vez mais direta-
mente da difusão dos produtos culturais, e num contexto midiático,
em que a circulação das informações e dos marcadores identitários
é cada vez mais rápida, tornou-se essencial dar a cada um recursos
que permitam dominar os fluxos de imagens, de sons e de textos, dar
sentido ao conjunto dos fenômenos culturais inscrevendo-os numa
perspectiva histórica, e finalmente exprimir suas preferências cultu-
rais com “conhecimento de causa”.

Fazer da educação artística e cultural uma prioridade da política cul-


tural não deve ser, porém, uma tática hábil para eximir os estabeleci-
mentos culturais de toda responsabilidade em matéria de formação
e diversificação dos públicos nem uma tática para fugir da questão
dos recursos efetivos que eles mobilizam para atingir os públicos
que não constituem seu alvo “natural”. Um reequilíbrio da política
cultural em favor da demanda passa também necessariamente por
uma atenção maior dos estabelecimentos culturais às questões rela-
tivas à difusão das obras e à adoção de uma “verdadeira” política de
desenvolvimento dos públicos.

Dominar os instrumentos do marketing a serviço de uma diver-


sificação dos públicos

A adoção de tal política, que ultrapassaria as declarações de inten-


ção e as experiências pontuais interrompidas, constitui evidente-

.26
mente um grande desafio: imaginamos quantos espaços dedicados
às artes cênicas e quantos museus11 carecem de um departamento
encarregado dos públicos ou quantos, já o possuindo, consideram
sua atividade como um simples braço do departamento de comu-
nicação, confundindo “relações públicas” com “relações com o públi-
co”? Qual é a proporção de estabelecimentos culturais dotados de
funcionários qualificados capazes não de “fazer marketing”, mas de
colocar com eficácia os recursos do marketing a serviço das missões
que são de sua responsabilidade? Por exemplo, para nos limitarmos
a considerações muito operacionais, quantos deles aproveitam
plenamente as potencialidades oferecidas em matéria de conheci-
mento dos públicos pelos programas de vendas de ingresso ou de
gestão das assinaturas?

Reintroduzir para valer a problemática do público no jogo da sub-


venção sem cair nas facilidades do discurso sobre a democratização
começa por um melhor conhecimento dos usuários dos equipa-
mentos, de seu perfil, de seus comportamentos e de suas expec-
tativas, mas também daqueles que deixaram de vir (os “abandonis-
tas”) e daqueles que nunca vieram (o “não público”). A necessidade
de “conhecer seus públicos” já é de longa data uma figura retórica
obrigatória para a maioria dos responsáveis culturais em vários se-
tores, mas, sobretudo, no das artes cênicas as intenções estão longe
de se traduzir em atos. Alguns denunciam a produção de números
como uma capitulação à lógica dos índices de audiência que privi-
legiam as preferências do “grande público” para minimizar o poder
dos programadores ou entravar a liberdade dos criadores, sem ne-
Público na exposição Trajetória da Luz na Arte Brasileira, 2001. Foto: Eduardo Castanho

.27
cessariamente escapar ao medo da democracia finamente denun-
ciada por Jacques Rancière.12 Outros continuam a falar do público de
seu estabelecimento no singular, como de uma entidade abstrata,
ou falam dos públicos no plural através de categorias ideológicas e/
ou administrativas (os jovens, o grande público...) sem interrogar sua
pertinência no contexto que é o delas. Outros, enfim, arriscam-se no
terreno das pesquisas, mas como que a contragosto, com precon-
ceitos que não resultam apenas do caráter frequentemente literário
de sua formação, evocando ora o risco de que os resultados sejam
repetitivos, rotineiros, e não tragam nada que não se soubesse de
início, ora o risco de eles revelarem o que seria melhor calar para não
fornecer armas aos adversários (reais, potenciais ou imaginários). No
fim das contas, são raros os que procuram desenvolver uma verda-
deira abordagem da demanda, recrutando profissionais competen-
tes, dominando sem tabu, mas sem fascinação os instrumentos do
marketing, e destinando orçamentos suficientes para levar a cabo es-
tudos “cientificamente corretos” sobre as problemáticas definidas por
eles próprios em função da oferta que propõem e do contexto social
no qual ela se inscreve. Assim também, são poucos os que vencem
os velhos preconceitos dos meios culturais em relação a todas as me-
didas que visem apoiar a demanda – lembremos notadamente os
vales-cultura – sempre suspeita de certa prepararação por parte dos
poderes públicos, para abandonar o incentivo financeiro à criação.

No entanto, a descrição da realidade é uma etapa obrigatória antes


de definir as ações a ser adotadas para tentar modificá-la; os estu-
dos estão presentes para ajudar a diagnosticar a situação, a refletir
sobre os objetivos e, naturalmente, sobre as estratégias mais apro-
priadas para alcançar tais objetivos. Trata-se de fidelizar os públicos
atuais? De ampliar o círculo dos amadores tentando atrair as pesso-
as cujo perfil social as torna público em potencial? De buscar uma
diversificação pela conquista de novos públicos? Sabemos que, de-
finidos os objetivos, é particularmente rica a gama dos registros de
intervenção ao alcance de qualquer responsável preocupado em
ampliar o perfil do público de seu estabelecimento: escolha dos
horários, política tarifária, política de comunicação, condições de
reserva e de atendimento, ações de sensibilização junto a popula-
ções-alvo etc. Todo o trabalho de um serviço encarregado do de-
senvolvimento dos públicos consiste precisamente em dominar o
conjunto da cadeia de decisões que pesam sobre a recepção da
oferta e em buscar a melhor combinação de fatores trabalhando
com os diversos instrumentos possíveis. Naturalmente, não existe
receita milagrosa: nenhuma medida pode pretender transformar
radicalmente as condições gerais de produção do desejo de cul-
tura. Seja como for, toda ação implementada em matéria de co-
municação, toda modificação da política tarifária, ou das condições
do atendimento etc., podem ajudar a dinamizar a situação. Toda
iniciativa pode se aproximar do objetivo pretendido, embora possa
também, por vezes, gerar efeitos inesperados ou contrários, como
o distanciamento dos objetivos.13

A função principal da mediação cultural é franquear ao maior nú-


mero de pessoas o acesso às obras, mas também zelar por todas as

.28
outras dimensões, além da qualidade da oferta artística ou cultural
em si mesma, que concorrem para a satisfação dos usuários: facili-
dade de acesso, convivialidade do lugar, qualidade do atendimento,
diversidade dos serviços oferecidos etc. Ora, na França, mais do que
em outros países, a sacralização das obras e dos artistas levou-se a
considerar as pessoas responsáveis pela mediação mais como in-
tercessores ou funcionários a serviço deles próprios do que como
prestadores de serviços públicos. Não esqueçamos nunca que as
experiências estéticas sempre são também atividades sociais, como
salienta judiciosamente Dominique Pasquier quando nota que “a
ida à ópera é por vezes menos uma relação com as obras do que
com os outros”.14 O prazer experimentado no contato com as obras é
frequentemente um prazer compartilhado, inscrito na sociabilidade
amigável ou familiar e frequentemente alimentado pelo sentimento
de ser esperado. Como no amor, no domínio cultural o desejo pode
nascer do desejo do outro, e são inúmeros os meios de alimentar
esse desejo tanto no plano da organização do espaço quanto no
plano da atitude do pessoal encarregado da mediação.

Algumas grandes instituições perceberam a importância dessa


questão e assumem agora, sem pejo, uma estratégia de marketing
na perspectiva não apenas de aumentar seu volume de frequenta-
ção, como também de melhorar a qualidade dos serviços oferecidos
aos usuários. É o caso notadamente da Ópera de Paris, que instituiu
há muitos anos um “programa de qualidade”.15 Entretanto, a exis-
tência de tais experiências em alguns lugares emblemáticos ou em
certos museus ou midiatecas criados recentemente não deve nos
iludir. Na realidade, ainda é longo o caminho a percorrer nesse ter-
reno pela maioria dos estabelecimentos culturais! Correndo o risco
de ser tachado de populista e de ser injusto com teatros, museus,
midiatecas etc., que gastam muito para aparecer como lugares aber-
tos e acolhedores, é preciso reconhecer – buscando um atenuante
– que ainda há muito a progredir em matéria de acessibilidade, de
comunicação ou de convivialidade. Não nos prestaremos ao jogo
fácil que consistiria em identificar tudo o que, frequentemente, tor-
na os estabelecimentos culturais lugares intimidadores ou pouco
acolhedores para os não iniciados. Ainda: é preciso lembrar o con-
teúdo de certos suportes de comunicação para se persuadir de que
os discursos dos meios culturais se fecham às vezes em si mesmos?
Ou tornar-se um etnólogo para descrever no detalhe o catálogo
dos códigos, dos tiques de linguagem e das diversas posturas que
podem funcionar como máquinas de exclusão daqueles que não
fazem parte do “meio”?

Essas breves observações sobre a necessidade de uma política de


desenvolvimento dos públicos nos estabelecimentos culturais não
devem nos fazer esquecer de que, há muito, o encontro com as
obras, pequenas e grandes, não passa mais sistematicamente por
eles. Por essa razão, a questão das desigualdades de acesso não
pode mais, como no tempo das casas de cultura, ser posta apenas
numa perspectiva da distribuição territorial, sobretudo depois que a
progressão espetacular da internet transformou profundamente as
condições de difusão das obras.

.29
Público na exposição Game o quê?, 2003. Foto: Rubens Chiri/Itaú Cultural

Desenvolver um serviço público de “cultura em domicílio”

O crescente movimento de equipar os domicílios com aparelhos


audiovisuais – desde a chegada da televisão até o advento da in-
ternet de banda larga – faz com que, hoje, a maior parte das nos-
sas práticas e do nosso consumo culturais se dê no seio de nosso
espaço doméstico. A política cultural tem dificuldade de levar em
conta tal realidade, pois ela foi sempre pensada quase exclusiva-
mente em relação aos equipamentos culturais: desde a criação
dos primeiros museus nacionais até a política dos anos 1980, pas-
sando pela descentralização teatral, o objetivo sempre foi, qual-
quer que sejam a concepção da cultura ou as opções preferidas,
trabalhar para a extensão de um espaço público da cultura defini-
do por uma dupla oposição: de um lado, em relação ao domínio
do privado/comercial (a cultura como lugar ao abrigo das leis do
mercado e dos interesses econômicos) e, de outro, em relação ao
domínio do privado/íntimo (os espectadores ou visitantes dos lu-
gares culturais como cidadãos “sem identidade”, simples elemen-
tos do povo em seu conjunto). As transformações que vivemos nas
últimas décadas tornaram extremamente caduca essa visão das
coisas. De um lado, porque – como já evocamos a propósito das
mutações ocorridas nos anos 1980 – as fronteiras entre o público e
o privado/comercial se dissolveram em grande medida, graças ao
impulso das indústrias culturais, mas também ao caráter da vida
cultural cada vez mais voltada para eventos (festivais, exposições...)
e para a “mercantilização” relativa dos estabelecimentos culturais,
notadamente no domínio patrimonial com o desenvolvimento
dos produtos derivados. De outro lado, porque as fronteiras en-
tre o público e o privado/íntimo ficaram, elas também, bastante
nebulosas com a evolução dos programas das diversas mídias –
pensemos nas emissões das rádios livres, na telerrealidade16 e, ob-
viamente, na explosão da blogosfera nos últimos anos.

.30
O poder da “cultura em domicílio” ligada ao equipamento das
casas e ao desenvolvimento das tecnologias digitais deslocou
o centro de gravidade da dinâmica artística e cultural, transfor-
mando radicalmente as condições de produção, conservação,
difusão e apropriação das obras. Por conseguinte, ela deslocou
também o centro de gravidade da política cultural, obrigando-a
a intervir em dinâmicas de desenvolvimento grandemente do-
minadas pela lógica do mercado e por comportamentos que
pertencem essencialmente à esfera doméstica. A violência das
mutações em curso, ligada ao fato de que estas tinham sido
pouco previstas pelos setores culturais, pode explicar o caráter
essencialmente defensivo do discurso ministerial, notadamente
nas primeiras reações à difusão das práticas de partilha de arqui-
vos. Hoje, entretanto, ficou evidente para todos: a era digital na
qual acabamos de entrar abre para a política cultural um novo
campo de intervenção considerável, ao menos tão importante
quanto aquele aberto por Malraux na criação do Ministério dos
Assuntos Culturais.

Do lado da oferta, o desafio consiste em criar as condições de


um serviço público de qualidade pela mobilização de grandes re-
cursos – mas eles seriam no fundo maiores do que aqueles que
permitiram nas últimas décadas implantar a política de Grandes
Obras?17– para a digitalização dos fundos patrimoniais, sejam eles
bancos de dados, documentos impressos, filmes, monumentos
ou arquivos audiovisuais. A esse respeito, o sucesso encontrado
pelo site “arquivos para todos”, criado recentemente pelo Institu-
to Nacional de Televisão (INA), traz muitas lições, pois mostra cla-
ramente a existência de uma forte demanda social por parte do
que se convencionou chamar “grande público”, o que incita a não
conceber projetos futuros ou em curso, considerando apenas pro-
fissionais e amadores esclarecidos. Do lado da demanda, o desafio
consiste, como sempre, em zelar para que as riquezas culturais
digitalizadas sejam acessíveis a todos, pois, apesar da tendência
à diminuição da fratura digital nos dois últimos anos, a disparida-
de de equipamento entre os diversos estratos sociais permane-
ce grande. De fato, o desenvolvimento da “cultura em domicílio”
permanece essencialmente governado pela lógica do acúmulo:
assim como os amadores do canal de televisão Arte ou dos pro-
gramas culturais no rádio ou na TV são geralmente frequentado-
res habituais dos teatros e dos museus, os internautas amadores
de sites culturais frequentam mais os equipamentos públicos do
que a média.18 Assim, o desenvolvimento da “cultura em domicílio”
até aqui permitiu, sobretudo às pessoas interessadas em arte e
cultura, diversificar seu universo cultural acumulando vários mo-
dos de acesso a ela.

Isso não quer dizer que a situação permanece como estava. Vi-
mos bem nos últimos anos que o desenvolvimento das práticas
de troca de músicas ou vídeos na internet repercutiu nos com-
portamentos em matéria de compra de discos ou frequentação
de concertos, mesmo que devamos nos manter prudentes nes-
se domínio, evitando, sobretudo, raciocinar em termos de sim-

.31
ples substituição.19 Na verdade, o salto da “cultura em domicílio”
já começou a transformar profundamente as práticas culturais
“tradicionais”, e tudo indica que esse movimento se ampliará à
medida que as gerações que com ela cresceram envelhecerem:
não assistimos a um filme no cinema da mesma maneira como
o vemos em casa; não lemos um livro da mesma maneira quan-
do boa parte dos atos de leitura se faz na tela do computador;
não travamos a mesma relação com as obras e com o saber na
época do copiar/colar. É difícil, assim, não pensar que a difusão
dessa “cultura em domicílio” ainda largamente por vir provocará,
em médio prazo, profundas modificações nos modos de apro-
priação dos conteúdos e das hierarquias culturais.20 E como ima-
ginar que o fato de a “cultura em domicílio” aparecer cada vez
mais frequentemente como um recurso de acesso livre – por ser
financiado pela publicidade ou por ser pago antes ou depois do
uso – não dificulte que as novas gerações concordem em pagar
pela cultura?

Além disso, o impulso dessa “cultura em domicílio” nos leva à


questão dos equipamentos culturais. As tecnologias digitais e os
meios de comunicação de hoje (e mais ainda os de amanhã) ofe-
recem aos estabelecimentos a possibilidade de enriquecer con-
sideravelmente sua oferta ao propor uma gama diversificada de
serviços “à distância” e, assim, alcançar novos públicos além dos
círculos de seus frequentadores habituais, travando com estes
um diálogo permanente e interativo. Esse dado novo contribui,
assim, para descentrar a questão dos públicos, estendendo-a à
questão do conjunto dos usuários (vindo eles ou não ao estabe-
lecimento), e nos obriga a considerar os equipamentos culturais
com um olhar novo: as bibliotecas, os museus e também os espa-
ços das artes do espetáculo, uma vez os lugares privilegiados do
contato direto com as obras e os artistas, são também, cada vez
mais, chamados a se tornar centros de recursos e prestadores de
serviços à distância, sobretudo quando possuem riquezas passí-
veis de digitalização.

Feitas as contas, parece-nos que uma política que não renuncie a


lutar contra a lógica do acúmulo, que faz com que “a cultura atraia
a cultura”, deveria fixar a si ao menos três objetivos, aliás, perfei-
tamente complementares: incorporar, de forma permanente, a
educação artística e cultural nas políticas educativas; dotar os esta-
belecimentos culturais dos recursos necessários para uma política
ambiciosa de desenvolvimento dos públicos; produzir um serviço
público de “cultura em domicílio” tendo em vista o maior número
de pessoas. Tarefas consideráveis que, para ser cumpridas, reque-
rem entusiasmo e voluntarismo, como nos primeiros tempos da
distribuição cultural do território. Deixemos de nos achar moder-
nos por considerarmos a “questão do público” como antiquada ou
historicamente ultrapassada e enfrentemos aquilo que permane-
ce um verdadeiro desafio, quase meio século após o nascimento
do Ministério dos Assuntos Culturais: implantar uma “verdadeira”
política da demanda para retirar a política de apoio à oferta do
impasse no qual ela se encontra hoje.

.32
Olivier Donnat
Sociólogo e pesquisador do Departamento de Pesquisa, Plane-
jamento e Estatística do Ministério da Cultura e Comunicação da
França, palestrante do Instituto de Estudos Políticos de Toulouse e
membro editorial da revista Réseaux.
E-mail: olivier.donnat@culture.gouv.fr

Notas
1
Artigo publicado originalmente em SAEZ, Jean-Pierre (dir.). Culture et société: un lien à
reconstruire. Ed. de l’Attribut, março de 2008.

2
Já tratamos o primeiro ponto no artigo “La question de la démocratisation dans la
politique culturelle française”, Modern and contempory France, vol. 11, 2003. O segun-
do ponto é desenvolvido numa versão mais longa do presente texto, consultável em
linha no site do Observatoire des Politiques Culturelles (OPC).

3
Retomamos aqui deliberadamente os próprios termos do relatório de Rigaud J.
“Pour une refondation de la politique culturelle”, La Documentation Française, 1996.

4
Uma publicação recente faz um balanço dessa questão: L’état des inégalités en France.
Belin, 2006.

5
Quelles missions pour le ministère de la culture?.Esprit, n. 1, 1997.

6
Cf. HEINICH, N. L’élite artiste. Excellence et singularité en régime démocratique. Gal-
limard, 2005.

7
Saber se nesse caso convém ou não falar de discriminações positivas ou de affirma-
tive actions escapa ao registro do nosso trabalho.

8
Pensamos particularmente nas reações contra Catherine Trautmann quando, na condição
de ministra, ela declarou: “É preciso caminhar rumo à mediação, o acompanhamento edu-
cativo a partir de práticas artísticas e culturais dos públicos. Sem esse esforço de educação
e de mediação, o discurso sobre a democratização não passa de teoria”. TRAUTMANN, C.
Coletiva de imprensa em 26/2/1998 sobre as reformas adotadas para uma democratização
da cultura.

9
Aludimos aqui ao texto oficial que define a base comum de competências “mínimas”
que todo aluno deve adquirir antes de sair do sistema escolar, texto em cujo capítulo
sobre a cultura humanista se menciona a capacidade de “distinguir os produtos de
consumo cultural e as obras de arte”.

10
Cf. GAUCHET, M. “La redéfinition des âges de la vie”. Le Débat, n. 132, 2004.

11
Em 2003, quase a metade dos museus franceses carecia de um serviço dos públi-
cos. Cf. Les museus de France en 2003. Notes statistiques du Deps. 2006.

12
Quando ele observa que a “verdadeira” democracia, entendida como o governo de
qualquer um, “é votada ao ódio interminável de todos aqueles que têm títulos a apre-
sentar para o governo dos homens: nascimento, riqueza ou ciência”, temos vontade
de acrescentar a essa lista o capital cultural ou o sentido “inato” da estética. Cf. RAN-
CIÈRE, J. La peur de la démocratie. La Fabrique, 2005, p. 103.

.33
13
Daí a necessidade de generalizar a prática da avaliação que – devemos reconhecer
– no domínio cultural tem dificuldade de se tornar um hábito, apesar de aparecer, há
muitos anos, como uma obrigação fundamental.

14
PASQUIER, D. La culture comme activité sociale. In: MAIGRET, E.; MACE, E. (dir.). Pen-
ser les médiacultures. A. Colin, 2005.

15
Ver, por exemplo, “Comment l’Opéra de Paris Soigne ses Spectateurs”. La Scène, 2006.

16
O que levou S. Tisseron a propor o termo “extimidade”. Cf. L’intimité surexposée. Ramsay, 2001.

17
Referência à política de F. Mitterand. Os Grand Travaux (pirâmide do Louvre, grande
arco da Défense, entre outros) mobilizaram recursos fantásticos que foram alocados
no Ministério da Cultura [nota do tradutor].

18
Assim, por exemplo, os que baixam músicas na internet frequentam mais os concer-
tos do que os que não baixam. Cf. NICOLAS, Y. Le téléchargement sur les réseaux de
pair à pair. Développement culturel, n. 148, 2005.

19
Sobre esse ponto, lembremos como são nuançadas, para dizer o mínimo, as
conclusões dos estudos recentes sobre os vínculos entre o desenvolvimento do
peer to peer e a queda nas vendas de discos. Cf. CURIEN, N.; MOREAU, F. L’industrie du
disque à l’heure de la convergence télécoms/médias/internet. In: Création et diversité
au miroir des industries culturelles. La Documentation Française, 2006.

20
B. Lahire, por exemplo, estabelece uma relação estreita entre a ascensão da “cultura
em domicílio” e o caráter cada vez mais dissonante dos universos culturais, notada-
mente nos meios cultivados que prestariam menos atenção no espaço doméstico,
naquilo que aparece como “erros culturais” do ponto de vista da legitimidade cultural.
Cf. LAHIRE, B. La culture des individus. La Découverte, 2004.

.34
O maestro e pianista João Carlos Martins se apresenta na festa de comemoração dos 455 anos da cidade de São Paulo, 2009.
Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress

As políticas culturais
DIANTE Dos critérios de
justiça: reflexões a partir
do caso francês1
Philippe Coulangeon

Na França, como na maioria das sociedades ocidentais contemporâ-


neas, a disseminação do conceito do tempo livre, os progressos da
produtividade do trabalho e a satisfação crescente das necessidades
primárias contribuíram por muito tempo para alimentar a ideia de
uma marcha inelutável rumo a uma “civilização dos lazeres”, para re-
tomar a expressão pioneira de Joffre Dumazedier,2 e de uma erosão
programada do poder distintivo dos lazeres e da cultura, que carac-
terizava a configuração das relações sociais nos estágios anteriores
do desenvolvimento do capitalismo.

A série de pesquisas sobre as práticas culturais dos franceses realiza-


das pelo Ministério da Cultura desde o início dos anos 1970 atesta,
porém, a permanência, na ordem da cultura e dos lazeres, de impor-
tantes clivagens sociais, que se manifestam de maneira espetacular
já no nível da ocorrência e da frequência das práticas, sem falar das
diferenças ligadas a suas modalidades e a seus conteúdos.

.35
Essas pesquisas mostram particularmente que o acesso às práti-
cas mais legitimadas (frequência a museus, a monumentos histó-
ricos, a teatros, a concertos de música clássica ou a espetáculos
coreográficos) continua especialmente “hierarquizado”: os desní-
veis na taxa ou na intensidade da frequentação entre as classes
sociais permanecem grandes. Assim, enquanto os operários que
não tinham frequentado nenhum dos equipamentos citados aci-
ma passavam de metade na primeira das cinco pesquisas sobre as
práticas culturais dos franceses (em 1973) e chegavam a 65% na úl-
tima da série (em 2008), menos de 20% dos executivos superiores
em 1973 e mesmo menos de 15% em 2008 estavam nesse caso.

Esses desníveis podem, é verdade, ser explicados por fatores mui-


to prosaicamente materiais, ligados em parte ao custo do acesso
a equipamentos cuja distribuição espacial tende a favorecer mais
particularmente as categorias abastadas dos centros urbanos.
Mas a inércia das desigualdades de acesso à cultura não poupa
tampouco as práticas mais integradas à indústria dos bens cultu-
rais. Práticas essas que, por se inscreverem melhor no quadro das
práticas domésticas, por se beneficiarem mais amplamente não
apenas da redução dos custos associados à produção em larga
escala, e hoje mais ainda, como das possibilidades oferecidas pelo
desenvolvimento das tecnologias digitais, são menos fortemente
submetidas aos fatores de natureza econômica e de localização
domiciliar que dificultam a frequência aos equipamentos cultu-
rais. Em matéria de leitura, principalmente, nem a multiplicação
das coleções de bolso nem a das coleções das bibliotecas que
emprestam livros conseguiram até agora reduzir o gradiente
social que hierarquiza as classes superiores, médias e populares
quanto à frequência e à intensidade das práticas. Do mesmo
modo, a superabundância dos suportes de difusão de música gra-
vada não modifica substancialmente a escala social do gosto por
suas formas mais eruditas.

A democratização malograda

Essas constatações põem inevitavelmente em causa o balanço da


democratização da cultura e das políticas adotadas em seu nome,
atingindo, assim, sua credibilidade e sua legitimidade, a ponto de
um ex-ministro da Cultura (titular da pasta de 2002 a 2004) tomar
a liberdade de levantar, numa entrevista ao jornal Le Monde em
2008, a questão da necessidade de um ministério.3 O questiona-
mento recorrente das finalidades da ação dos poderes públicos
torna também particularmente delicada a comunicação dos re-
sultados das pesquisas sobre as práticas culturais dos franceses:
por oferecer uma medida objetiva da inércia das desigualdades
de acesso à cultura, eles podem ser usados, num contexto de ra-
cionalização dos gastos públicos, como argumento para a redu-
ção do apoio às artes e à cultura. Mais de 50 anos após a criação
do Ministério da Cultura, essas constatações no mínimo colocam
em questão os princípios que guiaram, naquela época, a ação de
André Malraux e seus colaboradores.

