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Os públicos da cultura:
.12
desafios contemporâneos
Possibilidades e limites para ampliação de públicos
Conceito de público: reflexões a partir do cenário cultural contemporâneo
Uma aguda reflexão sobre a relação entre arte contemporânea e público
Foto: Humberto Pimentel
Revista Observatório Itaú Cultural : OIC. – N. 12 (maio/ago. 2011). – São Paulo : Itaú Cultural, 2011.
Quadrimestral.
ISSN 1981-125X
.2
n. 12 2011
SUMÁRIO
.3
Revista Observatório Itaú Cultural
Editora
Isaura Botelho
Editor de imagem
Humberto Pimentel
Equipe de edição
Josiane Mozer
Mariana de Oliveira Machado
Selma Cristina Silva
Produção editorial
Lara Daniela Gebrim
Tradução
Mateus Araújo Silva
Revisão de textos
Rachel Reis
Rosana Brandão
Projeto gráfico
Yoshiharu Arakaki
Design
Estúdio Lumine
observatorio@itaucultural.org.br
.4
Exposição Sutil Violento, itinerância Chile. Abertura no Museo Nacional de Bellas Artes, 2008.
Foto: Cia de Foto
.5
.6
Aos leitores
Eduardo Saron .7
Foto: Humberto Pimentel
Exposição Sutil Violento, itinerância Uruguai, espaço expositivo do Museo Nacional de Artes Visuales, 2008. Foto: Carmen Luccas/Itaú Cultural
os pÚBLICOS DA CULTURA:
DESAFIOS PARA AS POLíticas
culturais
Isaura Botelho
.8
Foi a partir dessa constatação que pareceu oportuno o convite aos
colaboradores, todos franceses. Assim como o primeiro Ministério
da Cultura, a França também criou o primeiro departamento mi-
nisterial, em 1960, voltado exclusivamente para estudos e pesqui-
sas socioeconômicos da cultura, quantitativos e qualitativos, com
o intuito de auxiliar na formulação e na tomada de decisões em
matéria de políticas culturais. Cinquenta anos depois, a produção
e a excelência desse organismo atravessaram fronteiras, estimulan-
do a criação de centros análogos em outros países.
.9
Consequentemente, o centro de gravidade da política cultural se
desloca e convoca a formulação de intervenções em dinâmicas res-
tritas ao espaço doméstico e que são dominadas pela lógica de mer-
cado. Para ele, é um desafio tão importante quanto aquele aberto
por Malraux na criação do Ministério dos Assuntos Culturais.
.10
a uma análise das políticas de democratização cultural baseadas
nos pressupostos da universalidade da cultura erudita como valor
maior e da universalidade do “desejo por cultura”. Esses equívocos
são o pano de fundo da não incorporação de novos segmentos
sociais nessas práticas legitimadas. Coulangeon avança sobre as
diferenças que a incorporação do novo paradigma da democra-
cia cultural traz para o campo das políticas culturais, fundando
uma alternativa que permite questionar as hierarquias culturais
estabelecidas. Mostra, porém, como o sistema de hierarquização
tradicional continua presidindo a distribuição de recursos, fazen-
do com que as subvenções continuem voltadas para o financia-
mento da produção de bens e serviços, ou seja, da oferta. Daí o
encaminhamento da análise para as questões relativas às políticas
de oferta e de demanda e à força das heranças sociais e familiares,
que o próprio Coulangeon chama de “variável principal e oculta”
em outro texto em que ele discorre sobre o papel da escola na
democratização do acesso aos equipamentos culturais. Assim, a
transmissão de valores, gostos e hábitos tem o seu lócus privile-
giado na família, a partir da educação recebida durante a infância
e a adolescência; sabendo disso é que se pode afirmar a fragilida-
de da subvenção da oferta e das apostas da política de democra-
.11
tização na melhor distribuição territorial de equipamentos e nas
medidas de rebaixamento de custos de ingressos.
.12
Uma rápida abordagem sobre os tipos de pesquisas e seus limites
é o que evoca Jean-Michel Guy no início de seu artigo, ao lado dos
problemas ligados à metodologia. Mais voltado para uma reflexão
do que para conclusões, ele propõe uma indagação de ordem epis-
temológica sobre a imprecisão de termos que estão no cerne do
tema tratado em seu texto, que são os públicos das artes do espe-
táculo: espetáculo, espectador e público. Sobre os limites políticos
das pesquisas, Jean-Michel Guy chama a atenção principalmente
para o fato de elas não terem consequência efetiva, o que nos leva
a pensar que, para os seus comanditários, a encomenda lhes basta.
As considerações feitas a partir da última pesquisa sobre as práti-
cas culturais dos franceses confirmam o fato de que as taxas de
frequência a espetáculos em geral e de cada gênero em particular
variam consideravelmente de acordo com variáveis como idade,
sexo, nível de instrução e categoria profissional, assim como o ta-
manho da cidade e região do domicílio. Sua leitura dos dados é ex-
tremamente instrutiva no sentido de nos mostrar as possibilidades
que o exercício da análise e a construção de variáveis pertinentes
abrem, permitindo um conhecimento mais refinado das dinâmicas
que presidem os hábitos de consumo cultural. A problematização
da análise não apenas refina esse conhecimento específico como
revela movimentos mais amplos da sociedade.
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.14
Performance do artista Shima, selecionado do Rumos Artes Visuais, 2008/2009. Foto: Christina Rufatto/Itaú Cultural
Do ponto de vista metodológico, o grande achado de Heinich foi
o de utilizar a rejeição à arte contemporânea, explicitada sob diver-
sas formas pelo senso comum e não pelo discurso de especialistas.
Como ela diz,
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o pequeno público dos visitantes muito motivados se transfor-
ma, por metonímia, no “público”, enquanto o grande público
anônimo praticamente desaparece do campo de percepção.6
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temporânea, da mesma forma que a morfologia particular de um
mundo excessivamente restrito e bastante recente, duplamente
voltado para dentro de si mesmo, não parece encorajar a abertura
àqueles que não detêm o domínio sobre essas variáveis. A análise
de Nathalie Heinich aponta claramente para o fato de que, antes
de constituir uma agressão, as rejeições à arte contemporânea são
uma defesa à agressão sentida por seus detratores: uma agressão
contra os valores tradicionais da arte, que eles aprenderam a res-
peitar. Não são, portanto, gostos que se afrontam, mas paradigmas
estéticos, nos quais está em jogo inclusive a legitimação daquilo
que pode ou não ser chamado obra de arte.
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Isaura Botelho
Doutora em ação cultural pela ECA/USP e pós-doutorada na Fran-
ça. Gestora cultural desde 1978, trabalhou na Funarte, na Biblio-
teca Nacional e no Ministério da Cultura. Como pesquisadora co-
ordenou O Uso do Tempo Livre e as Práticas Culturais na Região
Metropolitana de São Paulo, no Centro de Estudos da Metrópole/
Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), em São Pau-
lo. É autora de livros, artigos e ensaios sobre política cultural.
E-mail: zau.botelho@gmail.com
Notas
1
Uma respeitável literatura sociológica já apontava isso, e a contribuição teórica de
Pierre Bourdieu é aqui balizadora dos avanços havidos nesse campo.
2
BOURDIEU, Pierre. Raisons pratiques. Paris: Minuit, 1994, p.141.
3
Nîmes, Editions Jacqueline Chambon, 1998.
4
Assim, encontramos menções à pesquisa em artigos de sua autoria e em dois outros
de seus livros: Le triple jeu de l’art contemporain e Ce que l’art fait à la sociologie, ambos
editados pela Editions de Minuit em 1998.
5
De la justification. Les économies de la grandeur. Paris: Gallimard, 1991.
6
Trata-se de uma entrevista realizada por mim em 1999. Ela citou, na ocasião, o caso
do diretor de um museu regional que afirmara ter deixado de ler o livro de presenças,
já que ele só via observações de ordem prática ou interjeições desabusadas, que ele
preferia desconsiderar.
7
Entrevista citada.
8
A autora menciona ter ouvido o argumento de que a difusão junto ao grande
público seria secundária, só importando aquela feita junto aos especialistas, o que
é inaceitável em termos de uma política de democratização da cultura, como no
caso francês.
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Público interage com a obra 9/4 Fragmentos de Azul, de Gilberto Prado, na exposição A Subversão dos Meios, 2003.
Foto: Rubens Chiri/Itaú Cultural
DEMOCRATIZAÇÃO DA CULTURA:
FIM E CONTINUAÇÃO?1
Olivier Donnat
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Não se trata aqui de rediscutir as dimensões contraditórias do proje-
to inicial de democratização nem a profusão de iniciativas do início
dos anos 1980 que contribuiu para consumi-lo,2 mas simplesmente
de constatar que a política cultural foi progressivamente “esque-
cendo” suas missões de ampliação da demanda em proveito das
missões ligadas à criação ou à distribuição cultural no território. O
projeto de democratização desapareceu aos poucos do horizonte
da política cultural, sem que ninguém assumisse explicitamente a
responsabilidade por tal abandono nem examinasse precisamente
as razões que o justificavam. Devemos concluir que as desigualda-
des de acesso à arte e à cultura diminuíram ou que as questões le-
vantadas pela problemática da democratização foram resolvidas?
.20
à oferta cultural (apoio à criação, à valorização do patrimônio, à cria-
ção de equipamentos...) e aqueles relativos à demanda, pensados
por muito tempo como duas faces de um único projeto, são na ver-
dade largamente autônomos. Ambos são legítimos, mas a busca dos
primeiros não garante de modo algum a realização dos segundos.
Assim sendo, a alternativa é clara.
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quais as principais inflexões ou rupturas exigidas para um ree-
quilíbrio da política cultural em favor das questões de demanda?
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de equidade. Já não é hora de tirar as lições da constatação, con-
firmada a cada pesquisa, de que os cidadãos não são todos iguais
perante a arte e de que a política cultural, observado o perfil so-
ciodemográfico dos públicos que dela mais se beneficiam, consti-
tui uma redistribuição ao avesso? Assim sendo, por que não admitir
que a diversificação dos públicos da cultura passa necessariamente
por ações cuidadosamente dirigidas e plenamente assumidas como
tais,7 já que todos sabem que tentar “converter” as pessoas menos
inclinadas à arte exige mais tempo, energia e poder de convicção, e
supõe, consequentemente, mais recursos?
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raras exceções, às condições de socialização das pessoas envolvi-
das e a seu ambiente social imediato. Admitir tal visão das coisas
nos leva obviamente a ver na educação artística e cultural o único
meio de transformação das condições de produção do “desejo” de
cultura e a deplorar o lugar sobremodo modesto que lhes concede
o sistema escolar francês. Sabemos que essa questão tem seu lugar
na agenda política desde os anos 1980: vários planos nacionais se
sucederam sem que os recursos necessários à sua implementação
fossem alocados, em parte por razões ligadas à história tumultuosa
das relações entre os ministérios da Cultura e da Educação nacional.
Não pretendemos voltar aqui à questão, mas tão só salientar que
o objetivo de uma política, a nosso ver, longe de se limitar apenas
à promoção da oferta proposta pelas instituições culturais numa
perspectiva de formação dos “espectadores de amanhã” ou ao es-
tímulo do potencial criativo das crianças e dos adolescentes, deve
concernir ao conjunto da produção cultural de ontem e de hoje, em
toda a sua diversidade. Como a educação artística e cultural poderia
hoje se esquivar dos debates sobre o estatuto atualmente incerto da
obra de arte e sobre a multiplicação das instâncias de legitimação,
permanecendo prisioneira de uma concepção da cultura limitada
apenas às grandes obras da arte e do espírito, e definida por oposi-
ção às mercadorias culturais?9 E, ainda mais, como ela poderia igno-
rar o papel desempenhado em nossa sociedade pelas “fábricas de
sonhos”, para falar como Malraux?