.36
Democratização da cultura e democracia cultural

A definição dos objetivos atribuídos à ação dos poderes públicos


no campo da cultura é atravessada pela oposição entre as políticas
ditas de ‘‘democratização da cultura’’ e as políticas de ‘‘democracia
cultural’’.Essa distinção remete a dois registros de ação fundados
em doutrinas políticas divergentes.4

A filosofia da democratização da cultura, central no modelo francês


de política, se funda numa concepção universalista da cultura ‘‘le-
gítima” que atribui à política cultural a tarefa prioritária de reduzir
as desigualdades de acesso à ‘‘alta cultura”, à cultura ‘‘erudita’’. Essa
concepção se propõe a superar os obstáculos à frequentação das
obras do patrimônio e da criação contemporânea, notadamente
por meio da implantação de um programa de distribuição cultural
do território, encarnado inicialmente pelas Casas da Cultura e pela
política de descentralização teatral desenvolvida nos anos 1960,
e logo desdobrada noutros domínios por dispositivos que obe-
deciam à mesma inspiração (em matéria de ensino musical e de
criação de orquestras sinfônicas em todo o território, por exemplo).

Centrada na redução das desigualdades sociais e geográficas


do acesso à cultura, essa concepção se baseia no postulado de
universalidade do desejo pelos bens culturais, cuja apropriação
é prioritariamente pensada em termos de barreiras a remover e
obstáculos a superar. Tal postulado, porém, é contestável, e foi de
fato fortemente criticado no fim dos anos 1960, no rastro do mo-
vimento de maio de 1968, que não poupou as instituições emble-
máticas da política cultural da época.5

Salientando a dimensão de ‘‘arbitrário cultural’’ das políticas de


democratização e fortemente inspiradas pela leitura de Bourdieu
e Passeron (Les Héritiers e La Réproduction), as críticas a essa con-
cepção da política cultural sugeriam privilegiar a dimensão pro-
priamente cultural das desigualdades e enfrentar a autoridade das
hierarquias culturais estabelecidas. A ideia de democracia cultu-
ral funda então uma estratégia política alternativa, que se inspira
sobretudo em experiências de outros países, particularmente do
mundo anglo-saxão.

À ‘‘ação cultural’’ da política de democratização, centrada na


redução das desigualdades, a política da democracia cultural
opõe o ‘‘desenvolvimento cultural’’ atento às identidades locais
ou regionais, às culturas minoritárias e às tradições populares.
Apoiando-se num certo relativismo cultural, ela pensa os desní-
veis observados na frequentação dos equipamentos culturais ou
na frequência das práticas menos como desigualdades do que
como diferenças.

É nessa concepção que se baseia grande parte das políticas de ani-


mação sociocultural orientadas para as crianças e os adolescentes
das classes populares. Foi ela que se impôs progressivamente, des-
de o início dos anos 1980, até na concepção da política cultural do
Estado, cujo dever seria
.37
permitir a todos os franceses cultivar sua capacidade de in-
ventar e criar, exprimir livremente seus talentos e receber a
formação artística de suas escolhas; preservar o patrimônio
cultural nacional, regional, ou dos diversos grupos sociais em
benefício da coletividade inteira (decreto de 10/5/1982 relati-
vo à organização do Ministério da Cultura).

Cumpre, porém, não superestimar a amplitude das reorientações


da ação dos poderes públicos consubstancial a essas mudanças
de doutrina, que operam essencialmente na ordem simbólica da
consagração ou da reabilitação de formas de expressão e de cul-
turas exteriores ao círculo das artes eruditas e das humanidades
clássicas. Considerada sob o ângulo da distribuição dos recursos
financeiros alocados pelos poderes públicos, a ação cultural per-
manece extremamente “legitimista”, em particular no seu escalão
central. O orçamento do Ministério da Cultura continua a consa-
grar aos domínios mais legitimados (museus e teatros nacionais,
óperas, conservatórios, patrimônio etc.) um esforço financeiro
que não se compara com os recursos alocados nos domínios que
entraram mais recentemente na sua alçada.

A descentralização da ação cultural, que atribui às coletividades


territoriais (regiões, departamentos e, sobretudo, municípios) um
papel crescente em matéria cultural, modifica, porém, substan-
cialmente o quadro. A ação das coletividades territoriais é de fato
menos centralmente consagrada ao financiamento das grandes
instituições de criação, conservação e difusão cultural, e passa
mais pelo canal de subvenções concedidas a projetos conduzidos

Rumos Educação Cultural, aula-espetáculo com Barbatuques, 2005. Foto: Cia de Foto

.38
por estruturas mais leves, situadas num perímetro cultural mais
diversificado e correspondendo mais à filosofia do desenvolvi-
mento cultural.

No entanto, o desenvolvimento do papel dos atores locais da po-


lítica cultural, cujas modalidades de ação diferem muito claramen-
te daquela do Estado (lógica de subvenção de “projetos”, de um
lado, orçamento reservado ao funcionamento das instituições, de
outro), ratifica o desequilíbrio entre o universo exuberante e eclé-
tico de iniciativas culturais que são encorajadas, mas apoiadas de
maneira frágil no médio prazo, e o das instituições estruturantes
da criação, da difusão e do patrimônio, que continua, de fato, do-
minado pela lógica da democratização.

Política da oferta e política da demanda

Mais importantes, talvez, do que os conflitos doutrinários sobre os


objetivos, as controvérsias sobre a hierarquização dos recursos jo-
gam uma luz essencial à compreensão dos fracassos imputados às
políticas públicas da cultura em matéria de democratização e da
dificuldade em revertê-los. Não é preciso nesse caso empreender
um exame detalhado da estrutura dos gastos públicos para perce-
ber a prioridade dada, nesse registro da ação pública, às políticas
da oferta, isto é, ao apoio financeiro trazido, por meio da subven-
ção, à produção de bens e serviços culturais.

Evidentemente não faltam argumentos para justificar o apoio a


um setor que não poderia ser abandonado às leis do mercado
sem, ao mesmo tempo, condenar ao desaparecimento bens cul-
turais que não possuem as características dominantes da deman-
da (pelo menos de forma imediata) e sem ameaçar o equilíbrio
financeiro de atividades estruturalmente déficitárias, como é o
caso, sobretudo, de várias artes do espetáculo.6

Não faltam tampouco, em sentido inverso, adversários da priori-


dade dada a essa forma de mecenato público cujo efeito redis-
tributivo parece dos mais incertos. Não temos razão de recear
que, dando prioridade ao rebaixamento de custo dos bens menos
acessíveis, a economia da subvenção beneficie em primeiro lugar
o público mais avisado, sem ampliar em nada a demanda?

Por mais legítima que ela seja, a crítica aos efeitos, na melhor das
hipóteses, limitados da economia da subvenção para a ampliação
do acesso à cultura é, porém, enfraquecida pela dificuldade de
definir uma política cultural alternativa, política da demanda que
tem na importância dos argumentos não monetários sua princi-
pal dificuldade. Como encorajar uma demanda que não dependa
apenas (nem mesmo principalmente) de ser viabilizada financei-
ramente, ao contrário do que ocorre nas políticas ordinárias de
apoio ao consumo?

De fato, todo mundo percebe mais ou menos confusamente que


as ‘‘escolhas’’ (e os gostos) culturais, assim como, de resto, as ‘‘ma-

.39
neiras’’ de habitar, se distrair, se vestir, se deslocar ou se alimentar
(e não só o volume de despesas reservado a cada item) se ins-
crevem em redes complexas de influências e determinações, que
misturam elementos de natureza diferente: restrições de tempo,
renda ou preço, certamente, mas também peso dos hábitos an-
corados na infância e na adolescência, efeitos de imitação (ou de
singularização) em relação ao ambiente socioprofissional (ou es-
colar) ou à rede de amigos ou de vizinhos, preocupação com o
conforto, mas também com a aparência etc.

Essa crítica endereçada à orientação das políticas culturais repousa


de resto na adesão implícita a um projeto, ele mesmo discutível: que
legitimidade podemos reconhecer em uma política que visa não só
distribuir os meios de garantir um acesso mais equitável a certos
bens, como também, no fundo, suscitar a própria demanda?

.40
O que é uma política cultural justa?

A dificuldade de definir as estratégias adaptadas aos objetivos fi-


xados para as políticas públicas da cultura fica ainda agravada por
outra: a de adequar os critérios da intervenção pública no domí-
nio cultural aos critérios de justiça operantes noutros domínios
da política pública, como os da saúde ou da educação sobretudo.
Nesses domínios, os desníveis aferidos na prevalência das pato-
logias, no acesso aos cuidados, no acesso à educação, concebida
como dotação em capital humano, se exprimem facilmente no
léxico da desigualdade ou da injustiça. Mas isso não é tão simples
no domínio da cultura: nem todo desnível, nem toda diferença no
acesso à cultura, na distribução dos gostos ou na frequência das
práticas, constitui necessariamente uma desigualdade.

Encontro Educação Não Formal: Ações e Repercussões, apresentação do projeto Joaninha (Ballet Stagium). Foto: Cia de Foto

.41
Itaú Numismática Museu Herculano Pires. Foto: Cia de Foto

Percebemos, no entanto, os limites de uma crítica do arbitrário


universalista das políticas de democratização. Essa prática tem
como pretexto o relativismo cultural – dar a cada um os meios
de obter o que ele aspira –, acomodando-se, no fundo, à apo-
ria das concepções habilitadoras da justiça. Nem todos os regis-
tros de gostos e de práticas, porém, se equivalem socialmente.7
Dito de outro modo, se consideramos que as políticas públicas
da cultura não podem ter como horizonte principal a formação
de batalhões de leitores de Stendhal ou de amadores de ópera
barroca, consideramos também que elas não podem se conten-
tar em remeter as diferenças sociais observadas à expressão de
aspirações diversificadas e igualmente legítimas. Pode-se pensar,
assim, que os desníveis nas práticas culturais percebidas como
particularmente desejáveis e legítimas participam pelo menos da
desigualdade das condições, e pedem, portanto, ações redistri-
butivas. Nesse sentido, é difícil imaginar que frequentar a ópera
mais do que o teatro, escutar Brahms em vez de Mozart, ler Balzac
em vez de Proust ou preferir Rembrandt a Van Gogh entre na
composição de uma escala do gosto ou da legitimidade das prá-
ticas. Em compensação, ler em vez de ver televisão, preferir Mo-
net a Poulbot ou Flaubert a Barbara Cartland evoca muito mais
diretamente esse componente hierárquico.

Seja ou não o produto da imposição de um ‘‘arbitrário cultu-


ral’’, para retomar o vocabulário de Bourdieu e Passeron, a le-

.42
gitimidade reconhecida assim como o desejo por essas práti-
cas provém da eficácia que lhes é, com ou sem razão, atribuída
noutros setores da vida social, quer consideremos tais práticas
portadoras de recursos cognitivos que contribuem a encorajá-
las (em particular nos mais jovens, na ótica notadamente de
sua conversão escolar), quer as associemos mais diretamente a
vantagens de distinção ou de acesso a certos status ou a certos
grupos sociais valorizados.

Evidentemente, a percepção dessas hierarquias é eminentemen-


te complexa e variável segundo os meios, as épocas e as socie-
dades. Por isso, percebe-se que nesse terreno nunca é fácil de-
finir critérios operacionais da “desejabilidade” legítima dos bens.
Os esforços de democratização do acesso à cultura respondem,
assim, a uma demanda social latente, difícil de satisfazer por co-
locar em jogo a distribuição desigual tanto dos recursos quanto
das aspirações. Nessa ordem de ideias, o principal obstáculo no
qual esbarra o voluntarismo democratizante das políticas públi-
cas da cultura concerne à força das heranças sociais e familia-
res, em cujo cruzamento se forjam as disposições e os hábitos
culturais, perante os quais a subvenção da oferta, a distribuição
cultural do território ou as políticas tarifárias só podem ter um
impacto muito limitado.

Desigualdades de acesso a cultura e herança

A diferenciação dos hábitos e das atitudes culturais não depende


só das diferenças das condições de vida, de trabalho, dos níveis de
educação ou, mais amplamente, do ambiente sociocultural dos
indivíduos. Ela também depende diretamente de características
ligadas à educação recebida na infância e na adolescência no seio
da família e à sua influência persistente, que dá toda a sua força ao
conceito de habitus mobilizado na sociologia de Pierre Bourdieu.
Por isso, as atitudes culturais são ligadas não apenas à posição,
mas também à origem social dos indivíduos, que remete por sua
vez ao volume e à natureza dos capitais herdados, de modo que
os gostos e os hábitos culturais de um ‘‘filho de’’ professor ou de
uma ‘‘filha de’’ médico, por exemplo, costumam, mesmo numa
posição social equivalente, se afastar sensivelmente daqueles dos
filhos de operários e de agricultores. Provavelmente, em nenhum
outro campo o efeito da socialização secundária, escolar ou pro-
fissional, anule de modo tão imperfeito o da socialização primária
quanto no das atitudes culturais.

Não há manifestação empírica mais clara da influência persistente


da origem social sobre as atitudes e os hábitos culturais do que
os desníveis observados na matéria em pessoas dotadas de pro-
priedades equivalentes do ponto de vista de seu capital escolar
e de sua posição social, mas de origem social distinta. Tomemos,
para voltar a um indicador já evocado, as estatísticas francesas de
frequência a museus, a monumentos históricos, a teatros, a con-
certos de música clássica ou a espetáculos coreográficos, consi-
deradas, em 2008, segundo a origem e a posição social dos indiví-

.43
duos. Para cada combinação considerada de origem e posição, a
proporção de indivíduos não tendo frequentado nenhum desses
equipamentos culturais ao longo do ano que precedeu a pesqui-
sa, ou, inversamente, tendo frequentado ao menos três, apresenta
uma estrutura ‘‘diagonal‘‘ muito clara: a proporção de entrevis-
tados, entre as pessoas de origem e de posição superiores, não
tendo frequentado nenhum equipamento é mais fraca do que a
das pessoas de origem e de posição média, que é, porém, menos
elevada do que a das pessoas de origem e de pertença popular.
O indicador de frequentação de pelo menos três desses equipa-
mentos apresenta uma hierarquia simetricamente inversa (ver ta-
belas 1 e 2).

Tabela 1: Taxas de não frequentação de museus, monumentos


históricos, teatros, concertos de música clássica e espetáculos co-
reográficos segundo a origem e a posição sociais em 2008 (em %)

Posição social
Superior Média Popular
Superior 13 21 46
Origem
Média 23 30 55
social
Popular 27 46 67

Fonte: Ministério da Cultura e da Comunicação, pesquisas sobre as


práticas culturais dos franceses, 2008.
Campo: ativos e ex-ativos de 15 anos ou mais, que informaram à
pesquisa sua última profissão e a de um de seus pais.
Nota: as categorias superiores, médias e populares foram constru-
ídas, pela origem e pela posição, por agregação: dos diretores de
empresas com dez ou mais assalariados, dos profissionais liberais
e dos executivos superiores, no caso das categorias superiores; das
profissões intermediárias, dos técnicos e professores, no das cate-
gorias médias; dos empregados, operários, agricultores, pequenos
comerciantes e artesãos, no das categorias populares.
Leitura: em 2008, 13% dos entrevistados de origem e de posição
superior declararam não ter frequentado nenhum equipamento
cultural ao longo do ano que precedeu a pesquisa.

Tabela 2: Taxas de frequentação de pelo menos três equipamen-


tos culturais entre museus, monumentos históricos, teatros, con-
certos de música clássica e espetáculos coreográficos segundo a
origem e a posição sociais em 2008 (em %)

Posição social
Superior Média Popular
Superior 45 34 15
Origem
Média 45 24 9
social
Popular 31 16 4

Fonte: Ministério da Cultura e da Comunicação, pesquisas sobre as

.44
práticas culturais dos franceses, 2008.
Campo: ativos e ex-ativos de 15 anos ou mais, que informaram à
pesquisa sua última profissão e a de um de seus pais.

Em todo caso, a situação que mais chama a atenção aqui é a das


categorias não homogêneas do ponto de vista da combinação de
origem e posição. A origem superior distingue assim as práticas
dos entrevistados de posição média ou popular de seus equiva-
lentes de outras origens. Enquanto os entrevistados de categoria
popular e de origem média ou popular figuram majoritariamente
entre os que não frequentaram nenhum dos equipamentos cul-
turais citados (respectivamente, 55% e 67%), só uma minoria dos
entrevistados de mesma posição mas de origem superior está
nesse caso (46%). Inversamente, a origem média ou popular é
associada, nos entrevistados de posição superior, a taxas mais al-
tas para esse indicador do que os entrevistados de origem e de
posição superior (respectivamente, 23% e 27% de um lado, ante
13% do outro).

A frequentação intensiva desses mesmos equipamentos (mais


de três ao longo do ano) produz resultados perfeitamente simé-

Midiateca Itaú Cultural. Foto: Humberto Pimentel

.45
tricos, e observamos o mesmo tipo de combinação se tomamos
como referência não mais a origem superior, mas a origem mé-
dia ou popular.

Tudo indica, assim, que as “forças de reiteração” da origem se as-


sociam sistematicamente às da posição ocupada, confirmando
o poder e a persistência da influência exercida pelos hábitos e
pelas atitudes adotadas ao longo da infância.

O mesmo tipo de distribuição se observa mais geralmente em qua-


se todos os indicadores de práticas culturais, assim como na ordem
das preferências expressas em matéria de gêneros, obras, artistas
etc. Assim, a distribuição da proporção de grandes leitores (ao me-
nos 20 livros por ano) e de grandes consumidores de televisão (ao
menos 30 horas de televisão por semana) hierarquiza identicamente
as combinações de origem e posição sociais.

Os indivíduos de origem superior e posição média ou superior


são assim mais frequentemente grandes leitores que o conjunto
das pessoas de mesma posição mas de origem inferior (tabela
3). A origem discrimina, porém, muito menos as atitudes peran-
te a televisão: seja qual for sua origem, os membros das cate-
gorias médias, populares e, sobretudo, superiores apresentam
proporções bastante homogêneas de telespectadores viciados
(tabela 4).

Tabela 3: Proporção de grandes leitores (ao menos 20 livros por


ano) segundo a origem e a posição sociais (em %)

Posição social
Superior Média Popular
Superior 39 34 22
Origem
Média 31 20 17
social
Popular 27 18 11

Fonte: Ministério da Cultura e da Comunicação, pesquisas sobre


as práticas culturais dos franceses, 2008.
Campo: ativos e ex-ativos de 15 anos ou mais, que informaram à
pesquisa sua última profissão e a de um de seus pais.

Tabela 4: Proporção de grandes consumidores de televisão (ao


menos 30 horas por semana) segundo a origem e a posição so-
ciais (em %)

Posição social
Superior Média Popular
Superior 6 8 21
Origem
Média 6 11 22
social
Popular 7 13 28

.46
Fonte: Ministério da Cultura e da Comunicação, pesquisas sobre
as práticas culturais dos franceses, 2008.
Campo: ativos e ex-ativos de 15 anos ou mais, que informaram à
pesquisa sua última profissão e a de um de seus pais.

Seria possível mostrar mais amplamente que a balança dos efei-


tos de origem e de posição distingue as práticas mais legitima-
das (para as quais os efeitos de origem se associam mais forte-
mente aos de posição) das práticas menos legitimadas, que são
mais uniformemente ligadas às posições ocupadas. Isso leva a
crer que a força relativa das heranças culturais varia em razão
inversa da difusão das práticas, mais pronunciada para as práti-
cas mais reservadas e mais modesta para as práticas de massa.
O interesse desse tipo de indicador é, no entanto, mostrar a plu-
ralidade dos canais de formação e de transmissão dos hábitos e
das atitudes culturais, que nunca são puramente herdados ou
adquiridos, como salienta muito justamente o modelo de socia-
lização plural defendido por Bernard Lahire.8

Para além do desencanto

Relembrar os limites das políticas de redução das desigualdades


de acesso à cultura é às vezes percebido como fator de desenco-
rajamento e mesmo de desqualificação da ação pedagógica ou
cultural, que estaria condenada de algum modo a esbarrar inter-
minavelmente no muro da herança sociocultural. Essa objeção
seria plenamente fundada se a reiteração desses limites alimen-
tasse apenas, nos atores da política cultural, como professores,
posturas de lamento resignado, encorajando apenas uma forma
sofisticada de renúncia, já que baseada na objetivação empírica
da impotência da ação.

Não é necessário, porém, que essa reiteração produza tais efeitos.


Ao contrário, a robustez das constatações e o rigor das análises
dos processos que lhes servem de base são também um convite
permanente a apreender os problemas ali onde eles realmente
se colocam, a preferir a educação artística ao marketing cultural,
a privilegiar, como se faz mais geralmente em matéria educativa,
a aspereza da transmissão explícita ao conforto da conivência
implícita, ponto cego das versões antigas da doutrina da demo-
cratização, por meio da temática do “choque eletivo” de André
Malraux, segundo o qual bastava colocar cada pessoa diante das
obras-primas da arte e da cultura para que sua transcendência
tornasse inútil qualquer mediação. As ilusões da conivência cul-
tural não estão menos presentes nas práticas mais espontaneís-
tas e relativistas de democracia cultural, quando se ignoram ao
mesmo tempo os recursos necessários à expressão espontânea
e o valor social desigual dos diferentes repertórios culturais. Na
contracorrente de todo miserabilismo sociológico, a análise das
políticas culturais não pode dissociar a reflexão sobre os meios
de ação da discussão de suas finalidades.

.47
Philippe Coulangeon
Diretor de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Científica
(CNRS) e do Instituto de Ciências Políticas de Paris. Pesquisa temas
relacionados à desigualdade social e às relações de classe nos cam-
pos da cultura, da educação e dos estilos de vida.
E-mail: philippe.coulangeon@sciences-po.fr

Notas
1
Este texto se apoia em grande parte nos elementos de reflexão desenvolvidos no
capítulo 3 de Philippe Coulangeon, Les métamorphoses de la distinction. Inégalités cul-
turelles dans la France d’aujourd’hui. Paris: Grasset, 2011.

2
Ver Joffre Dumazedier, Vers une civilisation du loisir? Paris: Seuil, 1962.

3
Cf. La question de la suppression du ministère de la Culture peut se poser. Le Mon-
de, 30/12/2008, entrevista com Jean-Jacques Aillagon.

4
Sobre esta questão, ver notadamente Lise Santerre, “De la démocratisation de la cultu-
re à la démocratie culturale”. In: Guy Bellavance (Ed.). Démocratisation de la culture ou dé-
mocratie culturelle? Deux logiques d’action publique. Sainte-Foy: Presses de l’Université
de Laval, 2000, assim como Philippe Poirrier, L’État et la Culture en France au XXe siècle.
Paris: Libraire Générale de France, 2000.

5
Lembramos, por exemplo, a vaia levada em Avignon, em julho de 1968, por Jean Vilar (pilar
da descentralização teatral), cujo nome foi rimado por jovens festivaleiros com o do ditador
português Salazar.

6
Reconhecemos a teoria da assim chamada “doença dos custos”, dos economistas William
Baumol e William Bowen, segundo os quais a coexistência de setores de atividade com
produtividade crescente e setores com produtividade estagnante – entre os quais o setor
das artes do espetáculo – conduz necessariamente, pelo alinhamento dos custos de mão
de obra dos segundos aos dos primeiros, a um déficit estruturalmente progressivo do
financiamento dos setores “arcaicos”. Cf. William J. Baumol e William G. Bowen, Performing
arts – the economic dilemma, Cambridge: The MIT Press, 1966.

7
Para uma crítica particularmente esclarecedora das noções de justiça e de demo-
cracia habilitadoras, ver notadamente Patrick Savidan. Repenser l’égalité des chances.
Paris: Grasset, 2007.

8
Ver especialmente Bernard Lahire, L’homme pluriel: les ressorts de l’action.Paris: Na-
than, 1998, assim como La culture des individus. Dissonances culturelles et distinction
de soi. Paris: La Découverte, 2004.

.48
Visita ao Rio Tietê, exposição H2Olhos, SP, 2008. Foto: Cia de Foto

O quarto ofício
[métier] da infância:1
o de consumidor
cultural
Sylvie Octobre

As crianças ocupam diversas cenas sociais, diante de sistemas de


injunções e expectativas variáveis. Primeiro a ter sido analisado, o
ofício de criança2 se define na esfera familiar: ele orienta as crian-
ças no sentido de conhecer as expectativas dos pais e a economia
moral dos lares, e a se inscrever numa filiação. O ofício de aluno3 se
define na esfera escolar: ela as dirige para responder às expectativas
e aos critérios de regulação de uma instituição e de seu programa
de formação, trazendo à tona de maneira crucial a questão do de-
sempenho. Da mesma maneira, o ofício de camarada/companheiro,
que surgiu mais recentemente nos trabalhos de pesquisa,4 as orienta
a dominar os códigos de definição das idades e dos grupos, para
ser integradas e reconhecidas ao mesmo tempo. As relações entre
esses três ofícios se tecem largamente no registro cultural, que age
igualmente sobre eles: pode-se então falar de ofício de consumidor
cultural5 com suas coerções, suas competências, seus modos de fun-
cionamento, suas temporalidades.6 As articulações entre os ofícios
de criança e de aluno podem ser traduzidas em “contratos” tácitos
ou explícitos, que implicam o quarto ofício: bons resultados esco-
lares são “trocados” na família por autorizações de mais consumo

.49
ou mais saídas, ou, ainda, por mesada (que serve frequentemente
para a compra de produtos culturais e para programas culturais). As
injunções juvenis são, por seu turno – e essa é uma de suas caracte-
rísticas –, muito ligadas aos códigos culturais, nas quais se encarnam
de maneira crescente desde a entrada no colégio, notadamente na
dimensão expressiva e interativa da música, da internet, mas tam-
bém dos comportamentos ligados à moda, ao look, à afirmação de
uma identidade visível. A “culturalização” dos três primeiros ofícios é
evidente, e se acelerou das primeiras observações de Jean-Claude
Chamboredon e Jean Prévot para cá.7

1. O calendário do ofício de consumidor cultural

Desse ofício de consumidor cultural, podemos hoje delimitar melhor


os diferentes momentos8 entre consumos e envolvimentos, jogos e
desafios dos ofícios de criança, de aluno e de jovem. O ofício de con-
sumidor cultural revela então as dinâmicas que nascem dos outros
registros e provoca ao mesmo tempo efeitos próprios, ligados ao
espaço ganho pelas autonomias cultural e relacional, e às mutações
do acesso aos produtos culturais, assim como à culturalização da
definição das idades. Os lazeres não são mais meros suportes, mas
podem tornar-se recursos simbólicos que permitem à criança afir-
mar sua idade: sua aquisição e seu desenvolvimento são típicos dos
momentos de transição biográfica, num momento em que os ritos
de passagem9 escassearam, foram privatizados e substituídos por
novos ritos mais móveis, ritos de primeira vez,10 de alcance mais res-
trito e de forma menos institucionalizada11 (o primeiro computador,
o primeiro telefone celular, o primeiro blog ou a primeira página no
Facebook, a primeira ida ao cinema entre amigos, etc.), ou por fases
cronológicas – entrada no colégio etc. A multiplicação e a diversifi-
cação dos registros de primeiras vezes “distribuem e fragmentam a
aquisição dos atributos da maturidade, identificada então com uma
acumulação de experiências pontuais“.12 Trabalhos qualitativos mos-
traram que esses calendários do crescimento/desenvolvimento das
crianças são muito presentes em suas projeções, que elas sabem o
que é de “tal“ ou “qual“ idade e exprimem a vontade de não “queimar
etapas“ e de atravessar uma por uma todas as fases.13 Assim, podem-
se distinguir vários momentos (ver tópicos):

– O momento lúdico, leitor e esportivo. O fim da infância é o mo-


mento do predomínio do esporte e do polo lúdico, que deixam
em segundo plano os consumos culturais – certamente muito pre-
sentes (notadamente as mídias tradicionais), mas criando vínculos
menores. Esse momento, que é também o das saídas controladas,
vê nascer uma autonomia restrita aos bens de consumo culturais,
ainda bastante relativa, já que eles permanecem ancorados em in-
terações nas quais a filiação familiar opera em múltiplos níveis: con-
sumos partilhados, acompanhamentos, discussão, regulação de
acesso etc. Essa ausência de real autonomia cultural ecoa a imbri-
cação forte dos ofícios de criança e de aluno e a fraqueza do ofício
de amigo ou companheiro: a lógica da filiação ainda predomina.
Nesse contexto, os objetos culturais suscitam um investimento ain-
da relativamente pequeno.

.50
– A abertura do campo dos possíveis e a queda da leitura. A mutação
das condições de escolarização provocada pela entrada no colégio
coincide com uma modificação do ofício de aluno, mas também
dos ofícios de criança e de amigo, companheiro. Se a pressão es-
colar indubitavelmente aumenta, ela é contrabalançada pelo reco-
nhecimento de maior autonomia de gostos culturais que não se
traduz ainda em uma independência material (de deslocamento,
gasto etc.), mas se apoia na materialidade da cultura do quarto, no
qual os objetos culturais ganham espaço crescente. Assim, o ofício
de criança é atravessado pelas dinâmicas contrárias ao ofício de ca-
marada: por um lado, a rede social dos colegiais se amplia; por ou-
tro, o controle parental se reconfigura, sob o efeito da modificação
das agendas escolares, mas também da mutação das demandas de
saídas (os aniversários dão lugar às festas, a rede de amigos se re-
compõe em geral num território geográfico mais vasto que o da es-
cola primária). A primeira metade do percurso do aluno no colégio
aparece assim como um período de redefinição dos equilíbrios que
regiam, na época da escola primária, os quatro registros – família/
escola/grupo de pares/lazeres –, mesmo que as escolhas permane-
çam ainda pouco individualizadas.

– A guinada cultural. A culturalização das identidades, que articula


“extimidade”14 e intimidade, o “para o outro” e o “para si”, se opera em
seguida, no período da segunda metade do colégio e da entrada na
pré-adolescência, notadamente com o papel cada vez mais impor-
tante das tecnologias digitais e a autonomia progressiva dos progra-
mas. A lógica estatutária que atribui um papel (criança, aluno) ainda
vigora, mas dá lugar à lógica identitária, o que favorece a passagem
a uma lógica da afiliação mais do que da filiação. Os equilíbrios entre
os quatro registros são assim modificados, em proveito do grupo
dos pares e em detrimento da escola, e dão o primado ao registro
cultural, que deve ao mesmo tempo exprimir essas mutações e re-
velar os novos equilíbrios.

– A expressividade dos gostos e dos sentimentos. A passagem à ex-


pressividade sucede à culturalização das identidades, num contex-
to de aumento da independência cultural. Ela prolonga e estru-
tura a autonomia dos gostos esboçada nas idades anteriores. As
atividades mais propícias para essa pesquisa de expressividade são
privilegiadas e constituem o epicentro dos universos de gostos: a
escuta musical, individualizável pela emulação, tanto em termos
de meios de escuta quanto de escolhas de conteúdos, mas coleti-
vamente valorizada, assim como o uso do computador e da inter-
net, que permite a mesma porosidade entre presença e distância,
individualidade e coletividade.

A cada idade, o ofício de consumidor cultural comporta injunções


– conhecer certas faixas da produção midiática e saber se pôr em
cena ao falar delas com os(as) amigos(as) – que constituem ao mes-
mo tempo uma barreira e um nível: trata-se de assumir sua idade
distinguindo-se dos mais jovens, mas também dos mais velhos, não
“parecer bebê“ nem “se fingir de grande“. Ou seja, ocupar seu lugar
na sociedade de seus pares, mas também na família e na escola.

.51
Consumos Mídias Fim da leitura Entrada no Foco no computador e
culturais tradicionais, de livros, universo na escuta de música
leitura e multiplicação multimídia
esporte de lazeres,
práticas de
amador
Agenda cultural

Saídas Saídas culturais controladas e Emancipação Saídas juvenis noturnas


culturais legitimadas progressiva das e autônomas (cinema,
saídas (cinema) boate e show)
Saídas de lazeres lúdicos – Saídas
de lazeres (circo, parque de
diversão, jogos)

Mise-en- Decoração do quarto baseada Ostentação de pertencer a grupos e dos


scène de si na filiação e nos gostos infantis gostos culturais
(animais, família)

Envolvi- Os lazeres culturais geram vínculos Culturalização crescente dos vínculos


mento menores do que o esporte

Ofício de Ausência de Autonomia Autonomia crescente Autonomia


criança autonomia real de gostos (cultural e relacional) relacional,
(restrição sobretudo
momentânea através dos
dos convites meios de
externos) comunicação e
dos convites

Ofício de O ofício de Declínio progressivo do ofício de aluno, mas Retorno do


aluno aluno assume conserva um lugar na negociação familiar ofício de
um papel aluno, variável
importante segundo as
Regime de pluralidade

no ofício de orientações
criança escolares

Ofício de Lógica da Mutação Lógica da afiliação Lógica de


jovem filiação da rede de expressividade
relações: psicológica
ampliação e (ser,
reconfiguração sentimento)
com a entrada
no colégio

Ofício de Início de Importância Desenvolvimento da Rumo a um


consumidor autonomização crescente expressividade material ofício de
cultural por meio de dos objetos e transição para uma consumidor
escolha de culturais. autonomia das escolhas cultural?
equipamentos Expressividade de consumo
e estatuto de material
consumidor (fazeres, gostos)
de produtos
culturais

Momento Abertura do Guinada cultural: Expressividade


lúdico, leitor campo dos desenvolvimento da dos gostos
Momento
cultural

e esportivo, possíveis e articulação entre o “para e dos


baseado na diminuição da si“ e o “para o outro”, sentimentos
filiação leitura e culturalização das
identidades
biológica
Idade

10 11 12 13 14 15 16 17

.52
2. Um ofício socialmente situado

Se as variações ligadas à origem social são reais no acesso a esse ofí-


cio de consumidor cultural, nessa idade elas parecem menos deter-
minantes do que as variações ligadas ao gênero (menina/menino),
com as quais se imbricam.

– As meninas na frente. As meninas se beneficiam, ao entrar no ofí-


cio de consumidor cultural, de um duplo efeito temporal: por um
lado, elas conservam por mais tempo que os meninos certos laze-
res da infância; por outro, elas se inscrevem mais precocemente
nos consumos, práticas e usos que compõem a “cultura do quar-
to”,15 assim como nas saídas típicas da adolescência. Enquanto o
contingente dos meninos leitores de livros cai bruscamente desde
a entrada no colégio, 12% das meninas (o dobro dos meninos da
mesma idade) ainda leem todos os dias, e permanecem mais fiéis
a essa prática do que os meninos. Além disso, as meninas conser-
vam por mais tempo as saídas ligadas à infância: em cada faixa etá-
ria, pelo menos metade delas frequenta museus e monumentos, e
elas são sempre mais numerosas que os meninos a frequentar os
parques de diversão, assim como os zoológicos e os parques de
animais, ou ainda as bibliotecas. Paralelamente, elas se aproximam
das margens culturais da adolescência mais cedo e são mais liga-
das a esses consumos de forma mais durável que os meninos que
a eles se entregam. Além disso, elas entram também mais cedo na
cultura adolescente da saída, notadamente aquela ligada a seus
interesses musicais (os shows e as salas de espetáculo). Esse duplo
movimento – persistência das saídas ou consumos da infância e
entrada mais precoce nos universos culturais da adolescência –
torna o universo das meninas mais precoce e variado de maneira
durável que o dos meninos, que só irão “alcançá-las”, em certos
domínios, dois anos mais tarde. Tais diferenças de gênero são so-
cialmente situadas e variam em função das práticas ou atividades
consideradas. Em certos casos, os fatores se compensam; noutros,
os descompassos perduram. Assim, uma origem social favorável
não basta para que os meninos “recuperem” seu atraso em matéria
de audiência radiofônica: aos 11 anos, quem mais escuta rádio são
as filhas de executivos (39,5% o escutam todo dia), ao passo que
as filhas de operários e os filhos de executivos apresentam níveis
semelhantes de escuta cotidiana (35% e 34,5%), equilíbrio que não
varia com o avanço da idade. O momento radiofônico pré-adoles-
cente é, assim, maior entre as meninas do que entre os meninos, e
as oposições de origem social são menos marcadas nesse terreno,
ainda que os filhos de operários permaneçam ligados ao rádio por
mais tempo.

– Sistemas de oposição. O acesso às práticas não basta para explicar


as posições em termos de gênero, e as distinções se deslocam para
os universos de gostos, mesmo nas práticas “a princípio’’ largamente
partilhadas. Assim, em matéria de escuta de música, as meninas de
11 anos escutam mais a canção francesa, seja Indochine ou Renaud
(filhas de executivos), seja Johnny Hallyday, Garou, Jennifer (filhas
de operários), enquanto os meninos da mesma idade e de origem

.53
popular preferem a dance music e o R’n’B, e seus contemporâneos
vindos das categorias favorecidas escutam ainda rock e rap. Seis
anos mais tarde, aos 17 anos, essas oposições não desaparecem,
mas se deslocam sob o efeito da importância que a escuta de mú-
sica adquire e da construção de competências musicais, que mo-
dificam os perímetros do feminino e do masculino e rediferenciam
as clivagens socialmente situadas entre ambos: um gosto popular
masculino se constitui em torno do rap (outrora típico do gosto dos
filhos de executivos) e do R’n’B, gosto popular feminino em torno
da dance (outrora apreciada pelos meninos do mesmo meio), ao
passo que filhos e filhas de executivos se encontram em torno do

.54
rock, ao qual os primeiros acrescentam o hard, o punk e o metal, e as
segundas o rock francês (retomando seu gosto inicial pela canção
francesa). Observa-se então um duplo movimento: das meninas em
direção aos gostos dos meninos, e das categorias populares em di-
reção aos gostos das categorias superiores, que mantêm sistemas
de oposições nos quais cada um revela seu gênero, sua idade e sua
origem social. As oposições de gênero são, portanto, de dois tipos:
algumas parecem invariáveis no tempo e no espaço social, outras
parecem móveis, definindo de maneira social e temporalmente si-
tuada estereótipos nos quais se colhem referências e recursos, em
termos tanto de pertença quanto de exclusão.

Foto: Cia de Foto

.55
– Espaços de convergência: o quarto digital. Enquanto o computa-
dor permanece, entre os adultos, um objeto de clivagem por gê-
nero,16 a observação dos comportamentos das crianças indica que
os níveis de prática cotidiana são similares para meninos e meni-
nas, assim como seus níveis de envolvimento com a prática desde
os 13 anos. Os comportamentos das meninas e dos meninos em
relação ao computador e à internet se parecem, portanto, cada vez
mais à medida que eles crescem, notadamente entre as crianças
de categorias superiores. No caso dos filhos de executivos, a van-
tagem inicial dos meninos não dura, pois eles são alcançados pelas
meninas na segunda metade do período de colégio. Em compen-
sação, isso não ocorre nos meios populares, nos quais os meninos
de todas as idades investem mais no uso do computador que as
meninas, os filhos de executivos apresentando sempre um nível
de prática superior ao dos filhos de operários. À medida que as
crianças crescem, nota- se um movimento de convergência global
dos comportamentos das meninas e dos meninos em relação ao
acesso ao computador e à internet, com um atraso, porém, das
categorias populares. A internet reúne meninas e meninos em
torno de usos comuns, que redefinem os perímetros do femini-
no e do masculino, redefinição essa que parece mais difícil nos
meios populares. Para todos, meninas e meninos, filhos de ope-
rários e de executivos, o MSN é o uso mais frequente: o computa-
dor franqueia aos meninos uma entrada na cultura de quarto até
então fortemente feminina. O “quarto digital“17 dota os meninos
de competências e apetências dessa cultura de quarto feminina,
que inclui a prática do manejo do telefone: a internet permite aos
meninos um uso conversacional às vezes impossível nas outras
cenas – os adolescentes podem conversar no MSN com pessoas
do sexo oposto com as quais não falam no pátio de recreação do
colégio. A participação dos meninos nos fóruns e nos chats é outro
sinal dessa mutação dos estereótipos: se as práticas “tradicionais“
de escrita (diários íntimos, poemas etc.) são majoritariamente fe-
mininas, o uso das redes e dos blogs as franqueia aos meninos.
Assim, a convergência dos universos culturais das meninas e dos
meninos resulta de um duplo movimento de acesso das meninas
a instrumentos “masculinos“, porque tecnológicos, e de inscrição
dos meninos em usos de instrumentos tecnológicos que renovam
práticas “femininas“ (escrita, conversa etc.).

3. Transmissões múltiplas

As crianças são ao mesmo tempo agentes e atores das transmissões


culturais. Enquanto agentes, elas se inscrevem num processo de
herança de um capital cultural e simbólico. Enquanto atores, elas se
reapropriam dessa herança: a transmissão supõe uma ação dos her-
deiros que é sempre uma transformação, uma reinterpretação. O
capital não é intangível, mas evolutivo. Esse processo de conversão,
que conjuga construção, desconstrução e apropriação, é essencial
à transmissão.18 Essa transformação pode se dar por um desloca-
mento dos conteúdos consumidos, das modalidades de consumo
etc. Assim, os pais podem ouvir os Beatles num leitor de cd e as
crianças Tokio Hotel num arquivo mp3, ou então um dos pais pode

.56
ter feito música por muito tempo, e a criança outra atividade artís-
tica. Essa plasticidade decorre também de efeitos de contexto, no-
tadamente aqueles ligados à evolução da oferta cultural: a aparição
de novos objetos culturais, sobretudo em matéria de multimídia, e
a evolução do nível de difusão dos equipamentos têm um impacto
direto sobre os fenômenos de transmissão entre gerações. Nesse
contexto, a transmissão varia em função de parâmetros individu-
ais: posição na fratria,19 mas, sobretudo, emancipação da criança à
medida que ela vai crescendo, pois o mecanismo da reprodução
é atravessado pela reflexividade,20 seja provocada por informações
colhidas no exterior, por meio das mídias, por exemplo, ou por um
distanciamento pessoal de seus próprios hábitos. Enfim, e sobre-
tudo, a criança deve ter vontade de herdar: o exemplo da leitura é
impressionante a esse respeito.21

A questão das transmissões tem sido mais frequentemente enten-


dida como algo ligado à família, “sujeito principal das estratégias
de reprodução“,22 as outras instâncias de socialização parecendo
resultar “de influências“. Vinda, sem dúvida, da história da sociologia
e do peso que a noção de capital cultural e de sua metáfora mate-
rial teve sobre as representações, essa distinção merece ser ques-
tionada. Conceito que “situa“ os indivíduos, o capital cultural inclui
uma dimensão material (os objetos disponíveis), mas dela se afas-
ta em sua forma incorporada (o habitus). A metáfora da herança
sugere que o indivíduo recebe uma parte desse capital, constitui
outra ao longo de sua vida e tende a transmitir outra ainda à gera-
ção seguinte, a incorporação dos capitais se fazendo pela família,23
pela instituição escolar, mas também pelo grupo dos pares etc. No
entanto, essa metáfora deve ser usada com atenção, pois ela não
esgota a explicação da realidade. Ela desconsidera, sobretudo, a
complexidade da socialização familiar,24 na qual se deve distinguir

Exposição Sutil Violento, itinerância Chile, Museo Nacional de Bellas Artes, 2008. Foto: Cia de Foto

.57
o que vem do pai, da mãe, dos irmãos e das irmãs, segundo o sexo
e a classe da criança. É necessário, portanto, mobilizar informações
sobre as práticas e normas educativas passadas para compreender
a relação atual com a cultura e as estratégias educativas das famí-
lias,25 num contexto em que as normas educativas familiares foram
transformadas pelo sucesso dos discursos sobre o florescimento
da criança26 e a feminização dos habitus cultivados especialmente
nos meios dotados de grande capital cultural.27 Mobilidade social
dos pais, relação com o tempo, extensão e densidade das redes
sociais, norma da realização pessoal, todos esses são parâmetros
que intervêm na transmissão.28

Ela desconsidera também o peso das outras transmissões. Os


transmissores potenciais são diversos: influências dos pares,29 da
escola30 e das mídias – a interdependência dos ofícios de criança,
aluno e consumidor cultural vai ficando mais complexa. A ascen-
são das dinâmicas juvenis provocou uma reavaliação do poder
de transmissão que nelas se constrói e cujos efeitos concernem
principalmente aos produtos das indústrias culturais. O papel dos
pares se articula com o das mídias sem, porém, se reduzir a ele.31
As mutações da relação com a escola repuseram em questão as
transmissões escolares32 e seu impacto sobre a construção da re-
lação das crianças com a cultura. A escola promove atividades e
valores culturais legitimados. A adesão a eles varia socialmente,
em função sobretudo da situação escolar da criança. Às vezes, eles
entram em contradição com os dos grupos juvenis. Os modelos, as
referências e as coerções específicos desses diferentes espaços de
socialização se exercem sobre as crianças e funcionam como re-
cursos relativamente interdependentes, que elas podem mobilizar
ou rejeitar em função de sua identidade sexual – convém rejeitar
os gostos do outro sexo –, de sua origem social, mas também do
lugar reservado a certas atividades culturais na construção de si
[por parte] da criança ao longo do tempo. Ao longo do desenvol-
vimento da criança, essas combinações podem ser recompostas e
remobilizadas. Elas nos permitem perceber que as culturas jovens
são espaços de plasticidade (forte, mas transitória) das disposições
e que, paralelamente, seus traços ecléticos perduram com o de-
senvolvimento dos jovens e modificam duravelmente as relações
das novas gerações com a cultura.

A análise da transmissão supõe, por outro lado, a distinção entre


transmissão estrutural e mutações conjunturais. A passagem de
uma geração a outra carrega os traços das mutações econômicas,
sociológicas, tecnológicas, culturais, pedagógicas etc. Essas muta-
ções da sociedade são filtros entre o que é transmitido e o que é
herdado, transformando os objetos com o passar das gerações.33
A transmissão não é, portanto, a reprodução idêntica de compor-
tamentos de uma geração a outra, mas deve ser entendida por
meio das identidades geracionais.34 Nessa situação de pluralidade
dos atores, das modalidades e mesmo dos tipos de transmissão,
as inflexões de comportamentos ou de representações, que são
em primeiro lugar individuais,35 mas se concretizam em mutações
intergeracionais, podem ser interpretadas como motores da mu-

.58
dança social e cultural, entre ajustamento ou abandono. Trata-se
não só de uma transformação do capital cultural de uma geração
a outra – a cada geração de famílias correspondendo um contexto
sociocultural próprio –, mas também de uma mutação da sociali-
zação: a sociedade contemporânea se caracteriza por uma indivi-
dualização e uma desinstitucionalização relativas. Nesse contexto,
a socialização não é mais considerada como a adoção das normas
de um grupo, mas como o máximo aproveitamento dos meios ao
alcance do indivíduo para que ele se realize. Esse modelo, inicial-
mente característico das classes favorecidas, se expandiu na socie-
dade, principalmente nas representações.36 Nem por isso as clas-
sificações desapareceram num espaço social atomizado: o que se
transmite não é tanto o valor ou o volume absoluto desse capital,
mas a posição que ele ocupa e faz ocupar no espaço social, num
contexto sócio-histórico que evolui de uma geração para outra. A
mudança social, como ruptura conjuntural, participa inteiramen-
te desse processo de transmissão estrutural. A transmissão é uma
transformação homotética.37

Os modos de transmissões são igualmente variados: elas funcio-


nam bem mais por impregnação,38 de maneira implícita, do que
por interação explícita (ou inculcação39), bem mais por persuasão
clandestina do que por pedagogia.40 E os registros se interpene-
tram41 nas relações de interdependência – incitações, acompanha-
mento, consumo partilhado etc. –, nas quais os atores da socializa-
ção funcionam como modelos, positivos ou não, e como recursos.
De resto, elas funcionam tanto no registro do simbólico – as repre-
sentações da cultura – como no das práticas ou dos objetos, os
dois registros permanecendo irredutíveis um ao outro.

Da infância à grande adolescência, descompassos, oposições e


convergências, mas igualmente temporalidades diferentes ali-
mentam a construção desse ofício de consumidor cultural, que
se situa na interseção de outros ofícios. Primeiro, o de “filho de”
por meio das várias transmissões culturais ascendentes e descen-
dentes, mas também das negociações de autonomia ligadas aos
programas ou aos consumos culturais à medida que a criança vai
se desenvolvendo. Depois, o de aluno, pois a escola propõe um
modelo cultural com o qual os alunos devem negociar, e consti-
tui – do ponto de vista dos resultados escolares – uma moeda de
troca para a conquista da autonomia em matéria de consumos
culturais. Enfim, o ofício de camarada, pois a identidade infantil
e adolescente se constitui aí no “entre-si” de maneira importan-
te, seja para a aquisição de competências culturais (conhecer os
“bons” cantores, os “bons” jogos, os “bons sítios”), seja para a vali-
dação das identidades (ser legal, participar do grupo), que funcio-
nam tanto para designar quanto para excluir. Em cada um desses
ofícios, atuam o tempo todo saberes “minúsculos”,42 saber-fazer
(encontrar as informações, os sites, as imagens, as músicas etc.),
saber-ser (a boa aproximação, o bom look etc.) e fazer-saber (saber
pôr em cena esse “si mesmo” junto às diversas cenas sociais com
as quais a criança é confrontada), associando, permanentemente,
competências e negociações.

.59
Sylvie Octobre
Socióloga, diretora de pesquisa no Departamento de Estudos da
Previsão e da Estatística do Ministério da Cultura e da Comunicação
da França. Trabalha com a sociologia de públicos e das práticas
culturais, particularmente hábitos culturais juvenis.
E-mail: sylvie.octobre@culture.gouv.fr

Notas
1
Usamos aqui esse termo com um sentido amplo de menoridade, que engloba um
processo de “crescimento” e pode incluir várias “idades”, cujas delimitações são passí-
veis de debate, mas cujo interesse metodológico basta para justificar este uso. Essa
acepção foi validada pela Agência Nacional da Pesquisa (Agence Nationale de la Re-
cherche) no lançamento de seu edital de projetos Infância, em 2009, e fundamenta
a consideração da infância como categoria social (cf. os trabalhos do grupo de so-
ciologia da infância da Associação Internacional dos Sociólogos de Língua Francesa,
w3.aislf.univ-tlse2.fr).

2
Jean Claude Chamboredon, Jean Prévot, Le “métier d’enfant”. Définition sociale de la
prime enfance et fonctions différentielles de l’école maternelle. Revue Française de Socio-
logie, 1973, 14-3; François de Singly. Les adonaiissants. Paris: Armand Colin, 2006.

3
Régine Sirota, Le métier d’élève. Revue Française de Pédagogie, n. 104, 1993.

4
Dominique Pasquier, Culturas lycéennes. La tyrannie de la majorité. Paris: Autre-
ment, 2005.

5
A noção de consumo deve ser entendida aqui em sentido amplo, englobando todas
as formas de participação cultural (práticas, saídas etc.).