Exposição Sob o Peso dos Meus Amores, Leonilson, 2011. Foto: Edouard Fraipont/Itaú Cultural
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Longe de nós a ideia de contestar a necessidade de transmitir as re-
ferências necessárias à compreensão das obras da cultura clássica às
jovens gerações, cada vez menos armadas para “lê-las” em razão do
recuo concomitante das humanidades nos programas escolares e
da religião na educação familiar; longe de nós também a ideia de
negar que a criação contemporânea, mais do que qualquer outra
forma de expressão, requer um trabalho de explicitação e de sensibi-
lização prévio para ser apreciada como obra, seja nas artes plásticas,
seja na música, no teatro ou na dança. De fato, é mais do que nunca
indispensável que as políticas educativas integrem essas dimensões,
mas com a condição de inscrevê-las num contexto que é o nosso
hoje, a saber, o de uma sociedade dominada pela mídia e pelas in-
dústrias do entretenimento, em que o estatuto simbólico das obras
e dos produtos culturais ficou mais incerto. Quem hoje pode negar
seu embaraço no momento de definir o que é uma obra de arte ou
um produto cultural? A lógica interna da arte contemporânea que
leva à interrogação incessante sobre a fronteira entre arte e não arte;
a tendência à mestiçagem artística observada em várias formas de
artes do espetáculo (dança contemporânea e hip hop, novo circo...);
a programação cada vez mais eclética das casas de espetáculo; a
patrimonialização de objetos e lugares considerados anteriormente
como ordinários; uma política cultural cada vez mais voltada para a
produção de eventos; tudo isso torna particularmente perigoso o
exercício de definir os contornos do mundo da arte ou de situar os
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gêneros artísticos uns em relação aos outros à luz dos critérios que,
até algumas décadas atrás, serviam para distinguir as artes maiores
das menores. E isso se torna mais forte ainda pelo fato de já fazer mui-
to tempo que se desenvolvem no espaço doméstico novas relações
com a arte e a cultura.
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mente um grande desafio: imaginamos quantos espaços dedicados
às artes cênicas e quantos museus11 carecem de um departamento
encarregado dos públicos ou quantos, já o possuindo, consideram
sua atividade como um simples braço do departamento de comu-
nicação, confundindo “relações públicas” com “relações com o públi-
co”? Qual é a proporção de estabelecimentos culturais dotados de
funcionários qualificados capazes não de “fazer marketing”, mas de
colocar com eficácia os recursos do marketing a serviço das missões
que são de sua responsabilidade? Por exemplo, para nos limitarmos
a considerações muito operacionais, quantos deles aproveitam
plenamente as potencialidades oferecidas em matéria de conheci-
mento dos públicos pelos programas de vendas de ingresso ou de
gestão das assinaturas?
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cessariamente escapar ao medo da democracia finamente denun-
ciada por Jacques Rancière.12 Outros continuam a falar do público de
seu estabelecimento no singular, como de uma entidade abstrata,
ou falam dos públicos no plural através de categorias ideológicas e/
ou administrativas (os jovens, o grande público...) sem interrogar sua
pertinência no contexto que é o delas. Outros, enfim, arriscam-se no
terreno das pesquisas, mas como que a contragosto, com precon-
ceitos que não resultam apenas do caráter frequentemente literário
de sua formação, evocando ora o risco de que os resultados sejam
repetitivos, rotineiros, e não tragam nada que não se soubesse de
início, ora o risco de eles revelarem o que seria melhor calar para não
fornecer armas aos adversários (reais, potenciais ou imaginários). No
fim das contas, são raros os que procuram desenvolver uma verda-
deira abordagem da demanda, recrutando profissionais competen-
tes, dominando sem tabu, mas sem fascinação os instrumentos do
marketing, e destinando orçamentos suficientes para levar a cabo es-
tudos “cientificamente corretos” sobre as problemáticas definidas por
eles próprios em função da oferta que propõem e do contexto social
no qual ela se inscreve. Assim também, são poucos os que vencem
os velhos preconceitos dos meios culturais em relação a todas as me-
didas que visem apoiar a demanda – lembremos notadamente os
vales-cultura – sempre suspeita de certa prepararação por parte dos
poderes públicos, para abandonar o incentivo financeiro à criação.
.28
outras dimensões, além da qualidade da oferta artística ou cultural
em si mesma, que concorrem para a satisfação dos usuários: facili-
dade de acesso, convivialidade do lugar, qualidade do atendimento,
diversidade dos serviços oferecidos etc. Ora, na França, mais do que
em outros países, a sacralização das obras e dos artistas levou-se a
considerar as pessoas responsáveis pela mediação mais como in-
tercessores ou funcionários a serviço deles próprios do que como
prestadores de serviços públicos. Não esqueçamos nunca que as
experiências estéticas sempre são também atividades sociais, como
salienta judiciosamente Dominique Pasquier quando nota que “a
ida à ópera é por vezes menos uma relação com as obras do que
com os outros”.14 O prazer experimentado no contato com as obras é
frequentemente um prazer compartilhado, inscrito na sociabilidade
amigável ou familiar e frequentemente alimentado pelo sentimento
de ser esperado. Como no amor, no domínio cultural o desejo pode
nascer do desejo do outro, e são inúmeros os meios de alimentar
esse desejo tanto no plano da organização do espaço quanto no
plano da atitude do pessoal encarregado da mediação.
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Público na exposição Game o quê?, 2003. Foto: Rubens Chiri/Itaú Cultural
.30
O poder da “cultura em domicílio” ligada ao equipamento das
casas e ao desenvolvimento das tecnologias digitais deslocou
o centro de gravidade da dinâmica artística e cultural, transfor-
mando radicalmente as condições de produção, conservação,
difusão e apropriação das obras. Por conseguinte, ela deslocou
também o centro de gravidade da política cultural, obrigando-a
a intervir em dinâmicas de desenvolvimento grandemente do-
minadas pela lógica do mercado e por comportamentos que
pertencem essencialmente à esfera doméstica. A violência das
mutações em curso, ligada ao fato de que estas tinham sido
pouco previstas pelos setores culturais, pode explicar o caráter
essencialmente defensivo do discurso ministerial, notadamente
nas primeiras reações à difusão das práticas de partilha de arqui-
vos. Hoje, entretanto, ficou evidente para todos: a era digital na
qual acabamos de entrar abre para a política cultural um novo
campo de intervenção considerável, ao menos tão importante
quanto aquele aberto por Malraux na criação do Ministério dos
Assuntos Culturais.
Isso não quer dizer que a situação permanece como estava. Vi-
mos bem nos últimos anos que o desenvolvimento das práticas
de troca de músicas ou vídeos na internet repercutiu nos com-
portamentos em matéria de compra de discos ou frequentação
de concertos, mesmo que devamos nos manter prudentes nes-
se domínio, evitando, sobretudo, raciocinar em termos de sim-
.31
ples substituição.19 Na verdade, o salto da “cultura em domicílio”
já começou a transformar profundamente as práticas culturais
“tradicionais”, e tudo indica que esse movimento se ampliará à
medida que as gerações que com ela cresceram envelhecerem:
não assistimos a um filme no cinema da mesma maneira como
o vemos em casa; não lemos um livro da mesma maneira quan-
do boa parte dos atos de leitura se faz na tela do computador;
não travamos a mesma relação com as obras e com o saber na
época do copiar/colar. É difícil, assim, não pensar que a difusão
dessa “cultura em domicílio” ainda largamente por vir provocará,
em médio prazo, profundas modificações nos modos de apro-
priação dos conteúdos e das hierarquias culturais.20 E como ima-
ginar que o fato de a “cultura em domicílio” aparecer cada vez
mais frequentemente como um recurso de acesso livre – por ser
financiado pela publicidade ou por ser pago antes ou depois do
uso – não dificulte que as novas gerações concordem em pagar
pela cultura?
.32
Olivier Donnat
Sociólogo e pesquisador do Departamento de Pesquisa, Plane-
jamento e Estatística do Ministério da Cultura e Comunicação da
França, palestrante do Instituto de Estudos Políticos de Toulouse e
membro editorial da revista Réseaux.
E-mail: olivier.donnat@culture.gouv.fr
Notas
1
Artigo publicado originalmente em SAEZ, Jean-Pierre (dir.). Culture et société: un lien à
reconstruire. Ed. de l’Attribut, março de 2008.
2
Já tratamos o primeiro ponto no artigo “La question de la démocratisation dans la
politique culturelle française”, Modern and contempory France, vol. 11, 2003. O segun-
do ponto é desenvolvido numa versão mais longa do presente texto, consultável em
linha no site do Observatoire des Politiques Culturelles (OPC).
3
Retomamos aqui deliberadamente os próprios termos do relatório de Rigaud J.
“Pour une refondation de la politique culturelle”, La Documentation Française, 1996.
4
Uma publicação recente faz um balanço dessa questão: L’état des inégalités en France.
Belin, 2006.
5
Quelles missions pour le ministère de la culture?.Esprit, n. 1, 1997.
6
Cf. HEINICH, N. L’élite artiste. Excellence et singularité en régime démocratique. Gal-
limard, 2005.
7
Saber se nesse caso convém ou não falar de discriminações positivas ou de affirma-
tive actions escapa ao registro do nosso trabalho.
8
Pensamos particularmente nas reações contra Catherine Trautmann quando, na condição
de ministra, ela declarou: “É preciso caminhar rumo à mediação, o acompanhamento edu-
cativo a partir de práticas artísticas e culturais dos públicos. Sem esse esforço de educação
e de mediação, o discurso sobre a democratização não passa de teoria”. TRAUTMANN, C.
Coletiva de imprensa em 26/2/1998 sobre as reformas adotadas para uma democratização
da cultura.
9
Aludimos aqui ao texto oficial que define a base comum de competências “mínimas”
que todo aluno deve adquirir antes de sair do sistema escolar, texto em cujo capítulo
sobre a cultura humanista se menciona a capacidade de “distinguir os produtos de
consumo cultural e as obras de arte”.
10
Cf. GAUCHET, M. “La redéfinition des âges de la vie”. Le Débat, n. 132, 2004.
11
Em 2003, quase a metade dos museus franceses carecia de um serviço dos públi-
cos. Cf. Les museus de France en 2003. Notes statistiques du Deps. 2006.
12
Quando ele observa que a “verdadeira” democracia, entendida como o governo de
qualquer um, “é votada ao ódio interminável de todos aqueles que têm títulos a apre-
sentar para o governo dos homens: nascimento, riqueza ou ciência”, temos vontade
de acrescentar a essa lista o capital cultural ou o sentido “inato” da estética. Cf. RAN-
CIÈRE, J. La peur de la démocratie. La Fabrique, 2005, p. 103.
.33
13
Daí a necessidade de generalizar a prática da avaliação que – devemos reconhecer
– no domínio cultural tem dificuldade de se tornar um hábito, apesar de aparecer, há
muitos anos, como uma obrigação fundamental.
14
PASQUIER, D. La culture comme activité sociale. In: MAIGRET, E.; MACE, E. (dir.). Pen-
ser les médiacultures. A. Colin, 2005.
15
Ver, por exemplo, “Comment l’Opéra de Paris Soigne ses Spectateurs”. La Scène, 2006.