6
Sylvie Octobre, Christine Detrez, Pierre Mercklé, Nathalie Berthomier. L’enfance des loisirs.
Trajectoires communes et parcours individuels de la fin de l’enfance à la grande adoles-
cence. Paris: Deps/MCC, 2010.

7
“Nosso objetivo é precisamente estudar a transformação da definição social da primeira
infância e mostrar como o limite entre a idade que requer cuidados principalmente psi-
cológicos e afetivos e as idades que requerem cuidados culturais recuou com a primeira
infância”(Jean-Claude Chamboredon, Jean Prévot, op. cit., p. 295).

8
Preferimos o termo “momento” (que indica uma posição num processo temporal) ao ter-
mo “idade”, que corre o risco de reificar o processo no qual esses momentos se instalam.
Esse processo se aproxima daquilo que psicólogos, pediatras, pesquisadores e clínicos
chamam de “ritmo de desenvolvimento” (que não tem nada a ver com o crescimento),
”roteiro ao longo das idades dos diferentes desenvolvimentos que caracterizam a criança”.
Certas etapas podem ser invertidas, faltar, se acoplar, outras podem surgir tardiamente
– ou precocemente. Os roteiros individuais estão marcados pela personalidade e pelas
influências do ambiente, e não pela existência de planos predeterminados. Hubert Mon-
tagnier, “Les rythmes majeurs de l’enfant“. In: Informations sociales, Temps sociaux: concor-
dances et discordances, temps et cycle de vie, n. 153, maio- jun. 2009.

9
Martine Ségalen. Rites et rituels contemporains, Nathan: Paris, 1998.

10
Michel Bozon. Des rites de passage aux ‘premières fois, une expérimentation sans
fin. Agora/Débats Jeunesse, n. 28, 2002.

11
“Podemos citar, de maneira desordenada, momentos de importância variável,
como o primeiro cigarro, o primeiro beijo, a primeira conta bancária, a maioridade
civil […] todos, momentos que contam e que se conta’’. Michel Bozon, op. cit., p. 29.

.60
12
Céline Metton Gayon. Les adolescents, leur téléphone et Internet, op. cit., p. 22.

13
Sara Bragg, David Buckingham. I think I’m too young to understand. In: Isabelle
Charpentier (dir.), Comment sont reçues les œuvres. Paris: Creaphis, 2006.

14
Serge Tisseron. Virtuel mon amour. Paris: Albin Michel, 2008.

15
Hervé Glévarec. La cultura de la chambre, Préadolescence et culture contemporaine
dans l’espace familial. Paris: Deps/MCC, 2009.

16
Olivier Donnat. Les pratiques culturais des Français à l’ère du numérique. Enquête 2008.
Paris: MCC, Deps/La Découverte, 2009.

17
David Buckingham. La mort de l’enfance. Grandir à l’âge des médias. Paris: Armand
Colin, 2010.

18
Claude Dubar. La socialisation. Paris: Masson et Armand Colin, 1997 (3. ed.); Bernard
Lahire. Tableaux de famille. Paris: Gallimard, 1995.

19
Estudos sobre as dinâmicas familiares mostram que os membros de uma mesma
fratria não “recebem“ a mesma coisa da mesma maneira. Frank J. Sulloway. Les Enfants
rebelles. Paris: Odile Jacob, 1999.

20
Jean Claude Kaufman. Ego. Pour une sociologie de l’individu. Paris: Nathan, 2001.

21
Christian Baudelot, Marie Cartier e Christine Detrez. Et pourtant ils lisent. Paris: Le
Seuil, 1999.

22
Pierre Bourdieu, Raisons pratiques. Paris: Minuit, 1994, p. 141.

23
Birgit Becker. The Transfer of cultural knowledge in the early childhood: so-
cial and ethnic disparities and the mediating role of familial activities. European
Sociological Review, vol. 26, n. 1, p. 17-29. A autora mostra o impacto de cer-
tas atividades culturais (especialmente a leitura, pelos adultos, de livros para a
criança) sobre a transmissão intergeracional do capital cultural incorporado.

Martine Ségalen. Familles: de quoi héritons nous?. In: Familles, permanences et méta-
24

morphoses.Paris: Éd. Sciences Humaines, 2002.

25
Jean Kellerhals e Cléopatre Montandon identificam três estilos educativos segundo
os objetivos, os métodos, os papéis educativos e os modos pelos quais a família me-
diatiza as influências da escola, dos pares e das mídias: 1) o estilo autoritário se funda
numa visão estatutária das relações pais/filhos e privilegia a obediência e a disciplina
em famílias bastante fechadas em si mesmas; 2) o estilo negociador dá importância
à autonomia e à criatividade da criança, e valoriza as relações pais/filhos no seio de
famílias sob influência exterior (família associação); 3) o estilo maternal privilegia mais
a conformidade e a disciplina do que a autonomia, embora desenvolva uma comu-
nicação densa e uma grande proximidade entre pai e filhos, com uma atitude relati-
vamente reservada dessas famílias em relação ao meio exterior. Cf. Jean Kellerhals e
Cléopatre Montandon. Les Stratégies éducatives des familles. Milieu social, dynamique
familiale et éducation des pré-adolescents. Lausanne: Delachaux et Nestlé, 1991.

26
Martine Ségalen, Nicole Lapierre, Claudine Attias-Donfut. Le nouvel esprit de famille.
Paris: Odile Jacob, 2002; M. Ségalen. Familles: de quoi héritons nous? In Familles, per-
manences et métamorphoses: Paris: op. cit.

27
François de Singly. Les habits neufs de la domination masculine. Esprit, “Masculin/fémi-
nin“, nov. 1993.

28
N. Lin e M. Dumin.Access to occupation through social ties. Social Networks, vol. 
8, 1986; Christian Baudelot, Michel Gollac, Céline Bessière, Isabelle Coutant, Olivier
Godechot, Delphine Serre, Frédéric Viguier. Travailler pour être heureux?. Paris: Fayard,
2003; Gilles Pronovost. Temps sociaux et pratiques cultuelles. Québec: Presses Universi-
taires du Québec, 2005.

29
Gender, networks and cultural capital. Poetics, n. 32, 2004.

.61
30
Philippe Coulangeon. Quel est le rôle de l’école dans la démocratisation de l’accès
aux équipements culturels?. In: Olivier Donnat e Paul Tolila (sous la dir. de). Les Pu-
blics de la culture, op. cit. e Lecture et télévision: les transformations du rôle cultural
de l’école. Revue Française de Sociologie. n. 48-4, 2007; Éric Schön. La fabrication du
lecteur. In: François de Singly (sous la dir. de). Identité, lecture, écriture. Paris: Centre Ge-
orges Pompidou/BPI, 1993. Os vínculos entre escola e práticas e consumos culturais
suscitam explicações que variam segundo a adoção do ponto de vista da sociologia
da educação (pesquisa dos impactos das práticas e consumos culturais extraesco-
lares sobre as performances escolares) ou da sociologia da cultura (explicitação do
efeito do grau de escolaridade sobre o acesso às atividades e aos consumos).

31
A pesquisa não permite delimitar as influências midiáticas, o que exigiria provavelmente
análises de conteúdos e de recepção, entre as quais alguns trabalhos mostraram o quanto
tais influências se articulam à sociabilidade juvenil e à construção de si. Dominique Pasquier.
La culture des sentiments. L’expérience télévisuelle des adolescents. Paris: Éditions de la Mai-
son des Sciences de l’Homme, 1999.

32
François Dubet. Paradoxes et enjeux de l’école de masse. In: Olivier Donnat e Paul
Tolila (sous la dir. de). Le(s) public(s) de la culture, op. cit.

33
Willy Lahaye, Jean-Pierre Pourtois, Huguette Desmet, Transmettre. D’une génération à
l’autre. Paris: PUF, 2007.

34
Uma comparação das práticas educativas de três gerações mostra uma evolução
dos modelos educativos rumo a formas mais igualitárias (Martine Ségalen, Nicolas
Lapierre, Claudine Attias-Donfut. Le nouvel esprit de famille. Paris: Odile Jacob, 2002),
o que redefine as posturas parentais [François de Singly. À quoi sert la famille?. In:
Jean-François Dortier (sous la dir. de). Familles, permanence et métamorphoses. Auxer-
re: Sciences Humaines, 2002]. A família moderna privilegiava as relações hierárquicas
entre seus membros, a família pós-moderna privilegia um modelo igualitário, rela-
cional e afetivo. Cf. Jean François Dortier. La famille aujourd’hui, bouleversements et
recompositions. In: Jean François Dortier (sous la dir de), op. cit.

35
Bernard Lahire. De la théorie de l’habitus à une sociologie psychologique. In: Le
travail sociologique de Pierre Bourdieu. La Découverte. Paris: 2001.

36
François de Singly. Comment aider l’enfant à devenir lui même?. Paris: Armand
Colin, 2009.

37
Willy Lahaye, Jean-Pierre Pourtois, Huguette Desmet. Transmettre; D’une génération
à l’autre, Paris: PUF, 2007.

38
Isso é o que Bernard Lahire chama de “socialização silenciosa” [Bernard Lahire. Hé-
ritages sexués et incorporation des habitudes et des croyances. In: T. Blöss (sous la
dir. de). La dialectique des rapports hommes-femmes, 9-25. Paris: PUF, 2000] e o que
as teorias do aprendizado social discutem sob o nome de “processo de observação”
(Albert Bandura. L’apprentissage social. Bruxelas: Mardaga, 1980): o princípio da trans-
missão reside na observação e na imitação de comportamentos, mas também de
atitudes e valores.

39
Anne Muxel. Mémoire familiale et projet de socialisation de l’enfant: des obstina-
tions durables. Dialogue, 1984; Annick Percheron. La transmission des valeurs. In F. de
Singly (sous la dir. de). La famille, l’état des savoirs. Paris: La Découverte, 2001.

40 François de Singly. Elias et le romantisme éducatif. Sur les tensões de l’éducation


contemporaine. Cahiers Internationaux de Sociologie, 99, 1995.

41
S. Octobre e Y. Jauneau. Tels parents, tels enfants? Une approche de la transmission
cultural, art. cit.

42
Dominique Pasquier. Les savoirs minuscules, Le rôle des médias dans l’exploration
des identités de sexe. Education et Sociétés, 2002/2, n. 10.

.62
Espetáculo O Tal do Quintal, Balangandança Cia. Foto: Cia de Foto

Os pÚblicos das artes do


espetÁculo na França
Jean-Michel Guy

O conhecimento que adquirimos na França acerca dos públicos


das artes do espetáculo nos últimos 40 anos fundamenta-se evi-
dentemente na prática das pessoas que trabalham na relação com
o público, assim como em certas pesquisas sociológicas. Entretan-
to, apenas as tais pesquisas serão abordadas neste artigo.

Um primeiro tipo de pesquisa trata da frequentação (e mais rara-


mente da não frequentação) de seus motivos. Mais comum, esse
tipo abrange quatro outros, que correspondem a diferentes pers-
pectivas: num primeiro nível, as pesquisas mais macroscópicas,
sobre as práticas culturais ou os lazeres, permitem estimar as taxas
de frequentação, estabelecer perfis sociodemográficos dos prati-
cantes e situar as diferentes práticas umas em relação às outras;
num segundo nível, aparecem os estudos sobre a frequentação
de um gênero de espetáculo considerado globalmente (o teatro,
a dança etc.), que permitem detalhar as modalidades da prática
(frequência, sociabilidade, preferências etc.); num terceiro nível,
e mais raro estão os estudos tratando do público de um espaço
(como a sala Richelieu da Comédie-Française) ou de uma mani-
festação (como o Festival de Avignon); num nível ainda mais raro,
estão os estudos sobre o público de uma obra particular (como os
realizados pelo Etablissement Public du Parc et de la Grande Halle

.63
de la Villetet1 em Paris junto aos espectadores dos espetáculos de
circo). Haveria ainda, teoricamente, um quinto nível, com o es-
tudo do público de uma representação particular – estudo mais
próximo dos públicos reais.

Um segundo tipo de pesquisa, por ora ainda bastante raro, de-


bruça-se sobre a recepção dos espetáculos. Podemos situar aqui
as pesquisas conduzidas pelo Théâtre des Jeunes Années de Lyon
sobre a memória do público, os trabalhos de Anne Marie Gourdon
sobre o público das grandes salas ou de Emmanuel Pedler sobre
os espectadores do Alcazar em Marselha. Entre frequentação e
recepção, encontramos ainda, geralmente conjugados com um
ou outro tipo, os estudos sobre a imagem dos gêneros, das salas
e das obras.

Espetáculo Felizardo, Banda Mirim, 2009. Foto: Cia de Foto

.64
Se compararmos nosso conhecimento atual com aquele de que
dispúnhamos há 30 ou 40 anos, é inevitável constatar que progre-
dimos consideravelmente. A pesquisa sobre as práticas culturais
dos franceses abriu caminho e continua sendo uma mina de in-
formações. Ela permite estimar o número de espectadores ocasio-
nais e regulares; descrever as práticas de lazer dos espectadores;
estabelecer hipóteses; e, até mesmo, avançar em explicações so-
bre os fatores sociais que influenciam a frequentação dos espe-
táculos. Essa pesquisa, periodicamente atualizada, permite ainda
medir evoluções ocorridas ao longo de 30 anos. Em praticamente
todos os países ocidentais existem pesquisas análogas. Mesmo
permanecendo delicada, a comparação internacional permite ao
mesmo tempo confirmar as teorias explicativas da frequentação e
isolar a influência do fator “nacional”.

.65
Desse modo, as pesquisas sobre o público das artes do espetá-
culo são escassas, sobretudo se comparadas às disponíveis so-
bre museus, bibliotecas ou cinema. O Département des Etudes,
de la Prospective et des Statistiques2, do Ministério da Cultura,
realizou ou apoiou trabalhos sobre os públicos do teatro, da
dança, do circo e das músicas ditas amplificadas, mas ainda não
existe nenhum estudo global sobre o público dos concertos de
outros gêneros de música; nenhum sobre os públicos das di-
versas formas de “arte da rua”; e nenhum sobre muitos gêneros,
como marionetes, mimodrama ou opereta. Quanto aos estudos
conduzidos por algumas instituições junto a seus espectadores,
eles são ainda mais raros. Só o Parque de La Villette e a Ópera de
Paris têm um serviço de estudos que realiza pesquisas sistemáti-
cas junto aos espectadores.

Além de grandes lacunas, nosso conhecimento enfrenta outros


limites ligados à metodologia das pesquisas. Eles são, mais exa-
tamente, de ordem epistemológica, política e metodológica. Sem
me delongar, gostaria de evocar alguns, não para sugerir que nos-
sos conhecimentos, por serem frágeis, não valeriam grande coisa,
mas para nos ajudar a vislumbrar novas abordagens.

O primeiro problema epistemológico refere-se ao uso pouco rigo-


roso de termos tão comuns como espetáculo, espectador e pú-
blico. A multidão em movimento, incessantemente recomposta,
que participa desses cortejos chamados de “ambulatórios” pelos
artistas de rua é formada de espectadores e constitui um público?
Nada é menos garantido. Essas formas artísticas visam precisamen-
te problematizar tais noções. Ao mesmo tempo espectador e par-
ticipante – alguns dizem “spectator” –, o passante, cuja atenção foi
fisgada pelos artistas de rua, pode mudar várias vezes de estatuto
ao longo do ‘‘espetáculo’’: de simples curioso, ele pode se tornar
uma testemunha, ou espectador, e voltar a ser um curioso logo
depois. Sem falar das formas de “teatro invisível”, inventadas por
Augusto Boal e cultivadas por certos artistas de rua, que obrigam o
passante, testemunha ou viajante malgré lui a tomar uma posição
numa situação conflituosa engenhosamente criada pelos artistas e
não identificável como um espetáculo. Entretanto, mesmo sem in-
vocar esse caso extremo, e permanecendo no quadro convencio-
nal da maioria das formas de espetáculo (a reunião, num mesmo
espaço fechado, de certo número de pessoas sentadas), um públi-
co é apenas, num sentido estrito, uma assembleia hic et nunc de
espectadores de carne e osso. Em outros termos, só existe público
de uma representação específica. Falar do público de um espaço,
e a fortiori de um gênero, já é um abuso de linguagem; é fazer
referência a uma construção estatística mais ou menos pertinente,
mais ou menos eficaz, para representar uma realidade inapreensí-
vel de outro modo. O público da Comédie-Française, da dança, do
festival de Avignon, assim definido, não existe. O que chamamos
assim são coleções de indivíduos que têm poucas chances de se
encontrar numa representação. Ora, um público real não consis-
te numa coleção de indivíduos, nem mesmo numa soma dos es-
pectadores que o compõem. Características ainda enigmáticas do

.66
público, isto é, de determinado público, como a sua heterogenei-
dade social, o seu número, a presença em seu seio de uma pessoa
particular, a sua mobilidade eventual, a sua nacionalidade etc., são
susceptíveis de exercer efeitos particulares sobre a recepção indi-
vidual do espetáculo (pensemos no contágio das gargalhadas) e,
mais ainda, sobre a sua significação social. Passando do público
real ao público conceitual, definido pelo fato de que seus mem-
bros frequentaram tal lugar ou tal gênero ao longo de um período
arbitrariamente fixado – por exemplo, os 12 últimos meses –, não
nos arriscamos a perder precisamente ‘‘o público”?

Neste ponto, uma palavra sobre os limites políticos das pesqui-


sas. Elas são necessariamente orientadas pelas preocupações de
quem as encomenda ou financia, mesmo quando se trata de or-
ganismos a priori imparciais (uma universidade, um serviço mi-
nisterial), movidos apenas pelo desejo de conhecer por conhe-
cer. Alguns pesquisadores denunciaram os pressupostos políticos
das pesquisas sobre as práticas culturais, que constroem implici-
tamente uma imagem de um não espectador infeliz, frustrado,
cego, ao qual se deveria absolutamente trazer a felicidade con-
tra sua própria vontade, conquistando-o para a causa da cultu-
ra. Outra questão política fundamental se esconde em todas as
pesquisas: a da utilidade ou inutilidade dos resultados. Para que
serve perguntar às pessoas qual a profissão delas se já se sabe de
antemão que o fato de conhecê-la não aumenta a compreensão
do fenômeno estudado nem fornece pistas para a ação? Ora, a
maioria dos estudos sobre as artes do espetáculo, exceto talvez os
deliberadamente orientados para o “marketing”, apresenta tal de-
ficiência que podemos qualificar de política: de permanecer letra
morta tão logo sejam publicados.

Quanto às questões de estrita metodologia, elas não são próprias


apenas das pesquisas sobre os públicos do espetáculo. Lembre-
mos simplesmente que o estatuto social da frequentação da maio-
ria dos gêneros de espetáculo é o estatuto de uma prática rara,
cara e reservada e que há uma probabilidade grande de que as
respostas dos entrevistados dependa desse estatuto.

Para concluir esta brevíssima evocação dos limites das pesquisas,


cumpre ainda assinalar que os estudos disponíveis tratam todos
da frequentação ou da recepção de espetáculos profissionais e
que sabemos muito pouco sobre a frequentação dos espetáculos
amadores. Ainda, até recentemente, essas pesquisas tratavam ex-
clusivamente de espectadores adultos, e todos os estudos tomam
como unidade estatística de base o espectador, o que não é uma
escolha inquestionável, quando sabemos que a frequentação dos
espetáculos é em grande medida coletiva: a unidade social que
vai ao espetáculo é mais frequentemente um casal ou um grupo,
amigável ou familiar.

Apesar dessas reservas, quais lições podemos tirar dos diferentes


estudos disponíveis? Observemos primeiro que cada escala de ob-
servação fornece uma visão diferente da frequentação e que os

.67
resultados obtidos nas diferentes escalas não se articulam facil-
mente entre si. Por exemplo, saber que a probabilidade de assistir
a um espetáculo de qualquer gênero varia globalmente segundo
o nível de instrução não permite em nada explicar a frequentação
do circo ou dos concertos de rock. Mas, inversamente, se apenas
estudamos no detalhe os públicos específicos, podemos perder
de vista as grandes determinações sociais da frequentação. A ar-
ticulação das abordagens micro e macro parece, desse ponto de
vista, um dos principais desafios das pesquisas futuras.

Comecemos pela escala maior, que considera as artes do espetá-


culo como um todo. A última pesquisa sobre as práticas culturais
dos franceses permite estimar em 7% a proporção de franceses
de 15 anos ou mais que nunca assistiram a um espetáculo artísti-
co em sua vida.3 As taxas de não frequentação absoluta, isto é, a
proporção dos franceses que nunca assistiram a um espetáculo do
gênero em questão, são de 77% para a ópera, 81% para o concerto
de jazz, 77% para a opereta, 71% para o concerto de rock, 76%
para o concerto de música clássica, 68% para o espetáculo de dan-
ça clássica ou contemporânea, 42% para o espetáculo de teatro
profissional e 22% para o circo. A mesma pesquisa estima em 55%
a proporção dos franceses de 15 anos ou mais que, ao longo dos
12 meses anteriores à pesquisa, teriam assistido fora de casa a um
espetáculo profissional, de algum dos diferentes gêneros. As taxas
de frequentação nos “12 últimos meses” dos diferentes gêneros de
espetáculo obtidas por tal pesquisa foram de 4% para a opereta e a
ópera; 6% para o concerto de jazz, 8% para o espetáculo de dança
clássica ou moderna, 7% para o concerto de música clássica, 10%
para o concerto de rock, 11% para o espetáculo de variedades,
10% para o espetáculo de dança folclórica, 14% para o circo, 19%
para o teatro e 34% para o espetáculo de rua.

As taxas de frequentação dos espetáculos em geral e de cada


gênero em particular variam consideravelmente de acordo com
diversos indicadores do estatuto social das pessoas, como idade,
sexo, nível de instrução e categoria profissional, assim como o ta-
manho da cidade da residência e a região da habitação.

Evocar todas as variações gênero por gênero seria fastidioso. Eu


me limitarei aqui a lembrar as mais conhecidas. A proporção de
mulheres que frequentam os diferentes gêneros de espetáculo
é sistematicamente superior à dos homens, exceto no caso dos
concertos de rock e de jazz. Como, na França, as mulheres estão
em maior número que os homens, isso se traduz em uma repre-
sentatividade mais elevada das mulheres no meio dos públicos. As
variações segundo a idade dependem do gênero de espetáculo:
de maneira geral – e isso não concerne apenas à frequentação dos
espetáculos –, sabemos que os jovens saem mais que as pessoas
mais velhas. Entretanto, a proporção de jovens de menos de 20
anos que frequentam os diferentes gêneros é notavelmente supe-
rior à média no caso dos concertos de rock, de jazz, dos espetácu-
los de dança, do teatro e do espetáculo de rua. Em compensação,
ela é claramente inferior nos casos da música clássica e da dan-

.68
ça folclórica. É o nível de instrução que produz as variações mais
importantes: dependendo dos gêneros, as taxas de frequentação
podem variar do simples ao dobro (casos do circo e do espetáculo
de rua) ou do simples ao quíntuplo (caso do concerto de música
clássica) entre as pessoas de pouca instrução ou não diplomadas
e os franceses com muita diplomação. Citemos três exemplos: a
dança, o teatro e o espetáculo de rua. Enquanto três pessoas sem
curso superior a cada 100 dizem ter visto um espetáculo de dan-
ça clássica ou contemporânea nos últimos 12 meses, a proporção
é de 21% nos mais diplomados (isto é, BAC4 mais 4, no mínimo).
No caso do teatro, as taxas são respectivamente de 9% e de 47%
(apenas 47%, diga-se de passagem). No caso do espetáculo de
rua, as taxas são de 21% e de 53%, embora pudéssemos esperar
que a gratuidade desses espetáculos e a igualdade de princípio
dos passantes diante dos eventos que ocorrem no espaço públi-
co reduziriam ou mesmo anulariam os desníveis. O tamanho da
cidade de residência exerce uma influência menor do que a do
nível de instrução, se excetuarmos o caso de Paris, onde as taxas
de frequentação são geralmente três, quatro ou cinco vezes supe-
riores àquelas observadas em outras cidades. Um exemplo: 56%
dos parisienses vão pelo menos uma vez por ano ao teatro, ante
apenas 12% das pessoas que vivem em cidades de menos de 20
mil habitantes e 18% das que vivem em cidades maiores. Quanto
aos efeitos da localização geográfica, eles continuam difíceis de es-
timar à luz da pesquisa sobre as práticas culturais dos franceses, em
razão da fraqueza dos efetivos da amostragem nacional, que foram
subdivididos em 22 regiões.
Espetáculo A Mulher Caixa, Cia
Rosa Vermelha de Teatro, projeto
Domingo da Criança, 2003.
Foto: Rubens Chiri

.69
Observemos também que as taxas de frequentação, gênero por
gênero, categoria social por categoria social, evoluíram pouco des-
de que se começaram a realizar na França os estudos sobre as prá-
ticas culturais. As variações não ultrapassam 2% ou 3%, para mais
ou para menos, de uma pesquisa à outra. Observamos esse mesmo
fenômeno nos outros países em que se fazem tais pesquisas, o que
permite supor que a frequentação aos espetáculos, inicialmente
regida por fatores estruturais, é ligeiramente submetida à conjun-
tura, isto é, a parâmetros não diretamente ligados à posição social
dos espectadores, como os fatores climáticos ou políticos (como a
baixa da frequentação durante a Guerra do Golfo, por exemplo) ou
ligados à oferta (como a presença em cartaz de espetáculos midi-
áticos como as produções de Robert Hossein ou certas comédias

.70
Foto: Humberto Pimentel

musicais). Em todo caso, convém não esquecer que 1% da popu-


lação francesa adulta representa 500 mil pessoas. A dança teria,
assim, 1 milhão de espectadores em dez anos; o circo, entre 1,5
milhão e 2 milhões de espectadores.

Há outra lição capital a ser extraída da observação macroscópica:


a maioria dos espectadores de todos os gêneros, para não dizer
a quase totalidade, tem uma frequentação ocasional. É bem ver-
dade que não existe fronteira objetiva (nem acordo social acerca
dela) que permita separar claramente uma frequentação ocasional
de outra regular. Além disso, duas noções distintas, a intensidade
(apreciada pelo número de saídas) e a regularidade (medida por
um ritmo), se conjugam na definição do hábito ou da fidelidade.

.71
De resto, o que pode nos parecer ocasional no caso do cinema
(como uma frequentação de quatro saídas por ano) nos parecerá
regular no caso do teatro, ou mesmo intenso no caso da dança.
Deixando de lado tais considerações, percebemos que a maioria
dos espectadores de determinado gênero não vê mais do que um
espetáculo desse gênero por ano. Seja qual for a definição estatís-
tica dada à frequentação ocasional (isto é, ir uma ou duas vezes), o
número de espectadores ocasionais é sempre claramente superior
ao dos “não ocasionais”. Se, inversamente, definimos a frequenta-
ção regular por um número de saídas superior a três, então ela se
aplica a uma ínfima minoria de espectadores.

Sabe-se que a maioria das instituições do espetáculo, para não


dizer a quase totalidade daquelas que se encontram na região, e
algumas raras instituições parisienses têm um público formado
sobretudo por assinantes ou membros. Como a frequentação das
artes do espetáculo é muito ocasional, isso nos permite deduzir
que a rede de teatros e orquestras públicas constitui não a norma,
mas a exceção.

De resto, a frequentação ocasional de um gênero particular está


muito pouco vinculada à frequentação ocasional ou regular de
outro gênero. Em geral, pode-se, portanto, formular de modo sim-
ples: a enorme maioria dos franceses que “saem” ao longo do ano
vai ver um só espetáculo de um só gênero.

O inverso também ocorre? Aqueles que saem muito diversificam


seus programas culturais? A resposta é complexa. Cumpre lem-
brar de início uma evidência: como só 4% dos franceses vão ver
Concerto da Orquestra
Sinfônica do Estado de São Paulo uma ópera (ou uma opereta) ao longo do ano, aqueles que “além
durante inauguração da Sala São
Paulo, SP, 1999. Foto: Evelson de
disso” vão ao teatro ou a um espetáculo de dança não poderiam
Freitas/Folhapress representar, por definição, mais de 4% da população. Na verdade,

.72
se construímos variáveis com “ter visto um espetáculo de deter-
minado gênero e um de outro gênero, e de outro ainda”, e cal-
cularmos o número de franceses que satisfazem essas condições,
obteremos sempre, ao combinar três gêneros, sejam eles quais
forem, uma ínfima minoria de pessoas, sempre inferior a 5% e mais
frequentemente próxima de 1%. Os que viram todos os tipos de
espetáculo nos últimos 12 meses representam menos de 0,5% da
amostragem. Os que viram uma peça de teatro e um espetáculo
de dança representam 4% dos franceses. Se acrescentarmos o cri-
tério, por exemplo, de ter visto um concerto de música clássica,
essa proporção cai para 2%. Se combinarmos teatro, dança e con-
certo de rock, ela cai para 1%.

Os efetivos desses diferentes grupos de “acumuladores” são tão


pequenos na amostragem da pesquisa sobre as práticas culturais
que não se pode subdividi-los segundo a variável da intensidade
da prática, por exemplo, ou segundo as variáveis sociodemográfi-
cas usuais. No entanto, à luz de outros parâmetros pode-se mos-
trar que o acúmulo dos programas culturais se vincula positiva-
mente a uma forte frequência das saídas em pelo menos um dos
gêneros assim “acumulados”.

Resumindo, podemos afirmar que a maioria dos franceses que,


ao longo do ano, vão amiúde (isto é, pelo menos três vezes) a
espetáculos costuma frequentar um só gênero. Quanto à minoria,
deixemos claro o sentido das palavras: sabemos que 1% dos fran-
ceses adultos correspondem a cerca de 500 mil pessoas. Nesse
contingente, há um grupo de hiperacumuladores, cujo número
infelizmente não se pode precisar, que têm como dupla caracte-
rística sair muito e ver espetáculos de gêneros variados.

Desse modo, se mudamos a perspectiva, estudando o público de


um gênero ou de um espaço particulares, percebemos duas coisas:

1) as pessoas que dizem frequentar um gênero de espetáculo fre-


quentam na realidade um subgênero daquele gênero (por exem-
plo, a dança clássica, e não todos os gêneros de dança);

2) quando há acúmulo, ele não concerne a todos os gêneros de


espetáculo, mas a diversas constelações de subgêneros.

Quanto à frequência ocasional, ela aparece também nessas pes-


quisas mais precisas como bem merecedora de sua qualificação:
os espectadores dizem ter aproveitado a ocasião que se apresen-
tou para assistir a um espetáculo. Eles raramente justificam sua
frequentação pelo amor à arte (amor à dança, gosto pelo teatro
em geral etc.). Na verdade, essa frequentação aparentemente for-
tuita obedece a regras, pois não se aproveita qualquer ocasião.
Correndo o risco de simplificar, podemos dizer que os espetácu-
los vistos pelos espectadores ocasionais têm como traço comum
o fato de serem fortemente midiatizados. O termo “ocasionais”
quer dizer que o espectador não escolhe um espetáculo numa
lista analisada escrupulosamente. Um estudo realizado em 1993

.73
junto a jovens de 12 a 25 anos mostra que a “falta de informação”
que eles invocam para explicar sua baixa frequentação é, na rea-
lidade, um excesso de informação, ou uma falta de hierarquia, de
pertinência, de qualidade, de foco na informação pletórica que
lhes chega.

A grande lição das pesquisas de “segundo nível”, confirmadas pe-


las pesquisas ainda mais detalhadas, é que as categorias artísticas
ou político-administrativas usuais, como teatro, dança, música,
circo, não correspondem às categorias socialmente mobilizadas
pelos espectadores para decifrar a informação e escolher ver ou
não esta ou aquela peça. Tomemos o exemplo da dança: a pes-
quisa que lhe é especificamente consagrada mostra que existe
uma dúzia de públicos estanques, correspondendo a uma dúzia
de gêneros de dança; tudo distingue, por exemplo, o público da
dança contemporânea do público da dança flamenca; ou dos es-
petáculos de revista, a idade, o sexo, a categoria socioprofissional
etc. Cada um dos públicos inclui certamente na mesma categoria
de “dança” os espetáculos que vai ver, mas esses públicos não se
recobrem mais do que, geralmente, convivem os intérpretes ou
os autores desses diferentes gêneros. Além disso, essas pesquisas
revelam que há mais semelhança entre a frequência (e os públi-
cos) de determinado gênero de dança e a de determinado gêne-
ro de teatro do que entre a frequência de determinado gênero
de dança e a de todos os outros gêneros de dança. Isso significa
que as fronteiras pertinentes não passam, entre os espectadores,
pelas palavras usuais “dança” e “teatro” ou, digamos, só por elas,
mas por outras, como “clássica”, “contemporânea”, “fácil” e muitas
outras que ainda ignoramos, e mais geralmente por outros sig-
nos, que podem ser tanto visuais como sonoros, e remetem cada
um a sistemas distintos de valores, a pertenças, a diferentes mo-
dos de distinção, no sentido que Bourdieu dá a tal termo. Mais
precisamente ainda, devemos supor que o espectador decodifi-
ca a informação que lhe chega sobre um espetáculo com a aju-
da de uma grade de palavras ou de imagens-chave, socialmente
pertinente para ele.

Os estudos sobre os públicos de uma obra específica, como os


realizados pelo Parque de La Villette, mostram que essas palavras,
ou constelações de palavras, são muito mais variadas do que
aquelas com as quais os produtores (criadores, autores) dos espe-
táculos costumam descrever uma obra. Daí o fato de as questões
habitualmente endereçadas aos espectadores (e que os entre-
vistados interessados costumam responder) sobre seu interesse
relativo pelo título de uma obra; pelo nome de um diretor, de um
coreógrafo, de um compositor, de uma orquestra ou de um re-
gente; pelo gênero de espetáculo; pelo nome dos intérpretes etc.
apreenderem mal os critérios reais de escolha e os motivos de sa-
tisfação dos espectadores. Não que esses elementos não contem,
não que sua hierarquia seja mal avaliada, não que sua variação de
um grupo social a outro não seja significativa. Em todo caso, não
há dúvida de que os mecanismos de escolha de um espetáculo e
de que os modos de circulação “boca a boca”, tão importantes no

.74
caso das artes do espetáculo, são muito mais complexos do que
as pesquisas geralmente permitem supor.

Um estudo aprofundado realizado junto aos assinantes do Tea-


tro Nacional de la Roche sur Yon calculou a probabilidade de fre-
quência a determinado espetáculo em função da frequentação
de cada um dos outros. A ideia é medir de algum modo o grau
de curiosidade dos públicos, ou de fechamento de cada um dos
gêneros. Tal estudo sugere que um espectador tende mais a se
arriscar a descobrir uma peça que ele não conhece quando ela
se aproxima em algum aspecto, pelo menos, daquilo que ele co-
nhece; o que pode ser, aliás, a confiança global que ele tem na
qualidade da programação de um espaço.

Dado o peso demográfico relativamente pequeno das pessoas que


saem muito, e que sabemos, portanto, provenientes das camadas
mais ricas da população, a estrutura dos públicos é mais heterogê-
nea do que se poderia pensar, tanto em termos sociodemográficos
quanto em termos de familiaridade com o gênero ou o espaço con-
siderado. É bem verdade que as pessoas com curso superior costu-
mam representar um terço do público de uma obra ou de uma sala
(como se calculou com precisão para os teatros nacionais), embora
não passem de 10% da população francesa, mas é raro que os diplo-
mados constituam a maioria de um público. Quanto aos espectado-
res ocasionais, sua importância numérica os torna, estatisticamen-
te falando, mais frequentemente majoritários que minoritários em
determinado público – o que reforça a estranheza [da composição]
social dos públicos de assinantes.

Se, portanto, a estrutura sociodemográfica de um público não cor-


responde muito à da população inteira (com a notável exceção do
público do circo tradicional), ela também não é tão homogênea
quanto um parisiense ou um assinante de teatro nacional gosta-
riam de acreditar. Seja como for, a homogeneização é hoje, indubi-
tavelmente, a tendência dominante. Os estudos “micro” realizados
pelo Parque de La Villette sobre o público do novo circo são elo-
quentes a esse respeito: mesmo no seio de um gênero tão delimi-
tado, e ainda que consideremos seu público bastante homogêneo,
suas diferenças são tais que cada obra atrai um público distinto.

Tal constatação não agrada muito aos militantes da transversalida-


de e da curiosidade cultural. Ela parece rebaixar as obras à catego-
ria dos produtos de consumo, os públicos à categoria de clientes
e a ação cultural à categoria de marketing. Entretanto, a atomiza-
ção dos públicos, a especialização ou a personalização crescente
das escolhas não significam que não exista mais um vínculo forte
entre as pessoas que não se cruzam no mesmo espetáculo. O apa-
rente “cada um no seu canto”, a diversidade cultural em suma, não
deveria ser apressadamente interpretada como enfraquecimento
da solidariedade social ou como desaparecimento dos grandes
valores comuns. Ela tem sua própria dinâmica, que pode, é verda-
de, resultar em exclusão, mas também contribuir positivamente
para a construção cultural coletiva.

.75
Jean-Michel Guy
Graduado pela Escola de Altos Estudos Comerciais de Paris, com
mestrado em sociologia. Pesquisador do Ministério da Cultura e da
Comunicação, junto ao Departamento de Estudos, Planejamento
e Estatística. Conduz estudos sociológicos, principalmente sobre
públicos das artes cênicas e do cinema. É professor de análise
crítica na Escola Nacional das Artes do Circo de Rosny-sous-Bois e
do Centro Nacional das Artes do Circo de Châlons-en-Champagne.
E-mail: jean-michel.guy@culture.gouv.fr

Notas
1
Estabelecimento Público do Parque e da Grande Halle da Villette.

2
Departamento dos Estudos, da Prospectiva e das Estatísticas.

3
Os resultados dessa pesquisa de 2008 estão disponíveis em: http://pratiquescultu-
relles.culture.gouv.fr

4
BAC: abreviatura de baccaleauréat, titulação referente ao fim do ensino médio [nota
do tradutor].

.76
O Corpo na Arte Contemporânea Brasileira, performance de Marco Paulo Rolla, São Paulo, SP, 2005.
Foto: Cia de Foto/Itaú Cultural

A ARTE CONTEMPORÂNEA
EXPOSTA ÀS REJEIÇÕES:
CONTRIBUIÇÃO A UMA
SOCIOLOGIA DOS VALORES
Nathalie Heinich
Grupo de Sociologia Política e Moral

É próprio da arte contemporânea de vanguarda, no campo das ar-


tes plásticas, praticar uma desconstrução sistemática dos quadros
mentais que delimitam tradicionalmente as fronteiras da arte. Assim
se evidenciam, pela sua negação, as estruturas cognitivas do senso
comum em matéria de identificação dos objetos passíveis de ava-
liação estética.1 E são os processos de avaliação que se explicitam
então, na tensão entre os registros de valor pertinentes no universo
artístico e os registros mais heterônomos, que tendem a solicitar os
não especialistas, desde que o objeto escape à sua concepção do
que se refere ao mundo da arte.2

A arte contemporânea constitui assim um terreno privilegiado para


observarmos a articulação entre as fronteiras cognitivas, postas em
jogo pelo alargamento dos limites tradicionais da arte, e os registros
de valor mais ou menos autônomos ou heterônomos, isto é, mais ou
menos próprios ao mundo da arte ou ao mundo ordinário. Assim, as

.77
situações de desacordo sobre a natureza dos objetos deixam paten-
te a pluralidade dos registros de avaliação de que dispõem os atores
para construir e justificar uma opinião sobre o valor dos objetos sub-
metidos à sua apreciação.

A pluralidade dos valores já tinha sido afirmada por Durkheim


em 1911:

Existem diferentes tipos de valor. Uma coisa é o valor econô-


mico, outra coisa são os valores morais, religiosos, estéticos,
especulativos. As tentativas seguidamente feitas no sentido de
reduzir umas às outras as ideias do bem, do belo, do verdadeiro
e do útil foram sempre vãs.3

A pluralidade também estava no coração da teoria dos “quadros”


de Erving Goffman, no plano formal dos modos de relação com a
experiência;4 ela reaparece em outros planos nas “esferas de justi-
ça” de Michael Walzer, assim como nas “economias de grandeza” de
Luc Boltanski e Laurent Thévenot.5 Tentaremos explorá-la aqui, de
maneira essencialmente empírica, a partir dos problemas de qua-
lificação postos pela arte contemporânea, passando do polo mais
“autônomo” ao polo mais “heterônomo”6.

Registros de valor usados no mundo da arte

A desqualificação pela ausência de beleza deveria, à primeira vis-


ta, ser um lugar comum em matéria artística, e encontramos de
fato afirmações como “acho isso feio”, “é feio”, “não é bonito”, indi-
cando um critério de julgamento estético. Todavia, encontramos
mais frequentemente uma descrição subjetiva dos efeitos produ-
zidos pela obra: “nenhuma emoção”, “isso não me toca”, “achei cha-
to”. Aqui, o registro “estético”, próprio para qualificar o valor objeti-
vo de uma criação quanto à sua beleza, sua harmonia, seu gosto,
conjuga-se com um registro que poderíamos chamar de “estési-
co”, próprio para qualificar o efeito subjetivo produzido sobre os
sentidos – prazer ou desprazer visual, auditivo, gustativo, olfativo,
sensitivo ou erótico. Esse deslocamento do objetivo ao subjetivo,
que acompanha o deslocamento do estético ao estésico, corres-
ponde talvez a uma estratégia de minimização do próprio jul-
gamento, quando o sujeito se crê insuficientemente qualificado
para produzir uma avaliação “objetiva”, isto é, aplicada à obra e ao
mesmo tempo generalizável para o conjunto dos espectadores.
Ao contrário, um crítico de arte deve poder mobilizar o registro
estético sem correr o risco de desqualificar sua competência.7

Assim, é menos surpreendente constatar que tais juízos estéticos
em nome da beleza aparecem muito pouco no corpus de nossa
pesquisa e, como notava um animador cultural, frequentemente
na boca das crianças. Com efeito, os não especialistas, sobretu-
do diante dessas obras pouco familiares que constituem a arte
contemporânea, têm consciência suficiente de sua pouca com-
petência na matéria, para evitar se pronunciar publicamente so-
bre ela e para, quando o fazem, recorrer de preferência ao modo

.78
subjetivo do efeito sensorial. A essa primeira razão da paradoxal
raridade das desqualificações em termos de beleza acrescenta-se
uma segunda, ligada ao método adotado: com efeito, o acesso às
reações espontâneas é extremamente dependente de seu caráter
público uma rejeição sendo tanto mais perceptível quanto menos
limitada ao foro íntimo ou ao domínio privado da troca de opini-
ões entre amigos. Ora, essa barreira metodológica seleciona tudo
aquilo que, nos juízos sobre a arte, advém não apenas do gosto
pessoal (para cuja expressão a esfera privada basta), mas também

Exposição A Subversão dos Meios, São Paulo, SP, 2003. Foto: Rubens Chiri/Itaú Cultural

.79
de uma ética geral, de uma exigência política ou cívica capaz de
justificar um posicionamento público. Quando valores gerais ou
objetiváveis estão em jogo, como a justiça, a moral, o interesse
nacional, é normal que os cidadãos exprimam publicamente sua
indignação; porém, quando se trata de valores percebidos como
subjetivos que escapam à conceituação, como o sentimento da
beleza para os não especialistas, a única expressão possível é de
ordem igualmente subjetiva, do tipo “eu não gosto”, ou privada,
o “não é bonito” se exprimindo então numa interação imediata.
Mas é difícil imaginar uma petição para denunciar a feiura de uma
obra de arte: é preciso que outros valores gerais estejam em jogo,
como a integridade do patrimônio, a conformidade dos procedi-
mentos legais ou a justiça em relação aos outros artistas.8 O mé-
todo escolhido leva, portanto, a privilegiar essas situações para-
doxais em que um fenômeno artístico, supostamente situado na
esfera privada “dos gostos e das cores”, se vê transformado pela
rejeição em problema de sociedade, investido de valores morais,
políticos, cívicos etc.

Existe, enfim, uma terceira razão para tal escassez dos argumentos
estéticos: para que o critério de beleza seja aplicado a uma obra
de arte, é preciso pelo menos que esta seja considerada como tal,
isto é, que ela apresente as características canônicas de uma pin-
tura ou de uma escultura. Mas desde que estas estejam ausentes,
como ocorre amiúde na arte contemporânea, o espectador tem
apenas duas soluções: 1) aceitar redefinir as fronteiras do que é
ou não artístico, alargando-as sob o risco de se deixar enganar
ao admirar ou adquirir objetos sem valor, e de negligenciar, ao
mesmo tempo, o trabalho dos autênticos artistas; 2) recusar o que
transgride as fronteiras constituídas pela tradição, sob o risco de
ignorar as tentativas que a posteridade reconhecerá como autên-
ticas e mesmo geniais (caso típico do “efeito Van Gogh”). A ques-
tão pertinente deixa então de ser a questão da beleza do objeto e
passa a ser a de sua natureza, artística ou não.

Diante do vazio criado pelo descompasso entre as expectativas


estéticas e a proposta artística, ou, no mínimo, pela dificuldade
de harmonizá-los, outro registro, igualmente familiar ao mun-
do da arte, é solicitado pelos não especialistas: o registro “her-
menêutico”, que implica a exigência de sentido, de significação,
informando críticas do tipo “isso não quer dizer nada”, “é vazio”,
“gostaria que alguém me explicasse o sentido” etc. Dele derivam
todas as denúncias de absurdo, de falta de sentido (quando o
sentimento de vazio é aplicado ao próprio objeto) ou, ainda, de
esoterismo, de obscuridade (quando imputados a uma vontade
de excluir os leigos, associada ao “esnobismo” ou ao “intelectua-
lismo abstruso” dos artistas e dos especialistas). Próximo daquilo
que Jon Elster chama de “obsessão do sentido”,9 e repousando
sobre uma criação de enigma,10 esse registro é particularmen-
te importante para compreender as implicações de uma arte
contemporânea que desconstrói sistematicamente os critérios
tradicionais da beleza e desloca, assim, a questão estética para a
questão do sentido.

.80
Essa denúncia apoiada na exigência hermenêutica de uma significa-
ção tão universal quanto possível, acessível, portanto, ao maior nú-
mero de pessoas, pode visar não só à obra como também ao seu au-
tor. Nesse último caso, trata-se então de usar o critério da reputação,
constitutivamente ambivalente, pois a notoriedade pode ser cono-
tada positivamente como honra ou negativamente como glória vã
ou celebridade indevida: seja a qualidade da reputação (ser bem
falado), seja sua quantidade (ser muito falado). Além disso, esse cri-
tério de notoriedade pode remeter tanto ao excesso de reputação,
quando se suspeita que o artista só age para obter fama, aparecer
na mídia e ser comentado, quanto à falta de reputação, quando ele
é desqualificado como esotérico, pouco conhecido ou reconhecido
apenas por uma pequena seita de adeptos, incapaz de existir para
além do círculo de seus próximos. Nesse último caso, falta de fama, o
julgamento é enunciado a partir de um “regime de comunidade”, em
que é o grande número, o coletivo, o geral que determina a grande-
za; no primeiro caso, de excesso de fama, o julgamento é enuncia-
do a partir de um “regime de singularidade”, em que a grandeza se
mede pela qualidade de um pequeno grupo de admiradores qua-
lificados, pela individualidade de uma personalidade indiferente à
opinião alheia, pela particularidade de uma expressão fora de série,
incomum, sem paralelo.

Entre a opinião como critério de valor e a dependência para com


a opinião como índice de pequenez, essa ambivalência do registro
“reputacional”, ou do “mundo da fama” (para retomar aqui a termino-
logia de Boltanski e Thévenot), explica-se pela diferença dos regimes
axiológicos ou, se preferirmos, das “éticas” adotadas para se orientar
no mundo dos valores: a “ética da raridade” sendo aquela que os este-
tas ou os especialistas da arte tendem a adotar espontaneamente em
matéria artística, enquanto a “ética da conformidade” provém mais
dos não especialistas e concerne mais ao “mundo ordinário” (se pu-
dermos suspender provisoriamente uma qualificação mais fina desse
último).11 Notemos enfim que as duas éticas, embora logicamente
contraditórias, não são de modo algum incompatíveis na prática:
uma mesma pessoa pode ao mesmo tempo acusar um artista de só
agir “para consumo externo” para a sua própria publicidade, para que
se fale dele (desqualificação por uma preocupação com a reputação
contrária a uma autêntica singularidade), e sustentar sua ausência de
valor pelo fato de ele ser totalmente desconhecido (desqualificação
pela falta de reputação junto a uma comunidade mais ampla).

O registro “reputacional” visa, como já dissemos, à pessoa do artista


mais do que à sua obra. Essa duplicação do objeto do juízo em ma-
téria artística – entre a obra e a pessoa – está também no coração de
uma noção central para o nosso domínio e, mais geralmente, para
toda qualificação em regime de singularidade: a noção de autentici-
dade. Esta pode se referir ou ao próprio objeto, isto é, à obra, quando
se pergunta qual é o seu vínculo com seu autor ou qual é a sua ori-
gem presumida (é aí que intervêm as diferentes técnicas de auten-
ticação, permitindo distinguir uma obra falsa de outra devidamente
identificada, um original de uma cópia), ou à pessoa de seu criador,
quando se pergunta qual é o seu estatuto de autor.12

.81
Aqui intervêm, em matéria de arte contemporânea, diferentes pro-
cedimentos de desqualificação, frequentemente mais pertinentes
que a questão da autenticação das obras, pois não é a sua origem
que os espectadores leigos questionam, mas sim as motivações do
pretenso artista. Ele busca a fama, mais do que a expressão de suas
próprias emoções, ou a beleza das coisas? Então, como vimos, ele é
inautêntico por vaidade, falta de humildade para consigo mesmo
ou para com a natureza. Ele se move pela busca do lucro? Então
ele é inautêntico por falta de desprendimento. Ele imita, ou mesmo
plagia, seus pares ou seus colegas mais velhos ao invés de inventar?
Então ele é inautêntico por falta de originalidade e de profundidade.
Ele tende a se repetir, a aplicar as mesmas receitas, a ceder à rotina?
Rumos Artes Visuais, Caixa de Som,
de Laila Terra, 2009. Foto: Edouard
Fraipont/Itaú Cultural

.82
Então ele é inautêntico por falta de inspiração. Seu objetivo é zom-
bar da arte, enganar os espectadores, vender gato por lebre e fazer
passar meras brincadeiras por criações dignas de admiração? Então
ele é inautêntico por falta de sinceridade, por cinismo, por irreve-
rência para com a arte. Enfim, ele é louco, psicopata, delirante ou
profundamente neurótico? Então ele é inautêntico por carecer de
uma razão que indicaria sua pertença à comunidade humana – pelo
menos enquanto sua loucura não tenha se transformado em sinal
ou garantia de inspiração criadora, do gênio fora do comum, segun-
do a ambivalência do singular.13

Humildade, desprendimento, originalidade, interioridade, inspira-


ção, sinceridade, seriedade, racionalidade: tais são os principais va-
lores que atestam a autenticidade de um artista. Se a originalidade
e a inspiração são mais privilegiadas no mundo da arte, pelos espe-
cialistas e pelos próprios artistas, os dois últimos critérios – seriedade
e razão, ou ainda sinceridade e racionalidade do “pretenso artista”
(as aspas se impõem aqui) – são frequentemente evocados pelos
leigos, que invocam de bom grado a farsa, ou mesmo a loucura, para
desqualificar propostas às quais nem sequer atribuem a seriedade
que permitiria perguntar sobre sua originalidade ou sua inspiração:
elas não passam então de piadas ou de rabiscos bons apenas para o
lixo ou os arquivos de um psiquiatra.