16
O que levou S. Tisseron a propor o termo “extimidade”. Cf. L’intimité surexposée. Ramsay, 2001.
17
Referência à política de F. Mitterand. Os Grand Travaux (pirâmide do Louvre, grande
arco da Défense, entre outros) mobilizaram recursos fantásticos que foram alocados
no Ministério da Cultura [nota do tradutor].
18
Assim, por exemplo, os que baixam músicas na internet frequentam mais os concer-
tos do que os que não baixam. Cf. NICOLAS, Y. Le téléchargement sur les réseaux de
pair à pair. Développement culturel, n. 148, 2005.
19
Sobre esse ponto, lembremos como são nuançadas, para dizer o mínimo, as
conclusões dos estudos recentes sobre os vínculos entre o desenvolvimento do
peer to peer e a queda nas vendas de discos. Cf. CURIEN, N.; MOREAU, F. L’industrie du
disque à l’heure de la convergence télécoms/médias/internet. In: Création et diversité
au miroir des industries culturelles. La Documentation Française, 2006.
20
B. Lahire, por exemplo, estabelece uma relação estreita entre a ascensão da “cultura
em domicílio” e o caráter cada vez mais dissonante dos universos culturais, notada-
mente nos meios cultivados que prestariam menos atenção no espaço doméstico,
naquilo que aparece como “erros culturais” do ponto de vista da legitimidade cultural.
Cf. LAHIRE, B. La culture des individus. La Découverte, 2004.
.34
O maestro e pianista João Carlos Martins se apresenta na festa de comemoração dos 455 anos da cidade de São Paulo, 2009.
Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress
As políticas culturais
DIANTE Dos critérios de
justiça: reflexões a partir
do caso francês1
Philippe Coulangeon
.35
Essas pesquisas mostram particularmente que o acesso às práti-
cas mais legitimadas (frequência a museus, a monumentos histó-
ricos, a teatros, a concertos de música clássica ou a espetáculos
coreográficos) continua especialmente “hierarquizado”: os desní-
veis na taxa ou na intensidade da frequentação entre as classes
sociais permanecem grandes. Assim, enquanto os operários que
não tinham frequentado nenhum dos equipamentos citados aci-
ma passavam de metade na primeira das cinco pesquisas sobre as
práticas culturais dos franceses (em 1973) e chegavam a 65% na úl-
tima da série (em 2008), menos de 20% dos executivos superiores
em 1973 e mesmo menos de 15% em 2008 estavam nesse caso.
A democratização malograda
.36
Democratização da cultura e democracia cultural
Rumos Educação Cultural, aula-espetáculo com Barbatuques, 2005. Foto: Cia de Foto
.38
por estruturas mais leves, situadas num perímetro cultural mais
diversificado e correspondendo mais à filosofia do desenvolvi-
mento cultural.
Por mais legítima que ela seja, a crítica aos efeitos, na melhor das
hipóteses, limitados da economia da subvenção para a ampliação
do acesso à cultura é, porém, enfraquecida pela dificuldade de
definir uma política cultural alternativa, política da demanda que
tem na importância dos argumentos não monetários sua princi-
pal dificuldade. Como encorajar uma demanda que não dependa
apenas (nem mesmo principalmente) de ser viabilizada financei-
ramente, ao contrário do que ocorre nas políticas ordinárias de
apoio ao consumo?
.39
neiras’’ de habitar, se distrair, se vestir, se deslocar ou se alimentar
(e não só o volume de despesas reservado a cada item) se ins-
crevem em redes complexas de influências e determinações, que
misturam elementos de natureza diferente: restrições de tempo,
renda ou preço, certamente, mas também peso dos hábitos an-
corados na infância e na adolescência, efeitos de imitação (ou de
singularização) em relação ao ambiente socioprofissional (ou es-
colar) ou à rede de amigos ou de vizinhos, preocupação com o
conforto, mas também com a aparência etc.
.40
O que é uma política cultural justa?
Encontro Educação Não Formal: Ações e Repercussões, apresentação do projeto Joaninha (Ballet Stagium). Foto: Cia de Foto
.41
Itaú Numismática Museu Herculano Pires. Foto: Cia de Foto
.42
gitimidade reconhecida assim como o desejo por essas práti-
cas provém da eficácia que lhes é, com ou sem razão, atribuída
noutros setores da vida social, quer consideremos tais práticas
portadoras de recursos cognitivos que contribuem a encorajá-
las (em particular nos mais jovens, na ótica notadamente de
sua conversão escolar), quer as associemos mais diretamente a
vantagens de distinção ou de acesso a certos status ou a certos
grupos sociais valorizados.
.43
duos. Para cada combinação considerada de origem e posição, a
proporção de indivíduos não tendo frequentado nenhum desses
equipamentos culturais ao longo do ano que precedeu a pesqui-
sa, ou, inversamente, tendo frequentado ao menos três, apresenta
uma estrutura ‘‘diagonal‘‘ muito clara: a proporção de entrevis-
tados, entre as pessoas de origem e de posição superiores, não
tendo frequentado nenhum equipamento é mais fraca do que a
das pessoas de origem e de posição média, que é, porém, menos
elevada do que a das pessoas de origem e de pertença popular.
O indicador de frequentação de pelo menos três desses equipa-
mentos apresenta uma hierarquia simetricamente inversa (ver ta-
belas 1 e 2).
Posição social
Superior Média Popular
Superior 13 21 46
Origem
Média 23 30 55
social
Popular 27 46 67
Posição social
Superior Média Popular
Superior 45 34 15
Origem
Média 45 24 9
social
Popular 31 16 4
.44
práticas culturais dos franceses, 2008.
Campo: ativos e ex-ativos de 15 anos ou mais, que informaram à
pesquisa sua última profissão e a de um de seus pais.
.45
tricos, e observamos o mesmo tipo de combinação se tomamos
como referência não mais a origem superior, mas a origem mé-
dia ou popular.
Posição social
Superior Média Popular
Superior 39 34 22
Origem
Média 31 20 17
social
Popular 27 18 11
Posição social
Superior Média Popular
Superior 6 8 21
Origem
Média 6 11 22
social
Popular 7 13 28
.46
Fonte: Ministério da Cultura e da Comunicação, pesquisas sobre
as práticas culturais dos franceses, 2008.
Campo: ativos e ex-ativos de 15 anos ou mais, que informaram à
pesquisa sua última profissão e a de um de seus pais.
.47
Philippe Coulangeon
Diretor de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Científica
(CNRS) e do Instituto de Ciências Políticas de Paris. Pesquisa temas
relacionados à desigualdade social e às relações de classe nos cam-
pos da cultura, da educação e dos estilos de vida.
E-mail: philippe.coulangeon@sciences-po.fr
Notas
1
Este texto se apoia em grande parte nos elementos de reflexão desenvolvidos no
capítulo 3 de Philippe Coulangeon, Les métamorphoses de la distinction. Inégalités cul-
turelles dans la France d’aujourd’hui. Paris: Grasset, 2011.
2
Ver Joffre Dumazedier, Vers une civilisation du loisir? Paris: Seuil, 1962.
3
Cf. La question de la suppression du ministère de la Culture peut se poser. Le Mon-
de, 30/12/2008, entrevista com Jean-Jacques Aillagon.
4
Sobre esta questão, ver notadamente Lise Santerre, “De la démocratisation de la cultu-
re à la démocratie culturale”. In: Guy Bellavance (Ed.). Démocratisation de la culture ou dé-
mocratie culturelle? Deux logiques d’action publique. Sainte-Foy: Presses de l’Université
de Laval, 2000, assim como Philippe Poirrier, L’État et la Culture en France au XXe siècle.
Paris: Libraire Générale de France, 2000.
5
Lembramos, por exemplo, a vaia levada em Avignon, em julho de 1968, por Jean Vilar (pilar
da descentralização teatral), cujo nome foi rimado por jovens festivaleiros com o do ditador
português Salazar.
6
Reconhecemos a teoria da assim chamada “doença dos custos”, dos economistas William
Baumol e William Bowen, segundo os quais a coexistência de setores de atividade com
produtividade crescente e setores com produtividade estagnante – entre os quais o setor
das artes do espetáculo – conduz necessariamente, pelo alinhamento dos custos de mão
de obra dos segundos aos dos primeiros, a um déficit estruturalmente progressivo do
financiamento dos setores “arcaicos”. Cf. William J. Baumol e William G. Bowen, Performing
arts – the economic dilemma, Cambridge: The MIT Press, 1966.
7
Para uma crítica particularmente esclarecedora das noções de justiça e de demo-
cracia habilitadoras, ver notadamente Patrick Savidan. Repenser l’égalité des chances.
Paris: Grasset, 2007.
8
Ver especialmente Bernard Lahire, L’homme pluriel: les ressorts de l’action.Paris: Na-
than, 1998, assim como La culture des individus. Dissonances culturelles et distinction
de soi. Paris: La Découverte, 2004.
.48
Visita ao Rio Tietê, exposição H2Olhos, SP, 2008. Foto: Cia de Foto
O quarto ofício
[métier] da infância:1
o de consumidor
cultural
Sylvie Octobre
.49
ou mais saídas, ou, ainda, por mesada (que serve frequentemente
para a compra de produtos culturais e para programas culturais). As
injunções juvenis são, por seu turno – e essa é uma de suas caracte-
rísticas –, muito ligadas aos códigos culturais, nas quais se encarnam
de maneira crescente desde a entrada no colégio, notadamente na
dimensão expressiva e interativa da música, da internet, mas tam-
bém dos comportamentos ligados à moda, ao look, à afirmação de
uma identidade visível. A “culturalização” dos três primeiros ofícios é
evidente, e se acelerou das primeiras observações de Jean-Claude
Chamboredon e Jean Prévot para cá.7
.50
– A abertura do campo dos possíveis e a queda da leitura. A mutação
das condições de escolarização provocada pela entrada no colégio
coincide com uma modificação do ofício de aluno, mas também
dos ofícios de criança e de amigo, companheiro. Se a pressão es-
colar indubitavelmente aumenta, ela é contrabalançada pelo reco-
nhecimento de maior autonomia de gostos culturais que não se
traduz ainda em uma independência material (de deslocamento,
gasto etc.), mas se apoia na materialidade da cultura do quarto, no
qual os objetos culturais ganham espaço crescente. Assim, o ofício
de criança é atravessado pelas dinâmicas contrárias ao ofício de ca-
marada: por um lado, a rede social dos colegiais se amplia; por ou-
tro, o controle parental se reconfigura, sob o efeito da modificação
das agendas escolares, mas também da mutação das demandas de
saídas (os aniversários dão lugar às festas, a rede de amigos se re-
compõe em geral num território geográfico mais vasto que o da es-
cola primária). A primeira metade do percurso do aluno no colégio
aparece assim como um período de redefinição dos equilíbrios que
regiam, na época da escola primária, os quatro registros – família/
escola/grupo de pares/lazeres –, mesmo que as escolhas permane-
çam ainda pouco individualizadas.