.83
Estamos aqui no cruzamento do registro “estético” – pois o pro-
blema posto é o do pertencimento ao mundo da arte – com o de
um registro que proponho chamar de “purificatório”, pois tal per-
tencimento não é mais justificado pelo sentimento da beleza da
obra, mas pela necessidade de classificar, de “separar o joio do tri-
go”, de preservar a integridade da arte limpando-a de tudo o que
venha paralisá-la, desnaturá-la ou mesmo poluí-la. A noção de
autenticidade pertence ao mesmo tempo à estética, enquanto se
aplica à arte, e à defesa da integridade por assim dizer ontológica
de um objeto valorizado: vejamos o caso das inúmeras críticas
insistindo na necessidade de uma discriminação que evitaria mis-
turar o que não combina ou confundir uma coisa qualquer com
a verdadeira criação.

Esse argumento da pureza, central na discriminação entre arte e


não arte, aparece também em vários outros domínios: ele constitui
por si só um registro inteiro, comum a tudo o que visa preservar
a identidade de um ser, de um lugar, de um objeto, contra os ata-
ques, as degradações, as deformações, ou respeitar os territórios
tradicionais, as fronteiras estabelecidas – sejam elas territoriais,
temporais ou cognitivas.14 Ele possui assim uma grande plasticida-
de, uma capacidade de assumir formas muito diferentes, remeten-
do tanto à proteção quanto ao fundamentalismo, à racionalidade,
à demarcação ou à preservação: higiênica (limpo/sujo; saudável/
doentio), ecológica (poluído/não poluído), defensiva (protegido/
exposto), xenófoba (autóctone/estrangeiro), psíquica (normal/
louco), identitária (autônomo/heterônomo; específico/não espe-
cífico). E em matéria artística, é ele que permite atestar a autenti-
cidade, seja a do autor, na medida em que realmente pertença à
categoria da qual se prevalece, seja a do objeto, na medida em que
ele vem realmente do autor ao qual o atribuímos.

Quando se contesta a autenticidade do gesto artístico e, assim,


a própria pertença do objeto à categoria das obras de arte, per-
dem a vigência não só o registro estético como também a própria
exigência de avaliação: um objeto desqualificado por postular in-
devidamente o estatuto de obra de arte é excluído da ordem dos
valores, dos seres situados numa escala de mérito. E se há conflito
ou desacordo com aqueles para os quais o objeto em questão
seria de fato uma obra de arte, então o argumento incidirá não so-
bre seu valor, mas sobre sua natureza mesma: dito de outro modo,
não sobre seu estatuto axiológico, determinado por uma escala
de valores contínua, mas sobre seu estatuto ontológico, determi-
nado por quadros mentais, fronteiras descontínuas entre o que
deve ou não ser considerado como arte. É nesse tipo de fronteira
que trabalham inúmeras propostas da arte contemporânea.

Registros de valor próximos do mundo ordinário

Frequentemente, os que protestam contra a arte contemporânea


reagem às propostas sabendo-as movidas por uma intenção artís-
tica, mas sem chegar a avaliá-las segundo sua própria intencionali-
dade: nesses casos, os valores mais próximos do mundo ordinário

.84
é que são espontaneamente mobilizados. Reencontramos aqui
em primeiro lugar o registro que chamamos de “purificatório”, as-
sociado não mais à autenticidade artística, mas à natureza do lugar
ocupado pela obra, que deve ser respeitado em sua integridade,
preservado naquilo que lhe confere sua identidade. Esse é um ar-
gumento recorrente nas rejeições à arte contemporânea, quando
as pessoas se pronunciam não sobre o valor intrínseco da propos-
ta artística, mas sobre a congruência com o espaço que ela vem
ocupar ou com a temporalidade na qual se inscreve: “em outro lu-
gar talvez, mas não aqui”, “isto descaracteriza este lugar”, “isto não
combina com o resto da praça”, “não é do mesmo estilo” etc. É o
princípio das inúmeras desqualificações em nome da preservação
do patrimônio – das quais o caso Buren no Palais-Royal é um dos
melhores exemplos.

Esse registro purificatório se conjuga com o registro “doméstico”


quando se trata de preservar a integridade do passado ou do ter-
ritório. Cumpre notar, porém, que o “mundo doméstico”, tal como
o constroem Boltanski e Thévenot, não dá conta da dinâmica em
questão na preocupação com o patrimônio, que pode se aplicar
a entidades muito amplas, como a nação ou mesmo o planeta,
e só implica marginalmente questões de hierarquia e confian-
ça – à diferença do “mundo doméstico”. Este, em compensação,
está claramente implicado nas defesas do regionalismo, quando
a arte contemporânea é atacada por privilegiar artistas nacionais
ou mesmo internacionais em detrimento dos artistas locais. Tais
argumentos, entretanto, parecem mais facilmente invocados em
conversas privadas ou então por atores distantes do mundo da
arte; nesse mundo, a amostra de nossa pesquisa não contém mais
do que um exemplo público, com um artigo denunciando a fra-
ca representação dos autóctones nas coleções do Fonds Régional
d’Art Contemporain (Frac) Martinique.

Marginal também é o registro “funcional”, no qual se inscrevem as


queixas sobre os transtornos causados por obras ou exposições,
por exemplo, quando elas atrapalham o trânsito, apresentam um
risco para a segurança ou são percebidas como inúteis e supér-
fluas: “não se pode nem mais atravessar o hall, a construção não é
sólida e de todo modo não vemos para que isto serve”. Situado en-
tre o “mundo doméstico” do conforto, o “mundo cívico” do interes-
se geral e o “mundo industrial” da eficácia, esse registro funcional
pode se desdobrar em diferentes níveis de generalidade. Se carece
de pertinência em matéria de arte, é dele porém que decorre, no
plano jurídico, o único argumento capaz de triunfar sobre o direito
do autor: a segurança.

Em compensação, é onipresente o registro “econômico”, que per-


mite rebater a valoração sobre o critério eminentemente padrão
que é a medida monetária: “quanto custou?”, “é caro para o que é”
ou, ainda, “não compreendo como se paga a pessoas que fazem
‘uma coisa qualquer’ ou rabiscam um traço milhões e milhões com
os quais se poderiam alimentar os etíopes”, como escreveu uma
criança num livro de assinaturas de uma exposição consagrada à

.85
vanguarda nova-iorquina numa galeria de província. Tal registro
pode remeter ao “mundo industrial” segundo Boltanski e Thévenot,
quando se enfatizam a racionalização das despesas e a eficácia dos
investimentos; ao “mundo mercantil”, quando se enfatiza o lucro;
mas, sobretudo, ao “mundo cívico”, quando se trata de dinheiro pú-
blico, que deve ser gasto em conformidade com o interesse geral
ou, ao menos, com o interesse de categorias carentes de ajuda
específica – desempregados, doentes nos hospitais, velhos vulne-
ráveis, grevistas.

Esse registro “cívico” – para retomar a terminologia de Boltanski


e Thévenot – também é, portanto, muito presente: seja, como
vimos, na denúncia do mau uso dos fundos públicos, seja na
denúncia do desrespeito aos procedimentos democráticos em
matéria de consulta ou de encomenda pública (“mais um ami-
go de Jack Lang”, “o organismo responsável pelos monumentos
históricos não foi nem mesmo consultado”); seja ainda nas inú-
meras denúncias de elitismo, esnobismo, intelectualismo, pari-
sianismo, que excluem os leigos, as pessoas de bom senso, os
amantes da arte e da cultura, confiscando, em benefício de uma
elite ou de um bando, esse valor universal que deveria constituir
a obra de arte.

O apelo às regras, que informa frequentemente a argumentação


cívica, pode se formalizar num registro “jurídico”, do qual decor-
Rumos Artes Visuais, Cada rem todas as referências à legalidade: sejam elas simplesmente
Mudança É um Esforço de
Permanência, de Tiago Romagnani,
2008. Foto: Edouard Fraipont/
Itaú Cultural

.86
verbais (“é ilegal”) ou desdobradas em atos, quando os protestos
se traduzem em queixa formal e processo judicial. Tal situação é
rara (nem que seja porque esse registro possui um grau elevado
de tecnicidade), mas pode acontecer mais facilmente quando a
causa já é assumida por associações, como é o caso notadamen-
te com a defesa do patrimônio (caso Buren) e com a defesa dos
animais (caso Ping no Beaubourg em 1994, incidente envolvendo
uma instalação de Annette Messager na Bienal de Lyon em 1993).
É aqui, em todo caso, que as duas partes podem encontrar um
terreno comum, diferentemente dos outros registros de valor, que
só levam ao diferendo.

O sentimento de afronta à justiça tende a se formular, de modo


bem mais ordinário, no registro “ético” da indignação: seja diante
das transgressões dos valores morais (religião, decência, dignidade
da pessoa humana) desprezados pelas propostas dos artistas, seja
diante da injustiça, dos maus-tratos, da falta de consideração, dos
méritos mal recompensados ou das recompensas imerecidas, de
tudo o que é espontaneamente sentido como contrário à equi-
dade. Assim, vemos invocados em nosso universo de pesquisa os
artistas autênticos e trabalhadores, injustamente relegados pelas
instituições; os seres que sofrem (como os animais) vitimados pela
sua crueldade; e, sobretudo – é mesmo um dos lugares-comuns
mais significativos em matéria de rejeições da arte contemporânea –,
o trabalho, o talento, o savoir-faire, a competência técnica opostos
ao blefe ou à farsa daqueles que não conseguem compensar nem
mesmo sua falta de talento pela demonstração de um trabalho.
É esse o princípio subjacente a frases como “até uma criança po-
deria fazer isso”, “qualquer um poderia fazer igual”, tão frequentes
nos livros de assinaturas de tantas exposições e nos comentários
desencantados de tantos visitantes, que exprimem assim a priori-
dade que eles concedem ao mérito, atestado pela importância de
um know-how adquirido pelo trabalho, por contraste com uma
qualidade resultante de um acaso, de um capricho infantil ou tira-
da não se sabe de onde. Uma pintura pode certamente seduzir e
agradar aos olhos (a ponto de se querer pregá-la na parede, como
se faz com os desenhos das crianças), mas não a ponto de merecer
a consideração trazida pelas paredes das galerias e dos museus ou
as páginas das revistas especializadas. De fato, desde que a ima-
gem circule num circuito de qualificação propriamente artístico,
seu reconhecimento concorre então com o de outras, suscitando
a indignação para com aqueles que negligenciam injustamente
os artistas mais autênticos, ou a compaixão para com estes: duplo
movimento dos afetos correspondendo aos tópicos da “denúncia”
e do “sentimento” elencados por Luc Boltanski em sua análise do
espetáculo do sofrimento.15

Registros de valor e diferendos

Econômico, cívico, ético, jurídico, funcional, doméstico, purificató-


rio, “reputacional”, hermenêutico, estésico, estético: tais são os di-
ferentes registros de valor mobilizados, com frequência desigual,
pelas diferentes maneiras de rejeitar a arte contemporânea. A par-

.87
tir desse repertório, que revela ao mesmo tempo a diversidade dos
valores invocados e a grande coerência dos princípios sobre os
quais repousam as rejeições, vários caminhos se abrem para um
projeto explicativo. Poderíamos perguntar pelas probabilidades
da aparição e da frequência de tal ou tal registro, em função da
capacidade diferenciada dos atores a mobilizá-los segundo sua
posição no campo, sua origem social, seu habitus (para retomar
aqui as vias exploradas por Pierre Bourdieu). Poderíamos também
analisar como as diferentes situações podem favorecer tal ou qual
registro, a exemplo da oposição público/privado que, para além
de considerações propriamente estéticas, alarga consideravel-
mente a gama disponível para os atores (e reencontraríamos aqui
as preocupações contextuais caras à sociologia interacionista). Po-
deríamos também nos concentrar nas propriedades dos objetos,
em sua capacidade desigual de acionar tal ou qual registro (na via
aberta pela antropologia das ciências e das técnicas segundo Bru-
no Latour e Michel Callon).

Enfim, uma reflexão mais aprofundada sobre a pluralidade dos re-


gistros de valor, articulada com a pluralidade dos modos de jus-
tificação segundo Boltanski e Thévenot, permitiria analisar empi-
ricamente algumas questões: a da compatibilidade dos registros
entre si e, portanto, a das combinações mais ou menos prováveis
ou improváveis; a da força relativa desses registros em função dos
sujeitos, das situações e dos objetos; a do grau de competência
para manipulá-los, segundo a proximidade em relação ao senso
comum ou a um saber especializado; a das modalidades de persu-
asão mais ou menos associadas a esses registros, no eixo expres-
são/argumentação.

Contentemo-nos aqui em mostrar, no domínio que nos ocupa,


em que esse modelo de análise esclarece a especificidade da arte
contemporânea. Afinal, a pluralidade dos registros de valor ajuda
a compreender o caráter frequentemente irredutível dos dissen-
sos nessa matéria, na medida em que eles constituem o que Je-
an-François Lyotard, a propósito dos “gêneros de discurso”, define
como um “diferendo”: este seria, segundo Lyotard, mais do que
um litígio, pois “renasce mesmo das soluções dos pretensos lití-
gios. Ele joga os homens em universos desconhecidos de frases,
mesmo quando eles não sentem que algo deve ser formulado
em frases”.16 Ora, detratores e defensores da arte contemporânea
se veem no mais das vezes em situação de diferendo, pois os
registros de valor nos quais eles argumentam são heterogêne-
os, de modo que os argumentos de uns careçam, no contexto
em questão, de pertinência aos olhos dos outros. Eles têm assim
bem pouca chance não só de chegar a um acordo, como tam-
bém de se entender.

A tais desacordos fundamentais sobre os valores em jogo se acres-


centam os mal-entendidos quanto ao que é visto, nascidos do des-
compasso entre as referências mobilizadas pelos não especialistas
e pelos especialistas da arte contemporânea. Para os não iniciados,
o referente espontaneamente solicitado para perceber um objeto

.88
sem as características canônicas de uma obra de arte tende a ser o
mundo vivido, ao qual se aplicam os valores do mundo ordinário;
para os iniciados, porém, o único referente realmente pertinente
é a história da arte – e uma história da arte muito especializada,
que ultrapassa largamente a cultura escolar. Assim, se os leigos
têm clara dificuldade para “compreender” a arte contemporânea,
os iniciados não estão mais bem equipados para “compreender” a
incompreensão dos leigos.

Contrariamente, portanto, ao que poderia ocorrer nos salões de


pintura do século XIX com os detratores da pintura moderna, não
se trata mais de um problema de gosto, provocando litígios en-
tre participantes de um mesmo paradigma estético, mas de um
problema de categorias cognitivas ou de bases interpretativas,
provocando diferendos entre categorias de públicos agora dis-
sociadas e heterogêneas. Não se trata mais de saber se o que
vemos é bonito ou feio, se o artista tem ou não talento, se pinta
bem ou não – mas de saber se o que vemos é arte ou não, se seu
autor é artista ou não, e acessoriamente quais são os critérios
pertinentes em matéria de arte. A questão da beleza dá lugar à
questão da autenticidade artística, que não se reduz mais a uma
querela de atribuição (de qual mão é esta obra?), mas se torna,
em âmbito geral, uma discussão sobre as fronteiras da arte ou
mesmo sobre os valores que devemos defender quando a obra
põe em jogo a transgressão.

Ora, a questão nunca se encerra, ela é reposta a cada inovação, a


cada passo suplementar dado pelos artistas contemporâneos na
desconstrução dos valores estéticos tradicionais. E não há mais,
como nos salões do século XIX, o clã dos “antigos” contra o dos
“modernos”, os partidários da academia contra os da vanguarda.17
De resto, nem há mais salões: somente lugares dispersos, cada
vez mais discretos, exceto quando a encomenda pública ou os
praticantes da land-art põem a arte na rua, diante dos leigos. As-
sim, não é só o consenso que cai por terra (como no caso do aca-
demismo), mas também o próprio dissenso, de modo que não
haja uma rejeição da arte contemporânea, mas estratos de rejei-
ção: pessoas que aceitam isto mas rejeitam aquilo, que se acos-
tumaram com o cubismo mas recuam diante da não figuração,
ou que militam pela arte abstrata mas entregam os pontos diante
de Beuys, ou que adoram Christo mas não compreendem o que
os outros veem em Buren... O analista deve refazer a cada vez o
trabalho, distinguindo o que se defende e o que é rejeitado. Isso
não significa o fim de toda constância de uma rejeição a outra, de
toda margem para a generalização e portanto para a teoria, mas
que as constantes não se distribuem mais entre detratores de um
lado e partidários de outro. As linhas de clivagem se deslocaram,
segundo uma configuração axiológica triplamente desenhada
pela natureza da obra, pelas características da pessoa e pelas pro-
priedades da situação.

A essas diferenças estruturais entre modernidade e contempo-


raneidade se acrescenta uma transformação radical do papel do

.89
Estado, notadamente a partir de 1981, na gestão de Jack Lang à
frente do Ministério da Cultura.18 O financiamento sistemático da
arte contemporânea de vanguarda pelo Estado contribuiu para-
doxalmente para enrijecer as oposições a ela, acumulando a re-
jeição da vanguarda com a do poder: dois espantalhos opostos,
no entanto, pois um resulta de uma sensibilidade de direita e o
outro de uma sensibilidade de esquerda. Em vez de estar, como
antes, do lado da marginalidade, a arte de vanguarda tende a
se ver, ao menos no imaginário das pessoas, do lado do poder.
Assim, as posturas de oposição, refratárias às instituições e aos
espaços de poder, puderam se constituir contra essa arte, que
já se constituíra, porém, na oposição às instituições artísticas:
é a denúncia da arte contemporânea como novo academismo,
como arte oficial. Esse fenômeno de reconhecimento antecipa-
do da vanguarda pelas autoridades privou-a de sua dimensão
anti-institucional, permitindo assim a acumulação da rejeição
tradicionalista do vanguardismo com a rejeição progressista dos
poderes constituídos.

No fim das contas, é como se a ajuda institucional à arte con-


temporânea instaurasse uma espécie de “paradoxo permissivo”,
que permite aos artistas escapar às normas ao normalizar sua
transgressão. Assim como os pais que dizem aos filhos “Não se-
jam tão obedientes!” praticam uma permissividade em forma de
double-bind, assim também os poderes públicos, construindo a
aceitabilidade das propostas artísticas as mais singulares pelo
encorajamento da inaceitabilidade, parecem dizer “Artistas, se-
jam inaceitáveis!”. Está aí toda a estranheza deste “jogo de mãos
superpostas”19, em que as instituições culturais parecem apostar
cada vez mais alto nas transgressões das fronteiras mentais (ou
mesmo materiais, quando se trata das paredes do museu) prati-
cadas pelos artistas, reintegrando-as no espaço dos possíveis tão
logo elas se manifestam (quando não antes, ao subvencioná-las);
e em que os não especialistas reagem a esses atentados aos va-
lores que lhes são caros mobilizando todos os recursos axiológi-
cos que lhes permitam justificar sua indignação – nem sempre
percebendo que os registros assim mobilizados se arriscam, dada
sua heteronomia em relação ao mundo artístico, a reforçar as con-
vicções dos partidários da arte contemporânea, ao patentear a
incompetência dos seus opositores. Assim, cada expressão dos
desacordos, em vez de contribuir para uma possível solução de
compromisso, agrava o diferendo.

.90
Nathalie Heinich
Socióloga e diretora de pesquisas junto ao Centro Nacional de Pes-
quisa Científica (CNRS). Suas pesquisas tratam do estatuto do artista
e da noção de autor, da arte contemporânea, de questões de iden-
tidade e da história da sociologia. É autora de diversos artigos em
revistas científicas e culturais.
E-mail: heinich@ehess.fr

Notas
1
Desenvolvi esse argumento em N. Heinich. La partie de main-chaude de l’art
contemporain. In: Art et contemporanéité. Bruxelas: La Lettre Volée, 1992. O presente
artigo sintetiza algumas das conclusões de uma pesquisa/enquete realizada para a
Delegação das Artes Plásticas do Ministério da Cultura: Heinich, N. Les rejets de l’art
contemporain, 1995.

2
Sobre a noção de registros valorativos, cf. Heinich, N. L’esthétique contre l’éthique, ou
l’impossible arbitrage: de la tauromachie considérée comme un combat de registres.
Espaces et Sociétés, Esthétique et territoire, n. 69, 2, 1992; Esthétique, symbolique et sensi-
bilité: de la cruauté considérée comme un des Beaux-Arts. Agone, n. 13, 1995. Optei pelo
termo ‘‘registro’’ em detrimento de ‘‘tópico’’ (retórico demais) usado na análise do discurso,
e de ‘‘attitude’’ (comportamental demais) usado em psicossociologia.

3
DURKHEIM, É. Jugements de valeur et jugements de réalité, 1911. In: Sociologie et philo-
sophie. PUF, 1967, p. 95.

4
Cf. GOFFMAN, E. 1974. Les cadres de l’expérience. Paris: Minuit, 1991; HEINICH, N. Pour intro-
duire à la cadre-analyse. Critique, n. 535, dez. 1991.

5
Cf. WALZER, M. 1983. Spheres of justice. A defence of pluralism and equality. Oxford: Bla-
ckwell, 1993. BOLTANSKI, L.; THÉVENOT, L. De la justification. Les économies de la grandeur.
Paris: Gallimard, 1991.

6
A noção de “autonomia” é tomada de Pierre Bourdieu: cf. Les règles de l’art. genèse et
structure du champ littéraire. Paris: Le Seuil, 1992. Esse repertório de registros tem como
objetivo considerar a heterogeneidade das estratégias de avaliação em situação, tais
como as observamos em corpus exaustivos, não expurgados, não reconstruídos a partir
de um modelo de análise. Ele não se situa, portanto, em um mesmo plano que a mode-

.91
lização proposta por Boltanski e Thévenot, embora possa se articular com ela: trata-se aqui
simplesmente de propor instrumentos mais finos para a análise empírica, permitindo se-
guir de perto os processos argumentativos (cf. HEINICH, N. Les colonnes de Buren au Pa-
lais-Royal: ethnographie d’une affaire. In: Ethnologie Française, 1995, n. 4). É especialmente
a exploração do “mundo inspirado” (para retomar a terminologia deles) que parece exigir,
diante do material empírico, uma diferenciação dos registros de valor mobilizados em
matéria de avaliação artística: a distinção entre objetos e pessoas, o tipo de generalidade
visada ou, ainda, a grandeza do particular são de fato problemas específicos e recorrentes
em “regime de singularidade”, o qual necessita de um tratamento diferente do “regime de
comunidade” ao qual obedecem as formas clássicas de construção de uma grandeza pela
generalidade (cf. HEINICH, N. La gloire de Van Gogh. Essai d’anthropologie de l’admiration.
Paris: Minuit, 1991; Façons d’etre écrivain. l’identité professionnelle en régime de singularité.
Revue Française de Sociologie, 1995, XXXVI-3, 1995).

7
Para uma análise filosófica dessa questão: SCHAEFFER, Jean-Marie. Les célibataires de
l’art. Pour une esthétique sans mythe. Paris: Gallimard, 1996.

8
Um dos únicos casos de rejeição expressa principalmente em termos estéticos foi o de
uma fonte de Bernard Pagès em La Roche-sur-Yon, quando um jornal local abriu suas colu-
nas aos leitores para que eles exprimissem sua opinião: a existência de um suporte público
encorajando de antemão uma enunciação personalizada permitiu que protestos contra a
ausência de beleza se façam ouvir no espaço público. Cf. HEINICH, N. Esthétique, déception
et mise en énigme. La Beauté contre l’art contemporain. In: Art Présence, n. 16, 1995.

9
Cf. ELSTER, J. 1983. Le laboureur et ses enfants. Deux essais sur les limites de la rationalité.
Paris: Minuit, 1986.

10
No original, “une mise-en-énigme” [nota do tradutor]. Sobre essa noção de “mise-en-
énigme”, cf. HEINICH, N. La gloire de Van Gogh, op. cit.; Esthétique, déception et mise-en-
énigme”, op. cit.

11
Desenvolvi essa oposição em N. Heinich, La gloire de Van Gogh, op. cit.

12
Cf. HEINICH, N. Les objets-personnes: fétiches, reliques et oeuvres d’art, Sociologie de
l’art, n. 6, 1993.

13
Sobre a ambivalência do singular, cf. HEINICH, N. La gloire de Van Gogh, op. cit.

14
Sobre as bases antropológicas da noção de pureza, cf. DOUGLAS, Mary. De la souillure,
1967. Paris: Maspéro, 1981.

Cf. BOLTANSKI, L. La souffrance à distance. Morale humanitaire, medias et politique. Paris:


15

Métailié, 1993.

16
LYOTARD, J. F. Le différend. Paris: Minuit, 1983, p. 260.

17
Embora esse maniqueísmo seja em parte uma visão do espírito, mesmo na
época dos salões. Basta pensar em Zola, partidário fervoroso de Manet, depois
adversário de Cézanne através do personagem de Lantier: era ele favorável ou
contrário à arte moderna?