.51
Consumos Mídias Fim da leitura Entrada no Foco no computador e
culturais tradicionais, de livros, universo na escuta de música
leitura e multiplicação multimídia
esporte de lazeres,
práticas de
amador
Agenda cultural
no ofício de orientações
criança escolares
10 11 12 13 14 15 16 17
.52
2. Um ofício socialmente situado
.53
popular preferem a dance music e o R’n’B, e seus contemporâneos
vindos das categorias favorecidas escutam ainda rock e rap. Seis
anos mais tarde, aos 17 anos, essas oposições não desaparecem,
mas se deslocam sob o efeito da importância que a escuta de mú-
sica adquire e da construção de competências musicais, que mo-
dificam os perímetros do feminino e do masculino e rediferenciam
as clivagens socialmente situadas entre ambos: um gosto popular
masculino se constitui em torno do rap (outrora típico do gosto dos
filhos de executivos) e do R’n’B, gosto popular feminino em torno
da dance (outrora apreciada pelos meninos do mesmo meio), ao
passo que filhos e filhas de executivos se encontram em torno do
.54
rock, ao qual os primeiros acrescentam o hard, o punk e o metal, e as
segundas o rock francês (retomando seu gosto inicial pela canção
francesa). Observa-se então um duplo movimento: das meninas em
direção aos gostos dos meninos, e das categorias populares em di-
reção aos gostos das categorias superiores, que mantêm sistemas
de oposições nos quais cada um revela seu gênero, sua idade e sua
origem social. As oposições de gênero são, portanto, de dois tipos:
algumas parecem invariáveis no tempo e no espaço social, outras
parecem móveis, definindo de maneira social e temporalmente si-
tuada estereótipos nos quais se colhem referências e recursos, em
termos tanto de pertença quanto de exclusão.
.55
– Espaços de convergência: o quarto digital. Enquanto o computa-
dor permanece, entre os adultos, um objeto de clivagem por gê-
nero,16 a observação dos comportamentos das crianças indica que
os níveis de prática cotidiana são similares para meninos e meni-
nas, assim como seus níveis de envolvimento com a prática desde
os 13 anos. Os comportamentos das meninas e dos meninos em
relação ao computador e à internet se parecem, portanto, cada vez
mais à medida que eles crescem, notadamente entre as crianças
de categorias superiores. No caso dos filhos de executivos, a van-
tagem inicial dos meninos não dura, pois eles são alcançados pelas
meninas na segunda metade do período de colégio. Em compen-
sação, isso não ocorre nos meios populares, nos quais os meninos
de todas as idades investem mais no uso do computador que as
meninas, os filhos de executivos apresentando sempre um nível
de prática superior ao dos filhos de operários. À medida que as
crianças crescem, nota- se um movimento de convergência global
dos comportamentos das meninas e dos meninos em relação ao
acesso ao computador e à internet, com um atraso, porém, das
categorias populares. A internet reúne meninas e meninos em
torno de usos comuns, que redefinem os perímetros do femini-
no e do masculino, redefinição essa que parece mais difícil nos
meios populares. Para todos, meninas e meninos, filhos de ope-
rários e de executivos, o MSN é o uso mais frequente: o computa-
dor franqueia aos meninos uma entrada na cultura de quarto até
então fortemente feminina. O “quarto digital“17 dota os meninos
de competências e apetências dessa cultura de quarto feminina,
que inclui a prática do manejo do telefone: a internet permite aos
meninos um uso conversacional às vezes impossível nas outras
cenas – os adolescentes podem conversar no MSN com pessoas
do sexo oposto com as quais não falam no pátio de recreação do
colégio. A participação dos meninos nos fóruns e nos chats é outro
sinal dessa mutação dos estereótipos: se as práticas “tradicionais“
de escrita (diários íntimos, poemas etc.) são majoritariamente fe-
mininas, o uso das redes e dos blogs as franqueia aos meninos.
Assim, a convergência dos universos culturais das meninas e dos
meninos resulta de um duplo movimento de acesso das meninas
a instrumentos “masculinos“, porque tecnológicos, e de inscrição
dos meninos em usos de instrumentos tecnológicos que renovam
práticas “femininas“ (escrita, conversa etc.).
3. Transmissões múltiplas
.56
ter feito música por muito tempo, e a criança outra atividade artís-
tica. Essa plasticidade decorre também de efeitos de contexto, no-
tadamente aqueles ligados à evolução da oferta cultural: a aparição
de novos objetos culturais, sobretudo em matéria de multimídia, e
a evolução do nível de difusão dos equipamentos têm um impacto
direto sobre os fenômenos de transmissão entre gerações. Nesse
contexto, a transmissão varia em função de parâmetros individu-
ais: posição na fratria,19 mas, sobretudo, emancipação da criança à
medida que ela vai crescendo, pois o mecanismo da reprodução
é atravessado pela reflexividade,20 seja provocada por informações
colhidas no exterior, por meio das mídias, por exemplo, ou por um
distanciamento pessoal de seus próprios hábitos. Enfim, e sobre-
tudo, a criança deve ter vontade de herdar: o exemplo da leitura é
impressionante a esse respeito.21
Exposição Sutil Violento, itinerância Chile, Museo Nacional de Bellas Artes, 2008. Foto: Cia de Foto
.57
o que vem do pai, da mãe, dos irmãos e das irmãs, segundo o sexo
e a classe da criança. É necessário, portanto, mobilizar informações
sobre as práticas e normas educativas passadas para compreender
a relação atual com a cultura e as estratégias educativas das famí-
lias,25 num contexto em que as normas educativas familiares foram
transformadas pelo sucesso dos discursos sobre o florescimento
da criança26 e a feminização dos habitus cultivados especialmente
nos meios dotados de grande capital cultural.27 Mobilidade social
dos pais, relação com o tempo, extensão e densidade das redes
sociais, norma da realização pessoal, todos esses são parâmetros
que intervêm na transmissão.28
.58
dança social e cultural, entre ajustamento ou abandono. Trata-se
não só de uma transformação do capital cultural de uma geração
a outra – a cada geração de famílias correspondendo um contexto
sociocultural próprio –, mas também de uma mutação da sociali-
zação: a sociedade contemporânea se caracteriza por uma indivi-
dualização e uma desinstitucionalização relativas. Nesse contexto,
a socialização não é mais considerada como a adoção das normas
de um grupo, mas como o máximo aproveitamento dos meios ao
alcance do indivíduo para que ele se realize. Esse modelo, inicial-
mente característico das classes favorecidas, se expandiu na socie-
dade, principalmente nas representações.36 Nem por isso as clas-
sificações desapareceram num espaço social atomizado: o que se
transmite não é tanto o valor ou o volume absoluto desse capital,
mas a posição que ele ocupa e faz ocupar no espaço social, num
contexto sócio-histórico que evolui de uma geração para outra. A
mudança social, como ruptura conjuntural, participa inteiramen-
te desse processo de transmissão estrutural. A transmissão é uma
transformação homotética.37
.59
Sylvie Octobre
Socióloga, diretora de pesquisa no Departamento de Estudos da
Previsão e da Estatística do Ministério da Cultura e da Comunicação
da França. Trabalha com a sociologia de públicos e das práticas
culturais, particularmente hábitos culturais juvenis.
E-mail: sylvie.octobre@culture.gouv.fr
Notas
1
Usamos aqui esse termo com um sentido amplo de menoridade, que engloba um
processo de “crescimento” e pode incluir várias “idades”, cujas delimitações são passí-
veis de debate, mas cujo interesse metodológico basta para justificar este uso. Essa
acepção foi validada pela Agência Nacional da Pesquisa (Agence Nationale de la Re-
cherche) no lançamento de seu edital de projetos Infância, em 2009, e fundamenta
a consideração da infância como categoria social (cf. os trabalhos do grupo de so-
ciologia da infância da Associação Internacional dos Sociólogos de Língua Francesa,
w3.aislf.univ-tlse2.fr).
2
Jean Claude Chamboredon, Jean Prévot, Le “métier d’enfant”. Définition sociale de la
prime enfance et fonctions différentielles de l’école maternelle. Revue Française de Socio-
logie, 1973, 14-3; François de Singly. Les adonaiissants. Paris: Armand Colin, 2006.
3
Régine Sirota, Le métier d’élève. Revue Française de Pédagogie, n. 104, 1993.
4
Dominique Pasquier, Culturas lycéennes. La tyrannie de la majorité. Paris: Autre-
ment, 2005.
5
A noção de consumo deve ser entendida aqui em sentido amplo, englobando todas
as formas de participação cultural (práticas, saídas etc.).
6
Sylvie Octobre, Christine Detrez, Pierre Mercklé, Nathalie Berthomier. L’enfance des loisirs.
Trajectoires communes et parcours individuels de la fin de l’enfance à la grande adoles-
cence. Paris: Deps/MCC, 2010.
7
“Nosso objetivo é precisamente estudar a transformação da definição social da primeira
infância e mostrar como o limite entre a idade que requer cuidados principalmente psi-
cológicos e afetivos e as idades que requerem cuidados culturais recuou com a primeira
infância”(Jean-Claude Chamboredon, Jean Prévot, op. cit., p. 295).
8
Preferimos o termo “momento” (que indica uma posição num processo temporal) ao ter-
mo “idade”, que corre o risco de reificar o processo no qual esses momentos se instalam.
Esse processo se aproxima daquilo que psicólogos, pediatras, pesquisadores e clínicos
chamam de “ritmo de desenvolvimento” (que não tem nada a ver com o crescimento),
”roteiro ao longo das idades dos diferentes desenvolvimentos que caracterizam a criança”.
Certas etapas podem ser invertidas, faltar, se acoplar, outras podem surgir tardiamente
– ou precocemente. Os roteiros individuais estão marcados pela personalidade e pelas
influências do ambiente, e não pela existência de planos predeterminados. Hubert Mon-
tagnier, “Les rythmes majeurs de l’enfant“. In: Informations sociales, Temps sociaux: concor-
dances et discordances, temps et cycle de vie, n. 153, maio- jun. 2009.
9
Martine Ségalen. Rites et rituels contemporains, Nathan: Paris, 1998.
10
Michel Bozon. Des rites de passage aux ‘premières fois, une expérimentation sans
fin. Agora/Débats Jeunesse, n. 28, 2002.
11
“Podemos citar, de maneira desordenada, momentos de importância variável,
como o primeiro cigarro, o primeiro beijo, a primeira conta bancária, a maioridade
civil […] todos, momentos que contam e que se conta’’. Michel Bozon, op. cit., p. 29.
.60
12
Céline Metton Gayon. Les adolescents, leur téléphone et Internet, op. cit., p. 22.
13
Sara Bragg, David Buckingham. I think I’m too young to understand. In: Isabelle
Charpentier (dir.), Comment sont reçues les œuvres. Paris: Creaphis, 2006.
14
Serge Tisseron. Virtuel mon amour. Paris: Albin Michel, 2008.
15
Hervé Glévarec. La cultura de la chambre, Préadolescence et culture contemporaine
dans l’espace familial. Paris: Deps/MCC, 2009.
16
Olivier Donnat. Les pratiques culturais des Français à l’ère du numérique. Enquête 2008.
Paris: MCC, Deps/La Découverte, 2009.
17
David Buckingham. La mort de l’enfance. Grandir à l’âge des médias. Paris: Armand
Colin, 2010.
18
Claude Dubar. La socialisation. Paris: Masson et Armand Colin, 1997 (3. ed.); Bernard
Lahire. Tableaux de famille. Paris: Gallimard, 1995.
19
Estudos sobre as dinâmicas familiares mostram que os membros de uma mesma
fratria não “recebem“ a mesma coisa da mesma maneira. Frank J. Sulloway. Les Enfants
rebelles. Paris: Odile Jacob, 1999.
20
Jean Claude Kaufman. Ego. Pour une sociologie de l’individu. Paris: Nathan, 2001.
21
Christian Baudelot, Marie Cartier e Christine Detrez. Et pourtant ils lisent. Paris: Le
Seuil, 1999.
22
Pierre Bourdieu, Raisons pratiques. Paris: Minuit, 1994, p. 141.
23
Birgit Becker. The Transfer of cultural knowledge in the early childhood: so-
cial and ethnic disparities and the mediating role of familial activities. European
Sociological Review, vol. 26, n. 1, p. 17-29. A autora mostra o impacto de cer-
tas atividades culturais (especialmente a leitura, pelos adultos, de livros para a
criança) sobre a transmissão intergeracional do capital cultural incorporado.
Martine Ségalen. Familles: de quoi héritons nous?. In: Familles, permanences et méta-
24
25
Jean Kellerhals e Cléopatre Montandon identificam três estilos educativos segundo
os objetivos, os métodos, os papéis educativos e os modos pelos quais a família me-
diatiza as influências da escola, dos pares e das mídias: 1) o estilo autoritário se funda
numa visão estatutária das relações pais/filhos e privilegia a obediência e a disciplina
em famílias bastante fechadas em si mesmas; 2) o estilo negociador dá importância
à autonomia e à criatividade da criança, e valoriza as relações pais/filhos no seio de
famílias sob influência exterior (família associação); 3) o estilo maternal privilegia mais
a conformidade e a disciplina do que a autonomia, embora desenvolva uma comu-
nicação densa e uma grande proximidade entre pai e filhos, com uma atitude relati-
vamente reservada dessas famílias em relação ao meio exterior. Cf. Jean Kellerhals e
Cléopatre Montandon. Les Stratégies éducatives des familles. Milieu social, dynamique
familiale et éducation des pré-adolescents. Lausanne: Delachaux et Nestlé, 1991.
26
Martine Ségalen, Nicole Lapierre, Claudine Attias-Donfut. Le nouvel esprit de famille.
Paris: Odile Jacob, 2002; M. Ségalen. Familles: de quoi héritons nous? In Familles, per-
manences et métamorphoses: Paris: op. cit.
27
François de Singly. Les habits neufs de la domination masculine. Esprit, “Masculin/fémi-
nin“, nov. 1993.
28
N. Lin e M. Dumin.Access to occupation through social ties. Social Networks, vol.
8, 1986; Christian Baudelot, Michel Gollac, Céline Bessière, Isabelle Coutant, Olivier
Godechot, Delphine Serre, Frédéric Viguier. Travailler pour être heureux?. Paris: Fayard,
2003; Gilles Pronovost. Temps sociaux et pratiques cultuelles. Québec: Presses Universi-
taires du Québec, 2005.
29
Gender, networks and cultural capital. Poetics, n. 32, 2004.
.61
30
Philippe Coulangeon. Quel est le rôle de l’école dans la démocratisation de l’accès
aux équipements culturels?. In: Olivier Donnat e Paul Tolila (sous la dir. de). Les Pu-
blics de la culture, op. cit. e Lecture et télévision: les transformations du rôle cultural
de l’école. Revue Française de Sociologie. n. 48-4, 2007; Éric Schön. La fabrication du
lecteur. In: François de Singly (sous la dir. de). Identité, lecture, écriture. Paris: Centre Ge-
orges Pompidou/BPI, 1993. Os vínculos entre escola e práticas e consumos culturais
suscitam explicações que variam segundo a adoção do ponto de vista da sociologia
da educação (pesquisa dos impactos das práticas e consumos culturais extraesco-
lares sobre as performances escolares) ou da sociologia da cultura (explicitação do
efeito do grau de escolaridade sobre o acesso às atividades e aos consumos).
31
A pesquisa não permite delimitar as influências midiáticas, o que exigiria provavelmente
análises de conteúdos e de recepção, entre as quais alguns trabalhos mostraram o quanto
tais influências se articulam à sociabilidade juvenil e à construção de si. Dominique Pasquier.
La culture des sentiments. L’expérience télévisuelle des adolescents. Paris: Éditions de la Mai-
son des Sciences de l’Homme, 1999.
32
François Dubet. Paradoxes et enjeux de l’école de masse. In: Olivier Donnat e Paul
Tolila (sous la dir. de). Le(s) public(s) de la culture, op. cit.
33
Willy Lahaye, Jean-Pierre Pourtois, Huguette Desmet, Transmettre. D’une génération à
l’autre. Paris: PUF, 2007.
34
Uma comparação das práticas educativas de três gerações mostra uma evolução
dos modelos educativos rumo a formas mais igualitárias (Martine Ségalen, Nicolas
Lapierre, Claudine Attias-Donfut. Le nouvel esprit de famille. Paris: Odile Jacob, 2002),
o que redefine as posturas parentais [François de Singly. À quoi sert la famille?. In:
Jean-François Dortier (sous la dir. de). Familles, permanence et métamorphoses. Auxer-
re: Sciences Humaines, 2002]. A família moderna privilegiava as relações hierárquicas
entre seus membros, a família pós-moderna privilegia um modelo igualitário, rela-
cional e afetivo. Cf. Jean François Dortier. La famille aujourd’hui, bouleversements et
recompositions. In: Jean François Dortier (sous la dir de), op. cit.
35
Bernard Lahire. De la théorie de l’habitus à une sociologie psychologique. In: Le
travail sociologique de Pierre Bourdieu. La Découverte. Paris: 2001.
36
François de Singly. Comment aider l’enfant à devenir lui même?. Paris: Armand
Colin, 2009.
37
Willy Lahaye, Jean-Pierre Pourtois, Huguette Desmet. Transmettre; D’une génération
à l’autre, Paris: PUF, 2007.
38
Isso é o que Bernard Lahire chama de “socialização silenciosa” [Bernard Lahire. Hé-
ritages sexués et incorporation des habitudes et des croyances. In: T. Blöss (sous la
dir. de). La dialectique des rapports hommes-femmes, 9-25. Paris: PUF, 2000] e o que
as teorias do aprendizado social discutem sob o nome de “processo de observação”
(Albert Bandura. L’apprentissage social. Bruxelas: Mardaga, 1980): o princípio da trans-
missão reside na observação e na imitação de comportamentos, mas também de
atitudes e valores.
39
Anne Muxel. Mémoire familiale et projet de socialisation de l’enfant: des obstina-
tions durables. Dialogue, 1984; Annick Percheron. La transmission des valeurs. In F. de
Singly (sous la dir. de). La famille, l’état des savoirs. Paris: La Découverte, 2001.
41
S. Octobre e Y. Jauneau. Tels parents, tels enfants? Une approche de la transmission
cultural, art. cit.
42
Dominique Pasquier. Les savoirs minuscules, Le rôle des médias dans l’exploration
des identités de sexe. Education et Sociétés, 2002/2, n. 10.
.62
Espetáculo O Tal do Quintal, Balangandança Cia. Foto: Cia de Foto
.63
de la Villetet1 em Paris junto aos espectadores dos espetáculos de
circo). Haveria ainda, teoricamente, um quinto nível, com o es-
tudo do público de uma representação particular – estudo mais
próximo dos públicos reais.
.64
Se compararmos nosso conhecimento atual com aquele de que
dispúnhamos há 30 ou 40 anos, é inevitável constatar que progre-
dimos consideravelmente. A pesquisa sobre as práticas culturais
dos franceses abriu caminho e continua sendo uma mina de in-
formações. Ela permite estimar o número de espectadores ocasio-
nais e regulares; descrever as práticas de lazer dos espectadores;
estabelecer hipóteses; e, até mesmo, avançar em explicações so-
bre os fatores sociais que influenciam a frequentação dos espe-
táculos. Essa pesquisa, periodicamente atualizada, permite ainda
medir evoluções ocorridas ao longo de 30 anos. Em praticamente
todos os países ocidentais existem pesquisas análogas. Mesmo
permanecendo delicada, a comparação internacional permite ao
mesmo tempo confirmar as teorias explicativas da frequentação e
isolar a influência do fator “nacional”.
.65
Desse modo, as pesquisas sobre o público das artes do espetá-
culo são escassas, sobretudo se comparadas às disponíveis so-
bre museus, bibliotecas ou cinema. O Département des Etudes,
de la Prospective et des Statistiques2, do Ministério da Cultura,
realizou ou apoiou trabalhos sobre os públicos do teatro, da
dança, do circo e das músicas ditas amplificadas, mas ainda não
existe nenhum estudo global sobre o público dos concertos de
outros gêneros de música; nenhum sobre os públicos das di-
versas formas de “arte da rua”; e nenhum sobre muitos gêneros,
como marionetes, mimodrama ou opereta. Quanto aos estudos
conduzidos por algumas instituições junto a seus espectadores,
eles são ainda mais raros. Só o Parque de La Villette e a Ópera de
Paris têm um serviço de estudos que realiza pesquisas sistemáti-
cas junto aos espectadores.
.66
público, isto é, de determinado público, como a sua heterogenei-
dade social, o seu número, a presença em seu seio de uma pessoa
particular, a sua mobilidade eventual, a sua nacionalidade etc., são
susceptíveis de exercer efeitos particulares sobre a recepção indi-
vidual do espetáculo (pensemos no contágio das gargalhadas) e,
mais ainda, sobre a sua significação social. Passando do público
real ao público conceitual, definido pelo fato de que seus mem-
bros frequentaram tal lugar ou tal gênero ao longo de um período
arbitrariamente fixado – por exemplo, os 12 últimos meses –, não
nos arriscamos a perder precisamente ‘‘o público”?
.67
resultados obtidos nas diferentes escalas não se articulam facil-
mente entre si. Por exemplo, saber que a probabilidade de assistir
a um espetáculo de qualquer gênero varia globalmente segundo
o nível de instrução não permite em nada explicar a frequentação
do circo ou dos concertos de rock. Mas, inversamente, se apenas
estudamos no detalhe os públicos específicos, podemos perder
de vista as grandes determinações sociais da frequentação. A ar-
ticulação das abordagens micro e macro parece, desse ponto de
vista, um dos principais desafios das pesquisas futuras.
.68
ça folclórica. É o nível de instrução que produz as variações mais
importantes: dependendo dos gêneros, as taxas de frequentação
podem variar do simples ao dobro (casos do circo e do espetáculo
de rua) ou do simples ao quíntuplo (caso do concerto de música
clássica) entre as pessoas de pouca instrução ou não diplomadas
e os franceses com muita diplomação. Citemos três exemplos: a
dança, o teatro e o espetáculo de rua. Enquanto três pessoas sem
curso superior a cada 100 dizem ter visto um espetáculo de dan-
ça clássica ou contemporânea nos últimos 12 meses, a proporção
é de 21% nos mais diplomados (isto é, BAC4 mais 4, no mínimo).
No caso do teatro, as taxas são respectivamente de 9% e de 47%
(apenas 47%, diga-se de passagem). No caso do espetáculo de
rua, as taxas são de 21% e de 53%, embora pudéssemos esperar
que a gratuidade desses espetáculos e a igualdade de princípio
dos passantes diante dos eventos que ocorrem no espaço públi-
co reduziriam ou mesmo anulariam os desníveis. O tamanho da
cidade de residência exerce uma influência menor do que a do
nível de instrução, se excetuarmos o caso de Paris, onde as taxas
de frequentação são geralmente três, quatro ou cinco vezes supe-
riores àquelas observadas em outras cidades. Um exemplo: 56%
dos parisienses vão pelo menos uma vez por ano ao teatro, ante
apenas 12% das pessoas que vivem em cidades de menos de 20
mil habitantes e 18% das que vivem em cidades maiores. Quanto
aos efeitos da localização geográfica, eles continuam difíceis de es-
timar à luz da pesquisa sobre as práticas culturais dos franceses, em
razão da fraqueza dos efetivos da amostragem nacional, que foram
subdivididos em 22 regiões.