18
Sobre a evolução institucional das belas-artes a partir da revolução, cf. Des beaux-arts aux
arts plastiques. Une histoire sociale de l’art. Besançon: La Manufacture, 1991. Sobre a situação
atual, cf. Raymonde Moulin. L’artiste, l’institution et le marché. Paris: Flammarion, 1992. Sobre
a lei de Baumol e o agravamento dos desequilíbrios entre oferta e demanda pelas subven-
ções públicas, cf. Pierre-Michel Menger. Le paradoxe du musicien. Le compositeur, le mélo-
mane et l’Etat dans la société contemporaine. Paris: Flammarion, 1983. Sobre as instâncias de
decisão, cf. Philippe Urfalino. Politiques culturelles: mécénat caché et académies invisibles. In:
L’Année Sociologique, vol. 89, 1989. Sobre o papel dos Frac e a evolução de sua política desde
a sua criação, cf. Pierre-Alain Four, L’Etat, les Frac et le monde de l’art. In: Raison présente, n.
107, 1993.

19
No original, “jeu-de-main chaude”, nome francês da brincadeira de criança praticada
com dois ou mais participantes, que devem superpor de modo alternado as mãos
espalmadas, a mão que está em baixo da pilha vindo a cada vez cobrir a que estava
em cima [nota do tradutor].

.92
O Regresso de um Proprietário de Chácara, de Jean-Baptiste Debret. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil.
Paris: Firmin Didot Fréres, 1835, coleção Banco Itaú. Foto: Horst Merkel

A CONQUISTA DOS PÚBLICOS,


OS DESAFIOS DE UM CENTRO
CULTURAL FRANCÊS NO
EXTERIOR: O CASO DE
ALEXANDRIA, NO EGITO
Brigitte Rémer

Pois a finalidade mesma dos mitos é a de imobilizar o mundo.


Roland Barthes, L’empire des signes1

Uma filosofia da cooperação

A questão dos públicos nos centros culturais franceses no exterior


transformou-se. Ela se formulava de modo completamente diferen-
te há algumas décadas.

É no pós-guerra, em 1945, que a maioria dos centros é criada, se-


gunda geração de estabelecimentos cuja origem, bem no início do
século XX, estava nas universidades, onde suas homólogas francesas
instalavam representações.2

Isso traduzia uma política voluntarista desenvolvida pelo general de


Gaulle para compensar a perda de influência econômica e militar da

.93
França. Suas missões repousavam na política linguística e educativa.
As trocas artísticas serviam principalmente às comunidades france-
sas expatriadas, e as manifestações propostas lhes eram destinadas:
funcionários das embaixadas e consulados, dos liceus franceses e
das empresas implantadas nos países. A circulação se fazia em cir-
cuito fechado, de maneira autofágica e contemplativa, variando de
acordo com a história das relações diplomáticas nesta ou naquela
região do mundo e com a noção de representação baseada no efei-
to vitrine do nosso país, orgulhoso da sua cultura e trabalhando de
maneira vertical.

A descolonização dos países da África nos anos 1960 e sua poste-


rior independência introduziram os conceitos de cooperação e de
auxílio ao desenvolvimento; ela criou os instrumentos e os meios
da cooperação técnica e científica, entre os quais o Fundo de So-
lidariedade Prioritário estabelecido em 54 países. As mentalidades
foram mudando também, primeiro, na África subsaariana; depois,
em outros lugares, ainda que mais lentamente. O Ministério da Coo-
peração, criado por De Gaulle em 1959, transformado em Ministério
da Cooperação e do Desenvolvimento em 1981, com a chegada da
esquerda ao poder, foi integrado ao Ministério de Assuntos Exterio-
res em 1999. A noção de cooperação parecia consolidada. Na Ale-
manha, o Muro de Berlim havia caído.

Da descolonização à mundialização, com o declínio da influência,


da língua e das comunidades francesas no exterior, e com o aumen-
to da visibilidade e do peso das organizações intergovernamentais
(Unesco, Conselho da Europa, União Europeia),3 a ideia de modelo
perdeu força, as missões se orientaram para a troca entre as culturas
e os saberes. Passo a passo, “os Institutos conheceram uma evolu-
ção que transformou os melhores deles em verdadeiras referências
de expertise na paisagem artística do país de acolhida, espaços de
trocas e de partilha entre criadores franceses e estrangeiros, espaços
de criação mesmo”.4 Até o fim dos anos 1990, a maioria dos 150 cen-
tros culturais franceses desfrutou de autonomia financeira. Ao longo
da última década, alguns entraram na alçada dos conselheiros de
cooperação e ação cultural, que se tornaram também seus direto-
res, conjugando assim a diplomacia e o trabalho de campo. Muitas
críticas formuladas e ampliadas ao longo do tempo, pontuadas pela
publicação de relatórios de eminentes políticos de diferentes orien-
tações, levaram à assim chamada reforma do Instituto Francês, em
meio a dores e críticas, cada um se agarrando ao seu pequeno feu-
do. O mais significativo e explosivo foi, em 2001, o Relatório Dauge.
O deputado e prefeito da cidade de Chinon, Yves Dauge, havia en-
trevistado alguns diretores de centros culturais. Sua análise era ina-
pelável: “os diretores dos centros culturais exprimem um mal-estar,
uma solidão, que chega às vezes a uma certa revolta, frente ao des-
perdício dos trunfos, embora notem a combatividade, a criatividade
(conseguir fazer coisas com poucos recursos), a busca da sintonia”.5

Em 2009, a reforma do Instituto Francês se anuncia timidamente. Ela


visa unificar os estatutos e dar mais legibilidade à rede cultural, pela
fusão dos centros culturais, institutos franceses e serviços culturais

.94
das embaixadas. O anúncio é feito pelo ministro de Assuntos Exte-
riores e Europeus, Bernard Kouchner, em 28 de outubro de 2010. Ele
foi, desde o início, mal recebido pela rede e pela imprensa. Os insti-
tutos franceses, novo nome para todos os institutos, deveriam ser os
intermediários da agência parisiense, à maneira do British Council.
Diante do redemoinho dos meios diplomáticos e dos protestos dos
embaixadores que perdiam seu poder, mas também um instrumen-
to de ação, essa reforma chamada de modesta6 dá meia-volta: os ins-
titutos franceses continuam vinculados às suas embaixadas – exceto
dez deles, a título de experiência.

Visão do campo

Em cada país, entre a herança histórica e a dinâmica almejada, entre


os pontos de passagem obrigatórios e a falta de transparência, qual
posicionamento adotar? Qual margem de manobra, qual leitura pro-
por, a quais públicos? Minha experiência de campo em Alexandria,
no Egito, guia minhas reflexões:7 o que diz o presente nesta cidade?
Qual é a concepção de política cultural num contexto em que a ci-
dadania é maltratada?

Alexandria, entre ontem e hoje

Não se pode trabalhar em Alexandria sem ter em mente uma parte


de sua história impressionante. Essa cidade mítica incita ao devaneio,
às referências literárias. Cidade-símbolo do diálogo das culturas, visí-
vel em sua arquitetura, pérola do Mediterrâneo, capital da memória
segundo Durrell. Um porto, uma encruzilhada. Uma cidade de arte
e de história que encerra vários mistérios: “Alexandria nos fala de um
Mediterrâneo em que tudo era possível, as fronteiras contavam pou-
co e os deslocamentos permaneciam livres. E é isso o que explica a
presença forte do mito alexandrino: ele não nos fala do Egito, ele nos
fala de uma outra face de nosso próprio mundo”.8

O golpe de Estado de Nasser em 23 de julho de 1952 marca o fim


de um Egito multicultural. As comunidades estrangeiras são obri-
gadas a deixar o país em 1956, e seus bens são confiscados: armê-
nios, judeus, libaneses, malteses, franceses, ingleses, gregos, italianos
e magrebinos: “no início da era nasseriana, a cidade começou a se
desfazer de seu cosmopolitismo, de sua mediterraneidade, para se
tornar uma cidade puramente egípcia. Ela teve de renunciar à sua
cultura e às suas aspirações, ao seu brilho e à sua exceção”.9 A ques-
tão posta pelo pesquisador e tradutor Richard Jacquemond: “O que
resta desta época?”, Alaa Khaled, diretor da revista alexandrina Amke-
nah, responde: “Restam este imaginário de um país perdido, e esta
interrogação obsessiva sobre a relação com o outro”.10

A Alexandria de hoje é uma megalópole onde “a pressão demográfi-


ca e a especulação imobiliária se conjugam para atingir irremediavel-
mente um patrimônio inestimável, mas em vias de desaparecimen-
to”.11 A degradação dos edifícios da época clássica e das mansões do
início do século XX, ou mesmo sua destruição, uma forte densidade
populacional devida notadamente ao êxodo rural, tal é o rosto da

.95
.96
Alexandria – Vista do obelisco Agulha de Cleópatra e da torre dita dos romanos na perspectiva sudoeste.
Description de L’ Egypte, Antiquités, vol. V, pl. 32, coleção Banco Itaú. Foto: Iara Venanzi/Itaú Cultural
.97
cidade de hoje. A região metropolitana de Alexandria conta com 3,9
milhões de habitantes (alguns falam em 6 milhões), dos quais mais
de 95% vivem em Alexandria, e os outros, na cidade nova de Burj al
Arab e seus arredores. Segundo Roger Ilbert, Alexandria concentra
todas as contradições do presente:

Cidade livre de uma outra época, dominando as trocas econô-


micas de um país estreitamente integrado ao sistema econô-
mico mundial, símbolo do capitalismo triunfante, modelo de
modernismo, laboratório do Terceiro Mundo. Cidade do Medi-
terrâneo, certamente, mas também do Egito. Ainda mais ligada
ao país por desempenhar o papel de sua segunda capital polí-
tica e administrativa.12

Resta-lhe um passado que se projeta no presente de uma manei-


ra particular.

Política cultural

Se o Egito conta com o turismo e a exploração de seus patrimônios,


uma das primeiras fontes de renda do país, a arte de hoje procura
corajosamente se desenvolver, em todas as áreas, em Alexandria,
como em outras cidades, com as dificuldades agravadas de uma
cidade provinciana.

O Centro Cultural Jesuíta Le Garage é o espaço emblemático da ci-


dade em termos de pensamento cultural. Isso se deve a Fayez Saad
Attallah, padre jesuíta originário de Alexandria, apaixonado pelo
despertar artístico, pela ação educativa, pela formação, pela pes-
quisa teatral e pelo desenvolvimento sustentável. De 1999 a 2006,
data de sua morte, Attallah se engajou no campo da ação cultural
e da formação, nos setores do teatro, da música e da dança. Artistas
associados ajudam a dirigir o centro. Le Garage atrai um público jo-
vem e popular e funciona como um ponto de encontro entre jovens
artistas e públicos de todas as idades, no qual se cruzam as artes
tradicionais – conto, poesia, canto, músicas, dança de bastão – e a
criação contemporânea, sobretudo o teatro.13 Parceiro aberto e di-
nâmico para o Centro Cultural Francês, ele permitiu a programação
de inúmeros concertos, sempre lotados.14

Os outros equipamentos culturais em Alexandria, como em


toda parte no Egito, são controlados. 15 Uma exceção: o Alexan-
dria Contemporary Arts Forum (Acaf ) – coletivo de jovens ar-
tistas plásticos que criou no coração da cidade, em 2006, um
espaço de exposição alternativo com alguns subsídios de orga-
nizações intergovernamentais.

Tais equipamentos se parecem mais com garagens ou lugares de


passagem do que com espaços de democratização cultural; os
funcionários são mal formados e mal pagos. Nenhuma estrutura
da cidade propõe sistemas de assinaturas ou de adesão. Cada um
trabalha num regime de caso a caso, sem relações com os públicos,
sem pontes com os sistemas educativos, forçosamente sem noção

.98
de fidelização, sem reflexão sobre a tarificação. A demanda cultural
é muito aleatória e a oferta é vigiada. No Egito, não há nenhuma
formação artística, não há estatuto do artista. Dessa forma, ele não é
merecedor de respeito, pois o senso de civismo é precário. A falta de
infraestrutura no país impede toda ideia de turnê, a lógica da difusão
é uma abstração, a montagem de uma produção se improvisa, e o
porta a porta junto aos centros culturais estrangeiros recolhe ajudas
cada vez menores.

Pouca oferta, pouca demanda – e vice-versa. Os principais equipa-


mentos alexandrinos são a Ópera Sayyed Darwish, filial da Ópera do
Cairo; o Centro de Desenvolvimento Cultural, programando caso a
caso, sem linha nem política precisas; a Biblioteca Alexandrina, aber-
ta em 2002, vasto centro pluridisciplinar à la Beaubourg, financiado
por apoios internacionais, eminente espaço de congressos e de se-
minários que atrai os intelectuais e o turismo, mas sofre de um certo
déficit de legibilidade, coerência e comunicação; o Ateliê de Alexan-
dria, com seus ateliês de artistas, importante espaço de criação para
as artes plásticas no início do século XX, hoje sucateados; os Palácios
da Cultura, espécie de casas de bairro, com infraestrutura obsoleta
e mal equipadas.

Em Alexandria, como no país em geral, estamos longe de qualquer


conceito de política cultural e de apoio ao desenvolvimento artístico:
nenhuma noção de educação artística num sistema educativo
público insuficiente; nenhum acompanhamento da criação artística
contemporânea, amordaçada pela censura. Nenhuma vontade
política em nível do Estado, senão para sua própria apologia: o
setor está nas mãos de apparatchiks preocupados em preservar
seus privilégios.

O Ministério da Cultura, dirigido até janeiro de 2011 por um artista


plástico que aspirava a uma carreira internacional,16 mais institucio-
nal que artística, possui um orçamento pouco significativo, diáfano
para os artistas. No nível territorial, a descentralização é um concei-
to esquecido: as cidades, submetidas à autoridade de um governa
dor nomeado pelo presidente da república, não possuem nenhuma
consciência cultural nem patrimonial. Não existe serviço cultural.

Paisagem artística

A despeito dos relatos já esboçados, assistimos a uma espécie de


renovação artística, e a pressão dos jovens artistas é forte, notada-
mente em teatro, música, artes visuais, literatura ou cinema. É nos
flancos [desse jogo político] que eles procuram espaços para ensaiar
ou expor seus trabalhos, teatros, plataformas de troca e de trans-
missão em que possam se confrontar e dimensionar seu valor. Eles
experimentam uma bulimia criativa.

O exemplo do teatro é significativo. Os artistas e os grupos inde-


pendentes não são financiados pelo Estado, mas por organizações
nacionais dos Estados Unidos, do Canadá e do norte da Europa ou
internacionais como a Fundação Ford, a Fundação Sida – Swedish

.99
International Development Cooperation Agency – e a Fundação
Euro-Mediterrânea Ana Lindh para o Diálogo entre as Culturas, fun-
dada em 2005 e sediada em Alexandria. O reservatório de talentos é
grande, a energia também.17

Hassan El Geretly, diretor do Teatro Warsha, criado nos anos 1980, e


porta-voz do teatro independente, descreve a situação: “Existem as
instituições oficiais com seus empregados. Não há dinheiro do Es-
tado, exceto para representar o Egito no cenário internacional, para
onde o governo envia projetos, espetáculos e produtos de “sua” es-
colha”. Num país em que a independência é anátema, o teatro não
encontrou seu lugar como atividade organizada. As leis contra a as-
sociação são fortes. Assumir um estatuto aparentado à associação
francesa regulada pela Lei nº 1.901 significa tornar-se tributário do
Ministério dos Assuntos Sociais. Os grupos preferem criar socieda-
des comerciais, evitando todo controle direto sobre suas atividades,
mas “isso não reflete nossa realidade e nossa missão”, ressalva o di-
retor do Warsha, segundo o qual a linha de demarcação entre inde-
pendentes e amadores é tênue: “Existe sim um público egípcio que
gosta muito de teatro e tem uma força grande, uma energia, mas
carece de acesso ao teatro que ele merece”. O Teatro Warsha atraves-
sa os anos e carrega em seu rastro muitos jovens criadores: atores,
dançarinos, realizadores, cenógrafos, autores, artistas plásticos etc.
Ele é a matriz do teatro egípcio contemporâneo. Seu diretor traça
suas etapas:

Legitimação de textos ocidentais, redescoberta de nossa pró-


pria cultura, não como modelo, mas como fonte; trabalho sobre
a vida cotidiana como fonte do teatro; trabalho sobre a guer-
ra; apresentação das obras-primas da breve história do teatro
egípcio. Creio que a chave disso tudo é a liberdade pela inde-
pendência, com todas as suas dificuldades, e a busca da frater-
nidade, o apoio pela interdependência com artistas de outros
países, pela solidariedade.18

O Centro Cultural Francês de Alexandria

No início, as missões do centro repousavam em quatro eixos. Ele


perderá no meio do caminho o setor da cooperação educativa e
universitária, recentrado no Cairo, na matriz. Três departamentos,
portanto, em Alexandria: o ensino do francês, os recursos documen-
tários e o trabalho da midiateca, a programação cultural e a coope-
ração artística.

Alexandria gera um orçamento delegado (pela matriz) cuja dota-


ção é modesta. Ao lado dos eventos programados a partir de Paris
pelo conselheiro de cooperação e de ação cultural – que é também
diretor do Centro Cultural Francês do Cairo, situado a mais de 200
quilômetros, e chefe de três representações: o Cairo/Mounira, Helió-
polis, Alexandria – e pelo adido cultural, dos quais alguns serão apre-
sentados em Alexandria,19 estabelece-se um verdadeiro trabalho de
ação cultural e de cooperação com os artistas locais. Isso se dá não
apenas por necessidade orçamentária, mas também porque a ação

.100
cultural (principalmente no exterior) só pode se desenvolver no con-
texto de uma troca horizontal, de um diálogo, de uma confrontação.
Esse é um gesto cultural que se faz.

Um instrumento de trabalho à disposição

Se inscrever na dinâmica local, numa história de cidade; reencontrar


as pessoas, todos os públicos, acolhê-los, criar as condições do diá-
logo entre diferentes grupos sociais, preocupações, gerações, religi-
ões, e trabalhar a partir da identidade da cidade, intra e extramuros;
descompartimentar as atividades da casa, desenvolver a curiosidade,
abrir a porta aos jovens artistas; criar a confiança, construir pontes
entre os artistas da França e os do Egito; ser uma janela aberta para
o mundo, um espaço de democracia: grande e pequena ambição?

No primeiro ano, a necessidade de trabalhar num espaço externo


ao centro cultural, por falta de uma sala de espetáculo, foi salutar.
Nos três anos seguintes, depois da reabertura do teatro, com 240
lugares, projetor de 35 milímetros, ar-condicionado e duas cabines
de tradução, a constituição de um público e a construção da iden-
tidade da casa representaram um belo desafio. Elas não impediram
o desenvolvimento de parcerias nem a continuação dos eventos
programados fora do centro, pelo contrário. Todas as estruturas já ci-
tadas e todas as expressões artísticas estiveram no coração da troca.

Sua reabertura em dezembro de 2005 ocorreu num momento trau-


mático para o meio teatral egípcio: alguns meses antes, o Palácio da
Cultura de Béni Suif, no Médio Egito, tinha pegado fogo durante um
espetáculo. Cerca de 50 pessoas vindas de todo o Egito (inclusive de
Alexandria), entre as quais vários artistas de teatro que foram ver o
espetáculo, morreram no incidente.

Desde o início, a sala do Centro Cultural Francês ficou à disposição


dos artistas para ensaios, ateliês, residências e apresentação dos tra-
balhos, assim como a sala de dança, cheia de charme, sob os tetos e
a imponente sala de exposição do térreo, espaço de recepção para
todos os que entram no centro.

O Centro Cultural Francês ficou em estado de vigília e de escuta, de


maneira permanente, atento às estruturas e às criações: grupos de
teatro, formações musicais, artistas plásticos, intelectuais, estruturas
locais, nacionais e internacionais se encontraram ali. No registro do
debate de ideias, o Centro de Estudos e de Documentação Econô-
micos, Jurídicos e Sociais do Cairo (Cedej) colaborou divulgando
pontualmente o resultado de suas pesquisas.20

Duas estruturas atuaram como companheiros fiéis: o Centro de Es-


tudos Alexandrinos,21 estrutura francesa de pesquisa que trabalha há
mais de 20 anos em Alexandria, e a Universidade Senghor,22 estrutu-
ra de formação com estatuto de organização intergovernamental.
Os centros culturais estrangeiros da cidade foram importantes par-
ceiros, com a criação, entre outros, de um festival do filme europeu,
“Eurocinéma”, em três edições,23 atraindo um público de jovens re-

.101
alizadores, atores, críticos – egípcios ou dos diferentes países repre-
sentados – etc. Eventos bilaterais foram programados com cada um
dos centros: com o Goethe Institut, foram organizados espetáculos
de dança na Biblioteca Alexandrina,24 dois projetos realizados com
o apoio do Fundo Franco-Alemão:25 uma exposição de fotografias,
GlobaLocal, sobre o tema da modernidade no Egito,26 e um trabalho
de coleta de contos no oásis de Siwa, com a publicação de uma bro-
chura trilíngue, Contes du Désert, entre Passé et Present, l’Oasis de Siwa,
participando da preservação da mémória social e coletiva do oásis e
das identidades locais.27

O Centro Cultural Francês foi ativado e aberto às coletividades: es-


colas, notadamente bilíngues francófonas, universidades – Univer-
sidade de Alexandria, Universidade Francesa do Cairo, Universidade
Senghor –, associações. Ele se preocupou em estimular a interação
entre os artistas da França convidados para residências (fotógrafos,
dançarinos, músicos, atores) e os artistas locais.28

A sala de espetáculos, muito frequentada pelos egípcios, mais fran-


cófilos que francófonos, tornou-se um instrumento federativo na
cidade, dando espaço e visibilidade às atividades do centro, favore-
cendo a cooperação nos planos local, nacional e internacional.

Programação, uma escrita na cidade: para quem, por quê?

Foi preciso (re)ativar o Centro Cultural Francês, cujo setor cultural


se encontrava com baixa atividade em setembro de 2004, desorga-
nizado, sem arquivos, sem memória. O centro restringia-se a uma
pequena sala de projeção para cerca de 50 pessoas, com televisão
e videocassete. O público? Algumas poucas pessoas em torno de
Marguerite, a mulher com o tricô. Um setor cultural baseado no ro-
dízio dos estagiários de passagem. Profissionalizar a oferta para abrir
o centro. Batalhar dia e noite para conseguir fazê-lo, isso não estava
previsto quando eu saí de Paris...

Compra imediata de um projetor de vídeo e de uma tela, de dimen-


sões modestas mas honrosas, reforma das poltronas, reativação das
atividades do cineclube com apresentação e debates em torno das
projeções dos filmes, tradução sistemática de todas as atividades.
Edição de um programa bilíngue, que passou de bimestral a mensal,
em formato de bolso. Reconstituição, passo a passo, de um arquivo
dos públicos que tinha desaparecido no servidor um pouco antes
da minha chegada... Novo conceito de agenda utilizando cores e
diversos materiais de informação – cartazes, flyers, cartões-postais.
De 2 mil exemplares, a tiragem passou a 4 mil, e mais tarde a 5 mil
e 6 mil. Distribuição sistemática e permanente junto a organismos
educativos e culturais da cidade, assim como de turismo e de infra-
estrutura econômica. Criação de um boletim semanal de informa-
ções, alimentação do site.

Uma parte da cooperação franco-egípcia se apoia, em Alexandria,


nessa identidade perdida e por vir da cidade que ronda escritores,
cineastas, artistas plásticos e músicos. Intelectuais e estudantes ten-

.102
tam recompor o puzzle. O Centro Cultural Francês participa do mo-
vimento com sua programação cultural.

Tal programação se articula em torno de um tema mensal, escolhi-


do e trabalhado de maneira transversal e pluridisciplinar: música,
teatro, dança, artes visuais, cinema, debates de sociedade se suce-
dem nos diferentes espaços da casa e do jardim, bem como nas
estruturas da cidade, mais tarde na sala de espetáculo.29 A escolha
dos temas se inspira nos eventos culturais egípcios, franceses ou
internacionais: Ramadã / Concertos do 9o Lunar, Salão do Livro de
Alexandria / parceria com a Região da Provence-Alpes Côte d’Azur,
Festival Internacional do Filme de Alexandria / Ópera Sayyed Da-
rwish, Festa da Ciência / Biblioteca Alexandrina, Encontros das Jo-
vens Companhias Teatrais Independentes / Teatro El-Hanager do
Cairo. Ler em Festa, Festa da Música, Semana da Francofonia, Mês
do Documentário, Dia da Mulher, Jornadas do Patrimônio etc., são
alguns dos temas retomados nos programas, pretextos para con-
frontação dos pontos de vista.

Do lado da França, a programação se alimenta das reuniões mensais


que se fazem no Cairo e, uma vez por ano, da reunião de programa-
ção com os centros franceses numa das capitais da região da África
do Norte ou do Oriente Médio (Argel, Túnis, Amã etc.). CulturesFran-
ce, braço armado do Ministério de Assuntos Exteriores, hoje trans-
formada na agência do Instituto Francês, participa delas e “vende” a
oferta artística vinda de Paris, filtrada por suas comissões. Alexandria
acolhe os eventos programados pelo Cairo, o Centro Cultural Fran-
cês da capital descentralizando uma parte de suas turnês em Ale-
xandria. A articulação se faz de maneira concertada, em mão dupla.
Viagens e cachês dos artistas são assumidos pelo Cairo.

A grade de programação semanal típica, com alguma flexibilidade,


é a seguinte:

• Domingo: dia do cinema, ciclos como Telas do Mundo, Cur-


tas-Metragens, Jovem Cinema Egípcio, projeções seguidas
de debates.
• Segunda: conferências, debates e mesas-redondas sobre a arte;
uma abordagem sociológica, econômica, social, científica, se-
gundo o tema do mês. Presença de personalidades, intelectuais
e artistas.
• Terça e quarta: espetáculos de dança ou teatro.
• Quinta: concertos de todos os estilos, do clássico ao moder-
no, do raï ao rap, do tradicional egípcio aos grandes clássi-
cos internacionais.
• Sexta e sábado: a princípio, dias de folga, com várias exceções,
segundo a demanda e as oportunidades.