Espetáculo A Mulher Caixa, Cia
Rosa Vermelha de Teatro, projeto
Domingo da Criança, 2003.
Foto: Rubens Chiri
.69
Observemos também que as taxas de frequentação, gênero por
gênero, categoria social por categoria social, evoluíram pouco des-
de que se começaram a realizar na França os estudos sobre as prá-
ticas culturais. As variações não ultrapassam 2% ou 3%, para mais
ou para menos, de uma pesquisa à outra. Observamos esse mesmo
fenômeno nos outros países em que se fazem tais pesquisas, o que
permite supor que a frequentação aos espetáculos, inicialmente
regida por fatores estruturais, é ligeiramente submetida à conjun-
tura, isto é, a parâmetros não diretamente ligados à posição social
dos espectadores, como os fatores climáticos ou políticos (como a
baixa da frequentação durante a Guerra do Golfo, por exemplo) ou
ligados à oferta (como a presença em cartaz de espetáculos midi-
áticos como as produções de Robert Hossein ou certas comédias
.70
Foto: Humberto Pimentel
.71
De resto, o que pode nos parecer ocasional no caso do cinema
(como uma frequentação de quatro saídas por ano) nos parecerá
regular no caso do teatro, ou mesmo intenso no caso da dança.
Deixando de lado tais considerações, percebemos que a maioria
dos espectadores de determinado gênero não vê mais do que um
espetáculo desse gênero por ano. Seja qual for a definição estatís-
tica dada à frequentação ocasional (isto é, ir uma ou duas vezes), o
número de espectadores ocasionais é sempre claramente superior
ao dos “não ocasionais”. Se, inversamente, definimos a frequenta-
ção regular por um número de saídas superior a três, então ela se
aplica a uma ínfima minoria de espectadores.
.72
se construímos variáveis com “ter visto um espetáculo de deter-
minado gênero e um de outro gênero, e de outro ainda”, e cal-
cularmos o número de franceses que satisfazem essas condições,
obteremos sempre, ao combinar três gêneros, sejam eles quais
forem, uma ínfima minoria de pessoas, sempre inferior a 5% e mais
frequentemente próxima de 1%. Os que viram todos os tipos de
espetáculo nos últimos 12 meses representam menos de 0,5% da
amostragem. Os que viram uma peça de teatro e um espetáculo
de dança representam 4% dos franceses. Se acrescentarmos o cri-
tério, por exemplo, de ter visto um concerto de música clássica,
essa proporção cai para 2%. Se combinarmos teatro, dança e con-
certo de rock, ela cai para 1%.
.73
junto a jovens de 12 a 25 anos mostra que a “falta de informação”
que eles invocam para explicar sua baixa frequentação é, na rea-
lidade, um excesso de informação, ou uma falta de hierarquia, de
pertinência, de qualidade, de foco na informação pletórica que
lhes chega.
.74
caso das artes do espetáculo, são muito mais complexos do que
as pesquisas geralmente permitem supor.
.75
Jean-Michel Guy
Graduado pela Escola de Altos Estudos Comerciais de Paris, com
mestrado em sociologia. Pesquisador do Ministério da Cultura e da
Comunicação, junto ao Departamento de Estudos, Planejamento
e Estatística. Conduz estudos sociológicos, principalmente sobre
públicos das artes cênicas e do cinema. É professor de análise
crítica na Escola Nacional das Artes do Circo de Rosny-sous-Bois e
do Centro Nacional das Artes do Circo de Châlons-en-Champagne.
E-mail: jean-michel.guy@culture.gouv.fr
Notas
1
Estabelecimento Público do Parque e da Grande Halle da Villette.
2
Departamento dos Estudos, da Prospectiva e das Estatísticas.
3
Os resultados dessa pesquisa de 2008 estão disponíveis em: http://pratiquescultu-
relles.culture.gouv.fr
4
BAC: abreviatura de baccaleauréat, titulação referente ao fim do ensino médio [nota
do tradutor].
.76
O Corpo na Arte Contemporânea Brasileira, performance de Marco Paulo Rolla, São Paulo, SP, 2005.
Foto: Cia de Foto/Itaú Cultural
A ARTE CONTEMPORÂNEA
EXPOSTA ÀS REJEIÇÕES:
CONTRIBUIÇÃO A UMA
SOCIOLOGIA DOS VALORES
Nathalie Heinich
Grupo de Sociologia Política e Moral
.77
situações de desacordo sobre a natureza dos objetos deixam paten-
te a pluralidade dos registros de avaliação de que dispõem os atores
para construir e justificar uma opinião sobre o valor dos objetos sub-
metidos à sua apreciação.
.78
subjetivo do efeito sensorial. A essa primeira razão da paradoxal
raridade das desqualificações em termos de beleza acrescenta-se
uma segunda, ligada ao método adotado: com efeito, o acesso às
reações espontâneas é extremamente dependente de seu caráter
público uma rejeição sendo tanto mais perceptível quanto menos
limitada ao foro íntimo ou ao domínio privado da troca de opini-
ões entre amigos. Ora, essa barreira metodológica seleciona tudo
aquilo que, nos juízos sobre a arte, advém não apenas do gosto
pessoal (para cuja expressão a esfera privada basta), mas também
Exposição A Subversão dos Meios, São Paulo, SP, 2003. Foto: Rubens Chiri/Itaú Cultural
.79
de uma ética geral, de uma exigência política ou cívica capaz de
justificar um posicionamento público. Quando valores gerais ou
objetiváveis estão em jogo, como a justiça, a moral, o interesse
nacional, é normal que os cidadãos exprimam publicamente sua
indignação; porém, quando se trata de valores percebidos como
subjetivos que escapam à conceituação, como o sentimento da
beleza para os não especialistas, a única expressão possível é de
ordem igualmente subjetiva, do tipo “eu não gosto”, ou privada,
o “não é bonito” se exprimindo então numa interação imediata.
Mas é difícil imaginar uma petição para denunciar a feiura de uma
obra de arte: é preciso que outros valores gerais estejam em jogo,
como a integridade do patrimônio, a conformidade dos procedi-
mentos legais ou a justiça em relação aos outros artistas.8 O mé-
todo escolhido leva, portanto, a privilegiar essas situações para-
doxais em que um fenômeno artístico, supostamente situado na
esfera privada “dos gostos e das cores”, se vê transformado pela
rejeição em problema de sociedade, investido de valores morais,
políticos, cívicos etc.
Existe, enfim, uma terceira razão para tal escassez dos argumentos
estéticos: para que o critério de beleza seja aplicado a uma obra
de arte, é preciso pelo menos que esta seja considerada como tal,
isto é, que ela apresente as características canônicas de uma pin-
tura ou de uma escultura. Mas desde que estas estejam ausentes,
como ocorre amiúde na arte contemporânea, o espectador tem
apenas duas soluções: 1) aceitar redefinir as fronteiras do que é
ou não artístico, alargando-as sob o risco de se deixar enganar
ao admirar ou adquirir objetos sem valor, e de negligenciar, ao
mesmo tempo, o trabalho dos autênticos artistas; 2) recusar o que
transgride as fronteiras constituídas pela tradição, sob o risco de
ignorar as tentativas que a posteridade reconhecerá como autên-
ticas e mesmo geniais (caso típico do “efeito Van Gogh”). A ques-
tão pertinente deixa então de ser a questão da beleza do objeto e
passa a ser a de sua natureza, artística ou não.
.80
Essa denúncia apoiada na exigência hermenêutica de uma significa-
ção tão universal quanto possível, acessível, portanto, ao maior nú-
mero de pessoas, pode visar não só à obra como também ao seu au-
tor. Nesse último caso, trata-se então de usar o critério da reputação,
constitutivamente ambivalente, pois a notoriedade pode ser cono-
tada positivamente como honra ou negativamente como glória vã
ou celebridade indevida: seja a qualidade da reputação (ser bem
falado), seja sua quantidade (ser muito falado). Além disso, esse cri-
tério de notoriedade pode remeter tanto ao excesso de reputação,
quando se suspeita que o artista só age para obter fama, aparecer
na mídia e ser comentado, quanto à falta de reputação, quando ele
é desqualificado como esotérico, pouco conhecido ou reconhecido
apenas por uma pequena seita de adeptos, incapaz de existir para
além do círculo de seus próximos. Nesse último caso, falta de fama, o
julgamento é enunciado a partir de um “regime de comunidade”, em
que é o grande número, o coletivo, o geral que determina a grande-
za; no primeiro caso, de excesso de fama, o julgamento é enuncia-
do a partir de um “regime de singularidade”, em que a grandeza se
mede pela qualidade de um pequeno grupo de admiradores qua-
lificados, pela individualidade de uma personalidade indiferente à
opinião alheia, pela particularidade de uma expressão fora de série,
incomum, sem paralelo.
.81
Aqui intervêm, em matéria de arte contemporânea, diferentes pro-
cedimentos de desqualificação, frequentemente mais pertinentes
que a questão da autenticação das obras, pois não é a sua origem
que os espectadores leigos questionam, mas sim as motivações do
pretenso artista. Ele busca a fama, mais do que a expressão de suas
próprias emoções, ou a beleza das coisas? Então, como vimos, ele é
inautêntico por vaidade, falta de humildade para consigo mesmo
ou para com a natureza. Ele se move pela busca do lucro? Então
ele é inautêntico por falta de desprendimento. Ele imita, ou mesmo
plagia, seus pares ou seus colegas mais velhos ao invés de inventar?
Então ele é inautêntico por falta de originalidade e de profundidade.
Ele tende a se repetir, a aplicar as mesmas receitas, a ceder à rotina?
Rumos Artes Visuais, Caixa de Som,
de Laila Terra, 2009. Foto: Edouard
Fraipont/Itaú Cultural
.82
Então ele é inautêntico por falta de inspiração. Seu objetivo é zom-
bar da arte, enganar os espectadores, vender gato por lebre e fazer
passar meras brincadeiras por criações dignas de admiração? Então
ele é inautêntico por falta de sinceridade, por cinismo, por irreve-
rência para com a arte. Enfim, ele é louco, psicopata, delirante ou
profundamente neurótico? Então ele é inautêntico por carecer de
uma razão que indicaria sua pertença à comunidade humana – pelo
menos enquanto sua loucura não tenha se transformado em sinal
ou garantia de inspiração criadora, do gênio fora do comum, segun-
do a ambivalência do singular.13
.83
Estamos aqui no cruzamento do registro “estético” – pois o pro-
blema posto é o do pertencimento ao mundo da arte – com o de
um registro que proponho chamar de “purificatório”, pois tal per-
tencimento não é mais justificado pelo sentimento da beleza da
obra, mas pela necessidade de classificar, de “separar o joio do tri-
go”, de preservar a integridade da arte limpando-a de tudo o que
venha paralisá-la, desnaturá-la ou mesmo poluí-la. A noção de
autenticidade pertence ao mesmo tempo à estética, enquanto se
aplica à arte, e à defesa da integridade por assim dizer ontológica
de um objeto valorizado: vejamos o caso das inúmeras críticas
insistindo na necessidade de uma discriminação que evitaria mis-
turar o que não combina ou confundir uma coisa qualquer com
a verdadeira criação.
.84
é que são espontaneamente mobilizados. Reencontramos aqui
em primeiro lugar o registro que chamamos de “purificatório”, as-
sociado não mais à autenticidade artística, mas à natureza do lugar
ocupado pela obra, que deve ser respeitado em sua integridade,
preservado naquilo que lhe confere sua identidade. Esse é um ar-
gumento recorrente nas rejeições à arte contemporânea, quando
as pessoas se pronunciam não sobre o valor intrínseco da propos-
ta artística, mas sobre a congruência com o espaço que ela vem
ocupar ou com a temporalidade na qual se inscreve: “em outro lu-
gar talvez, mas não aqui”, “isto descaracteriza este lugar”, “isto não
combina com o resto da praça”, “não é do mesmo estilo” etc. É o
princípio das inúmeras desqualificações em nome da preservação
do patrimônio – das quais o caso Buren no Palais-Royal é um dos
melhores exemplos.
.85
vanguarda nova-iorquina numa galeria de província. Tal registro
pode remeter ao “mundo industrial” segundo Boltanski e Thévenot,
quando se enfatizam a racionalização das despesas e a eficácia dos
investimentos; ao “mundo mercantil”, quando se enfatiza o lucro;
mas, sobretudo, ao “mundo cívico”, quando se trata de dinheiro pú-
blico, que deve ser gasto em conformidade com o interesse geral
ou, ao menos, com o interesse de categorias carentes de ajuda
específica – desempregados, doentes nos hospitais, velhos vulne-
ráveis, grevistas.
.86
verbais (“é ilegal”) ou desdobradas em atos, quando os protestos
se traduzem em queixa formal e processo judicial. Tal situação é
rara (nem que seja porque esse registro possui um grau elevado
de tecnicidade), mas pode acontecer mais facilmente quando a
causa já é assumida por associações, como é o caso notadamen-
te com a defesa do patrimônio (caso Buren) e com a defesa dos
animais (caso Ping no Beaubourg em 1994, incidente envolvendo
uma instalação de Annette Messager na Bienal de Lyon em 1993).
É aqui, em todo caso, que as duas partes podem encontrar um
terreno comum, diferentemente dos outros registros de valor, que
só levam ao diferendo.
.87
tir desse repertório, que revela ao mesmo tempo a diversidade dos
valores invocados e a grande coerência dos princípios sobre os
quais repousam as rejeições, vários caminhos se abrem para um
projeto explicativo. Poderíamos perguntar pelas probabilidades
da aparição e da frequência de tal ou tal registro, em função da
capacidade diferenciada dos atores a mobilizá-los segundo sua
posição no campo, sua origem social, seu habitus (para retomar
aqui as vias exploradas por Pierre Bourdieu). Poderíamos também
analisar como as diferentes situações podem favorecer tal ou qual
registro, a exemplo da oposição público/privado que, para além
de considerações propriamente estéticas, alarga consideravel-
mente a gama disponível para os atores (e reencontraríamos aqui
as preocupações contextuais caras à sociologia interacionista). Po-
deríamos também nos concentrar nas propriedades dos objetos,
em sua capacidade desigual de acionar tal ou qual registro (na via
aberta pela antropologia das ciências e das técnicas segundo Bru-
no Latour e Michel Callon).
.88
sem as características canônicas de uma obra de arte tende a ser o
mundo vivido, ao qual se aplicam os valores do mundo ordinário;
para os iniciados, porém, o único referente realmente pertinente
é a história da arte – e uma história da arte muito especializada,
que ultrapassa largamente a cultura escolar. Assim, se os leigos
têm clara dificuldade para “compreender” a arte contemporânea,
os iniciados não estão mais bem equipados para “compreender” a
incompreensão dos leigos.
.89
Estado, notadamente a partir de 1981, na gestão de Jack Lang à
frente do Ministério da Cultura.18 O financiamento sistemático da
arte contemporânea de vanguarda pelo Estado contribuiu para-
doxalmente para enrijecer as oposições a ela, acumulando a re-
jeição da vanguarda com a do poder: dois espantalhos opostos,
no entanto, pois um resulta de uma sensibilidade de direita e o
outro de uma sensibilidade de esquerda. Em vez de estar, como
antes, do lado da marginalidade, a arte de vanguarda tende a
se ver, ao menos no imaginário das pessoas, do lado do poder.
Assim, as posturas de oposição, refratárias às instituições e aos
espaços de poder, puderam se constituir contra essa arte, que
já se constituíra, porém, na oposição às instituições artísticas:
é a denúncia da arte contemporânea como novo academismo,
como arte oficial. Esse fenômeno de reconhecimento antecipa-
do da vanguarda pelas autoridades privou-a de sua dimensão
anti-institucional, permitindo assim a acumulação da rejeição
tradicionalista do vanguardismo com a rejeição progressista dos
poderes constituídos.
.90
Nathalie Heinich
Socióloga e diretora de pesquisas junto ao Centro Nacional de Pes-
quisa Científica (CNRS). Suas pesquisas tratam do estatuto do artista
e da noção de autor, da arte contemporânea, de questões de iden-
tidade e da história da sociologia. É autora de diversos artigos em
revistas científicas e culturais.
E-mail: heinich@ehess.fr
Notas
1
Desenvolvi esse argumento em N. Heinich. La partie de main-chaude de l’art
contemporain. In: Art et contemporanéité. Bruxelas: La Lettre Volée, 1992. O presente
artigo sintetiza algumas das conclusões de uma pesquisa/enquete realizada para a
Delegação das Artes Plásticas do Ministério da Cultura: Heinich, N. Les rejets de l’art
contemporain, 1995.
2
Sobre a noção de registros valorativos, cf. Heinich, N. L’esthétique contre l’éthique, ou
l’impossible arbitrage: de la tauromachie considérée comme un combat de registres.
Espaces et Sociétés, Esthétique et territoire, n. 69, 2, 1992; Esthétique, symbolique et sensi-
bilité: de la cruauté considérée comme un des Beaux-Arts. Agone, n. 13, 1995. Optei pelo
termo ‘‘registro’’ em detrimento de ‘‘tópico’’ (retórico demais) usado na análise do discurso,
e de ‘‘attitude’’ (comportamental demais) usado em psicossociologia.
3
DURKHEIM, É. Jugements de valeur et jugements de réalité, 1911. In: Sociologie et philo-
sophie. PUF, 1967, p. 95.
4
Cf. GOFFMAN, E. 1974. Les cadres de l’expérience. Paris: Minuit, 1991; HEINICH, N. Pour intro-
duire à la cadre-analyse. Critique, n. 535, dez. 1991.
5
Cf. WALZER, M. 1983. Spheres of justice. A defence of pluralism and equality. Oxford: Bla-
ckwell, 1993. BOLTANSKI, L.; THÉVENOT, L. De la justification. Les économies de la grandeur.
Paris: Gallimard, 1991.
6
A noção de “autonomia” é tomada de Pierre Bourdieu: cf. Les règles de l’art. genèse et
structure du champ littéraire. Paris: Le Seuil, 1992. Esse repertório de registros tem como
objetivo considerar a heterogeneidade das estratégias de avaliação em situação, tais
como as observamos em corpus exaustivos, não expurgados, não reconstruídos a partir
de um modelo de análise. Ele não se situa, portanto, em um mesmo plano que a mode-
.91
lização proposta por Boltanski e Thévenot, embora possa se articular com ela: trata-se aqui
simplesmente de propor instrumentos mais finos para a análise empírica, permitindo se-
guir de perto os processos argumentativos (cf. HEINICH, N. Les colonnes de Buren au Pa-
lais-Royal: ethnographie d’une affaire. In: Ethnologie Française, 1995, n. 4). É especialmente
a exploração do “mundo inspirado” (para retomar a terminologia deles) que parece exigir,
diante do material empírico, uma diferenciação dos registros de valor mobilizados em
matéria de avaliação artística: a distinção entre objetos e pessoas, o tipo de generalidade
visada ou, ainda, a grandeza do particular são de fato problemas específicos e recorrentes
em “regime de singularidade”, o qual necessita de um tratamento diferente do “regime de
comunidade” ao qual obedecem as formas clássicas de construção de uma grandeza pela
generalidade (cf. HEINICH, N. La gloire de Van Gogh. Essai d’anthropologie de l’admiration.
Paris: Minuit, 1991; Façons d’etre écrivain. l’identité professionnelle en régime de singularité.
Revue Française de Sociologie, 1995, XXXVI-3, 1995).
7
Para uma análise filosófica dessa questão: SCHAEFFER, Jean-Marie. Les célibataires de
l’art. Pour une esthétique sans mythe. Paris: Gallimard, 1996.
8
Um dos únicos casos de rejeição expressa principalmente em termos estéticos foi o de
uma fonte de Bernard Pagès em La Roche-sur-Yon, quando um jornal local abriu suas colu-
nas aos leitores para que eles exprimissem sua opinião: a existência de um suporte público
encorajando de antemão uma enunciação personalizada permitiu que protestos contra a
ausência de beleza se façam ouvir no espaço público. Cf. HEINICH, N. Esthétique, déception
et mise en énigme. La Beauté contre l’art contemporain. In: Art Présence, n. 16, 1995.
9
Cf. ELSTER, J. 1983. Le laboureur et ses enfants. Deux essais sur les limites de la rationalité.
Paris: Minuit, 1986.
10
No original, “une mise-en-énigme” [nota do tradutor]. Sobre essa noção de “mise-en-
énigme”, cf. HEINICH, N. La gloire de Van Gogh, op. cit.; Esthétique, déception et mise-en-
énigme”, op. cit.
11
Desenvolvi essa oposição em N. Heinich, La gloire de Van Gogh, op. cit.
12
Cf. HEINICH, N. Les objets-personnes: fétiches, reliques et oeuvres d’art, Sociologie de
l’art, n. 6, 1993.
13
Sobre a ambivalência do singular, cf. HEINICH, N. La gloire de Van Gogh, op. cit.
14
Sobre as bases antropológicas da noção de pureza, cf. DOUGLAS, Mary. De la souillure,
1967. Paris: Maspéro, 1981.
Métailié, 1993.
16
LYOTARD, J. F. Le différend. Paris: Minuit, 1983, p. 260.
17
Embora esse maniqueísmo seja em parte uma visão do espírito, mesmo na
época dos salões. Basta pensar em Zola, partidário fervoroso de Manet, depois
adversário de Cézanne através do personagem de Lantier: era ele favorável ou
contrário à arte moderna?
18
Sobre a evolução institucional das belas-artes a partir da revolução, cf. Des beaux-arts aux
arts plastiques. Une histoire sociale de l’art. Besançon: La Manufacture, 1991. Sobre a situação
atual, cf. Raymonde Moulin. L’artiste, l’institution et le marché. Paris: Flammarion, 1992. Sobre
a lei de Baumol e o agravamento dos desequilíbrios entre oferta e demanda pelas subven-
ções públicas, cf. Pierre-Michel Menger. Le paradoxe du musicien. Le compositeur, le mélo-
mane et l’Etat dans la société contemporaine. Paris: Flammarion, 1983. Sobre as instâncias de
decisão, cf. Philippe Urfalino. Politiques culturelles: mécénat caché et académies invisibles. In:
L’Année Sociologique, vol. 89, 1989. Sobre o papel dos Frac e a evolução de sua política desde
a sua criação, cf. Pierre-Alain Four, L’Etat, les Frac et le monde de l’art. In: Raison présente, n.
107, 1993.
19
No original, “jeu-de-main chaude”, nome francês da brincadeira de criança praticada
com dois ou mais participantes, que devem superpor de modo alternado as mãos
espalmadas, a mão que está em baixo da pilha vindo a cada vez cobrir a que estava
em cima [nota do tradutor].