A programação se inscreve no calendário egípcio, respeitando as


festas religiosas muçulmanas, coptas, católicas, assim como os fe-
riados franceses, os dois períodos de exames por ano (fevereiro e
junho), quando tudo fica em suspenso,30 Copas do Mundo etc. Ela
continua por todo o verão, propondo atividades para o jovem pú-

.103
blico – filmes, sobretudo –, como o ciclo Lanterna Mágica, e para
adultos e todos os públicos, ciclos de filmes. É preciso colar à agen-
da, à atualidade, mantendo ao mesmo tempo certa flexibilidade (se
negligenciamos tais regras, a sala de espetáculo corre o risco de ficar
deserta). Há participação, fervor, expectativas, desejo de aprender,
aquisição de saberes, busca da compreensão, abertura a outras cul-
turas. Há encontros e convívio. Os frequentes agradecimentos na
saída da sala de espetáculos, calorosos e encorajadores, valem todo
o trabalho do mundo.

Os públicos se reúnem segundo os tipos de atividade. Categorias


sociais de classe média, maciçamente jovens, mas não só, predo-
minantemente masculinas (ainda que mais misturadas nos jovens),
estudantes, jovens artistas, globalmente não francófonos.31 A entra-
da da sala de espetáculo é baseada na gratuidade. Com os espaços
parceiros, ela segue suas respectivas regras tarifárias.

Como falar do peso dos gastos de consumo de bens e serviços


culturais nos orçamentos domésticos, como fazemos na França
quando dos estudos sobre as práticas culturais dos franceses,32
num país em que a sociedade tem dois ritmos, em que a realidade
da maioria das pessoas é a do desemprego, da crise do pão e da
luta pela sobrevivência?

Em busca dos públicos

Dadas a fragilidade do setor cultural no Centro Cultural Francês de


Alexandria e sua necessária reconstrução diante da quase ausência
de públicos no início, não pudemos elaborar um instrumento de
medida e de interpretação que exigisse uma coleta de dados e um
trabalho de médio prazo. Certo estudante, porém, esboçou um es-
tudo, no contexto do seu mestrado, e observou o trabalho do setor
cultural.33 Ele foi ao encontro dos públicos para melhor identificá-los
e compreender seu modo de participação na vida do centro, suas
expectativas, suas necessidades. Ele concebeu questionários bilín-
gues, deixados em lugares de grande afluxo – recepção, midiateca
e entrada da sala de espetáculos. Ele adotou também o método da
observação participante, colocando-se diante da entrada do teatro
meia hora antes dos espetáculos.

Segundo seus cálculos sobre o público, 1.849 pessoas assistiram em


um mês ao conjunto dos eventos propostos pelo Centro Cultural
Francês – dois terços homens, um terço mulheres. A tendência in-
verte-se quando se trata do público estrangeiro, majoritariamente
francês. Ele notou que as moças egípcias têm dificuldade de sair de
casa por causa do estatuto da mulher num país muçulmano.

O levantamento da faixa etária dos frequentadores do centro fran-


cês deu os seguintes resultados:

• de 0 a 30 anos: 837 egípcios, 149 franceses;


• de 31 a 50 anos: 375 egípcios, 23 franceses;
• 51 anos ou mais: 437 egípcios, 28 franceses.

.104
Constata-se que os egípcios frequentam mais o centro do que a
comunidade francesa, pequena em Alexandria. Os números indi-
cando que o grupo dos jovens é majoritário não surpreendem, se
lembrarmos que 61% dos egípcios têm menos de 30 anos e que, de
resto, eles se concentram em certos eventos, como os concertos. Os
menos jovens são os pilares do cinema e assistem maciçamente aos
encontros e debates.

As motivações dos públicos, egípcio e francês, que frequentam o


centro francês, são as seguintes:

• “ver a vida das outras pessoas”: 65% são egípcios e 34,7%


são franceses;
• “passar momentos em família”: 64,6% são egípcios e 35,4%
são franceses;
• “compreender melhor o mundo que os cerca”: 61,2% são egíp-
cios e 38,8% são franceses;
• “preencher momentos de solidão”: 59,1% são egípcios e 40,9%
são franceses;
• “descobrir coisas desconhecidas que não se encontrariam de
outra forma”: 56% são egípcios e 44% são franceses;
• “ver pessoas célebres”: 52% são egípcios e 48% são franceses;
• “conviver com seu círculo de relações”: 38,6% são egípcios e
61,4% são franceses.

O que o Centro Cultural Francês de Alexandria representa para seus


frequentadores:

• “um espaço de liberdade”: 63% são egípcios e 37% são franceses;
• “um lugar de troca”: 57% são egípcios e 43% são franceses;
• “um espaço do saber”: 55,2% são egípcios e 44,8% são franceses;
• “um lugar de convívio”: 52,3% são egípcios e 47,7% são franceses;
• “um espaço de difusão de valores relevantes”: 39,4% são egíp-
cios e 60,6% são franceses;
• “um espaço de encontro”: 34% são egípcios e 66% são franceses;
• “um lugar para onde ir”: 23,6% são egípcios e 76,4% são franceses.

Para o público egípcio, o Centro Cultural Francês atrai sobretudo por


ser “um espaço de liberdade”. Para o público francês, atrai por ser
“um lugar para sair”. Inversamente, para o público egípcio, o centro
é minoritariamente “um lugar para sair”, e para o público francês, ele
é minoritariamente “um espaço de liberdade”. Os públicos francês e
egípcio que frequentam o centro possuem claramente motivações
e critérios diferentes.

Outro tipo de trabalho como tentativa de leitura da frequentação


dos públicos no centro foi o desenvolvido por Romain Tabau, estagi-
ário34 que transcreveu em gráficos as taxas de frequência levantadas
pela recepcionista na sala de espetáculo. Esses instrumentos não são
utilizáveis como tais, mas poderão alimentar a reflexão para a con-
tinuação do movimento de busca dos públicos. Em quatro anos, se
pensarmos naquele punhado de pessoas que frequentavam inicial-
mente o centro, podemos medir o caminho percorrido. Enquanto

.105
Cena de Carnaval, de Jean-Baptiste
Debret. Voyage Pittoresque et
Historique au Brésil. Paris: Firmin
Didot Fréres, 1835, coleção Banco
Itaú. Foto: Horst Merkel
a oferta artística e cultural se desenvolvia, o instrumento de infor-
mação também se refinou. O levantamento das estatísticas, alguns
números, primeiro esboço, indica que 17.750 pessoas em 2007 e
11.110 entre janeiro e agosto de 2008 assistiram a algum evento,
segundo a seguinte repartição:

• cinema: 4.171 pessoas em 2007 e 3.240 de janeiro a agosto


de 2008;
• encontros e debates: 2.879 pessoas em 2007 e 2.005 de janeiro
a agosto de 2008;
• exposições: 3.140 pessoas em 2007 e 940 de janeiro a agosto
de 2008;
• concertos: 3.460 pessoas em 2007 e 2.320 de janeiro a agosto
de 2008;
• teatro: 3.060 pessoas em 2007 e 1.930 de janeiro a agosto
de 2008;
• lanterna mágica / jovem público: 1.040 pessoas em 2007 e 675
de janeiro a agosto de 2008.

Conclusão: a furtiva caçada cultural35

No Egito, esse país de alta cultura, de milênios antes da nossa era,


país de castas sociais, econômicas, religiosas, culturais, a partilha dos

.106
saberes não tem muito direito de cidadania e a abordagem das
linguagens artísticas contemporâneas se aprende pouco a pouco.
O “boca a boca” funciona.36 Espera-se uma conquista da palavra, a
partir do que hoje se manifesta mediante uma torrente às vezes
difícil de canalizar, ligada a uma sede de expressão e de confronta-
ção dos saberes.

Como diz Olivier Donnat no fim de sua pesquisa sobre As Práticas


Culturais dos Franceses na Era Digital,37 “o futuro nunca está escrito”.
Isso se aplica bem ao Egito de hoje, que disse Kefaya! ça suffit!,38 Nele,
toda a relação cultural precisa ser construída: mediação cultural a
elaborar, gastos e práticas culturais a observar.

Jean Caune define o primeiro conceito, o de mediação:

Se precisássemos dar de novo um sentido à noção de media-


ção, hoje banalizada a ponto de qualificar todo processo de
criação de uma relação, o mito de Babel poderia servir de refe-
rência. Esse mito exprime a necessidade de se distinguir a dupla
função da mediação: de um lado, estabelecer os vínculos entre
os homens, no presente e através das gerações; de outro lado,
introduzir a visada de um sentido que vai além da relação ime-
diata para se projetar no futuro. Esse sentido pode ser buscado
no projeto político; reconhecido na obra de arte; figurado nos
mitos e nas narrativas reveladas ou ainda remetido ao horizonte
da era messiânica.39

Philippe Coulangeon define o segundo conceito, o das práti-


cas culturais:

Por práticas culturais, entende-se geralmente o conjunto das


atividades de consumo ou de participação ligadas à vida inte-
lectual e artística, que convocam à definição dos estilos de vida:
leitura, frequentação de equipamentos culturais (teatros, mu-
seus, salas de cinema, salas de concertos etc.), usos das mídias
audiovisuais, mas também práticas culturais amadoras.40

Num país autocrático, todo questionário sobre suas próprias práticas


poderia parecer suspeito, mas a página está sendo virada.41

Deveria ser possível modelizar os métodos de trabalho e de pes-


quisa ao nos debruçarmos sobre os centros culturais franceses no
exterior, bem como medir seu impacto nos territórios respectivos
de intervenção. Eles têm todos os mesmos programas de ação. A
rede dos centros, porém, é disparatada, seus diretores vêm de ho-
rizontes diferentes, suas motivações diferem, os meios atribuídos
variam muito, tornando complexa a elaboração de um método.
O jornalista Daniel Conrod reconhece que “gerações de militantes
e responsáveis políticos e culturais viram no acesso às artes e à
cultura desafios de civilização e de sentido [...] Essa herança não
foi transmitida, de modo que as profissões da cultura se tornaram
profissões ordinárias, carreiras”. E ele fala “da arte que intimida e da
cultura que exclui”.42

.107
A Unesco desenvolveu o conceito de “cultura da paz” e milita pelo
reforço do diálogo entre as culturas:

Todas as culturas fazem parte do patrimônio comum da hu-


manidade. A identidade cultural de um povo se renova e se
enriquece no contato com tradições e valores de outros po-
vos. Cultura é diálogo, troca de ideias e experiências, aprecia-
ção de outros valores e tradições. No isolamento, ela se esgota
e morre.43

Olivier Mongin, diretor da revista Esprit, fala em descentramento de


maneira salutar: “O que é um descentramento? Antes de tudo, uma
capacidade crítica, um olhar distanciado sobre si mesmo”.44

E se os centros culturais franceses trabalhassem de modo equitável,


eles adotariam esta frase: “O desvio pelo outro não é um exotismo, é
a ocasião de uma metamorfose de si”.45

Brigitte Rémer
Doutora em sociologia e especialista na área de políticas culturais
internacionais. Dirigiu por 12 anos a Formação Internacional Cultura,
do Ministério da Cultura francês, que dá suporte a especialistas em
políticas culturais de diversos países. Foi diretora adjunta do Centro
Cultural Francês de Alexandria, no Egito, e atualmente é consultora
em políticas culturais e internacionais.
E-mail: brigitte.remer@free.fr

.108
Notas
1
BARTHES, Roland. L’empire des signes. Paris: Seuil, 2005, p. 76.
2
Chamados então de institutos: Florença cria o seu em 1908; Londres, em 1910; Lis-
boa, em 1928; Estocolmo, em 1937. Rapidamente, as universidades se articulam, a
França lhes envia numerosos intelectuais como leitores (caso de Raymond Aron, por
exemplo, enviado a Colônia em 1930) e os dois conceitos, o de centro e o de univer-
sidade, se dissociam.
3
Unesco: em 1988, lançamento da Década Mundial do Desenvolvimento; em 1992,
criação da Comissão Internacional sobre a Educação (presidida por Jacques Delors) e
da Comissão Mundial sobre a Cultura e o Desenvolvimento (presidida por Javier Perez
de Cuellar); em 2001, adoção, pela Conferência Geral, da Declaração Universal sobre
a Diversidade Cultural – Conselho da Europa: publicações, seminários de reflexão,
formações, trabalho do serviço de políticas e ações culturais – União Europeia: pro-
moção dos programas comunitários, como Cultura 2000, e de programas em países
fora da Europa.
4
Devèze Laurent. Institutos Français à L’Étranger. In: WARESQUIEL, Emmanuel de (dir.).
Dictionnaire des politiques culturelles. Paris: Larousse – CNRS, 2001, p. 341.
5
Rapport Dauge sur les centres culturels français, fevereiro de 2001.
6
No Le Monde de 1-2/11/2009, um artigo de Nathaniel Herzberg trazia no título “Re-
forma modesta da rede cultural francesa no exterior”.
7
Fui diretora adjunta do Centro Cultural Francês de Alexandria de 2004 a 2008. Caso
particular, o cônsul-geral da França tem ali o estatuto de diretor. Como tal, está sub-
metido ao conselheiro cultural junto à embaixada da França no Cairo, o que cria certa
confusão. Como cônsul, ele continua sendo seu próprio chefe, numa missão chama-
da, em Alexandria, de “consulado de influência”.
8
ILBERT, Robert . Le symbole d’une Méditerranée ouverte au monde. In: Alexandrie
1830-1930: histoire d’une communauté citadine, op. cit., p. 16-17.
9
Amira Doss, Au grand désespoir d’Alexandrie. Al-Ahram Hebdo 25-31/7/2005.
10
Amkenah, une revue à Alexandrie (entrevista de Alaa Khaled a Richard Jacque-
mond). Egypte(s) littératures. Pensée de Midi, n.12. Marselha, Printemps, 2004, p. 46.
11
Amira Samir. Une cité polyphonique. In: Al-Ahram Hebdo, 30/4 – 6/5/2008, p. 27.
12
ILBERT, Roger. Alexandria 1830-1930, Histoire d’une communauté citadine, op. cit.,
p. 481.
13
O Centro Cultural Jesuíta tem duas salas: Le Garage, 200 lugares, convivial; o auditó-
rio, 320 lugares, menos convivial e menos equipado.
14
Concertos de Bumcello, Toma Sidibé, Orange Blossom e Clotaire K. Teatro com o War-
sha Théâtre. Dança com a Companhia S’Evad e suas Lettres à Van Gogh, entre outros.
15
Frequentemente dirigidos por militares aposentados.
16
Farouk Hosni, que se candidatou ao posto de diretor-geral da Unesco há dois anos
e, durante um período, esteve fortemente cotado para o cargo.
17
A revolução iniciada em 25 de janeiro de 2011 é uma prova.
18
Entrevista com Hassan El Geretly, diretor do Warsha Théâtre, em 2009.
19
Desde que o Cairo arque com os cachês dos artistas e com as viagens França-Egito.

“Façons de voir, manières de faire, les jeunes en Egypte” e “Etre femme en Egypte et
20

au Maroc”, conferências de Alain Roussillon, diretor do Cedej. “La croissance urbaine


du Caire”, conferência do geógrafo Olivier Pliez. “Le toktok dans les villes du Delta”,
conferência do antropólogo urbano Philippe Tastevin.
21
Antena do CNRS, o Centro de Estudos Alexandrinos foi fundado em 1989, pelo ar-
queólogo Jean-Yves Empereur. Desde a sua criação, ele vem realizando um precioso
trabalho de leitura do passado. Escavações arqueológicas, terrestres e submarinas,
vestígios de superfície, arquivos, mapas antigos, textos de autores antigos e narrativas
de viajantes alimentam o conjunto de suas pesquisas.
.109
22
Criada em 1989 por uma Conferência de Chefes de Estado e de Governo dos países
francófonos, a Universidade Senghor é o operador da Organização Internacional da
Francofonia, da qual Abdou Diouf é o atual secretário-geral.
23
Em cooperação com sete entre eles: British Council, Goethe Institut, Instituto Cer-
vantes, centros culturais grego, russo, sueco, consulado-geral da Itália.
24
The Art of Human Dance, espetáculo de dança hip hop, entre outras, e ateliês de
dança ministrados no Centro Cultural Francês.
25
Alimentado pelo Ministério de Assuntos Exteriores da França e da Alemanha.
26
GlobaLocal cruzava o olhar de dois fotógrafos, o franco-egípcio Nabil Boutros e o
alemão Julian Röder.
27
No contexto do Fundo Franco-Alemão e da parceria Goethe Institut/Centro Cultu-
ral Francês de Alexandria, em colaboração com a Associação DayerMaydor de Siwa, o
Teatro Warsha, do Cairo, a Companhia Alis, da França, o grupo musical Hossam Shaker,
do Egito e da Alemanha.
28
Uma parceria com a École Nationale Supérieure de la Photographie d’Arles foi
implementada. Fotógrafos aprendizes foram acolhidos nesse contexto a cada ano.
29
Espetáculos: Murs... Murs. Portraits. Quand le Rideau se Lève. Passage. Villes et Banlieues.
Mouvement. Alexandria Quartiers d’Été. La Planète des Jovens. Père et Fils. Grand Écran. La
Ville s’Écrit. Variações. Vues d’Afrique. Parfums d’Été. Lieux de Mémoire. Sur le Pont des Arts.
Ecran Total. Francophonie Francofolie. Da Seine à la Scène. Culture em Images. L’Écriture
Dans todos ses États etc.
30
A pressão escolar é muito forte nas famílias egípcias que se endividam para pagar
cursos particulares a seus filhos.
31
Todas as atividades são traduzidas em cabine, os materiais escritos também
são bilíngues.
32
A última delas, de 2008, realizada por Olivier Donnat, como as anteriores, tratava de
As práticas culturais dos franceses na era digital. Paris: Departamento dos Estudos e da
Prospectiva. Ed. La Découverte/Ministério da Cultura e da Comunicação.
33
Trata-se de Yannick Vernet, estudante da Universidade de Avignon e do País de
Vaucluse, elaborando pesquisa para compor a sua tese de mestrado em ciência da
cultura e da comunicação.
34
Em 2005/2006, estudante do Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux.
35
O conceito é de Michel de Certeau, em L’invention du quotidien.
36
E agora também Facebook e Twitter etc.
37
Les pratiques culturelles des français à l’ére numérique, op. cit., p. 224.
38
Nome de um partido político criado há alguns anos.
39
CAUNE, Jean. Pour une éthique da médiation. Le sens des pratiques culturelles.
Presses Universitaires de Grenoble, 1999, p. 12.
40
COULANGEON, Philippe. Sociologie des pratiques culturelles. Paris: Ed. La Découverte,
2010, p. 5.
41
“Nem mesmo em sonho eu teria podido imaginar esta revolução”, diz o escritor
Sonallah Ibrahim a R. Solé no Le Monde de 11/2/2011.
42
CONROD, Daniel. Une politique culturelle est-elle encore possible?. Télérama n.
3191, 2011.
43
Déclaration de Mexico sur les politiques culturelles. Unesco, 1970.
44
MONGIN, Olivier. Création et culture à l’âge post-colonial. Esprit, Quelle culture
défendre?, 2002, p. 324.
45
Ibid. p. 332.

.110
Conheça os números anteriores da Revista Observatório Itaú Cultural,
disponíveis em PDF para download no site do Observatório Itaú Cultural:
http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2798.

Revista Observatório Itaú Cultural nº 11 – Direitos Culturais: um novo papel


Este número é dedicado aos direitos culturais em diversos âmbitos: relata o desenvolvi-
mento do campo, sua relação com os direitos humanos, a questão dos indicadores sociais
e culturais e o tratamento jurídico dado ao assunto.

Revista Observatório Itaú Cultural nº 10 – Cinema e audiovisual em perspectiva:


pensando políticas públicas e mercado
Esta edição trata das políticas para o audiovisual no Brasil e passa por temas como distri-
buição, mercado, políticas públicas para o audiovisual, direitos autorais e gestão cultural,
novas tecnologias, além de trazer texto de Silvio Da-Rin, ex-secretário do Audiovisual. Parte
dos artigos é de ganhadores do Prêmio SAV e do Programa Rumos Itaú Cultural Pesquisa:
Gestão Cultural 2007-2008.

Revista Observatório Itaú Cultural nº 9 – Novos desafios da cultura digital


As novas tecnologias transformaram a indústria cultural em todas as suas fases, da produção
à distribuição, assim como o acesso aos produtos culturais. Em 12 artigos, esta edição discute
as questões que a era digital impõe à indústria cultural, os desafios que permeiam políticas
públicas de inclusão digital, a necessidade de pensar os direitos autorais, e como trabalhar
a cultura na era digital. Traz entrevista com Rosalía Lloret, da Rádio e TV Espanhola, e Valério
Cruz Brittos, professor e pesquisador da Unisinos, sobre convergência das mídias e televisão
digital, respectivamente.

Revista Observatório Itaú Cultural nº 8 – Diversidade cultural: contextos e sentidos


Esta edição é dedicada à diversidade. Na primeira parte, são explorados diversos aspectos
culturais do país – aspectos que estão à margem da vivência e do consumo usual do brasilei-
ro – e como as políticas de gestão cultural trabalham para a assimilação e preservação deles,
de modo que não causem fortes impactos na dinâmica social.
A segunda parte da revista é composta de artigos escritos por especialistas em cultura e
tem como fio condutor a discussão sobre a sobrevivência da diversidade cultural em um
mundo globalizado.

Revista Observatório Itaú Cultural nº 7


A Lei Rouanet é o tema do sétimo número da revista Observatório Itaú Cultural. Nesta edi-
ção, os autores discutem diversos aspectos e consequências dessa lei: a concentração de
recursos no eixo Rio-São Paulo, o papel das empresas estatais e privadas, o incentivo fiscal.
O ministro da Cultura, Juca Ferreira, comenta em entrevista a lei e as falhas do atual modelo.
O propósito deste número é apresentar ao leitor as diversas opiniões sobre o assunto para
que, ao final, a conclusão não seja categórica; o setor cultural é tecido por nuances, portanto
há que pensá-lo como tal.

Revista Observatório Itaú Cultural nº 6


O gestor cultural é uma profissão que, no Brasil, ainda não atingiu seu pleno reconheci-
mento. A sexta revista Observatório Itaú Cultural é dedicada a expor e debater esse tema.
Neste número, há uma extensa indicação bibliográfica em português, além de artigos e
entrevistas com professores especializados no assunto. A carência profissional nesse meio
é fruto da deficiência das políticas culturais brasileiras, quadro que começa a se transfor-
mar com a maior incidência de pesquisas e cursos voltados à formação do gestor.

.111
Revista Observatório Itaú Cultural nº 5
A quinta revista é resultado do seminário internacional A Cultura pela Cidade – uma Nova
Gestão Cultural da Cidade, organizado pelo Observatório Itaú Cultural. A proposta do semi-
nário foi promover a troca de experiências entre pesquisadores e gestores de Brasil, Espa-
nha, México, Canadá, Alemanha e Escócia, que utilizaram a cultura como principal elemento
revitalizador de suas cidades. Nesta edição, além dos textos especialmente escritos para o
seminário, estão duas entrevistas para a reflexão sobre o uso da cultura para o desenvolvi-
mento social: uma com Alfons Martinell Sempere, professor da Universidade de Girona, e
outra com a professora Maria Christina Barbosa de Almeida, então diretora da biblioteca da
ECA/USP e atual diretora da Biblioteca Mário de Andrade. A revista nº 5 inaugura a seção de
crítica literária, com um artigo sobre Henri Lefebvre e algumas indicações bibliográficas. Para
encerrar a edição, há o texto sobre a implantação da Agenda 21 da Cultura.

Revista Observatório Itaú Cultural nº 4


O que é um indicador, como definir os parâmetros de uma pesquisa, como usar o indi-
cador em pesquisas sobre cultura? A quarta revista Observatório Itaú Cultural trata desses
assuntos por meio da exposição de vários pesquisadores e do resumo dos seminários in-
ternacionais realizados pelo Observatório no fim de 2007. Ao final da revista, há um texto
da ONU sobre patrimônio cultural imaterial.

Revista Observatório Itaú Cultural nº 3


A terceira revista Observatório Itaú Cultural discute políticas para a cultura, relata a expe-
riência do Programa Rumos Itaú Cultural Pesquisa: Gestão Cultural e os seminários reali-
zados nas regiões Norte e Nordeste do país para a divulgação do edital do programa. A
segunda parte da revista traz artigos que comentam casos específicos de cidades onde a
política cultural transformou a realidade da população, a experiência do Observatório de
Indústrias Culturais de Buenos Aires e uma breve discussão sobre economia da cultura.

Revista Observatório Itaú Cultural nº 2


O segundo número da revista é dividido em duas partes: a primeira trata das atividades
desenvolvidas pelo Observatório, como as pesquisas no campo cultural e o Programa Ru-
mos, e traz resenha sobre o livro Cultura e Economia – Problemas, Hipóteses, Pistas, de Paul
Tolila. A segunda parte é composta de diversos artigos sobre a área da cultura escritos por
especialistas brasileiros e estrangeiros.

Revista Observatório Itaú Cultural nº 1


Esta revista inaugura as publicações do Observatório Itaú Cultural. Criado em 2006 para pensar
e promover a cultura no Brasil, o Observatório realizou diversos seminários com esse intuito.
O primeiro número da revista é resultado desses encontros. Os artigos discutem o que é um
observatório cultural, qual sua função, como formular e usar dados para a cultura, as indústrias
culturais. A edição também comenta experiências de outros observatórios.

.112
itaú cultural avenida paulista 149 [estação brigadeiro do metrô] fone 11 2168 1777 atendimento@itaucultural.org.br www.itaucultural.org.br twitter.com/itaucultural youtube.com/itaucultural

Você também pode gostar