.92
O Regresso de um Proprietário de Chácara, de Jean-Baptiste Debret. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil.
Paris: Firmin Didot Fréres, 1835, coleção Banco Itaú. Foto: Horst Merkel
.93
França. Suas missões repousavam na política linguística e educativa.
As trocas artísticas serviam principalmente às comunidades france-
sas expatriadas, e as manifestações propostas lhes eram destinadas:
funcionários das embaixadas e consulados, dos liceus franceses e
das empresas implantadas nos países. A circulação se fazia em cir-
cuito fechado, de maneira autofágica e contemplativa, variando de
acordo com a história das relações diplomáticas nesta ou naquela
região do mundo e com a noção de representação baseada no efei-
to vitrine do nosso país, orgulhoso da sua cultura e trabalhando de
maneira vertical.
.94
das embaixadas. O anúncio é feito pelo ministro de Assuntos Exte-
riores e Europeus, Bernard Kouchner, em 28 de outubro de 2010. Ele
foi, desde o início, mal recebido pela rede e pela imprensa. Os insti-
tutos franceses, novo nome para todos os institutos, deveriam ser os
intermediários da agência parisiense, à maneira do British Council.
Diante do redemoinho dos meios diplomáticos e dos protestos dos
embaixadores que perdiam seu poder, mas também um instrumen-
to de ação, essa reforma chamada de modesta6 dá meia-volta: os ins-
titutos franceses continuam vinculados às suas embaixadas – exceto
dez deles, a título de experiência.
Visão do campo
.95
.96
Alexandria – Vista do obelisco Agulha de Cleópatra e da torre dita dos romanos na perspectiva sudoeste.
Description de L’ Egypte, Antiquités, vol. V, pl. 32, coleção Banco Itaú. Foto: Iara Venanzi/Itaú Cultural
.97
cidade de hoje. A região metropolitana de Alexandria conta com 3,9
milhões de habitantes (alguns falam em 6 milhões), dos quais mais
de 95% vivem em Alexandria, e os outros, na cidade nova de Burj al
Arab e seus arredores. Segundo Roger Ilbert, Alexandria concentra
todas as contradições do presente:
Política cultural
.98
de fidelização, sem reflexão sobre a tarificação. A demanda cultural
é muito aleatória e a oferta é vigiada. No Egito, não há nenhuma
formação artística, não há estatuto do artista. Dessa forma, ele não é
merecedor de respeito, pois o senso de civismo é precário. A falta de
infraestrutura no país impede toda ideia de turnê, a lógica da difusão
é uma abstração, a montagem de uma produção se improvisa, e o
porta a porta junto aos centros culturais estrangeiros recolhe ajudas
cada vez menores.
Paisagem artística
.99
International Development Cooperation Agency – e a Fundação
Euro-Mediterrânea Ana Lindh para o Diálogo entre as Culturas, fun-
dada em 2005 e sediada em Alexandria. O reservatório de talentos é
grande, a energia também.17
.100
cultural (principalmente no exterior) só pode se desenvolver no con-
texto de uma troca horizontal, de um diálogo, de uma confrontação.
Esse é um gesto cultural que se faz.
.101
alizadores, atores, críticos – egípcios ou dos diferentes países repre-
sentados – etc. Eventos bilaterais foram programados com cada um
dos centros: com o Goethe Institut, foram organizados espetáculos
de dança na Biblioteca Alexandrina,24 dois projetos realizados com
o apoio do Fundo Franco-Alemão:25 uma exposição de fotografias,
GlobaLocal, sobre o tema da modernidade no Egito,26 e um trabalho
de coleta de contos no oásis de Siwa, com a publicação de uma bro-
chura trilíngue, Contes du Désert, entre Passé et Present, l’Oasis de Siwa,
participando da preservação da mémória social e coletiva do oásis e
das identidades locais.27
.102
tam recompor o puzzle. O Centro Cultural Francês participa do mo-
vimento com sua programação cultural.
.103
blico – filmes, sobretudo –, como o ciclo Lanterna Mágica, e para
adultos e todos os públicos, ciclos de filmes. É preciso colar à agen-
da, à atualidade, mantendo ao mesmo tempo certa flexibilidade (se
negligenciamos tais regras, a sala de espetáculo corre o risco de ficar
deserta). Há participação, fervor, expectativas, desejo de aprender,
aquisição de saberes, busca da compreensão, abertura a outras cul-
turas. Há encontros e convívio. Os frequentes agradecimentos na
saída da sala de espetáculos, calorosos e encorajadores, valem todo
o trabalho do mundo.
.104
Constata-se que os egípcios frequentam mais o centro do que a
comunidade francesa, pequena em Alexandria. Os números indi-
cando que o grupo dos jovens é majoritário não surpreendem, se
lembrarmos que 61% dos egípcios têm menos de 30 anos e que, de
resto, eles se concentram em certos eventos, como os concertos. Os
menos jovens são os pilares do cinema e assistem maciçamente aos
encontros e debates.
.105
Cena de Carnaval, de Jean-Baptiste
Debret. Voyage Pittoresque et
Historique au Brésil. Paris: Firmin
Didot Fréres, 1835, coleção Banco
Itaú. Foto: Horst Merkel
a oferta artística e cultural se desenvolvia, o instrumento de infor-
mação também se refinou. O levantamento das estatísticas, alguns
números, primeiro esboço, indica que 17.750 pessoas em 2007 e
11.110 entre janeiro e agosto de 2008 assistiram a algum evento,
segundo a seguinte repartição:
.106
saberes não tem muito direito de cidadania e a abordagem das
linguagens artísticas contemporâneas se aprende pouco a pouco.
O “boca a boca” funciona.36 Espera-se uma conquista da palavra, a
partir do que hoje se manifesta mediante uma torrente às vezes
difícil de canalizar, ligada a uma sede de expressão e de confronta-
ção dos saberes.
.107
A Unesco desenvolveu o conceito de “cultura da paz” e milita pelo
reforço do diálogo entre as culturas:
Brigitte Rémer
Doutora em sociologia e especialista na área de políticas culturais
internacionais. Dirigiu por 12 anos a Formação Internacional Cultura,
do Ministério da Cultura francês, que dá suporte a especialistas em
políticas culturais de diversos países. Foi diretora adjunta do Centro
Cultural Francês de Alexandria, no Egito, e atualmente é consultora
em políticas culturais e internacionais.
E-mail: brigitte.remer@free.fr
.108
Notas
1
BARTHES, Roland. L’empire des signes. Paris: Seuil, 2005, p. 76.
2
Chamados então de institutos: Florença cria o seu em 1908; Londres, em 1910; Lis-
boa, em 1928; Estocolmo, em 1937. Rapidamente, as universidades se articulam, a
França lhes envia numerosos intelectuais como leitores (caso de Raymond Aron, por
exemplo, enviado a Colônia em 1930) e os dois conceitos, o de centro e o de univer-
sidade, se dissociam.
3
Unesco: em 1988, lançamento da Década Mundial do Desenvolvimento; em 1992,
criação da Comissão Internacional sobre a Educação (presidida por Jacques Delors) e
da Comissão Mundial sobre a Cultura e o Desenvolvimento (presidida por Javier Perez
de Cuellar); em 2001, adoção, pela Conferência Geral, da Declaração Universal sobre
a Diversidade Cultural – Conselho da Europa: publicações, seminários de reflexão,
formações, trabalho do serviço de políticas e ações culturais – União Europeia: pro-
moção dos programas comunitários, como Cultura 2000, e de programas em países
fora da Europa.
4
Devèze Laurent. Institutos Français à L’Étranger. In: WARESQUIEL, Emmanuel de (dir.).
Dictionnaire des politiques culturelles. Paris: Larousse – CNRS, 2001, p. 341.
5
Rapport Dauge sur les centres culturels français, fevereiro de 2001.
6
No Le Monde de 1-2/11/2009, um artigo de Nathaniel Herzberg trazia no título “Re-
forma modesta da rede cultural francesa no exterior”.
7
Fui diretora adjunta do Centro Cultural Francês de Alexandria de 2004 a 2008. Caso
particular, o cônsul-geral da França tem ali o estatuto de diretor. Como tal, está sub-
metido ao conselheiro cultural junto à embaixada da França no Cairo, o que cria certa
confusão. Como cônsul, ele continua sendo seu próprio chefe, numa missão chama-
da, em Alexandria, de “consulado de influência”.
8
ILBERT, Robert . Le symbole d’une Méditerranée ouverte au monde. In: Alexandrie
1830-1930: histoire d’une communauté citadine, op. cit., p. 16-17.
9
Amira Doss, Au grand désespoir d’Alexandrie. Al-Ahram Hebdo 25-31/7/2005.
10
Amkenah, une revue à Alexandrie (entrevista de Alaa Khaled a Richard Jacque-
mond). Egypte(s) littératures. Pensée de Midi, n.12. Marselha, Printemps, 2004, p. 46.
11
Amira Samir. Une cité polyphonique. In: Al-Ahram Hebdo, 30/4 – 6/5/2008, p. 27.
12
ILBERT, Roger. Alexandria 1830-1930, Histoire d’une communauté citadine, op. cit.,
p. 481.
13
O Centro Cultural Jesuíta tem duas salas: Le Garage, 200 lugares, convivial; o auditó-
rio, 320 lugares, menos convivial e menos equipado.
14
Concertos de Bumcello, Toma Sidibé, Orange Blossom e Clotaire K. Teatro com o War-
sha Théâtre. Dança com a Companhia S’Evad e suas Lettres à Van Gogh, entre outros.
15
Frequentemente dirigidos por militares aposentados.
16
Farouk Hosni, que se candidatou ao posto de diretor-geral da Unesco há dois anos
e, durante um período, esteve fortemente cotado para o cargo.
17
A revolução iniciada em 25 de janeiro de 2011 é uma prova.
18
Entrevista com Hassan El Geretly, diretor do Warsha Théâtre, em 2009.
19
Desde que o Cairo arque com os cachês dos artistas e com as viagens França-Egito.
“Façons de voir, manières de faire, les jeunes en Egypte” e “Etre femme en Egypte et
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Conheça os números anteriores da Revista Observatório Itaú Cultural,
disponíveis em PDF para download no site do Observatório Itaú Cultural:
http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2798.
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Revista Observatório Itaú Cultural nº 5
A quinta revista é resultado do seminário internacional A Cultura pela Cidade – uma Nova
Gestão Cultural da Cidade, organizado pelo Observatório Itaú Cultural. A proposta do semi-
nário foi promover a troca de experiências entre pesquisadores e gestores de Brasil, Espa-
nha, México, Canadá, Alemanha e Escócia, que utilizaram a cultura como principal elemento
revitalizador de suas cidades. Nesta edição, além dos textos especialmente escritos para o
seminário, estão duas entrevistas para a reflexão sobre o uso da cultura para o desenvolvi-
mento social: uma com Alfons Martinell Sempere, professor da Universidade de Girona, e
outra com a professora Maria Christina Barbosa de Almeida, então diretora da biblioteca da
ECA/USP e atual diretora da Biblioteca Mário de Andrade. A revista nº 5 inaugura a seção de
crítica literária, com um artigo sobre Henri Lefebvre e algumas indicações bibliográficas. Para
encerrar a edição, há o texto sobre a implantação da Agenda 21 da Cultura.
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itaú cultural avenida paulista 149 [estação brigadeiro do metrô] fone 11 2168 1777 atendimento@itaucultural.org.br www.itaucultural.org.br twitter.com/itaucultural youtube.com/itaucultural